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TRATADO

TEOLÓGICO-POLÍTICO
TRATADO
TEOLÓGICO-POLÍTICO

Baruch de Espinosa

Tradução, introdução e notas


DIOGO PIRES AURÉLIO

Martins Fontes
São Paulo 2003
Título do original em latim: TRACTATUS THEOLOGICO-POLIIICUS ( 1670)
Copyright© 2003, livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

Esta obra foi indicada para publicação por Homero Santiago.

11 edição
novembro de 2003

Tradução
DIOGO PIRES AURÉUO

Preparação do original
luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Sandra Regina de Souza
Maria Regina Ribeiro Machado
Dinarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Spinoza, Benedictus de, 1632-1677.
Tratado teológico-político/ Baruch de Espinosa; tradução, intro-
dução e notas Diogo Pires Aurélio. - São Paulo : Martins Fontes,
2003. - (Paidéia)

Título original em latim: Tractatus theologico-politicus.


Bibliografia.
ISBN 85-336-1922-7

l. Filosofia holandesa 2. Religião e política 3. Spinoza, Be-


nedictus de, 1632-1677 - Crítica e interpretação 1. Aurélio, Diogo
Pires. II. Título. III. Série.

03-5546 CDD-199.492
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia holandesa 199.492

Todos os direitos desta edição reservados à


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ÍNDICE

Introdução

ABERTURA: E Deus estava no mundo XI


1. Recapitulação da Ética . . . . . . . . . . . . . . . . XI
2. A estrutura do TT-P. . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXII

1. A verdade e as opiniões XXVII


1. Conhecer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXVII
2. Imaginar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XLIII

II. O mundo como natureza e instituição . . . . . . . XLIX


1. O ser e os seres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XLIX
2. As leis da natureza e as leis humanas . . . . . . LIX

III. As encarnações do Verbo . . . . . . . . . . . . . . . . . LXV


1. A passagem do indicativo ao imperativo LXV
2. A letra e o espírito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . LXVIII
3. Scientia propter potentiam . . . . . . . . . . . . . LXXVII
4. O método em Espinosa ................ LXXXIII

IV. As tábuas da lei ...................... . XCVII


1. A ficção do contrato ................. . XCVII
2. O Estado ideal ..................... . CIX

V. O texto e a tradução ................... . CXVII


Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CXXIII
Cronologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CXXIX
Nota à presente edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CXXXV

TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO

Prefácio 5
1. Da profecia 15
II. Dos profetas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
III. Da vocação dos hebreus e se o dom .da profecia
terá sido um privilégio exclusivamente seu . . . . 50
IV. Da lei divina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
V. Da razão pela qual foram instituídas as cerimô-
nias e da fé nas narrativas históricas, ou seja, por
que motivo e a quem ela é necessária . . . . . . . 80
VI. Dos milagres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
VII. Da interpretação da Escritura . . . . . . . . . . . . . . 114
VIII. Onde se demonstra que o Pentateuco, assim como
os livros de Josué, dos juízes, de Rute, de Samuel
e dos Reis são apógrafos, e se averigua depois se
esses livros foram escritos por várias pessoas ou
por uma só e quem terá sido . . . . . . . . . . . . . . . 139
IX. Onde se analisam outras questões a respeito ain-
da dos mesmos livros, em particular se foi Esdras
quem os concluiu e se as notas à margem que se
encontram nos códices hebreus constituem va-
riantes ............................... 153
X. Onde se analisam, segundo o mesmo critério uti-
lizado para os anteriores, os restantes livros do
Antigo Testamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172
XI. Onde se averigua se os apóstolos escreveram as
suas epístolas na qualidade de apóstolos e de pro-
fetas ou na qualidade de doutores, e se mostra de-
pois qual foi a função específica dos apóstolos .. 186
XII. Do verdadeiro texto da lei divina e por que ra-
zão a Escritura se designa por sagrada e se con-
sidera a palavra de Deus. Onde se demonstra, em
suma, que a mesma Escritura, enquanto portado-
ra da palavra de Deus, chegou até nós intacta .. 196
XIII. Onde se mostra que a Escritura só ensina coisas
muito simples e não tem por objetivo senão a obe-
diência; mesmo da natureza de Deus, ela não en-
sina senão aquilo que os homens podem imitar
através de uma certa regra de vida . . . . . . . . . . 207
XIV. O que é a fé, quem é fiel, quais os fundamentos
da fé e como se distingue da filosofia ........ 214
XV. Onde se demonstra que nem a teologia está a ser-
viço da razão, nem a razão da teologia, e se apre-
senta o motivo por que estamos persuadidos da
autoridade da Sagrada Escritura . . . . . . . . . . . . 223
XVI. Dos fundamentos do Estado, do direito natural e
civil de cada indivíduo e do direito dos soberanos 234
XVII. Onde se mostra que é impossível e desnecessá-
rio alguém transferir todos os seus direitos para o
poder soberano; como era o Estado hebraico en-
quanto viveu Moisés e como foi depois, entre a
morte deste e o início da eleição dos reis; até que
ponto ele estava numa posição privilegiada e quais
as razões por que desapareceu, enfim, o Estado
teocrático e por que é que só se não houvesse lu-
tas intestinas ele poderia subsistir . . . . . . . . . . . 250
XVIII. Onde se deduzem, a partir das instituições hebraicas
e da sua história, alguns princípios políticos . . . . 278
XIX. Onde se demonstra que o direito em matéria reli-
giosa pertence integralmente às autoridades sobera-
nas e que o culto externo não deve perturbar a paz
do Estado, se se quer obedecer fielmente a Deus 287
XX. Onde se demonstra que num Estado livre é lícito
a cada um pensar o que quiser.e dizer aquilo que
pensa 300

Notas

Prefácio ................................... 311


Capítulo 1 .................................. 315
Capítulo II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 320
Capítulo III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
Capítulo IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 332
Capítulo V ................................. 336
Capítulo VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 339
Capítulo VII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343
Capítulo VIII ................................ 348
Capítulo IX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349
Capítulo X ................................. 351
Capítulo XI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353
Capítulo XII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 354
Capítulo XIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355
Capítulo XIV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 358
Capítulo XV. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359
Capítulo XVI ................................ 361
Capítulo XVII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 367
Capítulo XVIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 370
Capítulo XIX. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 371
Capítulo XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373
INTRODUÇÃO
ABREVIATURAS

TRE - Tratado da Reforma do Entendimento, Opera, vol. II


Et. - Ética, Opera, vol. II
TT-P - Tratado Teológico-Político, Opera, vol. III
TP - Tratado Político, Opera, vol. III
CG - Compêndio de Gramática da Língua Hebraica, Opera, vol. I

A tradução dos trechos de qualquer destas obras, bem como da Cor-


respondência (Opera, vol. IV), a seguir citados, é da nossa responsa-
bilidade.
A edição utilizada foi a das Opera, Im Auftrag der Heidelberg Aka-
demie der Wissenschaften, herausgegeben von Carl Gebhardt, Carl
Winters Universitaetsbuchhandlung, Heidelberg, 1925, 4 vols.
ABERTURA

E Deus estava no mundo

1. Recapitulação da Ética

Este livro trata de religião e política, como sugere o tí-


tulo, o índice das matérias e a interminável contestação de
que foi alvo durante séculos. Tal evidência não esgota, po-
rém, o seu conteúdo, nem esclarece grandemente o alcance
dos seus enunciados. Pelo contrário, talvez não andemos lon-
ge da verdade se a considerarmos responsável por toda uma
longa cadeia de interpretações do espinosismo que tomam o
Tratado Teológico-Político como uma espécie de parênte-
sis, um sobressalto momentâneo que teria levado o filósofo
a descer da mansarda onde há anos elabora, na frieza in-
temporal do more geometrico, o seu sistema metafísico, à
realidade conflitual das seitas religiosas e políticas que se
digladiam no tempo. Como adiante veremos, e como tem sido
abundantemente sublinhado no último meio-século, a ima-
gem não poderia ser mais equívoca e redutora. Ninguém, a
bem dizer, já hoje contesta que a religião e a política de
que se fala aqui estão intimamente conectadas com a filo-
sofia demonstrada na Ética. E, no entanto, dizer isso ainda
não é tudo. Porque o Tratado Teológico-Político não é ape-
nas uma obra que tenha subjacente a concepção da realida-
de reivindicada pelo autor ou que para ela remeta, como te-
ria irremediavelmente de acontecer: é, sim, a primeira e, em
muitos aspectos, definitiva explanação do sistema espino-
XII ESPINOSA

sista1, a tentativa programada de recuperar o que a racionali-


dade em moldes "geométricos" insinuava como desordem ou
servidão a resgatar pela liberdade intelectual, sem suspeitar que
é precisamente aí que se decide toda a gama de possibilidades
de interação dessas partículas do todo que são os homens.
Como se justifica que um livro assim tenha estado tanto
tempo condenado ao estatuto de simples manifesto, erudito
embora e de efeitos reconhecidamente demolidores, mas de
qualquer modo fora da problemática filosófica? A explicação
só pode ser uma: é que o Tratado comete a ousadia inédita
de chamar a si o privilégio de "julgar" na sua globalidade o
mundo constituído e a constituir, sem se deter ante a região
habitualmente considerada inacessível e que ele detecta como
o fulcro em torno do qual gira toda a questão da ordem prá-
tica: a região do sagrado. Projeto de uma filosofia sem resí-
duos, este livro teria também de ser um livro sobre o Livro,
um "tratado sobre a Escritura", como lhe chamam os contem-
porâneos, uma escalpelização literal daquilo que todos con-
sideram o Verbo feito carne. Carne dilacerada, acrescente-se,
pela infinda guerra que se trava entre os seus intérpretes. E
acaso poderia ser de outro modo? Encarnar é sair da intem-
poralidade em que se pressupõe o Verbo divino e manifes-
tar-se no plano de extensão, das parles extrapanes. Dizer o
Verbo feito carne é dizer o verbo divino, o corpo múltiplo da
palavra transfigurado em corpos de leis que por natureza se
ajustam às circunstâncias de espaço e tempo sem deixar de
reivindicar cada um deles o estatuto de universalidade e in-

1. Utilizamos aqui a grafia Espinosa e, por conseguinte, espinosismo, em


vez daquela que, mais por efeito de traduções, se tende a generalizar entre
nós. Há, de fato, algumas razões em favor da versão Spinoza, a começar pela
maneira como o autor assinou por diversas vezes, mas a origem castelhana
do apelido, realçada por filólogos como Leite de Vasconcelos e C. Michaelis
de Vasconcelos, aconselha a que se prefira a transcrição com s (cf. Carvalho,
1930, ed. 1978, pp. 367-8). Quanto ao nome Baruch, que na versão latina apa-
rece como Benedictus, julgamos ser de manter a versão hebraica, tal como
faz, no artigo citado, o mesmo Joaquim de Carvalho, muito embora, anos
mais tarde, na sua tradução da I Parte da Ética, tenha cedido à tentação de
o aportuguesar, escrevendo Bento de Espinosa.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO XIII

temporalidade que assiste apenas ao Verbo primitivo. Esse o


equívoco das interpretações, dos comentários pretensamente
destinados a reconstituir a verdade de uma palavra ausente e
condenados, de fato, a reparti-la em vez de repeti-la, a repre-
sentá-la sempre em corpos diferentes. É trágico o destino des-
te texto que as religiões - o judaísmo, o cristianismo, o isla-
mismo - invocam a título de fundamento da lei e que na rea-
lidade se constitui com essa mesma lei e por isso se esgota
em cada uma dessas invocações! Trágico porque se desenha
por sobre a eterna impossibilidade de pensar a assimetria en-
tre a lei dos deuses e a lei dos homens, na medida cm que
isso equivaleria à aniquilação da própria lei como ordem ab-
soluta; mas trágico ainda porque nele se protagoniza o para-
doxo da opinião que se ignora como tal, tornando assim ine-
xorável a guerra pela verdade, que o mesmo é dizer, as cru-
zadas pela fé.
Espinosa retoma este paradoxo em toda a amplitude das
suas conseqüências teóricas e práticas. A tese fundamental é
a de que filosofia e religião devem estar separadas, e nisto pa-
rece repetir o gesto de tantos de seus contemporâneos, como
Galileu ou Descartes, que pagam a liberdade de especula-
ção teórica ao preço de deixar intacta a ordem prática e ju-
rar a inocência das suas descobertas diante da Bíblia e de
tudo o que sob os auspícios desta se determina socialmente.
Mas a separação que o Tratado defende não é de natureza
estratégica, é de natureza política. Como tal, a análise de Es-
pinosa não pode passar à margem do Livro em que se fun-
damentam as leis. Pelo contrário, se a Bíblia é a principal fon-
te de legitimação do poder, e, se o poder se destina a garan-
tir a segurança e a paz entre os indivíduos, há que explicar
por que razão estes se combatem em nome da mesma Bíblia,
tornando assim ineficaz a suposta legitimação. Só depois dis-
so é que se poderão sugerir outros fundamentos do poder,
os quais implicam, já o veremos, a separação dos domínios
do saber e da fé como condição para a paz e a unidade dos
Estados.
Mas vejamos, antes de mais, as primeiras notícias que nos
falam desta obra. Nos princípios do Verão de 1665, Espino-
XIV ESPINOSA

sa tem praticamente pronta a III Parte da Ética. Acaba de se


curar de mais um ataque de hemoptise crônica, o livro vai
adiantado, mas revela-se mais difícil do que o autor contava.
É por esta altura que as cartas amiúde trocadas com os ami-
gos indiciam uma inflexão no seu trabalho. De Londres, 01-
denburg e Boyle dão-lhe conta da perseverança com que os
membros da Royal Society, de que o primeiro é secretário,
prosseguem a título individual as experiências - "uns sobre a
mecânica, hidrostática, outros sobre a anatomia, a mecânica
ou outras matérias", apesar de a situação política impedir que
mantenham reuniões públicas. E Oldenburg, depois de anun-
ciar para muito breve o pequeno tratado que Boyle compôs
para criticar "a origem das formas e das qualidades, tal como
ela é apresentada pela Escola e seus professores", continua a
mesma carta com esta invectiva a Espinosa: "Quanto a vós,
vejo que filosofais menos do que teologizais (se assim me pos-
so exprimir), visto que ocupais os vossos pensamentos com
os anjos, a profecia e os milagres; mas decerto o fazeis filo-
soficamente e, seja como for, estou seguro de que a obra será
digna de vós e desejo vivamente conhecê-la". Segue-se um
parágrafo com algumas reflexões a propósito da guerra entre
a Inglaterra e a Holanda (" ... mas por que a gente queixar-se?
Enquanto houver homens haverá vícios; todavia, o mal não é
eterno e os melhores podem combatê-lo") e Oldenburg tor-
na às novidades científicas que dia a dia ocorrem no seu
meio (Correspondência, Carta XXIX).
A esta carta Espinosa responde num estado de espírito
que manifestamente não sintoniza com o do seu interlocutor,
pois o que neste é preocupação transitória representa para
aquele exatamente o núcleo da sua reflexão. É o célebre tex-
to em que o autor refere as razões que o levaram a compor
um "tratado sobre a Escritura". De tão minuciosamente expli-
citadas, essas razões ofuscaram boa parte dos intérpretes, que
não só as desligam do contexto em que vêm como, inclusi-
ve, as tomam por um enunciado das demonstrações a fazer
no livro, quando, afinal, elas referem apenas o seu pretexto
e os objetivos pretendidos. Convirá, por isso, que nos dete-
1RA TADO TEOLÓGJCO-POLÍT1CO XV

nhamos ainda uma vez sobre a carta na sua globalidade. A


forma como começa é, desde logo, um desvio algo forçado
no diálogo com Oldenburg: "fico feliz por saber que, na vos-
sa Sociedade, os filósofos se preocupam, não só com eles
próprios, mas também com o seu país. Vou esperar, para co-
nhecer os seus trabalhos mais recentes, que os beligerantes
fiquem saciados de sangue e façam uma trégua para recobrar
forças" (idem, Carta XXX). Aparentemente, a frase confirma-
ria a observação algo irônica de Oldenburg a propósito do
alegado "desvio teológico" de Espinosa. O que se passa é, na
realidade, o contrário. Se os seus correspondentes se alheiam
da guerra para filosofar, Espinosa não se alheia da filosofia
para "teologizar" nem para pensar a guerra: "Estas perturba-
ções não me provocam o riso, tampouco as lágrimas; levam-
me é a filosofar e a conhecer melhor a natureza humana. Por-
que eu julgo não ter o direito de me divertir à custa da natu-
reza, e muito menos de me queixar, quando penso que os
homens, como os outros seres, não são senão uma parte da
natureza e eu ignoro como cada uma dessas partes convém
com o todo e lhe está conforme, como, por outro lado, cada
parte se liga com as outras". Só depois disso e na sua seqüên-
cia direta é que surgem os motivos que justificam a feitura
do Tratado: "1º - os preconceitos dos teólogos; sei, com efei-
to, que são sobretudo eles que impedem os homens de se
consagrarem com todo o ânimo à filosofia e esforço-me, por-
tanto, por denunciar esses preconceitos e desembaraçar de-
les os espíritos mais esclarecidos; 2º - a opinião que tem de
mim o público, que não pára de me acusar de ateísmo, colo-
cando-me na obrigação de combater o mais possível essa
opinião; 3º - a liberdade de filosofar e de exprimir a nossa opi-
nião, que eu quero defender por todos os meios, pois ela é
suprimida pelo prestígio e a insolência abusiva dos pregado-
res" (idem, idem).
A conexão entre as duas partes deste texto escapará de-
finitivamente a Oldenburg, como, até há muito pouco tem-
po, à generalidade dos leitores do TT-P. E, na carta seguinte,
o seu interesse vai, obviamente, direto ao problema da con-
formidade das partes com o todo a que Espinosa aludira, pe-
XVI ESPINOSA

<lindo-lhe instantemente que lhe transmita a sua idéia sobre


o assunto. Quanto a um "Tratado de Escritura", o sábio inglês
confessa, muito cortesmente, compreender as razões que le-
vam o seu correspondente a ter de se explicar sobre tal as-
sunto, mas não lhe atribui grande importância e muito me-
nos suspeita de que ele venha a ser o lugar privilegiado de
explicitação e solução original do problema do acordo entre
as partes e o todo. O que, de resto, se compreende. Em ver-
dade, o tema explicitamente anunciado por Espinosa deveria
constituir, já em 1665, aos olhos do mundo culto um proble-
ma ultrapassado. Sem querer antecipar o que se dirá mais
adiante sobre o assunto, lembraremos apenas que a doutrina
da reivindicação do poder temporal ante o Papado, desen-
volvida a partir dos inícios do século XIV, tinha minado os
alicerces da representação medieval do "império" cristão e
aberto, sob a inspiração do averroísmo, o caminho à auto-
nomia do político, como se pode ver pelas obras de Marsí-
lio de Pádua e Guilherme de Occam. Mais tardiamente, e na
própria Inglaterra de onde escreve Oldenburg, Giordano
Bruno publicara, em 1584, esse diálogo demolidor contra os
aristotélicos de Oxford que tem por título La Cena de le Ce-
neri e onde se pode ler: "... se os deuses se tivessem digna-
do ensinar-nos a teoria das coisas da natureza como nos en-
sinaram a prática das coisas morais, vergar-me-ia antes de
mais nada perante a fé nas suas revelações, em vez de me
guiar pela certeza das minhas próprias razões e sentimentos.
Porém, como qualquer um pode ver com toda a clareza, nos
livros divinos postos ao serviço do nosso intelecto não são
tratadas demonstrações e especulações relacionadas com as·
coisas naturais, como se fossem livros de filosofia; o que aí
se ordena, através de leis e para ajudar o nosso entendimen-
to e sentimentos, é a prática das ações morais" (Bruno, ed.
1984, p. 103). Galileu, por seu turno, não diz outra coisa: "Se
em todos os casos em que as obras não concordam com o
verbo considerarmos a Sagrada Escritura como secundária,
isso em nada a prejudicará, já que ela está muitas vezes adap-
tada à opinião do vulgo e atribui freqüentemente a Deus
qualidades que são de todo em todo errôneas" (cit. in Prépo-
siet, 1967, p. 157). E quem poderia então ignorar o Levia-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO XVII

than•, que fora publicado em 1650 e que dedicava metade


das suas páginas, mais precisamente, a terceira e quarta par-
tes, à discussão do tema bíblico na perspectiva de uma re-
consideração do poder em termos adequados ao avanço das
ciências? A curiosidade que a obra anunciada por Espinosa
pudesse, ainda assim, despertar, não vinha, por conseguinte,
da matéria, mas quando muito do tratamento que o autor lhe
iria imprimir. Quanto à compreensão manifestada pelo pro-
jeto, essa partia da convicção igualmente fundada de que, se
em termos teóricos o problema parecia solucionado, em ter-
mos práticos a realidade era bem diferente e legitimava, a tí-
tulo de defesa circunstancial, qualquer escrito que reivindi-
casse o separar de águas entre teologia e ciência, já enuncia-
do mas evidentemente longe de ser aceito.
Aquilo que Oldenburg aguarda é, pois, um texto de na-
tureza tática, original embora, um texto que remeta para os
domínios da retórica e nunca para os da heurística. É aqui
que surge o primeiro equívoco, aquele que ditará os destinos
da interpretação. O livro vem a público em 1670, com as
precauções que as circunstâncias exigiam, isto é, anônimo e
com falsas indicações sobre o impressor e a respectiva cida-
de. Cuidado inútil, como o próprio Espinosa rapidamente se
terá apercebido, uma vez que, em novembro do ano seguin-
te, já revela a Leibniz a intenção de lhe enviar um exemplar
no caso de ainda o não conhecer (Carta XLVI). Tinham, en-
tretanto, começado a surgir as primeiras críticas, vindas algu-
mas de setores os mais liberais que nem por isso poupavam
o autor. "Não me lembro de alguma vez ter lido um livro mais
pestilencial", (cit. in Moreau, 1982, p. 9), comenta Philip van
Limborch, o pastor que, não obstante a severidade aqui de-
monstrada, virá a divulgar, em 1687, o Exemplar Vitae Huma-
nae de Uriel da Costa, e se indigna, já em 1662, pelo exces-
sivo poder de que gozam na Holanda as sinagogas sobre os
seus fiéis, acusando-as de constituírem verdadeiros Estados
dentro do Estado (v. Aurélio, 1985, pp. 23-31). "Esforçou-se
mais do que seria necessário para se libertar de toda a su-

• Trad. bras. Leviatà, São Paulo, Martins Fontes, 2003.


XVIII ESPJNOSA

perstição - comenta, por sua vez, Lambert de Velthuisen -;


querendo prevenir-se contra ela, precipitou-se no pólo opos-
to; querendo evitar o pecado da superstição, acabou por re-
jeitar toda a religião" (Carta incluída na Correspondência de
B. Espinosa, com o número XLII). E, em 1674, na livre e flo-
rescente República por mais de uma vez invocada no livro,
um decreto promulgado pelas Cortes de Holanda proibia a
circulação do TT-P, juntamente com outras obras, entre elas
as duas traduções, em holandês e em latim, do Leviathan.
Tal proibição não impedirá que algumas edições conti-
nuem a surgir, sob os títulos mais diversos. Chegará, no entan-
to, para ir rarefazendo o contato, quer com esta, quer com as
restantes obras do autor que vão sair logo após a sua morte.
Boa parte do que a seguir se foi dizendo e durante séculos
julgando sobre ele tem como fonte quase exclusiva o Dic-
tionnaire Historique e Critique de Pierre Bayle, publicado
em 1696, que lhe dedica um longo artigo e o classifica com
uma fórmula que fará fortuna: "ele foi um ateu de sistema"
(Bayle, ed. 1983, p. 21). A própria Enciclopédie, no texto de-
dicado a Espinosa, limitar-se-á a transcrever o início do arti-
go de Bayle e a remeter para a palavra "ateísmo" (cf. Prépo-
siet, pp. 128-9, nota). E, quando não é o ateu que se reverbe-
ra, surge em seu lugar uma personagem ainda mais distante,
admirada embora, qual seja o Espinosa invocado na Alema-
nha por Jacobi e outros "filósofos da religião" que procuram
no autor da Ética, sem quase nunca o citar, "novos meios para
conciliar a discursividade da linguagem com o conhecimen-
to intuitivo do ser, a liberdade do indivíduo com a totalidade
do absoluto" (Zac, 1980, p. 239). É o mito do orientalismo de
Espinosa, de que o próprio Hegel se faz eco (ed. 1954, pp.
254, 276 e 293) e que transparece na expressão entusiástica
com que Schopenhauer se refere a ele e a Giodano Bruno:
"para gênios desse tipo, a verdadeira pátria eram as margens
do Ganges!" (cit. Hulin, p. 139).
Tudo isso, por assim dizer, já pertence hoje à pré-histó-
ria do espinosismo, se por espinosismo entendermos o mo-
vimento de reposição do sentido dos textos em parâmetros
aceitáveis à luz, quer da sua leitura e do respectivo confron-
TRATADO 7EOLÓGICO-POLÍ71CO XIX

to, quer do contexto intelectual em que eles circularam ain-


da em vida do autor e que permite determinar, com relativa
certeza, o significado dos conceitos a que recorrem. Se com-
pulsarmos a imensa bibliografia sobre o assunto, veremos que
ela esteve, as mais das vezes, prejudicada pela opção que jul-
gou ter de fazer entre o autor da Ética e o autor dos tratados
que versam sobre matéria política. Só muito recentemente, no
prosseguimento aliás de alguns estudos pioneiros como os de
Gioele Solari 0927, ed. 1974, pp. 195-294) e Leo Strauss 0930,
ed. 1965), se removeram os preconceitos antimetafísica na in-
terpretação da doutrina política e a investigação inflectiu num
sentido em que já não é possível continuar a ver em Espino-
sa apenas o anti-hobbesiano precursor dos Estados democrá-
ticos e liberais modernos. Pouco a pouco, foi-se tomando evi-
dente a estreita interdependência entre os vários livros, e tan-
to o Tratado Teológico-Político como o Tratado Político assu -
miram o verdadeiro papel de elementos imprescindíveis no
sistema. Todavia, se essa mudança revolucionou, de fato, o
entendimento do espinosismo, já o mesmo se não poderá di-
zer, pelo menos com a mesma certeza e alcance, em relação
à leitura propriamente dita dos tratados políticos, em particu-
lar do TT-P. Repensou-se, é verdade, a doutrina nele compen-
diada. Mas foi um pouco como se, em reconhecimento da
coerência do autor, se presumisse que os seus conceitos filo-
sóficos já então elaborados constituíam necessariamente a re-
taguarda e preenchiam as entrelinhas dos estudos sobre a
Bíblia e a política. Ora, o que nós pretendemos, ainda que
inscrito na mesma perspectiva, é um pouco diferente. Resu-
_mindo em duas palavras, o que procuramos evidenciar é que
o TT-P não é um anexo, embora coerente, mas sim uma for-
mulação do sistema, formulação esta em que os conceitos vão
subsumir, simultaneamente, a realidade e as suas versões an-
teriores, o mundo e a Escritura, os seres e os saberes, refun-
dindo-os numa totalidade que não aparece em mais nenhu-
ma das obras de Espinosa.
Posta a questão nesses termos, poder-se-ia pensar que es-
tamos sugerindo uma reavaliação de toda a obra de Espino-
sa. O que de fato se passa é bastante mais simples e vem,
XX ESPINOSA

aliás, ao encontro de alguns problemas decisivos que se le-


vantam ante a mencionada interrupção na feitura da Ética.
Senão, vejamos. Em 1665, na carta que já citamos, o filósofo
dá praticamente por terminada a III Parte daquela obra. No
essencial, poderíamos dizer que estava concluída a ontologia
espinosista. Deus ou a natureza, a alma ou a idéia do corpo,
as afecções ou as relações de mera concomitância entre o
pensamento e a extensão tinham sido deduzidas e concate-
nadas segundo o método dos geômetras, num conjunto a que,
aparentemente, nada mais havia a acrescentar. No entanto,
só dez anos depois Espinosa faz menção de a publicar - o que
não chegará a fazer pelas circunstâncias adversas que lhe
surgiram. Tudo quanto lhe acrescentou entretanto, se virmos
bem, não é muito do ponto de vista inicialmente reivindica-
do pelo livro, nem sequer respeita já esse mesmo ponto de
vista, posto que nas duas últimas partes se trata da servidão e
da liberdade humanas, ou seja, se consideram as afecções ou
paixões passivas e ativas, não como linhas e superfícies, à se-
melhança do que acontecera na III Parte, mas sim como coi-
sas boas ou más, que salvam ou deitam a perder os homens,
que se tomam, em suma, no plano da existência, quando an-
tes tinham sido tomadas como puras essências. Isso mesmo
ressalta Vitor Goldschmidt, para daí chegar à conclusão de
que, a partir do meio da Ética, se dá uma ruptura que é ca-
racterizada pela irrupção do "eu empírico" e que se bifurca
em dois sentidos: o da moral, desenvolvido nas duas últimas
partes do livro, e o da política, que surgirá só depois no Tra-
tado Político (Goldschmidt, 1978, pp. 105-22).
Essa hipótese contém um elemento importante para
aquilo que estamos dizendo, qual seja o de que, na altura de
passar à moralidade e à política, Espinosa muda de "ponto
de vista", substituindo a uma dedução sub specie aetemitatis
a historicidade do eu empírico. Porém, a complementaridade
que ela parece sugerir entre os dois grandes blocos da obra
assim delineados levar-nos-ia a paradoxos insolúveis. Na ver-
dade, ao se presumirem, e com razão, as três primeiras partes
da Ética como um todo, somos obrigados a assumi-las como
uma ontologia sem resíduos problemáticos, o que significa
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO XXI

que a substância, os atributos e os modos aí se conjugam teo-


ricamente, esgotando-se assim todo o discurso filosófico so-
bre o ser e os seres. Nem outra coisa se poderia, aliás, dedu-
zir do necessitarismo aí consignado, que define a substância
como produção (atuosa), mas inscreve a genealogia das suas
produções (os modos) na moldura de uma razão que no li-
mite ignora o acidente. Como teorizar, então, no interior des-
se quadro, a existência concreta dos modos finitos, que por
essência estão também in fieri mas não podem conhecer a
globalidade das suas conexões com o todo, que o mesmo é
dizer, a globalidade de sentido da sua ação? Eis o que nos leva
a duvidar da evidência da referida complementaridade, por
muito que ela fosse presumida pelo próprio autor no momen-
to em que tenta publicar os cinco livros da Ética.
Há, com certeza, uma ruptura e não apenas uma inter-
rupção neste momento da obra. Mas é uma ruptura cujo al-
cance se tem de considerar como reinvestindo a metafísica
de Espinosa de uma nova problemática e, só nessa medida,
de um novo "ponto de vista". É precisamente esta a opera-
ção que tem lugar no Tratado Teológico-Político, obra que
está omissa na hipótese aventada por Goldschmidt e que, a
ser tida em conta, a poderia aprofundar e responder até a al-
gumas interrogações por ela deixadas. Que saibamos, talvez
só António Negri (1982, pp. 155-85), com pressupostos e in-
tenções diferentes, terá, até hoje, sublinhado a verdadeira di-
mensão metafísica de uma obra que, não obstante, quase
toda a gente reconhece como ocasião de viragem no espino-
sismo. A seu tempo faremos referência mais desenvolvida e
crítica à tese de Negri. Para já, e ainda a propósito do verda-
deiro lugar do Tratado Teológico-Político no conjunto do sis-
tema, mencionaremos apenas uma divergência: é que, en-
quanto o comentador italiano toma este livro como um local
de passagem, um salto obrigatório em direção ao que chama
de "segunda fundação" da filosofia espinosista, onde a polí-
tica se tornaria "a alma da metafísica" e "a imaginação con-
quistaria um estatuto ontológico através da "constituição do
real pelo homem", aqui, pelo contrário, dá-se por adquirido
que a substituição de· alguns conceitos verificada em obras
XXII ESPJNOSA

subseqüentes e contemporâneas, aliás, das anotações acres-


centadas pelo autor ao Tratado Teológico-Político não invali-
da o que já estava dito nem o altera no fundamental.

