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TEOLÓGICO-POLÍTICO
TRATADO
TEOLÓGICO-POLÍTICO
Baruch de Espinosa
Martins Fontes
São Paulo 2003
Título do original em latim: TRACTATUS THEOLOGICO-POLIIICUS ( 1670)
Copyright© 2003, livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.
11 edição
novembro de 2003
Tradução
DIOGO PIRES AURÉUO
Preparação do original
luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Sandra Regina de Souza
Maria Regina Ribeiro Machado
Dinarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
03-5546 CDD-199.492
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia holandesa 199.492
Introdução
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO
Prefácio 5
1. Da profecia 15
II. Dos profetas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
III. Da vocação dos hebreus e se o dom .da profecia
terá sido um privilégio exclusivamente seu . . . . 50
IV. Da lei divina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
V. Da razão pela qual foram instituídas as cerimô-
nias e da fé nas narrativas históricas, ou seja, por
que motivo e a quem ela é necessária . . . . . . . 80
VI. Dos milagres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
VII. Da interpretação da Escritura . . . . . . . . . . . . . . 114
VIII. Onde se demonstra que o Pentateuco, assim como
os livros de Josué, dos juízes, de Rute, de Samuel
e dos Reis são apógrafos, e se averigua depois se
esses livros foram escritos por várias pessoas ou
por uma só e quem terá sido . . . . . . . . . . . . . . . 139
IX. Onde se analisam outras questões a respeito ain-
da dos mesmos livros, em particular se foi Esdras
quem os concluiu e se as notas à margem que se
encontram nos códices hebreus constituem va-
riantes ............................... 153
X. Onde se analisam, segundo o mesmo critério uti-
lizado para os anteriores, os restantes livros do
Antigo Testamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172
XI. Onde se averigua se os apóstolos escreveram as
suas epístolas na qualidade de apóstolos e de pro-
fetas ou na qualidade de doutores, e se mostra de-
pois qual foi a função específica dos apóstolos .. 186
XII. Do verdadeiro texto da lei divina e por que ra-
zão a Escritura se designa por sagrada e se con-
sidera a palavra de Deus. Onde se demonstra, em
suma, que a mesma Escritura, enquanto portado-
ra da palavra de Deus, chegou até nós intacta .. 196
XIII. Onde se mostra que a Escritura só ensina coisas
muito simples e não tem por objetivo senão a obe-
diência; mesmo da natureza de Deus, ela não en-
sina senão aquilo que os homens podem imitar
através de uma certa regra de vida . . . . . . . . . . 207
XIV. O que é a fé, quem é fiel, quais os fundamentos
da fé e como se distingue da filosofia ........ 214
XV. Onde se demonstra que nem a teologia está a ser-
viço da razão, nem a razão da teologia, e se apre-
senta o motivo por que estamos persuadidos da
autoridade da Sagrada Escritura . . . . . . . . . . . . 223
XVI. Dos fundamentos do Estado, do direito natural e
civil de cada indivíduo e do direito dos soberanos 234
XVII. Onde se mostra que é impossível e desnecessá-
rio alguém transferir todos os seus direitos para o
poder soberano; como era o Estado hebraico en-
quanto viveu Moisés e como foi depois, entre a
morte deste e o início da eleição dos reis; até que
ponto ele estava numa posição privilegiada e quais
as razões por que desapareceu, enfim, o Estado
teocrático e por que é que só se não houvesse lu-
tas intestinas ele poderia subsistir . . . . . . . . . . . 250
XVIII. Onde se deduzem, a partir das instituições hebraicas
e da sua história, alguns princípios políticos . . . . 278
XIX. Onde se demonstra que o direito em matéria reli-
giosa pertence integralmente às autoridades sobera-
nas e que o culto externo não deve perturbar a paz
do Estado, se se quer obedecer fielmente a Deus 287
XX. Onde se demonstra que num Estado livre é lícito
a cada um pensar o que quiser.e dizer aquilo que
pensa 300
Notas
1. Recapitulação da Ética
2. A estrutura do TT-P
1. Conhecer
zer, sabe que as coisas são formalmente como nele estão con-
tidas objetivamente" (TRE, § 108). A verdade é critério de si
mesma, repete Espinosa várias vezes.
Para o que vimos dizendo, é de somenos importância a
enumeração dos graus de conhecimento que Espinosa enun-
cia de forma diferente de livro para livro (3 no Curto Trata-
do-. opinião, crença verdadeira, conhecimento claro; 4 no Tra-
tado da Reforma do Entendimento: por ouvir dizer, por ex-
periência vaga, por raciocínio e por intuição; novamente 3
na Ética: imaginação, razão e saber intuitivo). Com mais ou
menos variações, a classificação é clássica e tradicionalmen-
te oscilante entre a formulação platônica do livro VI da Repú-
blica (eikasia, pistis, dianoia e noesis) e a aristotélica do De
Anima (aistesis, doxa, episteme e naus). Qualquer desses es-
quemas, ainda que pressuponha sempre uma ascensão pro-
gressiva, desde a simples suposição até a intuição exata, é
todavia atravessado por um corte que instaura a separação
mais ou menos rígida entre, por um lado, conhecimento cla-
ro e, por outro, conhecimento confuso. O que é importante
notar, no que a Espinosa se refere, é que esses dois tipos de
conhecimento não se distinguem entre si apenas pelo dife-
rente grau de verdade e de certeza subjetiva que os acompa-
nha. Tudo isso são meras conseqüências daquilo que verda-
deiramente os separa e que é a sua diferente origem, o seu
diferente modo de produção, já que "as idéias datas e distintas
que nós formamos parecem derivar unicamente da necessi-
dade da nossa natureza e dependem apenas e absolutamen-
te da nossa potência, enquanto as idéias confusas se formam
muitas vezes independentemente de nós" (TRE, § 108). Ou
seja, aquelas se formam pela atividade do entendimento, que
por definição se processa segundo um encadeado lógico e,
por isso, elas são verdadeiras; estas, pelo contrário, resultam
da passividade do entendimento, da associação fortuita de
percepções. O próprio entendimento, repare-se, não é mais
do que essa atividade que se manifesta num encadeado de
idéias verdadeiras, pelo que não há sequer nele lugar para o
erro. Fora dessa atividade, desse conatus, não há nada que se
possa identificar com uma faculdade à maneira escolástica
TRATADO 1EOLÓGJCO-POLÍ11CO XXXI
2. Imaginar
causa e, por isso, são alvo de uma fé, não de uma certeza ra-
cional. A inflexão que Espinosa suscita na teoria formulada
por Averróis e Maimônides reside, em última instância, em
deslocar a cumplicidade que aqueles pretendiam haver entre
teologia e razão para uma cumplicidade entre teologia e po-
lítica. E não se trata apenas de uma cumplicidade empírica e
historicamente detectável; trata-se, sobretudo, de uma cum-
plicidade de natureza, já que ambas são forjadas a partir de
idéias inadequadas, o que torna ainda mais difícil o estabele-
cimento de um programa político que determine a sua sepa-
ração e coloque o poder num ponto geometricamente equi-
distante de todos os saberes, adequados ou inadequados.
Mas o capítulo III do Tratado, além da conclusão da sua
parte gnoseológica, é também a passagem para a revisão da
metafísica que se inaugura no capítulo IV. Está assentido
que a imaginação, conhecimento inadequado, não é igno-
rância absoluta nem corresponde a um puro nada: é sim-
plesmente uma idéia que não pode exprimir adequadamen-
te a sua causa e ignora essa mesma insuficiência. A Bíblia,
por exemplo, que é discurso da imaginação, não apresenta
Deus como causa de si próprio nem capta nenhum dos seus
atributos essenciais: é apenas um registro de impressões, ín-
dice de contatos dos homens com os seus iguais e com as
circunstâncias de lugar e tempo. Pior ainda, porque a imagi-
nação ignora sempre a sua verdadeira causa, a Bíblia apre-
senta-se como teoria da natureza e verdadeira ciência. Essa
"ciência" da Bíblia, porém, na medida em que toma os efei-
tos por causas, confunde o seu objeto com um sujeito autô-
nomo, julga que fala de Deus e fala tão-só dos homens, pro-
jeta, enfim, numa ordem transcendente aquilo que é apenas
sintoma da sua própria situação real. Todas as controvérsias
que se geram a seu respeito não passam de uma conse-
qüência necessária de se entender por linguagem de ciência
o que nela são apenas "hieróglifos", sinais intrinsecamente
equívocos que se desdobram sobre o ser e o não-ser e nun-
ca exprimem a unicidade da substância nem o saber sem su-
jeito da totalidade. Daí assimilarem-se os sinais em que se
consolida a imaginação ao discurso da lei; daí também a
XLVI ESPINOSA
1. O ser e os seres
2. A letra e o espírito
4. O método em Espinosa
1. Aficção do contrato
mento descobre ser fruto de uma ilusão mas que não pode su-
primir de todo sem suprimir a sujeição a Deus, isto é, a práti-
ca da justiça, sendo assim instado apenas a ajustar os dogmas
de fé a fim de reduzir até onde for possível o grau de passi-
vidade que implicam, também perante o Estado a razão per-
manece impotente, limitando-se a identificar o seu estatuto
como imaginação e a reconhecer nas diferentes formas que
ele assume diferentes graus de submissão dos indivíduos.
Porque a razão, já se disse, aponta para o verdadeiro fim
do homem - o conhecimento da sua condição como·modo
finito da substância infinita - conhecimento este que nem to-
dos perseguem, ao passo que todos buscam a preservação
de si mesmos. Claro que o verdadeiro fim não é incompatí-
vel com a autopreservação. Se todos conhecessem o verda-
deiro fim da vida humana, conheceriam também as vantagens
da entreajuda e o acréscimo de potência que advém ao agre-
gado se atuar de forma -organizada. Não é por acaso que Es-
pinosa diz que o sábio é o melhor dos cidadãos: se ele co-
nhece as vantagens do viver em sociedade, não atua por
medo ou interesse imediato mas persegue ainda a mesma fi-
nalidade, regido embora por outros motivos. O problema é
que, antes de mais nada, esse cidadão ideal não passa disso
mesmo, isto é, de um ideal de cidadão, visto a componente
afetiva dos indivíduos jamais se anular. E depois, se todos
atuassem em função do verdadeiro fim, o Estado seria des-
necessário, já que a colaboração mútua e a prática da justiça
decorreriam como um corolário do amor intellectualis Dei.
Mas são as paixões, não a razão, que dominam os homens,
as idéias da imaginação impregnam-lhe a mente e é no cam-
po da imaginação que vão emergir os mecanismos de "emen-
das" das paixões.
