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F. BORGEAUD, G CAMBIANO, L, CANFORA, Y GARLAN


C, MOSSÉ, 0„ MURRAY, J, REDFIELD,
CH SEGAL, M., VEGETTI. J,-P. VERNANT

O HOMEM GREGO
Direcção de Jean-Pierre Vernant

Tradução de:
M aria J orge V e a r de F igueiredo

EDrrORlAL PRESENÇA
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FICHA TÉCNICA

ITtulo original: L Uoino Greco


Autores: F. Borgcaud, G. Cambiano. L Canfora, Y Garlan
C Mossé, O Murray, J. Rcdjield,
Cfi Segai, M Vcgetli, J -P Vemant
Direcção de: Jean-Pierre Vemant
© 1991, Gius. Laterza & Figli Spa, Roma-Bari
Tradução ® Editorial Presença, Lisboa, 1993
Tradução de: Maria Jorge Vilarde Figueiredo
Capa: Sector Gráfico de Editorial Presença
Composição: Multitipo — Artes Gráficas. Lda.
Impressão e acabamento: Guide — Artes Gráficas
I * edição, Lisboa, 1994
Depósito legal n * 63 412/93

Reservados todos os direitos


para a Kngua portuguesa à
EDITORIAL PRESENÇA
Rua Augusto Gil, 35-A 1000 Lisboa
INTRODUÇÃO

O que queremos dizer exactamente quando nos referimos ao homem grego, e em


que sentído podemos considerar-nos autorizados a retratá-lo? Poder%e-á falar do
homem grego no singular? De Atenas a Esparta, da Arcádia, da Tessália ou do Epiro
até às cidades da Ásia Menor, às colónias do mar Negro, da Itália meridional e da
Sicília, encontrar-se-á sempre, e em todo o lado, apesar da diversidade de situações,
de sistemas de vida, de regimes políticos, um único modelo de homem? E esse grego,
cuja imagem se tenta fixar, será o homem dos tempos arcaicos, o herói guerreiro
cantado por Homero, ou o outro, diferente sob tantos aspectos, que, no século iv,
Aristóteles definiu como um «animal político»? Embora os documentos de que
disporqos nos tenham induzido a,çentr^ a nossa investigação no j^eríod^^
focando, na maior parte dos casos, a cidade de Atenas, a personagem que se esboça no
cí- r
final do estudo apresenta, mais do que uma imagem unívoca, uma figura decomposta
numa multiplicidade de facetas, em cada uma das quais se reflecte o ponto de vista
que os autores da obra preferiram privilegiar Assim, veremos sucederem-se uns aos
outros, de acordo com o ponto de vista previamente escolhido, o grego cidadão,
religioso, militar, económico, doméstico, ouvinte e espectador, participante das diver­
sas formas de convívio, um homem que, desde a infância até à idade adulta, segue um
percurso obrigatório de provas e de etapas para se tomar homem no sentido pleno do
termo, era conformidade com o ideal grego da realização do ser humano,.
Embora, nesta galeria de retratos elaborados por estudiosos modernos, cada um
corresponda singularaiente a um objectivo ou a um problema particular (o que
significa, para um grego, ser cidadão, soldado ou chefe de família?), a série dos
quadros não forma uma sequência de ensaios justapostos mas um conjunto de
elementos que se intersecíam e se completam, para nos darem uma imagem original
cujo equivalente exacto não existe em outro lugar Construído pelos historiadores,
este modelo propõe-se de facto destacar os aspectos característicos das actividades
desempenhadas pelos Gregos nos grandes sectores da vida colecüva Um esquema
não arbitrário, que para encontrar uma estrutura se baseou numa documentação o
mais ampla e precisa possível, e também não banal, na medida em que, pondo de
parte os termos genéricos acerca da natureza humana, visa individualizar o que há
de específico nas regras de vida dos Gregos, o seu modo particular de se servirem de
práticas universalmente difundidas, tais como as referentes à guerra, à religião, à
economia, à pohtica, à vida doméstica
Singularidade grega, portanto. Tomá-la clara equivale a adoptar desde o primeiro
..momento u_mponto de vista comp^ativo e, em confronto com outras cultmas, a acen­
tuar, para lá dos aspectos comuns, as divergências, os desvios, as diferenças Em
primeiro lugar, diferenças em relação a n^s, aos modos de agir, pensar e sentir que nos
são tão familiares que nos parecem totaímente naturais, mas de que é necessário des-
pojar-nos quando nos voltamos para os Gregos, para não bloquearmos a focagem do
olhar que pousamos sobre eles Diferenças que também existem em relação a homens
de Jemppsriiferentes do antigo, de civilizações diferentes da civilização grega.
Todavia, é possível que o leitor, mesmo disposto a reconhecer connosco a
originalidade do caso grego, se sinta tentado a fazer uma outra objecção e interro­
■i. r . c
gar-nos acerca do termo «homem». Porquê o homem, e não a civilização ou a polh
grega? E podería objectar que o que está sujeito a alterações constantes é o contexto
social e cultural e que o homem adapta os seus modos de agir a essas variações, mas
em si permanece idêntico. Em que é que o olhar do cidadão de Atenas, no sé­
culo v a , C., difere do olhar dos nossos contemporâneos? Certíssimo- Todavia,
neste livro, o problema não diz respeito ao olhar ou ao ouvido mas ao modo como os
Gregos se serviam deles: a visão e a percepção auditiva, o seu papel, as suas formas e
o^seu estatuto respectivo. Para mc compreendefem melhor, citarei um exemplo,
esperando que me seja perdoada a referência pessoal: como poderemos ver hoje a
Lua com os olhos de um grego? Foi uma experiência que eu mesmo fiz, na minha
juventude, durante a primeira viagem à Grécia., Navegava de noite, de ilha em ilha;
estendido no convés, olhava o céu por cima de mim, onde a Lua brilhava, luminoso
rosto nocturno que projectava o seu claro reflexo, imóvel ou oscilando sobre a
obscuridade do mar. Sentia-me deslumbrado, fascinado por aquele suave e estranho
brilho que banhava as ondas adormecidas; sentia-me emocionado como se se
tratasse de uma presença feminina, próxima e simultaneamente longínqua, familiar
mas inacessível, cujo esplendor tivesse vindo visitar a obscuridade da noite. O que
eu estou a ver é Selene, dizia para comigo, nocturna, misteriosa e brilhante Muitos
anos depois, ao ver no ecrã do meu televisor as imagens do primeiro astronauta
lunar saltitando pesadamente, com o seu escafandro de cosmonauta, no espaço triste
de uma desolada periferia, à impressão de sacrilégio que senti juntou-se o sentimento
doloroso de uma ferida que não poderia ser curada: o meu neto, que como toda a
gente viu essas imagens, já não será capaz de ver a Lua como eu a vi: com os olhos
de um grego, A palavra Selene tornou-se uma referência meramente erudita: a Lua,
tal como hoje surge no céu, já não responde a esse nome
Todavia, como um homem é sempre um homem, continua a pensar-se que, se os
historiadores conseguirem reconstituir perfeitamente o ambiente em que viviam os
antigos, terão cumprido a sua missão e, ao lê-los, cada um poderá identificar-se com
um grego. Saint-Just não era o único revolucionário a pensar que bastaria que o
republicano de 1789 praticasse, à moda antiga, as virtudes da simplicidade, da
frugalidade e da intransigência para se identificar com o grego ou com o romano.
É Marx quem, na Sagrada FamÜia, coloca de novo as coisas no seu devido lugar:

«Um erro que se revela trágico quando Saint-Just, no dia da sua execução, apontando
para a grande tábua dos direitos do homem exposta na sala da Conciergerie, exclama
com justificado orgulho; 'No entanto, isso é obra minha ’’ Mas esse texto proclamava
justamente os direitos de um homem que não pode ser o homem da comunidade antiga,
tal como as condições de vida económicas e industriais não podem ser as da Antigui­
dade .»

Como escreve Françots Hartog, que cita esta passagem: «O homem dos direitos
não pode ser o homem da polU amiga,» E ainda menos pode sê-lo o cidadão dos
Estados modernos, o seguidor de uma religião monoteísta, o trabalhador, o indus­
trial ou o financeiro, o soldado cias guerras mundiais entre nações, o pai de família
com a sua mulher e os seus filhos, o indivíduo considerado na sua vida pessoal
íntima, o jovem actual, que até atingir a idade adulta vive uma adolescência que se
prolonga indefmidamente
Dito isto, qual deve ser a tarefa do apresentador, ao introduzir uma obra sobre o
homem grego? Não certamente a de resumir ou comentar os textos com que, nos
sectores que da sua competência, os mais qualificados helenistas contribuíram para
esta obra, facto que quero agradecer-lhes sen tidamente
Mais do que repetir ou glosar tudo o que eles exprimiram melhor do que
ninguém, gostaria, de acordo com o mesmo espírito comparativo, de adoptar uma
perspectiva ligeiramente diferente da deles, uma visão transversal em relação à sua
visão; com efeito, cada um deles se auto-obrigou a limitar a sua análise a um aspecto
do sistema de vida, distinguindo assim, na existência do grego antigo, uma série de
planos distintos. Abordando de um outro ângulo o mesmo problema e centrando
desta vez sobre o indivíduo a rede de fios que eles teceram, perguntar-me-ei quais
são, nas relações do homem grego com o divino, com a natureza, com os outros,
consigo mesmo, os pontos salientes que é necessário ter em conta para definir
exactamente a «diferença» que o caracteriza nos seus modos de agir, de pensar, de
sentir, ou seja, na sua forma de estar no mundo, na sociedade, no seu próprio eu
Um projecto cuja ambição poderia fazer sorrir, se, para me atrever a tanto, eu
não tivesse duas justificações. Em primeiro lugar, após quarenta anos de pesquisas
levadas a cabo no seguimento e em companhia de outros estudiosos sobre aquilo
que defini como a história interna do homem grego, ainda não chegou o momento
de fazer o balanço, elaborando conclusões de carácter geral. Nos inícios dos anos
60, escrevi:

«Quer se trate de factos religiosos (mitos, rituais, representações figurativas), de


ciência, de arte, de instituições sociais, de factos técnicos e económicos, consideramo-
-los sempre como obras criadas pelo homem, como expressão de uma actividade menta!
organizada. Através dessas obras, procuramos o que foi o homem em si, esse homem
grego inseparável do quadro social e cultura! de que ele é, ao mesmo tempo, artífice e
produto »

Uma declaração programática que, passado um quarto de século, considero


poder continuar a subscrever. No entanto — e é esta a minha segunda justifica­
ção — , embora possa parecer demasiado temerário na sua ambição de captar traços
gerais, o meu projecto é mais modesto porque mais circunscrito Ponho de parte os
resultados — certamente parciais e provisórios, como sempre acontece com qual­
f-

Ítí í ^s' quer estudo histónco — ch.pesqui_sa_que efectuei acerca das aJterações que, entre o
^ Iv^'ï c século vin e o^século iv a._C., se produziram no quajdro das actividades e das ^nções
psicológicas do homem grego: representações, do espaço, formas da temporalidade,
memória, imaginação, vontade, pessoa, práticas simbólicas e utilizações dos signos,
mqdos,de,.raciocinar, .instrumentos inteiectuais. Prefiro colocar o perfil cujas Unhas
c»í. r.^', ;i; tento definir sob o signo não do homem grego, mas do homem grego e de nós Não
0 prego como foí em si, tarefa impossível porque a própria ideia está desprovida de
significado, mas o Grego como nos aparece hoje, no fim de um percurso que, à falta
de um diálogo directo, avança num vaivém incessante, de nós para ele, de ele para
nós, conjugando análises objectivas e desejos de simpatia; incidindo na distância e
na proximidade; afastando-nos para nos aproximarmos mais sem o perigo de nos
confundirmos e aproximando-nos para melhor captar as diferenças e, ao mesmo
tempo, as afinidades.
Comecemos pelos deuses. O que é que o divino representa para um grego e
como é que o homem se posiciona em relação a ele? Formulado nestes termos, o
problema pode ser falseado ã partida. As palavras não são inocentes, Para nós, a
palavra «deus» não evoca apenas um ser único, eterno, absoluto, perfeito, transcen­
dente, criador de tudo o que existe, mas, associado a uma série de outi’os conceitos
àfms (o sagrado, o sobrenatural, a fé, a igreja e o clero), delimita, tomando-se
soUdáiio com ele, um campo particular de experiência — o religioso — que tem um
papel, uma função e um estatuto nitidamente diferentes das outras componentes da
vida social. O sagrado opõe-se ao profano, o sobrenatural ao mundo da natureza, a
fé à descrença, os sacerdotes aos leigos, e assim se separa deus de um universo que
depende inteiramente dele, porque foi ele quem o criou e criou-o do nada. Todavia,
as inúmeras divindades do politeísmo grego não possuem as características que,
segundo este sistema, definem o divino. Não são eternas, perfeitas, omniscientes, ou
omnipotentes; não criaram o mundo, nasceram nele e dele, vindo à luz do dia por
gerações sucessivas, ã medida que o universo, a partir dos poderes primordiais,
como Caos, o Vazio, e Geia, a Terra, se iam diferenciando e organizando, E o
universo era a sua morada. Por conseguinte, a sua transcendência é absolutamente
relativa, válida apenas em relação à esfera humana Tal como os homens, mas acima
deles, os deuses fazem parte integrante do cosmos,
O que significa que entre o humano e o divino não existe a fractura radical que,
para nós, separa a ordem da natureza do sobrenatural, A percepção do mundo em
que vivemos, tal como se oferece aos nossos olhos, e a procura do divino não
constituem duas abordagens diferentes ou opostas, mas duas atitudes que podem
coincidir ou confundir-se. A Lua, o Sol, a luz do dia, a noite, ou uma montanha, uma
gmta, uma nascente, um rio ou um bosque podem ser interpretados e sentidos como
qualquer uma das grandes divindades do panteão. Todos estes elementos suscitam
as mesmas formas de respeito e de admirada deferência que caracterizam as rela­
ções entre o homem e a divindade. Qnd.e_está então a fronteira entre.ps homens e..os
deuses? De um lado, existem seres lábeis, efêmeros, sujeitos às doenças, ao enve­
lhecimento, à morte; neles, tudo o que confere valor e luz à existência (juventude,
força, beleza, graça, coragem, honra, glória) se deteriora paia sempre; não há nada
que não implique, para cada bem precioso, o mal que lhe corresponde, e que é o seu

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contrário e o seu corolário: não há vida sem morte, juventude sem velhice, energia
sem cansaço, abundância sem um penoso empenlio, prazer sem sofrimento. Neste
mundo, toda a luz comporta a sombra, todo o esplendor tem a sua vertente obscura
O contrário acontece entre aqueles que são chamados imortais {athànatoi), felizes
{màkares), poderosos {kreittous)'. as divindades.
Cada uma delas, no sector que lhe é próprio, encarna os poderes, as capacidades,
as virtudes, os favores de que os homens, ao longo da sua existência, não podem
usufruir senão como reflexo fugaz e opaco, como num sonho Entre as duas raças,.ü í, cU Íí.nir.<;-
divina e a humana, há pois uma diferença, uma disparidade de que o Grego, na
clGU-C
época clássica, está profundamente consciente Sabe que entre os homens e os
deuses existe uma froníeiia intransponível: apesar dos recursos do espírito humano
e de tudo o que o homem foi capaz de descobrir ou de inventar ao longo dos séculos,
0 futuro continua a ser indecifrável, a morte irremediá^vel, os deuses mantêrn-se fora
do seu alcance e para íá da sua inteligência, eos olhosbumanos não podem suportar
p esplendor do seu rosto De facto, no que diz respeito às relações com as divindã-
des, uma das regras fundamentais da sabedoria grega é que ahpmenLnão pode.de
Jorma alguma pretender tomarrse.igual,a ejes,
A aceitação — como facto inerente à natureza humana e que seria inútil recrimi­
nar— de todas as imperfeições que necessariamente acompanham a nossa condição
comporta uma série de consequências de sinal diverso. Em primeiro lugar, o Grego
não poderia esperar — nem exigir — que os deuses lhe concedessem, sob uma forma
qualquer, a imortalidade de que gozam. A esperança na sobrevivência do indivíduo
após a morte a não ser como sombra amolecida e privada de consciência nas trevas do
Hades, não entra na relação de permuta insdtuída com a divindade através do culto,
ou, em todo o caso, não é o seu princípio nem um dos seus elementos primordiais. Os
Atenienses do século rv deviam achar pardculamiente estranlia e incongruente a ideia
de uma imortalidade individual, pelo menos a avaliai' pela circunspecção com que, no
Fédon, e por intermédio de Sócrates, Platão afirma a existência de uma alma imortal
em cada individuo Além do mais, essa alma, na medida em que é imperecível, é
concebida como uma espécie de divindade, um daimon: longe de se confundir com o
indivíduo humano, que converte num ser singular, asscmclha-sc ao divino dc que é
como que uma partícula momentaneamente dispersa sobre a Terra,
Segunda consequência. Embora intransponível, a distância entre os deuses e os
homens não.exclui a existência de uma certa sem.elhança entre eles. São habitantes
de um mesmo mundo, mas de um mundo construído em planos diferentes e rigoro­
samente hierarquizado, De baixo para cima, do inferior para o superior, a diferença
é a que existe entre o menos e o mais, a privação e a plenitude, segundo uma escala
de valores que se vai ampliando sem uma verdadeira cesura, sem aquela mudança
total de plano que, devido ao facto de serem incomensuráveis, exige a passagem do
finito paia o infinito, do relativo para o absoluto, do tempo paia a eternidade. Como
as perfeições de que os deuses são dotadqs são um prolongamento Unear das
perfeições que se manifestam na ordem e na beleza do mundo, na harmonia feliz de
uma cidade governada segundo a justiça, na elegância de uma vida regida pela
moderação e pelo autocontrolo, a religiosidade do homem grego não desemboca na
via da renúncia ao mundo, mas na sua estetização.

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Os homens submetem-se aos deuses como o servo se .submete ao seu senhor,
de quem depende A existência humana não se pode referir apenas a si mesma
O nascimento obriga desde logo cada indivíduo a referir-se a mais alguém do que
a si mesmo, aos pais, aos antepassados, aos fundadores da dinastia, saídos dírecía-
mente da terra ou gerados por um deus. Mal os seus olhos se abrem para a luz, p
homem começa a ser devedor Saída.a sua dívida prestando escrupulosamente à
divindade, pela observância dos ritos tradicionais, a homenagem que esta tem o
direito de exigir, Embora implicando um elemento de temor, com que poderão
chegar a alimentar-se as angústias obsessivas dos supersticiosos, a devoção grega
possui um outro aspecto muito particular, Estabelecendo o contacto com os deuses
e tomando-os presentes entre os homens, o cultp jntroduz.. na vida .humana, ujpa
dimen$_ãp.nova, feita debeleza, de gratuitidade, de serena conrmnhão. Celebram-se
os deuses com procissões, cânticos, danças, coros, jogos, torneios, banquetes onde
em comum se come a carne dos animais imolados Ao mesmo tempo que oferece
aos imortais a veneração que eles merecem, o ritual da festa é, para aqueles que
estão destinados a morrer, como um enriquecimento dos dias de vida, um enrique­
cimento que, conferindo-lhes graça, alegria, acordo recíproco, lhes confere um
esplendor que é parte do fulgor divino. Segundo Platão, para que as crianças
venham a ser homens completos devem aprender desde a mais tenra idade a viver
brincando e brincando aos sacrifícios, aos cantos, à dança Quanto a nós, homens,
explica ele, «aqueles deuses que, segundo dizemos, nos deram companheiros de
dança, deram-nos também a agradável sensibilidade do rítmico e do harmónico;
por isso solicitam os nossos movimentos e guiam os nossos coros, ligando-se uns
aos outros com a dança e com os cantos» (leis, 654d). E desse laço que o ritual
cria entre os celebrantes passam também a fazer parte os deuses, que acabam por
se encontrar, através da alegria da festa, em concordância e sintonia com os
homens.
..Os homens, dependem ..da divindade: sem o seu consentimento nada se pode
cumprir à face da Terra, Por isso, os homens têm de estar perra anentemente em regra
com eles, prestando-se sempre ao seu serviço, Mas serviço não significa servidão,,
Para realçar a diferença que o distingue do bárbaro, o Grego afirma orguJhosamente
que é um homem livre, elèutheros, e a expressão «escravo de deus», largamente
confirmada entre outros povos, não é utilizada, não só na prática cultual corrente,
;w lr'ne ir-'j mas também para designar ofícios religiosos ou sacerdotes de uma divindade, dado
que se trata de cidadãos livres que exercem, a título oficial, as suas funções
sacerdotais LiMrdade-escravidão: para aqueles que conferiram a estes dois termos,
no âmbito da polis, o seu pleno e exacto significado, estas noções parecem demasia­
do reciprocamente exclusivas para se poderem aplicar ao mesmo indivíduo- Quem é
livre não pode ser escravo, ou melhor, não poderia ser escravo sem deixar imediata­
mente de ser livre. Mas há ainda outros motivos O mundo dos deuses é suficiente-
mente longínquo paia que, em relação a ele, o mundo dos homens conserve a sua
autonomia e a sua distanciação, mas não é tão longínquo que obrigue o homem a
sentir-se impotente, aniquilado, destruído, perante a infinidade do divino Para que
os seus esforços sejam coroados de êxito, tanto na paz como na guerra, para
conquistar riqueza, honras, prestígio, para que a concórdia reine na cidade, a virtude

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nos corações, a inteligência nos espíritos, o indivíduo deve empenhar-se, compeie-
-Ihe tomar a iniciativa e levar a cabo a sua obra sem se poupai a canseiras Em todos rfcí '■
os domínios do humano, cada um deve empenhar-se e perseverar, sé^cümprir rr- ^ í ■*V !■■
coirecíaniente o seu dever, qualquer indivíduo tem todas as possibilidade^ de
conseguir a protecção divina. '
Distância e proximidade, ansiedade e alegria, dependência e autonomia, resigna­
ção e iniciativa — entre estes pólos opostos podem manifestar-se todos os compor­
tamentos intermédios, de acordo com os momentos, as circunstâncias, os indiví­
duos Todavia, por mais diversos e opostos que sejam, não comportam nenhuma
incompatibilidade, todos se inserem num mesmo campo de possibilidades, a sua
irradiação traça os limites no interior dos quais pode agir, da forma que lhe é
própria, a religiosidade dos Gregos, e aponta as vias múltiplas, mas não imprecisas,
que esse tipo de relação com o divino, característico do culto grego, permite
Falo de culto, não de religião ou de fé Como observa Mario Vegetti, o„primeiro
destes termos não tem .equivalente na Grécia, onde não existe um sector religioso
com instituições, coraporíameníos codificados e convicções profundas que formem
um conjunto organizado nitidamente distinto das outras práticas sociais. Em certa
medida, tudo tem um elemento; todos os actos da vida quotidiana comportam, a par
de outros aspectos, e misturados com eles, uma dimensão religiosa; e isso é válido
tanto para as coisas mais prosaicas como para as mais solenes, para a esfera privada
e pública.
Vegetti recorda um caso significativo: uns estrangeiros que foram visitar Hera-
cliío detêm-se na soleira da porta, ao vê-lo a aquecer-se junto do fogo Segundo
Aristóteles, que pretende provar que, a par da observação das estrelas e dos movi­
mentos celestes, a observação dos objectos mais humildes não é desprovida de
dignidade, Heraclito, convidando-os a entrar, ter-lhes-ia dito: «os deuses também
estão ali [no fogo da cozinha]» {De partibus animaliwn 1, 5, 645a), Mas, estando
presente em todos os lugares e em todas as ocasiões, o elemento religioso arrisca-se
a deixar de possuir um espaço e um modo de se manifestar toíalmente seus. Por isso,
tiS^seriey^ejia falM ^ «religião» do hornem grego com as pre£auções e as reservas
gue nos.pareceram indispensáveis quando nos referimos à noção de divindade.,
No que respeita à fé, as coisas são mais complexas Para nós, no piano religioso, rei !,
CD.
OU se é crente ou não se é crente: a linha divtsórig é^nWda, Fazer parte de uma igreja,^ . '
iv \=-
ser-se regularmente praticante, acreditar num conjunto de verdades constituídas
num credo com valor de dogma, são os três aspectos do compromisso religioso. Não
há nada de semelhante na Grécia. Não existe uma igreja ou um clero, não existe
nenhum dogma Por conseguinte, a fé nos deuses não pode indicar que se pertence a ITn ^'‘0
uma igreja ou que se aceita um conjunto de proposições apresentadas como verda­
deiras e que, na medida em que são reveladas, não estão sujeitas a discussão nem a
critica. O «crer» nos deuses por parte do homem grego não se coloca num plano
propriamente intelectual, não pretende criar um conhecimento do divino, não possui
nenhum carácíer doutrinai Neste sentido, liá toda a liberdade paia que se desenvol­
vam, à margem da religião e sem qualquer conHito declarado com "ela, formas de
pesquisa e de reflexão cuja finalidade será precisamente instaurar um saber e atingir
a verdade como tai,

1.3
r

Portanto, o Grego nunca acaba por se encontrar na situação de ler de escolher entre
fé e descrença Prestando homenagem aos deuses segundo tradições consolidadas e
conhando na validade do culto praticado pelos seus antepassados, como por todos os
membros da comunidade, o fiel pode revelar uma credulidade extrema, como o
supersticioso de que troça Teofrasto, ou um prudente cepticismo,_como Protógqi^,
c n h Cti
que consider a impossível saber-se se os deuses existem ou.não, e.que afnrma que nada
se pode saber a seu respeito, ou chegar à total incredulidade de Cntias, que afirma que
os deuses são unia invenção criada para manter os homens num estado de sujeição..
Mas incre~dülidad&-não-.éjdescceDca. na acepção que um cristão confere a èsíêlmno,
A dúvida, no plano intelectual, não agride frontalmente, para a destruir, a pieias grega
no que ela tem de essencial, Não podemos imaginar Crítias a abster-se de participar
nas cerimónias do culto ou a recusar-se a oferecer sacrifícios quando necessário,
It í Iratar-se-á de hipociisia? Temos sobretudo de compreender' que, sendo a «religião»
Oi ■^' joseoaráve! da vida cívica, eximir-se equivaleria a alhear~se da sociedade, deixar de se
ser 0 que se é, Existem todavia pessoas que se sentem estranhas à religião cívica e
exteriores à poHs‘, o seu comportamento não depende do maior ou menor grau de
rn t’o.«'
incredulidade ou cepticismo, pelo contrário, é a sua fé e o .seu envolvimento, em
^-jí^ K>• movimentos sectários de tendência mística, como o orfisrao, que os tomam marginaü^
zados do ponto de vista religioso e social.
Mas chegou o momento de encarar outro dos temas que anunciei: q rnundo. De
facto, na medida em que está «cheio de deuses», segundo a frase célebre, era já
sobre ele que se falava quando se falava do divino Um mundo, portanto, onde o ,;T'
divino está implícito em cada uma das suas partes, tal como na sua unidade e no seu
ordenamento global Todavia, não por o criador estar envolvido naquilo que fez
jorrar do nada e que, à margem e longe dele, tem a sua marca, mas segundo o
conceito muito mais directo e ínfimo de uma presença divina espalhada por todo o
lado onde surja uma das suas manifestações.
A physis, termo que nós traduzimos por «natureza», quando, seguindo Platão,
piiw í ’
dizemos que os filósofos da escola de Mileto foram os primeiros a elaborar, no
■"JtravJ !"':■'■=■ século VI a, C., uma historia peri physeos, um estudo sobre a natureza — não tem
muito em comum com o que constituí o objecto das nossas ciências naturais ou da
física.. Quer faça crescer as plantas, caminhar os homens ou mover os astros nas suas
órbitas celestes, a physis ê um poder animado e vivo, Para o «físico» Tales, até as
coisas inanimadas como as pedras fazem parte da psyche, que é simultaneamente
sopro e alma, enquanto, para nós, o primeiro destes termos tem uma conotação
«física» e 0 segundo «espiritual» Animada, inspirada, viva, a natureza está, pelo
seu dinamismo, próxima do divino e, pela sua animação, próxima daquilo que nós
próprios, enquanto homens, somos. Retomando a expressão utilizada por Aristóte­
les quando se refere ao fenómeno dos sonhos que enchem os nossos sonos, a
natureza é propriamente daimonia, «demoníaca» {De divinatione per somniitm, 2,
463b 12-15), e, dado que, no mais profiindo de cada homem, a alma é um damon,
um demónio, enfie o divino, o físico e o humano existe mais do que uma continuida­
de, existe um parentesco, uma conatural idade.
mu,Yiíí'=' O mundo é belo, como um deus. A partir de fmaís do século vi, o termo usado
K<! 5 para designar o universo no seu conjunto é kosmos. Nos textos mais antigos.
I,
dsPinicH^ t/c
Td (!' ord enCJií!C
a. re ^ w.)cxclo
esse termo é aplicado a tudo o que, devidamente ordenado e regulado, tem um
valor de ornamento que confere graça e beleza ao que é ornado. Uniforme na
sua diversidade, permanente ao longo do tempo, harmonioso na concatenação
das partes que o compõem, o mundo é como uma jóia maravilhosa, uma obra
de arte, um objecto precioso semelhante aos agàlmata que, pela sua perfeição,
eram considerados dignos de servir de oferenda aos deuses no interior do recinto
do santuário,
O homem contempla e admira esse grande ser vivo que é o mundo na sua
globalidade, e de que ele faz parte. Iniclalmente, esse universo revela-se e impõe-se
ao homem, na sua irrefutável realidade, como ura dado primário, anterior a toda a
experiência possível Para conhecer o mundo, o homem não se pode colocar como
ponto de partida do seu percurso, como se para alcançar as coisas tivesse de passar
através da consciência que delas tem,. O mundo que queremos conhecer não é
captado pelo «nosso espírito». Nada mais afastado da cultura grega do que o cogito
cartesiano, o «eu penso» como condição e fundamento de todo o conhecimento do
mundo, de si e de deus, ou do que a concepção leibniziana segundo a qual todo o
indivíduo é uma mónada isolada, sem portas nem Janelas, que contém em si, como
uma sala de cinema fechada, todo o desenrolar do filme que narra a sua existência..
Para ser compreendido pelo homem, o mundo não é obrigado a sofrer uma transmu­
tação tal que o transforme num dado da consciência, Imaginar o mundo não consiste
em tomá-lo presente no nosso pensamento É o nosso pensamento que faz parte do
mundo e é presença no mundo, O homem pertence ao mundo que lhe é afim e que
ele conhece por ressonância ou por conivência. Originariamente, o ser do homem é
um «ser no mundo». Se esse mundo lhe fosse estranho, como hoje pensamos, se
fosse um mero objecto constituído por extensão e movimento, em oposição a um
sujeito constituído por juízo e pensamento, o homem só poderia efectívamente
comunicar com ele assimilando-o à sua consciência.. Todavia, para o homem grego,
0 mundo não é esse universo externo reificado, separado do homem pela barreira
intransponível que divide a matéria do espírito, o físico do psíquico. A relação do
homem com o universo dotado de alma, a que tudo o liga, é uma relação de
comunhão ínüina
Um exemplo para se compreender melhor aquilo que Gérard Simon define como
«um estilo de presença no mundo e de presença em si que nós só podemos detectar
com um sério esforço de distanciamento metódico, que exige uma autêntica reposi­ i'ac!- í.’ O
ção arqueológica» é a questão da vista e da visão. Na cultura grega, o «ver» tem
um estatuto privilpgkdp; é tão valorizado que ocupa, no conjunto das capacidades -L
humanas, uma posição hegemónica. De uma certa forma, na sua própria natureza, o
homem é olhar. E é-o por dois motivos, ambos determinantes . Em primeiro lugar,
ver, e sãq uma e a mesma coisa:„se idèin (ver).e eidengi (salier) sãq^^as cer Vif.'i'
formas de um mesmo verbo, seeidos^ aparência, aspecto visível, significa também
C
carácter específico, forma inteligível, é porque o conhecimento é interpretado e
expresso pela visão. Em segundo lugar, ver e viver são também uma e a mesma :. T: :.

L‘ãme du monde, in Le Temps de la Réjlexton, X, Paris 1989, p 123

15
írr —l í coisa Para se esíí^ yiyq, lem de se ver a )uz do Sol e, ao mesmo tempo, sêJC::S,e,
vístyd aos plhps_de.todos. Morrer significa.perder. a,,visão e, ao mesmo tempo, a
visibilidade, abandonar a luz do dia para penetrar num outro mundo, o mundo da
v~r'. G Noite, onde, perdido nas trevas, se é despojado da imagem e do olhar,
MasTãs Gregos não interpretam esse ver, tanto mais precioso quanto é conheci^
mento e vida, segundo os nossos parâmetros — depois de Descartes, entre outros,
tííT pj' ter intervindo a esse respeito — , ou seja, distinguindo três níveis no fenómeno
visual: em primeírp lugar, â‘^3luz, realidade física, quer se trate de onda ou de
Coi“'-
corpúsculo; depoÍs,‘'‘tÍLÓrgão do olho, mecanismo óptico, .espécie de câmara escura
cuja função é projectar na retina uma imagem do objecto; por fim, o acto própria-
r o e n t ^ síquíco..de. captar à distância o objecto observado Entre o acío final da
percepção, que pressupõe uma instância espiritual, uma consciência, um «eu», e o
fenómeno material da luz existe o mesmo abismo que separa o sujeito humano do
mundo exterior..
■qs ' Pelo contrário, para os Gregos, p visão só é possível se entre o que é visto e
C'(■‘iO aquele que. vê .existir uma loíal reciprocidade, expressão se não de uma identidade
absoluta pelo menos de uma .estreita afinidade O Sol que ilumina todas as coisas é
j . ■;j H,r ■ ">:* também, no céu, um olho que vê tud.o, e se os nossos olhos veem é porque irradiam
'■/r,, í-I - ds uma espécie de luz comparável à luz do Sol O raio luminoso que emana do objecto
e 0 toma visível é da mesma natureza do raio óptico que sai dos nossos olhos e lhes
dá a visão. O objecto emissor e o sujeito receptor, os raios luminosos e os raios
ópticos pertencem a uma mesma categoria do real, acerca da qual se pode dizer que
ignora a oposição físico-psíquico ou que é ao mesmo tempo de natureza física e
psíquica. A luz ê visão e a visão é luminosa.
Como observa Charles Mugler num estudo intitulado La lumière et la vision
dans la poésie grecque-, a própria linguagem testemunha essa ambivalência.. Os
verbos que designam, a acção de ver (blepein, dèrkesthau leussein) são utilizados
tendo como complemento directo não só o objecto em que se fixa o olhar, mas
também a substância ígneo-luminosa projectada pelo olho, como quando se arre­
messa um dardo, E esses raios de fogo, que, para nós, são físicos, arrastam consigo
os sentimentos, as paixões, os estados de espírito, que, para nós, são psíquicos. Na
realidade, os próprios verbos conjugam-se tendo como complemento directo termos
que significam terror, fúria, raiva homicida Quando alcança o objecto, o olhar
Iransmite-íhe aquilo que o observador sente ao vê-lo.
E certo que a linguagem da poesia obedece a regras e a convenções específicas.
Mas esta concepção do olhar está tão profundamente enraizada na cultura grega que
volta a surgir em algumas observações, para nós desconcertantes, de um filósofo
como Aristóteles. No De insoftmiís, o mestre do Liceu afirma que, se a vista é
impressionada pelo seu objecto, «também exerce uma determinada acção sobre
ele», como fazem todas as coisas luminosas, na medida em que se insere na
categoria das coisas luminosas e coloridas. E prova-o com um exemplo: se as
mulheres, durante o período menstrual, se olham num espelho, a superfície brilhan-

^ Jíevue des études grecques, I960, pp <í!0-70

16
le cobre-se cie uma espécie de patina cor de sangue e essa mancha impregna tão
profundamente os espelhos quando são novos que dificilmente se pode apagar {De
mommrs, 2, 459b 25-31).
Mas talvez seja em Platão que o parentesco entre luz, raio de fogo emitido pelo
objecto e raio projectado pelo olho, é mais ciar amente declarado como causa da
visão. De facto, os deuses

«antes de qualquer outro órgão frzerain os olhos, portadores da luz (phòsphora òmniata),
e colocaram-nos na cara pela seguinte razão; com todo aquele fogo que lem a proprieda­
de de não queimar, mas que produz uma luz agradável, imaginaram criar o próprio corpo
do dia. O fogo puro, que está em nós e que é da mesma natureza que esse fogo do dia,
fizeram-no dimanar pelos olhos, numa corrente densa e veloz [ ,.]. Portanto, quando a
luz do dia envolve a corrente da visão (tneíhemerítiôn p/tós), o semelhante, encontrando-
-se com o semelhante e unindo-se estreitamente a ele, forma, na direcção dos olhos, um
só corpo em toda a parte onde o raio visual, saindo do interior, depara com o objecto que
encontra no exterior. E se esse corpo, tomado sensível às mesmas impressões pela
semelhança das suas partes, toca cm qualquer coisa ou por ela é tocado, transmite os seus
movimentos, através do corpo, até à alma, e produz a sensação a que chamamos “ver”»
(limeu, 45h e se g s.)

Em suma, para explicar a visão, em vez de três instâncias distintas (realidade


física, órgão sensorial, actividade mental), tem-se uma espécie de braço luminoso
que, partindo dos olhos, se estende como um tentáculo e prolonga exteriormeníe o
nosso organismo Devido às afinidades existentes entre os três fenômenos, que
consistem todos num fogo muito puro que ilumina sem queimar, o braço óptico
penetra na luz do dia e nos raios emitidos pelo objecto. Unido a eles, forma um
corpo único, perfeitamente contínuo e homogêneo, que pertence sem fraccionaraen-
tos a nós próprios e ao mundo físico Por isso podemos tocar no objecto externo, no
local onde ele se encontra e por mais longe que esteja, projecíando sobre ele uma
plataforma extensível constituída por uma matéria que é comum àquilo que é visto,
a quem vê e à luz que permite ver
O nosso olhar opera no mundo, onde tem o seu lugar como fragmento desse mundo.
Não admira, portanto, que Ploüno, filósofo do século m d C , afirme que,
quando captamos qualquer objecto através da visão,

«é claro que o vemos sempre onde ele eslá e nos projectamos sobre e!e [prosbalomen]
através da visão. A impressão visual ocorre directamente no local onde o objecto está
colocado: a alma vê o que está fora dessa impressão [...] Porque não seria preciso olhar
para o exterior se ela contivesse ein si a forma do objecto que vê; olharia apenas a forma
que do exterior entrara nela. Além disso, a alma atribui uma distância ao objecto e sabe a
que distância o vê: como podería ver ao longe um objecto que estivesse em si? E também
sabe quais as dimensões do objecto exterior; sabe que tal objecto, por exemplo, o céu, é
grande. Como seria isso possível se a forma que existe dentro dela não pode ser das
mesmas dimensões do objecto? Por fim, e traía-se da objecção principal, se nos esforçar­
mos por captar as impressões dos objectos que vemos não conseguiremos ver os próprios
objectos, mas apenas imagens, sombras, e assim outros serão os objectos em si, outro
será aquilo que vemos.» (Enéades, IV, 6 , 1, 14-32)

17
Citámos este excerto porque põe em destaque a diferença que, a propósito da
visão, existe entre nós e os Gregos, Enquanto a sua forma de interpretar não for
suplantada por outra totalmente diferente, os problemas da percepção visual, tal
como são propostos na época moderna (sobretudo o da percepção da distância, em
que intervém a visão estereoscópica, e o da permanência da grandeza aparente dos
objectes independenteraente da sua distância, que põe em jogo múltiplos factores),
não poderão sequer ser colocados. Tudo está regulado a partir do momento em que
o nosso olhar desliza pelos objectes do mundo a que ele próprio pertence, arrastan­
do-nos com ele até à imensidão do céu. Neste contexto, o que é difícil não é
compreender como é que a nossa visão é o que é, mas como podemos ver outra
coisa e não o que existe, ou ver o objecte num lugar diferente daquele em que se
encontra, por exemplo, num espelho.
Que forma escolher para caracterizar este estilo particular do ser-no-raundo?
O melhor é sem dúvida dar-lhe uma definição em negativo em relação ao nosso
modo de existir Portanto, diremos que o homem, na Grécia, não está desligado do
universo Os Gregos sjbmrn naturalmente_da existência de uma «natureza humana»,
:e nãQ. deix.íu:am de pbservíu' c ps traços distintivgs,que. diferenciam o
homem dos outros seres, coisas inanimadas, animais e deuses Mas a distinção dessa
peculiaridade não separa o homem do mundo, não leva a opor ao universo no seu
conjunto uma esfera de realidade irredutível a qualquer outra e radicaimeníe margi­
nalizada pela sua forma de existir: o homem e o seu pensamento não constituem no
seu interior um mundo totalmente separado do resto,
Reférindo-se ao sábio na Antiguidade, Bernard Groethuysen escrevia que ele
nunca se esquece do mundo, pensa e age em função do cosmos, faz parte do mundo,
que é cósmico (Anthropologie Philosophique, Paris 1952, p„ 80)^
Acerca do indivíduo grego podemos dizer que, de um modo menos reflexo e
teórico, também é espontaneamente cósmico
Cósmico não significa perdido, afogado no universo, mas esse envolvimento do
sujeito humano no mundo implica pata o indivíduo uma forma especial de relação
consigo mesmo e com os outros. A máxima de Delfós: ,<<Cpnhece-te a ti mesmo»
liridCrr.
não convida, como tenderíamos a supor, a um debruçar-sc sobre si próprio, invisível
io
a qualquer outro, pará descobrir, pela introspecção e a auto-análise, um eu oculto,
tSc oci.'. Sio
invisível a qualquer outro, e que seria um mero acto de pensamento ou o domínio
secreto da identidade pessoal O cogito cartesiano, o «penso, logo existo» não é
rr.c-.o, menos estranho ao conhecimento que o homem grego tem de si próprio do que à sua
w, r cfc" experiência do mundo, dado que não tem uma consciência subjectiva desse conhe­
tl I < ?V cimento ou dessa experiência, P ^ a q oráculo, a expressão «Conhece-te a ti mesmo»
significa «aprende a conhecer os teus limites, sabe que és um homem mortal, não
tentes cplpçar7te ag nível dos deuses» É o que acontece também com o Sócrates de
Platão, que reinterpreta a expressão tradicional e confere-lhe um alcance filosófico
inédito, ao dar-lhe o sentido seguinte: sabe o que verdadeiramente és, aquilo que és*

* Tradurido em português com o título Antropologia Filosófica, na cotccçâo Biblioteca de Textos


Universitários da Editorial Presença.

18
em ti mesmo, por outras palavras, a tua alma, a tua psyche. De facto, não se trata
minimamente de incitar ps seus interlocutores a volver q olhar para a interíÕrida^
de si próprios.para se descobrirem no interior do seu próprio eu. Se exisFê''ijma*
evidência irrefutável ê precisamente que os olhos não se podem ver a si mesmos:
têm sempre de apontar os seus raios para um objecto situado no exterior Do mesmo
modo, sáJ 3Qdfimos..contemplar o «signo» visível da nossa identidade, o rosto que
oferecemos ao olhar dos outros para eles nos reconhecerem, indo procurar nos olhos
de outros o espelho que nos transmita do exterior a nossa própria imagem. Ouçamos
as palavras de Sócrates enquanto conversa com Alçjbíades;

«Pois bem, notaste que o rosto daquele que olha os olhos de outrem aparece na parte
do olho que está na sua frente, como num espelho. É a parle a que chamamos pupila,
porque é como uma imagem daquele que a olha
E verdade
Portanto, se uns olhos olham outros olhos e fixam o que neles há de melhor, aquilo
que lhes permite ver, podem ver-se a si mesmos, [.. ] Ora, meu caro Alcibíades, também
a alma, se se quiser conhecer a si mesma, terá de fixar uma alma, e sobretudo a parte
onde se enconfra a virtude da alma, a sapiência, ou qualquer outro objecto que se lhe
assemelhe » {Alcibíades, 133 a - b )

Quais são os objectos que se assemelham à sapiência? Formas inteligíveis,


verdades matemáticas, ou ainda, segundo a passagem certamente inteipolada a que
alude.Eusébio na sua Preparação evangélica logo a seguir ao texto acima citado,
deus, porque «olhando deus, servir-nos-emos também do mais belo espelho das
coisas humanas que tendem para a excelência da alma, e assim poderemos ver-nos e
conhecer-nos melhor». Mas, sejam quais forem esses objectos — a alma de um
outro, essências inteligíveis, deus — é sempre olhando não para ela, mas para fora
dela, para um ser outro que lhe é afim, que a nossa alma pode conhecer-se, como os
olhos podem ver no exterior um objecto iluminado devido à afinidade natural que
existe entre o olhar e a luz, à total semelhança entre o que vê e o que é visto Do
mesmo modo, vemos e sabemos o que somos, o nosso rosto e a nossa alma, olhando
para os olhos e para a alma dc um outxo, A identidade de cada um revela-se no
contacto com o outro, através da troca dos olhares e das palavras
Mais uma vez, como na teoria da visão, Platão parece-nos uma testemunha
credível. Ainda que, ao colocar a alma no centro da sua concepção da identidade
individual, provoque uma viragem cujas consequências virâo a ser decisivas, Platão
não se afasta do quadro em que a representação grega do indivíduo se inscreve. Em
primeiro lugar, porque essa alma, que somos nós, não exprime a singularidade do
nosso ser, a sua originalidade fundamental; pelo contrário, enquanto daimon, é impes­
soal ou suprapessoal e, embora esteja em nós, está para além de nós, na medida em
que a sua função não é garantir a nossa particularidade de seres humanos, mas
libertar-nos dela, integrando-nos na ordem cósmica e divina. Em segundo lugar,
porque o conhecimento de si e a relação consigo mesmo não se podem estabelecer de
uma forma directa, imediata, dado que estão sujeitos à reciprocidade entre o ver e o ser
visto, entre o eu e o outro, que constitui um elemento caracterizante das culturas da
vergonha e da honra, por oposição às culturas da culpa e do dever, Vergonha e honra

19
em vez dos sentimentos de culpabilidade e responsabilidade que necessariamente
remetem, no sujeito raortai, para a sua íntima consciência pessoal
Devemos então ter em conta um termo grego: n'mè. Esse termo designa o
<<valpDí„que é, reconhecido ao indiyjUup, ou seja, tanto os sinais sociais, dajsua
identidade — o nome, a filiação, a origem, a condição no interiorjd.O-gnjp^^P.as,
honras que lhe estão associadas, os privilégios e a consideração que tem o direito de
exigir — como a sua superioridade pessoal, o conjunto das qualidades e dos méritos
(beleza, vigor, coragem, nobreza de comportamento, autodonunio) que, no seu
rosto, no seu porte e nas suas atitudes, revelam que pertence à elite dos kalokaga-
ihòi, os belos-e-bons, dos àristoi, os melhores,
Numa sociedade de.confronto, onde, para se ser reconhecido, é preciso prevale-
cer„spbre.ps,rivíiis numa incessante competição pela glória, cada indrvfdupjesíá
de e
sujeito ao olhar dp outro, cada indivíduo existe em função desse olhar. E-se o que os
outros veem A identidade de um indivíduo coincide com a consideração spçid qye
cpnquistpuj desde a troça ao aplauso, dp desprezo à admiração. Se o valor de um
homem está tão indmamente ligado à sua reputação, qualquer ofensa pública à sua
dignidade, qualquer açto pu.palavra que alente.conüra o seu prestígio serão interpre-
tados pela vítima, até haver uma reparação pública, como uma espécie de humilha­
ção ou,de,aniquiÍanienío do seu próprio ser, da sua virtude íntima, e como algo que
visa rebaixá-lo. Desonrado, aquele que não.foi capaz de obrigar quem o ofendeu a
pagar o ultraje, renuncia, agora desacreditado, ,à sua rime, ao renome, ã classe, aos
privilégios. Excluído das antigas formas de solidariedade, banido pelo grupo dos
seus.p.ares, o que resta dele? Colocado abaixo do plebeu, do kakòs. que ocupa ainda
um lugar entre o povo, acaba por ser, segundo as palavras de Ulisses ofendido por
Agamémnon, um errante, sem pátria neni,raízes, uin desprezível exilado, um ho-
tPêia.sem,importância {Ilíada, 1, 29.3 e 9, 648); hoje díiíamos que esse homem
deijcou de existir, já não é ninguém,
Todavia, há ainda uma questão a referir acerca deste ponto. Mesmo na Atenas
democrática do século v, os valores aristocráticos da emulação permanecem domi­
nantes. A rivalidade exerce-se entre cidadãos considerados, no plano político,
iguais. Não são iguais enquanto detentores de direitos de que todos os homens
devem naturalmente dispor. Todos são iguais, semelhantes aos outros, devido à sua
participação plena nas questões comuns do grupo Contudo, fora desses interesses
comuns, ao lado do secíor público, no comportamento pessoal, existe um espaço
privado onde o indivíduo comanda o jogo.

«A nossa vida é, porém, uma vida livre», afirma Péricles no elogio de Atenas que lhe
é atribuído por Tucídides, «não só no que respeita às relações com o Estado, mas
também relativamente às relações diárias, normalmente marcadas por um respeito recí­
proco: ninguém se escandaliza se outro se comporta como melhor lhe apraz e não é por
isso que o olha de viés, coisa inócua de per si, mas que não deixa de causar dó. Todavia,
se as nossas relações privadas se caracterizam pela tolerância, na vida pública o temor
impõe-nos que evitemos com o máximo rigor agir ilegalmente » (Tucídides, 2, 36, 2-3 )

Por conseguinte, na polis antiga, o indivíduo tern um. espaço próprip e esse.
aspecto privado da existência prolonga-se na vida artística e intelectual, onde cada

20
um afirma a sua convicção de que faz algo diferente e meJhor do que os seus
antecessores e vizinhos, no direito criminal, onde cada um é chamado a responder
pelas suas culpas em função do grau maior ou menor da sua culpabilidade, no
direito civil, com a instituição, por exemplo, do testamento, no domínio religioso,
onde são os indivíduos que, na prática do culto, se dirigem à divindade. Mas esse
indivíduo nunca se apresenta como depositmo de direitos.universais inalienáveis, tecoTíWc
nem como pessoa no sentido moderno do termo, dotada de uma vida íntima roeV.t, f'-(
específica, do mundo secreto da sua subjectividade, da basilar singularidade do seu Cl ['') Cl o': •’
eu. Trata-se de uma expressão essencialmente social do indivíduo, marcada pelo
desejo de se tomar ilustre, de adquirir aos olhos dos seus pares, através do seu estilo
de vídaV dos seus méritos, da sua magnanimidade, a fama suficiente para que a sua
existência individual se transforme num benefício para toda a cidade, se não para
toda a Grécia. Por isso, ao enfrentar o problema da morte, esse indivíduo não
podería ter a esperança de sobreviver no além-tdmulo nos mesmos moldes em que
decorreu a sua vida, na sua especificidade, sob a forma de uma alma singular que
lhe pertença apenas a ele, ou sob a forma do seu próprio corpo ressuscitado. Para
criaturas efêmeras, votadas à decadência dos anos e da morte, qual será então o
processo que lhes permita conservar no Além o seu nome, a sua fama, a sua imagem
de beleza e de juventude, a sua coragem viril, a sua superioridade? Numa civiliza- a j::»ci
ção de honra, em que, durante toda a vida, cada indivíduo se identifica com aquilo
que os outros yêem e dizem_dele^^^ que yive mais ou menos de acordo com a
glória pela qual é celebrado, só se continuará a existir se a fama subsistir, imorre-
doura, em vez de^desaparecer no anonimato do esquecimento. Para o homem grego,
não há morte se a presença daquele que abandonou p mundo da luz permanece na
memória„so.cial . Portanto, .a mejpóriacolectiva nas duas formas por ela assumidas
— reevocação contínua através dp canto dos poetas, ininíerruptamente transmitido
de geração em geração, ejnejnória fúnebre eternamente exaltada nos túmulos — ,
operaxümompitprganismo que.garante a gertos^indlvfduQS-mpiivijégio de s.p.bre.vi-
verem com o.estatuto de morto glorioso. Assim, em vez da alma imortal, a glória
imorredoura e a saudade eterna de todos; em vez do paraíso reservado aos justos, a
certeza, para quem soube merecê-la, de uma perenidade que se firma no centro da
existência social dos vivos.
Na tradição épica, se o guerreiro que, como Aquiles, escolhe a vida breve e se
dedica totalmente a feitos valorosos, cai na flor da idade no campo de batalha,
conquista para sempre, devido à «bela morte», uma dimensão heróica que nunca
pode ser esquecida Um tema que, como realçou Nicole Loraux, a coíectividade
retoma sobretudo na oração fúnebre dedicada aos cidadãos que, por sua vez,
optaram por morrer pela pátria Já não contrapostas, mortalidade e imortalidade
conjugara-se na pessoa desses homens corajosos, desses agathòi attdres. Já no
século vn, Tirteu celebrava como «bem comum para a cidade e para todo o povo» o
combatente que na falange soube permanecer firme na primeira linha. Se cai diante
do inimigo, «os jovens e os velhos choram-no de igual modo e toda a cidade sente
uma saudade profunda [ . nunca a sua nobre glória e o seu nome perecerão e,
mesmo se jaz debaixo da terra, ele é imortal» (fr. 9, D, 27 segs C. Prato), No início
do século fv, Górgias, por sua vez, aproveita a oportunidade paia satisfazer o seu

21
gosto pelas antíteses nesta paradoxal união entre niortal e imortal: «Embora estejam
mortos, a saudade da sua presença não morreu com eles, é imortal; apesar de eles
habitarem em corpos que não são imortais, a saudade por aqueles que já não vivem
não deixa de viver.» No Epitáfio dedicado aos soldados atenienses mortos em
defesa de Corinto na guerra contra os Espartanos (395-386), Lísias retoma este tema
e desenvolve-o de uma forma melhor argumentada:

«Se depois de termos escapado aos perigos dos combates, pudéssemos tomar-nos
imortais, poder-se-ia compreender que os vivos chorem os mortos.. Mas na realidade o
nosso corpo é vencido pelas doenças e pela velhice e o gênio a que o nosso destino está
entregue não se deixa vencer, Por isso devemos considerar felizes entre os homens
aqueles heróis que terminaram os seus dias lutando pela mais nobre e maior das causas e
que, sem esperar por uma morte natural, escolheram a morte mais bela, A sua memória
não pode envelhecer e as honras que lhes são tributadas são objecto de inveja para todos
os homens A natureza impõe que sejam chorados como mortais, mas a sua virtude
impõe que sejam cantados como imortais [. ,] Quanto a mim, considero a sua morte feliz
e invejo-os. Se nascer tem algum significado, isso só é válido para aqueles que, tendo
recebido do destino um corpo mortal, deixaram uma recordação imortal do seu valor»

Retórica? Em parte, certameníe, mas não só A argumentação apoia-se numa


imagem da identidade em que cada um surge inseparável dos valores sociais que lhe
são atribuídos pela comunidade dos cidadãos Na medida em que a sociedade faz
dele um indivíduo, o homem grego está inserido nessa sociedade como o está no
cosmos.

Desde a liberdade dos antigos até à dos modernos, desde a democracia antiga até
à actual, do cidadão da polis ao homem dos direitos, passando dc Bcnjamin Cons-
tant a Moses Finley e a Marx, foi todo um mundo que se alterou. Todavia, não se
trata apenas de uma transformação da vida política e social, da religião, da cultura;
o bomem não peimaueceu..i4êntico^P_que..era, tanto na sua maneira de ser, como
nas suas relações com ps outros e com o mundo,

lean-Pierre Veniant

22
CAPITULO I

O HOMEM E A ECONOMIA
p o r Claude Masse
iy
Ha Política, Aristóteles definiu o homem grego com a famosa expressão de zoon '. .
_polÍtikòn.,Mnmãl político. A tradução, porém, limita o sentido atribuído pelo filóso­
fo a essa expressão; Aristóteles pretendia afirmar que o que distinguia o Grego dos
outros homens era o facto de viverem no seio dessa forma superior de organização!
que é a cidade, Mas o que caracterizava o cidadão, era precisamente possuir a arétè ■
poIiíikè, m seja, a qualidade que ííie permitia alteriiadamente orc/iem e àrchesthai,
governar e ser governado, e p ^ c ip a r nas decisões que diziam respeito a toda a 1
comunidade cívica. A oikonomikè, a ciência da oikonomia, era acima de tudo a arte
de gerir bem o seu oikos, a sua propriedade; entre os antigos gregos, aquilo que \
designamos por.economia, isto é, o conjunto.dosdenómenqs referentes à produção e \
à ri-Qcarie bens materiais, não tinha adquirido a autonomia que, a partir do século
xviií, passou a caracterizá-la Cpmo sublinha Kar! Polanyi, a econoinia estava ainda .. ^
eptbedded, integrada no social e no político
É precisamente isso que torna arriscada a tarefa do historiador que queira tentar „
fsituar o homem grego num contexto económico e descobrir, por detrás do homo
■politicus dos rilósofos, p/ipnrp pcconomíciíí, aquele que produzia, trocava, geriaj e até
ícspeçulava com o.objectíy.o de acumular bens e fortuna ou de gar;antií a sobrevivência !í f-íriv (
jdária, Arriscada não só porque as fontes de.que dispomos são fragmentárias e não nos
Ipermitem reconstituir de uma forma precisa as várias activídades económicas que
‘caracterizavam o mundo das cidades gregas, mas também, e sobretudo, porque os
Gregos, que não sep^avam essas activídades de um modo de vida de que elas faziam,
na sua diversidade, parte integrante, não sentiram a necessidade de as descrever , Ou
melhor, dedicarâm-se a escrever a ünica actividade que, a par da guerra e da política,
lhes parecia digna do homem livre, isto é, o trabalho..da term, E se, corno adiante
veremos, acerca dja artesanato e do comércio mantinio possuímos algumas informa­
ções mais precisas, capazes de esclarecer aquilo que os objectos provenientes das •
escavações (pedaços de cerâmica, moedas, etc.) deixam adivinhar, isso acontece
porque erg Atenas, e sobretudo oo século rv, essas activídades conheceram um amplo
desenvolviinento, provocando por vezes contestações — por exemplo, entre os que se
dedicavam ao comércio marítimo — , contestações que deram azo a processos cujas
alegações chegaram até nós

25
Com efeito, e dado que a priori poderá parecer um paradoxo, não será de mais
't
rtc-,c repetir que, embora o mundo grego fosse um mundo de cidade onde a vida urbana
ocupava um lugar essenciai, era a agricultura que constituía a acüvidade principal da
maioria dos membros da comunidade.cfyica. Mesmo era cidades como Atenas, Corin-
to. Miieío ou Siracusa, era sobretudo a terra que garantia a cada indiyíduqos meios que
WCO.'. ^ p e rg iitia m yiver. O mundo grego da época arcaica e da época clássica era acima de \T1r-e
u r. t! I
i t-
tudo um mundo de camponeses, o que explica a importância que, ao íongo da história,
assumirarn.os problemas agrários e os conflitos provocados pelo problema da pioprie-
dad^e, que atormentaram as cidades O ideal da autarquia, que no século rv será defendi­
do pelos filósofos nas suas elaborações utópicas, é a tradução desta realidade: o homem
gregp vivia sobretudo do produto da sua terra e o bom funcionamento da cidade exigia
que todos aqueles que faziam parte da comunidade cívica tivessera propriedades.
0 laço entre a terra e o cidadão era tal que, em numerosas cidades, os proprietários]
fíram ns únicos cidadãos, e por todo o lado, só ps cidadãos é que podiam possuir terras
No entanto, essa teixa não era muito fértil e o mundo grego sempre dependeu das
importações de cereais do Egípto, da Cirenaica ou do Ponto Euxi no. Só algumas
cidades do Peloponeso e as cidades coloniais do Ocidente produziam os cereais
suficientes para satisfazer as suas necessidades Todavia, em todo o território grego,
tentava-se arrancar a um solo relativamente medíocre, para além da fruta e das
leguminosas típicas dos países mediterrânicos, um pouco de trigo e de cevada. Só a
videira e a oliveira davam azo a uma produção mais importante, permitindo um
excedente que podia ser exportado, Todavia, para lá destas considerações muito
gerais, de que elementos dispomos para tentar retratar o camponês grego?
1 Algumas reproduções em vasos e algumas terracotas mostram camponeses em­
purrando um simples arado de madeira, de tipo dental, com ou sem relha de metal,
; colhendo as azeitonas ou pisando as uvas. Todavia, essas reproduções não nos dão
qualquer informação precisa acerca do estatuto social daqueles que se dedicavam a
l essas actividades. Para isso temos de interrogar as fontes literárias. Por sorte, graças
A o .tc
; -í, '• aos motivos acima mencionados, a vida camponesa inspirou pelo menos três dos mais
4í'-i ado famosos escritores da Grécia antiga. Há, em primeiro lugar, o poema de Hesíodo, Os
Trabalhos e os Dias, calendário religioso que, embora revele a crise gravíssima do
mundo grego em finais do século vin, crise anunciadora das lutas violentas que
marcarão a história do século seguinte, não deixa de descrever a vida quotidiana do
camponês beócio, as relações amigáveis ou hostis que mantém com os seus vizinlios, as
várias actividades que vai executando ao longo do ano. Primeiro, a época da lavra,
quando o camponês atrela o caixo aos bois e prepara a terra para a sementeira. Depois,
a época em que «o grou do alto das nuvens lança o seu apelo de todos os anos. Dá o
sinal para a sementeira e anuncia a chegada do Inverno chuvoso». Para o camponês,
esse Inverno é a ocasião de consertar as alfaias; homens e animais vivem fechados em
casa para fugirem ao sopro de Bóreas, o gélido vento do Norte que vem da Trácia. Mas,
quando floresce o cardo e canta a c ig ^ a , chegam as alegrias do Verão,

«então as cabras estão mais gordas, o vinho é melhor, as mulheres mais ardentes e os
homens mais fracos. Sírius queima-lhes a cabeça e os joeUios, o calor seca-lhes a pele.
Pudesse então haver a sombra de um rochedo, do vinho de Biblos, uma fogaça bem

26
levedada e leite de cabras que já não amamentam, e a carne de uma bezerra que pastou
no bosque e ainda não pariu, ou de carneiros de primeiro parto».

Mas também é preciso pensar em armazenar a colheita, e depois ordenar aos


escravos que «pisem o sagrado trigo de Deméter» Em seguida, meter-se-á o grão
em vasilhas que serão guardadas em casa, e, no celeiro, armazenar-se-á forragem e
palha para os animais. Por fim, chegar-á a época da vindima e da produção do vinho,
«dom de Dioniso, rico em alegrias»
Ojpoema.de^HesípdpToimuitas..vezesinterpretado como.um.grito.de revolta l.
contra «os reis devoradores de ofertas», como a expressão da miséria camponesa ty.K 0i -
na^Btóciã"êm finais ^ e é bem verdade que há inúmeras alusões à
miséria e à fome de quem, por não ter trabalhado bem e por ter sido negligente nos
seus deveres para com os deuses, tem de pedir dinheiro emprestado ao vizinho, ou
é obrigado a mendigar. Mas a vida camponesa descrita no poema é a de uma
propriedade relativamente importante Há inúmeros servidores, as colheitas’são
variadas e transportadas com cuidado para os celeiros. Além disso, o interlocutor
imaginária ou real do poeta, esse irmão a quem ele se dirige, dispõe de excedentes '''' v.Ví' ri
que, ao chegar a época da navegação, amontoa num ^ande navio É certo que a çf o: >
navegação é perigosa, mas tambérn é fonte de rendimento, e quem a exerce pode I
aumentar a sua fortuna. Assim, ao longo do poema esboça-se a imagem de um
çampoDêiLreÍatiyameníejiba.stádo, e é difícil saber se essa imagem corresponde > PctVu (líX
ajurna.iféaIidade„prectsamente..datada^e_locaHzad a um ideal que se serve
realidade p ^ a relatar a vida dos camponeses de uma forma que possa agradar feoj c j
aos de^es.
Três séculos depois de Hesíodo, o poeta cómico Aristófanes dá-nos uma ima­
gem um tanto diferente. Já não se trata da Beócia mas de Atenas no teinpo da guerra
do Peloponeso. quandp_osjC,ampos são regularmente devastados pelas incursões_4os
t exércitos peloponêsio^^^^ Como o de Hesíodo, também p camponês de Aristófanes —
veja-se o caso de Diceópolis, nos Acanienses — não é um miserável, urn ptqchòs f=fo Cb í
CC1-.Íí-o*C'''V Também ele possui alguns escravos e, embora a guerra o tenha condenado a
refugiai-se na cidade, no interior das muralhas, tem saudades da sua aldeia «que
.Crr.q.vo ;:
nunca me disse “compra o carvão, o azeite, o óleo", que ignorava a palavra
“compra", e que me dava tudo». Quanto a Estrepsíades, que cometeu o erro de
(Icofniíor: ’desposar uma rapariga da cidade, evoca com nostalgia, nas Nuvens, a sua vida de
camponês de outrora, «tão amena, estagnante ao abrigo da vassoura, estendida
raolemente, rica em abelhas, ovelhas, bagaço de azeitona» e o tempo em que
cheirava «o vinho novo, os caniços para os queijos, a lã, a abundância»,. É uma
imagem idílica de uma vida camponesa que devia ser menos fácil e próspera do que
o poeta cómico pretendia, mas que traduz uma realidade: a importância, numa
cidade como Atenas, dos camponeses, desses autoiirgòi, proprietários que trabalha­
vam pessoalmente a terra em condições muitas vezes difíceis, embora dispusessem
de escravos para os trabalhos mais pesados, Eram esses pequenos e médios proprie­ tU. T"''‘ -
tários que constituíam a massa da população cívica, e era entre eles que eram
recrutados os hoolitas Que garantiam a segurancaria-cidade Resta interrogarmo-nos
acerca da extensão geográfica dessa figura social e, ao mesmo tempo, acerca da

27
duração rcaí dessa sociedade camponesa no decurso da história grega Como é
:ví-í/'-
natural, AlAnas,.serve, m a i^ m a vez modeÍD- Emancipados com as reformas de
-íO, 1
Sólon, os camponeses áticos constituíram de facto a base da democracia que se
estabeleceu com Ciístenes e se consolidou com Efialies e Pericles. É certo que
subsistem dúvidas acerca do solo e do modo de vida dessa população rural. Os
0 ludps_maÍs„reçentesjCi>ufirmam um. enorrne fraccipnamerito do solo da Ática,
embora esse fraccionamento signifique necessariamente a ausência de grandes
prppriedades..que colocassem nas mãos de um único indivíduo bens existentes no
áiiteirior de.um.mesmo demo ou entre vários demos. As poucas sondagens efectua-
das nos campos áticos não permitem deduzir a existência de herdades isoladas
Tudo indica que a Fixação em aldeias, que consfitufam geralniente p ceníro^dejuip,
:f<o demo, foi a fornip predominante de fixação agrária, o que corresponde bem ao que
tcX'-y n afirma o Diceópolis dos Acarneme\ . Numa outra comédia de Aristófanes, o herói,
também ele camponês, manda um escravo comprar farinha- O que dissemos acerca
rt.fo. da necessidade de importar cereais implica, de facto, que numerosos camponeses
não colhiam o cereal suficiente para satisfazer as suas necessidades e as do seu
'oiírqs, mulheres, crianças e escravos
Mas o teatro de Aristófanes, tal como as anotações de Tucídides, mostram que a
guerra do Peloponeso tinha infligido um rude golpe a estes pequenos proprietários
de terras, obrigando-os a abandonar as suas casas e os seus campos, Neste aspecto
são eloquentes as últimas comédias de Aristófanes, As Mulheres no Parlamento e
n C'. "i
Pluto Praxágoras, a revolucionária que quer entregar o poder às mulheres, .justifica
r.í‘-\ i:i C'-'U'O
a colectivização de todos os bens evocando aqueles que não possuem sequer um
:cí 11 Q,-)
canto de terra para serem sepultados E Cremilo, o camponês do Pluto, censura a
ret yi nír^y - Pobreza pela miséria que provoca nos camponeses que, para se vestirem, têm
Cct. C í ’- '
apenas farrapos e, para se alimentarem, «folhas de nabo raquítico». Todavia, em
Atenas.-ajniséría dos camponeses. nãp„ conduzirá., àsjeiyindiçaçõ revolucionári as
-> — tlívisão das tenas e abolição das dívidas — que se encontram em outros locais do
mundo grego.. Hoje já hj.nguém defende a tese de que a guerra do Peloponeso tería
re i provocado na Ática um fenômeno de concentração das terras, embora um excerto
ido Econômico revele que era possível, como fez o pai de Iscómaco, o interlocutor
jde Sócrates, especular com terras comprando-as não arroteadas e revendendo-as
depois de se terem tomado de novo cultiváveis.
rci De facto, se paaap pequeno proprietário da Ática a agricultura .era um meio de
t' ri c^c garantir a subsistência diária, para .o proprietário de um „domínio mais vasto podia
t'cTj pIpfycF ser fonte de rendinienU). Como já referimos, na Ática, a grande propriedade era
ríi nví)' i''0'' constituída por parcelas dispersas, quer no interior do mesmo demo quer em
de hpfUít' demos vizinhos. Existiam porém propriedades mais vastas, como a que Xenofonle
descreve no Econômico, terceira fonte sobre a vida rural na Grécia, ou como a de
Fenipo, 0 proprietário que conhecemos através de uma alegação do corpus de
n I m r íT Demóstenes. Se o proprietário de domínios dispersos entregava o seu cultivo a
escravos de confiança que, terminada a colheita, entregavam ao patrão a apoforà,
em espécies ou em dinheiro, o proprietário de um vasto domínio indiviso necessi­
tava de uma equipa de trabalhadores escravos comandados por um feitor, na
maioria dos casos também escravo Por outro lado, um excerto dos Memoráveis de
( yV'
28 t y ('nCP. \ w ' iCfrn CC
'■r
qtjiVirr-' t'
Xenofonle refere que a pobreza podia levar um homem livre a aceitar esse tipo de
trabalho. O kalokam ihòs do Económico é naturalmente a imagem ideal.do perfei­
to cidadão proprietário e, exceptuando a alusão às especulações de seu pai, nada
nos leva a concluir que a boa gestão da propriedade tenha por finalidade uma
qualquer ambição de auferir lucros da comercialização dos produtos.,da.,tena.
A colheita de cereais, de uva e de azeitonas deslina~se ao abastecimento da casa de
Isómaco. Todavia, este, como aliás Critóbulo, o primeiro interlocutor de Sócrates
no diálogo, é„um cidadão rico que^tem de oJf<u;ecer sacrifícios aos seus çoncida-
^ dãos do demo, prestar serviços litúrgicos e pagar esifoiài, despesas que recaíam
JPÍl I V
sqbrejjs mais ricos, o que significa que uma parte da colheita da propriedade
produzia rendas em dinheiro. O discurso contra Fenipo confirma queí para um
FtíF''" grandejpropriéuirio, a agricultura podia ser fonte de avultados rendimentos Feni-
r.
- po vendia a sua madeira, o seu trigo, o seu vinho, aproveitando-se até das dificul­
dades de aprovisionamento que Atenas conheceu em finais dos anos 30 do sé­
culo IV, para especular com os preços desses dois últimos produtos. Ê possível,
porém, que se trate de um fenómeno novo, característico do final do século;
voltaremos a ele mais adiante
Q.modelo ateniense caracterizado peia existência de uma.iiiassa.camp.qnesa
proprie_tária largamente preponderarite — um comentário de Dionísio de Halicai-
nasso dá a entender que apemas^ÓOOO atenienses dos 25-30 000 cidadãps„ que
povoam a,cidade..no,início do século iv não possuíam terras — vigorava segura­
mente-ríuma grande parte do mundo grego O amplo movimento de colonização que
teve início em meados do século vm e prosseguiu durante dois séculos levou à Õcoo
criação de novas cidades cuja c/iora, o campo, foÍ dividido pelos colonos, muitas
vezes escorraçados da sua cidade de origem pela stenochoria, a escassez de tepra.
í As pesquisas levadas a cabo pelos arqueólogos na Itália meridional, na Sicília e na
I Crimeia, com a ajuda da fotografia aérea, tentaram demonstrar o processo de
i distribuição do solo em algumas dessas cidades coloniais. Textos mais tardios,
como o decreto de fundação da colónia de Breia, no Adriático, ou o relato da
fundação de Turi, na Itália meridional, referido pelo historiador Diodoro Siculo,
revelam a importância dessa distribuição da terra, confiada a magistrados especiais,
geómetras e «geonomos». Daí resultaram, porém, muitos problemas Eram os
próprios colonos que trabalhavam no seu h/eroi, nos_$eus. lotes, ou entregavam essa
tarefa a_indígenas mais ou menos escravizados, como os Ci lírios de Siracusa,
limitando-se a receber ps lucros? Seja como for, epa, o que devia acontecer nas
çierúquias atenienses, colónias militares insiajadas por Atenas no tenitório de
alguns aliados recalcitrantes A propósito dos colonos fixados em Mitilene, na ílha
de Lesbos, depois da submissão dos habitantes que tinham tentado esquivar-se à
aliança ateniense, Tucídides esclarece que «os habitantes de Lesbos continuaram a
trabalhar a terra, comprometendo-se a entregar às cleiuquias uma soma anual de
duas minas por lote».
Fora do mundo colonial, hay^ia numerosas cidades que deviam também,apoiar- y/i „ iV
-sje.nps proprietários dejerras. Se assim não fosse, dificilmente se compreenderia
■y í-
a importância das reiyindiçaç,ões de repartição, das lenas nas lutas que dilaceraram
as cidades desde o século ,vn até,ao século iv. Se, como vimos, Atenas conheceu

29
um equilíbrio relativo durante todo este período graças às reformas de Sólon, em
outros locais as coisas passaram-se de modo diferente. O movimento que levou ao
aasç:meníCLdeiiianias_em grande parte do mundo grego, entre meados do século
' IV■) e yn_e finais do„séculos jy, parece estar associado à repartição desigual da proprie­
dade fundiária, e o demos, em que, segundo a tradição, a inmqr p^ejiessesJiranos
se apoiava,„era sobretudo, um rfm oj^rurd não é por acaso que os teóricos
: que, a partir de finais do século v, elaboraram projectos de cidade.s. ideais se
■J í“--c . preocuparam. sobretudo.com. o.problema da organização.da d io ra e com a-reparti-
v’"!ção das terras.. Por outro lado, Aristóteles via naquilo que um historiador contem-
Iporâneo designou por «república dos camponeses» o modelo de cidade mais
' próximo da cidade ideal,
Mas os teóricos políticos do século iv citavam igualmente como exemplo das
■V ICd t cj-íí'!
cidades do mundo real a que lhes parecia ter as melhores leis e a melhor organização
(V _
social: Esparta, Esparta era também uma cidade de proprietários de terras, Mas
esses proprietários não eram camponeses Na Lacónia e na Messénia, quem cultiva­
va a terra eram os hiíqtas,.camponeses esçravizadp.s que os outros gregos considera­
vam como escravos, mas escravos diferentes dos que viviam nas suas cidades. Da
mesjpa qrigern, mesma lijngua, rep resen tav a para„ps .E^
>i:C, pengo_çqnstante, e as suas reTOÜãs consteíam a história das cidades lacedemónias.
'" Acerca deies subsistem ainda alguns aspectos obscuros. Ignora-se nomeadamente
se o impQ.$to.que pagavam ao patrão era proporcionatà colheita ou fixo, se esíaviM
isolados nos k/eroi dos seus patrões ou se formavam comunidades.de aldeias,.,Os
ÍMessénios emanciparam-se da tutela espartana no século ív com a ajuda do íebano
Epaminondas. Todavia, os hilotas da Lacónia permaneceram escravizados, à excep-
çüo daqueles que, durante a revolução espartana do século iii, foram libertados para
serem utilizados pelos reis refoimadores como soldados nas suas lutas contra os
Macedónios e os seus aliados Aqueus,
Assim, livre ou dependente, ò homem grego surge antes do mais como urn
-í camponês que trabalha a sua terra ou a terra de,quem é mais poderoso ciq.qüejele, ou
f! rio.dc o que manda outros cultivá-la, mas que continua ligado ao babajho agncoja ou, como
Te rro. acontecia nas cidades eubeias ou íessálicas, à criação de gado, sobretudo cavalos.
Tratava-se também de um laço religioso e, na maioria das cidades gregas, político,
já que só os cidadãos podiam ser proprietários, mas muitas vezes era preciso ser-se
'JCUco UoicT o o
A r t"e.5a r-a. fo proprietário para se ser cidadão.
Compreende-se então que os mestres artesãos fossem considerados de pouco
valor. No £co/iómico, Xenofonte afirma pela boca de Sócrates:

«Os ofícios chamados artesanais estão desacreditados e é natural que sejam despre­
zados nas cidades. Anuinam o corpo dos operários que os exercem e o corpo dos que os
dirigem, obrigando-os a levar uma vida caseira, sentados à sombra das suas oficinas e a
passar, por vezes, todo o dia perto do fogo Ainda por cima, esses ofícios chamados
artesanais não lhes deixam nenlium tempo livre para se ocuparem dos amigos e da
cidade; de forma que quem exerce tais ofícios parece um indivíduo mesquinho quer nas
relações cora os amigos quer na ajuda prestada à pátria. Por isso, em algumas cidades, e
em especial nas que são tidas por gueireiras, chega-se mesmo a proibir que os cidadãos
exerçam os ofícios dos artesãos »

30
Ao evocar esta proibição, Xenofonte pensaria apenas em Esparta ou exprimiria
um desejo que era o de toda uma intelligenísia aristocrática face a uma realidade
muito diferente? De facto, não há dúvida de que, em algumas cidades, havia
arlesãosma comunidade cívica. Mas provavelmente nem sempre forFãss^m T l^
poemas homéricos, os demjourgòi são apresentados como especialistas que vão de
um oikos para oufío oferecendo os seus serviços em troca de uma. retribuição,
naturairaente em espécies. Por conseguinte, para a comunidade formada pela cidade
nascente, eram estrangeiros. Também se deve ter em conta que, nessa época, uma
parte daquilo que hoje designamos ppx fíabalho,,£mesanaLse fazia noJnteripr,dp
joikos. Basta recordai' o leito que Ulisses fabricou com as suas próprias mãos, ou os
conselhos de Hesíodo acerca do fabrico de um arado, Os tecidos também eram
fiados e tecidos em casa pela patroa e pelas suas aias. Todavia, alguns ofícios <d-e.
depressa se teriam tomado esp.ecífiçps de artesãos especializados: o, trabalho^dps ct.tTeeój«
metais, da argila, dp ço.urp. e. mesmo, nas cidades marítimas, a construção dos oMxc^o
barcos. E depois, naturalmente, o trabalho da pedra e do mármore, quando as
cidades começaram a erigir monumentos religiosos e públicos ornados de faaixos-
-relevos e estátuas
Quanta ao estatuto dos artesãos e à importância das actividades artesanais, as
informações mais ricas que possuímos referem-se, mais uma vez, a Atenas, que
depressa se converte num centro importante da indústria de cerâmica, como
demonstram os grandes vasos do Dipilone. Contudo, é durante a tirania dos 4{. ro D ' O
)
Eisistratos que Atenas assiste ao desenyolyjmento.de um artesanato cada vez mais
abundante, favorecido pela política dos tiranos que iniciam um amplo programa tJ.i' oaí' ti
de construções públicas, cunham as primeiras moedas e consequentemente come-
çáinirêxplorar sistematicamente as jazidas de chumbo argentífero do Láurio, e
por fím iniciam uma política marítima que anuncia a que virá a ser retomada no
cVf(
século seguinte, por. Tbniistocies e Péricles Não é por acaso que, na segunda
metade do século vi, a cerâmica ática, primeiro a de figuras negras e depois a de
íiCc Vt
figuras vermelhas, faz a sua aparição em todas as costas mediterrânicas, destro­
p.V<-CC. nando definitivamente a corintia. Quantos artesãos havia então em Atenas e qual
Çtc, era o seu estatuto? E difícil responder a esta pergunta. Admitiu-se que, no sé­
culo V, momento culminante da produção de vasos com figuras vermelhas, não
'< ^
existiriam mais do que 400 operários ceramistas Conforme atrás referido, no á f r it .:/iú és
início do século v, havia cerca de 5000 cidadãos desprovidos de terras, mas nem
todos eram, necessariamente artesãos ou comerciantes. Por outro lado, muitos
desses artesãos eram decerto estrangeiros que tinham vindo exerce^r o seu oficio
para Atenas, atraídos pelas vantagens oferecidas por uma cidade rica e poderosa.
S e ^ n d o a tradição, terá sido Sólon o primeiro a apelar para a mão-de-obra
estrangeira, constituída em parte por escravos que trabalhavam com os seus
patrões nas oficinas ou nos estaleiros de obras públicas. As actividades artesanais
sobre as quais temos informações mais amplas eram aquelas que, de uma forma ou
de outra, estavam sob o controlo da cidade, como, por exemplo, as obras públicas
Chegaram até nós inúmeros cálculos que nos permitem acompanhar bastante de
perto a organização do trabalho A decisão de empreender a construção de um
edifício público, religioso ou cívico, dependia de facto de um voto da assembleia

31
popular Uma comissão de epístatos estabelecia o caderno de encargos e firmava
uma série de contratos individuais com os empreiteiros. Depois, o orçamento
descritivo, ou iyngraphè, era apresentado à assembleia, Se era adoptado, nomea­
va-se um ou mais arquiiectos encancgados de coordenar as várias operações.
Foi 0 que aconteceu com Calícrates e Ictino no Paiténon, ou com Caiícrates nas
Longas Muralhas que Hgavam Atenas ao Pireu. Esses arquitecíos recebiam um
salário pouco superior ao dos operários qualificados por eles recrutados para
trabalharem no estaleiro: canteiros, escultores, carpinteiros, ferreiros Essa unifor­
midade de salários — na maioria dos casos avaliados gíobalmente para uma
determinada tarefa —, que pouco ou nada distinguia o arquitecto do operário, e
também o cidadão ou o meteco do escravo revela que o trabalho não era conside­
rado como uma actividade susceptível de ser avaliada como tal, e produtora de
^ bens, mas como um «serviço», Não é por acaso que o mesmo termo, mbthòs,
■t, L dgsignava o salário auferido pelo desempenho de uma actividade pública, inçluin-
p 'pu-bl. ^o„p_semço,milÍiíu:i.e,u^ trabalho produtivo, e também não é por acaso que o
vni.b r- montante desses vários misthòi era sensivelmente idêntico, variando, no máximo,
do simples para o triplo: de tiês óbulos para o salário, do juiz até uma dracma ou
uma dracma e meia para o do prítane ou do arquitecto. As inscrições permitem
pêrcêbeTquãí o lugar ocupado respectívamente pelos cidadãos, pelos metecos e
1pelos escravos entre os operários que trabalhavam nos estaleiros de obras públi-
ii!^ éclâe \cas. Em 409, no estaleiro do Erection, encontramos 20 cidadãos em 71 contrata­
dos, e entre os operários que restauravam as colunas contavam-se 7 cidadãos, 6
: r'?CO \ metecos e 21 escravos Em 329, no estaleiro de Eleusis, havia 9 cidadãos em 27
empreiteiros e 2Í cidadãos em 94 operários especializados. Os outros eram mete­
cos e escravos que trabalhavam ao lado dos seus patrões recebendo, em princípio,
o mesmo salário, uma parte do qual devia ser entregue ao patrão. Alguns deles
eram sem dúvida escravos públicos a quem ..a, cidade concedia um su ^ íd ip de 'ã
alimentação.
Todavia, nas minas do Láurio, o essencial da mão-de-obra era constituída por
escravos. Como já se viu, a exploração das minas tivera início numa época muito
5 CO'no/) remota, mas desenvoívera-se mais precísamente a partir de meados do século vi,
!
quando Atenas começou a cunhar moedas que se iriam converter nas mais aprecia­
das do mundo egeu. A partir do século v, com a descoberta das ricas jazidas de
Meroneia, a indústria mineira sofreu uma evolução que só foi interrompida nos
últimos anos da guerra do Peloponeso, quando os Espartanos ocuparam a fortaleza
■'0 rcOít cr de Deceleia, o que permitiu a fuga de 20 000 escravos que trabalhavam nas minas e
nas oficinas à superfície.
A exploração das minas só recomeçará com um certo vigor a partir da segunda
metade do século iv, e é durante esse período que conhecemos melhor o seu
iodo funcionamento. De facto, as minas eram propriedade do Estado, que as cóncedra a
particulares mediante o pagamento de uma renda Pelo menos é o que se deduz das
’ríjdo a inscrições, quase todas datadas do terceiro quartel do século iv, que revelam as
contas dos magistrados encarregados da atribuição das concessões Há quem afirme
a existência de minas privadas, mas não existem provas concretas Em contrapar­
tida, um estudo recente demonstrou que os concessionários eram muitas vezes

32
homens cujos bens patrimoniais se encontravam nos demos situados perto da região
mineira. Todavia, continuam a existir inúmeros pontos obscuros acerca da natureza
renda paga pelos concessionários e da frequência dos pagamentos. Parece,
porém7~ceríò que a gestão das rninas era para os concessionários uma fonte de
avultadosJuGFOs, tanto mais que a renda que pagavam parece ser, em geral, muito
modesta. De setenta e seis preços de aluguer que conhecemos graças às inscrições,
vinte e dois são de 20 dracmas e trinta, de 150 dracmas. Por outro lado, Demóstenes
refere uma concessão que abrange três grupos separados e cujo valor total atingia os v ne-o'
três talentos- Mas a interpretação do texto é duvidosa. Na obra Sobre os Recursos ’ •C ■■ '
Financeiros, Xenofònte evocava o exemplo de três ricos atenienses, Nícias, Hipó- c:- t'vi.cü.i'-
nicQ e Filomónides, que auferiam lucros muito avultados do a]uguer de mineiros t":■')i/Tc ■
escravos. Njcias era o célebre pojítiçp,e çsuatego da gueixa do, Peipptmesq que seria
morto Huraníe a expedição à Sicília. No século iv, os seus descendentes figuram
entre os concessionários de minas, o que permite supor que não se limitava a alugar
a sua mão-de-obra escrava mas também tinha interesses na exploração das próprias
minas. Hipónico, filho de Cálias, pertencia a uma das famílias mais ricas de Atenas
No século rv, um dos seus descendentes possui propriedades em Besa, na região
mineira. As listas de concessionários, bem como os discursos dos oradores, de­
monstram que a maior parte dos que tinham interesses nas minas pertenciam àquilo
que 0 historiador inglês J. Davies designou por «Athenian properlied families».
Mesmo o litigante do Contra Fenipo, que se queixa das misérias da época, reco­
nhece que fez fortuna com uma concessão no Láurio, e o rico Mídias, o adver­
sário de Demóstenes, também extraía parte dos seus rendimentos da exploração
das minas, já que o orador o acusa de se ter aproveitado da sua trierarquia para
conseguir a madeira das escoras para as galerias das minas de prata.
Mas a indústria mineira não comportava apenas a extraeção dos minerais. As
escavações efèctuadas na região mineira, sobretudo na região de Tórico, permitiram
detectar a presença de oficinas de transformação. Essas oficinas podiam pertencer
ao concessionário mas também podiam pertencer a outros. Um discurso do corpus
de Demóstenes, o Contra Panteneto, diz respeito a uma dike metalUkè, uma «acção
legal mineira» contra um certo Panteneto, que se apresentara como comprador, pela
soma de 10 500 dracmas, de uma oficina mineira eni Maroneia e de trinta escravos.
Não há a certeza de que Panteneto tenha sido também concessionário: sabe-se
apenas que os seus escravos transformavam o mineral extraído por outros Tudo
leva a crer que, em gera!, os proprietários das oficinas erarn também proprietários da
terra, o que explica que a indústria rnineira teníia sido um dorm'nio exclusivo dos
cidpdáos.e.ma^rpaioria dos casos,. d.osjsidadãosjbagía^ Um discurso de Hipéri-
des, A Favor de Eiaenipo, evoca as fortunas obtidas por certos concessionários de
minas: 60 talentos para um taí Eutíerates, 300 talentos para Epíerates de Palene e
para os seus sócios que figuravam entre os homens mais ricos (ßlousiotatoi) da
cidade. A confiscação da fortuna de Difilos, que enriquecera explorando nas minas
de prata as pilhas de mineral destinadas a seivk de apoio, proporcionou um lucro de
160 talentos à cidade. Estas somas consideráveis confirmam que, na segunda
metade do século iv, as minas de prata retomaram a sua actividade, e que os
exploradores e os concessionários auferiam lucros substanciais, Notemos, porém.

