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SERMÕES DE BOSSUET

Sermão da Providência
Pregado no Louvre, com a assistência de Luiz XIV (no dia 8 ou 10 de março de 1662)

SUMÁRIO
Exordio. — Como as muralhas de Samaria apenas serviram para fortificar a cidade santa que os
samaritanos odiavam, recaem no ímpio as objeções deste contra a Providência.
Proposição e divisão. — 1.° Um conselho eterno e imutável oculta-se em todos os acontecimentos
que o tempo parece desdobrar com uma tão estranha incerteza; 2.° a fé na Providência dá-nos luz
suficiente para não nos admirarmos de coisa alguma, e força bastante para nada temermos.
1.º Ponto. — Apesar da desordem que existe na humanidade, não pode ser o homem a única criatura
em que se não fixa o olhar da Providência. O mundo é um quadro que deve ser convenientemente
examinado, e os desígnios de Deus devem referir-se pela norma da eternidade.
2.º Ponto. — Como Deus tem em pouco apreço os favores temporais, devem os grandes homens
parecer-nos desvalorizados. E como a causa primeira, sob o patrocínio da qual nos mantemos, encerra
numa mesma ordem as causas inferiores, não devemos nós, portanto, temer estas.
Peroração. — Como no dia final nos é inútil a abundância em que tivermos vivido, se não
santificarmos as nossas riquezas, sejamos em todo o tempo humildes e caritativos.
“Filho lembra-te de que recebeste, bens em tua vida, e Lazaro apenas recebeu males; por isso ele
agora é consolado, e tu atormentado” (Lc 16, 25)
Diz-nos a História Sagrada (1) que o rei de Samaria mandou um dia edificar uma praça forte, que era o
terror constante de todas as praças do rei da Judéia; e que este príncipe, tendo reunido o seu povo, reagiu
por tal forma contra o inimigo que não só lhe arruinou a fortaleza, mas também empregou os materiais
que a compunham para construir dois soberbos castelos com que fortificou as suas fronteiras.
Ora eu, meus senhores, aproveitando-me do exemplo dessa empresa militar, vou hoje procurar o meio
de fazer uma coisa análoga ao que então se fez. Os libertinos firmaram o propósito de declarar guerra a
Providência divina, e, os meios de combate mais enérgicos de que dispõem a distribuição dos bens e dos
males, que parece injusta e irregular, sem distinção alguma entre os que são bons e os que são maus.
Nesta anomalia é que os ímpios se entrincheiram como numa fortaleza inexpugnável, asseteando
ambiciosamente a sabedoria que rege o mundo (2). Mas nós, que precisamos de combater os inimigos de
Deus, devemos unir-nos todos e destruir as muralhas soberbas destes novos samaritanos.
Não satisfeitos com lhes provar que essa desigual distribuição de bens e males terrenos em nada
ofende a Providência, demonstremos, pelo contrário, que foi ela quem a estabeleceu. Provemos com a
própria desordem que há uma ordem superior que tudo regula por uma lei imutável; e edifiquemos as
fortalezas de Judá com todas as ruínas das de Samaria. Tal é o tema deste discurso, que eu mais
completamente desenvolverei (depois de havermos implorado, etc. Ave-Maria).
O teólogo oriental, São Gregório Nazianzeno (3) ao contemplar a beleza do mundo, em cuja estrutura
Deus se afirmou tão sábio e tão magnificente, chama-lhe com muita elegância, na sua língua, o prazer e as
delícias do seu Criador (4). Vira em Moisés que o divino Arquiteto, à medida que construía este grande
edifício, lhe admirava todas as partes: «Deus viu que a luz era sublime» (Gn 1, 4); que, depois de o ter
construído, o exaltara, porque o achara «perfeitamente belo»: (Gn 1, 31);e finalmente, que ficara de todo
extasiado dom o espetáculo maravilhoso da sua própria obra.
Aqui não há semelhança possível entre Deus e os artistas mortais; porque estes, afadigando-se muito
nas suas empresas e receando sempre os acontecimentos, anseiam por que a conclusão das suas obras os
liberte do trabalho e lhes garanta todo o bom êxito possível.
Mas Moisés, examinando as coisas dum plano mais elevado, e prevendo que um dia os homens
ingratos pudessem negar a Providência que rege o mundo, mostra-nos logo no princípio o imenso prazer
que Deus sentiu em fazer esta obra-prima por suas mãos, para que esse prazer fosse para nós um penhor
inabalável do desejo que ele devia ter em a dirigir, e não fosse permitido nunca duvidar de que ele
desejasse governar o que fizera com tanto amor e o que propriamente julgara tão digno da sua sabedoria.