Na verdade, em que consiste essa componente passiva
ou passional do ser humano senão em "sermos uma parte da
natureza que não pode conceber-se por si mesma e sem as
outras" (Ética, IV, prop. 2)? Mais do que utópica, a constru-
ção do Estado assente na idéia de uma autonomia radical do
indivíduo resulta ontologicamente impossível, uma vez que,
conforme se diz na proposição seguinte, "é impossível que o
7RA TADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO cm
homem não seja uma parte da natureza e evite receber ou-
tras modificações além daquelas que podem compreender-
se unicamente pela sua própria natureza e de que ele é cau-
sa adequada". Tal interdependência, porém, se na totalidade
se apresenta como lei necessária de realização da potência
infinita, no nível dos indivíduos resulta numa ameaça ã sua
subsistência. Nem sempre. Os efeitos de um corpo sobre ou-
tro corpo, representando-se embora em idéias que são confu-
sas na medida em que indicam apenas o estado em que fica
o primeiro corpo, tanto podem revelar-se positivas, fazendo-
se acompanhar de sentimentos de alegria, como negativas,
fazendo-se então acompanhar de tristeza. Tudo depende
de haver ou não "conveniência" entre os corpos em contato:
se houver, o seu grau de potência sente-se reforçado; se não
houver, o contato torna-se obstáculo ao conatus e reduz o
ser do corpo mais fraco. Já referimos como o acaso desses
contatos, proporcionando, entre outras, relações de "conve-
niência", se tornava também a condição necessária para que
a razão chegasse à formulação das noções comuns. Mas, an-
tes, e à margem desse conhecimento do segundo gênero, é o
próprio desejo de sobrevivência, a lei da natureza, portanto,
que dita a procura de encontros "convenientes" e o seu pro-
longamento, ao mesmo tempo que sugere a fuga de contatos
de onde saía reduzida a própria potência. Obedecer, sendo
iniludivelmente manifestaçãô de passividade e dos limites da
potência individual, sendo, em suma, paixão, pode, nessa
perspectiva, não ser forçosamente uma paixão triste. E a ra-
zão, que identifica esse estado como resultante de um conhe-
cimento confuso, não 'pode deixar de reconhecer que atra-
vés dele se cumprem fins necessários. É por isso que a obe-
diência poderá estar de acordo com a reta razão, e é mesmo
nesses termos que Espinosa caracteriza o contrato. Não por-
que os homens sejam racionalmente levados a efetivá-lo, mas
porque as paixões desencadearam no seu movimento ilusó-
rio um equilíbrio que a razão ratifica como vantajoso. Pensar
de outra forma a política espinosista, associando-a a um con-
tratualismo estereotipado, é negar-lhe os seus mais importan-
tes esteios metafísicos.
CIV ESPINOSA
2. O Estado ideal
Da profecia
chamou e três vezes ele julgou que era Heli quem o chama- [17]
va. Imaginária foi também a voz que Abimelec escutou. Com
efeito, diz-se no Gênesis, cap. XX, 6: e Deus disse-lhe em so-
nhos, etc. Não foi, portanto, quando estava acordado, mas só
em sonhos (ou seja, na altura em que a imaginação está na-
turalmente mais propensa a imaginar coisas que não existem)
que pôde imaginar a vontade de Deus.
Tampouco as palavras do Decálogo, na opinião de al-
guns judeus, foram proferidas por Deus. Segundo eles, os is-
raelitas ouviram só um ruído, sem que nenhuma palavra ti-
vesse sido proferida, e entretanto apreenderam, mentalmen-
te apenas, as Leis do Decálogo. Eu próprio assim pensei al-
gumas vezes, por ver que as palavras do Decálogo variam do
Êxodo para o Deuteronômio, donde parece resultar (já que
Deus só falou uma vez) que o Decálogo não pretende ensi-
nar as palavras mas apenas os decretos de Deus. Todavia, se
não quisermos forçar a Escritura, é absolutamente necessário
admitir-se que os israelitas ouviram uma verdadeira voz. Na
verdade, a Escritura (Deuteronômio cap. V, 4) diz expressamen-
te: Deus falou convosco face a face, isto é, da mesma forma
que dois homens trocam idéias entre si através dos respecti-
vos corpos. Parece, pois, ser mais conforme com a Escritura
dizer-se que Deus criou uma voz autêntica por meio da qual
ele próprio revelou o Decálogo. Quanto ao motivo por que
as palavras e a sua disposição diferem de um livro para o ou-
tro, veja-se o cap. VIII.
Mas nem mesmo assim se elimina por completo a difi-
culdade, uma vez que não parece lá muito razoável admitir
que uma coisa criada, que depende de Deus como qualquer
outra, pudesse, por si mesma, exprimir ou explicar a essên-
cia ou a existência de Deus, fosse real ou verbalmente, e de-
clarar na primeira pessoa: eu sou Jeová teu Deus, etc. É certo
que, se alguém diz com a boca eu entendi, ninguém vai jul-
gar que foi a boca que entendeu mas sim a mente do homem
que o afirma, já porque a boca pertence à sua natureza, já
porque aquele a quem isso é dito, compreendendo a nature-
za do entendimento, facilmente compreende, por analogia
consigo, o pensamento do homem que lhe fala. Porém, se
20 ESP/NOSA
ca, o que pode, aliás, ver-se ainda com mais clareza no Deu-
teronômio, cap. XXXIV, 10, onde se diz: e não houve(ou me-
lhor, não se levantou) em Israel mais nenhum profeta como
Moisés, que conheceu Deus face a face-, conheceu, entenda-
se, só pela voz, dado que nem o próprio Moisés viu alguma
vez a face de Deus (Êxodo, cap. XXXIII).
Tirando estes, não encontro na Sagrada Escritura nenhum
outro meio pelo qual Deus tenha se comunicado com os ho-
mens e, por conseguinte, como demonstramos, mais nenhum
é de admitir ou supor. E embora se compreenda que Deus
pode, sem dúvida, comunicar-se imediatamente com os ho-
mens, pois comunica a sua essência à nossa mente sem pre-
cisar de nenhum meio corporal, todavia, para que um homem
[211 percebesse só pela mente certas coisas que não estão conti-
das nos primeiros princípios do nosso conhecimento, nem de-
les se podem deduzir, a sua mente teria de ser por força su-
perior e, de longe, mais perfeita que a mente humana. Assim
sendo, não creio que alguém tenha atingido tanta perfeição,
a não ser Cristo9 , a quem os preceitos divinos que conduzem
os homens à salvação foram revelados imediatamente, sem
palavras nem visões: Deus manifestou-se, portanto, aos após-
tolos através da mente de Cristo como outrora a Moisés por
meio de uma voz que vinha do ar. E assim, à voz de Cristo,
tal como àquela que Moisés ouvia, pode chamar-se a Voz de
Deus. Nesse sentido, podemos afirmar que a Sabedoria di-
vina, isto é, a Sabedoria que é superior à do homem, assu-
miu em Cristo a natureza humana e Cristo foi o caminho da
salvação.
Convém, no entanto, advertir que me abstenho comple-
tamente de falar do que certas Igrejas afirmam sobre Cristo -
e nem sequer pretendo negá-lo - visto que, confesso com
toda franqueza, não compreendo. Tudo o que até agora afir-
mei resulta da própria Escritura. E em parte alguma eu li que
Deus apareceu a Cristo, ou que lhe falou, mas sim que ele foi
revelado por Cristo aos apóstolos, que Cristo é o caminho da
salvação e, finalmente, que a lei antiga foi anunciada por um
anjo e não diretamente por Deus, etc. Por conseguinte, en-
quanto Moisés falava com Deus face a face, tal como um ho-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 23
mem fala habitualmente com um seu companheiro (isto é,
mediante os seus dois corpos) Cristo comunicou-se com Deus
de mente para mente.
Está, portanto, assentido que ninguém, além de Cristo,
recebeu nenhuma revelação de Deus sem o recurso à imagi-
nação, quer dizer, sem palavras nem figuras, e que, para pro-
fetizar, não é necessário ser dotado de uma mente mais per-
feita, mas sim de uma imaginação mais viva, conforme mos-
trarei com mais clareza no capítulo seguinte. Para já, é preciso
averiguar o que nas Sagradas Escrituras se entende por Espí-
rito de Deus infundido nos profetas, ou seja, em que sentido
os profetas falavam pelo Espírito de Deus. Vejamos, antes de
mais nada, o que significa a palavra hebraica ruagh, vulgar-
mente traduzida por Espírito.
Ruagh, no sentido genuíno, significa, como se sabe, "ven-
to", mas emprega-se muitas vezes para significar várias outras
coisas, as quais, todavia, derivam daquela. Assim:
1 - Hálito, como no Salmo 135, 17: e tampouco existe es-
pírito na sua boca.
2 - Ânimo ou respiração, como em Samuel, I, cap. XXX,
12: e voltou-lhe o Espírito, isto é, respirou. [22]
3 - Coragem, força, como emjosué, cap. II, 11: e não fi-
cou depois espírito em nenhum homem; idem em Ezequiel,
cap. II, 2: e veio a mim o espírito (ou força) que me obrigou a
levantar sobre os meus próprios pés.
4 - Virtude, aptidão, como em ]ó, cap. XXXII, 8: certa-
mente, o Espírito está no homem, ou seja, a ciência não deve
procurar-se unicamente nos velhos, já que depende da virtu-
de e da capacidade de cada homem; idem nos Números, cap.
XXVII, 18: O homem, em quem está o Espírito.
5 - Convicção, como nos Números, cap. XIV, 24: porque
foi outro o seu Espírito, quer dizer, uma outra convicção, um
outro pensamento; idem nos Provérbios, cap. I, 23: eu vos di-
rei o meu Espírito (isto é, a minha idéia). Nesse mesmo senti-
do, emprega-se para significar a vontade, a decisão, o apeti-
te e o ímpeto da alma, como em Ezequiel, cap. I, 12: iam para
onde tinham o Espírito (ou vontade) de ir; idem em Isaías,
cap. XXX, 1: e urdis uma teia que não é segundo o meu Espí-
24 ESPINOSA
•Anotação III. Embora alguns homens possuam certos dons que a na-
tureza recusa aos outros, não se diz, contudo, que eles excedem a natureza
humana, a menos que esses dons sejam tais que não possam compreender-
se a partir da definição da mesma natureza. Por exemplo, a altura do gigante
é rara, mas, apesar disso, é humana. Pouquíssimos são os que conseguem
improvisar poemas e, no entanto, isso é humano [há até quem o faça com
a maior das facilidades]. Ou imaginar certas coisas de olhos abertos com
tanta vivacidade como se elas estivessem mesmo na frente. Porém, se exis-
tisse alguém que tivesse um outro meio de compreender e outros funda-
mentos para o conhecimento, esse sim, ultrapassaria os limites da natureza
humana.
