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Abordagem Psicanalítica e Aconselhamento

A psicanálise é, com certeza, o movimento mais conhecido na Psicologia, haja vista que
o seu fundador, Sigmund Freud, contribuiu muito para a construção da ciência psicológica.
Embora a Psicologia como ciência já tivesse sido desenvolvida à época, as proposições de
Freud fizeram com que a psicanálise, como saber psicológico, fosse reconhecida como filosofia
da natureza humana, método de investigação da personalidade e teoria com adequada
fundamentação e rigor. Seus seguidores não apenas desenvolveram muitas de suas ideias
como trouxeram novas contribuições abarcadas sob a égide da psicanálise, de modo que
podemos falar, com tranquilidade, em diferentes psicanalises, a depender de suas diferentes
escolas e características especificas, mas que guardam aspectos que recuperam
essencialmente o modelo proposto por Freud, da existência de elementos inconscientes e de
estruturação da personalidade em id, ego e superego. Os principais autores filiados à
psicanálise são, além de Freud: Jung, Lacan, Klein, Bion, Winnicott, Fromm, Erikson, Sullivan,
Adler, entre outros. A leitura desses teóricos e suas diferentes pesquisas podem ampliar
significativamente os conhecimentos atribuídos à psicanálise, inclusive para a discussão no
domínio do aconselhamento psicológico.
Para Freud (1923), a psicanálise seria, ao mesmo tempo, um procedimento de pesquisa
dos processos psíquicos inconscientes, um método de tratamento e também uma ciência
construída a partir desse método. Segundo Fulgêncio (2013), ao longo de toda a sua obra,
Freud também defendeu que a psicanálise deveria ter um lugar ao lado das ciências naturais,
como a física, a química e a biologia. Fulgencio destaca a psicanálise como um método de
tratamento, o que nos interessa particularmente quando destacamos o aconselhamento
psicológico.
Segundo Corey (1983), as maiores contribuições da psicanálise para a área do
aconselhamento psicológico são:
(a) a vida mental pode ser compreendida e podem se aplicar insights sobre a natureza
humana para aliviar certas formas de sofrimento;
(b) o comportamento humano é organizado por meio de elementos inconscientes;
(c) as primeiras relações, ou a vida infantil, possui em grande importância na vida
adulta;
(d) oferece recursos para investigarmos os processos inconscientes;
(e) apresenta uma visão de natureza humana essencialmente determinista, na qual o
ser humano é determinado por forças irracionais, instintos, pulsões e eventos psicossexuais,
estes mais marcadamente ligados aos primeiros anos de vida.
Ainda para Corey (1983), o aconselhamento que tenha por base a psicanálise deve se atentar
para o modelo de desenvolvimento subjacente a essa teoria, o que significa compreender, a
partir do relato do cliente, de que modo foram construídas em sua personalidade as ideias de
amar e confiar, elaboração de afetos, lidar com sentimentos negativos e desenvolvimento de
uma aceitação positiva da sexualidade, com foco nos primeiros anos de vida. O objetivo da
psicoterapia seria a reformulação da estrutura de caráter, tornando consciente aquilo que está
inconsciente. Entre as técnicas e procedimentos terapêuticos utilizados nesta abordagem
estão a associação livre, a interpretação, a análise dos sonhos, das resistências e da
transferência. A análise das primeiras experiências forneceria indícios para a compreensão das
dificuldades enfrentadas no presente, dando ênfase à dimensão afetiva da descoberta do
inconsciente.
No entanto, há que se reconhecer que o método apresenta dificuldades de ser transposto para
o contexto do aconselhamento, geralmente em tempo abreviado e com foco na resolução de
um problema ou de um conflito situacional. Em que pese essa ressalva, alguns elementos
psicanalíticos podem ser utilizados para refletirmos sobre o próprio processo de mudança
(Zanuzzi, Santeiro, & Scorsolini-Comin, 2014). O emprego da interpretação, por exemplo, deve
ser oportuno, a fim de que possa surtir os efeitos desejados – entre eles a mudança no
processo terapêutico. Manejar essas técnicas no contexto específico do aconselhamento pode
ser complexo para o terapeuta, mas garante o olhar psicanalítico para a natureza humana. De
que modo essa interpretação pode ser feita? Em que momento do processo? Com qual
objetivo? É importante que o terapeuta conheça profundamente não apenas a sua teoria
norteadora como também os pressupostos da relação de ajuda no aconselhamento, a fim de
realizar os ajustes necessários – em termos de tempo e técnicas – para que os objetivos do
processo de aconselhamento sejam mantidos.
Um dos objetivos centrais do aconselhamento é melhorar a habilidade do cliente de
comunicar-se com os outros e reduzir a desigualdade no desenvolvimento passado da
comunicação verbal e não verbal (King & Bennington, 1976), sendo necessário que o cliente
modifique modos de ajustamento habituais que sejam complexos e insatisfatórios. Como
método, a psicanálise pressupõe uma determinada organização, por exemplo, em sessões
prolongadas ao longo do tempo, o que não poderia ocorrer na modalidade do
aconselhamento. No entanto, segundo esses mesmos autores, a psicanálise pode oferecer um
quadro de referência para a avaliação do comportamento e da estrutura da personalidade do
cliente, podendo ser útil não apenas no contexto clínico, mas também em ambientes
educacionais e da saúde, por exemplo.
