Você está na página 1de 17

O grande escândalo de Potosi

Conheça a incrível história do escândalo de


Potosi, um caso de corrupção que levou a
mudança do estilo de moedas espanholas
macuquinas no século XVII.
João Gualberto Abib 16 Jun 2020

Quem é numismata, daqueles que tem especial interesse nas


bases dos recunhos dos nossos 960 Réis, que tenha
aproximadamente 50 anos de idade e gosta de cinema, deve
lembrar-se dos memoráveis filmes de piratas, em sua grande
maioria, filmados no Mar do Caribe e suas adjacências.

E não é por menos: através de frotas com dezenas de galeões


abarrotados, os tesouros do Novo Mundo partiam do Panamá
pelo Mar do Caribe e atravessavam o Oceano Atlântico em direção
à Península Ibérica, de onde circulavam pelo globo em quantidades
inacreditáveis.
:
Essas frotas milionárias eram o alvo predileto de pilhagens por
piratas, corsários e bucaneiros privados ou a soldo de nações rivais
como a Inglaterra, França, Holanda e até mesmo, de Portugal.

Até os dias de hoje, o sonho de qualquer mergulhador ainda é o


de encontrar um galeão naufragado, com arcas repletas de
moedas.

Apesar disso, tanto o Rei espanhol Felipe II (1556-1598) como seus


sucessores, Felipe III (1598-1621) e Felipe IV (1621-1665) viveram
em guerra permanente contra as nações inimigas e em débito com
as casas bancárias europeias e a população em geral.
:
VELÁZQUEZ, Diego Rodríguez de Silva. Rei Felipe IV da Espanha. 1644. Óleo sobre tela, 129,9 × 99,4
cm.

As riquezas das Américas apenas passavam pelas mãos espanholas,


indo para os cofres das potências bancárias europeias como a
:
Holanda, que mantinha forte comércio com o Extremo Oriente, onde
os então chamados "trade dollars", iam parar nas mãos dos
mercadores chineses.

Porém, por volta de 1640, esses mercadores chineses


começaram a recusar as peças de prata espanholas, alegando
que estavam com o peso e a lei menor do que valiam.

Evitando perder a aceitação mundial de sua adorada moeda, a coroa


espanhola iniciou uma devassa em suas colônias no Novo Mundo e
descobriu anos de fraudes e abusos na Casa Real de Moeda de
Potosi, hoje parte do território boliviano, que naquela época
pertencia ao Vice-Reino do Peru.
:
Escudo concedido por Carlos I da Espanha e V da Alemanha, em Ulma, em 28 de janeiro de 1547.
Reconhece Juan de Villarroel como descobridor de Cerro Rico e, ao mesmo tempo, concede a Potosí o
título de "Vila Imperial", além de de um brasão de armas.

Peru e Potosi eram nomes que andavam na boca de todos os


aventureiros europeus, incandescendo-lhes a mente. Depois de
pilhar o ouro dos Incas no Peru e dos Astecas no México, os
conquistadores espanhóis descobriram por engano, em 1544, uma
montanha inteira fabulosamente rica em prata no altiplano da Bolívia:
Cerro Rico de Potosi, uma maravilha da natureza e um verdadeiro
milagre para os já combalidos cofres reais espanhóis.
:
Montanha Cerro Rico de Potosi ou Sumaq Urqu. Gravação em madeira do livro Cronica del Peru de
1552 de Pedro Cieza de Leon

Situada na Cordilheira dos Andes, a 4.824 metros de altitude,


extraíram mais de 70.000 toneladas de prata durante quase 400
anos. Em valores atuais, mais de dois bilhões e meio de dólares em
prata.

Aproximadamente 1 milhão de escravos índios e negros morreram na


extração e processamento ao longo dos quase 300 anos de
dominação colonial espanhola. Vapores de mercúrio e fumaça de
fundição reduziam a vida útil dos escravos mineradores para menos
de 6 meses, nesta que era então, a maior mina subterrânea do
mundo.

Os tesouros em moedas, barras e chapas de prata produzidas pela


Casa Real de la Moneda de Potosi, eram carregados em caravanas
de lhamas que desciam do altiplano andino para o porto de Lima,
:
numa jornada de mais de 1.000 quilômetros.

