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BENEDICTA

O APOSTOLADO EM SEU LAR

VOLUME 02 • NÚMERO 10 • OUTUBRO 2021


EDITORA DA IRMANDADE DO CARMO

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Revisão:
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Diagramação:
Camila Severino

Base ilustrativa da capa:


Lembrança da Piedosa Romaria à Basílica de Nossa Senhora Aparecida, de artista desconhecido (1951)

________________________________________
FICHA CATALOGRÁFICA

Benedicta, Revista
V.2, N.10, out. 2021. Uberlândia. 25p.
________________________________________

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução sem permissão expressa do Editor-chefe.
Todos os trabalhos com autoria discriminada são de responsabilidade dos autores, não cabendo qualquer responsabi-
lidade legal sobre seu conteúdo à Revista Benedicta.
Eventuais referências bíblicas são da Bíblia da Editora Ave Maria (2021) ou da tradução do Pe. Matos Soares (1950).
ÍNDICE

FIDES QUAERENS INTELLECTUM

São José: terror dos demônios, 3 Neste último artigo sobre a ladainha de S. José, abordamos as razões pelas quais
Protetor da Santa Igreja o Patriarca, junto de Nossa Senhora, causa temor ao demônio e intercede pela
proteção da Igreja, de cuja Cabeça foi pai adotivo.

A gnose romântica 6 O romantismo não foi um inócuo movimento sentimentalista. Foi, sobretudo, a
contra a realidade sementeira das principais sandices revolucionárias do mundo contemporâneo —
elo importante de uma cadeia anticristã que já procedia dos séculos precedentes.

Liberalismo: inimigo de Deus 9 O liberalismo, ao pregar a independência do homem em relação a Deus e a Igreja,
e da Igreja propaga os mais terríveis erros em todos os campos do conhecimento e da ativi-
dade humana.

CATHOLICAE LITTERAE

Sermão da Sexagésima, 13 Pe. Antônio Vieira (1608-1697), exímio orador de língua portuguesa, trata neste
de Pe. Antônio Vieira sermão do ofício do pregador, relacionando-o à frutificação da palavra de Deus;
texto atualíssimo para entendermos a atual crise de conversão católica.

DOMINUS VOBISCUM

Nossa Senhora Aparecida 16 Em homenagem a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, comemorada
em 12 de outubro, trazemos o utilíssimo texto do Padre Rohrbacher (1789-1856),
que sintetiza a história da aparição da Regina Brasiliæ e seus desdobramentos.

YSTORIA SANCTI

Santa Brígida 20 S. Brígida da Suécia (c. 1303-1373), de linhagem católica e origem nobre, des-
tacou-se por sua caridade e vida ascética e mística, repleta de visões de Nosso
Senhor Crucificado. É comemorada em 8 de outubro pela Santa Igreja.

EUTRAPELIAM

Altar da Santa Missa 24 Dando continuidade às curiosidades sobre os itens litúrgicos, tratamos agora da
composição do altar para a celebração da Santa Missa.
FIDES QUAERENS INTELLECTUM
Bartolomé Esteban Murillo/Domínio Público

SÃO JOSÉ:
TERROR DOS DEMÔNIOS,
PROTETOR DA SANTA IGREJA
BRUNO VIEIRA
3
Terror daemonum: ensina-nos o Florilégio de O Filho do Todo-Poderoso vem ao mundo, assu-
mindo uma condição de grande fragilidade. Ne-
São José [1] que, se foi grande a alegria de nossos
cessita de José para ser defendido, protegido, cui-
primeiros pais, ouvindo dos lábios divinos a pro-
dado e criado. Deus confia neste homem, e o mes-
messa de uma Mulher prodígio, que daria ao mo faz Maria que encontra em José aquele que não
mundo o Salvador, maior foi o espanto e o terror só lhe quer salvar a vida, mas sempre a sustentará
do demônio, atormentado pela ideia de se ver der- a ela e ao Menino. Neste sentido, São José não
pode deixar de ser o Guardião da Igreja, porque a
rotado por uma criatura que em seu orgulho julgava
Igreja é o prolongamento do Corpo de Cristo na
de natureza inferior à sua. Ei-la: Maria Santíssima,
história e ao mesmo tempo, na maternidade da
a Imaculada, Virgem e Esposa do humilde e cas- Igreja, espelha-se a maternidade de Maria. José,
tíssimo São José, a quem Deus confiou na terra a continuando a proteger a Igreja, continua a prote-
humanidade de seu divino Filho. ger o Menino e sua mãe; e também nós, amando a
Igreja, continuamos a amar o Menino e sua mãe.
Por meio da íntima comunhão de vida e de inte-
[5]
resses existente entre o Santo Patriarca e a Mãe de
Deus, aquele participava da excelsa dignidade de Assim, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu fun-
Maria, com quem era unido pelo vínculo conjugal, dador e Rei, e a São José foi confiado o dever de
de tal sorte que merece nossas preces e louvores. zelar pelo Pequeno Jesus, confia-lhe Deus a pro-
Invocando-o como Protetor da Santa Igreja e teção de seu povo, a Igreja Católica, que, como vi-
nosso defensor na luta contra o poder das trevas, se mos, teve suas primícias naquela pobre casa de
o demônio estremeceu quando apareceu a Mulher Nazaré.
forte, que devia lhe esmagar a cabeça com seus pu- Se já na segunda metade do século XIX, o Beato
ríssimos pés, menor não seria seu terror vendo ao Pio IX pediu a intercessão do Santo Patriarca na-
lado de Maria um homem que participaria de seus queles “tempos tristíssimos em que a Igreja, ata-
privilégios, dignidade e poder na terra e no céu. cada de todos os lados pelos inimigos, é de tal ma-
Nesse ponto, consta no Devoto Josephino [2]: se neira oprimida pelos mais graves males, a tal ponto
São José foi eleito para ser a cabeça da Sagrada que homens ímpios pensam ter finalmente as por-
Família de Nazaré, quem melhor para defender o tas do Inferno prevalecido sobre ela” [6], tanto
Corpo Místico de seu Filho adotivo, a Santa Igreja mais deve ser nossa constância nas preces a esse
(I Cor 12,27)? Some-se a isso o fato de que a Igreja venerabilíssimo santo.
foi “instituída e como que calcada sobre o modelo Nessa época em que vigora a heresia do moder-
da Sagrada Família, de que ela é, por assim dizer, nismo, em que a Igreja é perseguida e atingida por
a continuação e o desenvolvimento natural” [3]. todos os lados, inclusive por dentro, por seus pró-
Padre Meschler observa: “a Igreja tem o seu mo- prios membros, é de São José que devemos colher
delo na Sagrada Família. Ora, em Nazaré, São José a desejada proteção, a esperada força para comba-
era o chefe, o pai, o protetor, o guia. Por todos es- ter os erros.
ses títulos, ele pertence de maneira especial à A Igreja sempre foi atribulada pelas iras do
Igreja, que era a finalidade, e, por assim dizer, é a mundo, movido pelo intento satânico de vê-la des-
extensão e a continuação da Sagrada Família” [4]. truída. Como já sentia aquele Bem-aventurado
Na Patris Corde, fica demonstrada a dinâmica en- Papa, oprime-se o trabalho de Cristo de tal modo
tre a Sagrada Família e o cuidado que São José tem que, já não só os homens ímpios mencionados pelo
pela Igreja de Cristo: pontífice, mas os próprios filhos da Barca de Pedro
4
tendem a temer as insídias do diabo. auxilio e poder. Protegei, ó guarda previdente da
Divina Família, a raça eleita de Jesus Cristo; afas-
Mas vejamos: assim como José, filho de Jacó, foi
tai para longe de nós, ó Pai Amantíssimo, a peste
a benção de seu reino, assim São José foi predes-
do erro e do vício; assisti-nos do alto do céu, ó
tinado a guardar a cristandade, como defensor da nosso fortíssimo sustentáculo, na luta contra o po-
Igreja, a Casa do Senhor e Reino de Deus na terra der das trevas; e assim como outrora salvastes da
[7]. Por isso que Sua Santidade o Papa Leão XIII morte a vida ameaçada do Menino Jesus, assim
também defendei agora a Santa Igreja de Deus das
prescreveu que, no mês de outubro, consagrado ao
ciladas de seus inimigos e de toda a adversidade.
Santo Rosário, nossas preces buscassem também a
Amparai a cada um de nós com o vosso constante
intercessão do Patriarca a fim de proteger-nos na patrocínio, a fim de que, a vosso exemplo, e sus-
batalha, em adição à força inigualável do Rosário. tentados com o vosso auxílio, possamos virtuosa-
Ao final desta série de artigos, reflitamos sobre as mente viver, piedosamente morrer e obter no céu
a eterna bem-aventurança. Amém.
virtudes e os méritos de São José, as graças que de
modo singular obteve e o exemplo que nos apre-
senta, a fim de, não apenas buscarmos imitá-lo,
Fontes:
mas colher de sua intercessão todo o necessário à
nossa salvação e à santificação de nossas vidas. [1] ESCOLAS PROFISSIONAES SALESIANAS. Florilé-
Peçamos também a ele proteção e intercessão pe- gio de São José: breves meditações para o mez de março
(sic.). São Paulo, 1911, p. 94-95.
lo Santo Padre, o Papa, a fim de que seja orientado
[2] VILLANUEVA, Pader Eusebio Sacristán. Devoto Jo-
pela reta doutrina e pelos ensinamentos de Nosso
sephino, ou seja, Coleção completa das devoções mais usa-
Senhor, guiando a Igreja e seus filhos para o Céu. das em honra do Glorioso Patriarcha São José. São Paulo:
Rezemos, igualmente, para alcançarmos as três Ave Maria, 1935, p. 142.
graças que nos podem vir de sua intercessão, como [3] LÉPICIER, O.S.M., Cardeal Alexis Marie. São José,