30 ESPINOSA
Dos profetas
tir muito nessa matéria, pois não há nada que a Escritura ex-
plicite com mais clareza que o fato de Deus ter concedido o
dom de profetizar a uns profetas em grau mais elevado que
a outros/Mostrarei, todavia, com mais atenção e pormenor,
que as profecias ou representações variavam segundo as opi-
niões perfilhadas pelos profetas e que estes tiveram opiniões
diferentes, até mesmo opostas, além de preconceitos diversos
(refiro-me apenas a coisas especulativas, pois quanto à probi-
dade e aos bons costumes há que pensar de outra maneira).
Julgo ser essa a questão mais importante, já que é a partir daí
que vou concluir que a profecia nunca torna os profetas mais
sábios, antes os deixa com as suas opiniões preconcebidas,
razão pela qual não somos obrigados a dar-lhes crédito em
matérias puramente especulativas.
É, de fato, surpreendente a facilidade com que toda a
gente se persuadiu de que os profetas sabiam tudo quanto o
entendimento humano pode atingir, e, como se julga preferí-
vel, apesar de certas passagens da Escritura dizerem claramen-
te que eles ignoravam algumas coisas, confessar que não se
entendem essas passagens a admitir que os profetas ignora-
ram algo. Ou, então, as pessoas esforçam-se por torturar as
palavras da Escritura a ver se as obrigam a dizer o que, ma-
nifestamente, elas não querem dizer. É claro que, se fosse lí-
cito qualquer desses dois processos, ficaria em causa toda a
Escritura; debalde tentaríamos, com efeito, demonstrar fosse
o que fosse a partir dela, se nada nos impedisse de colocar
passagens que são meridianamente claras entre as que são
obscuras e impenetráveis ou de interpretá-las como quisés-
semos. Por exemplo, não há coisa mais óbvia na Escritura
que o fato de Josué, e porventura o autor que escreveu a sua
história, julgarem que o Sol se movia em torno da Terra, que (36]
esta, por seu turno, estava parada e que o Sol permaneceu
imóvel por alguns instantes. Há, todavia, quem, por não que-
rer admitir que se possa verificar alguma mudança nos céus,
explique aquela passagem de tal maneira que ela já não pa-
rece dizer nada de semelhante; outros, ainda, que aprende-
ram a filosofar de forma mais correta e sabem que a Terra se
move ao passo que o Sol está parado, ou melhor, não se move
40 1ESPINOSA
tude. Com efeito, eles não teriam sido menos felizes se Deus
tivesse igualmente chamado todos os homens à salvação;
nem Deus lhes teria sido menos propício se tivesse prestado
igual assistência aos outros; nem as leis seriam menos justas,
ou eles seriam menos sábios, se aquelas fossem prescritas a
todos; nem os milagres evidenciariam menos o poder de
Deus se tivessem sido feitos em atenção também às outras na-
ções; nem, finalmente, os hebreus seriam menos obrigados a
prestar culto a Deus se ele tivesse prodigalizado esses dons a
todos por igual. Quanto àquilo que Deus diz a Salomão (Reis,
livro 1, cap. III, 12), isto é, que ninguém no futuro seria tão
sábio como ele, parece tratar-se apenas de um modo de falar
para traduzir a_ sua excepcional sabedoria; seja como for, não
se pode de maneira alguma acreditar que Deus tenha prome-
tido a Salomão, para o fazer mais feliz, que não concederia a
ninguém, depois dele, uma tão grande sabedoria, uma vez
que isso não acrescentaria nada à inteligência de Salomão,
nem o Rei sábio teria de agradecer menos a Deus um tão gran-
de benefício se acaso Deus lhe tivesse dito que daria a todos
igual sabedoria.
Quando dizemos que Moisés, nas passagens do Penta-
teuco citadas, falou de modo que fosse entendido pelos he-
breus, não queremos com isso negar que Deus só a eles pres-
creveu essas leis do Pentateuco, ou que só a eles tenha fala-
do, ou, enfim, que os hebreus não tenham visto coisas tão
admiráveis como a nenhuma outra nação foi dado ver; o que
pretendemos dizer é apenas que Moisés quis, desse modo e,
sobretudo, com esses argumentos, admoestar os hebreus,
adaptando-se à sua mentalidade infantil para melhor os vin-
cular ao culto de Deus. Queremos, além disso, mostrar que
os hebreus não foram superiores às outras nações, nem pela
sua ciência nem pela sua piedade, mas por uma outra razão.
Quer dizer, os hebreus (para falar, como a Escritura, em ter-
mos que eles percebam), apesar de terem sido muitas vezes
admoestados, não foram escolhidos por Deus dentre as ou-
tras nações para a verdadeira vida nem para as altas especu-
lações: foi para algo completamente diferente e que vou ago-
ra expor.
52 ESPINOSA
VII, 20). Por outro lado, as suas orações devem ter sido sem-
pre de alto valor aos olhos de Deus e o seu poder de amaldi-
çoar foi, com certeza, enorme, já que se lê tantas vezes na Escri-
tura, para testemunhar a grande misericórdia de Deus para com
os israelitas, que Deus não quis atender a Balaão e que con-
verteu em bênção a maldição por ele proferida (Deuteronô-
mio, XXIII, 6; Josué, XXIV, 10; Neemias, XIII, 2). Tinha, por con-
seguinte, grande aceitação junto de Deus, pois as orações dos
[531 ímpios, tal como as suas maldições, em nada afetam a Deus.
Ora, se Balaão, sendo um verdadeiro profeta, é, todavia,
designado por Josué como adivinho ou áugure (cap. XIII,
22), é claro que este nome era também utilizado no bom sen-
tido e que aqueles a quem os gentios costumavam chamar
áugures e adivinhos eram verdadeiros profetas, ao passo que
aqueles a quem a Escritura muitas vezes acusa e condena
eram falsos adivinhos que enganavam os pagãos como os fal-
sos profetas enganavam os judeus, conforme também consta
de outras passagens da Escritura. A conclusão, portanto, é que
o dom da profecia não foi exclusivo dos hebreus, mas comum
a todas as nações.
Porém, os fariseus sustentam acerrimamente o contrário,
ou seja, que o dom da profecia foi exclusivo da sua nação,
ao passo que as outras adivinhariam os acontecimentos futu-
ros por não sei que virtude diabólica (as coisas que inventa
a superstição!). A principal citação que eles vão buscar ao
Antigo Testamento para confirmar, pela autoridade deste, a
sua opinião é aquela passagem do Êxodo, XXXIII, 16, onde
Moisés diz a Deus: de que modo se reconhecerá que eu e o teu
povo achamos graça diante dos teus olhos? Certamente pelo
fato de ires conosco e nos separares, a mim e ao teu povo, de
todos os povos que existem à superfície da terra. Como disse,
é daqui que eles pretendem inferir que Moisés pediu a Deus
que prestasse assistência aos judeus, que se lhes revelasse
profeticamente e que não concedesse essa graça a nenhuma
outra nação. Mas é claro que seria ridículo Moisés invejar a
assistência de Deus aos gentios ou atrever-se a pedir a Deus
qualquer coisa de semelhante. O que acontece é que Moisés,
conhecendo o caráter e o ânimo insubmisso da sua nação,
TRATADO TEOLÓGICO-POLtnco 61
no cap. XXVIII, 28, de jô) e que todos viveram sob o seu do-
mínio, ou seja, sob o domínio da lei que concerne unica-
mente a verdadeira virtude e não daquela que é estabelecida
para cada Estado particular, em função da respectiva consti-
tuição, e se adapta à índole de apenas uma nação. Paulo con-
clui, por fim, que, sendo Deus o Deus de todas as nações, quer
dizer, igualmente propício a todas elas, e uma vez que todas
estavam de igual modo submetidas à lei e ao pecado, a to-
das Deus enviou o seu Cristo para que as libertasse da servi-
dão da lei e para que não mais fizessem o bem por impera-
tivo da lei mas por firme decisão da vontade. Paulo ensina,
pois, exatamente aquilo que nós pretendemos. Daí que, quan-
do ele diz que só aos judeus foram confiadas as palavras de
Deus, seja necessário, ou entender que só a eles foram con-
fiadas as leis por escrito, enquanto às outras nações o foram
por revelação interior, ou então dizer (já que ele tenta rejeitar
uma objeção que só os judeus podiam fazer) que Paulo res-
ponde de acordo com a capacidade de compreensão e as
opiniões então aceitas pelos judeus. Recorde-se que, para en-
sinar aquilo que em parte vira e em parte ouvira, ele se fazia
grego entre os gregos e judeu entre os judeus.
Resta-nos agora responder apenas aos argumentos da-
(551 queles que se querem persuadir de que a eleição dos he-
breus não foi transitória e em função unicamente do Estado,
mas sim eterna. Dizem eles que os judeus, após a destrui-
ção do Estado, sobreviveram todos estes anos, como esta-
mos vendo, espalhados por toda parte e separados de to-
das as nações, coisa que não aconteceu com nenhum outro
povo. Dizem ainda que a Sagrada Escritura parece ensinar,
em muitas passagens, que Deus fez dos judeus os seus elei-
tos para todo o sempre e, desse modo, tendo embora per-
dido o Estado, continuam a ser os eleitos de Deus. As pas-
sagens que do seu ponto de vista demonstrariam com toda
a clareza essa eleição para toda a eternidade são principal-
mente as seguintes:
1 - jeremias, cap. XXXI, 36, onde o profeta garante que
a semente de Israel continuará a ser para todo o sempre o
povo de Deus, comparando os judeus com a ordem fixa dos
céus e da natureza.
TRATADO 1EOLÓGJCO-POLÍT1CO 63
tros, uma vez que lhes tinham sido vetados todos os cargos
honoríficos 13 •
Quanto ao sinal da circuncisão, considero-o também tão (571
importante a esse respeito que estou persuadido de que, só
por si, ele chegaria para manter para sempre unida essa na-
ção. Inclusive, se os fundamentos da sua religião não lhes
enfraquecessem o ânimo, estaria absolutamente convencido
de que, um dia, chegada a ocasião - de tal maneira são ins-
táveis as coisas humanas - eles hão-de reconstituir de novo
o seu Estado e Deus de novo os há-de eleger. Temos um ex-
celente exemplo disso mesmo nos chineses, os quais usam
religiosamente na cabeça aquela espécie de rabicho com que
se distinguem de todos os outros e desse modo a sua nação
tem sobrevivido ao longo de tantos milênios, que supera de
longe em antiguidade todas as demais. É verdade que nem
sempre se mantiveram como Estado independente, mas sem-
pre que perderam a independência acabaram por reconquis-
tá-la outra vez, mal o ânimo dos tártaros começou a enfraque-
cer devido à indolência e à vida luxuosa.