2. A estrutura do TT-P

Em resumo, os dados são estes: no momento em que a


filosofia de Espinosa passa da metafísica e da física para o que
hoje designaríamos por antropologia, o sistema oscila nos
seus fundamentos, confrontado que fica com a questão, por
ele próprio equacionada na carta a Oldenburg, de saber como
as partes se conjugam (conveniant) entre si e com o todo.
Da necessidade com que o todo (a substância) atua e se au-
toproduz à contingência com que as suas manifestações mo-
dais, os diversos seres, se fazem ou desfazem no jogo que
opõe as diferentes capacidades de preservação (conatus), o
mundo não se esgota, pois há ainda a realidade dos homens,
os quais, sem deixar de ser igualmente modos finitos, se au-
topropõem no entanto fins, isto é, têm a possibilidade de sus-
pender, ainda que precariamente, o que a lei de constituição
dos modos lhes dita. Essa suspensão, pela qual se pode defi-
nir a política, emerge como algo de incompaginável na pro-
dução genético-dedutiva dos seres tal como ela ficara assen-
te desde as primeiras páginas da Ética, obrigando a um reco-
meço. Hobbes apercebera-se desse mesmo problema e con-
cluíra pela impossibilidade de um discurso exato e fundado
sobre a natureza, isto é, de uma ciência física, contrariamen-
te à política, que por originar-se em princípios determinados
pelo homem, as leis resultantes do contrato, se poderia dedu-
zir racionalmente'. Mas para Espinosa uma tal compartimen-
tação pareceria sempre suspeita ou insuficiente, na medida
em que implicava a abdicação do postulado da racionalidade

2. Em boa verdade, e se bem que esta conclusão prevaleça, a natureza


e a classificação das ciências serão objeto de oscilações de obra para obra,
ao longo de quase toda a vida do autor do Leviatban (cf. Aurélio, 1985 (b),
pp. 481-2).
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO XXIII

do real. Daí que, ao passar à abordagem do político, tenha de


repensar a metafísica e a física de modo que elas abarquem o
ser na sua plenitude e os seres na plenitude das suas inter-re-
lações. E, para tanto, era necessário confrontar-se com a matriz
para a qual remete toda a política, se mais não for a título de
exemplaridade, confrontar-se, em suma, com o discurso por
excelência que é o discurso da lei: a Sagrada Escritura. Será
este o objeto explícito do Tratado.
A partir daqui, o binômio servidão-liberdade tornar-se-á
o problema de Espinosa: servidão encarada como impotên-
cia diante da natureza e dos outros para reger a própria vida,
como se pode ver pela singular coincidência entre as primei-
ras linhas dos prefácios do Tratado Teológico-Político e da IV
Parte da Ética; liberdade que é autonomia, independência pe-
rante afortuna, e que se aponta como ideal ditado pela razão.
Ideal, repare-se, não idéia de que se possa fazer decorrer a
realidade política. Se assim fosse, esta deveria surgir na conti-
nuação direta das primeiras partes da Ética e apareceria ape-
nas como um hobbismo metafísicamente legitimado. Mas, em
vez disso, o que há de mais original no projeto espinosista é
precisamente o considerar a política como uma instância que
pode garantir as condições para o homem se libertar, para ara-
zão se exprimir, e não como uma instância produtora da li-
berdade e tradutora da razão. Vê-lo-emos mais adiante. Para já,
interessa apenas pôr em evidência o programa que, mais do
que estar subjacente, é desenvolvido de uma formá explícita
ao longo do Tratado Teológico-Político.
À primeira vista, nada disso transparece na obra. Percor-
rendo as suas páginas segundo a ~eitura tradicional que delas
se faz, deparamos unicamente com 13 capítulos sobre proble-
mas teológicos e escriturais, dois reivindicando a separação
entre a fé e a razão, e cinco, finalmente, sobre política, onde
se faz a defesa da liberdade de pensamento e de expressão e
se assegura que esta em nada prejudica o Estado. É necessá-
rio, portanto, procurar uma nova distribuição dos temas que
vá além do seu mero enunciado no índice e contemple o ver-
dadeiro conteúdo dos capítulos. Assim, nos três primeiros, po-
deremos ler, através da análise do conceito de profecia e da
XXIV ESPINOSA

função profética, uma reformulação do problema do conhe-


cimento. Depois, nos três capítulos seguintes, em que se fala
da lei divina, das cerimônias e dos milagres, é toda a ontologia
espinosista que aparece refeita, mediante o reconhecimento
de uma fratura irremediável entre o natural e o artificial e a
tentativa de os conjugar no sistema. Entra-se então na ques-
tão da Bíblia: primeiro, o método de interpretação (cap. VII);
em seguida, a análise do Antigo (cap. VIII-X) e do Novo Tes-
tamento (cap. XI); depois, o conteúdo global de todo o Livro
(cap. XII-XIII); e, finalmente, os limites do saber aí apurado
e a necessidade de não tomá-lo por filosofia (cap. XIV-XV).
Para terminar, vêm os capítulos expressamente dedicados à
política. Esquematizando, a distribuição seria a seguinte:

Cap. I-III: o conhecimento


IV-VI: o ser e os seres
VII-XV: o saber, ou o "Livro"
XVI-XX: o poder

É esta a leitura que a seguir se propõe. Estranhar-se-á,


talvez, que "o Livro" ocupe, ainda assim, boa parte da obra.
Assim acontece, de fato. E por quê? Uma explicação fácil, ten-
tadora mesmo, consistiria em ver aí o tributo pago por Espi-
nosa às suas origens judaicas, de sangue e formação, uma es-
pécie de tardio ajuste de contas com a Sinagoga ou, o que se-
ria mais exato, uma irrupção torrencial do saber bíblico du-
rante anos recalcado sob o jogo dos axiomas e deduções.
Não falta quem leve a interpretação por esse caminho. De
uma forma ou de outra, é mesmo essa a imagem consagrada
do Tratado Teológico-Político, ainda quando ele é tomado, e
justificadamente, como o precursor da moderna exegese bí-
blica, tal como esta viria, dois séculos mais tarde, a ser feita,
. inclusive por ortodoxias religiosas das mais intransigentes.
Mas o que está em causa no Tratado não é propriamente a
verdade ou falsidade deste ou daquele aspecto da Escritura.
Isso fora a discussão em que se enredara o Renascimento e
que Galileu repetirá tragicamente. Se Espinosa convoca a Bí-
blia, não é tanto a título de saber como a título de poder,
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO xxv
não é como tutela de ciência mas sim como tutela de obe-
diência. Porque, se o objetivo é situar a realidade dos ho-
mens no âmbito da realidade total, há que remover os alicer-
ces em que está fundada a lei, integrar as narrativas bíblicas
no quadro mais amplo do discurso pelo qual se constituem
as sociedades e ver até que ponto essas narrativas são intrin-
secamente extraordinárias na medida em que, para instaurar
a ordem moral e a ordem civil, têm de corrigir a ordem natu-
ral dos humanos, que é o conflito. Passar ao lado dessa ques-
tão é limitar-se a questionar a autenticidade deste ou daque-
le legislador, exercício que é comum a todos quantos tentam
apenas resguardar a possibilidade da livre investigação cien-
tífica, como Galileu, ou reservar para o Príncipe o que a tra-
dição confere ao Papa, como Thomas Hobbes. O problema
de Espinosa não é saber quem tem o direito de legislar, ésa-
ber o que é o direito e o que é a lei. E a lei é palavra, como
a língua hebraica bem entende ao tomá-las por sinônimos. A
Bíblia, palavra de Deus, é Deus feito lei. A questão, portanto,
é compreender como o Deus sive natura, este Deus que é a
natureza exprimindo-se na infinidade dos seus atributos e mo-
dos, se desdobra em palavra-lei humana.
Na Ética, consumando-se embora a recusa da transcen-
dência através da afirmação da unicidade da substância ab-
solutamente infinita e da constituição dos modos como ex-
pressões da infinidade dos seus atributos, o sistema compreen-
dia a realidade dos seres e do pensamento mas deixava por
determinar a constituição específica dos agrupamentos hu-
manos. Mesmo as duas partes que o autor lhe acrescentará,
muito depois, contemplam apenas a possibilidade de liberta-
ção individual pela razão, ou seja, pelo conhecimento do
verdadeiro lugar de cada um no concerto da totalidade. A po-
lítica, essa era apenas indiretamente aflorada, parecendo não
se atribuir nenhum estatuto especial à realidade constituída
mediante a imaginação humana ou remetendo-a para a lei da
formação de todos os outros modos. Ora, a política, sem ser
propriamente uma ruptura na ordem da totalidade, pelo me-
nos como a entende Espinosa, que nesse aspecto reivindica
absoluta divergência com Hobbes, define-se no entanto como
XXV1 ESPINOSA

tentativa de limitar e orientar a produção e constituição da na-


tureza, afirmando-se como uma modalidade diferente na or-
dem dos seres. Não basta, por isso, uma simples delimitação
dos campos, uma partilha da autoridade entre fé e razão, teolo-
gia e política, consubstanciada no pacto de não-agressão até
aí reivindicado pelo saber e pelo poder ante a Igreja. É preci-
so rever a autoridade, reler a Bíblia, reinscrevê-la no circuito
de produção da substância e dos modos e reescrever assim a
ontologia para a entender como "convém entre si" essas par-
tes do todo que são os homens. É esse o projeto do Tratado
Teológico-Político.
1. A verdade e as opiniões

1. Conhecer

Ler a Bíblia significa, antes de mais, identificar os conhe-


cimentos que aí se nos oferecem. Trata-se de profecias ou re-
velações, como diz a tradição e Espinosa não vai contra. O
problema está em saber o que é a profecia e se a sua defini-
ção legitima o posicionamento que habitualmente se lhe atri-
bui na esfera dos saberes. É daqui que parte o Tratado Teoló-
gico-Político.
Este começo, repare-se, não difere grandemente daque-
le que tantas vezes os comentadores sublinharam na Ética, e
só na aparência ele remete para o cogito cartesiano. No prin-
cípio, o que há, uma vez mais, não é o cogito, é Deus: "Pro-
fecia ou revelação é o conhecimento certo de alguma coisa
revelada por Deus aos homens" (infra, p. 121). A divergên-
cia com Descartes a tal respeito é uma constante de toda a
obra de Espinosa. E por razões que M. Guéroult (1968, p. 34)
enuncia assim: "o cogito não pode ser o ponto de partida da
ciência. Longe de pôr termo à dúvida, ele torna-a inelutável.
Separando Deus e o nosso entendimento, torna as nossas
idéias inadequadas, sendo a própria idéia de um tal entendi-
mento separado inadequada e ligada a todos os fantasmas da
imaginação: criação, livre-arbítrio divino e humano, etc. O pro-
cesso da sua instituição, identificando o eu sou com a inteli-
gência que se descobre como essência do eu, liga de fato o
XXVIII ESPINOSA

ser pensante à forma do pensar, o que equivale, quer sequei-


ra quer não, a constituir a coisa pela reflexão sobre a coisa,
quando, na realidade, é a coisa, o eu sou, que, pelo seu ser
determinado, envolve e torna possível o conhecimento refle-
xivo do que ela é, quer dizer, do eu sou pensante'. Espinosa
parte de Deus. Mas esse partir e esse Deus não têm nada de
uma autobiografia que passasse a escrito e à teoria o aban-
dono da Sinagoga pelo judeu excomungado. Deus é a subs-
tância única e absolutamente infinita, o horizonte de ser onde
os seres estão irremediavelmente instalados e de onde não
se sai por nenhuma via, criacionista ou emanatista. Por isso,
o cogito, concebido na sua solidão supostamente fundadora
da ciência, jamais poderá ser uma idéia clara e distinta. Re-
cortá-lo na paisagem substancial através de uma distinção nu-
mérica relativamente aos outros seres é ainda trabalhar com
noções gerais, fruto da imaginação.
Uma idéia verdadeira deverá ser, não apenas a designa-
ção exata de uma coisa, a sua definição nominal, ainda que
esta seja importante para não nos perdermos no labirinto das
palavras, mas também a tradução da sua essência, ou seja, a
sua definição real. Definir uma coisa é indicar a sua possibi-
lidade intrínseca, a estrutura essencial que me permite pensá-
la como verdadeira. "Para que uma definição se possa consi-
derar como perfeita deverá explicar a essência íntima da coi-
sa" (TRE, § 95). O entendimento não é, de resto, outra coisa
senão essa potência do verdadeiro que produz essências ob-
jetivas segundo leis que regulam a sua atividade espontânea.
Nisso reside a sua diferença relativamente à imaginação, que
é associação passiva e fortuita de percepções, reflexo do en-
contro casual dos corpos. Se uma idéia contém, portanto, uma
essência objetiva, isto é, se não envolve contradição, se ela é
pensável, então ela é um produto do entendimento e, nessa
medida, é intrinsecamente verdadeira. E não há necessidade
de tentar depois uma sua validação extrínseca, já que, "se a
verdade não requer nenhum sinal, bastando possuir as essên-
cias objetivas das coisas ou, se se prefere, as idéias, para supri-
mir toda a dúvida, segue-se que o método que pretende que
se procure o sinal da verdade posteriormente à aquisição das
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO XXIX

idéias não é o verdadeiro" (1RE, § 36). Duvidar das matemá-


ticas, como faz Descartes, até se demonstrar a veracidade de
Deus, será, portanto, um absurdo, visto que toda a realidade
dos seres matemáticos se esgota na sua possibilidade intrín-
seca concebida segundo o entendimento, que o mesmo é di-
zer, na sua verdade. Da mesma forma, procurar a validação
de uma idéia verdadeira pela experiência também não faz
sentido: "a forma do pensamento verdadeiro deve residir nes-
se mesmo pensamento, sem fazer apelo a outros. E não reco-
nhece um objeto exterior ao pensamento como causa; deve,
sim, depender da potência e da própria natureza do entendi-
mento" (1RE, § 71).
A ser assim, todavia, como garantir a verdade de defini-
ções que contemplam coisas existentes fora do entendimen-
to, cuja verdade não se esgota, por conseguinte, no princípio
da sua possibilidade? Como fundamentar a metafísica e a fí-
sica? O processo, segundo Espinosa, é ainda e sempre o mes-
mo que se verifica nas matemáticas e em particular na Geo-
metria. Há, com efeito, certas noções (notiones communes),
como a de causa e efeito, que se dão no entendimento da mes-
ma forma que as idéias matemáticas. (Uma delas, a substân-
cia, definindo-se como causa de si, não pode ser pensada se-
não como existente e como absolutamente infinita, pelo que
tanto a extensão. como o pensamento têm nela o seu princí-
pio e a sua razão de ser'fcf. infra, pp. 44-8).(Melhor dizendo,
são seus atributos} Em conseqüência as idéias que se dedu-
zem adequadamente a partir da noção de substância, quer se
refiram à ordem das essências quer à ordem dos existentes,
reproduzem objetivamente o seu referente, ou seja, são ver-
dadeiros. E porque a infinidade da substância exige que a
concebamos como única, a racionalidade do universo expri-
mir-se-á tanto através das essências objetivas, as idéias ade-
quadas, como através das essências formais, as coisas, ambas se
correspondendo na medida em que correspondem ambas ao
processo expressivo da substância na diversidade dos seus
atributos. As idéias adequadas estão, pois, ligadas entre si pe-
las mesmas conexões necessárias que ligam as coisas. É por
essa razão que o entendimento "envolve a certeza, quer di-
xxx ESPINOSA

zer, sabe que as coisas são formalmente como nele estão con-
tidas objetivamente" (TRE, § 108). A verdade é critério de si
mesma, repete Espinosa várias vezes.
Para o que vimos dizendo, é de somenos importância a
enumeração dos graus de conhecimento que Espinosa enun-
cia de forma diferente de livro para livro (3 no Curto Trata-
do-. opinião, crença verdadeira, conhecimento claro; 4 no Tra-
tado da Reforma do Entendimento: por ouvir dizer, por ex-
periência vaga, por raciocínio e por intuição; novamente 3
na Ética: imaginação, razão e saber intuitivo). Com mais ou
menos variações, a classificação é clássica e tradicionalmen-
te oscilante entre a formulação platônica do livro VI da Repú-
blica (eikasia, pistis, dianoia e noesis) e a aristotélica do De
Anima (aistesis, doxa, episteme e naus). Qualquer desses es-
quemas, ainda que pressuponha sempre uma ascensão pro-
gressiva, desde a simples suposição até a intuição exata, é
todavia atravessado por um corte que instaura a separação
mais ou menos rígida entre, por um lado, conhecimento cla-
ro e, por outro, conhecimento confuso. O que é importante
notar, no que a Espinosa se refere, é que esses dois tipos de
conhecimento não se distinguem entre si apenas pelo dife-
rente grau de verdade e de certeza subjetiva que os acompa-
nha. Tudo isso são meras conseqüências daquilo que verda-
deiramente os separa e que é a sua diferente origem, o seu
diferente modo de produção, já que "as idéias datas e distintas
que nós formamos parecem derivar unicamente da necessi-
dade da nossa natureza e dependem apenas e absolutamen-
te da nossa potência, enquanto as idéias confusas se formam
muitas vezes independentemente de nós" (TRE, § 108). Ou
seja, aquelas se formam pela atividade do entendimento, que
por definição se processa segundo um encadeado lógico e,
por isso, elas são verdadeiras; estas, pelo contrário, resultam
da passividade do entendimento, da associação fortuita de
percepções. O próprio entendimento, repare-se, não é mais
do que essa atividade que se manifesta num encadeado de
idéias verdadeiras, pelo que não há sequer nele lugar para o
erro. Fora dessa atividade, desse conatus, não há nada que se
possa identificar com uma faculdade à maneira escolástica
TRATADO 1EOLÓGJCO-POLÍ11CO XXXI

ou de Descartes. A alma humana é simplesmente um comple-


xo de idéias que correspondem às modificações do modo fi-
nito que é o corpo de um homem, melhor dizendo, toda a
alma é a idéia de um corpo. O Tratado Teológico-Político é,
a este propósito, de uma coerência que escapa a boa parte
dos tradutores e intérpretes: jamais, ao longo das suas pági-
nas, encontramos o termo anima, e mesmo spiritus, quando
aparece, é em citação. O que vemos é o termo mens, que tem
na sua raiz indo-européia o verbo men (pensar) e por isso
traduz melhor, enquanto forma verbal, a atividade do enten-
dimento, ou então o termo animus, quando se trata de refe-
rir a atividade tradicionalmente referenciada como fruto de
uma vontade livre.
Mas eis que abrimos de novo o livro no seu início e a con-
tradição, agora que esboçamos em linhas gerais a gnoseolo-
gia de Espinosa, aparece ainda mais flagrante. Para quem es-
tava à espera de um manifesto avassalador da Bíblia e da re-
ligião, como pretenderia qualquer libertino da época, para
quem, além disso, tivesse visto no prefácio a crença em coi-
sas extraordinárias ser liminarmente explicada pelo medo,
nada mais decepcionante do que este enunciado inteiramen-
te fiel à mais estrita ortodoxia: "profecia ou revelação é o co-
nhecimento certo de alguma coisa revelado por Deus aos
homens". Não é só a emergência de um Deus estranho ao
Deus sive natura o que nos espanta: é sobretudo a classifica-
ção de "certo" que se atribui ao conhecimento por ele comu-
nicado. Certo, a que título? Não virá depo{s Espinosa limitar
a certeza nas profecias, tanto da parte dos\ crentes como da
parte dos próprios profetas, a uma simples "certeza moral'',
quer dizer, a uma certeza que, em última instância, não está
racionalmente fundada? Não serão os profetas homens que
se caracterizam pela vivacidade de imaginação e não preci-
sará o seu testemunho de um sinal para que se acredite neles?
A solução dessa passagem é decisiva para a compreensão de
todo o Tratado e não admira que a ela se tenham votado inú-
meros comentadores. Tentemos, resumidamente, ver os tipos
de explicação que têm sido apresentados.
XXXII ESPINOSA

a) Uma primeira explicação consiste em assinalar uma


total contradição entre a Ética e o Tratado Teológico-Político,
entre o Deus sive natura e este Deus personalizado que de-
teria a ciência e a comunicava fragmentariamente aos ho-
mens. Ter-se-ia, afinal, Espinosa reconciliado com a tradição
judaico-cristã, heterodoxamente embora? Impossível, já que
toda a correspondência da altura e mesmo posterior no-lo
apresentam fiel à doutrina da Ética. É isso que condena ao
fracasso a tentativa feita por V. Brochard (1926, pp. 332-70,
cit. Préposiet, 1967, p. 57) no sentido de encontrar a hipoté-
tica síntese que traduziria o Deus específico de Espinosa: um
"Jeová melhorado" que estaria presente nas duas principais
obras do autor. Bem vistas as coisas, não só não houve conver-
são, como inclusive os termos que aqui nos aparecem para
definir a profecia são o menos espinosistas e o mais ortodo-
xos possível.
b) Explicação bem mais sutil e fecunda é a que dá Leo
Strauss (1952, pp. 142-201). O autor de Perseguição e arte de
escrever, embora detectando a contradição, a faz depender de
um propósito deliberado de Espinosa que remeteria o Trata-
do Teológico-Político para um gênero literário totalmente es-
tranho ao que encontramos na produção científica e filosófi-
ca moderna. Estamos, em resumo, na opinião de Strauss, pe-
rante um texto esotérico em que as contradições constituem
um elemento estratégico com dois objetivos: dissimular aos
olhos do não-iniciado a ruptura implícita com o sistema de
crenças dominante; evidenciar para aquele cuja condição de
iniciado não pode deixar de notar essas contradições a ausên-
cia de verdade em que se estrutura o dito sistema. Como se
justifica tal estratégia?
Em primeiro lugar, por razões de circunstância, tendo em
conta o ambiente de suspeição que subsiste, mesmo na libér-
rima Holanda a que se acolhem os perseguidos pelas várias
ortodoxias encostadas ao poder temporal, e bem assim as li-
mitações em matéria de interpretação da Bíblia, que inibem
até os círculos de cristãos reformadores, presumíveis destina-
tários da obra, entre os quais talvez houvesse dúvidas quan-
to a pretensas interpretações infalíveis mas não uma recepti-
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍ11CO XXXIII

vidade espontânea para mensagem tão radical como aquela


que o Tratado veiculava.
Em segundo lugar, porque a formação do jovem Ba-
ruch se tinha processado no interior da comunidade judaica
de Amsterdam, tanto na família como na escola. Ora, refere
Strauss, no pensamento judaico, como no pensamento islâ-
mico, a filosofia quer-se inextricavelmente ligada à lei e assu-
me-se como comentário no interior de uma ordem que regu-
la tanto os comportamentos, morais e sociais, como os pen-
samentos. A teocracia molda o judaísmo e subsiste, muito para
lá de destruição do Estado hebreu, entre as comunidades que
se organizam na diáspora, à semelhança do que acontece com
os Estados islâmicos referidos no TT-P como paradigma do
autoritarismo'. Em tais condições, todo filósofo que se quer
fiel é também um teólogo que tem por ofício tornar racional-
mente pensável o discurso da lei. Porém, o discurso da lei
resiste por definição a qualquer racionalidade. Se a lei se jus-
tificasse pela razão, tornar-se-ia transparente e, como tal, dis-
pensável. A lei regula o mundo das opiniões e a opinião,
como diz Strauss, "é o elemento da sociedade". Conseqüen-
temente, o filósofo sente-se dividido entre um projeto de vida
segundo a lei e um projeto de vida segundo a razão. Em úl-
tima instância, o dilema é insuperável, mas na prática susci-
tará dois tipos de solução: um, que leva o filósofo a "sair da
caverna" e a voltar à cidade, projetando-se no legislador por
excelência - Moisés ou Maomé- e projetando neste a ativida-
de filosófica que o tenta, como se pode ver pela imagem que
Maimônides apresenta do fundador do Estado hebreu, em
tudo decalcada no "rei-filósofo" da República; outro, que in-
tui a superioridade da vida segundo a razão e a sua incom-

1. Os problemas levantados por esta situação das comunidades judaicas


na Holanda, que chegam a lamentar o não existir inquisição em matéria de
fé e se tornam, por isso, suspeitas de querer usurpar jurisdição, como es-
creve Limborch em 1662, foram a tal ponto sentidos pela municipalidade de
Amsterdam que esta se vê obrigada a encomendar a Hugo Grócio um pro-
jeto de revisão do direito de asilo (cf. Aurélio, 1985, p. 31). Todo processo de
Uriel da Costa é sintomático a este respeito.
XXXIV ESPINOSA

patibilidade com uma revelação insuficiente e contraditória,


colocando assim aqueles que a perfilham numa perigosa po-
sição de exterioridade em relação à ordem política. Nesse
caso, para escapar à perseguição, o filósofo inventa uma nova
arte de escrever, um sistema de simulações e dissimulações
destinado a acobertar a verdade nas dobras da opinião. Arte de
prudência, por conseguinte, que recupera o modelo platôni-
co do diálogo - a forma mais freqüente do texto esotérico -
para comunicar uma verdade outra que não a que as opi-
niões expressas reivindicam. Mas arte também de lidar com
as antinomias, arte que tem no seu cerne a tensão entre a fi-
losofia e a religião ou a política e que, por não poder anular
essa tensão, reproduz os discursos triviais sobre o mundo e a
cidade ao mesmo tempo que, subterraneamente, insinua a
sua desordem, a sua ausência de logos. Ler um texto esotéri-
co consistirá, pois, em identificar as contradições que o po-
voam como sinais a indicar sempre um outro sentido 2 •
Mas a explicação de Strauss não se fica por razões de
ordem estratégica. Para ele, o esoterismo, mais do que estra-
tagema, é conseqüência necessária da situação da verdade
ante a opinião. Vivendo na cidade, e quer se pretenda ou
não legislador, o filósofo está sujeito à lei e esta se lhe apre-
senta como algo inabarcável pela razão, pois o que a consti-
tui como lei é precisamente a violência, o corte que instaura,
enquanto imperativo, na racionalidade do real. O lugar da fi-
losofia encontra-se então deslocado do mundo das idéias

2. Anteriormente a Strauss, já outros autores se tinham debruçado so-


bre este processo de emergência das heterodoxias. Abraham Geiger, por
exemplo, interpreta o Magen We Tsinah, do célebre rabino Leão de Mode-
na, como uma tentativa de fazer passar uma opinião herética juntando-lhe a
sua refutação em termos ortodoxos. No entanto, Carl Gebbart, editor de Es-
pinosa e de Uriel da Costa, vê simplesmente aí um testemunho da situação
existencial dos marranos, em cuja "consciência o catolicismo e o judaísmo
não estavam unidos mas manifestavam-se como susceptíveis de se unirem:
neste combate interior, a consciência do marrano ficava dividida" (Introdu-
ção à Die Schriften des Uriel da Costa, 1922, pp. XIX-XXVI, parcialmente tra-
duzida e reproduzida em Osier, 1980, pp. 135-41).
TRATADO TEOLÓGJCO-POIÍTICO xxxv
para o mundo das opiniões; o diálogo impõe-se como ponto
de encontro entre a razão e o que lhe escapa, entre a verda-
de e as doxas, entre o filósofo e o seu público; a arte de es-
crever, mesmo quando não se exprime formalmente no gê-
nero dialógico, é sempre operação de despistagem de uns e
orientação de outros, mediante a calculada disposição do ar-
gumento e das personagens ou das simples opiniões contra-
ditórias.
Estamos, portanto, em face de uma autêntica teoria do
texto filosófico que o autor aplica, tanto na leitura de Espino-
sa como na de Maquiavel (cf. Strauss, 1958), e que tem a vir-
tude de evidenciar a estreita cumplicidade entre filosofia e
política. Através dessa via original, Leo Strauss é levado, no
seu ensaio How to Study Spinoza 's Tbeologico-Political Trea-
tise (1948, reproduzido in Strauss, 1952, pp. 142-201), a su-
blinhar a necessidade de ler o Tratado à luz da metafísica es-
pinosista, não obstante ela estar aí velada e ter, portanto, que
se submeter o texto ao mesmo critério de interpretação a que
ele próprio submete a Escritura, ou seja, tomá-lo como um
texto veiculador de várias mensagens, adaptado a vários pú-
blicos e súsceptível de vários níveis de leitura. Basicamente,
poderíamos identificar três: um, que corresponde à ortodo-
xia, reproduz a opinião dominante sobre as Escrituras; outro,
que corresponderia à opinião dos círculos dissidentes, os cris-
tãos reformadores ou evangélicos, vê na Bíblia unicamente a
doutrina da caridade e da justiça; um terceiro, enfim, que cor-
responderia à verdadeira convicção de Espinosa, reduz a
mensagem bíblica a um produto da imaginação, conhecimen-
to do primeiro gênero, e à apresentação de um projeto que
alguns comentadores, na esteira de Strauss, pretendem que
seria revolucionário e destinado a mobilizar esses cristãos
que recusam submeter-se ao poder eclesiástico em matéria
religiosa mas que cingem a ética a uma exigência individual
sem horizontes políticos (Negri, 1982, p. 194; Tosei, 1984, pp.
94-9). Não sendo aqui o lugar para uma análise da arte de es-
crever assim delineada, limitar-nos-emos a expor algumas
questões que a sua aplicação ao TT-P suscita. Antes de mais,
será realmente este livro um exemplo de esoterismo? Se Es-
XXXVI ESPINOSA

pinosa assim o quis, o seu intuito, à primeira vista, foi com-


pletamente gorado, já que o livro provocou logo o maior es-
cândalo e veio, como dissemos, a ser proibido pouco depois.
Além disso, e por muita inovação que o Tratado contenha, o
mais radical das suas formulações - recusa da transcendência,
do finalismo e da moralidade entendida como obediência -
estava já nas três primeiras partes da Ética, as quais circula-
vam, claramente expostas "à maneira dos geômetras", por
vários círculos da inteligência européia muito antes de o TT-P
ser publicado. Dir-se-á, e com razão, que o problema, aqui,
era mais melindroso, porquanto o autor tinha obrigatoria-
mente de atravessar o terreno que outros filósofos deixavam
ao adversário, ao passo que na Ética poderia simular que lhe
passava ao lado, minando-lhe os fundamentos sem nem se-
quer o mencionar. Com efeito, pelo menos até final da men-
cionada III Parte, o sujeito da enunciação é na Ética um su-
jeito universal, ou seja, é o entendimento puro que se consti-
tui reconstituindo a história da eternidade da substância de
que é atributo. Como produção do entendimento, o seu con-
teúdo é totalmente racional e verdadeiro e nela se revela o
sentido de tudo. No entanto, dizer o sentido de tudo é dizer
também a insensatez das opiniões e estas, paradoxalmente,
revelam-se com uma certa capacidade de determinar o real
no mundo da política. Porque há qualquer coisa de positivo
na imaginação, como Espinosa repete constantemente3, em
particular nesta passagem que é da maior importância para o
que tentamos mostrar: "nada do que uma idéia falsa tem de

3. Veja-se, por exemplo, o escólio da proposição 35 da Ética, II: "... quan-


do olhamos o Sol, imaginamos que ele está afastado de nós aproximada-
mente 200 pés; este erro não consiste, aliás, no fato de, ao imaginarmos as-
sim o Sol, ignorarmos a sua verdadeira distância e a causa dessa imagina-
ção. Porque, mais tarde, ainda que saibamos que o Sol está afastado de nós
mais de seiscentas vezes o diâmetro da terra, não deixaremos de imaginar
que ele está perto de nós. Não imaginamos, com efeito, o Sol assim tão pró-
ximo por ignorarmos a sua verdadeira distância, mas porque a afecção do
nosso corpo envolve a essência do Sol na medida apenas em que por ela é
afetado". Quer dizer, a imaginação não explica mas envolve ã sua maneira
a essência do imaginado (cf. Deleuze, 1968, p. 135).
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍTlCO XXXYII

positivo é suprimido pela presença do verdadeiro enquanto


verdadeiro" (Ética, N, prop. 1, dem. e esc.). É necessário, pois,
para levar a ontologia até as suas últimas conseqüências, ex-
plicitar essa positividade que é a potência criadora da imagi-
nação. O que acarreta, como é óbvio, conseqüências políti-
cas, mas não aquelas - convirá frisá-lo desde já - que habi-
tualmente se lhe atribuem. Referir a potência da imaginação
não equivale a negá-la ou subsumi-la em racionalidade. Mui-
to pelo contrário, e dado que aquilo que a imaginação tem
de positivo não é suprimido pela presença do verdadeiro, o
projeto político de Espinosa está longe de se poder aproxi-
mar do ideal do filósofo-rei ou sequer do ideal do povo-filó-
sofo-rei como o reivindicará Rousseau; é, sim, e tão-só, a
tentativa de garantir que essa potência da imaginação não
esmague ou impeça a potência da razão de se manifestar. E
esse objetivo, porque se destina ã República e não a inicia-
dos, é claro e preciso, apresenta-se sem subterfúgios e com
conhecimento dos riscos que implica, tenha ou não sido
apadrinhado por Jean de Witt, como alguns historiadores
pretendem. Supor outros níveis de leitura no Tratado, outras
mensagens que estariam latentes, é levar a interpretação da
filosofia política de Espinosa para margens que nos pare-
cem, pelo menos, discutíveis, como a seu tempo tentaremos
mostrar.
c) Há, no entanto, uma explicação bem mais simples
para incoerências como as que detectamos entre algumas
passagens do Tratado e a doutrina da Ética (cf. Zac, 1965, p.
27, Deleuze, 1968, p. 47, Corsi, 1798, p. 65). Basta que, em
vez de tomarmos o texto como um entrelaçamento de men-
sagens cifradas, o consideremos apenas como conjunto de
enunciados que remetem horizontalmente uns aos outros e
dessa interpretação recolhem todo o sentido possível. Veja-
mos, a essa luz, a questão de onde partíramos.
Tínhamos dito que aquilo que constituía problema era a
certeza imputada por Espinosa ao conhecimento profético.
Ora, se repararmos no capítulo Vll, onde se enuncia o méto-
do de interpretação da Bíblia, concluiremos que o autor, ao
definir assim a profecia, está reproduzindo o sentido do tex-
XXXVI ESPINOSA

pinosa assim o quis, o seu intuito, à primeira vista, foi com-


pletamente gorado, já que o livro provocou logo o maior es-
cândalo e veio, como dissemos, a ser proibido pouco depois.
Além disso, e por muita inovação que o Tratado contenha, o
mais radical das suas formulações - recusa da transcendência,
do finalismo e da moralidade entendida como obediência -
estava já nas três primeiras partes da Ética, as quais circula-
vam, claramente expostas "à maneira dos geômetras", por
vários círculos da inteligência européia muito antes de o TT-P
ser publicado. Dir-se-á, e com razão, que o problema, aqui,
era mais melindroso, porquanto o autor tinha obrigatoria-
mente de atravessar o terreno que outros filósofos deixavam
ao adversário, ao passo que na Ética poderia simular que lhe
passava ao lado, minando-lhe os fundamentos sem nem se-
quer o mencionar. Com efeito, pelo menos até final da men-
cionada III Parte, o sujeito da enunciação é na Ética um su-
jeito universal, ou seja, é o entendimento puro que se consti-
tui reconstituindo a história da eternidade da substância de
que é atributo. Como produção do entendimento, o seu con-
teúdo é totalmente racional e verdadeiro e nela se revela o
sentido de tudo. No entanto, dizer o sentido de tudo é dizer
também a insensatez das opiniões e estas, paradoxalmente,
revelam-se com uma certa capacidade de determinar o real
no mundo da política. Porque há qualquer coisa de positivo
na imaginação, como Espinosa repete constantemente 3, em
particular nesta passagem que é da maior importância para o
que tentamos mostrar: "nada do que uma idéia falsa tem de