ensina Santo Afonso Maria de Ligório: “1 - A re- Esposo da Santíssima Virgem Maria. Campinas: CE-
DET/Ecclesiae, 2014, p. 263.
missão dos pecados, que teria obtido de N. S. du-
[4] MESCHLER S.J., Pe. Maurício. São José na vida de Je-
rante a vida, para algum pecador que o implorasse. sus e da Igreja. Campinas: Calvariae, 1943/2020, p. 130.
2 - O amor de Jesus Cristo, a quem tanto amava. 3 [5] FRANCISCO. Carta Apostólica Patris corde: por oca-
- A morte preciosa que mereceu, tendo a felicidade sião do 150º aniversário da declaração de São José como
padroeiro universal da Igreja. Disponível em:
de expirar entre os braços de Jesus e Maria”. [8]
http://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/do-
Assim, concluamos nós com a oração recomen-
cuments/papa-francesco-lettera-ap_20201208_patris-
dada por Leão XIII, que deve ser rezada entre 1º de corde.html. Acesso em: 28 set 2021.
outubro e 2 de novembro [9]: [6] PIO IX. Carta encíclica Quemadmodum Deus. 1870.
Em: LÉPICIER, O.S.M., Cardeal Alexis Marie, op. cit., p.
A vós, ó Bem-aventurado S. José, recorremos em 297.
nossa tribulação, e, depois de termos implorado o [7] LEÃO XIII. Carta Encíclica Quamquam Pluries. 1889.
auxílio de vossa Santíssima Esposa, com confi- Em: LÉPICIER, O.S.M., Cardeal Alexis Marie, op. cit., p.
ança solicitamos vosso patrocínio. Por esse laço 306.
sagrado de caridade que vos uniu à Virgem ima- [8] LOMBAERDE, Pe. Júlio Maria de. O Evangelho das
culada Mãe de Deus, e pelo amor paternal que ti- Festas Litúrgicas e dos Santos mais populares. Manhumi-
vestes para o Menino Jesus, ardentemente vos su- rim: O Lutador, 1952, p. 136.
plicamos que lanceis um olhar benigno a herança [9] LEÃO XIII. Em: LÉPICIER, O.SM., Cardeal Alexis
que Jesus Cristo conquistou com o seu sangue, e Marie, op. cit., p. 308.
nos socorrais nas nossas necessidades com o vosso
5
A GNOSE ROMÂNTICA CONTRA A
Caspar David Friedrich/Domínio Público

