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EUA

Morreu Henry Kissinger, controverso e influente ex-


chefe da diplomacia dos Estados Unidos
Ex-secretário de Estado norte-americano, elogiado pelo descongelamento do diálogo diplomático com Pequim e
Moscovo, e condenado pelo apoio a ditaduras e golpes militares, morreu aos 100 anos.

Pedro Guerreiro
30 de Novembro de 2023, 2:09

Henry Kissinger REUTERS/KIERAN DOHERTY

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Henry Kissinger, obreiro do estabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a China e do
descongelamento do diálogo com a União Soviética, mas também responsável pelo apoio tácito de Washington a
vários golpes de Estado, sobretudo na América Latina, morreu esta quarta-feira, aos 100 anos, na sua casa no estado
norte-americano do Connecticut, anunciou a sua empresa de consultoria geopolítica Kissinger Associates. Decano da
diplomacia norte-americana e controverso Prémio Nobel da Paz pelo seu papel no Vietname, manteve-se como um
dos mais influentes conselheiros de elites políticas e económicas internacionais.

Judeu alemão nascido a 27 de Maio de 1923 nos arredores de Nuremberga, Kissinger chegou aos Estados Unidos em
1938, aos 15 anos, em fuga ao nazismo. Mal sabia falar inglês e manteve um sotaque cerrado o resto da vida. No
entanto, Kissinger, aluno brilhante em Harvard e ex-combatente na II Guerra Mundial, acabou por moldar a política
externa dos Estados Unidos durante as presidências de Richard Nixon e de Gerald Ford, em plenaOferecer
Guerra Fria, e por
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construir um manto de influência sobre Washington e outras capitais nas décadas seguintes, como conselheiro de
chefes de Estado e como pensador da política internacional, sobretudo enquanto proponente da realpolitik
(https://www.publico.pt/2023/05/27/mundo/analise/henry-kissinger-diplomata-pensador-2051185) como força motriz
das relações internacionais.

Foi como conselheiro de segurança nacional de Nixon, de quem se tornaria secretário de Estado, que Kissinger
negociou em segredo com a China comunista, preparando o terreno para a histórica visita do Presidente norte-
americano a Pequim, em 1972, e para o estabelecimento de relações directas entre Washington e o regime maoísta. O
trunfo diplomático visou ao mesmo tempo isolar politicamente a União Soviética, o grande antagonista dos Estados
Unidos na Guerra Fria, aproveitando o fosso aberto pelo conflito sino-soviético de 1963. Fez o mesmo no Médio
Oriente em 1973, mediando pessoalmente contactos entre Israel e os países árabes após a Guerra do Yom Kippur e
esvaziando o capital político soviético na região. Mas Kissinger também desenhou e executou uma política de détente
com Moscovo, cultivando canais de diálogo directo e mecanismos diplomáticos que permitiram gerir a tensão entre as
duas superpotências e firmar tratados de controlo de armamento nuclear que reduziram o risco de um confronto
directo.

A realpolitik de Kissinger fez com que os Estados Unidos estabelecessem alianças controversas, entrassem em
conflitos e fechassem os olhos a abusos quando estavam em jogo os interesses estratégicos americanos. A defesa dos
direitos humanos e a promoção da democracia tornaram-se objectivos dispensáveis. “Somos um país, não uma
fundação”, dizia. Acordou com Nixon o bombardeamento secreto do Camboja para destruir a retaguarda das forças
comunistas do Vietname do Norte, sacrificando milhares de civis e colocando o país numa rota de conflito interno
que culminaria na ascensão do regime genocida de Pol Pot. Deu luz verde ou fez vista grossa em relação ao derrube
de líderes democraticamente eleitos no Chile e na Argentina, à invasão indonésia de Timor-Leste ou às atrocidades
paquistanesas no Bangladesh. Estas e outras acções e omissões fizeram de Kissinger um nome maldito em inúmeras
geografias.