3. Veja-se, por exemplo, o escólio da proposição 35 da Ética, II: "... quan-


do olhamos o Sol, imaginamos que ele está afastado de nós aproximada-
mente 200 pés; este erro não consiste, aliás, no fato de, ao imaginarmos as-
sim o Sol, ignorarmos a sua verdadeira distância e a causa dessa imagina-
ção. Porque, mais tarde, ainda que saibamos que o Sol está afastado de nós
mais de seiscentas vezes o diâmetro da terra, não deixaremos de imaginar
que ele está perto de nós. Não imaginamos, com efeito, o Sol assim tão pró-
ximo por ignorarmos a sua verdadeira distância, mas porque a afecção do
nosso corpo envolve a essência do Sol na medida apenas em que por ela é
afetado". Quer dizer, a imaginação não explica mas envolve ã sua maneira
a essência do imaginado (cf. Deleuze, 1968, p. 135).
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO XXXVII

positivo é suprimido pela presença do verdadeiro enquanto


verdadeiro" (Ética, IV, prop. 1, dem. e esc.). É necessário, pois,
para levar a ontologia até as suas últimas conseqüências, ex-
plicitar essa positividade que é a potência criadora da imagi-
nação. O que acarreta, como é óbvio, conseqüências políti-
cas, mas não aquelas - convirá frisá-lo desde já - que habi-
tualmente se lhe atribuem. Referir a potência da imaginação
não equivale a negá-la ou subsumi-la em racionalidade. Mui-
to pelo contrário, e dado que aquilo que a imaginação tem
de positivo não é suprimido pela presença do verdadeiro, o
projeto político de Espinosa está longe de se poder aproxi-
mar do ideal do filósofo-rei ou sequer do ideal do povo-filó-
sofo-rei como o reivindicará Rousseau; é, sim, e tão-só, a
tentativa de garantir que essa potência da imaginação não
esmague ou impeça a potência da razão de se manifestar. E
esse objetivo, porque se destina à República e não a inicia-
dos, é claro e preciso, apresenta-se sem subterfúgios e com
conhecimento dos riscos que implica, tenha ou não sido
apadrinhado por Jean de Witt, como alguns historiadores
pretendem. Supor outros níveis de leitura no Tratado, outras
mensagens que estariam latentes, é levar a interpretação da
filosofia política de Espinosa para margens que nos pare-
cem, pelo menos, discutíveis, como a seu tempo tentaremos
mostrar.
c) Há, no entanto, uma explicação bem mais simples
para incoerências como as que detectamos entre algumas
passagens do Tratado e a doutrina da Ética (cf. Zac, 1965, p.
27, Deleuze, 1968, p. 47, Corsi, 1798, p. 65). Basta que, em
vez de tomarmos o texto como um entrelaçamento de men-
sagens cifradas, o consideremos apenas como conjunto de
enunciados que remetem horizontalmente uns aos outros e
dessa interpretação recolhem todo o sentido possível. Veja-
mos, a essa luz, a questão de onde partíramos.
Tínhamos dito que aquilo que constituía problema era a
certeza imputada por Espinosa ao conhecimento profético.
Ora, se repararmos no capítulo VII, onde se enuncia o méto-
do de interpretação da Bíblia, concluiremos que o autor, ao
definir assim a profecia, está reproduzindo o sentido do tex-
XXXVIII ESPINOSA

to bíblico e não analisando o seu conteúdo ou a sua verda-


de. A regra básica daquele método consiste em não aceitar
como ensinamento da Escritura nada que não possa extrair-
se com total certeza da mesma Escritura. Trata-se, pois, de
um trabalho unicamente de exegeta, que se socorre dos ins-
trumentos disponíveis - o conhecimento da língua e da his-
tória - com o objetivo de evidenciar o caráter não filosófico
do texto analisado. Conforme ele próprio sintetiza, "mostra-
mos como a Escritura não ensina questões filosóficas, mas
apenas a piedade, e como tudo o que ela contém está adap-
tado à compreensão e às opiniões preconcebidas do vulgo.
Quem, por conseguinte, a quiser adaptar à filosofia terá, com
certeza, de atribuir aos profetas muitas coisas que eles nem
por sonhos pensaram e de interpretar incorretamente o seu
pensamento. Quem, pelo contrário, faz da razão e da filosofia
servas da teologia terá de admitir como coisas divinas pre-
conceitos populares de tempos antigos, deixando que estes o
ceguem e lhe inundem a mente. Um com a razão, o outro sem
ela, vão ambos, por certo, ensandecer" (infra, p. 298).
Extremados, porém, que estão os campos, o problema
subsiste. De um ponto de vista político, que é o intuito ime-
diato de Espinosa, não é, evidentemente, destituído de impor-
tância sublinhar o infundado das pretensões dos teólogos,
quer eles recorram à razão ou a condenem. Mas, de um pon-
to de vista filosófico, perguntar-se-á sempre onde está o co-
nhecimento verdadeiro. E, de fato, Espinosa, se por um lado
condena aqueles para quem a sabedoria está na lei, isto é, na
vontade absoluta e incompreensível de Deus, conforme suge-
re Calvino, não condena menos, por outro lado, aqueles que
tentam abrir espaço para a razão, como o já citado Maimôni-
des ou São Tomás de Aquino, subordinando a vontade de
Deus à sua inteligência e legitimando assim a compossibili-
dade e a concordância da filosofia e da teologia. É, de resto,
para estes que a sua crítica se mostra, paradoxalmente, mais
implacável. E há razões para isso, como passaremos a ver.
A doutrina expressa por Maimônides no Guia dos Per-
plexos, guia daqueles que hesitam entre uma e outra verda-
de, é praticamente copiada da filosofia árabe, em particular da
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO XXXIX

de Averróis, que lhe dedicara já uma obra com o título sinto-


mático de Acordo da Religião e da Filosofia, Exame crítico e
solução. Nesse livro, cuja edição se fazia acompanhar de um
outro em que se determinava "o método de ensinar os dog-
mas da religião à generalidade dos homens de maneira que
fizesse desaparecer as seitas e evitasse conflitos entre razão e
fé", Averróis enuncia assim, logo a princípio, o seu intuito:
"examinar, do ponto de vista da especulação religiosa, se o
estudo da filosofia e das ciências lógicas é permitido ou proi-
bido pela lei religiosa ou se é por ela determinado, quer a tí-
tulo meritório, quer a título obrigatório" (cit. in Gauthier,
1909, p. 46, subi. nosso). O pano de fundo é, portanto, ain-
da a mesma concepção teocrática, segundo a qual Deus dá
ordens e as ordens exprimem-se por palavras, pelo que os
homens só o podem conhecer ouvindo os seus porta-vozes,
os profetas - ou o seu eco explicitado na tradição. São as or-
dens de Deus que instauram a existência do bem e do mal,
os quais equivalem, por conseguinte, a ações permitidas ou
proibidas e não a entidades ontológicas, a ideais que a razão
pudesse deduzir. Porque esta, se foi dada ao homem, é sim-
plesmente para ele descortinar o que lhe é útil ou prejudi-
cial, o que lhe traz prazer ou desprazer no plano da existên-
cia material.
Acontece, todavia, que a revelação cessou com Maomé,
está limitada ao Corão, ao passo que as ações humanas pos-
síveis são ilimitadas. É precisamente nessa assimetria entre o
código e os atos a julgar que reside todo o campo de atua-
ção do filósofo-legislador: deduzir, por um raciocínio analó-
gico, cuja premissa maior será uma ordem expressa no Co-
rão, a qualidade moral de atos que não venham ali mencio-
nados. Por isso é que o tratado de Averróis se apresenta com
o objetivo de demonstrar que a atividade especulativa deriva
de uma ordem, está na lei e, uma vez que a lei é verdadeira,
quem filosofar pelo caminho correto não pode chegar a con-
clusões que contradigam a religião, já que não há duas ver-
dades inconciliáveis. Dir-se-á que a lei, a uma primeira leitu-
ra, se apresenta freqüentemente desajustada à razão. Conflito
aparente, responde Averróis. Sempre que ele surge, impõe-
XL ESPINOSA

se o trabalho da interpretação, que não é mais do que a pro-


cura da unidade da idéia por sob a diversidade dos símbo-
los. É que o Verbo de Deus não disse as coisas tal como elas
são, além do mais porque a maioria dos homens seria inca-
paz de entender o seu verdadeiro sentido, que só é dado aos
"homens de demonstração". Aos outros, Deus fez o favor de
lhes dar figuras e símbolos.
Subjacente a essa original teoria do acordo entre teologia
e filosofia está ainda uma classificação dos argumentos que
remonta ao Organon aristotélico e que recebe o principal im-
pulso da estrita ligação, visível em quase todo o pensamento
árabe, entre a filosofia e a jurisprudência. Assim, em primei-
ro lugar, há os argumentos demonstrativos, que partem dos
primeiros princípios da razão para chegar a uma conclusão
que participe da certeza das premissas de onde foi extraída:
são o instrumento da filosofia e da ciência. Há, depois, os ar-
gumentos dialéticos, que partem de premissas aceitas por to-
dos ou pela maior parte e que produzem uma demonstração
aproximada, destinando-se, pelo probabilismo dos seus prin-
cípios, unicamente à discussão e à procura da certeza. Há, fi-
nalmente, os argumentos oratórios, que partem de premissas
adaptadas à compreensão, às paixões e, em suma, às circuns-
tâncias do auditório. Os espíritos filosóficos ou científicos só
se deixam convencer por argumentos demonstrativos; o vul-
go, por seu turno, só se convence por argumentos oratórios.
Mas tanto uns como outros, comenta Averróis, são espíritos
saudáveis e compatíveis numa sociedade bem gerida. Só os
teólogos, que pretendem alimentar conflitos e sedições atra-
vés de argumentos dialéticos, é que são espíritos doentios. O
seu mal consiste em expor como se fossem ambíguas certas
passagens e.la lei que para o vulgo são absolutamente claras,
impondo-lhe como versão fidedigna interpretações que, na
melhor das hipóteses, são meramente prováveis. Por um lado,
eles não possuem a capacidade de demonstrar; por outro,
não deixam os argumentos oratórios produzir o seu efeito
persuasivo junto do público. Quem, pelo contrário, está den-
tro da razão, sabe que é loucura tentar expor a lei ao comum
dos homens com outros argumentos que não sejam os orató-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTlCO XLI

rios ou retóricos. Em conclusão, para garantir a paz no Esta-


do, há que atuar em duas frentes: primeiro, conceder a liber-
dade de pensamento só aos filósofos, visto não haver perigo
de eles chegarem a conclusões contrárias à lei quando utili-
zam, de fato, verdadeiras demonstrações; segundo, proibir
que se use a filosofia na catequização, uma vez que é esse o
processo que vulgarmente usam os teólogos para, voluntária
ou involuntariamente, amotinarem as massas.
Toda essa problemática coincide, no essencial, com a
do Tratado Teológico-Político. A situação política na Holanda
do tempo de Espinosa não é, como se sabe, a teocracia, mas
tampouco o era, curiosamente, aquela em que Averróis es-
creve o seu livro. Ambos se confessam, aliás, gratos para com
os poderes razoáveis a que estão sujeitos, mas ambos reve-
lam ter consciência do caráter excepcional e precário de uma
tal situação. De qualquer modo, é importante ter em conta
que a proximidade não vai muito além entre os dois autores.
Pode mesmo dizer-se que a solução achada por Averróis vai
ser o primeiro alvo no livro de Espinosa, ainda que por inter-
posta pessoa. E essa pessoa, como já vimos, é Maimônides,
que assenta toda a sua doutrina da profecia e da interpretação
da Bíblia sobre a concepção averroísta. É que essa doutrina,
para legitimar a dedução por via racional da correta interpre-
tação dos textos da Bíblia ou do Corão, tinha implicitamente
de promover o profeta a um estatuto, sublimado embora, de
filósofo, identificação que Espinosa rejeita por completo e
considera mesmo a principal raiz de todos os males que aque-
la se destinava a resolver. Trata-se, não apenas de uma opo-
sição no domínio dos projetos políticos, mas, sobretudo, de
uma oposição no domínio da teoria do conhecimento. Mai-
mônides, com efeito, assume integralmente a tese averroísta
da passividade do entendimento humano, por ele rotulado
de pura receptividade individualizada sob a ação do intelecto
agente, único, universal e separado, à semelhança do que
acontece com o aparecimento dos corpos por efeito da luz
do sol. De acordo com a mesma tese, o comum dos homens
interpreta a profecia como tradução do espírito divino, o
qual sopra onde quer, como diz o Evangelho, indiferente às
XLII ESPINOSA

características de origem dos mensageiros escolhidos. Mai-


mônides, porém, na seqüência da tradição árabe, extrai daí
uma conclusão exatamente oposta: porque tal como a luz
ilumina os corpos mas não altera a natureza destes, assim o
intelecto agente produz conhecimentos que estão na propor-
ção das qualidades naturais dos intelectos humanos: "(. .. ) se
esta emanação do intelecto (agente) se projeta apenas na fa-
culdade imaginativa (. .. ), temos a classe dos sábios, que se
dedicam à especulação. Mas, se tal emanação se projeta ao
mesmo tempo nas duas faculdades, ou seja, na racional e na
imaginativa (. .. ) e, se a imaginativa foi originariamente criada
em toda a sua perfeição, temos a classe dos profetas. Se, en-
fim, a emanação se projeta somente na faculdade imaginati-
va e a faculdade racional está em desvantagem, seja pela sua
constituição originária, seja pela posterior falta de exercício,
temos a classe dos homens de Estado, dos que fazem as leis,
dos adivinhos, dos áugures e daqueles que têm sonhos ver-
dadeiros (Maimônides, Cuide des Égarés, trad. de Munk, Pa-
ris, 1856-1866, 3 vols., cit. in Gauthier, 1909, p. 135).
Sobre esse fundo predominantemente árabe, Maimôni-
des limitar-se-á a frisar, por um lado, que a profecia é sem-
pre um dom de Deus, pelo que as qualidades naturais e o
seu exercício não bastam para haver profeta; por outro lado,
que a profecia é sempre repetição, glosa da lei que jamais
inova no essencial. Quanto ao resto, manterá o papel decisi-
vo da imaginação no profeta, juntando-lhe no entanto a ne-
cessidade de uma razão disciplinada. Isso porque a revela-
ção, tal como o sonho, se dá de preferência durante o sono,
quando os sentidos estão em repouso; ora, como a experiên-
cia mostra, são as preocupações da vigília o que se repercu-
te no sonho; se a revelação versa sobre a verdade, a essência
de Deus e das coisas, é natural que ela só se possa dar em
quem ande preocupado em disciplinar a mente nessas maté-
rias e seja dotado de efetiva capacidade de demonstração.
Quando assim acontece, então a imaginação pode chegar a
representar-se as verdades como se elas lhe adviessem pelos
sentidos, identificando-se assim o intelecto passivo e indivi-
dual com o intelecto agente universal: é a ciência intuitiva, a
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO XLIII

ciência que define a profecia e eleva o profeta à categoria


de filósofo acabado, como aconteceu com Moisés, que pro-
tagoniza em plenitude esse modelo, porquanto foi o único
que "viu" as essências diretamente, sem alegorias e durante
a vigília.
Uma parte não descurável dessa caracterização, como
se pode ver, é recuperada por Espinosa, que possui o Guia
entre os livros da sua biblioteca particular. Também para ele,
a política decorre num plano diferente do da filosofia e a teo-
logia é fonte de conflitos ao pretender chamar a si a última
palavra sobre todas as questões. Porém, a perspectiva gnoseo-
lógica e ontológica em que Espinosa se coloca ditará diver-
gências sem conta relativamente a Maimônides. Desde logo,
porque nada há de mais estranho à sua concepção do que a
idéia de um intelecto passivo. Depois, e na seqüência disso,
porque a profecia não é um conhecimento adequado, por-
quanto a verdade é critério de si mesma, e os profetas, como
a Bíblia refere freqüentemente, precisavam de um sinal para
se certificarem da revelação. Em último lugar, porque as pró-
prias Escrituras dizem que os profetas não eram filósofos
nem possuíam um conhecimento exato de Deus, já que lhe
atribuíam, inclusive Moisés, qualidade humanas e até diver-
gentes de situação para situação. Concluindo, "a profecia
nunca torna os profetas mais sábios, antes os deixa com as
suas opiniões preconcebidas, pelo que não somos obrigados
a dar-lhes crédito em matérias puramente especulativas" (in-
fra, p. 142).

2. Imaginar

À primeira vista, dir-se-ia que essa crítica de Espinosa a


Maimônides vinha destinada apenas a repor o texto bíblico
nos devidos limites. Os seus efeitos, porém, sobrepõem-se a
toda e qualquer vontade de moderação que eventualmente
se detectasse no livro. Na verdade, retirar ao profeta o caráter
de detentor de uma certeza inamovível e reduzi-lo a simples
homem de imaginação viva e muita virtude acarreta canse-
XLIV ESPINOSA

quencias: primeiro, insere o discurso profético na categoria


dos discursos que Maimônides considera feitos de argumentos
oratórios ou poéticos, quer dizer, toma-o como fruto das cir-
cunstâncias; segundo, obriga a reelaborar a teoria da revela-
ção à luz da teoria das idéias inadequadas do primeiro gêne-
ro de conhecimento, o qual só nos dá das coisas o seu efeito
sobre o nosso próprio corpo; terceiro, reabre criticamente a
história de Israel - e é esse o tema do cap. III do TT-P - já
porque lhe retira a exclusividade do dom profético, já porque
reduz a sua vocação de povo eleito a um dado momento his-
tórico em que as circunstâncias materiais propiciaram a funda-
ção e a prosperidade do Estado. Eleitos, portanto, serão todos
os povos a quem e enquanto acontecem tais benesses.
A inserção de tais conclusões nesse preciso local do Tra-
tado não é de somenos importância.
A nosso ver, ela é fundamental, devendo mesmo estra-
nhar-se que muitos comentadores não vejam neste capítulo
III senão uma hipotética repetição, quiçá enxertada a des-
propósito, do texto redigido pelo autor em sua própria defe-
sa no momento em que é expulso da comunidade judaica,
em 27 de julho de 16564 • Com efeito, se virmos, como habi-
tualmente se faz, nos seis primeiros capítulos do Tratado
apenas a redefinição de conceitos necessária para a análise
da Escritura que a seguir se iniciará, nada mais estranho do
que esta súbita e extemporânea irrupção da política a propó-
sito da nação hebraica. Se, pelo contrário, atentarmos na ín-
tima relação que existe, como temos vindo a frisar, entre os
vários graus de conhecimento e as disciplinas que são abor-
dadas no TT-P- filosofia, teologia e política -, o referido ca-
pítulo aparecer-nos-á como conclusão necessária dos dois an-
teriores. O profeta, sustenta Espinosa, não é um homem de
demonstração, é um homem de imaginação. Ora, a imagina-
ção é o domínio da simples afecção, das paixões, dos efeitos
ocasionais, que não envolvem o conhecimento exato da sua

4. Sobre os termos desta expulsão, vide Mechoulan, 1980, pp. 127-34, e


bem assim o já clássico mas controverso livro de Revah (1959).
TRATADO TEOLÓG/CO-POÚ11CO XLV

causa e, por isso, são alvo de uma fé, não de uma certeza ra-
cional. A inflexão que Espinosa suscita na teoria formulada
por Averróis e Maimônides reside, em última instância, em
deslocar a cumplicidade que aqueles pretendiam haver entre
teologia e razão para uma cumplicidade entre teologia e po-
lítica. E não se trata apenas de uma cumplicidade empírica e
historicamente detectável; trata-se, sobretudo, de uma cum-
plicidade de natureza, já que ambas são forjadas a partir de
idéias inadequadas, o que torna ainda mais difícil o estabele-
cimento de um programa político que determine a sua sepa-
ração e coloque o poder num ponto geometricamente equi-
distante de todos os saberes, adequados ou inadequados.
Mas o capítulo III do Tratado, além da conclusão da sua
parte gnoseológica, é também a passagem para a revisão da
metafísica que se inaugura no capítulo IV. Está assentido
que a imaginação, conhecimento inadequado, não é igno-
rância absoluta nem corresponde a um puro nada: é sim-
plesmente uma idéia que não pode exprimir adequadamen-
te a sua causa e ignora essa mesma insuficiência. A Bíblia,
por exemplo, que é discurso da imaginação, não apresenta
Deus como causa de si próprio nem capta nenhum dos seus
atributos essenciais: é apenas um registro de impressões, ín-
dice de contatos dos homens com os seus iguais e com as
circunstâncias de lugar e tempo. Pior ainda, porque a imagi-
nação ignora sempre a sua verdadeira causa, a Bíblia apre-
senta-se como teoria da natureza e verdadeira ciência. Essa
"ciência" da Bíblia, porém, na medida em que toma os efei-
tos por causas, confunde o seu objeto com um sujeito autô-
nomo, julga que fala de Deus e fala tão-só dos homens, pro-
jeta, enfim, numa ordem transcendente aquilo que é apenas
sintoma da sua própria situação real. Todas as controvérsias
que se geram a seu respeito não passam de uma conse-
qüência necessária de se entender por linguagem de ciência
o que nela são apenas "hieróglifos", sinais intrinsecamente
equívocos que se desdobram sobre o ser e o não-ser e nun-
ca exprimem a unicidade da substância nem o saber sem su-
jeito da totalidade. Daí assimilarem-se os sinais em que se
consolida a imaginação ao discurso da lei; daí também a
XLVI ESPINOSA

pressuposição de um fundo misterioso que lhe estaria sem-


pre subjacente, visto ser impossível fixar o seu sentido por
natureza flutuante; daí, em suma, o mecanismo inerente às
controvérsias teológicas entre as diversas seitas, todas elas
reclamando o exclusivo da verdade e apodando as outras de
superstição, sem se darem conta de que é exatamente essa
afirmação de um sentido único no interior da equivocidade
que as torna a todas equivalentes e as remete para o mesmo
espaço da superstição.
Espinosa pretende identificar esse espaço através da iden-
tificação do texto aonde todas as seitas vão beber. Identifican-
do-o, caracteriza-o como fruto das circunstâncias, vestígio da
interação dos homens entre si e com o meio. Para qualquer
livre-pensador ou libertino erudito, a única conclusão a ex-
trair daqui seria rotular os profetas e teólogos de impostores
apostados em enganar as massas. Foi assim que muitos inter-
pretaram Espinosa, sobretudo quando o pretenderam com-
bater, amalgamando-o nessa vaga, mais social que filosófica,
que se reflete na literatura sobre os "três impostores" (cf. Au-
rélio, 1985, pp. 29-30). Mas Espinosa não cai numa denúncia
pura e simples dos produtos da imaginação. O problema é,
de fato, um pouco mais complexo do que o julgará o ilumi-
nismo e seus avatares. Uma vez mais, se atendermos à teoria
do conhecimento do primeiro gênero, veremos que a imagi-
nação envolve sempre a causa dos efeitos que se representa,
ainda que seja inadequadamente, ou seja, sem perceber a ne-
cessidade do nexo causal; além disso, o acaso em que decor-
re o jogo de influências entre os corpos origina, por vezes, o
encontro entre dois ou mais que convêm entre si, dando lu-
gar na imaginação à representação dessa conveniência. Por
último, quando na imaginação se representa o efeito de um
corpo sobre outro e há uma relação de conveniência entre
os dois, a representação, ainda que não seja uma idéia ade-
quada porque não traduz a natureza intrínseca e necessária
dessa relação, propicia, no entanto, a formação da respectiva
noção comum, isto é, torna possível a passagem ao segundo
gênero de conhecimento.
De acordo com a gnoseologia aqui implicada, podería-
mos dizer que a profecia está para a filosofia como a idéia
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO XLVII

do vulgo sobre a distância a que se encontra o Sol está para


a astronomia. Sendo falso que o Sol esteja a 200 pés, é, toda-
via, verdadeiro que nós o vemos a essa distância. E toda a
vida prática, afinal, está comandada por este segundo tipo de
verdade. Será, portanto, um erro supor que ela decorre em
função de uma racionalidade que reproduziria o entendimen-
to divino ou de uma ordem de valores abstratos. Querendo
libertar da contingência a política, insuflando-lhe um plano
racional, uma tal operação cai precisamente naquilo em que
reside a insuficiência da imaginação, ou seja, nos vícios dos
finalismos. O homem pode, é certo, chegar ainda a atingir
um conhecimento de outro gênero, em que a relação entre a
essência do todo e as essências singulares se lhe oferece, já
não através de noções comuns, como aquelas com que se
opera o raciocínio científico, que são sempre mais ou menos
gerais visto traduzirem aquilo em que dois ou mais corpos
convêm, mas através de uma intuição em que se capta a pró-
pria essência dessa relação de conveniência como se de uma
coisa singular se tratasse. Porém, esse grau de conhecimento
representa unicamente um acréscimo de compreensão me-
diante o qual o homem se torna "livre'', isto é, se conhece a
si próprio enquanto modo da natureza divina, não se tratan-
do, portanto, de uma passagem qualquer a um plano da rea-
lidade em que os anteriores fossem negados. Com efeito, se-
jam do segundo ou do terceiro gênero, as idéias adequadas
revelam Deus como substância infinita que infinitamente se
constitui, ou seja, se modifica segundo a infinidade dos seus
atributos. O próprio entendimento divino não é mais do que
uma dessas modificações que se produzem no atributo pen-
samento; o entendimento de cada indivíduo, por seu turno,
é um elemento constitutivo desse modo que é o entendimen-
to infinito e que não significa outra coisa senão a totalidade
das mentes finitas, ou melhor, a totalidade das idéias adequa-
das. Assim sendo, não existe nenhum projeto de constituição
da natureza ou de Deus, porquanto o próprio lugar onde vul-
garmente se supõe um tal projeto está ele mesmo, em cons-
tituição, é uma conseqüência da pura atividade da substância
e não um atributo pelo qual esta se possa definir. Deus não
é inteligência ou vontade a decidir segundo um plano que
XLVIII ESPINOSA

seria acessível ao homem por qualquer gênero de conheci-


mento. Ao recusar a transcendência de um princípio das coi-
sa, seja qual for a versão em que este se apresente, Espinosa
está recusando também todo e qualquer finalismo em função
do qual a natureza se modifique e organize.
Nessa perspectiva, a certeza que vimos atribuída ao co-
nhecimento profético no início do TT-P é susceptível de uma
interpretação que talvez a ponha a salvo de alegadas contra-
dições. Evidentemente, Espinosa quer, antes de tudo, carac-
terizar a revelação segundo os próprios termos da Escritura,
para os quais busca o sentido sem curar da sua verdade. Mas
isso não oferece uma explicação cabal, visto que, no mesmo
capítulo, poucos parágrafos adiante, o autor limita a certeza
do conhecimento profético a uma "certeza moral". Contradi-
ção entre o primeiro enunciado e os seguintes? Julgamos não
ter de se ir tão longe. O que a esse propósito vem na Bíblia
é que nem os profetas nem o povo possuíam uma certeza in-
telectual da profecia, visto exigirem sinais para poderem acre-
ditar num~ mensagem que não se lhe apresentava como evi-
dente por si mesma. Contudo, da parte do autor da revela-
ção, esta é obviamente um conhecimento certo, uma vez
que, se à ordem das coisas corresponde a ordem das idéias,
terá de existir uma idéia adequada das matérias que constam
da profecia, idéia que, por definição, integra o entendimento
infinito. O que acontece é que os chamados intérpretes e
mensageiros da palavra de Deus a não reproduzem adequa-
damente e, por conseguinte, ela não se faz acompanhar aí
de uma verdadeira certeza. Captando a totalidade no plano
passional, no plano das situações fortuitas, os profetas proje-
tam a potência da natureza para fora de si mesma e tomam-
na por uma vontade absoluta e um entendimento infinito, o
mesmo é dizer como um legislador onisciente que, se quiser,
é capaz de obstar à possibilidade de acasos ruinosos. Discur-
so equivocado, a palavra do profeta não revela Deus mas re-
vela-se a si mesma como atravessada pelo medo: a Bíblia é
esse trabalho da imaginação a braços com a contrariedade,
da virtude, como diria Maquiavel, às voltas com a fortuna.
II. O mundo como natureza
e instituição

1. O ser e os seres

Contrariamente ao que supõe o povo e os profetas,


Deus não dá ordens, Deus é a ordem, o ser necessário da
totalidade constituída por uma infinidade de atributos de
que o homem só pode conhecer aqueles que nele próprio
se exprimem: o pensamento e a extensão. Já vimos como essa
ordem se hipostasia em lei no discurso da imaginação. Tra-
ta-se agora de a reconduzir à sua verdade ontológica, rees-
crevendo assim no plano da razão o que a profecia apresen-
ta no plano da opinião. É esse o objetivo dos capítulos IV, V
e VI do Tratado Teológico-Político. Poderá, talvez, observar-
se que não existe nenhuma ruptura no texto, cuja continui-
dade é garantida pelo respeito do princípio da interpretação
da Escritura pela Escritura, muito embora no último desses
capítulos o próprio autor confesse que considera preferível
recorrer a argumentos baseados na "luz natural", visto o
problema da natureza e da pretensa violação das suas leis
pelo milagre ser puramente filosófico. É, no entanto, evi-
dente que o que passou a estar aqui em causa, continuando
em parte a ser ainda o significado do texto, é também já a
busca de um enquadramento em que se lhe garanta um mí-
nimo de coerência, para que os vários enunciados não se
anulem entre si. Por isso mesmo, e sem que o Tratado pas-
se bruscamente a expor segundo a ordem da razão, esta se
L ESPINOSA

vê obrigatoriamente implicada. O que nem sequer repugna


à teoria do conhecimento atrás aludida, já que, como vimos,
há situações em que a imaginação torna possível a formação
de "noções comuns" e a passagem ao conhecimento do se-
gundo gênero.
A questão, a partir daqui, é saber o que há de verdade
por detrás dessa palavra repleta de ambigüidades que é a lei,
se queremos compreender o significado que ela assume em
cada um dos enunciados em que surge, explícita ou implici-
tamente, nas Escrituras. E a primeira ambigüidade da lei resi-
de na sua aplicação por analogia às coisas naturais. Porque,
em termos jurídicos, uma lei restringe por definição o campo
de atuação daqueles a quem abrange e que, nessa medida,
têm a possibilidade de atuar fora do campo assim delimita-
do; pelo contrário, aquilo a que chamamos leis da natureza
esgota todo o campo de possíveis ocorrências, apresentando-
se como uma necessidade irrevogável. Numa filosofia que
postule a transcendência de Deus, a analogia será relativa,
porquanto a criação se apresenta sempre como um ato de
vontade do criador, ou seja, como um entre a infinidade de
mundos possíveis à luz da sua inteligência e da sua onipo-
tência. Para uma tal concepção, a natureza procede e é assim
porque Deus quer, e a possibilidade do milagre está, desde
sempre, em aberto; pela mesma razão, os fundamentos da
ciência física repousam tanto na inteligência divina, que tor-
na impossível a produção do contraditório, como na divina
perfeição, que nos impede de julgar que o criador nos enga-
nasse quando conhecemos clara e distintamente a sua obra.
É esse, como se sabe, o raciocínio de Descartes nas Medita-
ções. Para Espinosa, porém, definir Deus pela sua perfeição,
ou pela sua inteligência e vontade, é não dizer nada porque
é ficar pela teologia e a teologia está sempre atravessada pela
imaginação, pois se limita a atribuir em grau eminente ao
criador tudo quanto de positivo julga haver nas criaturas ou
a poupá-lo a tudo o que de negativo nestas observa. Quer
pela via da teologia positiva, quer pela via da teologia nega-
tiva, não saímos de um procedimento analógico, definitiva-
mente escorado no antropomorfismo.
TRATADO TEOLÓGICO-POÚT7CO LI

Voltemos, pois, um pouco atrás. Para definir uma coisa1,


há que explicitar a sua essência íntima, evitando que algumas
das suas eventuais propriedades a esta se substituam ( TRE,
§ 95). Não se deve, por exemplo, definir o círculo como uma
figura em que todas as retas tiradas do centro para a circun-
ferência são iguais, mas sim como "a figura que descreve
uma linha com uma extremidade fixa e a outra móvel, defi-
nição que compreende claramente a causa próxima" (TRE,
§ 96). Dito de outro modo, toda definição deverá evidenciar
a gênese do definido, explicitando assim o seu processo de
constituição, a sua essência, e não apenas os seus aspectos
superficiais. Simples questão de método, dir-se-á. De manei-
ra alguma. Se partimos do princípio de que tudo é inteligível,
então a ordem do ser e a ordem do conhecer correspondem-
se em absoluto e uma coisa não é mais do que a tradução
ontológica da sua definição. No caso do círculo, isso implica
que o tenhamos de entender sob dois aspectos complemen-
tares: o movimento da linha e a figura que daí resulta. Abs-
tratamente, nós poderíamos distinguir uma e outra coisa,
mas na realidade elas são ambas o mesmo, visto a figura não
ser mais do que a descrição do movimento nem poder con-
ceber-se sem ele. Universalizando o exemplo, uma coisa é
simultaneamente a sua produção e a estrutura que esta assu-
me. Toda natureza tem de considerar-se simultaneamente

1. Neste parágrafo e nos seguintes, onde se trata de apresentar um es-


boço da metafísica de Espinosa, seguimos de perto a ordem de exposição
adaptada no primeiro capítulo da obra de Matheron 0969, pp. 9-24), muito
embora não nos pareça adequada a versão que o autor apresenta da ativi-
dade da substãncia e dos modos, em particular a assimilação que faz do
conatus a uma espécie de projeto orientador dessa atividade. Uma análise
mais desenvolvida do assunto poderá encontrar-se em Guéroult (I e II). So-
bre as possíveis raízes judaicas da concepção espinosista da substância (Deus
sive natura), e mais concretamente sobre a sua modulação no interior da
língua hebraica, o ensaio de Marilena de Sousa Chaui (1983, pp. 10-98) traz
algumas sugestões inovadoras. Por ser incomportável neste texto, não referi-
mos aqui as dificuldades inerentes ao sistema metafísico de Espinosa, a que
aludimos noutro local (Aurélio, 1983) e que o mais recente livro de Alquié
(1981) explora exaustiva e criticamente.
LII ESPINOSA

como in fieri e como factum, estruturação e estrutura, natu-


rante e naturada, para falar como Espinosa. Porque, tal como
o círculo, a linha é também a figura assumida pelo movimen-
to de um ponto e, se passarmos às três dimensões, a esfera é
a figura do movimento de rotação de um semicírculo em tor-
no do seu eixo. Movimento e repouso constituem assim os
dois modos imediatos da extensão. Mas como definir a pró-
pria extensão? Aqui, passamos a um outro nível, porquanto a
noção de extensão se compreende por si mesma e o seu con-
ceito exclui uma causalidade exterior, ou melhor, ela é, en-
quanto atributo de Deus, causa de si mesma: "uma vez dada
a sua definição, não há mais lugar para perguntarmos se ela
existe" (TRE, § 97). Na medida em que é causa de si, a exten-
são consiste apenas nesta atividade que se realiza ao produ-
zir as figuras que assume e não em algum receptáculo espa-
cial onde se alojassem os corpos. Por isso mesmo, entre a ex-
tensão e os seus modos, os corpos particulares, não há ne-
nhum desnível: o efeito não emana da causa, pois a causa é
imanente aos efeitos que produz.
A natureza, porém, não se esgota na extensão, como
quer o materialismo. A natureza é pura atividade a desenro-
lar-se segundo uma infinidade de processos e a sua essência
reside precisamente nesses processos segundo os quais ela
se estrutura ou se determina. O que Espinosa chama de "na-
tureza naturante" não é mais do que essa atividade, ou subs-
tantia actuosa, cuja definição encerra unicamente a infinita
série dos seus registros ou atributos. Por sua vez, as estrutu-
ras que tal atividade assume em cada um dos atributos são a
mesma natureza enquanto "natureza naturada", são, em su-
ma, os modos. Ora, se a substância é eterna e infinita, se não
podemos pensar que a atividade cesse ou se autolimite, en-
tão as suas modificações são também eternas e infinitas, vis-
to que na sua definição entra a causa que lhes é imanente, a
qual, como dissemos, só pode pensar-se como eterna e infi-
nita. E tanto é assim para o entendimento divino ou idéia de
Deus, modificação imediata da substância sob o atributo pen-
samento, como para o movimento e repouso, em que se es-
trutura imediatamente a atividade sob o atributo extensão,
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO LIII

como, além disso, para a f acies totius universi, o sistema de


leis que regulam a estruturação mediata dos modos no atri-
buto extensão e certamente também no atributo pensamen-
to, embora Espinosa não lhe faça alusão expressa.
Todavia, se a atividade substancial é sempre concebida
na eternidade e na infinitude, como pensar a diversidade dos
seres, dos indivíduos cuja existência é afetada pela duração,
como representar, enfim, a particularidade no seio da totali-
dade? Por um lado, a existência em si mesma, enquanto pura
atividade, não conhece limites; por outro lado, as essências
singulares, na medida em que são inteligíveis, são intrinseca-
mente possíveis, mas podem não ter correspondência em
qualquer coisa atualmente existente. Como compreender en-
tão os modos finitos? Antes de mais, convirá notar a distinção
que Espinosa faz entre modo e essência de modo. Com efei-
to, dizer que uma coisa é pensável equivale a dizer que exis-
te uma idéia no entendimento infinito e que existe objetiva-
mente a essência correspondente a essa idéia, uma vez que
seria absurdo uma idéia de nada. Explicitando melhor, e em
termos espinosistas, a todas as idéias em que se modifica o
atributo pensamento correspondem essências objetivas em
todos os outros atributos. Se é sempre a mesma substância a
atuar de uma infinidade de maneiras, então o que se passa
num atributo passa-se em qualquer dos outros. De resto, aqui-
lo que constitui cada atributo não é mais do que essa mesma
infinidade de essências que ele envolve necessária e eterna-
mente enquanto atributo da substância infinita. Dir-se-á que
as envolve indistintamente, o que é verdade mas só até cer-
to ponto. Porque, se na realidade elas não existem separadas
umas das outras, o fato é que tem de haver entre elas uma dis-
tinção, sob pena de não poderem ser individualmente pen-
sadas, coisa que, como já vimos, e por definição, não acon-
tece. Ora, a única maneira de distinguir as essências é do
ponto de vista formal, não do ponto de vista numérico. Quer
dizer, as essências de modo constituem os atributos enquan-
to graus da potência da substância que em todos eles se ex-
prime e definem-se, por isso, como partes intensivas e não
como partes extensivas. A interpretação de Deleuze é, sob
LIV ESPINOSA

esse aspecto, clara e coerente: "cada qualidade substancial


(atributo) tem uma quantidade modal-intensiva, em si mesma
infinita, que se divide atualmente numa infinidade de mo-
dos intrínsecos" (Deleuze, 1968, p. 81). Só assim se podem
pensar as essências de modo como realmente distintas, ain-
da que não atualmente separadas, e só assim elas possuem
uma realidade que não é meramente lógica, um estatuto que
não é o de simples possíveis com tendência para a existên-
cia. O "mundo dos possíveis", se é que ainda o poderemos
designar assim em Espinosa, é um mundo atual e essencial-
mente necessário.
Bem diferente do estatuto das essências de modo é o dos
modos que lhes correspondem. Entre um e outro não há, re-
pare-se, nenhuma continuidade, pois a essência nunca é ra-
zão ou causa da existência. A causa de um modo é sempre
outro modo já dado no mesmo atributo. Não é o possível que
se realiza, por força de um direito qualquer ou exigência in-
trínseca, quando encontra uma oportunidade ou um contex-
to propício; são as coisas que, ao se conjugarem numa enti-
dade de que passam a constituir as partes, protagonizam como
extensivo um grau de potência, uma essência que lhes é e
continuará exterior. A essência de modo, enquanto pura in-
tensidade, está eternamente contida no atributo, indiferente
ã existência ou não do modo que lhe corresponde. Este, na
medida em que é formado por partes extrapartes, existe ape-
nas quando um outro ou outros o provocam e ocasionam
como agregado de coisas que convêm entre si e cuja relação
corresponde a uma essência, da mesma forma que deixará
de existir quando esse conjunto se desagregar e as suas par-
tes entrarem em composições diferentes. E isso se dá em to-
dos os atributos, pois a existência a título de partes extrapar-
tes não é exclusiva da extensão: tal como um conjunto de
partes de matéria, ao protagonizarem uma dada proporção
de movimento e repouso, isto é, ao protagonizarem uma es-
sência, constituem um corpo composto, assim também no
pensamento uma essência é protagonizada por um conjunto
de idéias que correspondem a um conjunto de corpos. E o
mesmo se passa em todos os atributos.
1RA TADO TEOLÓGICO-POIÍ17CO LV