Gravura (Minerando em Potosi) de Theodor de Bry em "Historia Americae sive Novi Orbis", 1596

Os tesouros eram então transferidos para galeões que navegavam


pelo Oceano Pacífico rumo ao norte, para o Panamá, onde eram
novamente descarregados e postos no lombo de mulas para cruzar
o país para o leste, seguindo o trajeto onde hoje existe o Canal do
Panamá.

Recolocados mais uma vez dentro de galeões, iniciavam uma longa e


perigosa jornada pelo Mar do Caribe e o Oceano Atlântico em
direção a Espanha, se os piratas e as condições climáticas assim o
permitissem.

Uma nota real de 23 de dezembro de 1642 estabelecia que a lei ou


fineza da moeda de prata proveniente da América deveria ser de 11
dinheiros e 4 grãos, o que equivalia a 930,555 milésimos de prata
:
pura.

Isso deveria ser rigorosamente cumprido pelos Ensaiadores de todas


as Casas Reais de Moedas do Novo Mundo e sua desobediência era
considerado crime de lesa-majestade, sujeito a todo o peso da Lei
espanhola vigente, o que não era pouca coisa.

Os registros oficiais começam em 12 de abril de 1644, quando o


Ensaiador-mór do Reino, dom Andrés de Perera enviou um ofício ao
Presidente do Conselho de Fazenda mostrando as fraudes e os
transtornos causados pela falta de lei das moedas recentemente
recebidas das Índias e solicitando a criação de uma comissão para,
"com toda urgência e segredo", pôr um fim nessa situação.

Moeda de 8 reales (macuquinas) cunhada por volta de 1840 (KM-19a) cunhada durante o reinado de
Felipe IV (marca de ensaiador não visível) - Imagem: Leilão Daniel Frank Sedwick, LLC (27-29/05/2020
- Lot 1617)

Em 7 de julho de 1648, a Casa de Contratação de Sevilha informou


diretamente ao Rei sobre os "embaraços ocasionados pela moeda
(nas Índias), não querendo aceitá-las os comerciantes locais até que
se realize o ensaio respectivo".
:
Dias depois, o Conselho de Fazenda do Reino de Aragão mostrou
que "faltavam até 3 Reales em cada peça de 8 Reales provenientes
do pagamento do exército real na América", o que fez Felipe IV
decretar um ensaio geral nas moedas provenientes de Potosi.

O Reino de Castela enviou reclamação similar datada de 5 de


setembro de 1648. Evidentemente a moeda potosina havia chegado
na metrópole com a frota da América e já estava circulando por toda
a Europa, onde fora detectado pelos particulares (e confirmado
pelos Ensaiadores Reais espanhóis) que continham falta superior a
25% em prata, o que ocasionava a recusa generalizada.

Em resposta, Felipe IV designou o Dr. Francisco de Nestares


Marin, pessoa de sua inteira confiança e com amplo conhecimento
monetário, para que viajasse a Potosi com plenos poderes para
investigar e solucionar a situação.

Além disso, o Rei decidiu em 15 de janeiro de 1649, enviar ao Vice-


Rei do Peru exemplares dos 8 Reales fraudados, que haviam sido
examinadas em novembro de 1648 pelos Ensaiadores Reais Andrés
de Perera e Pedro de Arce, para que tomasse as providências
devidas.
:
García Sarmiento de Sotomayor, Vice-Rei do Peru de 20/09/1648 a 24/02/1655 - Imagem: Wikipedia

Nestares Marin iniciou seus trabalhos em Potosi em fins de


dezembro de 1648. Como resultado de suas investigações, destituiu
:
e encarcerou o Corregedor-mór da cidade, don Juan Velarde
Treviño, destituiu do cargo o então Tesoureiro-mór da Casa Real de
Moeda local don Bartolomé Hernández e condenou a morte por
crime de lesa-majestade os antigos Tesoureiros Francisco Ximénez
de Cervantes e Miguel Ruiz, por cumplicidade na falsificação das
moedas.

Nestares Marin comprovou ainda que havia cumplicidade entre os


funcionários da Casa Real de Moeda e os mercadores de prata da
região, pelo qual o Prefeito de Potosi, Francisco Gómez de la Rocha
e o Ensaiador Felipe Ramirez de Arellano (cujo monograma "FR"
aparece gravado em várias moedas) considerados como os que
iniciaram a fraude, foram condenados à morte por garrote-vil em
dezembro de 1649, sendo seus cadáveres posteriormente exibidos
em praça pública para servir de exemplo à população do rigor com
que a coroa espanhola tratava quem ousasse desobedecer as suas
Leis.