REALIDADE
JOSÉ CARLOS ZAMBONI

“Eu sou o espírito que nega” (Mefistófeles) do romantismo. O essencial, porém, já estava con-
tido nas balizas daquela fórmula: revolta contra a
Foi decisivo o papel do romantismo na criação do velha ordem da realidade e o desejo de substituí-la
“admirável mundo novo” que hoje nos toca viver. por um novo ordenamento.
Quem ainda se lembra das aulas de literatura no O espírito de negação dos românticos se manifes-
colégio, saberá que o “romantismo” foi um movi- taria de várias formas, e todas elas apontavam para
mento artístico, literário e filosófico que surgiu en- a necessidade de destruir uma ordem tida como
tre os séculos XVIII e XIX, no continente europeu, obsoleta, aprisionadora do espírito humano. Daí é
caracterizado sobretudo por duas ideias: liberdade que proviria, certamente, a usual imagem do de-
ilimitada e repúdio do mundo real. Essas seriam, mônio como metáfora da rebeldia; a violência sá-
poderíamos dizer, a fórmula química convencional dica substitutiva da solicitude cristã; a explosão ar-
do movimento romântico. tística e literária do inconsciente como repúdio à
Havia, na estética romântica, uma clara relação de lógica e à razão convencionais; a efemeridade dos
dependência entre as duas ideias. A recusa da rea- períodos históricos contra a concepção de História
lidade era um traço essencial dessa visão de Sagrada; a exaltação do “bom selvagem” em detri-
mundo, o motor que acionava o gesto rebelde de mento da cultura ocidental mais elevada; a tendên-
libertação e o combustível para as longas viagens cia para o fragmentário e o inacabado como reação
no inefável mundo da lua, o território preferencial ao formalismo da estética clássica.
dos românticos. Convém não esquecer que a velha ordem conde-
Outros componentes naturalmente derivariam nada ao repúdio ainda trazia, como um selo quase
desse núcleo básico, como o arrebatamento emo- bimilenar, as impressões digitais do cristianismo,
cional, que implicava a repulsa da sobriedade e do apesar das erosões que este já tinha sofrido desde a
comedimento, e a rédea solta à imaginação, que era Renascença neopagã. Assim, a luta contra a reali-
um veículo mais apropriado às excursões utópicas dade era também, e sobretudo, uma luta contra a
6
Igreja Católica, vista como uma espécie de cão- cos, no início do século XX, como o surrealismo,
de-guarda de um mundo que era necessário infa- o expressionismo, o dadaísmo; foi a bandeira da
mar e subverter (o famoso retorno à Idade Média revolução estudantil dos anos sessenta, no fim do
dos românticos não passava de busca de ambien- mesmo século, que produziu a cultura da droga, do
tação exótica, obedientes ao mesmo impulso que rock e do sexo livre; e continua a ser a base dos
os aproximava de temas e assuntos importados do movimentos radicais de hoje, como o feminismo e
mais distante Oriente). a ideologia de gênero, que procuram subverter a
Era quase impossível, à sensibilidade romântica, ordem criada por Deus para a sexualidade humana,
contentar-se com a dura realidade, tal como con- buscando legitimar o homossexualismo, o bissexu-
cebida e definida pelo cristianismo: lugar de queda alismo, o transexualismo, o “poliamor”, a poliga-
e prova, marcado pelo pecado, destinado a ser mia plurissexual, a zoofilia e a própria pedofilia.
substituído por uma realidade sobrenatural, após a O romantismo não foi um inócuo movimento
morte, de salvação ou perdição eterna. sentimentalista, de poetas tristes inconformados
O homem romântico não podia contentar-se com com o insucesso amoroso e existencial. Foi, acima
essa verdade incômoda e restritiva. Partiu, então, de tudo, a sementeira das principais sandices revo-
para a ofensiva: destronou o “falso” Deus judaico- lucionárias do mundo contemporâneo — elo im-
cristão, que havia gerado um cosmos perverso e portante de uma cadeia anticristã que já procedia
defeituoso, autoproclamando-se parte de uma di- dos séculos precedentes. Nele também se percebe,
vindade não mais transcendente, mas que coincidia sem necessidade de muito esforço conceitual, a
panteisticamente com o pródigo mundo natural que presença de uma heresia cristã muito antiga, que
os poetas do período cantariam ad nauseam, em volta e meia reaparecia na história da Igreja: o
prosa e verso (quando não se autonomeavam deu- gnosticismo.
ses eles próprios, a exemplo de Nietzsche, pai do Surgido nos primeiros séculos da era cristã, ca-
super-homem além do bem e do mal). racterizado pela confluência de certa religiosidade
Era a volta do antigo culto panteísta, em substi- oriental com a filosofia neoplatônica, o gnosti-
tuição ao monoteísmo, quando não a explícita ido- cismo era uma heresia que não aceitava a interpre-
latria do homem pelo homem. Tudo o que o Deus tação cristã do pecado original como fonte das im-
católico, encarnado em Cristo, não quis realizar — perfeições da realidade, atribuindo-as antes à cri-
pois seu reino não era deste mundo —, o ser hu- ação defeituosa de um demiurgo impotente, um
mano autodivinizado outorgava-se o direito de fa- deus inferior e perverso, incapaz da obra plena-
zê-lo, inicialmente no plano da fantasia e do so- mente realizada. O acesso ao verdadeiro Deus não
nho, fosse pela arte, pelos narcóticos, pelo ero- se daria, portanto, pelo sacrifício redentor de Cristo
tismo; e, um pouco mais tarde, no próprio plano da e pelo “conhecimento” obtido dentro dos limites da
História, com as revoluções comunistas, fascistas e Revelação (há uma “gnose”, um “conhecimento”
nazistas (é bem conhecida a ligação de Karl Marx autenticamente cristão, fruto do esforço mental hu-
com a linha satanista do romantismo, em seus po- mano auxiliado pela Graça); ao contrário, era con-
emas de juventude). cedido apenas, de forma seletiva, a uma minoria
Liberdade e contestação: foi este o mote do mo- iluminada e esotérica, que se acreditava detentora
vimento romântico, há mais de dois séculos; e foi, das verdades superiores, chegadas a eles exclusi-
também, a divisa dos vários modernismos artísti- vamente pela via dos conceitos ou da imaginação.
7
Isso nunca esteve ausente no mundo cristão, ser considerado suspeito de ortodoxia católica, re-
como no caso da seita maniqueísta dos cátaros, en- feriu-se certa vez [1] à “sinuosa e subterrânea
tre os séculos XII e XIII da Idade Média, que afir- marcha do movimento poético” no século XIX,
mava ser bom unicamente o espírito, criado por sempre oscilante entre dois polos: o da Revolução
Deus, enquanto a matéria seria essencialmente má, e o da Religião. Partindo de uma afirmação do en-
pois de origem diabólica. Eram inimigos da pro- saísta francês Jules Monnerot, para quem a história
priedade privada, que na época começava a afir- da poesia moderna é comparável à das seitas gnós-
mar-se na Europa, e o corpo humano era visto ticas e do ocultismo, Octavio Paz admite que isso
como sórdida e descartável prisão da alma, donde
é verdade nos dois sentidos. É inegável a influên-
a licitude da lascívia, do aborto, do infanticídio, em
cia do gnosticismo e da filosofia hermética em po-
clara antecipação do que se transformaria em mo-
etas como Nerval, Hugo, Mallarmé, para não falar
eda corrente hoje em dia. de poetas deste século: Yeats, George, Rilke, Bre-
Contudo, essa mentalidade de extremo descon- ton. Por outro lado, cada poeta cria em torno de si
tentamento com o mundo real adquire, a partir da pequenos círculos de iniciados, de modo que sem
exagero pode-se falar de uma sociedade secreta da
Renascença, um outro aspecto: surge uma nova
poesia. A influência desses grupos tem sido i-
gnose, antropocêntrica, voltada para as coisas deste
mensa e logrou transformar a sensibilidade de
mundo, e que, mantendo a radical insatisfação com nossa época. Desse ponto de vista não é falso afir-
a realidade, já não mais se interessaria em devolver mar que a poesia moderna encarnou-se na história,
a alma à sua divina fonte original, livre do demo- não à plena luz, mas como um mistério noturno e
um rito clandestino. Uma atmosfera de conspira-
níaco corpo/calabouço, mas em reconstruir em ba-
ção e de cerimônia subterrânea rodeia o culto da
ses puramente humanas o mundo imperfeito em
poesia.
que as pessoas se encontram caídas e abandonadas
(em estado de derrelicção, na terminologia do ne- O romantismo é uma das principais fontes não só
ognóstico Martin Heidegger). da poesia moderna, como de toda a literatura dos
Segundo a concepção gnóstica, o mundo é essen- últimos dois séculos, tanto em sua vertente revolu-
cialmente defectivo, necessitando de reconstrução cionária (na ordem política) quanto gnóstica (na
estrutural. E será o homem autodeificado quem ordem religiosa). Esta é uma boa hipótese de tra-
tentará realizar, com o descredenciamento da mo- balho para a crítica literária atual de inspiração
ral cristã e os recursos cada vez mais crescentes e cristã: localizar nas obras e autores particulares,
sofisticados da tecnologia, o que Deus não teria dos últimos duzentos anos, a presença sutilmente
sido capaz de fazer em sua impotência ontológica. venenosa dessa mentalidade anticristã que mudou
Ou até, em suas formas mais radicais, negando a completamente os rumos da criação artística con-
própria existência de Deus, como no socialismo temporânea e tem contribuído fortemente para a
marxista e outras correntes totalitárias da moder- instauração de uma “nova ordem mundial” sem
nidade. Foi assim que o romantismo tornou-se um Deus, sem alma, sem vida eterna.
dos pontos de convergência das modernas tendên-
cias gnósticas — ele que não foi somente um mo-
Fonte:
vimento literário e artístico, mas um verdadeiro
“espírito de época”, como dizem os alemães.
[1] PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo, Perspec-
O escritor mexicano Octávio Paz, quem não pode tiva, 1996, p. 84.
8
LIBERALISMO:
Eugène Delacroix/Domínio Público

INIMIGO DE DEUS E DA IGREJA


MARCOS DOMINGUES

FILOSOFIA LIBERAL, GERME DO ILUMI- os mais diversos, confabulados e difundidos no