O que define os modos é, por conseguinte, a entificação


de uma proporção, de uma essência que, em si mesma, é
uma dada relação entre partes. Os seres individuais afirmam-
se afirmando essa proporção, isto é, evitando até onde pude-
rem a desagregação das suas partes: "cada coisa esforça-se,
tanto quanto depende de si, por perseverar no seu ser" (Et.
III, prop. 6). Para entender esse "esforço" (conatus), deve, an-
tes de mais, recordar-se a proposição que vem na Ética ime-
diatamente a seguir: "o esforço pelo qual cada coisa procura
perseverar no seu ser não é senão a essência atual dessa
mesma coisa". Note-se que não há aqui nenhum vestígio de
uma potência de tipo aristotélico, pois o conatus não se situa
no limiar de uma coisa para outra coisa, nem é a passagem
de um terminus a quo para um terminus ad quem. Mais uma
vez, o que está aqui implicado é a teoria espinosista da defi-
nição, a qual, como dissemos, equivale a uma teoria da pro-
dução do definido. Uma coisa é sempre um sistema de par-
tes que traduz extensivamente uma certa equação de repou-
so e movimento. Por essência, ela é esta mesma equação.
Dizer que as partes se conjugam no corpo, ou seja, que con-
vêm entre si, é o mesmo que dizer que elas compõem um
determinado grau de intensidade da substância. Nessa medi-
da, existir não significa senão esforçar-se por perseverar na
existência, tal como a esfera não é mais do que a rotação do
semicírculo em torno do eixo. Um corpo é tão-só a versão
ontológica de uma definição. More geometrico, como devem
ser todas as definições.
Mas o conatus, tal como Espinosa o concebe, além de
não se confundir com a potência aristotélica, também não se
confunde com a versão mecanicista que dele apresenta Des-
cartes, toda ela decalcada no princípio de inércia. Muito re-
sumidamente, a diferença está em que Descartes pensa o co-
natus sob o paradigma da óptica, enquanto Espinosa o pen-
sa no contexto de uma antropologia, como se poderá verifi-
car até pelo fato de ele só aparecer na III Parte da Ética, não
obstante ser postulado como princípio universal. Na sua for-
mulação cartesiana, o conatus aparecia assimilado a uma
propriedade de partículas "absolutamente duras" e realmen-
LVI ESPINOSA

te distintas umas das outras para poderem ser pensadas como


elementos constitutivos da luz: "quando eu digo que essas
bolinhas (as partículas luminosas) fazem um esforço (cona-
tus), ou que têm tendência para se afastarem dos centros em
torno dos quais elas giram, não quero dizer que se lhes deva
atribuir qualquer pensamento de onde proceda essa inclina-
ção, mas simplesmente que elas estão de tal maneira situa-
das e dispostas a se moverem que se afastariam de fato se
não fossem retidas por uma outra causa qualquer" (Princí-
pios, art. 56). É, portanto, a necessidade de pensar o absolu-
tamente simples como partícula realmente distinta e "abso-
lutamente dura", abrindo assim uma brecha na infinita divisi-
bilidade da matéria, que modela essa formulação do cona-
tus. Mas em Espinosa, se há, de fato, referência a corpora
simplicíssima, estes só abstratamente, e não substancialmen-
te, se distinguem uns dos outros (Ética, I, 15, esc.). Um corpo,
repetimos, é por essência uma equação de movimento e re-
pouso que se dá num agrupamento de partes. Impossível,
portanto, pensar, nessa perspectiva, uma partícula realmente
existindo sem ser, ipso facto, um ser plural. Impossível, em
suma, pensar o conatus num corpus simplicissimus que para
Espinosa é pura abstração, simples instrumento de análise
para a ciência dos corpos reais.
Chegados aqui, o problema adquire uma outra amplitu-
de e, digamos mesmo, uma outra pertinência em relação ao
Tratado Teológico-Político, permitindo-nos surpreender em
ato a recapitulação da Ética a que aludimos a princípio. E
não é apenas porque a teoria do conatus surge apenas na III
Parte da Ética, quer dizer, num momento coincidente com
aquele em que a epistolografia nos permite situar o início da
preparação do Tratado. É, sobretudo, pela origem que so-
mos obrigados a atribuir-lhe e pelas conseqüências que assu-
me no sistema. Na verdade, sendo impensável na solidão de
um corpúsculo, o conatus pelo qual em última instância se
definem todas as coisas faz com que o estatuto de um corpo
se torne impensável fora do contexto em que está inserido.
O seu modelo de atuação não deve, portanto, procurar-se no
princípio de inércia, que só faz sentido no domínio dos cor-
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTICO LVII

pos tomados em abstrato e é, por isso mesmo, apenas um


caso particular do conatus. Aí, o contato entre corpos ou en-
tre partículas é sempre assimilado a um choque cujo efeito
se traduzirá por uma alteração de rota, tal como o teoriza
Descartes e como ele aparece ainda na II Parte da Ética. Pelo
contrário, quando se passa à análise das paixões, o contato é
pensado diferentemente, obrigando a uma reformulação de
toda a teoria dos corpos que virá relegar a que fora explana-
da anteriormente para o domínio das grandezas geométricas,
ou seja, dos corpos considerados abstratamente. Nessa altu-
ra, porém, já só a designação de conatus coincide com a que
utiliza boa parte dos pensadores da época. A tomada 'em con-
sideração do especificamente humano fez alterar os alicerces
de toda a metafísica espinosista pela incorporação de um
modelo de conatus que se traduz como reação das partes in-
ternas de um corpo a uma pressão exercida em sentido con-
trário na superfície do mesmo corpo. Manifestamente, a con-
cepção hobbesiana começava a influenciar Espinosa. Como
se poderá ler logo no capítulo 1 do Leviathan, "causa da sen-
sação é o corpo exterior, ou o objeto que pressiona o órgão
próprio de cada sensação ( ... ). Essa pressão, propagada para
o interior, por intermédio dos nervos assim como de outras
fibras ou membranas, até o cérebro e o coração, provoca aí
uma resistência, uma contrapressão, um esforço (conatus) do
coração para se livrar dela".
Hobbes, que se quer o Galileu da política, universaliza
as categorias da mecânica, alarga o seu campo de aplicação,
até aí restrito à extensão, e transpõe as fronteiras entre espí-
rito e corpo que a Descartes apareciam ainda como interditas.
O seu intuito é apresentar o mecanismo do contrato como
um obstáculo, uma pressão exercida sobre a potência des-
truidora das paixões humanas. Para tanto, e para que essa
pressão não surja como oriunda da vontade arbitrária do so-
berano, solução incompatível com uma teoria que postula a
igualdade original de todos os membros do corpo político,
tem de pressupor uma oposição entre direito natural - liber-
dade de fazer ou deixar de fazer uma coisa - e lei natural -
que determina aquilo que se deve fazer (Leviathan, cap. XIV,
LVIII ESPINOSA

pp. 116-7). Pelo primeiro, o homem é livre de fazer tudo quan-


to lhe dita a sua natureza, colocando a sociedade em risco
de se reduzir a um caos, na medida em que, contrariamente
ao que sucede com os outros agregados animais, os desejos
do homem crescem na proporção da sua satisfação, tornan-
do assim a luta de conatus individuais uma luta de morte.
Mas, pela lei da natureza, o homem está racionalmente de-
terminado a evitar a guerra, ou seja, a limitar e orientar o in-
cremento dos impulsos: é por dedução a partir dela que se
chega ao contrato. A oposição, portanto, antes de ser prota-
gonizada por soberano e súditos, o é no interior de cada in-
divíduo pelas pulsões contrárias do direito e da lei, do instin-
to e da razão.
Hobbes, no entanto, faz todo esse percurso mediante a
categoria de movimento e deixa o conatus como exclusivo dos
seres dotados de sensação. Através da distinção entre movi-
mentos vitais, como a circulação do sangue, e movimentos
voluntários, como o andar, a natureza fica ainda dividida e o
conatus continua uma das várias espécies de movimento, se
bem que já não o dos corpos absolutamente simples de Des-
cartes. Espinosa, por seu turno, irá incorporar o modelo hob-
besiano mas fazendo-o dar um novo passo, isto é, tornando
o conatus elemento universal e, em última instância, consti-
tutivo de toda a realidade. Mais adiante veremos as conse-
qüências desse salto no que diz respeito ã teoria do contrato.
Por ora, importará apenas frisar que o "esforçar-se quanto de
si dependa por perseverar no ser" é a lei de todos os seres,
uma vez que todos eles são, por essência, um equilíbrio,
uma equação que traduz um grau de potência. Ser uma coi-
sa é fazer tudo o que está em poder dessa mesma coisa, que
o mesmo é dizer, tudo o que decorre necessariamente da
sua definição. Ser substância, causa de si, é ser potência ab-
soluta, atividade pura: o poder de Deus, ou seja, da nature-
za, é sem limites. O ser dos modos, porém, só faz sentido na
conflitualidade, porquanto a sua afirmação equivale à afirma-
ção do equilíbrio que cada um deles atualiza e a negar tudo
o que o perturba ou tenta suprimir: a pacificação dos seres se-
ria a sua aniquilação na paisagem indistinta e indeterminada
TRATADO 1EOLÓGICO-POIÍ17CO LIX

de uma atividade pura que não se configurasse em modifica-


ções, paisagem, de resto, impensável na medida em que o
pensamento se nos oferece sob a forma de idéias determina-
das que convêm ou não entre si, que formam ou não sistemas
coerentes e a que corresponde forçosamente alguma coisa,
porque o nada não se deixa pensar.

2. As leis da natureza e as leis humanas

Uma tal concepção, inspirada embora na análise do com-


portamento passional, coloca alguns problemas quando se
trata de compreender depois as relações entre os homens.
Espinosa refere-os logo no início do capítulo IV, onde se fala
especificamente da lei. Com efeito, tomada em sentido abso-
luto, lei é só "aquela que decorre necessariamente da própria
natureza, ou seja, da definição de uma coisa" (infra, p. 165).
Por que distinguir então as leis da natureza das leis dos ho-
mens, se também estes "estão determinados por leis univer-
sais da natureza a existir e a agir de uma certa maneira"
(idem, idem)? Por três razões, diz o autor. Primeiro, se o ho-
mem é parte da natureza é parte da potência desta, pelo que
as leis que derivam da necessidade da natureza humana po-
dem considerar-se como dependendo da potência da mente
humana; segundo, porque nós devemos definir e explicar as
coisas pelas suas causas próximas, não servindo de nada te-
cer considerações gerais sobre o encadeamento das causas
para formarmos e ordenarmos o nosso pensamento sobre coi-
sas particulares; terceiro, porque nós ignoramos esse mesmo
encadeamento geral das coisas, sendo preferível e até neces-
sário considerá-las, na prática (ad usum vitae), como possí-
veis. Trata-se, como se poderá verificar, de razões de ordem
diferente. A primeira é metafísica e pretende mostrar que não
há solução de continuidade entre as leis naturais e as leis hu-
manas; a segunda é de ordem epistemológica e visa justificar
o porem-se entre parêntesis as considerações metafísicas na
análise efetiva e particularizada das relações entre os homens;
a terceira, finalmente, é mista e surge como que a resumir as
LX ESPINOSA

duas anteriores. É que, se o entendimento humano não domi-


na a complexidade total das conexões entre as coisas, a qual
só se dá na complexidade do entendimento infinito, então a
suposição da possibilidade não é apenas uma simples ques-
tão metodológica, é também uma necessidade em se tratan-
do de analisar o comportamento dos homens, dado que o
existir e o agir destes se processa todo ele na ausência de um
domínio total das situações. Daí a exigência, reiterada ao lon-
go do Tratado, de se encarar a história, a política, a religião,
o humano, em suma, não de um ponto de vista negativo, ou
seja, como insuficiência quando comparado com uma atua-
ção que se processasse mediante um entendimento infinito
(negatividade que levaria sempre, de uma forma ou outra, a
considerá-lo como produto de uma falta original), mas sim
como positividade em consonância com a essência dos ho-
mens e com o seu sempre relativo domínio das possíveis co-
nexões entre as coisas.
Podemos então passar a uma outra definição da lei, sem
renunciar à coerência do sistema, e tomá-la agora como "uma
regra de vida que o homem prescreve a si mesmo ou aos ou-
tros em função de um determinado fim" (infra, p. 166). A or-
dem da possibilidade, se bem que só faça sentido como re-
presentação derivada da definição do entendimento finito,
sobrepõe-se, dessa nova perspectiva, à ordem necessária afir-
mada ontologicamente, de tal modo que podemos, em vez
do que antes se fez, passar a considerar que só por analogia
a lei se aplica às coisas naturais. Contudo, ainda aqui, a aná-
lise se bifurca. Porque, se a lei é sempre promulgada em fun-
ção de uma finalidade, haverá tantas espécies de leis quantos
os objetivos para que a vida humana possa apontar. Do pon-
to de vista da razão, a finalidade só poderá ser uma, o verda-
deiro conhecimento de si mesmo enquanto modo de ser da
substância absolutamente infinita, ou seja, aquilo que Espi-
nosa chama, na Ética, o amor intelectualis Dei e que, como
se dirá no Tratado, aumenta na proporção dos nossos co-
nhecimentos sobre a natureza. Quão longe está, no entanto,
a maioria dos homens de conhecer e buscar uma tal finalida-
de, e quão longe eles estão, por conseguinte, de conhecer o
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO LXI

verdadeiro sentido das leis! A sua vida decorre é no plano


das paixões e interesses, e a única forma de os fazer obede-
cer é revestir as leis de uma outra finalidade, prometendo a
quem as observar aquilo que ele mais teme. Desejos, temo-
res: é esse o binômio que se acoberta por detrás das leis huma-
nas e é por ele que entramos no domínio da política. Quan-
to à lei que visa o "conhecimento e amor de Deus", Espino-
sa chama-lhe divina mas sabe que só raros se regem por ela
e reconhecem tal finalidade.
Entre esta lei divina e a lei humana, a diferença é abissal,
contrariamente ao que se poderia inferir de algumas inter-
pretações do espinosismo. A lei divina é universal e tanto se
refere ao homem isolado como aos homens em sociedade;
dispensa a fé nas narrativas históricas, porque se alimenta de
noções comuns, certas e conhecidas por si mesmo, as úni-
cas com que se alcança a verdade de Deus e das coisas; nào
obriga a cerimônias ou a quaisquer ritos instituídos, pálidas
imagens do bem que em si mesmas nada significam nem po-
dem aumentar a perfeição do entendimento; visa, enfim, o
sumo bem (summum bonum) e não os simples bens. Pelo
contrário, a lei humana é sempre particular, "regional'', refe-
rindo-se a um grupo de homens num determinado tempo e
situação, e nunca à humanidade ou a um indivíduo isolado;
vive da fé e da imaginação, pois desconhece a verdadeira fi-
nalidade da vida; implica cerimônias e rituais, para suprir a
falta de um conhecimento intelectual das coisas; visa os bens,
ou seja, e em termos políticos, "a segurança do indivíduo e
da coletividade" (infra, p. 167) e não o bem supremo.
Todo o defasamento entre o saber da Bíblia e o verda-
deiro conhecimento provém dessa confusão sistemática en-
tre a lei divina e a lei humana e evidencia-se logo na primei-
ra narrativa do Gênesis. Deus revela ao primeiro homem as
conseqüências que sofrerá se comer o fruto proibido, mas não
lhe revela que tais conseqüências se seguirão necessariamen-
te, ou seja, que é a própria natureza da ação que as implica.
É, pois, por deficiência de conhecimento que o primeiro ho-
mem imagina tratar-se de uma lei à maneira humana que não
envolve nenhuma necessidade intrínseca. A partir daí, o cam-
LXII ESPINOSA

po está aberto à imaginação, e a imaginação vai alastrar por


toda "a lei e os profetas", confundindo Deus com um rei, a
necessidade com a possibilidade, a ciência com a obediên-
cia, a busca do bem supremo através do entendimento com
a busca de simples bens através de rituais e cerimônias. Ao
imaginar-se Deus como um rei, pressupõe-se de imediato o
entendimento infinito como algo diferente da infinita vonta-
de e emerge como lógica a possibilidade dos milagres, de
acontecimentos extraordinários que se julga demonstrarem a
verdadeira potência de Deus, ignorando-se que essa potên-
cia se exprime na ordem da natureza e que a suspensão ou
interrupção desta seria, pelo contrário, prova de falta de po-
der. Confundindo, enfim, o bem supremo com os simples
bens, tomam-se as leis destinadas a garantir a estabilidade do
Estado e as comodidades dos cidadãos (leis políticas e eco-
nômicas) por leis destinadas à salvação individual.
Dir-se-á que isso não se passa senão no Antigo Testa-
mento. E, até certo ponto, é verdade. Cristo prega uma lei
universal, dá a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus, promete recompensas só de natureza espiritual e, se
acaso institui cerimônias, é apenas a título de sinais exterio-
res da Igreja Universal que não têm valor moral intrínseco
nem são obrigatórios para um homem que viva isolado ou
num Estado onde a religião cristã seja proibida. Simplesmen-
te, essa lei universal e não política apresenta-se ainda sob o
modelo da relação senhor-súdito. Nem de outra forma pode-
ria ser, porquanto ela se destinava a ser pregada a todos os
homens e estes, na sua maioria, carecem do conhecimento
do verdadeiro fim da vida, estando, pois, sujeitos às paixões
e ao que as circunstâncias lhes ditam. Para os ensinar, só por
meio de parábolas e por recurso à imaginação, caminhos
que podem levar à observância de uma regra de vida, mas
não ao conhecimento da verdadeira razão dessa regra.
O saber da Bíblia fica, assim, arredado do conhecimen-
to por idéias adequadas. Uma leitura de Espinosa com pres-
supostos iluministas concluiria daqui a necessidade de corri-
gir o vulgo, propagar conhecimentos e levar as instituições a
traduzir a verdade da natureza, ou seja, a adequar-se à ver-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO LXlll

<ladeira finalidade da vida humana. A análise do Tratado, po-


rém, inibe uma tal interpretação. Não é por acaso que, no
capítulo V, destinado a demonstrar o "equívoco" das cerimô-
nias, se nos depara um primeiro esboço da teoria política.
Nem por acaso nem por mera antecipação na ordem argu-
mentativa. É que todo o imaginário que aí se manifesta, toda
a simbologia que nas cerimônias se materializa, constitui o
principal cimento das instituições, a tradução do elo invisível
que consolida a unidade e a dinâmica do Estado. Se os ho-
mens pudessem viver apenas segundo os ditames da razão,
nem as leis nem as cerimônias seriam necessárias, já que to-
dos veriam imediatamente as vantagens que traz a socieda-
de, quer no plano da segurança contra os inimigos, quer no
plano interno da entreajuda. Mas, como a experiência mostra
o contrário, são precisas leis e um poder coercivo que os con-
tenha adentro de uma certa norma. Contê-los apenas pelo
medo é perigoso, visto que gera a insubmissão. Por isso é
que Moisés integrou a religião no Estado, estendeu a lei a to-
das as ações dos hebreus e transformou.a vida da comunida-
de num perpétuo ciclo de rituais que mantinham o povo em
constante situação de obediência. Não por temor, mas na ex-
pectativa de maiores bens. E, se, mesmo depois do fim do Es-
tado, os hebreus continuaram a observar esses ritos, não foi
porque estes tivessem um caráter divino ou necessário: foi
simplesmente por constituírem um fator de coesão ou, como
Espinosa diz, uma marca da hostilidade dos fariseus contra
os cristãos. O Estado pereceu mas a nação hebraica perdura.
Os rituais e símbolos deixaram de produzir o seu efeito pri-
mitivo, a realidade oscilou por debaixo da imaginação, mas
nem por isso esta perdeu a sua efetividade. Pelo contrário,
ecoa ainda na memória e o seu eco basta para reproduzir a
esperança e transformar aos olhos dos fiéis a realidade pre-
sente num simples contratempo, numa errância com destino:
a reconstituição do Estado.
III. As encarnações do Verbo

1. A passagem do indicativo ao imperativo

Conhecimento profético e realidade social são como um


díptico que tem por eixo o que há de positivo na imagina-
ção. Com ele se fecha a primeira parte do Tratado. A desor-
dem aparente das paixões descobre-se ordenada para fins
específicos, a equivocidade dos símbolos e rituais emerge
como constitutiva de uma outra região ontológica. Nem tudo,
porém, ficou explicado. No plano da totalidade, sabemos
que a ordem e conexão das coisas é a mesma que a ordem e
conexão das idéias, já que ambas são expressão da atividade
da mesma substância sob atributos diferentes. É o plano da
"lei divina", o qual não dita ao homem outra coisa que não
seja afirmar-se em liberdade através do conhecimento de
Deus, isto é, do conhecimento de si próprio enquanto grau
da potência infinita. No entanto, essa lei, em virtude da sua
universalidade, apresenta-se como ideal a realizar por cada in-
divíduo e não contempla a formação concreta dos grupos
humanos, a qual é sempre determinada pela procura de bens
contingentes e deriva da incapacidade experimentada pela
maioria em conhecer os verdadeiros fins, que é como quem
diz, a sua verdadeira razão de ser. A contingência, aliás, de-
fine-se exatamente por essa deficiência de conhecimento. Na
medida em que ignora a razão e a necessidade das coisas, o
homem sente-se ameaçado pelo imprevisível. Porque a ima-
LXVI ESPINOSA

ginação assinala apenas a situação presente do corpo e as afec-


ções que ele recebe do exterior. Mas não indica a sua causa
nem a relação necessária entre esta e os efeitos, não percebe
a natureza íntima das coisas independentemente do sujeito e
é, por isso mesmo, conhecimento inadequado. Indica o lugar
do indivíduo no jogo de encontros fortuitos em que decorre a
sua existência, sendo, portanto, intrinsecamente instável.
Uma tal precaridade constitui uma ameaça. De fato, se
há corpos que "convêm" com o meu, há outros que lhe são
adversos e contrariam a sua sobrevivência. Ora, se o indiví-
duo se afirma precisamente pelo perseverare in suo esse, é ló-
gico que o homem fará tudo quanto esteja em si para escon-
jurar o medo que a instabilidade lhe provoca. Essa a razão
por que, na ausência de um domínio da totalidade das corre-
lações possíveis no universo, da totalidade até das relações
entre as partes do seu próprio corpo, ele forja um sistema de
causas e relações imaginárias. Mas como poderá a imagina-
ção, por natureza contingente, neutralizar o medo? Só imagi-
nando as suas ficções como necessárias, representando como
estáveis os produtos da sua instabilidade congênita. A imagi-
nação é o mundo dos signos, e estes, se à luz do entendi-
mento se revelam como pura equivocidade aberta ao jogo e
à guerrilha das interpretações, ao nível do primeiro grau de
conhecimento assumem a unívocidade das leis. Recalcando
o seu caráter de meros indicativos de uma situação, tornam-
se imperativos como condição necessária para exercerem
uma função estabilizadora. Toda a Escritura se poderia resu-
mir nesse trabalho de aprisionamento dos signos através da
sua inscrição em "tábuas de pedra" onde a letra suspende a
inconstância do imaginário, onde a palavra encarna em lei e
se separa daqueles que a pronunciaram e aos quais passa a
dominar.
Discurso sem nenhum sujeito assinalável, palavra impos-
sível de atribuir aos lábios de alguém, sob pena de a relativi-
zar, Verbo de Deus, em suma, é esse o registro comum à Bí-
blia e à lei. Registro contraditório, evidentemente, pois esca-
pa em última instância a toda e qualquer racionalidade, mas
nem por isso menos eficiente. Eficiente porque, como vimos,
TRATADO TEOLÓGICO-POÚ17CO LXVll

é nele que se funda a constituição dos agregados humanos


enquanto processos de reduzir a adversidade e exponenciar
a aquisição de bens; eficiente ainda porque a própria contra-
dição sobre a qual assenta vai modular os conflitos no seio
desses agregados, centrando-os na questão da legitimidade
do poder, ou seja, da coincidência entre a palavra do legisla-
dor-intérprete e a Palavra que antecede todas as interpretações
e de onde procedem todas as leis. É aqui que o problema se
transfigura no horizonte do Tratado.
Na verdade, identificar a origem das leis e do conheci-
mento profético como atividade da imaginação é insuficiente
para caracterizar os modos específicos em que se exterioriza
essa imaginação ou as estruturas que se produzem pela sua
atividade. Em termos alheios a Espinosa, diríamos que se as-
sinalou apenas a gênese da história. Mas esse gesto é ambí-
guo, porquanto assinalar a gênese da história pressupõe a
saída da história e a passagem à teoria. Como abarcar pela teo-
ria o que se constitui pela sua mesma ausência? As respostas
à pergunta são conhecidas, tanto no que respeita à Bíblia
como no que respeita à sociedade. No caso da Bíblia, as in-
terpretações oscilam todas entre fazê-la coincidir com a razão
ou tomá-la como alheia, por inacessível, à mesma razão. No
caso da sociedade, o que se passa não é muito diferente: ora
se pressupõe a lei fundada em verdade e necessidade - jus a
justo - ora se considera que ela deriva de uma vontade que
se julga coincidente ou se faz coincidir com a vontade divina
- jus a jusso. De uma ou de outra forma, nào saímos da
questão: qual o papel do entendimento ante uma realidade
que não reproduz a dedução geométrica das essências e que
se instaura a partir de um conhecimento inadequado? É esse
o problema que fará o objeto da segunda metade do Tratado
Teológico-Político.
Numa primeira parte (cap. VII-XV), Espinosa estuda a
Escritura, averiguando o seu verdadeiro conteúdo à luz do
pressuposto já demonstrado de que se trata de conhecimen-
to do primeiro gênero e deduzindo a impossibilidade de nela
se fundamentar qualquer autoridade em matéria especulati-
va; numa segunda e última parte, estuda a política, eviden-
LXVIII ESPJNOSA

ciando os mecanismos possíveis de estruturação da socieda-


de, isto é, os modos como se pode operar a metamorfose da
lei impessoal na lei do soberano ou vice-versa. Mas tal como
para os seis primeiros capítulos vimos que havia um eixo,
constituído pela imaginação, em torno do qual girava o trata-
mento da revelação e da realidade social, também aqui, a Es-
critura e a política propriamente dita se deixam atravessar por
um eixo comum que é a obediência. A Bíblia é a revelação
passada à letra; a política é a inscrição dos agregados sociais
sob o "signo" da lei; a obediência é a imaginação estruturada
na lei e nos profetas, ou seja, na política e no Livro Sagrado.
Veremos mais pormenorizadamente esse novo díptico em que
o problema se desdobra, começando, ainda neste capítulo,
pela Escritura e deixando a política para o seguinte.

2. A letra e o espírito

Façamos, desde logo, a pergunta: o que é a Escritura? To-


da a gente diz que é a palavra de Deus, repara Espinosa. Po-
rém, a palavra de Deus, longe de vir estancar as nascentes da
dúvida, abre-se ela própria em problemas de toda espécie.
Enunciemos alguns.
a) Em que consiste esta palavra? Como conceber o Ver-
bo de Deus, que é por definição verdade eterna, conjugado
em qualquer tempo? Que sons ou que figuras poderão tradu-
zir o infinito? Milagre, dizem as religiões. Mas o milagre, além
de pressupor, na concepção espinosista, que Deus teria de
corrigir aquilo que ele próprio criou e suspender as leis ne-
cessárias da natureza, o que demonstraria a impotência e não
a potência divina, deixa o caminho aberto à vã tentativa de
encontrar uma explicação racional sempre mais adequada. A
revelação de Deus aos homens constitui, por isso, o princípio
e ao mesmo tempo o limite de toda especulação. A Bíblia é,
por assim dizer, a verdadeira face do "absoluto literário'', es-
crita de uma vez por todas e, no entanto, precisando em cada
momento de ser reescrita. Perante o seu texto, só duas atitu-
TRATADO TEOLÓGICO-POÚT1CO LXIX

des parecem possíveis: a dos cabalistas e a dos intérpretes. Ou


se tem em conta a verdade e a necessidade que o autor da
revelação imprime à mensagem, ou se considera a contingên-
cia dos seus destinatários. Para o cabalista, a mensagem está,
no conteúdo e na forma, saturada de verdade, pelo que não
há espaço para a contingência. Conforme diz Jorge Luís Bor-
ges (1955, p. 242), num parágrafo que está longe de ser sim-
ples ficção, "os cabalistas judeus pensaram que, na composi-
ção do texto absoluto, o valor do acaso podia ser estimado
em zero. Partindo dessa idéia prodigiosa de um livro impe-
netrável à contingência, um livro que é engrenagem de de-
sígnios infinitos, foram levados a operar na Escritura permu-
tas de palavras, a somar o valor numérico das letras, a levar
em conta a sua forma, a observar as minúsculas e as maiús-
culas, a procurar acrósticos e anagramas, e a outras sutilezas
de que é fácil a gente rir-se. A sua justificação, porém, é que
nada pode ser contingente na obra de uma inteligência infi-
nita". A Igreja Católica não pensa, de resto, de outra forma.
Veja-se, por exemplo, o que a tal respeito diz São Jerônimo:
"cada frase, sílaba, acento ou ponto nas divinas Escrituras
está cheio de sentido"'. Isso, quanto à letra, que é possível fi-
xar e em certa medida poupar à contingência. Mas ... e o sen-
tido? Quanto a este, se o imaginássemos acorrentado, corre-
ria o risco de se perder com o tempo. Daí o papel e o peso
da tradição. A tradição é precisamente essa cadeia que em
cada elo refaz o sentido originário. "A cada nova opinião di-
tada pelas circunstâncias, o sentido do versículo recomeça, e
a tradição, longe de impor uma opinião, obriga a reconhecer
e a ter em conta a sucessão dos tempos, a diversidade dos lu-
gares, na elaboração do sentido simples" (Osier, 1983, p. 49).
Não é por acaso que a cultura judaica atribui tanta importân-
cia à "lei de boca", mais até, segundo alguns autores, do que
propriamente à lei escrita: porque a esta, qualquer estrangei-
ro poderá ter acesso, pelo menos se aprender a língua; aque-

1. Singuli sermones, syllabae, apices, puncta in divinis Scripturis plena


sunt sensibus (Comm. in Eph. 3, 6, cit. in Hopfl, vol. I, p. 66).
LXX ESPINOSA

la, porém, é vista como o mais autêntico dom de Deus ao


povo eleito, porquanto nela reside a expressão da própria na-
cionalidade, essa história viva que a cada instante reatualiza o
significado dos signos escriturísticos, sem deixar alguma vez
de se pensar sob o signo da eternidade.
b) Admitamos então a face temporal da Bíblia, através da
qual, desdobrado o texto em corpo e espírito, letra e sentido,
se vai inscrever, sobre a distância infinita que separa os sig-
nos do seu referente inomeável, o ilimitado processo das in-
terpretações. Cada época pressentirá fatalmente essa distân-
cia de maneira diferente e ver-se-á tentada a ultrapassá-la re-
movendo o sentido dos signos. E não é só a história que di-
namiza esse processo. Conforme diz Peirce, "o significado de
uma representação só pode ser uma outra representação. Na
realidade, é apenas a mesma representação despojada do seu
revestimento não pertinente. Mas esse revestimento não pode
jamais ser totalmente abandonado, pode é ser substituído por
um outro mais transparente. Desse modo se produz uma re-
gressão infinita. O interpretante2 não é, em suma, senão uma
outra representação a que se entrega o testemunho da verda-
de e, como representação, tem por seu turno o seu próprio
interpretante. Surge, assim, outra série infinita" ( Collected Pa-
pers, 1339, cit. in Eco, 1976, p. 58).
O problema maior em relação à Escritura não provém,
no entanto, dessa verdade eternamente diferida que os sig-
nos comportam e transportam. O desejo do sentido último,