33
mais uma vez, que essas fortunas consideráveis só se encontram nesse momento
muito preciso da história de Atenas, quando a cidade passa por dificuldades de toda
a espécie, Trata-se de uma questão que convirá reexaminar.
Se a indústria rnineira e a transformação do minerai envoÍvera,.ao mesmo tempo,
a cidade, pelo contxpio que exerce e pelos impostos que recebe, e os cidadãos mais
ilcos, o mesmo não se passa cora as outras actividades artesanais que as fontes nos
permitem conhecer. A construção naval ími^ém é estreitamente, controlada.pela
cidade, na medida em que o Conselho escolhia anualmente os trieropoiòi encm e-
gados de adjudicar publícamente a construção dos barcos. Mas .oajesmleiros,esta­
vam sem dúvida dispersos.e. a mão-de-obra era constiuiída por pequenos artesãos
livres e por escravos.
À indústria das armas era uma indústria antiga que exigia aos que a ela se
dedicavam um importante capital em matérias-primas e mâo-de~obra., A acreditar
nas escassas indicações fornecidas pelas fontes, tratava-se de uma indústria a que se
dedicavam cidadãos e metecos. Assim, o meteco Céfalo, pai cio orador Lísias, que
se fixou em Atenas a conselho de Péricles, possuía uma oficina de cento e vinte
escravos. Durante a tirania dos Trinta, quando os agentes dos oligarcas foram
prender os seus filhos, encontraram em casa, para além dos cento e vinte escravos,
setecentos escudos, ouro, prata, cobre e jóias. No início do século iv, o pai de
Demóstenes possuía uma oficina de fabrico de facas que empregava trinta escravos
e proporcionava um rendimento anual de 3000 dracmas Demóstenes refere que na
herança deixada por seu pai havia marfim e ferro, matérias-primas necessárias para
essa actividade industrial. Outro fabricante de armas muito conhecido era o ban­
queiro de origem escrava Pasion, que deixara aos seus herdeiros uma oficina de
fabricante de escudos A indústria das armas talvez não fosse tão diversificada como
afirma Aristofanes quando, na Paz, põe cm cena fabricantes de elmos, penachos,
espadas e lanças. Todavia, isso não exclui a hipótese de haver já uma forte especia­
lização numa actividade tão importante para a defesa da cidade; Céfalo e Pasion
fabricavam apenas escudos, o pai de Demóstenes fabricava armas cortantes, um tal
Pístias, citado por Xenofonte nos Memoráveis, era famoso pela qualidade das suas
couraças Quer fossem cidadãos ou metecos, os que se dedicavam ao fabrico das
aimas eram portanto homens ricos. Não trabalhavam nas suas oficinas, limitavam-
-se a dirigir o trabalho dos seus escravos ou, na maioria dos casos, como os grandes
proprietáriòs fundiários, confiavam essa tarefa a um administrador, ele próprio
escravo ou liberto. Assim Afobo, que fora encairegado pelo pai de Demóstenes da
gestão da oficina de fabrico das facas, reduzida, depois da venda de metade dos
escravos que ai trabalhavam, assegurou a sua gestão durante um certo período,
depois confiou-a a um liberto, um tal Mflias, e, por fim, ao outro tutor, Terípides,.
Tudo leva a crer que Pístias, o fabricante de couraças citado por Xenofonte, dirigia
pessoalmeníe a sua oficina e zelava pela qualidade dos produtos que dela saíam.
Aliás, essas oficinas não eram apenas unidades de produção. Situadas geralmente na
residência do proprietário, eram também lojas de venda. Compreende-se por isso o
motivo por que Xenofonte incluía no mesmo desprezo pelos ofícios manuais os
operários que os exerciam e os que os dirigiam.. Embora QjiopriqtárÍQ.,de„uina,
oficina de escravos metalúrgicos fosse um homem tão rico como o proprietário,de

34
um domínio, .pertencia socialmenie à mesma categoría.do pequeno, artesão .que,
executava um trabalho manual. Aristóteles, que recusava ao artesão a qualidadejde
cidadão na cidade ideal, admitia porém a possibilidade de haver artesãos que fossem
cidadãos numa cidade oUgárquica, já que entre eles havia homens ricos. E o orador
para quem Lísias escreveu o discurso contra a proposta de Formlsio afirma que,
entre os 5000 cidadãos que teriam sido excluídos da cidadania por não possuírem
tenas, havia muitos homens ricos Aliás, sabe-se que alguns desses ricos artesãos
assumiram 0 governo da cidade durante o, último terço do século V, o que provocou
a üoça de Aristofanes. Os «curtidores» Cléon e Ânito ou o «oleiro» Hjpérbojp não
eram decerto trabalhadores manuais. Como os «metalúrgicos» já referidos, limitar
v^im-S6.a.dmgir ou, airida mais provavelmente, a receber os lucros das suas oficinas
deescravos,
.tftcbdr. Todavia, não se deve pensar que o artesanato ateniense era uma actividade reser-
vada.aos escravos que trabalhavam para homens livres e riços, í;Iayia m uitosjrtesã^ pto uChc-i
livres que trabalhavam nas oficinas,que rodeayam_a agorà ou nas oficinas do Cerâ-
mico. Se os curtidores eram, em geral, homens ricos que dispunham de escravos para |
trabalhar o couro em bruto, o$ .sapateiros, porém, eram pequenos^aríesãqsjjue tra ,,
Ihavam por encomenda, como o sapateiro reproduzido nurxTvaso pintado a medir pelo r-;
pé do cüente a sandália que acabou de fazer, Ospleiios que se agrupavam em tpinpda c;-;< r-:-
agorà também eram pequenos artesãos. Há reproduções que nos permitem fazer uma
ideia dessas oficinas O oleiro tiabaUiava no tomo, enquanto os escravos moldavam o
bn w
barro, preparavam a laca e o verniz, enfomavam os vasos e vigiavam a sua cozedura.
Havia decerto fomos que eram comuns a várias oficinas. O oleiro ou o pintor eram
homens livres que assinavam as suas obras Entre eles, havia sem dúvida estrangeiros,
e o ofício de oleiro não era muito mais apreciado do que as outras actividades
artesanais: por isso Demóstenes atira à cara do seu adversário Esquines, como sinal da
sua modesta origem, o facto de seu irmão ter exercido esse ofício. É claro que não é
possível enumerar todos os pequenos ofícios que pululavam numa cidade como jd-e n 1
,;*i,.tenas, pequenos ofícios exercidos por cidadãos pobres, por metecos,ou escravos^
como o perfumista que tinha uma oficina na agorà e de quem se fala no discurso de
Hipérides Contra Atenógenes. Era difícil distinguir os homens livres dos escravos,
porque, como observa o autor anónimo da Be^ública dos Atenienses, andavam
vestidos do mesmo inodo. Os que eram cidadãos teriam tempo para, citando Xeno­
l--> ■'ifri'.!
fonte, «se dedicarem à cidade e aos amigos»? Sobre isso as opiniões dos historiadores
divergem. No entanto, teoLÓe.se admitir que participavam na vida da cidade, pelo
menos como membros da assembleia, pois, se assim não fosse, não se compreende­
riam nem as criticas dos adversários da democracia nem a observação de Sócrates ao
jovem Cármides que hesitava em tomar a palavra perante a assembleia; «Quem é essa
gente que te intimida? São^pisoeiros, sapateiros, carpinteiros, férrekos,. camponeses,
jünfiçaníes.que só^pensaimernyend^ por muito, p que conipraram por pouco; porque é
toda essa gente que constitui a assembleia do povo.» Notar-se-á que, nesta'enumera­
ção, os camponeses se encontram como que perdidos no meio da uma multidão de
artesãos e de mercadores. E recordar-se-á que Aristóteles preferia a democracia
.camponesa porque, absorvidos nos seus trabalhos diários, os agricultores frequentam ^
menos as assembleias. , ;( -t pipiC'l

35
Na mente do fííósoíò, essa democracia camponesa era evidentemente o oposto
da democracia ateniense, mesmo se, ao raciocinar acerca da democracia radicai,
Xrisióteles não cite explicitamente Atenas. Poderemos fazer a mesma coisa e
■'lT!-> ^Íjcar_o„modeio..ateniense_a_, outras cidades, como Corinto, Mégara, Mileto ou
ctC-! C Siracusa? As fontes arqueológicas revelam a realidade de uma actividade artesanal
importante em numerosas cidades marítimas Mas, na maioria das vezes, temos de
confessar a nossa ignorância quanto à estrutura dessas acíividades e ao estatuto
social de quem as exercia. Sabemos que Corinto exportava vasos, que Siracusa era
famosa pela qualidade das suas moedas,e Mileto peia qualidade dos seus tecidos.
Podemos portanto admitir que, nessas cidades e em várias outras, existiria um
artesanato comparável ao de Atenas, mas fáltam-nos as informações fornecidas por
fontes,literárias erínenções. S.ó as obras públicas são um pouco mais conhecidas
graças às inscrições, que revelam que em todos os grandes estaleiros as condições
de trabalho eram análogas às que encontramos em Atenas, nos estaleiros da Acró­
pole ou de Elêusis, O que não deve surpreender, se pensarmos que muitas vezes as
equipas de operários, e mesmo os artistas, se deslocavam de um estaleiro para outro:
basta pensar em Fídias, trabalhando em Olímpia, ou nas deslocações de Praxíteles,
río século iv.
Portanto, gjhpmem grego.,é também.um artesão. E, como tal, usufrui, como
Pyerrp, Vidal-Naquet demonstrou, de um estatuto ambíguo. Possuidor de uma íe~
cjmè, toma::ise,p.Qrjss,Q.indi$pensávei para libertar os homens da opressão.da nature-,
za. Todavia^como. se restringe a essa technè, não pode ascender à /ec/mè^sup.enor,
g u e é a rec/mè politjkè. Protágoras era o único que admitia que todos podiam possuir
h 03 a ciência das coisas políticas Mas não devemos esquecer que a teoria desenvolvida
pelo filósofo de Abdera era a que servia de base à democracia, a mesma democracia
em cujo seio, como repetia o Sócrates de Xenofonte, artesãos e comerciantes
partilhavam com os camponeses o poder de decidir nas assembleias.
Isto conduz-nos ao terceiro aspecto da actividade económica do homem grego;
a actividade comercial. FoÍ acerca desta actividade que as discussões entre os moder­
nos tiveram a maior amplitude, e é também sobre ela que as nossas informações não
deixaram de aumentar, graças aos progressos da investigação, e gOLhte,tudo.da,.investi-
gaçaojJrqueoJógjca- A própria difusão^da..cerâmica prova que, no mundo grego,
ocorreram tipcasjcq.rn.erciais desde os tempos mais remotos. Desde a época micénica
tfr'I rm c c que.,vasos, fabricados .no .continente helénico chegavam à Itália..meridional e aq
.Orienie, A derrocada dos palácios micénicos pôs termo a esse tráfico, e quando se fala
de comerciantes nos Poemas Homéricos trata-se sobretudo de fenícios oií dos miste­
Im. C riosos habitantes de Tafo mencionados na Odisseia Como FÍnleyJembrQU,.as.trpcus
efectuadas no mundo„d.PS„jieróÍs. têm sobretudo.a ver.çqm práticas_de.,dádLvas...e,
£ r, ,1 - retribuições, estrar^as aq comércioprppriíuueníedito, Mas Hesíodo, em Os Trabalhos
e os Dias, evoca as viagens de seu pai, obrigado a fazer-se ao mar num «negro barco»
em busca de um lucro mais ou menos aleatório, porque acaba por se estabelecer em
Acra. O comércio (emporie) é descrito ,pelq poeta como um remédio para fugir .«às
dívidas e à amarga, fome», como um ma! menor que pode porém proporcÍonar..lucro
u c.rc (kerdos), se se üver o cuidado de navegar apenas durante os cinquenta dias, em pleno
'■■1 1- r d c i Verão, quando o mar não é demasiado perigoso. Portanto, é evidente que a partir do

36
século vffi os Gregos participaram no deaibar das trocas comerciais no Mediterrâneo. <;ríi •
Chegados a este ponto, temos naiuraimente de evocar aquilo que se designa Iradicio-
nalmente por colonização, essa emigração dos Gregos para as costas setentrionais e
orientais do Mediterrâneo. E inútil voltar ao falso problema da origem comercial ou
agrária dessas «colônias». Já falámos dú stenochoiia, a falia de teiras que obrigava
uma parte dos membros da comuiiidíjde cívica a fázer-se ao mar em busca de novas
terras. Mas, para além de essas expedições, muitas vezes organizadas pela cidade com
a aprovação e os conselhos do ciero délfico, implicarem um mínimo de conhecimen­
tos marítimos, não podia faltar a dimensão comercial. Por um lado, ttataya-se de pUer
algumas matérias-primas que escasseavam na Grécia, sobretudo o ferro e o esíanJio,
Por outro lado, a fixação de Gregos na Itália meridional, nas costas da Gáíia ou da
Ibéria, no Egípto ou na Síria e nas margens do Ponto Euxino não podia deixar de
fomentar as trocas comerciais que, embora não se fizessem necessariamente entre
metrópoles e colônias, eram uma realidade. As escavações levadas a cabo pelos
arqueólogos em Pitccusa (Ischia) mostraram a importância das instalações metalúrgi­
cas onde se transformava o mineral, importado provavelmente da Etrúria, Sob este
ponto de vista, é significativa a Jundação de Marselha, no início do século VI, num
local que manífe.stamente não dava acesso a ricas terras cultiváveis mas que aparecia
como a foz natural dos rios da Gáíia por onde chegava o estanho vindo das misteriosas
ilhas Cassitérides. Do mesmo modo, é significativa a instalação, a partir do século vn,
de uma colónía grega em Náucratis, no Egipío, onde os comerciantes vindos da i. I'-.t
Grécia ou das cidades gregas da Ásia Menor podiam comprar o üigo dojyale do Nilo,
que iam depois vender nas„çídadespgeigs.
Por conseguinte, se não se pode contestar a existência de um comércio marítimo
grego na época arcaica, há porém duas questões importantes a esse respeito: quem Cl;
eram os promotores desse comércio e que papel ocupava, ou iria ocupar, a moeda?
A primeira pergunta suscitou respostas muitas vezes contraditórias, Para uns, e o 1: 1t ■■rt: !
exemplo, atrás referido, do pai de Hesíodo, podia ser uma prova disso, p comércio i
era uma ocupação de marginais, camponeses cobertos de dívidas, filhos mais novos ■, ' : I ■'Ô'
excluídos da herança familiar que, nãp podendo viver dp produto de uma proprie­ ;t |.- C.C
, 1
dade, se faziam ao mar, esperando obter lucro da venda, por um preço elevado, do 6 ■;; ceei
que tinham comprado a baixo preço- Para outros, porém — e também neste caso se
pode recordar Hesíodo quando convidava Perses a fazer-se ao mar para vender.-o
qxcedente da sua cp|heita — , comerciar implicava, por um lado, a posse de um
barco e, por outro, uma carga que pudesse ser trocada Por isso, os primeiros
«comerciantes» só podiam ser aqueles que detinham o poder nas cidades, pessoas . '/ r!ti c ' t
que viviam ao mesmo tempo dos rendimentos das suas terras e dos lucros que Ilies I
eram garantidos pelo facto de poderem dispor de excedentes. Cite-se, a propósito, oi
irmão da poetisa Safo, que navegava por conta própria e fazia viagens frequentes à
colônia de Náucratis ou os Focenses que comerciavam servindo-se de rápidos
penteconteros que os conduziam até às costas da Ibéria. Em algumas cidades
costeiras da Ásia Menor, em Mileto, em Halicamasso, na Fócida, em algumas ilhas
do marEgeu como Samos, Quíos ou Egina, também íería existido uma aristocracia
mercantil, provenierite da aristocracia dos proprietários de terras, mas mais aventu­ <--
reira, mais ansiosa de obter lucros fazendo-se ao mar,

37
Talvez não seja necessário escolher entre estas duas imagens do comerciante
grego da época arcaica O comércio, cujo caracter aventuroso devemos, porém,
sublinhar, tanto podia ser praticado pelos proprietários ricos e poderosos como
pelos marginais impelidos pela necessidade. Como a navegação estava sujeita aos
caprichos dos ventos e das tempestades, o comércio tanto podia ser fonte de lucros
como provocai a ruína de quem a ele se dedicava A história, referida por Heródoto,
de Cóíeos de Samos, que uma tempestade desviou do Egipto para onde segurameníe
se dirigia em busca de trigo, e que foi acostai', depois de um périplo incrível, à
Andaluzia, talvez seja fruto da fantasia, mas traduz bem os perigos e as incertezas
desse comércio aventuroso, e o estatuto extremamente variado daqueles que o
praticavam.. Compreende-se por isso que é impossível dar uma resposta definitiva
ao segundo problema de que falámos atrás: o papel da moeda nas trocas comerciais.
Sabe-se que_a questão da.,origem da.moeda suscitou muitas discussões entre os
(X ffit?scW modernos, sobretudo a partir de dois textos de Aristóteles. O primeiro, no livro I da
Política, associa expressamente á'‘^Ínyenção da moeda às necessidades das trocas
‘^-■
J-fCCO'^ comerciais: «quando se incrementou a ajuda que os vários países dão uns aos outros
jnücUc!- através da importação dos produtos que escasseiam e da exportação dos excenden-
Li eilcf íes, introduziu-se o uso da moeda como uma necessidade» O outro, extraído do
livro V da Ética a Nicómaco%^a\çü mais o aspecto da moeda como instru.mejnío.de
medida do valor dos bens^.trQcados, indispensável „para . manter a^jgualdjrde, nas
relações de,reciprocidade no seio da„çpmunidade cívica. É certo que continua a
tratar-se de trocas comerciais, já que Aristóteles cita como exemplo a relação
estabelecida entre um arquiíecto e um sapateiro, mas vê-se bem que este tipo de
üoca tem muito pouco a ver com o desenvolvimento do comércio marítimo, Se nos
limitarmos aos factos, constatamos que as primeiras moedas só apareceram no
mundo grego em.fmais dp século vu, nu seja, mais de_um século após o início das
ft,n‘j SCC ^li mocas comerciais .no Meditenrâneo. Àiiás, o estudo dos tesouros monetários de­
monstrou que a circulação das moedas — e, ainda por cima, trata-se apenas de
moedas atenienses — permaneceu, pelo menos até ao século v, lelativamente
limitada fora do seu espaço de emissão. Sem negar o papel importante desempe­
nhado pela moeda nas trocas comerciais, sobretudo a partir da época clássica, o que
actuaímente se põe em destaque são as suas funções fiscais, militares (muitas
emissões de moeda tinham por objectivo pagar o soldo a exércitos mercenários) e
também políticas, na medida em que a moeda era sinal de independência e emblema
cívico. Todavia, embora a moeda não tenha sido inventada para satisfazer as
necessidades comerciais, o que é um facto é que, com o passar dos anos, acabou por
se converter no instrumento privilegiado do comércio, como é demonstrado pelo
que sabemos acerca do comércio ateniense da época clássica graças não só aos
discursos do corpus de Demósíenes, mas também graças a alguns textos literários
que insistem na predominância, neste domínio, de Atenas, cidade em que, mais uma
vez, temos de centrar a nossa atenção,
CcrnÉftí c- O comércio ateniense desenvolve-se a partir„do,sóçuío vi, A tradição atribuía a
aVenten-^: SólmiJLima reforma dos pesos e das medidas e a adopção de um novo padrão
: &Í.C Ví monetário., Hoje sabe-se que as primeiras moedas atenienses, com.a coruja de,Atena.
••••••
1 •.••••.•'. • cunhada no reverso, não são anteriores à segunda metade dp século vi.
,(í?cecla/0
So 1 cn - r i f c r ff' 'pi' l Cj e rn ^ ^
I pten c' 38
Uc p (ulI<■ rn c nC'>o.-
p íLi.i c LL' c A ’“- 1í- "a o oct (

Q, In í". ,. |■.||. r í i C. c: f « i CL j ri J ^ f f-,


É também qesse period^que a__^füsão cçm figurasnegras saídos das
oficinas do Cerâmico atinge o máximo da sua evolução e que, sob,o impulso dos
BsísjLratps,. Atenas começa a voltar-se para o Ponto Euxino e para os estreitos, com
0 objectivo de garantir o abastecimento de cereais à cidade, cuja população continua ru;v.(
a aumentar. No.séçuIo,v, apqnstrução de um porto niilitar, mas também comercial,
Jio Pireu,_o desenvolvimento de uma poderosa marinha, e o domínio que, após as
„guemas médicas, Atenas exerce sobre as cidades egeias, contribuem p^^ãra fazer dó 1fiCíri; ,-p'OCl
Pireu uma espécie de plataforma giratória das .troças comercims no MedítekWe^^^^
«Vemos chegar até nós», afirma Tucídides pela boca de Péricles, «graças à impor­
tância da nossa cidade, todos os produtos de toda a terra, e os bens fornecidos pelo
nosso país já não são apenas nossos mas também do resto do mundo.» O autor
anônimo do panfleto olígárguico conhecido por República dos Aienieiises refere-se
ao mesmo:

«Só os Atenienses são capazes de ter nas suas mãos as riquezas dos Gregos e dos
bárbaros. Se um Estado é rico em madeira para a construção de barcos, onde a venderá
se não se entende com o povo senhor do mar? E se uma cidade é rica em ferro, cobre,
linho, onde os vendcrã sc não sc entender com o povo que á senhor do mar? Ora, ó
precisamerUe com esses produtos que eu construo os meus barcos. De um país trago a
madeira, de outro o cobre; um foaiece-ms o linho, o outro a cera.»

Três quartos de século mais tarde, Xenofonte repete a mesma coisa no tratado
Sobre os Recursos Financeiros:

«O nosso país é o que oferece mais prazeres e mais lucros aos comerciantes Em
primeiro lugar, possui os refúgios mais cômodos c mais seguros para os navios, que,
uma vez ancorados, podem repousar sem receio apesar do mau tempo Na maior parte
das cidades, os comerciantes são obrigados a adquirir uma carga em troca porque a
moeda dessas cidades não tem vaior fora delas. Em Atenas, porém, em troca do que
trouxeram, podem levara maior parte das mercadorias de que os homens necessitam ou,
se não quiserem levar carga, podem exportar dinheiro e fazer assim um óptimo negócio;
porque, seja onde for que o vendam, recebem mais do que a soma inicial »

Como se vê, Xenofonte não só realçava a centralidade de Atenas e do seu porto


no comércio mediterrânico e as vantagens da sua posição geográfica («tem todos os
ventos ao seu serviço, quer para importar aquilo de que necessita, quer para exportar
0 que quiser»), mas também associava a sua supremacia comercial ao valor da sua
moeda.
Podemos fazer uma ideia dos produtos desse comércio. Entre as importações
figuravam, como já dissemos, os cereais indispensáveis à alimentação da popula­ ccfC Cffn
ção. para a qual a produção locai só contribuía pardalmente. O trigo vinha do
e írC.VCit/ C1
Egipto, da Sicflia, mas sobretudo das regiões setentrionais do mar Negro. Segundo
fetr-c
uma afirmação de Demósíenes, mais de metade do ín‘go importado provinha do ■Cobrd
Ponto Euxino, e os decretos em honra dos régulos locais demonstram que os
mercadores vindos de Atenas gozavam aí de condições particularmente favoráveis. iu
Atenas importava também madeira para a construção dos seus barcos, madeira essa

39
que provinha essencialmenie do Norte da Grécia e da Macedónia. Andócides,
durante os anos do exílio que se seguiram à condenação por ter participado na
mutilação dos Hermes, dedicou-se ao comércio de madeiras para construção e
Demóstenes acusava Mídias de se ter aproveitado da sua trierarquia para importar
madeiras utilizadas na construção de escoras para as minas de prata do Láurio.
O terceiro produto importado, por ordem dp impprtânçia, eraniuos„esçra^ que
provinham sobretudo das regiões, orientais, da Cária, Çilíçia, regiões, dp,. Ponto, e
também dpJN,Qrtejio...Egeu, espaçi.alménte da. Tráçia. Como já vimos, Atenas Ünha
também de importarLfç,n;P e cobre,, Além disso, os mercadores que desembarcavam
a sua carga po^ireu. traziam4 JXodulos„deJuxoUecidQS Jinos,.perfumes,,esp.eeiari,as,
yilihos, etc Em troca, Atenasmão .só, reexportava para o-resto do mundo egeu uma
parte das mercadorias que.entravam no.Pireu, como exportava vinho, óleo, mármo­
re e sobretudo, como sublinhava .Xenofbnte no texto citado, prata convertida em
ntfii 'í-C
moedas. É importante esclarecer que, nessa época, o problema que hoje definimos
por equilíbrio do comércio externo não se colocava, e que exportar prata em moedas
não era sinal de um défice desse comércio, Aliás, a cidade só intervinha para
regulamentar a entrada e a saída do porto, para vigiar a honestidade das transacções
e paia cobrar os impostos a que estavam sujeitas todas as mercadorias que entravam
ou saíam- 56 o comércio do trigo é que estavA^-sujeito a. uma regulamentação,
referida em alguns textos e confirmada pela existência de magistrados especiais
íívrc Ccr/i^ccx-O; encarregados,da..vigilância desse comércio, os. útophylakes. Todavia, essa regula­
s t^í i:\OfO mentação, cujo objectivo era garantir o abastecimento da cidade e evitar as especu­
lações de certos comerciantes nos periodos difíceis, só deve ter sido efécliva a partir
do século IV, quando Atenas já tinha perdido uma parte do seu poder no Egeu,
Se quisermos observar de perto o que era o mundo dos comerciantes, o mundo
do empòrion, temos de pôr de parte muitas idéias feitas. O comerciante ateniense
niíO ■"> nj^o é nem um rico importador nem um humilde meteco. Cidadãos e estrangeiros
"[ ^ ^''' surgiam lado a lado nos cais do Pireu e na grande sala onde eram expostas as
I mercadorias. No topo da escala social encontravam-se os cidadãos ricos que, em-
n'',:-í(Ln p r e ^ a v ^ «sobre coisas expostas a risco marítimo», mas que, na maioria dos casos,
se maníiííham estranhos h transacção propriamente dita, intervindo apenas se^ó“'
negócio lhes corria mal e se se viam privados dos elevados lucros que o empréstimo
mantimo comportava. Alguns eram iguaJmente proprietários de minas ou de ofici­
nas, como o pai de Demóstenes, políticos, como o próprio Demóstenes, ou ex-
-comerciantes que se tinham retirado dos negócios, como o litigante do discurso
Co/itm Diogiton, de lísias. O negócio fazia-se muitas vezes através de um ban­
queiro que ficava depositário do contrato, a syngraphè, que ligava o credor ao seu
ou aos seus devedores e que, em caso de contestação, era eventualmente mostrado
em tribuna],, Qs comerciantes propriamente ditos, os. èmporoi, eram cidadãos ou
estrangeiros, de passagem ou residentes. Tratava-se em geral de pessoas de condi­
ção, relaíívamente-modesta,,.obrigadas a endividar~se para poderem comprar uma
carga,.esperando que os lucros obtidos lhes permitissem, uma vez pagas as dívidas e
os juros, ficar com o suficiente para regressarem ao mar com uma nova carga. De
facto, a maior parte desses empòroi são também navegantes. Só os mai.s ricos é que
p.odiam confiar a carga a um empregado, em gerai um escravo, e permanecer em

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terra. Alguns desses empòroi possuíam um barco, mas a maioria tinha de pagar a
sua passagem e a da carga no barco de um armador, de um nàuklero^, que ajustava t |
com vários comerciantes a viagem até ao Ponto ou à Sicília. Assim, as aIegações..do ^
corpirs.demosténicp fazem reviver todo um mundo de,comerciantes,.de-proprielár
rios-de„barcos. de agentes maÍs_ou menos .Jionestos, prontos a vender, .os seus v
serviços a uns e a outros, As dificuldades da navegação, os riscos de naufrágio ou de {
ataques dos piratas tomavam esses empreendimentos marítimos muito perieosos. ’
Pouco a pouco fonbse. elaborando, um direito que. dava garantias..ao. emprestador,
sob a forma..de hipoteca sobre o barco,pu sobre a carga Todavia, em caso de
naufrágio, Q, credor perdia todos os. seus. direi tos e o devedor ficava liberto da, sua
dMdawIsso pLoyocpu alguns naufrágios fraudulentos, que deram azo a processos"
em que, só pela leitura das alegações, é difícil saber quem tinha razão, A partir de ^
.meados dp séçuip.iy, es.ses prp_cessos eram.julgados num-tribunal presidido pelos -
tesmptetas e, facto caracterislico da importância do comércio mantimo, os esPan-
geiros e mesmo os escravos, muitas vezes usados como agentes comerciais, podiam ,,
interpor uma acção sem terem de recorrer à mediação de um cidadão «paüono». No
entanto, os estrangeiros eram sempre encarados com uma certa desconfiança pelos
seus sócios e, nos tribunais, embora não se possa falar de xenofobia, não era raro
ouvir um cidadão insultar o adversário referindo-se à sua origem. É também dc tio ‘j i(.

notar que essas associações entre emprestadores, èmporoi e nàukleroi eram na


maioria dos casos efêmeras, e ílimadas apenas para o decorrer de uma única viagem
ti'"Í’”' 't de ida Cyvolta até ao Ponto ou à Sicília, ao Egipío ou a Marselha, Portanto deve ^
i-'' ' *'tenunci.ar-seLde nma„vez ppr todas à ideia da existência de uma classe de mercadoresj'''^..''/r.^,
que teria controlado.o comércio aíenieiise. O que sucedia nos outros locais? tem os \
de confessar a nossa ignorância quase total, mas é de presumir que nas grandes
cidades marítimas existissem forma análogas de actividades comerciais a que a
cidade como tal se mantinha alheia, embora por todo o lado se cobrassem impostos
sobre a entrada e a saída dos barcos e das mercadorias, Do mesmo modo, é
impossível avaliar, mesmo aproximadamente, o volume dos produtos comerciados,
que devia aliás variar sensivelmente de um ano para o outro. Por fim, não devemos
esquecer que, em finais do século iv, havia numerosas trocas que ainda se faziam
por vias que escapavam ao comércio propriamente dito, Era o que acontecia não só
com as trocas a nível local, mas também com as que se faziam a longa distância i
Ainda não falámos do papel dos banqüeiios-nestc-munda..do empòrion.. Ou mi-
melhor, vimos que o banqueiro servia por vezes.de-intermediário entre o empresta- ^
dor e o comerciante, e que era ele quem ficava com o contrato que fixava a
xnoda.lidade dq empréstimo, Na realidade, o termo «banco», pelo qual traduzimosja '
termo grego tràpeza, não deve iludir-nos- No mundo das cidades gregas, os ban- ■combt ^íricCciO'
queiros não desempenhavam uma função que se possa comparar à de um banco I-) toca'.-.!
moderno, ou seja, de um organismo de crédito capaz de financiar investimentos
produtivos. A mesa dpjbanqüeiro era sobretudo, a mesa de um cambista, onde o
xnejcador estrangeiro que estava de passagem podia arranjar rno.eda jocaf e a ^
a^mpedas estrangeiras que possuía. Todavia, provavelmente em finais do século v,
e pelo menos em Atenas, os banqueiros também recebiam depósitos, que eram
depois restituídos aos clientes se estes queriam aceitar um empréstimo, e não só

41
para fms comerciais, mas que não utilizavam, segundo parece, por iniciativa pró­
pria Essa função de intennediários e de cambistas permitia sem dúvida obter
enormes lucros, mas não convertia aqueles que a desempenhavam em «homens de
influência», para utilizar uma expressão recentemente aplicada a um banqueiro do
Jccu-i-fiín-íaC/O'-' século passado Com efeito, descobrimos que os banqueiros cujos nomes nos
jbxam,,tiansrrütidos pelas fontes eram, na sua maioria, ex-escravos, E certo que
irwtr' ^ Easion, o mais conhecidQ...desses banqueiros de origem escrava, era um homem rico,
itc'î'avci 1'odavia, é significativo que, uma vez libertado e depois convertido em cidadão em
ií PolicO circunstâncias pouco conhecidas, tenha investido uma parte dos seus bens na
h c1 *01 *m
compra de tenas, o que permitirá a seu filho, Apolodoro, viver como um geníleman
f ( CO fanner, confiando a gestão do banco ao ex-escravo Foimion e preferindo aos lucros
extraídos das operações de câmbio as pesadas despesas de quem queria fazer uma
carreira política.
Antes de deixarmos o mundo do comércio, falta-nos dizer algumas palavras
tc C acerca das trocas locais. Dada a natureza da paisagem grega e a rnm plexidade dn
"•seu relevo, as trocas por via terrestre,eram relativamente limitadas. Era sempre
<jlTCfeO .
mais fácil embarcar as mercadorias, mesmo para curtosirajectos,,.e,.transpartá7la^
t-j !(v/"i I c l C O- t
Vr c c,c>j',"> por via maritima. Se as trocas entre cidades eram raras, eram porém frequentes, no
CC!t*0J‘3.í'CI Cl.:interíor-.dn t.errttória-deL.uma^mesma cidade, entre_essa_ci^ade-.e.-0. campo,, Os
camponeses da c/mrq,^nham à cidade vender os excedentes de que podiam.disppr
p_ara comprarem aquilo que só p artesanato urbano lhes podia oferecer. Por isso
Arisíófanes troçava da mãe do poeta Euri'pides que ia vender ao mercado a salsa
da sua horta. Todavia, a par dos camponeses humildes que se deslocavam para ir
ao mercado, também havia na agord mercadores profissionais, os kàpeloi focados
tnerCO-OcH^O ,nas.xomédias de Aristófanes e que pertenciam manifestaniente às camadas mais
pflf) I J j y H O Í Í l C U
pobres da população. Entre eles havia também cidadãos e estrangeiros, sendo
•i Kli’pûUi
estes últimos, na maioria dos casos, metecos que se tinham fixado em Atenas,.
Ainda segundo o testemunho de Aristófanes, entre os kàpeloi havia Jguaimente
mulheres,^que.vendiam.fitas,, perfumes, flores, etc,, e que muitas vezes, como
aconteceu com a mãe de um litigante do corpus demosténico, eram obrigadas a.
(^dicar-se a essas aedvidades, consideradas pouco dignas para uma mulher livre,
pela,miséria ou a ausência do marido na guena.
ai'j'.'ictctc' ^ Este quadro das actividades económicas do homem grego, já limitado, no
cc-'ion'.'.cc essencial, ao exemplo de Atenas, ficaria incompleto se, para terminar, não se falasse
; cci. de uma actívídade,_a pesca, que não se inclui nem no artesanato nem no comércio.
Inféíizmente, sabe-se muito pouco acerca dos pescadores, que deviam ser em
. CO, rc’-.'^'- ^
o. f '■o* '"'
grande número num país cercado pelo mar Sabe-se apenas que havia pesqueiros
« i r^cKL'< importantes em algumas partes do mundo grego, como a região do Ponto Euxino, de
onde provinha grande quantidade de peixe seco Todavia, ignora-se tudo acerca da
organização da pesca e pode apenas presumir-se que sejrevestía de um carácter
artisanal e individuah
Por conseguinte, este breve resumo das actividades económicas do homem
CÎQ'jd't gmgo confijrma,.,aj/aIídade^dQ modelo elaborado pelo grandejiistoriador inglês
{íot1-í etc. cbCc Moses FirUey no, seu livro sobre a econorma antiga:'Nò entanto, continua a haver
dúvidas acerca da perenidade desse modelo. De facto, viu-se por várias vezes que o

42
r. r ü-tV o
.h alttro
1 a a 'r-
j-i.' rC' n.(.é O.cv
século IV, apresentado arniude como um século de crise e de decUnip — e é~o
efectivamente, a nível político, para cidades como Esparta ou Atenas —, era um
testemunho, se não de reais transformações nas manifestações da vida económica,
pelo menos de uma avaliação mais concreta dos problemas gerados pela produção e
pela troca des bens. Já evocámos alguns tratados de Xenofonte como o Económico
ou Sobre os Recursos Financeiros, a que convém acrescentar o segundo livro do
Económico, atribuído a Aristóteles, E certo que o primeiro destes tratados, que se
apresenta sob a forma de diálogo socrático, é acima de tudo um manual de conse- sv áec.
liios para uso do perfeito aristocrata, jMa^a.Dreocupacão de organizar de uma forma sec. dt en w.
racional a administração da propriedade,, especializando..,os. .escravos em Jaiefas
precisas, exprime uma nova mentalidade, o desejo de produzir.rriais e meihOT^ Da
mesma forma, se o tratado Sobre os Recursos Financeiros tem como objectivo último
o sonho utópico de garanür a cada ateniense o seu trióbolo diário com o aluguer, n ix -v
mediante um óbolo por homem e por dia, de um número de escravos que era ó triplo cfc^nol
do dos cidadãos, não deixa de propor uma valorização das minas, da responsabiii-
dade de toda a cidade, destinada a aumentar a produção de prata, cujo volume,
segundo Xenofonte, se pode aumentar de uma forma ilimitada. Aliás, a esse res­
peito, fornece uma indicação que, embora dependa apenas do bom senso, revela
uma percepção realista e nova dos factos económicos. Quando propõe aumentar o
número dos escravos que trabalhavam nas minas e, consequentemente, a quantidade
de mineral extraído, afírma;

«Com os mineiros não se passa o mesmo que com os operários do cobre. Se o


número destes aumenta, as obras de cobre desva!orizam-se e os operários abandonam o
seu ofício. O mesmo se passa com os operários do ferro E o mesmo se passa quando há
trigo ou vinho em abundância: o seu preço desce e o cultivo deixa de render; por isso
muita gente abandona o trabalho dos campos e dedica-se ao comércio grossista e
reíaUústa ou à usura. Pelo contrário, quanto mais mineral for descoberto e quanto mais
abundante for a prata, mais trabalhadores atrai a mina.»

Este te5,íaAintei:essante porquerevela.não só as novas preocupações dos teóricos


mas também os limites do seu pensamento no domínio da economia. Xenofõnté rí
conhece a Íei dã oferta e da pro.cüra.e_a$ especulações que ela pode provocar. Mas não !■■ .7 r
i'
se interroga acerca do motivo por que essa lei não se aplica à prata. Do mesmo modo, ! I.M '
o célebre excerto da Ciropedia acerca da divisão dos ofícios nas grandes cidades, mais
do que uma apreciação das leis do mercado, exprime um conceito qualitativo da
produção, E todavia essas leis não são totalmeníe ignoradas, já que essa divisão está
relacionada com a procura. Quanto ao Econômico pseudo-aristotéüco, tratado saído
da escola peripatética e que nos foi transmitido de uma forma compósita, o seu
interesse reside no segundo livro, não tanto porque refere uma série de anedotas
acerca das mil maneiras de obter lucros, mas porque a noção de oikonomia se alarga
até às dimensões da cidade e do reino e porque os estratagemas fiscais que a ilustram
já não dizem respeito à gestão de um oikos
Esta presença mais realista dos factos respeitaníes à economia nos textos teóri­
cos — e as análises aristotélicas sobre a origem da moeda e sobre a crematística têm

43
o mesmo senlido — exprimirá uma mudança das mentalidades ao nível dos actores
económicos? E qual será a amplitude dessa mudança? Deve responder-se com
prudência a esta pergunta Na nossa opinião, a resposta situa-se a vários níveis Em
primeiro lugar — e, naturalmente, referimo-nos mais uma vez sobretudo a Ate­
nas —, parece ser certo que se renunciou ao modo de apropriação dos bens que
remonta à noite dos tempos, isto é, a exploração dos mais fracos. Privada do seu
r -u império, Atenas vê-se privada dos rendimentos que auferia sob a forma de tributos e.
despesas de Justiça, para não falarmos das terras confiscadas aos aliados recaícitran-
> íes. Segundo Lsócrates e Xenofonte, Atenas Já não pode viver da exploração dos
tí;: seus aliados. Portanto, ter]oi_de encontrar em si mesma as receitas necessárias para.o
í''"’ ~^''~'''''*bom funcionamento das instituições. Assim, o, século iv assiste, em Atenas, ao
L desenvolvimento de um esboço de organização fiscal e ao aumento dos impostos.
'■ pagos pelos mais ricos. Como não é de crer que estes reduzam o seu nível de vida
' ■' ^ V. _ tradicional — pelo contrário, a acreditar nas fontes literárias e nos testemunhos da
arqueologia, o luxo privado continua a afirmar-se —, tem de se pensar em encontrar
novas fontes dejendimento, por exemplo, o empréstimo marítimo a taxas de usura.
Mas j$so implica que se dispoi^ia de„dinheirq líquido, ou seja, de excedentes. Por
outras palavras, embora não sc concepíualíze a relação entre aumento da produção e
aumento das receitas, embora se pense mais em aumentar o número dos escravos
do que em aperfeiçoar as técnicas de produção, na prática acaba-se por produzir
mais. É certo que devemos evitar' generalizar partindo de indicações fragmentárias.
Todavia, no terceiro quartel do século iv, assiste-se ao despertar incontestável da
■lo r
indústria mineira e ao não menos real desenvolvimento das acüvidades do Pireu, o
que obriga a cidade a prestar mais atenção aos assuntos comerciais e a prever um
procedimento mais rápido para os assuntos respeitantes ao enipòrion. E, facto talvez
ainda mais significativo, verifica-se o aumento da importância das magi^stiaturas
financeiras e do papel gue-são chamados a desempenhar no governo da cidade os
«l,éçjiicii5>L.dos.,.assuntos financeiros como Calístiato, Eubulo e sobretudo Ltcurgo,
encarregado da diòikesis. de toda a administração da cidade, verdadeiro administra­
ol \'l èíc- dor que não hesitava em levar a tribunal os concessionários de minas desonestos ou
r' -'.-C imprudentes. Deve também mencÍonar-se a censura que os oradores da segunda
vrj'.'.- - - metade do século faziam aos cidadãos pelo seu desinteresse crescente quanto, aos
- -i
negócios-da.cidade, desinteresse que se alia a uma maior preocupação, pelos seus
negócÍ0S-piLvadQS*_p.da,.ÂUa Jd ía . Essa censura podia ceríamente visar .pg cidadãos
mais pobres, aqueles que a perda do irnpério e das clerúquias.fiAha privado,das
Ínúmeras,vantagens.que usufrufam sob a forma de soldos, de despojos de guerra ou
de_cqi^;^ões eram obrigados a viver çpm ps seus poucos bens
•7^ e com^Igütnas distribuições do teórico,,subsídio pago aquando das representações
dramáticas e que, segundo Demóstenes, se converteu numa espécie de ajuda finan­
ceira para os mais miseráveis... No entanto, essa censura visava também Os ricos,
^mais preocupados em ganhar dinheiro do que em intervir nos debates políticos que
Icada vez mais eram dominados pelos profissionais do discurso ou pelos técnicos da
guerra e das finanças Acerca deste assunto dispomos de uma fonte preciosa, o
riicci Iteatro de Menandro, representante da Comédia nova, discípulo da escola peripalé-
' lica, que conheceu o seu apogeu nos dois últimos decênios do século, quando

44
Atenas, vencida e sob p controlo de uma guarniçãojnacedónia, deixou de desempe­
nhar um papel de primeiro plano no Egeu. Nas comédias de Menandro nunca é feita
qualquer alusão aos acontecimentos políticos, Os heróis que ele põe em cena são
jovens ricos, muitas vezes erh litígio com os pais revoltados com a sua vida
dissoluía e com as intrigas sentimentais que os fazem sair do bom caminho. Esses
«burgueses» são obrigados a fazer frequentes viagens de negócios e em muitas das
peças a acção tem início no momento preciso em que regressam. Possuem escravos,
ricas moradias e, no fim da comédia, quando tudo termina com o casamento
desejado, todos os criados são mobilizados e chama-se um cozinheiro famoso para
preparar o banquete nupcial, Estamos muito longe do mundo camponês, folgazão e
altameBíe.polÍÜ2ado,.de.,Aristófanes^E se os pobres são por vezes mencionados — e
muitos deles são camponeses — , permanecem porém num plano secundário, a não
ser que se venha a descobrir que são de origem nobre. Todavia, por toda a parte se
afirma a importância do dinheiro, da riqueza que permite que os jovens mantenham
corlesãs e que estas comprem a sua liberdade. É certo que devemos evitar ver no
«povo de Menandro» uma imagem exacta da realidade social da época Contudo,
isso não significa que não se desenhem as características de uma nova sociedade
que será a da época helenística.
Seria excessivo e arriscado afirmar que, em finais do século ív, o homem grego
se converteu num homo oecvnomicus No entanto, podemos dizer sem grandes
jiesjtações que já deixou de sev ãqneh zoonpoliiikòn que Aristóteles íerrtava em vão (T o w riC C ' V';
ressuscitar. É certo que pjnundo grego, parcialmente subjugado, continua a ser um
jmündõ^essencialmente constituído por cidades e que a vida política subsiste de um
modo formal. Mas, as conquistas de Alexandre abriram aos Gregos um mundo
imenso, que eles vão administrar sob a égide dos soberanos macedõnios que
dividiram os despojos entre si, Embora não se deva atribuir à economia do mundo
helenístico a amplitude dos desenvolvimentos que Rostovtzeff julgou descobrir,
isso não impede que se tenha criado então um verdadeiro mercado mediterrânico
que gerou um aumento da produção e provocou o desenvolvimento das técnicas, se i i I-.
não produtivas pelo menos administrativas e financeiras. Contudo, para além da
língua com que se exprimem e algumas práticas religiosas, os Gregos aue adminis­
tram as finanças dos reis iágidas ou seíêucidas já não têm nada em comum com.os
Atenienses de Maratona ou os Espartanos das Termópilas. O homem grego foi
substituído'pelò hqmern helenístico,.

45
CAPÍTULO n

o HOMEM E A GUERRA
por Yvon Carlan
Guerra e paz

O homem grego estava habituado à guerra e foi mesmo belicoso, como se pode
demonstrar com facilidade e de várias maneiras.. Sempre que a nossa documentação
o permite, ppdernos registar a frequência das guerras^e apercebermo-nos, por
exemplo, de que, em média, a Atenas clássica esíeye.ejn guerra mais de dois
anos em três, e nunca conheceu a paz durante dez anqs_seguidos; a isso acrescentar-
-se-á a insegurança crónica provocada por diversas formas, mais ou menos legais,
de yipjênçia em tena firme e ainda mais no mar (acções de represálias, direito de
naufrágig^piratanaprivada, semipúWica ou de natureza francamente estatal), Para­
lelamente, e sob o ponto de vista arqueológico, evocai-se-ão as fortificações cons­
truídas com grandesjdespesas em tomo dos principais cenbos__residenciais e de
^dêF(têntãntíÕ imaginar o que outrora significava o facto de se viver numa cidade
«fechada») e as que se encontravam nos campos (torres de vida e de habitação,
postos de controlo, refúgios) — sem esquecer que a grande maioria dasjBQnumên-
tos e das obras d.e„arie que,ornavjLm gs grandes santuários e os.Iugares.públicos não
passavam de ofertas de vencedores. A docum entaç^ epigráfica mostrará o carácter z\i!
efémero e precário dos tratado^ q u e punham fim às hostilidades durante um período
muitas vezes limitado a cinco, dez ou trinta anos, como se a paz fosse, desde o
primeiro momento, considerada precária ou mesmo concebida como uma espécie
de trégua prolongada.
Para osJiisíoriadores gregos, só a guerra parece ser um assunto verdadeira­
mente digno de memória: fomece-lhes o tema unificador das suas obras (as
UueiJ.as„Pérsicas, no caso de Heródoto, a Guerra do Pelgppneso, no c ^ p de
_JCucídides, o .imperialismo romano, no caso de Políbio) ou, pelo menos, confere
ritmo às suas crónicas. Na vida diária, a guena é uma preocupação constante para
os^cidadãos: por isso, p^ficípar nela é uma obrigação que, em Atenas, ia desde os
dezanove até aos cinquenta e nove anos (até aos quarenta e nove anos, no activo,
e depois, na reserva); decidir a. respeito dela constitui, por toda a parte, a compe- doí " 53
íência mínima das assembleias populares. A todos os níveis e em todos os campos
se afirma o predomínio do modelo guerreiro: na vida farníiiar, o soldado é, corno.
d it
V .'b- 49
se pode ver nas decorações dos vasos áticos, a_figura central em tomo da qual se
j^tictilam as relações internas do.ot/cqs; na vida religiosa, cada umajdas divinda­
des do Olimpo é dotada de uma função militar específica; na vida morai, o valor
de.,um,,,homem de bem a sua aretè, consiste em primeiro lugar na
coragem/acionai que manifésía tanto no seu intimo, ao lutar contra as paixões
mesquinhas, como no campo de batalha onde o aguarda a «bela morte», a única
que tem.um significado social.
Todavia, apesar do seu activismo guerreiro, o homem gregQ„nãp se pode defmír
Í7í;OvMn
como um hottto miUtaris,, se com isso se pretende designar um homem amante da
violência pela violência, indiferente às formas que ela reveste e aos objectivos que
lhe são atribuídos.
A guerra civil (siasis), que opunha entre si os membros de uma mesma comuni­
-3 lOO. s
dade política, concebida à imagem da famíita, era unanimemente considerada
pc I?rn?. desastrosa e.ignominiosa. A única que podia ser valorizada era a guerra entre
comunidades, o pòlemos, e mesmo essa sob condições. De facto, a guerra desen­
freada e selvagem, a guerra dos lobos, era .considerada uma transgressão escanda-
lQsa„C/i>>í)rí.r) às^^nqnrias de convivêncm — por outras palavras, (^justiça — que os
homens deviam respeitar'não s^entre eles mas também em relação aos deuses.
c{^ P-AÒlfÍGoi.propriamenteditQ, pelo contrário, não podia prescindí r^da observância
de determinadas regras: ^ e claracão de gueira na forma devída,'^realização dos
sacrifícios.,, adequados^ífespeito. pelos, íuga^^^ (santuários}0j^las pessoas (arautos,
peregrinos, suplicantes) ^ e j o s actos (juramento) referentes à divindade, Sncessão
de^auíprização aos vencidos para recolherem os seus mortos e, em certa medida,
(^abstenção da crueldade gratuita. É o que se verifica sobretudo nas guerras entre
Gregos, cujo princípio virá mesmo a ser criticado (sem efeito visível), no século íV,
pelos apóstolos do pan-helenismo; mas também se verifica, até certo ponto, nas
guerras, justas por definição, travadas contra os «bárbaros». Obedecendo a essas
regras, não provocavam nenhuma mancha pelo sangue derramado e jaão,.exigi^
nenhum rito de purificação final dos çombatentes,. Apesar da sua imprecisão e das
inúmeras excepções de que foram objecto, essas «leis», consideradas comuns entre
os Gregos e mesmo em toda a humanidade, contribujam para limitar a amplitude
dos conflitos..
Por outro lado, seria ceder a uma ílusão de óptica imaginar que a guerra sempre
grassou em todo o mundo grego. Com efeito, não devemos esquecer que, por meras
razões documentais, o homem grego que nos é familiar e de que falaremos mais, é o.
p., '^■ ;. .de Atenas e, em menor grau, de Esparta na época clássica, que se viu empenhado em
vastos recontros de carácter imperialista, e não o da Grécia «profunda», repartida
ft)j?c:^íí! i O por mais de um milhar de pequenas cidades que viviam geralmente uma existência
. fi h '*líl '1 modesta, à margem e sob a protecção das grandes potências. O que vislumbramos,
neste caso, são conflitos localizados que opõem entre si cidades limítrofes com
objectivos e meios muito limitados, Apesar da sua multiplicidade, só deviam provo­
car modestos rasgões, logo remendados, num tecido espesso. O mesmo acontecia
com os diversos actos de «pirataria», A conclusão de alianças podia decerto aumen­
tar esses rasgões, mas, também neste caso, não devemos exagerar os seus efeitos, na
medida em que, regra geral, obrigavam apenas a contribuir com o envio de um

50
contingente que ajudasse a defender o território dos aliados e não implicava a
abertura de hostilidades contra os agressores, Também nada nos di z j o r exemplo,
que a época arcaica tenha,rido globalmente tão belicosa como asjépocaajsegujntes,
Todas estas limitações, de direito ou de facto, ajudam-nos a compreender que a
omnipresença da guerra não significa de forma alguma que a totalidade da Grécia
tenha estado permanentemente a ferro e fogo,
A uma visão militarista da. história..grega opõe-se,porJ0m_o lugar eminente
reservado ao elogio da paz, tanto na opinião pública como na obra dos teóricos.
Poder-se-ia apresentar um abundante florilégio, muito repetitivo, de textos que
exaltavam os seus benefícios, desde Homero até finais da época helenístíca. Q tema',''Po.,:: s' <
é sempre o mesmo: a p ^ é abundânçiaj boa yid.a, alegria, gozo dos prazeres rimples,; u , !

da existência: a guerra é abstinência, canseira (ponor), dor e. tris te ^ ParaJelameníe,;


a nível conceptual, há a afirmação de Platão, segundo o qual «é na paz que se deve
viver, e.o. melhor que.se puder, a maior parte da nossa existência» (Leis, 7 ,803d), ou
a de.Ari,stóteles,, segundo o qual «a.paz é o.fim último, da guerra, como o lazer é o
fim último do trabalho» (Política, 7, 1334a) — o que os impedia de fazer de
.físparta. onde essa relação parecia invertida, um modelo^
DeduzíV-se-á de tudo isto que se assistiu ao confronto e ao triunfo alternado de
duas correntes, de belicistas e de pacifistas, igualmente convictos, por razões de
princípio, da justeza absoluta da sua causa? Certamente que não. Em primeiro
lugar, porque as opiniões proferidas a esse respeito ou são apenas declarações de
circunstância, por vezes refutadas pelo próprio autor com afirmações de sentido
oposto, ou incidem unicamente sobre a oportunidade de uma ou outra guerra e não
sobre a guerra em si (e é por isso que não se conhece nenhum ateniense do século
V que se tenha oposto ao imperialismo enquanto tal). Depois, e acima de tudo,
porque a paz só é considerada segundo um ponto de vista pessoal, hedonista e, por
assim dizer, existencial, sem nenhuma consideração de carácter propriamente
humanitário e sem qualquer desejo de ver mudar, nesse campo, as bases da
sociedade ou a natureza do homem. Trata-se apenas do ponto de chegada, parti-
cuiarmente grato, que deve coroar os feitos guerreiros,. Corresponde ao momento
em que o camponês tem o prazer de armazenar e consumir os frutos dos seus duros
trabalhos. Ta! concepção não contradiz de forma alguma a necessidade, a racionali­
dade e a grandeza da guena; pelo contrário, tende a justificá-la, atribuindo-lhe
como fim último a felicidade.
Assim, embora funesta, a guerra soçia]ízada„pode revestir-se positivamente de
iodos os valores de que a elite cívica se reclama.

As causas da guer ra

«Vamos supor que se quer declarai' guerra àqueles que procedem justamente:
evitar-se-ia admÍü-Io», declarava Alcibiades, que não frequentai'a por acaso a escola
dos sofistas, no diálogo platónico que tem o seu nome (109c),
A partir deste princípio, que complementa as «íeis» atrás evocadas, ou melhor, a
partir desta petição de princípio que nada tem de especifícamente grego, desenvol-

51
vera-se toda uma casuística que desembocava na ‘composição de repertórios de
pretextos, como o que é proposto pelo autor aristotélico da Retórica para Alexan-
dre^ no início do sécuio lli a^ C :

«que, depois de termos sido vítimas de injustiças no passado, se tenha agora, dadas as
circunstâncias, de punir os que cometeram essas injustiças, ou que, sendo actualmenie
vítima de uma injustiça, se tenha de combater por si próprio ou por benfeitores ou prestar
ajuda a aliados vítimas de uma injustiça, quer no interesse da cidade ou para sua glória,
para o seu poder ou por qualquer outro motivo desse género. Quando incitamos â guerra
devemos apresentar o maior número possível destes pretextos» (Í425a).

A acreditar no que nos dizem os^Iiistoriadores gregos acerca das ofensas oficiab
/fi a í.-'- inente invocadas pelos beligerantes por ocasião de çada^çonflito, temos de reconhe-
cer que não faltou imaginação e não se hesitou em recorrer a todos os meios;
agre^ãp jterntorial, ataques às vias de abastecimento, desrespeito por acordos
,antenpres, estabelecimento de regimes malqujsjos, qualquer £orma de ameaça real
ou potencial,impiedade, afrontas que ofuscavani a glória da cidade, tudo servia para
fazerem justiça e para se defenderem . se possível, atacãndò'.'
Os historiadores gregos tentaram pôr um pouco de ordem e introduzir uma
certa profundidade de pontos de vista neste estranho arsenal de argumentos e de
argúcias; Heródoto, combinando de várias formas a vontade divina, a víitgança
das ofensas sofridas num passado mais ou menos remoto e os cálculos políticos;
Tucídides, apontando, para aíém dos «agravos e diícrenàos» acumulados na
véspera da Guerra do Peloponeso, a «causa mais verídica e menos confessada»,
que era o receio dos Espartanos perante o aumento do poder ateniense; PoJfbio,
chegando a distinguir as causas profundas de um conflito, o seu pretexto e o seu
ponto de partida. Todavia, todas as reflexões que fizeram neste domínio logo
atingem o seu termo e nunca chegam a uma opinião explícita acerca das causas do
fenómeno da guerra enquanto tal.
Essa opinião, porém, não está ausente da literatura grega. Encontra-se essencial­
mente, mas não unicamente, em Platão e Aristóteles, que não excluíram a guerra (tal
como a escravidão) dos seus projectos de sociedade ideal e não puderam, portanto,
esquivar-se a explicar a sua existência. As suas respostas são convergentes e
aparentemente simples: a causa da guerra teria sido o desejo de «possuir mais», de
adquirir, segundo o primeiro, riquezas e evenlualmente escravos, para o segundo,
sobretudo escravos, e para ambos, arranjar comida no mundo animal e no estádio
pré-cívico da humanidade (uma vez desaparecida a abundância natural da idade de
ouro ou a simplicidade dos costumes primitivos) Embora a palavra «riquezas» e
«escravos» possam revestir-se de um sentido mais ou menos metafórico, isso não
modifica em nada a perspectiva global dos nossos dois filósofos: para eles, a guerra
era, essencialmente, a arte de adquirir pela força meios suplementares de existência,
sob a forma de sustento, de dinheiro ou de agentes produtores, e a paz era a arte de
usufruir de tudo isso.
Portanto, os historiadores modernos encontraram-se perante o dilema seguinte:
dever-se-á atribuir à guerra na antiga Grécia uma única causa, essencialmente

52
económica, ou causas múltiplas e heterogéneas (políticas, religiosas, ideológicas e
económicas)? A maior parte, fazendo do edeclismo virtude, optou por esta última
solução — embora admitindo a importância das condições e das consequências
económicas da guerra e por vezes áescobnndo também uma unidade explicativa,'ao
congregar a diversidade das afrontas numa mesma pulsão profunda, como o espírito
agonístico dos Gregos ou até a combatividade natural da espécie humana, Mas será
um bom método truncar tão brutalmenie a documentação antiga, recusando um
ponto de vista em favor de um outro? Não será melhor tentar compreender a sua
coexistência, distinguindo os níveis em que ambos se situam no conjunto da estru­
tura social?
Para isso, recordemos antes do mais, em termos muito gerais, o papel fundamen­
tal desempenhado no mundo grego pela coacção física e jurídica, que se designa
geralmente por extra-económica: por um lado, no interior da cidade, para a extorsão
do excesso de produção que permite aos cidadãos realizar-se em detrimento de uma
mão-de-obra dependente; por outro, no exterior das cidades, sob a fònna de uma
expansão que constituí o principal modo de desenvolvimento económico e a princi­
pal via de resolução das contradições internas, E tudo isso se concretizava devido a
uma «lei», nunca posta em causa, segundo a qual o direito do vencedor de se
apropriar da pessoa e dos bens do vencido era o melhor título de propriedade,
Neste contexto, característico das sociedades pré-capitalistas (e que, nos séculos
passados, volta a encontrar-se, por exemplo, nas sociedades da região sahelo-
-nigeriana)', as noções de riqueza e de poder só podiam estar intimamente, organica­
mente ligadas, A sua amálgama constitui a base da polítíca no sentido grego do
termo (a arte de viver na polis), onde cada uma se apresenta muitas vezes sob a
forma da outra e se concretiza por seu intermédio. Assim se tece toda uma série de
intrigas originárias que proliferam na esfera política (no sentido moderno, restrito,
do termo), alimentando-se de todas as formas de sublimação geradas pelo senti­
mento da honra e pelo desejo de competir — com todos os riscos suscitados pelo
acaso e pelo talento relativo dos protagonistas. Portanto, como foi mais ou menos
sentido pelos próprios historiadores gregos, as relações internacionais, sejam quais
forem as suas metamorfoses, revestem-se sempre de um aspecto económico, mesmo
que a sua face mais saliente lenha, em geral, um carácter totalmente diferente. Na
minha opinião, este pomo de vista é o único que evita um agravamento da oposição
entre as causas económicas e não económicas da guena O complexo polMco-
-militar, com os valores particulares que lhe estão associados, insere-se assim da
melhor forma nas estruturas socioeconómicas das cidades gregas.

As motivações dos combatentes

Fossem quais fossem as causas proclamadas de um conflito, o que parece, em


todo o caso, ter contado para os interessados, eram as suas repercussões previsíveis,
concretas e imediatas, sobre as suas condições de vida.
Na melhor das hipóteses, a de uma guena ofensiva e vitoriosa, avaliavam-se os
lucros menos em dinheiro do que em despojos de diversa natureza; prisioneiros, que

5.3
se preferia Uberíar em troca de um resgate ou vender aos mercadores de escravos a
utilizá-los para aumentar o número de escravos de cada um; gado capturado nos
campos; produtos agrícolas já maduros ou ainda por colher; objecíos precisosos
(metal trabalhado ou cunhado, tecidos) e mesmo toda a espécie de objectes utilitá­
rios (utensílios, revestimentos em madeira, etc. ) A reparüção desses despojos, a
que podiam somar-se conquistas territoriais e tributos mais ou menos regulares, era
um problema essencial e sempre delicado, como provam os tratados que regulamen­
tam antecipadamente a sua distribuição aos aliados, em função dos seus contingen­
tes ou em função da natureza, móvel ou imóvel, dos bens conquistados.. Infeliz-
mente, não se sabe bem como é que essa distribuição se efectuava, uma vez
deduzidas as partes concedidas aos combatentes mais valorosos e as armas, as
riquezas e, por vezes, as terras consagradas a uma qualquer divindade sob a forma
de primícias e de décimas: parece que ao Estado cabiam sobretudo (para além dos
tributos e das conquistas territoriais) os melais preciosos obtidos nos saques ou
mediante a venda dos prisioneiros; aos soldados, os bens de consumo e de equipa­
mento; aos seus chefes, algumas presas de qualidade — quanto mais não fosse para
os compensar das somas que teriam desembolsado para melhorar'o rancho das suas
teopas, se não mesmo para lhes fornecer armas e garantir o seu sustento, Será difícil
afirmar algo de concreto a este respeito, dado que cada uma das partes procurava
aproveitar-se das circunstâncias para ultrapassar os seus direitos e os costumes
deviam variar segundo as épocas e as cidades; assim, em Esparta, um rei recebia,
por norma, um terço dos despojos obtidos sob o seu comando Embora isso não
fosse mencionado nas declarações oficiais, estas perspectivas de enriquecimento
individual e colectivo, quando pareciam racionalmente concebíveis, conduziam à
guena e influíam fortemente sobre o moral das tropas, Foi o que aconteceu em
Atenas, em 415, aquando da partida para a expedição à Sicília:

«Todos», refere Tucídides (6, 24, 3), «foram invadidos peia niesma raiva de partir:
os adultos, pensando que iriain conquistar a região para onde embarcavam ou que, pelo
menos, devido às suas poderosas forças militares, não corriam nenhum risco; os jovens
com idade de servir no exército, pelo desejo de ver paises longínquos c aprender, e a
certeza de que regressariam sãos e salvos; a grande muiridâo dos soldados, esperando
ganhar dinheiro e, além disso, adquirir um poder [no Estado] que lhes garantisse
rendimentos indefinidos»,

salários militares e também salários civis pagos aos cidadãos pelo exercício das
magistraturas.
Mas é em situações inversas — quando se tratava de rechaçar uma invasão
inimiga e garantir a sua própria salvação — que as motivações dos combatentes nos
são mais amiúde descritas.
Nas operações militares, o que estava sobretudo — e muitas vezes exclusiva­
mente — em jogo era o território que os agressores saqueavam e devastavam tanto
quanto lhes era tecnicamente possível e lhes parecia politicamente oportuno, Não
havia cidade que não reagisse vivamente, mesmo que fosse apenas por razões
meramente materiais, dado que a maioria dos cidadãos era constituída por proprie­

54
tários fundiários, mesmo numa cidade tão «comercial» como Atenas em finais do
século V, Qualquer ataque ao território provocava portanto uma ruptura mais ou
menos grave do equilíbrio econômico e, indíreciamente, do equilíbrio social da
comunidade, que corria o risco de se encontrar a braços, se não com a carestia pelo
menos com dissensões internas entre aqueles que sofriam e aqueles que não sofriam
com tal situação Este problema era tão importante que os legisladores, para melhor
garantir a concórdia entre os cidadãos, podiam zelar para que as suas propriedades
fossem iguairaente repartidas em relação às fronteiras, para que todos se sentissem
igualmente sob a sua protecção lambém influía neste sentido o conjunto dos
valores sociais, e nomeadaraente religiosos, ligados à posse da terra.
Abstraindo da relação de forças em presença, as respostas variaram de acordo
com a ideia que se tinha dos interesses supremos da cidade. Durante muito tempo,
num ambiente mais ou menos autárquico, tentou-se pôr termo o mais depressa
possível às incursões através de negociações ou provocando uma batalha decisiva
em campo aberto. Foi a isso que se opôs resoluíamente Péricles no início da
Guerra do Peloponeso, com prejuízo dos invasores comandados pelo rei de Espar-
ta. Arquîdamo, e provocando a furia dos Atenienses que dificilmente se deixaram
convencer a retirar maciçamente para o interior das Longas Muralhas que uniam a
cidade ao Pireu; fez-se~Ihes notar que era a única maneira, embora dolorosa, de
salvaguardar o essencial, ou seja, o seu império marítimo,. Outros exemplos da
estratégia de Péricles poderíam ser assinalados quanto a cidades que tinham todo o
interesse erti sacrificar a defesa do território à das fortificações urbanas ou que a
isso eram obrigadas por um terceiro, bem como se continuou, a partir do século v,
a recorrer de tempos a tempos a batalhas campais. No conjunto, todavia, o que
prevaleceu foi a tendência para uma estratégia mais subtü e complexa que visava
conciliar os dois imperativos de defesa; assegurar a defesa do território, tanto
quanto possível, pela construção de fortificações rurais e a saída de comandos, sem
se comprometer com isso a segurança do núcleo urbano, Era uma estratégia difícil
de pôr em prática, como se pode perceber pela leitura do pequeno tratado de
poliorcética elaborado por Eneias, o Táctico, em meados do século íV: são-nos
descritos cidadãos que, num primeiro momento, anseiam por ir até aos seus
campos para salvar o que podia ser salvo, e que depois se mostram impacientes
por se bater com o inimigo, arriscando-se a cair em emboscadas, antes de os seus
chefes conseguirem reuni-los em grupos de combate e impor-Ihes algumas pre­
cauções elementares.
Em última instância, não restava outra possibilidade senão garantii' a todo o
custo a protecção do aglomerado urbano, cujas fortificações, cada vez mais solicita­
das pelas mutações militares do século iv, não deixaram de aumentar em poderio e
em complexidade para se adaptarem ao aperfeiçoamento das máquinas de assédio e
à evolução da prática de assalto. Até ao início da época helenísdca, só Espaita
poderá gabar-se de poder prescindir desses artifícios e dever a sua segurança a uma
«coroa de gueireiros e não de tijolos» (Plutarco, Moralia, 228e), Por esse facto
recebeu a aprovação de Platão, que consentia quanto muito em adaptar para fins
defensivos as paredes exteriores das casas da periferia, mas não recebeu a aprova­
ção de Aristóteles, que exprimiría melhor a opinião geral: «Achar bem que não se

55
construam muralhas em volta das cidades é o mesmo que procurar um terreno fácil
de invadir e aplainar os locais montanhosos; e também é o mesmo que evitar
construir muros em tomo das casas particulares, com medo que os seus habitantes
se tomem cobardes» (Política, 1, 133Ia)^
Ainda mais do que numa batalha campal, um cerco é uma prova cruciai que
mobiliza todas as energias dos combatentes e do conjunto dos habitantes, porque
um assalto comportava os massacres e as pilhagens inerentes a este gênero de
operação, e muitas vezes também a aniquilação da comunidade com a sua redução
à escravidão.. Graças ainda ao tratado de Eneiais, o Táctico, podemos avaliar a
angústia e a exaltação dos sitiados, bem como o engenho das medidas tomadas
nessas circunstâncias: não só contra o inimigo externo, as suas máquinas e os seus
estratagemas, mas também contra o inimigo interno, isto é, os opositores ao
regime dispostos a trair para triunfar. Num clima de extrema tensão, o sentimento
patriótico idenüficava-se então plenamente, no coração dos cidadãos, com a
salvaguarda imediata da sua pessoa, da sua família, da sua posição social e dos
seus bens.
Por conseguinte, nas motivações dos combatentes predomina uma concepção
«cantai», simultaneamente concreta e emotiva, da pátria — o que não significa
evídentemente que tenham sido incapazes de se colocar acima dos seus interesses
pessoais, a um nível de abstracção mais elevado. Em relação aos nossos contempo­
râneos, mais habituados a uma maior mistificação nesta matéria, essa concepção
pode parecer um tanto limitada. Saibamos ao menos apreciar a sua frescura e
autenticidade.

Função militar e estatuto social

Essa concepção tinha como corolário, contrariamente ao que costuma acontecer


nos nossos dias, a proporcionalidade dos encargos militares dos membros da comu­
nidade em relação ao seu estatuto sod al
É certo que podemos encontrar na Grécia alguns vestígios e alguns restos da
trifuncionalidade indo-europeia tão bem analisada por G. Dumézil, que concebe a
ordem cósmica e a ordem social como resultado da sobreposição das três funções
de soberania, força é fertilidade. Assim, no universo mítico, nomeadamente,
poder-se-á distinguir divindades como Ares e Atena, cujos atributos primitivos se
associam à segunda função, numerosos heróis como Héracles, Tideu, Paríenopeu
e Aquiles, cuja gesta ilustra o destino do guerreiro, bem como coíectividades de
carácter nitidamente militar, como as dos Espartas em Tebas, dos Flégios em
Orcómeno da Beócia, dos Egeidas em Esparta, dos Geneneus na Côlquida ou a
dos Gigantes, inimigos dos deuses. A dualidade da função guerreira em relação à
função de soberania, desenvolvendo-se autonomamente, aceitando colaborar em
posição subordinada na manutenção do todo ou exercendo-se de uma forma
desordenada ou ordenada, servirá para explicar, respecüvamente, a antítese de
Ares e Atena, de Héracles e Aquiles, ou a oposição estabelecida por Hesíodo entre
a raça de bronze e a raça dos heróis. Fossilizada num rito da época clássica,

56
pensar-se-á detectar uma ou outra tripartição significativa, como, por exemplo, no
facto de o jovem cretense receber do seu amante uma taça, um trajo de guerra
e um boi..
Todavia, o que predomina na história grega, desde as tábuas mícénicas do
século Xll e dos Poemas Homéricos do século vin, é algo lotalmente diferente: há
uma concentração das capacidades e das responsabilidades militares no topo da
hierarquia social, nas mãos de uma eÜíe que no campo de batalha desempenha um
papel determinante, proporcional àquele que desempenha iguaímente na política e
na economia, É a essa elite que compete exibir, na primeira fila, a sua riqueza, o seu
poder e a sua coragem, enquanto o povo, em segundo plano, se acantona em
formações compactas pam apoiar e aplaudir as façanhas dos campeões. Cabe-lhe
também o privilégio das armas forjadas pelos deuses protectores, dos gigantescos
paveses e sobretudo dos carros de guerra (mesmo que, nos Poemas Homéricos, se
sirvam deles de um modo aberrante, como simples meios de transporte!), Cabem-
-Ihe também com toda a certeza os melhores despojos, belas prisioneiras e objectos
preciosos, retirados do saque comum. Por conseguinte, as sociedades aristocráticas
do limiar da história grega estavam sujeitas a uma hegemonia global e funcional­
mente indiferenciada, ainda que as virtudes guerreiras fossem as niais apreciadas e
se exprimissem com a maior autonomia,
A formação das cidades, iniciada no século vui, conduziu progressivamente ao
estabelecimento de novas relações comunitárias No entanto, essa mutação, que
conhecemos muito ma! em pormenor, não alterou o princípio de repartição das
funções militares entre os membros de um corpo cívico que se irá alargando mais ou
menos, ao longo dos séculos, segundo o regime adaptado .
Passou a ser-se soldado porque se era cidadão e na medida em que se era
cidadão, e não o contrário O exercício da força armada não constituía a Sfbníe, mas
a expressão privilegiada de todo um conjunto integrado de posições estatutárias
representativas dos diferentes aspectos da cidadania. Em primeiro lugar, estava a
capacidade económica de os indivíduos se dotarem, em caso de necessidade, de
um armamento adequado. Mas não era essa capacidade em si que determinava a
sua categoria cívica. Assim, em Atenas, a classificação censitária dos cidadãos e
as atribuições políticas que lhe estavam associadas baseavam-se na importância
dos seus rendimentos e não em critérios de natureza militar: era natural que um
dado serviço fosse exigível àqueles que atingiam um certo censo Esparta, que, no
século IV, passará a gozar de uma fama exagerada de militarismo, não é uma
excepção neste domínio. O que condiciona a entrada no corpo dos «semelhantes»
(/lómoíoi) é, para além do nascimento, a posse de um vasto domínio cultivado por
hiloías e, consequentemente, a possibilidade de pagar uma quota-parte nas refei­
ções comuns — o comportamento em combate só era tido em conta de um modo
negativo, como causa de descrédito: é significativo que, no dia em que a Esparta
heíenísüca pretendeu remediar a sua «oligantropia», integrando alguns hiloías no
exército, procedeu ao seu recrutamento em bases censitárias, e não em função da
sua bravura
Depois de termos estabelecido este princípio, vejamos agora como é que ele se
traduz concretamente na vida militar

57
o modelo lioplita

A manifestação mais evidente do processo de formação das cidades é a aparição


de um novo ripo de combatente: o hopliía
A sua protecção era assegurada por grevas, elmo, couraça de bronze e um
escudo circular de 80-90 cm de diâmetro, feito de bronze ou de uma amálgama de
madeira, vimes e peles. A maior originalidade deste lioplon, que será a arma
emblemática dos hoplitas, consistia porém em ter deixado de ser usado pendurado
ao pescoço por uma correia, mas colocado no antebraço esquerdo graças a uma
braçadeira central de bronze e a uma correia externa que servia de pega, Essa
alteração tinha duas consequências muito importantes. Por um lado, o hopliía
dispunha apenas do braço direito para manejar as suas armas de ataque; uma lança
de madeira de cerca de 2,5 m de comprimento, provida de uma ponta e de um talão
de feiro ou de bronze, e uma espada curta para a luta coipo a corpo. Por outro lado,
a protecção do flanco direito, em parte descoberto, tinha de ser assegurada por um
companheiro de linha no interior de uma falange sufícientemente compacta (tendo
também em conta os limites que o elmo e a couraça impunham à visão e à agilidade
dos soldados). Por isso, somos levados a admitir que essa dupla inovação técnica e
táctica foi acompanhada por uma extensão do recrutamento a todos aqueles que
eram capazes de se dotar de semelhante equipamento, e portanto, por um alarga­
mento do corpo dvico para lá dos limites da aristocracia tradicional.
A proto-história dessa falange hoplita continua a ser muito controversa: em que
data apareceu (meados do século va)? Surgiu de repente ou após um período de
ensaios? Representou uma revolução total em relação aos modos de combate já
existentes? FoÍ a causa ou a consequência das transformações sociopoUticas con­
temporâneas, e em especial da aparição da tirania? O que aconteceu então à cavala­
ria, que lería sido, segundo Aristóteles, a arma favorita das primeiras cidades
aristocráticas? Eis algumas das perguntas que os historiadores modernos continuam
a fazer e que eu tenho dè me limitar a recordar para me concentrar na época clássica,
muito melhor documentada.
O armamento dos hoplitas tinha-se entretanto simplificado e aligeirado. De um
modo geral, desapareceram as braçadeiras, coxetes e protecções anti-setas, tal como
a segunda lança utilizada como dardo, que aparecem em algumas reproduções
arcaicas. A couraça de bronze moldada foi substituída por uma casaca de Unho ou
de couro reforçada com placas metálicas. Mesmo assim, porém, o conjunto exigia
um investimento importante, pelo menos de uma centena de dracmas áticas, que
representavam cerca do salário trimestral de um operário medianamente qualifica­
do. Na Atenas do século v, tal esforço financeiro só era exigível a cidadãos
peitenceníes a uma das três primeiras classes censitárias, a terceira das quais, a dos
zeugitas, fornecia o grosso dos efectivos. Tais critérios de seiecção no interior do
corpo cívico deviam existir um pouco por todo o lado, pelo menos nas regiões onde
esse corpo não se limitava, como acontecia em Espaita, àqueles que tinham possibi­
lidades de se armar como hoplitas
A prova decisiva que os aguardava era uma batalha campal, que costumava
designar-se por agon, precisamente como uma competição atlética, e que também

58
se caracterizava por sacrifícios preliminares (em diferentes etapas da progressão),
por um recontro em campo fechado e por acções de graças, acompanhadas por
oferendas muitas vezes análogas (coroas, trípodes). O combate propriamente dito
desenrolava-se lealmente, de acordo com práticas fortemente ritualizadas, sem
qualquer recurso ao efeito da surpresa,.
Uma vez acordado, mais ou menos tacücamente, com o inimigo um local de
encontro muito uniforme, como, por exemplo, uma planura agrícola, a falange
dispunha-se, formando um grupo compacto, em várias fileiras (normalmente,
oito), a fim de poder exercer uma pressão colectiva e garantir o preenchimento
automático dos espaços vazios Os espaços entre os combatentes eram de menos
de um metro, de forma que um exército de dimensões médias, digamos 10 000
homens, se estendia por cerca de 2,5 km As alas eram preenchidas por alguns
contingentes de tropas ligeiras e de cavaleiros, que estavam encarregados de se
opor a qualquer tentativa de cerco e de contribuir, no início e no fim da batalha,
para lançar a confusão entre as Unhas inimigas. Depois de se ter invocado, com
um último sacrifício, o favor divino, iniciava-se uma marcha ordenada em
direcção ao inimigo, distante algumas centenas de metros, marcha essa que
terminava muitas vezes em passo de corrida: os Espartanos executavam-na num
silêncio impressionante, só ao som da flauta, enquanto outros a pontuavam de
sons de trompas, gritos e peãs de ataque, em honra de Ares e de Eniálios
O choque era frontal e só dava lugar a raras manobras laterais, à parte o facto
de a faian^e ter uma tendência natural para avançar obliquaraente paia a direita,
pela simples razão de cada um dos seus membros se deslocar insensivelmente
para o lado oposto ao escudo para se encostar ao seu viziniio de Uniia. Portanto,
salvo acidentais rupturas da frente, era nas alas que se decidia a sorte da
batalha: a primeira ala direita que conseguia triunfar provocava pouco a pouco
a desarticulação da falange inimiga, Como os chefes não podiam alterar o curso
dos acontecimentos, sobretudo por falta de riopas de reserva, gerava-se o pâni­
co, a confusão e procedia-se a uma breve caça aos fugitivos. A batalha termina­
va com o vencedor a entoar uma peã de vitória em honra de Dioniso e de
Apoio, com a erecção no local de um troféu (simples carcaça de madeira
decorada com armas retiradas ao inimigo), a quem era permitido levar os seus
mortos e, de regresso a casa, com preces acompanhadas de sacrifícios e de
banquetes.
Destinada a produzir rapidamente, na maioria das vezes durante uma manhã,
uma sentença inapelável, a batalha hoplita só momentaneamente afastava os cida­
dãos das suas ocupações habituais, dado que ocorria no final de uma campanha de
alguns dias ou, no máximo, de algumas semanas, judiciosamente marcada para a
estação estival, para que se pudesse garantir as colheitas e apoderar-se das do
inimigo Os problemas de intendência ficavam portanto reduzidos ao mínimo:
bastava pedir aos civis mobilizados para se apresentarem com algumas provisões
para a viagem e, quanto ao resto, contar com os frutos do saque e com o afiuxo
espontâneo de vendedores seduzidos pelo lucro inesperado. Também não havia
preocupações quanto ao equipamento, já que cada um se apresentava com as suas
armas, os seus trajos militares — que não tinham o aspecto de um uniforme a não

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ser no caso das túnicas vermelhas usadas pelos Espartanos — e os seus objectos
pessoais transportados numa mula ou por um escravo; Na realidade, a ruptura com a
vida civil era mínima
O cUma que reinava no exército também era bastante habitual. A arte da
persuasão exercia-se, como na assembleia, sob a forma de exortações feitas aos
soldados da frente imediatamente antes do ataque. O comando supremo competia a
magistrados eleitos por todo o povo, como os dez estrategos atenienses, que agiam
colegial mente, e aos seus principais assistentes, os taxiarcas, colocados à cabeça dos
contingentes das tribos — à excepção de Esparta, cujo comando supremo competia
aos reis ou a alguns dos seus parentes, rodeados por «companheiros de tenda», entre
os quais os polemarcas eleitos, que eram colocados à cabeça dos diversos regimen­
tos, À excepção, mais uma vez, de Esparta, cujo exército, segundo afirma Tucídides
(5, 65, 4) «é quase totaJmente constituído por comandantes hierarquizados», os
oficiais subalternos eram em geral pouco numerosos, mantinham-se, durante o
combate, na primeira linha da sua unidade, usavam poucas insígnias distintivas
(penachos ou plumas no elmo) e não eram automaticamente reconduzidos nos seus
cargos de uma campanha para outra: portanto, nada tinham de uma casta profissio­
nal, Os homens das fileiras, dotados de armas idênticas, formavam unidades intcr-
mutáveis, exceptuando o facto de os mais jovens serem colocados nas primeiras
filas e de os mais motivados, porque mais interessados no êxito da operação,
tenderem a ocupar a ala direita.. Nestas condições, a obediência baseava-se essen­
cialmente no consenso: os castigos, sobretudo físicos, dependiam de um julgamento
com todas as formalidades previstas pela leí, num tribunal do exército ou, se
possível, nos tribunais regulares da cidade.
A coragem dos hoplitas não era portanto fruto de uma disciplina propriamente
militar, nem, como vimos, de um furor guerreiro que não conhece o medo (como o
prova a sua prontidão em admitir a derrota) Visando sobretudo garantir a coesão da
falange, essa coragem baseava-se num sentido preciso de solidariedade, que consis­
tia em não abandonar os companheiros de combate e, portanto, permanecer firme no
seu posto, O espírito de corpo era, por conseguinte, cultivado de um modo sistemá­
tico. Era inculcado constaníemente nos hòmoioi espartanos através de toda a organi­
zação comunitária da sua vida quotidiana Em Atenas, também era reforçado pelo
agrupamento dos combatentes em tribos, ou mesmo em tritias.. Assim, no interior da
falange, podiam exprimir-se plenamente as relações naturais de eníreajuda baseadas
no parentesco, na amizade e na vizinhança.
Se insistirmos demasiado nos aspectos lúdicos e ordinários da batalha hoplita,
corremos o risco de nos esquecer da violência dos recontros individuais a que ela
dava lugar, com perdas relativameníe pesadas, avaliadas em 14% no que se refere
aos vencidos, e em 5% no que se refere aos vencedores. Longe de terem apenas de
avançar lado a lado, como numa mêlêe de rugby, para conter e fazer recuar a frente
adversária, os hoplitas tinham ainda de enfrentar pessoalmeníe, primeiro com a
lança e depois com a espada, os seus adversários directos Por isso, pelo menos no
auge da batalha, o recontro colectivo convertia-se numa série de duelos. Relativa­
mente à idade heróica, esses duelos já não deviam desenrolar~se autonomamente em
busca da glória, como demonstra o caso do espartano que quís resgatar-se em

60
Plateia do facto de ter sobrevivido nas Termópilas: acusado pelos seus coiiipanhai-
ros de ter «abandonado a sua fileira como um louco furioso» porque «procurava
manifestamente a morte para escapar à vergonha que pesava sobre ele», viu-se
privado das honrarias (Heródoto, 9,71). Como bom cidadão, deveria ter sujeitado a
sua acção a uma certa disciplina moral (súp/irosyne), tendo em conta os interesses
da coleclividade,
Esse modelo hoplita, estritamente definido em relação ao plano político e ten­
dente a validar a proeminência de uma determinada elite social, tem os seus limites
temporais, Com efeito, a partir de finais do século v, e embora se continuasse a
elogiar mais do que nunca os méritos deste üpo de combatentes, sobretudo nas
pessoas dos maratonomacas, começou a aiargar-se a base do recrutamento, de facto
senão de direito: em Esparta até abranger alguns inferiores, em Atenas, até abranger
os tetes, que constituíam a quarta e última categoria censitária Por outro lado, no
piano militar, a falange hoplita (que, na realidade, raramente tinha agido sozinha,
como em Maratona) teve de contar cada vez mais com a infantaria ligeira e
sobretudo com o corpo semiligeiro dos peltasías, antes de ter de admitir a sua
inferioridade perante a falange macedónia. Simultaneamente, ia aumentando na arte
militar a importância da surpresa, da astúcia, da traição, da habilidade técnica Os
contemporâneos tiveram plena consciência disso e, em 341, Demóstenes confir­
mará amargamente, na sua Terceira Filípka (47-50), essa evolução. Todavia,
evitemos, a este respeito, passar de um excesso para outro; a infantaria hoplita
continuaráva ser, mesmo nas cidades helenísticas, a arma nobre por excelência e
desempenhará por muito tempo um papel essencial nas batalhas campais que
decidiram o curso da grande história.

Os deveres militares nos graus superiores e inferiores da escala social

As outras participações na vida militar da cidade situavam-se de um lado e do


outro do eixo anteríormente destacado.
Na Grécia, possuir um cavalo era um sinal evidente de riqueza e pertencer à
cavalaria era uma distinção social, mesmo nas vastas planícies, como a Tessália, a
Beócia ou a Campânia, que se prestavam optimamente à criação de gado cavalar.
Em Atenas, parece que durante muito tempo se contou com a boa vontade dos
jovens aristocratas, os únicos que possuíam meios para manter uma montada e que
tinham pelo menos tanto tempo para praticar a equitação, para as paradas e as
vitórias nas competições como para a guerra. Teria sido a conselho de Péricles
que, em meados do século v, os Atenienses se dotaram de uma cavalaria regulai,
formada primeiro por 500 e depois por 1000 cidadãos (e também por 200 archei­
ros a cavalo), a não ser que isso tivesse acontecido antes, no início do século,
quando os vasos reproduzem as primeiras cenas de exame para o ingresso na
cavalaria. Talvez Péricles tenha lido apenas o mérito de instituir o sistema de
recrutamento em vigor na época clássica. Esse sistema consistia cm dar a um
número escolhido de jovens provenientes das duas primeiras classes censitárias (e
sobretudo da segunda, denominada precisamente ippèis) uma determinada quantia

61
em dinheiro que bastava ou, pelo menos, que contribuía para a compra de um
cavalo, cujo valor era periodicamente reavaliado e reproduzido era tábuas de
chumbo encontradas em grande número na agorà, Para além disso, era-lhes con­
cedido um subsidio diário para a manutenção do cavalo. O alistamento na cavala­
ria estava, portanto, reservado a uma elite censitariameníe definida, cujo prestígio
se exalta no friso interior do Parténon, por volta de 440, antes de vir a sofrer com a
restauração democrática de 401, apesar dos discursos públicos proferidos por
Xenofoníe, cerca do ano .360..
Todavia, sob o ponto de vista militar, a cavalaria grega esteve sempre limitada
pela sua incapacidade em penetrar nas fileiras dos hopliías Dispondo de lanças
curtas, que podiam ser usadas como dardos, por vezes munidos de esporas e de
couraças ligeiras, mas desprovidos de estribos e de selas rijas, com o inconveniente,
além do mais, da fragilidade das montadas não ferradas, os cavaleiros desempenha­
ram, normalmente, apenas uma tarefa de exploração e de desgaste, com efectivos
que equivaliam, no máximo, na maior parte das cidades, a um décimo dos da
falange. Os Espartanos revelaram-se particularmente negligentes neste domínio, já
que esperaram pelo ano de 424 para se dotarem de uma pequena cavalaria de
400 homens.
Os atenienses mais ricos, pertencentes, pelo menos na sua maioria, à primeira
categoria censitária dos pentacosiomedimnos, tinham como missão específica
contribuir para o armamento naval: de início, fornecendo talvez barcos no âmbito
bastante mal conhecido das naucrariase, após a instauração da trierarquia, zelando
pela manutenção e pelo funcionamento das trirremes construídas pelo Estado.
Esta liturgia, paga periodicamente em função das necessidades, era muito onerosa,
dado que podia comportar uma despesa de cerca de 6000 dracmas. Por isso foÍ
necessário regulamentá-la de modo a repartir melhor o seu peso, primeiro, no final
da Guerra do Peloponeso, dividindo-a por duas írierarquias e depois, em 357,
endossando-a a grupos designados por simorias., Os outros pagamentos para fms
militai-es chegavam a atingir numerosos zeugitas: tratava-se, em princípio, de
contributos excepcionais (eisp/ioràt), mas que se tornaram mais ou menos regula­
res a partir da guerra do Peloponeso e cuja cobrança foi facilitada, a partir de 378-
-377, pela criação de simorias, modelos das simorias trierárquicas, em que os mais
ricos figuravam como fiadores. Sobretudo a partir da segunda metade do sé­
culo !V, contou-se também com dádivas voluntárias (epídoseís) feitas pelos indiví­
duos dessas mesmas classes sociais, dádivas essas que eram recompensadas com
belos decretos honoríficos. Estas eram as principais possibilidades internas de
financiamento militar nas cidades onde as receitas regulares apresentavam um
saldo muito escasso.
Em contrapartida, dos inúmeros cidadãos atenienses que pertenciam à última
classe censitária (uma boa metade do corpo cívico), só se podia esperar ura serviço
pessoal, durante muito tempo limitado às armas mais depreciadas, Era o caso das
tropas ligeiras de lançadores de daido, de archeiros e fundibulários, cuja interven­
ção, à margem da falange hopíita, fot, até ao século v, de pouca eficácia e cuja acção
à distância parecia tão pouco recomendável sob o ponto de vista moral que fbt
proibida, no início da época arcaica, num acordo firmado entre os Calcídicos e os

62
Eretreus, que disputavam entre si a pequena planície lelantina. Os archeiros, em
particular, não gozaram de boa reputação desde Homero até Euripides que, por
intermédio de uma das suas personagens, estigmatiza Héracles nestes termos:

«Nüiica usou um escudo no braço esquerdo, nem enfrentou uma lança; segurando o
arco, a aima mais vil, estava sempre pronto para a fuga. Para um guerreiro, a prova de
bravura não é o tiro ao arco, mas permanecer no seu posto e ver, sem baixar nem desviar
0 olhar, chegar diante de si uma fileira inteira de lanças erguidas, mantendo-se firme na
sua fileira..» {Héracles, 159-64.)

Contudo, a partir da Guerra do Peloponeso, e sobretudo com a multiplicação dos


peltastas dotados de dardos e de ura pequeno escudo ipelta), fòt-se tomando cada vez
mais evidente que as tropas ligeiras podiam, por vezes, vencer os hoplitas e que a sua
utilização se impunha em inúmeras ocasiões (protecção de limites territoriais, guerra
de assédio), Os factos provaram então que os preconceitos que os atingiam não tinham
muita razão de ser, mas não conseguiram fazê-los desaparecer por completo.
As mesmas categorias sociais pertenciam os remadores, que, agarrados aos seus
bancos, impeliam as trirremes, antes e durante as batalhas, ou pelo menos uma
grande parte deles, dado que os tetes atenienses não teriam conseguido, sem o
concurso de estrangeiros, encher duzentos ou trezentos navios. Das suas capacida­
des de manobra dependia o êxito do abalroamento, fundamento da táctica naval,
dado que/.a tarefa da dezena de hoplitas existentes em cada trirreme era apenas
concluir o que eles tinham iniciado Pode dizer-se que os remadores desempenha­
ram um papel de relevo no desenvolvimento do imperialismo maiifimo ateniense
iniciado com a prestigiosa vitória de Salamina, em 480 No entanto, não gozavam
de boa reputação entre os aristocratas, como o demonstra o que acerca deles é
afirmado, na véspera da Guerra do Peloponeso, na ConslUuiçÕo dos Atenienses do
«velho Oiigarca» ou, mais tarde, na obra de Platão. Outras cidades, como Esparta,
limitaram-se mesmo a utilizar não cidadãos, dependentes rurais ou estrangeiros, nas
suas frotas, sendo raras aquelas que, como foi o caso de Rodes na época helenistica,
parecem ter tido em maior consideração o serviço na marinha.