Deste modo, devemos compreender que este universo, é particularmente o gênero humano, é o reino
de Deus, governado por Ele segundo leis imutáveis. E nós hoje vamos precisamente ocupar-nos do exame
dos segredos dessa política celeste que rege toda a natureza, e que, encerrando na sua ordem a
instabilidade das coisas humanas, não oferece menos irregularidades e menos conturbações do que a
política terrena, cujos acontecimentos excepcionais e memoráveis decidem muitas vezes da sorte dos
impérios.
Grande e admirável assunto é este, digno da atenção da corte mais augusta do mundo! Atendei, ó
mortais, e escutai a palavra de Deus que vos vai comunicar os segredos do Seu governo, do alto desta
tribuna, tomando-me a mim como intérprete dos Seus sábios ensinamentos, depois de me haver
iluminado o espírito com a luz dos Seus oráculos infalíveis.
Pouco nos importa a nós, cristãos, conhecer a sabedoria que nos governa, se não nos soubermos
domar a ordem dos seus conselhos. Se há arte para bem governar, também deve havê-la para bem
obedecer. Deus comunica o Seu espírito de sabedoria aos príncipes (5) para saberem dirigir os povos, e dá
aos povos inteligência para poderem ser dirigidos ordenadamente; isto é, além da ciência dominadora que
ensina o príncipe a reger, há outra ciência subalterna que também ensina os vassalos a serem dignos
instrumentos da direção superior. E é a relação destas duas ciências que mantem o corpo dum Estado pela
correspondência do chefe com os seus membros.
Para estabelecer esta relação no império de Deus, assentemos hoje aqui em dois princípios. O
primeiro é que, seja qual for a confusão, a desordem, ou até a injustiça que possa haver nos negócios
humanos, e embora tudo pareça arrebatado pelo cego devastamento da sorte, devemos firmar bem no
nosso espírito a ideia de que tudo neles deriva com uma certa ordem, tudo se dirige por meio de
normas, porque há uma vontade eterna e imutável que se oculta em todos os acontecimentos que o
tempo parece ir desdobrando com uma tão estranha incerteza. O segundo princípio é que consultemos o
nosso íntimo, e depois de termos perfeitamente compreendido qual o poder que em nós atua e qual a
sabedoria que nos governa, estudemos os sentimentos que nos tornam dignos duma direção tão
superior. Por esta forma, descobriremos, de harmonia com a mediocridade do espírito humano, não só o
jogo e os movimentos da política sublime que rege o mundo, mas também o uso e a aplicação dessa
política, que, por ser divina, merece constituir todo o objeto deste discurso.
Primeiro Ponto
Quando penso na disposição confusa, desarmoniosa e irregular, das coisas humanas comparo-a muitas
vezes a certos quadros que geralmente se expõem nas bibliotecas (6) dos curiosos para armar ao efeito. A
simples vista apenas notamos traços informes e um misto confuso de cores, que mais parece o tentâmen
dum aprendiz ou o brinquedo duma criança, do que o trabalho duma mão experimentada. Mas depois de
alguém, que conhece o segredo de tudo, vos mostrar o espetáculo debaixo dum outro aspecto,
imediatamente todas as linhas irregulares se harmonizam dum certo modo toda a confusão se desfaz, e
então vedes um rosto, com os seus lineamentos e proporções, onde a princípio não havia uma aparência
cívica de vigor humano. Tal é, meus senhores, a imagem natural do mundo, da sua confusão aparente e do
seu equilíbrio oculto, que nunca poderemos observar verdadeiramente senão mirando-o pelo lado que nos
mostra a fé em Jesus Cristo.
«Eu vi na terra uma desordem extraordinária, diz o Eclesiástico; vi que se não confia geralmente as
carretagens aos mais expeditos, as transações aos mais ajuizados, e a guerra aos mais animosos; mas sim
que é o acaso e a ocasião que por toda a parte dominam» – (Ecl 9 ,2)
Vi, continua o mesmo Eclesiástico, que «tudo acontece do mesmo modo, tanto ao homem que é bom
como ao que é mau, tanto ao que se sacrifica como ao que blasfema» – (Ecl 2, 3). Quase todos os séculos
lamentam ter visto triunfar a iniquidade e submeter-se a inocência; mas, como nem sempre assim sucede,
algumas vezes se tem visto, pelo contrário, imperar a inocência e render-se a iniquidade. Que estranha
confusão a deste quadro! Parece que as cores foram nele postas ao acaso, com o fim de, por assim dizer,
manchar a tela ou o papel (7)!