2. Apesar de não pôr em causa a simples aproximação que aqui se


pretende fazer, convirá reparar na distinção entre intérprete e interpretante
na teoria de Peirce, que Umberto Eco explicita da seguinte forma: "o inter-
pretante é aquilo que assegura a validade do signo mesmo na ausência do
intérprete ( ... ) A hipótese filológica mais fértil parece ser a que trata o inter-
pretante como uma outra representação referida ao mesmo objeto. Por ou-
tras palavras, para estabelecer o significado de um significante por meio de
outro significante (Peirce fala, não obstante, em 'signo') é necessário nomear
o primeiro significante por meio de um outro significante, o qual, por sua
vez, conta com outro significante que pode ser interpretado por outro sig-
nificante e assim sucessivamente. Temos, assim, um processo de semiose
ilimitada (Eco, 1976, p. 58).
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO LXXI

projetado, aliás, especularmente como sentido originário, é


de fato o motor imóvel das interpretações, mas isso não im-
pede que cada uma delas se represente como definitivo acri-
solamento do sentido. O que acontece é que essa mobilida-
de no tempo se faz acompanhar de equivalente irradiação no
espaço, multiplicando as interpretações em cada época dis-
poníveis. No plano diacrônico, o sentido é sempre outro mas
refaz sempre o mesmo. Porém, o mesmo não pode ser pensa-
do a refazer-se ao mesmo tempo de diversas maneiras. Cada
seita pretende esgotar a verdade do texto, afirmando, conse-
qüentemente, a impertinência das que se lhe opõem e ne-
gando a sua própria distância em relação à verdade. É a pró-
pria natureza do signo que condena, afinal, o problema a só
ter solução por recurso a um elemento exterior à doutrina,
ou seja, recorrendo ao poder. A função dos Concílios, judeus
ou cristãos, como Espinosa sugere, é precisamente escrever
sub specie aeternitatis a temporalidade e contingência do sen-
tido, imprimir a necessidade da lei à arbitrariedade congêni-
ta dos signos, traduzir, enfim, a verdade em normatividade.
A tarefa não é fácil. Por muitas razões, mas sobretudo
porque a sobreposição de leituras da palavra revelada tem
subjacente a contradição fundamental de um Deus que, uma
vez posto a falar, se expõe de imediato ao prolongamento da
analogia que irá atribuir-lhe virtudes e paixões humanas. Fa-
lar é sempre pôr algo em comum, e entre o infinito e o fini-
to não há, por princípio, nada em comum. Por isso, o texto
bíblico terá sempre de ser decifrado no plano da alegoria: a
partir do momento em que o judaísmo e o cristianismo, como
depois o islamismo, pretendem apresentar a sua doutrina em
linguagem filosófica, tudo quanto a Escritura diz de Deus
será lido segundo o método alegórico através do qual os gre-
gos liam os seus poetas. Xenófanes ("os Etíopes dizem que os
seus deuses são negros e têm o nariz achatado, os Trácios di-
zem que os seus têm os olhos azuis e o cabelo ruivo'', DK,
171) e Platão ("o ciúme está banido do coração dos deuses'',
Pedro, 247, a), designadamente, já tinham descortinado um
outro sentido por detrás dos mitos, mas é sobretudo com o
estoicismo e a sua idéia de que o Logos divino é sem paixão
(apatheia) que a alegoria se torna um método coerente. Fí-
LXXII ESPINOSA

lon de Alexandria, entre os judeus, e Orígenes, entre os cris-


tãos, são alguns dos pensadores que se encarregam de o in-
corporar no seio das respectivas Igrejas.
A alegoria surge, antes de mais, como um recurso de-
fensivo usado pela razão para se assegurar de que a verda-
de não se deslocou para o terreno do mito. Mediante esse re-
curso, o texto bíblico é suposto ter dois destinatários: aque-
les que são capazes de ver para além do sentido imediato a
mensagem teorética que ele esconde e aqueles que se ficam
pela superfície. Ao povo, Deus teria dito como que uma men-
tira pedagógica, apresentando-se ora como colérico ora
como bondoso, para o converter através do medo e da es-
perança (cf. Schwager, pp. 60-5); os sábios, porém, desco-
brem nessa mentira o intuito que a justifica. Assim sendo, a
alegoria estabelece de imediato uma hierarquização pelo sa-
ber, a qual tenderá sempre a fazer-se acompanhar de uma
hierarquização pelo poder. "Ao produzir um sistema de re-
presentações que simultaneamente traduz e legitima a sua
ordem, qualquer sociedade instala também 'guardiães' do
sistema que dispõem de uma certa técnica de manipulação
das representações e símbolos" (Baczko, 1985, p. 299). Já vi-
mos como isso foi expressamente teorizado por Averróis e é
sabido como, ao longo de toda a Idade Média cristã, a inter-
pretação oficial da Igreja se vê secundada pelo braço secu-
lar, rasurando a ferro e fogo, que o mesmo é dizer em cruza-
das e inquisições, as interpretações paralelas. Porque a alego-
ria isentou Deus da cólera, mas não impede, pelo contrário,
impõe, que a justiça divina passe a fazer-se indiretamente
pelas mãos dos homens. O problema, no entanto, permane-
ce: quem detém a legitimidade para executar essa justiça e
afirmar a coincidência do sentido que atribui à revelação com
a verdade divina?
e) É das guerras em prol do sentido que surge o retorno
à letra, lugar utópico de paz. O que se dá na Renascença é
como que uma generalizada suspeita de que a cadeira de in-
terpretações vai viciada e é necessário recomeçar do princí-
pio. Erasmo proclama: "antigamente, a fé consistia mais em vi-
ver do que em professar dogmas; entretanto, os dogmas au-
TRATADO TEOLÓGJCO-POLtnco LXXIII

mentaram e a caridade diminuiu, as discussões aqueceram e


a caridade esfriou (Carta-prefácio à edição das Obras de San-
to Hilário, cit. in Lecler, 1955, vol. I, p. 145). O apelo é funda-
mentalmente de natureza ética, mas traz também um progra-
ma de natureza intelectual que se traduz na tentativa de sur-
preender a verdade nesse instante mítico de antes de todas as
tradições. E, em 1527, ele surgirá concretizado na obra do do-
minicano Xantes Pagnini, que publica então a Veteris et Novi
Testamenti Nova Translatio, tradução da Bíblia do hebraico
para o latim em que a paixão do literalismo atinge escrúpu-
los que tomam por vezes o texto ininteligível. O êxito do em-
preendimento é, todavia, enorme (cf. Bataillon, 1979, pp. 22-
43) e a rudeza do latim que resulta dessa transposição pala-
vra por palavra, na irrealizável pretensão de neutralizar os
sentidos que perverteram a mensagem revelada, em vez de
prejudicar a edição, promove-a à dimensões de exemplarida-
de que os tempos reclamam.
Um século depois, vê-la-emos na biblioteca de Espinosa.
Já antes, Uriel da Costa se socorrera dela para procurar o ver-
dadeiro sentido da lei na língua original, que não dominava,
ao contrário de Espinosa. O catolicismo, por sua vez, reage,
incluindo em sucessivos índices, designadamente na penínsu-
la Ibérica (cf. Bataillon, idem, idem), essa e outras iniciativas
similares que lhe parecem (e com que razão!) eivadas de ju-
daísmo, mas também não resistirá à vaga de erudição bíblica.
Já em 1517 fora publicada a Poliglota de A/calá, que trazia
justapostas versões em hebraico, grego e latim. E, em 1572,
suceder-lhe-á a Poliglota de Anvers, publicada por ação de
Arias Montano e sob os auspícios de Felipe II (só assim se ex-
plica o ter vencido as múltiplas resistências), onde se retoma-
va a de Alcalá mas com a particularidade de se lhe acrescen-
tar, à tradução latina que já trazia - a Vulgata, considerada por
sucessivos Concílios como a única versão inspirada - a tradu-
ção de Xantes Pagnini.
Todos esses recursos a partir de então disponíveis não
alteram, todavia, o tradicional fundo da questão que a Espi-
nosa se depara. Refazem apenas o teatro em que se trava a
luta das interpretações. A ortodoxia romana reconstituir-se-á
LXXIV ESPINOSA

sobre a teoria de São Tomás, que tem em conta os vários ní-


veis de leitura e abre assim a possibilidade de uma reconci-
liação a prazo entre a ciência e a teologia 3 • No pólo oposto,
formar-se-á a ortodoxia de Calvino, para quem "a justiça de
Deus é demasiado elevada para poder reduzir-se à natureza
humana ou ser compreendida pela pequenez do entendi-
mento dos homens" (Calvin, ed. 1961, p. 85). Entre uma e
outra, entre a confiança na razão e a sua recusa, entre o dog-
matismo e o ceticismo, as possibilidades de formulação dou-
trinária esgotam-se, pelo menos no interior do saber bíblico.
As tentativas de escapar a esse círculo e promover uma "se-
gunda reforma" ficar-se-ão pelo subjetivismo sem conse-
qüências dos "cristãos sem igreja", os quais, como refere Ko-
lakowski no exaustivo estudo que lhes dedica, "são exemplo
desse desejo de autenticidade que só pode realizar-se num
movimento de fuga para fora do mundo. A inconseqüência
da Reforma 'clássica' implantou-a no mundo e permitiu-lhe
constituir o seu próprio mundo: mas o espírito de continuação
dos anticonfissionalistas era um movimento no vazio. Afasta-
do efetivamente de toda e qualquer ligação com as realida-
des temporais, o contato da alma individual com o absoluto
possibilitava-lhe a 'autenticidade' mas só a preço de uma ati-
tude de eremita vivendo em plena cidade. 'A autenticidade
como fuga': é essa a fórmula mais geral para resumir esse es-
tilo ideológico" (Kolakowski, 1969, p. 66).
À semelhança da atitude dos cristãos evangélicos, a inter-
pretação da Bíblia intentada por Espinosa constitui um ata-
que às duas versões em que se apresenta a relação entre fi-
losofia e fé. Há mesmo quem aponte os "cristãos sem igreja"
como os interlocutores a quem o Tratado ia dirigido (Negri,
Tosel). O que os separa de Espinosa, porém, é talvez mais do
que aquilo que os une. A atitude crítica em relação a todas as

3. O método é sempre o da alegoria: "Moyses rndi populo loquebatur,


quornm imbecillitati condescens ilia solum eis proposuit, quae manifeste
sensui apparent" (S. Tb. 1 q. 68 a. 3). Ou ainda mais claramente: "Constat
tamen in Scriptura Sacra multa metaphorice tractata, quae secundun planum
superficiem litterae intelligi non valeant" (Sent. II dist. 14 q. 1 a. 1).
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO LXXV

formas organizadas da fé que pretendem submeter os ho-


mens, seja invocando a razão, seja apelando diretamente à
obediência cega, é, de fato, a mesma, permitindo o estabele-
cimento de uma plataforma de diálogo. Mas enquanto esses
cristãos desvinculados de compromissos institucionais con-
cluem pela necessidade de uma interiorização mais ou me-
nos mística e ascética, com reflexos apenas no plano da eti-
cidade, Espinosa pretenderá erguer sobre essa mesma base
um plano de organização política que ponha a salvo as con-
vicções individuais, furtando-as à alçada do poder civil ou
eclesiástico.
Os adversários mencionados no TT-P são Maimônides e
Alphakar, dois comentadores judeus que sustentam, o pri-
meiro, a racionalidade subjacente ao texto bíblico, como já
tínhamos referido, e o segundo, a sua total inscrição nos do-
mínios de uma fé inacessível ao conhecimento filosófico.
Mais do que de duas leituras historicamente verificadas, tra-
ta-se aqui de duas atitudes exemplares em cujo âmbito não é
difícil enquadrar, por um lado, a tradição católica representa-
da por Santo Agostinho e São Tomás, por outro, a tradição
reformista mormente representada por Calvino. São, de fato,
essas as duas grandes linhas de interpretação em confronto e
é perante elas, conforme referem vários autores (Strauss, To-
sei), que Espinosa vai definir o seu próprio método. O que
não tem sido frisado é que essas linhas de interpretação, mais
do que uma vaga referência cultural e histórica, constituem
algo de muito próximo do autor, visto serem o tema da po-
lêmica travada entre dois homens seus conhecidos e que com
ele se relacionam precisamente nos anos em que escreve o
Tratado: Louis Meyer e Pierre Serrurier, de seu nome latino
Petrus Serrarius.
Meyer é um desses "cristãos sem igreja" que professam
a tolerância religiosa e rejeitam a autoridade em matéria de fé.
Amigo de Espinosa, virá mais tarde, em 1663, a encarregar-se
da publicação do seu primeiro livro impresso, os Princípios
da Filosofia de Descartes, escritos, aliás, a seu pedido, e vol-
tará, em 1670, a encarregar-se da publicação das Opera Pos-
tuma, com prefácio de Jarig Jelles, que Meyer traduz para o la-
LXXVI ESPINOSA

tim. Em termos filosóficos, o seu cartesianismo é levado a


extremos que ultrapassam os do próprio autor do Discurso do
Método, na medida em que pretende que a Escritura é perfei-
tamente inteligível no quadro da razão natural. É mesmo
essa a tese principal do seu livro Philosophia Sacrae Scriptu-
rae Interpres, editado anonimamente em 1666 e explicita-
mente criticado no TT-P(cf. infra, anotações ao cap. XV, pp.
299, 302 e 306). Sete anos mais tarde, a obra aparecerá ape-
nas a uma edição do Tratado como sendo igualmente de Es-
pinosa, o que demonstra, quer as ambigüidades que rodeiam
essa discussão, quer a tendência para a reduzir aos dois pó-
los citados e neutralizar assim a possibilidade de compreen-
são de uma terceira via qualquer.
Serrarius, por sua vez, pugna também pela tolerância,
dá-se com intelectuais de todos os quadrantes judeus e cris-
tãos, e é com freqüência que o vemos servir de mensageiro
entre Espinosa e Oldenburg. Do ponto de vista doutrinal, é
um místico apostado na conversão dos judeus, que vê na obra
de Meyer um sinal de que a história entrou na sua última fase
(cf. Wall, p. 199): a filosofia introduz-se qual prostituta no
templo, instala-se e faz-se adorar como o bezerro de ouro. O
que Serrarius move contra o livro de Meyer não é uma sim-
ples refutação, é uma verdadeira cruzada, indo a ponto de
solicitar aos amigos que se lhe juntem. E, de fato, em 1667,
quando publica a sua Responsio ad exercitationem parado-
xam anonymi cuiusdam, já lhe acrescenta um texto de Co-
menius que classifica de "presente celeste" embora sem lhe
mencionar o autor. No conjunto, o volume é um libelo acu-
satório todo ele baseado na distinção entre a razão humana,
comum a todos os homens, mas falível como os sentidos, e a
luz sobrenatural ou inspiração do Espírito Santo, dada ape-
nas aos fiéis e que é fonte de verdade infalível. O princípio
hermenêutico da Escritura deverá ser, segundo Serrarius, não a
luz natural, mas o Espírito. Ora, o espírito "sopra onde quer'',
fala de muitas maneiras, e uma delas são as palavras reveladas.
Portanto, a Escritura deve interpretar-se por si mesma e não
pela razão. Se há controvérsias a tal respeito, elas provêm
exatamente dessa pretensão da filosofia com que Louis Meyer
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTJCO LXXVII

as quer sanar: só a fé do homem renascido (renatus) e não as


especulações do homem condenado (domnatus), por mui-
to que este se considere o verdadeiro Renatus (Descartes),
poderá restabelecer a piedade e a paz da cristandade, objeti-
vo a que inteiramente se devotam o barroquismo e a fé de
Serrarius.

3. Scientia propter potentiam

Enquanto isso, Espinosa escreve, desde 1665, o Tratado


Teológico-Político, conforme se vê pela carta já referida, uma
das que Serrarius leva a Oldenburg. A polêmica, evidente-
mente, rodeia-o de muito perto, mas ele distancia-se. Qual-
quer das soluções em confronto é, afinal, já antiga e circulou
por todas as religiões que reivindicam o mesmo texto, ha-
vendo, por conseguinte, que a isentar de circunstancionalis-
mos. É esse o motivo que leva Espinosa a recuar no tempo e
a situar uma controvérsia de extrema atualidade em parâme-
tros de intemporalidade, pela invocação de dois nomes que,
sendo embora de figuras históricas, funcionam como de per-
sonagens paradigmáticas: Maimônides e Alphakar. Do seu
"diálogo" concluir-se-á que o problema não tem solução de
um ponto de vista religioso, uma vez que todas as religiões e
seitas vão forçosamente reconstruir o mecanismo de exclu-
são que torna a guerra irremediável. Só na exterioridade des-
se espaço polêmico em que todas elas convergem é que se
deve procurar uma saída. O problema, portanto, não é a re-
conciliação no interior desta ou daquela Igreja, recorrendo a
este ou àquele método, à razão ou à fé, mas sim a paz civil
que garanta a livre expressão de todas as opiniões, verdadei-
ras ou falsas.
Uma via aparentemente plausível para tal programa po-
lítico era a que se poderia deduzir do humanismo renascen-
tista, na sua vertente probabilista e mais ou menos cética. Há,
com efeito, nesse humanismo que vem de Petrarca e do seu
distanciamento ante a sofisticada lógica dos escolásticos de
Paris e de Oxford, "os bárbaros britânicos", mais do que um
LXXVIII ESPINOSA

elemento a repercutir-se nesse problema. Resumindo a con-


trovérsia às suas posições extremas - já que nào podemos ver
em pormenor toda a rede complicada em que se embaraça a
gnoseologia renascentista (cf. Gilbert, 1963, Vasoli, 1968, Co-
xito, 1980 e 1984) na tentativa de encontrar urna teoria do
método que seja em simultâneo coerente e fecunda, urna ars
demonstrandi que se desdobre em verdadeira ars invenien-
di - diríamos que estào em jogo duas atitudes que sào outras
tantas tentativas para superar os impasses da Escolástica: urna,
de natureza pragmática, que tende a diluir a filosofia numa
arte de expor e argumentar; outra, de natureza mais teórica,
que pretende reativar o aristotelismo, acentuando o caráter
"instrumental" da lógica, mas ressalvando sempre a diferença
entre a linguagem universal da ciência, independentemente
da forma e do idioma em que se exprime, e a linguagem "ci-
vil", que é limitada aos problemas éticos e políticos e que re-
corre à dialética e à retórica corno seus processos naturais de
expressão. Evidentemente, e muito embora se encontrem ca-
sos em que urna e outra dessas atitudes se desenham com
nitidez - por exemplo, Mario Nizolio para a primeira, Jacopo
Zabarella para a segunda -, a maior parte das vezes elas apa-
recem misturadas. De qualquer modo, o que interessará aqui
frisar é que ambas projetam na hermenêutica seiscentista vá-
rios dos seus tópicos mais marcantes. Vejamos alguns:
a) Valorização da eloqüência. É o traço mais caracterís-
tico do humanismo renascentista e podemos encará-lo sob
duas perspectivas: o estudo das línguas clássicas, sem o qual
se considera inútil a discussão dos termos filosóficos, e o es-
tudo da retórica e jurisprudência de inspiraçào ciceroniana.
Em Zabarella, corno na maioria dos paduanos, esses elemen-
tos serào tidos em conta, ainda que destinados apenas a um
melhor conhecimento da linguagem aristotélica, por forma a
expurgá-la do barbarismo das traduções existentes. Mas nou-
tros, corno em]. Luis Vives, eles redundarão numa recusa do
estudo abstrato e universal da palavra, ao qual é contraposta
a convicção de que cada língua tem o seu gênio próprio e de
que, por conseguinte, são as regras lógicas que derivam de
hábitos lingüísticos e não o inverso (cf. Coxito, 1984, p. 69).
1RATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO LXXIX

Contra a tradição veiculada pelas escolas, onde o modelo de


demonstração é procurado nos Analíticos, os humanistas vão
impor a idéia de que a lógica tem de se aplicar a questões prá-
ticas e de interesse público, devendo, por isso, revestir-se de
adornos retóricos para melhor ensinar, persuadir e impressio-
nar agradavelmente os ouvintes ou leitores. É o que procla-
ma abertamente um Lorenzo Valia (cf. Vasoli, pp. 412-34),
quando subordina a lógica à retórica, os Analíticos aos Tópi-
cos e à oratória de Cícero e Quintiliano.
b) Tentativa de unificação do método. Também aqui, as
divergências são inúmeras, quer no que respeita ao conceito
de ciência, quer à vias para a sua formação mas o fato é que
tanto aristotélicos como humanistas procuram, a partir de pos-
tulados diferentes, encontrar uma coerência na exposição dos
saberes, ainda quando esta se constrói sobre o critério da uti-
lidade, o qual se arrisca ao probabilismo e ao ceticismo. Se é
verdade que a metodologia renascentista, na sua vertente
mais humanista, centra preferencialmente a atenção na pro-
cura de argumentos, à qual reduz a inventio, não é menos
verdade que a outra face da dialética, isto é, a ordenação dos
argumentos (judicium) também lhe não é estranha, como se
poderá verificar, por exemplo, em Rodolfo Agrícola. Em últi-
ma análise, "qualquer tipo de doutrina ou de ciência tem sem-
pre se de expressar em palavras mediante orationes, as quais,
divergindo embora nos seus objetivos, se destinam sempre a
tornar convincente a própria verdade e certeza. Todavia, essa
'disposição' do discurso depende, naturalmente, da arte retó-
rica, tal como a inventio depende da habilidade do dialético;
por conseguinte, as duas artes devem cooperar, em todas as
ocasiões, para a perfeita elaboração do discurso filosófico ou
científico" (Vasoli, p. 160).
Escusado será dizer que o modelo de ciência aqui pre-
sente é o modelo platônico, visível ainda em Aristóteles, de
uma ciência já feita para a qual é necessário procurar os ar-
gumentos demonstrativos. Mesmo num Pierre de la Ramée,
que atribui ao estagirita a origem da separação entre uma ló-
gica do saber científico e outra do discurso vulgar e das ma-
térias em que se procura apenas a persuasão, contrapondo-
LXXX ESPINOSA

lhe que se podem conhecer todas as coisas, necessárias e con-


tingentes, pela mesma lógica, a pesquisa ou inventio é ape-
nas um recurso prévio à ciência propriamente dita. Ciência,
para ele, é a exposição, a doutrina, o ensinamento. Longe de
conceber qualquer diversidade de métodos, o que Ramée
tenta é organizar as noções no seio das várias disciplinas sob
a mesma aurea catena, quer se trate da retórica de Cícero,
da história natural de Plínio, ou da história humana, a qual
sujeita ao mesmo método quando escreve o Liber de mori-
bus veterum Gallorum ou o Liber de Caesaris militia. A tese
fundamental é a de que todas as artes foram inventadas an-
tes do silogismo e que este serve apenas para as ensinar. O
ensino, porém, deve seguir sempre idêntica via: tal como a
mesma vista vê o mutável e o imutável, assim a mesma lógi-
ca pode conhecer todas as coisas, sejam elas necessárias ou
contingentes.
Diferente desta é a perspectiva dos paduanos, em parti-
cular a de Zabarella, que gozará de enorme prestígio na Ho-
landa dos princípios do século XVII. Diferente em dois senti-
dos: em primeiro lugar, porque o seu conceito de ciência per-
manece, no essencial, aristotélico, reivindicando como seu
objeto exclusivo o universal e necessário; em segundo lugar,
porque a sua versão do método se aparta da simples ordo,
com a qual habitualmente se confundia, para se afirmar como
um processo autônomo de pesquisa conducente do conheci-
do ao desconhecido. Uma e outra dessas diferenças conju-
gar-se-ão num corpo de doutrina que, insistindo embora na
tendência humanista para perspectivar o saber em função do
homem, o desvincula, todavia, da simples arte retórica. Na
verdade, também para Zabarella, "a ciência existe em função
da potência, o teorema em função dos problemas, isto é, em
função da arte de construir; toda a especulação, em suma,
foi criada com vista a uma qualquer ação ou trabalho" (De
corpore, I, I, 1, 6, in Op. Log., ed. Frankfurt, vol. I, p. 6, cit.
Gargani, p. 40). Essa dimensão instrumentalista não implica,
no entanto, concessões à contingência já que todo o saber
opera no plano da necessidade. Simplesmente, uma tal ne-
cessidade não é ontológica mas tão-só formal. A ciência é o
TRATADO TEOLÓGICO-POúTJCO LXXXI

domínio, a apreensão da experiência que se nos oferece sen-


sorialmente através do seu registro e modulação em concei-
tos, os quais não reproduzem a essência dos seres, como na
lógica aristotélica ou ainda nos tratados alquimistas: são ape-
nas termos convencionais que se conectam em estruturas ló-
gico-lingüísticas (cf. Gargani, pp. 38-51 e 88-93).
A ciência faz-se, pois, em dois tempos, no entender de
Zabarella: o da resolutio, em que se procede a uma análise
dos dados da experiência imediata "com o objetivo de sele-
cionar aqueles aspectos dos fenômenos empíricos que pos-
sam ligar-se segundo nexos necessários dentro dos esquemas
e construções teóricas próprias do aparato formal da meto-
dologia científica" (Gargani, p. 42); e a compositio, pela qual
se produz a demonstração da necessidade do nexo entre os
fenômenos. É nesse segundo tempo que surge a ciência pro-
priamente dita, pese embora a importância do primeiro que
lhe é, de alguma forma, subsidiário. Em conformidade, o mé-
todo aparece explicitamente associado ao silogismo4 • Por ou-
tro lado, e não obstante a reivindicada distinção entre "méto-
do" e "ordem", a invenção que o primeiro supõe ficará ads-
trita ã descoberta e modulação das entidades formais e dos
argumentos, distante, por conseguinte, da natureza que se ofe-
rece confusamente ao conhecimento e precisa de ser trans-
posta para o plano artefatual em que decorre a ciência. Dife-
rente da doutrina de Vala ou de Agrícola, a concepção de
Zabarella a este respeito não será menos diferente da que
propõe Francis Bacon, aos olhos de quem "a invenção do dis-
curso e dos argumentos não é propriamente uma invenção:
porque inventar é descobrir aquilo que não sabemos, e não
retomar ou recolher aquilo que já conhecemos; e o uso des-
sa invenção não consiste senão em extrair do conhecimento
aquilo que pode servir para a finalidade que tomamos em
consideração" (1be Advancement ofLearning, ed. de 1905, p.

4. "Nihil aliud videtur esse methodus quem syllogismus, et definitio


methodi a definitione syllogismi non dif.fert" (Zabarella, De Methodis, III, 3,
Op. Log., ed. Frankfurt, p. 226).
LXXXII ESP/NOSA

115, cit. Gil, p. 432). Se Bacon desconhece a importância da


formulação das estratégias cognitivas, da criação e combina-
ção de mecanismos formais produtores de ciência, Zabarella,
por seu turno, não chega a estabelecer uma articulação entre
a necessidade do registro artificial da ciência e a contingên-
cia dos objetos sensorialmente dados. As oscilações em que
se enreda Hobbes, na encruzilhada dessas duas tendências, ao
classificar os diversos saberes (reduzindo, no limite, o campo
do cognoscível ao artefatual, mormente a geometria e a polí-
tica, e remetendo as outras ciências para o estatuto de prová-
veis), testemunha exemplarmente as insuficiências das várias
metodologias em confronto.
c) Delimitação dos campos disciplinares. Trata-se de um
ideal que é, no fundo, aristotélico, mas que na Renascença
aparecerá em ruptura com o aristotelismo. Tanto na Metafísi-
ca (A, 9, 992b, 18-33), como nos Segundos Analíticos (I, 2,
165b, 1-2), Aristóteles insurge-se, efetivamente, contra os "pi-
tagóricos'', que identificam a filosofia com as ciências mate-
máticas, "embora declarem que tais ciências devem ser estu-
dadas com vista a finalidades bem diversas, opondo-lhe a
doutrina dos primeiros e irredutíveis princípios (archai) de
cada disciplina, a partir dos quais se operam as demonstra-
ções (cf. Gil, pp. 389-437). O humanismo de Quinhentos rea-
girá contra a amálgama disciplinar provocada pela dissemi-
nação de questionários aristotélicos e platônicos por todos
os domínios do saber, mas o que genericamente lhe contra-
põe é uma divisão das disciplinas em função das respectivas
finalidades. O que de Aristóteles prevalece é, ainda e sempre,
a associação da ciência ao ensino e não será para admirar
que uma das mais coerente e polêmicas defesas dessa sepa-
ração dos diversos ramos do saber apareça no Proemium re-
formandae Parisiensis Academiae, dirigido, em 1562, por Pier-
re de la Ramée a Carlos IX. A reforma da universidade que aí
se reclama vai toda ela impregnada de um saber voltado para
a prática, tal como o defendem humanistas como Vives ou
Nizolio, e assimila, em relação à teologia, as teses de reforma-
dores como Erasmo, para quem a religião se devia apartar das
especulações filosóficas dos gregos. O plano de Ramée des-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO LXXXlll

tina-se a formar juristas que não conheçam apenas o direito


canônico, médicos que não se fiquem pela discussão de Ga-
lena, teólogos que deixem as sofisticações filosóficas pela
leitura dos textos sagrados'. Nizolio, por seu turno, irá ainda
mais longe, ao estabelecer a teologia como única ciência com
uma finalidade exclusivamente teorética, que se deve apartar
das doutrinas metafísicas, a seu ver sempre supérfluas, à se-
melhança do que fazem todas as outras ciências, a começar
pela matemática e pela física, que sào ciências não só teoré-
ticas mas também práticas e cuja função se não esgota no co-
nhecimento, e a acabar na ética, na política e na "economia",
que são práticas mas que, enquanto ciências, são também
contemplativas e teoréticas (cf. Vasoli, pp. 623-4).

4. O método em Espinosa

O problema das metodologias renascentistas é, obvia-


mente, muito mais vasto, mas julgamos que o que ficou dito
é suficiente para evidenciar os principais veios de uma tradi-
ção que deságua na Ética e no Tratado Teológico-Político,
onde vai ser alvo de uma reformulação enquadrada já em no-
vos pressupostos. Trata-se, em suma, de eximir a análise es-
criturística de Espinosa ao quadro restrito da discussão, teo-
lógica por um lado, política por outro, a que habitualmente
andou associada.
Antes de mais, aquela tradição permite-nos compreender
o deslocamento da questão do literatismo. Com efeito, o in-
tuito que atravessa a interpretação bíblica no Tratado não é
já a simples recuperação de um texto na sua versão original,
como acontece na erudição da Reforma cristã ou na oposição
à tradição farisaica por parte de alguns judeus: é, sim, a his-
toricização desse mesmo texto, quer dizer, o seu enquadra-
mento num sistema de sinais convencionais historicamente

5. "ln christianae theologiae sebo/is pagana saepius quam christiana


philosophia auditur" - queixa-se Ramée (cit. Vasoli, p. 510).
LXXXIV ESPINOSA

produzidos, no seio do qual ele se torna significativo. Situar


o TT-P na dependência direta daquilo a que Bataillon cha-
mou o "biblismo" renascentista seria um equívoco, pois en-
quanto este vê no texto uma instância fundadora, Espinosa
equaciona dialeticamente a questão, partindo da exteriorida-
de do texto - a língua em que ele se escreve e a sociedade
que o produziu e sob ele se moldou - para passar depois à in-
vestigação dos objetivos nele inscritos e da sua interferência
na história. Assim se explica a importância que o autor do
Tratado atribui à elaboração de uma Gramática do Hebraico,
projeto que deixará incompleto mas que se justifica por se-
rem "numerosos os que escreveram a Gramática da Escritura,
mas nenhum ter escrito a Gramática da língua hebraica" (CG,
cap. VII)
Filologia e história surgem, portanto, como elementos. im-
prescindíveis para a compreensão do texto bíblico. Parte-se,
por um lado, do pressuposto já aludido de que se deve inter-
pretar a Escritura pela Escritura e, por outro lado, da evidência
de que nào estamos perante um livro como, por exemplo, o
de Euclides, em que o sentido é transparente e imediatamen-
te apreensível, não carecendo, portanto, de interpretação. Po-
rém, a opacidade da Escritura não deriva dos ensinamentos
religiosos que propicia, o que implicava ser a religião só
para os sábios, nem das idéias filosóficas sobre Deus e o ho-
mem que supostamente contêm, visto não se tratar de uma
súmula de metafísica e visto as próprias revelações serem in-
terpretadas pelos profetas para o povo. Donde virá, então, a
dificuldade em estabelecer o autêntico sentido da Escritura?
Espinosa sustenta que ela reside unicamente na língua em
que está escrito o Antigo Testamento e que era falada pelos
autores do Novo, os quais, por isso mesmo, ao escrever, "he-
braízam". E são várias as razões que apresenta: primeiro, a
restante literatura hebraica perdeu-se com o tempo, enclau-
surando assim a leitura da Bíblia no seu próprio universo
restrito; segundo, a linguagem oral dos judeus transformou-
se em contato com outras culturas, sobretudo a partir da diás-
pora, tornando quase impossível restabelecer a norma vigen-
te ao tempo da redação dos Testamentos; terceiro, os acon-
TRATADO TEOLÓGICO-POJ171CO LXXXV

tecimentos ali mencionados foram, a maior parte das vezes,


descritos muito depois de se terem verificado, o que lhes per-
mite aparecer com uma aura mítica quando transpostos para
um horizonte cultural diferente e onde se perde o sentido que
possuíam para quem os presenciou; quarto, o corpus escritu-
rístico hoje em dia disponível é o resultado de uma seleção
feita pelos rabinos com intuitos bem definidos.
A tarefa da interpretação destina-se, pois, a tentar refa-
zer a história do texto através da história da língua hebraica
e da história dos que o escreveram, dos que o selecionaram
e daqueles a quem foi primeiramente dirigido. Tal como
acontece a Deus na filosofia da Ética, também à sua Palavra
se recusa no Tratado toda e qualquer transcendência. Para
compreender o seu sentido, é necessário saber se os livros
de que dispomos são originais ou cópias; no caso de serem
cópias, se trazem ou não erros de transcrição e se estes fo-
ram deliberados ou involuntários; é necessário, enfim, saber
quando e por quem foram escritos, determinar a sua prove-
niência ou inspiração, etc., etc. É a chamada crítica externa
dos documentos. Mas esta, só por si, não basta. Por muito
longe que possa ir, há de sempre confrontar-se, não apenas
com a escassez de materiais necessários, como também com
a própria natureza dos textos que venham a apurar-se. No fi-
nal, tudo quanto nos oferece é um amontoado de contradi-
ções, quer no que respeita à doutrina, quer no que respeita
ã própria ordem prática. E é aqui que Espinosa introduz uma
outra inovação ao afirmar que "o método de interpretar a Es-
critura não difere em nada do método de interpretar a natu-
reza ... Na verdade, assim como o método de interpretar a na-
tureza consiste essencialmente em descrever a história da
mesma natureza e concluir daí, com base em dados certos,
as definições das coisas naturais, também para interpretar a
Escritura é necessário elaborar a sua história autêntica e, de-
pois, com base em dados e princípios certos, deduzir como
legítima conseqüência o pensamento dos seus autores" (in-
fra, p. 207).
Por história entende-se aqui, evidentemente, a recolha
de fatos a fazer previamente à sua articulação numa teoria. Já
LXXXVI ESPJNOSA