À margem da cidade

A lei da proporcionalidade entre o papel militar e o estatuto social continua


válida se alargarmos a nossa análise às margens do corpo cívico.
Os que tinham mais afinidades com os cidadãos eram os seus filhos menores,
porque eram cidadãos potenciais, educados e tratados como tal Situando-se entre a
infância e a idade adulta, na Grécia como em qualquer outro lugar, identificados
respectivameiite cora a natureza e a cultura, numa fase de transição fortemente
marcada por antigos ritos de passagem, dedicavam-se a exercícios que ora os
opunham ora os preparavam para o combate hoplita. O primeiro destes aspectos
atraiu a atenção dos historiadores modernos, à luz de inúmeros confrontos etnoló­
gicos fornecidos por outras sociedades arcaicas, como as africanas do século xix

63
É O que revela com parücuiar evidência a educação espartana (agogè), que
durante mais de dez anos multiplicava para os jovens agrupados em «rebanhos»,
provas de resistência e simulacros de combates, que apelavam sobretudo para a
astiícia. No fim desse período probatório, os melhores entre os «irenes» eram
submetidos à krypteia. Os criptas, ou seja, os «ocultos», eram enviados em pleno
Inverno para as regiões mais remotas do tenitório, sem provisões e munidos de uma
simples faca, e era-lhes ordenado que não se deixassem ver, se alimentassem do que
apanhassem roubando e se dedicassem, de noite, à caça dos hilolas a quem os éforos
tinham declarado guerra- Por conseguinte, durante esta fase de segregação, que
precedia a sua agregação definitiva à comunidade dos adultos, comportavam-se, por
assim dizer, como anti-hoplitas
Em Atenas, o Estado só se encarregava dos jovens no final da adolescência,
portanto muito mais tarde do que em Espana. Nessa altura, ficavam sujeitos à
efebia, cuja existência deve remontar pelo menos ao início da época clássica, sob a
forma, sem duvida, de um línico ano de formação reservada às três primeiras classes
censitárías Mas nós só a conliecemos bem numa data muito posterior, após a sua
reorganização e o seu reforço por parte de Epícraíes, cerca de 335-.334, no momento
em que Licurgo tenta restaurar um poderio miiiiar fbrtemente comprometido pouco
antes da derrota de Queroneia contra os Macedónios. Um capítulo da Constituição
dos Atenienses de Aristóteles (42) e algumas inscrições fazem-nos então descobrir
os principais aspectos do seu funcionamento. Nessa época, abrange o conjunto dos
filhos dos cidadãos, independentemente da sua posição censitária, entre os deza­
nove e os vinte anos, Durante o primeiro ano, os efebos, depois de terem visitado
todos os santuários, estabeleciam-se no Pireu, onde recebiam uma instrução miiiíai'
muito completa; manejo das armas dos hopíitas, tiro ao arco, lançamento do dardo,
manobra da catapulta. No ano seguinte, eram passados em revista e recebiam do
Estado o escudo e a lança de hoplita, antes de marcharem através da Atica e de
passarem algum tempo nos fortins fronteiriços. Encontravam-se assim, embora de
uma forma menos marcada do que os criptas lacedemónios, tão marginalizados no
espaço como politicamente, embora já estivessem inscritos nos registos dos demos,
pela sua ausência na assembléia do povo e pela proibição de comparecerem era
juízo salvo no que respeitava ao direito familiar. Em tempo de guerra, também só
eram em parte combatentes, dado que a sua função, tal como a das classes constituí­
das pelos indivíduos entre os cinquenta e os cinquenta e oito anos, limitava-se
teoricamente à defesa da Ática.
A mesma posição antitética dos jovens em relação aos adultos encontra-se ainda
a outros níveis e sob formas mais ou menos definidas, como, por exemplo, na
distinção (platônica, nomeadameníe) entre a caça nocturna, com armadilhas, redes e
nassas, recomendada a uns, e a caça a cavalo e com chuços, reservada aos outros.
Essa antítese também aflora muitas vezes no universo mítico, rico em adolescentes
peipétuos, imaturos e selvagens por não terem conseguido integrar-se no mundo
dos adultos, como HipóHto, Outro representante dessa juventude que se revela na
sua especificidade antes de se fundir na comunidade é o herói ateniense Melanto,
«o Negro», que vence pela asliícia (apate) o campeão íebano .Xantos, «o Louro»,
num duelo pela posse de uma pequena zona fronteiriça, facto que deu o nome à festa

64
das Apatúrias, no deconer da qual os adolescentes de dezasseis anos, tendo atingido
a maturidade físológica, eram apresentados às fratrias dos seus pais (é esta a
verdadeira etimologia do termo Apatúrias) e sacrificavam a sua cabeleira.
A característica comum do resto da população era não possuir qualquer direito
político e não fazer parte da cidade no sentido restrito do termo, Todavia, esses não
cidadãos constituíam um elemento indispensável para a sua sobrevivência, e, em
tempo de guerra, também partilhavam indirectamente os seus êxitos e sobretudo as
suas derrotas, Portanto, não podiam viver totalmeníe desligados das actividades
militares. De facto, senão de direito, passivameníe ou activamente, de uma forma
mais ou menos regular e sempre em posições subordinadas, estavam implicados
nelas, segundo modalidades concretas que dependiam, para cada categoria, da sua
distância variável, ou melhor, da sua posição original em relação ao corpo cívico
Assim, em Atenas, os cidadãos residentes que, em certa medida, tinham sido
integrados ao ser-lhes conferido o estatuto privilegiado de metecos só contribuíam,
em princípio e em unidades separadas, na defesa do território (como hopíitas ou
como infantes, de acordo com os seus rendimentos, mas não como cavaleiros) e
serviam sobretudo na armada como remadores ou marinheiros especializados (mas
não como pilotos). Tam bém estavam sujeitos às eisphorài, em que contribuíam com
um sexto, mas estavam excluídos da irieraiquia, na medida em que, durante muito
tempo, tinha implicado o comando de uma trirreme, No exército espartano havia
contingentes de hopíitas periecos e exploradores designados por «sídritas», que
eram recrutados numa região montanhosa outrora conquistada por Esparta a Tegeia.
Regra geral, o papel militar dos escravos consistia apenas em assegurar no seio
do exército, tal como acontecia na vida civil, o serviço pessoal dos seus senhores.
Só em períodos críticos, ou mesmo desesperados, se podia fornecer armas a alguns
deles. As disposições tomadas neste sentido variavam, por um lado, de acordo com
0 estatuto dos interessados, e sobretudo conforme se tratasse de escravos-mercado­
ria de tipo ateniense ou de populações indígenas reduzidas à escravidão — era o
caso dos hilotas espartanos Por outro lado, dependiam da honorabilidade da missão
que lhes era confiada: mais remadores ou infantes do que hopíitas Em função disso,
procedia-se ou não ã sua libertação, antes ou depois das operações No total, é
significativo que os hilotas, considerados panicularmente sediciosos, tenham sido
nitidamente mais solicitados do que os escravos atenienses, mas, na realidade, a sua
vocação de povo outrora livre explica, ao mesmo tempo, o seu espírito de revolta e o
seu relativo grau de qualificação militar.
Mesmo as mulheres de origem cidadã, embora a coragem fosse por definição
essencialmeníe masculina, estiveram mais ou menos implicadas na guerra, quer
como vítimas exemplares que encarnavam as possibilidades últimas de perpetuação
da comunidade e que eram capazes de esconjurar da melhor forma o seu aniquila­
mento através de lamentações, preces e encorajamentos aos soldados, quer, de uma
forma absolutamente excepcional, como combatentes improvisados, lutando direc-
íameníe pela protecção dos seus lares. Neste caso, servem-se de armas adequadas à
sua condição (por vezes, de utensílios de cozinha!) ou dos artifícios, muito pouco
hopíitas, que lhes são inspirados pela sua natureza feminina. Só no universo mítico
das Amazonas, ou no mundo utópico da República platónica, é que se transformam

65
i |i
em mulheres-soldadofj, mas essa ponversão ou é condicionada pela sua dessexuali-
zação parcial (ablação do seio esquerdo para poderem manejar o arco), ou limitada
às virgens iparthenoi) que ainda não encontraram no matrimônio a realização
normal do seu sen

O amadorismo militar

Esse sistema de repartição estatutária das ftrnções militares, que devia existir por
toda a parte sob formas variáveis, parece abstrair de qualquer qualificação adquirida
através de um treino específico e colocar-se unicamente sob o signo do amado­
rismo.
Tal facto converte-se num lugar-comum da retórica oficial das orações fúnebres,
que tende particularmente a fundir a função bélica na fiinçao política, O melhor
exemplo disso é-nos fornecido, no inicio da Guerra do Peloponeso, por Péricles,
que declara com altivez: «A nossa confiança baseia-se pouco nos preparativos e nas
astúcias e muito na firmeza de ânimo que vamos buscar a nós mesmos no momento
de agir» (Tucídides, 2,39, I).
De todas as condições sociais predispostas para desempenhar acüvidades milita­
res, a mais valorizada era a de agricultor Considerava-se que era a melhor iniciação
para a guerra, e isso por diversas razões, expostas nomeadamente por Xenofonte no
seu Económico (5). Antes do mais, porque a posse da terra «incita à defesa do
território pelas armas, dado que as colheitas que ela produz estão ao alcance de
todos, à mercê do mais forte»; depois, porque a agricultura «nos ensina a comandar
os outros», inculcando o sentido da ordem, da oportunidade, da justiça e da piedade;
por fira, porque «toma o corpo vigoroso» A este respeito, a agricultura conjugava
os seus efeitos com os da caça, considerada na Ciropedia (1, 2) como «o mais
autêntico treino para a guerra»:

«De facto, a caça habitua os homens a levantar-se de manhãzinha, a suportar o frio e


0 calor, prepara para a marcha e para a corrida, obriga a arremessar dardos ou setas
conua os animais sempre que algum aparece; além disso, necessariamente, tempera o
ânimo quando, como acontece amiúde, um animai corajoso surge à nossa frente e é
preciso atingi-lo se se aproxima e saber evitá-lo se se precipita sobre nós Portanto, é
difícil encontrar na guerra uma situação que não ocorra durante a caça. »

Pelo contráiio, as actividades artesanais «arruinam o coqio dos operários que as


exercem e daqueles que os dirigem, obrigando-os a uma vida caseira, sentados à
sombra das suas lojas, e por vezes a passar o dia todo junto do fogo. Com os corpos
assim debilitados, os ânimos tomara-se também mais vis», a ponto de essas pessoas
«passarem por ser maus defensores da sua pátria» {Econômico, 4). Estas considera­
ções ideológicas reflecíiam-se, por vezes, nas instituições, já que, por exemplo, para
se ser eleito estraíego em Atenas era necessário possuir terra dentro das fionteiras.
Outra condição para essa eleição teria sido (porque não se sabe bem em que
medida e até quando foi respeitada) a obrigatoriedade de o candidato ser também

66
pai de família.; Com efeito, a preocupação com a salvaguarda da liberdade dos seus
filhos dava ao soldado mais uma razão para combater, tal como, segundo Platão
{República, V, 467a), «qualquer animal combate melhor na presença dos seus
filhos».. Realizando plenamente o seu ser social, um cidadão atingia um grau
supremo de responsabilidade e disponibilidade que o predispunlia ao sacrifício pela
sobrevivência da comunidade, como aconteceu com os pais de fiamília que, em 480,
os Espartanos obrigaram a integrar o contingente de elite, formado por 300 homens,
que foi enviado para as Termópilas.
Ao amadorismo dos executores correspondia o dos dirigentes e dos chefes. Os
membros da assembleia ateniense, que decidiam até ao mínimo pormenor acerca do
curso das operações, não tinham qualquer competência militar especial, A maioria
dos estrategos, pelo menos no século v, não a possuía, dado que deviam a sua
eleição sobretudo à fama adquirida nos debates da assembleia ou mesmo num outro
sector da vida pública, como foi o caso de Sófocles Por conseguinte, até finais da
época clássica, os responsáveis militares foram, na sua grande maioria, ricas indivi­
dualidades, que tinham, por tradição familiar, o sentido inato do comando e podiam,
se necessário, contribuir para a manutenção das suas tropas: pode, por exemplo,
constatar-se que 61% dos estrategos atenienses conhecidos figuram na lista dos
grandes proprietários
Os historiadores modernos insistiram correlativamente no papel desempenhado
na aprendizagem militar por váiias práticas sociais de tipo cultural e religioso,
características dos cidadãos que não estavam absorvidos pelas tarefas necessárias e
que podiam usufhiir de tempo livre {scholè). Em primeiro lugar, havia as provas
atléticas que se preparavam nos ginásios e nas palestras, tradicionalmente bastante
ligados à vida militar, e que figuravam no programa dos concursos organizados no
âmbito dos santuários cívicos ou pan-helénicos: corridas (uma das quais com armas
de hoplita), saltos, lançamentos, luta e pancrácio Um campeão nestas especialida­
des só podia ser um excelente soldado, como o demonstra uma anedota de Diodoro
Sículo referente a Mílon de Crotona: «Diz-se que este homem, seis vezes vencedor
em Olímpia, guerreiro tão valente como bom atleta, avançou para o combate
ostentando as coroas olímpicas e usando os atributos de Héracles, a pele de leão e a
clava: artífice da vitória, conquistou a admiração dos seus concidadãos» (12, 9, 6).
Em Esparta, os que tinham ganho uma coroa nos jogos combatiam ao lado do
próprio rei. Havia também danças processionais com anuas hoplitas e outras espé­
cies de danças armadas, a mais célebre das quais era a pírrica; segundo Platão,

«essa dança imita, por ura lado, os movimentos destinados a evitar os vários golpes
desferidos de perto ou de longe — atirar-se de lado, recuar, saltar, baixar-se — e, por
outro lado, os movimentos opostos, os que induzem a comportamentos ofensivos e
tentam imitar o tiro ao arco ou o arremesso do dardo ou o gesto de desferir um golpe
qualquen> {Leis, 7, 815a).

lõdavia, devemos evitar levar esta visão até ao absurdo De facto, sempre teve
os seus antídotos: o interesse constante de todos pelas operações militares, pelas
razões de fundo que já mencionámos, e a competência geral adquirida pela expe­

67
riência (como prova, sobretudo em Atenas, o facto de os altos cargos militares
tenderem, de facto, a concentrar-se hereditariamente num limitado numero de
grandes famílias)
Não esqueçamos também que nos referimos apenas ao modo de combater dos
hoplitas, e é só acerca dele que o persa Feraulas, na Ciropêdia de Xenofònte (2, 3,
9), diz que

«todos os homens téni um conhecimento natural desse modo de combater, ía! como cada
animal conhece um certo tipo de combate, que aprendeu apenas com a natureza: os bois
atacam com os chifres, os cavalos com os cascos, o cão com os denies e o javali com as
presas; todos estes animais sabem esquivar~se dos mais temíveis perigos, sem lerem
aprendido com nenhum mestre»

Em contrapartida, ninguém teria negado — a não ser correndo o risco de o vir


depois a lamentar — que tudo se passava de modo diferente com as armas de
arremesso e, sobretudo, na marinha que, segundo Tucídides (í, 142), «é uma
questão de ofítíío».
- Por outro lado, há muitos indícios que nos levam a acreditar que na vida prática
o treino militar não era tão descurado como afirmavam os ideólogos da aristocracia.
Mesmo na Atenas do século v os hoplitas deviam receber uma certa formação
durante a sua efebia e eram, em seguida, periodicamente convocados para revistas,
durante as quais se verificava o bom funcionamento dos equipamentos e, sem
dúvida, se efectuavam algumas manobras em formações cerradas. Alguns recomen­
davam mesmo o recurso a instrutores profissionais que iam, de cidade em cidade e
em troca de um salário, ensinar a manejar as armas dos hoplitas nas palestras
privadas: essa arte, a hoplomachia, teria sido inventada na Arcádia em meados do
século VI, Outros professores, de estratégia e de táctica (ou seja: do modo de exercer
uma função de estratego e de dispor as tropas no campo de batalha) figuravam entre
os amigos de Sócrates, segundo os Memoráveis de Xenofoníe. Seja como for, não
há qualquer dúvida de que os Espartanos, apesar da sua desconfiança em relação a
esse gênero de sofistas especializados na arte militar, se exercitaram mais do que os
Atenienses no ofício das armas, o que provocou o desprezo de Pérides que, na sua
oração fúnebre, troça «dessa gente que, desde a juventude, se treina para ganhar
coragem» (Tucídides, 2, 39, 1) ínfelizmente, acerca dos métodos utilizados por
esses «técnicos da guena» (como os designa Xenofonte) ignoramos quase tudo,
excepto que atribuíam grande importância às evoluções tácticas, entre as quais
figurava uma contramarcha especial que ficará conhecida sob a designação de
«lacônica»,,
Convém sobretudo realçar' que, durante a época clássica, se foi atribuindo uma
importância cada vez maior aos aspectos técnicos da arte militar, Essa evolução é já
sensível quando se confronta Heródoío, cuja (ec/me é quase totalmeníe substituída
pela astúcia e pela força, com Tucídides, onde ela emerge, aliada à inteligência, na
prática do comando, No século iv, as suas manifestações são demasiado numerosas
para que as mencionemos a todas: aparição de tratados técnicos relativos sobretudo
à guena de assédio (como o PoUorcético de Eneias, o Tàcrico); insistência de Platão

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na necessidade dos treinos militares, de acordo com uma tendência confinnada em
muitas cidades (nomcadamenfe, em Tebas, na época de Epimanondas e de Pelópi-
das); prioridade concedida à experiência na escolha dos estrategos, como se vê na
Política de Aristóteles e num opúsculo homónimo, do início da época helenística (o
De eligendis magisiraíibus), que cita como exemplo «algumas pequenas cidades
bem regulamentadas» onde «há três eleitos de entre os que já exerceram a estratégia
e dois de entre os jovens»; especialização dos estrategos atenienses nas diversas
esferas de actividade e distinção crescente entre estes e os oradores, entre os homens
de guerra e os homens de assembleia, que agem muitas vezes de conivência, etc

O mercenarismo

Na evolução que acabámos de descrever interveio um fenômeno que, à primeira


vista, parece totalmente incompatível com o enraizamento cívico da função militar;
trata-se da utilização, por parte das cidades, de mercenários, profissionais da guerra
que, mediante um salário, servem uma potência estrangeira
Desde a época arcaica que gregos oriundos sobretudo da Jónia tinham «aluga­
do» os seus serviços de «homens de bronze» aos soberanos orientais ou tinham
assegurado, na própria Grécia, a guarda dos tiranos. Após um período de tréguas, o
mercenarismo conheceu uma grande amplitudé a partir da Guerra do Peloponeso,
primeiro etn benefício dos sâtrnpas persas da Ásia menor e depois da totalidade do
mundo grego e da sua periferia., A famosa expedição dos Dez Mil, narrada por
Xenofonte no seu Anaâase, é característica dessa época. Durante todo o século iv,
dezenas de milhares de gregos de todas as origens seguiram essa via, como hoplitas,
infantes ou peltastas. Com os seus comparsas, provenientes dos Bálcãs, desempe­
nharam um papel essencial na conquista do império persa por Alexandre e ainda
mais na implantação dos reinos helenísticos.
As causas do mercenarismo são múltiplas e complexas. As principais devem ser
as que conduziam ao afastamento do indivíduo em relação â sua pátria, quer no caso
de esta se encontrar desmembrada (sobretudo devido à guerra), quer pelo facto de
ter sido banido, quer, e acima de tudo, por se ver reduzido à indigência devido ao
excesso de população, às catástrofes naturais ou a uma alteração da situação so-
ciopolíiíca Mas também se podia deixar arrastar para os caminhos da aventura pela
perspectiva de tirai' proveito no exterior da sua qualificação militar (hoplitas pelopo-
nésicos, archeiros cretenses, peltastas trácios) e de beneficiar da generosidade de
um empregador vitorioso e rico.
A utilização maciça de mercenários por parte das cidades não deixou de ter
consequências para essas mesmas cidades: aumento do tecnicismo das operações
militares, dificuldades financeiras, propensão dos cidadãos para se esquivarem às
tarefas menos atraentes (expedições a locais remotos, serviços de guarnição), res­
surgimento das tiranias, desesíabilízação dos laços internacionais tradicionais em
favor dos Estados mais ricos.
Sob este ponto de vista, o desenvolvimento do mercenarismo no século iv teve
portanto muita importância paia o que tradicionalmente se define como «crise» da

69
cidade; todavia, para não ultrapassarmos muito os limites que fixámos a nós pró­
prios, Umitar-nos-emos a precisar apenas os motivos pelos quais as cidades aceita­
ram lecorrer a mercenários.
O principal motivo tem certamente a ver com a personalidade desses mercená­
rios. Como provinham de meios gregos ou helenizantes, não faziam figura de
estrangeiros absolutos, como os Mamelucos no império otomano. Muitos continua­
vam a ter esperança de recuperai' a categoria de cidadãos dos seus países no termo
das suas errâncias. Durante o período de actividade, vemo-los, em muitos casos,
esforçar-se por reproduzir o modelo cívico sob diversas formas; adquirindo os
direitos dos cidadãos como recompensa pelo seu honesto trabaUio, usurpando-os
nas cidades conquistadas ou junto dos que lhes davam trabalho, por vezes mesmo
fundando novas cidades, na melhor tradição colonial, ou, simplesmente, criando as
mais variadas formas de associação de índole profissional, que se comportavam
como cidades em ponto pequeno (voto de decretos honoríficos, envio de embaixa­
dores). A este respeito é bastante significativo o facto de os piratas, que revelam
muitas analogias com os mercenários, terem também adopíado um modelo estatal,
servindo-se de estruturas já existentes ou criando novas.
• Em sentido inverso, deve dizer-se que o soldado-ddadão sempre tivera em si
algo de mercenário Tanto para um como para outro, a guerra (inha de ser uma
actividade muito íucraüva; aliás, como tudo indica, recebiam os mesmos salários e
as mesmas partes dos despojos. O ardor patriótico do soldado-cidadão devia ate­
nuar-se quando o mandavam socorrer uma potência estrangeira: não são raros os
casos era que não se sabe bem se os auxiliares se batem como aliados ou como
mercenários. Por fim, o sistema regular de recrutamento podia acabar por transfor­
mar certos cidadãos em autênticos profissionais da guerra: assim, em Atenas, antes
de se começar a recorrer «por tumos''> às várias classes etárias, confiou-se durante
muito tempo a elaboração da «lista» dos cidadãos mobilizados aos estrategos, que
tinham todo o interesse em conceder a prioridade aos voluntários e, em seguida, a
ter em conta as aptidões individuais,
A partir de finais do século v, assistiu-se também à constituição, em certas
cidades, de um pequeno exército permanente, composto muitas vezes por ,300 ou
1000 cidadãos «escolhidos» que eram, por assim dizer, «mercenários internos».. Em
422, os Argianos, por exemplo, seleccionaram «mil dos seus concidadãos, os mais
jovens, os mais robustos e os mais ricos; dispensando-os de qualquer outro serviço e
alimentando-os a expensas do Estado, pediram-lhes para se dedicarem a um treino
contínuo» (Díodoro Sícuio, 12, 75, 7) Mais famoso ê o «batalhão sagrado» de
Tebas, que foi reorganizado, em 379, por Górgidas: «Escolheu 300 homens, cuja
formação e manutenção eram asseguradas pelo Estado, e que estavam aquartelados
em Cadmeia» (Plutarco, Pelôpidas, 18, 1) Na mesma época, também a Liga
Arcádica se munia de «guardas pdblicos» chamados «eparitas», enquanto um pouco
por todo o lado se multipÜcavam os soldados de elite denominados epilektoi (de que
ignoramos, em geral, o modo de recrutamento e o estatuto).
É neste contexto histórico que temos de situar os projectos contemporâneos de
sociedades ideais com base funcional, não nos limitando a considerá-los como uma
ressurgência da velha ideologia indo-europeta ou uma imitação do modelo egípcio

70
Esses projectos atribuem sempre h classe dos guerreiros uma posição axiai. Para
Hipódamo de Mileto, essa ciasse coexiste com duas outias classes, dos artesãos e
dos agricultores, e a sua subsistência é garantida pela terra pública Muito mais
célebre é evidentemente a República platônica, onde a elite dos guetreiros, alimen­
tada pela massa anônima dos produtores reduzidos ao estado de dependentes, leva
uma vida comunitária totalmente subordinada aos interesses da cidade, sob a direc­
ção dos mais avisados.
Estas diferentes tendências para o profissionalismo militar obrigam-nos a não
exagerar demasiado o contraste entre os mercenários e os soldados-cidadãos e a não
os dissociar, no final deste capítulo, ao analisarmos os problemas criados pela
integração harmoniosa da função bélica no quadro político

O milUar e a política

Sob este ponto de vista, a insubordinação crónica dos mercenários não era o
único factor que gerava algumas dificuldades. Na maioria dos casos, os seus rivais
de origem citadina, os «eleitos», também não tiveram nada de mais urgente do que
querer impor a sua lei aos seus próprios compatriotas. No entanto, tratava-se apenas
das manifestações mais espectaculares da propensão, por assim dizer, estrutural dos
representantes da força armada para intervir direcíamente na vida interna das
cidades '—. na ausência de qualquer outra força organizada capaz de fazer triunfar os
interesses de classe ou de garantir a manutenção da ordem pública,.
Qualquer conflito interno que se convertesse em guena civil tiaduzia~se espon­
taneamente, em termos militares, pela divisão dos soldados em dois campos opos­
tos, segundo uma linha de clivagem que passava geralmente entre os vários corpos
constituídos: cavaleiros contra hoplitas, hopíitas contra infantes e marinheiros
A habilidade dos governantes consistia precisamente em impedir que os facciosos
se organizassem a este nível, conseguindo desarmá-los preventivamente ou afastá-
-los provisoriamente, sob qualquer pretexto, inserindo-os em unidades lealistas,
proibindo o recrutamento de mercenários, etc. O recontro desenrolava-se, normal-
mente, na cidade, a partir dos locais naturais de encontro (ágora, acrópole, teatro,
ginásio) e terminava com o massacre ou o exílio dos vencidos, que podiam prosse­
guir o combate fixando-se numa cidade estrangeira ou num posto fronteiriço de
onde pudessem controlar uma parte do teiritório, São exemplares os acontecimentos
ocorridos em Atenas, no ano de 411: sublevando-se contra os oHgarcas apoiados
pelos cavaleiros, os hoplitas e os marinheiros estacionados em Samos procederam ã
substituição dos seus estrategos antes de se fixarem no Pireu e imporem, por fim, a
restauração da democracia.
O que por vezes acendia o rastilho era uma modificação fortuita da relação de
forças no interior do exército. Foi assim que, durante o cerco de Mitilene, em 427, o
homem que detinha o poder, um tal Salaitos, «forneceu armas hoplitas ao povo, até
então equipado com armas ligeiras, para marchar contra os Atenienses; mas o povo,
quando recebeu as armas hoplitas, deixou de obedecer aos magistrados e formou
ajuntamentos, exigindo dos notáveis que os seus víveres fossem mosttados e distri­

71
buídos a todos» (Tucídides, 3, 27, 2"3) Mas também acontecia que efeitos deste
tipo se fizessem sentir a mais ou menos longo prazo, sem provocarem violência, Eis
alguns exemplos extraídos da Polifica de Aristóteles:

«Em Taranto, a derrota e a morte de numerosos notáveis, vítimas dos lápiges pouco
depois das guerras médicas, levaram á passagem da poUteia [democracia moderada]
para a democracia [radical]. . Em Atenas, após os revezes sofridos peio exército, o
número dos notáveis diminuiu porque se recrutava os combatentes de acordo com uma
lista, durante a guerra lacónia » (5, Í303a )

Anteriormente, em Atenas, também a favor da democracia tinha jogado o facto


de «0 povo, a quem se devia a supremacia no mar durante as Guerras Médicas, se ter
gabado disso e ter escolhido para chefes vis demagogos, apesar da oposição das
pessoas honestas» (2, 1274a), o que virá a repeiir-se no século ív, quando os tetes
foram integrados no exército hoplita,
A atenção constante de Aristóteles sobre este aspecto prova que não se tratava de
simples epifenómenos de caracter patológico (como os historiadores modernos
tendem a pensar), mas de tendências inerentes à vida nas cidades, Embora os várias
regimes se tenham apoiado em critérios de riqueza e de distinção, tinham, em todo o
caso, de cuidar do estabelecimento de uma estreita correspondência entre as funções
políticas e militares dos cidadãos: uma oligarquia tinha de se apoiar na cavalaria,
uma polUeia tinha de se compor de hoplitas (ou mesmo, como no caso dos Malia-
nos, de reseivar o exercício das magistraturas àqueles que tinham idade para
combater), ao passo que uma democracia podia contar apenas com os infantes e os
marinheiros, 0 mesmo acontecia no domínio das fortificações, onde «a boa solução
não é a mesma para todos os regimes políticos: assim, uma acrópole adequa-se a
uma oligarquia e a uma monarquia, um terreno plano a uma democracia; nada disso
se adequa a uma monarquia, que necessita de um certo numero de pontos fortifica­
dos» {PolUica^ 7, 1330b)
Devido aos constrangimentos próprios da arte militar, nem sempre era fácil
conseguir essa harmonia, sobretudo para os oUgarcas: recorrer aos pobres para
constituir a sua infantaria «é constituí-la contra si mesmos. Mas como existem
diferenças de idade e uns são de idade madura e outros jovens, os oligarcas têm de
ensinar aos seus filhos ainda jovens os exercícios próprios das tropas ligeiras,
escassameníe armadas, para eles se habituarem a essas práticas» (6, 1321a), Em
caso de desequililirio, estrutural ou fortuito, é o fáctor militar que prevalece: porque
«é impossível que pessoas capazes de recorrer à força e de resistir suportem ser
sempre e apenas subordinados [ Aqueles que são mestres nas armas têm o poder
de manter, ou não, o regime» (7, 1329a)..
Todas estas passagens, mais ou menos legais e regulares, do campo militar
para o político, e a preocupação de Aristóteles em esconjurar os seus perigos
integram-se bem no nosso conceito inicial da guerra na Grécia antiga. Na medida
em que os principais modos de exploração e de desenvolvimento repousavam
essencíalmente no uso da coacção extia-económica, a guerra só podia figurar
como fenômeno racional, estreitamente ligado ao nascimento da ordem garantida

72
peia justiça como, Já desde as origens, provava o combate arquétipo entre os
deuses e os Gigantes, que fizera surgir o Cosmos do Caos. A guerra contimiava a
ser a grande parteira das comunidades políticas. Portanto, era normal que essas
comunidades fossem constantemente perturbadas, no interior, e ameaçadas, no
exterior, pelas forças armadas

73
CAPITULO m
TORNAR-SE HOMEM
por Giuseppe Cambiano
«Qual é o ser com uma única voz que tem dois, quatro e três pés?» Ao responder:
«o homem», Édipo decifrou o enigma da Esfinge, A mudança dos modos de
locomoção parecia ser um sinal evidente das três etapas cruciais da vida humana: a
infância, a maturidade e a velhice. A estatura erecta, que, a partir de Platão e
Aristóteles, muitos filósofos consideraram um traço distintivo essencial entre o
homem e os outros animais, assinalava também o primado do homem adulto e a
distância que o recém-nascido, tão próximo da situação animal do quadrúpede,
tinha de percorrer para se tomar realmente homem. NaturaJmente, a primeira
condição era sobreviver, escapando à mortalidade, não rara na Grécia antiga, devida
a partos prematuros ou irregulares e depois a doenças derivadas da alimentação
inadequada ou da falta de higiene, a que se juntava a impotência terapêutica de uma
grande parte da medicina antiga. Em Erétria, entre finais do século viii e inícios do
século VII a. C , a distância entre a criança e o adulto era também realçada pelo facto
de os mortos, até aos dezasseis anos, serem inumados, e os adultos serem incinera­
dos, sujeitando-se portanto a um processo que marcava a sua passagem da natureza
para a cultura
Mas não era apenas a natureza que funcionava como selector de sobrevivência.
Nascer em boas condições físicas permitia escapar à eliminação, a que não se
hesitava em reconer no caso de deformidades, que eram sentidas pelos pais e por
toda a comunidade como uma espécie de castigo divino de mau augúrio. Em
Esparta, a decisão de deixar viver o recém-nascido competia aos membros mais
velhos da tribo iphylè) a que o pai pertencia O recém-nascido disforme ou débil
podia ser abandonado no Taígeto. Em Atenas e em outras cidades recorria-se ao
método da exposição do recém-nascido, num vaso de bano ou noutro recipiente,
longe de casa, muitas vezes em locais áridos, fora da cidade, onde podia morrer de
fome ou dilacerado pelas feras, se não fosse recolhido por ninguém. No entanto,
nem só as crianças disformes eram expostas; por vezes, eram-no também recém-
-nascidos em boas condições físicas. Os espectadores das representações trágicas ou
das comédias de Menandro podiam ver em cena inúmeros casos de crianças expos­
tas e depois reencontradas: o próprio Édipo teve esse destino Para limitar os
nascimentos, Aristóteles preferiría o aborto à exposição, mas confirmava a necessi­

77
dade de urna lei que proibisse educar filhos disformes. Em Atenas, a decisão de
expor 0 fiiho competia ao pai, ao passo que, na cidade cretense de Gortina, previa-se
que, se uma mulher de condição livre tivesse um filho depois do divórcio, tinha de o
levar, perante testemunhas, a casa do seu ex-marido; se este o recusava, cabia-lhe a
decisão de o expor ou de o educar Antigamente, em Atenas, o pai tinha o direito de
vender os seus filhos para saldar as dívidas Essa prática foi proibida por Sólon e a
exposição toinou-se um insüumento alternativo, sobretudo para os mais pobres. Na
Perikeirontene de Menandro, um pai contava que expôs o filho e a filha, quando a
mulher morreu de parto e ele ficou na miséria após a perda de um carregamento que
se afiindou no Egeu.
Não existem dados numéricos seguros, mas é possível que a maior parte das
crianças expostas fossem ilegítimas, e não legítimas supranumerârias, ou seja,
filhos bastardos de pais de nacionalidade mista ou nascidos fora de um casamento
legal, sobretudo filhos de escravos Era difícil, mesmo entre os pobres, que a
exposição recaísse sobre o primeiro filho legítimo varão, e o número de recém-
-nascidos do sexo feminino expostos devia ser muito maior. Não devemos esquecer
que, em Atenas, as raparigas tinham de receber um dote para encontrarem marido,
ao-contrário do que acontecia nas representações homéricas e entre as famílias
aristocráticas da época arcaica, onde era o futuro esposo quem oferecia presentes ao
pai da noiva,. A exposição era também um modo de evitar um excesso de núbeis,
que continuariam a pesar economicamente nas costas do pai. Sobretudo na época ifi
helenísüca, com a diminuição da natalidade, a que Políbio atribuiría a decadência da
Grécia, e cora uma família-tipo constituída por um único filho, a exposição das
crianças de sexo feminino assumiu maiores dimensões Por volta de 270 a. C., o
poeta Posidipo afirmava: «Todos, mesmo os pobres, criam um filho varão; uma
filha, mesmo que sejam ricos, expõem-na.»
A criança exposta podia ser recolhida por outros, que tinliam a faculdade de a
tratar como livre ou como escrava; tratá-la como livre não significava, porém,
adqptá-la. No direito ático, a adopção era uma transacção entre o adopíante e o pai
ou o tutor do adoptado, normalmente com o objectivo de assegurai' a existência de
um herdeiro do sexo masculino Provavelmente, a prática mais corrente cra reduzir
o exposto à condição de escravo, para o manter ao serviço — e, no caso de
raparigas, também para as preparar para a prostituição — ou para o vender quando
fosse oportuno. Heiiano menciona uma lei de Tebas que teria proibido que os
cidadãos expusessem os filhos, ordenando aos pais pobres que levassem o recém-
-nascido, do sexo masculino ou feminino, perante os magistrados, que o entregari­
am a quem estivesse disposto a desembolsar uma soma mínima estabelecida. Como
compensação pelas despesas de educação, o adquiridor podería depois uíilizá-lo
como escravo
Na Grécia antiga, tomar-se homem não equivalia apenas a tomar-se adulto
A condição dos pais era essencial para se decidir quem podia e quem não podia
tomar-se verdadeiramente homem Não só as aristocracias, mas também as demo­
cracias gregas faaseavam-se num limite numérico do corpo cívico cujo critério de
inclusão era o nascimento. Era Atenas, isso tinha sido sancionado por uma lei
proposta por Péricles, em 451-450 a. C., segundo a qual só os filhos de pais

78
atenienses é que podiam usufruir do direito de cidadania, lei essa que foi restabele­
cida em 403-402, após um período de abrandamento durante a Guerra do Peiopone-
so lá Adam Smith fez depender as restrições atenienses na concessão do direito de
cidadania da necessidade de não reduzir as quotas das vantagens econômicas
derivadas dos tributos que Atenas recebia de outras cidades. Obviamente, mesmo os
escravos tinham pais, mas não tinham direito a um parentesco reconhecido. Provi­
nham em grande parte de países bárbaros, mas também era possível que homens
livres de origem grega se tomassem escravos. A guerra, mais do que outro qualquer
facíor, podia ser fonte de escravidão: a prática corrente nas cidades conquistadas era
matar os homens adultos e reduzir a escravos mulheres e crianças, Foi assim que
Atenas procedeu com os habitantes de Mitilene, de Tóron, de Síon e de Meios,
durante a Guerra do Peíoponeso Por vezes, a conclusão de acordos de paz previa a
restituição das crianças tomadas escravas Mas o apelo feito por Platão ou Isócrates
aos Gregos para não escravizarem outros Gregos confirma que esta prática não
desaparecera no século rv a. C, Já em séculos anteriores, o destino de crianças e
rapazes de belo aspecto oriundos das cidades jónicas conquistadas pelos persas era
converterem-se em eunucos Heródoto contava que, por vingança, Periandro, tirano
de Corinto, enviara para Saides 300 rapazes, filhos dos primeiros cidadãos de
Córcira, para serem castrados,, Mas numa etapa da viagem, em Samos, tinham sido
salvos pelos habitantes da ilha e reconduzidos à pátria. Sorte menos feliz devia
caber aos rapazes que caíam nas mãos do mercador de escravos Panion de Quíos,
que, segundo.Heródoto, os castrava pessoalmente, para os levar depois para Sardes
ou Éfeso e vendê-los aos bárbaros por um preço elevado,.
Nas cidades gregas, ser-se escravo significava ser-se excluído da participação na
vida política, privado de muitos direitos civis, de uma grande parte das festas
religiosas da cidade, e também das palestras e dos ginásios, onde se procedia à
educação dos futuros jovens cidadãos. Para um escravo, tomar-se adulto não impli­
cava um salto qualitativo ou uma preparação gradual, como acontecia com os filhos
dos cidadãos livres. Se o adjectivo a/idràpodort, homem-pé, usado para designar o
escravo, tendia a identificá-lo com a condição dos quadrúpedes, tetràpoda, o termo
pais, pelo qual era frequentemente chamado, realçava a sua eterna condição de
menorídade, Como diz Aiisíófanes nas Vespas, «é justo chamarpais a quem apanha
pancada, mesmo que seja velho». Em Atenas, só se podia aplicar castigos físicos a
escravos e a crianças, não a adultos livres. Talvez só os escravos pedagogos, que
acompanhavam os filhos do senhor a casa do mesüe, é que podiam aprender
indirectamente a ler e a escrever, assistindo às lições Mas, por princípio, a única
instrução que um escravo podia receber estava associada ao tipo de trabalho e de
serviço que desempenhava em casa do patrão, numa gama que ia dos menos duros
serviços domésticos ao trabalho duríssimo nas minas, reservado exclusivamente aos
escravos e em que também se utilizavam crianças, não só nas minas da Núbía, de
que nos fala Diodoro Sículo, mas também nas minas atenienses do Láurio, Aristóte­
les fala de um mestre que, em Siracusa e mediante um salário, teria ensinado aos
escravos a ciência dos trabalhos domésticos, incluindo provavelmente também a
culinária, dada a grande reputação da cozinha siciliana,. Um patrão podia enviar os
seus jovens escravos para as oficinas artesanais a fim de aprenderem um ofício, de

79
que depois tiraria lucros; mas talvez a prática mais corrente fosse a aprendizagem
ligada ao trabalho na oficina do patrão, E essa aprendizagem devia começar muito
cedo: pinturas em vasos atenienses reproduzindo cenas de oficinas mostram um
grande número de crianças a trabalhar e não se pode decerto excluir a hipótese de
que pelo menos uma parte dessas crianças era de condição escrava. Um artesão
também podia comprar escravos para os ensinar, sobretudo se não íínha filhos a
quem transmitir o seu oficio. Foi o que aconteceu, no século ív, com Pasfon e
Fórmion, que se tomaram tão hábeis nas tarefas bancárias que foram libertados e se
converteram em proprietários de bancos No discurso C ontra N eera, Demóstenes
fala-nos da liberta Nicareles, que tinha comprado sete crianças pequenas, cujos
dotes físicos avaliara ateníamente, a quem tinha educado e depois preparado para o
ofício de prostitutas, fazendo-as mesmó passar por suas filhas para ganhar mais dos
clientes, e que depois vendera em bloco.
Mas as actividades artesanais não estavam exciusivamente nas mãos dos escra­
vos; havia muitos estrangeiros e também cidadãos, sobretudo menos abastados, que
se dedicavam a essas actividades. Os seus filhos podiam receber instrução gímnica e
elementar, na medida em que os salários dos mestres não eram muito elevados, mas,
como dizia Protágoras no diálogo platônico homônimo, os filhos dos ricos entravam
mais cedo para a escola e saíam mais tarde Aristóteles afirmaria claramente que os
pobres, por não terem escravos, eram obrigados a servir-se das mulheres e dos
filhos como escravos que os ajudavam nos seus trabalhos.. De facto, para os filhos
de cidadãos mais pobres, tornar-se homem coincidia em grande parte com o desem­
penho de actividades artesanais ou com o trabalho nos campos, ainda que, sobretu­
do em cidades democráticas como Atenas, isso não lhes retirasse o direito de
participar na vida política.
Isso era igualraente válido para sectores como os da medicina.. Num breve texto
da C olecção h ip o c râ tk a , intitulado Lei, posterior à segunda metade do século íV,
afirma-se que, para se ser médico, devia-se começar a aprender muito cedo {paido-
maí/iía), ao contrário do que teria acontecido na época imperial com tim médico
imbuído de noções filosóficas e científicas como Galeno, que teria iniciado a sua
aprendizagem da medicina por vo!ta’dos 16 anos. Muitas vezes, a oficina do artesão
^ta a sua casa, e era aí que se procedia à transmissão dos segredos do ofício,
sobretudo de pais para filhos. Temos conhecimento de autênticas dinastias de
pintores e escultores, O Juram ento hipocrático contém, aliás, o propósito de trans­
mitir ensinamentos escritos e verbais aos seus filhos, aos filhos do seu mestre e aos
discípulos que fizessem o mesmo juramento Se não tinham filhos ou se estes não
revelavam um talento particular — como teria sido o caso, segundo Platão, dos
filhos do escultor Policleto —, era possível adoptar como herdeiros filhos de
parentes e amigos, admitir como aprendizes filhos de cidadãos livres que não
tinham meios de subsistência suficientes ou ainda comprar escravos e ensiná-los
Seja como for, o único modo de aprender um ofício passava pela oficina e não
através d o s canais institucionalizados de uma instrução dada peja cidade.
Como acontecia com o s escravos e os melecos, a aprendizagem precoce tendia a
separar os filhos dos cidadãos pobres das crianças da sua idade para os inserir de
imediato num mundo adulto, sem percorrer ou percorrendo apenas íimitadamente

80
um itinerário gradual de integração no tecido social, político e militar'. Disso estava
isenta uma cidade como Esparta, que entregava todas as actividades laborais nas
mãos dos hilotas e dos periecos. Todavia, de uma forma geral, a aprendizagem
dessas actividades não era considerada como fazendo parte da paideia e do processo
que conduzia à idade adulta, Não será inútil recordar que o termo paidià, jogo,
formado a partir da palavra p ak, criança, se opunha a spoudè, actividade «séria» de
adultos, e não a termos que designam actividades laborais Nas Nuvens de Aristófa-
nes, a habilidade do pequeno Filipides para construir caixas, barcos, pequenas
carroças era considerada por seu pai como um bom indício das suas aptidões para
receber uma educação superior, não para vir a ser um bom artesão. Todavia, nas
Leis, Platão consideraria este tipo de jogos como uma imitação das actividades
artesanais que iriam exercer em adultos e uma preparação adequada para elas
Porém, para ele, isso pouco tinha a ver com a paideia: não é por acaso que, nas Leis,
as actividades agncolas e artesanais eram desempenhadas integralmenie por escra­
vos e estrangeiros. Segundo Plutarco, nenhum jovem de boa fánulia poderia invejar
Fídias, Só na época helenística é que a presença do desenho surge no curriculum
educativo, mas isso nada tem a ver com uma preparação para fins profissionais Os
conteúdos e os métodos das artes também podiam ser conhecidos por quem não as
iria exercer. Era o que acontecia com a medicina, considerada digna de ser conhe­
cida por Platão e Aristóteles, mas mais para se poder dar opiniões fundamentadas ou
utilizar teoricamente os seus resultados do que para vir a ser~se médico

O sexo era o outro factor decisivo para a determinação de quem podia tomar-se
cidadão adulto no sentido pleno do termo; as mulheres estavam excluídas. Havia,
naíuralmente, algumas excepções, sobretudo na época helenística e fora de Atenas,
mas, de uma forma geral e sobretudo em Atenas, uma mulher estava integrada na
cidade não como cidadã mas como filha ou mulher de um cidadão.. Só na época
helenística é que se tem conhecimento de raparigas que firmam pessoalmente um
contrato de matrimónio com o futuro esposo; em geral, esse papel era assumido pelo
pai ou pelo tutor da rapariga,. Paia a maior parte das raparigas gregas de condição
livre, a passagem à idade adulta era marcada pela etapa decisiva do matrimónio.
A diferença de condição entre crianças do sexo masculino e do sexo feminino está
bem expressa numa a}ter'naíiva apresentada nos Memoráveis de Xenofonte: a quem
confiar crianças do sexo masculino, para serem educadas (paideusaí), e filhas
virgens, para serem vigiadas {diaphylaxai)l À paideia correspondia, no caso das
raparigas, a custódia. O termo «virgem» iparthenos) referia-se mais ao estado
anterior ao matrimónio do que à integridade física propriamente dita Uma lei
atribuída a Sólon determinava que, se um pai descobria que a filha mantinha
relações sexuais antes do matrimónio — e o sinal inequívoco era a gravidez —,
excluía-a da família e podia vendê-la, Para ela, deixava de haver perspectivas de
matrimónio, donde a importância da custódia como garantia de preservação das
condições de acesso às núpcias.
Desde o nascimento que as jovens passavam grande parte da sua vida em casa,
entregues aos cuidados da mãe ou das escravas. A urbanização crescente, a partir da i
criação da polis — documentável só após a segunda metade do século vn —, õnha ]

81
provocado uma transferência sensível das actividades da mulher para o interior de
casa, reservando para os homens a possibilidade de se movimentar livremente no
espaço exterior. Só as mulheres mais pobres ê que eram obrigadas a sair de casa para
irem trabalhar nos campos ou como vendedeiras. Em casa, as jovens aprendiam desde
muito cedo a ftar e a cozínliar. As festas religiosas da cidade eram a única oportuni­
dade de saída, dado que os simpósios eram proibidos a mulheres que não fossem
cortesãs, bailarinas ou flautistas Na Atenas clássica, porém, e ao contrário do que
acontecia com os rapazes, essas festas não coincidiam com momentos de iniciação à
vida adulta para uma determinada classe etária. A iniciação só abrangia grupos
restritos de raparigas, que eram escolhidas para representar o itinerário de preparação
para o matrimónio Assim, todos os anos, durante as Arreforias, duas raparigas de
família nobre, entre os sete e os onze anos, começavam, cerca de nove meses antes das
Panateneias, a tecer o peplo que, nessa ocasião, seria oferecido a Atena. A confecção
do peplo por parte de raparigas está também documentada noutros locais, como por
exemplo em Argos, em honra de Hera; é provável que, em Esparta, as raparigas
tecessem o clii ton que todos os anos era consagrado a Apoio, nas Jacíntias, Nos meses
que antecediam as Panateneias, as duas raparigas levavam uma vida especial e no fím
despojavam-se das suas roupas e dos colares de ouro. Para elas, as Arreforias eram um
momento de passagem e de iniciação: aprendiam o trabalho da mulher, a fiação e a
tecelagem, e preparavam-se para ser esposas e mães, levando à cabeça, de noite, desde
a acrópole até um jardim dedicado a Afrodite, um cesto cujo conteúdo deviam ignorar
e que colocavam num locai subtenâneo, de onde saíam trazendo outros objectos
sagrados envoltos num pano. O cesto continha o simulacro de Eritónio e a serpente,
símbolos da sexualidade e da gestação Entre milliares de crianças eram só duas as
escolhidas: aquilo que, aníigamente, constituiria talvez a passagem de toda uma classe
etária para uma nova condição, através de uma fase de segregação da comunidade e de
uma prova, tomava-se, na época clássica, objecto de uma representação simbólica,
Assim, temos conhecimento de cargos sacerdotais entregues a raparigas em idade pré-
-matrimonial na Arcádia e na Caláuria; as donzelas de Lócris eram mesmo obrigadas a
prestar ura serviço vitalício no tempo de Atena., Normalmente, porém, a participação
das rapíuigas em ritos e tarefas religiosas estava ligada simbolicamente à viragem
decisiva da sua vida que coincidia com o matrimónio Em o que acontecia em Atenas
com as festas designadas por Brauronias, Algumas raparigas, de idades compreendi­
das entre os cinco e os dez anos, deviam consagrar-se ao serviço de Ártemis no
santuário de Brauron, fora de Atenas, durante um período que ignoramos. Em memó­
ria da ursa predUecta de Ártemis, que, depois de se ter refugiado no seu templo, tinha
sido morta, essas raparigas eram denominadas «ursas» e expiavam esse sacrilégio
servindo a deusa Ao mesmo tempo, refaziam o percurso da ursa, libertando-se de
uma condição selvagem para se prepararem para coabitar cora o esposo e integrar a
sexualidade na cultura.
Procissões, danças e coros de raparigas eram elementos essenciais de muitas
festas citadinas. No século rv a., C , na procissão das Panateneias, cem donzelas,
pertencentes às famílias mais nobres, transportavam os utensílios para o sacrifício.
Contudo, para um grande número de jovens atenienses, a participação talvez consis­
tisse mais em assistir do que em participar activamente nas festas.

82
Na Atenas clássica, bem como noutras cidades, não existiam escolas para crian­
ças ou adolescentes do sexo feminino. Eram as mães, parentes velhas ou escravas
que lhes contavam histórias da tradição mítica, ligada aos ritos religiosos cumpridos
pela cidade, e que, por vezes, as ensinavam também a ler e escrever. Todavia, a
máxima expressa em verso por Menandro: «Ensinar uma muüier a ler e escrever?
Que erro tremendo! É como munir de mais um veneno uma horrível serpente» não
devia andar longe da concepção corrente no mundo masculino, Na época helenis-
tica, o índice das mulheres analfabetas continua a ser mais elevado do que o dos
homens, o que é confirmado pela percentagem de mulheres que recorriam a oubem
para escrever Em te o s existia uma escola frequentada por alunos de ambos os
sexos e, em Pérgamo, havia concursos de recitação poética e de leitura para rapari­
gas, mas não se trata de fenômenos correntes, e mesmo a educação gímnica era uma
prerrogativa essencialmente masculina A excepção mais conhecida era Esparta,
onde as crianças do sexo feminino, tão bem alimentadas como as do sexo mas­
culino, mais do que serem ensinadas a tecer e a cozinhar, que seriam sempre
ocupações de escravas, não de mulher, eram desde muito cedo ensinadas a exerci­
tar-se, nuas e na presença dos homens, na corrida, na luta, no arremesso do disco e
do dardo Não sabemos se foi esse exemplo espartano que levou à instituição da
corrida pedestre feminina nos jogos de Olímpia, embora em dias diferentes dos dos
grandes jogos. Segundo Pausânias, essas corridas teriam sido repartidas por três
grupos etários, mas não sabemos se nas competições participavam também rapari­
gas atenienses
A aquisição de uma instrução de nível superior era ainda mais rara e difícil, São
excepções os casos da hetera Aspásia, intima de Pérides e significativamente uma
estrangeira, e do círculo de Safo em Lesbos, no início do século vi a, C.., de que não
existem correspondentes documentados para a Grécia clássica entre o século V e o
século IV Tratava-se de uma associação cultuai onde algumas raparigas não só de
Lesbos, mas também de cidades da costa jónica, se exercitavam na dança e no canto,
aprendiam a tocar lira e a participar em festas nupciais e religiosas e provavelmente
em concursos de beleza, adquirindo as qualidades exigidas para poderem casar com
personagens nobres, Isso parece confiimar a maior liberdade de que teriam gozado
as donzelas de família nobre na época arcaica em relação à segregação tão caracte­
rística da Atenas clássica Nesse círculo também se criavam laços homoeróücos,
que, no caso de Esparta do século vn a C,, são documentados pelas parténias
de Alcman, mas isso não implica que não se ministrasse igualmente uma educação
pré-matrimonial
Na vida das raparigas gregas de condição livre, o matrimônio era o rito de
passagem decisivo, Com o matrimônio, a situação da mulher, mais do que a do
homem, sofria uma mudança radical. Tomar-se adulta, deixar* de ser paríhenos,
significava converter-se em esposa e mãe potencial de futuros cidadãos do sexo
masculino Em geral, e ao contrário dos filhos varões, as filhas não pennaneciam
durante muito tempo em casa do pai; casavam-se cedo, muitas vezes antes dos
dezasseis anos, e com homens mais velhos, pelo menos, uma dezena de anos.
A promessa de matrimônio ocorria muito antes: a irmã de Demóstenes foi prome­
tida em casamento quando tinha cinco anos Segundo a lei de Gortina e de Creta, o

83
início do período nubil ern aos doze anos A diferença de idade não coniiibuia para
poíenciar os laços afecíivos e intelectuais entre os esposos Xenofoníe atribuiu a
falta de educação das mulheres ao facto de casarem muito cedo,
Para se compreender as características do matrimônio ateniense, convém recor­
dar que se tratava de um contrato entre dois homens, o pai ou o tutor e o futuro
esposo Para as mulheres, porém, o matrimônio significava essenciaimeníe uma
transferência da casa do pai para a do marido, da segregação sofrida na primeira
para a da segunda, da tutela de um para a de outro em todas as transacções jurídicas.
Porém, no Egipto, que, para Heródoto e Sôfocles, era a antítese por excelência do
mundo grego, eram as mulheres que saíam de casa para arranjar comida, enquanto
os homens ficavam em casa a tecer. A futura esposa preparava-se para o dia das
núpcias oferecendo a Ártemis os seus brinquedos infantis e cortando o cabelo, sinal
de que abandonava a adolescência., Em Trezene, também oferecia o seu cinto a
Alena Apatúria.
Na véspera das núpcias, os dois futuros esposos purificavam-se cumprindo o
ritual do banho enquanto se entoavam himeneus, que propiciavam a geração de uma
ôptima prole, e o pai da esposa oferecia um sacrifício a Zeus, Hera, Ártemis, (
Afrodiíe e Peito. A cerimônia propriamente dita, como itinerário da rapariga desde a
casa do pai até à do marido, confirmava que a verdadeira protagonista do rito de
passagem e de mudança de estado era a mulher Começava com um banquete em
casa do pai, durante o qual uma criança passava entre os comensais transportando
pão e pronunciando a ftase; «Escaparam ao mal; encontraram o melhor,» O pão
simbolizava a transição de um regime selvagem para um regime civilizado,
A rapariga assistia ao banquete velada e rodeada de amigas e só no fim é que devia
mostrar o rosto aos presentes,. Depois de se terem entoado himeneus e procedido a
Ubações e augúrios, um cortejo nocturno iluminado por archotes acompanhava a
rapariga, que era levada de carro até à casa do marido, onde entrava transportando
uma peneira para cevada, que prefigurava a sua nova actividade de cozinheira,.
Junto da lareira da nova casa eram-lhe oferecidos doces e figos secos, que sanciona­
vam a sua integração Em seguida, os dois esposos entravam no quarto nupcial, a
cuja porta montava guarda um amigo do marido, e consumavam o matrimônio.
Tendo em conta o espaço onde decorria, a cerimônia nupcial era mais uma transfe­
rência de uma casa para outra do que uma transferência do espaço privado da casa
paia o espaço amplo e público da cidade: ao deslocar-se, a rapariga possibilitava a
criação de um laço entre duas famrlias

«O matrimônio é, para a donzela, o que a guerra é para o jovem » (Vem aní)


Numa situação de guerras e ameaças constantes de guerra, que também era um
fáctor decisivo de prosperidade ou de decadência econômica, a posse de capacida­
des militares era essencial. Para os filhos varões de cidadãos, ser-se homeih signifi­
cava ser-se marido e pai, mas sobretudo ser-se cidadão capaz de defender a sua
cidade e de a conduzir politicamente, A guerra e o combate hoplita, em fileiras
cerradas, não eram confiados, pelo menos até ao século iv a. C , a um exército
profissional, mas a cidadãos, que aí deviam demonstrar os mesmos dotes de firmeza
e de coragem que permitiam governar a cidade em tempo de paz. Isso acontecia em

84
todas as cidades, de regime aristocrático ou democrático. Todavia, e sobretudo após
a sua vitória sobre Atenas na Guerra do Peloponeso, Esparta tinha assumido para
vários intelectuais o papel de modelo de cidade capaz de preparar melhor os jovens
para a guerra, Xenofonte atributa essa supremacia ao caracter público da educação
espartana, que subtraía a formação dos rapazes às competências e ao arbítrio da
família Os recém-nascidos eram imediatamente postos à prova e temperados pelas
amas, que os lavavam com vinho e não com água, para evitar que fossem atacados
por convulsões. Eram as amas e não as mães que os educavam, não os enfaixando e
habituando-os a uma alimentação austera, a não terem caprichos e a não temerem a
escuridão e a solidão. Um certo grau de idealização caracteriza os quadros da
educação espartana desenhados por Xenofonte ou Plutarco, mas não há dúvida de
que essa educação se destinava ao fortalecimento e ao adestramento físico desde a
primeira infância, A viragem decisiva ocorria a partir dos sete anos, quando os
rapazes eram agrupados em equipas, agelai — um termo que normalmente designa
rebanhos de animais que necessitam de ser guiados —, habituados a viver em
comum fora de casa e sujeitos à agogè, ao treino para adquirir disciplina, obediência
e combatividade. Só os herdeiros do trono é que estavam isentos da agogè, mas
recordava-se que Agesilau tinha passado por ele para aprender a obedecer Sujeitar-
-se à agogè habilitava a tomar-se hòmoioi, «pares», isto é, cidadãos de pleno direito,
isentos de todas as actividades laborais,. Por conseguinte, os periecos e os hilotas
estavam necessariamente excluídos. Os rapazes eram rapados e habituados a andar
descalços','^os doze anos envergavam um mesmo trajo para todas as estações e
dormiam em enxergões de canas que partiam com as suas próprias mãos. Nas
Gimnopédias, festas celebradas em pleno Verão, executavam exercícios na ágora,
nus sob o sol ardente. Também recebiam poucos alimentos, para aprenderem a obtê-
-los pela astúcia, roubando sem nunca serem descobertos, já que em caso contrário
seriam chicoteados. A obediência era adquirida através de um sistema de prêmios e
castigos: em todas as fases da sua formação, o jovem estava sempre sob o comando
de alguém mais velho, mas sempre de condição livre, não escravo como era o caso
do pedagogo, em Atenas, Um controlo social tão capilar gerava o máximo confor­
mismo e tendia a reforçar o desejo de integração no corpo social, mas também se
aliava à necessidade, própria das estruturas militares, de seleccionar os mais aptos
para o comando e de constituir corpos de elite. Era esse o objectivo das competições
entre membros da mesma classe etária, no decorrer das festas, e sobretudo a
instituição, tão característica, dos combates fictícios
A música não estava ausente da instrução dos jovens Nas Gimnopédias eféctua-
vam-se concursos de danças corais, por vezes com máscaras, para ambos os sexos,
como, a partir do século vn, acontecia durante as Cameias, em honra de Apoio, Nas
Jacíntias havia coros de crianças e adolescentes. Mas a parte centrai da agogè era
ocupada, mais do que pelo ensino da leitura e da escrita, pelos exercícios de
ginástica, que também preparavam para as competições. Não é por acaso que, na
fase mais arcaica dos Jogos Olímpicos, muitos vencedores eram espartanos. A par
das competições e da guerra havia os combates fictícios, que ritualizavam a agressi­
vidade e se traduziam num misto de cooperação e de recontro Numa ilha formada
pelo rio Eurotas, perto do templo de Ártemis, uma divindade particularmente

85
associada ao mundo da adolescência e à tensão entre selvagem e domesticado,
ocorria um combate entre duas equipas de jovens, a cada uma das quais era entregue
por sorteio um dos dois pontos de acesso à ilha Na noite anterior, cada equipa
sacrificava um cão em honra de Ares, o deus da Guerra; em seguida, assistia-*se a
uma luta entre dois javalis, que servia para se fazer prognósticos acerca dos futuros
vencedores A competição começava de madrugada e consistia na ocupação da ilha
e na captura dos adversários, que eram atirados à água, num misto de combate
olímpico por equipas e de luta selvagem, já que todos os golpes eram admitidos,
incluindo mordidelas e pancadas nos olhos,.
Mas a iniciação propriamente dita, nas suas fases de separação e de vida
segregada e depois de reinserção, ocorria com a chamada krypteia, que dizia
respeito apenas a ujma elite de efébos e era praticada por indivíduos isolados, não
em grupo, em condições difíceis de vida prolongada ao ar livre, privados de roupas
e de víveres, armados apenas com uma faca De dia, tinham de esconder-se e de não
se deixar surpreender, para exercerem de noite um autêntico serviço de policia­
mento em relação aos hilotas, a quem faziam emboscadas. Não se deve esquecer
que os espartanos adultos tinham a obrigação de participar diariamente nos sys$i~
í-ion, ou seja, nas refeições corhuns entre homens, e não residiam habitualmente nas
suas terras Além disso, não eram raras as revoltas de hilotas, Daí a importância de
um serviço de vigilância e policiamento: assim, os efebos começavam a ser prepara­
dos para uma função pública, A krypteia era uma instituição inversa e simétrica em
relação ao combate hoplita: ocorria de noite, na montanha, competia a indivíduos
isolados e desarmados, e assumia a forma de uma caçada, fora dos terrenos cultiva­
dos Era a dramatização do momento de abandono da infância e da preparação para
a guerra. Tomados homens, aqueles que tinham estado sujeitos à krypteia eram
provavelmente enquadrados nn corpo de elite dos 300 cavaleiros, que todavia
combatiam a pé.
No entanto, em Esparta, a transição para a vida adulta, cujo momento exacto é
difícil de precisar, comportava uma maior continuidade com a vida vivida até então,
precisameníe pela dominante militar de todas as fases, «É difícil dizer se, era
Esparta, a idade adulta é uma infância prolongada ou se a infância não é uma
preparação prematura para a vida do adulto e do soldado» (Vidal-Naqueí),, O ma­
trimónio era considerado obrigatório, como condição essencial para a reprodução
dos futuros soldados, e estavam previstas sanções para os solteiros; mas, para os
jovens, não se tratava de um rito de passagem que marcava o fim da adolescência e
a adopção de um novo modo de vida. As núpcias ocoaiam por rapto da esposa
Rapavam os cabelos à noiva, vestiam-ihe roupas masculinas e deitavam-na numa
enxerga, sozinha e às escuras O isolamento, que preparava o efebo para a função do
hoplita, preparava a rapariga paia o matrimónio, que era consumado rapidamente,
depois do que o marido deixava a esposa e voltava a dormir com os seus compa­
nheiros, Ao contrário do que acontecia em Atenas, o oikos não tinha qualquer
importância: mesmo após as núpcias, e até cerca dos trinta anos, o marido não
convivia com a mulher mas, como acontecia também em Creta, fazia vida em
comum com os membros da sua classe etária e só tinha com a esposa encontros
casuais com fins procriativos, sendo mesmo admitido que ela fosse fecundada por

86
outros As refeições comuns e a convivência prolongada entre homens estavam
estreitamente ligadas à função pedagógica desempenhada pelas relações homoeróti-
cas na sociedade espartana Nos syssífion dos adultos participavam também os
paides, que aí aprendiam os comportamentos e as conversas adequados ao homem
adulto livre, mesmo através dessas relações,
A prática dos sysshion era corrente no mundo grego; está também documen­
tada em Mileto, Turis, Mégara, Xebas e noutras cidades, entre as quais, e em
especial, Creta, onde a homossexualidade desempenhava uma função essencial na
passagem para a idade adulta. Os antigos já faziam derivar de Creta muitas
instituições espartanas. Aí a divisão em classes etárias era essencial para a organi­
zação da sociedade e para a reprodução no poder do corpo de elite dos aristocratas
guerreiros, mediante o adestramento e da cooptação de novos membros, Também
em Creta, após um periodo de permanência sob o governo das mulheres, as
crianças do sexo masculino participavam nos syssííion em que participava o pai,
sentadas no chão e servindo os adultos Instruíam-se na leitura, na escrita e na
música e, sob a direcção de um paidonomos, dedicavam-se à ginástica e a comba­
tes fictícios. Aos dezassete anos, os psides das melhores famílias recnitavam
outros da mesma idade para formarem as agelai, onde eram alimentados a expen-
sas da cidade A cabeça de cada agele estava quase sempre o pai do jovem que
tinha formado o grupo; era ele quem os guiava na caça e nos exercícios e aplicava
os castigos Durante os dez anos de permanência numa agele, até cerca dos vinte e
sete anoSi-'è antes de entrar para o grupo dos homens maduros, denominado
heteria, e fazer com eles as refeições comuns e dormir no andreion, a casa dos
homens, também se adestravam nas danças pinicas com armas. Em Creta, a
relação homossexual entre um jovem e um amante mais velho era uma etapa
essencial para ele se tomar homem, mas não assumia a forma de uma corte,
assemelhando-se mais a um rapto ritual Três dias antes do rapto, o amante
informava os amigos do jovem, Estes, tendo em conta a ciasse do amante — que
devia ser igual ou superior à do jovem —, decidiam se permitiriam ou impediríam
o rapto Se o rapto fosse permitido, o raptor, acompanhado por amigos, podia
ievar o jovem para fora da cidade, para o campo, onde organizavam banquetes e
iam à caça — o desporto típico dos heróis, modelos dos efebos — durante dois
meses, findos os quais já não era permitido reter o jovem Era este o momento da
segregação, acompanhado por uma vida de agregação, típico de uma iniciação Ao
regressar à cidade, o jovem recuperava a sua liberdade, depois de ter recebido
como presente o equipamento militar, um boi e uma taça; sacrificava o boi a Zeus
e festejava o grupo que o tinha escoltado no regresso, manifestando a sua satisfa­
ção ou insatisfação pelo periodo de intimidade passado com o amante, Para os
jovens de família nobre, não encontrar um amante era algo de vergonhoso, dado
que equivalia ao reconhecimento da falta das qualidades que permitiam a entrada
no grupo dos adultos guerreiros, simbolizada pela oferta das armas depois da
iniciação homossexual, Além disso, os raptados ocupavam lugares de honra nos
coros e nos ginásios e, como sinal de distinção, envergavam o trajo que lhes fora
oferecido pelo amante. Assim começavam a fazer parte da elite constituída por
aqueles que eram designados por kleinòi, «insignes»,

87
Ern relação a estes modelos educativos, Atenas podia |á ser considerada pelos
antigos como o local onde os pais podiam decidir acerca dos itinerários que os filhos
deviam percorrer para serem homens. Todavia, isso só é parcialmente verdade,
porque a vida da criança e do adolescente ateniense também estava presa numa
densa rede de festas religiosas, durante as quais a cidade celebrava os seus valores,
envolvendo toda a comunidade. O autor da Coiutituíção dm Atenienses lamentava
o número excessivo de festas em Atenas, superior ao de qualquer outra cidade
grega, e o facto de os sacrifícios de muitas vítimas permitirem dar de comer a todo o
demos, mesmo aos pobres. Seja como for, em Atenas, os pais nunca tiveram direito
de vida e de morte sobre os filhos, mas cabia-lhes a decisão de os admitir na família
e 0 direito, até à sua maioridade, de os transferir para outra família mediante o
processo de adopção, ou de os confiar a um tutor, em caso de morte. Órfão era, em
primeiro lugar, aquele a quem morrera o pai.
Entre o quinto e o décimo dia após o nascimento de um filho e na presença dos
membros da família, tinham lugar' as Anfidrómias, altura em que o recém-nascido
era transportado ao colo em redor da lareira da casa, como sinal da sua admissão
No décimo dia, procedÍa-se a um sacrifício, celebrava-se um banquete e dava-se o
nome à criança Durante os primeiros anos, era entregue aos cuidados da mãe ou de
uma ama, normalmente uma escrava, enquanto o pai passava grande parte do dia
fora de casa. Heródoto elogiava o costume persa de o pai não ver o filho antes de
este completar os cinco anos, para evitar que a sua eventual morte prematura fizesse
sofrer o pai.
Jogos e narrativas da tradição mítica preenchiam os dias das crianças, que, nas
Antestérias, festas em honra de Dioníso, estavam directamenie, envolvidos num rito
centrado na abertura dos jarros e na prova do vinho novo, Efectuavam-se competi­
ções de bebidas, em que participavam também os escravos e as crianças do sexo
masculino que tivessem mais de três anos. No segundo dia da festa, o chamado dia
das canecas, essas crianças recebiam de presente pequenos carros ou figurinhas de
animais feitas de barro e também uma pequena caneca, com a qual participavam na
competição, coroados de flores. O acesso ao vinho representava o primeiro passo
para a integração no mundo dos adultos, que tinha no simpósio, de que as mulheres
eram excluídas, uma das suas manifestações mais salientes No túmulo das crianças
mortas antes dos três anos, era colocada uma pequena caneca, que equivalia a uma
realização simbólica pelo menos no Além.
A iniciação nos mistérios de Elêusis também estava aberta às crianças, e entre os
cargos hononficos estava previsto o chamado pais aph 'héstias, o filho proveniente
do fogo da cidade, que pertencia a uma fanulia ateniense nobre e era eleito anual-
mente para ser iniciado a expensas da comunidade e obter assim para a cidade o
favor de Deméter. Nas Oscoforias, em honra de Dioníso, outros dois jovens,
escolhidos por nascimento e riqueza, levavam em procissão ramos de videira
carregados de cachos, envergando trajos femininos, de acordo com um procedi­
mento típico dos ritos de passagem, que, dramatizando o acesso à virilidade,
atenuava ao mesmo tempo a transição para o novo mediante um laço com a
condição «feminina» da infância, vivida em casa, num mundo de mulheres que se
estava prestes a abandonar, Uma função análoga tinha o corte dos cabelos, aos

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dezasseis anos de idade, que eram consagrados a Árieniis durante as Apatúrias,
altura em que o pai jurava pela legitimidade do filho perante a sua fratria
Um elemento essencial das festas eram as competições de ginástica e os concur­
sos musicais, que funcionavam também como demonstração, perante os adultos,
das capacidades adquiridas Constituíam um instrumento de que a cidade se servia
para verificar, entre os vários grupos etários implicados nas competições, a existên­
cia de condições para a sua reprodução e sobrevivência Assim, na época clássica,
em Atenas, durante as Oscoforias, havia competições de corrida num percurso de
cerca de 7 km que eram disputadas aos pares por vinte adolescentes das melhores
famílias, Cada par representava uma das dez tribos que constituíam a cidade, que
acabava portanto por ser a verdadeira protagonista da competição, que terminava
com o desfile dos dez vencedores Em 566-565 a.. C., foram introduzidas nas
Panatencias competições atléticas para as três classes etárias das crianças, dos
adolescentes e dos adultos, competições essas que consistiam em provas já em
grande parte conhecidas por Homero e no pentatlo, conjunto de luta, conida, salto
em comprimento, lançamento de disco e de dardo Não há notícia de competições
de natação, mas estão amplameníe documentadas corridas com armas ou a cavalo e
as cspectaculares iampadofõrias, corridas com archotes por estafetas, durante as
Teseias, instituídas por volta de 475 a. C .
Contudo, o combate era uma realidade que ultrapassava as cidades: abria aos
jovens espaços extracitadinos e gerava o desejo de competir com as outras cidades
gregas, especialmente nos jogos pítícos, ístmicos, nemeus e olímpicos, onde, já na
segunda metade do século vn, foram inlioduzidas competições para os jovens, com
exclusão do pancrácio, um misto de luta e pugilaío que só foí admitido por volta de
200 a. C Em Olímpia, na tarde do segundo dia dos jogos, efectuavam-se as provas
reservadas aos adolescentes, filhos legítimos de cidadãos gregos livres, de idades
compreeendidas entre os doze e os dezoito anos, embora nem sempre fosse fácil
confirmar a idade eféctiva, por fálía de certificados de nascimento. Naturalmente, os
aristocratas tinham maiores possibilidades de treino preparatório e as competições
equestres, dado o custo do equipamento, manííveram-se sempre seu apanágio. Só a
alguns jovens promissores é que as cidades ou patronos privados davam dinheiro
para se prepararem. Nos jogos, os concorrentes pertenciam a todas as classes
sociais, embora o desporto não fosse uma componente habituai das actividades de
todos os jovens.
O combate aristocrático da época arcaica era uma prova de valor individual, ao
passo que o combate hopliía tinha introduzido as fileiras e a cooperação como
elementos decisivos. Em certa medída, as competições vinham absorver a agressi­
vidade individual jâ ausente ou secundária na guerra O seu objectivo não era
estabelecer primados, mas vencer individualmente os adversários e partilhar a
glória da vitória com a família e a cidade Era também este o caracter dos
concursos musicais, que se efectuavam em muitas regiões do mundo grego. Há
notícia de um naufrágio ocorrido em finais do século v a. C., em que pereceram 35
crianças de Messé, elementos de um coro que se dirigia a Reggio, a quem os
Messénios enlatados dedicaram, em Olímpia, estátuas de bronze e Hípias de Elis
dedicou uma inscrição,

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Numa época em que a função miÜiar tinha deixado de ser prerrogativa das
classes aristocráticas e se delineara a nova figura do cidadão hopliía, a necessidade
do treino gimnico sistemático ocupava o primeiro piano. No século vi a, C ,
começaram a surgir em quase toda a Grécia ginásios e palestras. O ginásio tomou-
-se, a par do teatro, um edifício típico das cidades gregas. Após as conquistas de
Alexandre, quando os Gregos se fixaram no Egipto e no Oriente, o ginásio passou a
ser um sinal de identidade em relação às populações indígenas. Em Jerusalém, o
sumo sacerdote íasão, desejoso de se integrar na cultura dos dominadores, teria
fundado, com a autorização do rei Antíoco, o Epífano, um ginásio para jovens
hebreus, No ginásio, a partir dos doze anos, e talvez mesmo antes, os jovens,
orientados por um mestre, o pedotriba, executavam todos os exercícios de ginástica
que estavam incluídos nas competições citadinas ou supracitadinas. 'I'reinavara-se
nus, ungidos de óleo e com acompanhamento musical. Em Pelene, na época helenís-
tica, não se podia ser cidadão se não se tivesse frequentado o ginásio. Normalmente,
porém, a frequência do ginásio não era obrigatória por lei, embora suscitasse uma
distinção social indubitável. Não é por acaso que, em Atenas, os escravos estavam
proibidos de fazer ginástica e de se ungir nas palestras. Isso impedia-os também de
se treinar para um eventual uso das armas, mas, numa lei atribuída a Sólon, os
escravos ficavam também proibidos de manter relações homossexuais com jovens
de condição livre Numa lei de Berea, de meados do século II a. C.., a proibição de
frequentar o ginásio estendia-se também aos escravos libertos e aos seus filhos, aos
indivíduos deficientes, aos que se prostituíam ou exerciam actividades comerciais,
aos bêbados e aos loucos.. Isso servia também para evitar relações pederastas
indignas de homens livres. A homossexualidade tinha indubitavelmente um grande
peso nas comunidades de acentuado carácter militar, como Creta ou Esparta, ou
como Tebas no século iv a.. C , onde o amante dava o equipamento de guerra ao
amado, no momento era que lhe era conferida a efebta. Em Tebas, o chamado
«batalhão sagrado» era constituído por pares de amantes. Mas, mesmo em comuni­
dades como Atenas, as relações homossexuais desempenhavam um papel decisivo
na integração na vida adulta. Depois de abandonar a casa das muUieres, o jovem
passava grande parte do seu dia no ginásio, onde a sua vida sexual começava a
desenvolver-se. Dificilmente um jovem ateniense podia ter oportunidade para en­
contros sexuais com raparigas ou mulheres de condição livre, sobretudo de classe
mais abastada Por outro lado, a maior facilidade de relações cora jovens escravas
retirava valor a esses encontros e reduzia o seu alcance emocional Embora não seja
de excluir que existissem relações homossexuais entre jovens da mesma idade, por
norma devia haver uma diferença de idade entre o amante e o jovem amado Essa
assimetria tomava possível, por um lado, a distinção entre o papel activo e o papel
passivo, e não só no sentido físico, e, por outro lado, a dimensão pedagógica da
relação. Para além dos jovens, o ginásio só podia ser frequentado por cidadãos
adultos que dispunham de muito tempo livre, isto é, ricos e de boa família Podiam
ver os jovens treinar-se e conversar com eles para provocarem o seu interesse,. Os
antigos descrevem muitas vezes a corte servindo-se das metáforas da caça: uma
presa faz-se respeitar e admirar quando não se deixa capturar de imediato. O jovem
devia revelar ponderação e pôr à prova o amado, testando o seu carácter,.

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A passividade constitutiva do amado não devia transfonnar-se em escravidão.. As­
sim se forjavam modelos de conduta que visavam formar o futuro cidadão livre na
sua capacidade de mandar e ser mandado. O jovem de condição livre que se
prostituía por diniieiro era excluído da comunidade, porque aceitava o papel passivo
do prostituto, geralmente um escravo ou um estrangeiro. Em Atenas estavam
previstas penas para pais, parentes e tutores que, por dinheiro, prostituíam uma
criança livre do sexo masculino e também para quem comprava os seus favores
Cora o despontar da barba, o rapaz deixava de ter o estatuto de amado; já adulto,
podería assumir o papel de amante, mesmo depois do matrimônio, A relação
homossexual não era, portanto, vivtda e considerada como oposta à relação heteros­
sexual; se esta permitia, no matrimônio, a reprodução física de futuros cidadãos
livres, a dimensão pedagógica da relação homossexual contribuía para a sua forma­
ção moral e intelectual.

O outro local que, em Atenas e noutras cidades, talvez mesmo antes do ginásio,
acolhia os filhos dos cidadãos livres era o didaskaleion, a escola, onde aprendiam a
ler e a escrever Confirma-se a existência de escolas já no início do século v a, C ,
quando, em Quios, o íecto de uma escola teria desmoronado matando 119 crianças
que aí aprendiam os gràmmata, Estas mortes em massa de crianças eram registadas
com especial emoção, porque privavam de repente pequenas cidades gregas das
■' í gerações vindouras,. No mesmo século, o atleta Cleóraedes de Astipaleia, privado
do prémiomos jogos por ter provocado a morte do adversário, batera furioso na
pUastra que suportava o tecto de uma escola, onde estavam 50 crianças. Tucídides
também referia que trácios tinham irrompido na escola mais frequentada de Mica-
lesso, matando todas as crianças Antes da época helem^stica, não há provas da
existência de uma insUrução obrigatória para os filhos legítimos dos cidadãos ateni­
f enses; todavia, todos podiam recebê-la e de facto os país tendiam a entregá-la aos
cuidados dos grammatistài e aos pedótribos por períodos que variavam de acordo
com as suas possibilidades econômicas, Uma das obrigações do tutor de um órfão
que possuísse alguns bens era educá-lo, pagando as despesas.
Os cuidados devidos aos órfãos em Atenas e noutros locais não coincidia com os
cuidados devidos aos pobres. Os únicos órfãos privilegiados eram os filhos dos que
tinham monido na guerra, para os quais Atenas tinha determinado, a partir de
meados do século v a , C, que fossem mantidos e educados a expensas da cidade até
atingirem a idade adulta. O decreto de Teozótides alargou esse direito aos filhos dos
atenienses que tinham morrido de morte violenta sob a tirania dos Trinta. Por
ocasião das grandes Dionisíacas, antes das representações trágicas, os óifãos dos
que morreram na guena eram apresentados ao povo e um arauto anunciava que os
seus pais tinham morrido como valentes e que a poih os educaria como filhos Em
seguida, teriara direito mesmo aos primeiros lugares no teatro. Era uma medida
política evidente, destinada a garantir a coesão social e o empenho militar, mas
permitia também que alguns membros da classe mais baixa tivessem acesso a uma
instrução que habitualmente só os filhos dos cidadãos mais ricos podiam receber na
íntegra. Alexandre também determinou que aos órfãos dos macedónios mortos
fosse pago o salário do pai. Algumas inscrições da época helenística mencionam

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ofertas àe particulares às cidades de Teos e de Mileto com o objectivo de pagar os
salários dos mestres de todas as crianças de condição livre, e, no século ii a. C , os
reis de Pérgamo enviaram trigo e dinheiro para Rodes, a fim de pagarem essas
despesas. Trata-se, porém, de casos excepcionais; normalmente cabia aos pais a
iniciativa de dar instrução aos filhos. E a instrução não era, só por si, fáctor de
promoção social: os filhos dos metecos também podiam recebê-la, sem que isso
alterasse o seu estatuto jurídico.
Enviar o filho a casa de um mestre — e não a um edifício publico construído a
expensas da cidade, como era o ginásio — estava de certa forma associado à
tradição mítica, que descrevia o herói expulso de casa por um tutor, como Aquiles
por Fênix. Mas o dida^kaleion tinha o condão de acolher vários alunos sob a
orientação de um único mestre. O jovem era acompanhado por um escravo de seu
pai, o pedagogo, que tinha de o vigiar e que podia castigá-lo, se fosse necessário.
Em Atenas, os mestres não podiam abrir a escala e os pedótribos as suas palestras
privadas antes do nascer do Sol e mantê-las abertas depois do crepúsculo. Mas não
existiam mestres autorizados, nomeados ou controlados pela cidade com base em
requisitos de competência ou em apresentação de diplomas. O único controlo da
cidade sobre a escola era de tipo moral: só uma idade mais avançada e um espaço
público como o ginásio podiam permitir a instituição de relações homossexuais com
uma base pedagógica correcta
No didaskaleion, o rapaz aprendia a ler e a escrever e aprendia música, mas não
com objectivos profissionais, como acontecia com os escríbas orientais. Com o
alargamento da escrita à redacção de leis e decretos da cidade, a capacidade de ler
podia parecer relevante para que um jovem se convertesse em cidadão no sentido
pleno do termo. Aprender a ler em voz alta, passando das letras para as sílabas e
para as palavras, e depois aprender a escrever segundo a mesma sequência podia
levar vários anos.. Em seguida, o jovem começava também a aprender de cor versos
e excertos mais amplos de poetas, sobretudo de Homero, que foi sempre considera­
do como um ponto de referência ímpar de modelos de conduta e de valores
Todavia, as línguas estrangeiras estiveram sempre ausentes das preocupações peda­
gógicas dos Gregos, Num papiro do século iií a. C., destinado à escola, surgem
também exercícios elementares de aritmética. Mas a instrução matemática de nível
superior, não destinada exclusrvamente a fins práticos de cálculo ou medida, mante­
ve-se sempre circunscrita a um círculo bastante restrito de especialistas.
O aspecto competitivo que existia na ginástica começou também a surgir neste
tipo de instrução e há inúmeras notícias, nomeadameníe da época helenística, de
concursos de leitura e de recitativos; em Magnésia chegava mesmo a efectuar-se um
concurso de cálculo., Esses concursos coincidiam muitas vezes com festas religiosas
celebradas no ginásio ou na cidade e neles ocupava um lugar de destaque o outro
ingrediente fundamental, a pai da ginástica, da formação dos rapazes: a música, que
era uma componente essencial dos coros e das danças que animavam essas festivi­
dades, em Atenas e também em Esparta Na Arcádia, segundo P oIjI dío, a música
acompanliou a educação até aos trinta anos. O ensino da música consistia em
primeiro lugar em tocai' citara e cantar acompanhado por esse instrumento, A par da
citara havia o aidòs, um instrumento de sopro mais parecido com o oboé do que

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com a flauta; mas a cítara deixava a boca livre para cantar, ao passo que o mdòs
deformava o rosto, de modo que, para um aristocrata como Aicíbíades, parecia
indigno de um homem iívre, dado que privava do uso da palavra, Não era só no mito
que Apoio vencia Mársias, o virtuoso do aulòs: a partir do século ív a C , o uso
deste intrumento foi sendo progressivamente entregue a especialistas A aprendiza­
gem da música e do canto, tão importante para o culto e o auto-elogio da cidade e,
portanto, para a integração dos mais jovens, fãzia-se de ouvido, sem texto escrito
Durante os concursos, os coros de rapazes eram instruídos por mestres sob a
direcção de coregos, cidadãos eleitos para essa função, de idade superior a quarenta
anos, suficientemente ricos para poderem pagar as despesas da instnição e dos
preparativos, e que punliam as suas casas à disposição para os ensaios.
A ginástica e a música eram ingredientes reconhecidos pela cidade para a
formação do cidadão como modelo de homem O momento imediatamente anterior
à passagem para a idade adulta era a efebia Em Atenas, a partir de 3.38 a. C., a
instituição da efebia — que provavelmente tinha uma origem anterior — foi-se
codificando como fbnna de serviço militar Durava dois anos e era obrigatória para
todos os filhos legítimos de atenienses, de qualquer condição social, a quem a
cidade fornecia o sustento Mas, em relação ao periodo anterior, inscrições que
datam do período que medeia entre 261 e 171 a C. registam uma forte diminuição
do número de efébos, de 20 a 40 por ano, em relação à média anterior de cerca de
650 por ano. Durante este penodo, o serviço fora reduzido para um ano e já não era
obrigatório' para todos nem estava a cargo da cidade, de forma que os pobres
estavam automaticamente excluídos Nos séculos ii e i a C , os efebos também
contribuíam, tal como o cidadão rico encanegado da efebia, para as despesas.. Numa
época em que o peso político e militar de Atenas tinha necessariamente diminuído, a
efebia foi adquirindo cada vez mais um carácter de instituição cultural de aparato,
atraindo mesmo, sob o domínio romano, estrangeiros provenientes do Oriente e da
Itália, Tal facto conduziu, a partir de 161 a. C , a um aumento do número dos efebos,
Contudo, na época de Aristóteles, a efebia era um exclusivo dos cidadãos: os jovens
que tinham completado dezoito anos eram inscritos no registo do demo, a circuns­
crição territorial a que pertencia o seu pai. Por voto secreto, a assembleia do demo
decidia se o novo cidadão linha a idade regulamentai' e se era descendente legítimo
de pais atenienses . Posíeriormente, o conselho confirmava ou recusava, por inegu-
lar, essa inscrição, que os tutores podiam por vezes ter interesse em adiar e os
tutelados em antecipar. O jovem recusado voltava para a classe dos paides, mas
também podia apelar para o tribunal, arriscando-se porém, no caso de ser condena­
do, a ser vendido como escravo
A inscrição no demo e, portanto, o ingresso de pleno direito na cidadania era um
passo bastante delicado e antecedia a prestação do serviço militar na qualidade de
efebo, sob a superintendência de um cosmeta e de dez sofronisías, um por cada .
tribo, A assembleia procedia à eleição de dois pedótribes, um mestre de armas, um
de tiro ao arco, um de lançamento de dardo e um de catapulta, que se encarregavam
da instrução dos efebos. Por ocasião da festa de Ártemis Agroteras, os efebos
participavam numa procissão e, no santuário de Aglauro, juravam defender a pátria,
as suas fronteiras e as suas instituições e não abandonar o camarada de annas.

93
Depois, dirigiam-se para o Pireu, onde prestavam serviço de guarda em duas
fortalezas No segundo ano de sendço, os efebos eram passados em revista pela
assembleia, no teatro de Dioniso, onde demonstravam o que tinham aprendido
durante a instrução militar; Ao entregar-lhes o escudo e a lança, a cidade exprimia a
sua passagem para a condição adulta do hoplita, Em seguida, sob o comando dos
estrategos, começavam a patrulhar o território da Ática, a prestar serviço nas
fortalezas e a garantir a segurança nas sessões da assembleia, envergando a clâmide
negra. O serviço de patrulha em zonas fronteiriças, fora da cidade, acompanhado
por estrangeiros, colocava o efebo numa zona intermédia antes de ocupar, como
cidadão de pleno direito, o espaço central da cidade, provavelmente em memória ou
como herança de uma época de iniciação repartida por classes etárias, embora já
tivesse prestado Juramento como hoplita,.
Os efebos estavam plenamente integrados nas festas da cidade: participavam em
sacrifícios e competições e, acima de tudo, prestavam serviço de escolta ao trans­
porte de objectos sagrados ou estátuas de divindades por ocasião de procissões,
segundo itinerários canónicos que passavam por certos espaços simbólicos da
cidade. Isso não acontecia apenas em Atenas; há noticia da difusão da efebia numa
,centena de cidades helenisticas. A uma contendo as cinzas de Füopémen, moito em
183 a,. C. pelos Messéníos, foi levada em procissão até Megalópolis pelo futuro
iiistoriador Polfbio, então jovem efebo de família nobre.
Todavia, sobretudo a partir do século m a, C,, o aspecto militar da efebia foí
sendo cada vez mais complementado por uma instrução de tipo superior, O ginásio
continuava a ser o centro da vida dos efebos. Atenas tinha três fora da cidade, o
Liceu, a Academia e o Cinosarco Em finais do século m a C., foram criados mais
dois, o Ptolomeu e o Diogéneo, provavelmente construídos em honra de benfeitores
privados, Nesses ginásios, porém, não se praticava apenas a ginástica; havia tam­
bém aulas e conferências de filósofos, mestres de retórica, e por vezes também de
médicos, No século i a. C., até um astrónomo fez conferências no ginásio de Delfos,
Entre 208 e 204, foi erigida no Ptolomeu uma estátua ao filósofo estoico Crisipo,
que deve ter ensinado nesse locai Assim, a vida dos jovens atenienses e também
dos estrangeiros que em número crescente chegavam a Atenas para ouvir as lições
dos filósofos e dos mestres de retórica assumia uma nova dimensão. Os livros
começavam a surgir: há documentos que confirmam a existência de bibliotecas de
efebos em Teos, Cós e Atenas Um decreto ateniense de 117-116 a C estabelecia
que os efebos de cada ano fizessem uma doação de livros.