NISMO ANTICRISTÃO submundo das lojas maçônicas, cujos agentes em-
O Magistério da Igreja condenou os princípios da penharam os maiores esforços para lograr vitória
filosofia liberal em toda sua extensão, ao longo de nessa batalha decisiva. O que estava em jogo de
todo o século XIX e início do século XX, denun- fato não era pouca coisa. Duas concepções de
ciando os efeitos nefastos que tais princípios cau- mundo estavam em disputa: o antigo regime das
savam em todos os campos do conhecimento e da monarquias católicas e o novo regime das repúbli-
atividade humana. Apesar dos esforços dos ho- cas maçônicas.
mens da Igreja, a filosofia liberal, germe do ilumi- Com a vitória avassaladora do republicanismo
nismo, cresceu e atingiu seu pleno desenvolvi- maçônico, a filosofia liberal ganhou terreno e in-
mento no ambiente revolucionário do republica- vadiu a vida das nações, corrompendo a religião, a
nismo democrático. A partir da Revolução Fran- moral, os costumes, a educação, a economia e tudo
cesa as democracias liberais, por ação das socieda- o mais. O papel da Igreja de ensinar os povos a reta
des secretas, foram instauradas por quase todo o doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo foi tomado
mundo, muitas vezes por meio de tramas e crimes de assalto e transferido para os burocratas da Re-
9
pública, que passaram a ensinar doutrinas avessas da religião e da moral cristã. Muitas vezes o trabalho
por turnos impediu até que eles observassem os mais
à fé e à caridade. Desde então, o mundo tem sido
graves deveres religiosos dos dias festivos; não houve
vítima de imensos horrores. Já na Revolução Fran-
o cuidado de construir igrejas nas proximidades das
cesa, o caos revolucionário banhou de sangue o fábricas, nem de facilitar a missão do sacerdote; antes
chão daquela nação que fora outrora a filha primo- pelo contrário, em vez de se lhes pôr embargo, cada
gênita da Igreja. Do fervor revolucionário brotaram dia mais e mais se foram favorecendo as manobras do
chamado laicismo. Aí estão, agora, os frutos amargo-
doutrinas ainda mais nefastas, que, propondo solu-
síssimos dos erros que os Nossos Predecessores e Nós
cionar os males do individualismo e do egoísmo
mesmo mais de uma vez temos preanunciado. E as-
desenfreado do sistema político-econômico libe- sim, por que nos havemos de admirar, ao vermos que
ral, empurravam as sociedades para o erro oposto tantos povos, largamente descristianizados, vão sendo
do coletivismo radical socialista. Onde as agitações já pavorosamente inundados e quase submergidos
pela vaga comunista? [2]
socialistas obtiveram êxito, foram cometidas as
maiores barbaridades contra a vida e a dignidade
Por isso, com muita razão, o Magistério da Igreja
humanas.
e os autores católicos consideram o liberalismo o
Foi a partir do erro liberal, portanto, que muitas
pai do comunismo. Essa filiação é resultante da he-
nações caíram na desgraça da escravidão comu-
rança do materialismo herdada pelos comunistas da
nista e outras sofreram amargamente revoluções
filosofia liberal. No comunismo, porém, o materi-
fratricidas que não levaram senão ao esfriamento
alismo é levado às suas últimas instâncias, num
completo da caridade cristã e ao próprio esqueci-
ímpeto revolucionário violento, em contraste à re-
mento de Deus. Como ensinou o Papa Pio XI:
volução mitigada do liberalismo. Em ambos os ca-
Pode bem dizer-se com toda a verdade que a Igreja à sos, esse materialismo se origina na revolta social
semelhança de Cristo, passa através dos séculos, fa- contra a ordem de Deus, que nos estabeleceu como
zendo bem a todos. Não haveria nem socialismo nem exilados num mundo passageiro:
comunismo, se os que governam os povos não tives-
sem desprezado os ensinamentos e as maternais ad- Não, Deus não nos fez para estas coisas frágeis e ca-
vertências da Igreja; eles, porém, quiseram, sobre as ducas, mas para as coisas celestes e eternas; não nos
bases do liberalismo e do laicismo, levantar outros deu esta terra como nossa morada fixa, mas como lu-
edifícios sociais que à primeira vista pareciam pode- gar de exílio. Que abundeis em riquezas ou outros
rosas e magníficas construções, mas bem depressa se bens, chamados bens de fortuna, ou que estejais pri-
viu que careciam de sólidos fundamentos, e se vão vados deles, isto nada importa à eterna beatitude: o
miseravelmente desmoronando, um após outro, como uso que fizerdes deles é o que interessa. [3]
tem que desmoronar-se tudo quanto não se apoia so-
bre a única pedra angular, que é Jesus Cristo. [1]
É pela incompreensão dessa verdade tão funda-
mental que o materialismo adquire força e se apo-
Também o Papa Pio XI advertiu sobre o perigo
dera dos corações dos homens. Ora, se o homem
dos operários se atraírem pelo ópio comunista:
não tem um fim sobrenatural, deve buscar o gozo
Mas, para mais facilmente se compreender como é da felicidade terrena, e essas ideologias são o meio
que puderam conseguir que tantos operários tenham que os homens sem a fé julgam poder realizar o
abraçado, sem o menor exame, os seus sofismas, será Reino dos Céus na terra, reduzindo a dimensão so-
conveniente recordar que os mesmos operários, em
brenatural da recompensa celeste a uma felicidade
virtude dos princípios do liberalismo econômico, ti-
puramente natural. Claro que tanto o liberalismo
nham sido lamentavelmente reduzidos ao abandono
10
quanto o comunismo são utopias, pois visam con- o operariado e tornava-o mero instrumento do ca-
tornar a realidade de que nossa natureza, ferida pital. As relações de trabalho se degradavam num
pelo pecado original e submetida aos castigos im- jogo de puro interesse em que o lucro era a força
postos por Deus pelo pecado (cf. Gn 3,16-19), im- motriz da economia. Essa dinâmica conduzia a so-
pede que alcancemos um paraíso terrestre. Ao con- ciedade ao darwinismo social, no qual o mercado
trário, devemos nos conformar com uma vida pe- assume o papel da seleção natural, eliminando os
nitente e de padecimentos, em imitação a Nosso mais fracos e premiando os mais fortes. O finan-
Senhor e reparação de nossas ofensas: cismo, efeito funesto do capitalismo liberal, alas-
trava-se:
Pela Sua superabundante redenção, Jesus Cristo não
suprimiu as aflições que formam quase toda a trama É coisa manifesta, como nos nossos tempos não só se
da vida mortal; fez delas estímulos de virtude e fontes amontoam riquezas, mas acumulam-se um poder
de mérito, de sorte que não há homem que possa pre- imenso e um verdadeiro despotismo econômico nas
tender as recompensas eternas, se não caminhar sobre mãos de poucos, que as mais das vezes não são se-
os traços sanguinolentos de Jesus Cristo: ‘Se sofremos nhores, mas simples depositários e administradores de
com Ele, com Ele reinaremos’ (II Tm 2,12). Por outra capitais alheios, com que negoceiam a seu talante.
parte, escolhendo Ele mesmo a cruz e os tormentos, Esse despotismo torna-se intolerável naqueles que,
minorou-lhes singularmente o peso e a amargura, e, a tendo nas suas mãos o dinheiro, são também senhores
fim de nos tornar ainda mais suportável o sofrimento, absolutos do crédito e por isso dispõem do sangue de
ao exemplo acrescentou a Sua graça e a promessa que vive toda a economia, e manipulam de tal maneira
duma recompensa sem fim: ‘Porque o momento tão a alma da mesma que não pode respirar sem sua li-
curto e tão ligeiro das aflições, que sofremos nesta cença. Esse acumular de poderio e recursos, nota ca-
vida, produz em nós o peso eterno duma glória sobe- racterística da economia atual, é consequência lógica
rana incomparável’ (II Cor 4,7). da concorrência desenfreada, à qual só podem sobre-
viver os mais fortes, isto é, ordinariamente os mais
Assim, os afortunados deste mundo são advertidos de
violentos competidores e que menos sofrem de escrú-
que as riquezas não os isentam da dor; que elas não
pulos de consciência. Por outra parte, esse mesmo
são de nenhuma utilidade para a vida eterna, mas antes
acumular de poderio gera três espécies de luta pelo
um obstáculo (cf. S. Mt 19,23-24); que eles devem
predomínio: primeiro luta-se por alcançar o predomí-
tremer diante das ameaças severas que Jesus Cristo
nio econômico; depois combate-se renhidamente por
profere contra os ricos (cf. S. Lc 6,24-25); que, enfim,
obter predomínio no governo da nação, a fim de poder
virá um dia em que deverão prestar a Deus, seu juiz,
abusar do seu nome, forças e autoridade nas lutas eco-
rigorosíssimas contas do uso que hajam feito da sua
nômicas; enfim lutam os Estados entre si, empregando
fortuna. [4]
cada um deles a força e influência política para pro-
mover as vantagens econômicas dos seus cidadãos, ou
Dessa forma, todos os homens devem obrar o ca- ao contrário empregando as forças e predomínio eco-
minho da salvação. Os ricos devem vigiar ainda nômico para resolver as questões políticas, que sur-
mais que os pobres para não se desviarem. Tam- gem entre as nações.

pouco os homens devem cortejar as vãs promessas


As últimas consequências desse espírito individualista
do materialismo, que depositam a esperança da fe- no campo econômico são essas que vós, veneráveis
licidade na abundância dos bens terrenos. Irmãos e amados Filhos, vedes e lamentais: a livre
concorrência matou-se a si própria; à liberdade do
mercado sucedeu o predomínio econômico; à avidez
OS EFEITOS DO MODELO SOCIAL LIBERAL
do lucro seguiu-se a desenfreada ambição de predo-
Na Europa, palco da revolução liberal, crescia
mínio; toda a economia se tornou horrendamente dura,
uma moral econômica e social que desumanizava
11
cruel, atroz. Acrescem os danos gravíssimos origina-
dos da malfadada confusão dos empregos e atribui-
ções da pública autoridade e da economia, quais são:
primeiro e um dos mais funestos, o aviltamento da
majestade do Estado, a qual, no trono onde livre de
partidarismos e atenta só ao bem comum e à justiça se
sentava como rainha e árbitra suprema dos negócios
públicos, vê-se feita escrava, entregue e acorrentada
ao capricho de paixões desenfreadas; depois, no
campo das relações internacionais, dois rios brotados
da mesma fonte: de um lado o Nacionalismo ou Im-
perialismo econômico, do outro o Internacionalismo
ou Imperialismo internacional bancário, não menos
funesto e execrável, cuja pátria é o interesse. [5]

Diante de tantos problemas, a Igreja dedicou seus


melhores esforços para, em primeiro lugar, conde-
nar tais erros do liberalismo, e em segundo, relem-
brar os povos da caridade e justiça cristãs que de-
vem permear as relações econômicas e sociais.
Nesse contexto de injustiças criadas pelo ambiente
revolucionário liberal que surgem os documentos
dos Papas conhecidos como Doutrina Social da
Igreja (DSI). Nos próximos artigos nos dedicare-
mos a analisar detalhadamente esses textos, a fim
de sintetizar a DSI em pontos centrais, que expli-
cam muitos dos problemas do atual neoliberalismo.

Fontes:

[1] PIO XI, Encíclica Divini Redemptoris, n.38. Disponível


em: https://www.vatican.va/content/pius-xi/pt/encycli-
cals/documents/hf_p-xi_enc_19370319_divini-redempto-
ris.html. Acesso em: 2 out 2021.
[2] Ibid., n.16.
[3] LEÃO XIII, Encíclica Rerum Novarum, n.11. Disponí-
vel em: https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encycli-
cals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-no-
varum.html. Acesso em: 2 out 2021.
[4] Ibid.
Autoria desconhecida/Domínio Público

[5] PIO XI, Encíclica Quadragesimo Anno, cap. III, n.1.


Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-
xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_qua-
dragesimo-anno.html. Acesso em: 2 out 2021.

12
CATHOLICAE LITTERAE converter-se: Deus, o pregador e o ouvinte; e parte
a investigar qual deles pode ser o responsável pela
infertilidade da semente da fé.
De antemão, o jesuíta português faz notar duas
coisas: que o semeador saiu, mas não voltou; e que
o semeador começou a semear, mas com pouca
ventura. Todas as criaturas do mundo se armaram
contra a sementeira: criaturas racionais, como os
homens; criaturas sensitivas, como os animais; cri-
aturas vegetativas, como as plantas; criaturas in-
sensíveis, como as pedras. As pedras secaram-na,
os espinhos afogaram-na, as aves comeram-na e
os homens pisaram-na. Isso adverte sobre as difi-
culdades do “Ide e pregai a toda a criatura”, pois
os Apóstolos e missionários padeceram nas mãos
de homens degenerados em todas as espécies de
criaturas: homens homens, homens brutos, homens
troncos, homens pedras; isto é, saíram a semear e

SERMÃO DA não voltaram; e viram desaventurados os primeiros


trabalhos, logo concluindo não apenas o dogma dos

SEXAGÉSIMA, eleitos, mas que se haveria de colher cento por um


(Et fructum fecit centuplum).

DE Mas se a palavra de Deus é tão potente, a ponto


de fazer colher cem em um, como vemos tão pou-
PE. ANTÔNIO cos frutos? Nunca houve tantas pregações e tantos
pregadores. Pois se tanto se semeia, como a co-
VIEIRA lheita é tão pouca? Deus não é hoje menos onipo-
tente, assim como sua palavra não é hoje menos
poderosa. Portanto, da parte de Deus não falta nem
LAURA CORADI pode faltar. No Evangelho não diz que parte do
trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva, por-
que sendo afluências do Céu, não poderiam deixar
Padre Antônio Vieira (1608-1697), em seu Ser- de frutificar a semente de Deus. Portanto, a culpa
mão da Sexagésima (1655), lança mão de um só pode ser do pregador ou do ouvinte.
questionamento pertinente não somente ao seu Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa
tempo – marcado pela conversão dos povos pagãos em que o trigo caiu são os corações dos homens.
americanos - mas sobretudo à crise de conversão Eles são ou maus ou bons. Sendo bons, a semente
católica pós-conciliar a qual vivem todas as nações de Deus faz neles frutos; sendo maus, ainda que
cristãs. De mote a parábola do semeador, Pe. Vieira não lhes faça frutos, faz efeito. Porque o semeador
destaca três agentes envolvidos no processo de não cortou os espinhos e não arrancou as pedras
13
antes de semear, mas quis ver a força do que se- escolher apenas uma matéria. É preciso defini-la,
meava: se nasceria entre espinhos, se nasceria nas dividi-la, prová-la com as Escrituras, declará-la
pedras. E de fato veio o tempo em que essas mes- com razão, confirmá-la pelo exemplo, amplificá-
mas pedras o aclamaram e os mesmos espinhos o la com as causas, os efeitos, as diversas circuns-
coroaram. E se a palavra de Deus triunfou nos es- tâncias a seguir e evitar, impugnar os argumentos
pinhos e nas pedras, não continuar a triunfar nos contrários. E mesmo que se apostile todo o Evan-
espinhos e nas pedras de hoje não é por culpa dos gelho, ainda é preciso persuadir. Mas ainda que fa-
corações dos homens. lhem nesse processo, ainda não parece ser este o
Pe. Vieira, portanto, conclui que a falta de frutos elemento ruína da conversão.
e efeitos da palavra de Deus é devido à falta de Seria, porventura, a falta de ciência dos pregado-
bons sermões e pregadores. Estes são os guias di- res, que semeiam os frutos alheios? O pregador há
recionadores dos cristãos ao Céu. Mas em que con- de pregar o seu, e não o alheio. O pregar é entrar
sistirá suas culpas? em batalha com os vícios, mas com armas alheias
Na pregação, consideram-se: a pessoa, a ciência, ninguém pode vencer. O fruto alheio e o furtado
a matéria, o estilo e a voz. A pessoa diz respeito ao são bons de comer, mas não servem para semear,
próprio ofício do pregador, que se define não so- porque ou não nascem ou não produzem raiz. O
mente por suas palavras, mas por suas obras. Se a pregar não é recitar. As razões próprias nascem do
vida do pregador é apologia contra a doutrina, se entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e
as palavras vão refutadas já nas obras, se uma coisa os homens não se convencem pela memória, senão
é o semeador e outra o que semeia, como há de pelo entendimento. O que nasce do juízo penetra e
fazer fruto? O que entra pelos ouvidos crê-se, mas convence o entendimento. Todavia, considerando
o que entra pelos olhos necessita-se. Todavia, em- como os grandes santos bebem de referências pas-
bora seja essa circunstância uma boa razão para a sadas, esta também não parece ser a razão do pro-
crise de conversão, tem contra si o exemplo de Jo- blema.
nas, que era fugitivo de Deus e contumaz pecador; Seria, talvez, a voz adotada pelo pregador? A voz
mas que com um sermão converteu o maior rei, a regula a potência do discurso e adapta-o ao ou-
maior corte e o maior reinado do mundo. vinte. Não há dúvida que o falar mais ao ouvido
Seria então o estilo moderno de pregação o em- concilia maior atenção, naturalmente penetrando
pecilho da frutificação da palavra de Deus? O es- na alma. Mas mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo,
tilo culto seria a razão? Também parece que não, ao acabar de contar a parábola do semeador, não
se pensamos na eloquência providencial de estudi- bradou: Haec dicens clamabat; pois era tal o audi-
osos como S. Gregório Nazianzeno, S. Ambrósio e tório que fiou mais dos brados que da razão?
S. Pedro Crisólogo. Seria então o estilo escuro e Enfim, se nenhuma das cinco circunstâncias da
duro? Igualmente não se faz razão, posta a grande pregação – pessoa, estilo, matéria, ciência e voz –
relevância e profundidade de S. Clemente Alexan- é causa de impedimento dos frutos da palavra de
drino e Tertuliano. Deus, qual será finalmente a causa?
Seria a matéria que tomam os pregadores? Esta- A resposta é que as palavras dos pregadores não
riam os pregadores abordando temas demais em são mais as palavras de Deus. Eles pregam palavras
um único sermão? Assim como o semeador tinha de Deus, mas não a palavra de Deus. E isso, mesmo
apenas um tipo de semente, o pregador deve o diabo pode fazer, pois que tentou a Cristo com as
14
próprias Escrituras, tomando as palavras de Deus
em sentido torcido e capcioso. Os assuntos inúteis
e as más interpretações, onde se veem no Evange-
lho? Onde estão na boca dos grandes santos ora-
dores? Ao escolherem fazer a própria fama e adular
os ouvidos dos fiéis, os pregadores cumprem a
profecia de São Paulo: “Porque virá tempo em que
os homens já não suportarão a sã doutrina da sal-
vação. Levados pelas próprias paixões e pelo pru-
rido de escutar novidades, ajustarão mestres para
si. Apartarão os ouvidos da verdade e se atirarão às
fábulas.” (II Tim, 4,3-4).
O frutificar não se ajusta com o gostar, senão com
o padecer. Nos sermões, os pregadores não devem
buscar ser agradáveis e contentar os fiéis com seus
conceitos, senão descontentá-los por seus maus
costumes e pecados. Isso se faz verdade no Mara-
nhão do Pe. Antônio Vieira, como se faz verdade
nas pregações de hoje, com a ideologização nefasta
das Escrituras e o discurso ecumênico e de respeito
humano tão convenientes a tantos clérigos infames
e oportunistas. Para que os pregadores saibam
como hão de pregar e os ouvintes a quem hão de
ouvir, fica a anedota que se conta sobre o que disse
um lente da Universidade de Coimbra acerca da
disputa entre dois pregadores do Reino de Portu-
gal: “Entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo
a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre
experimento: quando ouço um, saio do sermão
muito contente do pregador; quando ouço outro,
saio muito descontente de mim.”

Edição resenhada:
Columbano Bordalo Pinheiro/Domínio Público

VIEIRA, Pe. Antônio. Sermão da Sexagésima. Em:


VIEIRA, Pe. Antônio. Sermões escolhidos. Jandira:
Principis, 2019, p. 47 a 74.