Em suma, se alguém insiste que os judeus, por este ou
por aquele motivo, serão para sempre os eleitos de Deus, não
serei eu a opor-me, desde que fique bem claro que essa elei-
ção, transitória ou eterna, se não refere, naquilo que tem de
peculiar, senão ao Estado e aos bens materiais (pois só por
isso se pode distinguir uma nação da outra); no que toca,
porém, à inteligência e à verdadeira virtude, nenhuma nação
se distingue de outra nem Deus escolhe esta de preferência
àquela em função de tais critérios.
CAPÍTULO IV
Da lei divina
Dos milagres
ou seja, que quando a Escritura diz que isto ou aquilo foi fei-
to por Deus ou pela sua vontade se deve entender simples-
mente que foi feito de acordo com as leis e a ordem da na-
tureza, e não, como julga o comum dos homens, que a natu-
reza deixou por um momento de agir ou que a sua ordem
foi por algum tempo interrompida8 • A Escritura, porém, não
ensina diretamente aquelas coisas que não concernem a sua
doutrina, dado que o seu intuito não é (já o demonstramos a
propósito da lei divina) ensinar as coisas pelas causas natu-
rais, nem sequer ensinar coisas meramente especulativas.
Por essa razão, o que pretendemos aqui provar deverá ex-
trair-se como uma conseqüência de certas histórias da Escri-
tura que, por acaso, vêm narradas com mais pormenores e
circunstâncias. Vou referir só algumas delas. Em Samuel, li-
vro I, cap. IX, 15, 16, conta-se que Deus revelou ao profeta
que lhe ia enviar Saul. Ora bem, Deus não enviou Saul a Sa-
muel como os homens costumam enviar alguém a outra pes-
soa, pois este enviar da parte de Deus significa apenas a or-
dem da natureza. Saul procurava (como se conta no capítulo
citado) as jumentas que tinha perdido e, quando já estava de-
cidido a voltar para casa sem as encontrar, foi, a conselho de
um criado, ter com o profeta Samuel para que este lhe dis-
sesse onde as poderia encontrar. Não consta, em toda essa
descrição, que Saul tenha recebido alguma ordem de Deus
para além desta, absolutamente natural, de ir ter com Sa-
muel. No Salmo CV, 24, diz-se que Deus alterou o ânimo dos
egípcios para que odiassem os israelitas. Ora, uma tal altera-
ção foi também inteiramente natural, como se pode ver no
capítulo I do Êxodo, onde se refere a razão, e não era assim
tão pouca, que levou os egípcios a reduzir os israelitas à es-
cravidão. No Gênesis, cap. IX, 13, Deus diz a Noé que fará
aparecer o arco-íris. Mas esta ação divina não é mais do que
a refração e reflexão que sofrem os raios solares nas gotas de
água. No Salmo CXLVII, 18, chama-se o verbo de Deus à ação
natural do vento quente que liquefaz a geada e a neve, ao pas-
so que, no versículo 15, se chama sentença e verbo de Deus
ao vento frio; o vento e o fogo são ainda, no Salmo CIV, 4,
designados por enviados e ministros de Deus. E, para além
106 ESPINOSA
Da interpretação da Escritura
outras coisas), que foi transmitido aos fariseus pelos seus ra-
binos e através do qual eles fazem remontar a tradição até
Moisés, verificamos que ele é falso, como irei demonstrar em
outro local. Donde, uma tal tradição deve ter-se como parti-
cularmente suspeita. Isso, não obstante sermos obrigados pelo
nosso método a supor como isenta de corrupção uma tradi-
ção dos judeus, a saber, o significado das palavras da língua
hebraica que deles recebemos. E, se duvidamos daquela, já o
mesmo não sucede em relação a esta. De fato, é impossível
que alguma vez tenha havido alguém que achasse utilidade
em alterar o significado de uma palavra, embora seja freqüen-
te isso acontecer com o sentido das frases. Até porque é mui-
to difícil: quem quisesse alterar o significado de uma palavra
teria simultaneamente de explicar, de acordo com a maneira
de ser e a mentalidade de cada um, todos os autores que es-
creveram na mesma língua e que empregaram essa palavra
na sua acepção tradicional, ou então, teria de os falsificar
com a maior cautela. Depois, a língua é tanto do vulgo como
dos sábios, enquanto o sentido dos textos e os livros só os
sábios os possuem. É fácil, portanto, entender que os sábios
podiam alterar ou corromper o significado de uma frase de
[1061 um livro qualquer raríssimo que estivesse em seu poder, mas
não o significado das palavras. Além de quê, se alguém qui-
sesse alterar o significado usual de uma palavra, dificilmente
poderia depois respeitar essa alteração sempre que falasse
ou escrevesse. Por essas e outras razões, não custa acreditar
que a ninguém passará pela cabeça corromper uma língua.
O que de fato acontece com freqüência é corromper-se o
pensamento de um autor, alterando-lhe as frases ou interpre-
tando-as mal.
Uma vez que o nosso método (baseado na regra de que
o conhecimento da Escritura deve extrair-se apenas da Escri-
tura) é o único verdadeiro, tudo quanto ele não nos puder
oferecer para chegarmos ao completo conhecimento da Es-
critura há que desistir de o atingir. Mas que tipo de dificulda-
des apresenta esse método? O que é que lhe falta para que
nos possa levar até o conhecimento total e seguro dos Sagra-
dos Códices? É isso o que vamos ver agora. A primeira gran-
TRATADO T'EOLÓGICO-POLÍ11CO 125
• Anotação VII. Quer dizer, para nós que não estamos acostumados a
essa língua e desconhecemos o significado das suas frases idiomáticas.
126 ESPINOSA
• Anotação IX. Pelo historiador, e não por Abraão. Com efeito, aquele
diz que o lugar que hoje se chama será revelado no monte de Deus era de-
signado por Abraão Deus providenciará.
142 ESPINOSA
III - Por outro lado, certos locais não estão indicados pe-
los nomes que tinham no tempo de Moisés mas por outros que
só mais tarde lhes foram dados. Diz-se, por exemplo, que
Abraão perseguiu os inimigos até Dan (Gênesis, XIV, 14) no-
me que só foi dado a essa cidade muito depois da morte de
Josué (ver juízes, cap. XVIII, 29).
IV - Por vezes, as narrativas estendem-se para lá do tem-
po em que viveu Moisés. No Êxodo, cap. XVI, 34, conta-se que
os filhos de Israel comeram maná durante quarenta anos, até
[1221 que chegaram a uma terra habitada, nos confins de Canaã, ou
seja, até aquele momento de que fala o livro de Josué, cap.
V, 10. No Gênesis, cap. XXXVI, 31, afirma-se também: são es-
tes os reis que reinaram em Edom antes que um rei reinasse
sobre os filhos de Israel. Aqui, o historiador fala certamente
dos reis que tiveram os idumeus antes de Davi os submeter*
e instalar guarnições na própria Iduméia (ver Samuel, II, cap.
VIII, 14).
Por tudo isso, é, pois, meridianamente claro que o Pen-
tateuco não foi escrito por Moisés e sim por alguém que vi-
veu muitos séculos depois dele 3 • Mas, se se quiser, atente-se
ainda nos livros que Moisés escreveu e que são citados no
Pentateuco, e ver-se-á, até por aí, que eles são diferentes da-
queles que constituem o Pentateuco. Em primeiro lugar,
consta do Êxudo, cap. XVII, 14, que Moisés descreveu por or-
dem de Deus a guerra contra Amalec; no mesmo capítulo não
consta, porém, em que livro o fez. Ora, nos Números, cap.
XXI, 14, cita-se um certo livro, dito das guerras de Deus, no
• Anotação XI. Por exemplo, no livro II dos Reis, cap. XVIII, 20, lê-se na
segunda pessoa: tu falaste, mas apenas com a boca. No entanto, em Isaías,
cap. XXXVI, 5: eu disse, e são palavras exatas, que para a guerra era preciso
prudência e coragem. Depois, no versículo 22, lê-se: mas direis talvez, no
plural, portanto, quando na versão de Isaías está no singular. Além disso, no
texto de Isaías não se lêem estas palavras do versículo 32 do citado capítu-
lo: numa região de oliveiras que dão azeite e de mel vivereis e não morrereis.
[É por essa razão que eu não tenho dúvidas de que são supostas palavras.]
E, como esta, encontram-se muitas variantes entre as quais ninguém saberá
alguma vez por qual se deve optar.
•• Anotação XII. Por exemplo, em Samuel, II, cap. VII, 6, lê-se: andei
incessantemente por aqui e por ali com uma tenda e um tabernáculo; nos
Paralipômenos, i, cap. XVII, 5: e ia de tenda em tenda e de tabernáculo ... ,
mudando-se, portanto, apenas algumas palavras. Outro exemplo vem no ver-
sículo 10 do referido capítulo de Samuel, onde se lê: para o afligir, e nos
Paralipômenos, cap. citado, vers. 9, para o esmagar. E há várias outras di-
vergências, de maior importância até, em que só um cego ou alguém que
esteja fora do seu juízo é que não reparará, se comparar esses capítulos.
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTICO 155
• Anotação XIII. Que este texto não se refere a nenhum outro tempo
que não seja aquele em que José foi vendido, decorre não só do contexto,
mas também da própria idade de Judá, que tinha então, no máximo, 22
anos, se é que é lícito fazer o cálculo a partir da narração anterior. Vemos,
com efeito, no último versículo do capítulo XX.IX do Génesis, que Judá
nasceu dez anos depois de o patriarca Jacó ter começado a trabalhar para
Labão, e José quatro anos mais tarde. Ora, se José, quando foi vendido, tinha
17 anos, Judá teria 21, e não mais. Iludem-se, pois, os que acreditam que
essa longa ausência de Judá se deu antes de José ser vendido, além de que
parecem estar mais preocupados com a divindade da Escritura do que se-
guros dela.
156 ESPINOSA
• Anotação XIV. Dizer, como alguns, que Jacó levou oito a dez anos
para ir da Mesopotâmia para Betel, isso cheira-me a asneira, salvo o devido
respeito para com Aben Esdra. Com efeito, quer pelo desejo que certamente
tinha de ver os seus pais, de idade já muito avançada, quer para cumprir o
voto que fizera quando fugira do irmão (ver Gênesis, cap. XXVIII, 10, cap.
XXXI, 13, e cap. XXXV, 1), Jacó apressou-se o mais que pôde, até porque
Deus o avisou para que fosse cumprir o seu voto (Gênesis, cap. XXXI, 3 e 13),
prometendo-lhe a sua ajuda para o conduzir de regresso à Pátria.
