muito estranhamente, aquele ambiente lúgubre. Sentada em confortável cadeira junto à sua habitual e antiguíssima mesa de trabalho, estando de costas para a linda lareira utilizada em dias frios, Rosa se preparava para mais uma sessão. Alguém estava à sua frente, do outro lado da mesa. ─ Seu nome, por favor? ─ Sandra. ─ Eu sei. Todos a chamam de Sandra, mas seu primeiro nome é Maria. ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS Na verdade, Maria Sandra. A face branca de Maria Sandra agora se tornara pálida. O que a levara ali já lhe fizera não apenas desequilibrar os sentidos, mas obscurecer o que ainda lhe restava de razão. Seus sentimentos estavam a dez mil quilômetros por hora, só para dizer o mínimo. ─ Como sabe o meu nome? ─ Me contaram. ─ Por acaso a minha mãe esteve aqui? ─ Dona Cecília não esteve aqui nem eu fui procurá-la. Seu João Francisco é quem veio me fazer uma visita. A palidez súbita de Sandra agora ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS havia se tornado o maior dos pânicos, uma espécie de pavor suposta e caoticamente controlado. Com os olhos saltados, ela teve que se conter para não sair correndo gritando a sua angústia, o infortúnio de seu destino e a impotência crescente ante os fatos. ─ Por favor, não fique gelada nem pense em sair. ─ Rosa, eu não sei o que pensar... ─ Tranquilize-se, por favor. Você vai ficar bem e está muito bem acompanhada. Seu João Francisco, o pai de Maria Sandra, homem com quem dona Cecília vivera quarenta longos e ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS digníssimos anos, morrera havia meia década. Uma morte natural, nada de traumas, apenas um coração cansado que se recusou a bater outra vez. E a presença do progenitor perto da filha, em circunstâncias que se diriam insólitas, levava Sandra a crer na sua crescente e estupenda pequenez. ─ Rosa, por favor, preciso de sua ajuda. ─ Eu sei, e é por isso que você está aqui. Em primeiro lugar, Sandra, você precisa se equilibrar interiormente, fortalecer etérea e moralmente o teu espírito, compreender que existe uma razão concreta e lógica para tudo isso. Eu, seu pai e os teus protetores ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS espirituais vamos nos unir a fim de auxiliá-la em nosso derradeiro empreendimento. Nunca as Trevas vencerão a Luz, não na grande odisseia espiritual pela Verdade. Que o Mal vença batalhas, disso não se duvida. Não vencerá, porém, a guerra. Jamais! Pouco a pouco Sandra tentava encontrar alguma razão lógica para tudo que havia vivido. Como poderia ela, afinal, seguir adiante? Alugara aquela casa porque instintiva e emotivamente se sentira incontrolavelmente atraída. Foi atração à primeira vista, penetrante, para a qual ela não pôde resistir. Apenas se passara um mês, mas a intensidade frenética dos fatos ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS relativizava, em muitos graus, esse período. No caso, um mês parecia ser algumas vezes mais. À porta da casa em que nasceu, cresceu e viveu, Sandra se despediu de sua mãe e tomou assento em seu automóvel. De maneira inédita, pensava, viveria livre, leve e solta! E sozinha! E as coisas de fato agora corriam bem para ela: fora promovida no emprego, teve seu salário duplicado e se supunha, com relação ao horizonte próximo de sua vida, um futuro promissor. Sandra se instalou numa residência pequena, confortável, já mobiliada, com sala, cozinha, dois quartos, lavanderia e um pequeno ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS escritório, que até poderia ser usado como uma pequena biblioteca. Já tendo almoçado e estando com o corpo fortemente nutrido pelas gorduras necessárias à preservação biológica, Sandra desceu do carro e levava sua maior mala à sala de sua ansiada morada. Feito descansar o receptáculo de couro no chão antigo e empoeirado do ambiente que lhe prometia ser familiar, subitamente ela ouviu um barulho forte às suas costas, ao que supôs, de início, ter sido o vento responsável pelo fechamento repentino da porta. Porém, uma vez o ambiente estando calmo, Sandra verificou algo muito estranho, já que ela não havia ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS sentido, desde quando acordara, nenhuma corrente de ar durante aquele dia. Para certificar-se melhor da ocorrência, deslocou-se até a pequena escada do alpendre para sentir o clima do dia, lá constatando, definitiva e indubitavelmente, bastante tranquilidade. Achou o clima da sala bem estranho, mas aos poucos foi se acalmando. Como não conhecia o chão em que agora pisava e no qual se propunha a se adaptar, transformar e ali viver, Sandra ergueu a cabeça, respirou fundo e voltou a explorar a casa. ─ Conte-me tudo, Sandra, desde o começo – solicitou Rosa. ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS ─ O evento da porta foi o primeiro e posso assegurar, por mais que isso me aflija, que foi o mais leve e o menos traumático dos fatos que estavam por vir. Durante a noite do primeiro dia em que lá dormia, o meu sono, por volta das 2 ou 3 horas da manhã, foi tomado de susto por barulhos estranhos que pareciam vir da cozinha. Fiquei com os olhos bem abertos no escuro do meu quarto, ainda na cama, concentrando os meus ouvidos em tais barulhos eventuais e intercalados. Não sei ao certo como defini-los, embora possa arriscar que se assemelhassem ao som de talheres em madeiras um pouco apodrecidas. Eu estava muito cansada, ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS já que efetuara a mudança horas antes e havia passado horas arrumando a nova residência. Quando mal percebi certo silêncio repentino em hora alta da madrugada, nem dei por mim e já estava dormindo novamente. Acordei quase tão cansada como eu me encontrava quando fui dormir, sem ter claro o que ocorrera. Em seguida, apesar de exausta, tomei café e fui para o trabalho. Sandra era advogada e até pouco tempo atrás ela considerava a sua lógica jurídica acuradíssima, tão acuradíssima a ponto de não se deixar levar pelo que mentes criativas afirmavam ser o sobrenatural. Ela se portava como uma medida aparentemente segura de ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS ceticismo e de certezas científicas. Reacomodando-se na cadeira, Sandra respirou levemente e perguntou se poderia acender um cigarro. Tão rápido fizera a indagação já estava ela com o crivo entre os dedos a poucos milímetros de seus carnudos e suplicantes lábios, num gesto de nervosismo crescente. Acendeu-o sem nem sequer ouvir a resposta da médium, que consentiu tão somente com os olhos, embora, a rigor, ela desprezasse qualquer tipo de contaminação em sua sensibilidade etérea. Rosa sabia que as substâncias da fumaça do cigarro desequilibrariam a sua saúde numa sala ventilada só por uma pequena fresta em ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS discreta janela. ─ O que aconteceu após os eventos da porta e dos sons da madrugada? – quis saber a médium. ─ Fui para o Fórum Central cansadíssima e trabalhei normalmente. Quer dizer, pelo menos assim procurei fazê-lo. Na hora do almoço, no refeitório do restaurante em que estava almoçando com as minhas colegas festivas, sentia o meu pescoço extremamente rijo como se uma espécie de torcicolo me houvesse apanhado. O dado curioso é que o meu pescoço não estava torto, como natural e pateticamente ocorre a quem sofre do desconforto do torcicolo. ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS ─ Compreendo o que dizes, compreendo. Sentindo-se um pouco confusa, Sandra não retrucou o dito de Rosa. Considerou um tanto cortante a sua intromissão naquele instante, mas seguiu relatando os eventos vivenciados. Sandra continuou: ─ De alguma maneira, mesmo exausta e de pescoço duro, parecendo eu sei lá o quê, saboreei o meu bom almoço com arroz, fritas e bife acebolado. De quebra, também não pude dispensar várias rodelas de beterraba e substanciais centímetros de folhas de alface. Sandra sabia que estava ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS engordando pouco a pouco, muito especialmente nos últimos tempos. Ela vivia bastante ansiosa pelos eventos sinistros que a envolviam, mas mentia para si própria quando dizia que adorava saladas. Talvez essa fosse a sua última esperança de se transformar numa modelo, de quem se inveja a esbelta silhueta e todo o encanto de ser adorada. A ansiosa advogada continuou relatando à médium o seu primeiro dia de trabalho depois de sua aterrorizante mudança. A tarde daquela segunda-feira demorou muito para terminar. ─ Foi uma tarde péssima, não estando eu lembrada de outro dia tão ruim para mim no meu trabalho em tão ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS prestigiado fórum. Cochilei durante quarenta minutos sobre a escrivaninha e, caso não fosse a cutucada da advogada Paula Farias, algum dos meus chefes teria se indisposto comigo. O fato é que finalmente eu voltei para casa, não sem antes passar no supermercado para comprar uma pizza, leite e algumas outras coisas. Depois, quando estava vendo a metade final de minha novela predileta, comecei a perceber sons estranhos advindos do forro da residência, imaginando imediatamente a hipótese de um intruso armando ímpeto para invadir meu espaço, saquear-me e sabe-se lá mais o que ele planejava me perpetrar. Proteja-me Deus! Louvado ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS seja, ó Senhor! ─ Prossiga, querida, por favor – pediu Rosa. – Agora vamos compreender o que ocorreu. Respirando fundo depois da última tragada, a advogada se levantou subitamente e jogou a ponta do cigarro para dentro da poética lareira de Rosa, que a partir de então ganhou aquele nocivo troféu decorativo. Restabelecida em sua cadeira e cara a cara com a médium impassível, a advogada continuou o relato: ─ Passado o primeiro susto, rápida e concretamente percebi que tais sons não eram humanos. Tenho certeza de que eram barulhos de passadas mais ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS sutis, dificilmente sendo pés de carne humana viva. A idade do forro da casa não permitiria, pelo menos inicialmente parecia, sustentar um ou muitos corpos humanos. ─ Sim, continue – solicitou a médium. Sandra já pensava em acender outro cigarro, porém, a contar pelo olhar quase hipnótico de sua confidente, sentiu-se um pouco constrangida. A fresta da discreta janela do cinzento aposento lhe dava, tanto quanto o percebia, uma fresca finíssima no rosto assustadiço, o que suavizava igualmente a médium. ─ Bem, continuei trabalhando ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS normalmente após todos esses incidentes – continuou Sandra. – Aliás, cada vez mais eu me maravilhava a seguir trabalhando. Quando caía a noite, para o meu desespero lá estava eu de volta ao meu pequeno inferno. Sim, porque não pense que foram apenas esses poucos eventos que me consternaram. ─ Eu sei disso, Sandra, eu seu disso – respondeu Rosa. ─ Sabe? – interrogou Sandra, petrificando-se de imediato. ─ Prossiga, por favor. ─ Sim, claro, vou prosseguir – disse a advogada. – Eu voltava sempre para casa e todos os dias, no mesmo horário, na segunda metade de minha ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS novela preferida, os mesmos sons, tais quais, sem tirar nem pôr, se faziam presentes no forro e aos meus ouvidos. Naturalmente, você deve convir que nesses momentos o meu coração disparava, a minha respiração encurtava e as minhas pernas tremiam iguais a bambus num vendaval. ─ Sim, são sintomas como os do pescoço rijo. Sua fatalidade, Sandra, sua fatalidade. ─ Como? ─ Continue, querida. Sandra não captou bem o termo “fatalidade” e motivos para isso havia, visto que fatalidade, na linguagem corrente, é sinônimo de acidente e azar. ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS Porém, na linguagem pura filosófica significa necessidade, algo que inexoravelmente precisa se realizar para tal ou qual pessoa numa determinada circunstância presenteada. ─ Com o tempo, desenvolvi o método de fechar os olhos e torcer até os limites de minhas forças psíquicas para que todos os tenebrosos sons terminassem, o que sempre, igual a um cronômetro, acontecia. No entanto, uma semana se passou e outros fatos repulsivos surgiram. De sustos intensos e medos aterrorizantes, todas as terças e quintas-feiras a televisão desligava sozinha após a novela. Já nas noites das quartas-feiras e aos sábados, um copo ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS sempre encontrava o chão frio da cozinha e se quebrava em mil e um pedaços, o que me causava, além dos sustos, lastimável prejuízo. Aqueles lindos cristais eram quase tão bons quanto os do Palácio de Beckingham. ─ Agora estou entendendo – disse a médium. ─ Como? – perguntou Sandra. ─ Prossiga, por favor – disse Rosa. ─ É que o pior, amiga, ainda viria à baila. Sandra desmoronara em prantos. Declarou ela que à noite, num domingo encoberto por névoa cinzenta e após horas de tempestade sinistra, uma ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS silhueta transpareceu de reflexo na plana tela do televisor, fazendo sombra na branca parede. O evento a gelou dos pés à raiz dos cabelos. ─ Socorro! – gritou a advogada. ─ Calma, tome um pouco d’água. Sandra respirou fundo algumas vezes, tomou a água do copo longo e prosseguiu. Porém, agora não mais apalpava o maço de cigarros, pois o destroçava pela nervosidade impaciente de seus dedos. ─ Fiquei horrorizada e gritei o quanto os meus pulmões e as minhas cordas vocais o permitiam. Mas o fato ocorreu tão rápido que logo imaginei ser só uma alucinação, ou melhor, um ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS produto sugestionado pelo estresse das situações anteriores. ─ E depois? – perguntou a médium. ─ O tempo passou, nunca mais vi o tal clarão sinuoso e segui a minha vida normalmente, apesar de ainda seguir assombrada pelos sons do forro funesto. Certo dia, porém, eu cheguei mais cedo em casa e a minha cabeça me impelia cada vez mais para o forro. Não suportei