Você está na página 1de 41

PERIGOSAS

Daniel Aço

O Segredo da Moeda
Celta

2015

ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS

O Segredo da Moeda Celta

O dia ensolarado escondia,


muito estranhamente, aquele ambiente
lúgubre. Sentada em confortável cadeira
junto à sua habitual e antiguíssima mesa
de trabalho, estando de costas para a
linda lareira utilizada em dias frios,
Rosa se preparava para mais uma
sessão. Alguém estava à sua frente, do
outro lado da mesa.
─ Seu nome, por favor?
─ Sandra.
─ Eu sei. Todos a chamam de
Sandra, mas seu primeiro nome é Maria.
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
Na verdade, Maria Sandra.
A face branca de Maria Sandra
agora se tornara pálida. O que a levara
ali já lhe fizera não apenas desequilibrar
os sentidos, mas obscurecer o que ainda
lhe restava de razão. Seus sentimentos
estavam a dez mil quilômetros por hora,
só para dizer o mínimo.
─ Como sabe o meu nome?
─ Me contaram.
─ Por acaso a minha mãe
esteve aqui?
─ Dona Cecília não esteve aqui
nem eu fui procurá-la. Seu João
Francisco é quem veio me fazer uma
visita.
A palidez súbita de Sandra agora
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
havia se tornado o maior dos pânicos,
uma espécie de pavor suposta e
caoticamente controlado. Com os olhos
saltados, ela teve que se conter para não
sair correndo gritando a sua angústia, o
infortúnio de seu destino e a impotência
crescente ante os fatos.
─ Por favor, não fique gelada
nem pense em sair.
─ Rosa, eu não sei o que
pensar...
─ Tranquilize-se, por favor.
Você vai ficar bem e está muito bem
acompanhada.
Seu João Francisco, o pai de
Maria Sandra, homem com quem dona
Cecília vivera quarenta longos e
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
digníssimos anos, morrera havia meia
década. Uma morte natural, nada de
traumas, apenas um coração cansado que
se recusou a bater outra vez. E a
presença do progenitor perto da filha,
em circunstâncias que se diriam
insólitas, levava Sandra a crer na sua
crescente e estupenda pequenez.
─ Rosa, por favor, preciso de
sua ajuda.
─ Eu sei, e é por isso que você
está aqui. Em primeiro lugar, Sandra,
você precisa se equilibrar interiormente,
fortalecer etérea e moralmente o teu
espírito, compreender que existe uma
razão concreta e lógica para tudo isso.
Eu, seu pai e os teus protetores
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
espirituais vamos nos unir a fim de
auxiliá-la em nosso derradeiro
empreendimento. Nunca as Trevas
vencerão a Luz, não na grande odisseia
espiritual pela Verdade. Que o Mal
vença batalhas, disso não se duvida.
Não vencerá, porém, a guerra. Jamais!
Pouco a pouco Sandra tentava
encontrar alguma razão lógica para tudo
que havia vivido. Como poderia ela,
afinal, seguir adiante? Alugara aquela
casa porque instintiva e emotivamente se
sentira incontrolavelmente atraída. Foi
atração à primeira vista, penetrante,
para a qual ela não pôde resistir.
Apenas se passara um mês, mas
a intensidade frenética dos fatos
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
relativizava, em muitos graus, esse
período. No caso, um mês parecia ser
algumas vezes mais.
À porta da casa em que nasceu,
cresceu e viveu, Sandra se despediu de
sua mãe e tomou assento em seu
automóvel. De maneira inédita, pensava,
viveria livre, leve e solta! E sozinha! E
as coisas de fato agora corriam bem
para ela: fora promovida no emprego,
teve seu salário duplicado e se supunha,
com relação ao horizonte próximo de
sua vida, um futuro promissor.
Sandra se instalou numa
residência pequena, confortável, já
mobiliada, com sala, cozinha, dois
quartos, lavanderia e um pequeno
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
escritório, que até poderia ser usado
como uma pequena biblioteca.
Já tendo almoçado e estando
com o corpo fortemente nutrido pelas
gorduras necessárias à preservação
biológica, Sandra desceu do carro e