Se, todavia, eles acharem que isso são conjecturas e não razões, pois
bem, concedamos, Jacó demorou oito a dez anos, ou até mais, se se quiser,
para fazer esta curta viagem, tendo, com certeza, sido mais contrariado pelo
destino do que Ulisses. O que não poderão negar é que Benjamim nasceu
no último ano dessa viagem, ou seja, aceitando aquela hipótese, 15 ou 16
anos depois de José. Com efeito, Jacó despediu-se de Labão quando José
tinha sete anos e se, conforme demonstramos neste mesmo capítulo, entre
os 17 anos de José e o momento em que o próprio patriarca foi ao Egito não
passaram mais que 22 anos, Benjamim, nessa altura, isto é, quando partiu
para o Egito, teria no máximo 23 ou 24 anos; ora, segundo consta, nessa ai-
1RA TADO TEOLÓGJCO-POIÍflCO 157
tura ele já tinha netos na flor da idade (compare-se o texto do Gênesis, cap.
XLVI, 21, com os vers. 38, 39, 40 do cap. XXVI dos Números e com os vers.
1 e seguintes do capítulo VIII, livro I dos Paralipômenos). É que Belah, o
primogênito de Benjamim, tinha já dois filhos, Ared e Nahaman. Isso seria,
com certeza, tão estranho à razão como pretender que Dina foi violada aos
sete anos e outras inverosimilhanças que apontamos na seqüência dessa
história. Por aí se vê como as pessoas inábeis, quando tentam resolver uma
dificuldade, caem em outra e tornam a situação ainda mais intrincada.
• Anotação XV. [Isto é, em outros termos e por ordem diferente daque-
la em que se encontram no livro de Josué.]
158 ESPINOSA
• Anotação XVI. R. Levi ben Gerson e alguns outros crêem que estes 40
anos que a Escritura diz terem decorrido em liberdade se contam a partir da
morte de Josué, incluindo por isso os oito anos que durou a dominação de
Kusan Rasataim; da mesma forma, pretendem que os 18 anos que se se-
guiram àqueles 40 e em que os hebreus estiveram subjugados se devem in-
cluir no cômputo dos 80 em que Aod e Samgar foram juízes. Em resumo, in-
cluem anos de dominação estrangeira entre aqueles que a Escritura confir-
ma terem sido de liberdade para os hebreus. Mas uma vez que a Escritura
enumera expressamente os anos de servidão e os anos de liberdade e con-
ta (cap. II, 18) que os interesses dos hebreus prosperaram sob os juízes, tor-
na-se evidente que este rabino, homem aliás de grande erudição, bem como
os outros que lhe seguem as pisadas, ao tentarem resolver semelhantes difi-
culdades, mais do que explicar a Escritura, a estão corrigindo. O mesmo se
passa com os que admitem que a Escritura, quando apresenta aquele côm-
puto geral dos anos, se refere apenas aos períodos durante os quais houve
um Estado judeu e não aos anos de anarquia [designam-se assim por ódio
ao Estado Popular] e de servidão, que consideram desafortunados e como
que de interregnos. [Dizer que os hebreus não quiseram assinalar nos seus
TRATADO TEOLÓGICO-POIÍ11CO 159
o tempo em que ele esteve em Gesur. Mas, se é a isso que chamam interpre-
tar, e se é lícito usar de uma tal liberdade na exposição da Escritura e alter-
ar assim frases inteiras, acrescentando ou suprimindo qualquer coisa, então,
há que dizer que é lícito corromper a Escritura e dar-lhe, como se faz a um
pedaço de cera, tantas formas quantas se quiser.
166 ESPINOSA
• Anotação XXII. E por isso ninguém poderia suspeitar que a sua pro-
fecia estivesse em contradição com a de Jeremias, ao passo que, segundo a
narração de Josefa, toda a gente suspeitou até o dia em que, ocorridos os fa-
tos, viu que ambos tinham profetizado a verdade.
176 ESPINOSA
cardo com Aben Esdra que este livro foi traduzido de uma
outra língua, até porque faz lembrar a poesia dos pagãos: o
Pai dos deuses convoca por duas vezes o concílio, e Momo4,
que aqui se chama Satanás, critica as palavras de Deus com a
maior das liberdades, etc. Mas tudo isso não passa de meras
conjecturas sem fundamento bastante.
Vejamos o livro de Daniel. Aqui, sem dúvida alguma, vêm
textos escritos pelo próprio Daniel, a partir do capítulo VIII.
Ignoro, no entanto, de onde terão sido transcritos os sete pri-
meiros capítulos. Pode-se supor, dado que, à exceção do [145]
primeiro, estão escritos em caldaico, que a sua fonte tenham
sido as Crônicas dos Caldeus. Se isso estivesse perfeitamente
demonstrado, seria até uma excelente prova de que a Escri-
tura é sagrada só porque através dela compreendemos as coi-
sas que aí vêm expressas, e não por compreendermos aspa-
lavras, ou seja, a língua e as frases em que elas estão expres-
sas5. E ficaria igualmente provado que todos os livros que
ensinam e contam coisas excelentes são sagrados, não im-
portando a língua e a nação em que foram escritos. Para já,
podemos, pelo menos, registrar que estes capítulos foram es-
critos em caldaico e, no entanto, são tão sagrados como os
outros livros da Bíblia.
O I livro de Esdras está de tal forma interligado com o
de Daniel que se vê facilmente que foram escritos pela mes-
ma pessoa e que esta continua narrando aqui a história dos
judeus a partir do primeiro cativeiro. Ao livro de Esdras liga-
se, indubitavelmente, o livro de Ester, pois a conjunção pela
qual principia não se pode referir a mais nenhum outro. Nem
é de crer que este livro seja o mesmo que Mardoqueu escre-
veu. De fato, no capítulo IX, 20, 21 e 22, é uma outra pessoa
que conta que o mesmo Mardoqueu tinha escrito epístolas,
que revela o seu conteúdo e que, no versículo 31, diz que a
rainha Ester determinara por decreto o modo de celebrar a
festa das Sortes (Purim), decreto esse que foi inserido no li-
vro, isto é, (conforme o significado da palavra em hebraico),
num livro que na época todos conheciam e onde se registra-
vam esses assuntos. Ora, esse livro, como reconhece Aben
Esdra e como qualquer pessoa é obrigada a reconhecer, de-
178 ESPINOSA
fo, Antiguidades, livro XI, cap. VIII), ou, como diz Fílon, o Ju-
deu, no livro das Eras, o sexto e último sumo-sacerdote
sob o domínio persa. No mesmo capítulo de Neemias, versí-
culo 22, isso vem também com toda a clareza: Os Levitas -
diz o historiador - do tempo de Eliasib, de jojada, de jona-
than e de ]edoá, sobre• o reinado de Dario o Persa foram ins-
critos, inscritos, obviamente, nas Crônicas. E creio que nin-
guém vai acreditar que Esdras• ou Neemias tiveram uma tal
longevidade que sobreviveram a 14 reis da Pérsia. Porque
entre Ciro, que foi quem primeiro deu autorização aos judeus
para reconstruírem o Templo, e Dario, décimo quarto e últi-
mo rei dos persas, vão, com efeito, mais de 230 anos. Daí que
eu esteja seguramente convicto de que esses livros foram es-
critos muito depois de Judas Macabeu ter restabelecido o cul-
to no Templo, e isso porque, a essa altura, certas pessoas mal
intencionadas que pertenciam, com certeza, à seita dos sadu-
ceus, divulgavam falsos livros de Daniel, Esdras e Ester. Os fa-
riseus, que eu saiba, nunca aceitaram tais livros6 • E, embora
se encontrem no livro considerado o IV de Esdras certas fá-
bulas que se lêem igualmente no Talmude, elas não são,
• A menos que a palavra signifique além de, houve aqui erro do co-
pista, que escreveu sobre em vez de até.
• Anotação XXIV. Esdras era tio do primeiro Sumo-Pontífice, Josué (Es-
dras, cap. XXIV, 1, e Paralipômenos I, cap. VI, 14, 15), e partiu da Babilônia
para Jerusalém com Zorobabel (Neemias, cap. XII, 1). Mas, quando viu as
coisas complicadas entre os judeus, parece que voltou de novo ã Babilônia,
tal como outros fizeram, de acordo com Neemias, cap. I, 2, permanecendo aí
até o reinado de Artaxerxes, altura em que, obtido o que queria, voltou a Je-
rusalém. Também Neemias partiu para Jerusalém com Zorobabel no tempo
de Ciro (ver Esdras, cap. II, 2 e 63, e Neemias, cap. X, 9, e cap. X, 1). De fato,
os intérpretes não justificam com nenhum outro exemplo a tradução da pa-
lavra "Hathirschata" por legado, sabendo-se, em contrapartida, que aos ju-
deus que iam freqüentar a corte eram impostos novos nomes. Por exemplo,
Daniel chamava-se Baltazar, Zorobabel chamava-se Sesbatsar (ver Daniel,
cap. I, 7; Esdras, cap. I, 8, e cap. V, 14) e Neemias Hathirshata. Devido, porém,
ao seu ofício, era costume saudarem-se pelo nome de "pehah", procurador,
isto é, governador(ver Neemias, cap. V, 14, e cap. XlI, 26). [É, pois, seguro
que Hathirshata é um nome próprio, como Hatselefon, Hatsobeba (Paralipô-
menos, I, cap. IV, 3, 8), Halloghes (Neemias, cap. X, 25) etc.]
180 ESPINOSA
possível dizer alguma coisa de forma tão correta que ela não
possa, interpretando-a mal, vir a ser deturpada. Quem quer
ceder ã licenciosidade, arranja sempre uma justificação qual-
quer. Nem sequer aqueles que possuíam, antigamente, os
textos originais - a arca da aliança - nem os que tinham ã sua
[160] disposição os próprios profetas e apóstolos, foram melhores
ou mais obedientes: todos eles, tanto judeus como gentios,
foram sempre a mesma coisa e, em todos os tempos, a virtude
foi extremamente rara. Apesar disso, e para remover qualquer
escrúpulo, temos de mostrar aqui, primeiro, em que sentido a
Escritura, ou qualquer outra coisa sem voz, se pode tomar
por sagrada e divina; segundo, o que é realmente a palavra de
Deus e como ela não se restringe a um determinado número
de livros; por último, que a Escritura, enquanto ensina o que
é necessário para a obediência e a salvação, não pode ter-se
corrompido. Por aí se poderá facilmente constatar que não
dissemos nada contra a palavra de Deus nem demos alguma
vez lugar à impiedade.