O libertino irrefletido diz firmemente que não existe ordem no mundo; e, como consequência desta
afirmação, diz que «não há Deus», ou que, pelo menos, esse Deus confia a vida humana aos caprichos da
sorte: (Sl 52, 1).
Mas espera, infeliz! Não alargues o teu raciocínio numa questão tão importante, porque talvez te
convenças de que o que parece confusão é uma arte invisível.
Se souberes analisar as coisas convenientemente, verás que desaparecerão todas as irregularidades, e
que só haverá sabedoria onde imaginavas que havia desordem.
Sim, não duvides, infeliz; este quadro tem um lado especial por onde deve ser admirado. O próprio
Eclesiástico, que nos descobriu a confusão, há de também mostrar-nos o lado por onde havemos de
contemplar a ordem do mundo. Diz ele:
«Eu vi na terra a impiedade no lugar da razão, e a iniquidade no lugar que devia ocupar a justiça»
Quer ele dizer que viu a iniquidade no tribunal, ou até mesmo no trono, onde só a justiça devia
dominar. Não podia ela ascender mais alto ou ocupar um lugar imerecido.
Que poderia imaginar Salomão ao ver tão grande desequilíbrio? Que Deus abandonava as coisas
humanas ao acaso, não cuidando de as governar com a razão Soberana? Pelo contrário. O que esse
príncipe disse, ao ver tal subversão, foi isto:
«Eu ponderei logo firmemente: Deus sentenciará o justo e o ímpio, e então tudo será julgado» (Ecl 3,
17)
É este, meus senhores, um raciocínio digno do mais sábio dos homens. Ele vê no gênero humano uma
extrema confusão, e no resto do mundo uma ordem encantadora. Acha que é impossível que a nossa
natureza, única que Deus fez à Sua semelhança, seja também a única que deva ser confiada ao acaso. E por
isso, verdadeiramente convencido de que deve haver ordem entre os homens, e não a vendo ainda
estabelecida, necessariamente conclui que o homem tem qualquer coisa a esperar; e é nisto que consiste,
cristãos, todo o mistério da vontade divina, porque é este o grande preceito de Estado da política celeste.
Deus quer que vivamos sempre na esperança perpétua da eternidade. Ao colocar-nos no mundo,
estabeleceu-nos uma ordem admirável para mostrar que a Sua obra é dirigida com sabedoria; e expõe-
nos de propósito uma desordem aparente para mostrar que ainda a não concluiu de todo. Para que é
isto? Para que perpetuamente aguardemos o grande dia da eternidade, em que tudo se há de distinguir
por meio duma decisão última e irrevogável, e em que Deus, separando novamente a luz das trevas
– (Gn 1, 4), colocará nos seus devidos lugares a justiça e a impiedade, por meio duma sentença final ; «é
então como diz Salomão, cada coisa será convenientemente julgada»
Abri, pois, os olhos, ó mortais! E vede que é Jesus Cristo que vos fala neste admirável discurso, que fez
em São Mateus, capítulo 6, e em São Lucas, capítulo 12, e do qual eu vou apresentar uma paráfrase.
Contemplai o céu e a terra, e a sábia economia do universo. Haverá coisa melhor delineada do que
este edifício? Melhor organizada do que esta família? Ou mais bem dirigida do que este império? Esse
poder supremo que construiu o mundo, e que nada fez que não fosse admirável, formou, pelo menos,
umas criaturas melhores do que outras. Fez os corpos celestes imortais, e os terrestres perecíveis. Criou
animais admiráveis pela sua grandeza; e criou os insetos e as aves que são quase desprezíveis pela sua
pequenez.
Fez essas árvores enormes das florestas que vivem séculos inteiros; e fez as flores dos campos que
desbotam durante o dia. Nas suas criaturas há desigualdade, porque a mesma perfeição que caracterizou
as mais nobres não a quis imprimir as inferiores; mas desde as maiores até as mais pequenas se revela
sempre a Sua providência. Às avezinhas que a invocam logo pela manhã com a melodia dos seus gorjeios
dá ela o alimento; às flores, cuja formosura desaparece tão depressa, veste-as ela tão soberbamente
durante o curto período da sua existência, que Salomão, no meio de toda a sua glória, não tem nada que
se compare, às galas que as enfeitam – (Lc 12, 27).