O reconhecimento público do alcance pedagógico não só da filosofia, da retórica


e, em geral, de uma instrução superior, mas também do livro, para o itinerário que
conduzia à condição de homem não é um facto óbvio e temos de retroceder um
pouco para compreender o seu significado. Embora já em finais do século vr a, C.
Xenófanes de Cólofon tenha protestado contra a injustificada primazia conferida à
ginástica que, na sua opinião, não contribuía para o bom ordenamento e o bem-
-estar das cidades, o que é um facto ê que, em muitas cidades gregas, a formação do
cidadão-soldado baseara-se sempre num equihTirio substancial entre a ginástica e a
música. Todavia, com a alteração das modalidades da vida política e a crescente

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cenLralidade da palavra, sobretudo nas cidades democráticas, como instrumento
para chegar a decisões, impor pontos de vista ou triunfar nos processos, esse
equihTirio começara a deleriorai-se.
Na segunda metade do século v a, C , os sofistas tinham surgido como símbolos
e fautores dessa mudança Não se dedicavam a um ensino regular e contínuo, num
lugar fixo; iam de cidade em cidade, pronunciando discursos demonstrativos para
arranjar discípulos e dando aulas, onde se aprendia sobretudo a falai' convincente­
mente em público,. Tratava-se em grande parte de um ensino formal, que incidia nas
diferenças de linguagem, nas figuras de retórica e no estilo, mas que não desdenha­
va de aplicar esses conhecimentos a temas políticos, éticos e religiosos de interesse
gerai. Hípias de Elis também se mostrava atenta aos conteúdos das disciplinas
especiais, desde a Astronomia à Matemática, que precisamente nessa época come­
çava a estruturar-se e a assumir forma de manual com a obra de Hipócrates de
Quios O ensino dos sofistas era privado e pago De facto, só os jovens das famílias
mais ricas é que podiam ter acesso a ele e o seu objectivo consistia essencialmente
na formação de elites governativas Exíremameníe aíractivo para os jovens, erá um
tipo de ensino que podia parecer prematuro em relação à tradicional distinção das
tarefas próprias das várias idades da vida humana, porque antecipava para a juven­
tude a aprendizagem e o exercício do saber falar que, a partir de Homero era
considerado próprio — a par da bravura na guerra — do homem completo, se não
mesmo do ancião: e o principio da ancianídade era fundamentai para a atribuição do
poder em tpdas as cidades gregas. Antes de mais, o jovem devia preparar-se para
combater: saber faiar viria com o tempo, com a experiência. O ensino dos sofistas
parecia, porém, querer queimar as etapas. Os insucessos e a derrota de Atenas na
Guerra do Peloponeso contribuíam para o enfraquecimento da autoridade das gera­
ções mais velhas e dos tradicionais canais pedagógicos de que essas gerações se
tinham servido para que os filhos se assemelhassem aos pais. ü m tema típico de
discussão na segunda metade do século v a, C. é se de maus pais podem nascer
filhos melhores ou vice-versa
O confronto entre gerações é o ponto fulcral das Nuvens de Aristófanes, onde
Sócrates parccc identificado com os sofistas, capaz de ensinar Astronomia, Geome­
tria, coisas divinas, mas também de fazer objecções e de fazer prevalecer os
discursos mais fracos Todavia, ao contrário dos sofistas itinerantes, Sócrates estava
num «pensatório», implantado dentro da cidade, e, por isso, mais familiar e, simul­
taneamente, mais perigoso para os cidadãos Frequentando o seu ensino, o jovem
Fidípides podia fazer a seguinte objecção a seu pai Estrepsíades; quando eu era
pequeno, batias-me; por que não posso fazer-te o mesmo? Eu também nasci Üvre. A
idade deixava de ser um factor de distinção. E precisamente nesta comédia que
Aristófanes exprime o modo como os defensores do tempo passado contrapunham a
antiga à nova paideia através da antítese entre o ginásio e a ágora. A antiga paideia
do ginásio, gínuiico-musical, tomava os rapazes pudicos, robustos e fiéis às tradi­
ções: fizera os homens que tinham combatido em Maratona. A nova, porém,
centrava-se na ágora e nos banhos, que se enchiam de adolescentes, esvaziando as
palestras: aí não aprendiam a ser moderados, mas a cultivar a língua e a fázê-la
investir até contestarem os pais. Nas Rãs, Aristófanes imputava a Hurípides o ensino

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da tagarelice, laiia, que tinha esvaziado as palestras, e nos Cavaleiros, o Salsicheko
apontava a ágora como local da sua educação, entre rixas e confusões tais que um
mestre de retórica chegara mesmo a predizer o seu futuro destino de demagogo. No
discurso Contra Álcibíades, de Andócides, repetia-se a oposição entre ginásios e
tribunais, que se traduzia na inversão das funções etárias: os velhos combatiam e os
jovens falavam ao povo. O modelo dessa inversão era Álcibíades, que em Tuctdides
era também o campeão da igualdade entre jovens e velhos, por oposição ao velho
Nícias, aquando da decisão acerca da expedição militar contra Siracusa
O retrato de Sócrates, traçado por Aristófanes nas Nuvens, era também sintoma
de outra mudança, Na comédia, o velho Estrepsíades é ironicamente representado
como frequentador do «pensaíório» de Sócrates,. Uma das diferenças mais visíveis
entre a figura do filósofo Sócrates e a dos sofistas — que emergem sobretudo em
Platão — consistia precisamente no facto de o ensino filosófico se ter alargado
também à idade adulta e de praticamente não se concluir. A escola filosófica, que
Platão instituiria no século ív a„ C-, não na ágora, mas no ginásio suburbano da
Academia, não se baseava em distinções de idade, Um dos seus antecedentes, a
comunidade dos Pitagóricos em Croíona, também se tinha dedicado aos adultos,
distinguindo — a partir do modelo das iniciações religiosas aos mistérios — dois
níveis progressivos de iniciação a conteúdos de saber cada vez mais complexos.
Nos diálogos platónicos, Sócrates é apresentado sucessivamente como um jovem,
um adulto e um ancião que continua a desejar aprender, de tal fornia que o citarista
Conos, que ele visitava com frequência, era ridicularizado como mestre de velhos;
além disso, está rodeado de discípulos adultos, como o maduro Criton, Na Apolo^
gia, a acüvidade de Sócrates é uma espécie de paideia permanente para todas as
idades e para todos os cidadãos, destinada a um melhoraménte conrinuo dos seus
espíritos. Os acusadores de Sócrates, Meleto na Apologia e Ânito no Ménon,
consideravam que os verdadeiros educadores dos jovens eram os cidadãos atenien­
ses que tinham assento na assembleia, no conselho, nos tribunais Por outro lado, no
Protágoras, o sofista elogiava o aparelho educativo ateniense A uma Atenas,
escola de democracia e de Justiça, Platão opunha a tese radical segundo a qual os
próprios cidadãos atenienses, que estavam longe de ser educadores, deviam ser
educados. A transposição do modelo da dietética médica do corpo para a alma
permitia a Platão conceber a filosofia como uma técnica educativa de prevenção e
terapia indispensável a todas as idades
Na República, as cidades historicamente existentes, e sobretudo Atenas, eram
mesmo apresentadas como corruptoras das naturezas dotadas de tendências filosófi­
cas. Segundo Platão, uma verdadeira cidade deveria ocupar-se da filosofia, contra­
riamente ao que acontecia na realidade. Segundo uma concepção muito corrente
— expressa por Cálícles, no Górgias, e por Adimanto, na República — as dis­
cussões filosóficas eram adequadas a jovens, não a homens adultos, No caso de um
jovem, podiam contribuir para a sua paideia, mas com a condição de serem depois
abandonadas; porém, se se tratava de um cidadão adulto ou de um ancião, pareciam
indignas, porque o levavam a colocar-se à margem da cidade, a cochichar a um
canto com três ou quatro jovens, em vez de o fazerem no seu centro, méson, na
ágora, onde os homens atingem o melhor de si mesmos, ou seja, na condução dos

96
assuntos políticos Efécüvamente, para o Piatão da República, a escola filosófica
também era um lugar onde qualquer um se podia refugiar da má educação minis­
trada pela cidade e pelos sofistas, que só repetiam os valores dominantes na cidade e
que, portanto, perpetuavam a sua doença. Mesmo fisicamente, a maioría das escolas
filosóficas estabeleceu-se longe do centro da cidade.
Invertendo o ponto de vista corrente, Platão excluía da cidade justa uma aprendi­
zagem precoce da parte mais complexa da filosofia, a dialéctica, que podia ser usada
— como acontecia com os sofistas — para contradizer e pôr em causa os valores da
tradição, e previa como idade adequada para o início do estudo da filosofia os trinta
anos, depois de um estudo demorado das disciplinas matemáticas, isso não significa
que a Academia platónica" não admitisse alunos de idade inferior aos trinta anos,
mas a Academia não estava situada numa cidade justa Aristóteles também se
apercebeu de uma disparidade de níveis nas capacidades de aprendizagem, reconhe­
cendo que, se os jovens podiam facilmente tornar-se bons matemáticos, não tinliam
tanta facilidade para adquirir a sageza capaz de os guiar nas vicissitudes da vida ou a
competência em estudos de filosofia da natureza, porque nesses domínios era
preciso ter-se muita experiência dos pormenores, experiência essa que só o tempo
podia proporcionar É interessante que Teofrasío, nos Caracteres, ridicularize a
figura do opsimailiès, aquele que começa tarde a aprender, ou formas de juveni-
lismo nos adultos, que queriam continuar a fazer ginástica, correr e dançar como os
rapazes, e não diga nada acerca do ensino superior e da filosofia, De uma maneira
geral, os filósofos antigos partilharam sempre a convicção expressa por Epicuro,
segundo o qual nenhuma idade é inadequada para se dedicar' à saúde do espírito, ou
seja, para filosofar.
Entre o século iv e o século m a . C., a figura do filósofo tende a surgir como um
novo modelo de homem, por vezes em alternativa com a imagem tradicional do
cidadão, Esta operação fora tornada possível graças à absorção nesse novo modelo e
à transposição pata um outro plano dos dotes que caracterizavam a moral do
hopHta: resistência, autocontrolo, cooperação No Fédon, Sócrates é-nos apresen­
tada na sua serenidade perante a morte, sem renegar a filosofia, precisamente como
o hoplita sabia enfrentá-la combatendo pela pátria A integração da moral militar na
morai filosófica triunfaria com o estoicismo, na figura do sábio insensível aos
sofrimentos e indestrutível perante os golpes do destino. Também a função procria-
tiva podia ser reabsorvida e transposta para outro nível: em Platão, exprimia-se
através das metáforas da alma grávida de saber e levada a parir pelas hábeis
interrogações filosóficas, A escola filosófica convertia-se no lugar de reprodução e
de perpetuação de um novo modelo de homem. Tal facto permitia a Platão introdu­
zir na sua noção de eros, entendido como veículo de ascese filosófica e, portanto,
instrumento essencial para se adquirir o estatuto de verdadeiro homem, a relação
entre adulto e jovem que, no mundo grego, dava uma dimensão pedagógica à
relação homossexual. Mas também lhe permitia atenuar a rigidez de uma distinção
radical de funções entre os sexos. Quer na República quer nas Leis, homens e
mulheres percorriam um itinerário educativo comum, para desempenharem, como
adultos, as mesmas funções: isso era válido não só para a música e a ginástica, mas
também para o treino militar e para a preparação filosófica. Nas Leis, a diferença

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mais saliente entre os dois sexos parecia consistir no facto de as mulheres se
casarem pelo menos dez anos mais cedo do que os homens e ascenderem aos cargos
públicos dez anos mais tarde, por volta dos quarenta anos.
Há documentos que comprovam a existência de mulheres na Academia plató­
nica, na escola de Epicuro e na escola dos Cínicos, mas é difícil dizer se se
dedicavam ao ensino ou se se limitavam a escrever; seja como for, trata-se de casos
raros, Apesar das declarações platónicas, a filosofia permaneceu sempre como uma
actividade masculina, Aristóteles redrou à polémica platónica contra a cidade histó­
rica o seu carácter explosivo: para se ser homem, ou seja, bom cidadão, e capaz de
governar a cidade não era necessário ser-se filósofo, Isso não significa que, para
Aristóteles, a filosofia não representasse o mellior tipo de vida e que para se ter
acesso a ela não fosse necessário ser-se cidadão e, portanto, dtular dos direitos e dos
deveres polítícos da cidade onde se desempenhava a actividade filosófica. A apren­
dizagem e o exercício da filosofia também eram totalmente compatíveis com a
condição de meteco, como era evidente no caso de Aristóteles, oriundo de Estagira,
e de muitos filósofos da época heíenística, que tiníiam vindo de várias cidades do
mundo grego para estudar em Atenas e que depois aí ficaram a ensinar, voltando a
percorrer um itinerário que já no século v a. C. levara Anaxágoras a sair da sua
Clazómenas natal para se fixar em Atenas. Os Estoicos chegavam mesmo a elaborar
teorias acerca da compatibilidade do exercício da filosofia com a condição de
escravo.

Apesar da variedade de pressupostos e de posições das várias correntes, a


filosofia surgia como a via mais adequada para a concretização do objectivo de se
ser homem, Mas ser-se homem já não significava apenas ser-se cidadão. A cidade
não podia acompanhar o impulso de firga da filosofia em relação a ela, nem a
diferença entre ser-se cidadão e ser-se filósofo O ponto culminante dessa fiiga tinha
sido atingido pelos Cínicos, mas através de uma mudança radical da imagem da
infância. A maior parte dos filósofos, com excepção sobretudo dos Cínicos, parti­
lhou a concepção corrente da criança como ser privado de razão e de palavra,
amplamente documentada por Homero aos oradores do século iv a. C„ Essas
características da criança tomavam a sua situação particularmente delicada e era
necessário intervir desde o inicio, se se queria que ela atingisse a condição de
homem. Para Platão, era mesmo necessária uma espécie de ginástica intrauterina
indirecta através dos movimentos executados pela mãe e, posteriorraente, uma vida
passada não só dentro de casa e formas de jogo que imitassem e prefigurassem
actividades e dotes da vida adulta Na sua opinião, só através da paideia se podia vtr
a ser homem e nisso ele inseria a necessidade de uma educação pública — como
acontecia em Esparía, mas sem o desenvolvimento unilateral da ginástica — minis­
trada a todos, que abrangesse a leitura, a escrita, a cítara e a dança.
A discussão acerca da paideia citadina expressa por Aristóteles na Política parte
de pressupostos bastante semelhantes. Contudo, tendo em conta as considerações da
literatura médica, dava uma maior atenção às condições fisiológicas da nahireza
infantil, No interior de um quadro da natureza articulado segundo uma escala
continua de compexidade crescente, que culminava na figura do homem adulto,

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caracterizado pela plena racionalidade e pela estatura erecta, a criança estava, na
opinião de Aiistótelés, perígosáiriénte perto da animalidade, como provava a sua
condição de «anão», com as partes superiores mais desenvolvidas do que as inferio­
res, o que a obrigava a mover-se sobre quatro patas semelhantes às dos animais.
A esta desproporção entre as partes estava também associado o facto de o calor
produzido pelos alimentos ingeridos se dirigir para a parte superior e fazer com que
as crianças pequenas dormissem a maior parte do tempo e, na sua maioria, só
começassem a sonhar por volta dos quatro ou cinco anos. Segundo Aristóteles, nos
primeiros quarenta dias, o recém-nascido, quando está acordado, não chora, não rí
nem tem cócegas, isto é, não possui traços típicos que distinguem o homem adulto
dos outros animais. No primeiro período de vida, a alma dos pequenos futuros
homens não difere da dos animais: a criança, como o animal, não pode ser conside­
rada propriamente feliz e capaz de práxis, que exija o uso do raciocínio e da
capacidade de deliberar No entanto, ao contrário dos animais, a criança é susceptí­
vel de um processo de desenvolvimento e de afastamento dessa condição animal,
quer na relação entre as partes superiores e inferiores, que acabam por se equilibrar,
quer na articulação das faculdades psíquicas. Era neste itinerário natural das poten­
cialidades da vida infantil até à actualização dos dotes humanos no adulto que podia
inserir-se a actividade educativa, destinada a secundar esse desenvolvimento regu­
lar. «Ninguém», concluía Aristóteles na Ética a Nicômaco^ exprimindo um ponto de
vista amplamertte difundido, «optaria por viver durante toda a vida com a razão
[dianôia] dejuma criança.»
No entanto, era precisaraente para uma posição deste gênero que pareciam
convergir os Cínicos mais radicais Um dos seus pressupostos era o abandono da
aplicação metafórica das idades da vida humana à «história» do gênero humano
í que levara Esquilo, no Prometeu, a designar os homens — na sua condição
anterior ao conhecimento dos astros, das estações, da navegação, das letras do
alfabeto, da medicina, da adivinhação e, em geral, de todas as technai, que lhes
tinha sido doado por Prometeu — pelo apelativo já horaérico de «infantes»
(népioi), incapazes de falar. Todavia, a posição cínica configurava-se como uma
deliberada regressão até à infância, paralela a um retomo da cultura para a
natureza. É certo que, mesmo antes dos Cínicos, já se detectavam algumas excep-
ções à imagem negativa da criança Assim, o Hino a Hermes, de Homero, já tinha
traçado o retrato do deus-criança precoce, ladrão e astucioso, capaz de inventar a
citara utilizando a carapaça de uma tartaruga No entanto, também neste caso o
modelo positivo continuava a ser dado pelos dotes mais próprios e habituais na
idade adulta; além disso, tratava-se de um deus.
Os conceitos de inocência, espontaneidade e simplicidade da criança não pare­
ciam estai muito difundidos na mentalidade comum, tal como a ideia de que se
podia voltar a ser bom regressando à infância. Algumas histórias acerca do cínico
Díógenes que, partindo do exemplo das crianças que bebiam na concha das mãos ou
punham lentilhas no pão, fora levado a deitar fora e a prescindir de tigelas e
recipientes, reflecíem uma inversão desse ponto de vista e a recusa da cidade e das
necessidades artificiais por ela geradas, para se voltar apenas às funções essenciais
determinadas pela natureza. Não é por acaso que, para o cinismo, a par da criança,

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eram os animais que serviam de modelo para se ser um verdadeiro homem, uma
figura bastante rara, na opinião de Diógenes. Assim se elaborava uma imagem
positiva de criança boa, capaz de ensinar o adulto, corrompido pela vida das
cidades, a voltar a ser criança.
Esta concepção da criança boa e de uma natureza humana oríginariamenie não
corrompida era também aceite pelos Estóicos, que, no entanto, a opunham à consta­
tação da loucura e da maldade da maior parte dos homens adultos. Situando o início
do processo de corrupção na obra das mães e das amas que, com os banhos quentes,
eliminavam dos corpos das crianças o tonos, a tensão que devia porém caracterizar
toda a vida moral mesmo do adulto, e geravam a ideia falsa da coincidência do bem
com o prazer, os Estóicos, ou pelo menos alguns deles, evitavam responsabilizar
directameníe a cidade pela corrupção. Ou antes, o estorcismo integrava-se cada vez
mais nas instituições da cidade. Embora sob inspiração do rei Antígono Gônatas,
Atenas podia emitir um decreto em honra do fundador da escola estóica, Zenão, por
ter educado bem «os jovens que lhe eram confiados para serem instruídos na virtude
e na moderação» e por os ter guiado «até às metas mais elevadas dando como
exemplo a todos a sua própria vida». Apesar do brevíssimo parêntese de 307,
quando um decreto visara expulsar os filósofos, Atenas e os filósofos das escolas
depressa se reconciliaram. A inserção do ensino da filosofia no período da efebia
era o stnal do reconhecimento, por parte da cidade, da importância da filosofia na
paídem juvenil.
Em certos aspectos, parece assim confirmado o sonho platônico de uma filosofia
como parte integrante da cidade, embora continue a prevalecer a dimensão privada
do seu ensino, a que mesmo os estrangeiros tinham acesso. Todavia, no momento
em que a filosofia foi institucionalmente reservada aos efêbos, esse sonho foi
radicalmente abandonado. Uma boa parte das tendências filosóficas e, em primeiro
lugar 0 próprio Platão, admitiam que, para se ser filósofo era necessário uma longa
aprendizagem, que só poucos eram capazes de fazer até ao fim. Isso não significa
que, para os filósofos, os outros adultos não tivessem necessidade de educação, Nas
Leis, Platão tinha detectado na própria cidade, com as suas instituições, as suas
normas, os seus mitos, narrados primeiro pelas amas e depois constaníemente
relembrados pelos anciãos mitólogos, o instrumento com que toda a cidade, em
todas as classes etárias, se encantava (epodè) a si mesma, interiorizando e aceitando
os valores que regiam a sua existência. Também Aristóteles reconhecia que a
maioria dos homens, cuja vida se baseava nos pathe, não podiam normalmeníe ser
convencidos pela força do lagos e do ensino e considerava que as leis eram o
instrumento da educação permanente do próprio mundo dos adultos, na medida em
que eram dotadas de maior força e suscitavam menor hostilidade do que regras
impostas por indivíduos.
De facto, Atenas podia acolher a filosofia não tanto como modelo supremo de vida
humana, mas como actividade preparatória da formação do tipo de homem que
continuava a encamar-se, embora numa medida cada vez mais simbólica, na figura do
cidadão-soldado. A linlia vencedora tinha sido a que fora expressa pelos Cálicles e
pelos Adimantos e reformulada com especial vigor por Isócrates, no século iv a, C
No Aeropagííico, escrito pouco antes de meados do século, tinha oposto a antiga

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educação preventiva à nova, que mais uma vez tinha o seu centro na agora e nas casas
de jogo repletas de tocadores de flauta,, A educação antiga baseava~se no reconheci­
mento das diferenças sociais e da necessidade de disciplinar as paixões juvenis e de as
orientar para ocupações nobres, encaminhando os mais pobres para o trabalho nos
campos e para o comércio, de forma a subtraí-los ao ócio, causa principal das rpás
acções, e os mais ricos para o hipismo, a ginástica, a cinegética e a fílosofia.,
Isócrates pretendia apropriar-se da linha educativa que ele atribuía à velha
paiáeia, dirigindo-se a uma elite suficientemeníe rica para poder pagar as aulas, que
duravam em média três ou quatro anos. No fim da sua vida, registava que, num
periíodo de cerca de quarenta e cinco anos, essas aulas tinliam sido frequentadas por
uma centena de alunos, muitos dos quais vieram a ser personagens ilustres da vida
política ateniense e não só„ Mas aquilo que ele designava por filosofia não coincidia
com a de Sócrates, Platão e da Academia. Esta, que ele identificava com discussões
acerca do numero dos seres ou coisas semelhantes — um tipo de discussão presente,
por exemplo, no Sofista de Platão e no primeiro livro da Metafísica ou da Física de
Aristóteles —, não era totalmente refutada, mas era-lhe atribuído um valor mera­
mente propedêutico ou auxiliar. Isócrates comparava-a à geometria e à astronomia,
disciplinas inúteis na prática, mas utilizáveis no interior de uma «concepção mus­
cular» das faculdades psíquicas (Finíey) e de um programa gímnico de treino
mental, pelo que essas acU’vidades eram adequadas aos jovens, mas não aos adultos,
Para estes, porém, a filosofia que ele ensinava, muito mais viril do que a que os
paides aprendiam nas escolas, conservava todo o seu valor Segundo Isócrates, uma
ciência capaz de determinar com exactidão como se deve falar e agir era inacessível
para a natureza humana. No entanto, o saber falar, deliberar e agir no interesse da
comunidade, que ele ensinava, consistia na capacidade de se ter uma opinião acerca
do que parece preferível para a maioria, de acordo com as circunstâncias A retórica,
como arte de dizer, depurada dos usos despreconceiíuosos para fins pessoais e
plenamente integrada no horizonte de valores das classes mais abastadas, capaz de
remeter para o passado histórico para a planificação do futuro, de fornecer exem­
plos morais e de justificar decisões políticas, podia tomar a apresentar o bom
cidadão como modelo de homem e apresentar-se a si própria como via privilegiada
para se ser homem» Os filósofos, por sua vez, embora não renunciassem ao primado
da vida filosófica, destinada a poucos, ao aceitarem a integração das suas activida-
des no tecido da cidade de Atenas acabavam por aliar-se de facto ã solução de
Isócrates e por atenuar a incompatibilidade entre retórica e filosofia que por vezes se
radicalizara nas páginas platónicas e quejá Aristóteles tinha atenuado Em 155 a» C.,
quando os Atenienses enviaram uma embaixada a Roma para que Uies fosse per­
doada uma multa, quem defendeu a sua causa perante o senado foram os represen­
tantes de três escolas filosóficas, o académico Caméades, o peripatético Critolau e o
esíóico Diógenes. Os melhores oradores eram filósofos O antagonismo entre filo­
sofia e retórica deixara de existir; solidariamente, ambas podiam intervir no ensino e
na formação dos jovens das classes superiores da sociedade grega e romana.

101
CAPITULO IV

O CIDADAO
por Luciano Canfora
Introdução

No século Ví a. C., em muitas cidades gregas, as aiisíocracias, apoiadas pejas


armas espartanas, expulsaram os chamados tiranos e assumiram o controlo da
política citadina
Tanto quanto sabemos, a maior paite das tiranias tinha uma base popular: o
tirano fora, de início, um demagogo Apesar disso, na tradição literário-política que
chegou até aos nossos dias, a imagem da tirania assumiu definitivamente um valor
negativo e acabou mesmo por se confundir com a noção de domínio oligárquico
(como veremos melhor mais adiante).
Como é sabido, o epicentro e o protótipo das aristocracias gregas foi Esparta,
onde a noção de elite (os Espartanos) coincide com a própria noção de homens
livres, e portanto de cidadãos de pleno direito O domínio dessa aristocracia per­
feita, dedicada em primeiro lugar à virtude da guerra, apoÍa~se num amplo pedestal
de classes dependentes (periecos, hílotas). Portanto, em Esparta, a polaridade ho­
mens livres/escravos coincide com a polaridade eüte/massas Entre os dois «mun­
dos» (os Espartanos e os outros) hâ uma constante tensão de classe e de raça, que é
sentida e vivida como uma verdadeira guerra: todos os anos, simbolicamente, mas
não demasiado, os éforos espartanos «declaram guerra» aos hilotas, e jovens espar­
tanos fazem o seu tirocínio como guerreiros dedicando-se ao desporto da caça
nocturna aos hilotas, cuja morte tem mesmo — para além do desejado efeito
terrorista — um evidente significado ritual e sacrificial O cidadão, o espartano, o
macho, deve aprender sobretudo a matar.
A. H , M Jones afirmou que os aristocratas atenienses, embora revelassem uma
constante admiração pelo sistema espartano (basta recordar o nome de Crítias, mas
também o de Platão), dificilmente se adaptariam a uma comunidade tão fechada e
espiritualmente tão estéril. O primeiro texto em prosa ática, a Constituição dos
Atenienses, que chegou até nós entre os opúsculos de Xenofonte (mas que não foi
decerto escrito por ele), inicia, por assim dizer, esta série de tributos ao ideal
espartano O autor revela-se saudoso, por exemplo, do duro tratamento que é
permitido infligir aos escravos em Esparta, tal como ambiciona um regime político.

105
a eimomia («o bom governo»), em que o povo ignorante e incompetente e, por
conseguinte, não legitimado para deter o poder seja «reduzido à escravidão»
Todavia, em Atenas, esse idealismo, tão do gosto de uma aristocracia nada
resignada e desarmada, nunca se concretizou. Ou, mellior, concretizou-se, e desatro-
samente, nos dois brevíssimos peiíodos de 4II e de 404-403, quando as derrotas
militares sofridas por Atenas no longo conflito com Esparta conseguiram tomar actual
a possibilidade de instaurar também em Atenas o «modelo Esparta», Qual o motivo
desse fracasso, se é que se pode falar de fracasso? O autor da Consíiíitiçao dos
Atenienses, embora ponha em destaque o principal defeito da democracia (o acesso
dos incompetentes aos cargos públicos), reconhece que, em Atenas, o povo entrega
aos «senhores» os cargos militares mais delicados. Na realidade, a aristocracia ate­
niense adaptou-se, como veremos, a um sistema político aberto — a democracia
parlamentar — que colocou em bases novas o problema capital da cidadania.
Portanto, essa aristocracia tinha conservado, embora num clima político mais
movimentado do que em Esparta, uma legitimação para dirigir o Estado, baseada na
posse de deteraiinadas competências (não só bélicas) e na duradoura predominância
dos seus valores, sancionada também pela linguagem política; o termo sophrosyne
significa não só «sageza» mas também «governo oíigárquico» (Tucídides, 8,64, 5)
Na Europa do século xvm, até à Revolução Francesa, mesmo depois, era normal
comparar-se Roma a Esparta, o que não era totaimente infundado. Já Políbio o tinha
feito em termos de comparação constitucional, e detectara no sistema político
romano um aperfeiçoado equilíbrio entre os poderes Aliás, não escondia que o eixo
desse equilíbrio era uma aristocracia, que coincidia com o próprio órgão (o Senado)
de exercício do poder.
Por conseguinte, há motivos para que a aristocracia sêja a protagonista da
experiência política de que vamos falar nas páginas que se seguem,, Se quiséssemos
resumir numa expressão a característica de um predomínio tão duradouro, podería­
mos falar na sua capacidade de se renovar e de cooptar, E, neste domínio, foi
precisamente a aristocracia modelo, a aristocracia espartana, que demonstrou, com
factos, a menor clarividência.

Os Gregos e os outros

«As cidades não eram grandes, e o povo habitava no campo, totaimente absor­
vido nos trabalhos agrícolas»; é este o quadro económico em que Aristóteles situa a
formação das tiranias, no quinto livro da P o/i/ íczi (1305 a 18). «Dada a grandeza das
cidades, nem todos os cidadãos se conheciam uns aos outros»; é um dos factores
materiais de que Tucídides se serve para explicar o clima de suspeição e a dificul­
dade de relações que caracterizavam Atenas nos dias que antecederam o golpe de
Estado oíigárquico de 411 a C. (8, 66, ,3).. A cidade arcaica é pequena; isso toma a
democracia directa, ou seja, toma obrigatória a participação de todos os «cidadãos»
nas decisões, facto que não se pode negar, sobretudo quando uma parte sempre
crescente de «cidadãos» (ou candidatos a cidadãos) converge para a ágora e deixa
de permanecer agarrada aos campos, totaimente absorvida nos trabalhos agrícolas.

106
Enquanto a situação se mantém como Aristóteles a descreve («o povo habitava no
campo, totaimente absorvido nos trabalhos agrícolas»), a luta pelo poder é apanágio
de alguns «senhores», que têm o privilégio — um privilégio que podemos observar
nos objectos funerários dos túmulos antigos (nos antigos túmulos dos demos de
Afidna, Tórico, Elêusis, os nobres são sepultados com as suas armas, o que não
acontece com os populares) — de usar armas, assim exercendo a sua hegemonia
A mÔTjpotpopía, costume bárbaro de passear com armas, «é um sinal de nobreza»,
escreveu Gustave Glotz, «que acompanha o aristocrata até no túmulo»
Nesta fase arcaica, as formas de governo determinadas pela alternância dos
senhores no poder — aristocracia, tirania, «interregno» de um «mediador» {aisym-
neíes, diallaktès) — , embora tenham denominações diferentes, devidas muitas
vezes ao ponto de vista de quem escreve, são, na realidade, muito pouco diferençá­
veis. Basta pensar nos factos ocorridos na Lesbos de Alceu, e em figuras como a de
Pítaco, diallaktès na furiosa contenda entre clãs aristocráticos mas que Alceu
alcunha de «tirano», embora tivesse depois surgido no empíreo dos «sete sábios» a
par do seu homólogo ateniense Sólon, Aqueles que Alceu, e outros como ele,
alcunhavam de «tiranos» eram — segundo Aristóteles — os que assumiam a
«condução do povo» (prostatai toii dentou). Gozavam — como Aristóteles escreve
no excerto citado — da confiança do povo, e o «penhoo> (pistis) dessa confiança era
«o ódio aos ricos», ódio que — como explica Aristóteles — se concretizava, por
exemplo, no massacre do gado pertencente aos ricos, surpreendido junto do rio pelo
«tirano» Teagenes de Mégara, homem da confiança do povo, como, aliás, Fisístrato,
que Aristóteles menciona no mesmo contexto.
Todavia, a dada altura, o paralizante trabalho nos campos (\x<sxoXia) deixou de
existir: gente que outrora não conhecia justiça nem lei — lamenta Teógnis (por
/ volta de 540 a. C.) — e usava peles de cabra em volta dos flancos, agora ajlui à
cidade e conta mais do que os próprios nobres, reduzidos à condição de miseráveis,
Outrora — nota, com pena, 7'eógnis — essa gentalha vivia fora da cidade, ou
melhor, segundo a depreciativa expressão do autor, «pastava» fora da cidade.. Agora
entj-aram, e o rosto da cidade mudou (1, 53"56), É evidente que é nessa altura que
surge 0 estímulo para a geslão directa da comunidade, a democracia directa, com o
crescente gravitar de populares dentro do círculo urbano: a atenuação da ascholia e
o impulso democrático andam a par. O fenómeno fòi possível devido ao facto de a
comunidade ser pequena, e a alteinatíva ao poder pessoal estar, por assim dizer, ao
alcance da mão. Não se deve portanto pensar que os Gregos possuíam uma tendên­
cia inata para a política, embora os próprios Gregos tenham provavelmente reivindi­
cado tal mérito perante o grande universo que eles designavam por «bárbaro»
O fio condutor da lenta constituição da «tendência para a isonomia» no mundo
grego, entre o século vm e o século v a. C., foi a afirmação de «presença política»
(C Meier) por parte de todos os indivíduos arinados e, por isso mesmo, «cidadãos»
A idealização deste mecanismo gerou o lugar-comum dos Gregas como «inven­
tores» da política, No entanto, um grego da Ásia, como Heródoto, que tinha uma
notável experiência do mundo persa, afirmou (mas — como observa — «ninguém
acreditou») que, na Pérsia, por ocasião da morte de Cambises (isto é, numa época
em que, em Atenas, ainda governavam os filhos de Fisístrato), foi analisada a

107
hipótese democrática «de pôr a política em comum» (èç jiéoov .rataS eív ai rix
jiptlVIiata) (3, 80). Heródoto recorda também que, em 492, quando Dario mar­
chava contra a Grécia, o seu parente e colaborador na empresa, Mardónio, ao
costear a Jónia em direcção ao Helesponto, «derrubava os tiranos da Jónia e instau­
rava democracias nas cidades» (6,43) Heródoto receia que os Gregos também não
acreditem nesta notícia, já que «não acreditaram que [na crise que se seguiu à morte
de Cambises] Otanes tivesse proposto um regime democrático para os Persas».
Não se vê motivo para a incredulidade dos Gregos em relação ao que é narrada
por Heródoto A preciosa série de notícias fornecidas por ele aproxima muito os
Gregos e os Persas, dois mundos separados por um abismo criado pela imagem
ideológica que os Gregos deram de si mesmos, mas que, na prática concreta,
estavam bastante mais próximos e interligados, inclusive na experiência política.
Uma prova disso é a naturalidade com que políticos como Temístocles, Alcibíades e
Lisandro entraram em contacto com o mundo persa, e, antes deles, os Alcmeónidas,
apesar de Heródoto se esforçar por colocar um patriótico véu sobre o caso (5, 71-73;
6, ÍÍ5 e 121-24). Por isso, não é arriscado considerar- que a linguagem adoptada por
Otanes (hipótese democrática), Megabizo (hipótese olígárquica) e Dario (hipótese
mpnárquica, e vencedora) no contestado debate constitucional de Heródoto (3, 80-
-82) era também conhecida por notáveis persas cultos, e não exclusiva da experiên­
cia política grega.

O cidadão-guerreiro

Portanto, a democracia antiga é o regime em que todos os cidadãos contam, na


medida em que têm acesso à assembleia deliberativa, O problema é: quem é
cidadão, na cidade antiga? Se considerarmos o exemplo mais conhecido, e certa-
mente o mais característico, ou seja, Atenas, constatamos que são relativamente
poucos os que usufruem do bem inestimável da cidadania: os homens adultos, desde
que filhos de pai e mãe atenienses, livres de nascença. Esta é a maior limitação, se
pensarmos que, mesmo segundo os cálculos mais prudentes, a relação livres-
-escravos era de um para quatro. Há ainda a considerar o não descurável numero dos
nascidos de um só pai «puro sangue» numa cidade aberta ao comércio e aos
constantes contactos com o mundo exterior. Convém recordar, por fim, que, pelo
menos até à época de Sóíon (século v! a. C ), a plenitude dos direitos políticos
— que é 0 próprio conteúdo da cidadania — não é concedida aos que nada pos­
suem; e ainda se discute se Sólon, como Aristóteles afirma na Conatituíção de
Atenas, concedeu de facto o direito de acesso à assembleia aos que nada possuem
Numa palavra, na época clássica, a visão da cidadania resume-se à identidade
cidadão-guerreiro. E cidadão, faz parte de pleno direito da comunidade através da
participação nas assembleias deliberativas, quem é capaz de exercer a principal
função dos homens adultos livres, isto é, a guerra. O trabalho era feito sobretudo
pelos escravos e, em certa medida, pelas mulheres
Como, durante multo tempo, ser guerreiro implicou também dispor dos meios
para prover ao armamento pessoal, a noção de cidadão-guerreiro identificou-se com

108
a de rico, detentor de um certo rendimento (na maior parte dos casos, fundiário) que
desse ao potencial guerreiro a possibilidade de se ;irmar a expensas próprias Até
esse momento, os que nada possuíam permaneceram numa condição de minoridade
política e civil bastante próxima da condição servil. Cerca de um século depois de
Sólon, com a viragem de Atenas para o mar e o nascimento de uma frota de guerra
estável na época da vitória sobre os Persas, foi necessária uma mão-de-obra bélica
maciça: os marinheiros, a quem não era pedido que «se armassem a si mesmos» Foi
essa a viragem, o facto polítíco-miHtar que provocou — nas democracias maríti­
mas — o alargamento da cidadania aos que nada possuíam (os «letes»), que assim
ascendem finaimente à condição de cidadãos-guerreiros, e, no caso de Atenas,
como marinheiros da mais poderosa frota do mundo grego Não é por acaso que, no
pensamento político de um acérrimo crítico da democracia como é o autor anónimo
da Co/istiíiiição dos Atenienses (que será talvez de atribuir a Crítias), os modelos
políticos-estatais se dividem em duas categorias (2, 1-6): os que fazem a guerra no
mar (Atenas e os seus aliados homólogos) e os que fazem a guerra em terra (Espana
e os outros Estados afins).
Portanto, o que muda não é a natureza do sistema político, mas a categoria dos
seus beneficiários Eis o motivo por que, quando os Atenienses, ou melhor, alguns
doutrinários atenienses interessados no problema das formas políticas, tentavam
determinar qual a diferença entre o seu sistema e o espartano, acabavam por apontar
elementos não substanciais, como, por exemplo, a reiterada oposição de Tucídides
entre os Espartanos «lentos» e os Atenienses «velozes» (1, 70, 2-3; 8, 96, 5) Por
conseguinte, pode acontecer que, ao percorrer a literatura política ateniense, se
depare com elogios da «democracia» espartana, e mesmo ísócrates, no Aeropagí-
tico, chega a proclamar a profunda identidade existente entre o ordenamento espar­
tano e o ateniense (61).
Portanto, em Atenas, o alargamento da cidadania — que se costuma designar por
«democracia» — está intimamente ligado ao nascimento do império marítimo,
império que os próprios marinlieiros democráticos conceberam, em geral, como um
universo de súbditos a oprimir como escravos. O alargamento do sistema democrá­
tico às comunidades aliadas era considerado como um vínculo de solidariedade com
os aliados-súbditos, o que significa que, nas comunidades aliadas, e apesar' da
exploração imperial por parte de Atenas, havia sempre uma parte social que achava
mais conveniente a aliança com Atenas, que devia ser consolidada pela adopção do
sistema político do Estado guia. Em suma, nas cidades súbditas de Atenas, também
havia uma base social da democracia.
Por outro lado, no interior do Estado guia, o alargamento da cidadania aos que
nada possuíam gerou uma dinâmica importante no vértice do sistema: os grupos
dirigentes, aqueles que, pela sua elevada posição social são também os detentores
da educação política, que possuem a arte da palavra e que, por esse motivo,
governam a cidade, dividem-se. Uma parte, decerto a mais relevante, aceita dirigir
um sistema em que os possidentes são parte maioritária Desta consistente parte dos
«senhores» (grandes famílias, ricos proprietários e ricos cavaleiros, etc ) que acei­
tam o sistema é que sai a «classe política» que dirige Atenas desde Clístenes até
Ciéon: no seu interior desenvolve-se uma dialéctica política muitas vezes baseada

109
no recontro pessoal, de prestigio; todos pensam encarnar os interesses gerais, como
o comprova a acção política de Alcibiades, e todos consideram que a prevalência na
cena política é também o veiculo para a melhor condução da comunidade.. Há,
porém, uma minoria de «senliores» que não aceita o sistema: organizados em
formações mais ou menos secretas (as chamadas etené), constituíam uma ameaça
potencial constante para o sistema, cujas falhas não deixam de espiar, sobretudo nos
momentos de apuro militar. São os ch^adO;S,f<oligarcas». Não proclamam as suas
aspirações ao governo de uma camariÜia restrita (não se autodefinem, naturalmente,
como «oligarcas», falam de «bom governo», oúxppoaóvq, etc ): propõem a drásti­
ca redução da «cidadania», uma redução que retire o benefício da cidadania aos não
possidentes e reconduza portanto a comunidade ao estado em que só os «cidadãos»
de pleno direito sejam «capazes de se armai' a expensas próprias». O próprio termo
— observa Aristóteles — gera confusão: com efeito, ^ o se trata do facto de serem
«muitos» ou «poucos» os que usufruem da «cidadania», mas de serem os possiden-
t e ^ ú ós não possidentes; b seu número respectivo é um «meirb acidente» (Política,
111% 35), e portanto «mesmo nas oligarquias, quem está no poder é a maioria»
(1290a 31)

«Partindo justamente desta página aristotélica, Arthur Rosenberg formula uma ana­
logia moderna muito elucidativa: “A aplicação das definições aristotélicas ao tempo
presente levaria a resultados muito singulares, mas também muito realistas: a Rússia
soviética de 1917 e 1918 seria uma democracia; a actual república francesa seria uma
oligarquia Nenhuma destas designações soaria como elogio ou como censura, seriam
apenas a constatação de um dado de facto "
Baseando-se em cálculos muito polêmicos e que, embora discutíveis, não deixam de
ser elucidativos, Rosenberg sublinhava o facto de — precisamente no caso de Atenas —
a predominância numérica dos que nada possuem em relação ao resto do corpo social ser
um dado não adquirido: "a relação numérica entre os não possidentes e os possidentes
era apenas de 4 para 3 Por isso, teria bastado que os possidentes atraíssem a si com um
artifício qualquer uma parte, mesmo pequena, da classe pobre, para conquistarem a
maioria na assembléia popular”. Rosenberg destacava também o papel de uma classe
intermédia, que ele designava por ''pequena ciasse média” (der kleine Mitíehiand), na
dinâmica político-social ateniense: o apoio desta classe alarga muito a base de classe da
democracia, mas também pode íáltar, como se viu em momentos de crise. É uma classe
constituída essencialmente por pequenos proprietários (simbolizados provavelmente
pelo Diceópolis dos Acameses). Rosenberg obsei-vava, justifícadamente, que, para essa
classe, a democracia "significou o acesso sem restiições ãs conquistas culturais, e a
possibilidade de se libertar, ocupando de tempos a tempos um cargo público, da canseira
diária do trabalho”
Quando, com a derrota militar de Atenas no recontro com a monarquia macedónia
(guerra lamíaca, em finais do século tv), os possidentes, apoiados pelas armas dos
vencedores, excluíram finalmente da cidadania os 12 000 não possidentes (Díodoro
Sícuío, 18,18,5 e Plutarco, Fócion, 28, 7), isto é, aqueles que se situassem abaixo de um
censo de 2000 dracmas, essa provisória derrota do sistema democrático consumar-se-á
com 0 isolamento dos não possidentes: nessa altura, a "classe média” está com Fócion,
Démades e com os outros “reformadores” filomacedónios »

iiO
o facío de os oligarcas atenienses, mal conquistaram o poder, terem reduzido de
imediato para 5000 o número dos cidadãos e de, no plano propagandístico, terem
tentado, num primeiro momento, acalmar a frota afirmando que, na prática, nunca
um tão elevado número de pessoas participava efectivamente nas assembléias
deliberativas (Tucídides, 8, 72, 1), e, paralelamente, o facto de os democratas, mal
reconquistaram o poder, terem privado da cidadania todos os defensores da expe­
riência oligárquica reduzindo-os à situação de cidadãos «diminuídos» (àtimoi),
revelam bem a importância da cidadania
Esse fenômeno assume tais proporções que um grande autor de teatro, Aris-
tófanes, aproveita essa espécie de zona franca do discurso político que é a
parábase, para fazer um apelo à cidade no sentido de os àtimoi, que caíram «no
laço de Frinico» (um dos principais inspiradores do puisch de 411), sejam rein­
tegrados de pleno direito na cidadania {Rãs, 686-705). E, em 404, quando os
oligarcas reconquistaram o poder sob a égide espartana, não só instauraram um
corpo cívico ainda mais restrito (3000 cidadãos de pleno direito) como favorece­
ram o êxodo dos democratas, dos populares, de todos aqueles que, por motivos
políticos ou de classe, estavam ligados ao sistema democrático, mesmo correndo
o risco de «despovoar» a Ática, como afirmava Sócrates numa dramática con­
versa com o próprio Cri tias e com Cáricles, referida por Xenofonte nos Memorá­
veis (1, 2, 32-38),
Dispostos a pegai em armas uns contra os outros na disputa desse bem precioso
que era a cidadania, os cidadãos «puro sangue» mostram-se, porém, de acordo em
excluir todas as hipóteses de alargamento da cidadania paia o exterior, paia fora da
comunidade. Só em momentos de gravíssimo perigo e de autêntico desespero é que
se aperceberam das potencialidades inerentes ao alargamento radical da cidadania..
Após a perda da última frota no final do extenuante conflito com Esparta (Egospóta-
mos, Verão de 405), os Atenienses concederam — num gesto sem precedentes — a
cidadania ática a Samos, o aliado mais fiel, isto é, fizeram uma tardia e desesperada
tentativa para se «duplicarem» como comunidade. A efêmera medida (Tod, Gí-íl,
96) foi naturalmente subvertida pela rendição de Atenas (Abril de 404) e pela
expulsão, uns meses depois, dos democratas de Samos por parte do vencedor,
Lisandro (Xenofonte, Helénicas, 2, 3, 6-7), mas foi de novo posta em prática pela
democracia restaurada, no arcontado de Euclides (403-402), em honra dos demo­
cratas exilados de Samos (Tod, GHI, 97),. Setenta anos mais tarde, quando Filipe da
Macedónia derrotou, em Queroneia, a coligação chefiada por Atenas (338 a, C.), e
pareceu por momentos que o vencedor, famoso por ser capaz de arrasar totaimente
as cidades vencidas, se dirigia para uma Atenas praticamente indefesa, um político
democrático tão «irregular» na militância como original na sua vida privada, Hipé-
rides, propôs a libertação de cento e cinquenta mil escravos agrícolas e mineiros
(frags, 27-29 Balb-íensen). Todavia, acabou por ser julgado pela sua «ilegal»
iniciativa, acusado por um agitador ferrenho, Aiistogíton que, em nome da demo­
cracia, se insurgia contra o alargamento indevido da cidadania. E, nessa ocasião, o
argumento de Arisíogííon foi o lugar-comum da oratória democrática ateniense:
«enquanto há paz, os inimigos da democracia respeitam as leis e sentem-se, por
assim dizer, obrigados a não as violar; porém, quando há guerra, encontram fadl-

111
mente ioda a espécie de pretextos para aterrorizar os cidadãos, afirmando que não é
possível salvar a cidade» se não se aprovarem «propostas ilegais» (Jander, Oràio-
u m Frapnenta, 32)-
Em finais do século v, mais precisamente no último trinténio, iniciara-se no
mundo grego uma fase de conflitos extremameníe sangrenta: uma guerra que
envolvera quase todas as cidades deixando pouco espaço aos neutrais — uma guerra
não só entre Esparta e Atenas mas entre dois partidos que gravitavam nas respecti­
vas órbitas —, e, como sua consequência imediata e obrigatória, uma guerra civil. E
uma época era que a guerra externa e a guerra civil se ateiam alternadamente, em
que o regime vigente em cada cidade muda de acordo com a situação num campo ou
no outro; e, a cada mudança de regime, massacres de adversários e exílios em massa
assinalam a conquista do poder por cada uma das facções. A guerra civil penetrara
mesmo no interior de um dos dois Esíados-guia, Atenas, que, em 411 (sete anos
antes da derrota definitiva), viu os oligarcas conquistar o poder e perdê-lo alguns
meses depois, perturbados com a reacção político-democrática dos marinheiros que,
em Samos, se tinham constituído em anti-Estado da cidade-mãe que caíra nas mãos
dos «inimigos do povo». Em 404, a longa guerra/guerra civil teve um epílogo que
Pfirecia definitivo: a derrota militar de Atenas c a sua renúncia totaí ao império e á
frota, o seu humilhante ingresso, sob um ainda mais feroz governo oligárquico (os
«Trinta»), no número dos aliados de Esparta. Mas o dado mais significativo de toda
a história dessa época é que, passado menos de um ano. o regime dos Trinta ruía e os
próprios Espartanos viram-se obrigados a incentivar a restauração democrática na
cidade adversária derrotada. A Aíica tinha recusado a «laconização»: a opção feita a
partir de Clístenes converíera-se portanto numa estrutura profunda da realidade
política ateniense; o sistema baseado na garantia de participação dos não possiden-
tes na cidadania revelara-se mais forte e estável do que o próprio laço (originário)
entre democracia e poder mariümo.,

A «vaca»

Um dos fãcíores fundamentais que cimentam o pacto entre não possidentes e


senhores é a «liturgia», o contributo mais ou menos espontâneo, e muitas vezes
avultado, que é exigido aos ricos para o funcionamento da comunidade, desde os
dinheiros necessários para armar os navios até aos fundos para as festas e para o
teatro do Estado. No regime «popular» antigo, a expropriação só existia como
castigo para determinados delitos, pelo que permitiu que os ricos continuassem a ser
ricos, mas colocou sobre os seus ombros uma enorme carga social.

«O capitalista», escreveu com eficaz terminologia modernista Arthur Roísenberg,


«era como uma vaca, que a comunidade ordenhava cuidadosamente, alé ao fim Por isso,
ao mesmo tempo, tinham de zelar para que essa vaca recebesse uma quantidade substan­
ciai de forragem, O proletário ateniense não se opunha a que um fabricante, um
comerciante ou um armador ganhasse no exterior o máximo de dinheiro possível, porque
mais poderia depois pagar ao Estado »

112
Daí, como Rosenberg concluía jusüficadamenie, o interesse — do «proletário» e
do «capitalista» atenienses — na exploração dos aliados e, mais em geral, numa
política externa imperialista.,

«As vozes que se erguiam conü'a uma política de rapina calaram-se, e os não
possidentes atenienses, no período em que detiveram o poder, apoiaram sem reservas os
planos imperialistas dos empreendedores É significativo que Atenas, precisamente após
a subida ao poder do proletariado, se tenha lançado em duas autênticas guerras de rapina:
uma contra os Persas pela conquista do Egipto —-que revela bem os planos ambiciosos
de Atenas, nessa época — e a outra na própria Grécia, para aniquilar dois concorrentes
comerciais: as repúblicas de Egina e de Corinto,»

Rosenberg admite aqui a tese, que não deve ser menosprezada, do recontro
comercial entre Atenas e Corinto, as duas maiores potências marítimas, como causa
fundamental da Guena do Peloponeso,
Para conquistar prestígio e apoio popular, os senhores que comandam o sistema
gastam o seu dinheiro não só em liturgias nias também em aclos de magnanimidade
que revertem dírectamente para o demo: foi o que fez Címon — o antagonista de
Péricles — , ao decidir abrir as suas propriedades ao publico,

«Mandou destruir», escreve Plutarco, «as paliçadas dos seus campos, para que os
estrangeiros e os cidadãos que o desejassem colhessem livremente os frutos da época,
Todos os dias mandava preparar em sua casa uma refeição simples mas suficiente para
muitos comemuis e nessa refeição podiam participar iodos os pobres que o desejassem,
os quais, rtiaíaní/o a fome sem irahalho. podiam dedicar o seu (empo à acíhndade
política » (CÍ»io/i, 10)

Aristóteles (fr .36,3 Rose) esclarece que Címon não tratava assim todos os
atenienses, indistintamente, mas apenas os do seu demo. Para a resolução do
problema da comida contribuíam também as festas, ocasiões em que os pobres
tinham acesso fácil ao consumo, não habitual e caro, de carne. O denominado
«velho oligarca», autor pu íativo da Consíiíuição dos Ateniemes, não perdoa o
parasitismo do povo e denuncia-o explicitamente no seu opúsculo: «a cidade sacrifi­
ca muitas vítimas a expensas públicas, mas é o povo quem come e reparte as
vítimas» (2, 9). Címon preocupava-se também com as roupas; «quando saía»,
afirma Plutarco, «ia sempre acompanhado por dois jovens amigos muito bem
vestidos; se a comitiva encontrava algum velho andrajoso, davam-llie o seu manto,
e esse gesto parecia digno de respeito».
Péricles não podia fazer frente a tanta magnanimidade. A sua linhagem não era
menos importante do que a de Címon, que era filho de MHcíades, o vencedor de
Maratona, e de Egesipeles, princesa trácia. Por parte da mãe (Agaristes), Péricles
descendia de Clístenes, que — com a ajuda de Esparta — tinha expulso os Pisístra-
tos de Atenas e instituira a geométrica democracia ateniense baseada nas dez tribos
territoriais que tinham destronado o antigo sistema das tribos gentflicas. Dizia-se
que o seu clã fanúliai' tinha estabelecido contactos com os Persas na época da
invasão de Dario, a invasão que Mileíades, o pai de Címon, tinlia travado Era uma

113
linhagem ilustre mas polêmica, entre outras coisas pelo modo sacrílego como tinha
liquidado, numa época que Heródoto e Thcídides apontavam de modos diferentes, a
tentativa tirânica do grande desportista Cílon. Uma linhagem arruinada pelo exílio
prolongado, humilhada pela derrota, obrigada a corromper o oráculo délfico para
conseguir a ajuda espartana, mas, a seu tempo, na altura da morte de Pisístrato,
pronta a pactuar com os filhos do tirano, de íaJ forma que o próprio Clistenes tinha
sido arconte-rei, em 525-524
Péricles, naturalmente, conhecia bem as etapas e os truques de uma carreira
Quando Esquilo pôs em cena os Persas (472 a. C ), a tragédia que exaltava ■.n
Temístocles (que ainda não fora exilado), foi ele quem se responsabilizou pelas
despesas da instrução do coro (ÍG, lí/Iff, 2318, col. 4, 4) Pouco depois, Temisto-
cles desapareceu de cena e Péricles foi~se aproximando cada vez mais de Efialtes, o
defensor da concessão da cidadania plena aos pobres. De início quis competir com
Címon em magnanimidade. «Mas Címon», observa Plutarco, «superava-o no mon­
tante dos seus bens, graças aos quais podia conquistar as simpatias dos pobres»
(Péricles, 9). Então Péricles — precisa IPlutaico — optou pela via da «demagogia»,
passou a decretar subvenções em dinheiro extraídas dos cofres do Estado. A ima­
gem corrente é que Péricles «corrompeu» as massas introduzindo os pagamentos
es^tatais para a participação nos espectáculos e para a participação nos júris do
tribunal, além de outras remunerações públicas e de festas, A adopção sistemática
destas formas de salário estatal moldou a democracia ateniense no período do seu
maior florescimento, consolidando a imagem de um demo dedicado à política, à
actividade judicial e à prática social do teatro e da festa, mas isento, em larga
medida, do trabalho material: é também o período de maior afiuxo de escravos, a
época em que — segundo afirmava Lísias — até o mais miserável dos Atenienses
possuía pelo menos um escravo (5, 5)..
Mas os grandes instrumentos da «demagogia» de Péricles foram o uso descara­
damente pessoa! do tesouro federal e a não menos descarada política de obras
públicas. Os ataques dos adversários incidiam precisamente neste ponto; «gritavam
que a transferência do tesouro comum de Delos para Atenas era um abuso, que
provocava maledicências e lesava o bom nome dos Atenienses»; Péricles replicava
«explicando aos cidadãos que não tinham de dar contas aos aliados da utilização do
tesouro federal, na medida em que combatiam por eles e mantinliam afastados os
bárbaros»; afirmava também que o dinheiro, uma vez pago, é de quem o recebe, e
considerava mais do que legítima a utilização desse dinheiro em obras públicas
— uma vez satisfeitas as necessidades da defesa comum — : por que não se devia
investir o dinheiro em obras que «uma vez terminadas, se traduzem em glória
eterna, e enquanto se executam proporcionam um bem-estar concreto aos dda-
dõosl»- E explicava que as obras públicas podiam constituir o motor e o epicentro
de todo 0 sistema: «geram actividades de todos os gêneros e as mais variadas
necessidades: necessidades que, despertando todas as artes e fazendo mover todas
as mãos, dão de comer, graças aos salários, a quase toda a cidade: o que significa»,
concluía ele, «que a cidade, ao mesmo tempo que se adorna, alimenta-se» (Plutarco,
Péricles, 12), Segundo Plutarco, Péricles desejava que todos participassem no
bem-estar gerado pelo império: se os jovens em idade militar se enriqueciam nas

1X4
campanhas militares, a multidão dos trabalhadores não enquadrados no exército não
devia ser excluída dos lucros, nem participar neles sem trabalhar. Por Isso, apresen­
tou à assembleia projectos grandiosos, cuja execução «exigia muito tempo e muitas
categorias de artesãos»; assim, «os cidadãos que ficavam em casa usufruíam tanto
das vantagens públicas como a marinhagem, as guarnições e os exércitos em
campanha», E Plutarco acrescenta ainda uma descrição impressionante dos múlti­
plos tipos de mão-de-obra empenhada nessa onda «rooseveltiana» de obras públi­
cas; carpinteiros, escultores, ferreiros, canteiros, tintureiros, moldadores de ouro e
de marfim, pintores, tapeceiros, entalhadores, sem falar nas categorias de trabalha­
dores encarregados da importação e do transporte das matérias-primas, desde os
armadores aos marinheiros, pilotos, cordoeiros, curtidores, mineiros, e tc ; «cada
arte assumiu o papel de um estratego e, dependendo ordenadamente de cada uma,
havia a multidão dos serventes» O projecto original do Paríénon, concebido por
Calícraíes, o aiquitecto ligado a Címon (que já tinha mandado construir o muro
meridional da acrópole com os despojos da batalha do Eurimedonte), foÍ abando­
nado, Calícrates foi despedido e o cargo de arquitecío-chefe foi entregue a Ictino,
que — segundo Vitrúvio — chegou mesmo a escrever um tratado acerca da
construção do Parténon (De architectura, 7, pr., 16),.
Não faltaram os gracejos dos cómicos (Cratino, fr, 300 Kock), o sarcasmo dos
panfletistas, os ataques dos políticos,. Os oradores «próximos de Tucídides de Mele-
sia», escreve Plutarco, «invectivavam Péricles na assembleia, afirmando que ele
esbanjava o diplieiro público e dissipava as receitas», A reacção de Péricles é emble­
mática.. Dírigindo-se a todos, em plena assembleia, perguntou se de verdade tínha
gasto muito, 7'odos responderam em coro: «Muitíssimo!», e Péricles replicou: «Pois
bem, ponham tudo na minha conta, mas as inscrições votivas [onde se indicava o
nome do dedicante] fá-las-ei em meu nome» (Plutarco, Péricles, 14). A manobra teve
o efeito desejado: Péricles foÍ autorizado a tirar todo o dinheiro que desejasse dos
cofres públicos, porque — como observa Plutarco — a sua generosidade foi admirada
ou talvez porque o povo não tolerava não partilhar com ele a glória dessas obras.

A concepção pessoal do Estado

A concepção de que o Estado são as pe,«qax„dotadas de cidadanin, de que as


receiEs^iSloiircmi^f'HSTeceitH^e^sarpessoas, de que Péricles pode fazer com as
receitas federais o que Címon tentava fazer com a sua enorme riqueza pessoal, são
outros tantos sintomas de uma ídeia «pessoal» do Estado, de unia concepção
segundíTãqiial ó Estãdo"nãÕTem iirnâ personalidade jurídica autônoma para alérn e
acima das pessoas, antes coincide com as próprias pessoas, com os cidadãos, E a
ideia que leva Temístocles a «transportar» Atenas para a ilha de Egina quando se
aproxima a invasão persa; é a teoria que Nícias, sitiante agora sitiado em Siracusa,
formula para encorajar e responsabilizar os seus marinheiros; «Os homens é que são
a cidade, não os muros nem os barcos sem homens» (Tucídides, 7, 77, 7)..
Esta ideia do Estado tem algumas consequências, por exemplo quando a comu­
nidade se encontra dividida pela stasis, a luta civil, circunstância nada invulgar

115
(à excepção de comunidades particularmente estáveis, como Esparta, virtude em
que insistem, admirados, lucfdtdes, I, í 8, e E isias, OUmpiaco, 1) Por vezes, nessas
alturas, a comunidade cinde-se, mesmo fisicamente, em duas ou mais partes, como
aconteceu frequentemente em Atenas, nas reiteradas crises que eclodiram durante a
longa guerra em finais do século v. Portanto, pode acontecer que uma parte do
Estado se constitua em «anti-Estado» e se proclame — redamando-sedeuma maior
coerência em relação a uma nunca bem esclarecida «constituição ancestral» {pátrios
poliieh) — como único, legítimo Estado É o que se verifica em 4 li, quando, um
século após a expulsão dos Pisístratos (é Tucídides [8,68,4] quem nota esta secular
resistência da democracia), numa Atenas perturbada pela catástrofe siciliana, os
oligarcas, desde sempre prontos a trair o odiado sistema, conquistam o poder
Todavia, deparam com a imprevista reacção da frota estacionada em Samos — isto
é, da base social da democracia, em armas devido à guerra — : a frota organiza-se
em contra-Estado, elege os seus estrategos, não reconhece os que ocupam esse
cargo em nome da oligarquia, e proclama que «a guerra continua» enquanto os
oligarcas só procuram o acordo com Esparta. Na base desta iniciativa está, de um
lado, a firme convicção de que o Estado são as pessoas e, do outro, a firme
convicção, própria da ideologia democrática, de que — como proclama, num
discurso reescrito por Tucídides, Atenágoras de Siracusa — «o demo é tudo» (6,
39): sofisma, se assim o quisermos, baseado também no equívoca lexical em que
«demo» é a facção popular e, ao mesmo tempo, a sua base social e a comunidade no
seu conjunto. Sofisma que tem porém valor e alguma eficácia demonstrativa, dado
remetei também para a concepção pessoal do Estado.
Em 404-403, no decorrer da mais grave e mais longa guerra civil que a Âüca
conheceu, chegou-se a certa altura a uma divisão por três. Primeiro, assiste-se ao
predomínio absoluto dos Trinta, decididos a fazer da Ática üma Lacónía agro-
-pastoril sem quaisquer interesses marítimos (é conhecida a anedota de Plutarco
[Temísíoclei', 19, 6], que afirmava que Crítias quis que o bema onde os oradores
falavam «se voltasse para a terra»), totalmente indiferentes ao êxodo dos populares
e democratas devido à vitória oligárquica e portanto fautores desse êxodo. Mas os
democratas dispersos pela Beócia e pela Megáride depressa se juntam e, após
alguns sucessos militares, entrincheiram-se no Pireu, onde constituem uma contra-
-Atenas democrática, enquanto os oligarcas, perturbados com a derrota, se dividem
em dois troços, com duas sedes difêientes e dois governos distintos, um em Atenas e
o outro em Eleusis. No entanto, quando os Espartanos impõem a pacificação, isto é,
em suma, o regresso dos democratas a partir da restauração da velha constituição
democrática em troca de um compromisso de não procederem a depurações ou a
vinganças, decídir-se-á — e manter-se-á em vigor durante alguns anos — que
Eiêusis continue a subsistir como uma república oligárquica, onde encontrará refú­
gio quem não aceitar o compromisso da pacificação.
A outra face dessa concepção do Estado revela-se no momento da ruptura do
pacto, isto é, quando os exilados, escorraçados, se unem aos inimigos da cidade para
regressarem. O pressuposto de que partem é que o exílio não foi decretado pelo
Estado (entidade suprapessoal, abstracta), mas por outros cidadãos. Consideram
essa medida indigna ou errônea, e entram em guerra pessoal contra a sua cidade

116
para que o erro seja corrigido e a injustiça reparada. É por isso que Aicibfades se
passa para os Espartanos e com eles desabafa contra o sistema político ateniense
(Tucídides, 6, 89, 6), e quando — anos depois — regressa, a sua apologia consistirá
na obstinada reivindicação das suas razões e na denúncia da afronta que !he fora
feita não pelo Estado mas por «aqueles que o tinham banido» (Xenofoníe, Heléni­
cas, 1, 4, 14-16).. E é também por isso que o «velho oligarca» se compraz com o
facto de Atenas não ser uma iliia: porque — observa — , se por desgraça Atenas
fosse uma ilha, os oligarcas m ão poderiam trair e abrir as portas ao inimigo»
(2, 15).
A própria noção de traição é, assim, relaíivizada. Quando, passados mais de dois
séculos, Políbio reflecte sobre a experiência política grega, em cujas ramificações
extremas ele próprio tinha participado, manifesta uma certa intolerância em relação
a essa noção:

«Admiro-me muitas vezes», escreve e!e, «com os erros que os homens cometem em
muitos domínios, sobretudo quando responsabilizam os “traidores". Por isso», prosse­
gue, «aproveito a oportunidade para dizer duas palavras acerca do assunto, embora não
ignore que sc trata de matéria difícU de dermir e de julgar. De facto, não é fácil
determinar quem se deve definir verdadeiramente como “traidor” »

Depois, inutiliza, por assim dizer, o próprio conceito de «traição», ao afirmar


que «trair» nãb é certamente «firmar novas alianças»; pelo contrário — observa
eíe — «aqueles que, de acordo com as circunstâncias, alteraram as alianças e os
amigos das suas cidades» foram muitas vezes beneméritos dessas mesmas cidades,
e portanto a forma demosténica de atribuir a torto e a direito o epítelo de «traidor»
aos adversários políticos não tem sentido (18, 13-14), A traição é apenas uma forma
unilateral de julgar um comportamento político, na óptica, bem entendido, daqueles
que, como Alcibíades, o «velho oiigarca» ou mesmo PohTíio, não partilham de facto
a concepção democrática de que «o demo é tudo».

Kinèin (ous nomous

Porém, se «o demo é tudo», se o povo como conjunto de cidadãos que consti­


tuem 0 Estado está acima de todas as leis já que ele mesmo é fonte de todas as leis, a
única lei possível é, em rigor, — como proclama com dureza «a multidão» (reXfiSoç)
num momento delicado do célebre processo contra os estrategos vencedores nas
Arginusas (Xenofonte, Helénicas, 1,7, 12) — «que o povo faça o que quer» (que é
a mesma expressão utilizada pelo Otanes de Heródoío [ÍU, 80] para definir o poder
do monarca), Mas se o povo está acima da lei, a 1ei não pode considerar-se imutável,
independente da vontade popular; pelo contrário, adequar-se-á a essa vontade, ainda
que «mudar as leis» {kinèin tons nomous) seja (também) uma acusação clássica dos
democratas contra os seus tradicionais inimigos.
Em ambos os casos se remete para a «constituição ancestral» (pátrios politeia).
Segundo Diodoro Sículo (14, 32, 6), Trasíbuío, o promotor da guerra civil contra

117
os Trinta, proclamara que a guerra contra os Trinta não terminaria «enquanto o
demo não recuperasse a pátrios politeia». Pelo seü lado, os Trinta — segundo
Aristóteles — alardeavam visar a pátrios politeia {Constituição de Atenas, 35, 2)
Um pretendia a restauração da democracia radical, os outros consideravam que
estavam a pôr em prática o seu programa destruindo o pilar da democracia radical,
ou seja — como explica Aristóteles — as leis com que Efialtes tinha aniquilado o
poder do Areópago e dado assim inicio ã democracia radical, Trasímaco, o sofista
de Caicedónia a quem Platão, na República, atribui a teoria brutal de que a justiça
é 0 direito do mais forte, destacava a contradição e extraía dela motivos para troçar
da oratória política: «convencidos de que defendem argumentos contrários aos dos
outros, [os oradores] não percebem que visam um resultado idêntico e de que a
tese do adversário está incluída no seu discurso» (Dionísio, Sobre Demóstenes,
3 = 1 , pp. 132-34 Usener-Radermacher). O recurso a uma idêntica palavra de
ordem programática é naturalmente um sinal de um fenómeno mais geral, ou seja,
que a democracia, quando «fala», acaba quase sempre por condescender com a
ideologia dominante Assim, o apelo ao passado como um dado positivo por si só
(não ê por acaso que o primeiro «fundador» da democracia acabava por ser o
próprio Teseu) junta-se à conotação negativa da alteração das leis vigentes {kinèbi,
precisamente). Mas esse propósito de fixidez acaba, ou pode acabar, por colidir
com a necessidade de colocar o demo acima das leis, único árbitro da sua eventual
modificação.
Todavia, verifica-se uma modificação da lei, no tempo, tanto mais que, como
observa Aristóteles, o fim que todos pretendem atingir não é «a tradição» (to
pàtrion) mas «o bem» (Política, 1269a 4). E essa modificação é um fenómeno
alarmante, em geral, para o pensamento conservador: desde os Pitagóricos (Aris-
íóxcno, fr. i9 Müller) até às Leis platónicas (772 D), embora Platão não esconda a
inevitabilidade da mudança (769 D). Kinèin é uma palavra ambígua: tanto exprime
a alteração como a evolução (Isócrates, Evdgoras, 7), e portanto acaba por coincidir
com a noção de epísodis (~ progresso, relaíivamente às várias technai), fenómeno
por assim dizer inevitável, como defendem Isócrates, no excerto referido do Evdgo­
ras, e Demóstenes, num célebre esboço de história da arte militar (Terceira Filípica,
47, onde kekinesthai e epidedokenai são sinónimos). Fenómeno inevitável, se visto
numa escala temporal muito extensa, mesmo no que respeita à lei, por mais perigoso
que possa ser — como destaca Aristóteles — criar o precedente da alterabiiidade da
leí, deixar que as pessoas se habituem à ideia de que a lei pode ser alterada (Política,
2 , 1268b 30-I269a 29).
Hum excnrjrnr em que o evidente apelo a célebres e bem recoiihecíveis expres­
sões da «arqueologia» de Tucídides* visa exprimir a amplitude do tempo conside­
rado como «teatro» da mudança, Aristóteles fornece portanto uma espécie
de ápXCttoA-oyla pessoal do direito, homóloga da «arqueologia» mais geral de
Tucídides, cujo eco e cuja eficácia se detectam — poucos decénios após a difbsão

' 'Eoi5qpo<p6uvTóxEYtip oí ‘'EXXtiveç (Tucídides, l, 6); cttuíeÍov (paíivnçüv(l .,6; 10; 21); èn
atzõjv Tõ)v *E'pytúv (1,2í); 6ibt xp&vou jtAf)0oç (1,1).

118
da obra de Tucídides — no proémio de Éforo (fr 9 Jacoby) e, precísamente, nesse
notável excursus aristotélico, A conclusão a que Aristóteles chega contém em si o
reconhecimento da síntese de inovação e conservação que faz do direito uma
construção única, a única capaz de ordenar a transfonnação. Aristóteles esforça-se
também por individualizar uma medida, um critério que permita avaliar até que
ponto e quando se deve inovar e quando, pelo contrário, apesar de os defeitos seiem
visíveis, se deve renunciar a inovar Trata-se de um critério empírico e genérico;
«Quando o melhoramento previsto é modesto, tendo em conta o facto de que é mau
habituar os homens a alterar levianamente as leis, é claro que convém manter em
vigor normas nitidamente imperfeitas, já que não haverá vantagem que compense a
desvantagem de se criar o hábito de desobedecer às leis »

Liberdade/democracia, tiiania/oligarquia

Quando o Péricies de Tucídides descreve o sistema político ateniense, opõe


«democracia» a «liberdade»: à falta de outro termo — diz ele — costumamos
aüibuir a este regime a designação de democracia porque envolve a maioria na
politeia-, trata-se, porém, de um sistema político livre (eleuthéros de politèuo-
men). Em certo sentido, o orador estabelece uma antítese entre democracia e
liberdade. É certo que o epitáfio não é propriamente esse «monumento à demo­
cracia ateniénse» que uma parte dos intérpretes achou por bem ver nele (entre
esses intérpretes figura também Platão, que por isso decidiu imitá-lo no epitáfio
que Aspásia pronuncia no Menêxeno). O elogio de Atenas contido no epitáfio de
Péricies chega até nós através de um filtro duplo: o primeiro filtro é o próprio
gênero literário da oração fúnebre, inevitavelmente panegírica; o segundo é a
pessoa do orador, Péricies, como era visto por Tucídides, ou seja, um político
que, na opinião do seu historiador, tinha de facto desvirtuado o sistema democrá­
tico mantendo vivo apenas o seu carácter exterior A própria palavra que utiliza
{demokraiia) não é um termo característico da linguagem democrática, onde,
como sabemos, é mais usual o termo demos nos seus vários significados (é típica
a expressão do partido democrático lyein ton demon = destruir, ou tentar destruir,
a democracia). Na sua origem, demokraiia é um termo violento e polêmico («a
predominância do demo») forjado pelos inimigos da ordem democrática: não é
uma palavra de convivência. Exprime a predominância (violenta) de uma parte: e
essa parte só é conoíável era termos de classe, de tal forma que Aristóteles — para
ser extremamente claro — formula o paradoxal exemplum ficíum segundo o qual
0 predomínio — numa comunidade de 1300 cidadãos — dos 300 (se é que
atingem esse número) que nada possuem sobre todos os outros é, todavia, uma
«democracia» Considerada sob este ponto de vista, a democracia acaba por
assumir traços próprios da tirania, como, por exemplo, e sobretudo, a reivindica­
ção, por parte do demo, de um privilégio que é próprio do tirano: estar acima da
lei, poièin ho ti boúletai.
Contudo, na linguagem política ateniense também se afirma ura outro conjun­
to terminológico e conceptual, que identifica liberdade e democracia, por um

119
lado, e oligarquia e tirania, por outro É mais uma vez Tucídides quem nos
confirma esse facto, no capítulo do livro oitavo (8, 68) onde faz um balanço do
significado e das consequências do golpe de Estado oligárquico de 41i que, na
sua opinião, foi um golpe de Estado efémero, violento, sangrento mas sobretudo
inesperado, a primeira experiência oligárquica cem anos após a expulsão dos
tiranos E, depois de ter traçado um breve e elogioso retrato dos três principais
artífices desse golpe, Tucídides comenta: «É certo que só pessoas deste nível
podiam levar a cabo um feito tão grandioso: roubar a liberdade ao povo de Atenas
cem anos após a expulsão dos tiranos.» Neste caso, é evidente que Tucídides
ide?uifica o regime democrático com a noção de liberdade, do mesmo modo que
no livro sexto — onde reevocava os receios gerados em Atenas pelo misterioso
escândalo da mutilação das Hermes — definia como «oligárquica e tirânica» a
conjura que os democratas atenienses temiam que estivesse por detrás desse
horripilante e aparentemente inexplicável escândalo Neste caso, a associação dos
conceitos reflecte totalmente o que é destacado no livro oitavo: por um lado,
Uberdade ~ democracia (destruir a democracia significa roubar aos Atenienses a
liberdade que tinham conquistado com a expulsão dos tiranos), pelo outro, tira­
nia ” oligarquia (uma conjura que vise o governo da minoria, isto é, mais uma
vez, a destruição da democracia, é ao mesmo tempo «oligárquica» e «tirânica»).
Uma linguagem que não condiz com o dado (histórico) segundo o qual os princi­
pais artífices da queda da tirania tinham sido os aristocratas e os seus aliados
espartanos, ao passo que a forma como a democracia arcaica se manifestara tinha
sido precisamente a tirania.
A aparente aporia tem uma solução bastante simples, que nos remete mais uma
vez para o compromisso de que a democracia nasceu na Grécia da época clássica: o
compromisso entre senliores e povo, gerido com a razão, a cultura política, a
linguagem dos senhores que governam a cidade democrática. Para estes, a democra­
cia é um regime apetecível enquanto signifique «liberdade» (não é por acaso que
Péricles usa com distanciamento a palavra demokratia e, ao mesmo tempo, afirma
que 0 regime ateniense é um regime «de liberdade»), sendo, por conseguinte, um
regime depurado de todos os resíduos «tirânicos»
Ê esta a origem empírica da classificação sistemática mais corrente — própria
dos pensadores gregos — que visa desdobrar as formas políticas em dois subtipos,
um bom e um mau, É uma resposta à aporia acima referida, que o pensamento grego
concebe muito cedo. Vemo-la teorizada em Aristóteles, que utiliza mesmo dois
termos diversos: designa a «boa» democracia por poUteia, mas a democracia que
não respeita a liberdade é, como era de esperar, a demokratia.
Traía-se, porém, de uma distinção já implícita no conflito constitucional de
Heródoío, em cujas intervenções (ou, melhor dizendo, na sua soma) existe o
pressuposto de que qualquer forma político-constitucional acaba sempre por dege­
nerar na sua pior faceta e que esse processo degenerativo provoca um ciclo que,
historicamente, implica a passagem de uma constituição para a outra Neste sentido,
a intervenção mais clara e mais importante é a de Daiio, que coloca expJicitameníe a
questão do desdobramento de cada forma política na sua forma «idealizada», por
um lado, e na sua realização concreta, por outro

120
A íeoria «cíclica»

De facto, Dario nota que cada uma das très formas políticas assume, no âmbito
da discussão, duas caracterizações opostas. Otanes descreve todos os defeitos do
poder monárquico e exalta, em poucas mas eficazes pinceladas, a democracia; logo
a seguir, Megabizo declara que aprova a critica ao poder monárquico, mas destrói a
imagem positiva da democracia e exalta o predomínio da aristocracia; depois, o
próprio Dario revela os defeitos do governo aristocrático e regressa ao ponto de
partida, subvertendo-o radicalmente com um elogio ao poder monárquico,. Como
tem diante de si o quadro completo dessas seis possíveis avaliações dos três
sistemas, Dario inicia a sua intervenção dizendo que «nas palavras» (3, 80, 1: líq
Xriycp: esta versão, que é a correcta, é dada apenas pela tradição indirecta, represen­
tada por Estobeu) todos os três regimes são «excelentes», ou seja, revela que dos
três modelos existe uma variante positiva, aquela em que os pressupostos «teóri­
cos» (que é o que significa precisamente) em que cada um dos três modelos se
baseia operam no estado puro ïsso implica — e Dario di-lo logo a seguir — que,
pelo menos no que respeita à aristocracia e à democracia, as suas caracteristicas
negativas surjam quando se passa do plano das definições para a prática.
Mas Daiio vai mais longe, dando dois exemplos de passagem constitucional de
uma forma paia outra De facto, observa que, na prática, tanto as democracias
concretas como as aristocracias «reais» atingem uma tal desorganização civil que
determinamfa aparição do monarca. Por conseguinte, o poder monárquico nasce de
uma siasis, muitas vezes sangrenta, provocada pela falência prática de cada uma das
outras formas políticas, Por outro lado, o próprio Dario não pode ignorar o facto de
que uma má monarquia também pode levar à srasis: foi precisamente a seguir à
catástrofe de Cambises (encarnação perfeita do tirano) e da guerra civil causada
pelo usurpador (o «falso Esmerdís») que os dignitários persas debateram a forma
política a dar à Pérsia depois da queda da monarquia; e analisam outras possíveis
soluções constitucionais precisamente porque a monarquia acabou por dar aqueles
resultados desastrosos. Portanto é claro, não só para Dario mas pelo próprio con­
texto em que o debate tem lugar, que de cada forma político-constitucional se passa
para outra, e além do mais, através da ,ií/aj:í ï , da guerra civiL
Dario é o vencedor; todavia, só o é no plano histórico, não no plano dialécííco.
Do ponto de vista da forma demonstrativa, os seus argumentos jimtom-se aos dos
dois interlocutores que o antecederam, não os anulain No plano dialéctico, o debate
não tem vencidos nem vencedores; e só pode ser assim, porque esse fim «aberto»
corresponde à sucessão cíclica de uma «constituição» por outra, sobre as ruínas e
graças aos defeitos da outra, segundo um processo que não pode ter um fim, uma
etapa conclusiva É também por isso que se pode afirmar que é desse debate de
Heródoto que partem todos os desenvolvimentos posteriores do pensamento polí­
tico grego Quando Tucídides, no concreto da narração, depara com o problema
singular da rápida falência de um governo oligárquico — o dos Quatrocentos —
embora constituído, como ele destaca, por «pessoas de primeira ordem», só pode
recorrer à explicação já fornecida em termos gerais por Dario acerca das causas da
falência de todas as aristocracias, por mais «boas» que sejam; de facto, responsabi­

121
liza a tivalidade entre os cheíes, todos de grande nível mas desejosos de conquistar
uma posição proeminente (8, 89, 3). Serve-se igualmente de palavras que fazem
referência à passagem de uma forma constitucional para outra, destinada também a
sucumbir, portanto, mais uma vez, a um «segmento» do «ciclo»: «assim», observa
eíe, «se arruina uma oligarquia nascida da crise da democracia»,.
Esta imagem do fluir do processo poUtico-consütucional domina a reflexão
posterior: desde o livro oitavo da República de Platão até ao livro terceiro da
Política de Aristóteles, que orna a sua análise com uma riquíssima exemplificação
extraída do seu incomparável conhecimento dos acontecimentos político-constitu­
cionais de centenas de poleis gregas (as 158 Politeiai, de que nos chegou, quase por
inteiro, a respeitante a Atenas),. Procurar determinar qual a sucessão dessa passa­
gem, na maioria dos casos, foi objecto de estudo e de especulação por parte dos
pensadores clássicos posteriores, desde o pitagórico Ocello Lucano até Políbio, em
cujas obras se associa a análise empírica à ideia filosófica de um «retomo», de uma
«anacidose».
A repetição eterna do ciclo é conigida pela constituição «mista», ou seja, por um
sistema que, contendo em si os elementos melhores dos três modelos, se propõe (ou
pensa) adaptá-los, anulando os efeitos destrutivos e autodestrutivos que cada um
deles, visto de per ri, provoca, luddides (8, 71) já intui o carácter altameníe
positivo de uma forma «mista», quando elogia o efémero sistema político existente
em Atenas logo a seguir à queda dos Quatrocentos. Na realidade, esse sistema — o
chamado regime dos Cinco Mil — tem muito pouco de «misto»: é um daqueles
regimes que Aristóteles definia como oligarquias precisamente porque se apoiavam
na limitação da cidadania com base no censo, E, na verdade, todas as outras
hipóteses de constituição «mista» — acerca das quais o próprio Aristóteles e
sobretudo os seus discípulos (de Peofrasto a Dicearco e a Estratão) se debruça­
ram — se caracterizam pela remoção do traço essencial da democracia, isto é, a
concessão da cidadania plena aos que nada possuem, sendo, portanto, essencial­
mente, oligarquias,. Apesar disso, o tema da constituição «mista» é o que domina a
reflexão grega sobretudo na época helenistica e romana. Colocado perante a origi­
nal e complexa solução dada pela polis Roma ao problema da cidadania e da sua
combinação com a necessidade de um poder forte e estável, Políbio considera que
Roma era o modelo concreto e duradouro desse tipo de constituição, O livro sexto
das suas Histórias, situado deliberadaraente após a narração da duríssima derrota de
Canas, como esclarecimento das razões pelas quais Roma tinha sobrevivido a essa
derrota, é todo dedicado à análise da constituição romana como exemplar perfeito
de constituição «mista».
Todavia, é justo que a exposição que tentámos fazer acerca da «ideia grega da
política» se detenha em Políbio. Em contacto, primeiro com as grandes monarquias
helenísticas e depois com a polis romana, o pensamento grego — convertido num
único pensamento helenísíico-romano — enveredou por outros caminhos. Aí co­
meça uma outra história.

122
APENDICE DE TEXTOS

Her ódoto, As Histórias^ III, 80-82

80 Depois de o tumulto se ter aquietado e de terem passado cinco dias, os que se


tinham revoltado contra os Magos estavam reunidos para debater os assuntos do
Estado, e foram pronunciados discursos incríveis para alguns dos Gregos, mas que
não deixaram de ser pronunciados. [2] Oíanes convidava a colocar o poder nas
mãos de todos os Persas, dizendo isto: «Parece-me oportuno que ninguém volte a
ser nosso monarca, porque não é coisa nem agradável nem conveniente, De facto,
sabeis a que ponto chegou a insolência de Cambises, e experimentastes a arrogância
t do Mago. [3']‘Portanto, como é que a monarquia, a quem é lícito fazer o que quer
sem ter de prestar contas, pode ser uma coisa perfeita? Porque mesmo o melhor dos
homens, mal conquista essa autoridade, é obrigado pelo poder monárquico a modi­
ficar o seu modo de pensar habitual,, De facto, os bens que possui tomam-no
/ arrogante, a ele que, desde a origem, é invejoso [4] E quando tem estes dois vícios
tem toda a maldade, porque muitos crimes os comete por arrogância, outios por
inveja No entanto, um soberano devia ser desprovido de inveja, já que que possui
todos os bens, Mas eíe comporta-se paia com os cidadãos de um modo bem
diferente, sente inveja porque os melhores ainda vivem, e compraz~se com os
cidadãos piores e está sempre pronto a ouvir as calúnias. [5] Mas a coisa mais
inconveniente de todas é esta: se alguém o elogia moderadameníe, indigna-se por
não ser bastante elogiado; todavia, se alguém o elogia muito, indigna-se consíderan-
do-o um adulador E vou dizer agora a coisa mais grave: ele subverte os costumes
pátrios e violenta as mulheres e manda matar sem julgamento [6] Pelo contráiio, o
popular tem, além do mais, o nome mais belo de iodos, a igualdade perante a lei, em
segundo lugar não faz nada do que o monaica faz, porque exerce a magistratura por
sorteio e tem um poder sujeito a controlo e apresenta todos os decretos à assembleia
geral. Portanto, proponho que se abandone a monarquia e que se eleve o povo ao
poder, porque é na multidão que está todo o poder.» Era este o parecer de Otanes,

81. Megabizo, porém, exortava à instituição da oligarquia, dizendo o seguinte;


«Digo 0 mesmo que Otanes acerca de se pôr fim à tirania; todavia, quanto ao seu
convite a que se confira o poder ao povo, não me parece a melhor opinião: de
facto, não há nada mais desprovido de inteligência, nem mais insolente do que o

123
povo inúlil, [2] E é certo que, para fugir à insolência de um monarca, os homens
caiam na insolência de uma canalha desenfreada, é algo absolutamente intolerá­
vel. De facto, se o monarca faz uma coisa, fá-Ia por motivos visíveis, mas a
canalha não tem sequer capacidade de discernimento: e como podería ter discerni­
mento quem não aprendeu com outros nem conhece por si nada de bom, e se lança
às cegas sem siso nas coisas, semelhante à torrente impetuosa? [3] Da democracia
façam pois uso aqueles que querem mal aos Persas; nós, porém, depois de termos
escolhido alguns dos homens melhores, entreguemos-lhes o poder, porque entre
eles estaremos também nós, e é justo que dos homens melhores derivem as
melhores deliberações.»

82, Portanto, Megabizo expunha esta opinião. Em terceiro lugar, Dario revelava
o seu parecer, dizendo: «Parece-me justo tudo o que Megabizo disse acerca do
governo democrático; porém, não me parece justo o que diz respeito à oligarquia
Porque, havendo três formas de governo — a democracia, a oligarquia e a monar­
quia — e sendo todas óptimas nas palavras, eu afirmo que a monarquia é muito
melhor [2] Nada pode parecer melhor do que um homem só que seja óptimo e que,
valendo-se da sua sageza, possa guiai de um modo perfeito o povo, até porque
assim as medidas tomadas contia os inimigos poderíam ser mantidas secretas. [3]
Na oligarquia, porém, entre os que empregam as suas qualidades na administração
do Estado costumam surgir graves inimizadas privadas, porque, querendo cada um
deles ser o primeiro e prevalecer com os seus pareceres, provocam grandes inimiza­
des entre eles, e dessas inimizades nascem discórdias, e das discórdias chacinas, e
das chacinas passa-se para a monarquia, e com isso se demonsfra quanto este regime
é 0 melhor. [4] Por outro lado, se o povo está no poder, é impossível que não
sobrevenha a malvadez, E, quando a maivadez se insinua no Estado, surgem entre
os malvados não inimizades, mas sólidas amizades, porque aqueles que lesam os
interesses comuns fazem-no conspirando entre eles.. E isso sucede até que alguém
do povo, colocado à cabeça dos outros, os faz parar, assim se impondo à admiração
do povo, que acaba por proclamá-lo monarca E também assim se demonstra que a
monarquia é a coisa melhor, [5] E para dizer tudo numa ünica palavra, de onde nos
veio a liberdade e quem no-!a deu? foi o povo, a oligarquia ou um monarca?
A minha opinião, portanto, é que, tendo conquistado a liberdade devido a um só
homem, devemos manter em vigor a mesma forma de governo, e além disso não
devemos abolir as instituições dos nossos pais, que são boas, porque isso não seria
decerto o melhor.»

Concessão da cidadania aos habitantes de Samos

Cefisofònte da Peânia fazia de secretário


Pelos Samos que estiveram ao lado do povo de Atenas
Decisão do Conselho e da Assembleia popular
A tribo dos Cecrópides detinha a pritanía, o secretário era Polymnis, Alexias era
o arconte, Nicofonte de Harmonia era o presidente,

124
Proposta de Clisofb e dos outros pritanes:
Louvem-se os embaixadores de Samos, os que vieram antes e os que chegaram
agora, e os estrategos e todos os outros habitantes de Samos, porque são valorosos e
prontos a agir pelo melhor. Louvem-se os seus actos, porque agem de modo
vantajoso quer para Atenas quer para Samos. Como prémio de tudo o que de bem
fizeram pelos Atenienses, os Atenienses têm-nos em grande consideração e pro­
põem o que segue; Ê decisão do Conselho e da Assembleia que os habitantes de
Samos sejam Atenienses, e que assumam a cidadania nas formas que mais lhes
aprouverem. Que esta decisão seja posta em prática da forma mais proveitosa para
ambos, como eles dizem; quando houver paz, então poder-se-ão tomar deliberações
comuns acerca de qualquer outro assunto. Continuem obviamente a gozar das suas
leis em plena autonomia, e façam tudo o resto de acordo com os juramentos e os
acordos firmados entre os habitantes de Samos e os Atenienses
[ ]
(Tod, Greefc fíisto/icaí Inscriptions, 96)

P lu ta rcO j Vida de Pérides

12 Mas aquilo que deu maior prazer e ornamento aos Atenienses, o que provo­
cou a maior admiração entre os estrangeiros, e que hoje continua a testemunhar o
poder da Hélade, de que tanto se fala, e o seu antigo esplendor não são simples
mentiras: refiro-me à construção dos edifícios sagrados; todavia, foi o mais dene­
grido dos actos públicos de Pêrícíes e alvo de acusações caluniosas por parte dos
seus adversários nas assembleias. Gritavam que a transferência do tesouro comum
dos Helenos de Delos para Atenas era um abuso que suscitava maledicências e
lesava o bom nome do povo ateniense; mesmo a desculpa mais válida de que o povo
dispunha contra os seus detractores, ou seja, que o tesouro fora retirado da ilha com
medo de que os bárbaros se apoderassem dele e para ser guardado em lugar seguro,
lhe fora roubada por Péricles, já que a Hélade devia considerar-se ofendida brutal­
mente e mantida aberíamente sob o jugo de um tirano, ao ver que com os contribu­
tos extorquidos à força para suprir as despesas da guerra contra os Persas, os
Atenienses douravam e embelezavam a sua cidade como uma mulher vaidosa,
cingindo-a de pedras preciosas, estátuas e templos de mil talentos cada um,
Péricles explicou aos cidadãos que não deviam prestar contas aos aliados acerca
do emprego que faziam do tesouro, já que combatiam por eles e mantinham
afastados os bárbaros. «Os nossos aliados», disse, «não nos dão cavalos, navios ou
hoplitas, mas apenas dinheiro; e esteja não pertence a quem o paga, mas a quem o
recebe, para que preste o serviço pelo qua! o recebe, E a nossa cidade, depois de ter
satisfeito devidamente as necessidades da guena, não devia empregar as suas
disponibilidades em obras, que se traduzam, uma vez terminadas, em glória eterna,
e, enquanto se executam, em bem-estar concreto? Essas obras criam actividades de
todos os géneros e provocam as necessidades mais variadas; estas obras, desper­
tando todas as artes, fazendo mexer todas as mãos, dão de comer com os salários a
quase toda a cidade, de forma que, ao mesmo tempo que se se adorna, se alimenta

125
por si.» Em suma, Péricles queria que, se os jovens aptos para as armas se arrisca­
vam na guena, graças aos contributos dos aliados, a multidão dos trabalhadores não
enquadrados no exército não fosse excluída dos proveitos, nem neles participasse
pennanecendo ociosa e inerte.
Com este objectivo levou e propôs à assembleia planos grandiosos de constru­
ções e desenhos de obras, cuja execução exigia muito tempo e a intervenção de
muitas categorias de artífices; assim, os cidadãos que ficaram em casa tinham tanta
justificação para usufruir dos bens públicos como a marinhagem, as guarnições e os
exércitos.
Os materiais usados foram a pedra, o bronze, o marfim, o ouro, o ébano, o
cipreste e recorreu-se aos artífices que os preparam e trabalham, isto é, carpinteiros,
escultores, ferreiros, canteiros, tintureiros, raoldadores de ouro e de marfim, pinto­ .v>-
res, tapeceiros, eníaihadores, para não falar daqueles que importam e transportam
todas estas mercadorias: armadores, marinheiros e pilotos marítimos, carroceiros,
criadores de gado, condutores, cordoeíros, tecelões, curtidores, cavadores e minei­ ik
ros, Cada categoria tinlta depois sob as suas ordens, como um general o seu próprio
corpo do exército, uma multidão particular de serventes, que eram os elementos de
que se servia para executar a sua tarefa. ■ ■-v’
■r:

Fseudo-Xenofoníe, Constituição de Atenas^ 2,19-20

Portanto, digo que o povo ateniense sabe quais os cidadãos que são bons e quais
os que são maus, e precisamente porque o sabe ama aqueles que Hie são favoráveis e
úteis, mesmo se são maus, e odeia sobretudo os bons,. De facto, pensa que a virtude
deles não nasceu paia seu bem, mas para seu prejuízo. Pelo contrário, alguns,
embora sejam democratas, pelo seu nascimento e pela sua natureza não pertencem
ao povo Ora, eu admito que o povo queira um governo do povo, porque é impossí­
vel não admitir que se queira o seu próprio bem. Contudo, aquele que, não sendo do
povo, opta por viver numa cidade governada pelo povo e não numa cidade governa­
da por poucos, tem em mente cometer uma injustiça, sabendo que uma democracia
oferece mais garantias de impunidade aos delinquentes do que uma oligarquia
Portanto, não aprovo a forma da constituição dos Atenienses; mas já que lhes
pareceu bem reger-se por uma democracia, parece-me que defenderão bem a demo­
cracia procedendo do modo que referi.

Pseudo-Xenofoníe, Constituição de Atenas^ 2,14-15 f


Há, porém, uma coisa que falta aos Atenienses Se vivessem nuhia ilha,
poderíam prejudicar impunemente os outros, enquanto o domínio do mar lhes
pertencesse, sem verem devastado o seu território nem suportar a presença inimi­
ga Todavia, os camponeses e os atenienses ricos tentaram agradar aos inimigos,
enquanto o povo, sabendo bem que os inimigos não queimarão nem devastarão
nada do que lhes pertence, vive tranquilo e não procura agradar-lhe. E de um

126
outro receio estariam livres, se vivessem numa Uha: a cidade nunca podeiia ser
traída pelos oiigarcas, as suas portas nunca se abriríam para que os inimigos
entrassem, Como podería isso acontecer se Atenas fosse uma ilha? E, se Atenas
fosse uma ilha, também não podería haver golpes de mão contra a democracia,.
lodavía, se se tentasse um golpe de mão contra a democracia, far-se-ia dando
novas esperanças aos inimigos, pensando poder Íntroduzi-los na cidade por via
terrestre,

Aristóteles, Política, 1268b-1269a

Mas já que aludimos a isso, é melhor acrescentar algumas breves considerações


sobre o assunto Com efeito, há dúvidas quanto à solução a dar a este problema e a
alguns podería parecer melhor introduzir progressos na constituição: foi o que
aconteceu com as outras ciências, por exemplo, a medicina e a ginástica afastaram-
~se dos costumes tradicionais, bem como todas as outras artes e técnicas, de forma
■■■■■
f(■ que, como a política deve também incluir-se nelas, é claro que também nela deva
acontecer a mesma coisa., E alguns poderíam argumentar que nos próprios factos se
encontram indícios desses progressos, observando que as leis antigas eram excessi­
vamente grosseiras e bárbaras: basta pensar que os Gregos andavam armados e
-f vendiam as suas mulheres uns aos outros e que era alguns lugares permaneceram
-Í antigos ordepameníos legislativos de uma extrema simplicidade, como a lei sobre
os homicídios de Cumas, que determina que, se aquele que persegue um homicida
leva a julgamento um certo número de testemuniras seus parentes, o réu é conside­
rado culpado da morte, Mas, em geral, todos procuram o bem e não a fidelidade à
f tradição e é provável que os primeiros habitantes do mundo, nascidos da terra ou
sobreviventes de algum cataclismo, fossem homens vulgares e sem excepcionais
dotes intelectuais — como aliás se díz que eram os gigantes — de forma que é
absurdo manter-se fíeí às suas crenças Acrescente-se que não também não é melhor
não alterar as leis escritas. Como acontece com as outras artes, também o ordena­
mento político não pode fixar com precisão por escrito todas as disposições, porque
as determinações escritas são feitas em termos universais, enquanto as práticas
concretas incidem sobre coisas individuais. Estas considerações demonstram que as
leis, ou pelo menos algumas delas, devem ser alteradas, mas, para quem tenha um
ponto de vista diferente, esta tentativa parecería exigir muita prudência. De facto,
quando o melhoramento é exíguo e é desaconselliável criar o hábito de abolir com
facilidade as leis, então é claro que é preciso deixar subsistir alguns erros dos
legisladores e dos governantes; porque a eventual vantagem que se podería obter
com a alteração não equivale ao prejuízo que se podería ter introduzindo o hábito de
desobedecer aos governantes. E a comparação com as artes não prova nada porque
modificar uma arte não é o mesmo que alterar uma lei, na medida em que a lei, para
se fazer obedecer, não tem outra força senão o costume, que só se forma passado um
longo período de tempo, de forma que passar facilmente das leis vigentes para leis
novas acaba por esgotar a própria força da lei. Além disso, mesmo admitindo que
esta deva ser alterada, deverão alterar-se todos os decretos em todas as constitui-

127
ções, ou não? E qualquer um pode introduzir as alterações ou só o podem fazer
todos os cidadãos reunidos em assembleia? Porque há uma grande diferença, Mas
deixemos por agora esta análise, para a qual surgirão outras oportunidades.