Chama-se sagrado e divino aquilo que se destina ao exer-
cício da piedade e da religião. Uma coisa é sagrada só en-
quanto os homens a usarem religiosamente; se os homens
deixarem de ser piedosos, de imediato ela deixa de ser sagra-
da; por outro lado, se a utilizarem para perpetrar ações ím-
pias, então essa mesma coisa, que antes era sagrada, tornar-
se-á imunda e profana. Assim, por exemplo, o patriarca Jacó
chamou casa de Deus a um determinado lugar porque Deus
aí se lhe revelou e ele lhe prestou culto; porém, o mesmo lu-
gar foi designado pelos profetas como casa da iniqüidade
(Amós, cap. V, 5, e Oseu, cap. X, 5) porque os israelitas, por
ordem de Jeroboão, costumavam lá oferecer sacrifícios aos
ídolos. Vejamos um outro exemplo que aponta claramente
no mesmo sentido. As palavras só possuem determinado sig-
nificado em função da maneira como se usam; se, de acordo
com essa sua utilização, elas vêm ordenadas de forma que
sugiram a quem as lê sentimentos devotos, tais palavras se-
rão sagradas, bem como o livro que resulta dessa sua dispo-
sição. Mas, se elas depois deixarem de ser usadas, a ponto
de já não terem nenhum significado, ou se o livro for total-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO 199
ou, com a letra paragógica He, Eloah, que não significa se-
não poderoso, como se sabe, e que só se adapta a Deus no
sentido de "o poderoso por excelência", tal como quando
chamamos a Paulo o Apóstolo. Outras vezes, explicitam-se
as virtudes do seu poder: El (poderoso) grande, tremendo,
justo, misericordioso, etc. ou então, para indicar simultanea-
mente todas essas virtudes, usa-se a palavra no plural mas
com significado singular, coisa que é muito freqüente na Es-
critura. Ora, se Deus diz a Moisés que os antepassados não o
conheceram pelo nome de Jeová, é porque eles não conhe-
ceram nenhum atributo de Deus que traduza a sua essência
absoluta, mas unicamente os seus efeitos e promessas, isto é,
a sua potência enquanto manifestada através de coisas visí-
veis. E isso não é dito por Deus para acusar de infidelidade
os antepassados de Moisés; pelo contrário, é para elogiar a
sua credulidade e a sua fé, pois, apesar de não terem tam-
bém um conhecimento especial de Deus como o de Moisés,
mesmo assim acreditaram firmes e convictos nas promessas
de Deus e não fizeram como Moisés, que, embora tivesse
idéias mais elevadas sobre Deus, duvidou das suas promes-
sas e ripostou a Deus que, em lugar da salvação prometida,
mudara para pior a condição dos judeus. Assim sendo, uma
vez que os antepassados ignoravam o nome específico de
Deus e Deus refere este fato para louvar o seu ânimo sim-
ples e a sua fé, e, ao mesmo tempo para lembrar a singular
graça concedida a Moisés, há que concluir daí, com toda evi-
dência, aquilo que tínhamos afirmado em primeiro lugar, ou
(1701 seja, que nenhum mandamento obriga os homens a conhe-
cer os atributos de Deus e que tal conhecimento é um dom
peculiar concedido apenas a alguns fiéis. Nem sequer vale a
pena demonstrá-lo por meio de exemplos tirados da Escritu-
ra. Quem, com efeito, não vê que os fiéis não tiveram todos
igual conhecimento acerca de Deus e que ninguém pode ser
sábio, da mesma forma que não pode viver ou existir, por
obediência a uma ordem? Homens, mulheres, crianças, todos
podem de igual modo agir por obediência a um mandamen-
to, mas não podem ser sábios. E, se alguém me diz que não é
necessário compreender os atributos de Deus, mas simples-
TRATADO TEOLÓG/CO-POLÍT1CO 211
tinha, até então, revelado nenhum), mas sim vergar o seu âni-
mo insubmisso e trazê-los à obediência: foi por isso que não se
lhes dirigiu com argumentos mas com estrépito de trombetas,
trovões e relâmpagos (Êxodo, cap. XX, 20).
Resta, enfim, demonstrar que entre a fé, ou teologia, e a
filosofia não existe nenhuma relação nem nenhuma afinida-
de, como terá obrigatoriamente de admitir quem quer que co-
nheça o objetivo e o fundamento dessas duas disciplinas em
tudo divergentes. O objeto da filosofia é unicamente a verda-
de; o da fé, como ficou abundantemente demonstrado, é ape-
nas a obediência e a piedade. Depois, os fundamentos da fi-
losofia são as noções comuns, devendo toda ela ser deduzi-
da a partir apenas da natureza; os da fé, por seu turno, são
as narrativas históricas e a língua, pelo que não podemos de-
duzi-la senão da Escritura e da revelação, conforme demons-
tramos no capítulo VII. A fé, portanto, concede a cada um a
[180] máxima liberdade de filosofar, de tal modo que se pode, sem
cometer nenhum crime, pensar o que se quiser sobre todas
as coisas. As únicas pessoas que ela condena como heréticas
e cismáticas são as que ensinam opiniões que incitem à in-
submissão, ao ódio, às dissenções e à cólera; em contraparti-
da, só considera fiéis aqueles que, tanto quanto a sua razão
e as suas capacidades lhes permitem, espalham a justiça e a
caridade.
Por último, e tendo em conta que isso constitui o princi-
pal objetivo do presente Tratado, gostaria, antes de continuar,
de pedir encarecidamente ao leitor que se dignasse reler com
particular atenção e reexaminar esses dois capítulos. Oxalá fi-
que persuadido de que não escrevemos pelo desejo de trazer
coisas novas, mas para corrigir coisas que andam distorcidas
e que esperamos ainda um dia ver finalmente emendadas.
CAPÍTULO XV
mente. Um com a razão, o outro sem ela, vão ambos, por cer-
to, ensandecer.
O primeiro dentre os fariseus que defendeu abertamen-
[181] te que se devia adaptar a Escritura à razão foi Maimônides,
cuja opinião recenseamos e refutamos com inúmeros argu-
mentos no cap. VII. Não obstante ter gozado de grande auto-
ridade, a maior parte dos fariseus afastou-se dele nessa ques-
tão e aderiu à opinião de um certo R. Judas Alpakhar', o qual,
querendo evitar o erro de Maimônides, caiu no erro contrá-
rio. Segundo Alpakhar•, a razão tem de ser serva da Escritu-
ra e subordinar-se-lhe inteiramente, julgando, por isso, que
não se deve explicar metaforicamente nenhuma passagem
da Escritura só porque o seu sentido literal repugna à razão,
mas unicamente quando ele repugna à própria Escritura, isto
é, aos dogmas que ela ensina claramente. Com base nisso,
formula esta regra universal: tudo o que a Escritura ensina
como dogma• e afirma expressamente tem de se admitir, por
força da sua própria e exclusiva autoridade, como absoluta-
mente verdadeiro, sendo mesmo impossível encontrar-se na
Bíblia qualquer outro dogma que de forma direta o contradi-
ga; só implicitamente, isto é, na medida em que as expres-
sões da Escritura deixam muitas vezes supor o contrário da-
quilo que ela ensina expressamente, razão por que nesses
casos, e em mais nenhum, se deve interpretar metaforicamen-
te. Assim, por exemplo, a Escritura ensina com toda a clare-
za que só há um Deus (Deuteronômio. cap. VI, 4) e em par-
te nenhuma se encontra uma passagem que diretamente afir-
me que existem mais deuses. Há, no entanto, várias partes
onde Deus fala de si mesmo e onde os profetas falam de
Deus no plural, deixando supor, com essa simples maneira
de dizer, que existem diversos deuses, o que não traduz o
sentido da própria frase e deve, por isso, explicar-se metafo-
ricamente, não porque repugne à razão haver vários deuses,
• Anotação XXXJII. Seja qual for o regime político em que viver, o ho-
mem pode sempre ser livre, na medida em que ser livre é deixar-se guiar
pela razão. Todavia (N. B.: Hobbes é de opinião diferente), a razão, em to-
das as circunstâncias, aconselha a paz, e a paz só pode ser conseguida se o
direito público do Estado se mantiver inviolado. Assim, quanto mais um ho-
mem se conduzir pela razão, isto é, quanto mais livre for, mais inabalavel-
mente observará as leis do Estado e executará aquilo que ordena o poder
supremo do qual é súdito.
242 ESPINOSA
• Anotação XXXIV. Quando Paulo diz que os homens não têm ma-
neira de escapar, fala ã maneira humana. Com efeito, no cap. IX [vers. 18] da
mesma Epístola, ele ensina expressamente que Deus é misericordioso para
quem quer e endurece o coração de quem quer, e que a única razão por
que os homens não têm desculpa é porque estão para o poder de Deus
como a argila está para o poder do oleiro, o qual da mesma massa faz vasos
que têm um destino nobre e outros que têm um destino menos próprio, e
não porque tenham sido antecipadamente avisados. Quanto à lei divina na-
tural, cujo preceito principal dissemos que era amar a Deus, só lhe chamei
lei no sentido em que os filósofos chamam leis às regras da natureza segun-
do as quais tudo acontece [necessariamente]. Porque o amor de Deus não é
obediência, mas sim virtude, que necessariamente existe no homem que
possui um conhecimento autêntico de Deus. A obediência contempla a von-
tade daquele que comanda, não a necessidade e a verdade da coisa. Ora,
como ignoramos a natureza da vontade divina e temos, pelo contrário, a
certeza de que tudo o que acontece, acontece exclusivamente pelo poder de
Deus, não podemos de forma nenhuma saber, a não ser por revelação, se
Deus quer que os homens lhe prestem culto e o rodeiem de honras como a
um príncipe. Acrescente-se que, já o mostramos, as leis de Deus só nos pa-
recem direitos ou leis instituídas enquanto ignoramos a sua causa; assim que
a conhecemos, deixam logo de ser direitos e passamos a aceitá-las como
verdades eternas. Isto é, a obediência passa imediatamente a ser amor, que
brota do conhecimento verdadeiro com a mesma necessidade com que a luz
jorra do Sol. Conduzidos pela razão, podemos, pois, amar a Deus, mas não
obedecer-lhe, uma vez que não podemos aceitar o direito divino, enquanto
ignoramos a sua causa, como divino, nem podemos pela razão conceber
Deus como um príncipe a promulgar leis.