E vós, ó homens, a quem Deus fez a Sua imagem, a quem iluminou com a Sua sabedoria, e a quem
chamou ao Seu reino, podeis imaginar que Ele vos esqueça, e que sejais vós as únicas criaturas em que se
não fixa o olhar sempre vigilante da Sua providência paternal? (Mt 6, 23)
Se alguma desigualdade notais, se achais que a recompensa é demasiado lenta na sua aproximação
da virtude, e que o castigo não persegue o vício com grande tenacidade, pensai na eternidade do
primeiro Ser. Lembrai-vos de que os Seus desígnios, concebidos no seio imenso dessa imutável
eternidade, não dependem dos anos, nem dos séculos, que Ele vê decorrer como se fossem momentos;
mas sim da duração completa do mundo que dá inteiro cumprimento às ordens duma tão profunda
sabedoria. Nós, miseráveis mortais, é que desejaríamos, nos nossos dias efêmeros, ver realizadas todas as
obras de Deus.
Quiséramos que o infinito se encerrasse em estreitos limites, e que manifestasse em pouco tempo
tudo o que a Sua misericórdia prepara para os bons e o que a Sua justiça destina para os maus, só porque
os nossos desígnios não são ilimitados como são os da Providência. (S. Agost., in Psalm., CXI, n. 8). Que
cegueira a nossa! Deixemos obrar o Eterno segundo as leis da Sua eternidade; e em vez de a reduzirmos
às nossas proporções, precisemos antes penetrar na Sua amplitude: (S. Agost., in Psalm., CXI, n. 8).
Se entrarmos nessa bem-aventurada liberdade de espírito, se aferirmos a vontade divina pela norma
da eternidade, contemplaremos pacificamente este misto confuso das coisas humanas. E certo que Deus
ainda não fez distinção entre os bons e os maus; mas porque escolheu um dia designado em que o há de
fazer a face de todo o universo, quando o número duns e doutros estiver completo.
Foi isto que fez dizer a Tertuliano estas sublimes palavras:
«Deus, diz ele, tendo guardado o juízo final para a consumação dos séculos, não antecipa a
descriminação, que é uma condição indispensável, e, entretanto, mostra-se quase imparcial para com toda
a natureza humana» – (Tertuliano, Apolog. n . 41)
Não notastes esta expressão admirável:
«Deus não antecipa a descriminação»?
Antecipar as coisas é o apanágio da fraqueza, que se vê obrigada a apressar-se na execução dos seus
planos, porque depende das ocasiões, e essas ocasiões são certos momentos que fogem muito rápidos,
causando, por isso, uma necessária precipitação aos que se veem obrigados a aproveitá-los.
Mas Deus, que é o árbitro de todos os tempos, que do centro da Sua eternidade faz dimanar toda a
ordem dos séculos, que conhece a Sua onipotência e que sabe que nada pode escapar as Suas mãos
soberanas, Deus não antecipa a realização dos Seus desígnios. Sabe que a sabedoria não consiste em fazer
sempre, as coisas com prontidão, mas em as fazer no seu tempo devido.
Deixa que, os loucos e os temerários censurem os seus planos, mas não acha conveniente antecipar a
execução deles, para evitar murmurações da parte dos homens. Basta-lhe que os seus amigos e os seus
servos esperem humilde e respeitosamente o dia da verdadeira justiça; quanto aos outros, sabe o destino
que lhes há de dar, porque se acha, já designado o dia em que os há de punir: (Sl 36, 13).
Mas afinal, direis vós, Deus faz muitas vezes bem aos que são maus, e oprime com grandes flagelos os
que são justos; e ainda mesmo que tal desequilíbrio fosse momentâneo, não deixava por isso de ser um
atentado contra a justiça. — Não, cristãos. É preciso compreendermos hoje a diferença entre bens e
males; que são de duas espécies. Há bens e males simultâneos, que dependem do uso que deles
fazemos.