levava sua maior mala à sala de sua
ansiada morada. Feito descansar o
receptáculo de couro no chão antigo e
empoeirado do ambiente que lhe
prometia ser familiar, subitamente ela
ouviu um barulho forte às suas costas, ao
que supôs, de início, ter sido o vento
responsável pelo fechamento repentino
da porta. Porém, uma vez o ambiente
estando calmo, Sandra verificou algo
muito estranho, já que ela não havia
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
sentido, desde quando acordara,
nenhuma corrente de ar durante aquele
dia. Para certificar-se melhor da
ocorrência, deslocou-se até a pequena
escada do alpendre para sentir o clima
do dia, lá constatando, definitiva e
indubitavelmente, bastante
tranquilidade.
Achou o clima da sala bem
estranho, mas aos poucos foi se
acalmando. Como não conhecia o chão
em que agora pisava e no qual se
propunha a se adaptar, transformar e ali
viver, Sandra ergueu a cabeça, respirou
fundo e voltou a explorar a casa.
─ Conte-me tudo, Sandra, desde
o começo – solicitou Rosa.
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
─ O evento da porta foi o
primeiro e posso assegurar, por mais
que isso me aflija, que foi o mais leve e
o menos traumático dos fatos que
estavam por vir. Durante a noite do
primeiro dia em que lá dormia, o meu
sono, por volta das 2 ou 3 horas da
manhã, foi tomado de susto por barulhos
estranhos que pareciam vir da cozinha.
Fiquei com os olhos bem abertos no
escuro do meu quarto, ainda na cama,
concentrando os meus ouvidos em tais
barulhos eventuais e intercalados. Não
sei ao certo como defini-los, embora
possa arriscar que se assemelhassem ao
som de talheres em madeiras um pouco
apodrecidas. Eu estava muito cansada,
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
já que efetuara a mudança horas antes e
havia passado horas arrumando a nova
residência. Quando mal percebi certo
silêncio repentino em hora alta da
madrugada, nem dei por mim e já estava
dormindo novamente. Acordei quase tão
cansada como eu me encontrava quando
fui dormir, sem ter claro o que ocorrera.
Em seguida, apesar de exausta, tomei
café e fui para o trabalho.
Sandra era advogada e até pouco
tempo atrás ela considerava a sua lógica
jurídica acuradíssima, tão acuradíssima
a ponto de não se deixar levar pelo que
mentes criativas afirmavam ser o
sobrenatural. Ela se portava como uma
medida aparentemente segura de
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
ceticismo e de certezas científicas.
Reacomodando-se na cadeira,
Sandra respirou levemente e perguntou
se poderia acender um cigarro. Tão
rápido fizera a indagação já estava ela
com o crivo entre os dedos a poucos
milímetros de seus carnudos e
suplicantes lábios, num gesto de
nervosismo crescente. Acendeu-o sem
nem sequer ouvir a resposta da médium,
que consentiu tão somente com os olhos,
embora, a rigor, ela desprezasse
qualquer tipo de contaminação em sua
sensibilidade etérea. Rosa sabia que as
substâncias da fumaça do cigarro
desequilibrariam a sua saúde numa sala
ventilada só por uma pequena fresta em
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
discreta janela.
─ O que aconteceu após os
eventos da porta e dos sons da
madrugada? – quis saber a médium.
─ Fui para o Fórum Central
cansadíssima e trabalhei normalmente.
Quer dizer, pelo menos assim procurei
fazê-lo. Na hora do almoço, no
refeitório do restaurante em que estava
almoçando com as minhas colegas
festivas, sentia o meu pescoço
extremamente rijo como se uma espécie
de torcicolo me houvesse apanhado. O
dado curioso é que o meu pescoço não
estava torto, como natural e
pateticamente ocorre a quem sofre do
desconforto do torcicolo.
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
─ Compreendo o que dizes,
compreendo.
Sentindo-se um pouco confusa,
Sandra não retrucou o dito de Rosa.
Considerou um tanto cortante a sua
intromissão naquele instante, mas seguiu
relatando os eventos vivenciados.
Sandra continuou:
─ De alguma maneira, mesmo
exausta e de pescoço duro, parecendo eu
sei lá o quê, saboreei o meu bom almoço
com arroz, fritas e bife acebolado. De
quebra, também não pude dispensar
várias rodelas de beterraba e
substanciais centímetros de folhas de
alface.
Sandra sabia que estava
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
engordando pouco a pouco, muito
especialmente nos últimos tempos. Ela
vivia bastante ansiosa pelos eventos
sinistros que a envolviam, mas mentia
para si própria quando dizia que
adorava saladas. Talvez essa fosse a sua
última esperança de se transformar numa
modelo, de quem se inveja a esbelta
silhueta e todo o encanto de ser adorada.
A ansiosa advogada continuou
relatando à médium o seu primeiro dia
de trabalho depois de sua aterrorizante
mudança. A tarde daquela segunda-feira
demorou muito para terminar.
─ Foi uma tarde péssima, não
estando eu lembrada de outro dia tão
ruim para mim no meu trabalho em tão
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
prestigiado fórum. Cochilei durante
quarenta minutos sobre a escrivaninha e,
caso não fosse a cutucada da advogada
Paula Farias, algum dos meus chefes
teria se indisposto comigo. O fato é que
finalmente eu voltei para casa, não sem
antes passar no supermercado para
comprar uma pizza, leite e algumas
outras coisas. Depois, quando estava
vendo a metade final de minha novela
predileta, comecei a perceber sons
estranhos advindos do forro da
residência, imaginando imediatamente a
hipótese de um intruso armando ímpeto
para invadir meu espaço, saquear-me e
sabe-se lá mais o que ele planejava me
perpetrar. Proteja-me Deus! Louvado
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
seja, ó Senhor!
─ Prossiga, querida, por favor –
pediu Rosa. – Agora vamos
compreender o que ocorreu.
Respirando fundo depois da
última tragada, a advogada se levantou
subitamente e jogou a ponta do cigarro
para dentro da poética lareira de Rosa,
que a partir de então ganhou aquele
nocivo troféu decorativo.
Restabelecida em sua cadeira e
cara a cara com a médium impassível, a
advogada continuou o relato:
─ Passado o primeiro susto,
rápida e concretamente percebi que tais
sons não eram humanos. Tenho certeza
de que eram barulhos de passadas mais
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
sutis, dificilmente sendo pés de carne
humana viva. A idade do forro da casa
não permitiria, pelo menos inicialmente
parecia, sustentar um ou muitos corpos
humanos.
─ Sim, continue – solicitou a
médium.
Sandra já pensava em acender
outro cigarro, porém, a contar pelo olhar
quase hipnótico de sua confidente,
sentiu-se um pouco constrangida. A
fresta da discreta janela do cinzento
aposento lhe dava, tanto quanto o
percebia, uma fresca finíssima no rosto
assustadiço, o que suavizava igualmente
a médium.
─ Bem, continuei trabalhando
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
normalmente após todos esses incidentes
– continuou Sandra. – Aliás, cada vez
mais eu me maravilhava a seguir
trabalhando. Quando caía a noite, para o
meu desespero lá estava eu de volta ao
meu pequeno inferno. Sim, porque não
pense que foram apenas esses poucos
eventos que me consternaram.
─ Eu sei disso, Sandra, eu seu
disso – respondeu Rosa.
─ Sabe? – interrogou Sandra,
petrificando-se de imediato.
─ Prossiga, por favor.
─ Sim, claro, vou prosseguir –
disse a advogada. – Eu voltava sempre
para casa e todos os dias, no mesmo
horário, na segunda metade de minha
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
novela preferida, os mesmos sons, tais
quais, sem tirar nem pôr, se faziam
presentes no forro e aos meus ouvidos.
Naturalmente, você deve convir que
nesses momentos o meu coração
disparava, a minha respiração encurtava
e as minhas pernas tremiam iguais a
bambus num vendaval.
─ Sim, são sintomas como os do
pescoço rijo. Sua fatalidade, Sandra, sua
fatalidade.
─ Como?
─ Continue, querida.
Sandra não captou bem o termo