Capa: 1ª página do texto original publicado em 1679,


exposta na Biblioteca Nacional de Portugal.
15

NOSSA SENHORA APARECIDA


PADRE ROHRBACHER
Weiszflog Irmãos/Domínio Público

16
Os primeiros habitantes do vasto vale do Paraíba, Pedroso, o qual lhe fez um altarzinho ou oratório
entre a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira, vale de madeira, onde a colocou. Era ali que, todos os
banhado pelo famoso rio Paraíba do Sul, eram, sem sábados, reuniam-se os vizinhos para cantar o
dúvida, os tamoios, pertencentes a grande família terço e mais devoções. Foi também ali que se deu
Tupi. Mais de duzentos anos depois da descoberta o prodígio, várias vezes repetido, das velas que se
do Brasil, na região então chamada Morro dos Co- apagavam e, sem intervenção de ninguém, de novo
queiros, distante de Guaratinguetá, habitavam se acendiam.
poucos moradores, dentre eles os pescadores Do- Passados alguns anos, como era grande o con-
mingos Martins Garcia, João Alves e Filipe Pe- curso das gentes, tornou-se imperiosa a construção
droso. duma igreja. Em 1743, o vigário de Guaratinguetá,
Em outubro de 1717, foi encontrada a prodigiosa Padre José Alves de Vilela, solicitou ao bispo do
Imagem de Maria nas águas do rio Paraíba. O Rio de Janeiro, Dom Frei João da Cruz, licença
achado é fato histórico, prendeu-se a uma viagem para erguer uma igreja. Assim, no lugar histórico
que fazia Dom Pedro de Almeida, Conde de As- onde apareceu milagrosamente a Imagem de Nossa
sumar, Governador e Capitão-General de São Senhora Aparecida, foi, mais tarde, erigida uma
Paulo e Minas Gerais. Sabendo que o ilustre hós- cruz comemorativa e, num ponto pouco mais ele-
pede e sua comitiva se deliciariam com uma mesa vado, uma Capela, inaugurada em 26 de julho de
bem servida de saborosos peixes, a Câmara de 1745, em cujas paredes externas se liam os nomes
Guaratinguetá ordenou aos pescadores da redon- dos três felizes pescadores que encontraram a Ima-
deza que saíssem a pescar e trouxessem todo o gem da Imaculada, hoje venerada como Padroeira
peixe que conseguissem apanhar. do Brasil.
Os três pescadores principiaram a lançar suas re- Com o correr dos anos, transpondo as serras por
des no porto de José Correia Leite, continuando até meio de rampas, ou varando-as pelos túneis, as es-
o porto de Itaguaçu, bem distante, sem tirar peixe tradas de ferro, partindo da costa, alcançaram o
algum. Foi quando João Alves aí lançou sua rede e vale do Paraíba do Sul. Notável foi o progresso que
tirou o corpo da Senhora, sem a cabeça; lançando a Estrada de Ferro Central do Brasil levou a Apa-
mais abaixo outra vez a rede, tirou a cabeça da recida. Era em 1877. A estação foi batizada com o
mesma Senhora. nome de Aparecida e tudo entrou a mudar de as-
João Alves, homem, sem dúvida, religioso, en- pecto.
volveu-a respeitosamente num pano, depositou-a Naquele mesmo ano de 1877, chegava a Apare-
na sua canoa e continuou a lançar a rede. Daquele cida Frei Joaquim do Monte Carmelo, nascido na
momento em diante, a pesca foi de tal modo abun- Bahia. Em janeiro do ano seguinte, apresentou Frei
dante, que ele e os companheiros, receosos de nau- Joaquim à Mesa Administrativa uma proposta de
fragar, devido à enorme quantidade de peixes, re- construção do corpo da igreja e da Capela-mor, re-
tiraram-se para suas casas, narrando a todos, forma inaugurada em 8 de dezembro de 1888.
cheios de espanto, o que lhes acontecera. Concluídas as obras, Frei Joaquim regressou a seu
Filipe Pedroso, ao que parece, o mais afeiçoado à mosteiro na Bahia e o Padre Claro Monteiro do
pequena Imagem, conservou-a em sua casa du- Amaral foi nomeado capelão de Aparecida em
rante uns quinze anos. Indo, mais tarde, morar no 1893.
Itaguaçu, deu a Imagem a seu filho Atanásio Em 1894, quando duma viagem a Roma, de Dom
17
Lino Deodato de Carvalho, bispo de São Paulo, re- Em 31 de maio de 1931, ocorreu a Consagração
cebeu a incumbência de obter uma comunidade de do Brasil a Nossa Senhora Aparecida. Para tanto, a
verdadeiros missionários para Aparecida. O Supe- Imagem foi levada ao Rio de Janeiro, então capital
rior-Geral dos Redentoristas aceitou a nova fun- do país. Dom Sebastião Leme, arcebispo de Olinda
dação. Assim, em 28 de outubro do mesmo 1894, e destacado devoto de Nossa Senhora Aparecida,
chegavam os primeiros Redentoristas; pondo fim à telegrafou ao papa:
capelania secular. A chegada dos redentoristas
Multidão, cerca de um milhão de pessoas, pre-
contribuiu espiritual e materialmente para os mo-
sença vinte e cinco bispos, Núncio Apostólico,
radores do lugar e para os romeiros, pois transfor-
membros Corpo Diplomático, Presidente da Re-
mou Aparecida em um centro de piedade sem di- pública, autoridades civis e militares, instituições
visas, propagado pelo Santuário de Aparecida, jor- religiosas e civis, classes populares, levou triunfo
nal fundado em 1900, quando as grandes romarias Imagem Padroeira, Mãe povo Brasileiro. A cidade
inteira, representando Nação, jurou fidelidade
tiveram começo.
Cristo-Rei, adesão Santa Sé, Romano Pontífice,
Em 1903, os senhores Bispos pediram ao Santo
cuja bênção implora todo Brasil genuflexo, vi-
Padre Pio X a faculdade de coroar solenemente a brante alma religioso povo fiel, generoso e bom
Imagem milagrosa de Nossa Senhora Aparecida, minha Capital.
comemorando o quinquagésimo aniversário da de-
finição dogmática da Imaculada Conceição. A fa- No dia 10 de setembro de 1946, o Cardeal Manuel
culdade foi concedida e a solenidade foi realizada Gonçalves Cerejeira, de Portugal, com a presença
em 8 de setembro de 1904. dos nossos dois cardeais e do representante do Pre-
A 29 de abril de 1908, o Santo Padre Pio X, agora sidente da República, com o governador do Estado,
elevado à honra dos altares, concedeu ao Santuário e muitos bispos, grande número de sacerdotes e
de Nossa Senhora Aparecida o título e a dignidade uma infinidade de fiéis, procedeu a bênção da Pri-
de Basílica. No dia 2 de janeiro de 1910, chegaram meira Pedra da nova Basílica Nacional.
à Basílica as relíquias de São Vicente Mártir, que Em 25 de março de 1954, na ocasião do chama-
jazem num nicho, debaixo do altar-mor. Em 1917, mento do Primeiro Congresso da Padroeira do
segundo centenário do encontro da Imagem, o papa Brasil, Dom Carlos Carmelo, cardeal presbítero e
Bento XV concedeu indulgência plenária em forma arcebispo metropolitano de São Paulo, escreveu:
de jubileu aos que visitassem a Basílica.
Como escrevemos alhures, os filhos bem-nascidos
Em setembro de 1929, celebrou-se em Aparecida
e espiritualmente bem formados exultam sempre
um Congresso Mariano, cujos participantes arce- em conhecer a vida da criatura abençoada que lhes
bispos e bispos externalizaram o desejo unânime deu o ser e o materno leite e amor de mãe.
de que Nossa Senhora Aparecida fosse declarada
Se assim é na ordem natural, mormente na ordem
Padroeira do Brasil. O episcopado apresentou,
sobrenatural ou na ordem da vida da graça. Aquela
pois, ao Santo Padre Pio XI esse pedido, sendo o que é a Mater Divinae Gratiae tem todo o direito
mesmo acolhido com muito agrado. Assim, em 16 ao mais sublime amor e ao mais acendrado culto
de julho de 1930, o grande Pio XI assinou o decreto por parte de todos os verdadeiros cristãos, regene-
rados pelo divino sangue do Salvador dos homens.
pontifício que declarou e proclamou Nossa Se-
Pois esse sangue redentor, Cristo o recebeu do seio
nhora da Conceição Aparecida Padroeira da Nação
imaculado e sempre virgem de Maria: Mariae, de
Brasileira.
18
qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. teve o próprio Dom Pedro, quando de sua viagem
a São Paulo em 1882.
A salvação moral e espiritual da cristandade des-
cansará perenemente na proteção superna de nossa A Imagem da Senhora Aparecida, que os três fe-
Mãe do Céu, tal qual em seus braços maternais lizes pescadores colheram nas águas do Rio Para-
descansava o próprio Salvador Jesus, o Cristo Fi- íba, é pequena. Feita de terracota, rústica, escura,
lho de Deus Vivo.
mas bem talhada, mede trinta e nove centímetros
A devoção a Nossa Senhora é a salvaguarda da fi- de altura. Maria, representada com as mãos postas,
delidade religiosa do nosso povo; e, para cada um tem, aos pés, uma cabecinha de anjo, e a meia-lua,
de nós, o penhor da conquista do Paraíso. como é geralmente representada a Imaculada.
Na capelinha do piedoso e zeloso Atanásio Pe-
Para sermos verdadeiros e bons brasileiros, have-
mos de ser fieis devotos da Mãe de Deus e Nossa. droso, foi venerada como apareceu — sem manto
Em seus braços veio Jesus para nós; em seus bra- [1]. Atualmente, num nicho, recobre-a um manto
ços iremos nós para Jesus. todo azul, muito rico, bordado a ouro, onde se lê:
REGINA BRASILIAE. Ornando-lhe a cabeça,
[...]
linda coroa de pedras preciosas dá-lhe a realeza a
Que Nossa Senhora Aparecida console os que que faz jus.
choram, conforte os que sofrem, encaminhe os
transviados, reconcilie os inimigos, consolide as
famílias, harmonize as sociedades, salve o Brasil! Fonte:
E assim como foi sua milagrosa Imagem recolhida
nas redes dos pescadores, assim também se digne PADRE ROHRBACHER. Nossa Senhora da Conceição
a querida Mãe e Padroeira recolher-nos a todos Aparecida. Em: Vida dos Santos. Vol. 18. São Paulo: Edi-
nas redes de sua bondade e de seu poder, levando- tora das Américas, 1959, p. 116-156. (revisão textual e
nos para o Céu, levando-nos para Jesus: AD IE- adaptação editorial nossa)
SUM PER MARIAM!
[1] Nota dos editores: Em 6 de novembro de 1888, a princesa
Entre os inúmeros devotos, crentes de seu poder Isabel visitou a Basílica pela segunda vez e ofereceu à santa,
e de sua magnanimidade, que se ajoelharam aos como pagamento de uma promessa (feita em sua primeira vi-
sita, em 8 de dezembro de 1868), uma coroa de ouro crave-
pés de Nossa Senhora Aparecida, conta-se que es-
jada de diamantes e rubis e um manto azul, ricamente ornado.