Por exemplo, a doença é um mal; mas, santificada pela paciência, é um grande bem! A saúde é um
bem; mas, abalada pela devassidão, será um mal perigosíssimo! E aqui temos bens e males simultâneos,
que participam da natureza do bem e do mal, e que respeitam a um ou a outro, segundo o fim a que se
aplicam. Mas sabeis agora, cristãos, que há um Deus Onipotente, que tem nos tesouros da Sua bondade
um bem soberano que nunca pode ser um mal, e que esse bem é a felicidade eterna; assim como tem nos
tesouros da Sua justiça certos males extremos que nunca poderão traduzir-se em bens para os que os
sofrem, e que esses males são os suplícios dos réprobos. A norma da Sua justiça não permite nunca que
os maus gozem esse soberano bem, nem que os bons sejam supliciados com esses males extremos. Por
isso fará um dia a descriminação. No que respeita, porém, a bens e males simultâneos, concedê-los-á
indiferentemente a uns e a outros.
O santo e divino salmista estabeleceu divinamente esta bela distinção entre bens e males:
«Eu vi na mão de Deus, diz ele, uma taça que continha três líquidos: O primeiro era vinho simples: vini
meri. O segundo era vinho misturado: plenus mixto. O terceiro, finalmente, eram fezes: Verumtanen faex
ejus non est exinanita» (Sl 74, 9)
Que significa o vinho simples? A alegria da eternidade sem uma sombra de amargura.
Que significam as fezes? O suplício dos réprobos sem uma clareira de felicidade. E que representa o
vinho misturado? Os bens e males como nós os sentimos na vida presente, e que podem ser alterados
pelo uso. Ó distinção maravilhosa de bens e de males tão sublimemente estabelecida pelo Profeta! Ó sábia
distribuição, feita pela Providência, dos bens que divinizam e dos males que infelicitam! Estamos chegados
aos tempos da confusão, aos tempos da recompensa, em que é preciso preparar os bons para a
merecerem, e suportar os pecadores para a alcançarem.
Chovam simultaneamente nesta confusão os bens e os males tão proveitosos para os ajuizados e tão
mal aplicados pelos insensatos; mas acabem duma vez tão calamitosos tempos. Vinde, espíritos inocentes,
vinde beber o vinho puro de Deus, que é a sua felicidade extreme. E vós, ó corações endurecidos, ó maus
eternamente separados dos justos; a felicidade para vós deixou de existir; os folguedos, os banquetes, as
diversões, tudo acabou. Vinde beber toda a amargura da vingança divina (8): Sl 74, 9).É esta meus
senhores, a descriminação que resolverá tudo por uma última e irrevogável sentença.
«Quão grandiosas que são as vossas obras! Quão justos e flagrantes de verdade são os vossos
desígnios, ó Senhor Deus onipotente! Quem vos não louva e vos não bendiz, ó Rei dos séculos?» – (Ap 15,
3-4)
Quem não admira a vossa providência e não teme os vossos juízos? Ah! É preciso que «o homem
insensato não compreenda estas coisas e o louco as não conheça» – (Sl 19, 6). «Só olham para aquilo que
veem, mas iludem-se» – (Sb 2, 21). Quisestes, ó grande Arquiteto, que a beleza do vosso edifício só fosse
admirada depois dele concluído; e o vosso Profeta vaticinou que «só no dia final seria conhecido o mistério
da vossa vontade» – (Jr 23, 20).
Mas, senhores meus, para esse dia será tarde demais penetrarmos no conhecimento tão necessário
desse mistério. Antecipemos a hora designada. Assistamos em espírito ao dia de juízo, e do limiar desse
tribunal, perante o qual havemos de comparecer, contemplemos as coisas humanas. No temor, no
assombro, no silêncio universal de toda a natureza, com que irrisão hão de ser ouvidas as ponderações dos
ímpios, que se firmavam no crime, porque viam outros crimes impunes! Eles próprios, pelo contrário, hão
de admirar-se de não terem visto que essa pública impunidade era um aviso eloquente do extremo rigor
que contra eles se devia praticar no dia de juízo.
E eu mesmo confirmo que Deus em todos os séculos dá provas da Sua vingança. Os castigos
exemplares que Ele exerce em alguns não me parecem tão terríveis como a impunidade de todos os
outros. Se Ele agora punisse todos os criminosos, eu daria toda a Sua justiça por acabada, e não viveria na
esperança duma descriminação mais rigorosa. Neste momento, porém, a Sua própria bondade e a Sua
paciência não me permitem duvidar da possibilidade duma oscilação, porque ainda as coisas não estão no
seu devido lugar.