8 reales (macuquinas) de transição, cunhado por volta de 1649, design escudo e Colunas de Hércules.
Imagem compartilhada por Thomás Ribeiro

Em seguida, destituiu e julgou o Ensaiador Pedro Zambrano (cujo


monograma, "Z" também aparece em diversas moedas)
:
condenando-o à morte, nomeando em seu lugar don Juan Rodríguez
de Rodas, que viera da Espanha com Nestares Marin para assumir o
cargo. Punidos os principais responsáveis pela fraude, passou-se
então a tomar as medidas necessárias para tentar reverter o estrago
causado.

Procurando resolver o problema da moeda potosina adulterada,


Felipe IV emitiu em 22 de dezembro de 1650 uma nota real que dava
autonomia para o Vice-Rei do Peru, o Marquês de Mancera, para que
desvalorizasse a moeda potosina, melhorasse a lei das novas
moedas e alterasse o desenho dos seus cunhos.

Isso deu origem a um novo desenho das macuquinas que


começaram a cunhar por volta de 1653, com o desenho que passou
a ser conhecido como os COLUNÁRIOS.

Mesmo assim, os Ensaiadores Rodas (identificação "..") e seu


sucessor Antonio de Ergueta não conseguiram manter a lei e a fineza
dos colunários iniciais cunhando-os com uma falha de 6% na prata.

Novamente foram desvalorizadas no valor correspondente, ficando


as peças de 8 Reales equivalentes a 7,5 Reales e as de 4 Reales em
3,75 Reales, sendo acrescentada uma coroa ao cunho para
identificá-las com maior facilidade. Não foram encontrados registros
do destino dado aos dois ensaiadores.

Como a população da metrópole não tinha uma forma rápida de


saber exatamente qual era a moeda potosina problemática, as
decisões tomadas pelos conselheiros do Rei acabaram criando dois
problemas:

1. Dificuldades para a circulação das moedas no uso diário


(paralisação das atividades comerciais e do recolhimento dos
impostos até que começassem a circular as moedas boas);
:
2. Grandes e acirradas discussões entre os Ensaiadores sobre
qual procedimento seria utilizado para descobrir e separar as
moedas adulteradas (e desvalorizadas) das moedas sãs.

Na dúvida, a população começou a guardar em casa todas as suas


moedas até que fosse divulgada uma solução definitiva. E, sem as
moedas em circulação, com o comércio paralisado e sem o
recolhimento dos impostos para pagamento das despesas do reino,
surge o desabastecimento de produtos essenciais e a alta dos
preços nos mercado, com a insatisfação e o descontentamento geral
da população.
Acuado por todos os lados, Felipe IV foi obrigado a emitir uma
decisão real datada de outubro de 1650, determinando "que todos
os Reales de 8 e de 4 do Peru, sem distinção alguma entre uns e
outros, de agora em diante, valham os de 8 em 6 Reales e os de 4
em 3 Reales".

8 reales de transição, cunhado por volta de 1650, design Cruz Castelo Leão e Colunas de Hércules.
Imagem compartilhada por Thomás Ribeiro

Houve uma correria sem precedente às Casas de Moedas e


Fundições em todo o domínio espanhol, com a população levando
todas as suas moedas para ensaio, fundição e recunhagem
:
posterior, tentando reduzir suas perdas.

Tanta era a insatisfação e a confusão que levou o Rei a emitir uma


decisão real em 1651, onde não se cobrava mais taxa alguma para
fundir e cunhar as novas moedas.

As Casas Reais de Moedas e de Fundição espalhadas por todo o


vasto domínio espanhol trabalharam no máximo de suas
capacidades, ininterruptamente por mais de nove meses, para dar
conta do trabalho.

Mesmo assim, em junho de 1651 foi dada autorização para que


alguns ricos comerciantes da Espanha enviassem para a Itália, suas
barras de prata fundidas das moedas peruanas para que fossem
cunhadas moedas por lá, em virtude da sobrecarga nas Casas de
Moedas e de Fundição espanholas.