Aristóteles recomendava que se começasse por aquilo que é


mais conhecido por natureza (Física, 1, 1, 184a, 16-8). Mas "o
mais conhecido para nós", nesta acepção que é a de Espino-
sa como era já a de Zabarella ou de Hobbes, significa apenas
o objeto indiferenciado que se nos apresenta pela sensação.
A história do texto não é, por isso, a chave da sua leitura; é
apenas a base para encontrar os princípios· a partir dos quais
se deve deduzir o pensamento dos autores. Como se encon-
tram esses princípios? "Da mesma forma que, ao estudar as
coisas naturais procuramos, primeiro que tudo, aquelas que
são absolutamente universais e comuns a toda a natureza, tais
como o movimento, o repouso e as respectivas leis e regras,
que a mesma natureza observa sempre e segundo as quais
age continuamente, passando-se depois gradualmente a ou-
tras coisas menos universais, também na história da Escritura
é preciso, antes de tudo, procurar aquilo que é mais univer-
sal e constitui a base e o fundamento de toda ela, aquilo, enfim,
que todos os profetas recomendam como doutrina eterna e
da maior utilidade para qualquer mortal" (infra, p. 211).
A exigência de um primeiro princípio a partir do qual se
deduzam outros menos universais coloca-nos, de imediato,
ante o problema do mos geometrícus e da sua aplicação ge-
neralizada a todos os domínios do saber. Diga-se de passa-
gem, tal exigência lança adicionalmente uma suspeita sobre
a interpretação freqüentemente apresentada dos seis primei-
ros capítulos do Tratado. De fato, como se poderá ler aí uma
definição dos conceitos a utilizar depois na exegese bíblica -
profecia, lei, milagre, etc. - se o método explicitamente apon-
tado a essa exegese refere como ponto de partida aquilo que
"todos os profetas recomendam como doutrina eterna"? A
única coisa que pode extrair-se desses capítulos é uma inver-
são da tese de que tudo se contém no saber bíblico, substi-
tuindo-a pela tese de que a Bíblia se contém no saber da to-
talidade. Se a natureza, porém, não pode ser interpretada ã
luz dos enunciados da Escritura, tampouco esta o pode ser ã
luz dos princípios com que interpretamos a natureza no seu
todo - metafísica - ou a natureza entendida em qualquer dos
seus atributos - física e gnoseologia. Há que encontrar, a par-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ71CO LXXXVII

tir daquilo que vem explícito na Bíblia, os princípios da sua


interpretação, procedendo de acordo com o método de inves-
tigar a verdade, este, sim, universal.
Sobre o método, convirá frisar que não se trata aqui de
simples ordem expositiva. Julgar o mos geometricus como um
tributo pago por Espinosa a uma espécie de moda do seu
tempo (Negri, p. 276) ou assimilá-lo às analogias entre mate-
mática e filosofia tão vulgares no platonismo e panteísmo re-
nascentistas seria fechar os olhos por sobre páginas e pági-
nas em que o autor da Ética o reivindica a título de verdadei-
ra ars inveniendi e instrumento de progresso filosófico e
científico. É claro que a polêmica a esse propósito travada ao
longo do século XVII está cheia de equívocos e muitas vezes
não passa de mera disputa verbal, tão ambíguas são as noções
de análise e síntese no pensamento da época. A "contamina-
ção" entre os dois procedimentos metodológicos é, efetiva-
mente, a prática usual. Basta dizer que, por exemplo, Des-
cartes atribui à síntese exatamente as mesmas características
anteriormente compreendidas na análise, assumindo mesmo
a reformulação dessas categorias (Regras, IV, AT, X, p. 375,
Discurso do Método, cap. II, AT, VI, p. 17), enquanto a Lógi-
ca de Port-Royal imputa à análise as funções vulgarmente
distribuídas pela análise e a síntese (cf. Angelis, p. 406). Mas
isso não invalida que Espinosa, ao mencionar tão enfatica-
mente no título da Ética o método que vai utilizar, não esteja
a frisar uma demarcação que está longe de ser de pormenor,
pois faz parte integrante do sistema metafísico e é, simulta-
neamente, um indício claro da sua diferença perante Descar-
tes. Este, com efeito, acedendo embora a reescrever segundo
o método da síntese as Meditações, que na primeira versão
constituem um exemplo do método analítico, procedendo
dos efeitos até a intuição das causas, mantém até o fim que
o verdadeiro processo de investigação é, na metafísica, a
análise, dada a dificuldade de conceber as suas primeiras no-
ções, as quais, "se bem que não sejam por natureza menos
claras que aquelas que se têm em consideração na geometria
(. .. ), só são perfeitamente compreendidas por aqueles que es-
tiverem extremamente atentos e procurarem afastar o espíri-
LXXXVIII ESPJNOSA

to, tanto quanto possível, do comércio com os sentidos" (AT,


VII, p. 157). É de notar que a análise cartesiana se supõe a si
mesma como uma ruptura com o silogismo aristotélico, apre-
sentando-se como um modelo expressamente inspirado nas
matemáticas. Além disso, trata-se de um modelo que preten-
de afastar a própria geometria de Euclides, em seu entender
estática e não genética, substituindo-a pela geometria analíti-
ca, a qual considera as figuras a partir da sua gênese pelo
deslocamento do ponto no plano ou no espaço. Como suge-
re ainda o mesmo texto, em resposta aos que lhe solicitam
uma exposição "sintética" das Meditações, se os antigos usa-
ram a síntese, não foi por desconhecerem a análise, mas "por-
que a tinham em tão alta consideração que a reservavam só
para si como um segredo importante" (AT, VII, pp . ,156-7). O
método adequado será, portanto, para Descartes como· para
Malebranche ou Louis Meyer, aquele que procede de intuição
em intuição, produzindo pela adição sucessiva de intuições a
intuição do todo.
Essa atitude cartesiana ante o método implica duas teses
fundamentais na ordem metafísica: primeiro, a distinção en-
tre matéria e espírito, de modo que assegure a possibilidade
do encadeamento das intuições independentemente dos da-
dos sensorias e da dúvida que estes geram; segundo, que en-
tre a idéia e o seu correlato ontológico haja uma relação de
causalidade, a fim de que ã realidade objetiva que há na idéia
corresponda uma realidade formal no ideatum que é sua cau-
sa. Entre as idéias, tal como entre as coisas e as idéias, pres-
supõe-se assim um nexo causal que estava de todo em todo
ausente na escolástica tradicional, pesem embora alguns aflo-
ramentos de questão em Suarez (cf. Angelis, pp. 414-27). É
mesmo esta a principal objeção que às Meditações levanta
Caterus. Porque, diz este, "a realidade objetiva é pura denomi-
nação; atualmente, ela não é nada. Ora, a influência que pro-
duz uma causa é real e atual; o que atualmente não é nada
não a pode receber e, portanto, não pode depender nem pro-
ceder de nenhuma verdadeira causa(. .. ). Há, por conseguin-
te, idéias, mas não há causas das idéias" (Primeiras Objeções,
AT, VII, pp. 92-3). Ao que Descartes responde, retomando a
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO LXXXIX

argumentação já aduzida na III Meditação, dizendo, em resu-


mo, que as idéias, primeiro, não são um puro nada e têm,
portanto, que possuir um tipo de realidade qualquer; segun-
do, essa realidade tem de ter uma causa; e terceiro, podendo
as idéias embora ser causa de outras idéias, esse processo
não poderá ir até o infinito, devendo chegar-se a uma pri-
meira idéia cuja causa contenha formalmente toda a realida-
de que se encontra objetivamente e por representação nas
idéias. Só assim se garante que uma idéia seja idéia disso e
não daquilo. Mas, para tanto, é necessário, como se vê, es-
tender a causalidade eficiente, já admitida no domínio da ex-
tensão, ao domínio do pensamento e ao domínio da relação
entre a idéia e o ideatum.
Em Espinosa, este último aspecto é liminarmente recu-
sado. A idéia e o seu correlato têm a mesma dimensão onto-
lógica, não porque este seja causa daquela, mas porque am-
bos são expressão da mesma substância modificada em atri-
butos distintos. Além disso, o processo de causalidade que
Descartes admitia entre as idéias mas de forma ainda limita-
da, uma vez que teria sempre de se deter num limiar de pas-
sagem ao nível ontológico (de outra forma, como se poderia
demonstrar a existência de Deus?), surge-nos em Espinosa
levado às suas últimas conseqüências: a estrutura causal ve-
rificada no atributo extensão verifica-se também e identica-
mente no atributo pensamento. Assim sendo, o método não
poderá partir da intuição de uma primeira natureza singular
para uma outra e assim sucessivamente, num prolongamen-
to linear e pontual, analítico, portanto, mas sim da intuição
prévia da totalidade, que torna possível a das partes no todo
e a do todo nas partes (cf. Guéroult, 1968, vol. II, p. 485). Ou
"seja, é a imanência da causa ao efeito que assegura a realida-
de deste e, por isso mesmo, o método terá de ser genético
para traduzir a realidade das idéias e das coisas enquanto mo-
dificações da substância única.
Mais do que genético, ou sintético, dever-se-ia chamar-
lhe euclidiano. Porque é, de fato, este método em que as de-
finições exibem a produção dos seus objetos, método que
fora reformulado pelos matemáticos de Oxford, em particu-
xc ESPINOSA

lar Henry Savile, que aparece a Espinosa, na seqüência dire-


ta de Hobbes e da sua Examinatio et Emendatio Mathemati-
cae Hodiernae (1660, Op. Lat. IV, cf. Guéroult, idem, p. 482)
como verdadeiro processo de aquisição de idéias adequadas.
A geometria analítica, fosse qual fosse o grau de compreen-
são que Espinosa dela tenha adquirido, seria sempre recusa-
da por suspeita de trabalhar sobre a ilusão do discreto, isto
é, dos números, que são produtos fictícios da imaginação, ao
passo que a geometria euclidiana, a partir da compreensão
da propriedade fundamental comum a todos os corpos, co-
nhece intuitivamente todas as formas possíveis que o movi-
mento engendra a priori e apresenta os seus objetos como
estruturação e como estruturas desse movimento. ·
De uma maneira geral, as interpretações do Tratado Teo-
lógico-Político não se demoram nessa questão, limitando-se
a repetir o que Espinosa diz no capítulo VII sem, aparente-
mente, repararem no problema que isso levanta. Ainda aqui,
julgamos que prevalece a tradicional separação entre a meta-
física da Ética e a religião (ou irreligião) e política do TT-P,
separação que torna, em nosso entender, uma e outra insufi-
cientemente compreendidas, além de tomar por qualquer coi-
sa como exercícios de estilo ou alusões vagas alguns enun-
ciados explícitos do Tratado. Efetivamente, como conceber
que o método apresentado como produtor da verdade se apli-
que a um texto que, nos capítulos anteriores, fora exilado
para os domínios da imaginação? O mos geometricus é rei-
vindicado na Ética porque a ordem das idéias é a mesma
que a ordem das coisas. Porém, as idéias da Bíblia, a doutri-
na dos profetas, são idéias confusas, fruto da passividade em
que o homem está diante de um mundo de coisas de que o
entendimento não descortina os verdadeiros nexos causais.
Como poderá, então, falar-se ainda de uma ordem geométri-
ca das ficções?
A solução deste problema passa pela já referida positivi-
dade da imaginação e constitui um ponto decisivo para a
compreensão do espinosismo. Uma idéia da imaginação, re-
corde-se, é inadequada na medida em que resulta da passivi-
dade do sujeito ante outro ou outros seres que o afetam. En-
TRATADO 1EOLÓGICO-POÚ11CO XCI

quanto tal, ela traduz apenas um estado de um corpo afeta-


do por outro ou outros, mas não exprime a essência deste
ou destes. Por conseguinte, a sua função não é o conheci-
mento, a sua ordem não é a do verdadeiro ou do falso e só
quando a comparamos com esta é que a poderemos enten-
der como privação. Em si mesma, ela insere-se no domínio
do ser: "as imaginações da alma, consideradas em si mesmas,
não contêm nada de errôneo; melhor dizendo, a alma não está
em erro porque imagina, mas unicamente enquanto a consi-
deramos como privada da idéia que exclui a existência das
coisas que ela imagina presentes" (Ética, II, prop. XVII, esc.).
Porém, a positividade da imaginação pode encarar-se de
outros ângulos. Primeiro, as idéias adequadas não erradicam
as idéias confusas que imaginamos: o saber de astronomia
não faz com que o Sol deixe de se nos afigurar a uma certa
distância e de uma certa dimensão irreais. Segundo, embora
o sujeito se comporte passivamente no processo imaginativo,
se os corpos que agem sobre o seu se "compuserem" com
ele, isto é, se não contribuírem para a sua decomposição, o
contato acrescenta a sua potencialidade e é por isso que Es-
pinosa fala de paixões alegres, nas quais, por oposição às
paixões tristes, se experimenta um sentimento de acréscimo
das pontencialidades próprias. Terceiro, porque quanto maior
é a complexidade de um corpo, ou seja, a sua capacidade de
entrar em contato com outros corpos, mais habilitada estará
a mente para chegar a atingir as noções das propriedades co-
muns a esses corpos e passar assim ao segundo gênero de
conhecimento. Em resumo, a imaginação é parte integrante
do homem, elemento constitutivo da sua essência enquanto
modp finito. Porque, se o homem possuísse unicamente idéias
adequadas, o seu entendimento coincidira com o entendimen-
to infinito, o seu ser diluir-se-ia na totalidade: afirmar-se como
indivíduo é precisamente demarcar-se, já da totalidade, já da
infinidade dos outros seres. Enquanto parte do entendimen-
to infinito, o entendimento humano é atividade pura cujo ho-
rizonte seria a coincidência com o todo de que faz parte. Atin-
gir, porém, esse horizonte era negar-se como individualida-
de. A sua essência, por conseguinte, reside tanto na presen-
ça como na ausência de idéias adequadas.
XCII ESPINOSA

A ser assim, no entanto, como explicar que Espinosa in-


tente, quer na Ética, quer, sobretudo, no Tratado Teológico-
Político, suprimir a ilusão teológica? Por uma razão muito
simples. É que, como se diz no Apêndice à 1 Parte da Ética,
texto a vários títulos notável sobre a gênese das ilusões, es-
tas derivam, não só do fato de "todos os homens nasce(re)m
sem nenhum conhecimento das causas das coisas", mas tam-
bém de eles "ag(ir)em sempre em vista de um fim". Por isso,
e ainda que as idéias da imaginação nunca derivem da ativi-
dade do entendimento, dado resultarem dos encontros aci-
dentais entre os corpos, há um certo tipo de imaginação .atra-
vés do qual o homem tenta organizar essa contingênciá em
função do que lhe é útil. No fundo, é sempre o temor ou a
esperança, quer dizer, a situação real do ser humano peran-
te os outros seres, o que se traduz na imaginação. Todavia,
porque é destinada à preservação do ser, essa tradução pode
revestir a forma de um projeto e modular-se num sistema de
representações coerentes, exatamente como acontece ao en-
tendimento. Daí ser possível aplicar à ilusão teológica o mes-
mo método que se segue na ciência, prolongando assim a
ciência do ser numa espécie de ciência da ficção (cf. Gali-
chet, p. 10).
Esta última ciência, que tem por objeto a imaginação,
não se esgota na sua identificação como algo distinto do co-
nhecimento adequado das coisas e, o que é mais, não anula
a emergência de idéias inadequadas. Conhecer o homem é re-
conhecer a sua essencial finitude, o que, na metafísica espino-
sista, equivalerá a reconhecê-lo como um certo grau de po-
tência do entendimento infinito mas também e simultanea-
mente como um certo grau de impotência. O modo finito,
como vimos, ao contrário da essência de modo, que se ex-
plica diretamente por Deus e só formalmente se distingue no
interior do atributo como um grau de intensidade, é sempre
explicado por causas exteriores e realiza-se pela afirmação
de um agregado de partes interatuantes entre si e com outras
entidades que exogenamente a influenciam. Enquanto parte
do entendimento infinito, o entendimento humano é pura ati-
vidade. Porém, se o homem se definisse apenas por ele, não
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO XCIII

possuiria senão idéias adequadas e, em última instância, iden-


tificar-se-ia com Deus, já que, se uma idéia adequada se ex-
plica por outra idéia adequada, e assim sucessivamente, pos-
suir o conhecimento verdadeiro de uma coisa equivaleria a
ser entendimento infinito. Daí que o conhecer-se adequada-
mente como indivíduo implique reconhecer-se como um con-
junto de idéias adequadas a par de um conjunto de idéias
inadequadas. Por muito que o homem possa progredir no
conhecimento de si e das coisas, a sua condição impor-lhe-á
sempre, não apenas a ausência de inúmeras idéias verdadei-
ras, mas também a presença de inúmeras idéias confusas em
que se exprime o maior ou menor grau de passividade da
sua mente.
Esse aspecto do espinosismo ajuda a compreender algu-
mas teses decisivas, e muitas vezes elididas, do TT-P. Antes de
mais nada, ele transpõe os dogmas universais que, no capí-
tulo XIV, Espinosa deduz do ensinamento dos profetas para
um estatuto que de forma alguma se pode assimilar ao de
uma moral provisória ou de mensagem contemporizadora
com as limitações dos cristãos reformadores. Com efeito, de-
nunciar a ilusão teológica não significa abolir a ilusão, proje-
to absurdo num ser finito, já pela constituição ontológica des-
te, já pela natureza irremediável da sua atuação, que se pro-
cessa na ignorância das causas e sempre em vista de um fim,
em vista de algo que ele rotula como útil à preservação de si
mesmo. Recusando a ilusão de um Deus soberano e juiz, ilu-
são que inverte a natureza das coisas ao pôr como causa aqui-
lo que é mero efeito da condição humana, o indivíduo nem
por isso deixa de atuar segundo determinados "valores", tais
como a justiça, que lhe são racionalmente ditados pela pro-
cura do útil próprio. Só assim se explica essa irredutível du-
plicidade que atravessa todo o Tratado e se desdobra em de-
núncia da imaginação em ato na Bíblia e em dedução de uma
outra ordem imaginativa: "cada pessoa deve adaptar esses
dogmas da fé à sua capacidade de compreensão e interpre-
tá-los como lhe parecer que é mais fácil aceitá-los sem reti-
cências e de ânimo plenamente convicto" (infra, p. 296).
Paradoxal convicção esta, que obriga o homem a aceitar
sem reticências dogmas que ele sabe adaptados à sua menta-
XCIV ESPINOSA

!idade! Será necessário levar Espinosa à letra ou, como tantos


fazem, limitarmo-nos a assinalar a contradição, seja para cri-
ticar a insuficiência do sistema, seja para lhe emprestar intui-
tos estratégicos sub-reptícios? Mais do que necessário, cre-
mos ser imprescindível aceitar as formulações do Tratado tal
como elas se apresentam, sob pena de ignorarmos o seu pro-
jeto de uma metafísica do ser humano na sua essencial finitu-
de. Por isso mesmo, começamos por dizer que não bastava
ler o TT-P à luz da Ética. É necessário agora dizer, com Fran-
çois Galichet 0972, p. 18), precisamente o contrário: "a Ética
reenvia para o Tratado como para a sua verdade (no sentido
hegeliano)". Sem essa duplicidade de razão e fé, idéias adequa-
das e idéias inadequadas, conhecimento das causas necessá-
rias e atuação em busca do útil que obriga a uma organização
da contingência que o entendimento sabe paralela ao discur-
so de verdade, o ser humano ficará incompreensível.
Mas por que, então, a denúncia da ilusão teológica, por
que escrever o Tratado Teológico-Político? Não estará aí a
negação do conhecimento do terceiro gênero, da libertação
do homem com a qual termina a Ética? De forma alguma, e
é mesmo necessário, como já dissemos, não ler o TT-P como
um momento de passagem em direção a essa finalidade re-
dentora em que o homem seria pura atividade liberta da do-
minação, já das diversas potestades, já do temor das circuns-
tâncias. Conhecer adequadamente o homem é ter a noção
do que nele é passividade e fonte de conhecimento confuso.
Interpretar de outra forma o conhecimento do terceiro gêne-
ro é supor que o indivíduo negue a condição que lhe é es-
sencial e não apenas acidental, que o mesmo é dizer que o
indivíduo negue a sua própria individualidade para se diluir
na indistinção do todo. Supomos não andar muito longe da
verdade se dissermos que é esse o pecado capital de inter-
pretações, como a de Negri, tendentes a ver em Espinosa o
filósofo da revolução radical e da libertação do homem de
toda e qualquer dependência. Tudo quanto lemos no Trata-
do vai num outro sentido. Ele aponta, sim, para uma denún-
cia da ilusão teológica, porque sabe que esta "inverte a natu-
reza" em função do interesse de alguns. Mas exorcizar tal ilu-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO xcv
são, apontando o homem em vez de Deus como sujeito do
seu discurso e desalojando-a da ordem da verdade para a or-
dem da obediência - o que implica a separação entre teolo-
gia, por um lado, e filosofia, por outro -, não leva à supres-
são da passividade nem da obediência: leva é ã sua dedução
com base em outras premissas. A partir de agora, o homem
sabe que é o autor desses dogmas, reduziu, portanto, o seu
grau de impotência e passividade, mas não alterou o seu cam-
po de atuação nem a sua condição finita. Sabe que "as idéias
inadequadas e confusas derivam umas das outras com a mes-
ma necessidade que as idéias adequadas" (Ética, II, prop. 36),
razão pela qual a teologia se organiza num sistema coerente
e sobreposto à filosofia, e tem, por isso, que organizar dife-
rentemente a atividade da imaginação, de forma que deduza
a obediência da justiça em vez de a deduzir de qualquer or-
dem transcendente. É esse o trabalho da política.
IV. As tábuas da lei

1. Aficção do contrato

De alguma forma, o Tratado Teológico-Político é também


o que se poderia chamar um "tratado da reforma da imagina-
ção". O seu intuito em relação ã Escritura é arredá-la do do-
mínio da ciência para a situar no domínio da efabulação, gê-
nero literário que é universal na medida em que é comum a
todos os povos (as outras nações também tiveram profetas, re-
fere Espinosa, citando a Bíblia), mas que, em vez de explicar
a natureza pela universalidade de um saber sem sujeito, traz,
pelo contrário, as marcas das diversas situações particulares
onde emerge. A Escritura é imaginação, conhecimento que
indica a multiplicidade _çausal em que o indivíduo está inseri-
do, mas que não exprime o seu exato lugar na série de modi-
ficações em que se estrutura a atividade substancial.
Vimos como essa confusão que caracteriza o conhecimen-
to do primeiro gênero se desenvolve depois discursivamente
segundo uma ordem semelhante à do conhecimento verda-
deiro, não obstante as suas premissas e, por conseguinte, as
várias idéias daí deduzidas serem inadequadas. E vimos como
Espinosa, paradoxalmente, ensaia nos últimos dois capítulos
dedicados ao exame da Escritura uma espécie de ficção alter-
nativa, deduzindo da idéia de um Deus, que tem tanto de se-
melhante ao Deus bíblico quanto de diferente do Deus sive
natura da Ética, dogmas de fé em que se possa basear todo
XCVIII ESPINOSA

e qualquer posicionamento religioso possível. Ou seja, e como


já dissemos, a Bíblia revela-se ainda susceptível de uma cer-
ta universalidade transversal à particularidade que os seus
enunciados denunciam. Não, obviamente, a universalidade
da ciência, já que o seu conteúdo, além de inadequado, é in-
coerente nas diversas formulações teóricas e práticas que as-
sume. Trata-se tão-só de uma universalidade expressa pelo
objetivo único de todas essas formulações, a obediência, e
por isso é que os referidos dogmas são ajustáveis à mentali-
dade de cada um, permanecendo dogmas de fé enquanto
deles se concluir a prática da justiça e da caridade, ou seja, a
sujeição a Deus. A separação entre filosofia e teologia, entre
razão e fé, não pode, pois, entender-se como uma reivindica.:
ção qualquer de caráter estratégico: no fundo, ela é a tradu-
ção da duplicidade radical do indivíduo, que por essência é
um modo da infinita atividade da substância mas por condi-
ção está sujeito à ação da infinidade de modos que com ele
interferem. Impossibilitado de se afirmar como atividade pura,
sob pena de se negar como indivíduo realmente existente, o
homem vê-se impregnado por uma multidão de idéias que
são outros tantos registros da sua passividade perante o meio.
Pode, é certo, corrigi-las pela atividade do entendimento, mas
só até certo ponto. Mesmo os que atingem o terceiro grau de
conhecimento, a libertação de que trata a V Parte da Ética e
que reduz a sujeição passional, jamais ultrapassam um certo
limiar. O que os distingue é o reconhecimento dessa dúplice
condição do indivíduo; porque a identificação da paixão e
da imaginação é já afirmação da atividade do entendimento
e, nessa medida, libertação. Porém, a mesma atividade que
os liberta identifica-os como condicionados e sujeitos aos
"afetos". A verdadeira ciência é a que sabe dos próprios limi-
tes que tenta ultrapassar.
A filosofia política de Espinosa assenta nessa mesma du-
plicidade. O seu ponto de partida é, com efeito, o direito na-
tural interpretado nos termos da metafísica, onde o indivíduo
aparece como um grau de realização da potência da nature-
za. A natureza exprime-se em todos os seres, mas cada ser ex-
prime-a de seu modo e nisso consiste a sua individuação. Ora,
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO XCIX

se a atuação da natureza, na medida em que é substância úni-


ca, não conhece limites e tem, por conseguinte, direito a tudo,
cada um dos modos terá, por sua vez, direito a tudo quanto
se estende a sua potência. Nem outra coisa é o ser dos mo-
dos senão essa afirmação de uma parte do poder da nature-
za, afirmação que implica fazer tudo pela autopreservação: é
a "lei da vida". Homens ou peixes, todos estão, desse ponto
de vista, nas mesmas condições, pois todos participam do mes-
mo poder da natureza.
A primeira conseqüência do exercício desse direito na-
tural é o conflito, dado que o esforço para perseverar no pró-
prio ser só conhece os limites do próprio poder, ou seja, não
cede senão perante um poder maior. O direito natural apre-
senta-se assim como uma instância de luta em que o acrésci-
mo da potência de um indivíduo se faz sempre à custa da re-
dução da potência ou da destruição de outro. Para a nature-
za na sua totalidade, isto é irrelevante e corresponde até a
"ordem normal das coisas", ao processo de atualização da
potência infinita na diversidade conflitual dos conatus indivi-
duais. O problema é de "cada um" e, de resto, coloca-se ape-
nas aos seres humanos, visto só eles compreenderem o para-
doxo implícito nesse direito à vida que é, simultaneamente,
risco de vida.
Ainda aqui, porém, deve notar-se que não saímos da or-
dem natural, regida sempre pelo mesmo princípio. Se os ho-
mens constituem exceção a tal respeito é unicamente por se-
rem, por natureza, um misto de razão e paixões, ou melhor,
porque são naturalmente dominados pelas paixões mas po-
dem atingir o nível da racionalidade. Regra geral, atingem-no
tarde, se é que chegam a atingi-lo. De nascença, e durante lar-
go tempo, estão todos dominados exclusivamente pelas pai-
xões: "Nem todos, com efeito, estão naturalmente determina-
dos a agir segundo as regras e as leis da razão; pelo contrário,
todos nascem ignorando tudo e, antes que possam conhecer
o verdadeiro modo de viver e adquirir o hábito da virtude,
vai-se a maior parte da sua vida, ainda quando tenham sido
bem educados. E, todavia, têm entretanto de viver e conser-
var-se por todos os meios de que dispõem, isto é, seguindo
e ESPINOSA

o impulso apenas do desejo, porquanto a natureza não lhes


deu nenhum outro meio e lhes negou o poder efetivo de vi-
ver segundo a reta razão; por conseguinte, são tanto obriga-
dos a viver segundo esta como um gato é obrigado a viver
segundo as leis da natureza do leão" (infra, cap. XVI, p. 309).
Como organizar então uma sociedade que não seja um con-
junto utópico de sábios? Como preservar a condição huma-
na, se esta é dominada por paixões que, no limite, a podem
destruir, e se a razão, podendo sugerir o que é necessário para
garantir a vida, não possui sobre os homens influência bas-
tante? Essa a questão política.
Aparentemente, não haverá nenhuma saída. Desvincu-
lado o direito natural de uma instância racional, fosse ela· a
inteligência ou a vontade divinas, ou ainda uma lei univer-
sal abstrata como aquela que funda o cosmopolitismo dos
estóicos, dir-se-ia que o estado de natureza se tornava insu-
perável. E, de fato, assim acontece, como Espinosa frisa ao
esclarecer a sua diferença diante de Hobbes. Há, portanto,
que analisar a uma outra luz o contratualismo que surge no
TT-P e que, coerentemente, desaparecerá no Tratado Políti-
co. Por outras palavras, é preciso situar a política de Espinosa
no campo estrito das paixões, que são, como vimos, o deno-
minador comum da natureza humana. Até porque "uma pai-
xão não pode ser contrariada ou suprimida a não ser por
uma paixão contrária e mais forte que a paixão a contrariar"
(Ética, IV, prop. 7).
Posto que a sociedade existe, os seus mecanismos cons-
titutivos devem procurar-se na natureza. Porque esta, se não
obriga a viver segundo a razão, obriga, no entanto, a viver.
Ora, é precisamente esse desejo de vida que leva a procurar
a segurança. Longe de ser o resultado de um cálculo deduti-
vo, como em Hobbes, o contrato é apenas o recurso natural-
mente encontrado para a preservação do ser humano. Co-
mo, de resto, poderia ser de outra forma, se "a lei universal
da natureza humana manda que ninguém despreze o que
considera ser bom a não ser na esperança de um bem maior
ou por receio de um maior dano" (infra, p. 311)? Se os ho-
mens cedem, pois, uma parte ou a totalidade do seu direito
TRATADO TEOLÓGICO-POIÍ11CO CI

natural, é porque, ainda aí, estão a afirmar a vontade de exis-


tir e a rejeitar um bem por amor de outro, sempre movidos
pela paixão do medo ou da esperança.
O problema, todavia, permanece. Uma sociedade só faz
sentido no pressuposto de uma certa constância e as paixões
são, por definição, inconstantes. Um Estado legitima-se na
base de um sistema universal de enunciados e a imaginação
é sempre particularizada. É, aliás, esse o motivo que leva Hob-
bes a fundamentar o Leviathan como instância racional des-
tinada a subordinar e a corrigir os efeitos nefastos das paixões.
Para Espinosa, porém, o contrato, sendo igualmente um arti-
fício, uma instituição humana, não deixa de ser mero registro
da situação real do homem, fruto das paixões do medo e da
esperança. Dito de outro modo, o contrato não resulta de
uma idéia adequada dos verdadeiros fins do homem, tal
como os enuncia a razão, mas sim de uma idéia inadequada
que se organiza à semelhança das idéias verdadeiras. A pro-
va está em que a cedência do direito natural não teria, em
nenhum caso, conseqüências se não fosse seguida de uma
atuação política secundada por recursos persuasivos. Tanto
na sua gênese como na sua atualização permanente, o equi-
líbrio passional que uma sociedade representa nunca remete
para dispositivos exógenos; pelo contrário, e porque a ficção
do contrato organiza as paixões em função da conservação
da vida mas não as suprime, o Estado enquanto garante da
segurança é, por essência, o ponto de refração dos conatus
individuais. A energia que o anima ~ ainda a da natureza, quer
dizer, o esforço para perseverar na existência e, por isso, ele
é intrinsecamente violento: qualquer que seja a sua gênese
ou discurso legitimador, o Estado forja-se sempre no domí-
nio da imaginação, projetando-se como potência extrínseca-
mente exercida sobre o agregado e, nessa medida, neutrali-
zando os efeitos destruidores contidos nas potências indi-
viduais obrigadas a coexistir. Tal como o Deus soberano da
Bíblia, o Estado é um efeito que se representa como causa
autonomizada e geradora do medo para corrigir o desequilí-
brio produzido pelo exercício do direito natural na comuni-
dade. E tal como acontece com a religião, que o entendi-
CII ESPINOSA

mento descobre ser fruto de uma ilusão mas que não pode su-
primir de todo sem suprimir a sujeição a Deus, isto é, a práti-
ca da justiça, sendo assim instado apenas a ajustar os dogmas
de fé a fim de reduzir até onde for possível o grau de passi-
vidade que implicam, também perante o Estado a razão per-
manece impotente, limitando-se a identificar o seu estatuto
como imaginação e a reconhecer nas diferentes formas que
ele assume diferentes graus de submissão dos indivíduos.
Porque a razão, já se disse, aponta para o verdadeiro fim
do homem - o conhecimento da sua condição como·modo
finito da substância infinita - conhecimento este que nem to-
dos perseguem, ao passo que todos buscam a preservação
de si mesmos. Claro que o verdadeiro fim não é incompatí-
vel com a autopreservação. Se todos conhecessem o verda-
deiro fim da vida humana, conheceriam também as vantagens
da entreajuda e o acréscimo de potência que advém ao agre-
gado se atuar de forma -organizada. Não é por acaso que Es-
pinosa diz que o sábio é o melhor dos cidadãos: se ele co-
nhece as vantagens do viver em sociedade, não atua por
medo ou interesse imediato mas persegue ainda a mesma fi-
nalidade, regido embora por outros motivos. O problema é
que, antes de mais nada, esse cidadão ideal não passa disso
mesmo, isto é, de um ideal de cidadão, visto a componente
afetiva dos indivíduos jamais se anular. E depois, se todos
atuassem em função do verdadeiro fim, o Estado seria des-
necessário, já que a colaboração mútua e a prática da justiça
decorreriam como um corolário do amor intellectualis Dei.
Mas são as paixões, não a razão, que dominam os homens,
as idéias da imaginação impregnam-lhe a mente e é no cam-
po da imaginação que vão emergir os mecanismos de "emen-
das" das paixões.
Na verdade, em que consiste essa componente passiva
ou passional do ser humano senão em "sermos uma parte da
natureza que não pode conceber-se por si mesma e sem as
outras" (Ética, IV, prop. 2)? Mais do que utópica, a constru-
ção do Estado assente na idéia de uma autonomia radical do
indivíduo resulta ontologicamente impossível, uma vez que,
conforme se diz na proposição seguinte, "é impossível que o
7RA TADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO cm
homem não seja uma parte da natureza e evite receber ou-
tras modificações além daquelas que podem compreender-
se unicamente pela sua própria natureza e de que ele é cau-
sa adequada". Tal interdependência, porém, se na totalidade
se apresenta como lei necessária de realização da potência
infinita, no nível dos indivíduos resulta numa ameaça ã sua
subsistência. Nem sempre. Os efeitos de um corpo sobre ou-
tro corpo, representando-se embora em idéias que são confu-
sas na medida em que indicam apenas o estado em que fica
o primeiro corpo, tanto podem revelar-se positivas, fazendo-
se acompanhar de sentimentos de alegria, como negativas,
fazendo-se então acompanhar de tristeza. Tudo depende
de haver ou não "conveniência" entre os corpos em contato:
se houver, o seu grau de potência sente-se reforçado; se não
houver, o contato torna-se obstáculo ao conatus e reduz o
ser do corpo mais fraco. Já referimos como o acaso desses
contatos, proporcionando, entre outras, relações de "conve-
niência", se tornava também a condição necessária para que
a razão chegasse à formulação das noções comuns. Mas, an-
tes, e à margem desse conhecimento do segundo gênero, é o
próprio desejo de sobrevivência, a lei da natureza, portanto,
que dita a procura de encontros "convenientes" e o seu pro-
longamento, ao mesmo tempo que sugere a fuga de contatos
de onde saía reduzida a própria potência. Obedecer, sendo
iniludivelmente manifestaçãô de passividade e dos limites da
potência individual, sendo, em suma, paixão, pode, nessa
perspectiva, não ser forçosamente uma paixão triste. E a ra-
zão, que identifica esse estado como resultante de um conhe-
cimento confuso, não 'pode deixar de reconhecer que atra-
vés dele se cumprem fins necessários. É por isso que a obe-
diência poderá estar de acordo com a reta razão, e é mesmo
nesses termos que Espinosa caracteriza o contrato. Não por-
que os homens sejam racionalmente levados a efetivá-lo, mas
porque as paixões desencadearam no seu movimento ilusó-
rio um equilíbrio que a razão ratifica como vantajoso. Pensar
de outra forma a política espinosista, associando-a a um con-
tratualismo estereotipado, é negar-lhe os seus mais importan-
tes esteios metafísicos.
CIV ESPINOSA