Lazaro sofre ainda, embora inocente; e mau rico, embora criminoso, continua gozando dum certo
bem-estar. Deste modo, nem o sofrimento, nem repouso estão ainda no lugar onde devem estar
verdadeiramente.
O que se dá é uma violência que não pode durar sempre. Não vos fieis nesta irregularidade, ó homens
mundanos, pois é preciso que as coisas mudem. Ouvi e admirai:
«Meu filho, se é certo haveres recebido bens em tua vida, também é certo que Lazaro recebeu males»
Ora este desequilíbrio seria admissível nos tempos da confusão, em que Deus preparava uma obra
mais grandiosa; mas sob os auspícios dum Deus tão bom como justo, é, insustentável tal confusão.
Agora que haveis chegado ambos ao lugar da vossa eternidade, nunc autem, nova disposição vai ser
iniciada. São palavras de Abraão. Cada coisa terá o seu lugar, contínua ele. O castigo não se separará mais
do criminoso a quem compete, nem a consolação será negada ao justo que a soube esperar: Nunc autem
hic consolatur, tu vero cruciaris. É esta, meus senhores, a vontade de Deus, fielmente exposta pela sua
Escritura.
Vejamos agora em poucas palavras qual o uso que dela havemos de fazer, e terei concluído o meu
discurso.
Segundo Ponto
Todo aquele que está convencido de que uma sabedoria divina o governa e uma vontade
inquebrantável o conduz a um fim eterno, só lhe parece grande e terrível o que se relaciona com a
eternidade.
Por isso, os dois sentimentos inspirados pela fé da Providência consistem, o primeiro em não admirar
coisa alguma, o segundo em nada recear do que se termina com a vida presente.
A razão por que nada para Ele é objeto de admiração é a seguinte: A sábia e eterna Providência que
fez, conforme dissemos, duas espécies de bens, que distribui na vida presente bens impuros, e que reserva
os bens puríssimos para a vida futura, estabeleceu que todo o que se tivesse comprazido nos bens
medíocres não compartilharia dos bens supremos. E Santo Agostinho diz-nos que Deus quer que saibamos
distinguir os bens espalhados na vida presente e que servem de consolação aos cativos, dos bens
reservados para a vida futura e que farão a felicidade de seus filhos: Aliud (est) solatium captivorum, aliud
gaudium liberorum (9). A sábia e verdadeira liberalidade exige que se saiba distinguir os seus dons; ou,
para falar mais a rigor, quer Deus que saibamos distinguir os bens verdadeiramente desprezíveis, que
tantas vezes concede aos seus inimigos, dos que Ele preciosamente guarda para só os destinar aos seus
servos: Haec omnia tribuit etiam malis, ne magni pendantur a bonis, diz Santo Agostinho (10).
É realmente, cristãos, quando, remontando aos fatos passados, vejo tantas vezes as galas mundanas
entre as mãos dos ímpios; quando vejo os filhos de Abraão, e o único povo que adora a Deus, e que vive
desterrado na Palestina, num pequeno canto da Ásia, cercado das soberbas monarquias dos orientais
infiéis, e, para me referir mais propriamente a nós, quando vejo esse inimigo, que usa um nome cristão,
sustentar com tantos exércitos as blasfêmias de Maomé contra o Evangelho, derrubar com o seu crescente
a cruz de Jesus Cristo, Salvador nosso, diminuir todos os dias a cristandade com armas tão fortunosas (11);
e além disso quando considero que, embora adversário de Cristo, este sábio distribuidor de coroas o vê, do
ponto mais culminante dos céus, sentado no trono do grande Constantino, e não receia confiar-lhe um tão
grande império, como se fora uma dádiva de pequena importância; quando tudo isto vejo, compreendo
facilmente o pouco apreço em que ele tem semelhantes graças e todos os bens que concede na vida
presente! E tu, ó vaidade e grandeza humana, triunfo dum dia, nulidade soberba, como me pareces
insignificante a minha vista, quando por este lado te considero!
Imaginareis que talvez me esqueça do lugar onde estou falando, quando chamo aos impérios e as
monarquias uma dádiva de pequena importância.