Autoria desconhecida/Centro de Documentação e Memória do Santuário

19
YSTORIA SANCTI
SANTA BRÍGIDA

O que o Salvador disse a Nicodemos: O espírito


sopra onde quer (cf. S. Jo 3,8); o mundo cristão o
viu, pelos fins do século XIV, em Santa Brígida.
Ela nasceu nos confins extremos da Suécia, na pro-
víncia de Upland, no domínio de Finstad, não
longe de Upsala, então capital de todo o reino.
Nasceu entre 1302 e 1303. Seu nome é propria-
mente Birgida, transformada em Brígida pelo uso
comum. Sua família era das mais ilustres; tinha pa-
rentesco próximo com a família real e descendia
dos antigos reis do país. Nela a piedade era here-
ditária, como a nobreza. O avô, o bisavô e o trisavô
do pai de Brígida, por devoção aos mistérios da
Paixão do Salvador, fizeram uma peregrinação a
Jerusalém e a outros santos lugares que Jesus
Cristo ilustrou com sua presença. O príncipe Bir-
ger, seu pai, juiz ou governador da província de
Upland, era homem cheio de piedade e de virtude.
Fundou grande número de igrejas e de mosteiros;
fez peregrinações a Roma, a Jerusalém e a outros
locais sagrados, a exemplo de seu pai e seus ante-
passados. Jejuava, confessava-se e comungava to-
das as sextas-feiras, a fim de conseguir a graça de
sofrer pacientemente as cruzes que Deus lhe man-
dava até a sexta-feira seguinte. A princesa, sua es-
posa, chamada Ingeburga, filha de Ligride, não ti-
nha menos piedade. O túmulo dos dois esposos
existe ainda na catedral de Upsala.
Quanto à S. Brígida, sobre a qual temos uma bi-
ografia contemporânea escrita por Birger, arce-
bispo de Upsala, seu nascimento foi ilustrado por
diversos prodígios. Sua mãe, a princesa Ingeburga,
escondia terna piedade sob hábitos, convenientes à
alta linhagem. Uma religiosa, vendo-a assim ves-
tida, taxou-a de orgulhosa, em seu coração. Na
Autoria desconhecida/