Kissinger é um dos mais controversos vencedores do Nobel da Paz. Não só por esse seu legado, mas também porque a
atribuição do prémio em 1973, pelo seu papel nos Acordos de Paris, que visavam pôr termo à Guerra do Vietname, se
revelou prematura. A paz não tinha sido efectivamente alcançada — como avisara Le Duc Tho, com quem Kissinger
partilhara a distinção, e que recusou receber o prémio. Seguiu-se mais ano e meio de guerra e a derrota humilhante
do aliado do Sul. Mas Kissinger, o realista, tinha conseguido retirar os Estados Unidos de um conflito onde tinha
deixado de ser provável alcançar um desfecho que servisse os interesses americanos.

Kissinger beneficiou do escândalo do Watergate, que atou Nixon, com quem tinha uma relação ambígua, a uma
conturbada frente doméstica, deixando-lhe terreno aberto na frente externa para se tornar no mais poderoso e
autónomo secretário de Estado norte-americano do pós-guerra. Esse poder atenuou-se com a demissão de Nixon e a
sua transição para a Administração Ford, onde manteve a batuta da diplomacia mas acabou por perder o cargo de
conselheiro de segurança nacional. Com a vitória de Jimmy Carter em 1976, Kissinger abandonou a linha da frente da
política externa norte-americana. Ronald Reagan considerou-o demasiado brando com Moscovo para equacionar
chamá-lo de volta ao Departamento de Estado em 1980. Era tempo de cruzada ideológica, não de pragmatismo. Dois
anos depois, capitalizando a sua extensa rede de contactos global, fundou a Kissinger Associates para prestar serviços
de consultoria política junto do sector privado.

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Entre o lobbying, a academia, os livros (Diplomacy, On China e World Order foram best-sellers), as conferências e
alguns cargos em conselhos de administração, Kissinger fez fortuna nas suas últimas décadas de vida. Foi confrontado
algumas vezes em público por quem defendia que deveria ter sido julgado por crimes de guerra. Nessas ocasiões,
como numa conferência em Harvard, em 2012, Kissinger rejeitava responsabilidade directa e pedia que se olhasse
para a “big picture”, o panorama geral, de forma pragmática.

Nunca perdeu o estatuto de eminência parda em Washington, aconselhando George W. Bush nos anos da Guerra do
Iraque, visitando Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden na Casa Branca, e aparecendo em Julho em Pequim, onde
foi recebido pelo Presidente chinês, Xi Jinping.

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Henry Kissinger com Mário Soares ALFREDO CUNHA

Kissinger dizia que “o poder é o derradeiro afrodisíaco”. Sem dever à fotogenia ou à estatura, coleccionou vários
relacionamentos íntimos que alimentaram as colunas do social. Casou pela primeira vez, em 1949, com Ann Fleischer,
que também tinha fugido de Nuremberga, e com quem teve dois filhos. Divorciou-se em 1964 e voltou a casar dez
anos depois com Nancy Kissinger, sua companheira até ao final da vida.

A sua outra paixão era o futebol. Durante anos, pediu à embaixada em Berlim que lhe enviasse os resultados da
equipa onde jogou na adolescência, o Fürth. E, segundo Pelé
(https://www.esquire.com/sports/interviews/a44741/pele-interview/), foi Kissinger a convencer o astro brasileiro a
jogar na liga americana nos anos 70.

O ex-secretário de Estado norte-americano celebrou o centésimo aniversário em Maio e manteve-se activo até aos seus
últimos dias. Encontrara-se em Setembro com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky (defendera que Kiev
deveria negociar e aceitar a anexação russa da Crimeia, embora também apoiasse a intensificação do auxílio
americano à Ucrânia), e continuava a comentar assuntos internacionais. Kissinger morreu esta quarta-feira em casa,
rodeado dos dois filhos e da actual mulher. A causa do óbito não é conhecida.
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