Você está na página 1de 4

1.

4 A CONFIGURAÇÃO DE UM SISTEMA “MULTIPORTAS” PARA A COMPOSIÇÃO DE CONFLITOS1

A distribuição de justiça com base na litigiosidade é parte essencial da tradição brasileira, o que
acaba afastando as pessoas do caminho natural da negociação e conduzindo o destino dos problemas
privados ao Estado.

Por tal razão319, em nosso sistema jurídico o Código de Processo Civil sempre constituiu o eixo
central do sistema de pacificação de conflitos na órbita que lhe é própria, coexistindo com
microssistemas de extinção de litígios que não se encontram diretamente acomodados às formas
previstas em tal Codex.

O movimento normativo das últimas décadas – que passa pela Lei de Arbitragem, por previsões de
processos administrativos geradores de títulos executivos, pela Resolução n. 125/2010 do CNJ e que
culmina com a tônica “consensual” do CPC), promulgado em data próxima à da Lei de Mediação (Lei n.
13.140/2015) –, altera esse cenário.

É forçoso reconhecer a existência de um amplo panorama de meios de abordagem das


controvérsias. Deve-se conceber, portanto, que, garantido o acesso à instância jurisdicional, as partes
possam ser encaminhadas a formas diferenciadas para compor o conflito.

Sistema multiportas é o complexo de opções que cada pessoa tem à sua disposição para buscar
solucionar um conflito a partir de diferentes métodos; tal sistema (que pode ser ou não articulado pelo
Estado) envolve métodos heterocompositivos (adjudicatórios) e autocompositivos (consensuais), com
ou sem a participação estatal.

A solução de disputas pode caminhar por métodos “facilitativos”, como a negociação e a mediação,
ou por meios com maior grau de avaliação, que variam desde recomendações e arbitragens não
vinculantes até métodos vinculantes como a arbitragem e o juízo estatal.

Vem-se entendendo caber não só à sociedade civil, mas também ao Estado, a tarefa de prover
diversas opções aos jurisdicionados.

A Constituição Federal, ao ampliar a noção de acesso à justiça, incumbiu o Poder Judiciário de dar
atendimento a um número maior de reclamos, razão pela qual os responsáveis pela justiça
institucionalizada têm o compromisso de multiplicar as portas de acesso à proteção dos direitos
lesados.

Essa perspectiva foi bem expressa no CPC/2015; após enunciar no caput a garantia de acesso à
justiça, o art. 3.º dispõe no § 2.º que “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual
dos conflitos”.

Em reforço a tal diretriz, há proposta de Emenda Constitucional para que passe a constar
expressamente, no art. 5.º, que “o Estado estimulará a adoção de métodos extrajudiciais de solução de
conflitos” (novo inciso LXXIX). A justificativa da proposta remete ao sistema multiportas, cuja intuito é
fornecer várias opções (várias “portas”) de solução de conflitos alternativamente ao Poder Judiciário.

Como exemplo, pense em alguém que, ao buscar o Poder Judiciário, encontre um leque de opções
em que a solução “sentença judicial” passa a ser uma dentre outras; nesse cenário, aberta a porta do
Judiciário, “haveria como que uma antessala em que novas portas estariam à disposição, cada uma
representando um método diferente”.

1
Extraído de Tartuce, Fernanda. Mediação nos Conflitos Civis. Disponível em: Minha Biblioteca, (7th edição). Grupo GEN,
2024.
Na mesma linha, há referências na doutrina à existência de um sistema pluriprocessual de
enfrentamento de controvérsias, configurado pela presença no ordenamento de diversos mecanismos
diferenciados para tratar os conflitos, compreendendo mediação, arbitragem e processo judicial, entre
outros.

A oferta de mecanismos diferenciados para a realização de justiça não demanda que estes se
excluam, mas considera que métodos variados podem e devem interagir, de modo eficiente, para
proporcionar ao indivíduo múltiplas possibilidades de abordagem eficiente das controvérsias. Para
André Gomma de Azevedo, a partir do pluriprocessualismo,

[...] busca-se um ordenamento jurídico processual no qual as características intrínsecas de cada


processo são utilizadas para se reduzirem as ineficiências inerentes aos mecanismos de solução
de disputas na medida em que se escolhe um processo que permita endereçar da melhor
maneira possível a solução da disputa no caso concreto.

Na escolha da forma de lidar com a disputa, costumam ser cotejados fatores como custos
financeiros, celeridade, sigilo, manutenção de relacionamentos, flexibilidade procedimental,
exequibilidade da solução, desgastes emocionais, adimplemento espontâneo do resultado e
recorribilidade, entre outros.