Tucíditíes, 2,3 7

37 O nosso sistema político não se propõe imitar as leis de outros povos: nós
não copiamos ninguém, servimos de modelo aos outros., Cbama-se democracia
porque não governa tendo em conta apenas alguns, mas a maioriajAs leis regulam
as controvérsias privadas modo a que todos tenham um tratamento igualj mas
quanto à reputação de cada um, quanto ao prestígio de que possa gozar quem se
tenha afirmado em qualquer domínio, isso não se consegue a partir do estatuto
social de origem, mas devido ao mérito; e, por outro lado, quanto ao facto de a
pobreza poder ser impedimento, a modéstia da classe social não c obstáculo para
ninguém que tenha capacidades paia agir no interesse do Estado. [2] Todavia, a
nossa vida é livre não só quanto às relações com o Estado, mas também nas relações
/: i
quotidianas, normalmente baseadas no respeito recíproco: ninguém se escandaliza
se outro se comporta como melhor lhe apraz, e nem por isso o olha de soslaio, coisa
inócua de per si, mas que não deixa de causar dó. [3J Mas, se as nossas relações
privadas são caracterizadas pela tolerância, na vida pübiica o temor impõe-nos que i--
evitemos com o máximo rigor agir ilegalmente, desobedecendo aos magistrados no
desempenho das suas funções e às leis, sobretudo às leis em favor das vítimas de
uma injustiça e àquelas que, embora não escritas, por consenso comum ameaçam a
infâmia.

Tucídides, 6,38-39

.38. Mas, como os Atenienses conhecem estas coisas, tal como eu as digo,
pensam — bem o sei — salvaguardar os seus interesses; e é aqui que existem
homens que imaginam coisas que não existem nem poderiam existir, [2] e que eu,
não agora mas desde sempre, sei que visam, com discursos desse género e ainda
mais nocivos ou com as suas acções, aterrorizar a vossa colectividade para domina­
rem a cidade Receio, porém, que, depois de muitas tentativas, acabem por conse­
guir que não sejamos capazes, antes de nos vermos em apuros, de nos precaver nem,
tendo-nos apercebido da situação, de perseguir, [3] For isso, a nossa cidade rara­
mente está em paz, e tem de enfrentar muitas sublevações e já não lutas contra os
inimigos externos mas contra si mesma, e por vezes mesmo tiranias e dominações
iníquas. [4] Mas agora tentarei, se quiserdes seguir-me, não permitir mais que
alguma dessas coisas nos aconteça, e fá-lo-ei por um lado convencendo-vos, a vós
que sois a maioria, a castigai aqueles que tramam tudo isso, não só quando forem
apanhados em flagrante (e é difícil surpreendê-los!), mas também pelo que querem
fazer, mas não podem (porque é preciso defendermo-nos preventivamente do inimi­
go não só pelo que ele faz mas também pelas suas intenções, já que quem não se

128
defendeu primeiro será o primeiro a sofrer); e, por outro Íado, no que respeita à
minoria, reíutando-a, vigiando-a, amestrando-a, porque me parece que assim conse­
guiremos em grande medida convencê-la a não proceder mal [5] E em suma —
coisa que muitas vezes pensei — o que é que vós, jovens, quereis? Quereis governar
já? Isso não é Jegal; e a iei foi estabelecida partindo mais do pressuposto de que não
fostes capazes do que com a intenção de retirar os direitos fosse a quem fosse. Mas
quereis agora usufruir de direitos iguais apenas a alguns? E como pode ser justo que
homens iguais não sejam considerados dignos de iguais direitos?
39. Alguns dirão que o poder do demo não é inteligente nem justo e que aqueles
que possuem as riquezas são os mais capazes de governar da melhor forma, Mas eu
digo sobretudo que «demo» é o nome de toda a colectividade, ao passo que a
«oligarquia» é apenas uma parte; os melhores guardas das riquezas são os ricos, mas
os inteligentes podem deliberar melhor e decidir da melhor forma, depois de terem
escutado as partes, a maioria: e estas categorias têm papéis iguais, tanto individual­
mente como no seu conjunto, no governo do povo. [2J Pelo contrário, a oligarquia
obriga a maioria a participar dos perigos, ao passo que não só goza de mais
vantagens do que os outros, como consegue tê-las todas, privando delas os outros:
que 6 aquilo que, entre vós, desejam os ricos e os jovens, mas que é impossível
conseguir numa grande cidade.

129
CAPITULO V

O RÚSTICO
por Phitippe Borgeaud
o rústico, o primitivo, o mal-educado, o campónio, o seivagem, o bestial, são
outras tantas figuras que obcecam e fascinam o imaginário dos Gregos^ Figuras
importantes na medida em que ocupam, nesse imaginário, um lugar de onde os
inventores da paiâcia se comprazem em reflectir sobre as condições de emergência
de um equilíbrio de civilização O rústico interessa à cidade, na medida em que se vê
de repente situado no centro da reflexão grega sobre a origem da cultura.
Tal facto é já visível nos relatos mais antigos, na epopeia. Deixado pelos Feácios
numa praia de ítaca, Ulisses ê envolvido por uma bruma que o impede de reconhe­
cer a sua pátria. É então que surge um jovem pastor, parecido com o filho de um
principe, que conduz os rebanhos. Trata-se de facto de Atena, que fez surgir a
bruma, e que lhe indica o caminho do real. Esse caminho passa pelo domínio de
Eumeu, o «porqueiro divino», que, perto de um antro famoso, eféctuará, em honra
do seu hóspede, o primeiro sacrifício, dirigido às Ninfas e a Hermes. Abertura
pastoral, pois, para esse encontro gradual com o universo humano.. Rústico fiel e
piedoso, mas civilizado (é certo que se traía de um escravo, mas de origem nobre),
Eumeu recebe o seu senhor (que não reconhece), com os gestos essenciais que
faltaram à maioria dos protagonistas anteriores, encontrados no decorrer de uma
longa viagem’.
Na Odisseia, o monstro surge como uma figura anunciadora dessa parte que a
cidade, em breve constituída, se esforçará por segregar para melhor se representar,
se diferenciar. Temos de seguir, como o estudante grego que aprende de cor a sua
narração, o périplo de Ulisses, o seu percurso «exterior». Com ele temos de encon­
trar Polífemo^. No mundo dos Ciclopes, não existe oposição (como acontecerá
mais tarde) entre a cidade e o campo. A oposição que se estabelece é acima de tudo
entre a ilha pequena e a íena dos Ciclopes A ilha pequena, onde Ulisses e os seus*

* À excepção dos Feácios, claro, que servem de medianeiros entre o outro mundo, o do périplo no
inumano, e o mundo de ítaca: efr Pierre Vidai-Naquei. Valeurs religieuses et mythiques de la terre et
du sacrijîce dans l'Odyssée, «Annales ESC 5 (1970), pp. 1278-1297
^ Odisséia. 9, 105 sgs

1.33
companheiros, os primeiros homens que pisam o seu soío, desembarcam: «Uma
Uha coberta de florestas onde as cabras selvagens se multiplicam indefinidamente»
únicas habitantes, a par das Ninfas, longe dos caçadores Não há trabalho nos
campos nem sementeiras Está~se no não-humano. Hm frente, ao alcance da voz, a
ilha principal, onde habitam os Ciclopes. Embora sejam filhos de Poseidon, não
sabem navegar. Próximos dos deuses a ponto de não terem de se preocupar com
eles, vivem sem plantar nem lavrar, uma vida de criadores de gado miúdo, Já não é a
natureza virgem da ilha pequena, mas também não é um universo real mente compa­
tível com 0 dos homens.. O seu vinho provém da vinha selvagem. «Brutamontes sem
fé nem leis, que confiam tanto nos Imortais que não plantam nem lavram com as
suas mãos. Entre eles, não há assembleia que Julgue ou delibere: cada um dita a sua
lei às suas mulheres e aos seus filhos». Vive-se naquilo que, a partir do sé­
culo V a. C., se acabará por considerar como um estado pré-político, caracterizado
pela dispersão dos pequenos habitats'*,. Ausência de regras sociais, ausência também
de religião (e portanto do sentido da hospitalidade), nesse pequeno mundo próximo
da Idade de Ouro e das suas ambiguidades,
Contudo, Ulisses desembarca na terra de um ser originaL Afastado dos seus
congéneres, PoUfemo é um selvagem entre os selvagens, Uma espécie de Díscolo
antes do tempo. «Vive só, apascentando os seus rebanhos, não convivendo
com ninguém» ^ É o oposto de um ser humano, de um bom comedor de pão No
entanto, na sua gmta há queijo em abundância, os cercados estão repletos de
cordeiros e de cabritos, e os cântaros de metal regurgitam de leite que ele ordenliou.
Tal como os seus congéneres, tem o fogo aceso. Ura fogo que não serve para o
sacrifício, e que só parece arder para provar que os habitantes desse mundo estranho
exibem os símbolos da humanidade Aparência enganadora, que o comportamento
de PoUfémo toma evidente: devora os companheiros de Ulisses, regando com leite
essa refeição de canibal. Será vencido por três artifícios que remetem, de maneiras
diferentes, para os imperativos da civilização: o vinho puro, de proveniência divina,
que Ulisses lhe oferece e com que ele se embriaga devorando a sua refeição de fera
(conjunção do mais civilizado com o menos que humano); a estaca de oliveira
(árvore dc Aícna), polida, com a ponta cm brasa, manejada às ordens dc um chefe
pela pequena comunidade dos marinheiros de ítaca, que o cegará; por fim, a cilada
verbal (Ulisses substituído por Ninguém), que o impede de qualquer comunicação
social. No fim do seu encontro com Ulisses, o rústico, privado de razão, privado de
vista, privado de língua (Ninguém lhe fez mal), não passa de um brutamontes
violento, cujo lamento só é ouvido por um deus, seu pai Poseídon, senhor das
turbulências marinhas, que o substitui e leva consigo o astucioso Ulisses.

^ A versão citada é a de Victor Bérard, publicada em 1931 por Armand Cotio.


■* Cfr. Piatão, Leis, III 680b, que cita a passagem da Odisséia referente aos costumes dos Ciclopes.
Acerca da evolução das idéias gregas quanto às origens da civilização, cita-se em especial Thomas
Cole, Democritus and lhe Sources of Greek Anthropology, American Philological Association, Press of
Western Reserve University, 1967; e também Sue Blundell, The Origins of Civilization in Greek and
Roman 77iot/g/íí, Croom Helm, London & Sydney 1986 {com bibliografia)
^ Odisséia, 9, 188

134
PoÜfemo não abandona a cena literária, e por razões evidentes Para além de
Eurí'pides^ encontramo-lo na poesia alexandrina, disfarçado de pastor apaixonado
por Galateia, desajeitado, comovente, monstro que provoca compaixão. Devido a
um jogo de palavras que associa Galateia a Gálatas, atribui-se a Polifemo a paterni­
dade dos Gauleses, invasores bárbaros que a angústia grega se esforça por ridicula­
rizar e que um pânico irracional escorraçará de Delfos para a Ásia Menor, É sur­
preendente ver como a força selvagem (e negativa, embora divina) de PoUfemo iria
transférir-se para o registo de uma pastoral ambígua, Longe de ser uma traição, uma
humilhação, essa reinterpretação correspondia pelo contrário a uma esperai os
Gregos do século m não fizeram mais do que reconhecer certas valências do espaço
pastoral, constantemente reafirmadas na sua tradição O monstro homéríco era Já
um rústico
Quando são vencidos pelo poder de um deus pastor (Pã, autor do pânico) os
Gálatas (por outro lado, descendentes de Polifemo) são inteipretados em esüío
pastoral; todavia, a sua derrota na Ásia Menor, quando são rechaçados pelos
soberanos de Pérgamo, é interpretada cosmogonicamente como uma repetição da
gigantomaquia. Esta concorrência entre temas pastorais e cosmogónicos, para
exprimir uma violência de rústicos, exige explicação, Idílio e memória épica
alternam, como duas visões da mesma coisa. Ambivalência do monstro, ridículo e
inquietante.
A análise rápida de uma outra tradição, também ela épica na origem, mas
L-í: partindo do ppnto de vista cosmogónico, convida-nos a uma observação idêntica,.
Tudo começa cora a Teogonia de Hesíodo, que nos leva a examinar uma outra
personagem, mais inesperada neste contexto: Tifon. O processo descrito por He­
síodo desenrola-se a um nível ao mesmo tempo cósmico e divino, em que se passa
de espantosas entidades primordiais (Tetra, Caos, Eros, Tártaros), através da pe­
neira genealógica e dos conflitos de sucessão, para a instauração finai de uma
soberania arduamente conquistada (a soberania de Zeus) Definida como garante de
uma partilha equilibrada entre poderes rivais, mas já limitados, essa soberania
afirma-se também, no relato de Hesíodo, como vitória sobre um poder de desordem,
um inimigo que aparecera no momento em que se podia acreditar que se atingira o
equilíbrio; Zeus tem ainda de se desembaraçar de Tífon, saído da Terra primordial,
como uma ameaça ressurgente após a vitória sobre os Titãs, Instância primordial,
Terra dá à luz esse monstro, não tendo portanto perdido a sua fecundidade cosmo-
gónica Dela podem ainda surgir, como inquietaníes hipóteses, alternativas à ordem
olímpica. No entanto, o que dela sai já não basta. Vencedor de Tífon, Zeus devora
Métis, o que lhe dá a certeza de não vir a ser destronado O seu poder repousa na
assimilação de um poder que permanece, para toda a tradição grega, como o melhor
antídoto para as pulsões de violência,
O destino literário de Tífon, sob este ponto de vista, interessa-nos Na época
helenística, esse monstro, cuja deirota é descrita na Teogonia como um combate

®Cujo drama satírico intitulado O Ciclope põe em cena, em redor de um monstro, um coro dirigido
por Süene

135
que devasía o universo, embora conserve o seu papel de adversário de Zeus,
converte-se numa personagem quase comovente e destruída pela sua ingenuidade
num contexto quase pastoral Com efeito, depois de ter neutralizado Zeus num
primeiro combate, vê-se confrontado com adversários menores {Pã, Cadmo ou
Hermes e Egipan), que conseguirão enganá-lo por meio de ciladas elementares.
Convertido numa espécie de rústico, o monstro cosmogónico vê a sua atenção
desviada, numa paisagem bucólica, por um tentador cheiro a peixe, ou pela música
de uma flauta Por uns instantes, esquece-se a gravidade da ameaça que pesa sobre a
ordem universal, passando-se para uma rixa pastoral em que o monstro, como um
selvagem, é vencido pelos seus desejos. Zeus tira proveito disso, voltando a domi­
nar’ Amenização do mito, mero jogo de estetas? Seria demasiado simples, De
facto, o que se passa é a transferência da pastoral, da «rusticidade», para o conceito
de ameaça cósmica. O rústico não é iàenúficado com o monsixo cosmogónico mas
íomou-se, no termo de um processo que não é apenas literário, o seu herdeiro
lógico. Sob aparências anódinas, é a confissão de uma função nova atribuída à
imagem pastoraK Na sua inevitável e indispensável presença, uma das tarefas do
rústico é garantir a dinâmica do equilíbrio: uma resistência, uma ameaça, um devir
que não deixa de obrigar o humano, o animal político, a redefmír-se na sua dife­
rença em relação aos deuses e aos animais.
Sabe-se que, ao nível heróico e humano, a situação é análoga: o espaço não se
abre de repente à empresa dos moitais; a chora humaniza, pacifica Trabalhos,
sofrimentos de herói, como Héracles e Teseu, Na realidade, o perigo nunca será
íotalmente afastado: o estrangeiro, o bárbaro, o «outro» ocupam as fronteiras, e por
vezes apenas as zonas ainda incultas de um território definido. No centro da vida
política, próxima de & us, de Aíena ou de Apoio, a selvagem Mãe dos deuses
domina, cercada de leões, ao lado do Conselho dos Quinhentos'*; por seu lado,
Dioniso, no seu boncoleion {«santuário do boíeiro»), vela pela cidade de Atenas.
No segundo livro das suas fíistàrias, Tucídides faz um breve historiai da evolu­
ção da cidade na Ática, para explicar a agitação provocada, em 4,31, pela transferên­
cia da população dos campos para a cidade de Atenas e paia o interior das «longas
muralhas» que se estendiam até ao Pireu- E evidente que seria errado pensar-se que
Atenas teria sido até então o único aglomerado urbano da Ática. Havia burgos e
mesmo cidades relativameníe importantes (por exemplo, Thôrilcos ou Maratona)
que já existiam há muito tempo. O famoso «sinoecismo», agrupamento cuja inicia­
tiva é atribuída pela tradição mitológica a Teseu, pressupõe a existência de uma
pluralidade de aglomerados de tipo urbano Esse agrupamento começou por ser
administrativo. Convertida em centro político e comercial, e em certos aspectos
também religioso, a cidade de Atenas não reunia no seu interior o conjunto da
população. A maioria dos cidadãos continuava a residir nos seus demos, com os
seus costumes econômicos e religiosos ancestrais. A perda da autonomia não

'' Cfr Marcei Détienne e Jean-Pierre Vemant, U s ruses de rinielligence La métis des Grecs,
Paris, Flammarion, 1974, pp. 115-121; Philippe Borgcaud, Recherchas sur îe dieu Pã, Biblioteca
Heîvctica Romana XVn, Genève, Droz, 1979. pp 171-173.
“ O autor destas linhas está a terminar uma obra acerca da Mae dos deuses

136
implicava a perda das especificidades. No século ii da nossa era, Pausântas ainda
afirma que, nos demos, as tradições referentes aos deuses e aos heróis eram diferen­
tes das que se destinavam aos visitantes da Acrópole^. É por isso que Tucídides, ao
definir a situação existente antes das Gueixas do Peloponeso, esclarece que «a
maioria deles [Atenienses] obedeceram ao hábito, conservando, ,, até à nossa
guerra, os seus agrupamentos familiares e as suas residências nos campos [en lois
agrots]» *'*. Neste caso, os «campos» designam lodo o espaço exterior à cidade de
Atenas propriamente dita, ou seja, tanto os aglomerados e os burgos, os demos,
como os campos, o espaço do trabalho agricoía.
A data de 431 marca uma ruptura fimdameníal na história do imaginário antigo.
Os Atenienses depressa a sentiram como íal Com o abandono dos campos (momen­
tâneo, é ceno, mas suficientemente demorado para dai‘ a impressão de que a
situação se eternizava), modifica-se toda uma visão do mundo. Várias comédias de
Arístófánes e algumas páginas célebres de Tucídides mostram-no sem rodeios; íòi
um verdadeiro traumatismo, de que a peste de 430 constitui o sintoma mais especta-
cuíar: «Achavam penoso e era a custo que deixavam casas e santuários que sempre
tinham sido seus, de pais para filhos, desde a antiga forma de organização política;
também tinham de alterar o seu modo de vida e era de facto a sua cidade que cada
um abandonava»
No célebre discurso citado poi Tucídides, Péricles descreve a verdadeira natu­
reza dessa mudança de mentalidade sob a forma de um programa de acção política e
estratégÍca.\<(Portanto não é o uso das casas e da terra, cuja privação vos parece tão
importante, que define esse poder fo poder manlímo de Atenas]; e não é normal
sofrer por causa disso: deve-se ames considerá-las, perante esse poder, como um
jardim de recreio e um luxo de rico de que devemos desinteressar-nos» O ideal
(tratava-se de facto de uma vocação mais teórica do que real) de uma Atenas
essencialmenie agrícola, fundiária, é contestado, e imperiosamenie excluído, devido
à afirmação do destino marítimo e comercia]. Os valores (míticos) da terra continua­
rão decerto a reivindicar o seu papel ideológico, mas já não ocupam o lugar central.
A cidade, a urbanidade comerciante e sofística, impõe novas prioridades ao cida­
dão-camponês. Fisicamente deslocado, pela guerra, para esse novo ambiente, pode
sentir-se, e legitimamente, desamparado. O que, muitas vezes, assume aspectos de
conflito de geração (o conflito, por exemplo, que opõe o «raciocínio justo» ao
«raciocínio falso» nas Nuvens de Arístófánes). Quando é velho, o rústico, incapaz
de se adaptar, vê-se em conflito com o filho, aluno dos sofistas (ou de Sócrates
considerado como tal). É nesta situação histórica que a retórica da agroikia, da
nistiddade que se opõe à urbanidade, se cristaliza.,
Desesperado com a educação do filho, o velho Estrepsíades entrega-se a uma
eloquente anamnese: «Ah! Por que não pereceu miseravelmente a alcoviteira que
me iludiu fazendo-me fazer casar com a tua mãe! Eu levava uma vida de camponês,

®Paus5nias, 126, 6
Tucfdídcs, I I I 6, 1
Tucídides. II 16,2
Tucídides, II 62. 3

137
amena, ociosa, indoiente, repleta de abelhas, de ovelhas, de bagaço de azeitona
E caso com a sobrinha de Mégacles, filho de Mégacles, eu, homem do campo, caso
com uma mulher da cidade, uma menina, uma presumida, em Cesireia. No dia do
casamento, à mesa, junto dela, cheirava a vinho novo, a queijo, a lã — a abundância;
ela, cheirava a perfhmes, a açafrão, a beijos lascivos — a dissipação, a guíodi-
c e ... » Confrontado com as Nuvens filosóficas, Estrepsíades vê-se de facto tratado
como rústico {agwtkos) desamparado e desajeitado, mal-educado.. Seria apenas o
idiota sobrevivente de uma outra época, fedendo a antiguidade, se, por outro lado,
não tivesse o privilégio de simbolizar alguns valores fundamentais: «Quanto a
firmeza de alma, a zelo que não conhece o sono, a frugalidade habituada às
privações, contentando-se com salada para o jantai', não tenhas preocupação nem
medo, quanto a isso podería servir de bigorna»
Devemos lembrar-nos de que, na tradição grega, o que está na origem da tomada
de consciência da oposição, que acabai'à por se tomar convencional, entre o rústico
e 0 citadino é uma guerra Conviría estabelecer aqui o que compete à história
anterior. Mostrar como se passou de uma situação descrita na epopeia, em que cada
senhor reina sobre um domínio relativamente autárquico, de tipo familial, para uma
situação em que as terras, tomadas propriedade de uma oligai'qula citadina, são
trabalhadas por uma mão-de-obra escrava que acaba por se revoltar (situação
descrita era Mégara, no século vi, por um Téognis chocado com a ideia de que os
«servos», os campónios miseráveis, puderam introduzir-se na cidade e conquistar o
poder) Em finais do século v, o que se altera, a partir de uma longa experiência
ateniense (em que as etapas de Sólon, e depois de Clístenes, são decisivas), é o
estatuto da oposição entre rústico e citadino: concebida tendo por pano de fundo
uma guerra que os atinge a ambos, em conjunto e solidariafriente, essa oposição
toma-se um instrumento que permite pensar o espaço político, o equilíbrio e a saúde
social.. A paz, e o riso que eia volta a descobrir, conservarão durante muito tempo,
como herança dessa memória, um intenso e agradável cheiro a quinta. Aristófanes
põe em cena Geórgia, a «Agricultura», que se apresenta nestes termos: «Eu sou a
ama universal da Paz. Podem contai' comigo para essa tarefa: ama, intendente,
companheira de trabalho, filha e irmã» (fr 294)
Portanto, a oposição entre cidade e campo surge como uma invenção do sé­
culo V resultante da situação particular gerada pelas gueiras do Peloponeso. Até
então, o cidadão ateniense, na maior parte dos casos, vivia fora de Atenas, nos
demos, e só ia à cidade tratar de negócios (econômicos, políticos ou religiosos).

” Aiistófiines, Nuvens, vv. 41-52


'■* Aristófanes, Nuvens, 420 segs.
Téognis I 53-57 Em Píndaro também, «a terra agrícola [sÓ é considerada] como propriedade de
uma classe arisíocrática c como fonte de riquezas e não como objecto de trabalho» (Nathalie Vanbre-
meerseh. «Terre eí travai! agricole chez Pindare», Quademi di Síoria 25 (1987), p. 85.
Cfr. François Hartog, «De la bêtise et des bêtes», Le Temps de la réjlcjdon 9 (1988), p. 60: «Pode
pressupor-se a existência de uma correlação entre os sentidos e os valores da palavra agroikos e os
modos como foi interpretada e analisada a questão das relações cidade/campo desde meados do sé­
culo v até ao século ii a C »

138
A sua vida estava ligada ao trabalho das suas terras É certo que, na cidade, já se
encontrava com artesãos e comerciantes, mas, para ele, esse tipo de economia
desempenhava um papel de somenos importância . É assim que se começa a entre­
ver, no plano arqueológico, uma evolução do habitat, Até finais do século V, as
casas luxuosas situam-se no campo, isto é, no domínio onde o particular, o indiví­
duo pode exibir a sua riqueza e a sua originalidade Quando nos aproximamos do
centro poííüco-religioso (a cidade), as casas particulares tomam-se simples, em
comparação com os edifícios públicos, administrativos ou religiosos. Essa simplici­
dade corresponde ao ideal da igualdade política. A partir de finais do século v, essa
situação modifica-se: os proprietários de terras (mesmo os pequenos) passam a
residir na cidade e só vivem no campo durante certos períodos do ano; as residên­
cias campestres tomam-se mais modestas, em certa medida secundárias Os habi­
tantes fixos do campo (que continuam a existir, claro) são agora os rústicos, os
agroikoi de que troça a nova comédia, representados exceleníemente por Cnémon, o
Dyskolos (o atrabiliário) posto em cena por Menandro
Isso parece explicar-se, para começar, pela etimologia O agroikos, corno o
nome indica, é aquele que vive no agios, isto é, em grego homérico, nas terras de
pastagem, nos campos não cultivados, que se distinguem da aurora, a terra culti­
vada,. Ausente da epopeia, o derivado agroikos só aparece porém no século V.
Associa-se então a outro derivado mais antigo, agrios, que se encontra desde os
Poemas Homéricos onde se aplica, entre outros, ao mundo dos Ciclopes, e que
significa «selvagem, feroz» Num estudo que já se tomou um clássico, Chantraine
demonstrou que agrios assumiu o sentido de «feroz» devido a uma assimilação com
0 vocabulário (independente mas homofónico) da caça, onde existe o termo agreo,
«apanhar» e agra, a caça ou os animais caçados’** Por conseguinte, a aposição
começa por existir entre o espaço onde o pastor encontra o caçador (nos confins, nas
fronteiras e para lá do território delimitado) e o espaço do trabalho. Só no século v é
que essa oposição se desloca e se toma oposição entre o espaço exterior considerado
no seu conjunto e o espaço urbano. Por isso, a evolução que vai desde a epopeia até
à comédia é uma evolução histórica (e econômica).
Situado para lá dos linútes da cultura, e classificado como agrios, o monstro
homérico definia-se pela negação dos elementos constitutivos da vida civilizada;
circulando entre estes extremos e a cidade, o rústico {agroikos) aparece como uma
personagem liminar, um mediador, com toda a ambiguidade que isso comporta.
Assim, não é de admirar que, em Atenas, Pã, deus ao mesmo tempo rústico e bestial,
tenha sido considerado como filho de Hermes, o barqueiro
Será de notar até que ponto há diferentes níveis de simboiização do espaço que
coexistem A ausência da palavra agroikos na tragédia, por exemplo, é significativa,
A tragédia mantém-se fiel à mensagem das velhas narrativas tradicionais e dos
cultos praticados desde sempre, em que a terra trabalhada, bem como a viticultura,
garantem a civilização.. Era impossível, nesse sistema, situar o primitivo, ou o

” Esta cvoiuçâo é rcaiçada por Fabrizio Pesando, Oikos e ktesis, Perugia, Quasar, J987, pp 20-25.
" P Chantraine, Etudes surîe vocabulaire grec, Paris, Kîincksieck, 1956, pp 34-35.

139
selvagem, ao lado da charrua Está mais ao alcance do olhar dos caçadores e dos
pastores Menos dependente do mito, a comédia inventa o rústico na figura do
camponês agarrado ao seu demo (que é tudo menos uma terra inculta). A partir daí,
o rústico diversifica-se.
Na literatura, a personagem do agroikos aparece pela primeira vez numa peça
do siracusano Epicarmo e depois em Antifano. Na nossa opinião, trata-se apenas
dos indícios, ultrafragmentários, de um interesse que vai reforçar-se e chegar a
uma verdadeira retórica da agroikia, centrada naquilo que se converte em «carác-
ter», De Aristófanes a Quíntiíiano, passando por Teofrasto, o retrato do rústico
começa’por ser esboçado em grandes traços de oposições binárias: o agroikos
prefere o tomilho dos seus campos à miira das elegâncias citadinas, prefere falar
alto com os escravos à discrição que convém às subtilezas políticas. Reconhece-se
logo pela maneira de vestir: envolto numa pele de cabra ou de carneiro (diphtera),
usa uma coifa de couro à moda da Beócia (kune) e botas (kabartinai), ou mesmo
sapatos cosidos com alfinetes, Tem os cabelos desgrenhados, a barba feita grossei­
ramente com a faca que lhe serve para tosquiar os rebanhos. Fala-se muito da sua
sujidade e do seu fedor .
A principal oposição, que subentende todas as outras, é a que existe entre o
campo e a cidade Com efeito, agroikos opõe-se a asteios («urbano»). Enquanto o
asteios se mostra inteligente, lesto, elegante, de bom gosto, ao agroikos só se
atribuem qualidades negativas: estupidez, lentidão, rudeza, grosseria^”. Todavia, há
certos matizes. Se a urbanidade, quando se mantém dentro de certos limites, surge
como uma qualidade maior, somos obrigados a constatar que o agroikos^ quando
não se reduz a uma caricatura, contínua a ser o depositário de antigos valores
(realçados, como vimos, sobretudo por Aristófanes). A coragem e o bom senso
estão do seu lado. Embora fique a perder em importância econômica, conserva um
privilégio simbólico, o de se situar na junção entre o selvagem e o civilizado, e, por
conseguinte, de conhecer os caminhos da civilidade, os atallios que conduzem da
desordem à ordem, ou o inverso Porque ocupa, idealmente, uma posição liminar,
entre as «fronteiras» (os eschatiai) e o centro urbano (o asíii), entre o coração e os
limites do território delimitado (a chora).
Aristóteles opõe o excesso de fínura, que desemboca no humor a propósito de
tudo (o defeito da bomolochia, próprio de certos ciíadinos) à rudeza do campónío

0 dossier é aprcseníado e analisado por O Ribbeck, «Agroikos Eine cthologísche Studie», in


Abhenâhingen der königlichen sächsichen Geseilschaß {phil-hist Klasse), t. 10, fase 8, 1885,
pp 1-68
^ A lista destas oposições tradicionais é elaborada por K J , Dover, Greek Popular Morality in lhe
Time of Plato and ArísWtle. Oxford, 1974, pp 112-114 («Town and Country»); cfr Victor Ehrenberg,
The People of Aristophanes A Sociology of Old Attic Comedy, Oxford, 1951, pp 82-94 (acerca da
oposição cidade/campo)
Esta problemática está admiravelmente definida, a partir das lendas de origem do gênero
bucólico, por François Fronlisi, «Artémis bucolique», in Revue de 1 d e s religions 198 ( 198 î ),
pp 29-56; cfr, do mesmo autor, «L’homme, le cerf et le berger Chemins grecs de la civilité», in Le
temps de la reßexion 4 (1983), pp. 53-76.

140
que leva tudo a sério, e que nunca ri (o defeito da agroikia) Trata-se de dois pólos,
isto é, de dois excessos. O rústico não admite brincar nem ser objecto de brincadeira
sem se enfurecer, O citadino, tomado pessoa de espírito, perde-se na zombaria e
brinca com tudo A boa vivacidade de espírito (a eutrapelia) é uma «violência
educada» (pepaideumene liubiis) De facto, o agroikos é susceptível de se confun­
dir com 0 selvagem, o brutal, o agrios. Possui em si uma parte de violência, de
hybris, que necessita de ser civilizada, domada. Todavia, um excesso de educação,
de urbanidade, que fizesse esquecer o local de origem, conslituiria outra ameaça:
requinte inútil, luxo exagerado, argúcia demasiada O ideal, para Aristóteles, é a
«violência educada», que evita os dois escolhos e que caracteriza um aspecto
fundamentai do riso: nem o riso inútil, a propósito de tudo, nem o riso grosseiro do
camponês da antiga comédia^'*
Embora fique definido, como aqui, na sua dupla relação com a agroikia e com
uma educação da violência, o riso pode provir dos poderes de um deus. O riso de Pã,
bode e cabreiro, ressoa como o sinal da recuperação das forças da vida após a
agitação guerreira. Riso inquietanle o desse senhor do pânico, revelando a conjun­
ção do sexo e do medo, num contexto em que o humano se confunde com o animal..
No imaginário grego, a paisagem onde esse riso explode é a do campo isolado, perto
das fronteiras ou das montanhas, onde os rebanhos de gado miúdo se abrigam por
vezes em cavernas, obrigando o pastor a deparar com a imagem espacial do pré-
-político, uma Arcádia concebida como limiar do civilizado“
Um exerriplo disso, entre muitos outros cuja profusão se nota a partir do sé­
culo V, é a gruta de Farsale. A hora e meia de caminho da cidade, para oeste, a sua
entrada abre-se a alguns metros da base de uma parede rochosa, em direcção ao
cume de uma colina. Durante os primeiros decênios do século v, um certo Pãtalques
tinha arranjado a caverna e o espaço circundante, cavando degraus de acesso no
rochedo, plantando e dedicando um bosque às Ninfas e às Deusas Um século mais
tarde, o local continua a ser considerado como um santuário, onde Pã, fiUio de
Hermes, foÍ juntar-se às Ninfas e a Apoio“ , bem como a divindades «menores»
tipicamente tessáiicas (Asclépio, Quíron, Héracles) Uma inscrição, à direita de
quem entra, dá voz à divindade (Jio theos), sem especificar, sem designar quem é o
locutor, voz anônima saída da paisagem agreste, que convida o transeunte (visitante

Aristóteles, Mag/iíi mora/iíi, p. 1193a


A expressão cncontra-sc na/íiíforicfl de Aristóteles, 1389bll A e/uro/jW/a não exprime apenas
o controlo do bom humor Como a sua etimologia indica {trépo), trata-se de uma qualidade intelectual
que permite a réplica e a inversão da situação Poder-se-ia traduzi-la por «sentido de humon>. com a
condição de se reconhecer o seu aspecto pcrformaiivo que provém do domínio da métis analisado por
M Détienne e J -P. Vemant (op d t , nota 7)
■'* É assim que Aristóteles, num desenvolvimento da Ética a Nicômaco{ \ 128a}. relata uma história
do riso, desde a antiga comédia até à nova Acerca das relações entre a urbanidade, a rudeza, o riso
equilibrado e o ridículo da fcaídade, remcie-se para o estudo de Maurice Ölender, «Incongru como
Priape Amorphia et quelques autres mots de la laideur», a publicar por N Loraux e Y Thomas (éd ),Le
corps du cifoye/i, Paris, E . H E S S
^ Acerca de Pã, da caverna c da Arcádia, cfr Philippe Borgeaud, op, c it , nota 7
Segundo o agrupamento tradicional herdado do modelo ateniense

141
citadine) à homenagem ritual: oferenda ou sacrifício de um pequeno animal, inter­
valo de paz e de alegria no pesado clima das guenas intestínas que, nessa época,
reinam na Tessália,

O Deus.
Salvê passeantes, quem quer que sejais, fêmeas ou machos, homens ou mulhe­
res, rapazes ou raparigas. Este lugar ê um santuário das Ninfas, de Pã e de
Hermes, do senhor Apoio, de Héraclès e dos Companheiros, esta caverna pertence
a Quiron, Asclêpio e Higia.
É a eles, por Pâ nosso senhor, que pertencem as coisas muito santas que aqui
estão, as árvores, os quadros votívos, as estátuas e as inúmeras oferendas. As
Ninfas permitiram que Pãtalques, um homem de bem, descobrisse este lugar e
velasse por ele Foi ele quem plantou as árvores e trabalhou com as suas próprias
mãos Em troca, elas concederam-lhe uma vida longa e sem estorvos Héraclès
deu-lhe a energia e a virtude, a força com que talhou as pedras, tornando o local
acessível; Apoio, o filho deste e Hermes, deram-lhe saúde durante toda a sua nobre
vida; Pã deu-lhe o riso, o bom humor e uma justa hybris,* Quiron deu-lhe a
sabedoria e o dom do canto
Mas agora, acompanhados pela Boa Sorte, penetrai no santuário, sacrificai a
Pa, fazei os vossos votos, alegrai-vos: aqui encontrareis a interrupção de todos
males, a conquista dos bens e o fim da guerra.

O riso (gelos), o bom humor (euphrosune) e a violência controlada pela justiça


(hybris dikaia) foram os dons que o deus pastor concedeu a Pãtalques; ao nível da
prática religiosa, neste culto dos campos para uso dos citadines, prenunciam a
definição da eutrapelia aristotélica (pepaideumene hybris).
Sabe-se que, a partir de finais do século v, a sociedade grega tende para uma
negação política do rústico: Aristóteles chegará mesmo a desejar o afastamento do
camponês da cidade, enquanto cidadão, em proveito de escravos e de trabalhadores
imigrados. Essa desvalorização, essa ocultação do agroikos não significa, nem por
sombras, o abandono de um espaço que continua a ser, simbolicamente, gerador de
desejos, de conflitos, mas também de civilização. É assim que o culto, nas cavernas,
do deus Pã, símbolo da Arcádia primitiva, a dos comedores de glandes mais velhos
do que a Lua, se desenvolve precisamente à medida que a urbanização vai progre­
dindo, l a l como o campesinato, sob o seu aspecto mais técnico, esse culto entra na
literatura-^. Quanto aos territórios pantanosos, às vertentes das montanhas, zonas
arborizadas e selvagens, ou pelo contrário áridas e secas, onde se criam cabras, se

Supplemmntm epigmjicum graecum l, n.“ 248; cfr D Comparem, sn Armiwrio deita Satota
ardteo/agica di Arene 4-5 (1922), pp 147-160
PoKúca, II, 8..
’’ Ver, acerca da gênese desta literatura, o üvro muito erudito de Stella Georgoudi, Des chevaux ei
des boeti/s dans le monde srec. Rcalilds et représentations animaïières à partir des tivres XVJ et XVIJ
des Géoponiaues, Paris-Athènes, Daedalus, 1990

142
caça, se pesca, se procede à recolha do carvão, ou onde se exerce a vigilância
efébica das fronteiras, continuam a ser objecto de um discurso mítico, embora o seu
estatuto tenha mudado há muito tempo: já não são chorai eremoi, desertos, terras de
ninguém, mas continuam a estar integrados num conjunto de práticas rituais «que
perpetuam a memória do processo de constituição da unidade territorial e política
das cidades»

-í.

Expressão extraída da importante obra de Giovanna Daverio Rocebi, Frontiera e Canfmi nella
Greda antica, Rome, «L'Erma« de Bretschneider, 1988, p 31

143
CAPITULO VI

O HOMEM E A VIDA DOMESTICA


por James Redjíeld
Fontes; a presença de uma ausência

Um dos ensinamentos que Arnaldo Momigíiano nos deixou íoi que a história
não são as fontes, A história é uma interpretação das realidades de que as fontes são
«sinais indicativos ou fragmentos» É certo que partimos de um exame das fontes,
mas aíravés delas tentamos observar a realidade que representam ou que, por vezes,
não conseguem representar, deturpam e até dissimulam A indicação de Momi-
gliano é particularmente significativa em relação ao assunto que nos interessa,
porque os Gregos da época clássica não nos deixaram quase nenhuma indicação
acerca da sua vida doméstica,
Em primeiro lugar, e no que se refere a esse período, dispomos de escassos
testemunhos não formais, isto é, fontes de informação como cartas pessoais, do­
cumentos comerciais, materiais de arquivo, depoimentos feitos em processos judi­
ciais. Não nos faltam, porém, os documentos formais: imagens modeladas e pinta­
das, descrições literárias, relatos históricos, análises filosóficas, discursos públicos
transmitidos como modelos de retórica Encontramos os Gregos, por assim dizer,
como vestidos com o fato domingueiro: não os apanhamos em flagrante, apaiecem-
-nos como desejaram ser reproduzidos, Além disso, nestes casos, e saJvo raras
excepções, trata-se de reproduções da vida pública, A história, uma vez adquirida a
sua foima canônica com Tucídides, interessou-se quase exclusivamente pela polí­
tica e pela guerra, A partir de Pitágoras (não esquecendo essa importante excepção
que é Aristóteles), a tradição filosófica observou com hostilidade a «esfera domés­
tica», campo^de emocionalidade flutuante, de tendências anti-sociais e de baixas
motivações E mais provável que sejam morais as acções inerentes à vida pública,
na medida em que, por serem visíveis, estão sujeitas ao julgamento do público,
A vida pública desenrola-se num espaço público, Esta regra tem um reflexo
especial na forma artística que representava para o público de Atenas a experiência
privada e as relações domésticas, isto é, o drama,. Tanto na tragédia como na
comédia, a cena passa-se ao ar livre, na rua ou num local do gênero. As personagens
saem de casa — ou do seu equivalente (a tenda de Ájax, a caverna do Ciclope) — e
não é raro darem algumas explicações acerca do motivo por que saíram para expor

147
os seus secretos propósitos ou para se lamentarem dos seus desgostos privados Por
outras palavras, a representação surge como revelação de algo que costuma estar
oculto. Isso ajuda-nos a compreender porque é que, no drama, as relações domésti­
cas são geralmente apresentadas na sua anormalidade, como interrompidas ou em
crise Enquanto representação da vida doméstica, o drama é também uma espécie de
escândalo.
No drama há muitas personagens femininas Na vida de todos os dias, era
motivo de mérito para uma mulher ateniense (como observa o Péricles de Tucídi-
des) que nada se soubesse acerca dela; as mulheres que aparecem em cena estão em
certa medida desacreditadas ou já em perigo, a partir do momento em que o público
as vê, pelo próprio facto de as poder ver O que normalmente está oculto só pode
estar deslocado quando é revelado
Os Gregos do período clássico não produziram as narrativas naturalistas que são
um testemunho tão rico da vida doméstica dos tempos modernos. E certo que
podemos deduzir algumas coisas das representações de que dispomos, mas é como
se assistíssemos a uma comédia, em que uma porta se abre de vez em quando para
surgir um mensageiro, ou uma personagem se aproxima contando-nos algo do que 1
s^e passa nesse mundo invisível e fechado A partir dessas alusões e desses fragmen­
tos é possível elaborar uma descrição da vida doméstica na antiga Grécia, e de facto
isso foi feito; todavia, o presente ensaio adopta um modo diferente de proceder
Pretende ser uma pesquisa acerca da ideia da «esfera doméstica» entre os Gregos
(sobretudo pelo que se pode extrair dos mitos e dos ritos) e, de um modo mais
específico, acerca da posição dessa ideia na ideologia da cidade-Estado. A selecção
feita por um povo ao representar-se a si mesmo pode dizer-nos muito, tanto pelo que
oculta como pelo que revela

A supressão da «esfera doméstica»

Comecemos por uma ausência bem conhecida mas desconcertante: os Gregos da


época clássica não nos deixaram nenhuma história de amor, O enredo que nos é
mais familiar, aquele que se desenrola quando «um-encontia-uma» e acaba com um
«víveram-feiizes-e-contentes» não existe na literatura grega antes do Dyskolos de
Menandro, escrito em 316 a, C., sete anos após a morte de Alexandre Magno.
É possível que algumas obras que se perderam — a Andrómeda de Eurípides, por
exemplo — obedecessem a esse esquema, e não faltam algumas excepções nesse
sentido nas obras que chegaram até nós e que, na sua maioria, se referem aos
deuses; na nona Pítica de Píndaro, por exemplo, vemos Apoio a cortejar a ninfa
Cirene; e Homero alude às aventuras pré-matrimoniais de Zeus e Hera, «quando de
amor a primeira vez se uniram / entrando no leito, dos queridos pais na escuridão»
(Ilíada, XIV, 295 segs ). Todavia, a regra geral continua a manter-se válida, o que é
surpreendente, na medida em que (ao contrário da narrativa de tipo naturalista) as
histórias de amor existem em todo o mundo e estão na base de clássicos tão
diferentes entre si como A História do Príncipe Genji, ou o Sakimtala Além disso,
constituem uma parte importante do património comum das fábulas populares indo-

148
-europeias, quer se trate da história do filho mais novo que conquista a bela
princesa, ou da donzela infeliz salva pelo seu bravo cavaleiro
Claro que os Gregos também contavam histórias desse gênero, como, por
exemplo, a da conquista de Medeia por lasão ou a de Hipodamia por Pélops, mas,
no período clássico, essas histórias não eram propriamente de amor. Píndaro, por
exemplo, conta a história de Pélops e a de Jasão. É certo que, na primeira Olímpica,
Pélops é um pretendente, mas não o vemos cortejar Hipodamia, que é mais o prêmio
para o vencedor de seu pai, Enomau. Na quarta Pítica, Jasão fascina e seduz
Medeia, que não é o prêmio procurado, mas o instrumento que lhe vai permitir levar
a cabo uma empresa que lhe restituirá o seu patrimônio.
Por outras palavras, Jasão não anda em busca de uma esposa, mas da sua
herança,, A sucessão é o aspecto da vida familiar que interessa à narrativa clássica.
Na Antígona, por exemplo, Hémon e Antígona estão noivos — o amor que ele sente
pela rapariga constitui o «ponto de crise» do enredo trágico — , mas o tragediógrafo
nunca os coloca ao mesmo tempo em cena: Antígona surge como o motivo do
conflito entre Hémon e seu pai. Clitemnestra mata o marido e casa com outro, mas a
sua tragédia reside na relação com Orestes, que tem de matar a mãe para reivindicar
os seus direitos ao reino do pai Há ainda Édipo: os seus problemas começam
na infância, quando seu pai tenta matá-lo, e continuam quando — por acaso — ele
recupera o seu patrimônio matando o pai e desposando a mãe. Os problemas surgem
quando um pai tenta impedir a legítima sucessão das gerações. Do mesmo modo, o
conflito entre Pélops e Enómao torna-se homicida, porque Enómao não queria
consentir no casamento de sua filha e por isso desafiava todos os pretendentes para
uma conida de carros. Mandava partir primeiro o pretendente, depois alcançava-o
com os seus magníficos cavalos e apunhalava-o pelas costas. Assim tinha feito Já
com doze jovens, O trigésimo, Pélops, conseguiu (de modos diferentes, de acordo
com as várias versões) matar Enómao e conquistou Hipodamia.
Numa das versões, Enómao queria desposar Hipodamia, e este tema incestuoso
pode considerar-se latente em todas elas: desposar a sua própria filha é como matar
o próprio filho, é uma recusa de «ceder», de dar o lugar à geração seguinte.
Como são imortais, os deuses não têm este problema, ou melhor, precisamente
por serem imortais, têm o problema oposto. A Teogonia de Hesíodo conta detalha­
damente como os dois maiores deuses, Úrano e Crono, tentaram em vão, cada um
por sua vez, impedir a sua sucessão: Zeus, terceiro na linha descendente, repôs a
ordem no cosmos. Conseguiu-o devorando, mais do que desposando, Métis, sua
primeira mulher, Da cabeça de Zeus nasceu Atena — que lhe era devotada em tudo,
na medida em que Zeus era seu pai e sua mãe, ao mesmo tempo — , assim se
evitando o nascimento de um filho que podería vír a ser melhor do que seu pai, Em
suma, o eterno poder de Zeus estava assegurado por uma filha eternamente virgem e
por um filho não nascido
Como somos imortais, pareciam dizer aos Gregos os seus mitos, temos de
permitir que as nossas filhas se casem e que os nossos filhos vivam. Os que
infringem esta regra perturbam o universo. Um exemplo lendário é o de Astíages,
rei dos Medos; soubera em sonhos (Heródoto, 1, 108) que o filho de sua filha
ocuparia o seu lugar no trono, Em vez de se alegrar com o sonho, que lhe prometia

149
reinar durante mais uma geração (suceder-lhe-ia não o seu filho mas o seu neto),
Asüages comporíou-se como se esperasse viver etemamente e tentou matar a
criança, Foi assim que surgiram Ciro, o Grande, e o Império Persa. Erros que, a
nível doméstico, provocam tragédias, geram prodígios na história do mundo,
O problema da sucessão é uma das facetas da relação entre cultura e natureza:
através da sucessão, nós, organismos mortais — «criaturas de um só dia», como nos
definem os poetas —, transmitimos uma ordem cultural duradoura. Só o podemos
fazer superando o egoísmo; a ordem cultural converte-se depois na dádiva que uma
geração lega à geração seguinte Como, para os Gregos, a ideia de família se
colocava nestes termos, o seu ponto de vista em relação a ela era o da cidade-Esíado.
Nessa óprica íotalmente política, a finalidade da família é transmitir os bens e os
papéis sociais, para que a ordem política sobreviva à morte dos indivíduos. No
plano da natureza, a função civil das mulheres era produzir cidadãos, isto é,
herdeiros varões dos chefes de família que constituem a cidade; no plano da cultura,
as mulheres rimctonavam como penhor numa transacção entre sogro e genro. Essa
tiansacção era a engye ou engyesis. Iratava~se de um acordo entre o pai da mulher
(ou 0 seu tutor legal) e o seu pretendente, acordo através do qual a tutela era
hcansferida de um dos primeiros para o segundo. Nos mesmos termos se efectuava a
transferência como garantia de qualquer coisa. Portanto, a entrega da mulher selava
um compromisso entre os dois nomes; o mais velho oferecia-a como penhor no
sentido activo do verbo, o mais jovem recebia-a no sentido verbal «médio» (engyo-
mai: cfr, Heródoto, VI, 130, 2). A mulher não tomava parte na transacção. - .4
A expressão ática dizia o seguinte: «Dou como penhor a minha filha para que
gere filhos legítimos, e com ela um dote deste montante...» (Menandro, fr. 435
Kol.; Dyííkolos, 842 segs.). O pai não só cedia a filha, como se comprometia perante
0 genro e lhe dava. ao mesmo tempo que a filha, um dote. Formalmente, o dote I.
nunca pertencia ao marido, que guardava para os filhos e que devia restituí-lo se o
matrimónio fracassasse; no entanto, costumava ser um indubitável atractivo, na
medida em que o marido podia administrá-lo enquanto o matrimónio durasse.
O genro não era obrigado a dar qualquer coisa em troca; na poesia épica, fala-se
muito de dorn nupcial, mas o matrimónio-troca clássico só era recíproco dentro de
uma teia de reciprocidade generalizada: o pai tinha de ceder a sua filha porque
também tinha recebido a filha de outro.. A única condição expressa da transação era
a «geração de filhos legítimos». O sogro era compensado pela perspectiva de ter
netos. O ponto fulcral continua a ser a herança O matrimónio é concebido como o
meio que permitirá que um homem tenlia descendentes através da sua filha. Em
troca, o genro adquire certos direitos em relação ao sogro
Na Grécia, os casamentos não eram «combinados», se entendermos por isso um
acordo entre os pais dos noivos.. Os Gregos nunca conheceram nada que se asseme­
lhasse à romana patria poíestas, que obrigava os filhos adultos a permanecer sob a
autoridade do pai enquanto este vivesse; portanto, era o pretendente, enquanto
homem adulto, quem «contratava» a esposa. Casar era uma fonna de aquisição,
fazia parte da «terceira função»; Hermes, patrono da passagem das noivas da sua
antiga casa para a nova, é também o deus dos negócios, do furto e dos objectos
encontrados Na República de Platão, Glauco fala do casamento como se fosse uma

150
forma de comércio; o homem verdadeiramente injusto, diz ele, é aquele que procura
«desposar mulher que deseja, dar por esposa a filha a quem ele quer, contrair
relações e formar sociedades com quem lhe apetece e lucrar com tudo isso, por não
ter quaisquer escrúpulos era ser injusto» (362b)..
Assim, o casamento enraíza-se solidamente num mundo masculino de públicas
Uansacções, de competição pela honra e pelo proveito. Por este motivo, não se
centra na relação privada entre marido e mulher, o que terá como consequência,
além de outras, a ausência de histórias de amor.
Na realidade, as histórias de amor são histórias sobre o ideal da relação conjugai,
porque o preço que se paga pelo casamento valoriza o estado conjugal, e contar os
passos que separam a condição de «solteiro» da condição de casado é uma forma de
assinalar a diferença que existe entre as duas Utilizando uma linguagem mais
técnica, poderá dizer-se que uma história de amor delineia a estrutura ideal do
casamento em lermos de uma série de acontecimentos ideais São histórias que não
têm qualquer necessidade de reflectír uma prática real de namoro; assim se expli­
cam os motivos que as tomam tão populares em culturas como as sul-asiáticas, por
exemplo, em que praticamente todos os casamentos são combinados e os noivos
não se vêem até ao dia das núpcias, Todavia, a noiva espera ser apreciada, e por isso
apaixona-se pelas histórias de mulheres cortejadas; pelo seu lado, o noivo, que
espera ser admirado, gosta das histórias em que o futuro marido se bate para
conquistar a sua dama. Se a história é daquelas em que a esposa é um prémio que
aguarda o mais merecedor, satisfaz o desejo feminino de ser considerada ura
tesouro e a ambição masculina de o merecer Se, na história, a esposa é uma vítima
que acaba por ser salva, isso significa que as mulheres devem ser protegidas e que
os homens são suficientemente fortes para o fazer. Nas histórias, vivem felizes para
sempre, como se, dados os factos, a continuação só pudesse ser essa: trata-se, de
facto, de exemplos de felicidade conjugal
Por conseguinte, a ausência de histórias de amor na literatura grega é um aspecto
da ausência de qualquer descrição positiva do casamento. As personagens femini­
nas das tragédias ou são vitimas da força como, por exemplo, Ifigênia e Io, ou fúrias
vingadoras, como CUtemnestra e Medeia, mas também podem ser as duas coisas,
como Dejanira e Antigona. Na literatura trágica, o casal mais feliz (antes de
descobrirem a verdade) talvez sejam Edipo e sua mãe! Em Aristófánes encontra-se
algo mais que reequilibra a balança — o herói dos Acantenses aparece com a
mulher, ta! como faz, ainda com maior relevo, o herói de Pluto — , mas a única cena
verdadeiraraeníe memorável entre um homem e a sua esposa é aquela em que
Mirrina recusa os favores do marido, em Limtrata. Dos dramaturgos cujas obras
conhecemos, Eurípides parece ser o mais interessado no tema do casamento. Ifigê­
nia era Áulis gira em tomo de um casamento (que dissimula naturalmente um
sacrifício humano); Andrómeda e Oresles terminam com um noivado. Helena e
Alcestes com a reunião dos cônjuges. Todavia, de todas estas tragédias só Alcestes
pode ser considerada uma obra sobre o casamento, já que nela se lamenta a
felicidade conjugal perdida.
Todavia, a poesia épica dá-nos uma impressão diferente, A Odisseia, no fundo,
centra-se na reconstrução de um casamento, e o casas belli da Guerra de Tróia é um

15!
casamento; aiém disso, a acção da Híada desenrola-se em tomo da perda e da
reconquista de uma mulher por parte de Aquiles, que relata essa circunstância:
«entre os mortais só os Atridas amam as esposas? Ah não! todo o homem nobre e
sábio / ama e protege a sua» (llíada, IX, 340-42).
Em Homero, a par de Príamo e Hécuba, Heitor e Andrómaca, Alcínoo e Arete,
Ulisses e Penéiope — para não falar de Zeus e Hera — encontramos toda uma
galeria de casais, e a imagem do casamento é, em geral, positiva Só na produção
literária posterior é que este tema desaparece
Todavia, quando, por fim, chegamos ao Dy.skalos, deparamos com uma primeira
e vaga tentativa de história de amor, dado que a comédia é já um exemplo avançado
do gênero, com o seu jovem herói sincero e apaixonado, a sua virginal esposa
reclusa, o seu irascível pai, a sua teia de adversidades e de equívocos superados,
A partir de Menandro, este gênero de história torna-se o filão principal da narrativa
helenística É como se estas histórias tivessem estado sempre presentes de uma
forma latente, suposição que é confirmada pela observação de que, nos livros Ví e
VII da Odisséia, está já latente uma história de amor,, A visita de Ulisses aos Feaces
é cuidadosamente e muito expílcitamente construída de modo a não se adaptar a
uma encenação subentendida que leve o estrangeiro de belo aspecto vindo do mar a
desposar a filha do rei e a herdar o reino, Essa evolução alternativa da história está
na mente de todas as personagens, e tanto o poeta como o seu publico a conheciam.
A conotação do casamento como tema latente, isto é, oculto, na cultura grega é
posteriormente confirmada pelo fácto de os autores que pintam o quadro mais
naturalista da vida conjugal serem Arisíófanes (por exemplo, introduzindo nas
Nuvens o relato que Estrepsíades faz da sua primeira noite de núpcias, ou, em
Lisislrata, as bisbilhotices femininas) e Heródoto — neste caso, remetendo muitas
vezes para o exótico Oriente, a começar por Candaules da Lídia, mas também num
contexto grego, Aiistófanes e Heródoto são os dois autores «canônicos» mais livres,
evideníemente, para discutir assuntos expurgados por gêneros literários mais res­
peitáveis: ambos, por exemplo, falam de coisas nunca mencionadas em Homero,
como urina e órgãos genitais femininos
Chegamos assim a estabelecer uma fronteira cronológica, O periodo em que o
casamento é suprimido como tema literário é exactamente aquele em que a cidade-
-Estado funcionava como estrutura auto-suficiente — ou pelo menos indepen­
dente — na vida dos Gregos, Antes de Homero não se pode falar de cidade-Estado
no sentido próprio; depois de Alexandre, a cidade-Estado só sobreviveu como
unidade social e administrativa sob o domínio dos monarcas helenistas e dos seus
sucessores. A cidade-Estado, por outro lado, é a forma de vida social mais caracíe-
nstica dos Gregos da época clássica, a que melhor os caracteriza. Falar do «homem
doméstico» entre os Gregos é colocar a questão das relações entre a esfera domés­
tica e a cidade-Estado
Na tragédia, que era uma arte civil, os temas domésticos são inseridos no quadro
de uma sociedade heróica, uma sociedade em parte imaginária, em parte copiada da
época anterior à cidade-Estado, quando, como se vê na poesia épica, as mulheres
apareciam com mais frequência e eram mais independentes, A sociedade heróica é
governada pelas monarquias, e as famílias que protagonizam os dramas são famílias

152
de reis e de príncipes (aígumas das primeiras tragédias situam-se no Oriente, mas
isso não aitera a questão porque no Oriente também imperava a monarquia). Assim,
mediante uma transposição, as tragédias reflectem as ânsias da cidade-Estado Os
problemas domésticos das famílias reais têm obviamente uma relevância política
Por conseguinte, representar histórias heróicas tornou-se (entre outras coisas) um
modo de reflectir sobre as implicações políticas da ordem doméstica,
Um tema recorrente nestas obras é a ameaça do poder feminino, o perigo de os
homens perderem o controlo sobre as mulheres Este receio tem o seu correspon­
dente cômico na hipótese fantástica, avançada por Aristófânes, de uma acção
política das mulheres. Quer em sentido trágico quer em sentido cômico, o poder
feminino é sempre tratado como uma perturbação da ordem natural das coisas,
provocada ao mesmo tempo pela loucura e pela fraqueza dos homens. Quer a
mulher cm questão seja a perversa Clitemnestra, a apaixonada Antigona ou a
prudente Lisístrata, a reivindicação do poder por parte das mulheres é interpretada
pelas próprias mulheres como o sinal de um erro terrível. O que os Gregos ouviam
dizer no palco era que o poder legítimo na cidade-Estado era o dos homens, mas que
essa ordem legítima não estava assegurada
As lendas gregas também falam de mulheres tresloucadas: são as Ménades, as
«loucas». Abandonam a cidade e vagueiam pelos montes, extáticas e violentas,
executando actos prodigiosos: brincam com serpentes, dilaceram os animais com as
suas próprias mãos e podem enfrentar os homens e vencê-los. São, em geral,
devotas de.,Uioniso, que se diverte com elas como Ártemis com as suas ninfas.
Todavia, enquanto as Ninfas são imortais, as Ménades são mortais, são mulheres e
filhas de gente comum, e o menadismo não é uma forma normal de religiosidade;
pelo contrário, nas lendas, é acima de tudo um castigo que recai sobre comunidades
que resistem ao deus. É típica a história da chegada de Dioniso a Argos, onde o
deus, por não ter sido homenageado, provocou a loucura das mulheres: «levaram os
filhos que tinham ao colo para os montes e alimentaram-se com a sua carne»
(Apolodoro, Biblioteca, .3, 5, 2, 3)., O menadismo é a negação da maternidade e da
sucessão, é um flagelo como a carestia, a seca ou a pestilência e, como estas, só
pode encontrar remédio se se estabelecer uma relação justa com o deus,.
Argos também serve de pano de fundo para as histórias das filhas de Preto, que,
nas diferentes versões do mito, acabam por enlouquecer Numas versões, resistiram
a Dioniso; noutras, a deusa ofendida é Hera Na versão de Hesfodo {fragmenta
Hesiodea, 130-133, Merkelbah-West), tomam-se arrogantes por terem muitos pre­
tendentes e a sua arrogância fá-las ofender Hera, que começa por tomá-las excessi­
vamente luxuriosas para depois as castigar com a lepra e a calvície. Para as pôr a
salvo, levam-nas para fora da Aigólida Existe uma outra versão em que elas fázepi
enlouquecer todas as mulheres de Argos, que matam os seus próprios filhos. Então,
Melampo e Bfa conduzem as três jovens a um reíno vizinho e, depois de terem
morto uma no caminho, curam as outras duas e desposam-nas Preto divide a
Argólida com os dois genros (Apolodoro, Biblioteca, 2, 2, 2, 2-8),
Na versão desta história que nos é dada por Hesfodo, o poder feminino que
escapa ao controlo é expücilamente o poder sexual: a arrogância das jovens deriva
do facto de terem muitos pretendentes, de se sentirem «um bom partido». Hera

153
castiga-as tomando-as incapazes de controlar a sua sexualidade e privando-as
depois de qualquer atractivo. Na história de Melampo, o remédio é a expulsão das
rapaiigas; o resultado final (que passa pelo sacrifício de uma das três) é não só um
casamento mas também uma nova ordem política. No quadro da ordem civil e
doméstica assim restabelecida, as mulheres já não matam os seus próprios filhos e a
sucessão legítima poderá de novo prosseguir, Consideradas no seu conjunto, as
várias histórias das filhas de Preto parecem dizer aos Gregos que o casamento, ao
canalizar para o objectivo da sucessão o poder sexual das mulheres, Umita-o e
assegura assim a ordem civil e uma boa relação com o deus.
A mais famosa representação literária do menadismo são as Bacantes de Euripi­
des, onde o menadismo continua a ser identificado com um castigo pela resistência
a Dioniso, cuja natureza divina o rei de tebas, Penteu, se recusa a reconhecer (na
realidade, Dioniso é primo direito de Penteu, dado ser filho de Zeus e de Sémele,
irmã da mãe do rei tebano) Por isso, o deus expulsa de Tebas as muUieres, que,
acometidas de loucura, percorrem selvaticamente as montanhas, atacando as aldeias
e raptando as crianças, O seu lugar em Tebas é ocupado pelas mulheres da Ásia que
Dioniso trouxera consigo, sob a sua protecção, fingindo ser um sacerdote de si
mesmo, Penteu tenta prender Dioniso, mas o deus serve-se de um feitiço para se
salvar, abalando com violência o palácio real e conturbando depois a mente do rei,
que, vestido de mulher, é empurrado para os montes, onde a sua própria mãe o mata,
dilacerando-lhe o peito e despedaçando-o.
As Bacantes são uma obra de cores sombrias, em que a única mensagem que é
dirigida às personagens é a de que o deus é grande — embora não seja bom. Exaíta-
-se a embriagues e o êxtase, mas trata-se de uma exaltação contrariada pelo desenro­
lar da obra, que nos mostra as catástrofes resultantes de um êxtase e de uma
exaltação desmedidos, Daí deriva uma mensagem que muitos consideraram de
mero terror,
Não se deve, porém, esquecer que Dioniso, que — enquanto deus — possui a
singular' faculdade de transformar as aparências, e cujos fiéis vivem estados de
alteração da consciência, é também o deus do teatro, Nas Bacantes, essa ligação é
quase explícita: o próprio deus tem um papel no drama e disfarça cuidadosamente a
sua vítima. Aliás, a obra, como todas as tragédias, foi representada numa festa em
honra de Dioniso. Além disso, nas representações, o coro das Ménades, taí como
todas as personagens, era interpretado por homens, e o público era também exclusí-
vamente masculino. O drama representava a dissolução da cidade, mas a representa­
ção constituía um acontecimento público e religioso muito complexo, Ao celebra­
rem essa festa, creio que os Atenienses estabeleciam uma relação justa com o deus,
e que o faziam excluindo as mulheres, presentes apenas como objecto de representa­
ção, A festa está assim dentro do drama como uma alternativa ao próprio drama, um
antídoto ao terror por ele evocado, Quem quer que olhasse à sua volta, no teatro,
podia ver que os homens eram, apesar de tudo, os senhores da situação.
Mais em geral, pode afirmar-se que o drama ateniense só permite a representa­
ção da vida doméstica através de uma tripla separação da experiência imediata.
A esfera doméstica é representada em público (por homens e para homens); é
representada como se se desenrolasse em público (a cena é situada na rua);

154
é transfigurada, na medida em que é representada como se pertencesse à época
heróica — ou, na comédia, onde se assiste a uma imaginária suspensão de tempo,
espaço, causa e efeito.. Se essa separação nos permite avaliar a necessidade que os
Atenienses sentiam de proteger o público da intrusão da realidade doméstica, a
existência dos dramas permite-nos avaliar a correspondente necessidade de inter­
pretar essa realidade à luz das exigências do público A supressão da esfera domés­
tica da consciência pública, que comporta a ausência de uma narração naturalista,
pode ser interpretada como uma das pré-condições culturais da cidade-Estado —
embora essa realidade se reafirme depois de uma forma estabilizada

A exclusão das mulheres

A polis, ou cidade-Estado grega, pode ser definida como um corpo político


baseado na ideia de cidadania; quer dizer, é uma comunidade constituída por uma
pluralidade de pessoas juridicamente iguais A autoridade é conferida aos indiví­
duos como algo de inerente não à pessoa (como nos regimes monárquicos e feudais)
mas ao cargo (ainda que este seja vitalício). Os cidadãos podem deixar o cargo sem
perder o seu estatuto, como de facto costuma acontecer: os cidadãos caracterizam-
-se pela possibilidade singular de ocupar um caigo e de o ceder depois a outrem, de
«governar e ser governados», segundo a expressão grega, De um ponto de vista
sociológico, a^cidade-Estado é uma pluralidade de pequenas comunidades familia­
res ligadas por laços recíprocos generalizados (hospitalidade mútua, casamento-
-troca bilateral generalizada, etc ); de um ponto de vista económico, trata-se de uma
sociedade de propriedade privada onde a riqueza está nas mãos de vários indiví­
duos. que estão porém sujeitos ao pagamento de um imposto sobre o património em
momentos de necessidade pública Em relação a cada um dos três níveis, eram os
próprios Gregos que contrapunham a sua sociedade ao modelo oriental, onde a
autoridade pertencia ao rei (que era muitas vezes um sacerdote, ou mesmo uma
divindade), as dignidades eram conferidas pelo trono e os excedentes eram conser­
vados no palácio ou no templo, para serem redistribuídos como era costume ou em
caso de necessidade pública
A população das cidades-Estado gregas não era totalmente constituída por
cidadãos, que, de facto, nunca atingiam um quarto do número dos residentes. Os
cidadãos de pleno direito eram todos os homens adultos livres (nos casos em que
vigorava um regime democrático) ou só alguns deles (escolhidos entre os membros
de certas íamilías, de acordo com o censo ou tendo em conta esses dois requisitos),
que era o que acontecia nos regimes oligárquicos Em todo o caso, as mulheres, as
crianças e os escravos não eram considerados cidadãos. O seu lugar era em casa, no
seu interior — a não ser que o trabalho os obrigasse a sair. Eram membros da
família, mas só indirectameníe é que eram membros da cidade; é certo que a cidade
era a sua pátria, mas não faziam parte do domínio público,.
Os cidadãos formavam um «público», e a vida civil consistia quase totalmente e
iiteralmente em reuniões públicas — na assembleia, no teatro, nos jogos e nos
rituais, O direito do cidadão era justamente o direito de participar nessas reuniões

155
públicas, se não como actor pelo menos como espectador (não me refiro aqui aos
estatutos intermédios entre livres e escravos como, por exemplo, o dos cidadãos
honorários ou dos estrangeiros residentes: por mais importantes que pudessem ser,
na prática, não desempenhavam nenhum papel na teoria da cidade-Estado) Esse
direito era a timè do cidadão, o seu direito a ser «digno de consideração», Uma
sanção comum na jurisprudência ática era a aiimia, que consistia na perda do direito
de aparecer em público; era uma espécie de exílio interno, como o de um habitante
«discriminado» na Áfiica do Sul, e colocava o cidadão ao nível de uma mulher ou
de uma criança,
Isso não significa que todos os cidadãos de pleno direito eram iguais; tinham
apenas o mesmo direito de aparecer em público Essa aparição traduzia-se sempre
numa competição tendente sobretudo a provocar a desigualdade entre os cidadãos e
que podia assumir simplesmente a forma de uma exibição de riqueza; no caso de M
i- y
uma manifestação ritual, a superioridade consistia em ser-se escolhido para desem­
penhar 0 papel principal, ao passo que, nos jogos, o resultado distinguia o vencido
do vencedor, Nos debates públicos e no teatro, a relação entre fama e estatuto era
mais complexa; os actores, por exemplo, deixaram de ser paríicularmente dignos de
eslima mal os poetas deixaram de representar os papéis principais Alguns cargos
políticos demasiado «visíveis», como, por exemplo, o de demagogo, eram desonro­

á;t
sos. Todavia, o espaço público continuava a oferecer aos homens a possibilidade de
se tomarem respeitáveis — ariprepes é o termo homérico; era aí que a comunidade
se reunia e estabelecia as diferenças entre os seus membros., De uma maneira geral,
os Gregos pensavam que só participando nessa comunidade de pares em competi­
ção se podiam tornar seres humanos no verdadeiro sentido da palavra. Portanto, só
os homens podiam ser (no sentido restrito) seres humanos
A competição por excelência era a guerra, em que os homens se distinguiam de
uma forma altruísta, no interesse da comunidade, Na representação homérica, a
guerra é concebida como uma espécie de competição, feita de duelos que geram
vencidos ou vencedores individuais, Na Grécia da época clássica, o modo de fazer a
guerra não podería ter sido — tal como, provavelmente, nunca pôde ser — indivi­
dualmente competitivo; a noção de competição foi adaptada às tácticas colectivas
da falange, íransfomiando a batalha num desafio de firmeza, em que um homem
vencia se não estava entre os vencidos, se não cedia terreno. Os que rompiam as
fileiras ficavam marcados para toda a vida e eram-lhes atribuídos nomes diferentes,
de acordo com as cidades, mas sempre ofensivos, como, por exemplo, o termo
ateniense «lança escudo» ou o «medricas» espartano, O castigo formal era a aúmia .
Por isso, a firmeza no campo de batalha era uma espécie de requisito competitivo
ít
indispensável para a vida pública, assim como o treino militar era a reconhecida
iniciação à virilidade
A partir de Homero, a comunidade política grega é concebida como uma compa­
nhia de guerreiros autogovemada: os guerreiros eram homens; portanto, a comuni­
dade política era constituída por homens Por outro lado, a guerra, no sentido de
combate activo, era adequada aos jovens, e isso comportava uma tendência para a
exclusão dos velhos, embora se reconhecesse que a sua experiência podería ter o seu
valor Nestor tem de recordar ao seu público que também ele fora outrora um

156
guerreiro, Não faltam as indicações de que se tendia a relegar os velhos para casa,
como o Laertes da Odiííeia, que se retirou para a sua casa de campo onde cuidava
da sua horta: é na idade avançada (como adverte Céfalo em Platão) que se pode
constatar a verdade do provérbio que diz que «quem é rico tem muitos consolos»
(República, ,329c). Por outras palavras, os velhos saem da cidade para saborear as
delícias das suas propriedades, Já não podem tomar parte activa nessa competição
pela honra que é a vida do espaço público Na realidade, Nestor diz (de uma forma
alegórica) que, para um velho, é tbemis, inegavelmente digno, estar em sua casa a
receber notícias dado já não poder andar a passear (Odisseia, III, 186-88).
Se a guerra determina o que significa ser-se homem, a virilidade é o requisito
necessário para se tomar parte na guerra e na vida pública em geral «A guerra é
coisa de homens», diz um provérbio grego Isso não significa apenas que, no
sentido próprio, são os homens que combatem Quando Heitor diz esta frase a
Andrómaca (Ilíada, VI, 492), o que ele quer dizer é que, como ela não é um
guerreiro, não pode ter nenhuma opinião acerca da condução da guena. Esse
sentido generaliza-se ainda mais quando Telémaco (Odisseia, I, 358) diz a sua mãe
para se retirar para os aposentos femininos porque «discutir é coisa de homens»
A irracionalidade da pretensão masculina de monopolizar a inteligência política
surge claramente nas obras de Aristófanes. Tristemente, a sua Lisístrata explica que
essa frase foÍ criada de propósito para um ateniense pronunciar quando a sua mulher
demonstra interesse pelos assuntos públicos:

«Nos primeiros tempos da guerra, suportámos com a paciência habituai aquilo que
vós, homens, combináveis. Aliás, quem nos deixava abrir a boca? Não que isso nos
agradasse! Mas compreendíamo-vos bem: muitas vezes, embora fechadas em casa,
conseguíamos saber que estáveis a tramar um grande sarilho Então, ocultando a nossa
mágoa, perguntávamo-vos com um sorriso: “O que decidistes hoje, na assembleia? Que
mais há, para se fazer a paz?" “A li que íe importa?", dizia eie, que é o marido: ''Pensa
em estar caiada!" E eu calava-me. [ . ] Vínhamos a saber de um plano ainda mais louco?
Então, perguntávamos: "Marido meu, andais a fazer das boas Porquê?” Ele fulmina-me
com o olhar: "Vai bar, e tem cuidado com a cabeça! Cabe aos homens tratar da guerra "»
(L isísírala, 506-20, versão Marzullo )

A exclusão das mulheres da vida pública ateniense reflecte o tipo de circulari­


dade que é característico dos sistemas culturais Por que é que as mulheres não
participam na vida pública? Porque não fazem o género de coisas que constituem a
vida pública. Por que é que as mulheres não fazem essas coisas? Porque não são
coisas que se adequem às mulheres. As premissas autodemonstram-se.
Todavia, parece improvável que a Lisístrata (escrita, como as Bacantes, por um
homem e para os outros homens) fosse tão pouco realista que acaba por ser
simplesmente desconcertante; a obra permite-nos saber que os homens de Atenas
não ignoravam que as suas mulheres tinham opiniões políticas, e leva-nos a supor
que as mulheres chegavam por vezes a exprimi-las. Entre os Gregos, a repressão das
mulheres estava longe de ser total — mesmo em Atenas, onde, sob certos aspectos,
chegou mais longe do que eni outros locais. A instrução das mulheres não era
encorajada, mas também não era proibida; se as mulheres estavam excluídas das

157
artes que exigiam exibições públicas (a sua actividade produtiva limitava~se à
tecelagem), houve, porém, algumas que se dedicaram à poesia lírica. Por outro lado,
havia também várias formas de as mulheres aparecerem em público: há notícia de
competições atléticas femininas — não em Atenas, mas em Esparta, sobretudo, e
noutras cidades — e, na esfera ritual, as mulheres tinham uma posição de quase
paridade em relação aos homens As mulheres de Atenas, por exemplo, não estavam
tão isoladas que não pudessem ser representadas no friso do Parténon, e, na vida
real, os rituais davam aos homens a possibilidade de contemplar as mulheres das
outras famílias. Se um jovem achava uma rapariga atraente, podia (depois das
informações convenientes) apresentar-se ao pai dela como futuro genro. Se as
negociações tivessem êxito, a rapariga deixaria a sua família de origem. Em Atenas,
os mitos eleusinos de Demétere Perséfona falavam da separação entre mãe e filha e
da necessidade de não inteitomper a relação entre elas, mas a partida da fíiha era
também uma perda para o pai Com efeito, o dote era a materialização do seu
constante interesse por ela e da «aposta» que ele fazia nos netos.
O facto de, na Grécia, a estrutura do parentesco, embora foríemente patrilinear,
fosse de uma forma latente bilateral, revela que, para os Gregos, as mulheres eram
pessoas Entre eles, a reificação das mulheres nunca foi total como, por exemplo,
entre os Zulus, onde, nas casas dos reis, as mulheres eram consideradas como meros
objectos sexuais e instrumentos de reprodução e criação da prole. Os Gregos, peio
contrário, excluíam as mulheres da sociedade civil com um certo remorso.
Esse remorso pode ter sido Justamente o seu contributo para a «questão femi­
nina» na sua evolução na história ocidental. Parece que a cidade-Estado, na
medida em que excluía as mulheres, evocou desde o início a imagem fantástica de
uma alternativa cidade das mulheres, uma imagem traduzida ritualmente pelas
TesmafÕrias, altura em que as mulheres se afastavam durante um certo período e
formavam uma espécie de cidade ritual, Na comédia também se exprime essa
hipótese fantástica: a acção política das mulheres é uma inversão imagináiia,
como a conquista do paraíso ou a ressurreição No entanto, a hipótese imaginária é
decerto mais conhecida na tradição filosófica, sobretudo através da utopia socrá­
tica da República.
Ao explicar a sua utopia, Sócrates, a dada altura, sublinha que os guardas, se
forem educados para a moderação, não terão dificuldade em tratar de problemas
como «a posse das mulheres, os casamentos, a procriação. Segundo o provérbio, são
coisas que entre amigos devem ser o mais comuns possível» (423e-424a). Havia um
provérbio pitagórico que afirmava que «todas as coisas dos amigos devem ser
comuns»; os Pitagóricos tentavam tomar perfeita a sua comunidade, pondo em
comum todos os seus bens. Não se sabe se alguma vez pensaram em incluir as
mulheres nessa regra, mas, seja como for, Sócrates percebe que a eliminação da
propriedade privada não seria suficiente: a cidade nunca seria uma comunidade
perfeita enquanto os governantes tivessem os seus próprios filhos, o que os levaria a
interessai-se pelo bem-estar de determinadas pessoas..
No início do livro quinto, os ouvintes pedem a Sócrates para se explicar melhor:
a comunidade das mulheres tem, por assim dizer, um «interesse humano», como
tudo o que está ligado ao sexo. A resposta de Sócrates divide-se em duas partes.

158
Primeiro, defende a ideia de admitir as mulheres na vida pública e na classe dos
governantes; depois, passa a ocupar-se da questão da família
A utopia deve ser uma comunidade baseada na natureza; podería então parecer
que os homens e as mulheres deviam ter um tratamento diferente, já que são
ciaramente diferentes por natureza. Todavia, responde Sócrates a esta objecção que
ele próprio levantou, isso significa ignorar o significado conecto de «natureza».
A utopia é um Estado onde a autoridade pertence àqueles que têm aptidões para
receber um tipo específico de instrução; as únicas diferenças naturais relevantes são
as que se referem ao aspecto educável do homem, a que Sócrates dá o nome de
psyché, alma.. O facto de as mulheres gerarem filhos e de os homens não gerarem
tem a ver com o corpo, e é evidente que essa diferença não tem qualquer relação
com uma diferença sexual na capacidade psíquica.
Isso não significa que Sócrates considere os homens e as mulheres psicologica­
mente iguais; pelo contrário, a sua argumentação de que não existem capacidades
especiais das mulheres e dos homens baseia-se na convicção de que os homens
acabam por ser melhores do que as mulheres em tudo, mesmo na tecelagem e na
cozinha, Todavia, isso não exclui a possibilidade de algumas mulheres terem
maiores aptidões do que alguns homens para receber uma instrução de grau supe­
rior, e essas muliieres deverão ser admitidas entre os melhores, O seu número será,
evidentemente, inferior ao dos homens.
Como essas aptidões são caracteristicamente masculinas, as mufiieres que as
possuem assêmelhar-se-ão mais aos homens. Sócrates já afirmou que as mulheres
que receberem a melhor educação farão as mesmas coisas que os homens, incluindo
«o manejo das armas e a equitação» (452c) Além do mais (e aqui Sócrates começa
a temer o ridículo), não só as jovens, mas também as velhas, farão os exercícios
nuas, como os homens. Afinal, observa ele, sob um ponto de vista cultural, estas
coisas são relativas; ainda há bem pouco tempo, os Gregos pensavam, como pensam
agora os bárbaros, que a nudez pública dos homens era um espectáculo vergonhoso:
«0 que, na sua opinião, havia de ridículo na nudez foi dissipado pela razão, que
acabava de descobrir o que era melhor» (452d), e assim será também neste caso
Nesta hipótese imaginária, a diferença entre homens e mulheres tem apenas um
sentido; algumas mulheres «dotadas para a ginástica e para a guerra» (456a) trans­
formam-se, de certa forma, em homens honorários, e as mulheres que recebem essa
instrução são «as melhores das mulheres» (456e). Sócrates afirma, por outras
palavras, que a melhor coisa que uma mulher pode ser é ser homem.
Passa depois a traçai' o seu programa para a eliminação da família. .íá afirmou
que os guardiões não devem ter casa nem nenhuma propriedade privada; agora,
acrescenta que os seus filhos deverão ser educados era comum como o gado. Os
aspectos mais escandalosos da República, noraeadamente a legitimidade do incesto
e o assassínio eugenésico das crianças, figuram nesta secção, onde Sócrates leva ao
extremo a aversão da filosofia pela esfera doméstica.
Sócrates preocupa-se em negar' qualquer valor à feminilidade em si. O facto de
as mulheres gerarem filhos e os amamentarem (cfr. 460d) deve considerar-se como
uma espécie de deficiência física, que é preciso ter em conta, mas que deverá tanto
quanto possível superar-se e minimizar-se. Uma exibição idêntica dos dois sexos

159
durante os exercícios é íundamental para ensinar os guardiões a não darem impor­
tância à diferença sexual. Os argumentos de Sócrates não visam a exclusão das
mulheres da esfera política, mas o seu alargamento a algumas delas; a feminilidade
não deve ser levada em conta nem é permitido usá-la contra elas — e é por essa via
que se chega à sua admissão,
Por mais ironicamente que fossem interpretadas — por Sócrates, no interior do
diálogo, ou por Platão, que fala através dele — estas propostas permitem-nos, pela
interpretação das inversões, dos exageros e das negações que contêm, traçar um
esquema da cidade-Estadò Surge-nos assim uma vida dividida entre um domínio
público, onde os homens aparecem ao serviço dos valores comuns, e um espaço
privado, de que talvez seja melhor não falar, um «espaço de desaparição» onde se
concebem os fiiJios e acontecem outras coisas que não preocupam o poder político,
O domínio público é masculino, é um mundo de palavras e de idéias, caracterizado
por uma competição aberta pelos cargos públicos — ou seja, pela identificação dos
seus pares. Nesse mundo, o corpo apresenta-se caracteristicamente nu: essa «nudez ■r í
heróica» (que, na arte se estendera aos jovens varões em geral, ainda que represen­
tados fora do contexto do exercício físico) mostra a pessoa como uma «criatura
minimal», uma mera unidade social auío-afínnativa. Na competição, os indivíduos
aperfeiçoam a sua diferença; a sua comunidade baseia-se portanto na sua singulari­ ' ■/
dade inicial (em Esparía, os cidadãos eram designados por hòmoioi, «semelhan­
tes»). As mulheres eram excluídas devido ao mesmo princípio que levava Sócrates a
incluí-ías, isto é, devido ao facto de a semelhança (nos aspectos relevantes, fossem
quais fossem os resultados) ser o princípio do Estado. Na prática, essa similaridade
era obtida, na maior parte das cidades gregas, pela participação num treino e numa
organização militar comum, cujo núcleo central era constituído por um corpo de
soldados, os hopliías, identicamente treinados e armados, que não desempenhava a
função de uma hierarquia organizada mas de uma massa uniforme
Na esfera privada, pelo contrário, a diferença era o princípio primário; a femini­
lidade adquiria aí um valor específico já que, no casamento, os homens e as
mulheres se relacionavam através da sua diferença. A casa não era um local de
competição mas de cooperação, não de idéias mas de coisas, não de cargos mas de
bens pessoais, de adornos, de mobília. O corpo cobre-se de adornos, nesse lugar
primário da produção e do consumo, nesse local onde o cidadão toma contacto com
o seu eu natural e com a terra. A hipótese imaginária de Sócrates visa justamente
cortar esse laço com a terra, negar personalidade ao corpo, ao eu natural.

A versão espartana

O nosso tema foi até agora a ocuítação da esfera doméstica — não a sua irrelevân­
cia prática, mas a teórica, como se a cidade-Estado se tivesse libertado de tal forma da
vida privada que pudesse continuar a auto-represeníar-se como sociedade auto-sufi­
ciente, organizada em tomo de uma competição de pares, providos de requisitos
idênticos. Este ponto de vista Justifica uma comparação etnográfica com uma socie­
dade masculina australiana, em que os homens se reúnem em segredo para saborear os

160
poderes especiais do seu sexo No entanto, como a cidade-Estado não se baseava no
seu secretismo mas na sua evidência, também se pode propor uma comparação com a
aldeia bororo descrita por Lévi-Strauss Começa-se por ver um círculo de cabanas na
floresta. No centro do círculo está situada a casa dos homens, onde vivem os adoles­
centes do sexo masculino; nenhuma mulher vai a essa casa excepto no dia em que
procura marido. Qualquer donzela que, por acaso, se aventurasse arriscar-se-ia a ser
raptada, É nesse círculo central que os homens celebram os ritos tribais, sobretudo os
funerais, que incluem danças e jogos. As mulheres assistem no exterior do círculo,
junto dits cabanas que separam a área central da floresta. O círculo é, por outras
palavras, o espaço cultural, habitado apenas pelos homens, que têm o privilégio de ser
o sexo da cultura. As mulheres vivem na fronteira entre cultura e natureza Dão a vida,
que é a forma natural de produção dos indivíduos: os homens ocupam-se da morte,
que é a transformação de uma pessoa numa recordação, ou seja, numa ideia, em algo
mais perféitamente cultural
A cidade-Estado que mais se aproximava deste modelo era Esparta (onde os
funerais dos reis e as inúmeras formas de culto da morte eram particularmente
significativos), e talvez tenha sido a criação de um mundo fechado de homens que
converteu Esparía no protótipo — embora totalmente excepciona! — da cídade-
-Estado, elogiado por todos e por ninguém imitado, como diz Xenofonte. Os Espar­
tanos, após um penodo prolongado de treino militar — prolongado não porque du­
rasse mais do que noutros locais, mas porque começava bastante precocemente — ,
adoptavam pára sempre o tipo de vida de um exército acantonado. Comiam juntos
nas companhias militares, só iam a casa para dormir, e a sua coinida e as suas roupas
eram mais ou menos estandardizados Viviam também em pennanente competição,
já que cada um deles tentava mostrar-se mais espartano do que os outros. Este
conjunto de homens, unidos por uma educação que era também uma iniciação,
formava ao mesmo tempo o exército (ou pelo menos as unidades de elite e o corpo
oficial) e 0 governo de Esparta Por outras palavras, os Espartanos fizeram da esfera
política um mundo masculino fechado de acullurados.
Além disso, os Espartanos estavam afastados da esfera económica. Não conside­
ravam que fosse necessário acumular riquezas Não trabalhavam e, quando não
estavam em guerra, passavam a vida entre a caça e a dança Era-lhes proibido
administrar as suas propriedades; os campos eram cultivados pelos hilotas, que
podiam ser mortos impunemente — todos os anos, os Espartanos declaravam guerra
aos hilotas — mas que não podiam ser despedidos nem obrigados a pagai' rendas
mais elevadas. Os Espartanos e os hilotas estavam ligados por um gélido, quase
rilualizado conflito (que desembocava amiúde numa violência generalizada), Essa
relação com a força de trabalho obrigava os Espartanos a conservar a estrutura
militar da sua organização, ao mesmo tempo que garantia o seu afastamento da
natureza: era quase por magia que mantinham os seus rendimentos fixos, já que
nada se preocupavam com isso. Livres da miséria, eram livres de fazer a sua vida
em função do amor à pátria e do espírito religioso. Como cidadãos do sexo mas­
culino, possuíam o exclusivo dos valores mais elevados
Os próprios Espartanos perpetuavam o mito de uma sociedade sob certos
aspectos primitiva: a sua guerra eterna contra os hilotas rituaüzava o mito da sua

161
chegada originária como horda de conquistadores que outrora tinha submetido a
ten-a e a sua força de trabalho aborígene De facto, fosse qual fosse a origem (o
exílio, certamente} desse mito, também é de ter em conta que os Espartanos
cultivavam um mito oposto, segundo o qual a sua sociedade teria derivado do
projecto atribuído ao legislador Licurgo Nesta versão, Esparta teria sido outiora a
pior das sociedades, e ter-se-ia transformado na melhor vencendo apenas as suas
tendências negativas; se não havia nenhuma outra cidade-Estado que a igualasse
em religiosidade e patriotismo, era por reacção ao ímpio individualismo em que
vivera,. Este mito transformara-se também em ritual na educação espartana, cujo
rigor nos permite avaliar as forças que pretendia vencen Em Esparta, essas forças
situavam-se no seio da família de origem de cada cidadão e que ele reconstituía
através do casamento,
Em geral, as sociedades tribais como os Bororos, que associam explicitamente
as mulheres à esfera da natureza e encerram os machos num ambiente cultural
protegido, são matrilocais Os adolescentes do sexo masculino que vivem na casa
dos homens encontram-se entre a cabana da mãe e a da mulher e, como o espaço da
aldeia bororo se divide em duas metades exogâmicas, encontram-se literalmente no
meio da passagem que os levará de um lado da aldeia — a parte onde vive a mãe —
para o outro lado — a parte onde se unirão à mulher e à qual pertencerão os filhos
Neste tipo de sociedade, as mulheres cuidam da subsistência essencial, colhendo ou
cultivando, enquanto os homens caçam certos alimentos «especiais» — isto é, mais
especificamente «acuíturados» e associados às cerimónias rituais Os laços matri­
moniais são relaüvamente débeis: o homem tem a liberdade de voltar para casa da
mãe se as coisas não correrem bem, e os filhos são educados pelos parentes da mãe,
sobretudo peio tÍo materno. Não há dúvida de que, em Esparta, os laços matrimo­
niais também eram relativamente débeis; há documentos que comprovam a partillra
ou o empréstimo de esposas, e não parece que os casais vivessem juntos antes de os
filhos nascerem. Tudo isso era muito apreciado pelos filósofos (Xenofonte, Consti­
tuição dos Espartanos, 1, 5-9); na realidade, a popularidade de Esparta na tradição
filosófica antiga pode ser atribuída em larga medida à ilusão de que nessa cidade se
vivia uma vida íotalmente dedicada ao Estado, privada de laços domésticos. Toda­
via, Esparta não era uma utopia, dado que — como os filósofos sabiam — era
apenas uma ilusão. É precisamente devido a este último aspecto que, na República
(584a-b), Sócrates distingue Esparta (que ele define como uma «timocracia») da sua
hipótese utópica. A sociedade espartana baseava-se na propriedade privada, e
quando qualquer espartano não possuía o património suficiente para pagar os seus
tributos à sociedade dos homens, perdia o requisito da cidadania. Os não espartanos
não a podiam comprar, razão pela qual o número dos cidadãos diminuía constante-
mente. As necessidades públicas de Esparta eram satisfeitas cornos impostos sobre
o património, tal como acontecia nos outros organismos estatais da Grécia, onde os
indivíduos podiam acumular riquezas que lhes conferiam o seu estatuto social.
Além disso, quem possuía esse património eram os grupos familiares do tipo grego
normal, patrilinear e vlrilocal. Isso significa que os Espartanos não tinham elimi­
nado o tipo usual de vida doméstica; ao ocultá-la, tinham apenas Ído um pouco mais
ionge do que os outios gregos.