o meu ímpeto e tomei a liberdade de abrir o tampão que saía do banheiro e ia até o lugar tenebroso. Munida de uma boa lanterna equipada com pilhas novíssimas, naturalmente compradas para levar a efeito uma coragem nunca ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS antes em mim sabida, adentrei no recinto de tantos martírios. Como supunha, a estrutura era muito antiga e ameaçava vir abaixo com qualquer peso mais abundante. Sendo miúda como sou, naquela escuridão úmida e empoeirada eu fui pisando de leve nas ripas mais fortalecidas ou nas que assim pareciam ser. Nada desabou, por sorte. ─ Você viu algo estranho por lá? ─ Sim, vi e senti coisas estranhas naquela que já era a minha peculiar caverna. Ocorre que, caminhando no forro e me desviando de algumas toras que cruzavam o topo da minha cabeça, tropecei grosseiramente e caí com o rosto atolado na poeira antiga. ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS Tossi bastante em função disso, haja vista a quantidade infinita de ácaros e fungos que lá havia. ─ Entendo, ainda mais por conta de sua alergia. ─ Como você sabe disso? ─ Prossiga, querida, continue. Após rápida pausa, Sandra continuou: ─ Sucedeu que por um buraquinho minúsculo no telhado, um furinho do tamanho da ponta de uma caneta, uma fresta luminosa adentrava obliquamente até o chão do forro e um objeto resplandecia grotesca e sinistramente aos meus olhos. À semelhança de uma alma hipnotizada, ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS peguei o objeto e logo percebi que se tratava de uma moeda antiga um pouco oxidada, sendo um pouco maior do que as moedas que utilizamos atualmente. Mirei habilmente o foco da luz de minha lanterna para este suposto tesouro e descobri que havia o relevo de uma cruz celta, de um lado, e o de uma tripla espiral celta, de outro. ─ E depois? – interrompeu a médium, já indagando a advogada. ─ Peguei a moeda com bastante cuidado, observei um pouco mais o ambiente do forro e decidi voltar para a sala de casa, passando naturalmente pelo banheiro que servia de acesso. Quando estava bem junto ao tampão, ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS observei de relance, numa tora inclinada em que quase bati a minha cabeça, uma inscrição na madeira. Foquei a luz e rapidamente verifiquei que a inscrição havia sido feita com algum material metálico pontiagudo, muito provavelmente uma faca ou um canivete. Dizia simplesmente isto: “Cemitério dos Espíritos. Onde nasce a luz. Tumba que reluz. Três corpos acima da fonte”. Sandra pegou o copo longo e bebericou um pouco d’água. Rosa observou que o copo tremia nas mãos débeis da declarante. ─ Sim, prossiga. ─ Está certo, está certo. Cemitério dos Espíritos? Cemitério dos ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS Espíritos? Logo percebi que em nossa cidade não há um cemitério com esse nome e imediatamente me propus a encontrá-lo em outro lugar. Contudo, como deveria agir? Não fazia a mínima ideia. Internet? Esta nada me respondeu. Mas daí ocorreu algo muito estranho. Um único dia se passou e, andando pela rua, sendo eu movida por uma energia completamente desconhecida, eis que fui guiada quase sonambulicamente à Biblioteca Municipal. Tão logo entrei, segui caminhando até o último corredor junto à última prateleira. Lá, eu senti a minha mão direita se erguendo no ar, contraindo músculos e fibras, para agarrar um livro muito velho com a capa ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS deformada. ─ Estou acompanhando, Sandra, prossiga – solicitou a médium. ─ De repente, saí de minha temporária dormência e caí em mim. Este era o título da obra que naquele momento eu segurava: Cemitérios de Nossa Cidade. Assim, sentei-me estupefata numa solitária cadeira que ali se me apresentava e comecei a folhear o livro. Percebi que todos os cemitérios estavam ali listados e, não vendo nada de mais no livro, decidi ir embora. Fechei o volume e não sei por que resolvi abri-lo outra vez, agora, porém, numa única página que dizia: “O Cemitério Jardim da Saudade, hoje o ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS maior do nosso município, remonta ao tempo do nascimento de nosso antigo vilarejo, há mais de dois séculos. Durante as duas primeiras décadas era chamado de Cemitério dos Espíritos, estando o mesmo sempre no sítio que atualmente conhecemos”. ─ Interessante, bastante enigmático – arrematou a médium. ─ Quando li aquilo, o mundo desabou à minha volta. Mal podia acreditar no que estava vendo, por isso me belisquei dez vezes para ver se não estava dormindo. E não estava! ─ E depois? ─ Depois, como você deve imaginar, fui até lá. Logo na entrada, ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS passando um pouco além do portão principal, comecei a sentir uma falta de ar sufocante e opressora. Parei um instante, tentei respirar fundo e passei a caminhar pela via central. Uma vez que já estava no meio do Cemitério dos Espíritos, faltava-me saber onde nascia a luz, onde ficava a tumba que reluzia e decifrar que três corpos acima da fonte eram aqueles. Naturalmente que eu adentrei no cemitério na direção leste, de onde a luz solar se firma para iluminar cada um de nossos dias. Eu fiquei muito perdida a essa altura, sentimento agravado pelas duas horas em que perambulei de sepultura em sepultura para encontrar a tumba ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS brilhante. O sol a pino me castigou feito uma condenada, mas lá no meio da tarde eu consegui, em meio a inúmeras sepulturas amontoadas, ver uma que resplandecia de maneira especial, sendo portadora de uma luminosidade ímpar. Aquela tumba reluzia, seguramente, com uma tonalidade como nenhuma outra. De todos os cemitérios em que já entrei, jamais vi uma visão tão estupenda como a promovida por aquele espetáculo. ─ Imagino. ─ Em seguida, como o meu primeiro olhar distava uns quinze metros da lápide, inicialmente eu não pude vislumbrá-la de todo e tive até receio de aproximar-me tão perto e tão depressa. ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS Por tal razão, passei somente a contemplar a lápide por uns cinco minutos. Verifiquei que havia alguma inscrição na superfície, mas a distância me impedia de ler letras tão miúdas. Naquele ínterim, em que impiedosamente fui torrada pelo sol agressor, notei que a tumba ficava no extremo mais alto da planície que acolhia o simpático cemitério. Tomando alguma coragem, ergui a cabeça e comecei a caminhar lentamente para a lápide. Temerosa tal como a presa subjugada pelo algoz, decidi que só leria a inscrição lapidar quando lá chegasse. ─ Ocorreu que... ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS ─ Verifiquei que a tumba reluzente estava bem próxima do fim do terreno do cemitério, sendo a terceira sepultura a contar do muro limítrofe. E assim, ainda sem ler a lápide, espiei sobre o pequeno muro em direção ao abismo que a colina fazia até o outro lado. Lá embaixo, a uns cinco metros, sendo uma medida equivalente a três corpos humanos, jazia a fonte de um chafariz. Por certo que as pessoas não deviam jamais ter bebido de sua água, pois claramente se tratava de um chafariz decorativo, por sinal desativado. ─ Com isso? ─ Já disformemente bronzeada à ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS minha revelia, por tanto tempo de estar exposta ao sol, deliberei chegar à lápide luminosamente proeminente. Em lá chegando, meu coração quase saiu pela boca e juro que pensei que o mundo se negava a me ceder seu oxigênio. Não me pergunte como, de que modo, mas a fotografia que vi naquela lápide me era familiar. A figura vislumbrada por meus olhos era em preto e branco e estava protegida por um vidrinho muito antigo, de forma ovoide, bem empoeirado. A lápide contava o seguinte: “Sandra Maria do Céu, nascida no dia 21 de janeiro de 1879 e falecida no dia 26 de junho e 1945. Que a tua vida revolva e se transforme para a eternidade. Assim ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS seja.” Além disso, uma cruz celta indicava o dia do nascimento e uma tripla espiral celta registrava o dia da morte. ─ Então... ─ Fiquei fria, gelada. Meu nome é Maria Sandra Terra, nasci no dia 21 de janeiro de 1979 e um verdadeiro turbilhão de pesadelos assola os meus pensamentos desde então. Desconfio que... ─ Não desconfie, querida. Confie sempre e aprenda. Você não é advogada? ─ Eu sou, e daí? ─ O que você recebeu foi apenas uma intimação. ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS ─ Intimação? Que espécie de intimação? Uma intimação judicial? ─ É uma intimação natural, porque não há separação entre os mundos e os tempos. A esta intimação natural não valem filosofismos de cátedra nem sofismas jurídicos, tampouco intelectualismos obtusos pedantes e teoricismos megalomaníacos ocos. Também não valem humanismos bárbaros nem velhacarias ao estilo sacerdotal romano. ─ Hã? Maria Sandra Terra ainda não havia percebido, mas a única assinatura da intimação natural era a Dele. Só constava o desenho do Supremo ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS Magistrado Juiz.
FIM
ACHERON - NACIONAIS PERIGOSAS
O conteúdo desta história e
os nomes, as datas e os locais aqui citados são meramente fictícios, não devendo ser considerados verdadeiros. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.