Enquanto suas barras viajavam, foram autorizados a sacar


diretamente dos cofres da reserva da Casa Real da Espanha, seus
saldos em moedas de 8 Reales a uma cotação de 6 Reales, "já que
isso não poderia aumentar ainda mais, o descrédito da moeda
espanhola".

Com todos os problemas já descritos e com o descrédito da moeda


espanhola, tanto nos domínios espanhóis como em todo o mundo,
um caso teve grande repercussão e gerou enorme constrangimento
e vergonha ao próprio Rei: foi dito que no final de outubro de 1650, a
Rainha Dona Mariana ao pagar algum tipo de compra, usou várias
moedas de 8 Reales potosinos, da baixa lei.

Foi feita inclusive, uma consulta formal ao Conselho de Fazenda


sobre uma forma legal de substituir as moedas da Rainha... O
problema da moeda fraudada em Potosi atingiu proporção tão
grande nos domínios espanhóis, que manchou até mesmo a
:
reputação da família real.

No início de 1651, no auge da crise econômica causada pela moeda


potosina de baixa qualidade, foi proposto pela primeira vez que, em
vez de aguardar que toda a moeda em circulação fosse separada e a
potosina recunhada dentro da lei voltasse a circular, que aceitassem
o pagamento dos impostos com as moedas de 8 Reales cotadas em
6 Reales, proposta aceita pelo Conselho de Fazenda para assegurar
em definitivo, tanto o desaparecimento de circulação de todas as
moedas adulteradas como a retomada do recolhimento dos
impostos para custear as despesas do reino, até então bancadas
diretamente pelas reservas do Rei.

Design final de 8 reales (macuuinas), cunhada em 1654, design Cruz Castelo Leão e Colunas de
Hércules. Imagem compartilhada por Thomás Ribeiro

Entre 1654 e 1657, ainda apareciam esporadicamente, pequenos


lotes de moedas potosinas adulteradas, que ainda vagavam pelo
mundo afora.

Contudo, somente por volta de 1657, foi considerado solucionado os


enormes transtornos causados pelo "Grande Escândalo", gerado
:
pela redução fraudulenta da lei ou fineza da prata nas moedas
cunhadas na Casa Real de Moeda de Potosi.
Isso não trouxe conseqüências sérias apenas para os funcionários e
mercadores de prata que se uniram para cometer uma fraude,
naquela cidade distante no altiplano andino. Todo o vasto domínio
espanhol foi afetado, seja pela perda de valor da moeda, seja pelo
enorme descrédito que a moeda espalhou por todo o mundo.

Até mesmo a família real espanhola passou por situações


embaraçosas. Num ensaio monetário realizado na Casa Real de
Moeda de Madrid em 26 de setembro de 1650, dos 2.952 Reales em
moedas potosinas apurou-se na verdade, 2.203 Reales em moeda
legal, deduzindo-se que a lei ou fineza da prata das moedas
cunhadas em Potosi era, pelo menos, 25,4% inferior ao que
determinava a legislação vigente na época.

Aplicando-se esse índice na produção gigantesca de moedas de


prata potosina, durante os 8 anos em que se presumem que durou a
fraude, o desfalque do "Grande Escândalo de Potosi" alcançaria um
montante maior que 10 milhões de Pesos em valores da época, uma
cifra astronômica.

Nos dias de hoje, tendo em vista o esforço da coroa espanhola em


retirar de circulação as moedas potosinas fraudadas, devolvê-las à
circulação devidamente recunhadas dentro da lei e a tentativa de
recuperar o prestígio que as peças de prata emitidas no Novo Mundo
gozavam antes do Grande Escândalo, é extraordinariamente raro
encontrar-se um exemplar das mesmas. Quem porventura as
detiver, estará de posse de uma peça de valor inestimável.

No início do texto, as imagens das moedas, representam uma moeda


Macuquina "fraudada" e de um Colunário que foi criado em
substituição destas moedas, alterando-se o desenho para evitar
:
fraudes daí por diante.

Fonte:
Texto de autoria dos Numismatas - Roberto Keller e João Gualberto
Abib (publicado originalmente no Boletim da Sociedade
Numismática Paranaense nª 32, em Setembro de 2007 - Páginas 15
a 21).
:

Você também pode gostar