162
o aíastamento dos homens espartanos das suas casas estava ligado a uma fase
(embora prolongada) da sua vida. Até aos sete anos, antes de começarem o seu
treino, os rapazes eram educados em casa, e, como os homens adultos, incluindo os
irmãos mais velhos, tinham de estar fora de casa, eram sobretudo as mulheres que se
encarregavam da sua educação. Depois, eram introduzidos no mundo masculino do
ascetismo e da competição, e talvez se possa atribuir ao carácter repentino dessa
mudança o rígido mas incerto autocontrolo dos Espartanos; de todos os Gregos (tal
como os historiadores os descreviam), e apesar de toda a sua disciplina, eram
certamente os mais sujeitos aos acessos de filría e de violência.
E certo que a família de origem continuava a existir para eles e a representar uma
parte — cuja importância ignoramos — da sua vida; por morte do pai, o espartano
ficava responsável pelas suas irmãs. Depois, quando atingia uma determinada
idade, chegava a sua vez de casar; devido ao decréscimo da população citadina, o
casamento era obrigatório. Assim, acabava por ter uma mulher e, mais tarde, filhas.
Mais tarde, teria de ajustar casámentos. Como nos conta Aristóteles, à falta de
outras oportunidades comerciais, a troca matrimonial era um meio importante de
adquirir bens (PoUtka, 1270a) Além disso, as oportunidades que um espartano
tinha de arranjar mulher ou de casar as mulheres da sua família estavam inüma-
meníe ligadas ao seu sucesso no mundo da competição masculina. Xenoíonte fala
das desvantagens a que o cobarde tinha de se sujeitar: é desprezado por todos, «e é
obrigado a ter em casa as raparigas da sua família e a suportar as suas acusações de
vilania, a ven o seu coração privado de uma mulher, e a pagar uma multa por isso»
iConstitidção dos Espartanos, 9, 5). E perfeítamente compreensível que as mulhe­
res espartanas fossem as primeiras a impor aos seus homens o respeito pelo código
do guerreiro: «com o teu escudo ou em cima dele».
O efeito do regime espartano sobre as mulheres era ambíguo Partilhavam o
isolamento dos homens em relação ao mundo da economia e não trabalhavam; eram
as únicas mulheres gregas de ciasse elevada que não tinham de passar os dias a
tecer Parece que as energias que assim ficavam disponíveis eram absorvidas por
uma elaborada ordem ritual, que envolvia e moldava todos os aspectos da vida
espartana; no ritual, em Esparta (como aliás em toda a Grécia), as mulheres atin­
giam uma paridade que lhes era negada noutros donunios, Além disso, os ritos
espartanos revestiam-se de uma faceta atlética, de modo que as mulheres de Esparta
eram lendárias pelas suas virtudes atléticas, desde as Espartanas dos poemas de
Alcman, que «corriam como cavalos nos sonhos», até à Lampito de Aristófanes,
que conseguia estrangular um touro. Havia um provérbio grego que dizia: «à
Tessâlia pelos cavalos, a Esparta pelas mulheres»
Por outro lado, era-lhes proibido participar na esfera política; segunda a lenda,
Licurgo ter-lhes-ia pedido para se submeterem como os outros às leis, mas elas
teriam recusado (Aristóteles, Política, 1270a).. As mulheres emm portanto culpadas,
porque tinliam escolhido manter-se «na pior forma de sociedade» que existia antes
da lei; por isso, na cultura espartana, converteram-se no veículo de todas as tendên­
cias negativas À disciplina e ao ascetismo dos homens opunha-se a desordem e a
iuxúria das mulheres Esparta era a única cidade grega onde as mulheres podiam
herdar e possuir bens: paradoxalmente, isso era um sinal da sua exclusão. Segundo

163
parece, os homens tinham-lhes cedido a casa e a íamília para assegurarem a sua
superioridade, deixando para as mulheres a emocionaüdade instável, as tendências
anti-sociais e as motivações vis.

A posição contraditória das mulheres

Como Esparta era a forma extrema da cidade-Estado, as contradições que


existiam neste tipo de comunidade assumiam aí uma forma extremada e centravam-
-se na «questão feminina» Os cidadãos formavam um conjunto de homens cujas
relações eram definidas por uma competição aberta; eram uma classe em competi­
ção consigo mesma, que tinha portanto de manter vivas as condições dessa compe­
tição. Essas condições eram asseguradas petas formas de parentesco, que consti­
tuíam a estrutura de uma sociedade mais ou menos estável, onde a competição podia
ter lugar. Por conseguinte, a solução utópica (embora, na teoria, os Gregos se
sentissem muito fascinados por ela) não era praticável; a eliminação da família
— como observava Aristóteles {Política, 1262b) — teria aumentado a competição
em vez de a atenuar O cidadão devia ter vistas mais largas e ínteressar-se pelo bem
comum ao mesmo tempo que se interessava pelas futuras gerações. Reproduzia-se
através dos filhos e dos netos, incluindo os filhos da sua filha. Todos os cidadãos
provinham de uma família e, na idade devida, formavam outras Para os Gregos, a
sucessão implicava o matrimónio-íroca,
A solução utópica, que conhecemos no projecto de Sócrates, teria eliminado as
mulheres, transformando-as em homens; por seu lado, a «solução zulu» tê-las-ia
transformado em objectes ou em animais domésticos, e era impraticável pelos
mesmos motivos Um cidadão livre tinha uma origem legítima, o que significa que a
sua mãe era uma mulher livre. Os filhos das concubinas não eram cidadãos — a
cidadania devia ser-lhes concedida como se fossem estrangeiros. Mulher livre era
a que era cedida ao marido por um homem livre, seu pai (ou seu tutor) Portanto,
a legitimidade do filho era, em parte, uma dádiva do avô paterno. A honra e a
dignidade da família eram investidas tanto nas filhas como nos filhos.
A sociedade que regia a cidade-Estado baseava-se na propriedade privada e
numa reciprocidade generalizada; por isso, a «solução bororo», em que as mulheres,
situadas entre a cultura e a natureza, cediam homens e recebiam em troca outros
homens, também não era praticável. Isso provocaria a perda do controlo masculino
sobre a família, ou pelo menos o fim da sucessão por linha masculina. Em toda a
Grécia, e mesmo em Esparta, um cidadão livre era o chefe de uma fanulia. Na
sociedade grega, a supremacia masculina era geral; o casamento era virilocal, a
sucessão era patrilinear e a autoridade era patriarcal. Todavia, os homens eram
apenas «metade do Estado» (Aristóteles, Política, 1269b). Por mais que as mulheres
fossem privadas de importância, voltavam a afirmar-se Não podiam herdar (a não
ser em Esparta), mas um nascimento livre conferia-lhes a legitimidade. Não eram
cidadãs, mas a cidade era uma comunidade de homens livres e de mulheres Excepto
em Esparta, não podiam possuir propriedades mas, por assim dizer, animavam-nas:
uma casa sem mulheres era uma casa vazia, No centro simbólico dos aposentos

164
femininos estava o leito nupcial; pertencia ao marido e destinava-se à sua mulher,
Na cerimônia nupcial, o marido pegava na mulher pelo pulso e acompanhava-a a
sua casa e ao seu leito, Na OdUseia, a virilocalidade é simbolizada pelo leito que
Odisseu construiu com as suas próprias mãos, mas com uma simbólica marca
secreta: está literalmente enraizado na terra Em Alceue (1049-60), Admeto tem de
resolver o problema da mulher que ele pensa ser uma prisioneira que lhe foi deixada
por Héracles: se a levar para os aposentos masculinos, será molestada, mas se a
levar para os aposentos femininos, terá de dormir com ele! A partida de Alceste
deixou um lugar vazio no leito onde ele continua a dormir
Os Gregos não previam receber hóspedes femininos e não se preparavam para
isso; não estava previsto que as mulheres viajassem. Apesar disso, no casamento,
quem se desloca é a mulher, não o homem Uma vez na sua vida é anancada a uma
farmiia e introduzida numa outra, como uma intrusa a quem é, porém, confiada a
guarda de tudo o que a nova casa contém e protege na sua intimidade Mitologica-
mcníc, Ídeníifica~se com Héstia, a deusa do iar, a única que, no mito platônico
{Fedto, 247a), não acompanha Zeus quando este passa para o empíreo, a única que
se mantém sempre aquém das portas.
Seja como for, a relação da mulher com o lar é ambígua: o ritual da recepção na
sua nova casa não a associava, como parece (Jâmblico, De Viía Phythagoríca, 84),
ao lar, separava-a dele. A pureza do lai' é hostil à sexualidade; Hesíodo aconselha os
esposos a não fazerem amor diante do fogo (Os Trabalhos e os Dias, 73.3 segs.) Na
mitologia, Héstia não é uma esposa mas uma virgem eterna: Zeus concedeu-lhe o
privilégio de permanecer para sempre em sua casa «em vez de se casar» (H ím a
Afrodiie, 28). Cabe-lhe o papel da filha a quem é permitido viver com o pai —- e, de
facto, a filha virgem é a hipóstase mais verdadeira de Héstia,
Uma das características dos deuses é poderem desempenhar para sempre um
papel que, para os mortais, é passageiro. Os Gregos estão convencidos de que todas
as mulheres se devem casar; a filha virgem toma-se esposa e assume provisoria­
mente a guarda do lar enquanto não gerar uma filha. Nessa alternância de papéis
descobre-se a instabilidade essencial das mulheres Para os Gregos, a sua perfeição
é atingida na fase da partbenos, a donzela casadoira. Trata-se, porém, de um
momento fugaz, não só devido à universal passagem da idade até à morte (o que
também é válido para os homens), mas porque o papel em si (ao contrário do seu
equivalente maculino, o do jovem guerreiro) existe em função de um outro papel
O pai só se sente feliz por ter uma filha porque pode cedê-la a outro homem; quanto
mais digna de apreço for, mais fácil será casá-la, e portanto, terá muito mais
probabilidades de a perder e mais cedo. Paia uma mulher, o momento de extrema
ambiguidade é também o da sua realização, já que é nesse momento que se converte
em esposa
O estatuto ambíguo da esposa é-nos revelado pela circunstância de, entre os
gregos, existirem dois tipos de casamento e de ambos serem, normalmente, utiliza­
dos. Já nos referimos a um deles, a engye, que foi por vezes traduzido impropria­
mente por «noivado». Esta tradução é duplamente desviante, na medida em que o
noivado é uma transação entre os futuros esposos e antecede o casamento, ao passo
que a engye era uma transação entre o genro e o sogro, era o casamento. Não era

165
exigida qualquer outra cerimónia para legitimar os filhos ou tomar definitivos os
acordos de carácter patrimonial Nada mais era necessário para tomar efectívo o
casamento a não ser a sua consumação, designada pelo termo grego gamos.
Nomialmente, o momento da consumação, a primeira noite (que podia ocorrer
bastante tempo após a sngye), era uma ocasião para se celebrar uma festa, também
chamada gamos. Embora essa festa não fosse obrigatória, é de presumir que poucas
esposas de condição digna prescindissem dela Assemelha-se muito à ideia que
temos de um casamento: convidava-se pessoas, brindava-se, bebia-se, caníava-se, e
isso custava bom dinheiro ao pai da noiva Não havia, porém, nenhum casamento,
no sentido de que os noivos não faziam promessas reciprocas e não havia nenhuma
forma de consagração do casal Na véspera, o casal, ou só a esposa, podia visitar um
templo para se despedir da virgindade e pedir a protecção do deus para a sua nova
vida, mas no verdadeiro casamento os deuses estavam tão presentes como em
qualquer outra ocasião O gamos celebrava, e rituaüzava, a iniciação sexual da
esposa, que era também a fase mais significativa da sua iniciação à idade adulta
Na maior parte dos casos, as festas efectuavam~se em casa do pai da noiva,
onde o noivo podia dormir na noite anterior, O momento mais significativo desta
fase eram as atiakalypíèria, o cerimonial com que a matrona que tratava dela, a
nymphèutria, tirava o véu à noiva e a apresentava ao noivo. Então, este íevava-a, a
pé ou de carro, para sua casa, ã luz de archotes e ao som de flautas, A nymphêiiiria
ia com eles, enquanto a mãe da noiva se despedia deles e a mãe do noivo lhes dava
as boas-vindas Depois de um ritual de recepção, a nymplièutria acompanhava os
noivos até ao seu leito. No dia seguinte, podia formar-se um outro cortejo, a
epaulia, constituído pelos amigos e parentes da noiva que lhe levavam o enxoval á
nova casa
A engye era um contrato entre homens e centiava-se no noivo, que recebia os
parabéns pelo êxito obtido ao conquistar a noiva; esta ainda não devia estar pre­
sente. O gamos era presidido sobretudo pelas mulheres, e girava em tomo sobretudo
da noiva, da sua indumentária. Era ela a protagonista do acontecimento; havia ritos
ancilares específicos como, por exemplo, o banho preliminar, que podiam, nas
várias comunidades, incluir ambos os noivos, mas nunca exciusivameníe o noivo
Este movia-se na esteira da noiva: na verdade, era para ela que a vida mudava mais.
A engye era a cerimónia da sua transferência, o gamos era o ritual da sua transfor­
mação, Na engye, o casamento era considerado sob o ponto de vista da cidade,
como um laço entre três linhas masculinas, mas, no gamos, era considerado sob o
ponto de vista da família, como inicio, no seio da casa, de uma renovação da família..
A mulher adquiria um novo estatuto, com obrigações e poderes específicos.

Homens e mulheres

A esposa por excelência é Pandora, cuja história merece ser contada em porme­
nor, porque situa o casamento no contexto de uma nanntiva mítica da relação dos
homens com a ordem da natureza. Seguirei as pegadas de Hesíodo, combinando as
suas versões (Teogonia, 507-612; Os Trabalhos e os Dias, 42-105)

166
Conta-se que, no princípio da vida, tudo era fácií: o homem podia viver um ano
com o trabailio de um dia, e homens e deuses banqueteavam-se Juntos, Um dia,
porém, durante um desses banquetes, Prometeu dividiu a carne em porções desi­
guais: pegou na carne e na pele e meteu-as no estômago do anima! e fez um montão
de ossos, que cobriu com a gordura, Como Zeus se queixou de uma divisão que
parecia injusta, Prometeu disse-lhe para escolher Embora sabendo que estava a ser
enganado, Zeus pegou no monte maior — e é por isso que os Gregos, quando fazem
os sacrifícios, oferecem aos deuses os ossos e a gordura (que são queimados) e
ficam com as partes comestíveis e aproveitáveis do animal. Portanto, o sacrifício
tem ura carácter ambíguo: por um lado, restabelece um laço entre os homens e os
deuses, continuando o banquete entre eles; por outro lado, faz reviver o momento da
separação em relação à divindade, repetindo o sacrifício na forma que provocou a
ira de Zeus,
Então, Zeus levou consigo o fogo, tomando impossível o sacrifício e absoluta a
separação. Prometeu replicou roubando o fogo e restabelecendo o laço, mas através
de um gesto de desafio Nessa altura, Zeus recorreu à astúcia. Tinha moldado com
terra um encantadora donzela e todos os deuses o tinham ajudado a enféiíá-la„ Como
tinha recebido dons de iodos, chamaram-íhe Pandora, «todos os dons». Depois,
mandaiam-na de presente a Epimeteu, irmão de Prometeu, Epimeteu fora avisado
para não aceitar nenhum presente de Zeus, mas, perante o fascínio de Pandora,
esqueceu-se desse aviso. Ficou com ela e com um vaso que a rapariga trazia,,
Quando ela abriu o vaso, sairam de lá todos os males: doenças, canseiras, discórdia,
Epimeteu não só hospedou Pandora como casou com ela. Tudo o que lhe
pertencia — o que ela fcfazia consigo — passou a ser do marido, Na versão de
Hesíodo, o casamento assemelha-se ao sacrifício. Ambos sancionam a relação
ambígua com os deuses. O casamento deriva do laço com eles (Pandora é um
presente de Zeus) e é um sina! da separação em relação a eles (o presente destinava-
-se a fazer mal), Ambos implicara o tema do engano, mas de um modo diferente, Na
história do sacrifício, Prometeu tenta, no interesse dos homens, enganar Zeus; este,
embora não enganado, castÍga-o pela sua tentativa Quando Prometeu toma o
castigo ineficaz, Zeus manda outro, enganandojpor sua vez, A história do sacrifício
pressupõe uma espécie de prova de força com os deuses, aquilo a que os Gregos
chamavam pleomexia, «tentar obter mais do que se espera». Na história do casa­
mento, os deuses enganam os homens, estes são as vítimas e o mal provém da sua
fraqueza.
A história de Pandora é a história da queda — que, como no Gênesis, é a queda
na natureza e em todos os males que a carne herda: doença, canseira e morte.. Em
ambas as histórias, as mulheres conduzem à queda: são o símbolo da nossa condição
natural porque são as autoras da carne, O pai, afinal, não dá nenhum contributo ao
filho a não ser a informação genética; a substância é toda da mãe,
Pandora é a primeira mulher; «dela provém a estirpe das fêmeas do género
humano» {Teogonia, 590), Tal como introduziu a morte no mundo, também lhe
levou a vida, Hesíodo não dá nenhuma explicação acerca do modo como os homens
vinham ao mundo antes de existirem as mulheres; talvez viessem da terra, ou mais
provavelmente viviam desde sempre, Não há necessidade de nenhuma explicação

167
porque, nesse primeiro período, a Idade do Ouro, os homens não tinham nenhuma
relação com a natureza; eram apenas seres culturais. Por outras palavras, o mito
baseia-se numa inversão conceptual não muito diferente das hipóteses acerca do
«estado de natureza» produzidas pelo Iluminismo Em ambos os casos, aquilo que,
do ponto de vista da evolução, é anterior, fica numa posição subordinada,. Em
Rousseau, os indivíduos anteriormente autónomos reúnem-se para formar uma
comunidade (mas em que língua discutiram o «discurso social»?). Também em
Hesíodo os homens começam por existir e só depois é que adquirem uma vida
biológica. Em Rousseau, a inversão refére-se à relação entre o indivíduo e o grupo;
em Hesíodo, refére-se à relação entre os homens e as mulheres. A cultura masculina
situa-se antes da mediação feminina entie cultura e natureza
Hesíodo situa a história de Pandora no quadro geral da sua explícita misoginia,
«Aquele que confia numa mullier confia no engano» {Os Trabalhos e o.s Dias, .375)
As mulheres, escreve ele, são como os zângãos que estão todo o dia na colmeia e são
alimentados pelas abelhas (Teogonia, 594-600). Trata-se, porém, de uma noção
errada de economia: o trabalho doméstico e aríesana! das donas de casa da Grécia
rural deve ter compensado grandemente o que se gastou para as manter, E trata-se
também de uma má aplicação da zoologia, como Hesíodo sabe, Os zângãos (como
nos recordam, entre outras coisas, os pronomes que se referem a eles) são machos,
enquanto a abelha obreira é fêmea, de tal modo que Simónides de Amorgos, outro
grande misógino da época arcaica, usa a abelha obreira como modelo da (rara) mulher
virtuosa. Mas talvez Hesíodo queira exprimir exactamente essa inversão: como entre
cultura e natureza, os papéis dos sexos são invertidos Na natureza, os machos são
como excedentes; na cultura, as mulheres, se não são superabundantes, são porém
uma prova da incapacidade da cultura para se tomar independente da natureza, Vemos
aqui interpretada, a nível económico, a mesma condição de dependência da terra que
encontrámos a nível político: em suma, o cidadão grego provém de uma família e cria
outra, e é politicamente qualificado pela posse de um património fámiüar.
Se a queda arrasta para a natureza, o desejo de redenção tende para uma
condição meramente cultural, É nestes termos que podemos compreender o motivo
por que os Gregos desejam repartir toda a sua vida pela vida pública; pode pensar-se
que os Espartanos, com o seu afastamento da esfera económica, concretizavam à
imagem fantástica da Idade do Ouro: sem trabalho, sem mulheres De facto, com a
inclusão no sistema político dos seus monarcas divinos, efectuaram uma espécie de
banquete com os deuses.
Também se dizia que, em Esparía, o Estado era perfeito, quanto mais não fosse
para as mulheres, Eram elas que conferiam importância à riqueza (mais do que à
honra), dado que, como escrevia Aristóteles, «os homens são dominados pelas
mulheres, como sucede na maior parte das raças militares e guerreiras [ ] E parece
que o autor primeiro dos mitos teve razão quando uniu Ares a Afrodite» (Política,
1269b)
As mulheres eram perigosas porque eram atraentes (e eram especialmente peri­
gosas em Esparía, porque eram particularmente atraentes paia os Espartanos),
Também Pandora é irresistível: é «puro engano, contra o qual os seres humanos não
têm defesa» (Teogonia, 589),

168
o poder de Pandora é-Ihe conferido pelas suas qualidades . Aiena ensinou-lhe a
arte de tecer (verdadeiro atractivo numa mulher: cfr llíada, IX, 390), Hermes
fomeceu-lhe «mentiras e palavras melífluas e a natureza de um ladrão» {Os Traba­
lhos e os Dias, 78). Zeus encarregou Afrodite de derramar graças sobre a sua
cabeça, e «cobiça e penas cruéis, que devoram os membros» (ibid , 66)., Por fim, as
Horas, as Graças e Peito concluem a sua instrução, colocando-lhe aros de ouro nas
orelhas e coroando-a com flores primaveris.
Os atractivos de uma mulher são tipicamente poikiloi, multiformes, e evocam
a superfície mutável e complexa que, na cultura grega, caracteriza as coisas
enganosas e envolventes As jóias de uma mulher são o símbolo concreto dos
seus modos aduladores Todo o mundo feminino, com os seus cestinhos, os
móveis, a louça pintada, os tecidos, envolve e engana o homem. Este significado
simbólico é expresso por Ésquilo na cena singular em que Clitemnestra convence
Agamémnon a caminhar sobre um toldo bordado antes de o matar, O melhor
símbolo pode ser o cinto de Afrodite, uma faixa cujos bordados simbolizam
«o amor e o desejo e o encontro, / a sedução, que rouba o siso mesmo aos
mais sábios» {llíada, XIV, 216-7). O vestuário da noiva incluía um cinto, e por
isso a expressão «desatar o cinto» indicava eufemisticamente que o casa­
mento fora consumado. O cinto, tal como as jóias, era um símbolo do poder
sexual. Por outras palavras, a mulher adoma-se para poder seduzir o marido no
casamento.
Na llíada. Hera, para poder seduzir o marido, pede a Afrodite que lhe empreste
0 seu cinto. O poder de Afrodite estende-se mesmo a Zeus, «que é o maior de todos
e tem mais tempo» {Hiuo a Afrodite, .37). Zeus responde, tomando Afrodite escrava
do seu próprio poder, que a faz apaixonar-se por Anquises, As mulheres também
estão sujeitas ao poder sexual: são, ao mesmo tempo, sedutoras e seduzíveis, No
mito, a iniciativa costuma pertencer ao homem: Teseu seduz Ariadne e encontra o
seu caminho dentro do labirinto, Jasão seduz Medeia e Pélops seduz Hipodamia,
A mulher casada é, significaüvamente, o ponto fraco do sistema. É nítido que a
sexualidade da mulher tem a função de minar o poder masculino em duas direcções:
0 facto de ser desejável fá-la conquistar o seu pretendente, mas o seu desejo fá-la
esquecer os seus deveres filiais para com o pai. Ambos os aspectos estão presentes
na versão mais corrente da história de Hipodamia e de Pélops. Hipodamia ama
Pélops e por isso está a seu lado contra o seu próprio pai. O carro deste é sabotado,
porque Mírtilo, o auriga, substitui o tolete verdadeiro por outro feito de cera (e
executa esse acto desleal porque tanto Pélops como Hipodamia lhe prometeram os
favores da rapariga na primeira noite). Nesta versão, a esposa serve-se do único
poder de que dispõe, a alracção sexual, para se separar do pai e satisfazer os desejos
do marido. No mito, obviamente, tudo é levado ao extremo: o pai quer desposar a
sua própria filha e matar os pretendentes, mas é traído por um servidor — a quem
a sua filiia se entrega secretameníe — e morre. Na vida real, o pai e o marido
conseguiam normalmente chegar a um acordo, mas o pai sentia uma certa tristeza
por perder a fiUia, ao passo que os familiares que encorajavam a rapariga a casar-se
eram movidos por um verdadeiro afecto, e os favores da sua primeira noite eram
prometidos — e concedidos — ao marido.

169
A história de Hipodamia apresenta a mulher como um sujeito activo do contrato
matrimonial Em Atenas, na vida diária, as raparigas eram consultadas e davam o
seu consentimento para o casamento,. Há documentos que comprovam, por exem­
plo, a existência de promnèatríai, intermediárias ou agentes de matrimónio,. Xeno-
fonte, por intermédio de Sócrates, afirma:

«Um dia, ouvi Aspásia dizer que as alcoviteiras trazem e levam boas descrições que
não se afastam da realidade, conseguindo assim fazer nascer uniões matrimoniais, mas
que são relutantes em tecer falsos elogios. Neste caso, as pessoas enganadas odiar-se-ão
uma à outra e odiarão quem lhes serviu de intermediário» {Memoráveis, 2, 6, 36)

Note-se que o intermediário é uma mulher, e que Sócrates sabe da sua existência
por Aspásia, que representa o seu contacto com o mundo feminino, G casamento, a
engye, também pode ser contratado entre homens, mas o que o faz funcionar são os
poderes femininos, sobretudo os da deusa mais feminina, Afrodite,
No casamento, o poder de Afrodite separa a rapariga do pai e liga-a ao marido,
É normal,. Em todas as histórias que examinámos até agora — a de Jasão, de Teseu,
de Pélops — imagina-se que é o pai quem perde, enquanto o jovem que lhe seduz a
filha pretende atingir um objectivo particular. Mais tarde, como se sabe, tanto .Jasão
como Teseu abandonam as esposas, mas isso é algo que não deveria acontecer Nos
mitos gregos, as esposas abandonadas são figuras poderosas, perigosas; tanto
Aiiadne como Medeia atingem uma espécie de apoteose Ariadne (na maior parte
das versões) desposa Dioniso; Medeia (na versão de Euripides), depois de ter morto
os filhos de Jasão, desaparece num cairo flamejante,
O protótipo da esposa abandonada é Hera, cuja ira percorre todo o universo
mitológico, ao atingir Tróia, Héracles, Io, Leio, todos aqueles que Zeus alguma vez
amou, No Hino a Apoio (300-55), Hera enfurece-se de tal forma com Zeus por este
ter gerado Atena que dá à luz Tífòn Em Hesíodo (Teogonia, 820-68), Tífon é o
último monstro que Zeus teve de superar para afirmar o seu poder, A luta continuou,
porém, na geração seguinte: a Hidra de Lema, descendente de Tífon, foi derrotada
por Hérades com a ajuda dc Atena {Teogonia, 313-18)
O casamento estéril e sem amor de Zeus e Hera é o elemento essencial da
estabilidade do cosmos, o sinal de que Zeus interrompeu o ciclo das gerações
celestes e reinará para sempre. Todavia, nós não somos deuses e, na Terra, sucede
precisameníe o contrário: só sobrevivemos desaparecendo e dando o lugar aos
nossos sucessores, que são educados tanto melhor quanto mais o nosso casamento é,
para além de fértil, vivido com amor. Segundo a regra, no casamento, o pai é
substituído pelo marido. A afirmação mais clara deste principio é provavelmente a
história de Hipermestra, uma das filhas de Dánao, a quem o pai proibira de desposar
os seus pretendentes egípcios; quando, por flm, foram obrigadas a casar, foi-lhes
ordenado que apunhalassem os maridos no leito matrimonial. Hipermestra foi a
única que desobedeceu a essa ordem: «a paixão fê-la perder a cabeça», escreve
Esquilo {Prometeu, 853) Em seguida, foi levada a julgamento pelo pai, por ter
violado as leis do patriarcado Para expiar a culpa de não ter morto o marido, fundou
o santuário de Ártemis Peito (Pausânias, 1í, 21,1)

170
É provável que estes factos fossem representados no ùîümo drama da trilogia de
Ésquilo, As Danaides, de que só possuímos o primeiro, As Suplicantes O único
fragmento que nos ficou dessa obra é um discurso de Afrofite, possivelmente em
defesa de Hipermestra:

O céu sagrado gosta de penetrar na terra;


e o desejo de amar invade a teira.
A chuva, caindo do líquido céu
faz germinar a terra, e esta gera depois os mortais
os rebanhos de ovelhas e de Deméíer o dom da vida,
A estação das árvores por estas bem irrigadas núpcias
completa-se E nisso cu tenho a minha parte {in Ateneu, 600 b)

Segundo Afrodite, é natural que a mulher ame o seu marido Se as mulheres são
o sinal da nossa queda na condição de natureza, não devemos esquecer que é a
natureza quem nos alimenta As mulheres são o problema e a solução; são o sinal da
nossa mortalidade, mas também tomam possível que a vida continue — não só, à
letra, cora a sua fertilidade, mas também no piano das instituições. Têm o poder de
sentir e inspirar amor, que, na cidade-Estado, se converte no poder de transferir esse
amor e de dar vida a novas casas.
Afrodite diz~se «participante» (paràiiios) do casamento entre céu e terra. O sig­
nificado jurídico deste termo é «cúmplice», mas também poderemos traduzi-lo por
«cataiizadoi->> ou «intermediário». A diferença entre macho e fêmea é, do ponto de
vista social, a mais significativa; a intervenção do amor nessa diferença dá origem à
sociedade. ^
Para os Gregos, a repressão de tudo o que se refere à esfera doméstica significa,
ao mesmo tempo, o reconhecimento do seu poder secreto.. Se os homens reivindica­
vam para si o espaço público e os valores culturais, estavam porém conscientes de
que isso era apenas metade da história. Qualquer dicotomia — entre público e
privado, macho e fêmea, cultura e natureza — é acompanhada por uma mediação,
No plano ritual, prova-o a duplicidade do matrimônio: engye e gamos.. No mito,
confírma-o a eterna e festiva luta entre Zeus e Afrodite. Na cidade-Estado, traía-se
do jogo entre Iei e amor.

m
CAPITULO VII

O OUVINTE E O ESPECTADOR
por Charles Segai
Visão, monumento, memória

Os Gregos são um povo de espectadores , Curiosos por natureza em relação aos


outros, atentos às diferenças entre eles e o Outro — os não Gregos, os «bárbaros» —,
são bons observadores e hábeis narradores Estas duas qualidades sobressaem em
toda a obra dos dois grandes nanadores que se situam no início e no fim da época
arcaica: Homero, que compôs e recitou oraimente os seus grandes cantos épicos em
finais do século vin C., e Heródoto, com a narração das Guerras Pérsicas dos anos
490-479 e a ampla resenlia das civilizações que rodeavam a civilização grega,
Ambos se sentem fascinados com as imagens que flutuam à superfície do
mundo, ambos gostam de fixar nas palavras a infinita variedade dos comportamen­
tos humanos: o modo como os homens se vestem, falam, adoram os seus deuses;
o sexo, o casamento, a família, a guerra, a arquiíectura, etc. Ambos conhecem
também o poder de sedução da curiosidade, o desejo de ver e de conhecer. A
Odisseia inicia-se com o herói que «de muitos homens viu as cidades e conheceu os
pensamentos» (1.2). No inicio das suas Histórias, Heródoto narra a história de
Candaules e Giges, uma narrativa centrada no poder da visão, na observação secreta
do corpo de uma mulher, através do qual o rei da Lídia, Candaules, pretende mostrar
ao seu lugar-tenente a extraordinária beleza da sua amada esposa (1,8,2)„ De facto,
Heródoto inicia a história com Candaules a afirmar que «os homens crêem menos
naquilo que ouvem do que naquilo que vêem» (1 8.3). Todavia, na história que
assim se inicia, é a visão que está na origem de um trágico enredo de amor,
voyeurisnie, traição, vergonha e engano. Em Homero, o impacte visual da beleza
feminina é igualmente poderoso e igualmente portador de trágicas consequências.
Quando os anciãos de Tróia vêem «Helena dirigir-se para a torre», comparam-na a
uma deusa, e por um instante talvez cheguem a pensa: que vale a pena travar uma
guerra por causa dela {Ilíada, 3.154-60),
Em cenas deste género, nós, leitores, tomamo-nos efectivamente espectadores
do próprio poder da visão LÍmiíando-nos aos nossos dois exemplos, tanto Homero
como Heródoto tendem a estimular e a ampliar a imaginação visual dos leitores.
O guerreiro homérico está diante de nós «esplêndido à vista», thàiima idèsthai.

175
segundo a expressão épica recorrente, Imagina-se visualmenie a sua força: fúlgido
nas suas armas cintilantes, sobressai pela teniveí crista e pelas plumas do elmo, e é
muitas vezes descrito em movimento rápido, gerando comparações com exemplos
extraídos do mundo da natureza e que impressionam a vista, como grandes animais,
pássaros velozes, o fogo, o raio no céu Também Heródoto selecciona e descreve
aquilo que é «digno de ser visto», a.xioihèeton O conjunto da sua obra é uma
«exposição», ou «descrição», apòdeixis (1 I) O que interessa a Heródoto, como a
Homero, é a conservação dos grandes feitos dos homens por intermédio de algo que
verbaimente possa equivaler ao monumento.
Com Heródoto, estamos perante um dos primeiros exemplos de prosadores que
foram autores de obras de grande envergadura, e que deixaram por escrito essas
memórias do passado. Contudo, para o poeta oral, a conservação dos grandes feitos
também se pode fazer tanto através da visão como através do ouvido. Heitor, desa­
fiando os chefes gregos no sétimo livro da llíada, promete que a memória do seu
adversário viverá sob a forma de um «túmulo», o seu monumento fúnebre (sèma)
no Heiesponto Aí inspirará outras palavras, como as que serão ditas por «alguns
dos homens futuros / navegando com nave cheia de remos o lívido mar: / “eis o
túpiulo de um herói que morreu outrora: / matou-o — e eia um valente — o glorioso
Heitor” / Assim dirá alguém, e a minha fama não perecerá» (7 88-91).
Todavia, o monumento, ainda que «visível de longe», não pode falan Precisa da
voz de um homem, e neste caso o poeta serve-se das palavras pronunciadas por r
Heitor A situação é análoga à das antigas estátuas, A inscrição dá voz à pedra nua, T'
dizendo: «Eu sou o túmulo, o monumento ou a taça de fulano de tal» , Um monu­
mento que não possua essa voz não pode ser recordado: não tem uma história para
contar, não tem klèos (fama, de klüein, ouvir) a que os homens possam «dar
ouvidos» nos tempos futuros, Não passa de uma coisa inerte, como o sinal que serve
para delimitar o campo para as corridas de carros nos funerais de Pátroclo, «túmulo
de um homem morto outrora» {Ilfada, 23 ,.531). A expressão é a mesma usada por
Heitor no sétimo livro, mas aqui o sinal nada tem a dizer, não pode provocar
nenhuma recordação, e por isso permanece mudo, nada mais do que uma coísa
contra a qual os carros se lançam para depois a ultrapassarem.
Aquilo que é «memorável» torna-se klèos, isto é, capaz de resistir ao tempo,
depois de ter sido «ouvido» Em Homero, a pior desventura para um homem é
morrer akleès, sem deixar uma história que possa perpetuar a sua memória numa
comunidade. No primeiro livro da Odisséia, Telémaco diz que teria sido melhor se
Odisseu tivesse morrido em Tróia, porque, nesse caso, «todos os Aqueus lhe teriam
feito um túm ulo/e também teria proporcionado grande glória {klèos) a seu fi­
lho./M as agora levaram-no ingloriamente (akleiòs) as Harpias»^ Assim, «aquilo
que se dirá» de um homem na sua cidade também pode tomar-se o critério primário
para a acção, como na fatal decisão tomada por Heitor de desafiar Aquiles para a
batalha {Ilíada, 22T05-8). Heitor é o exemplo mais completo que se pode cncontiar
na poesia épica deste novo eihos da pólis, o herói em quem a relação com essa voz
da comunidade é mais forte e substancial
No entanto, essa função da «audição» como mecanismo de controlo social é
apenas uma pequena parte da experiência acústica ligada à poesia épica. Homero e

176
Hesíodo insistera deliciados na doçura e na Hmpidez da voz e da lira. O canto, as
narrações e a audição das narrações constituem uma parte importante da intriga da
Odisséia. Na Ilíada, Aquiles, aquando da visita dos embaixadores, «com a citara
sonora se deleitava, / bela, ornada» (9.186), raro exemplo de canto solitário. Há
pathos também nos dois pastores esculpidos no Escudo, que «se deleitavam com a
flauta», ignorando a armadilha que os espera (18 .525 segs,). Os momentos culmi­
nantes são assinalados por sons poderosos: o trovão de Zeus, no final do sétimo
livro da Ilíada, o grilo de dor de Aquiles pela morte de Pátroclo, ouvido por Tétis
nas profundezas marinhas {Ilíada, 17.35), ou o seu uivo no fossado, que ecoa como
um toque de trompa em redor de uma cidade fortificada {Ilíada, 18,207 segs ). Ao
narrar o seu assassínio às mãos de Cliíemnestra, Agamémnon afirma, pormenor
tocante, «ter ouvido», enquanto morria, a voz de Cassandra que era assassinada a
seu lado {Odisséia, 11,421 segs,).
A sobrevivência na memória depende do que se ouviu; na poesia épica, po­
rém, como na tragédia, é a vista que permite a representação mais vigorosa e
articulada das emoções O reconhecimento de Odisseu por Penélope, por várias
vezes adiado, ocorre por um delicado Jogo de olhares: ele, sentado diante dela,
baixa os olhos (23J I), enquanto cia, sentada c cm silêncio, olha para eie, depois
para as suas vestes, e responde à impaciência e à cólera de Telémaco dizendo que
não pode dirigir-se a ele dírectamente nem «olhar a direito para o seu rosto»
(105-7).
A visão também domina a cena culminante da Ilíada. Príamo e Aquiles trocam
olhares de surpresa e de admiração (24 629-34). Todavia, neste caso, a visão ilustra
também a precariedade desse instante de suspensão. Príamo pede para resgatar o seu
filho, «para poder vê-lo» (24 555). Aquiles, como Homero, conhece as dimensões
da reacção que essa visão podería provocar; por isso, ordena que o corpo de Heitor
seja levado para outro local, «para que Príamo não o visse, / e no coração angustiado
deixasse de viver a ira / à vista do filho, e o ânimo se enraivecesse contra Aqui­
les, / e 0 matasse, violasse a ordem de Zeus» (24.583-86)

Os espectáculos da glória; rei, guerreiro, atleta

Dado o profundo enraizamento da poesia grega nas funções comunitárias do


canto e da narração no âmbito de uma cultura oral, as ocasiões em que ela era
recitada podem íransformar-se em exibições da ordem social, tornada visível peran­
te a multidão reunida, A Teogonia de Hesíodo, por exemplo, descreve o rei perante
a assembleia, onde «As gentes todas têm os olhos fixos nele, quando ele administra
a justiça com sentenças justas» e «quando este surge na assembleia, adoram-no
como um deus, com uma reverência breve» (84-86, 91 segs; cfr. Odisseia,
8.171-73). Hesíodo dedica uma especial atenção à voz suave e convincente do
soberano, mas descreve-o também caminhando por entre a multidão dos cidadãos.
A imagem do rei como encarnação da ordem da cidade é caractenstica de uma
sociedade de cultura oral, onde normas e ideais têm a sua personificação em
situações concretas, visíveis e exequíveis por todos.

177
Conquistar o reconhecimento público significa tomar-se objecto de observação
especial, «sobressair» da multidão como ekprepès, meta que todos desejam aüngir,
incitados pelos poetas.. O homem de Estado tem diante de si o ideal do rei de
Hesíodo na assembléia; nas danças corais, as raparigas têm como modelo as donze­
las descritas por Álcman nas parténias (Parthenia, 1.40-49), e, natnralmente, os
atletas esperam conquistar nos Jogos o tipo de celebridade descrito por Píndaro
quando o poeta promete «nos cantos exaltar Hipócies pelas coroas / admirável
[íhaeíòn] ainda mais entre os companheiros e os anciãos / e doce pensamento
[mèlema] para as virgens» (Píticas, 10,57-59) Na tragédia, porém, como veremos,
ser-se admirado como algo que emerge da multidão é um aspecto da relação
ambígua do herói com a sociedade; e o olhar estupefacto do observador tinge-se de
dor, perplexidade e compaixão.
Os espectáculos atléticos figuram entre os mais importantes da antiga Grécia.
Compreendem não só os quatro grandes Jogos pan-helénicos (olímpicos, píticos,
nemeus e ístmicos) mas também inúmeros Jogos locais que se efectuavam em
certas cidades, como os íoleus, em Tebas, ou os Panateneus, em Atenas. As odes
de Píndaro é de Baquilides que celebram as vitórias nestes Jogos apresentam ao
vencedor a imagem do herói ideal, que se reflecte nos mitos paradigmáticos
narrados pelo poeta.. A vitória reflecte a excelência inata do atleta, a sua dis­
ciplina, a habilidade por ele demonstrada, a disponibilidade para o risco, a mode­
ração na alegria do sucesso,. O famoso Aitriga de Delfos, monumento em bronze
comemorativo de uma vitória ocorrida por volta de 470, é uma reprodução
escultórica de muitas destas qualidades. As odes dedicadas aos vencedores pro-
põem-se criar um «monumento» verbal que possua a solidez, a beleza e a dura­
ção no tempo próprias de estátuas como essa Daí, a frequente comparação da
ode com um templo, ou com um tesouro (por exemplo Olímpicas, 6; Pííicas, 6
e 7; Nemeias, 5).
Aquilo que a família faz pelos vencedores, fazem as cidades-Esíado por si
mesmas em tempo de guerra, colocando inscrições em santuários pan-helénicos
como Delfos ou Olímpia, santuários que, na prática, são um teatro das rivalidades e
das inimizades entre as cidades.
Está portanto implícito que, para as cidades, o maior e mais envolvente espectá­
culo é a guerra Era o que se verificava já na ílíada, e o público de Homero partilha
do ponto de vista dos deuses, que observam do Olimpo os acontecimentos da
planície de Tróia.
Em guerra, a cidade exibe o seu poder de um modo especíacular, tanto para uso
interno como em relação aos outros Estados. O desfilai de um grande exército,
com as suas armas cintilantes, os animais de tiro, os cães, o cortejo de civis, os
abastecimentos e todo o equipamento era uma espectáculo excitante, e dava aos
cidadãos uma demonstração sem igual do seu poder e dos seus recursos. Quando
narra o embarque da expedição à Sicília, em 416 a, C , Tucídides (6.2.1-2) oferece-
-nos um vivo relato de uma dessas cenas e do estado de excitação que ela podia
provocar, O mais austero dos clássicos gregos apresenta-nos, por um instante, a
guerra como uma grande e trágica parada da glória ateniense, fúlgida mas conde­
nada a um destino fiinesto.

178
Portanto, também neste caso não estamos demasiado longe do mundo épico.
Pode estabelecer-se uma comparação entre esse relato e a descrição de um aconteci­
mento contemporâneo, por exemplo, a narração feita por Píndaro da partida dos
míticos Argonautas para loico (Píticas, 4.191-98):

E depois de terem pendurado as âncoras no rostro,


o comandante, na popa, empunhando um cálice de ouro
invocava
o pai dos Celestes, que arremessa o raio,
e as rápidas rajadas
das vagas e os ventos e as noites e os caminhos do mar
e os dias benignos e, destino feliz, o regresso.
E a ele das nuvens responde augurando
a voz do trovão, e faíscas
derramaram raios cintilantes

A atenção de Píndaro ao observar uma demonstração de poder bélico fixa-se


mais nos deuses e na natureza do que nos barcos e nos equipamentos.
A descrição feita por Heródoto do imenso exército de Xerxes ao iniciar a sua
marcha também possui elementos espectaculares (7.187), acentuados pela posição
ocupada por Xerxes, que é, pode dizer-se, um espectador da batalha. Em Abidos,
manda erigir um trono de pedra branca, para observar ao mesmo tempo o exército e a
frota (7.44) Nàs TennópUas e em Salamina, observa a batalha como espectador (7, 212,
8.86), ladeado por um secretário que tem por missão anotar os nomes dos que execu­
tam feitos notáveis (8.88,.2). Tal como Tucídides, Heródoto escreve em tempos dramá-
dcos. O papel de espectador desempenhado pelo rei, bem como o do povo ateniense
que observa a partida dn seu exército para a Sicília, cerca de sessenta anos mais tarde,
encobre a sua trágica cegueira acerca do significado real dos acontecimentos.
O fim de uma guerra é tão espectacular como o seu início O íròpaion é realçado
no campo de batalha. Efectuam-se desfiles de guerreiros vitoriosos, com as suas
presas de guerra (armaduras, equipamentos, prisioneiros); uma parte dos despojos
é, em geral, retirada para ser depositada, como oferta, num santuário pan-heíénico,
onde todos a podem ver. Erigem-se regularmente monumentos aos mortos, pre­
meiam-se os valentes, e pronunciam-se elaboradas orações fúnebres em memória
dos mortos. Como se pode ver pela narração de Tucídides da oração fúnebre de
Péricles, no final do primeiro ano da guerra do Peloponeso, este acontecimento é
um dos espectáculos públicos mais impressionantes. Dois dias antes da oração, os
ossos dos guerreiros mortos são expostos publicamente sob uma tenda. Depois
organiza-se uma grande procissão em que os parentes dos mortos, homens e mulhe­
res, desfilam ao lado dos carros que transportam os ataúdes de madeira de cipreste,.
A procissão vai até ao extremo da cidade, onde os ossos são inumados numa vala
comum (Histórias, 2.34). Uma parte importante da cerimónia fúnebre é o discurso,
feito por um famoso orador.
A cidade que vive a sua derrota é um espectáculo de outro género, vigorosa­
mente teatralizado nos Persas, de Ésquüo, e nas Troianas e na Hécuba, de Eurípi-
des. No drama de Esquilo, vemos o monarca derrotado regressar entre gemidos e

179
lamentos, perdido o seu exército, rasgadas as esplêndidas vestes A exaltação da
partida revela agora o seu verdadeiro significado Pfndaro descreve uma cena
análoga com o objectivo de realçar, por contraste, a alegria e a fama que são fruto da
vitória: «[aos derrotados] não dava Pitó regresso / ameno, semelhante ao teu, / nem
doce riso suscitava alegria / em redor dos regressados para junto da mãe; mas por
vielas oblíquas se esgueiram, evitando os inimigos, / mordidos pela má sorte»
(Píticas, 8.83'87) Em vez de se alegrar, como faz o vencedor, com a fama (klèos)
conquistada, com o facto de ser considerado thaetòs ou ekrepês, «admirável» ou
«extraordinário», o derrotado permanece obscuro e esquecido.
Ao enfatuarem o embarque de um grande exército, Esquilo, Heródoto e Tuctdi-
des demonstram também o interesse dos Gregos pelo fascínio penetrante das emo­
ções de massa Os Gregos tinham consciência do poder do efeito que um espectá­
culo podia exercer sobre uma multidão, embora no periodo mais antigo não se
verificasse nada de semelhante aos sangrentos tumultos do circo, na Roma ou na
Bizâncio imperiais.. Em 49.3 a, C., quando o tragediógrafo Frinico apresentou o seu
drama A Conquista de Mileío, os Atenienses infligíram~lhe uma multa de mil
dracmas, porque tinha despertado neles a memória dos sofrimentos de um povo
pertencente à sua própria estirpe, a jónica. «Todo o teatro explodira em pranto»,
escreve Heródoto (6 21). Este excerto revela-nos o envolvimento emotivo do públi­
co ateniense que assistia á tragédia, mas também nos demonstra que a emoção
colecüva tinha uma categoria especial,
A palavra utilizada pelos autores da Grécia antiga para definir as assembléias
públicas que tinham lugar por ocasião dessas representações é agòn, que tem
também o significado secundário de «competição», que virá depois a tomar-se o seu
significado principal Os gregos adoram as competições, e as suas «assembléias»
são muitas vezes organizadas como «competições». Hesíodo participou com um
poema, possivelmente a Teogonia, numa competição desse gênero, os jogos fúne­
bres pelo rei Alcidamante, e ganhou uma trípode (Os Trabalhos e os Dias, 650-59)
Platão inclui nos «concursos» que «divertem os espectadores» a comédia, a tragé­
dia, a música, a ginástica, as corridas de canos e a recitação rapsódica (Leis, II,
658a-b), As raparigas que cantam o Paríhenion de Alcman competem entre si
(Álcman, fragm, 1 PMG) A poesia de Safo e de Alceu, de finais do século vll a, C,,
revela que, na ilha de Lesbos, se efectuavam concursos de beleza feminina.
Passando a coisas mais sérias, no âmbito do culto dos mistérios, sobretudo dos
Mistérios de Eiêusis, eram representados dramas religiosos sobre a morte e o
renascimento que deviam revelar ao iniciado um conhecimento oculto do Além, e
deste modo confortá-lo acerca do destino que o aguardava depois da morte. Devido
ao secretismo dos ritos, os pormenores não são conhecidos com precisão, mas as
representações eram quase seguramente acompanhadas por música e hinos poéti­
cos Um excerto do final do Hino Homêrico a Demêter dá-nos pelo menòs uma
pista acerca daquilo a que podia assistir um participante em rituais desse gênero;

Feliz entre os homens que vivem na terra


é aquele que foi admitido ao ritual!
Mas quem não é iniciado aos mistérios, quem deles é excluído.

180
jamais terá
idêntico destino, nem depois da morte, lá em baixo, nas
tristes trevas (480-82)

O facto de o iniciado ser designado por epòpíes, «alguém que faz de espectador»
revela a importância da experiência visual nesses rituais.

Conhecimento auditivo e visual

Em finais do século viii a. C,, os Gregos Unham desenvolvido, a partir da escrita


silábica semita setentrional, uma escrita alfabéüca muito mais adequada à sua
língua do que a silábica micénica Apesar disso, e devido ao enraizamento da
tradição da cultura oral e ao facto de a tecnologia da escrita ser muito limitada, a
expressão oral (e cantada) continuava a ocupar uma posição privilegiada. Na Odis­
séia, 0 auge da glória heróica é representado pelo canto das Musas, «com bela voz»,
no funeral de Aquiles, que faz chorar todo o exército grego (24,60-62), Peleu e
Cadmo, paradigmas da «altíssima felicidade» porque ambos desposam deusas,
«ouviram no monte as m usas/de diademas de ouro cantar/ e em Tebas das sete
portas» (Píndaro, Píticas, 3 88-91)
Se a experiência auditiva é importante para a memória e para a transmissão da
cultura, 0 pensamento grego também tende a privilegiar a visão como campo
principal de conhecimento e até de emoção, como vimos em Homero. Os olhos são
0 lugar do desejo, que o poeta vê jonai do olhar do amado, ou fixar-se nos olhos do
objecto do seu amor «Quem das pupilas de Teóxeno/ os raios jorrar / vê, e não o
agita a onda de desejo», escreve Píndaro no seu pomposo elogio do jovem coríntio,
«de diamante ou ferro / poliu o coração em fria chama» (fragm 123 Snell-Maelher)
O sujeito que conhece é construído como um observador; o que é desconliecido
é também invisível: a treva nebulosa antes da madrugada (Odisséia, 10 190, 11.13
segs.) ou as profundezas do Hades sob a terra (Euripides, Hipólito, 190 segs ), Estar
vivo equivale a «olhar a luz do Sol». O esquecimento ou o olvido, lèthe, fazem parte
da obscuridade, ao passo que o esplendor (aglàia) é atributo da glória ou da fama.
As duas tragédias de Sófocles sobre Édipo são construídas em tomo da identidade
entre conhecimento e visão, e entre cegueira e ignorância,, Para Platão, conhecer o
reino supra-sensível das Idéias significa poder ver esse reino luminoso e eterno por
cima dos obscuros e materiais fenômenos terrenos (cfr. Fédon, I09b-110c; Repú­
blica, 9,586a), «Toda a alma humana», escreve ele, no Fedro, «contemplou os
seres» (tethèatai tà ònta, 249e) No célebre mito do carro da alma, continua a juntar
os dois aspectos da visão, concebida como fonte de desejos e fonte de conheci­
mento. A visão que a alma tem das idéias enche-a de desejo, e ao mesmo tempo fa-
-la conhecer a sua verdadeira morada (250a-252b).
Desde os inícios da reflexão filosófica até ao neopiaíonismo, o filósofo «ergue
os olhos» para os mistérios celestes, mas também capta o que está oculto «nas
profundezas», como diz Demócrito (68 B 117 FVS), Nas Nuvens, Aristófanes
associa os dois aspectos da procura do remoto e do invisível. Enquanto os discípu­

I8I
los, na terra, o observam, Sócrates surge suspenso numa cesta, tentando assim
completar as suas idéias acerca de tà metèora, as coisas celestes (227"34). «Uma
grande ideia» também desaparece quando os excrementos de um lagarto lhe caem
na boca, no momento em que «observava o curso da Lua e das suas revoluções,
olhando para o aD> (I7Í~173)
Aristófanes troça da distância que medeia entre a realidade e o olhar do filósofo,
que se fixa em objectos muito distantes, Mas esse contraste entre o que é tangível e
o que está longe é também um aspecto daquilo a que Eric Havelock chama «a
revolução alfabética», Essa transição inicia-se no século Ví e intensifica-se no
século V, O conhecimento auditivo depende do contacto directo, pessoal, entre
quem fala e quem ouve, entre mensagem verbal e percepção auditiva, O conheci­
mento visual permite uma relação de maior distância, mais especulativa e impes­
soal, com a informação, sobretudo quando eia é transmitida através das palavras
escritas por alguém que não está presente fisicamente,.
A literatura oral (os Poemas Homéricos, por exemplo) visa o «prazer» provoca­
do pelas descrições pormenorizadas e pela elaboração ornamental dos acontecimen­
tos, A escrita favorece uma mentalidade mais ligada ao abstracto, ao conceptual, ao
universal do que ao concreto e ao particular,. A palavra que se ouve é invisível e
desaparece com a emissão do sopro que a traz. ao passo que a escrita fixa os
pormenores, peimitindo que se faça criticas e comparações. A tradição oral tolera a
existência da várias versões de uma narrativa; com a fixidez da escrita desenvolve-
"Se uma noção mais exclusiva da verdade, considerada como unitária, atingível com
dificuldade e só através de um processo de pesquisa e de análise. Por isso, na poesia
grega antiga, a «verdade», alètlieia, associa-se mais ao «não-esquecer» (a-lètlie) do
que à «precisão» ou à verificabilidade.
Para os historiadores Heródoío e Tucídides, o boato, akoè, pode enganar, e exige
ser verificado através da observação e, preferencialmente, do testemunho directo,
No início da sua História, Tucídides declara-se um «escritOD>, Comparando a sua
concepção de historiografia cora a dos seus antecessores, opõe a sua insistência na
«exactidão» e no «trabalho» exigido pela investigação à fácil popularidade do
«fabuloso», que é apenas «ouvido» por «prazer» numa «competição de momento»
(1.22) Embora diferente de Platão, Tucídides concorda com ele quando privilegia o
ver sobre o ouvir, numa perspectiva que se afasta da tradição oral
Estes antagonismos assumem vários aspectos na tragédia, como veremos mais
em pormenor. A tragédia não só associa a experiência auditiva à visual na sua noção
estnituralmente complexa e contraditória da verdade, como também pÕe em desta­
que a acumulação, a troca e o conflito de percepções sensoriais, O insulto de Édipo
ao cego Tirésias, «Es cego nos olhos, nos ouvidos, na mente» {Édipo Rei, 371),
reflecíe em parte a mistura de voz e visão nos paradoxos de conhecimento e erro
presentes neste drama, Nas Troianas, de Eurípides, Hécuba aumenta o pathos da
narração das suas ofensas contando que não tinha apenas «ouvido falar» da morte de
Príamo: «com estes olhos o vi trucidado junto do fogo do átrio e a cidade invadida»
(479-84) Na Electra, de Sófocles, a narração oral da morte de Orestes (tomada mais
eficaz pela evidência física da uma fúnebre) prevalece sobre a verdade daquilo que
Crisótemis viu com os seus próprios olhos (883 segs,).

182
Explorando estes contrastes, a tiagédia joga com infinitas variações acerca da
diferença entre ser e parecer.. No Hipôlito, de Eurípides, vemos diante de nós o
jovem, que segundo a lei é inocente, ser acusado de um crime terrível pelas tábuas
escritas deixadas por Fedra, que depois se suicida, O drama é parücularmente
interessante pelo papel da escrita como reflexo textual dessa inversão feminina de
verdade e aparência. O drama relaciona a inversão de realidade e aparência com o
poder do texto escrito por Fedra, a «muda» mentira das suas tábuas que abafa a voz
da verdade (cfr, 879 segs.) A dissimulação e a revelação da primeira cena de Fedra
exprimem-se por escrito, na sua ultima acção, mas a nobreza inicial da relutância
converteu-se agora em engano sangrento.. Por meio dessa associação (que não é
exclusiva deste drama) entre escrita, corpo feminino, secretismo (sexual), conjura e
revelação do que está oculto «no interior», a tragédia de Eurípides afirma a sua
capacidade de tratar de assuntos da mais profunda intimidade e dos segredos mais
ocultos da alma humana no espaço público do teatro,
O logro das aparências externas na tragédia baseia-se numa longa tradição do
pensamento grego «Ê-me odioso aquele que, como as portas do Hades, uma coisa
oculta no seu coração e outra coisa diz» — diz Aquiles na llíada (9. 312 segs ),
dirigindo-se a Odisseu, Os disfarces deste herói, na Odisséia, também colocam o
problema da relação entre a mudança do aspecto exterior e o que se mantém
constante, se é que algo se mantém constante, na nossa natureza Que sinal pode
fixar a nossa identidade, que tanto muda ou se mantém oculta? Disfarçando-se,
Odisseu corisegue enganar a mulher, mas não pode esconder da sua ama as cicatri­
zes da adolescência, Como é natural, Homero não traía destes temas de uma forma
articulada e consciente, mas eles estão implícitos no modo como nos apresenta o
herói facetado e pioteiforme do métis, bem como a astúcia, idêntica à sua, da
mulher, que passa o seu tempo a tecer e a desfazer o que teceu. Muito mais tarde,
Platão meditou sobre as cicatrizes repugnantes que o mal deixa gravadas na alma de
um tirano coixupto {Górgias, 524 segs; cfr. República, 588 segs,). Invisíveis nesta
vida, revelar-se-ão aos olhos dos juizes do Além. A mesma preocupação em captar,
através da aparência exterior, a verdadeira natureza oculta caracteriza a discussão,
relatada por Xenofonte, de Sócrates com um famoso artista acerca da forma como
deveria pintar o caracter ou o ethos de um homem (Memoráveis, 3.10).

A magia do prazer: representação e emoção

Na cultura da antiga Grécia, os espectáculos de maior importância não são nem


as manifestações naturais nem as da alma individual, mas os encontros públicos em
que as pessoas se reúnem para celebrai- festas, ouvir música, assistir a competições
atléticas e ritos religiosos Os frescos dos palácios minóicos de Creta e de Teras, da
Idade do Bronze, também reproduzem reuniões públicas nos átrios dos grandes
palácios e nas áreas contíguas Homero conserva a memória destas festas ao asso­
ciar uma dança coral gravada no escudo de Aquiles às danças no palácio de
Ariadne, em Cnossos (llíada, 18.590-92). Na Odisséia, há uma cena semelhante,
quando alguns jovens dançam no palácio de Alcínoo (8,256-65).

183
o encontro dos Jónios em Delos descrito no Hino HoméHco a Apoio é a festa
perfeita, e, por extensão, a representação perfeita Nele se dá vida a um espectáculo
que dá prazer (lèrpsis) aos deuses e aos mortais (146-55) O poeta parece identificar
a íèrpsis gerada por este canto com o efeito global da festa. Para além do «pugilato,
da dança e do canto» (149), há o prazer visual; «[quem estivesse presente] podería
observar a graça de todos» (153) e «deleitar-se-ia na alma/contemplando os ho­
mens, e as mulheres de belos cintos, e os barcos velozes, e as suas abundantes
riquezas» (153-155) O excerto é um testemunho precioso, proveniente da primeira
época arcaica, não só do efeito conjunto do prazer provocado pela visão e pela
audição em grandes festas, mas também da especial admiração suscitada pelo poder
imitativo da voz O autor do hino confere à beleza da voz das virgens de Delos o
valor de um verdadeiro espectáculo, «uma grande maravilha, cuja glória nunca
perecerá», Essa maravilha não consiste apenas no «encanto» dos sons mas também
no talento das virgens para imitar «as vozes e os sotaques de todos os homens»
(156-164)
A representação oral envolve o seu público numa reacção global, tanto física e
emotiva como intelectual, A poesia recitada e/ou cantada nestas circunstâncias
implica uma intensa relação pessoal entre o intérprete e o público
Quando Aquiles fala a Tétis do seu conflito com Agamémnon, no primeiro livro
da Ilfada, repete algo que nós já sabemos; todavia, confessar pessoalmeníe o seu
sofrimento à mãe dá-lhe a satisfação de comunicar com um ouvinte emotivamente
envolvido, e em sintonia com ele., Um episódio semelhante é o de Odtsseu, que
narra as suas aventuras a Penéiope depois do seu reencontro, no vigésimo terceiro
livro da Odisséia.. Cenas como estas, em que à narração conesponde uma audição
participada, podem talvez ser consideradas como analogias bu modelos ideais da
relação que o cantor espera que se instaure entre si e o seu público, Como íon
afirma, mais sumariamente, no diálogo platônico que tem o seu nome, «Se os faço
chorar, rirei eu porque ganho dinheiro; porém, se os faço rir, chorarei eu porque
perdi dinheiro» (/on, 535e).
Platão considera perigosa essa explosão de emoções e é por isso que exclui os
poetas da sua República ideal; mas o fon dá-nos uma ideia de uma representação
desse gênero Vemos o rapsodo fascinar o seu público e chegar quase a hipnolízá-lo
quando faz surgir diante dos seus olhos as cenas épicas da sua narração (535c)
Platão compara o efeito ao de um íman sobre anéis de ferro. O poder magnético
transfere-se do poeta para o rapsodo, e deste para o público (533d, 535e), O próprio
narrador, quando se embrenha totalmente no seu papel, fica «fora de si» (535b).
«Quando recito algo de comovente», diz o rapsodo, «os olhos enchem-se-me de
lágrimas; quando é algo de medonho ou de terrível, o medo eriça-me os cabelos e o
meu coração palpita» (535c).
Bm finais do século v, o sofista Górgias considera estas respostas de tipo
emotivo como fruto especial do poder que a poesia exerce no ouvinte, Ao elogiar o
poder da linguagem, no Elogio de Helena, escreve: «Aqueles que a escutam [a
poesia] sentem um arrepio cheio de terror, uma piedade cheia de lágrimas e um
lamento que a dor acaricia» (9). Estas reacções fisiológicas à linguagem confirmam
tudo o que podemos concluir acerca das reacções emotivas à tragédia quer de

184
testemunhos mais tardios quer das próprias tragédias Os momentos de crise no
interior do drama provocam consequências de caracter violento: anepios, tremores,
cabelos eriçados, afasia, vertigens, palpitações ou dispnéia, sensação de frio nas
entranhas, tensão em todo o corpo
Pelo seu rea! poder de provocar emoções, a poesia tanto pode constituir um
perigo como um elemento providencial. Como «encantamento» ou «feitiço», exerce
um efeito de tipo mágico e é assim que Górgias a descreve no Elogio de Helena
(10.14). Na Odisséia, íhèhds, a palavra que exprime esse «encantamento», refére-se
ao canto das Sereias e à magia sedutora de Circe. Píndaro afirma que as figuras
mágicas, semelhantes a Sereias, do ífontão do templo de Apoio em Delfos, canta­
vam tão suavemente que os homens se esqueciam das suas famílias e se consumiam,
fascinados pelo canto, e por isso os deuses tiveram de destruir o templo (Feã, 8,
fragm, 52i, Snell-Maehier).
Como os Gregos tendem também a representar o engano e a sedução sob a forma
de visões, imagens e fantasmas, a magia da palavra falada pode manifestar-se com a
auréola de uma beleza fascinante: a auréola que envolve as mentiras. Como a
Pandora de Hesíodo, as histórias podem ser «tecidas de várias mentiras», que nos
enganam, «lenda falaz» (Píndaro, Olímpicas, 1..28 seg.).. Se Odisseu é mais famoso
do que Ájax isso é devido ao talento de Homero, como afirma Píndaro, nas
Nemeias, 7, porque «majestade o rodeia / as mentiras e o voo da arte- Engana-nos a
Poesia (sophia), que seduz com fábulas; / cego o comum dos homens tem o cora­
ção./ Se pudessem saber a verdade, / não cravava no peito a lúcida espada, / desde­
nhado para as armas [de Aquiles], Ájax, o galhardo».
As Sereias de Homero são a representação mais conseguida, na poesia antiga,
dos perigos a que a magia do canto sujeita o ouvinte. Tornando-nos capazes de
esquecer as nossas desventuras, como afirma Hesíodo a propósito da sua poesia
(Teogonia, 54 seg ), o canto pode apagar a memória que nos liga ao passado e nos
confere a nossa identidade de homens Já em Hesíodo, o paradoxo de um poder
evocativo da memória que leva ao esquecimento é uma característica da poesia,
Todavia, no caso das Sereias, o paradoxo converte-se numa série de elementos
contraditórios que negam a finalidade do canto. As Sereias sabem tudo o que
aconteceu em Tróia, ou melhor, tudo «o que acontece na terra fértil» (Odisséia,
12 188-191); mas a sua ilha está cercada de cadáveres putrefactos e de ossos
humanos, e está situada longe das comunidades dos homens onde a memória tem
um significado e uma função (12 45-47).
Tal como as «feiticeiras» douradas de Píndaro, a cujo canto os homens «se
consomem longe das mulheres e dos filhos», as Sereias homêricas são Musas
peiversas. Afirmam possuir uma memória total, mas esse poder, estranhamente,
coexiste com os mais vergonhosos sinais da decadência mortal, a antítese da
imortalidade divina da fama que é «imperecível» (klèos ap/ií/ilion) Conservando os
efeitos meramente físicos da sua magia, o seu «encantamento», ou thèlxis, é apenas
momentâneo; ressoa nos ouvidos, mas não vive nos lábios dos homens É mera­
mente acústico, e por isso Odisseu pode deter-lhe os efeitos com meios merameníe
físicos, tapando com cera os ouvidos dos seus companheiros e atando-os ao mastro
da nave.

185
Aquilo que para os antigos poetas era uma fórmula mágica, converte-se em
habilidade técnica quando as artes da linguagem se profissionalizam e se racionali­
zam, em finais do século iv e inícios do século V, Professores de retórica como
Pítágoras, Gdrgias e Pródico ensinavam essa técnica, e Górgias, no seu Elogio de
Helena, aludiu conscientemente às afinidades que existiam entre essa arte, os
encantos da magia e as drogas. Quem aceitava pagar as lições podia aprender a arte
de persuadir um auditório jogando com as suas sensações, Segundo Tucídides, uma
parte do poder de Péricles provinha da habilidade para influenciar as multidões.
Tanto os historiadores como os dramaturgos da época revelam uma sensibilidade
nova em relação à multidão e às suas emoções: pânico, histerismo, impulsos
inesperados de generosidade ou de compaixão,
O teatro, mais ainda do que a assembléia ou o tribunal, é o local onde a emoção das
massas se manifesta plenamente Fríriico, como vimos, provocou as emoções erradas,
e, em vez da coroa do vencedor, recebeu uma multa Platão sugere que se substitua o
poder de provocar emoções, próprio da poesia, pelo diálogo filosófico: seria esta a
«poesia» adequada ao Estado ideal e filosófico. Nas Leh, afirma que «a Musa mais
bela é a que dá prazer aos homens melhores e àqueles que são adequadameníe
educados». A escolha por sorteio dos júris para os dramas prova que «a uma aristocra­
cia [....] está a suceder uma vulgai' teatrocracia» {Leis, 3,701a). Os filósofos-legislado­
res são «os poetas da mais bela e ao mesmo tempo da melhor fragédia que é possível
compOD>, porque o seu Estado ideal é a «imitação {mimesis) da melhor vida, da vida
mais bela», e por isso encarna «a tragédia mais verdadeira» {Leis, 7.817b).
Pondo de parte a sua relevância no que diz respeito ao conceito que Platão tinha
do seu papel de educador, estas observações podem ser interpretadas sob um ponto
de vista histórico para se ter, retrospectivamente, uma ideia da centraUdade do teatro
na comunidade ateniense e da importância das reacções do público. O orguUio
especial que os Atenienses sentiam por estes espectáculos é confirmado também
pelas observações atribuídas por Tucídides a Péricles, no discurso fúnebre Péricles
louva Atenas pela quantidade de distracções que permitem esquecer o trabalho J i
quotidiano, distracções essas que consistem em «jogos [agòttes] e festas durante
todo o ano», cujo «prazer» {tèrpsis) afugenta o cansaço Prosseguindo com o
discurso, ele opõe Atenas a Esparta pela sua abertura: ninguém é impedido de
«conheéer ou ver qualquer coisa» (espectáculo, íhèama), a não ser que isso consti­
tua uma ajuda directa ao inimigo (2.39.1). A linguagem de Tucídides é genérica e
um tanto vaga, mas os espectáculos teatrais cívicos podem segurameníe ser incluí­
dos no íhèama de que Péricles fala; e talvez pensasse neles quando proferia a sua
famosa e incisiva afirmação: «Resumindo, afirmo que toda a cidade é um exemplo
de educação para a Grécia» (2,41 1).

O drama: origens e características

Embora o objectivo de Homero seja fazer-nos «ver» os grandes leitos do mundo


épico com os olhos da «maravilha» {thàutna, thàmbos), não tem dúvidas de que a
palavra recitada (e cantada) é o verdadeiro veículo da comunicação e da memória.

186
A partir de finais do século vm a. C , quando a escrita começa a adquirir uma
importância cada vez maior, essa relação entre os olhos e os ouvidos altera-se. Em
fmais do século Ví e inícios do século v, poetas como Simónides, Píndaro e
Baquilides, embora preconizem (e por vezes mantenham) relações de tipo pessoal
com os seus mecenas, possuem uma ideia da sua arte que evolui num sentido mais
profissional Escrevendo a troco de dinheiro, por encomendas que lhes chegavam
de diversas partes do mundo grego, estão muito mais afastados da relação directa
com o público própria do cantor de tipo homérico. Essa relação mais livre com o
recitaíivo oral também é evidente nas metáforas visuais criadas por Píndaro e
Baquilides para os seus cantos. Ao contrário do imaginário vocal de Homero e
Hesíodo, muitas dessas figuras não têm nada, ou têm muito pouco, a ver com as
circunstâncias da execução, ou mesmo com a voz ou a música. A ode é uma estátua,
uma grinalda, um adorno bordado, um templo, uma copiosa íibação de vinho, uma
fresca fonte, flores, fogo, asas, O próprio poeta pode ser uma águia que se liberta
nas alturas, um archeiro ou um lançador de dardo que faz brotar um canto-projéctíl,
um viandante que caminha por uma longa estrada ou um viajante num barco que
sulca os mares.
Quando Simónides diz: «A pintura é poesia muda, a poesia é pintura que fala»
(Píutarco, De Gloria Athen , 3.346F), não relaciona a poesia com o recitativo mas
com a experiência visual, um domínio, portanto, bastante diferente. Somos tentados
a associar a analogia de Simónides entre o visual e o acústico com a interaccção de
som e visão que, mais ou menos no mesmo período, a tragédia começava a desen­
volver, sobretudo porque Simónides é sob muitos aspectos um precursor do sofista
itinerante e da sua liberdade de especulação racional.
Na tragédia, a organização do material narrativo dos mitos através de um texto
escrito toma possível uma nova e vigorosa narração visual; voz e visão estabelecem
entre si relações complexas de um novo tipo. Com essa maior insistência em
aspectos e conteúdos inovadores, o espectáculo ou o teatro tornam-se metáforas
para descrever a experiência humana em geral, No Filebo, Platão sugere a ideia de
que a vida é comédia ou tragédia (50b), e talvez seja esta a primeira formulação, na
literatura ocidental, da analogia entre o mundo c o palco, tomada famosa pelo
melancólico Jaques shakespeariano (Ar you like it, II, 7) Epicuro observava: «so­
mos todos um público bastante numeroso para os outros» (citado por Séneca,
Cartas a Ludlio, 7.11). Na sua formulação mais geral, a ideia é expressa, provavel­
mente em fmais do século i d, C,, por Longino, no tratado De sublime, ao comparar
todo o universo a um grande espectáculo, de que o homem é um espectador
privilegiado e onde reconhece a grandeza a que está destinado pelas enormes
possibilidades do seu pensamento (35).
De facto, este excerto, bastante influenciado pelo estoicismo plaíonizaníe,
reivindica para a humanidade aquilo que, no pensamento da Grécia arcaica e
clássica, constitui uma prerrogativa dos deuses: ser um espectador distanciado dos
sofrimentos e dos conflitos existentes na vida dos homens, É essa também a
perspectiva da divina sabedoria do filósofo no epicurismo (cff, Lucrécío, De
Rerum Natura, 2, 1—13). Tanto o público da poesia épica como o da tragédia
possuem algo dessa perspectiva privilegiada; em sentido figurado, na poesia épi­

187
ca, na medida em que o narrador omnisciente nos faz participar do segredo do
que os deuses vêem e sabem; em sentido mais iiíerai, na tragédia, porque estamos
sentados, dominando a acção a uma distância quase olímpica, embora não com
olímpica indiferença. Tanto na poesia épica como na tragédia, esse espectáculo do
sofrimento humano toma, porém, mais intensa a consciência dos Haiites que
pesam sobre a vida dos mortais Todavia, a visão filosófica visa justamente
ultrapassar esses limites.
Embora as origens da tragédia continuem a ser obscuras e controversas, a
relação que Aristóteles estabeleceu entre ela e o ditirambo {Poética, 4 1449a) é
largamente aceite, O ditirambo, que começou por ser uma movimentada representa­
ção coral em honra de Dioniso, parece ter-se convertido, em finais do século iv,
numa forma de caracter mais grave, mais lírico, em que se narravam mitos sobre os
deuses e, posteriormente, sobre os heróis. A questão dos laços existentes entre a
tragédia e Dioniso Já se colocava para os antigos- Por isso, a expressão «Nada para
Dioniso» foi interpretada como sendo uma cntica à excessiva distância existente
entre a tragédia e o culto propriamente dito do deus, durante a mais importante das
festas que lhe eram dedicadas, as grandes Dionisíacas, a principal ocasião para as
representações dramáticas, Embora os primeiros inícios da tragédia remontem ao
tempo do tirano Pisístraío (a data tradicional é o ano de 534 a, CT, foÍ retomada e
aperfeiçoada na época da nova democracia, no princípio do século v. A associação
de Dioniso com o culto popular, mais do que as tradições aristocráticas, pode ter
encorajado o seu desenvolvimento.
Dioniso é 0 deus da vegetação, e em especial das videiras e do produto da sua
fermentação; é também associado h loucura e ao êxtase religioso. Surge muitas
vezes nos vasos com um cortejo de Sátiros, criaturas com pés de cabra, meio
homens meio animais, que dão livre curso à sua natureza animal na embriagues, nos
gestos lascivos e num indiscriminado apetite sexual Segundo Aristóteles {Poética,
4.1449a), as danças satíricas também contribuíram para o desenvolvimento da
tragédia, e, durante as Dionisíacas, a par das três tragédias de cada um dos autores
em concurso, representava-se um drama de carácter mais ligeiro, com um coro de
Sátiros. Outras acompanhantes de Dioniso, em estreita (embora não necessariamen­
te harmoniosa) relação com os Sátiros, são as Ménades («loucas»). Também elas
personificam uma desinibida libertação de energia emotiva e física no quadro de
uma entrega total ao deus e ao seu culto
As associações de Dioniso ao irracional, à loucura, às mulheres, às danças e às
músicas frenéticas, e à flexibilidade dos limites que existem entre o animal, o
homem e o deus são todas relevantes para a tragédia, A ligação de Dioniso à
máscara é ainda mais imediata De facto, Dioniso é muitas vezes venerado por
intermédio de uma máscara, umas vezes pendurada numa árvore ou numa coluna,
outras vezes adornada com folhas de hera, a planta consagrada ao deus- A máscara
toma possível a representação mimética dos mitos em forma dramática, O actor
mascarado também pode explorar a fusão entre diferentes identidades, essências ou
categorias da experiência: macho e fêmea, humano e bestial, estranho e amigo,
iniciado e profano. A máscara íoma-se assim essencial na experiência teatral
como indício da vontade do publico em se submeter à ilusão, ao jogo, à ficção, em

188
esbanjar' energias emotivas em algo que está conotado como fictício ou Outro.
Como sugeriu Vemant, o olhar fíxo da máscara é também o modo de representar a
presença da divindade entre os homens
Por todos estes motivos, Dioniso é o deus mais adequado para superintender à
tragédia e aos seus aspectos peculiares: a atmosfera carregada de emoção própria de
um espectáculo de tipo mimélico; o profundo sentimento de identificação com o
mundo mágico criado e personificado por actores mascarados; a habilidade para pôr
em confronto a alteridade do bestial e do divino na vida humana e para reconhecer a
irracionalidade e a emotividade, associadas ao elemento feminino numa sociedade
dominada pelos homens; a abertura às problemáticas de mais amplo fôlego tornada
possível pela presença dos deuses agentes visíveis no mundo dos homens O fas­
cínio da máscara dionisíaca liberta, em doses controladas, os medos, a ansiedade, a
irracionalidade que fermentam sob a patina de esplendor da Atenas de Péricles,
A tragédia redefine o papel do espectador Em vez do prazer, ou tèrpsis, do
reciíaíivo épico ou da representação coral, a tragédia envolve o seu público numa
tensão entre os dois pólos do prazer que se espera de um espectáculo de alta
qualidade e da dor provocada pelos seus conteúdos Por vezes, os próprios autores
fazem notar esta contradição, para o «paradoxo trágico» do prazer no sofrimento
(cfn Eurípides, Medeia, 190-203, e Bacantes, 8Í5)
A tragédia não dá apenas uma tangível e impressionante representação dos mitos
antigos; também centra neles a sua atenção em situações de crise. Ao contrário da
narração ampla e expansiva da poesia épica oral, a tragédia selecciona aspectos
cnticos e condensa a sorte de uma família ou de uma cidade numa acção fortemente
unitária que se desenrola num tempo e num espaço limitados.
Todas as componentes da tragédia existem na poesia do passado: os recitativos
poéticos dos discursos do mensageiro; os cantos corais de alegria, de lamento, ou
que apelam para exemplos mitológicos; e, em certa medida, também o diálogo
Contudo, estes elementos adquirem uma nova força quando interagem no novo
organismo que é a tragédia. Ésquilo serve-se da simetria do refrão entoado pelo coro
ou do responsório para produzir o efeito de uma multidão aterrorizada, como em Os
Sete contra Tebas (150-180) Nos Persas, combina o responsório lírico do lamento
com o espectáculo visual do rei derrotado que mostra as vestes rasgadas, para dar a
ideia do ímpacte da denota em toda a comunidade (Persas, 906-1077) A identifica­
ção do público do teatro com a cidade ameaçada através da repetição imítativa do
perigo confere a estas cenas uma intensidade que ultrapassa qualquer exemplo
extraído da lírica coral.
A antiga Vida de Ésquilo realça o seu poder de èkplexis, de «impressionar» o
público com efeitos visuais irresistíveis. Segundo se refere nessa obra, quando as
Fúrias apareceram, nas Euménides, houve desmaios de crianças e algumas mulheres
abortaram. A veracidade da anedota é dúbia, mas reílecte provavelmente o espírito
da arte de Ésquilo. Os seus efeitos acústicos são igualmente poderosos: os uivos de
terror das Danaides, nas Suplicantes, o misterioso ototototòi pòpoi dà opòllon
opòllon de Cassandra, misto de pavor e de profecia (Agamémnon, 1072 seg.); os
murmúrios e os rosnados das Fúrias quando o fantasma de Clitemnestra as desperta,
no início das Euménides (119 segs,), logo seguidos pelo seu terrível e envolvente

189
canio contra a sua vítima (307-396); ou o a a e c de Io, cujo significado se
desconhece, quando entra em cena perseguida por um moscardo {Prometeu Agri­
lhoado, 566)
Sófocles e Eurípides são mais comedidos, mas também têm a sua Esfinge que
assobia (Eurípides, Édipo, fragm H Austin), os seus heróis que uivam de raiva
(Sófocles, Traquínias, 805, 983-1017; Eurípides, Héraclès, 869 segs..), as persona­
gens que sofrem e que por isso se lamentara ou gritam (Sófocles, Electra, 826-30,
840-845; Piloctetes, 730-757), No extremo oposto, também são capazes de utilizar
o silêncio para provocar um efeito iguaímente poderoso. Aristófanes troça dos lon­
gos silêncios dos protagonistas de Esquilo nas cenas de abertura {Rãs, 911-920),
As silenciosas saídas de cena de Jocasía, Dejaniia e Eurídice (respectivamente em
Édipo Rei, nas Traquínias e na Antigona, de Sófocles), representara o sinistro mo­
mento de calma que antecede o furacão da desgraça, Em Édipo eni Colona, Sófocles
cria uma atmosfera de tensão mantendo o velho Édipo mudo durante uma cen­
tena de versos, até que a raiva que sente por seu filho Polinices explode em tremen­
dos insultos e maldições (1254-1354). Utilizando a ainda recente inovação do ter­
ceiro actor, Esquilo deve ter surpreendido o seu público no Agamêmnon, quando
Cassandra, que permanece muda na longa cena entre Agamêmnon e Clitemnestia,
irrompe inesperadameníe nos seus terríveis gritos de desespero e profecia.. Na tragé­
dia seguinte da trilogia, Pílades mantém-se também silencioso até ao ponto culmi­
nante, quando, no terrível momento da decisão, encoraja Ores tes a matar a mãe,
pronunciando os três únicos versos que lhe cabem na tragédia {Coêforas, 900-902),

A linguagem e a tragédia

O poder significante da linguagem é uma questão fundamental na tragédia.


Termos éticos de importância cmcial como «justiça», «bondade», «nobreza», ou
«pureza» são consíantemente postos em causa e redefinidos. O paradoxo de uma
«ímpia piedade» está no centro ào. Antigona. O significado dos termos «bom senso»
{sop/irososyne) e «sabedoria» {sop/üa) é fundamental, respecüvamente, para o
Hipéliío e para as Bacantes de Eurípides, Obras como o Agaménmon de Esquilo, o
Édipo Rei, as Traquínias e o Piloctetes de Sófocles devem muito do seu poder ao
aprofundamento do tema do fracasso da comunicação, entre os homens e eníie os
homens e os deuses. As ambiguidades da linguagem próprias das profecias e dos
oráculos determinam os acontecimentos destas e de outras tragédias. Sob este ponto
de vista, a tragédia não só reage ao minucioso exame crítico da linguagem caracte­
rístico do iluminismo sofista, mas também antecipa o propósito platônico de confe­
I
rir estabilidade aos valores éticos no interior desse meio instável e traiçoeiro que são
as palavras.
A importância das temáticas da linguagem e do significado é-nos revelada pelo
facto de surgirem tanto na cena cômica como na tragédia. As Nuvens, de Aristófa­
nes, ficam a dever muita da sua carga humorística à iniciação de Estrepsíades nas
subtilezas do estudo sofista da gramática, dos gêneros, da moifologia.. O auditório
da comédia não se deliciava só com a voz humana O coro dos Pássaros deve ter

190

1,^
sido uma notável evocação do canto dos pássaros (como a que o poeta arcaico
Álcman se dizia capaz de imitar [fragms. 39 e 40 PMGj), uma divertida experiência
testemunhada nos manuscritos em nosso poder só pelo towiowíorotorotix / kikka-
bàu kikkabàu (cfr 223 segs., 260 segs , 310 segs.) As comédias de Aristófanes
estão repletas de jogos de palavras, de duplos sentidos, de inúmeros divertimentos
verbais, Os nomes servem de motivo para piadas, muitas delas obscenas, como a
que transforma um demo ático numa comunidade de onanistas {Anaphlystioi e
anaphlàn: Rãs, 427).
A palavra, a música e o movimento constituíam a parte preponderante da
tragédia, o que está de acordo com o papel subordinado atribuído por Aristóteles ao
õpsis, ao espectáculo, na Poética. O dramaturgo íinlia algumas máquinas cênicas à
sua disposição. Uma grua podia transportar carros ou heróis voadores (como Per-
seu) O enkyklema podia expor aos olhos do público as consequências da acção
— geralmente violenta — que ocorria dentro de casa Esquilo, como se viu, foi o
mais audaz dos dramaturgos cujas obras chegaram até nós a criar mirabolantes
efeitos espectaculares, Porém, no conjunto, a representação teatral era mais conven­
cional do que realista e fazia um uso relativamente escasso de andaimes e simples
panos de fundo. A recitação das personagens, mascaradas e vestidas com grande
esmero, devia ser bastante estilizada; a voz, a dicção e os gestos exploravam
totalmente o seu valor expressivo Os próprios músicos eram apreciados pelos seus
movimentos e pelos seus gestos, A propósito do célebre flautista Prónomos, por
exemplo, Pausânias refere que «com a compostura do seu rosto e com os movimen­
tos do coipo dava grande prazer ao público no teatro» (9.12 .6)
De qualquer forma, os efeitos visuais de Sófocles e Eurípides parecem relacio­
nar-se mais com os temas centrais do drama do que os de ÉsquUo, e exprimem
melhor as características e as situações dos protagonistas: a cegueira de Édipo, nas
duas tragédias de Édipo, Penteu vestido de ménade, nas Bacantes, a miséria e a
doença de Piloctetes. Eurípides leva muitas vezes a acção até ao extremo do
sofrimento e do horror, e depois interrompe-a bruscameníe com a aparição de uma
divindade (o deus ex machina) Sófocles serve-se deste expediente apenas uma vez,
e de uma forma bastante diferente: no Piloctetes, Héracles chega do Olimpo, viva
voz e personificação do heroísmo e da generosidade que permaneceram adormeci­
dos no herói doente e amargurado
As frequentes paródias que Aristófanes faz dos efeitos visuais da tragédia
mostram até que ponto eles impressionavam o público ateniense. De uma forma
substancialmente idêntica, Sófocles e Eurípides imitam cenas de Ésquilo, em espe­
cial da Oresteia, nas suas versões do mito Nas Traquínias, a entrada em cena do
cortejo de Héracles com a prisioneira silenciosa, íole, é um eco visual da entrada de
Agamêmnon com Cassandra, no Agamêmnon: um expediente que lança a sombra
da homicida Clitemnestra sobre a fiel e paciente Dejanira.
A Electra, de Eurípides, talvez seja o eco visual mais rico das cenas de Ésquilo
Electra atrai Clitemnestra a sua casa para executar o matricídio, com o pretexto de
que ela, casada com um pobre camponês, deu à luz um filho e precisa de ajuda para
os ritos da purificação Chegando num carro, ricameníe vestida e acompanhada por
escravas troianas como suas aias, Clitemnestra desempenha o papel do Agamêmnon

191
culpado de hybrií do drama de Esquilo, ao passo que Eíectra, que atrai a persona­
gem poderosa a sua casa para levar a efeito uma horrível e ímpia vingança,
interpreta o papel desempenhado por sua mãe, no Agamênmon. Tanto na Elecíra de
Sófocles como na de Eunpides, estes ecos cênicos podem fazer pensar na execução
de um justo castigo, mas também implicam a perpetuação da impiedade e da
violência criminosa

Espectáculo e narração

Mesmo quando atinge a sua plena evolução como forma de espectáculo, a tragédia
não rompe totalmente com a tradição oral. Os longos discursos dos mensageiros que
narram frequentemente os acontecimentos culminantes da tragédia deviam ser fami­
liares para um público habituado às longas narrações em verso da poesia épica.
Todavia, o sentido destas narrações na tragédia c bastante diferente do da poesia
épica. A batallia entre Etéocles e Polinices nas Femcias de Eunpides, por exemplo
(1359-1424), está estreitamente ligada aos duelos entre heróis da Híada. No entanto,
em vez da clara, nítida distinção entre amigo e inimigo, a narração trágica fala de
maldição, impiedade e fúsão/confusão dos dois irmãos que não podem reconciliar-se
nem separai-se. Dai que, neste caso, a expressão homérica «morder a terra com os
dentes» ao morrer se combine com o motivo trágico do assassínio de alguém do
mesmo sangue e da impossibilidade da distinção (1423 seg )-
Mais do que mostrados em cena, os acontecimentos mais violentos e dolorosos
da tragédia grega são narrados nesses discursos: o assassínio do marido levado a
cabo por Ciitemnestra e a sua morte às mãos dos filhos; o desmembramento de
Penteu; Tiestes comendo os seus próprios filhos; Medeia envenenando as suas
vítimas e depois matando os filhos corn a espada, etc. Todavia, na tragédia, esses
acontecimentos não se confinam ao âmbito da narração, e isso por três motivos. Em
primeiro lugar, o público pode ver imediatamente as consequências dos actos
violentos cuja narração escutou: os corpos de Agaraémnon e de Cassandra arrasta­
dos para fora do palácio sobre o enkyklema, a aparição de Édipo cego ou de
Polimestor (na Hécuba, de Euripides), ou Agave mostrando a cabeça de Penteu, nas
Bacaníes. Em segundo lugar, as narrações ocorrem muitas vezes na presença de
duas ou mais personagens que têm reacções diametralmente opostas. Na Eleara, de
Sófocles, por exemplo, Electra e Ciitemnestra respondem de forma antitética à
notícia (falsa) da morte de Orestes Nas Traqiiínias e no Édipo Rei, um discurso de
um mensageiro tem um certo significado para um protagonista masculino (respecti­
vamente, Ilo e Édipo) e outro, toíalmente diferente, para uma figura feminina, que
abandona a cena, muda na sua dor, e se suicida (Dejanira e Jocasta).
Em terceiro lugar, e mais importante, a narração da violência ocorrida fora de
cena chama a atenção para o que nõo se vê. Atribui-se assim um estatuto privile­
giado a esse espectáculo invisível só pelo fácto de não ser visto Esse «espectáculo
negativo» — como poderia ser definido — estabelece um contraponto entre os
acontecimentos que podem ser vistos à luz do Sol, na orquestra, e os acontecimen­
tos ocultos, que ocorrem no exterior, Estes adquirem uma dimensão ulterior de

192
mistério, horror e fascínio só peio simples facto de ocorrerem atrás da cena. Esse
espaço para lá da cena, que representa muitas vezes o interior da casa ou do palácio,
funciona como espaço do irracional ou do demoníaco, como as áreas da experiência
ou os aspectos da personalidade que estão ocultos e que são obscuros e terríveis.,
Assim são, por exemplo, o palácio onde Ciitemnestra atrai Agamémnon para o
assassinar, a casa onde Dejanira guarda e depois utiliza o sangue venenoso do
Centauro, a tenda onde Hécuba e as suas companheiras matam os filhos de Polimes-
íor e cegam o pai, ou a prisão subterrânea onde a aparição de Dioniso disfarçado de
touro começa a pôr em perigo a autoridade racional de Penteu.
O discurso do mensageiro no Édipo Rei, o mais famoso relato deste típo na
tragédia grega, explora a fundo o contraste entre o que está «oculto» e o que «se pode
V6D>, A reticência ou a. incapacidade de relatar «as desgraças que mais atingem os
homens» (1228-I2.31) envolve a cena numa sugestiva penumbra A «recordação» do
mensageiro permite-nos seguir .locasta até à sua câmara, que ela nos impede imediata­
mente de ver, fechando a porta (1246). A barreira concreta das portas fechadas e a que
é simbolizada pelas hesitações do mensageiro ao recordar e ao narrar tomam invisível
a sua agonia; contudo, ouvimo-la «chamar» por Laio e evocar os actos da concepção e
do parto, cujo horror a encerra agora no espaço fechado do quarto,
O clímax da narração do mensageiro é a misteriosa e inexplicada revelação de
que «um deus qualquer lhe indicou [a Édipo] o caminho» (1258). Soltando gritos
terríveis, Édipo derruba as portas trancadas, permitindo-nos ter a visão medonha do
corpo de .íocasta, que oscila suspenso no nó corrediço. O «espectáculo horrível»
antes oculto é por fim revelado (1253 seg., 1263 seg,), mas só a quem estava no
palácio (e na narrativa) e não ao público do teatro. «Foi um espectáculo horrível»,
prossegue o mensageiro (1267) quando volta a falar de Édipo, que agora «vê»
locasta e que arranca os olhos com as fivelas das suas vestes (1266 segs,).
O repetido tema da visão bloqueada ou parcial é adequado quando se está na
presença de uma imagem demasiado leriível para ser narrada ou encenada. Todavia,
a tensão entre a narração daquilo que é visível e daquilo que está oculto, entre o que
é ouvido e o que é visto, dissipa-se na visão plena de Édipo, que quer que se abram
os portões para que «se mostre a todos os tebanos» a sua impiedade (1287-1289).
O narrador fornece as didascálias: «Estão a abrir-se as portas do palácio: em breve
vereis um espectáculo [íhèaim] que causaria dó mesmo a um inimigo» (1295 seg,,).
A aparição, voluntariamente teatralizada, de Édipo permite que as emoções reprimi­
das se exprimam colectivamente nos gritos do coro quando este, tal como o público,
vê por fim com os seus próprios olhos o que até então não passara de uma
experiência meramente oral/auditiva «Ó catástrofe terrível para a vista humana»,
grita 0 coro, «a mais terrível que alguma vez vi!»