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍ11CO 247
com o estado de religião. Pelo contrário, deve entender-se
como estranho à religião e à lei e, conseqüentemente, ao pe-
cado e à injúria, conforme há pouco fizemos, confirmando-o
pela autoridade de Paulo. E não é só por causa da ignorân-
cia que nós entendemos o estado de natureza como anterior
e estranho ao direito divino revelado; é também por causa
da liberdade com que nascem todos os seres. Se os homens
estivessem naturalmente vinculados ao direito divino, ou se
o direito divino fosse um direito de natureza, era supérfluo
Deus estabelecer um contrato com os homens e obrigá-los
pelo pacto e pelo juramento. Há portanto, que concordar em
absoluto que o direito divino entrou em vigor no momento
em que os homens, através de um pacto explícito, se com-
prometeram a obedecer a Deus em todas as coisas e como
que renunciaram à liberdade natural, transferindo o seu direi-
to para Deus, conforme vimos que acontece no estado civil.
Sobre isso, porém, falarei pormenorizadamente mais à frente.
Uma outra objeção que se nos poderá apontar a esse
respeito é que os soberanos estão tão sujeitos ao direito divi-
no quanto os seus súditos e, no entanto, nós dissemos que
eles conservam o direito natural e que tudo lhes é, por direi-
to, permitido. Para afastar por completo tal dificuldade, que
surge não tanto a propósito do estado de natureza como do
direito natural' 7 , direi que, no estado de natureza, o motivo
por que o indivíduo se submete ao direito revelado é o mes-
mo por que se submete a viver segundo os ditames da reta
razão, isto é, porque isso lhe é mais útil e necessário para o [199]
seu bem-estar. Porque, se assim não quiser, está no seu di-
reito, desde que assuma os riscos. E pode, efetivamente, vi-
ver em plena autonomia em vez de viver segundo o código
de outrem, da mesma forma que não está obrigado a reco-
nhecer nenhum mortal como juiz ou como legítimo defensor
da religião. Ora, é esse mesmo direito que eu digo que o po-
der soberano conservou. Ele pode ouvir a opinião dos ho-
mens mas não é obrigado a reconhecer seja quem for como
juiz, tal como não é obrigado a reconhecer nenhum dentre
os mortais, além dele próprio, como defensor de nenhum
direito, a menos que se trate de um profeta expressamente
248 ESPINOSA
gar, nem para a justiça, nem para a caridade. Para que os en-
sinamentos da reta razão, ou seja (conforme demonstramos
no capítulo IV, onde se fala da lei divina), os próprios ensi-
namentos de Deus, tivessem absoluta força de lei, foi preci-
so que cada um renunciasse ao seu direito natural e que to- [230]
dos o transferissem para todos, para alguns, ou para um só.
Então é que surgiram, pela primeira vez, as noções de justiça,
injustiça, eqüidade e iniqüidade.
A justiça, por conseguinte, tal como todos os ensinamen-
tos da reta razão, incluindo a caridade para com o próximo,
só assume força de lei e de mandamento em virtude do po-
der político, isto é (por aquilo que mostramos neste mesmo
capítulo), da decisão exclusiva daqueles que detêm a sobera-
nia. E como o reino de Deus, conforme já demonstrei, consis-
te unicamente na imposição legal da justiça e da caridade, ou
seja, da verdadeira religião, resulta, como pretendíamos, que
Deus não exerce nenhum reinado sobre os homens a não ser
através daqueles que detêm o poder político. E tanto faz, re-
pito, que concebamos a religião como revelada pela luz natu-
ral ou pela luz profética: a demonstração é universal, por-
quanto a religião é a mesma e igualmente revelada por Deus,
qualquer que seja o modo segundo o qual se supõe que ela
foi dada a conhecer aos homens. Por isso mesmo, para que a
religião profeticamente revelada tivesse força de lei entre os
hebreus, foi preciso que cada um deles cedesse primeiro o
seu direito natural e que todos decidissem, de comum acor-
do, obedecer apenas àquilo que lhes fosse profeticamente re-
velado por Deus, exatamente como mostramos que acontece
no regime democrático, onde todos deliberam, de comum
acordo, viver apenas segundo os ditames da razào4 •
Apesar de os hebreus terem transferido primeiro o seu
direito para Deus, tal transferência, no entanto, só pôde ser
feita em termos muito mais teóricos do que práticos. Na rea-
lidade (como vimos mais acima), eles conservaram integral-
mente o poder político enquanto não o transferiram para Moi-
sés, o qual, desde então, ficou a ser rei absoluto e só por seu
intermédio Deus reinou sobre os hebreus. Além disso, e pelo
mesmo motivo (ou seja, por a religião só adquirir força de lei
290 ESPINOSA
nio, até que foi alçado 5 aos píncaros do poder supremo. To-
das as tentativas que fizeram, mais tarde, os monarcas, em par-
ticular os imperadores germânicos, para diminuir, por pouco
que fosse, a sua autoridade não conduziram a nada; pelo
contrário, aumentaram-na ainda mais. E a verdade é que tudo
aquilo que nenhum monarca tinha podido fazer a ferro e
fogo fizeram-no os eclesiásticos exclusivamente com a pena 6,
o que dá, só por si, uma idéia da força e da potência que
confere a autoridade religiosa e, ao mesmo tempo, mostra a
necessidade que há de os poderes soberanos a reservarem
para si.
Se entrarmos aqui também em conta com aquilo que
[236J observamos no capítulo anterior, veremos ainda que este prin-
cípio é altamente propício ao incremento da religião e da
piedade. Vimos, com efeito, que os profetas, dotados embo-
ra de uma virtude divina, com a sua liberdade de admoestar,
invetivar e criticar acabaram por irritar mais os homens do
que corrigi-los, uma vez que eram simples particulares, ao
passo que, se fossem os reis a admoestá-los ou a castigá-los,
eles vergavam-se logo. Vimos, por outro lado, que os próprios
reis, precisamente porque esse direito não era da sua exclu-
siva competência, se afastaram muitas vezes da religião e,
com eles, quase todo o povo, coisa que, como se sabe, aconte-
ceu também com freqüência e pelo mesmo motivo nos Esta-
dos cristãos.
Perguntar-se-á, porventura: sendo assim, quem é que tem
o direito de vingar a piedade se acaso os que detêm o poder
decidirem ser ímpios? Dever-se-á, ainda aí, considerá-los seus
intérpretes? A isso respondo com outra pergunta: e, se os
eclesiásticos (que também são homens e simples particula-
res, a quem incumbe zelar somente pelos seus próprios inte-
resses) ou quaisquer outros em cujas mãos se pretende que
esteja a jurisdição sobre as coisas sagradas, quiserem ser ím-
pios? Dever-se-á, ainda assim, considerá-los intérpretes? É
certo que, quando aqueles que detêm o poder o querem exer-
cer ao sabor do que lhes agrada, tenham eles ou não a juris-
dição sobre as coisas sagradas, tudo, sagrado ou profano, aca-
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTICO 297
bará por se degradar. Mas essa degradação será ainda muito
mais rápida se houver particulares que pretendam sediciosa-
mente vingar o direito divino. Por isso, não adianta nada re-
cusar-lhes tal direito; pelo contrário, provoca-se até um mal
ainda maior, pois é quanto basta para que eles (tal como os
reis dos hebreus, a quem esse direito não era reconhecido
em absoluto) se tornem necessariamente ímpios e, conse-
qüentemente, os prejuízos e riscos para todo o Estado de in-
certos e contingentes se convertam em certos e necessários.
Seja, portanto, qual for a perspectiva em que ne:>s coloquemos
- a da verdade teórica, a da segurança do Estacio ou, enfim, a
do incremento da piedade -, somos sempre obrigados a reco-
nhecer que também o direito divino, ou seja, a jurisdição so-
bre as coisas sagradas, depende absolutamente do disposto
pelo poder supremo e que este é o seu intérprete e defensor.
Donde se conclui que os verdadeiros ministros da palavra de
Deus são aqueles que ensinam ao povo a piedade, com auto-
rização do poder soberano e nos termos em que ela está adap-
tada, por decreto deste, ao interesse público.
Resta-nos apenas indicar o motivo pelo qual, no Estado
cristão, houve sempre discussões em torno desse direito, ao
passo que os hebreus, que eu saiba, nunca o puseram em
questão. De fato, poderia até parecer monstruoso que uma
coisa assim tão evidente e necessária estivesse sempre a dar
azo a discussões e que o poder soberano nunca exercesse (237]
esse direito sem contestações e, inclusive, sem grave risco de
sedições e em detrimento da religião. Decididamente, se não
pudéssemos atribuir a esse fato nenhuma causa precisa, con-
vencer-me-ia de que tudo quanto apresentei neste capítulo
tinha um valor meramente teórico, isto é, pertencia a esse
gênero de especulações que nunca podem ter aplicação prá-
tica. Basta, no entanto, repararmos nos primórdios da religião
cristã para que a referida causa se torne absolutamente mani-
festa. De fato, não foram reis que ensinaram, a princípio, a re-
ligião cristã, mas simples particulares que, por largo tempo,
contra a vontade dos que detinham o poder e de quem eram
súditos, se reuniam habitualmente em Igrejas privadas, insti-
tuíam cerimônias sagradas, administravam, organizavam e de-
298 ESPINOSA
rentes e até opostas, não digam nada que não esteja de acor-
do com aquilo que prescrevem as autoridades. Nem os mais
avisados conseguem guardar silêncio, quanto mais a plebe!
Os homens têm, habitualmente, o defeito de confiar aos ou-
tros os seus desígnios, ainda quando seria preferível ficar ca-
lados: um poder que negue aos indivíduos a liberdade de di-
zer e de ensinar o que pensam será, por conseguinte, um po-
der violento; pelo contrário, um poder que lhes conceda
essa liberdade será um poder moderado. E, todavia, é inegá-
vel que tanto se podem cometer crimes de lesa-majestade por
atos como por palavras, razão por que, se é de fato impossí-
vel retirar completamente essa liberdade aos súditos, tam-
bém será altamente pernicioso concedê-la sem nenhuma res-
trição. Sendo assim, compete-nos aqui averiguar em que me-
dida ela pode e deve ser concedida sem prejuízo da paz so-
cial e do direito dos poderes soberanos: é este, conforme
anunciei no início do capítulo XVI, o meu objetivo principal.
Dos fundamentos do Estado, já aqui expostos, resulta
com toda a evidência que o seu fim último não é dominar
nem subjugar os homens pelo medo e submetê-los a um di-
[2411 reito alheio; é, pelo contrário, libertar o indivíduo do medo a
fim de que ele viva, tanto quanto possível, em segurança, isto
é, a fim de que mantenha da melhor maneira, sem prejuízo
para si ou para os outros, o seu direito natural a existir e a
agir. O fim do Estado, repito, não é fazer os homens passar
de seres racionais a bestas ou autômatos: é fazer com que a
sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respecti-
vas funções, que eles possam usar livremente a razão e que
não se digladiem por ódio, cólera ou insídia, nem se mani-
festem intolerantes uns para com os outros. O verdadeiro fim
do Estado é, portanto, a liberdade'.