“fatalidade” e motivos para isso havia,
visto que fatalidade, na linguagem
corrente, é sinônimo de acidente e azar.
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
Porém, na linguagem pura filosófica
significa necessidade, algo que
inexoravelmente precisa se realizar para
tal ou qual pessoa numa determinada
circunstância presenteada.
─ Com o tempo, desenvolvi o
método de fechar os olhos e torcer até
os limites de minhas forças psíquicas
para que todos os tenebrosos sons
terminassem, o que sempre, igual a um
cronômetro, acontecia. No entanto, uma
semana se passou e outros fatos
repulsivos surgiram. De sustos intensos
e medos aterrorizantes, todas as terças e
quintas-feiras a televisão desligava
sozinha após a novela. Já nas noites das
quartas-feiras e aos sábados, um copo
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
sempre encontrava o chão frio da
cozinha e se quebrava em mil e um
pedaços, o que me causava, além dos
sustos, lastimável prejuízo. Aqueles
lindos cristais eram quase tão bons
quanto os do Palácio de Beckingham.
─ Agora estou entendendo –
disse a médium.
─ Como? – perguntou Sandra.
─ Prossiga, por favor – disse
Rosa.
─ É que o pior, amiga, ainda
viria à baila.
Sandra desmoronara em prantos.
Declarou ela que à noite, num domingo
encoberto por névoa cinzenta e após
horas de tempestade sinistra, uma
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
silhueta transpareceu de reflexo na plana
tela do televisor, fazendo sombra na
branca parede. O evento a gelou dos pés
à raiz dos cabelos.
─ Socorro! – gritou a advogada.
─ Calma, tome um pouco d’água.
Sandra respirou fundo algumas
vezes, tomou a água do copo longo e
prosseguiu. Porém, agora não mais
apalpava o maço de cigarros, pois o
destroçava pela nervosidade impaciente
de seus dedos.
─ Fiquei horrorizada e gritei o
quanto os meus pulmões e as minhas
cordas vocais o permitiam. Mas o fato
ocorreu tão rápido que logo imaginei ser
só uma alucinação, ou melhor, um
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
produto sugestionado pelo estresse das
situações anteriores.
─ E depois? – perguntou a
médium.
─ O tempo passou, nunca mais vi
o tal clarão sinuoso e segui a minha vida
normalmente, apesar de ainda seguir
assombrada pelos sons do forro funesto.
Certo dia, porém, eu cheguei mais cedo
em casa e a minha cabeça me impelia
cada vez mais para o forro. Não suportei
o meu ímpeto e tomei a liberdade de
abrir o tampão que saía do banheiro e ia
até o lugar tenebroso. Munida de uma
boa lanterna equipada com pilhas
novíssimas, naturalmente compradas
para levar a efeito uma coragem nunca
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
antes em mim sabida, adentrei no recinto
de tantos martírios. Como supunha, a
estrutura era muito antiga e ameaçava
vir abaixo com qualquer peso mais
abundante. Sendo miúda como sou,
naquela escuridão úmida e empoeirada
eu fui pisando de leve nas ripas mais
fortalecidas ou nas que assim pareciam
ser. Nada desabou, por sorte.
─ Você viu algo estranho por lá?
─ Sim, vi e senti coisas
estranhas naquela que já era a minha
peculiar caverna. Ocorre que,
caminhando no forro e me desviando de
algumas toras que cruzavam o topo da
minha cabeça, tropecei grosseiramente e
caí com o rosto atolado na poeira antiga.
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
Tossi bastante em função disso, haja
vista a quantidade infinita de ácaros e
fungos que lá havia.
─ Entendo, ainda mais por conta
de sua alergia.
─ Como você sabe disso?
─ Prossiga, querida, continue.
Após rápida pausa, Sandra
continuou:
─ Sucedeu que por um
buraquinho minúsculo no telhado, um
furinho do tamanho da ponta de uma
caneta, uma fresta luminosa adentrava
obliquamente até o chão do forro e um
objeto resplandecia grotesca e
sinistramente aos meus olhos. À
semelhança de uma alma hipnotizada,
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
peguei o objeto e logo percebi que se