Tragédia: espectáculo dtadino

Embora o tema da tragédia seja, mais ou menos indirectamente, o marginal, o


diferente, o inacional, todas as partes da representação teatral reflectem a sua
integração na cidade e nas suas instituições democráticas. Um dos magistrados de

193
dasse mais elevada escolhia os três autores trágicos cujas obras cieveriam ser
representadas nas festas citadinas das Dionisíacas e das Leneias Ao contrário do
que acontecia no teatro romano, os actores e os elementos do coro eram cidadãos
e, no inicio do século v, eram os próprios poetas que desempenhavam um papel
nos seus dramas. Os juizes eram cidadãos escolhidos por sorteio em cada uma das
dez tribos. O próprio teaho era um edifício público; era ai que, um dia após o
final das Dionisíacas, a assembléia se reunia para decidir se a festa decorrera
normalmeníe. Nas Dionisíacas, a par das representações dramáticas, recebia-se a
homenagem dos aliados, proclamava-se os benfeitores da cidade e os filhos dos
cidadãos mortos na guerra desfilavam com as aimas que lhes eram fornecidas
pelo Estado Como sugere 1'ucídides, no discurso fúnebre de Péricles, e Aristófá-
nes, nos Acamenses (496-507), as Dionisíacas eram uma oportunidade para a
cidade se exibir perante os aliados e as cidades vizinhas, para dar uma visão
espectacular de si mesma
Mas a tragédia não é apenas uma parte qualquer desse espectáculo citadino,
dado que, com a sua extraordinária abertura, leva a cidade a reflectir sobre o que
está em conflito com os seus ideais, sobre o que deve excluir ou reprimir, sobre o
que teme ou considera estranlio, desconhecido, Outio. Nesta perspectiva, pode
entender-se a recorrente dramatização do poder e da fúria das mulheres no âmbito
doméstico (Esquilo, Oresíeia; Sófocles, Traquínias‘, Euripides, Medeia^ Hipólito,
Bacantes), com a inversão dos papéis sexuais e a transformação de poderosos
soberanos em párias derrotados e miseráveis (Édipo, Jasão, Héracles, Creonte,
Penteu, etc ) Euripides podia idealizar Atenas como justa e piedosa defensora dos
fracos {Heraclidas, Suplicantes) e o mesmo fez Sófocles em Édipo em Colona
Todavia, Euripides também escreveu obras como Hécuba e ás Troianas, criticando
implicitamente a brutalidade da política de guerra ateniense Nos Persas, a atitude
de Esquilo para com os invasores derrotados era de indulgência e compreensão,
A comédia pôde exprimir o desejo de paz, formulado clarameníe em obras como os
Acamenses, a Paz ou Usistrata, além de criticar instituições como os tribunais ou a
assembléia {Vespas, Ecclesiazuse), ou personagens públicas como Cléon {Cava­
leiros) .
A tragédia podia levar à cena, de forma simbólica, debates contemporâneos
acerca de temas políticos e morais, como, por exemplo, a limitação dos poderes do
Areópago nas Eiimênides, de Ésquílo, No entanto, o seu significado cívico e
político também podia ser mais difuso e indirecto O papel de Odisseu no Ájax de
Sófocles, por exemplo, afirma o valor democrático do compromisso sobre o autori­
tarismo e a intransigência aristocráticas. A tragédia também levanta a questão dos
perigos inerentes ao exercício do poder {Persas, Oresteia, Antigona), mostra as
infaustas consequências da divisão ou da discórdia na cidade {Sete contra Tebas,
Fenidas), ou descobre uma eshutura moral que está na base das acções humanas,
como se pode ver pelo lento, difícil e muitas vezes doloroso caminho da justiça
através de muitas gerações, por exemplo, nas trilogias de ÉsqulJo
Enquanto a lírica coral tende a consolidar as tradições e os valores das famílias
aristocratas, a forma relativamente nova do espectáculo dramático é a que caracte­
riza a pólis democrática. Na verdade, cora a sua integração na vida da cidade, a sua

194
estrutura de debate dialéctico, as reíações sempre instáveis entie o herói e a comuni­
dade representada pelo coro, a tragédia é-o género artístico mais caro à democracia,
após os seus inícios no tempo de Písístraío. O ethos aristocrático do individualismo,
da honra pessoal e da excelência na competição, expresso na poesia épica está ainda
vivo no século v Como está claramente demonstrado em obras como Os Sete
contra Tebas, de Esquilo, o Ájax e o Filoctetes, de Sófocles ou o Héracles, de
Euripides, uma das funções da tragédia é reexaminar esses comportamentos à luz
das necessidades de compromisso e de cooperação próprias de uma sociedade
democrática
Os mitos apresentados na tragédia não reflectemjá os valores tradicionais de uma
época remota, idealizada, Pelo contrário, tomam-se o campo de batalha das lutas
internas na cidade: antigas concepções de vingança cruel contra o novo legalismo
cívico (Oresteia); as obrigações familiares contra as obrigações civis (Antigona); os
conflitos entre os sexos e entre gerações (Alceste, Medeia, Bacantes, de Euripides), as
diferenças entre o governo autoritário e o democrático (Euripides, Suplicantes; Sófo­
cles, Ájax e Édipo em Colona). Por estas razões, as representações trágicas também
não são concebidas como um entretenimento de que se pode usufruir em qualquer
altura (como o teatro moderno), íímííando-as às duas festas citadinas dedicadas a
Dioniso e ocorrendo no espaço carnavalesco associado a esse deus
Acima de tudo, a tragédia cria um espírito comunitário, no teatro e na cidade. Na
cidade, os cidadãos-espectadores, embora diferentes, têm consciência da sua unida­
de dentro dajcidade e do edifício público onde estão reunidos. Os espectadores da
tragédia tomam-se espectadores uns dos outros enquanto cidadãos e enquanto
espectadores da peça. O teatro liga entre si os cidadãos, que partilham emoções e
piedade. No final do Hipôlito, de Euripides, por exemplo, a dor pela morte do fiUio
de Teseu é uma «dor comum» que se espalha «por todos os cidadãos» (1462-1466),
apesar de HipóUto ter preferido aos deveres políticos os objectivos pessoais da caça
e do desporto. A comemoração cívica, além do mais, é o tributo que uma comuni­
dade pode oferecer, em contraste com o ritual privado e religioso com que a sua
deusa, Ártemis, honrará a sua memória (1423-1430).
A tragédia não só faz incidir o espelho distanciador do mito sobre problemas
contemporâneos como reproduz algumas das mais importantes instituições citadi­
nas,. As sua maiores afinidades são com os tribunais. Com efeito, os juízes dos
dramas são dez espectadores escolhidos à sorte As rápidas trocas de palavras entre
os antagonistas asseme!ham-se às argumentações da defesa e da acusação nos
tribunais. Na realidade, as tragédias convertem o público numa espécie de juiz dos
complexos problemas morais em que ambas as partes exigem justiça e em que é
difícil separar o justo do injusto. A discussão entre Hécuba e Polimestor, na
Hécuba, por exemplo, é uma situação de tipo jurídico (1129 segs ) . Pode iguaimente
citar-se a cena do julgamento, nas Euménides de Ésquilo, e a paródia de um
tribunal, nas Vespas de Aristófanes. Escritores posteriores chegaram mesmo a
elogiar as tragédias pela sua aproximação realista com o debate jurídico (cff,.
Quintiliano, 10,1.67 seg.)
Mais ainda do que da atribuição da culpa e do castigo, a tragédia trata do
problema da decisão. Em quase todos os dramas que chegaram até aos nossos dias

195
figura um protagonista atormentado por uma opç5o difícil entre alternativas opos-
tas» ou obrigado a decidir entre a segurança e um acto perigoso ou de resultados
incertos. «Que farei?» (ri drmo?) é um grito recorrente em momentos de crise
Personagens como Medeia, Fedra ou Orestes hesitam, vacilam, mudam de opinião,
A intransigência pode ser tão funesta como a indecisão ou a inconstância, como
demonstra o Filocieíes de Sófocles. Situações como a inversão de Creonte, na
Antígana, ou a explosão de raiva de Édipo contra Tirésias, no Édipo Rei, mostram
ao público não só o carácter destrutivo dos conflitos familiares, mas também as
consequências de juízos precipitados, ditados pela cólera ou errados. Essa dramati­
zação da decisão, da inversão, da rigidez, etc , apelava para a experiência que o
público tinha das assembleias e dos tribunais. A narração de Tucídides acerca da
mudança de posição dos Atenienses depois da condenação dos habitantes de Miti-
lene é uma demonstração de como a vida real se baseava em decisões tomadas e
alteradas (3-36)

Tragédia e escrita

É provável que os trágicos tenham composto mentalmente largas porções das /í


suas obras, como os bardos da tradição oral, e oralmente as tenham ensinado aos
actores e ao coro. Todavia, a mentalidade ligada ao alfábetismo e à produção de
textos escritos parece quase indispensável à estrutura da tragédia: concentração
antecipadamente planeada de uma acção complexa numa forma altamente estrutu­
rada e que se manifesta num espaço simbólico, geométrico e convencional.
Nas Rãs de Aristófánes, escrita em 405 a. C., mostra-se o conflito entre a velha e
a nova concepção da poesia e do teatro. Esquilo acusa o seu mais jovem rival,
Eurípides, de funcionar como factor desagregador da moralidade antiga pelas suas
subtilezas intelectuais e pelos seus paradoxos, e por colocar em cena personagens
femininas imorais (cfr 1078-1088). O velho poeta, mais próximo da cultura oral do
passado, está também mais próximo de uma correspondência directa entre palavra e
coisa e do papel tradicional do poeta como poita-voz de valores comunitários
(1053-1056)- A arte de Eurifpides associa-se ao movimento sofista, aos livros, à
ligeireza superficial, à facúndia enganadora da língua. É apresentada como disso­
ciando a linguagem da realidade («a vida não é vida»). Por outro lado, o discurso de
Esquilo possui a materialidade terrena própria da voz na cultura oral; as suas
expressões provêm das «entranhas», do «diafragma» ou do «sopro» (844, 1006,
1016). Na «batalha dos prólogos», em que os versos são pesados na balança, as
subtilezas «aladas» da Persuasão de Eurípides perdem em confronto com o peso dos
carros, da Morte e dos cadáveres de Esquilo (1381-1440). A ironia atinge o seu auge
quando Dioniso escolhe Ésquilo utilizando justamente o verso de Eurípides acerca
da separação entre «língua» e «mente» (Rãs, 1471; cfr. Hipólito, 612).
Pode parecer paradoxal associar a tragédia, que, para uma multidão excitada e
muitas vezes ruidosa de milhares de pessoas, é um misto de espectáculo visual,
música e poesia, com a comunicação austera e monocrómica que associamos à
literatura não falada Todavia, é precisamente o poder oculto da escrita que permite

196
associar organicamente a visão, o discurso e a audição na representação multimédia
Na tragédia, o uso frequente de metáforas sínestésicas e a harmonização explícita de
experiências visuais e acústicas em momentos de alto valor dramático, chamam a
atenção para essa interligação de diferentes sentidos
Tanto o espaço gráfico da escrita como o espaço teatral do drama dependem da
criação de um campo de actívidade simbólica onde os signos mais pequenos podem
revestÍF'Se do maior significado. A atenção concentra-se num espaço limitado,
deiiberadamente miniaturizado Esse microcosmos é o modelo de uma ordem mais
vasta, quer social quer universal Tanto a escrita como a tragédia exigem uma
actividade interpretaüva que se concentre numa área restrita. Ambas dependem da
capacidade para agir dentro de um sistema de convenções, para reconhecer signos,
interpretá-los e colocá-los numa sequência correcta, «julgar o presente na esteira do
passado», como diz Jocasla a propósito de Édipo (referindo-se também à sua
habilidade para decifrar enigmas), no Édipo rei (916). Em grego, «len> é «reconhe­
cer», ariaghignòskein, e Aristóteles também utiliza o termo «reconliecimento»,
anagnòrisis, para designar o clímax da tragédia
O extraordinário poder da tragédia pode ficar, pelo menos em parte, a dever-se
ao facto de ela emergir num momento de transição da cultura grega, quando o poder
do mito ainda não tinha sido corroído pela mentalidade crítica que acompanha a
escrita, o pensamento abstracto e as posições éticas sistemáticas, A comédia con­
serva a sua vitalidade e o seu poder inovador até ao século iv, em parte porque
Menandro e os seus sucessores conseguem desviar a atenção da Comédia Antiga
para questões mais privadas e domésticas, servindo-se do sentimentalismo dos
últimos enredos de Eurípides, baseados no reconhecimento, e desenvolvem um
estilo coloquial e ao mesmo tempo elegante. Todavia, nenhuma transformação
desse gênero deu nova vida à tragédia. As tragédias escritas após o século v não
foram consideradas dignas de ser conservadas, e nenhuma sobreviveu.
A tragédia do século v não era capaz de combinar a seriedade moral e religiosa e
a imaginação mítica própria da poesia épica oral com a pesquisa intelectual caracte­
rística de uma época em que o processo de alfabetização ia progredindo e em que se
tentava corajosamente conceptualizar o homem e a natureza na ciência, na medici­
na, na filosofia, na história, na geografia, etc. Na tragédia, como na filosofia, o
pensamento e a visão penetram no desconhecido. Ésquilo compara «o pensamento
profundo» a um mergulho «nos abismos», ou lenta perceber a mente de Zeus, que é
«visão sem limites», algo que escapa à compreensão humana (Suplicantes, 407 seg
e 1057; cfr. Os Sete contra Tebas, 593 scg.., Agamé}7mon, 160 segs ,),,
A representação visual dos antigos mitos na tragédia parece privilegiar as aparên­
cias superficiais da percepção sensível, mas explora constantemente as distinções
entre superfície e profundidade, palavras e actos, parecer e ser. Na autêntica plenitude
do seu poder representativo, através da combinação de palavra, música, dança e gesto
mimético, põe em destaque a inacessibilidade de uma verdade definitiva, e a dificul­
dade, ou mesmo o tormento, em compreender a natureza complexa do comportamen­
to dos homens, a condição dos deuses, os termos e os limites da mortalidade.
Embora os meios que utilizaram sejam diferentes, os poetas trágicos são os
irmãos espirituais de filósofos que, como Heraclito, Demócrito e Platão, sabem que

197
à superfície do mundo há mais engano que verdade e se esforçam por compreender
porque é que a vida é o que é, porque existe a dor, como é que a justiça e a morai se
podem concretizar na sociedade e qual é a ordem mais geral, se é que existe alguma,
que toma inteligível a nossa existência. Após o século v, continua-se a escrever e a
representar tragédias, mas as energias criativas, as preocupações éticas e as pesqui­
sas teológicas que tinham produzido as obras-primas canalizavam-se agora para a
filosofia e paia a história, Os espectadores de ÉsquÜo e de Sófocles são também
leitores de Platão e de Aristóteles,

19S
CAPITULO VIII

O HOMEM E AS FORMAS DA SOCIABILIDADE ^^


por Murray*

* As notas deste ensaio são propositadaraente breves e querem apenas remeter o íeitor para os
textos mais autorizados c para as posições mais recentes sobre o assunto Para uma bibliografia mais
pormenorizada dos temai tratados, remete-se para M. Detíenne e J -P Vemant (1979) de J Svenbro, in
P Schmitt Pamd (1987) eO Murray (1989 a).
î
H
o homem é um animal social O homem grego é uma criatura da polis: é este o
sentido da famosa definição do homem dada por Aristóteles. De facto, o homèm
aristotélico é «naturalmente político» (Política, 1, 1253a). Contudo, a definição de
Aristóteles era formulada no contexto de uma teoria ético-biológica, segundo a
qual, para se ser plenamente humano, era preciso exercer plenamente todas as
potencialidades inerentes à natureza humana, e em que uma hierarquia moral
privilegiava o pensamento em detrimento das emoções. Portanto, a sua ideia da
polis como a-iforma de organização social que permite que o homem concretize
melhor as suas potencialidades, subordinava as exigências religiosas, familiares e
emotivas ao lugar que ocupavam na ordem política em que se inseriam.,
A história dos estudos da organização social grega é toda uma luta, mais ou
menos consciente, para escapar a essa visão arisíotélica da sociedade grega e
subsíituí-Ia por uma imagem que redimensione a importância desse fenómeno único
na história que é a polis e tenda a «despolitizar» o homem grego, para ver qual a
relação que existe entre as formas de organização social dos Gregos e as de outras
sociedades do mundo antigo, Em síntese, é a história dos estudos sobre a cidade
grega, desde Fustel de Coulanges (1864) até aos nossos dias
A relação que se estabelece entre o homem e a sociedade é sempre dinâmica: cada
época específica do homem tem um passado e um futuro, e não há um homem grego,
mas uma sucessão de homens gregos, como nos explica Burckhardt no quarto volume
da sua História da Cultura Grega Seguindo o seu exemplo, distinguirei quatro tipos
ideais, ou quatro épocas do homem grego: o homem da época heróica, o homem
agom'stico, o político e o cosmopolita. É evidente que estas grosseiras classificações
cronológicas não têm uma validade absoluta, mas são necessárias para se compreen­
der, através de uma análise diacrónica, as relações síncrónicas que estão na base das

' Fuslc! de Coulanges, 1864,


- BurckliardL 1898-1902; na minha opinião, os impimames parágrafos do Capímlo 9 — volu­
me rv são o melhor untado da sociabilidade grega (festas religiosas c tipos de comcnsalidade} Acerca
do simpósio, veja-se também Von der Mühl!, 1957

201
várias fornias de sociabilidade Descrever as evoluções sociais através dos séculos é
falsificar a história da cultura, privilegiando a causalidade em detrimento da ftinção, e
enfatizar a continuidade é ignorar as transformações fündamenüus que ocorrem por
detrás do ecrã da linguagem e das instituições.

Formas sociais e comensalidade

O fenómeno da sociabilidade pode ser estudado sob uma variedade de pontos de


vista, mas talvez seja útil começar por apresentá-lo na sua relação com a economia.
Por detrás da fachada das formas sociais existem as relações económicas, expressas
pela diferente distribuição dos bens. Para uma análise marxista, a estrutura social e
as relações sociais são uma consequência da luta por uma partilha desigual de bens
limitados. Posteriormente, alguns estudiosos realçaram a abundância dos recursos
naturais nas sociedades primitivas e a consequente importância de actividades
sociais como os presentes, a festa, o luxo, a exibição da riqueza perante os homens e
os deuses^ Em ambos os casos, o excedente, grande ou pequeno, é consumido para
criar uma estrutura social, que depois apota as actividades culturais, políticas e
religiosas da comunidade: são as formas da redistribuição do excedente, eféctuada
com alardes de generosidade ou de poder, que estruturam a sociedade.
Dada a primazia da terra e dos seus produtos no mundo anügo, o excedente
agrícola é o mais geraímente usado para estruturar a sociedade e a sua cultura,.
A redistribuição desse excedente, efectuada durante as festas religiosas, cria, graças
ao seu ritual preciso, um modelo de sociabilidade que vai servir depois para as
outras relações sociais. Certos produtos em especial, por serem bastante raros,
tomam-se símbolos de estatutos privilegiados; o banquete é ritualizado e serve para
definir a comunidade como um todo. ou uma classe dentro dessa comunidade. Na
Grécia, os produtos mais carregados de significado são a carne e o vinho, reserva­
dos para ocasiões especiais e consumidos em rituais especiais.
A carne é um alimento sagrado, reservado aos deuses e aos heróis do passado.
É consumida sobretudo durante cerimónias religiosas ligadas ao sacrifício em que a
oíérenda é queimada: os deuses recebem o perfume das vísceras, enquanto os homens
festejam juntos, comendo o animal que acaba de ser morto e cuja carne foi cozida para
ficar tenra. Essas cerimónias não são acontecimentos raros; trata-se de ocorrências
normais, estruturadas de acordo com um complexo calendário de festividades. Ser­
vem para exprimir o sentido de comunidade do grupo que está ligado por uma expe­
riência de prazere de festa, que inclui os homens e os deuses. A adoração dos deuses é
um momento de alegria e de repouso do trabalho que normalmente envolve toda a
comunidade ou uma das suas partes (como os adolescentes ou as mulheres) e que, por
vezes, chega mesmo a permitir a participação dos estrangeiras e dos escravos
O álcool é sobretudo uma droga social, cujo ritual está associado ao reforço dos
laços de um grupo fechado ou ao alívio catártico de tensões sociais numa espécie de

^ Veja-se, porexempio, Engels, 189!; Veblen, Í899; Sahlins, 1972


^ Detienne e Vemant, 1979

202
camavaí da permissividade. O poder do vinho e a necessidade de exercer um
controlo social sobre o seu uso são bem explícitos na cultura grega,. Os bárbaros
entregam-se a um consumo de álcool desordenado e excessivo; o homem grego,
pelo contrário, caracteriza-se precisamente pelo consumo ritualizado do vinho que
só é bebido diluído em água e num contexto social específico. Por motivos que
ilustraremos a seguir, o vinho torna-se um veiculo para a criação de pequenos
gmpos especializados, com funções bélicas, políticas ou hedonistas. O uso do vinho
como instrumento de libertação é menos comum, mas repete-se certamente em
vários rituais ligados a Dioniso As mulheres, excluídas do consumo do vinho em
contextos sociais e por isso descritas como dedicando-se a beber secretameníe e de
uma forma não estruturada, adoravam Dioniso em rituais onde todas as regras eram
postas de parte: a vítima do sacrifício não era morta com uma faca mas despedaça­
da, era devorada crua em vez de assada ou cozida, e o vinho, puro, era consumido
desordenadamente. Todavia, isso não era uma expressão de sociabilidade, mas uma
libertação das tensões criadas pelos próprios rituais sociais,
Do estudo da cultura grega pode facilmente deduzir-se a importância da comen-
saiidade e dos rituais ligados à comida e à bebida A partir de Homero, a poesia
grega fez sempre parte integrante do banquete, sobretudo da sua forma arcaica, o
symposion. Quanto ao acompanhamento musical, ao metro e ao tema, a poesia
grega antiga deve ser analisada em função do seu local de representação que, para a
lírica coral, dançada e cantada por grupos de donzelas ou jovens, é a festa religiosa,
e, para a elegia e a lírica monódica, é o círculo aristocrata, A arte grega da cerâmica
e da pintura de vasos serviam sobretudo para satisfazer as exigências desses grupos;
as formas e a decoração reflectem os mesmos interesses sociais expressos pela
poesia arcaica. O ordenamento da comensalidade pública e privada nos períodos
arcaico e clássico, com o seu corpits de regras e privilégios escritos em forma de íeis
ou decretos revela a importância da comensalidade nas actividades dessas associa­
ções. Mais tarde, a evolução de uma literatura filosófica da comensalidade no
mundo clássico e pós-clássico criou uma visão idealizada de uma instituição social,
talvez já não tão centra] como tínha sido no passado, mas que continuava a ser
suficientemente típica da cultura grega para atrair o interesse de escritores de coisas
antigas dos períodos helenístico e romano. Os Deipnosofistas de Ateneu, verdadeira
enciclopédia da comensalidade grega de finais do século li a C., reproduzem o seu
próprio tema estruturando-o como uma conversa num deipnon, em que os conteúdos
estão ordenados de acordo com as actividades dos convidados imaginários^.

O homem da época heróica

Nos Poemas Homéricos, o mundo está estruturado em tomo dos ritos da comen-
saiidade As características essenciais da casa de um basUèiis heróico são o mèga-
ron, ou sala dos banquetes, e o armazém, onde se conserva o excedente da produ-

’ Acerca da histdría dos estudos sobre a comensalidade grega, veja-se a introdução a Murray,
1989a

203
ção, para o uîiüzar nas fesias ou para o oferecer a hóspedes da mesma classe social,
Odisseu disfarçado diz que reconhece a sua casa pelo uso que se faz desse excedente
em acüvidades sociais ligadas à comensalidade: «Vejo lá dentro muitos homens
banqueteando-se: há um cheiro a gordura, e ressoa; e ouço o som da citara, que os
deuses fizeram companheira dos festins» (Odisséia, 17, 269-71). O basilèm distraí
os membros da sua classe com «banquetes de honra» e assim conquista autoridade e
prestígio num mundo onde se luta pela honra, O grupo assim individualizado é um
grupo de guerreiros, cujo estatuto se exprime e cuja coesão se mantém através do
banquete, Num certo sentido, o banquete continua a ser um rito social, ligado aos
processos de auto-identificação e de formação de um grupo por parte de uma elite
aristocrática; todavia, essa elite é também a classe dos guerreiros, cuja função é
proteger a sociedade.
As mentiras de Odisseu, tal como as metáforas homéricas, talvez sejam mais
verdadeiras do que a narrativa em que estão inseridas, já que (enquanto escrita de
segundo grau) querem recordar ao público a sua própria experiência, A relação
recíproca entre o banquete e a actividade militar, quer pública quer privada, é bem
descrita no relato que Odisseu faz da sua vida de filho ilegítimo de um nobre
cr^tense, que, depois ter sido excluído da herança, consegue conquistar um lugar na
aristocracia graças ao seu valor de gueneiro profissional: enriquecera com os
despojos trazidos das expedições ultramarinas. Tratava-se de empresas privadas,
mas, quando eclodiu a Guerra de Tróia, foi o próprio povo quem o aclamou e o quis
para chefe, «e não houve meio de recusar-se porque a voz do povo me pressionava». 2
Depois da guerra, voltou às suas empresas privadas: «Aparelliei nove naus, e a
equipagem depressa se reuniu, Durante seis dias os meus fiéis companheiros ban-
quetearam-se; eu fomecÍ-!hes muitas vítimas para sacrificarem aos deuses e prepa­
rarem os seus festins» (Odisséia, 14, 248-51).
Nestas descrições são apresentados dois tipos de empresa: a razia privada de
uma elite guerreira, formada por chefes aristocratas e «companheiros» da mesma
classe cujos laços de lealdade se criam no decurso de competições e de festins em
comum; e o direito do «povo» de reclamar o comando da classe dos guerreiros em
caso de guerra. A expedição a Tróia é do segundo tipo e prevê banquetes a cargo da
comunidade para os participantes e multas para os que se recusem a partir, No
interior da comunidade, o estatuto é definido pela comida; no famoso discurso de
Sarpédon a Glauco, ele afirma que os dois campeões, honrados «na Lícia com os
assentos de honra e com jarros cheios» e habitando num (èmenos, têm o dever de
combater pela sua comunidade; então a gente dirá: «Os nossos nobres que detêm o
poder na Lícia são grandes homens, comem gordas ovelhas e bebem o melhor
vinho, doce como m el Mas são homens fortes porque combatem entre os mais
bravos dos Lícios» (llidda, 12, 310-28)*^
A Ilíada centra-se na cólera de Aquiles, que se exprime pelo seu isolamento e
pela sua recusa em participar nos rituais da comensalidade; na Odisséia, comparam-

^ Acerca do banquete homírico e da sua função social, veja-sc Finslcr, 1906, Jeanmaíre, 1939,
Capítulo í, e Murray, 1983

204
-se dois modelos de comensalidade: o do mundo ideal dos Peaces e o dos pretenden­
tes de ítaca, onde a decadência dos valores sociais se manifesta precisamente pelo
transgressão das normas de comensalidade que comportam a reciprocidade e a
competição: «saí de minha casa, preparai outros banquetes comendo os vossos
bens, indo de uma casa para outra» diz Teiémaco aos pretendentes (2, 139-40),
culpados por terem usurpado as prerrogativas de uma classe de guerreiros na
ausência do chefe militar,
A complexa relação desta representação poética com uma qualquer realidade
histórica não deve interessar-nos. Os Poemas Homéricos dão-nos uma imagem de
uma sociedade passada que reforça uma imagem mental «contemporânea» e, ao
mesmo tempo, influencia a evolução futura da comensalidade grega E certo,
porém, que essa imagem tem todas as probabilidades de ser uma imagem parcial,
ignorando as formas de sociabilidade do povo, nomeadamente as que se referem às
festividades religiosas.
Apesar disso, as características dessa imagem mental são importantes para o
desenvolvimento da sociabilidade grega, O banquete homérico (deipnon ou dais) é
antecedido de um sacrifício em que as vítimas animais são mortas como se fossem
oferecidas a certas divindades, muitas vezes em ocasiões especiais de culto festivo
ou de grande significado familiar A carne é grelhada em espetos e o banquete
decorre numa sala (mègaron) onde os convidados do sexo masculino estão dispos­
tos em filas ao longo das paredes, com pequenas mesas diante deles, dois por mesa;
ocasional mente são mencionados assentos e porções especiais, mas em gerai o que
se acentua é a igualdade O hóspede não convidado, quer seja um aristocrata de
igual nível ou um mendigo, também recebe a sua parte, O vinho é misturado com
água e servido da cratera.
O poeta apresenta uma imagem de felicidade humana expressa num ritual de
sociabilidade; no centro desse ritual, situa-se a si mesmo: «Porque penso que não há
prazer mais belo / do que quando a euplirosyne invade toda a gente, / os convidados
ouvem o cantor na sala, / sentados por ordem, as mesas a seu lado estão cheias / de
pão e de carnes, o copeiro tira vinho da cratera, / leva-o e deita-o nos copos: / con­
fesso que é a coisa mais bela que conheço» (Odisséia, 9, 5-11). Trata-se de uma
imagem que pretende ser simultaneamente descrição e representação do banquete,
porque o bardo homérico é o próprio cantor que tange a lira e que, do interior da
narração, representa a própria narração. Pode ser-nos difícil ter a noção de uma
performance de poesia épica no interior do banquete, mas é claro que Homero quer
fazer-nos acreditar que a sua poêsia é o acompanhamento da eiiphrasyne,
Se a lUada exprime a função social «externa» do banquete guerreiro na organi­
zação da actividade militar, a Odisséia é uma poesia épica «interna», construída
como entretenimento para o banquete. Cada episódio das viagens de Teiémaco é
assinalado pela experiência da comensalidade: toda a acção converge para o ban­
quete ou se afasta dele. A nanativa central das viagens de Odisseu é apresentada
como uma representação durante o banquete, que compreende diversas e até opos­
tas formas de comensalidade, entre os Loíófagos, entre os Ciclopes, Junto de Circe e
no mundo dos mortos- Em ítaca, a refeição simples do porqueiro contrasta com o
banquete imundo dos pretendentes que saqueiam a casa do herói ausente. A acção

205
final desta poesia épica da comensalidade centra-se no massacre dos pretendentes
enquanto se banqueteiam, Ao cantar durante o banquete, o poeta evoca o horror
imaginário de um outro banquete e os ouvintes identificam-se com ele: é sobre a sua
sala que a noite cai, é da sua carne que goteja sangue, enquanto crescem os uivos
e os lamentos e o sangue salpica as paredes e as traves do tecto {Odisseia, 20,
345 segs ),
A Odisseia cria com o seu próprio lugar de representação uma estrutura narra­
tiva, envolve o seu público na própria acção épica: é uma representação poética que
se destina ao banquete e que do banquete extrai a sua matéria nanaíiva. Por isso o
público participa no interior da narração: tanto o poeta como o seu público fazem
parte de um duplo acontecimento, narrado e vivido A função desta poesia no
mundo da comensalidade é exprimir, por intermédio dos participantes, o significado
do ritual social em que estão empenhados.
Assim, 0 banquete dos heróis apresenta já muitas das características principais
de que virão a revestir-se os rituais gregos da comensalidade. Por um lado, está
ligado extemamente à função social da guerra, por outro lado, a nivel «interno»,
está profundameníe ligado ao prazer {etiphrosyne). No contexto da poesia heróica, o
tema do banquete possuí uma forma narrativo-dialógica adequada à representação
rio"âmbito convivia! e capaz de se refíectir nas actividades do banquete. Todavia, a
imagem apresentada ainda só está parcialmente ligada às necessidades da comuni­
dade e muitas das características específicas dos posteriores rituais gregos de
socialização estão ainda ausentes.

O homem arcaico

Há dois elementos que são convencionalmente considerados como traços distin­


tivos da comensalidade grega no período histórico: o facto de os convivas comerem
reclinados e não sentados e a separação entre as actividades ligadas à comida e à
bebida. Ambos os elementos fazem parte de um mais amplo desenvolvimento da
comensalidade grega do inicio da época arcaica.
O costume de os convivas comerem reclinados é confirmado pela primeira vez
pelo profeta Amos como comportamento dos habitantes de Samaria, no século vm
(Amos, 6, 3-7); trata-se provavelmente de um costume que os Gregos foram buscar
à cultura fénicia. O primeiro testemunho grego explicito desse costume remonta aos
finais do século vn, na arte corintia e na poesia de Álcman, mas pode demonstrar-se
que já existia desde o século anteriorT rata-se de uma mudança fundamentai da
comensalidade grega, porque condiciona a própria organização do grupo. De facto,
os convidados reclinados, individualmente ou aos pares, em leitos dispostos ao
longo das paredes da sala, obrigavam a uma organização do espaço do banquete que

’ Acerca das origens, vcja-se J M Dcntóer, que faz remontar ao século va a introdução deste
costume na Grécia (mas eu proporei o século vni como data dessa introdução, num próximo artigo
sobre a taça de Nestor)

206
determinava as dimensões do grupo'’. O mèf>aron transformou-se no andròn, uma
sala propositadamente desenhada para conter um número fixo de leitos. Além disso,
as dimensões do grupo eram limitadas também pela possibilidade de comunicar de
um lado para o outro da sala: a medida tipo albergava 7, II ou 15 leitos, pelo que o
número dos convivas oscilava normalmente entre 14 e 30 homens.
Este tipo de organização do espaço insere-se cíaramente na evolução da arqui-
tectura civil e religiosa da época clássica e na das necrópoles etruscas, que são um
dos melhores indicadores arqueológicos da influência grega sobre as formas de
comensalidade de outras culturas antigas, Mas a sua principal importância reside no
facto de ter feito parte de uma evolução mais vasta que levaria à formação de
pequenos grupos e à elaboração de rituais especializados.
Um desses rituais diz respeito à separação da comida e das bebidas A comensa­
lidade grega do período histórico está dividida entre o deipnon, onde são consumi­
dos alimentos e bebidas, e o posterior symposion, onde o elemento mais importante
é o vinho, bebido acompanhado de simples fogaças. 0 deipnon do período pré-
-helenístico tem sido pouco estudado, mas parece que seria muito simples e despro­
vido de qualquer carácter ritual, salvo em cerimônias religiosas especiais que
previam algumas interdições. A elaboração do discurso e dos rituais sociais é
característica do symposion .
Em tomo do symposion desenvolve-se também uma complexa decoração. O pró­
prio andròn podia estar provido de fechaduras, pavimento revestido e sistema de
drenagem, os Jeitos e as mesinhas laterais eram muitas vezes de boa confecção e
tinham decorações embutidas; havia também elegantes almofadas e tapeçarias.
Uma grande parte das formas da cerâmica fina, arcaica e clássica antiga, é ideali­
zada de propósito para o symposion: a cratera para misturar a água e o vinho, o
psykièr para refrescar a mistura, coadores e jarros para o servir e uma enorme
variedade de taças para o beber, de formas e nomes diferentes, cada qual com uma
função especial. As imagens que ornam a louça reproduzem as idéias e as activida­
des da classe social que participava no symposion São frequentes as cenas eróticas,
as cenas de guerra e as cenas extraídas do repertório poético, bem como as imagens
extraídas da vida aristocrática: o desporto, a caça e a corte homossexual,. Pelo
contrário, são raras as cenas de trabalho, as que reproduzem as actividades femini­
nas e as de tema religioso Um destaque especial é dado, naturaimente, à representa­
ção dos vários momentos do symposion dos deuses, dos heróis e dos contemporâ­
neos: a iconografia reflecte quase todo o espectro das actividades ligadas ao
symposion, desde as cenas mais decorosas até às cenas eróticas e de embriagues
violenta Este comentário metassimpótico do symposion reflecte, através da ima­
gem, o fenômeno de auto-reférência que já encontrámos na produção poética que
gira em tomo desse tema; a iconografia que daí resultou é complexa e sofisticada’ .
A poesia com acompanhamento musical continuava a ser um elemento central
do symposion. Desenvolveram-se duas formas principais, que correspondiam mais

“ Acerca do conceito de espaço do banquete., vcja-se Bregquist, 1989


®Lissarrague, 1987

207
ou nienos aos dois tipos de instrumento musical utilizados no acompanhamento^
A flauta dupla {aulòs) era o instrumento do campo de batalha e também da poesia
elegíaca; entre os instrumentos de corda, a kithara homérica cedeu o lugar ao
bàrbiíotu com um som mais grave; segundo a tradição, íeria sido inventado por
Terpandro, era o instrumento preferido para o canto da poesia lírica e é o sinal
distintivo dos poetas especializados no symposion, como Anacreonte. As formas
poéticas reflectiam a competição espontânea e a criação por parte de poetas amado­
res: o dístico elegíaco é paiticularmente adequado à circularidade da improvisação:
um tema escolhido era glosado por todos os convidados, um de cada vez; o skòlion é
uma das suas elaborações mais formais. Pequenos poemas líricos com versos e
métrica repetitivos, acompanhados por melodias simples, apontam para um tipo
análogo de representação- Os primeiro poetas líricos, como Arquíloco, Alceu e
Safo, compunham e cantavam as suas próprias poesias, e a elegia parece ter-se
mantido sempre na esfera da improvisação. É por isso que aí se repetem as emo­
ções, as experiências pessoais narradas in propria persona e a exortação directa ao
publico; por vezes, o poeta utiliza a primeira e a segunda pessoas No século vi,
surgiu uma classe de poetas profissionais, como Mimnermo e Anacreonte, que
tomaram a dicção poética mais sofisticada e subtil, servindo-se das mesmas técnicas
mas omitindo a referência ã experiência pessoal do poeta
Os temas desta poesia refíectem os interesses do grupo social e o seu estilo de
vida aristocrático. Como já vimos quanto à iconografia da cerâmica, dizem respeito
aos feitos heróicos, à guerra e ao amor homossexual São frequentes os hinos, quer
sérios quer divertidos, dedicados aos deuses que presidem ao symposion, mas
voltamos a não encontrar referências aos rituais religiosos da época, A família e a
cidadã estão ausentes: exprime-se abertamente o desejo sexual mas apenas em
relação às escravas ou às prostitutas, A polêmica política e o incitamento à acção
política vão desde a defesa da pátria ao apelo à guerra civil
Essas temáticas baseiam-se na formação de uma éüca de grupo, num mundo
onde os participantes estão ligados por laços de lealdade (pistis) e por valores
comuns A actividade do banquete tem consciência dos seus valores e das suas
funções e começa a surgir um vocabulário específico, simbolizado pela própria
palavra sym~posion.. Essa linguagem tem a sua expressão plena na poesia de Alceu,
composta para ser cantada durante as reuniões de grupos de companheiros (heíai-
roi) da aristocracia de Mitilene, no ano 600 a C O contexto continua a ser em
grande parte homérico, a grande casa resplandece de armaduras de bronze, mas a
ênfase dada ao «vinho, mulheres e canto» (aqui associados pela primeira vez)
revela um novo tipo de euphrosyne, A função do grupo já não é a da guerra contra
o inimigo externo num sólido contexto social, mas a da unidade, no interior da
polis, em defesa dos privilégios de classe: a guerra que se anuncia é uma guerra
civil, apela-se para a unidade do grupo na sua acção contra o tirano, Alceu não
quer convencer um vasto público, a sua mensagem destína-se àqueles que já fazem
parte do grupo, que partilham os seus valores e os seus objectives.. Tudo isso é

Reitzenstein, 1983; Gentiií, 1984

208
caracterisUco dos primórdios da polis e demonstra a fiisão total entre as formas de
sociabilidade e a acção política no interior do grupo aristocrático, A liderança da
comunidade pertence de direito a Alceu e aos seus companheiros aristocratas, mas
foi-lhes arrancada das mãos e tem de ser reconquistada com a guerra civil e mesmo
com a ajuda do ouro dos bárbaros- Essa estreita ligação entre política e comensali-
dade centra-se na concepção aristocrática do symposion como organização ex­
clusiva destinada a manter a hegemonia de uma classe social no mundo mais vasto
da polis
No século VII e no século vi, esse mundo aristocrático foi ameaçado pelo
advento de novas formas políticas, econômicas e militares. A comensalidade ar­
caica correspondia ao declínio da aristocracia e à crescente importância da polis
pelo menos em dois aspectos, enfatizando os dois caracteres opostos da comensaJi-
dade grega.
A comensalidade militar de tipo homérico podia adequar-se às instituições
comunitárias masculinas, como as que existiam na sociedade cretense tradicional,
onde os elementos de continuidade e de adaptação são extremamente evidentes,
A comunidade masculina estava organizada em grupos, cada qual com a sua «casa
dos homens» (andreion), onde os homens se reuniam para comer; a comida era
fornecida pela cidade e provinha das terras comunitárias ou dos contributos indivi­
duais A continuidade destes costumes é demonstrada pelo facto de se ter mantido o
hábito de os convivas comerem sentados em vez de reclinados; a sua importância na
definição da. comunidade é revelada pela cuidada separação dos visitantes, para
quem estava reservada uma «mesa para os estrangeiros», dedicada a Zeus Xenios,
Depois da refeição, discutia-se assuntos de interesse público e «narrava-se os feitos
bélicos, elogiava-se os homens corajosos, que eram considerados como exemplos
de coragem para os mais jovens» A pederastia era ritualizada e tinha o caracter de
um rito de iniciação O amante oferecia ao amado os três presentes que simboliza­
vam a virilidade: uma veste, um boi e uma taça, símbolos da sua entrada na
comunidade dos adultos
Provavelmente, a primeira função social da elegia foi reforçar os valores guer­
reiros mais pela exortação do que pelo processo indirecto da descrição utilizada nos
poemas épicos. Essa mudança indicia já uma tensão e uma tentativa para reforçar os
valores e os comportamentos tradicionais, fenômeno típico de uma sociedade em
transição: «Por quanto tempo ainda permanecereis molemeníe deitados? Quando
reconquistareis a vossa forte coragem / ó jovens? Não vos envergonhais de ceder as
terras de fronleíra / tão facilmente?», diz Calino de Éfeso. A elegia guerreira recria a
imagem heróica num campo militar mais vasto, agora ao serviço da polis..
O exemplo mais completo dessa «institucionalização do banquete» é o de
Esparta no período arcaico, mais ou menos a par da sua adopção da nova técnica
militar de massas, a dos hoplitas, A comensalidade espartana pode ter derivado de
práticas dóricas do tipo das que existiam em Creta, mas fora toíalmente transfor-

" Rosier. 1980


Ateneu, 4, 143; 11,782; Jeanmatre, 1939, Cap VI

209
mada nas institníções sociais e militares criadas por Licurgo, Os jovens cidadãos do
sexo masculino, depois de terem passado pelo rigoroso sistema baseado em classes
etárias, coniieddo por agogè, eram eleitos para um sysshioth um grupo de guerrei­
ros reunido em tomo da prática diária do banquete comum, que decorria no phidi-
tion. Cada participante devia fornecer uma certa quantidade fixa de comida e de
vinho provenientes das suas tenas; a impossibilidade de o fazer implicava a perda
do direito de pertencer ao grupo e por isso também a perda dos plenos direitos de
cidadania, A relação entre comensalidade e organização militar é descrita por
Heródoto: Licurgo tinha criado as leis de Esparta «e depois delas, as suas institui­
ções militares, os grupos ajuramentados [eiwmotiai], os grupos dos trinta {tríeka-
i . r
des] e os grupos de comensais [ryrriria]» (Heródoto, 1, 65). Foi justameníe com
esse tipo de agrupamentos baseados nos números 15 e 30, que o exército espartano
combateu durante todo o período arcaico e clássico.
Esses números refleclem a organização arcaica do espaço do symposion, ba­
seada em 7 ou 15 leitos: o primeiro testemunho literário explícito do symposion em
Álcman refere-se a um contexto espartano e confirma a disposição em 7 leitos.
A refeição espartana obedece à clássica divisão grega em duas paites, que em
Esjparta se designavam por aikion e epaiklon. Ambas prevêm ofertas obrigatórias e
por isso são elementos rituais originários. Todavia, segundo o sistema de valores
espartano, o aikion tinha a função simbólica de dar continuidade às formas mais
antigas e de reconfirmar a igualdade e a austeridade de sempre Os alimentos eram
sempre os mesmos: fogaça de cevada, porco cozido e o famoso caldo negro de
Esparta. Pelo contrário, o epaiklon, através de um leque de possíveis contributos,
realçava as diferenças patrimoniais, de estatuto e de coragem militar; por isso,
acabou por se converter num tipo mais elaborado de symposion, que previa uma
série de alimentos adicionais, sobretudo carne não sacrifica! proveniente da caça.
Apesar de Atenas, no século iv, ter tentado propor como exemplo uma presumível
abstinência de vinho por parte dos Espartanos ou pelo menos a sua moderação na
bebida, o vinho desempenhava um papel de primordial importância no ritual
Este modelo de comensalidade está estreiíamente ligado à criação da polis dos
hoplitas como uma «corporação de guerreiros» (Max Weber), o que se afasta do
modelo homérico, pela universalização das prerrogativas aristocráticas, e do mo­
delo dórico, por ter isolado e privilegiado a função militar. Por isso, não surpreende
que o poeta espartano Tirteu tenha sido um dos imitadores mais próximos do
modelo homérico, mas também aquele que mais aperfeiçoou o gênero da elegia
militar
A evolução da comensalidade grega sublinha o seu aspecto intrínseco de encar­
nação do princípio do prazer. Por isso, poderia servir para fomentar o refúgio de
uma aristocracia marginalizada no específico mundo privado da euphrosyne.. Os
símbolos de uma ciasse privilegiada e abastada assumiram uma importância sempre
crescente no periodo arcaico: como a guerra e o poder político tinham perdido o seu

Ateneu, 4, 138-142; Bíelschowsky, 1869; Niisson, 1912


Bowie, 1989

210
carácter de direitos exclusivos, criou-se o desporto e o symposion para os substituir.
Isso é particularmeníe evidente no mundo das colónias da Grécia ocidental, onde a
nova aristocracia dos primeiros colonizadores tentou adquirir um estatuto no de­
curso do século VII: nesse contexto, o costume do symposion desenvolveu-se ampla­
mente, tendo sido depois aceite pelos grupos emergentes, os Etruscos e os Itálicos,
como símbolo imprescindível da vida aristocrática
O prazer provinlia sobretudo da elaboração dos rituais, do aumento do luxo e das
comodidades, do cada vez maior requinte dos entretenimentos, poéticos e de outro
tipo, e da libertação da sexualidade em relação aos constrangimentos sociais , Por
outro lado, porém, o consumo do vinho e da comida não parece ter-se transformado
de uma forma significativa: contrariamente ao que acontecera no império persa, as
formas da comensalidade grega mantiveram-se simples e a tryphè era expressa mais
pela elegância e pelo requinte do que pelo consumo excessivo de alimentos ou
vinhos exóticos.
Referimo-nos já à poesia e aos rituais do symposion', resta-nos agora tiatar do
tema do entretenimento não poético.
De uma maneira geral, o entretenimento durante o symposion era o trivial,
envolvendo profissionais como tocadores de flauta, bailarinas, acrobatas, mimos e
comediantes. Na época clássica já existiam empresários responsáveis por grupos de
artistas e os jovens e atraentes escravos de ambos os sexos podiam especializar-se
nas artes do symposion . A figura do bobo ou àkleíos, o hóspede não convidado que
ganha a vida entretgndo os convivas, aparece sempre na literatura do symposion
Há um certo número de jogos específicos, conhecidos desde o período arcaico: o
‘mais famoso de todos é o kòttabos, que consistia em atirar a um alvo a borra do
vinho que ficava nas taças e que era considerado como uma invenção sicíliana.
Brindava-se muito em honra de um convidado, e é a esse costume que se deve a
frequência da inscrição do nome de um homem nas taças, acompanhado pelo
adjectivo kàlos. A pròposis, ou desafio, era um dos elementos do symposion mais
tarde criticados pelos moralistas, que opunham a indulgência ateniense perante
esses incentivos a um consumo excessivo de bebida à sua ausência em Esparta.
O elemento competitivo é característico dessas activídades na época do homem
agonístico,
Foi no domínio da sexualidade que a comensalidade grega teve a sua influência
mais forte. A homossexualidade era normal no mundo viril do grupo dos guerreiros
e, em muitos casos, estava institucionalizada como fazendo parte dos ritos de
iniciação dos jovens.. Há uma forte componente de idealização e de sublimação no
laço criado através do ritual da corte entre o homem jovem, erasiès, e o adolescente,
eròmenos, que podia (como acontecia em Creta) ser formalmente admitido no
mundo adulto da comensalidade graças a uma relação desse género. Enquanto não
atingiam plenamente a idade adulta e não adquiriam por consequência o estatuto
militar, os jovens não podiam reclinai-se durante o symposion, sentando-se ao lado

Ampoio, I970-1971; D 'Agosüno, 1917,


Ribbeck, 1883; Fehr, 1989; Pcilizer, 1989.

211
do pai ou do amante. Portanto, a expressão do amor homossexuaJ no contexto do
symposion é muitas vezes idealizada e tem mais a ver com a perseguição e a
competição do que com a conquista; assume sempre o aspecto de uma educação
sentimental e está directamente associada a outras áreas da vida do jovem adulto,
como, por exemplo, o mundo do desporto. Segundo a terminologia de Michel
Foucauit, a pederastia é «problematizada», ou seja, colocada ao serviço das mais
vastas necessidades da comunidade
A livre sexualidade entra no symposion arcaico graças à presença de escravos,
homens e mulheres, como criados ou artistas- O mito de Zeus e Ganimedes exprime
bem a relação tradicional entre o convidado e o jovem que está junto da cratera e
serve o vinho A existência de duas formas distintas de amor homossexual — o que
tem por objecto um homem livre e o que tem por objecto um escravo — complica
ainda mais a nossa compreensão desse fenómeno. O tipo de relação sexual que
existia com os escravos poder-se-á compreender melhor se a compararmos com o
que se passava com as mulheres.
As mulheres livres, ou cidadãs, nunca estavam presentes nos symposia gregos;
também não há confirmações da sua presença nos banquetes nupciais ou nos
' 1
fúnebres, áreas a que as mulheres estão tradicional mente muito ligadaS- As reuniões 3
femininas estavam sobretudo ligadas a festividades religiosas, de que os homens
eram normalmente excluídos, ou à formação dos coros sagrados; o único caso em
que é possível vislumbrar uma espécie de comunidade feminina, na poesia de Safo,
é muito controverso e parece sugerir uma dependência das formas de comensalida- '.7.
de m a s c u lin a N o entanto, Afrodite e Dioniso são divindades associadas e normal­
mente invocadas na poesia recitada nos sy?nposia, desde o primeiro testemunho da
«Taça de Nestor», do século vin, As mulheres presentes nessas ocasiões eram, na
sua maioria, escravas, muitas delas preparadas para executarem a sua tarefa de /
animadoras, bailarinas, acrobatas e músicas; como os jovens que desempenhavam
papéis idênticos, eram escolhidas pela beleza e pela idade e parece que actuavam
quase nuas e que muitas vezes acabavam (como acontecia também com os jovens),
deitadas nos leitos Todavia, ao contrário do que acontecia com os rapazes, as
mulheres podiam adquirir um estatuto especial se se ligavam estavelmente a um ou
mais homens: nesse caso, eram denominadas hetairai^ reiciència. irónica ao mas­
culino hetairoi, ou membros do grupo, As «heteras» possuíam grandes talentos
artísticos e de entretenimento e muitas vezes pertenciam a dois ou mais homens
São estas práticas sociais que conferem à poesia de amor da Grécia arcaica as
suas caracteristicas particulares Por um lado, há a intensidade romântica do amor
homossexual que é personalizado e na maioria dos casos inspirado por jovens
membros da mesma classe social: esse amor é descrito como insatisfeito, mais
ligado ao desejo de atingir um idea! puro de beleza do que à satisfação sexual, um

Foucauit, 1984
Caiama, 1977
O melhor relato cia vida cie uma hetera Hgura no discurso de Demóstcncs Comra Neera. 59;
veja-se também Ateneu, iivro 13

212
desejo que provoca as emoções profundas do amor e do ciúme,, Por outro lado, há a
poesia de amor, livre de coacções sociais e despreocupada, inspirada pelas jovens
escravas consideradas como objectos sexuais; um amor sem complicações, passa­
geiro e de fácil satisfação, um sentimento que, quando muito, pode provocar a
melancolia pela juventude passada e pela ideia da morte.
Assim, o mundo do symposion criava uma ordem à parte e estranha às regras da
comunidade mais vasta, com os seus valores alternativos próprios. A libertação
ritual das inibições pelo consumo de álcool exigia regras próprias destinadas a
manter o equilíbrio entre a ordem e a desordem Costumava eleger-se um symposi-
archos, ou basilèus, para controlar a mistura do vinho, os comportamentos obede­
ciam a normas precisas, os convidados cantavam ou falavam um de cada vez e cada
cratera dc vinho misturado tinha um carácter diferente. Como afirma o poeta
cômico Eubulo:

«Só três crateras misturo para os avisados: uma para a saúde, que eles bebem em
primeiro lugar; a segunda para o amor e o prazer; a terceira, para o sono; bebida esta, os
convidados avisados vão para casa, A quarta já não nos pertence, pertence à insolência; a
quinta, aos gritos; a sexta, à orgia; a sétima, aos olhos negros; a oitava, ao oficial da
justiça; a nona, à bílis; a décima, h loucura e aos móveis atirados para a rua», (in Ateneu,
3,36)

O poeta arcaico é o legislador do symposion: por isso, muita da sua poesia é


metassimpótica, ou seja, está ligada ao comportamento a ter ou a evitar durante o
symposion^ cujos direitos e deveres prescreve. Em Álcman, a mera descrição de um
symposion prescreve também a organização do ritual; do mesmo modo, Xenófanes
descreve e advoga um modelo de ritual simpótico de onde sejam excluídos os
poemas épicos e as discussões sobre a guerra civil, para dar lugar à exaltação da
coragem,, No corpus poético de Teógnis há muitos excertos onde se descreve o
comportamento correcto durante o symposion e as relações adequadas entre os
participantes, cxaltando-se acima de tudo os laços de amor e de confiança mútua,.
De facto, a poesia monódica grega é um produto do symposion e apresenta uma
complexa série de referências às diversas formas da sociabilidade arcaica,
A confiança e o juramento são momentos importantes da transição das actívída-
des internas do symposion para as actividades externas, O problema de saber quem é
digno de confiança e das verdades reveladas durante a embriagues é um tema
importante em Teógnis; os grupos de heteras de Alceu juraram fidelidade a uma
empresa, A unidade do grupo é considerada como um imperativo mora! absoluto;
no século V, trair a confiança é mesmo considerado, segundo Andócides, um
parricídio Um dos processos para reforçar esses laços é a execução de actos anti-
-sociaís ou mesmo criminosos, para se criar uma pisüs, uma garantia de cumplici­
dade Essas atitudes reflecíem as tensões existentes entre o grupo e o resto da
sociedade

^ Andócides. I, 51; 2,7; 35 c segs

21,3
Com efeito, o comportamento irregular no interior do grupo prepara para a
exibição de embriagues importuna que atinge toda a comunidade durante o ritual do
komos. No final do symposion, os convidados, ornados de grinaldas, andam muitas
vezes embriagados pelas mas, dançando seminus e agredindo de propósito os
transeuntes com insultos, actos de violência e de vandalismo, numa demonstração
do seu poder social e do seu desprezo pela comunidade
Essas atitudes podiam levar à formulação de leis repressivas por parte da polis
arcaica. Em Mitilene, por exemplo, o legislador decretou duplas sanções para as
transgressões da lei perpretadas em estado de embriaguês; em Atenas, Sólon criti­
cou 0 comportamento dos ricos e instituiu no código da hybris um delito público
referente aos actos destinados a desonrar a vítima. Essas normas remetem para os
direitos das mulheres e mesmo dos escravos, e parecem reflectir o mundo do
symposion Noutras cidades foram criadas leis que regulamentavam a idade em que
era permitido beber
E evidente que os deuses também desempenhavam um papel nesses ritos aristo­
cráticos da sociabilidade, Isso podia ocorrer por ocasião de um acontecimento
religioso, dado que o deipnon é muitas vezes precedido de um sacrifício e termina
cjom uma Hbação, com vinho puro, em honra de Agathòs Daimon O próprio
symposion começa com a distribuição de coroas aos convidados, libações a Zeus
Olímpio, aos Heróis e a Zeus Soíer e com uma peã cantada em honra de todos os
deuses. Durante o banquete, os deuses mais invocados eram Díoniso e Afrodite; no
fim, fazia-se uma iibação a Zeus Teleios, Todavia, apesar desta presença ritual, as
divindades permaneciam em segundo plano, já que se tratava de uma ocasião
essencialmente profana tanto pela sua função como pela sua linguagem. O banquete
religioso propriamente dito decorre num contexto diferente-^.
A comensalidade religiosa envolve toda a comunidade; as festas dizem respei­
to aos deuses enquanto protectores e garantes da comunidade e ao calendário das
estações de que a comunidade depende. A comensalidade, no âmbito religioso, é
uma acüvidade pública e a sua organização corresponde à da sociedade; os
sacerdotes recebem porções especiais devido à sua função, mas os membros da
comunidade são considerados iguais. Por conseguinte, o seu fulcro é cada vez
mais a polis..
Todos os ritos da comensalidade religiosa estão cuidadosameníe diferenciados
para corresponderem ao significado do culto, como provam dois exemplos esparta­
nos. Durante a mais importante festa religiosa dórica, as Cameias de Esparta,
construíam-se nove «refúgios» ou cabanas, onde nove homens se banqueteavam,
divididos em três «confrarias» representadas em cada cabana; esta disposição re-
flecte a organização social originária em três tribos e nas respectivas fratrias, Trata-
-se de uma repetição simbólica da forma de comensalidade espartana num período

Lissarrague, 1989
^ Murray., 1989
Acerca do ^mposion, veja-se Nilsson, 1932; acerca da festa religiosa.. Gemet.. 1928; Gold­
stein, 1978

214
anterior à polis, que evoca a fundação da comunidade.. Além disso, certas festas
religiosas que decorriam no antigo centro pré-espartano de Amiclas e noutros locais
incluíam uma refeição especial para os estrangeiros denominada kopis. Ao lado do
templo de Apoio construíam-se cabanas com leitos feitos de ramos de árvores onde
os estrangeiros podiam recIinar-se; depois, todos os convidados, espartanos ou
estrangeiros, comiam carne de cabra, fogaças e outros alimentos simples O exclusi­
vismo dos rituais cívicos de Esparta atenua-se num contexto religioso especial
Poder-se-ia referir outras tantas variantes do fenómeno da comensalidade religiosa
existentes noutras cidades; a referência aos rituais primitivos, reais ou imaginários,
e o problema da hospitalidade para com os estrangeiros são temas recorrentes;
alguns rituais desenrolam-se fora da cidade, num santuário vizinho; os que se
desenrolam na cidade podem dividir-se em duas categorias: aqueles em que a carne
do sacrifício é consumida no recinto do templo e aqueles em que é consumida
noutro local
Todavia, não há uma separação nítida entre o symposion aristocrático e as festas
públicas. Os tiranos do periodo arcaico íentaiam nomeadamente acentuai o carácter
luxuoso e exibicionisía do seu estilo de vida simpótico e incrementar novas formas
de festejos públicos baseadas na sua concepção «heróica» de vída. Assim, Clístenes
de Sícion criou uma mistura especial de symposion e de dgon aristocrático, com
jogos e banquetes públicos, durante um concurso pela mão de sua fiUia, que só
acabou passado um ano, com o sacrifício de cem bois e um banquete para os
pretendentes^ e para todos os cidadãos de Sícion (Heródoto, 6, 126 segs ) O ban­
quete para os pretendentes assumiu a forma de um sumptuoso symposion Este tipo
de mistura parece ter sido muito comum no tempo de Píndaro, que compunha as
suas odes de exaltação da vitória dos atletas aristocratas em ocasiões que pareciam
ser um misto de festividades públicas e festas privadas ^
Mesmo aqueles que desejavam proclamar a sua rejeição do mundo normal da
polis faziam-no constituindo grupos que se definiam através de diversos rituais de
comensalidade Assim, os Pitagóricos, no princípio do século V, criaram um modo
de vida baseado na separação da comunidade através de complexas proibições
alimentares e de uma vida era comum que começava pela obediência ã regra dos
cinco anos de silêncio: a sua paradoxal ideia de pureza ritual «pode ser interpretada
como um movimento de protesto contra o establishement da polis.. Os seus tabus
alimentares põem em causa a mais elementar forma de comunidade, a da mesa;
rejeitam o ritual central da religião tiadicional, a refeição sacrificial» Todavia, os
seus ritos, que decorriam em locais propositadamente destinados para esse efeito,
não são mais do que uma inversão das formas de comensalidade universalmente
aceites Durante algum tempo, os Pitagóricos estiveram no poder em Crotona, mas
os seus concidadãos acabaram por se revoltar e vingaram-se, ateando fogo aos seus
lugares de reunião e massacrando os membros da seita

Ateneu, 4, 138-139; Bmit, 1989


^ Van Groningen., 1960
Burkert, 1985, p 385

215
A experiência religiosa cemrada na polis é uma experiência partilhada pela
maioria dos Gregos, e por eles transferida para os grandes festivais pan-heíénicos da
época arcaica, muitas vezes ligados aos jogos (Olímpia, istmo de Corinto e Nemeia)
ou aos oráculos (Delfos); a sua função talvez fosse aproximar grupos considerados
homólogos como os Jónios (o Paniónion, em Príene ou Deíos), Todavia, o seu
objectivo comum era a criação, por intermédio da festa e do sacrifício, de um
sentimento de «helenídade» {to hellenikòn), derivado da consciência de «um sangue
comum, lugares comuns de culto, hábitos e sacrifícios comuns» (Heródoío, 8, 144).

O homem político

As formas de sociabilidade que distinguem o período clássico são frutos e


adaptações de formas anteriores; o que se altera é sobretudo o contexto social e a
relação entre a sociabilidade e a polis. Para o homem clássico, segundo Aristóteles,
«todas as formas de associação parecem ser partes da associação política» (Ética a
Nicômaco, 9, 1160a 7)- No entanto, mesmo essa poiitízação das formas sociais não
é„um facto totalmente novo e a diferença reside mais na complexidade das relações
recíprocas entre diversos tipos de associação do que na subordinação de um tipo a
um outro
A diferente importância que lhes é atribuída traz para o primeiro plano certos
aspectos da actividade comunitária que eram menos visíveis durante o período
arcaico, mas que não deixam de ser importantes, Muitos viram no conceito de «lar
comum» as origens da sociabilidade política.. O culto de Héstia e a existência de um
lar comum da polis são fenómenos muitos comuns, quase universais, na Grécía^^
O lar da cidade está associado à existência de um fogo eterno e ambos oferecem
uma imagem simbólica da comunidade política como grupo familiar; tal como uma
esposa que leva o fogo da casa paterna para a sua nova casa, os colonizadores
levavam o fogo da sua cidade natal para a cidade recém-fundada Este simbolismo
pode muito bem ser um dos primeiros sinais do emergir de uma consciência da
polis; o fogo e o lar são conservados num santuário ou num edifício público, e estão
sob 0 controlo directo dos magistrados da cidade aristocrática arcaica, ao contrário
de outras formas de culto citadino, que são oficiadas por dinastias de sacerdotes. Em
Atenas, e em muitas outras cidades, o «lar comum» ficava noprytaneion, residência
oficial do mais alto magistrado, o arconte epónimo
O prítaneu era iguaímeníe o local principal da comensaíidade pública; os outros
arcontes também tinham lugares destinados à comensaíidade, mas de menor impor­
tância, No pritaneu, os arcontes, na sua qualidade de chefes, entretinham os hóspe­
des da cidade, costume que revela uma continuidade mítica com os tempos mais
antigos da comensaíidade heróica, baseando-se no facto de o sinecismo de Teseu
prever a abolição dos prytaneia locais e a instituição de um pritaneu principal em
Atenas, A instituição é aristocrática, o ritual não prevê uma refeição comum ou

GemeU952; Malídn. 1987, cap II.

216
mesmo apenas representativa, mas a refeição honorífica de uma eíite. De facto,
comer no pritaneu é a mais alta honra conferida pela cidade democrática, uma honra
a que um membro comum do demos não pode aspirar É este o sentido do comentá­
rio irónico e insolente de Sócrates que, depois de ser condenado, aílrma que, em vez
de ser castigado, deveria receber refeições gratuitas no pritaneu durante toda a vida
{Apologia,
Com efeito, só uma pequena elite aristocrática, definida por lei, tem o direito de
comer permanentemente no pritaneu. Um texto legal ateniense, fragmentário, de
meados do século v, enumera os que têm esse direito: os sacerdotes dos mistérios de
Elêusis, os dois descendentes mais directos dos tiranos, Harmódio e Aristogíton, os
«escolhidos por Apoio», os vencedores numa competição importante dos quatro
grandes jogos internacionais e (provavelmente) os generais (/G, I, 3, 131); os
arcontes também deviam decerto estar presentes. Além disso, o convite para comer
no prítaneu era uma forma de xenia com que se honravam os embaixadores estran­
geiros, as embaixadas atenienses que estavam de regresso, e em geral todos aqueles
que a cidade queria homenagear Tais privilégios foram alargados e usados com
mais frequência no século !V, tomando-se parte das honras regulares que a assem­
bleia citadina decidia de tempos a tempos tributar aos benfeitores da cidade; por
exemplo, aqueles a quem era conferida a cidadania eram convidados para comer no
pritaneu, e, em finais do século iv, Ínstiíuiu-se a possibilidade de um direito
permanente, e por vezes mesmo hireditário, de ííícsís.
As leis religiosas da Atenas clássica contêm também referências a outros deten­
tores do direito de sitesis no prítaneu ou noutros íocais- São designados pelo termo
técnico deparàsitoi e tudo indica que seriam os assistentes oficiais do arconte ou do
sacerdote de um culto religioso particular; os paràsitoi do archon basilèus, escolhi­
dos entre os cidadãos dos demos da Ática, eram responsáveis pela administração
das décimas de cevada e tinham uma sede própria, O uso pejorativo do termo
«parasita» deriva justameiiíe dessa situação e é a resposta popular ao tradicional
costume aristocrático de aqueles que se ocupavam de assuntos públicos comerem a
expensas públicas O carácter aristocrático dessas formas de comensaíidade é bem
visível neste excerto poético;

«Quando o Estado honra Héracles sumptuosamente e celebra sacrifícios em lodos os


demos não contrata para ministrar esses sacrifícios os parasitai dos deuses eíegendo-os à
sorte, nem escolhendo-os ao acaso; sempre escolheu cuidadosamente doze homens
nascidos de pais cidadãos, gente de bem e proprietários de terras.» (Diodoro de Sinope,
in Ateneu, 6, 239d )

O costume de comer no pritaneu deriva de uma antiga instituição do Estado


aristocrático, conservada e desenvolvida no período clássico como parte de um
sistema honorífico, mas nunca foi uma forma de comensaíidade partilhada por
toda a comunidade política, nem directamente nem simbolicamente através da

Milicr, 1978;Henry. 1983


Veja-sc a erudita discussão acerca de parastws cm Ateneu, 6, 234 scgs

217
selecção dos representantes do povo. O único exemplo contíário que se conhece é
o da refeição consumida no pritaneu pelo povo de Naucratis, no decorrer de certas
festas religiosas (Ateneu, 4, 149 sg.), mas refere-se a uma polis excepcional,
formada por diferentes comunidades preexistentes, Este tipo de comensaíidade
constitui por isso uma adaptação dos costumes aristocráticos ao mundo da polis, e
tem a sua expressão arquitectónica nos Héstiatòria públicos, filas de salas destina­
das aos simpósios, que foram encontradas no centro das cidades e junto dos
santuários mais importantes, como Brauron, a partir de meados do século iv, e que
se destinavam às refeições oficiais de uma elite de magistrados, hóspedes importan­
tes e sacerdotes
Contudo, o o Estado ateniense tinha um outro local, este verdadeiramente
democrático, para as refeições públicas. A partir do momento em que, por sorteio,
se foimava um conselho para tratar dos assuntos a discutir em assembleia, havia
cinquenta prítanes que trabalhavam ao mesmo tempo e colocava-se à sua disposição
uma cozinha e uma sala de banquetes, na íholos Este edifício circular tinha uma
forma que não se adequava ao banquete tradicional, em que os convivas comiam
reclinados, e além disso não podia albergar todos os leitos necessários; a sua forma
arquitectónica evoca a das skiades, estruturas provisórias ou refúgios para uso
popular que se encontravam junto dos santuários, fora dos muros da cidade, e
sugere uma distinção de classe entre os dois tipos de comensaíidade: o que previa
convidados reclinados e o que os previa sentados Os membros do conselho rece­
biam porções de carne sacrificial e uma diária em dinheiro. É significativo que não
possuamos qualquer informação pormenorizada acerca desta forma prática e não
honorífica de comensaíidade
O Estado democrático ateniense nunca instituiu ritos universais de comensaíidade
que possam comparar-se com os de Esparta.. Apesar disso, «os legisladores [„ .]
ditaram as leis relativas às refeições das tribos e dos demos e dos thiasoi e das fratrias
e dos orgeones'» (Ateneu, 5, 186a): os pormenores dos regulamentos referentes às
festas do Estado mostram até que ponto os Atenienses se esforçaram por criar um
corpus jurídico que definisse a complexa rede de hábitos e comensaUdades e que
exprimisse o sentido de uma comunidade política unida no ritual religioso. Podemos
distinguir cinco fases principais neste processo, embora na maioria dos casos seja
difícil determinar a data em que certos costumes específicos foram introduzidos As
leis de Sólon, do inicio do século vi, estabeleceram regras para o pritaneu e talvez
também para o conselho, bem como para os banquetes aristocráticos, quer privados
quer religiosos; já então existia um grande número de associações reconhecidas:

«Se um demo ou phràiores ou orgeones ou gennetai ou grupos que se reúnem para


beber ou associações especializadas nas cerimónias fúnebres ou associações religiosas
ou piratas ou comerciantes estabelecem entre si regras, estas devem ser consideradas
vinculativas, a menos que sejam contrárias às leis públicas w {Digesto, 47, 2 2 ,4 .)

Biirkcr, 1983
Schmitt Pantel, 1980; Cooper e Morris, 1989

218
A actividade dos tiranos, que reorganizaram alguns dos grandes cultos ate­
nienses, como os mistérios de Eléusis, as Panateneias e as Dionisíacas, deve ter
tido algum efeito nos sacrifícios e nos banquetes da comunidade Ainda mais
importante neste sentido foi a intervenção de Clístenes (508-507 a. C,), que criou
uma rede de instituições locais oficiais, demos e fratrias que regulavam a aquisi­
ção da cidadania sob a supervisão geral da cidade; cada uma dessas instituições
possuía, ou depressa adquiriu, os seus ritos de comensaíidade próprios. Em finais
do século V, as leis religiosas de Atenas foram codificadas pela primeira vez por
Nicómaco, e é a esse período que devem pertencer todos os fragmentos que
possuímos das leis referentes às associações religiosas Por fim, a restauração
dos costumes religiosos tradicionais associada ao estadista democrático e conser­
vador Licurgo (338-322 a, C.) implicou uma restruturação econômica e religiosa
e a ampliação dos mais importantes rituais da comensaíidade Como resultado
deste longo processo, a fusão entre instituições cívicas e sociabilidade expressa
no banquete religioso é quase total, e todos os grupos sociais públicos e privados,
como os citados nas leis de Sólon, tratam dos seus assuntos imitando o modelo da
assembléia ateniense, com funcionários, propostas e decretos acerca da organiza­
ção interna ou em honra de «benfeitores» e processos contabilísíicos formais,
i muitas vezes gravados na pedra, como se esses grupos constituíssem pequenas
cidades dentro da cidade.
As grandes festas comunais de Atenas ilustram a complexidade destas relações.
Uma das principais liturgias (deveres periódicos dos atenienses ricos) era a da
hestiasis, ou seja, o dever de organizar um banquete paia os membros da sua tribo
durante as Dionisíacas ou as Panateneias Parece que o sacrifício oferecido pela
cidade fornecia a carne para ser amplamente distribuída: nas Dionisíacas de 334-
-333 a. C , foram sacrificadas 240 vacas. A distribuição foi organizada pelos demos
no Cerâmico, talvez na zona do Pompeion, às portas da cidade, de onde partiam as
grandes procissões, zona onde foram encontrados vestígios de salas de banquete e
de banquetes populares Provavelmente, a liturgia que previa o fornecimento de
refeições a uma tribo inteira fazia parte dessa cerimônia, em que a cidade fornecia a
carne e o homem rico fornecia tudo o resto Da mesma forma, na festa feminina das
TesmofÕrias, escolhia-se duas muUieres de homens ricos, a quem competia presidir
à festa e fornecer a comida para os banquetes organizados nos demos. Assim, o
povo pedia aos ricos que fornecessem as refeições rituais ao secíor da cidadania a
que pertenciam, como parte dos seus deveres cívicos.
Também competia ao homem rico entreter os membros do seu demo durante os
banquetes nupciais Mas era sobretudo em tomo da firatiia que se centravam os ritos
de passagem dos cidadãos atenienses, numa série de banquetes ligados à antiga festa
jónica das Apatúrias Havia funcionários que superintendiam ao banquete e tinham
o dever de fornecer uma parte da comida, mas a came provinha dos sacrifícios

Veja-sc Lfsias, Contra Nicómaco, 30


Acerca das reformas de Licurgo, veja-se Schwenk, 1985; Humphreys, 1985
^ Acerca do Pompeion e do Festplatz, veja-se Hoepfner, 1976, pp 16-23.

219
oferecidos pelos pais em nome dos seus filhos. Três momentos especiais das
Apatúrias assinalam as fases de transição do jovem ateniense para a idade adulta:
o meion, por ocasião do primeiro ingresso no gropo, o koiireion, na puberdade, e a
gamelia, no casamento. Cada uma destas fases é comemorada com um banquete
organizado pelos membros da mesma fratria e é essa cerimónia pública que prova a
legitimidade do acto. Por isto se pode ver até que ponto os rituais e os actos
— originalmente referentes ao grupo de parentesco — foram depois transformados
pela cidade numa prática universal e passam a ser utilizados como critérios de
legitimação e cidadania
Todas estas h‘ansformações da comensalidade no seio da Atenas democrática
são a prova de um longo processo de politização dos costumes sociais baseados na
comida, no seio da po/is já estruturada; podem ser consideradas em parte como a
continuação de costumes anteriores e em parte como a difusão de costumes antes
limitados a classes particulares e a ocasiões especiais.
A comensalidade privada continuou, naturalmente, centrada na instituição e nos
rituais do symposion, que não deixou de ser considerado como parte de ura estilo de
vida aristocrático, Nas Vespas, Aristófanes apresenta-nos o seu herói populista,
FUócleon, como alguém que desconhece as regras do comportamento num banque­
te, dado que têm de lhe ensinar como se deve reclinar e estabelecer conversa, No
final, Aiístófánes mostra-o tão entusiasmado que chega a raptar a flauüsta e re­
gressa a casa perseguido pela fúria dos cidadãos a quem, embriagado, danificara
alguns dos bens durante o komos (Vespas, 1131-264, 1292-1449),
Estes grupos aristocráticos aliavam os simpósios às actividades políticas que se
desenvolviam nos clubes políticos, ou hetairehi, organizados, para «influenciar os
casos judiciais e as eleições» (Tucídides, 8, 54); políticos democráticos como
Péricles ou Cléon, cujo poder se baseava na assembleia, são descritos como pouco
apreciadores dos simpósios devido à sua conotação política aristocrática. Platão
descreve os verdadeiros filósofos:

«Aqueles que, desde jovens, não sabem o caminho que conduz à praça, nem onde se
situa o tribunal ou a sede do conselho ou qualquer outro lugar de reuniões públicas da
cidade; não vêem nem ouvem leis e decretos, escritos ou proferidos; nem era sonhos lhes
passa pela cabeça participar em grupos à conquista de cargos e em encontros e banquetes
e festas com tocadoras de flauta.» (Teeíeto, 173d)

Em finais do século v, os heíaireiai converteram-se em centro de uma revolu­


ção oligárquica: daí partiram as ordens para o assassínio dos opositores e vieram
os chefes do golpe de Estado armado de 411 a. C A passagem de uma actividade
política de elite, mas ainda legal, para a subversão (statis) foi facilitada pelo
papel da pistis ou juramento de solidariedade (ver nas páginas anteriores). Em
411, 0 assassínio dos adversários políticos foi apresentado como uma forma de
pistis, e já em 415 a destruição sistemática das Hermes itifálicas situadas diante
das casas atenienses foi interpretada como sendo obra das heíaireiai que trama­
vam a revolução; os inquéritos que se seguiram revelaram que muitos grupos
aristocráticos cometeram deííberadameníe sacrilégio oficiando os mistérios eleu-

220
sinos durante os simpósios Com a restauração da democracia, no século iv, as
heíaireiai constituídas para subverter a democracia (Demósíenes, 46, 26) foram
proibidas formal e compreensivelmente, e os juramentos dos cidadãos de outras
cidades continham a promessa explícita seguintes: «Hão farei parte de nenhuma
conspiração Isynomosia]». Todavia, em Atenas vivia-se um período excepcional:
normalmente, os assaltos cometidos em estado de embriagues e os sacrilégios de
pouca importância, como urinar nos pequenos templos ao longo da estrada ou
roubar e comer os pedaços de carne sacrificial destinados aos deuses, eram o
máximo do sacrilégio; alguns grupos divertiam-se a parodiar os Oüasoi religio­
sos, chamando uns aos outros nomes obscenos e reunindo-se nos dias de mau
augúrio^^.
Estas actividades irregulares são as actividades normais dos thiasoi e dos orgeo-
nes religiosos, associações privadas ou semipúblicas que se dedicavam ao culto de
divindades particulares, que existiam desde sempre e que, como se disse, já eram
reconhecidas nas leis de Sólon; na época clássica, proliferaram juníameníe com o
culto de heróis menores e de divindades estrangeiras. A actividade fulcral desses
grupos era a refeição comum consumida após um sacrifício, de acordo com os cos­
tumes de cada culto, mas comportando, em geral, o deipnon e o symposion. Aristó­
teles refere que esses sacrifícios e essas reuniões tinham por finalidade «prestar'
homenagem aos deuses, e proporcionar agradáveis ócios», e afirma que eram
organizados por amor ao prazer {Éíica a Nicâmaco, 8, 1160a 6). Havia outros
grupos que ppdem ser classificados de acordo com a sua função: de início, o êranos
era um banquete organizado com o contributo de todos; mais tarde, converteu-se
numa importante instituição de socorro mútuo, que emprestava dinheiro aos seus
membros sem lhes exigir juros; cenírava-se muitas vezes num culto e incluía um
banquete comum. Da mesma forma, grupos especializados nas cerimônias fúnebres
asseguravam uma adequada sepultura aos seus membros, mas, na realidade, desem­
penhavam uma função social mais ampla.
De facto, a morte era um domínio problemático. Em geral, a comensalidade não
ultrapassava os limites da sepultura, mas esses ritos eram tão importantes durante a
vida que alguns cultos tentaram criar para os seus adeptos uma crença no symposion
eterno. Platão descreve assim as doutrinas órficas: «conduzindo-os ao Hades, íntro-
duzem-nos no banquete dos eleitos onde, coroados de flores, os fazem passai' o
tempo a embriagar-se, como se a mais bela recompensa da virtude fosse uma
embriaguês eterna» (República, 2, ,36,3).
O motivo principal da iniciação nos mistérios de Eleusis era precisamente a
promessa dos simpósios post mortem. Mas essas crenças só servem para realçar a
diferença entre os prazeres sociais da vida e a sua ausência na morte. Só aos heróis
era dado escapar a esse destino mortal, e na época helenística isso tomou-se um
importante factor de difusão do culto dos mortos heroificados

Acerca dos clubes atenienses e do seu papel político, veja-se sobretudo Calhoun, 1913; Murray.
1989b
Quanto ao tema artístico do Toienmahl. a crítica de Denízer, 1982, &fundamental

221
o caracter reflexivo da representação literária da comensalidade no período
clássico tende a ignorar a dimensão religiosa e refère-se sobretudo à dimensão
social do rito. A primeira tentativa de carácter memoríalista, a de lon de Quíos, dá
um lugar proeminente aos grandes homens encontrados nos simpósios, e julga os
seus caracteres. Um dos temas preferidos e mais frequentes era já o dos costumes
exóticos, citados para demonstrar a «diferença» dos bárbaros (Heródoío, Eurípi-
des no Ciclope) que não compreendem as regras da comensalidade civilizada. Os
costumes das várias comunidades gregas são analisados por Ciitias como prova
das suas características morais,. Estes textos, a par das descrições dos simpósios
da poesia arcaica, são os antecessores do gênero filosófico do «simpósio», criado
por Platão e Xenofonte nos seus retratos de Sócrates,. Neste tipo de textos, os
rituais do discurso e do comportamento durante o symposion determinam quer a
estrutura quer os temas da discussão. Para os filósofos, o amor, especialmente o
homossexual, é o único tema adequado à discussão num symposion', Platão, por
exemplo, com o seu talento para evocar uma visão mística do poder do amor,
revela a sua compreensão pela atmosfera do symposion Mais tarde, nas Leis,
revela-nos uma compreensão igualmente profunda do poder do vinho e da co­
mensalidade e da influência que eles exercem sobre o espírito humano e as
relações sociais” ,
E por isso que, para os Gregos, as relações pessoais de amor e de amizade são
fenômenos sociais, Aristóteles defme a amizade em termos de grupo social,
porque «todas as formas de amizade implicam uma forma qualquer de associa­
ção»; enumera a amizade que figa os parentes e os companheiros, os cidadãos, os
membros da tribo, os companheiros de viagem e a que se exprime no vínculo da
hospitalidade,. Cada uma destas formas implica um tipo de associação {koinonia),
e a polis é descrita nos mesmos termos, isto é, como sendo uma koinonia,
constituída por uma rede de koinoniai (Ética a Nicómaco, 8, 1261b). Todos os
momentos da vida do homem são marcados por laços de amizade, expressos nos
rituais sociais, muitas vezes através da comensalidade, mas também da religiosi­
dade, do desporto, da educação e da guena. Em termos práticos, o significado de
uma vida desse gênero é elucidativamente descrito no famoso apelo de 404 a, C ,
durante a guerra civil:

«Concidadãos, por que nos expulsais da cidade? Por que quereis matar-nos? Nunca
vos fizemos nenhum mal Partilhámos com vocês os ritos mais sagrados, nos sacrifícios
e em esplêndidas festas; dançámos juntos nos coros e combatemos juntos nos mesmo
exército, enfrentando corajosamente os perigos em terra e no mar, em defesa da seguran­
ça e liberdade comuns Em nome dos deuses dos nossos pais e mães, dos laços de
parentesco, de matrimônio e de amizade que ligam muitos de nós, de ambas as partes,
rogo-vos que vos envergonheis de vós mesmos perante os deuses e os homens e que
deixeis de fazer ma! à nossa pátria.» (Xenofonte, Helénicas, 2 ,4 , 20-22 )

” Acerca do gênero literário do «simpdsio» na filosofia e na literatura, veja-se Martin, 1931;


acerca de Platão, veja-se lecusan, 1989.

222
Neste tipo de sociedade a liberdade do indivíduo, como nós a interpretamos, não
existe, porque o indivíduo é sempre considerado um animal social e nunca está só
consigo mesmo. Há porém uma diferença entre as sociedades criadas em tomo de
um conceito único de comensalidade, como por exemplo Espaita, e o complexo
mundo de Atenas: Aristóteles, criticando a ingenuidade do ideal platónico da
comunidade como família universal, afirma:

«Pois bem, é meliior que cada um dos 2000 ou 10 000 cidadãos diga “é meu'*,
referindo-se à mesma coisa, ou que se diga “é meu" como agora se díz nas cidades? Com
o nosso sistema, a mesma pessoa é “meu fiiho’* para um, "meu irmão" para outro, “meu
sobrinha" para outro, e o mesmo acontece com outros laços de sangue ou afinidade ou
casamento que liguem directamente essa pessoa a outras pessoas, pelo que depois lhe
chamarão “meu companheiro de tribo” ou "meu companheiro de fratria" » (Política, 2,
1262a 8-17.)