Há sistemas jurídicos em que o magistrado encaminha as partes ao meio que reputa eficiente no
caso concreto. É relevante a experiência americana nos “tribunais multiportas”: o jurisdicionado, ao
buscar uma saída para a controvérsia, pode ser direcionado a diversificados meios de composição; nos
Estados Unidos, às partes são disponibilizados não só o encaminhamento judicial da questão, mas
também as vias arbitral e da mediação.

Como apontado, a Resolução n. 125 do CNJ vem exercendo um importante papel no Brasil desde
que reconheceu a instituição da “Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos” e
expressou a necessidade de oferta de meios consensuais pelos tribunais.

O sistema multiportas estatal pode ser definido como a atividade do Poder Judiciário empreendida
para orientar os litigantes sobre as diferentes alternativas para compor o conflito, sugerindo qual seria a
saída mais pertinente para o deslinde da questão; o Estado se incumbe de encaminhar as partes no
sistema de multiportas de forma gratuita, orientando-as antes do início de uma demanda judicial.

Em modelos gerenciados pelo Poder Judiciário (como o brasileiro) cabe a ele o papel de gestor do
conflito apto a indicar o meio mais adequado, ainda que se afastando da clássica prestação
jurisdicional; nesse tipo de cenário, o meio selecionado pode ser obrigatório ou não.

Nos termos da Resolução n. 125 do CNJ, “os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais
deverão assegurar que nos Centros atue ao menos um servidor com dedicação exclusiva, capacitado
em métodos consensuais de solução de conflitos, para triagem e encaminhamento adequado de casos”
(art. 9.º, § 3.º). Como explica Valeria Lagrasta:

A orientação ao público é feita por funcionários do Judiciário, devidamente treinados para


receber as partes e direcioná-las ao procedimento mais adequado para o seu tipo de
conflito, cabendo ao magistrado, portanto, além da função jurisdicional, que lhe é
inerente, a fiscalização e o acompanhamento desse trabalho de triagem e da atuação dos
terceiros facilitadores – função gerencial –, sendo que, mesmo nos processos judiciais já
instaurados, deve verificar, diante das circunstâncias dos casos concretos, quais devem
ser encaminhados a um procedimento autocompositivo e quais devem ser resolvidos
judicialmente, sempre tendo em vista a pacificação social, passando a exercer um papel
de administrador de processos de resolução de disputas ou de “gestor de conflitos.

Cada vez mais amplia-se a percepção de que o processo, sozinho, jamais será instrumento
suficiente para dar cabo de todos os conflitos sociais. Assim, cresce a consciência de que, se o que
importa é pacificar, torna-se irrelevante considerar se a pacificação decorreu de atividade do Estado ou
por outros meios eficientes.

Como pondera Carlos Alberto de Salles, não há “razão de ordem prática ou jurídica para permitir a
afirmação sobre a precedência das formas judiciais” sobre as demais vias de composição de conflitos.
No mesmo sentido, Carrie Menkel-Meadow aponta que tanto a resposta jurisdicional estatal quanto a
saída consensual devem conviver, sem se considerar que um de tais meios seja a via principal de
solução de conflitos.

Quanto mais opções forem disponibilizadas ao jurisdicionado, maior a chance de alcançar uma
resposta útil e eficiente para impasse vivenciado.

O enquadramento da solução estatal como uma das várias possibilidades de composição de


controvérsias é importante por abrir um leque que permite diagnosticar e empreender uma escolha
pertinente segundo diversos fatores. Assim, será possível, além de reduzir a sobrecarga do Poder
Judiciário, proporcionar canais aptos a gerar respostas adequadas à situação dos interessados.

No sistema legal brasileiro, a adoção de meios “alternativos” sempre se verificou de forma


acentuada com o incentivo à conciliação. A ideia de estimular a decisão do conflito pelos seus
protagonistas sempre esteve presente em nossa legislação processual civil.