Não, senhores, não me esqueço; não ignoro quão magnânimo e augusto é o monarca que nos honra
com a sua audiência, e quão beneficente é Deus, pela Sua parte, em confiar à Sua direção uma tão grande
e tão nobre parte do gênero humano, para a proteger como Seu poder. Mas também sei, cristãos, que,
embora os soberanos religiosos não vejam, na ordem das coisas humanas, coisa superior ao seu cetro, nem
coisa mais sagrada do que a sua pessoa, nem mais inviolável do que a sua majestade, devem contudo
sacrificar o reino que por si só governam ao valor dum outro reino, em que não é desdouro a igualdade, e
em que será grato, aos reis cristãos, associarem-se com os seus vassalos, a que a graça de Jesus Cristo e a
visão beatífica os terá feito seus dignos companheiros: Plus amant illud regnum in quo non timent habere
consortes (12).
Deste modo, a fé da Providência, apresentando sempre aos filhos de Deus a decisão final, priva-os de
admirar tudo o mais; mas ainda produz um efeito maior, que é libertá-los do receio. E que receariam eles,
cristãos, se nada os indigna, nada os ofende, e nada lhes repugna?
Há uma diferença notável entre as causas particulares e a causa universal do mundo. Aquelas colidem
umas com as outras.
Assim, o frio combate o calor, e o calor ataca o frio. Mas a causa primeira e universal, que encerra
ordenadamente as partes e o todo, não tem coisa alguma que brigue com ela; porque, se as partes colidem
entre si, harmonizam-se com o todo, cuja unidade formam pela sua discordância. Este raciocínio, cristãos,
levaria muito tempo a desenvolver; não obstante, como desejo aplicá-lo ao nosso caso, vou tentar fazê-lo,
embora resumidamente.
Todo aquele que tem particulares intentos, ou se prende a causas particulares; mais claramente: todo
o que deseja obter um benefício dum príncipe, ou pretende fazer fortuna por meios ilícitos, dá com outros
pretendentes que o contrariam, ou com obstáculos imprevistos que lhe transtornam os planos, e, tal como
uma mola que, não funcionando a tempo, faz parar a máquina, assim a intriga deixa de produzir o seu
efeito, e todas as esperanças ficam perdidas.
Mas aquele que imutavelmente recorre ao todo e não às partes, aos meios fáceis, como são o poderio,
a proteção e a intriga, o que recorre a causa primeira e fundamental, a Deus, à Sua vontade e a Sua
providência, nada encontra que se Lhe oponha ou que altere os Seus planos; pelo contrário, tudo concorre
e tudo coopera para a execução deles, porque, como diz o santo Apóstolo, tudo contribui também para o
efeito da sua salvação, que é a sua grande obra, e em que se acham consubstanciados todos os seus
pensamentos: (Rm 8, 28).
Aplicando-se desta maneira à Providência, que é tão vasta, tão ampla, que encerra em seus desígnios
todas as causas e todos os efeitos, amplia-se e dilata-se ele a si próprio, e ensina a aplicar-se a tudo o que é
lícito.
Se Deus lhe dá prosperidades, recebe-as do céu com submissão, e rende culto a misericórdia que o
beneficia, espalhando-a pelos miseráveis que tanto carecem dela.
Se é vitima da adversidade, sabe que «a provação produz a esperança» –, que a guerra é a origem da
paz, e que, se a sua virtude combate, será um dia gloriosamente coroada. Nunca desespera, porque nunca,
vive sem remédio.
Parece-lhe sempre ouvir ao Salvador estas sublimes palavras, que se lhe gravam no fundo do coração:
«Não temais, ó pequeno rebanho, porque ao vosso Pai agradou dar-vos um reino» – (Lc 12, 32)
Deste modo, sejam quais forem os extremos de miséria a que possam chegar, o homem justo nunca
ouvira da sua boca palavras infiéis que traduzam a perda completada sua felicidade.
Nunca poderá maldizer da sua sorte, visto que ainda tem um reino imenso, que é o reino de Deus.
Que força o poderá, pois, esmagar, se ele acalenta sempre uma tão bela esperança?
Eis o que se opera agora no seu espírito, à vista dos acontecimentos que se dão com as outras pessoas.
De tudo ele colhe sentimentos novos. Tudo o confunde e o edifica; tudo o assombra e o alenta; tudo o faz
ponderar maduramente; tanto as derrocadas mortais, como as ações justas e rigorosas, tanto o
abatimento duns, como a perseverança doutros, tanto os exemplos de fraqueza, como os exemplos de
força, tanto a paciência de Deus, como a sua justiça exemplar.