O que falta em Atenas é o conceito de indivíduo, não o da sua liberdade. De


facto, há uma liberdade pessoal, uma capacidade de viver segundo os seus desejos,
que faz parte do ideal ateniense: é a liberdade de escolher entre uma multiplicidade
de laços sociais que se sobrepõem uns aos outros e de encontrar o seu lugar numa
espécie de «Uberdade intersticial». lrata~se porém de uma liberdade socializada,
uma liberdade que provém da certeza de se pertencer ao mesmo tempo a realidades
sociais muito diferentes

O homem helenistico

O mundo helenistico foi dominado por duas formas opostas dc organização


social que tiveram naturalmente os seus efeitos sobre os rituais da sociabilidade; a
vida na corte das monarquias helenísticas, com os seus funcionários, e a transforma­
ção dos anteriores rituais cívicos numa rigorosa organização colonial que se difun­
diu por todo o território do anterior Império Persa, desde o Afeganistão e a índia do
Norte até ao Egipto e ao Norte de África.
A comensalidade real macedónia, que serviu de base à das monarquias helenísti­
cas, reflecte tradições gregas arcaicas e, em muitos aspectos, recorda o mundo
homêrico; apesar de ter adoptado muitos costumes gregos posteriores, como o de os
convivas estarem reclinados durante os banquetes, foi sempre concebida a uma
maior escala O monarca e os seus «companheiros» constituíam uma elite aristocrá­
tica que comia em conjunto, e às vezes com muitos convidados; a comida era
abundante e os Macedónios eram conhecidos como grandes bebedores. Certas
práticas tradicionais revelam o modo como os Macedónios adoptaram e adaptaram
costumes gregos. Entre essas práticas figurava, por exemplo, a obrigatoriedade de
um homem ter de caçar um javali para poder comer reclinado e não sentado (o que

A discussão acerca da liberdade do indivíduo na anüga Grécia começa já com Constam, 1819

223
rcflecte a distinção que, entre os Gregos, se fazia entre adultos e jovens), ou o uso da
trombeta para anunciar o ftm do deipnon e o início do sympodon A disposição da
sala para este tipo de banquete não é muito clara; muitos dos grandes edifícios
helem'sticos encontrados têm caractensíicas que sugerem a disposição em grupos
quase independentes de convivas numa única sala. A dificuldade em conciliar a
tradição grega da igualdade entre todos os participantes com as realidades de uma
corte real é confirmada por dois motivos anedóticos opostos: um realça a tradição
da «liberdade de expressão» {parrhesia) dos cortesãos no symposion e a consequen­
te aceitação da igualdade dos convidados por parte do rei; o outro descreve os
litígios, as rixas entre bêbados e também os homicídios perpretados pelo monarca
na sua fúria real, a corrupção provocada pelo poder e a impossibilidade de uma
verdadeira amizade entre pessoas não iguais,
O estilo do entretenimento é que é característico da corte helenística, provavel­
mente com o acréscimo de elementos persas . O rei e os seus funcionários, designa­
dos peio título de «amigos», constituíam um grupo que muitas vezes comia em
conjunto e exibia publicamente o luxo e a abundância reais; esse luxo {tryphè)
tomou-se, segundo o estilo persa, uma virtude régia. As festas eram sumptuosas
paradas; ficou-nos a descrição de uma delas, organizada em Alexandria por Ptolo-
meu Fiiadelfo (Ateneu, 5, Î96 segs. Essa festa incluía uma grandiosa procissão e
um symposion real efectuado num pavilhão construído de propósito e descrito como
sendo capaz de conter 130 leitos dispostos em círculo, O edifício estava decorado
com pinturas, tapeçarias, obras de arte e armas ornamentais caracten'sticas das salas
de symposion-, duzentos convidados ocupavam cem leitos de ouro. Junto dos quais
existiam duzentas mesas de tripés também de ouro. Num leito especial estavam
dispostas as taças, que eram igualmente de ouro e cravejadaá de pedras preciosas
O valor total dos adornos ascendia a dez mil talentos de prata (cerca de trezentos mil
quilos). Infelizmente, o banquete propriamente dito não é descrito, nem temos a
descrição do modo preciso como foram distribuídas as grandes quantidades de
vinho e de animais sacrificiais exibidos durante a procissão; todavia, apesar de toda
a componente de ostentação prodigiosa, a festa estruturava-se em tomo dos rituais
tradicionais da comensalidade grega Outros monarcas talvez não pudessem compe­
tir com a riqueza dos Ptolomeus, mas a sua vida de corte imitava o mesmo estilo
simpótico, e também eles organizavam análogas exibições de opulência.
Quanto ã esfera privada. Ateneu descreve-a a propósito do banquete nupcial de
um nobre macedónío (4,128 segs ). Trata-se mais uma vez de um banquete ao estilo
grego, mas com entretenimentos e presentes em ouro e prata, tão sumptuosos que
«os hóspedes procuram agora comprar casas, terra ou escravos». Houve mesmo
quem afirmasse que a baixela de ouro e prata era rara no período clássico e só se
tomou corrente na época helenística: é certo que a maior facilidade de acesso dos
Macedónios ao ouro e à prata deve ter criado costumes diferentes, sobretudo depois
de a conquista de Alexandre ter aberto caminho para as reservas de ouro e de prata

Acerca dos simpósios macedónios. veja-se Tomiinson, 1970 e Borza, 1983


Studniczka. 1934,

224
do Império Persa; também se aventou a hipótese de o declínio do nível artístico da
cerâmica pintada grega estar ligado a essa transformação,. Contudo, se é verdade
que, durante o período grego clássico, os metais preciosos se destinavam quase
exclusivamente a um uso religioso e o luxo se propagou mais tarde, o alcance da
transformação ocorrida na época helenística não deve ser sobrestimado: no sé­
culo I a, C ., Juba da Mauritânia afirmou que «até ao período macedónío [inclusive],
a baixela usada à mesa era de louça» (Ateneu, 6, 229c) e que o uso da prata e do
ouro era uma recente inovação romana ” .
As novas cidades gregas da época helenística eram possessões coloniais instala­
das num ambiente estrangeiro, indiferente e por vezes hostil; por conseguinte, as
suas instituições reOectiam o desejo de manter e reforçar a sua identidade cultural e
de grupo. Se o homem do período clássico tinha encontrado a sua mais autêntica
expressão na acção política e portanto tendera a subordinar qualquer outro aspecto
da sua vida social a esse aspecto da polis, no período helenistico, ser um cidadão
significava pertencer à elite cultural helénica; em tomo desta nova noção de cidada­
nia desenvoiveram-se naturalmente formas específicas de sociabilidade e o ban­
quete cívico como experiência cultural foi remodelado
Neste processo, a educação revestia~se de uma grande importância. Em Atenas,
nos finais do século iv, o ingresso no grupo dos cidadãos já pressupunha um período
de iniciação, a efebia, durante o qual todos os cidadãos do sexo masculino entre os
dezoito e os vinte anos efectuavam um treino de preparação geral e militar sob o
controlo de.,funcionários estatais: esses efebos constituíam classes etárias que ten­
diam a perpetuar-se em rituais da comensalidade. Nas cidades helenísticas, a educa­
ção formal era ministrada no ginásio, sob a direcção de um funcionário estatal, o
ginasiarco; o acesso a essa educação era um direito exclusivo dos cidadãos, de
forma que, por exemplo, muitas das disputas respeitantes às reivindicações de
cidadania por parte das comunidades hebraicas residentes em cidades gregas inci­
diam no direito de acesso ao ginásio e nos problemas ligados à obrigatoriedade de
estudar textos literários não hebraicos e ao costume de os jovens se treinarem nus
A instituição do ginásio existiu durante um longo período de tempo e em vastas
áreas: o mesmo ordenamento constituído por 140 normas de origem délfica foi
encontrado no ginásio de Ai Khanum no Afeganistão, no da ilha de Teras, no mar
Egeu, na Anatólia e no Egipto.. Assim, grupos de efebos e de tieoi proliferaram
numa nova estrutura por classes etárias, em que se dava muita importância às
actividades desportivas e venatórias dos Jovens,
O sistema litúrgico do período clássico também sofreu alterações, quando os
ricos foram encorajados pela concessão de condecorações públicas a competir nos
cargos civis e religiosos com actos de magnanimidade para com o povo. Os
testemunhos mais comuns das formas de sociabilidade deste período são decretos
que ditam as normas de festividades religiosas a organizar a expensas de um rico

Estas breves alusões não esgotam a ampla discussão iniciada por Vickers, em 1985, acerca da
relação entre prata e cerâmica
Acerca deste assumo, vcja-sc cm especial a terceira parte de Schmitt Pantcl, 1983

225
euergetes, ou textos que louvam um benfeitor pela sua generosidade passada. Esses
actos de beneficência publica são muitas vezes idênticos ao dever de sitexis imposto
ao rico ateniense, na medida em que estão ligados a um desempenho especial nos
cargos públicos ou nas festas religiosas, mas desenvolverara-se posíeríormente
quando os ricos começaram a desejar ser recordados por doações funerárias e
legados que previam a distribuição periódica de comida e óleo ao povo, ou por um
banquete fúnebre em sua m e m ó ria M u ita s destas actividades decorriam em redor
do ginásio, dos santuários ou de outros espaços públicos. O fenômeno do everge-
tismo não implica um deslizar para uma forma de clieníelismo, em que os pobres
dependem dos ricos; exprime sobretudo uma comunhão de valores, esperada e (pelo
menos em termos ideológicos) livremente oferecida como mediação entre os ricos e
os cidadãos comuns, separados por um abismo econômico cada vez maior. O espí­
rito público, a quem foi negado espaço na política, exprime-se na exibição e na
ritualização de uma despesa efectuada em prol da comunidade. Quem beneficiava
das doações podia ser um grupo exclusivo de funcionários, conselheiros ou sacerdo­
tes; podiam também ser membros de um subgrupo citadino, como por exemplo, da
tribo do benfeitor. Todavia, era mais frequente que fosse toda a comunidade a ser
convidada para uma demothoinia ou para receber presentes Os limites dessa mag-
hárdraidade variam: por vezes, destinava-se a todos os que participavam numa festa
religiosa, outras vezes, porém, quem dela beneficiava eram apenas os cidadãos do
sexo masculino da polh, Os escravos nunca são expHcitaraente incluídos e as
mulheres recebem presentes, mas nunca são convidadas para os banquetes,. No
entanto, o convite é, em geral, aberto a «todos», cidadãos do sexo masculino,
estrangeiros residentes e de passagem e por vezes também aos «Romanos» — con­
siderados uma categoria à parte —, ou seja, aos Itálicos Essês convites exprimem
bem a vontade da polis de pertencera uma mais vasta comunidade cultural helénica,
dado que não são endereçados aos não gregos, exceptuando a categoria privilegiada
dos «Romanos»; com efeito, embora os cidadãos de outras cidades gregas sejam
bem recebidos, os camponeses locais são excluídos. Era assim, através de formas
culturais, que as novas cidades do mundo grego tentavam criar um sentido de
comunidade que nos períodos anteriores existira espontaneamente; interpretar esses
costumes apenas em termos de continuidade é ignorar a novidade expressa na sua
universalização e na sua nova função.
As associações baseadas na acüvidade econômica sempre existiram na polis
grega, mas, ao contrário do mundo romano e da cidade medieval, não parecem ter
sido um elemento significativo da estrutura social; isso reflecte talvez o baixo
estatuto social das actividades comerciais e a subordinação da esfera econômica à

A importância do evergetismo é o tema central do ensaio de Veyne, 1976, para cuja segunda
parte se chama a atenção. Acerca do evergetismo c dos cultos fúnebres., veja-se Schmitt Pantei, 1982
A manifestação extrema desta forma de comensalidade é o culto real instituído pelo rei Antíoco de
Comagena em finais do século l a C., que prescrevia como obrigatória para todos os seus súbditos a
realização de uma série de banquetes no cume de montanhas desertas, em sua honra e dos seus
antepassados

226
esfera política. Ocasionalmente são mencionadas as actividades de culto de gru­
pos como o dos trabalhadores do bronze ou dos oleiros, mas terá de se esperar
pelo período romano para que essas associações sobressaiam no domínio público.
Aníeriormente, a importância de associações artesanais estava largamente confi­
nada às actividades profissionais fora da estrutura cívica; precisamente por serem
itinerantes, os médicos, pelo menos a partir do século V, tinham mantido o culto
a Asclépio, centros de preparação profissional (em especial. Cós), um conceito
próprio de grupo profissional e um «juramento de Hipócrates». O período hele-
nístico viu emergir as íechniiai de Dioniso, corporações de actores profissionais
cujas actividades se propagaram por todas as cidades gregas. Este fenômeno, tal
como a existência de grupos organizados de estrangeiros residentes em zonas
especiais de Atenas e de outras cidades, exprime mais a necessidade de formas
sociais que transcendam a polis do que a estrutura desta Do mesmo modo,
grupos de origem militar, muitos deles com um carácíer nacional específico, eram
uma consequência natural do recrutamento de mercenários provenientes da
Campânia e de outras regiões, que muitas vezes podiam obter a cidadania ou
impor-se à polis*^.
A organização da transmissão do saber obedecia ao esquema tradicional da
organização do culto, caracterizada por propriedades em comum e camaradagem na
comensalidade O velho quadro da filosofia durante o período socráíico, tal como
foi pintado por Platão, com lições públicas e encontros privados nas casas da
aristocracia ou nas ruas de Atenas, foi substituído por instituições permanentes
ligadas a ginásios (a Academia platônica), a edifícios públicos (a Stoa) ou a santuá­
rios (o Liceu arisíotélico), O núcleo de uma destas escolas era um grupo de amigos
que partilhava a utilização de um edifício para encontros e lições e que tinha livros
comuns, embora a efectiva propriedade estivesse nas mãos de quem dirigia a escola..
Ofereciam sacrifícios comuns e comiam juntos regularmente. Do mesmo modo, a
organização do ensino criada por Ptolomeu Filadelfo em Alexandria, o Museu, era
constituída por um grupo de estudiosos ligados pela participação na organização de
um culto e pela sua vida em comum no interior do palácio e à mesa real, Era o
período dos simpósios dos sábios, onde se discutiam questões literárias ou filosófi­
cas, período que durou até 145 a. C., quando Ptolomeu Vin, exasperado, expulsou
os intelectuais da sua corte. O Jardim de Epicuro é o exemplo mais interessante
dessa vida comunitária: os discípulos viviam juntos «uma vida oculta» na casa do
mestre, onde efêctuavam um banquete mensal na data do nascimento de Epicuro.
No grupo estavam também incluídas mulheres casadas, heteras e escravos, do sexo
masculino e feminino Estava organizado hierarquicamente, como uma seita mís­
tica, em três níveis: professores, assistentes e alunos. Assim, embora estivessem
isolados do mundo da polis, os discípulos de Epicuro não podiam esquivar-se às
normas sociais do banquete comum e do culto do Mestre como herói

" Acerca das associações profissionais., veja-se Ziebarth, 1896; Polajid, 1909.
A íeoria e a prática da amizade epicurista suo discutidas nos capítulos 1 e 7 de Rist, 1972

227
A essas normas escaparam apenas os Cínicos, cuja fuga da sociedade incluía
também a recusa total a qualquer coacção social Contudo, a sua concepção da vida
simples não conseguiu construir uma nova estrutura onde o homem livre se pudesse
inserir, dado não ser mais do que uma inversão das formas de sociabilidade a que
tentavam esquivar-se. O mais interessante trabalho filosófico do penodo helenis-
tico, a República, escrita, na sua fase «cínica», pelo fundador da escola estóica,
Zenão de Cítio, descreve um Estado ideal oposto ao da República platônica, onde o
homem sábio rejeita os laços da polis porque não pertence a uma comunidade real,
mas a uma cosmòpolu idea! de sábios. Estas respostas refíectem as dificuldades de
se libertardes vínculos da sociabilidade que, em todos os períodos, caracterizaram o
homem grego.

228
CAPITUL,0 IX

O HOMEM E OS DEUSES
por Mario Vegeííi
Conta Aristóteles que o velho sábio HeracUto, «dirigindo-se aos hóspedes que
desejavam visitá-lo e que, mal entraram, o viram a aquecer-se junto ao fogo da
cozinha, os convidou a entrar sem hesitar: “os deuses também estão aqui”» {De
parúbiis animalium 1, 5),
A anedota aristotéüca é por vários motivos significativa e útil para se compreen­
der o comportamento religioso do homem grego. Em primeiro lugar, revela o
caiácter difuso da experiência do «sagrado», a sua proximidade em relação aos
tempos e Iiígares da vida quotidiana Por exemplo, a lareira, em volta da qual a
farmlia se reúne para cozinhar e comer, é consagrada a uma divindade, Héstia, que
protege a prosperidade e a continuidade da vida familiar; todos os recém-nascidos
são levados a dar uma volta em tomo da lareira, sancionando assim religiosamente a
sua inserção no espaço doméstico.
As palavras de Heracüto demonstram que o sagrado se prolonga numa relação
de familiaridade com os deuses que é muito característica da experiência religiosa
grega; a divindade não está longe nem é inacessível, pode dizer-se que o convívio
com ela caracteriza todos os momentos significativos da existência privada e social;
é tão frequente encontrá-la, em imagens, em práticas cultuais específicas, na nana-
ção familiar e pública onde se esboçam as tramas densas de uma simbolização
significativa da existência, que parece não ser de perguntar por que é que os Gregos
acreditavam nos seus deuses. Dever-se-ia antes perguntar como seria possível que
eles não acreditassem, visto que isso implicaria a negação de uma grande parte da
experiência quotidiana de vida.
Ao sentido de difusão do sagrado e de familiaridade com os deuses vem Juntar-
-se, no contexto aiistotélico da anedota, uma terceira caiacteristica, que diz especifi-
camente respeito à atitude intelectual dos filósofos para com a esfera do divino,. Este
é cada vez identificado com o princípio e a garantia da ordem, da regularidade, do
sentido do mundo natural (com efeito, Aristóteles cita as palavras de Heracüto para
legitimar o estudo teórico da natureza viva, um domínio decerto menos nobre do
que o dos céus e dos astros, mais próximo da divindade, mas igualmente regido por
normas de ordem e de valor, portanto também ele «cheio de deuses»). Esta atitude
filosófica não contrasta, pelo menos no essencial, com as características da expe­

231
riência religiosa comum, prolonga-as numa nova concepção que transforma a
proximidade e a familiaridade do divino na sua imanência em relação à ordem do
mundo^
Mais adiante fãlar-se-á analiticamente de todas estas características da experiên­
cia religiosa Todavia, para se compreender o seu aspecto fundamental e aparente­
mente contraditório, isto é, o facto de ser uma experiência difusa e presente em
todos os actos da existência, mas, ao mesmo tempo, e por assim dizer, «ligeira», não
opressora psicológica e socialmente, terá de se proceder primeiro a algumas delimi­
tações em negativo Em suma, dever-se-á esclarecer o que a religião grega não foi.

Uma religião sem dogmas e sem igreja

Em primeiro lugai; essa religião não se baseia em nenhuma revelação «positiva»


dada directamente pela divindade aos homens; por conseguinte, não tem nenhum
profeta fundador, ao contrário das grandes religiões monoteístas do Mediterrâneo, e
não possui nenhum livro sagrado que enuncie as verdades reveladas e constitua um
princípio de um sistema teológico A ausência do Livro implica a ausência de um
grupo de intérpretes especializados; nunca houve na Grécia uma casta sacerdotal
permanente e profissional (já que o acesso às funções sacerdotais estava, em
princípio, aberto a todos os cidadãos, e normalmente com carácter transitório), e
muito menos uma igreja unificada, entendida como aparelho hierárquico e isolado
com legitimidade para interpretar as verdades religiosas e oficiar as práticas de
culto, Também nunca houve dogmas de fé cuja observância fosse imposta e vigiada
e cuja transgressão desse lugar às imagens da heresia e da impiedade.
Este sistema de ausências prolonga-se num silêncio particular' mas bastante
significativo. No conjunto das crenças e das narrativas em tomo da divindade, não
têm nenhum papel central — e de facto, não existem, senão em correntes marginais
e sectárias, como veremos — os que se referem à criação do mundo e dos homens;
portanto, a crença generalizada é de que, no mundo, sempre houve uma convivênvia
entre a estirpe dos deuses e a dos homens, Também não há (com as excepções já
referidas) nenhuma ideia de um «pecado original» de que os homens tenham de ser
purificados e salvos: se não se macular com uma culpa e uma contaminação
específica, o homem grego é normalmenle «puro» e como mi pode livremente
desempenliar as funções sagradas. Igualmente marginal é, pelo menos a nível da
religião pública, a questão da sobrevivência da alma e da sua salvação exíraterrena,
embora tenda a emergir, como veremos, no âmbito dos cultos dos mistérios e
iniciáticos.
Esta série de considerações negativas toma difícil falar positivamente de uma
«religião» grega, pelo menos no sentido em que o termo é usado no contexto das
tradições monoteístas, Na Hngua grega nem sequer existe uma palavra cujo campo
semântico seja equivalente ao íemio «religião». A que mais se aproxima, eusèbeia,
ê definida pelo sacerdote Êutifron, o protagonista do diálogo homônimo de Platão,
como «os cuidados [t/ierapeia] devidos aos deuses» (Platão, Êutifron, I2e). Por­
tanto, a religiosidade consiste na observância pontual dos ritos cultuais que expri­

2.32
mem o respeito, a veneração e a deferência dos homens pela divindade, e que
consistem sobretudo em oferendas sacrificiais e votivas. O equivalente grego do
termo «fé» também não é muito expressivo. Na língua corrente, a expressão «crer
nos deuses» {nomizein tom theom) significa mais «respeitar», honrar a divindade
através das práticas de culto, do que estar racionalmente convencido da sua existên­
cia (como acontecerá com a linguagem filosófica posterior); portanto, nomizein
equivalerá a íherapeuein, ter para com a divindade os cuidados rituais convenientes
Assim, o elemento central da relação entre homens e divindades, da «religião» e
da «fé» dos Gregos parece consistir na observância dos cultos e dos ritos prescritos
pela tradição, Isso não deve porém levar-nos a pensai' numa riíuaíização obsessiva e
omnipresente, O sarcástico retrato da superstição (deisidaimonia) que o filósofo
Teofrasto traça nos seus Caracteres (16), em finais do século iv a. C , foÍ provavel­
mente inspirado por uma atitude comum: o supersticioso é aquele que vive atormen­
tado por um constante receio do poder divino e que, ridiculamente, dedica uma
grande parte da sua existência ao esforço de agradar à divindade através dos ritos, à
tentativa maníaca de evitar a impiedade e de se purificai' de qualquer possível culpa.
Trata-se, porém, de um «carácter» da comédia: a sátira teofrástíca não permite
qualquer dúvida acerca do facto de a obsessão ritualista não ser nem comum nem
apreciada no contexto da religiosidade grega. É evidente que isso não significa que
não existisse um profundo e enraizado temor à divindade e à sua capacidade de
punir as culpas dos homens reduzindo o seu tempo de vida e atingindo também a
sua descendência. Esse temor está bem patente em toda a experiência cultural grega
do século V, e, no século seguinte, Epicuro, um filósofo quase contemporâneo de
Teofrasto, ainda pensava que uma das missões fundamentais da filosofia, se se
queria restituir a serenidade à vida dos homens, devia consistir precisamente em
libertá-los desse receio do castigo divino
Uma anedota ingénua, narrada pelo historiador Heródoto — que escreve no
século V mas que se refere aos actos do tirano ateniense Pisístrato (meados do
século VI) — demonstra bem a complexidade de todas estas atitudes Heródoto
descreve um estratagema usado por Pisístrato para reconquistar o seu poder em
Atenas: disfarçou de deusa Atena uma rapariga e enviou-a num carro até à acrópole,
fazendo-a preceder de arautos que intimavam o povo a receber de novo o tirano, que
regressara à cidade pela mão da própria deusa protectora da polis. O estratagema
resultou, e Heródoto surpreende-se com a ingenuidade dos Atenienses, que, porém,
como e mesmo mais do que os outros gregos, «eram considerados mais avisados e
mais avessos à credulidade dos néscios própria dos bárbaros» (1, 60),
A anedota pode ser interpretada segundo duas perspectivas diferentes. Por um
lado, a familiaridade dos Gregos com os seus deuses, o hábito do contacto quotidia­
no com as suas imagens, explicam que os Atenienses possam ter «acreditado»,
como prova imediata de que não tinha qualquer sentido duvidar, no aparecimento
de Atena à cabeça do cortejo de Pisístrato, ou pelo menos que tenham podido
sensaíamente mostrar uns aos outros que acreditavam nessa aparição. Contudo, há
um outro aspecto, que realça a «ligeireza» dessa crença e que, portanto, não
desmente mas confirma a habituai incredulidade atribuída por Heródoto aos Gre­
gos A mesma familiaridade que os leva a «acreditar» permite também que Pisístra-

23.3
to e os seus preparem o estratagema imitando o aspecto da deusa, sem grandes
receios de estarem a cometer um sacrilégio e de assim se exporem à ira divina.
A divindade está demasiado perto dos homens, demasiado disponível, para não ser
por vezes transformada em instrumento de jogo, de engano, de astutos ardis,. Por
conseguinte, no comportamento religioso dos Gregos, credulidade e incredulidade,
temor ao divino e desenvoltura para com ele, estão estreitamente ligados; dar um
realce excessivo a qualquer um desses aspectos significaria compreender mal esse
comportamento
Esta peculiaridade só pode ser explicada remontando à gênese e à organização
das figuras do sagrado e do divino na tradição cultural grega, que, em certos
aspectos, não tem paralelo noutros universos religiosos

O sagrado

Hieròs, «sagrado», é uma palavra grega provavelmente ligada a uma raiz Índo-
-europeia que tem o significado de «forte» A experiência grega do sagrado em
geral (não diferente, neste caso, de muitas outras culturas) talvez tenha nascido da
sensação da presença de poderes sobrenaturais em locais secretos (florestas, nascen­
tes, grutas, montanhas), em fenômenos misteriosos e íeimVeis (o raio, a tempes­
tade), em momentos cruciais da existência (o nascimento, a morte). Essa experiên­
cia primária foi depois divergindo em duas direcções, embora não opostas. Por um
lado, o «sagrado» adquiriu uma dimensão territorial, ligando-se a locais «fortes»,
caracterizados por limites precisos, da manifestação do sobrenatural: esses locais,
que passam a ser consagrados a um culto dos poderes que aí residem, vão-se
transformando progressivamente em santuários (tèmenoi), que podem albergar tem­
plos dedicados às divindades propriamente ditas, ou delimitar outros espaços de
devoção (por exemplo, as Ninfas das nascentes, ou os túmulos dos «heróis», muitas
vezes sepulturas de origem micénica convertidas em talismãs que garantem a
prosperidade de famílias e comunidades, como o lendário «túmulo de Édipo» no
subúrbio ateniense de Colono), Essa delimitação dos espaços sagrados comporta
uma série de proibições e de interdições que preservam da profanação e do abuso
tudo o que neles está contido, em primeira lugar o receptáculo da eventual imagem
divina, mas também as ofertas votivas que lhe são dedicadas e os seus ministros. Por
extensão, «sagrado» será depois considerado tudo o que está contido nos recintos do
culto ou que lhe é dedicado, como as vítimas dos sacrifícios, as formas tradicionais
do rito e os seus oficiantes. Todavia, na Grécia, essa delimitação espacial do
sagrado nunca assume, como acontece noutros locais, a forma do tabu: as proibi­
ções nunca excluem a relação com os homens, o convívio, embora sujeito a regras;
implicam-na estrutural mente, dado não existir sacralidade sem culto colectivo
Portanto, o respeito pelo sagrado nunca se converte no terror mudo e cego que
existe noutras culturas.
Por outro lado, para os Gregos, «sagrado» — desta vez em sentido difúsivo, não
intensivo mas extensivo — é tudo o que provém dos poderes sobrenaturais e,
especificamente, dos desejos divinos Por isso, sagrado é também a ordem da

234
natureza, a alternância das estações, das colheitas, do dia e da noite; e também o é a
ordem imutável da vida social, a sucessão regular das gerações assegurada pelos
casamentos, pelos nascimentos, pelos ritos de sepultura e de veneração dos mortos,
a permanência das comunidades políticas e dos sistemas de poder.
Em ambas as acepções, a experiência do sagrado é portanto, e acima de tudo, a
de um poder, ou de um sistema de poderes, que intervêm nos processos da natureza
e da vida — e cuja intervenção pode ser tão impenetrável mente benéfica, como
princípio de ordem e de harmonia natural e social, como perturbadora, violenta,
destrutiva, na tempestade, na doença e na morte (a língua grega continuará a
denominar «sagrada» a mais incompreensível e peiturbante doença, a epilepsia).
Assim, a atitude para com o domínio do poder sobrenatural tenderá a propiciai' o seu
carácter benévolo, e a esconjurar a sua violência negativa, sendo, portanto conce­
bida, segundo as palavras do sacerdote Êutifron em Platão, como o «cuidado dos
servos para com o seu senhoD> {Êutifron, I3d) O rito propiciatório — um acto
individual e colectivo que pode, e deve, ser eficaz se efectuado correctamente, de
acordo com os procedimentos determinados pela tradição que se supõe grata ao
poder a quem se dirige — consistirá sobretudo na oferta votiva, acompanhada pela
invocação e pela prece, Para os Gregos, essa oferta inclui presentes, libações,
prestigiosos edifícios de culió; todavia, o seu elemento essencial é a oferta alimen­
tar, o sacrifício de animais. Como veremos, o sacrifício pode assumir formas
diversas, em função das divindades e dos meios sociais, mas exprime sempre a
renúncia, pOr parte do grupo humano, a uma porção dos seus recursos alimentares
mais preciosos, e a sua entrega aos poderes divinos, que, devido a esse «cuidado»,
deveriam apiacar-se e revelar-se benévolas para com os homens.
Refira-se mais uma vez que é importante que o ritual se desenrole segundo os
processos e nas alturas definidas pela tradição; por conseguinte, o calendário grego
é acima de tudo o conjunto das regras rituais, e os nomes dos meses associar-se-ão
sempre às cerimónias do culto que devem decorrer nesse período do ano, O ritual,
em que se celebra e se assegura a relação positiva entre homens e poderes divinos,
também é, naturalmente, um momento alto da convivência entre os homens, da
auto-exaltação das suas comunidades, pelo que é sempre acompanhado pelos even­
tos mais significativos da civilização grega, desde o banquete comum até aos jogos
desportivos, às danças, às procissões e às representações teatrais,
Todavia, se o rito — e em primeiro lugar, o sacrificial — garante a continuidade
da boa relação entre os homens e o sagrado, essa relação pode ser alterada e
perturbada.
Por vezes, os homens invadem o espaço do sagrado, violam os seus privilégios
ou infringem as normas divinas que regem a ordem social. Isso acontece, por
exemplo, na Ilíada, quando os Gregos reduzem à escravidão a filha de um sacerdote
de Apoio, Criseide, que, por nascimento, está consagrada ao deus e faz parte dos
seus bens; ou quando Édipo executa o seu gesto parricida manchando-se com o
sangue de Laio; ou ainda, nos tempos históricos, quando a família dos Alcmeónidas
mata Cílon e os seus sequazes que se tinham refugiado como suplicantes no templo
de Atena (Heródoto, 5,71). Em todos estes casos existe «contaminação» (miasma),
como existe sempre que se infringem juramentos feitos em nome dos deuses, se

235
derrama sangue humano ou não se respeitam as regras do rito. A contaminação é
uma culpa que ultrapassa os limites da ordem jurídica e moral: faz recair sobre o
culpado a vingança divina e difunde-se quer no espaço, envolvendo a comunidade
que 0 alberga (quem expia as culpas de Agamémnon e de Edipo são o exército dos
Gregos e a cidade de Tebas, com a «pestilência» que lhes 6 enviada pelos deuses),
quer no tempo, atingindo implacavelmente os descendentes do contaminado, como
aconteceu às famílias trágicas dos Labdácidas e dos Atridas. A ideia do miasma tem
provavelmente origens materiais, exprimindo a sujidade, a imundície, a mácula de
quem vive sob ou fora das nomias impostas pela sua comunidade social, e revelan­
do-se, em sentido próprio, nas mãos sujas de sangue do homicida, nas chagas que
cobrem o corpo de quem, segundo se pensa, sofre um castigo divino. É claro que a
sujidade material das origens tende depois a moralizar-se, convertendo-se numa
metáfora da «culpa» e da «maldição» divina Quem está infectado não pode aproxi­
mar-se do sagrado nas práticas rituais, e deve ser banido da sua comunidade que, de
outro modo, corre o risco de ser contagiada O ritual antiquíssimo do phanmkòs,
que revela proveniências orientais indubitáveis é uma reminiscência dessa situação:
todos os anos, a comunidade escolhe um dos seus membros marginais com defor­
mações físicas ou psíquicas c declaia-o banido, acompanhando-o em procissão até
às portas da cidade, para que com ele sejam expulsas todas as contaminações que
possam existir no grupo social (a expulsão de Édipo, rei parricida e incestuoso, da
cidade de Tebas, com que se conclui o Édipo Rei de Sófocles, é segurameníe uma
reminiscência literária desse ritual).
Se a ideia de contaminação tem origens materiais, o acto da puriíicação
ikàíharsis), na sua forma ritual, também é material. Trata-se essencial mente de
uma ablução efectuada com água (mais raramente de uma fumigação): visa
reconduzir o indivíduo sujo, impuro, ao nível de limpeza, portanto, de pureza,
exigido pela sua civilização. A ablução purificadora efectuar-se~á em todos os
casos em que oconam, mesmo sem a existência de qualquer culpa, fenómenos
potencialmente contaminados, como o nascimento, a morte, o sexo, a doença,, No
livro nono das Leis, Platão prescreve também este ritual nos casos de homicídio
involuntário ou legítimo; as pessoas deverão igualmente putificar-se após uma
relação sexual que anteceda a preparação para os actos de culto; do mesmo modo,
será purificada a casa onde ocorreu um nascimento ou uma morte Nos casos de
miasma mais graves, o rito será executado de acordo com os ditames de um
responso pedido aos sacerdotes de Apoio, o deus purificador (kathariès) por
excelência
Na consciência religiosa e moral das seitas, continuada depois no pensamento
filosófico, de que falaremos mais adiante, a ideia da purificação desenvolve-se em
paralelo com a concepção da culpa contaminante que caracteriza a condição hu­
mana: a vida será então entendida como exercício de purificação da corporeidade e
dos vícios que Uie são inerentes, até que o elemento salvador do elemento espiritual,
a alma, se liberte dos seus laços terrenos. Contudo, esta evolução extrema da
concepção do míasma e da kàtharsis terá sempre a ver com minorias religiosas e
intelectuais marginais, embora influentes, relativameníe à vida religiosa da socie­
dade grega.

236
Os deuses, os poetas e a cidade

Os elementos até agora traçados não são específicos da cultura grega, já que se
podem detectar em formas bastante idênticas na experiência religiosa de outros
povos de cultura tradicional, e também não podem constituir o perfil e o quadro
unitário de um universo religioso propriamente dito. Essa especificidade e essa
unificação do religioso resultam sobretudo de dois factores culturais peculiarmenle
gregos; em primeiro lugar, a poesia épica (em que a Ilíada de Homero e a Teagonia
de Hesíodo desempenham um papel decisivo) e, em segundo lugar, a figuração
artística, que sob este ponto de vista é o suplemento iconográfico da poesia
A poesia épica nasce seguramente tendo como pano de fundo os relatos míticos
tradicionais acerca das divindades e dos poderes sobrenaturais que habitam o
mundo e o dominam. Anónimos, difusos, repetidos e aprendidos de geração em
geração, esses relatos — uma espécie de vasto catálogo do imaginário religioso —
constituem todo o saber social acerca dos deuses, imediatamente credível e persua-
sor, não questionável, precisameníe devido ao seu anonimato, à sua difusão no
tempo e no espaço, à antiguidade imemoriável das suas origens Todavia, e devido a
essas mesmas características, o politeísmo que emerge da massa emaranhada dos
relatos míticos é caótico, confuso, desprovido de uma forma imediatamente com­
preensível e controlável. A intervenção da poesia épica — principalmente, a Ilíada,
embora não faltem provavelmente antecedentes micénicos — é acima de tudo uma
operação de selecção e de ordenamento, imprimindo uma forma orgânica e visível à
esfera do divino, que passa a ficar indelevelmente marcada. Portanto, o politeísmo,
antropomórfico e ordenado segundo relações funcionais e de poder muito precisas,
da Ilíada é o sinal de uma extraordinária revolução intelectual, que dá à religião
grega a sua forma histórica, Contudo, a poesia épica conserva, e até reforça com a
eficácia da grande literatura, o carácter fundamental dos relatos míticos, quer dizer,
continua a ser a narração dos factos e das proezas dos deuses, indicando os locais
onde ocorreram, definindo os seus protagonistas como indivíduos dotados de nome,
personalidade e caracteres específicos: personagens narrativas, portanto, e não
abstracções conceptuais ou metafísicas nem figuras totémicas, Quando Hesíodo
tentou dar uma nova ordem ao universo religioso homérico, compondo com a
Teogonia aquele que foi o primeiro e, no fundo, o único «manual» religioso grego,
só pôde partir desta experiência de base e por isso as relações entre os deuses-
-personagens não serão ordenadas segundo a trama dos conceitos e das construções
teológicas, mas segundo a ordem genealógica das gerações e da alternância dos
poderes, isto é, segundo a ordem própria dos laços que existem entre individualida­
des singulares, vivas e agentes.
O gesto fundador da poesia épica, o seu olhar configurador do universo da
divindade como narração antropomórfica, está associado à cultura da aristocracia
grega empenhada na colonização da Ásia Menor. Na poesia épica, essa aristocracia
exalta-se a si mesma, as suas origens e os seus heróis, e ao mesmo tempo dá forma,
prqjectivamente, às suas divindades: os seus deuses não derivam propriamente,
como escreve Snell, do culto ou dos ensinamentos dos sacerdotes; «são criados pelo
canto, juntamente com os heróis».

237
A dimensão projectiva da formação de um universo divino na poesia épica, no
mesmo contexto do dos heróis aristocráticos, define as suas características de tipos..
Os deuses são representados como heróis cuja excelência (areíè) máxima é devida à
beleza, à inteligência, à força, à perpetuidade desses dotes, à imortalidade: como é
natural, esta implica também, e desde logo, uma transcendência da condição huma­
na, um limiar intransponível que separa os deuses dos heróis mais do que estes o
estão, pela sua excelência, do resto dos homens,.
Esse limiar é imposto pelo carácter projectivo que rege o imaginário poético
criador das divindades homéricas; tende, porém, a ser constantemente transposto
devido ao próprio acto intelectual que o gerou O acto que configura o universo
divino permanece «artístico», portanto, em certa medida, «artificiai»; a sua origem
estetizante e tranquilizadora estabelece uma relação especular entre a natureza
mortal do herói aristocrático e a natureza imortal dos seus deuses O limiar é
transposto em primeiro lugar na genealogia, que garante aos heróis uma descendên­
cia e um parentesco divinos graças à frequente união dos deuses e das deusas com
os mortais, de que provêm as famílias da aristocracia grega, Há depois vínculos
constantes entre os deuses e os homens, com quem aqueles convivem assiduamente,
ligados como estão por laços de parentesco, de afecto ou de aversão, e, quanto mais
não seja, pela própria necessidade de exigir constantemente as honras que Unes são
devidas enquanto senhores de um poder desmedido Dai derivam os cruzamentos e
as sobreposições constantes entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens que
são uma característica saliente da Ilíada e, depois dela, do imaginário religioso dos
Gregos E é também daí que deriva o hábito do contacto com os deuseá, uma
familiaridade com a sua presença, atribuindo-lhes relações propriamente humanas:
os deuses podem ferir os heróis e ser feridos por eles no campo de batalha, sentem
amor, ciúme, inveja e são dominados por qualquer outra paixão própria dos ho­
mens Tudo isto faz com que os deuses, embora sejam temidos pelo seu enorme
poder, possam ser também vistos com a ironia e por vezes com o sarcasmo que
recaem sobre as fraquezas dos homens; por isso, a Ilíada, que é o poema fundador
de um universo religioso, também pôde ser definido, paradoxalmenie mas com
alguma razão, como «o mais irreligioso de todos os poemas» (P Mazon).
Platão tinha plena consciência disso, quando, no livro terceiro da República,
lamentava o facto de os deuses da Ilíada serem representados vencidos pelo riso,
peio pranto ou pelo desejo erótico: «é preciso acabar com essas fábulas: há o perigo
de elas criarem, nos nossos jovens, uma grande facilidade em cometer o mal» (391e
segs ). Portanto, o educador Platão propunha que se emendasse as páginas religiosas
da poesia épica, ou melhor, que se banisse Homero e os seus seguidores da nova
polis, bem como todos os seus perigosos poemas (República, livro X).. Contudo, o
projecto de Platão não teve êxito e a experiência religiosa dos Gregos continuaria a
moldar-se pelos textos da poesia épica que deram início à sua cultura,.
O politeísmo antropomórfico, em que a divindade é vista sobretudo como a
personagem concreta de uma narrativa, depois tomada visível através da figuração
que a ilustra, tem uma série de consequências importantes. Por um lado, exclui a
omnipotência e, em certo sentido, também a omnisciência tanto das divindades
como do seu rei, Zeus. Onde há omnipotência não há obviamente narrativa, jâ que

238
esta exige uma pluralidade de sujeitos agentes, cuja força e cujas intenções se
limitam e se condicionam altemadamente, criando a intriga narrativa: embora fosse
o mais poderoso dos deuses, Zeus nSo podia decidir, de imediato e sozinho, o
resultado da Guena de Tróia, sem vencer oposições, estabelecer compromissos,
foij ar planos complexos..
Por outro lado, é certo que o que separa os deuses dos homens é acima de tudo a
sua força: eles são «os mais fortes» Isso deriva quer da experiência primária da
existência de poderes sobrenaturais que agem sobre o mundo, quer do aoto poético
de representação da divindade através de uma projecção das qualidades heróicas.
Os deuses são diferentes devido à especificidade do domínio em que exercem o seu
poder, embora, não se tratando de abstiacções conceptuais mas de personagens
concretas, sejam por norma figuras pluriáincionais, cujos poderes se exercem
muitas vezes numa multiplicidade de sectores, cruzando-se e sobrepondo-se, No
conjunto, neste imaginário religioso, como escreveu Dumézü, «conceitos, imagens
e acções articulam-se e formam com os seus nexos uma espécie de rede onde, em
princípio, toda a matéria da experiência humana deve estar contida e repartida»,
Essa pluralidade de funções expríme-se na multiplicidade de apelativos específi­
cos que acompanham o nome de cada divindade quando é invocada tendo em conta
os vários domínios em que exerce o seu poder e a sua tutela. Assim há um Zeus dos
juramentos, um Zeus das fronteiras, um Zeus protector dos suplicantes e dos
hóspedes, um Zeus da chuva e do raio, Mas, por detrás dessa pluralidade de funções,
a figura do deus conserva um unidade focal, uma individualidade própria, que não
provém da sua situação num sistema teológico mas da trama narrativa que a
identifica como personagem (existem, porém, excepções, quando o nome de um dos
deuses do Olimpo homérico se sobrepõe a figuras cultuais preexistentes mas dificil­
mente identificáveis, como é o caso de Artemis, virgem e caçadora no universo
poéüco, mas ligada, por exemplo em Éfeso, a um culto da deusa-mãe de origem
oriental),
Essa unidade focal pode ser sumariamente demonstrada pelas doze principais
divindades do Olimpo Zous é o princípio da soberania legal, que reúne em si a força
e a justiça c que, graças ao seu eminente poder, é o garante universal da ordem do
mundo e da sociedade É este aliás o motivo do poder de Zeus, que não é primigénio
mas conquistado numa série de feitos heróicos.. Segundo a genealogia de Hesíodo
(séculos vm~vn a. C ), Zeus teria posto termo a mna dinastia divina de origens
nocturnas e caóticas, que culminara em seu pai, Crono, que costumava devorar os
seus próprios filhos Subtraído à fúria paterna pela astúcia de sua mãe, Reia, Zeus
teria deposto Crono, tornando-se rei dos deuses; a nova dinastia, celeste e olímpica,
teria defmitivamente afirmado o seu poder graças à guerra vitoriosa travada por
Zeus contra divindades ctónias e primitivas como os Titãs, ligados ao mundo
caótico de Crono. Por conseguinte, com o advento da realeza de Zeus, dá-se a
separação ordenada entre o céu e a terra, a luz e as trevas, e garante-se a sucessão
harmoniosa das gerações,. A sua mulher. Hera, enquanto garante do matrimônio
regular, da união capaz de gerar uma descendência legítima no âmbito da família,
está ligada à própria existência da sociedade humana e da civilização, que ela
impede de voltar a cair na ferocidade desregrada do estado natural.

239
o irmão de Zeus, Poséidon, é uma amiga e poderosa divindade de evidcme
origem mrcénica. No mundo homérico, encontra-se em certa medida marginali­
zado: se Zeus detém o poder sobre o céu e a terra, para Poséidon resta o poder sobre
os abismos marinhos e o subsolo, o que o converte em senhor da tempestade e do
lerramoto. Divindade tenaível, Poséidon, como protector dos navegantes, ficará
sempre muito próximo dessa dimensão fundamental da experiência grega.
De todos os filhos de Zeus, a predilecta é Atena, a donzela que ele gerou
directamente, sem intervenção feminina, e que portanto, no âmbito do seu sexo,
simboliza o princípio patriarcal, o valor masculino que pode ser partilhado pela
mulher. Neste sentido, Atena é depositária da inteligência prática que preside tanto
ao trabalho dos artesãos como ao trabalho tipicamente feminino da tecelagem
Reproduzida normalmente envergando uma armadura hopllta, Atena é também
pròmachos^ guia e protectora armada Neste aspecto duplo, Atena assume o pape!
de divindade tutelar da polis ateniense, isto é, de deusa especificamente ligada aos
destinos da cidade e portanto objecío de uma veneração particular (muitas são aliás
as divindades tutelares femininas, como Hera, em Samos, e Ártemis, em Éfeso, o
que se pode explicar pela sua qualidade de amas, garantes da fecundidade e da
prosperidade da população, a que se pode acrescentar' também a sua qualidade de
proíectoras armadas).
Um dos outros filhos de Zeus que teria desempenhado um papel extraordinário é
Apoio, Grande divindade solar, e de início também guerreira, Apoio assumiría cada
vez mais o caracter de deus da luz, purificador e curandeiro. Dotado do dom
fundamental da sapiência, Apoio conhece o futuro e, consequentemente, preside aos
grandes santuários oraculares, como o de Delfos; ligado à música e à poesia,
portanto, à dimensão cultural essencial da civilização grega, e garante da harmonia,
da beleza, da ordem esteticamente definida do mundó, Apoio seria a divindade
«filosófica» por excelência. Por todos estes motivos, na época histórica, o seu
prestígio teria por vezes ofuscado o do próprio Zeus.
Outra grande e antiga divindade grega (mas a que os próprios Gregos atribuíam
origens orientais), Dioniso, situa-se no extremo oposto de Apoio. Deus do vinho,
Dioniso está ligado à embriagues, ao delírio, à loucura; domina a zona obscura que
precede a ordem da existência civilizada, onde se criam laços imediatos entre os
homens, os animais e a natureza O seu culto, que prefere a montanha e a floresta e
atrai as mulheres e os bárbaros, costuma ser considerado desviante em relação à
ordem constituída da polis\ marginal na poesia épica, onde prevalece a imagem
heróica da divindade, Dioniso toma-se a divindade protectora da poesia trágica
Contrasta com a ordem e a harmonia próprias de Apoio, é a figura do Outro — o
outro aspecto do sagrado, não estável e regular mas perturbador e inacessível.
Todavia, a experiência religiosa grega tentou arduamente conseguir a integração
não confHtual desses dois aspectos, No próprio santuário de Delfos, Dioniso foi
venerado ao lado de Apoio, como seu irmão; na religião da cidade, concedeu-se a
Dioniso um lugar e um papel específicos na festa, nos momentos carnavalescos em
que o vinho domina, e sobretudo nos festivais teatrais, que visavam tomar compre­
ensível e aceitável, na ordem social, a alteridade dionisíaca e as dimensões da
experiência que ela representa.

240
Três divindades femininas e três divindades masculinas completam o Panteão
grego. Aríemis, irmã gémea de Apoio, é uma deusa virgem, donzela ligada aos
espaços exteriores à cidade, como o bosque onde gosta de caçar com arco e flechas,
ao contrário de Atena, que se instala, com a sua armadura de hoplita, no centro da
cidade. Ártemis está ligada ao culto feminino, preside aos rituais das raparigas e à
sua passagem da condição de virgens para a de mulheres casadas, protegendo
também os partos e os nascimentos
Muito diferente é a natureza de Afrodite, deusa do sexo e da geração, provavel­
mente aparentada com as grandes deusas orientais da fecundidade. Associada ao
desejo erótico (de facto, é mãe de Eros), Afrodite mantém-se alheia à zona familiar
e conjugal: ligada como está à dimensão incontrolável e primordial da sexualidade,
define-se portanto, em certos aspectos, por oposição ã reprodução matrimonial­
mente regrada simbolizada por Hera.
L.igada à fertilidade da terra e aos ciclos da natureza, Deméter pode comparar-se
a Dioniso; todavia, o seu domínio não está associado ao vinho mas ao cultivo dos
cereais, e portanto às próprias origens da civilização agrícola. Em Perséfone, a filha
de Deméter que Hades levou para o subsolo, o reino da morte e das trevas, e que,
por intervenção de sua mãe, regressa na Primavera à luz do Sol, celebra-se a
alternância sazona! das searas, da sementeira, mas também, e mais em geral, o ciclo
dos nascimentos e das mortes. Estes aspectos convertem Deméter numa divindade
particularmente ligada aos cultos femininos; além disso, como veremos, as vidas de
Deméter e,de Perséfone conferem-lhes um papel central nos mistérios de Elêusis.
Quanto ao trio masculino, inclui uma divindade com caracterisücas muito espe­
ciais, Hermes, que personifica a figura do mensageiro e do viajante; divindade
móvel, ligada aos caminhos e aos espaços abertos, Hermes simboliza além disso a
passagem do mundo dos vivos para o mundo dos mortos, já que tem a tarefa de
conduzir ao Além as almas dos defuntos. A sua capacidade de proceder a trocas e de
fazer contactos, bem como a sua mobilidade de viajante tomam-no um deus funda­
dor dos comércios e da cultura, como arte de comunicação e de compreensão entre
os homens.
No lado oposto está Hefésto, divindade artesanal ligada aos espaços fechados da
oficina e da fotja do ferreiro, expressão do poder transformador e criador da técnica.
No culto dos artesãos, Hefesto costuma ser associado a Atena. Contudo, a sua
mulher é Afrodite, união que liga a capacidade generativa e sexual da natureza à
produtividade artificial da técnica Mas Afrodite ignora o laço matrimonial, prefe­
rindo ao laborioso Hefesto a força primordial, guerreira e destruidora de Ares: deus
da guerra, temível divindade dos campos de batalha, Ares está especiaímeníe ligado
à coragem dos combatentes homéricos, na sua dimensão de furor e de incontrolado
impulso homicida
O Panteão grego inclui naíuralmente outras divindades, para além dos doze
grandes deuses Algumas dessas divindades menores são bastante antigas, como os
já citados Hades, deus dos infernos e dos mortos, Héstia, Eros e Perséfone Outros
se lhes juntam, na época clássica, após um típico processo de conceptualização
moralizadora, de carácter juridico e político, do universo religioso da época arcaica
À medida que esse universo vai parecendo inadequado, na sua personalização

241
narrativa e ícónica, para exprimir a complexidade crescente da experiência social,
vão sendo integradas figuras não provenientes da originária conformação poética do
mundo dos relatos míticos, mas directamente da abstracção, da sublimação de
valores e problemas da nova realidade colectiva. Surgem assim divindades como
Dice, a Justiça, concebida como filha de Zeus para simbolizar o seu envolvimento
directo na garantia dos valores ético-políticos da coexistência social; ou Irene, a
Paz, uma divindade que exprime a necessidade de harmonia no interior e no exterior
da polis, ou, mais tarde. Tique, a Fortuna, cujo culto assumirá grande importância
na época helenística dada a sensação geral de insegurança pessoal e colectiva.
Ainda na época helenística, os contactos com culturas religiosas alógenas, so­
bretudo a egípcia, levarão a incluir divindades estrangeiras no panteão grego,
embora associadas sincreticameníe às que eram tradicionalmente fámiliares: assim,
Ámon será associado a Zeus, por vezes venerado com duplo nome, Ísís a Deméíer e
Osíris a Dioniso
No entanto, as velhas divindades do Olimpo homérico já tinham passado por
uma outra, e decisiva, transformação: tinham sido integradas no horizonte da polis,
tomando-se representantes de uma religião cívica e politizada O aparecimento, no
horizonte da Grécia clássica, de um organismo social e político abrangente, capaz
de: restruturai a experiência colectiva e a vida pública e privada, como foi a polis,
não podia deixar de se intrometer no tipo de relação entre homens e deuses e no
papel destes na existência humana As divindades olímpicas são integradas nos
espaços sociais da vida pública, chamadas a prestar, como qualquer cidadão activo,
o seu serviço na polis dos homens Esse serviço — que será compensado com
práticas de culto sujeitas a regras, legisladas e financiadas pela comunidade polí­
tica — consistirá acima de tudo em garantir protecção e prosperidade à polis
— tarefa confiada em primeiro lugar às divindades tutelares — e depois em aconse­
lhar, ajudar e assegurar as suas actividades,. Não há guerra ou fundação de colónias,
promulgações de leis ou tratados, ajuste de matrimónios ou contratos, que não
requeira a protecção de uma divindade, cuja atenção é solicitada com os actos de
culto adequados e os sacrifícios necessários; e não há nenhum acto de convivência
entre cidadãos, desde a festa à assembleia, que não seja consagrado à divindade de
quem se espera protecção e benevolência.
O lugar de eleição da concídadania entre homens e deuses é a residência
construída pela cidade para as suas divindades, representadas pelas respectivas
estátuas: situado no centro da cidade, no coração do seu espaço público e bem
visível de todos os pontos da polis, o templo está aberto ao público e é propriedade
de todos os cidadãos. A comunidade cultual que se reúne no templo e nos rituais que
aí se praticam identifica-se com o corpo cívico e reforça a sua coesão, porque
cimenta a unidade dos cidadãos, que é gaiantida pela sua relação comum com a
divindade Por isso, Héstia, a divindade que preside ao lar comum da polis, pode ser
identificada com «a própria legalidade» da cidade (Xenofonte, Helénicas, 2, 3,52)
Por conseguinte, as funções sacerdotais, os colégios de padres {hierèis) que
administram os templos e oficiam o culto, não podem ser considerados cargos
profissionais peimanentes e estruturas separadas do corpo cívico. Os cargos sacer­
dotais, tal como as magistraturas, costumam ser atribuídos por eleição ou por

242

t
sorteio, e aliás os próprios magistrados da polis, bem como os arcontes atenienses e
os éforos espartanos, desempenham funções sagradas. Contudo, mesmo no caso de
existirem sacerdócios hereditários, como os que cabem às famílias atenienses dos
Buzigues e dos Praxiérgides, esses cargos estão sujeitos ao controlo público da
polis: na sua qualidade de tesoureiros do culto e dos bens divinos, portanto comuns,
têm de prestar contas dos seus actos perante a cidade, no termo do seu mandato, que
é sempre provisório e revogável. Aliás, dadas as características fundamentais da
religião grega, também não se pode exigir que os sacerdotes possuam uma compe­
tência teológica especial, para lá do património mítico-ritual que todo o cidadão
conhece; do ponto de vista moral, bastará que estejam isentos de contaminação e
cumpram os ritos de purificação obrigatórios antes de darem início aos rituais e aos
sacrifícios,.
O sacrifício às divindades olímpicas constitui seguramente o momento fulcral
daquilo que Platão define como «a amizade entre deuses e homens» (Banqiteie,
188c) e portanto também da amizade política entre os homens, que aquela deve
garantir. Como referimos, o elemento essencial do sacrifício é naturaimente a oferta
votiva aos poderes divinos. Porém, na concepção mitológica dos Gregos, e na sua
ritualização do sacrifício, existe algo de mais específico.. De acordo com o mito, na
origem do sacrifício está um ardil, urdido por Prometeu, que tinha reservado para os
homens a carne do animal, deixando para os deuses apenas as partes não comestí­
veis, destinadas a serem queimadas e convertidas em fumo. Esse ardil pôs termo à
comensalidade originária de homens e deuses e confériu-lhes um regime alimentar
diferente: para os deuses imortais, fumos e aromas; para os homens, a carne,
associada à mortalidade. A ruptura provocada por Prometeu não é eliminada no acto
sacrificial — porque não se pode regressar à comensalidade das origens — mas
harmoniosamente reconstituída. Os deuses assistem ao sacrifício e regozÍjam-se
com ele; quanto aos homens, são autorizados a comer carne porque se alimentam de
animais cuja morte é legitimada, não contaminadora, devido à sua consagração ao
culto divino. Ao sacrifício segue-se portanto o banquete, uma refeição comum em
que a repartição das carnes sanciona e legitima as hierarquias sociais, cabendo as
partes melhores aos magistrados, aos sacerdotes e aos cidadãos mais eminentes.
Tanto o sacrifício como o banquete decorrem num ambiente festivo: as Panateneias
atenienses, por exemplo, tal como são reproduzidas nos frisos do Parténon, são um
dos mais extraordinários exemplos de auto-exaltação do corpo social, de representa­
ção da concórdia e da harmonia que reinam entre os seus membros, e entre estes e as
suas divindades. «Os deuses, compadecidos do género humano», escreve Platão,
«que nasceu para sofrer, concederam uma trégua e fixaram-na na sucessão das
festas devidas à divindade, e para companheiros da festa deram as Musas e Apoio
Musageta e Dioniso» (Leis, 2, 653d). Uma trégua prolongada, se pensarmos que em
Atenas, no século v, cerca de cem dias por ano eram dedicados às diversas festas
que acompanhavam os ritos sacrificiais.
O carácter público, festivo, solar do sacrifício oferecido às divindades olímpicas
é ainda mais realçado, por contraste, pelos aspectos dos ritos sacrificiais dedicados
aos poderes infernais, ctónicos, ligados ao mundo dos mortos, que persistem,
embora numa posição marginal, na polis clássica. Desenrolam-se normalmente na

243
escuridão nocturna, sem um altar erguido e bem visível a todos mas direciamente na
terra nua; em geral, pratica-se o holocausto, ou seja, a combustão de todo o corpo da
vítima sacrificial, pelo que não ficam partes disponíveis para o banquete comum
Por conseguinte, globalmente, trata-se mais de um ritual apotropaico, de esconjuro
e de aversão do que de contacto e de pacificação harmoniosa entre o grupo humano
e as divindades que o protegem-
Aliás, esta vertente obscura do rito sacrificial oculta uma dimensão da experiên­
cia religiosa grega, um emaranhado de problemas existenciais ligados ao medo da
morte, ao temor inspirado pelo invisível e pelo desconhecido, a que a religião
olímpica, tanto na sua vertente «heróica» primitiva como na sua posterior metamor­
fose política, não pode dai' respostas tranquilizadoras nem conceder formas de
compreensão e de controlo, É neste terreno — o teneno difícil do destino individual
e da angiistia gerada pela sua precariedade — que se encontram os limites de uma
religiosidade tolalmeníe ligada à projecção de uma dimensão pública, social, comu­
nitária.. Por isso, será complementada com formas diferentes de relação com o
sagrado, que constituem uma vertente subterrânea, mas em certos aspectos não
menos importante, da religiosidade do homem grego.

Os mistérios e as seitas

Para os Gregos, o deus dos infernos, Hades, é uma divindade sem templo nem
culto. A sua remoção do mundo da visibilidade olímpica, a par do tenor gerado pelo
mundo do invisível, do indizível, do contaminante, provoca a necessidade de uma
experiência religiosa diferente, longe dos espaços e das formas de culto público e
diurno. É dessa neceásidade que nascem os mistérios (o termo mysièria deriva de
myr/eí, iniciado, e exprime o secretismo que envolve esses cultos, a obrigação que
têm os seus participantes, os iniciados, de manter silêncio acerca do que é feito e
visto durante os rituais). Contudo, será de esclarecer desde já um equívoco que pode
facilmente associar-se ao carácter iniciático e secreto dos cultos mistéricos De
facto, não estão reservados a uma minoria exclusiva e sectária: qualquer cidadão
pode ser iniciado e, na realidade, costuma sê-lo; por outro lado, são admitidos
indivíduos normalmente excluídos dos cultos olímpicos da polh, como os estran­
geiros e os escravos, e naíuralmeníe também as mulheres.
Portanto, os cultos misteriosos não são mais restritos do que os cívicos; em
princípio e também de facto, são até mais abertos, já que a esfera dos iniciados
potenciais e efectivos supera de longe os limites da cidadania , Isso significa que se
dirigem mais ao homem enquanto tal do que ao palitei, e que penetram portanto
num domínio de experiência mais profundo, mais radical e mais difuso, do que o
que respeita à auto-representação e à garantia do corpo cívico da polis.
A necessidade de um complexo processo de iniciação e o segredo que envolve
os rituais misteriosos não implicam portanto uma selecção entre os possíveis parti­
cipantes, antes remetem para o carácter profundo, inexprimível, terrífico da dimen­
são de experiência em que decorrem É possível que a raiz mais remota da religiosi­
dade misteriosa resida nos festivais pré-históricos de exorcismo da morte, nas

244
inefáveis experiências de perda da corporeidade e de imortalidade que deviam
ocorrer nessas ocasiões e que são devidas ao uso de drogas alucinogéneas. No que
se refere aos Gregos, possuímos informações escassas (porque o segredo iniciático
foi, em geral, surpreendentemente mantido) acerca dos mistérios de Elêusis, cele­
brados no âmbito da polis ateniense (mas existiam outros importantes cultos misté­
ricos, como os de Samotrácia) O ponto fulcral das celebrações eleusinas era a
alternância entre Demêter e Perséfone: uma clara referência, portanto, à alternância
da morte e da ressurreição própria do ciclo vegetal; mas íambém, e para além disso,
à dimensão da geração sexual, e da esperança de uma salvação e de um resgate da
morte que é o fim último de toda a experiência individual,
«As coisas vistas, ditas e feitas» nos mistérios — segundo a expressão canônica
que define o seu ritual — culminarão portanto numa visão, ou numa série de visões,
capazes de evocar, directa ou simbolicamente, o sexo, a morte, a ressurreição, e de
provocar assim uma sensação de terror primordial nos assistentes (o ponto culmi­
nante do ritual ocorre de noite, numa caverna iluminada por archotes) e, era seguida,
de eliminar, através da epifanía tranquilizante da salvação e do novo nascimento,
essa mesma sensação, de «purificar» os seus espectadores-actores,
Embora profunda e radical, embora dirigida ao homem enquanto tal e não ao
cidadão, a experiência dos cultos misteriosos complementa, mas não nega nem
exclui, a da religião olímpica A polis ateniense tutela, protege e administra os
mistérios de Elêusis, que não geram um tipo de homem ou uma forma de vida
estranhos aos da comunidade política, já que o iniciado não vive nem deseja uma
existência diferente da dos seus concidadãos (aliás, por norma, também iniciados).
Os mistérios atingem portanto uma esfera de experiência e de problemas psicológi­
cos e religiosos a que os cultos públicos da polis não dão voz nem respostas e,
precisamente por isso, funcionam como um complemento, tão necessário quão
haimoniosamente integrável, não provocando nenhum conflito, privado ou público,
entre o cidadão e o iniciado
O caso das seitas sapienciais-reiigiosas, expressão da vertente mística ou, me­
lhor dizendo, «puritana» da religiosidade dos Gregos, é totalmente diferente
O movimento órfico — do nome de Orfeu, um cantor, poeta e teólogo lendário
a quem se atribuía uma descida aos infernos — surge na Grécia do século v a C
nos mesmos meios culturais e sociais onde se tinham desenvolvido os cultos
dionisíacos e que tinham provavelmente recolhido os ecos da tradição xamânica
oriunda do mundo cííico e também das crenças indo-iranianas acerca da imortali­
dade, Do ponto de vista social, esses movimentos religiosos de protesto parecem
estar associados às áreas de exclusão e de mal-estar provocadas pela fonnação do
universo politizado das cidades: mulheres, estrangeiros, comunidades periféricas,
figuras de intelectuais marginalizados, Do ponto de vista psicológico, os movi­
mentos sectários respondem às necessidades provenientes dos estratos mais indivi­
duais e profundos da experiência religiosa, que também existiam na ritualidade
misteriosa, dando-lhes todavia respostas mais explícitas, mais articuladas tanto no
plano religioso como no plano intelectual, surgindo por fim não como uma com-
plemeníarização mas como uma alternativa radical à forma da religiosidade olím­
pica e citadina.

245
Essa alternativa surge em primeiro lugar como proposta de uma forma de vida
oposta à do cidadão. Articula-se numa série complexa de obrigações e proibições,
em especial a de comer carne, cujo sentido religioso veremos mais adiante; todavia,
mais importante ainda do que o conteúdo material dessas obrigações e proibições é
a sua capacidade de estabelecer uma regra minuciosa e de provocar depois entre os
iniciados um fervoroso zelo de observância e de disciplina. A regra e a disciplina é
que garantem a pureza dos membros da seita e confirmam a sua diferença em
relação aos outros, aos profanos, com o seu mundo impuro e contaminado. Por
conseguinte, a forma de vida escrupulosamente construída e observada pelas seitas
constitui o princípio de exclusão que separa os poucos que optaram pela via da
purificação e da salvação da irredutível multidão dos ímpios, o mundo da cidade
triunfante que julga poder segregar os fracos e os marginais e que acaba por ser,
graças à opção sectária, renegado e excluído.
Contudo, em que é que se baseia a recusa da cidade e da sua religião por parte
dessas minorias sectárias, ligadas a grupos sociais e a experiências culturais estra­
nhas à polis'? O que se recusa em primeiro lugar é o carácter violento, o aspecto
cruel e homicida que se considera como elemento essencial da poliúzação da vida,
A tÿdade surge sobretudo ligada à exclusão e à opressão de grupos sociais inteiros, à
guerra entre diferentes comunidades, à stasis e ao pòlenws, ao assassínio (phonos)
que lhe está inevitavelmente associado. Em suma, a cidade está indissoluvelmente
ligada à memória da violência heróica da Ilíada, que a marca mesmo na sua prática
religiosa. De facto, no centro dessa prática, está o sacrifício cruel, a morte do
animal, o deixamamento do seu sangue; e nessas formas de religiosidade puritana,
destinada, como veremos, a assumir também formas de teoria, há a consciência
difusa de que a possibilidade latente em cada sacrifício é o homicídio, de que a
violência, uma vez desencadeada, não pode ser sujeita a regras e contida na sua
simbolização sacrificial.
A vida social está portanto contaminada por uma culpa de sangue, que prolonga
e perpetua outra culpa dupla, mais antiga, que marca a própria existência da
humanidade, por um lado, e a de cada indivíduo, por outro.
Há de facto um assassínio originário: segundo um mito órfico, os Titãs teriam
atraído a uma cilada, assassinado, cozido e devorado o deus-criança Dioniso. Das
cinzas dos Titãs, atingidos peio raio de Zeus como castigo por essa íeofagia
primordial, teriam nascido os primeiros homens, manchados portanto desde o início
por essa atroz contaminação. Mas a culpa originária muUiplica-se em cada existên­
cia individual: segundo Empédocles, um sábio do inicio do século v ligado tanto à
religiosidade órfica como à filosofia pitagórica, cada vida está ligada à presença,
num corpo mortal, de uma alma-demónio imortal, de origem divina mas expulsa da
sua morada celeste devido a um assassínio ou a um perjúrio (B 115 Diels-Kranz), e
obrigada depois a expiar a sua culpa vivendo uma vida tenena. Portanto, a vida dos
homens sofre o peso dessa tripla culpa, que caracteriza a própria existência da
humanidade, da sua sociedade política e de cada indivíduo; o castigo da culpa é a
violência que contamina cada acío da vida, a dor, a opressão e a angústia que a
acompanham, a espera funesta da morte. Mas há uma via para a salvação, para uma
felicidade imortal capaz de resgatar os próprios limites da condição humana. Essa

246
via consiste numa dupla estratégia: em primeiro lugar, deve opor-se à corporeidade
contaminada e mortal o elemento divino e imortal que existe em nós, a alma (a
concepção forte da alma nasce, na cultura grega, precisamente neste contexto
religioso e sapiencial), Por conseguinte, é preciso libertar a alma, libertá-la dos
laços da corporeidade. Ao mesmo tempo, é preciso purificar a alma da culpa que a
fez descer da sua condição de demónio divino e penetrar num corpo; o laço com a
corporeidade é usado como um instrumento necessário para expiar a culpa cujo
castigo simboliza Para se atingir qualquer um dos objectivos — purificação da
corporeidade e purificação da alma — a vida terá de ser vista como um exercício de
sacrifício, de renúncia, de ascese: é o que visam todas as regras que definem o modo
de vida sectário, A renúncia principal e fundamental, do ponto de vista simbólico, é
a de comer carne, e, ao mesmo tempo, do sacrifício que lhe está indissoluvelmente
associado na religião da cidade: essa dupla renúncia simboliza a recusa da violência,
do assassínio, do derramamento de sangue que contaminam a existência humana
Existe depois toda uma série de regras de abstinência, a começar pelo controlo da
sexualidade, que exprimem a recusa de misturar a alma e o corpo No diálogo
platónico em que mais ressoa a tradição órfica e pitagórica, o Fêdon, a vida
caracteriza-se nitidamente como exercício de preparação para a morte:

«Portanto, a purificação [tór/ian/y] não é, como dizem os antigos, mais do que a


preparação para manter a alma separada do corpo, e habituá-ia a recolher-se e a fechar~se
em si mesma, fora de todo o elemento físico, e aí ficar, tanto quanto possível, na vida
presente como na futura, solitária em si mesma, empenhada na sua libertação em relação
ao corpo como se fosse um vínculo [.,..], E não é a isso, a essa libertação e separação da
alma era relação ao corpo que se chama morte?» (67c-d )

Por conseguinte, para o orfismo, a salvação individual é essencialmente a salva­


ção da alma, salvação merecida pela prática de uma purificação que não se reduz a
um gesto ritual, antes caracteriza toda a existência: o deus por excelência do orfismo
é Apoio kaíhartès, o «purificador».. Liberta do corpo, a alma purificada pode
regressai' à beatitude da sua originária condição divina; os adeptos da seita costuma­
vam levar para o túmulo tabuinhas de ouro ou de chifre (como as que foram
encontradas em Locros, na Magna Grécia, e em Olbia, no mar Negro), que confir­
mavam a sua purificação e invocavam os deuses do Além para que a alma do
defunto fosse recebida junto deles
Os Órficos basearam essa concepção da alma e da sua salvação numa teogonia
que se opõe à de Hesíodo tal como a sua recusa do sacrifício cruel se opunha às
práticas religiosas da polis, teogonia que conhecemos apenas fragmentariamente
(entre outros, graças a um papiro recentemente encontrado êm Derveni). Se Hesío­
do descrevia a organização do mundo divino como uma passagem do caos dos
inícios para a ordem concretizada no reinado de Zeus (onde se podia reconhecer a
sociedade dos heróis e depois a sociedade política), para os Órficos há, pelo
contrário, a passagem de uma ordem inicial, simbolizada pela unidade do Princípio
primordial — a plenitude do Ovo cosmogónico, a indistinção da Noite — para a
desordem da multiplicidade e da diferenciação, com o conflito e a violência que

247
comportam.. Há porém uma nova ordem, que se exprime pelo advento de Dioniso,
pela sua «paixão» — no acto leofagico dos Titãs — e peia sua recomposição final;
no homem, o equivalente do que aconteceu com Dioniso exprime-se pela contami­
nação originária, a purificação e a salvação da alma
No horizonte religioso do orfismo, Dioniso desempenha pois um papel tão
importante como Apoio, ou mesmo mais importante.. A relação existente entre o
puritanisme ascético e vegetariano do orfismo e a orgia libertadora dos rituais
báquicos próprios do dionisismo constitui um sério problema interpretativo Há sem
dúvida a referência comum a estratos sociais marginais e a formas de cultura e de
religiosidade de protesto, alternativas às formas de cultura e de religiosidade «ofi­
ciais» da sociedade da polis. Todavia, para além disso, o orfismo viu provavelmente
em Dioniso o deus da inocência originária e perdida, da pacificação entre os homens
e entre os homens e a natureza, que as violentas sociedades da guerra e da política
tinham posto em crise. É certo que a inocência do dionisismo comporta uma
purificação da condição histórica dos homens que tende para um retomo à inocência
natural da animalidade, enquanto a dos órfícos visa sobretudo a recuperação de uma
condição divina por parte da alma; porém, as duas vertentes puderam decerto ser
interpretadas como expressões de uma recusa comum, de uma comum aspiração a
uma ordem e a uma paz que a religião da política não podia assegurar.
Contudo, a referência a Apoio — deus da sapiência e também da pureza —
domina, incontestada, na tradição filosófica que, desde os Pitagóricos até Platão,
retoma e elabora teoricamente a mensagem religiosa do orfismo.
Entre o século vi e o século v, os Pitagóricos desenvolvem a concepção órftea da
salvação numa elaborada doutrina do ciclo das reencamações da alma.. Demônio
imortal, a alma sofre uma série de encarnações em vários corpos mortais, de
condição superior ou inferior segundo o nível de purificação atingido na vida
anterior. No fim, a alma poderá afastar-se definitivameníe do ciclo dos nascimentos
para regressar ao divino de que provém (segundo uma versão da doutrina), ou
poderá reencarnar' nas formas de vida mais elevadas concedidas ao homem, as do rei
justo e sobretudo do sábio, que passará — como acontece definitivamente na
reelaboração platônica desta tradição — a ser o filósofo Aliás, nos Pitagóricos, a
purificação ascética exigida pela «vida» órfíca já apresenta um aspecto novo: às
abstenções e às renúncias rituais alia-se a forma mais elevada da purificação
«apolínea», que implica a dedicação à sapiência teórica, ao estudo dos mais puros
objectos de conhecimento Por um lado, a matemática, a geometria, a harmonia, a
astronomia, a cosmologia e a filosofia — em suma, o domínio da teoria pura —
completam e, em certo sentido, relegam para segundo plano os aspectos propria­
mente rituais e religiosos das práticas de purificação da alma; por outro lado,
adquirem um valor religioso, uma consagração apolínea, que converterão a forma
de vida do sábio e do filósofo na mais elevada e mais grata aos deuses. Esta tradição
chegará mesmo a atingir um pensador «leigo» como Aristóteles, que nas últimas
páginas da sua Ética a Nicómaco (iO, 7-9) elaborará um verdadeiro hino à perfei­
ção, à béatitude, à proximidade com o divino que são apanágio da vida filosófica
No decurso deste caminho, a relação entre o comportamento dos sábios, dos
filósofos, dos intelectuais e as crenças religiosas nem sempre será, porém, de

248
integrações e de transferências progressivas, como acontece com a conrente minori­
tária e sectária que vai do orfismo ao pitagorismo e a Platão Essa relação iria
conhecer momentos de conflito e de crise.

A crítica à religião e a partilha das crenças

Para os Gregos, a experiência religiosa sÍtuou-se sempre em dois planos diferen­


tes mas estreitamente ligados.. Por um lado, a rituaiidade quotidiana; por outro,
como seu nível de sentido e de inteligibilidade, o conjunto dos relatos míticos, mais
ou menos directameníe ligados a necessidades profundas de garantia da ordem do
mundo, de sentido e valor da experiência social e individual. Portanto, a observân­
cia do ritual exige em certa medida a crença no universo do mito; e essa crença
acaba por ser possível — num panorama intelectual que se vai tomando cada vez
mais complexo, mais cheio de problemas, de instrumentos e de desafios — só
através de uma transferência para um espaço e um tempo diferentes do espaço e do
tempo históricos e sociais. Isto é, exige a inscrição num registo autónomo de
verdade, não comunicante e não vinculado aos registos referentes à dimensão
histórica, política e intelectualmente dominável da vida. Num certo sentido, na
Poética, Aristóteles podia ainda considerar os factos do mito como eventos {genò-
mena) realmente ocorridos (1451b 15 segs.), mas apenas na medida em que perten­
cem a uma dimensão espácio-temporal não homogénea e allieia àquela em que se
desenrola a experiência histórica e sobre a qual os seus intiumentos intelectuais
podem agir.
A crise da crença mítica, o seu conflito com a racionalidade político-filosófica
que reina sobre a vida social dos homens, verificam~se, pelo contrário, quando essa
racionalidade tende a invadir o espaço da crença, ou quando a própria crença se
coloca numa dimensão espácio-temporal não distanciada da dimensão histórica.
O primeiro desses choques ocorre quando a forma de racionalidade sapiencial e
depois filosófica, devido à sua crescente capacidade de abstracção, tende a invadir o
espaço «outro», não quotidiano, do mito Nesse confronto desigual, a imagem
religiosa antropomórfica do mito revela de imediato a sua inadequação intelectual, a
sua natureza poética e ingenuamente projectiva. Já Xenófànes, no século Ví, assina­
lava impiedosamente esse aspecto: «Os mortais julgam que os deuses são gerados e
têm um modo próprio de vestir, uma voz e um aspecto» (B 14 Diels-Kranz); «aliás,
se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos, ou fossem capazes de pintar e de
executar com as suas próprias mãos obras de arte como os homens, os cavalos
pintariam imagens de deuses e moldariam estátuas semelhantes a cavalos, e os bois
pintá-las-iam e moldá-las-iam semelhantes a bois» (B 15 Diels-Kranz); «os Etíopes
afirmam que os seus deuses são atarracados e negros, os Trácios afirmam que têm
olhos azuis e cabelos ruivos» (B 16 Diels-ííranz)
Esta critica devastadora ao antropomorfismo mítico deixa o campo livre e
disponível para a abstracção filosófica. Será aí que Parménides, logo a seguir
a Xenófànes, instalará o seu ser uno, imóvel, necessário (o oposto da variegada e
múltipla nanatividade própria do mundo mítico); depois dele, esse nível «outro»

249
e superior do mundo irá sendo ocupado por outras configurações teóricas, até à
teologia de Aristóteles, que, na Metafísica, consentirá em lançar um olhar retrospec­
tivo sobre os seus precursores,. «Os homens originários e antiquíssimos viram estas
coisas sob a forma do mito, e dessa forma as transmitiram aos que se lhes seguiram,
dizendo que os corpos celestes são divindades, e que a divindade cerca toda a
natureza,» Até aqui, Aristóteles é compreensivo e indulgente. Todavia, logo a
seguir acrescenta: «O resto [isto é, os nomes e os relatos dos deuses] foi acrescenta­
do depois, também miticamente, para convencer a maioria e para impor a obediên­
cia à lei e por interesses. De facto, dizem que esses seres divinos são semelhantes
aos homens ou a outros animais, e acrescentam outras coisas, que derivam dessas ou
que são muito semelhantes a elas » (12, 8,.) Portanto, Aristóteles separa nitidamente
um núcleo de verdade, um «resto» da sapiência antiga — a fé na divindade dos
astros — da configuração mitico-poética, daquele antropomorfismo narrativo em
redor do qual se articulara a religião dos gregos, Uma vez que invadiu o seu espaço,
o pensamento filosófico só pode dar uma explicação instrumental de toda essa
bagagem mítica tradicional A primeira explicação é de tipo político: os deuses da
crença comum foram inventados — na sua versão moralizada, de garantes da
Justiça — para incutir o respeito pela lei e pelos valores sociais nas mentes dos
simples, que os transgrediriam se não receassem o castigo divino. Neste sentido,
Aristóteles já fora precedido, em finais do século v, pelo sofista oligárquico Crítias,
que escreveu: «Creio que um homem astuto e sábio inventou para os homens o
medo dos deuses, para que os maus receassem também pelo que às escondidas
faziam ou diziam ou pensavam J Assim, penso que houve alguém que conven­
ceu os homens de que os deuses existem» (B 25 Diels-Kranz) E, depois de Crítias e
Aristóteles, uma longa tradição filosófica, desde Epicuro a Lucrêcío, esforçar-se-ia
por convencer os homens de que o receio dos castigos divinos era um absurdo,
A segunda explicação instrumental do mito reside na sua explicação alegórica,
que também se orgulha de uma longa tradição, desde os sábios pré-socráticos até
aos filósofos estóicos e neoplatónicos Segundo essa tradição, o mito exprimiria de
uma forma poética, para uso das mentes simples e para adorno, um núcleo de
verdades filosóficas ocultas: assim, o carro de Apoio simbolizaria o movimento do
Sol, a justiça de Zeus simbolizaria a existência de uma razão providenciai que
estabelece a legalidade da natureza, as gerações dos deuses simbolizariam a ordem
de constituição do cosmos, e assim por diante,
Se 0 primeiro conflito entre crenças mítico-religiosas e racionalidade filosófico-
-poiítica ocorre quando essa racionalidade, devido ao seu poder de abstracção,
invade o espaço remoto das crenças, o segundo ocorre quando essas crenças, pela
sua capacidade de condicionar, através da educação, a vida histórica dos homens,
invadem o espaço ético-político. Como vimos, Platão receava os efeitos deseducati-
vos da poesia «teológica» de Homero e dos seus seguidores, e propunha ao legisla­
dor da nova cidade que corrigisse de um modo edificante os textos antigos e banisse
para sempre da polis os poetas. Segundo Platão, enquanto se pensar que «Homero
educou a Hélade e que merece ser aprendido para se poder governar e educar o
mundo dos homens, e a vida de cada um for organizada e vivida segundo as regras
desse poeta», não haverá nem uma boa forma de vida nem uma cidade justa; porque,

250
acrescenta ele, «se admitires a sedutora Musa iirica ou épica, no teu Estado reinarão
o prazer e a dor, em vez da lei e desse princípio que, de comum acordo, sempre se
considerou como o melhor, a razão», isto é, a razão filosófica (República, 10,
606a s g )
A nova cidade não só deve banir a má religião mitológica dos poetas, pelos
efeitos perversos que tem na educação dos cidadãos, como também deve basear as
suas próprias instituições e a sua educação numa nova teologia, que corresponda
aos ditames da razão filosófica: tratar-se-á, segundo as Leis platónicas, de uma
teologia baseada na crença na divindade dos astros, e na existência de uma provi­
dência divina que garante a ordem do cosmos e é, por isso, normativa em relação à
existência humana Essa nova teologia filosófica, bastante mats pobre de conteúdos
narrativos e imaginários do que a «poética», mas muito mais exigente em termos de
obrigações normativas e educativas e muito mais rica de asserções dogmáticas,
sentir-se-á tentada a dotar-se de um aparelho de controlo e de coacção, entre o
Estado e a Igreja, capaz de impor a ortodoxia e de punir as transgressões. Assim,
Platão pensará dotar a teologia formulada no livro décimo das Leis de um órgão de
controlo, o Conselho nocturno, capaz de punir com a morte o crime de impiedade
(Leis, 10, 12); e, no século m a, C,, o estoico Cleantes ainda proporá que se julgue
por impiedade perante um tribunal pan-helénico o astrónomo Aristarco, que tinha
posto em dúvida a centralidade da terra (e, consequentemente, dos homens e dos
seus deuses) no sistema dos astros e dos planetas.
Peránte os diferentes impulsos desagregadores — sectários e filosóficos — a
polis reage, em defesa da religião e do panteão que a instituem e a alicerçam, de
modos diferenciados. Como se viu, em relação ao dionisismo adopíam-se formas de
integração no âmbito da religião cívica, que permitem ao mesmo tempo um controlo
dn seu potencial subversivo e uma profícua utilização da sua relação com uma
dimensão «outra» do sagrado (ao contrário de Roma, a polis grega nunca chegará a
proibir os ritos báquicos, proibição aliás posta em cena por Eurípides, nas Bacantes,
por ordem do rei Penteu, cruelmente punido pelo deus devido à sua impiedade). Os
Orficos foram repelidos e mantidos numa situação marginal e desacreditada de
magos purificadores e de místicos com alguns laivos de charlatanismo, que iam de
cidade em cidade, de casa em casa, oferecendo os seus livros e os seus ritos
estranhos, e instalados em comunidades extremamente periféricas em relação ao
universo da polis O caso dos Pitagórícos é diferente: dado terem tentado converter,
na Magna Grécia, a sua anomalia religiosa num regime político que tinha por
objectivo o puritanismo da seita, foram escorraçados — como aconteceu em Cro-
tona, provavelmente em meados do século v a, C.. — por um pogrom sangrento; em
seguida, a díáspora pitagórica na Grécia atingiu um nível idêntico ao da marginali-
zação do orfismo, embora iniclectuaimente fosse muito mais influente,
A atitude da polis e da sua religião para com o desafio filosófico apresenta
caiacteristicas complexas, de difícil interpretação. Desprovida de uma ortodoxia
teológica própria, é norma da polis ignorar as provocações e as transgressões
filosóficas, aliás restritas a uma escassa minoria de intelectuais sem efectíva inci­
dência política. Todavia, na época clássica, essa atitude conhece duas excepções
aparatosas: os processos por impiedade intentados em Atenas contra Anaxágoras,

251
por voUa de 440 a. C., e contra Sócrates, em 399 a. C Aquele era acusado de ter
negado a divindade dos astros e em especial do Sol, figura apolínea por excelência,
considerando-os como aglomerados de matéria incandescente, e foi punido com o
exílio Sócrates, como se sabe, foi acusado de desencaminhar a juventude ateniense,
negando, entre outras coisas, as divindades da polis e importando novos deuses, de
natureza talvez óríica (o «demónio») e cosmológica (as «nuvens» de que falava
Aristófanes na sua sátira) Por estes crimes, Sócrates foi condenado à pena de morte,
que ele recusou converter em exílio, como teria sido seu direito.
Coníraríameníe ao que poderiam Jevar~nos a pensar, estes dois processos — que
levaram, porém, os filósofos a adoptar uma atitude de prudência em relação à polis,
de ta! forma que Platão, como discípulo de Sócrates, preferiu exilar-se temporaria­
mente, e Aristóteles chegou a recear que se repelisse com ele o processo de Sócra­
tes — não significam que na cidade existisse umá intolerância religiosa que levasse
à perseguição das heresias. Tanto o processo de Anaxágoras como o de Sócrates são
sobretudo considerados como episódios da luta política em curso na cidade: em
Anaxágoras queria atingir-se o meio político-intelectual próximo de Péricles, e
Sócrates era um membro eminente do grupo oligárquico chefiado por Crítias que,
cong o golpe de Estado de 404, tinha posto cm perigo a democracia ateniense
Todavia, mantém-se o facto de, em ambos os casos, um júri popular, que represen­
tava a polis inteira, ter sido levado a formular um voto de condenação de natureza
política com base em motivações religiosas. Isso significa, em suma, que a obser­
vância da religião olímpica e da sua ritualidade era sentida como associada à própria
existência da polis e da sua ordem política; «acreditar nos deuses» significava em
primeiro lugar não tanto um acto espiritual de fé ou um respeito teológico, mas uma
sensação imediata de se pertencer à comunidade política, e acabava por equivaler a
ser-se um bom cidadão ateniense, ou espartano e assim por diante
Precisamente por isso, a polis reservou~se sempre o direito de legislar sobre o
culto dos deuses e sobre a composição do seu panteão: a admissão de novos deuses,
como aconteceu com a entrada de Asclépio em Atenas, em 420 a. C., e maciçamente
na época helenística com o reconhecimento de divindades de origem oriental ou
ligadas ao culto dos novos monarcas, só não violava a ordem e a estabilidade da
cidade se fosse comunitariamente e pubÜcamente sancionada.. Igualmente regula­
mentados pela polis e colocados sob a sua tutela estavam os momentos de religiosi­
dade transcitadina e pan-lielénica, como as leis religiosas (anfictionias), os Jogos
Olímpicos, a aceitação da autoridade dos sacerdotes de Delfos sobre toda uma série
de acontecimentos públicos. Esses momentos de religiosidade pan-helénica, em­
bora fossem sempre regulados pela polis, faziam com que a aceitação da religião
olímpica, do seu panteão e dos seus ritos, significasse não só que se era cidadão de
uma polis, mas também que se era Grego, isto é, no fundo, que se era homem no
sentido pleno do termo. Compreende-se assim que a recusa dessa comunidade
religiosa podia comportar, para a consciência comum, uma auto-exclusão do corpo
cívico, da civilização helénica, do próprio consórcio humano que com ela se
identificava, à parte das degenerações bárbaras. Porém, como essa aceitação era
pública e se limitava à esfera pública, não comportando nem uma fé consciente nem
uma ortodoxia teológica, era possível separar os níveis de crença, o que foi ocor­

252
rendo progressivamente Assim, na religião olímpica, «crer» continuaria a exprimir
a observância dos ritos comuns e a participação no saber narrativo dos mitos que
eram o indício de que se pertencia a uma comunidade, a uma cultura, a uma
civilização, a par do uso da língua grega, do conhecimento de Homero, dos costu­
mes constituídos da vida social. A um outro nível, essa crença poderia muito bem
coexistir, como foi acontecendo cada vez mais amplameníe a partir do sé­
culo rv a., C.,, com o monoteísmo e o imanentismo próprio da religião filosófica que
pouco a pouco fora penetrando nas camadas cultas da sociedade (que tende cada vez
mais a identificar os deuses com o primeiro deus, e este, como acontece com os
Estóicos, com o princípio racional de ordem e de sentido imanente à natureza do
mundo), ou até com o cepticismo religioso muito presente entre os intelectuais.
Por conseguinte, na consciência dos gregos, o tolerante politeísmo dos mitos e
dos ritos, ressalvadas as exigências políticas e sociais a que estava indissoluvel­
mente ligado, conviveu largamente com as mais ousadas experimentações intelec­
tuais no campo teológico, ético e científico. Pelo menos até à aparição de novas
formas religiosas, dotadas de uma forte carga de ortodoxia teológica e de uma
instituição eclesial com poderes coercivos, que atacaram directamente tanto esse
politeísmo como essas experimentações. Todavia, com tudo isto, estamos já muito
além da experiência religiosa dos Gregos, ainda que os novos monoteísmos, desde o
judaico e cristão até ao islâmico, se tivessem, em medidas diferentes, reclamado das
suas elaborações teológicas e da sua concepção redentora da alma.

25,3
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CAPITULO I

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N:lo é este o local adequado para fomecer uma ampla bibliografia No entanto, poder-sc-á facilmente
constituir uma a panír de um certo número de estudos gerais
Entre os manuais de inspiração factual e positivista, surgidos sobretudo na Alemanha, no século XIX e
no início do século XX, os mais utilizáveis são os de H Delbrück. Geschichte der Kriegskimt im
Rahmen der poliüschcn Geschichte, I. 1900 (nova edição organizada por K Christ, 1964) e de
J Kromayer c G Veith, Hecr,vesen und Kriegführung der Griechen und Römer, in W Otto,
Handbuch der Aitermmswissenschaft. IV, 3~. 1928; veja-sc também P Couissin. Les Institutions
militaires el navales des anciens Grecs. !932
Aigumas sínteses recentes propõem uma interpretação mais «sociolôgica» da guerra: F E. Adcock,
The Greek and Macedonian Art of War. 1957; J-P Vernant (direcção de), Problèmes de la
guerre en Grèce ancienne. 1968; Y Garlan, La guerre dans l'Antiquité. 1972; P. Ducrey, Guerre
et guerriers dans la Grèce antique, 1958, corn abundantes ilustrações AcrcsccnSe-se ainda
R lonis, «La guerre en Grèce Quinze années de recherche: 1968-1983», in Revue des études
grecques, 98, 1985, 321-79
Numerosas obras mais especializadas são mais ou menos marcadas por essa nova orientação: AA
VV, Années et fiscaliié dans le monde antique, 1977; J K Anderson, Military Theory and
Practice in the Age of Xenophon, 1970; A Aymard, Etudes d'histoire anciesme, 1967, pp 418-
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e C Orrieux); J F Lazenby, The Spanan Army, 1985; P Lerichc c H Trézîny (Direcção de),
La fonißcation dans Thistoire du monde grec. 1986; F. Lissarrague, L'autre guerrier Archers,
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Para uma melhor abordagem problemática, veja-se E Ciccotti, La guerra e la pace nel mondo
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Entre os artigos recentes, são de assinalar: W R. Connor, «Early Greek land warfare as syrnbolic
expression», in Past <£ Present. 110, 1988, pp 3-8; P Krentz, «The Nature of Hoplite Battle»,
Classical Antiquity, 4, 1985, pp. 50-61; F. Lissarrague, Autour du guerrier, in la cité des
images, 1984, pp 35-47; D Micuiclia, «Ruolo dei militari e consenso politico nella polis
arisiotcltca», in Studi classki e orientali. 34, 1984, pp 83-101.
Apraz-me muîto agradecer a P Ducrey, R Lonis e P Vîdal-Naquet por terem querido participar na
crítica do meu manuscrito

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Vegetti, M., L’eticadegli anticlu, Roma-Bari, 1989
Veyne, P , Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes?. Paris, 1983
Will, E , Ze mande grec et LOricni, vol 1, Paris, 1972

261
os AUTORES
PHILIPPE BORGEAUD (Î946) é professor de Hisíória das Rcíigiões Antigas na Universidade de
Genève Auíor de Recherches sur le dieu Pan (Institut suisse de Rome, 1979), editou a obra
colectiva La mémoire des religions, Genève, Labor et Fides, 1988, c Orphisme et Orphée en
l'honneur de Jean Rudhardt, Genève, Droz, 1991 Os seus trabalhos centram*se nas religiões
gregas e romanas e na metodologia da história das religiões. Está a terminar uma obra sobre a Mãe
dos deuses

GIUSEPPE CAMBÍANO (Turim, 1941) é professor de Filosofia na Universidade de Turim Publicou


Platane e le techiclie (Turim, 1971 ), Lafilosofia in Greda e a Roma (Roma*Bari, 1987^) e ll sapere
degii antkhi ( 1988),

LUCIANO CANFORA (Bari, 1942) é professor de Filologia Clássica na Universidade de Bari e


director da revista Quaderni dt síoría. Publicou La biblioteca scomparsa (Palermo, 1987) e
Totalità e selezione netla síoriograjia classica (1972), Teorie e 7ec/iico delia storíograjia classica
(1974), Le vie del classkismo (\9Í9) e Sioria della leiieratura green (1990’)

YVON GÁRLAN (1933) ensina na universidade de Haute-Bretagne (Rennes). Publicou GU shiavi


nella Grecia antica (Mîlüo, 1984); Guerra e società nel mando antico (Bolonha, 1985) c Guerre et
économie en Grèce rmefemte (1989).

CLAUDE MOSSÉ ensina História na Universidade de Paris Vni (Saint-Denis) Publicou reccníemente
La femme dans la Grèce antique (Paris, 1983), La Grèce archaïque, d'Homère à Eschyle (Paris,
1984) c Le procès de Socrate (Bruxelas, 1986)

OSWYN MURRAY (1937), Ws/ii/tg Fellow na British School de Roma de 1989 a 1990, publicou La
Grecia delle originl (Bolonha, 1983)

JAMES REDFIELD (Chicago, 1935) ensina no Department of Classical Languages and Literatures da
Universidade de Chicago Para além de numerosos anigos e ensaios, publicou Naíitrc and Culture
in the Iliad' The Tragedy of Hector (Chicago, 1975)

CHARLES SEGAL (Boston, 1936) é professor de Classics and Comparative Literature na Universida­
de de Princeton Publicou Dionysiac Poetics and Euripides'Bacchae (Princeton, 1982), Orpheus:
the Myths of the Poet (Baltimore, 1989)

MARIO VEGEini (Milão. 1937) ensina História da Filosofia Antiga na Universidade de Pavia.
Publicou II coltelh e lo stilo (Milão 1979), Tra Edipo e Euciide (Milão, 1983) e Vetica degli
antkhi (Roma, Bari 1989)

263
JEAN-PIERRE VERNANT (Provins. 1914) c professor honorário no CoîJège de France Entre as suas
obras, citamos; Mito e fragedia nelî'amca Grccia (com P Vidai-Naquet, Turim, 1977), Miio c
pensiero pressa i grcci (ibtd., 1978), Mita e società iiell'antica Grecia (ibid, 1981), Le asîuzie
deiritUetligenza neii'dniica Greda (com M. Détienne, !984^) c vários contributos nos volumes
dirigidos por C Calame L'amore in Grecia (1988^) e M Bcttinini La maschera. il doppio e il
risratto {1991)

264
INDICE

INTRODUÇÃO, por Jean-Pierre Vemaní ................... .. ......

I. O HOMEM E A ECONOMIA, por C/oHí/e A /O íse............................... 23

n . O HOMEM E A GUERRA, por Yvon Garlan ...................... 47


Guerra e paz ................................... ....................................................... 49
As causas da guerra......................... ................ 51
As motivações dos combatentes ................................................ - . 53
Função militar e estatuto social............. ......... . ..... ......................... 56
O modelo hoplita ....................................................................................... 58
Os deveres militares nos graus superiores e inferiores da escala social 61
À margem da cidade........ ................. ..................... .. .......... 63
O amadorismo militar.............................. ....................... .................. 66
O mercenarismo....... .................................................................. ................ 69
O militar e a política ..... ... .......................... .. .................. 7!

III TORNAR-SE HOMEM, por Giuseppe Cambiano................................. 75

IV O CIDADÃO, por Liidano Canfora ..... 103


Introdução. ..... .................................... 105
Os Gregos e os outros___ ______ . 106
O cidadão-guerreíro ................. 108
A «vaca» , . .................... ..... 112
A concepção pessoal do Estado...... ...... 115
Kinèin tous nomoiis ..... -.... .... ÎÎ7
Liberdadc/democracia, tirania/oligarquía 119
A teoria «cíclica» ................ .................... 121
APÊNDICE DE TEXTOS...................... 123

V . O RÚSTICO, por Philippe Borgeaud ...... . ...... . . .... .......................... 131

VI O HOMEM E A VIDA DOMÉSTICA, por James Redfteld .................................... 145


Fontes: a presença de uma ausÊncia ..................................................................... 147
A supressão da «esfera doméstica»............. .......... — ............. ....................... 148

265
A exclusão das muíheres . . ........ 155
A versão espartana ............. , . ....... 160
A posição contraditória das mulheres 164
Homens e mulheres........................... 166

VII.. O OUVINTE E O ESPECTADOR, por Charles Segai 173


Visão, monumento, memória....................................... 175
Os espectáculos da glória: rei., guerreiro, atleta........ . 177
Conhecimento auditivo e visual .. ............................... 181
A magia do prazer representação c emoção................. 183
O drama: origens e características.......................... ..... 186
A linguagem e a tragédia............................................. 190
Espectáculo e narração. ...... ... ................ ................ 192
Iragédia: espectáculo ciíadino.... ...... .......... 193
Tragédia e escrita.............................................. ........ 196

Vni O HOMEM E AS FORMAS DA SOCIABILIDADE, por Os^vyn Miirray 199


Formas sociais e comensalidade.... ..... 202
O homem da época heróica............................ ................................... ...... 203
O homem arcaico ..................................................... .............................. 206
O homem político........... . ........................................ ...... .............. . . 216
O homem helenístico ................... ....... .................................................... 223

IX O HOMEM E OS DEUSES, por Mario Vegeiti 229


Uma religião sem dogmas e sem igreja ........... 232
O sagrado............. ...... ...... .................. 234
Os deuses, os poetas e a cidade ........................ 237
Os mistérios e as seitas..................................... 244
A crítica à religião e a partilha das crenças........ 249

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÂHCAS 255


OS AUTORES................................... 253

266

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