noite seguinte, durante o sono, um personagem


Domínio Público

20
venerável apareceu-lhe, dizendo: “Por que pen- Tendo-se, então, despedido de todos, adormeceu
saste mal de minha serva, tratando-a de orgulhosa, no Senhor.
o que, entretanto, não é verdade? Dela farei nascer Assim, desde muito jovem S. Brígida foi confiada
uma filha, com a qual farei aliança, conferindo-lhe pelo pai a uma tia materna prudente quão piedosa.
uma graça tão grande que todas as nações não serão A filha de Birger recebeu um cuidadoso treina-
suficientes para a admirar”. mento religioso, e a partir de seu sétimo ano mos-
A essa circunstância maravilhosa, o arcebispo de trou sinais de impressões religiosas extraordinárias
Upsala, bem como os outros biógrafos, acrescenta e iluminações. Em sua educação, e principalmente
uma segunda. A princesa Ingeburga, estando grá- pela influência da tia materna, ela aprimorou
vida de Brígida, naufragou nas costas da Suécia e aquela força inabalável de vontade que mais tarde
foi salva do perigo pelo irmão do rei. Na noite se- a distinguiu.
guinte, um personagem vestido com uma roupa Na idade de dez anos, era como um lírio muito
brilhante apareceu a Ingeburga, e lhe disse: “Foi puro que se erguia da terra ao céu. Ostentava o mo-
em consideração à criança que trazeis que fostes delo de todas as virtudes, a sobriedade com a mo-
salva da morte; tende cuidado em criar no amor de déstia, a simplicidade com a ponderação, a humil-
Deus o que Deus vos deu especialmente”. E no dade com a obediência, a beleza na consciência, a
nascimento de Brígida, o vigário da paróquia, ho- hilaridade na paciência com uma caridade infati-
mem venerável por sua idade e virtude, passava as gável. Após ouvir um sermão sobre a Paixão de
noites em oração numa igreja vizinha, quando viu Nosso Senhor, o Mesmo Cristo lhe apareceu, cru-
uma nuvem luminosa e no meio da nuvem a Santa cificado, todo ensanguentado e chagado, a primeira
Virgem sentada, tendo na mão um livro e dizendo- de uma série de visões que lhe despertaram uma
lhe: “Nasceu em Birger uma menina cuja voz ad- devoção terníssima à Sagrada Paixão e Morte de
mirável será ouvida por todo o mundo”; eis o que Nosso Senhor Jesus Cristo. Na ocasião, tomada de
refere o arcebispo de Upsala, bem como os outros profunda compaixão incomum para uma criança,
biógrafos contemporâneos de S. Brígida. ela perguntou:
Entretanto, a maravilhosa criança ficou muda du- — Senhor, quem vos maltratou dessa maneira?
rante os três primeiros anos. No fim desse tempo, E Nosso Senhor lhe respondeu:
começou, não a balbuciar, como as crianças, mas a — Foram aqueles que desprezaram meu amor,
falar perfeitamente como as pessoas já adultas. isto é, aqueles que transgridem os meus manda-
Viu-se aí um efeito da sabedoria divina que abre a mentos e se mostram ingratos ao amor infinito que
boca dos mudos e torna eloquentes as línguas das lhes dedico.
crianças, a fim de tirar da boca das crianças, e da- A partir de então, muitas maneiras seu amor in-
queles que ainda mamam, um louvor perfeito. Es- ventou para castigar o corpo, e no sofrimento unir-
perando, sua piedosa mãe, cheia de boas obras e se Àquele que tanto sofreu por nossa causa. Apa-
esmolas, caiu gravemente doente. Soube e predisse recia como esposa de Deus, como uma pérola bri-
a morte vários dias antes. Vendo a aflição do es- lhante, cheia de graça a todos os olhos e amada por
poso e dos outros, disse-lhes com muita coragem: todos. Devia, porém, subir ainda mais alto.
“Por que afligir-vos? É muito ter vivido e ter vi- Em 1316, com a idade de treze anos, ela foi unida
vido bastante; ao contrário, devemos alegrar-nos em casamento com Ulf Godmarson, que tinha en-
de que sou chamada a um Senhor mais poderoso”. tão dezoito anos. S. Brígida adquiriu grande influ-
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ência sobre seu nobre e piedoso marido, conver- tava doze deles em casa; na quinta-feira, lavava-
tendo-o da vida devassa para o catolicismo. O ca- lhes e beijava-lhes humildemente os pés, em me-
samento feliz foi abençoado com oito filhos, entre mória do que Nosso Senhor tinha feito a seus após-
eles S. Catarina da Suécia. A santa vida e a grande tolos. Restaurou grande número de hospitais no
caridade de Brígida logo fizeram seu nome em toda país natal e em suas terras; lá reservava a si mesma
parte. Ela teve contato com vários teólogos erudi- os serviços mais extenuantes, tendo as filhas como
tos e piedosos, entre eles Nicolaus Hermanni, mais testemunhas, especialmente S. Catarina. Lá a pie-
tarde Bispo de Linkoping; Matthias, cônego de dosa mãe medicava com as próprias mãos as cha-
Linkoping; Matthias canonista de Linkoping, seu gas e as úlceras dos enfermos, dando-lhes esmolas
confessor; Pedro, Prior de Alvastra; e Peter Magis- e dirigindo-lhes palavras de consolo, mostrando
ter, seu confessor depois de Matthias. aos filhos, com o exemplo, como deveriam um dia
A mãe, depois de ter vivido santamente na vir- servir também aos pobres e aos enfermos por amor
gindade, não viveu menos santamente no casa- de Deus.
mento. Depois do nascimento do oitavo filho, Ulf No início do ano de 1341 ou 1343, em companhia
e S. Brígida guardaram continência. Ela regulou de seu marido, ela fez uma peregrinação a Santiago
tão bem toda a vida que jamais deixou motivo a de Compostela. Na viagem de volta, o marido foi
alguma suspeita sinistra, nem maledicência al- acometido de súbita doença, recuperando-se o su-
guma. Para isso, não admitia nem criadas nem ficiente para terminar a viagem. Na ocasião, S. Di-
companheiras cuja reputação não fosse sem man- onísio apareceu a S. Brígida e lhe prometeu que ele
cha, para que sua familiaridade não lhe atraísse al- não morreria naquela ocasião. Eles retornaram para
guma má fama. Sabendo que a ociosidade é mãe Suécia e Olf, tomado de grande mudança espiri-
de todos os vícios, dedicava-se com suas domés- tual, com o consentimento da esposa, entrou para o
ticas a trabalhos para as igrejas e para os pobres, mosteiro cisterciense de Alvastra, em East Cloth
lia as vidas dos santos e a Bíblia, que tinha feito Land. Aí Ulf veio a falecer, em 1344. Após sua
traduzir em língua gótica; ia à igreja e ouvia com morte, S. Brígida dividiu seus bens entre os filhos
prazer o Ofício divino. Com seu esposo, o príncipe e os pobres, renunciou à condição de princesa e
Ulf, confessava-se todas as sextas-feiras e comun- passou a dedicar-se inteiramente a práticas religi-
gava todos os domingos e festas. Tinha um oratório osas e ascéticas, incluindo a escrita de diversos li-
secreto, onde se recolhia na presença de Deus, exa- vros de edificação espiritual e a fundação da Or-
minava a consciência, chorava as faltas; onde, dem de Santa Brígida, sob a Regra de S. Agosti-
quando o marido estava ausente, passava as noites nho.
inteiras em oração, vigílias, jejuns e outras morti- Se a santa viúva teve de sofrer da parte dos ho-
ficações; sempre se abstinha de iguarias, mas se- mens, incluindo a morte de filhos e do marido,
cretamente, para não ser notada pelo marido ou por Deus a consolou abundantemente com revelações
outros. Tinha a mais terna devoção pela Santa Vir- e comunicações sobrenaturais. Essas revelações
gem, que, nos partos laboriosos, concedia-lhe um foram examinadas por doutores católicos e apro-
fácil resultado, quando todos pensavam que ia per- vadas pela Santa Sé, que nada contêm de contrário
der a vida. à fé e que nelas se pode crer piamente. Além das
Suas esmolas eram muito grandes, e tinha uma revelações que se referem à fé, há em S. Brígida,
casa ampla para os pobres. Todos os dias, alimen- como nas profecias da antiga lei, muitas exorta-
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ções, advertências, às vezes muito severas a Papas, ceber os últimos sacramentos. Morreu a 23 de julho
a reis, a povos, ou classes de homens, padres e ca- de 1373, na idade de setenta e um anos. Enterra-
valeiros. Mais de uma vez essas exortações encer- ram-na na igreja de São Lourenço, em Panisperna,
raram ameaças proféticas que tiveram realização. que pertencia às pobres clarissas. No ano seguinte,
De suas visões, a mais célebre sem dúvida é o príncipe Birger, seu filho, e Santa Catarina, sua
quando Nosso Senhor Crucificado apareceu-lhe filha, fizeram levar o corpo para o mosteiro de
para responder quantos golpes sofreu ao todo em Watstein, na Suécia. Foi canonizada pelo papa Bo-
sua Paixão (5480); acontecimento que deu origem nifácio IX, a 7 de outubro de 1391. Sua festa é no
à prática das 15 Orações reveladas por Jesus a dia 8 de outubro.
Santa Brígida, aprovadas pelo Papa Pio IX em 31
de maio de 1862.
Fontes:
No ano 1371, a ilustre viúva sueca, como outrora
a ilustre viúva romana Santa Paula, da família dos KIRSCH, Johann Peter. Santa Brígida da Suécia. Em: Enci-
Gracos e dos Cipiões, empreendeu, em idade avan- clopédia Católica. Vol. 13. Nova Iorque: Robert Appleton
çada, ante uma revelação particular, a peregrinação Company, 1912, p. 273-284.
LEHMANN, Pe. João Batista. Santa Brígida. Em: Na Luz
a Jerusalém. Chegando a Roma já enferma, ficou
Perpétua. Vol. II. Juiz de Fora: Lar Católico, 1950, p. 365-
mais doente ainda. Sentindo-se perto do fim, deu
367.
avisos muito comoventes aos filhos, príncipe Bir- PADRE ROHRBACHER. São Miguel e os Anjos Bons.
ger e S. Catarina de Suécia, quem estava com ela; Em: Vida dos Santos. Vol. 13. São Paulo: Editoras das
depois, quis ser estendida sobre um cilício, para re- Américas, 1959, p. 273-284.

Autoria desconhecida/Museu Britânico

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EUTRAPELIAM

ALTAR
DA
SANTA
MISSA

Autoria desconhecida/Domínio Público


O altar (do latim altus; alto) é uma mesa sa-
grada onde se realiza o Sacrifício da Santa
Missa. É colocado sobre uma base chamada
supedâneo, geralmente elevada acima do piso
por três degraus, os quais representam as vir-
tudes da Fé, Esperança e Caridade.
No centro do altar há uma pequena cavidade
onde se coloca uma pedra, comumente de
mármore, denominada pedra d’ara, que en-
cerra dentro de si relíquias de santos mártires,
em recordação de quando as missas eram ce-
Os demais itens do altar são:
lebradas sobre seus túmulos. Durante a Santa
Sacrário: compartimento colocado no centro do altar,
Missa, é sobre essa pedra que repousam o cá-
onde são guardadas as hóstias consagradas.
lice e a Hóstia.
Sacras: três quadros, sendo o maior disposto no centro,
As toalhas do altar são três, feitas de linho com as orações da Missa: Gloria, Munda cor meum,
ou cânhamo, e simbolizam os lençóis com Credo, Orações do Ofertório e as palavras da Consa-
que foi amortalhado o Corpo de Nosso Se- gração; e os dois menores localizados um do lado da
nhor Jesus Cristo. Duas são do tamanho do Epístola, com as orações do Lavabo e da mistura de
tampo do altar, devendo ser colocadas sobre água e vinho, e outro do lado do Evangelho, contendo o
um pano encerado de mesmo tamanho; e a Evangelho Segundo São João.
terceira, de mesma largura das demais, tam- Missal: livro que contém todas as orações e orientações
bém cobre as laterais, descendo até o supedâ- acerca daquilo que o Sacerdote precisa fazer durante a
Missa. Ele fica disposto sobre um suporte denominado
neo.
estante do Missal.
O altar também deve ter um crucifixo e pelo
Lâmpada: item que contém azeite de oliva puro mantido
menos duas velas, para a Missa Rezada, co-
aceso próximo ao altar, que lembra a presença de Cristo.
locadas na banqueta mais imediata; acrescido O altar ainda pode ser ornado com um pano frontal,
de seis velas na banqueta seguinte, para a flores, imagens e velas adicionais.
Missa Cantada.
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Saiba mais em:
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