É este um dos pontos decisivos na interpretação do Tra-


tado Teológico-Político e convirá analisar um pouco mais por-
menorizadamente o seu alcance. Isso porque a abordagem
do tema, feita a partir do capítulo XVI, utiliza os conceitos ju-
rídicos já trabalhados, quer por Grócio, quer por Hobbes,
conforme sublinha Matheron (1984), mas arrasta-os para um
campo de significação que extravasa os limites que possuíam
em qualquer daqueles autores e se ajusta no interior do sis-
tema espinosista. Muito sucintamente, Grócio distingue, a
par da categoria geral do direito como qualidade daquilo
que se pode fazer sem injustiça, um direito subjetivo, tradu-
zido em "faculdades" individuais, e um direito objetivo, que
se identifica com a lei. O direito subjetivo apresenta-se, ora
como propriedade (o direito à própria pessoa, por exemplo),
ora como poder (o direito de decidir as próprias ações), ora,
finalmente, e em síntese das duas alíneas anteriores, como
simples direito que cada um tem a exigir o que lhe é devido.
Por sua vez, a lei ou direito objetivo exprime-se tanto no ins-
tinto de conservação como naquilo a que Grócio chama o
instinto (appetitus) de sociedade, que virá a tornar-se a pe-
dra angular de todo o articulado jurídico do De jure Belli ac
Pacis. G. Gurvich caracteriza-o assim: "segundo Grócio, o in-
divíduo, mesmo no estado de natureza, está sempre ligado a
um todo social. A sua posição é decididamente a de um an-
tiindividualista. O seu ponto de partida não são os elementos
componentes mas o todo, não são os indivíduos mas o cos-
mos social, a natura societatis (. .. ). Com Aristóteles, afirma
que o homem é por essência animal político e que a sua
qualidade predominante é o appetitus societatis, sendo im-
possível imaginar o indivíduo fora dos liames que o ligam ao
todo" (Gurvich, 1932, pp. 176-7). É claro que o instinto indi-
vidual de conservação dita a sua lei, mas esta é apenas uma
lei moral, sem significado propriamente jurídico, que Gro-
cius interpreta, à maneira dos estóicos, como uma espécie de
racionalidade subjacente ao universo e a cada ser, e que "te-
ria sempre cabimento mesmo que concordássemos que Deus
não existia ou que os assuntos humanos não eram objeto
dos seus cuidados" (De jure Belli ac Pacis, Pról., § 11). O mes-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO CV

mo se passa, em certos casos, no plano das relações entre vá-


rios indivíduos, no qual o instinto de sociedade também im-
plica algumas leis sem transposição jurídica, como, por exem-
plo, o reconhecimento a manifestar por uma benfeitor. Mas
o direito objetivo propriamente dito só começa quando esta-
mos perante obrigações que correspondem ao direito subjeti-
vo de outrem: o respeito pela propriedade alheia, a fidelida-
de às promessas e a reparação dos danos causados.
A lei natural é, portanto, objetivamente, um sistema de
interlimitações dos direitos subjetivos dos vários indivíduos,
racionalizando assim a atividade do conjunto. Qual a origem
desses direitos objetivos ou "faculdades"? Para Grócio, só po-
der ser Deus, que criou a natureza humana, dotando-a de
corpo e alma, corpo de que cada um fica proprietário e alma
que é livre, isto é, que tem o poder de orientar como quiser
as respectivas ações. A propriedade do corpo é inalienável; a
de orientar as ações, pelo contrário, é alienável, tal como a
propriedade dos bens materiais, que Deus terá doado à hu-
manidade e esta repartiu depois entre os seus elementos pri-
mitivos, ficando de herança aos sucessores. É nesse espaço de
direitos alienáveis que se abre a possibilidade de estabelecer
contratos, aos quais o direito objetivo oferece um quadro ade-
quado em que a razão vai buscar as bases do direito positivo
por que passa a regulamentar-se o instinto de sociedade.
Sobre essa matriz de jusnaturalismo clássico, Hobbes vai
operar a mais significativa ruptura ao reduzir todas as incli-
nações ao instinto de conservação, fundamentando neste,
quer os direitos subjetivos, quer o direito objetivo. A aliena-
ção da liberdade ou de qualquer bem passa então a ter como
único móbil a preservação do próprio ser; conseqüentemen-
te, ninguém está por natureza obrigado a respeitar os direi-
tos alheios, a partir do momento em que se recusa a existên-
cia de qualquer instinto de sociedade. Se há limitações para
o instinto de conservação, só podem derivar dele mesmo, na
medida em que recusa ao indivíduo o direito de não fazer
tudo para continuar na existência. Daí o artificialismo dos con-
tratos, sempre baseados num cálculo de benefícios e numa
transação ou "transferência mútua" de direitos subjetivos. Na
CVI ESPINOSA

verdade, como Hobbes refere ao longo do capítulo XIV do


Leviathan, há uma distinção a fazer entre o direito natural,
"liberdade que cada um tem de usar o seu poder, como qui-
ser, para preservar a sua própria natureza", e a lei natural,
que é "um preceito ou regra encontrada pela razão que proí-
be ao homem fazer aquilo que for destrutivo para a sua
vida". Ora, como o simples direito natural, agora assumido
em plenitude e reconhecendo a cada um o direito a tudo ex-
ceto a não sobreviver, contém em gérmen a mútua destrui-
ção através do conflito, torna-se um preceito da razão os ho-
mens esforçarem-se pela paz. E Hobbes acrescenta: "desta
lei fundamental da natureza (. .. ) deriva uma segunda, a sa-
ber, que o homem se disponha, quando outros estiverem
igualmente dispostos, a renunciar ao seu direito a qualquer
coisa, em benefício da paz e da sua própria defesa". Há,
pois, obrigação de respeitar os contratos, porque eles estão
racionalmente justificados, ainda que, ou até porque, essa ra-
cionalidade tome como premissa o instinto de conservação.
Quem transfere um direito deixa, logicamente, de o possuir.
A não ser - e aqui, Hobbes põe novamente reservas a Gró-
cio - que o contrato ponha a minha vida em perigo, coisa
que ninguém pode realmente querer, ou que haja a suspeita
de que o segundo contratante não tem a intenção de cum-
prir, como acontece com a maioria dos contratos no estado
de natureza, os quais são nulos por não haver nenhum moti-
vo para acreditar que alguém, sem um poder que obrigue,
irá respeitar o prometido. Mas, ainda aí, se houver autêntica
reciprocidade, eles serão, para Hobbes, absolutamente váli-
dos: se alguém, para se livrar de um ladrão que o ameaça de
morte, lhe prometer qualquer coisa, estará obrigado a honrar
o compromisso, mesmo quando já estiver em condições de
segurança que lhe permitiriam não cumprir (cf., sobre toda
esta questão, Leviathan, cap. XIV, p. 126).
O contratualismo de Espinosa, desenvolvido no capítulo
XVI do TT-P, parte do mesmo pressuposto de Grócio de que
o direito natural objetivo são as leis segundo as quais os in-
divíduos existem e agem; reduz depois, com Hobbes, "todas
as inclinações ao instinto de conservação; e faz, finalmente,
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍ11CO CVII

contra Hobbes, coincidir o direito e a lei natural. Vejamos


como se processa essa reviravolta e as conseqüências que
acarreta. Concordando com Grócio, Espinosa aceita que há
leis inscritas na natureza dos homens. Tais leis, porém, não as
considera como leis morais, mas sim como leis físicas a que
se subordina a atuação de todos os indivíduos. Depois, uma
vez mais secundando Grócio, Espinosa aceita que a fonte dos
direitos subjetivos é Deus. No entanto, recusa que tenha sido
por uma dádiva divina qualquer que esses direitos passaram
a assistir aos homens, como pensa Grócio: são direitos de cada
um, é verdade, mas porque cada um é uma modificação do
Deus sive natura, não sendo os direitos subjetivos de Deus
mais do que a soma dos direitos subjetivos de todos os indi-
víduos. Por outras palavras, não houve transferência, há ima-
nência e, por isso mesmo, esses direitos são de natureza físi-
ca e não moral, já que não derivam de Deus mas são de
Deus. Só assim se explica que Espinosa considere, a esse
respeito, que os homens são, não só iguais entre si, mas tam-
bém iguais a qualquer outro ser. O direito de cada um equi-
vale à sua potência, o que implica, de acordo agora com
Hobbes, que a natureza não prescreve o respeito pelos direi-
tos alheios. Porém, se a lei da natureza é que cada um faça
tudo quanto estiver ao seu alcance para se manter, ent;iio
cada um faz sempre tudo quanto pode em ordem a essa fi-
nalidade decorrente da definição do seu próprio ser. A hipó-
tese de alguém não querer fazer uma coisa que tem o direi-
to de fazer está, pois, liminarmente afastada: se não quer é
porque realmente não pode, visto na natureza não existir meio-
termo entre o necessário e o impossível (cf. Matheron, 1984,
pp. 77-8).
As implicações dessas premissas no contratualismo são
flagrantes. Espinosa explicita-as de uma forma que diríamos
quase intempestiva: "um pacto não pode ter nenhuma força
a não ser em função da sua utilidade; desaparecida esta, ime-
diatamente o pacto fica abolido e sem eficácia. É por isso
que será insensatez uma pessoa pedir a outra que jure para
todo o sempre, sem tentar, ao mesmo tempo, fazer com que
a ruptura desse pacto traga ao que o romper mais desvanta-
CVIII ESPJNOSA

gens que vantagens. Isso é de importância capital na funda-


ção de um Estado" (infra, p. 312). E Espinosa pega também
no exemplo do ladrão, em nítida réplica ao Leviathan, para
lhe atribuir uma conclusão exatamente oposta à de Hobbes:
ninguém está obrigado a respeitar compromissos que deixa-
ram de ser necessários; não há, em suma, lei natural para
além do direito natural. Mais ainda, ninguém efetivamente
cumpre um contrato se dele não continuar a esperar nenhum
benefício, ainda que seja outro que não o contratado, nem ti-
ver medo de represálias pela negligência. Com efeito, e dado
que o direito natural coincide com a potência, se um contra-
to é transferência mútua de direitos, é também transferência
de potência ou poder; a partir do momento em que alguém
tem o poder de fazer algo que o contrato lhe proíbe é por-
que tem também novamente o direito de o fazer.
Posta nesses termos, a questão altera-se radicalmente e,
a bem dizer, já nem sequer se deveria falar de contrato. Espi-
nosa assume essa conseqüência no Tratado Político, razão
por que alguns intérpretes vêem no TT-P vestígios de um
pensamento político ainda em maturação. Se repararmos, po-
rém, a alteração é, pelo menos nesse particular, irrelevante.
Que significado pode, na realidade, ter uma transferência de
direitos concebida como uma transferência de poder? Não fi-
cará cada indivíduo idêntico a si mesmo após o contrato?
Não será este apenas uma manifestação da sua vontade em
ordem a um benefício considerado útil? Não terá essa vonta-
de a cada instante de ser reativada, seja pela permanência da
esperança de uma vantagem, seja pelo medo de um prejuí-
zo? Se assim é, a irreversibilidade do contrato não passa de
pura ficção, cedência imaginária de poderes cujos efeitos são
reais mas cessam assim que deixamos de acreditar na sua cau-
sa. O soberano possui, de fato, o direito de determinar as
ações dos súditos, só porque e enquanto tem poder sobre as
suas vontades, poder este que não lhe adveio de um imagi-
nário contrato social, mas de um consentimento que ele terá
a cada instante de "renegociar", isto é, de reativar pela espe-
rança e o medo que consiga incutir. Tanto faz serem contra-
tos no plano interno como no plano externo, a sua essência
TRATADO TEOLÓG/CO-POLÍ11CO CIX

é sempre a de um ritual em que se esconde uma correlação


de interesses e uma correlação de forças. Soberano e súditos,
dizendo atuar em conformidade com o contrato, atuam de
fato em conformidade com a respectiva potência. Assim que
a correlação mudar de sinal, ou que as paixões mudarem de
rumo, desaparecendo, por exemplo, o medo ao soberano,
cada um sentir-se-á juridicamente independente e apto a ce-
lebrar novos contratos em que se exprima a nova situação. E
nem sequer, note-se, se passa aqui para o plano de uma ra-
cionalidade qualquer que denuncie o caráter dessas correla-
ções, sempre "violentas" porque sempre passionais e funda-
das numa tensão entre duas ou mais forças. No domínio estri-
tamente político, as formas de poder mantêm-se ou sucedem-
se em função apenas da sua capacidade de dominação, que
o mesmo é dizer, da sua capacidade para arrancar, a bem ou
a mal, aos subordinados a reiteração de um contrato imagi-
nário que os confirma como subordinados. La Boétie viu cor-
retamente que essa situação era insuportável e incompreen-
sível numa perspectiva racional: o que não viu foi que ela
decorre integralmente num outro campo, que ela indica uma
situação de que não exprime a verdadeira causa, que ela é,
em suma, pura imaginação a trabalhar e a moldar a realida-
de, gerando correlações de força que podem mudar porque
têm origem passional mas que nem por isso são menos mo-
bilizadoras e eficazes.

2. O Estado ideal

Atente-se, por um instante ainda, nessa rasura produzi-


da sobre o significado do contrato, o qual, depois de o ligar à
natureza, o faz coincidir integralmente com ela, esvaziando-
º do seu conteúdo tradicional e deixando-o a pairar como
um significante sem lastro de que se pode prescindir mal aca-
be o confronto com as teses de Grócio e Hobbes. Com toda
a nitidez, espelha-se aqui a concepção política de Maquiavel,
a quem Espinosa vê como autor accutissimus. No Tratado Po-
lítico, em que se procede a uma análise, incompleta, como
ex ESPINOSA

se sabe, das várias formas de Governo ou regimes, acentuar-


se-á ainda mais esse caráter realista que leva o autor a insur-
gir-se contra os filósofos que passam o tempo a dizer bem
da "natureza humana que não existe e mal daquela que exis-
te" (7P, cap. I). Mas, já no Tratado Teológico-Político, a ques-
tão é clara: em política, trata-se da "comum natureza humana",
ou do "vulgo", sempre dominado por paixões. No estado de
natureza, essa situação apresenta-se como um desequilíbrio.
Porém, a sua correção não significa nenhuma recusa do pas-
sional: o contrato é ainda, e unicamente, afirmação da vonta-
de de sobrevivência e segurança, desviada embora do rumo
cego que a conduziria à própria negação. Por isso, os meca-
nismos políticos, na medida em que visam a segurança que a
"comum natureza humana" deseja, estão intrinsecamente li-
mitados aos recursos dessa natureza: a correção da força ou
potência dos indivíduos, majoritariamente dominados por
paixões, só pode fazer-se pela força. O medo da morte resul-
tante das forças em desordem neutraliza-se pelo medo de
uma força organizada.
Através desse mecanismo, o Estado estabelece artificial-
mente um equilíbrio e garante a coexistência, cumprindo as-
sim o seu objetivo essencial que é a segurança e a sobrevi-
vência que por natureza todos desejam. Mas tal objetivo é,
por assim dizer, um objetivo mínimo. Repõe a igualdade on-
tológica dos indivíduos enquanto parte da mesma natureza,
mas não atende, por definição, à sua individualidade, isto é,
à sua diferença. Está, portanto, longe de corresponder ao ideal
do "Estado mais conforme com a natureza". Para que esse se
realize, é necessário que à garantia de segurança se acrescen-
te a garantia da diversidade. É disso que tratam os últimos
capítulos do TT-P.
Com extrema freqüência, o Estado livre ou Estado demo-
crático tem sido entendido como um Estado de homens li-
bertos da ilusão e da superstição, capazes, portanto, de equa-
cionar racionalmente e pôr em prática um plano de convi-
vência. O pressuposto dessa interpretação é, evidentemente,
a dialética que se estabelece entre a razão e as paixões, asso-
ciando-se estas ao estado de natureza e aquela à progressiva
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO CXI

correção dos afetos. No entanto, isso não explica, ou explica


com dificuldade, a já aludida distinção reivindicada por Espi-
nosa relativamente a Hobbes, segundo a qual o estado civil
não seria mais do que a continuação do estado de natureza
por outros meios 1 • Dir-se-á, talvez, que a conclusão a extrair
é a de que o Estado verdadeiramente livre será sempre im-
possível, o que até certo ponto é verdade, mas nesse caso re-
cai sobre muitas passagens a suspeita de serem também de
um filósofo que "diz bem da natureza que não existe e mal
da que existe". Sem contar com a evidência de que falar de
um Estado livre no sentido de um Estado de cidadãos que
eliminaram a superstição e a imaginação é falar de uma coi-
sa que, além de desnecessária, seria contraditória com a na-
tureza humana tal como Espinosa a define. Por muita espe-
culação que se possa tecer em torno do que seria a democra-
cia que ficou por descrever no Tratado Político, não parece
que a possamos imaginar como uma negação de tudo quan-
to aí se diz sobre os dois outros tipos de regime - a monar-
quia e a aristocracia - e sobre a política em geral.
Voltemos, então, ao ponto de partida. O problema que
referimos era o da constituição de um Estado que, além da
segurança, garantisse também a diversidade, corresponden-
do assim à verdadeira natureza dos indivíduos, os quais, se
têm todos em comum o serem modos da substância infinita
e afirmarem-se como potência que tende a perseverar, têm
também algo de específico que diferencia cada um de todos
os outros. Essa diferença baseia-se, como sabemos, no grau
de potência, ou melhor, na proporção de potência e impo-
tência, de atividade e passividade, que cada um atualiza. Nos
seres humanos, isso significa, a par das desiguais capacida-
des do corpo, o desigual nível de sujeição às paixões e de li-

1. "Quantum ad Politicam speetat, discrimen inter me et hobbesium,


de quo interrogas, in hoc consistit, quod ego natura/e jus semper sartum tec-
tum conseroo, quodque Supremo Magistratui in qualibet Urbe non plus in
subditus juris, quam iuxsta mensuram potestatis, qua subditum superat, com-
petere statuo, quod in statu Naturali semper locum habet" (Correspondência,
ed. Geb., vol. IV, pp. 238-9).
CXII ESPINOSA

berração racional. É da natureza dos homens estarem sempre


sujeitos a um certo grau de ilusões e conhecimentos confu-
sos, mas é também da sua natureza a possibilidade de conhe-
cimentos adequados em que se traduz a maior ou menor ati-
vidade do entendimento. A discussão em torno do Estado
reside em saber se ele radica nessa atividade racional que
chegaria a deduzir as regras de coexistência e contenção das
paixões. Para Espinosa, como julgamos ter mostrado, essa de-
dução é possível mas inacessível à maioria e, por conseguin-
te, sem pertinência política. A única coisa que é comum a to-
dos é a componente passional e a busca de segurança, e é aí
que tem de esboçar-se a ordenação da pó/is, ordenação ex-
clusivamente virada para determinados bens e comodidades e
não para o verdadeiro bem que a razão aponta. Não se trata,
repetimos, de dois objetivos contrários, já que o verdadeiro
bem inclui os outros bens necessários e, por isso, o sábio se
comporta como o melhor dos cidadãos, mas trata-se de dois
objetivos que apelam para diferentes recursos.
Vimos ainda como o mecanismo que garante a seguran-
ça se constrói numa base de força ou de paixões contrapos-
tas. Aparentemente, tudo indicaria que o mecanismo capaz de
garantir a diversidade teria de se construir com base na anu-
lação da força, de modo que a razão pudesse livremente se
exercitar. O Estado, porém, é sempre força e violência, sob
pena de não garantir o seu primeiro objetivo que é a segu-
rança. A única variação possível a esse respeito só é pensá-
vel em termos de maior ou menor mediatização da força. No
limite, poderemos supor um Estado em que todos sejam le-
gisladores e intérpretes da lei, que o mesmo é dizer, cúmplices
na definição dos atos sobre os quais poderá recair a violên-
cia estatal; o que não podemos é supor um Estado constituí-
do apenas por cidadãos com um domínio das paixões sufi-
ciente para se guiarem pela razão. Porque o objetivo do Es-
tado não é tornar os homens mais racionais, mas unicamen-
te fazer com que á mente e o corpo possam exercitar as suas
funções em segurança. Entre a ordem da verdade e a ordem
prática, vai um abismo cuja pretensa transposição é pura e
desnecessária violência. E tanto se poderá transpô-lo através
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO CXIII

da repressão das opiniões, modulando a polis segundo o re-


gistro da univocidade, como, em sentido oposto, através da
abolição do Estado e da alegada conversão da ordem prática
e passional em transcendência sem mediação. O objetivo do
Estado é, pois, a liberdade (cf. infra, p. 367), mas uma liber-
dade entendida como salvaguarda do sábio e do ignorante,
da razão e das paixões. Só nessa medida ele é conforme à na-
tureza, garantindo a segurança e a diversidade.
Poderá pensar-se, ainda aqui, que essa é tarefa da razão,
porquanto a verdadeira identificação do ser humano como
modo finito leva a reconhecer o inelutável quociente de pai-
xões que o atravessam e aconselha uma atitude de tolerância.
De que meios, porém, se serviria a razão para tutelar a diver-
sidade? O sábio, evidentemente, conhece em si mesmo as
vantagens do viver em sociedade, onde é tanto maior a pos-
sibilidade de se aperfeiçoar racionalmente quanto menor a
adversidade das coisas. O problema é que, para o sábio atuar
politicamente, ou espera que os outros atinjam idêntico do-
mínio sobre as paixões ou renega a razão e assume-se como
violência. A história ilustra abundantemente esse dilema.
E, entretanto, os regimes não se equivalem, o que signi-
fica que eles são sempre passíveis de aperfeiçoamento. No
nível de cada indivíduo, ou seja, no plano particular, o aper-
feiçoamento faz-se por um progressivo acréscimo de conhe-
cimentos adequados, reduzindo, portanto, a percentagem de
passividade e conhecimentos confusos na sua mente. No ní-
vel do Estado, cujo processo decorre integralmente da au-
sência de um conhecimento do verdadeiro bem, o aperfei-
çoamento só pode dar-se mediante alterações no mecanismo
passional. Já a própria constituição do Estado, a política num
grau elementar, é conquista da obediência através do medo:
é o medo da morte que transforma a vontade de viver em
vontade de obedecer, é o medo de uma potência superior
que reatualiza permanentemente os efeitos do contrato, essa
alienação de direitos que mais não é do que a transposição
imaginária de uma tensão real entre soberano e súditos. Nem
sempre, porém, é necessário que os cidadãos obedeçam por
medo: podem também fazê-lo na esperança de um maior
CXIV ESPINOSA

bem. Dito de outro modo, e seguindo a análise de Corsi (pp.


33-59), a correção dos afetos é suscetível de um escalonamen-
to em que, sem se passar o limiar que separa as paixões da
razão, se pode, no entanto, ir reduzindo o nível de coação e
incrementando, em contrapartida, uma maior adesão. Uma
coisa é obedecer para não ser punido, outra coisa é obede-
cer com o intuito de alcançar algum benefício. O que se subs-
titui é apenas a paixão do medo pela paixão da esperança,
mas é inegável que um Estado fundado nesta última garante
uma participação dos cidadãos que é, não só mais elevada,
como também qualitativamente superior. A superioridade da
democracia assenta, pois, quer nos fins que realiza e que tra-
duzem a diversidade natural dos indivíduos, quer nos recur-
sos passionais que utiliza.
Em certo sentido, a redução da coação chegaria, no li-
mite, a anular a própria obediência, atingindo-se então a de-
mocracia plena, regime em que cada um não obedeceria se-
não a si mesmo. Espinosa apresenta, inclusive, no capítulo
XVII do TT-P, um exemplo histórico dessa democracia ideal
que é significativo a vários títulos. Trata-se da narrativa bíbli-
ca em que se descreve a fundação do primeiro Estado he-
breu: saídos do Egito, desvinculados de qualquer jurisdição,
os judeus decidem transferir todo o seu direito, não para qual-
quer mortal, mas unicamente para Deus. A interpretação es-
pinosista remete-nos, obviamente, já para o fato de não haver
intermediários nesse sistema, já para a natureza desse Deus
com quem se contrata: se todos são partes de Deus, transfe-
rir para Deus o seu direito equivale a não o alienar. Mas o
que é significativo notar é que, por um lado, a ocorrência é
vivida pelos hebreus como um verdadeiro contrato, o que
significa que o Estado é, ainda aí, fundado imaginariamente,
sem que os seus membros vejam na autonomia assim esbo-
çada senão a ausência de mediadores entre eles e Deus; por
outro lado, se repararmos no desfecho da mesma narrativa,
verificaremos que os seus intervenientes se revelam incapa-
zes dessa autonomia: a primeira vez que ouvem diretamente
de Deus a lei, ficam aterrados e confiam-se à proteção de
Moíses, o qual fica de imediato constituído como mediador
TRATADO TEOLÓGJCO-POIÍTICO cxv
entre Deus e os homens, isto é, como "intérprete" das leis. A
natureza dos homens, ou, pelo menos, a natureza comum dos
homens, capaz embora de antever a libertação total, fica, to-
davia, tolhida pela paixão do medo e muda o curso do seu
instinto de sobrevivência entregando as tábuas da lei nas mãos
do líder (cf. infra, p. 328).
Por impossibilidade absoluta da democracia? Nem tanto.
Talvez apenas por impossibilidade dessa democracia absolu-
ta que assoma como ideal e se projeta para lá da própria po-
lítica na medida em que pressupõe cidadãos com um domí-
nio extremo das paixões, o que está longe de se verificar na
realidade comum. O Estado ideal que Espinosa reivindica é
outro e conhece os limites que se põem ã ação política. Tal
como não pode fazer dos homens sábios, também não pode
impedir que cada um deles se aperfeiçoe na sabedoria. Por
isso, a sua constituição ressalva a diversidade, acautelando a
livre expressão de doutos e ignorantes. Mais do que isso, a
razão não lhe pode exigir.
V. O texto e a tradução

O Tratado Teológico-Político está longe de poder consi-


derar-se literariamente exemplar, mesmo que reduzido o
universo de comparação ao que é normal no latim da Esco-
lástica. A sua sintaxe, a maioria das vezes, é estereotipada; o
vocabulário é reduzido e freqüentemente contaminado por
neologismos trazidos das línguas modernas ou do hebraico;
as copulativas e adversativas surgem como recurso extremo
e repetitivo a ordenar a difícil transposição da doutrina para
um idioma de que o autor não domina a imensa gama de vir-
tualidades. O rigor dedutivo, porém, não conhece brechas e,
como se isso não bastasse, há ainda o impressionante lastro
experiencial que se lhe acrescenta e que denota uma obser-
vação atenta da realidade política européia, designadamente
a holandesa, caldeada em madura reflexão sobre o destino
do povo hebreu. Só assim se explica a riqueza das metáforas
e aproximações surpreendentes e a veemência de alguns ad-
jetivos ditados pelo contexto histórico, onde se revela um Es-
pinosa completamente diferente daquele a que nos habitua-
ra a sobriedade do more geometrico e que, fora deste livro,
não encontraremos senão em alguns dos escólios da Ética.
Quer o ambiente que o rodeia, quer a atitude do autor
sobressaem na história do livro. Dele ficaram, além da editio
princeps, mais quatro edições antigas. Aquela apareceu anô-
nima em Amsterdam, no ano de 1670, escondendo inclusive
o verdadeiro nome do editor e o lugar ~a edição. Até finais
CXVIII ESPINOSA

da década, vma a conhecer mais três edições em quarto e


uma em oitavo. Esta última traz, além do livro de Espinosa, o
já mencionado de L. Meyer sobre o mesmo assunto, e sai em
1674. Sobre ela se abaterá, no mesmo ano, uma proibição das
Cortes de Holanda, que abrange também o Leviathan, tradu-
zido para o holandês em 1667 e para o latim em 1668. A sua
difusão far-se-á, entretanto, em sucessivas edições com os
mais diversos títulos e nomes de autor (cf. Boscherini, 1984, pp.
XXIV-XXXV). A versão que aparece nas várias edições das
"obras completas" publicadas no século XIX, desde a de H.
E. G. Paulus (Hiena, 1802-1803) até a de Van Vloten e Land
(Haia, 1882), estão baseadas numa ou noutra dessas edições.
Só a de Gebhardt (4 vols., Heidelberg, 1924) se baseará na
edição princeps.
Dadas as características que referimos, o texto coloca al-
guns problemas ao se estabelecerem critérios para a sua tra-
dução. A demonstrá-lo, aí estão as experiência realizadas em
outras línguas. Submetermo-nos a um literalismo abstinente
em matéria de interpretação seria condenar a reconhecida
pobreza do latim do Tratado a sobreviver pobremente, ain-
da por cima num contexto cultural diferente daquele a que
foi destinado e que o entendia como código de fácil e relati-
vamente comum decifração. Entregarmo-nos, pelo contrário,
à tentação de evidenciar um pensamento que manifestamen-
te extravasa da magreza de recursos literários era meter pe-
los caminhos escorregadios em que alguns soçobraram. A
solução aqui adotada, nesta primeira versão da obra em por-
tuguês, teve por intuito reconstituir tanto o pensar como o
sentir do autor, na medida e nos limites em que tal desígnio
fosse realizável no interior de uma outra língua e de uma ou-
tra época. Para tarito, foi necessário, antes de mais, partir do
princípio de que as fugas ao texto através de circunlóquios,
que são freqüentes em algumas traduções anteriores, derivam
de uma interpretação que se quer sobrepor ao original ou,
na melhor das hipóteses, de limitações intrínsecas ao idioma
em que foram feitas. A proximidade do latim a que está o por-
tuguês facilita, evidentemente, essa tarefa, sobretudo num mo-
mento em que a revitalização dos estudos espinosistas come-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO CXIX

ça a permitir descobri-lo por debaixo das sucessivas camadas


ideológicas que o haviam transfigurado. A fidelidade ao tex-
to constituiu, pois, a nossa primeira preocupação, sem desis-
tir, no entanto, de o dar a ler, aqui e agora. Não fomos, por
exemplo, ao extremo de respeitar a pontuação, ou melhor, a
sua escassez, como tem sido prática habitual e, em nosso en-
tender, injustificada. Se não se trata de obra com propósitos
literários, para que manter a apresentação que ele tem no la-
tim, em que os parágrafos se prolongam por dezenas de pá-
ginas porque destinados a um tipo de leitura que, manifesta-
mente, já não é o de hoje? Por outro lado, havia que ter em
conta a progressiva clarificação que alguns conceitos, sobre-
tudo no campo político, foram entretanto conhecendo. É, de
resto, a própria diversidade de contextos em que palavras
como Respublica, societas, potestates, etc., aparecem no Tra-
tado que sugere a necessidade de eles serem diversamente
traduzidos, recorrendo à precisão terminológica com que
passamos a designar as realidades aí mencionadas. Fora dis-
so, recusamo-nos sempre a desfigurar o original, poupando-
º à desnecessária intromissão de interpretações que, mesmo
quando ajustadas, pudessem ser remetidas para as notas que
vêm no fim. Estamos mesmo convictos de que, sempre que
tal foi tentado (exemplo flagrante: traduzir o título da obra
por Tratado das Autoridades Teológica e Política) se restrin-
giu sem vantagens o campo de significação de enunciados
que, traduzidos à letra, não só continuam a entender-se cla-
ramente, como ainda evitam as malhas sempre duvidosas da
univocidade.
Outra dificuldade com que deparamos reside na tradu-
ção das inúmeras citações bíblicas que povoam o Tratado.
Recorrer às versões da Escritura disponíveis em língua portu-
guesa era impossível: primeiro, porque em mais do que uma
das passagens citadas a referência não é exata, seja por erro
na transcrição tipográfica, seja por descuido do autor; segun-
do, porque a fonte de Espinosa é, para o Antigo Testamento,
o texto em hebraico sancionado pela tradição rabínica, como
se vê até pela diferente designação de alguns livros, e, para
o Novo Testamento, uma outra versão que não a Vulgata,
cxx ESPINOSA

provavelmente a de Xantes Pagnini; em terceiro e decisivo


lugar, porque mesmo ante a Vulgata as traduções correntes,
talvez no intuito de tornar a Bíblia acessível ou de a ajustar à
interpretação oficial desta ou daquela Igreja, estão por vezes
longe de corresponder ao texto de São Jerônimo. Decidimos,
por isso, traduzir, pura e simplesmente, as citações tal como
Espinosa as apresenta em latim, respeitando mesmo as refe-
rências e as abreviaturas de cada um dos livros, salvo em ca-
sos de manifesto lapso já anteriormente detectado ou por nós
agora apurado, sem a pretensão de ter posto fim a um traba-
lho de erudição que estaria fora do nosso alcance e do nos-
so propósito. Não cremos, aliás, que algo de muito importan-
te para a compreensão do TT-P passasse por aí.
Vão no mesmo sentido as notas alusivas a cada capítulo
que inserimos no final deste trabalho. Rejeitando o desafio a
uma erudição que, por infindável, se converteria em verti-
gem, tentamos sobretudo que elas fossem um complemento
daquilo que nesta introdução ficou dito. Mais do que a loca-
lização exata de todos os exemplos bíblicos e a reconstrução
de quantas controvérsias historicamente verificadas se refle-
tem no Tratado, interessou-nos situar a posição de Espinosa
no contexto filosófico e cultural que é o seu, não ignorando,
todavia, as profundas implicações teológicas aí em jogo. Se o
pretender, o leitor interessado encontrará na já citada versão
italiana que é assinada por António Droetto e Emilia Bosche-
rini um manancial até hoje insuperado de informações a esse
respeito.
A tradução que segue está baseada na edição apresenta-
da em 1924 por Gebhardt (Opera, III, pp. 3-267; paginação
dada à margem), incluindo as 39 anotações atribuídas ao au-
tor que nessa vêm a partir da página 247 e que optamos por
inserir em rodapé, a par das que já constavam na edição prin-
ceps. As primeiras estão sinalizadas por um ponto preto ( •)
enquanto para estas últimas utilizamos o asterisco (*) com que
as assinala a edição Gebhardt. Refira-se ainda que aquelas 39
Adnotationes ad Tractatum Tbeologico-Politicum resultaram
da sinopse realizada pelo mesmo Gebhardt de um texto lati-
no encontrado e publicado em Haia, em 1802, pelo bibliófi-
TRATADO TEOLÓG/CO-POLÍ11CO CXXI

lo alemão C. T. de Murr, e de acrescentos inseridos, em fran-


cês, na tradução do TT-P feita por G. Saint-Glain - intitulada
La Cleft du Sanctuaíre (Leiden, 1678) - e, em holandês, num
manuscrito da autoria de]. Monnikhoff (1707-87) que conti-
nha também a biografia de Espinosa escrita por]. Colerus' e
um resumo do Curto Tratado. A tradução das frases em fran-
cês, como das raras que Gebhardt recolheu do holandês,
vem aqui inserida entre colchetes.