Se ele lança o anátema sobre os criminosos, lava logo as mãos no sangue deles, diz Santo Agostinho
(13); isto é, purifica-se com receio de sofrer igual suplício.
Se eles prosperam visivelmente, e a sua felicidade parece fazer morrer na terra a esperança do
homem de bem, este ergue os olhos para Deus, e ouve com grande fé como que uma voz celeste, dizendo
aos maus afortunados, que desprezam o justo oprimido: Ó erva terrestre! Erva rasteira! Atreves-te a
comparar-te à árvore de fruto, durante o rigor do inverno, só porque ela perdeu o viço e tu conservas o teu
na invernosa estação? Lá virá o tempo do estio, o ardor do juízo final, que te há de secar até à raiz e fará
germinar os frutos imortais das árvores cultivadas pela paciência. São estes os pensamentos sagrados que
a fé da Providência inspira.
Meditemos sobre tudo isto, cristãos, que bem merece ser meditado. Não confiemos na sorte nem nas
suas galas enganadoras, porque este estado há de apresentar as suas vicissitudes, e toda esta ordem que
nos admira há de ser destruída. De que servirá termos vivido independentes, no meio dos prazeres, da
abundância, se afinal Abraão nos disse: Meu filho, é certo que recebeste bens em tua vida, mas agora as
coisas vão mudar. Quer isto dizer que a grandeza e o poderio acabaram duma vez, e não deixaram nenhum
vestígio? Não; grandes vestígios vejo eu ainda e bem sensíveis.
Prova-o o Espírito Santo, esse oráculo da sabedoria, que diz:
«Os poderosos serão poderosamente atormentados» – (Sb 6, 7)
Quer isto dizer que, se se não acautelarem, serão os primeiros a receber o castigo eterno, como foram
os primeiros a desfrutar ostentação. (Hb 6, 9).
Ah! Mas embora isto assim seja, «eu espero de vós coisas melhores». Há poderes que são sagrados,
como, por exemplo, o de Abraão que, condenando o mau rico, foi também rico e poderoso; mas santificou
o seu poder pela humildade, pela moderação, pela obediência a Deus, e pelo socorro aos pobres. Se
seguirdes este exemplo, evitareis o suplício do rico cruel, e ireis, como o pobre Lázaro, descansar no seio
do rico Abraão, e, como ele, recebereis as riquezas eternas.

Referências:
(1) 3 Reg 15, 17. 22
(2) Todos os editores, inclusive Gandar, acrescentam a esta frase as seguintes palavras: E
convencendo-se erradamente de que a desordem aparente das coisas humanas é um testemunho contra
elas. Estas dezessete palavras acham-se sublinhadas, isto é, riscadas no manuscrito.
(3) Nasceu pelo ano de 329 e faleceu em 390. As suas obras consistem em 55 discursos ou sermões,
com algumas poesias e muitas cartas.
(4) Orat., XXXIV
(5) Josue vero filius nun repletus et spiritu sapientiae (Nota de Bossuet: Josué, Dt 34, 9)
(6) As bibliotecas já não são hoje o que eram no século XVII, verdadeiros museus onde se viam
reunidos quadros, livros, estátuas, etc. Hoje reduzem-se a um repositório de livros.
(7) Bossuet escreveu à margem umas letras que custam a decifrar. Seria De cit., isto é, De civitate Dei?
Não se sabe (Gazier).
(8) Que resta dos prazeres desse abismo medonho,
Em que se afunda a alma? O que resta dum sonho…
Folgar, cantar, diz essa horda ímpia…
Porém, no dia dessa tua ira,
Eles beberão a taça inesgotável,
Atroz e horrorosa,
Que tu secretamente as preparado
Para toda a raça criminosa. (Athalia)
Não se pode dizer que Racine tenha imitado Bossuet. Ambos foram verdadeiramente inspirados pela
leitura da Bíblia.
(9) S. Agost., in Psalm., CXXXVI, n. 5
(10) In Psalm., XLII, n. 14
(11) Este sermão é de 1662. Em 1664 é que montecuculli, auxiliado por 6000 franceses, ganhou sobre
os turcos a batalha de Saint-Gothard. E em 1669, apesar de Beaufort vir acompanhado de 7000 franceses,
os turcos tomaram Candia aos venezianos.
(12) S. Agost., De Civit. Dei, lib. V, cap. XXIV
(13) Ita lavabis quodam modo manus tuas in sanguine peccatoris (S. Agost., In Psalm., LVII, n. 21)

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