tratava de uma moeda antiga um pouco
oxidada, sendo um pouco maior do que
as moedas que utilizamos atualmente.
Mirei habilmente o foco da luz de minha
lanterna para este suposto tesouro e
descobri que havia o relevo de uma cruz
celta, de um lado, e o de uma tripla
espiral celta, de outro.
─ E depois? – interrompeu a
médium, já indagando a advogada.
─ Peguei a moeda com bastante
cuidado, observei um pouco mais o
ambiente do forro e decidi voltar para a
sala de casa, passando naturalmente
pelo banheiro que servia de acesso.
Quando estava bem junto ao tampão,
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
observei de relance, numa tora inclinada
em que quase bati a minha cabeça, uma
inscrição na madeira. Foquei a luz e
rapidamente verifiquei que a inscrição
havia sido feita com algum material
metálico pontiagudo, muito
provavelmente uma faca ou um canivete.
Dizia simplesmente isto: “Cemitério dos
Espíritos. Onde nasce a luz. Tumba que
reluz. Três corpos acima da fonte”.
Sandra pegou o copo longo e
bebericou um pouco d’água. Rosa
observou que o copo tremia nas mãos
débeis da declarante.
─ Sim, prossiga.
─ Está certo, está certo.
Cemitério dos Espíritos? Cemitério dos
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
Espíritos? Logo percebi que em nossa
cidade não há um cemitério com esse
nome e imediatamente me propus a
encontrá-lo em outro lugar. Contudo,
como deveria agir? Não fazia a mínima
ideia. Internet? Esta nada me respondeu.
Mas daí ocorreu algo muito estranho.
Um único dia se passou e, andando pela
rua, sendo eu movida por uma energia
completamente desconhecida, eis que fui
guiada quase sonambulicamente à
Biblioteca Municipal. Tão logo entrei,
segui caminhando até o último corredor
junto à última prateleira. Lá, eu senti a
minha mão direita se erguendo no ar,
contraindo músculos e fibras, para
agarrar um livro muito velho com a capa
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
deformada.
─ Estou acompanhando, Sandra,
prossiga – solicitou a médium.
─ De repente, saí de minha
temporária dormência e caí em mim.
Este era o título da obra que naquele
momento eu segurava: Cemitérios de
Nossa Cidade. Assim, sentei-me
estupefata numa solitária cadeira que ali
se me apresentava e comecei a folhear o
livro. Percebi que todos os cemitérios
estavam ali listados e, não vendo nada
de mais no livro, decidi ir embora.
Fechei o volume e não sei por que
resolvi abri-lo outra vez, agora, porém,
numa única página que dizia: “O
Cemitério Jardim da Saudade, hoje o
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
maior do nosso município, remonta ao
tempo do nascimento de nosso antigo
vilarejo, há mais de dois séculos.
Durante as duas primeiras décadas era
chamado de Cemitério dos Espíritos,
estando o mesmo sempre no sítio que
atualmente conhecemos”.
─ Interessante, bastante
enigmático – arrematou a médium.
─ Quando li aquilo, o mundo
desabou à minha volta. Mal podia
acreditar no que estava vendo, por isso
me belisquei dez vezes para ver se não
estava dormindo. E não estava!
─ E depois?
─ Depois, como você deve
imaginar, fui até lá. Logo na entrada,
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
passando um pouco além do portão
principal, comecei a sentir uma falta de
ar sufocante e opressora. Parei um
instante, tentei respirar fundo e passei a
caminhar pela via central. Uma vez que
já estava no meio do Cemitério dos
Espíritos, faltava-me saber onde nascia
a luz, onde ficava a tumba que reluzia e
decifrar que três corpos acima da fonte
eram aqueles. Naturalmente que eu
adentrei no cemitério na direção leste,
de onde a luz solar se firma para
iluminar cada um de nossos dias. Eu
fiquei muito perdida a essa altura,
sentimento agravado pelas duas horas
em que perambulei de sepultura em
sepultura para encontrar a tumba
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
brilhante. O sol a pino me castigou feito