Destaque-se ainda a figura do juiz ativo no processo; a tendência legislativa de dotar o magistrado
de poderes adicionais é corrente em diversos ordenamentos jurídicos. Relata Kazuo Watanabe a
existência, em Direito comparado, de várias experiências no sentido de promover uma condução mais
detalhada do processo; como exemplo, explica o autor, o modelo americano de case management, que
constitui a

[...] atividade processual que fortalece o controle judicial sobre: a) identificação das questões
relevantes, b) maior utilização pelas partes de meios alternativos de solução de controvérsias, c)
tempo necessário para concluir adequadamente todos os passos processuais. O juiz planeja o
processo e disciplina o calendário, ouvindo as partes. Pelo contato frequente que ele mantém
com as partes, e destas entre si, promove a facilitação para uma solução amigável da
controvérsia. E, mesmo não ocorrendo o acordo, as técnicas do case management permitem ao
juiz eliminar as questões frívolas e planejar o processo, fazendo-o caminhar para o julgamento
(trial) com eficiência e sem custo exagerado.

Já houve entre nós a busca de instrumentos para que o juiz agisse de maneira semelhante,
especialmente no exercício de atividades saneadoras do processo. A iniciativa deveu-se à noção de que
projetos relativos ao gerenciamento das causas de forma eficiente revelam-se essenciais para que haja
uma racionalização maior da prestação jurisdicional.

Eis por que o Código de Processo Civil prevê que, frustrada a tentativa consensual verificada no
início do processo, passe o magistrado a fixar os pontos controvertidos e a desempenhar comando firme
do processo quando do seu saneamento.

A despeito de tal conteúdo normativo, infelizmente os resultados práticos desejados custam a ser
alcançados, já que na prática muitos juízes não exercem todas as possibilidades ao seu alcance.
Além das previsões sobre conciliação existentes no Código de Processo Civil de 1973, também em
legislações esparsas percebeu-se, na década de 1990, um incremento na busca por meios
diferenciados de composição de conflitos. Dentre as iniciativas legislativas com viés conciliatório
merece destaque a Lei n. 9.099/1995, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis Estaduais; como
afirmado, o fenômeno se intensificou com as previsões sobre meios consensuais presentes no CPC e
na Lei de Mediação.

O sistema brasileiro se alinha à tendência verificada em diversos ordenamentos no sentido de que


o Estado conduza as partes a formas diferenciadas de solução de conflitos.

Em relação ao fenômeno verificado entre nós, merece destaque o surgimento da já mencionada


“jurisdição compartilhada”, que se apoia na “efetiva aptidão e idoneidade de uma dada instância, órgão
ou agência, no setor público ou privado, para prevenir ou dirimir conflitos em modo justo e num tempo
razoável”.

Nesse sentido, afirma Marcial Barreto Casabona que, “se o órgão judicante tem condições de dispor
de uma ferramenta que leve a um melhor equacionamento e, portanto, a uma melhor solução da
questão, pode e, com cuidado ao dizer, dela deve se utilizar”.

A institucionalização da invocação de meios consensuais nos conflitos debatidos em juízo revela a


instituição do sistema multiportas entre nós.

Vale destacar um ponto importante: deve haver significativa cautela e precisa adequação da
postura do magistrado ao realizar a “sugestão” às partes quanto à adoção de meios diferenciados a fim
de evitar não só situações de constrangimento e intimidação, como também a indevida procrastinação
do processo, em prejuízo da tão desejada celeridade.

É de grande importância que, ao fomentar o consenso, haja respeito à autonomia dos envolvidos na
controvérsia, que podem ter dificuldades consideráveis para enxergar as possibilidades de êxito na
tentativa consensual naquele momento com o mesmo otimismo que os facilitadores do consenso.

A autonomia da vontade das partes é, ressalte-se, um princípio destacado tanto no CPC (art. 166, §
4.º) quanto na Lei de Mediação (art. 2.º, V).

Estimular os meios consensuais deve ser uma iniciativa engendrada com cuidado e respeito sob
pena de dar a impressão de que tais mecanismos não passam de “pedras” no caminho de quem deseja
resolver conflitos – impressão reforçada quando parece que eles atendem muito mais aos interesses
dos gestores da justiça do que à vontade dos envolvidos na disputa.

Faz-se imperioso não esquecer que durante a sessão consensual não se atua segundo os
parâmetros do julgamento formal, com a imposição de resultados pela autoridade estatal: a lógica
conciliatória demanda o reconhecimento da dignidade e da inclusão das pessoas, rechaçando
condutas autoritárias por força do respeito recíproco que deve pautar a atuação dos participantes.

Assim, a par das alterações legislativas com incentivo ao uso de meios consensuais, devem os
administradores da justiça atuar para disseminar informações sobre a variada gama de meios de
composição de conflitos. Munidos de dados relevantes e pertinentes, as pessoas envolvidas em
disputas e/ou seus advogados poderão, cientes das diversas possibilidades, optar com liberdade por
uma das formas de abordar controvérsias.

Você também pode gostar