No espaço geralmente breve do aconselhamento ou mesmo do plantão, não se pode
empregar o método psicanalítico clássico, de um mergulho profundo nos mecanismos
inconscientes do paciente e na sua estrutura de personalidade. No entanto, abrindo-se espaço
para a análise de alguns elementos inconscientes é possível clarificar para o paciente algumas
características de sua personalidade que podem estar envolvidas na sua queixa, ampliando a
compreensão do paciente acerca do seu quadro. Mesmo não aplicando técnicas psicanalíticas
específicas, o terapeuta pode eleger a psicanálise como quadro de referência ou um norteador
teórico para suas reflexões sobre cada caso.
A psicanálise é muito mais uma abordagem do tipo compreensão para o
aconselhamento e como tal presume que o conhecimento progressivo da própria dinâmica de
cada um aumentará a capacidade do indivíduo para mudar em direção a um estilo de vida mais
produtivo e mais espontâneo (King & Bennington, 1976, p. 162).
No entanto, muitas das ideias trazidas por Freud têm sido desenvolvidas tendo por base os
elementos contemporâneos de nossa sociedade e cultura. Um desses autores é Donald Woods
Winnicott, segundo o qual o ser humano se desenvolveria a partir de um processo de
amadurecimento e de crescimento emocional que se daria em fases que se sucederiam do
nascimento até a morte. Nesses estádios do desenvolvimento, que poderiam se alternar ao
longo de toda a vida, é que o sujeito se constituiria, em uma tendência à integração do ser
(Winnicott, 2000). Assim, este autor compreende a existência de uma tendência inata ao
amadurecimento e à integração em um todo unitário. Haveria, desse modo, uma tendência
inata em direção ao desenvolvimento, à integração e à independência que, para ser atualizada,
dependeria de condições sociais e do mundo externo. Trata-se de uma visão não determinista,
ou seja, o ser humano estaria imerso em um vir-a-ser incompleto e aberto. Também na
perspectiva winnicottiana, a relação com o ambiente e as figuras facilitadoras pode favorecer a
reorganização da personalidade e o exercício de novas formas de pensar e agir, o que pode ser
considerado no processo de aconselhamento.
Pierre Benghozi (2010) é outro autor filiado à psicanálise na contemporaneidade,
chamada especificamente de psicanálise dos vínculos sociais. Em sua concepção, o Vínculo2 é
considerado a base da transmissão psíquica e, para explicar como ocorre esse processo de
uma geração a outra, emprega a metáfora de uma rede. Nesta, a malhagem seria a disposição
dos Vínculos, constituída por um conjunto que liga vínculos de filiação e de afiliação. A
malhagem seria, portanto, um conjunto de malhas que definiria um continente psíquico. A
malhagem é o trabalho psíquico de construção- desconstrução e de organização dos Vínculos.
Os vínculos de filiação remontam aos ascendentes e conduzem aos descendentes, uma vez
que correspondem aos vínculos grupais de pertencimento dentro de uma mesma família
(Scorsolini-Comin, 2012).
O que deve ser destacado na tese de Benghozi (2010) é a possibilidade sempre
aberta de que ocorra a remalhagem, ou seja, a reconstrução da rede de Vínculos de filiação e
de afiliação, que poderiam se dar por meio do conceito de resiliência familiar, ou seja, os
processos de mudança. Na prática e de modo mais didático, a concepção de Benghozi nos
chama a atenção para a possibilidade de que, no processo de desenvolvi- mento e a partir das
diferentes relações interpessoais que estabelecemos ao longo do tempo, podem ser
retrabalhadas as vinculações iniciais consideradas insatisfatórias ou traumáticas, apresentando
uma visão menos determinista de ser humano, se a compararmos às primeiras postulações de
Freud. Benghozi (1999) confere destaque ao vínculos de afiliação, por exemplo, advindos do
casamento, sendo este um evento que mostra a criação de novos vínculos, podendo ocorrer
uma remalhagem, ou seja, a modificação de vínculos iniciais considerados negativos advindos
das famílias de origem dos parceiros. O traumático poderia encontrar nas relações
interpessoais da vida adulta uma possibilidade de se remalhar, de se tornar uma experiência
menos negativa ou até mesmo positiva, a depender da qualidade desses relacionamentos
experienciados posteriormente.
Assim, pode-se afirmar que a psicanálise – ou as psicanálises – apresenta modelos de
ser humano que podem irromper em determinadas técnicas aplicadas ao contexto do
aconselhamento, embora sejam necessários ajustes de diversas ordens para que a abordagem
seja, de fato, um guia teórico e metodológico para o terapeuta. As leituras mais
contemporâneas, no entanto, já trazem uma possibilidade mais concreta dessa apropriação,
haja vista que permitem a compreensão de que a psicanálise não se trata de uma teoria
determinista e hermética, mas aberta a releituras que mostrem, por exemplo, as mudanças
que incidem sobre os vínculos no processo de desenvolvimento e a sua aplicação em contextos
diversos, como em unidades básicas de saúde e em diversos equipamentos institucionais,
promovendo a necessidade de que o saber psicanalítico se flexibilize para atender às
demandas contemporâneas. Essa flexibilidade é um dos pressupostos mais importantes do
aconselhamento psicológico.

Scorsolini-Comin, Fabio. (2015). Aconselhamento Psicológico : Aplicações em Gestão de


Carreiras, Educação e Saúde. [[VitalSource Bookshelf version]]. Retrieved from
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