uma condenada, mas lá no meio da tarde
eu consegui, em meio a inúmeras
sepulturas amontoadas, ver uma que
resplandecia de maneira especial, sendo
portadora de uma luminosidade ímpar.
Aquela tumba reluzia, seguramente, com
uma tonalidade como nenhuma outra. De
todos os cemitérios em que já entrei,
jamais vi uma visão tão estupenda como
a promovida por aquele espetáculo.
─ Imagino.
─ Em seguida, como o meu
primeiro olhar distava uns quinze metros
da lápide, inicialmente eu não pude
vislumbrá-la de todo e tive até receio de
aproximar-me tão perto e tão depressa.
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
Por tal razão, passei somente a
contemplar a lápide por uns cinco
minutos. Verifiquei que havia alguma
inscrição na superfície, mas a distância
me impedia de ler letras tão miúdas.
Naquele ínterim, em que
impiedosamente fui torrada pelo sol
agressor, notei que a tumba ficava no
extremo mais alto da planície que
acolhia o simpático cemitério. Tomando
alguma coragem, ergui a cabeça e
comecei a caminhar lentamente para a
lápide. Temerosa tal como a presa
subjugada pelo algoz, decidi que só
leria a inscrição lapidar quando lá
chegasse.
─ Ocorreu que...
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
─ Verifiquei que a tumba
reluzente estava bem próxima do fim do
terreno do cemitério, sendo a terceira
sepultura a contar do muro limítrofe. E
assim, ainda sem ler a lápide, espiei
sobre o pequeno muro em direção ao
abismo que a colina fazia até o outro
lado. Lá embaixo, a uns cinco metros,
sendo uma medida equivalente a três
corpos humanos, jazia a fonte de um
chafariz. Por certo que as pessoas não
deviam jamais ter bebido de sua água,
pois claramente se tratava de um
chafariz decorativo, por sinal
desativado.
─ Com isso?
─ Já disformemente bronzeada à
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
minha revelia, por tanto tempo de estar
exposta ao sol, deliberei chegar à lápide
luminosamente proeminente. Em lá
chegando, meu coração quase saiu pela
boca e juro que pensei que o mundo se
negava a me ceder seu oxigênio. Não me
pergunte como, de que modo, mas a
fotografia que vi naquela lápide me era
familiar. A figura vislumbrada por meus
olhos era em preto e branco e estava
protegida por um vidrinho muito antigo,
de forma ovoide, bem empoeirado. A
lápide contava o seguinte: “Sandra
Maria do Céu, nascida no dia 21 de
janeiro de 1879 e falecida no dia 26 de
junho e 1945. Que a tua vida revolva e
se transforme para a eternidade. Assim
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
seja.” Além disso, uma cruz celta
indicava o dia do nascimento e uma
tripla espiral celta registrava o dia da
morte.
─ Então...
─ Fiquei fria, gelada. Meu nome
é Maria Sandra Terra, nasci no dia 21 de
janeiro de 1979 e um verdadeiro
turbilhão de pesadelos assola os meus
pensamentos desde então. Desconfio
que...
─ Não desconfie, querida.
Confie sempre e aprenda. Você não é
advogada?
─ Eu sou, e daí?
─ O que você recebeu foi apenas
uma intimação.
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
─ Intimação? Que espécie de
intimação? Uma intimação judicial?
─ É uma intimação natural,
porque não há separação entre os
mundos e os tempos. A esta intimação
natural não valem filosofismos de
cátedra nem sofismas jurídicos,
tampouco intelectualismos obtusos
pedantes e teoricismos megalomaníacos
ocos. Também não valem humanismos
bárbaros nem velhacarias ao estilo
sacerdotal romano.
─ Hã?
Maria Sandra Terra ainda não
havia percebido, mas a única assinatura
da intimação natural era a Dele. Só
constava o desenho do Supremo
ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS
Magistrado Juiz.

FIM

ACHERON - NACIONAIS
PERIGOSAS

O conteúdo desta história e


os nomes, as datas e os
locais aqui citados são
meramente fictícios, não
devendo ser considerados
verdadeiros. Qualquer
semelhança com a realidade
é mera coincidência.

ACHERON - NACIONAIS

Você também pode gostar