Vimos também que, para se constituir um Estado, é ne-
cessário apenas que todo poder de legislar esteja nas mãos,
ou de todos, ou de alguns, ou de um só. Na verdade, posto
que o livre juízo dos homens é extremamente diversificado e
cada qual pensa que só ele é que sabe tudo, sendo impossí-
vel que todos tenham a respeito de tudo a mesma opinião e
se manifestem por unanimidade, como poderiam eles viver
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ17CO 303
Prefácio
entre a razão e os dogmas das várias Igrejas, ou por ver as suas con-
seqüências práticas, mas se arrisca a precipitar-se no mesmo erro
por pressupor que a salvação está em outros dogmas, sem des-
cortinar que é precisamente esse o mecanismo intrínseco de todas
as seitas.
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
hoje, a defender que o autor do livro era um judeu e que o seu con-
teúdo só é pensável no interior da doutrina bíblica (cf. Hõpfl, 1963,
vol. II, pp. 338-43).
4. Momo é a figura mitológica que personifica o espírito crítico.
Platão, por exemplo, refere-a na República, livro VI, 487 a.
5. É esta, como se sabe, a tese que o autor sustenta sobre o
conteúdo da Escritura. Quanto à importância do livro de Daniel no
contexto seiscentista, é de recordar a onda milenarista que invade,
nos princípios do século, quer certas franjas do judaísmo, quer al-
guns colégios de cristãos reformados, e que se inspira precisamen-
te naquele profeta. A pedra que se desprende da estátua no sonho
de Nabucodonosor é, um pouco por toda parte, vista como o sím-
bolo do V Império que se julga estar próximo e que se interpreta
das mais diversas maneiras. Veja-se, por exemplo, a Carta ao Futu-
ro do P. Antônio Vieira ou a Esperança de Israel de Manassés ben
Israel. P. Serrarius, o amigo de Espinosa e Oldenburg a quem nos
referimos na introdução, é um dos que crêem firmemente na proxi-
midade da nova vinda do Messias para restaurar em pessoa a sua
Igreja, uma vez que tanto Roma como as várias seitas reformistas
estão contaminadas pelo mal. Guerras e calamidades da natureza
são vistas como sinais dos tempos. E até homens como Newton se
deixarão sensibilizar pela idéia, como se vê pelas suas Obseroations
upon the Prophecies of Daniel and the Apocalipse of St. John (Lon-
dres, 1733), não obstante as reticências que, na esteira de Espinosa,
formula à autenticidade do livro.
6. Fariseus e saduceus constituíam as duas principais correntes
na nação judaica ao tempo de Cristo. A sua origem deve-se à dife-
rente atitude assumida pelos setores da população ante o helenis-
mo, quando este entrou em conflito com o judaísmo a partir do tem-·
po dos macabeus, que foram apoiados na sua revolta contra os mo-
narcas selêucidas pelas camadas populares, ao passo que as classes
abastadas, mormente os sacerdotes, se tinham mostrado favoráveis
aos estrangeiros, de quem admiravam a cultura. Num primeiro mo-
mento, o espírito nacionalista triunfa e, com ele, os apoiantes dos
macabeus. Mas, pouco depois, dada a pressão política e cultural do
helenismo sobre o Estado judaico reconstituído, os novos gover-
nantes tenderão para os compromissos. Daí conhecerem a oposição
dos seus antigos apoiantes, que passam a considerar-se "separados"
ou, como se diz em hebraico, perushim, de onde deriva a palavra
"fariseu". Em contrapartida, os adeptos de uma atitude de abertura
serão chamados de saduceus, designação que deriva de Sadoc, no-
TRATADO TEOLÓGICO-POÚ17CO 353
Capítulo XI
Capítulo XII
Capítulo XIII
Capítulo XIV
1. "A cada herege o seu texto." Para se ter uma idéia de quan-
to este provérbio traduz a realidade religiosa holandesa da época,
veja-se o livro de Kolakowski (1969).
2. A. Tose! (1984, p. 26) define bem esta situação quando es-
creve: "Se, para cada Igreja, a superstição é o outro, tem de concluir-
se que, para o filósofo, que objetiva tal campo de identificação por
acusações recíprocas, esta propriedade que tem cada elemento do
campo de se identificar como religião pela sua diferença com o ou-
tro, apontado como superstição, é precisamente o que define a su-
perstição".
3. A insistência de Espinosa sobre esta tese deverá atribuir-se ã
amplitude da secular polêmica que ã sua volta se travou, com par-
ticular acuidade após a Reforma. É de notar que, se num primeiro
momento o autor parecia estar com os luteranos, ao advogar que a
verdadeira religião não reside nos atos exteriores do culto mas na
autenticidade interior, aqui, parece aproxima-se dos católicos ao fri-
sar a importância das obras. Todavia, e como já referimos anterior-
mente, não há nenhuma incoerência entre uma e outra dessas pos-
tulações. O que há é uma diferente noção de fé, noção essa que já
Fausto Socino sustentava contra Lutero: "crer em Cristo é obedecer
a Cristo" (cf. Boscherini-Droetto, 1982, p. 355).
4. É esta a citação que Espinosa coloca em exergo do Tratado
e que, na altura, preferimos manter em latim, tendo em vista a sua
repetição neste capítulo.
5. Na impossibilidade de identificar a "besta" que aparece no
cap. XIII do Apocalipse, tanto a Igreja romana como, mais tarde, os
protestantes, utilizaram sempre o termo "anticristo" como um nome
pejorativo para designar o principal adversário de momento, fosse
no plano doutrinal ou no plano político. Desse modo, conforme a
doutrina, assim o "anticristo" aparece, ora como inimigo do Papa-
do, ora como o próprio Papa. Grócio, na sua tentativa de reconci-
liação das Igrejas, escreve mesmo, em 1640, uma Comentatio ad loca
quaedam Novi Testamenti de Antichristo, para demonstrar aos pro-
testantes que o Pontífice romano não pode ser a besta do Apocali[r
se, visto os seus ensinamentos não contrariarem os de Cristo. Espi-
nosa, por seu turno, coerente com a identificação já feita entre fé e
obediência, ou seja, entre a fé e a prática da justiça e da caridade,
remete a designação para aqueles que perseguem os "homens ho-
nestos", seja qual for a sua doutrina.
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍT1CO 359
6. O plano de Grócio para a unificação das Igrejas, que ele re-
pete em várias obras, era, conforme se lê no De jure Belli ac Pacis
(Prol. 42), veritatem sparsam per singulos, per sectas dif.fusam, in
cotpus colligere. Tratava-se, por conseguinte, tanto no domínio reli-
gioso como da política internacional, de estabelecer, a partir da sua
concepção do direito de integração, uma plataforma jurídica que
subsumisse as várias ordens estatais e doutrinárias sem colocar ne-
nhuma em posição subordinada (cf. Gurvitch, 1932, p. 186). Espi-
nosa, por sua vez, ignorando ou recusando o appetitus societatis que
Grócio coloca na base dos agregados sociais e da desejada organi-
zação supra-Estados, equaciona o problema a partir do princípio da
preservação individual, que pode igualmente aplicar-se a cada Esta-
do ou a cada Igreja. Conseqüentemente, não cuida de recolher a
doutrina "dispersa pelas várias seitas'', mas de estabelecer um prin-
cípio universal de onde se deduzam as normas que levam à prática
da justiça. O único problema que poderá levantar-se a essa formu-
lação é, como já dissemos, o de saber em que medida alguém abra-
ça dogmas de fé conhecendo a sua origem ilusória. É esta, afinal, a
questão autenticamente "espinosista" que subsiste no presente capí-
tulo e sobre a qual nos demoramos na introdução.
Capítulo XV
Capítulo XVI
Capítulo XVII
Capítulo XVIII
Capítulo XIX
Capítulo XX
dera que para afastar o medo recíproco que os homens têm uns dos
outros é necessário que todos temam o Estado, o autor do TT-P sus-
tenta que a melhor forma de superar essa paixão é contrapor-lhe
outra, a esperança, criando as condições para que todos possam, na
medida do possível, ou melhor, do "com possível", exercer em se-
gurança a sua atividade. É a doutrina da Ética (IV Parte, prop. 7):
"uma paixão não pode ser reprimida ou contida a não ser median-
te uma outra que lhe seja contrária e mais forte". O verdadeiro fim
do Estado não é, pois, como tantas vezes tem sido interpretado, fa-
zer com que os homens usem da razão, mas sim que eles "possam
usar livremente da razão". Trata-se aqui de liberdade política e não
da verdadeira liberdade, que nasce do viver segundo a razão e não
segundo as paixões, a liberdade que será teorizada na V Parte da
Ética. Porque esta diz respeito ao verdadeiro fim de cada indivíduo;
aquela diz respeito ao verdadeiro fim do Estado, que é dar a todos
os mesmos direitos, sejam eles doutos sejam ignorantes. Ao contrá-
rio do que pretende, por exemplo, Leo Strauss, que considera que
o Estado livre é aquele em que todos saíram da superstição, a ver-
dadeira função da política é garantir a segurança, isto é, salvaguardar
o direito de natureza, e, ao mesmo tempo, garantir a autonomia de
cada um. Como diz M. Corsi 0978, p. 51), "a política tem a função
de preservar e não de constituir o humano".
4. Sui juris non esse-. a expressão remete para o direito tal como
Grócio o entendia. Ser sui juris (que traduzimos por "ter autono-
mia") é ser senhor do seu corpo - o que implica o direito de exigir
que os outros lho respeitem e a reparação dos danos que lhe cau-
sarem - e ser, ao mesmo tempo, senhor dos seus atos - o que im-
plica que ninguém tenha o direito de lhe mandar seja o que for. Em
contrapartida, ser alterius juris (expressão que Espinosa utiliza em
vez de alieni juris e que traduzimos por "estar sujeito ao direito
alheio") significa ter perdido, ou porque se foi dominado por outrem
ou porque com ele se pactuou, as prerrogativas inerentes a ser sui
juris (cf. Matheron, 1984, p. 86).
5. A perspectiva de Espinosa sobre a relação entre a ciência e
a política está, não só muito afastada ainda da perspectiva iluminis-
ta, como até, de certo modo, no pólo oposto. Não é, efetivamente,
a ciência que é pensada como condição para o desenvolvimento da
sociedade e para a felicidade dos homens: é, pelo contrário, o pro-
blema político que é prioritário, estando o progresso científico de-
pendente dele.
6. Rousseau irá também considerar o contrato social como des-
tinado a aproximar o homem, tanto quanto possível, da sua condi-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 375