DIOGO PIRES AURÉLIO

1. Existe uma tradução em português desta biografia, com o título de


Vida de Bento Espinosa, feita por joão Lúcio de Azevedo e publicada, em
1934, em Coimbra.
BIBLIOGRAFIA

Além das obras referenciadas, tanto na introdução como


nas notas ao texto de Espinosa, incluímos aqui algumas outras às
quais o presente trabalho fica também a dever. Para uma consi-
deração mais exaustiva dos comentários sobre o autor, vide Jean
Préposiet, Bibliographie Spinoziste, Paris, 1973, ou ainda o livro
de H. G. Hubbeling, a seguir citado, que inclui abundantes da-
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CRONOLOGIA

1632. Nasce em Amsterdam, em 24 de novembro, Baruch (ou


Benedictus) Espinosa, de uma família, de origem ibéri-
ca, de prósperos comerciantes, cristãos novos reconver-
tidos ao judaísmo quando se refugiaram na Holanda,
país calvinista ortodoxo e uma das únicas repúblicas
européias. Nessa época a Holanda vivia seu "século de
ouro", tornava-se uma nação rica e poderosa, desenvol-
vendo-se econômica, política e culturalmente; por isso
foi também um período marcado por conflitos exter-
nos (lutas com outros países pela hegemonia marítima
e invasão às colônias espanholas) e internos (luta pelo
poder entre o partido orangista, calvinista ortodoxo, e
o partido republicano, calvinista liberal).
1639-50. Estuda na escola judaica de Amsterdam, onde, de
início é educado de acordo com uma linha mais liberal
e humanista do judaísmo e, mais tarde, segundo o ju-
daísmo ortodoxo. Nesses anos aprende hebreu e entra
em contato com as obras dos mais importantes pensa-
dores judeus (Abraão Ibn Ezra, Maimônides, Leão He-
breu, Chasdai Crescas, Delmedigo, Gersônides, e os ca-
balistas).
1648. O Tratado da Vestfália põe fim à Guerra dos Trinta Anos.
As Províncias Unidas (das quais a Holanda1 faz parte)
assinam um tratado de paz separadamente, em que é
reconhecida sua independência.
cxxx ESPINOSA

1652. Espinosa começa a seguir os cursos de Francis van den


Enden, ex-jesuíta, livre-pensador, estudioso da filosofia
clássica, poeta e dramaturgo, com quem estuda latim, gre-
go, ciências naturais, filosofia neo-escolástica, e filosofia
e ciências cartesianas.
Início da primeira Guerra Anglo-Holandesa, motivada
pela disputa da hegemonia marítima, e que durará até
1654.
1653. Jan de Witt torna-se grande-pensionário da Holanda.
1654. Morre o pai de Espinosa, de cujos negócios Espinosa e
seu irmão já se ocupavam; segue-se uma disputa com
uma de suas irmãs pela herança do pai, ã qual Espinosa
acaba por renunciar, apesar de ter ganho de causa.
Espinosa começa a lecionar na escola de Van den Enden.
1655. Começa a freqüentar reuniões de judeus liberais críticos,
como os seminários filosóficos promovidos pelo médi-
co Juan de Prado e pelo poeta Daniel Ribera. É acusa-
do de heresia pela comunidade judaica holandesa, fa-
nática e ortodoxa, que se contrapõe aos judeus recon-
vertidos (ex-cristãos novos), de formação mais huma-
nista e liberal.
1656. Um judeu fanático tenta assassinar Espinosa.
Em julho Espinosa é excomungado e expulso da comu-
nidade judaica de Amsterdam, por ter idéias considera-
das heterodoxas e por suas ligações com livres-pensa-
dores.
1656-58. Expulso da comunidade judaica, Espinosa entra em
contato com grupos cristãos: primeiramente com qua-
kers ingleses e depois com os colegiantes (entre eles,
políticos e editores), calvinistas não-ortodoxos que, de-
fendendo uma política de paz e uma economia liberal,
se opõem aos partidários do orangismo, calvinistas or-
todoxos a favor da dominação do Estado pela Igreja e
que condenavam o desenvolvimento econômico, por
considerarem-no contrário à Bíblia. Os colegiantes reu-
niam-se para estudar a Bíblia; alguns dos participan-
tes desse grupo garantiram uma pensão vitalícia para
Espinosa
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO CXXXI

Espinosa estabelece, também, relações com pessoas dos


círculos científicos e culturais da Holanda.
1660. Muda-se para Rijnsburg.
Escreve o Curto Tratado de Deus, do Homem e de sua
Beatitude.
Para se manter, Espinosa dá aulas e torna-se polidor de
lentes ópticas.
A sinagoga de Amsterdam solicita oficialmente que as
autoridades municipais denunciem Espinosa como uma
ameaça à piedade e à moral.
1661. Inicia correspondência com Heinrich Oldenburg, que
veio a ser secretário-geral da Royal Society (maior aca-
demia científica do século XVII).
Inicia a redaçào da Ética, "síntese de seu pensamento
ontológico, antropológico e ético, modelo perfeito do
sistema filosófico consumado, construído nào para can-
tar a glória de Deus, mas para expressar a unidade do
mundo e os poderes do homem na construção de sua
própria liberdade e de sua própria alegria". Essa obra,
que só será publicada após sua morte, terá grande im-
portância e influência nas correntes filosóficas futuras.
1662. Conclui o Tratado da Reforma do Entendimento, "uma
crítica epistemológica da razão que introduz um autên-
tico método reflexivo'', e que só será publicado após
sua morte.
1663. Muda-se para Voorburg.
Publica Princípios da Filosofia de Descartes, obra que
consistia em uma apresentação sistemática da filosofia
de Descartes, com críticas, sugestões e análises de Es-
pinosa para seu aprimoramento, com Pensamentos Me-
tafísicos.
Espinosa inicia o contato com o físico Huygens.
1665. Início da segunda Guerra Anglo-Holandesa (que dura-
rá até 1667).
1668. Jan de Witt estabelece aliança com a Inglaterra e com a
Suécia, impedindo a invasão francesa.
1670. Espinosa muda-se para Haia, onde se mantém graças a
uma pensão concedida por seu amigo Jan de Witt.
CXXXII ESPINOSA

Publica anonimamente o Tratado Teológico-Político,


análise da religião popular e crítica contundente do cal-
vinismo ortodoxo do partido orangista. Nele defende a
liberdade da filosofia, sem interferências religiosas ou
políticas, defende a separação entre Estado e Igreja, en-
tre política e religião, e entre filosofia e revelação. As-
sim como sua obra anterior, o Tratado recebe ataques
violentos.
1671. Leibniz envia sua obra Notitia Opticae Promoteae para
Espinosa, e este envia a Leibniz o Tratado Teológico-
Político.
1672. A França invade a Holanda, dando início à Guerra da
Holanda. Jan de Witt e seu irmão são linchados por se-
rem considerados culpados da invasão francesa. Gui-
lherme de Orange é nomeado stathouder. Amigos im-
pedem Espinosa de se pronunciar publicamente contra
esse fato, temendo por sua integridade.
1673. Para preservar sua independência intelectual e sua li-
berdade acadêmica, Espinosa recusa a cátedra de filoso-
fia que lhe é oferecida na Universidade de Heidelberg.
Em maio, Espinosa parte para Utrecht, em missão diplo-
mática, para tentar negociar a paz com a França, apoia-
do pelos regentes holandeses e a convite do próprio
chefe militar francês, que acaba não o recebendo. Quan-
do volta para Haia, consideram-no suspeito de ser es-
pião francês.
Os franceses são finalmente expulsos da Holanda, após
devastar grande parte de seu território.
1674. O Tratado Teológico-Político é proibido por um édito
publicado pelo Estado holandês, juntamente com ou-
tros livros considerados contrários à religião do Estado.
1675. Espinosa conclui a Ética, mas desiste de publicá-la quan-
do fica sabendo que, devido a rumores de que prepa-
rava um livro em que demonstrava que Deus não exis-
tia, os representantes da Igreja calvinista apelaram ao
governo para impedir sua publicação. Mesmo assim, a
Ética circulou entre seus amigos, em exemplares ma-
nuscritos.
TRATADO TEOLÓG/CO-POLÍ11CO CXXXIII

Leibniz faz várias visitas a Espinosa. Além dele, Espinosa


também recebe o filósofo e cientista Von Tschirnhaus.
1676-77. Escreve o Tratado Político, "um estudo dos funda-
mentos existenciais (o desejo) e racionais (o pacto so-
cial) da política", em que expõe sua teoria de Estado e
projetos de constituição de estados monárquicos e aris-
tocráticos, obra também publicada postumamente.
1677. Morre de tuberculose em Haia, em 21 de fevereiro.
Publicação da Ética, das Correspondências, do Tratado
da Reforma do Entendimento, do Tratado Político e de
um Compêndio de Gramática Hebraica.
1678. O governo holandês publica um novo édito proibindo
a divulgação da obra póstuma de Espinosa.
1687. Publicação do Tratado sobre o Cálculo Algébrico do Ar-
co-Íris e de Cálculo das Probabilidades.
NOTA À PRESENTE EDIÇÃO

O Tratado Teológico-Político é a principal das obras que


Espinosa publicou em vida. O seu intento, expressamente afir-
mado no subtítulo, é demonstrar que a liberdade de pensa-
mento constitui um dispositivo essencial para a manutenção
da paz no interior dos Estados. Longe, porém, de limitar esse
intento a um simples enunciado estratégico, estabelecendo
empiricamente, através de fatos históricos ou do seu tempo,
uma relação de causa-efeito entre liberdade e paz, Espinosa
elabora aquela que é a primeira e, porventura, a mais profun-
da reflexão alguma vez publicada sobre a democracia, regi-
me que designa como o "mais natural e o que mais se apro-
xima da liberdade que a natureza concede a cada um".
Durante séculos, o escândalo que semelhante proclama-
ção representou aos olhos de todas as ortodoxias foi enorme.
Mesmo em nossos dias, se a encararmos em toda a sua di-
mensão, não é ainda absolutamente seguro que já o tenha
deixado de ser. E por uma simples razão: Espinosa inscreve
a liberdade no âmago da natureza humana, para demonstrar
que só a partir dela é possível pensar e executar uma políti-
ca para os homens tal como eles são realmente, invertendo
assim a convicção secular e comull\ente arreigada segundo a
qual a política se alicerça numa verdade que teria de se im-
por aos homens e que determinaria o limite até onde eles
podem ser livres. Ao arrepio do contratualismo, que encara
toda a política como uma forma de reprimir o "estado de na-
CXXXVI ESPINOSA

tureza" e vê no Estado uma garantia do não-retorno deste, Es-


pinosa apresenta a democracia como uma forma de realiza-
ção da própria natureza humana, porquanto as instituições
políticas aí aparecem como realização objetiva da liberdade
que está inscrita na essência de cada indivíduo: "o fim do Es-
tado é, realmente, a liberdade''.
Como se tal não bastasse, como se a tese que acabamos
de resumir não fosse já suficientemente devastadora para os
conhecidos estereótipos do "bom governo" e do "bom prín-
cipe'', a linguagem utilizada neste livro é de um desassombro
raro na história da filosofia, a ponto de fazer, por vezes, lem-
brar as invectivas de um Nietzsche que estivesse a braços com
outro tipo de dogmas. Já houve quem lhe chamasse um ma-
nifesto. E é, sem dúvida. Um manifesto a favor da democra-
cia; um manifesto contra a tirania, a superstição e todas as
outras formas de escravizar os indivíduos, ou seja, de os fazer
alienar, sujeitando-os pelo medo de castigos, nesta ou na ou-
tra vida, a leis que violentam a sua verdadeira natureza e, nes-
sa medida, lhes vedam o caminho para a felicidade e a ple-
na realização de si mesmos. O Tratado Teológico-Político,
porém, não se esgota nesse manifesto erguido contra o im-
pério da tristeza, do ressentimento e do ódio. Ele é também,
na designação com que se lhe referem alguns contemporâ-
neos de Espinosa, um "Tratado das Escrituras", um livro em
que a Bíblia é apresentada como reflexo da imaginação dos
hebreus e em que a formação das instituições sociopolíticas
do "povo eleito" se revela como um processo histórico trans-
figurado em obra de um Deus soberano e zeloso de seu im-
pério e de seus súditos.
A maioria dos intérpretes desta obra tem sublinhado, a
meu ver excessivamente, a enorme distância que vai do ale-
gado esboço que ela apresentaria do pensamento político do
autor à formulação clara e definitiva com que este aparece,
depois, no Tratado Político. Semelhante leitura tem, decerto,
alguma base de sustentação. Mas é, no mínimo, redutora e ig-
nora por completo a originalidade com que no Teológico-Po-
lítico se recorre ao texto bíblico a título de paradigma de todo
o fenômeno político, desvendando a paradoxal dimensão dos
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO CXXXVll

seus fundamentos, designadamente na versão democrática,


onde a obediência só faz sentido se for destinada a produzir
a liberdade. Talvez em mais nenhuma obra, com exceção des-
sa outra fulguração do gênio que é O Príncipe, de Maquia-
vel, se ilumine com tanta lucidez a essência do político.
A tradução agora apresentada foi feita e teve a sua pri-
meira edição há mais de uma década (Lisboa, INCM, 1988),
numa altura, portanto, em que os estudos sobre o pensamen-
to político de Espinosa eram bem mais raros do que são hoje.
Anos depois, tive o privilégio de colaborar com o Grupo de
Estudos Espinosanos, da Associação de Estudos Filosóficos
do Século XVII, dirigido por Marilena de Souza Chaui, na Uni-
versidade de São Paulo, onde veio a surgir a iniciativa de
propor à Editora Martins Fontes a sua reimpressão, inclusive
porque a obra se encontrava já esgotada no mercado. No mo-
mento da sua publicação no Brasil, é-me grato recordar quão
estimulante foi essa experiência de lecionar para estudiosos
de Espinosa em quem a liberdade de pensar e a naturalida-
de da crítica se sentiam, espinosanamente, como "idéia" do
grupo. Devo, porém, uma palavra especial de agradecimen-
to a Homero Santiago, que colocou todo o seu interesse e
saber nesta reimpressão da tradução portuguesa do Tratado
Teológico-Político. Quanto às insuficiências que o leitor, com
certeza, aqui vai encontrar, essas, são todas da minha respon-
sabilidade.

Lisboa, 31 de agosto de 2002.


DIOGO PIRES AURÉLIO
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO
Contendo algumas dissertações em que se demonstra
que a liberdade de filosofar não só é compatível com
a preservação da piedade e da paz, como, inclusive,
não pode ser abolida sem se abolir ao mesmo tempo
a paz do Estado e a própria piedade.
Per hoc cognoscimus quod in Deo
manemus, et Deus manet in nobis,
quod de Spiritu suo dedit nobis.
João, Epistola!, cap. IV, 13
PREFÁCI0 1 [5]

Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, de-


cidir pelo seguro ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre fa-
vorável, jamais seriam vítimas da superstição. Mas, como se
encontram freqüentemente perante tais dificuldades que não
sabem que decisão hão de tomar, e como os incertos benefí-
cios da fortuna que desenfreadamente cobiçam os fazem os-
cilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão
sempre prontos a acreditar seja no que for: se têm dúvidas,
deixam-se levar com a maior das facilidades para aqui ou
para ali; se hesitam, sobressaltados pela esperança e pelo me-
do simultaneamente, ainda é pior; porém, se estão confian-
tes, ficam logo inchados de orgulho e presunção. Julgo que
toda a gente sabe que é assim, não obstante eu estar convic-
to de que a maioria dos homens se ignoram a si próprios.
Não há, com efeito, ninguém que tenha vivido entre os ho-
mens que não se tenha dado conta de que a maior parte de-
les, se estão em maré de prosperidade, por mais ignorantes
que sejam, ostentam uma tal sabedoria que até se sentem
ofendidos se alguém lhes quer dar um conselho. Todavia, se
estão na adversidade, já não sabem para onde se virar, supli-
cam o conselho de quem quer que seja e não há nada que se
lhes diga, por mais frívolo, absurdo ou inútil, que eles não si-
gam. Depois, sempre por motivos insignificantes, voltam de
novo a esperar melhores dias ou a temer desgraças ainda pio-
res. Se acontece, quando estão com medo, qualquer coisa que
6 ESPINOSA

lhes faz lembrar um bem ou um mal por que já passaram,


julgam que é o prenúncio da felicidade ou da infelicidade e
chamam-lhe, por isso, um presságio favorável ou funesto,
apesar de já se terem enganado centenas de vezes. Se vêem,
pasmados, algo de insólito, crêem que se trata de um prodí-
gio que lhes revela a cólera dos deuses ou do Númen sagra-
do, pelo que não aplacar com sacrifícios e promessas tais pro-
dígios constitui um crime aos olhos destes homens submer-
gidos na superstição e adversários da religião, que inventam
mil e uma coisas e interpretam a natureza da maneira mais
extravagante, como se toda ela delirasse ao mesmo tempo
que eles~ Tanto assim é, que quem nós vemos ser escravo de
toda a espécie de superstições são sobretudo os que desejam
sem moderação os bens incertos. Todos eles, designadamen-
te quando correm perigo e não conseguem por si próprios
salvar-se, imploram o auxílio divino com promessas e lágri-
mas de mulher, dizem que a razão é cega porque não pode
indicar-lhes um caminho seguro em direção às coisas vãs que
eles desejam, ou que é inútil a sabedoria humana; em contra-
partida, os devaneios da imaginação, os sonhos e as extrava-
gâncias infantis, parecem-lhes respostas divinas. Até julgam
que Deus sente aversão pelos sábios e que os seus decretos
não estão inscritos na mente, mas sim nas entranhas dos ani-
mais, ou que são os loucos, os insensatos, as aves, quem por
instinto ou sopro divino os revela.
[6J · A que ponto o medo ensandece os homens! O medo' é
a causa que origina, conserva e alimenta a superstição. Se,
depois do que já dissemos, alguém quiser ainda exemplos,
veja-se Alexandre, que só se tornou supersticioso e recorreu
aos adivinhos quando, às portas de Susa, começou pela pri-
meira vez a temer pela sua sorte (ver Q. Cúrcio, Livro V, § 7);
assim que venceu Dario, desistiu logo de consultar os adivi-
nhos e arúspices. Até o momento em que, uma vez mais ater-
rado pela adversidade, abandonado pelos bactrianos, atacado
pelos citas e imobilizado devido a uma ferida, recaiu (como
diz o mesmo Q. Cúrcio, Livro VII,§ 7) na superstição, esse lo-
gro das mentes humanas, e mandou Aristandro, em quem de-
positava uma confiança cega, explorar por meio de sacrifí-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 7

cios a evolução futura dos acontecimentos. Poderíamos acres-


centar muitos outros exemplos que provam com toda a cla-
reza o mesmo: os homens só se deixam dominar pela su-
perstição enquanto têm medo; todas essas coisas que já algu-
ma vez foram objeto de um fútil culto religioso não são mais
do que fantasmas e delírios de um caráter amedrontado e tris-
te; finalmente, é quando os Estados se encontram em maio-
res dificuldades que os adivinhos detêm o maior poder sobre
a plebe e são mais temidos pelos seus reis. Mas como tudo
isso, ao que presumo, é suficientemente conhecido de todos,
não insistirei mais no assunto.
Se esta é a causa da superstição, há que concluir, primei-
ro, que todos os homens lhe estão naturalmente sujeitos (di-
gam o que disserem os que julgam que ela deriva do fato de
os mortais terem todos uma idéia qualquer, mais ou menos
confusa, da divindade); em segundo lugar, que ela deve ser
extremamente variável e inconstante, como todas as ilusões
da mente e os acessos de furor; e, por último, que só a espe-
rança, o ódio, a cólera e a fraude podem fazer com que sub-
sista, pois não provêm da razão, mas unicamente da paixão,
e da paixão mais eficiente. Daí ser tão fácil os homens aca-
barem vítimas de superstições de toda espécie quanto é difí-
cil conseguir que eles persistam numa e na mesma supersti-
ção. Precisamente porque o vulgo persiste na sua miséria é
que nunca está por muito tempo tranqüilo e só lhe agrada o
que é novidade e o que ainda não o enganou, inconstância
esta que tem sido a causa de inumeráveis tumultos e guerras
atrozes. Na verdade (como se prova pelo que já dissemos e
como Cúrcio muito bem observou, no Livro IV, cap. X), não
há nada mais eficaz do que a superstição para governar as
multidões. Por isso é que estas são facilmente levadas, sob a
capa da religião, ora a adorar os reis como se fossem deuses,
ora a execrá-los e a detestá-los como se fossem uma peste para
todo o gênero humano. Foi, de resto, para prevenir esse pe-
rigo que houve sempre o cuidado de rodear a religião, fosse
ela verdadeira ou falsa 3, de culto e aparato, de modo que se [7J
revestisse da maior gravidade e fosse escrupulosamente ob-
servada por todos. Entre os turcos, isso foi tão bem sucedido
8 ESPINOSA

que até o simples discutir eles consideram crime, deixando a


inteligência de cada um ocupada com tantos preconceitos que
não há mais lugar na mente para a reta razão, nem sequer para
duvidar.
Se, efetivamente, o grande segredo do regime monár-
quico4 e aquilo que acima de tudo lhe interessa é manter os
homens enganados e disfarçar, sob o especioso nome de re-
ligião, o medo em que devem ser contidos para que comba-
tam pela servidão como se fosse pela salvação e acreditem
que não é vergonhoso, mas sumamente honroso, derramar o
sangue e a vida pela vaidade de um só homem, em contra-
partida, numa República livre, seria impossível conceber ou
tentar algo de mais deplorável, já que repugna absolutamen-
te ã liberdade comum sufocar com preconceitos ou coarctar
de algum modo o livre discernimento de cada um. E, no que
diz respeito aos conflitos desencadeados a pretexto da reli-
gião, é evidente que eles surgem unicamente porque se esta-
belecem leis que concernem matéria de especulação e por-
que as opiniões são consideradas crime e, como tal, condena-
das. Os seus defensores e prosélitos são, por isso, imolados,
não ao bem público, mas apenas ao ódio e ã crueldade dos
adversários. Porque, se o direito estatal fosse de modo que os
fatos fossem incrimináveis, mas as palavras fossem impunes,
semelhantes conflitos não poderiam jamais invocar nenhuma
espécie de direito, nem as controvérsias se converteriam em
sedições 5• E já que nos coube em sorte essa rara felicidade
de viver numa República, onde se concede a cada um intei-
ra liberdade de pensar e de honrar a Deus como lhe aprou-
ver e onde não há nada mais estimado nem mais agradável
do que a liberdade, pareceu-me que não seria tarefa ingrata
ou inútil mostrar que essa liberdade não só é compatível com
a piedade e a paz social, como, inclusive, não pode ser abo-
lida sem se abolir, ao mesmo tempo, a paz social e a pieda-
de. Foi sobretudo isso o que decidi demonstrar neste trata-
do. Para tanto, foi necessário, antes de mais nada, apontar os
maiores preconceitos em matéria religiosa, isto é, os vestígios
da antiga servidão, bem como aqueles que se referem ao di-
reito das autoridades soberanas, direito que muitos se esfor-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ71CO 9

çam, com descarado atrevimento, por lhes usurpar em boa


parte, tentando, ªpretexto da religião, pôr contra elas o ânimo
das multidões, submetido ainda à superstição dos gentios,
para que todos caiam de novo na servidão. Direi a seguir, em
breves palavras, qual a ordem por que são apresentados os
assuntos; mas antes vou expor as razões que me levaram a
escrever.
Inúmeras vezes fiquei espantado por ver homens que se [8]
orgulham de professar a religião cristã, ou seja, o amor, a ale-
gria, a paz, a continência e a lealdade para com todos, com-
baterem-se com tal ferocidade e manifestarem cotidianamente
uns para com os outros um ódio tão exacerbado que se tor-
na mais fácil reconhecer a sua fé por estes do que por aque-
les sentimentos. De fato, há muito que as coisas chegaram a
um ponto tal que é quase impossível saber se alguém é cris-
tão, turco, judeu ou pagão, a não ser pelo seu vestuário, pelo
culto que pratica, por freqüentar esta ou aquela igreja, ou, fi-
nalmente, porque perfilha esta ou aquela opinião e costuma
jurar pelas palavras deste ou daquele mestre. Quanto ao res-
to, todos levam a mesma vida. Procurando então a causa
desse mal, concluí que ele se deve, sem sombra de dúvida, a
se considerarem os cargos da Igreja como títulos de nobreza,
os seus ofícios como benefícios, e consistir a religião, para o
vulgo, em cumular de honras os pastores. Com efeito, assim
que começou na Igreja esse abuso, logo se apoderou dos pio-
res homens um enorme desejo de exercerem os sagrados ofí-
cios, logo o amor de propagar a divina religião se transformou
em sórdida avareza e ambição; de tal maneira que o próprio
templo degenerou em teatro em que não mais se veneravam
doutores da Igreja mas oradores que, em vez de quererem
instruir o povo, queriam era fazer-se admirar e censurar pu-
blicamente os dissidentes, não ensinando senão coisas novas
e insólitas para deixarem o vulgo maravilhado. Daí surgirem
grandes contendas, invejas e ódio que nem o correr do tempo
foi capaz de apagar.
Não admira, pois, que da antiga religião não ficasse nada
a não ser o culto externo (com que o vulgo mais parece
adular a Deus que adorá-lo) e a fé esteja reduzida a crendice
10 ESPINOSA

e preconceitos. E que preconceitos, que de racionais trans-


formam os homens em irracionais, que lhes tolhem por com-
pleto o livre exercício da razão e a capacidade de distinguir
o verdadeiro do falso, parecendo expressamente inventados
para apagar definitivamente a luz do entendimento! A pieda-
de, ó Deus imortal, e a religião consistem em mistérios ab-
surdos e são os que condenam absolutamente a razão, os que
têm aversão e rejeitam o entendimento como coisa corrom-
pida por natureza, são esses, suprema iniqüidade, que pas-
sam por possuir a luz divina. Certamente que, se eles tivessem
uma centelha que fosse da luz divina, não andariam tão
cheios de soberba idiota e aprenderiam a honrar a Deus e
distinguir-se-iam dos outros pelo amor, da mesma forma que
agora se distinguem pelo ódio. Nem perseguiriam com tanta
animosidade os que não partilham das suas opiniões; pelo
contrário, sentiriam piedade deles (se é, de fato, a salvação
[91 alheia e não a própria fortuna que os preocupa). Além disso,
se realmente tivessem alguma luz divina, ela se veria pela
sua doutrina. Confesso, porém, que, apesar da sua insuperá-
vel admiração pelos profundíssimos mistérios da Escritura,
nunca os vi ensinar senão as especulações dos aristotélicos
ou dos platônicos, a que adaptáram aquela 6, ainda assim não
parecessem pagãos. Não lhes bastava já delirar com os gregos,
quiseram também que os profetas delirassem com eles, o que
mostra claramente que nem por sonhos 7 reconhecem a divin-
dade da Escritura e que, quanto mais se inclinam perante os
seus mistérios, melhor demonstram que o que sentem por ela
não é tanto fé como submissão. Isso, aliás, resulta claro do fato
de a maior parte deles supor como fundamento (para com-
preender e encontrar o verdadeiro sentido da Escritura) que
ela é sempre verdadeira e divina, coisa que, afinal, só deveria
constar após a sua compreensão e exame rigoroso: aquilo que
através dela, sem necessidade de nenhum artifício humano,
aprenderíamos muito melhor, é o que eles põem liminarmente
como regra da sua interpretação.
Refletindo sobre tudo isso - a saber, que a luz natural é,
não só desprezada, mas até condenada por muitos como fon-
te de impiedade; que as invenções humanas passam por do-
TRATADO 1EOLÓGJCO-POLÍTICO 11

cumentos divinos e a crendice por fé; que as controvérsias


dos filósofos desencadeiam na Igreja e no Estado as mais vi-
vas paixões, originando os ódios e discórdias mais violentos,
que facilmente arrastam os homens para sublevações e tan-
tas outras coisas que seria longo descrever aqui - fiquei se-
riamente decidido a empreender um exame da Escritura, novo
e inteiramente livre, recusando-me a afirmar ou a admitir como
sua doutrina tudo o que dela não ressalte com toda a clare-
za. Com essa precaução, elaborei um método para interpre-
tar os Livros Sagrados e, uma vez na posse dele, comecei por
perguntar, antes de mais nada, o que é a Profecia, como se re-
velou Deus aos profetas, por que foram estes escolhidos por
ele, isto é, se foi por terem pensamentos sublimes acerca da
natureza e de Deus ou em virtude apenas da sua piedade. Re-
solvidas essas questões, facilmente pude concluir que a au-
toridade dos profetas só tem algum peso no que diz respeito
à vida prática e à verdadeira virtude. Quanto ao resto, pouco
nos interessam as suas opiniões.
Foi a partir daí que tentei averiguar por que motivo se
designaram os hebreus por eleitos de Deus. E como visse
que isso significa apenas que Deus escolheu para eles uma
certa região do mundo onde pudessem viver em segurança e
comodidade, concluí que as leis reveladas por Deus a Moisés [10]
não eram senão o direito particular do Estado hebraico e,
por conseguinte, ninguém a não ser os hebreus lhe estava
sujeito. E, mesmo estes, ~ó enquanto durasse o referido Esta-
do_. Depois, para saber se se podia concluir da Escritura que
o entendimento humano está por natureza corrompido, fui
investigar se a religião católica8 , ou seja, a lei divina revelada
a todo o gênero humano pelos profetas e pelos apóstolos, se-
ria diferente daquela que a luz natural também ensina; e, em
seguida, se os milagres acontecem ao arrepio da ordem na-
tural e provam a existência e a providência de Deus de ma-
neira mais certa e mais clara do que as coisas que entende-
mos clara e distintamente pelas suas causas primeiras. Mas,
como não encontrasse, naquilo que a Escritura expressamen-
te ensina, nada que não estivesse de acordo com o entendi-
mento ou lhe repugnasse, e como, por outro lado, visse que
12 ESPINOSA

os profetas só ensinaram coisas extremamente simples e aces-


síveis a todos, além de recorrerem ao estilo e à argumentação
que melhor pudessem incitar os ânimos da multidão à devo-
ção para com Deus, fiquei completamente persuadido de que
a Escritura deixa a razão em absoluta liberdade e não tem
nada em comum com a Filosofia, assentando, pelo contrário,
cada uma delas nas suas próprias bases. E, para que isso ficas-
se apodíticamente demonstrado, mostro qual o método a se-
guir na interpretação da Escritura e bem assim que todo o
conhecimento, sobre esta ou sobre as coisas espirituais, se
deve extrair dela mesma e não daquilo que conhecemos pela
luz natural.
Passo em seguida a analisar os preconceitos que surgem
pelo fato de o vulgo (sujeito à superstição e preferindo as re-
líquias do passado à própria eternidade) adorar os livros da
Escritura em vez do próprio Verbo de Deus. Depois, mostro
que o Verbo de Deus revelado não consiste em determinado
número de livros, mas sim num conceito simples da mente
divina revelada aos profetas, a saber, obedecer inteiramente
a Deus, praticando a justiça e a caridade. E provo que essa
doutrina é ensinada na Escritura de maneira adequada ao
poder de compreensão e às opiniões daqueles a quem os pro-
fetas e os apóstolos costumavam pregar a palavra de Deus,
de modo que os homens a pudessem aceitar integralmente e
sem nenhuma repugnância.
Uma vez assim apresentados os fundamentos da fé, con-
cluo, finalmente, que o conhecimento revelado não tem ou-
tra finalidade senão a obediência e que, tanto pela finalidade
como pelos fundamentos e pelo método, ele é completamen-
te diferente do conhecimento natural, não tendo nada em
comum com este, pois cada qual ocupa a sua área sem que
[111 o outro se insurja e sem que nenhum tenha de se considerar
subordinado9 . Como, além disso, os homens são por tempe-
ramento bastante diferentes, e, como uns preferem esta, ou-
tros aquela opinião, inspirando a uns sentimentos religiosos
o que a outros só provoca o escárnio, concluo ser necessário
deixar a cada um a liberdade de julgar e a possibilidade de
interpretar os fundamentos da fé segundo a sua maneira de
ser, e não se ajuizar da fé de ninguém a não ser pelas suas
TRATADO 1EOLÓGICO-POÚ71CO 13

ações, conforme forem piedosas ou ímpias. Só assim poderão


todos obedecer a Deus de livre e inteira vontade e dar valor
apenas ã justiça e à caridade.
Após evidenciar a liberdade que a lei divina revelada con-
cede a cada um, passo a outro aspecto da questão, o qual
consiste em mostrar que essa mesma liberdade pode e deve
ser concedida, sem que isso lese a paz social e o direito das
autoridades soberanas, e que, pelo contrário, não pode ser
suprimida sem graves riscos para a paz e em detrimento de
todo o Estado. Para demonstrar esse ponto, começo, porém,
pelo direito natural do indivíduo, que vai até onde for o seu
desejo e o seu poder, sem que ninguém esteja, com base em
tal direito, obrigado a viver a mando de outrem e sendo, em
vez disso, cada um o responsável pela sua própria liberdade.
A seguir, mostro que, em realidade, ninguém renuncia a esse
direito, a não ser que transfira para outrem o poder de se de-
fender, e que, nesse caso, aquele para quem todos transferi-
ram o direito de viver à sua vontade e, ao mesmo tempo, o
poder de se defenderem possui necessariamente um direito
natural absoluto. Demonstro então que os que detêm o po-
der supremo têm direito a tudo o que estiver em seu poder e
são os únicos responsáveis pelo direito e pela liberdade, ao
passo que os outros devem fazer tudo de acordo apenas
com o que eles determinam. Todavia, como ninguém pode
privar-se a um ponto tal do seu poder de se defender que
deixasse de ser um homem, resulta daí que ninguém pode
ser absolutamente privado do seu direito natural e que os sú-
ditos mantêm, quase como um direito da natureza, alguns
privilégios que não lhes podem ser recusados sem grave pe-
rigo para o Estado e que, ou lhes são tacitamente concedi-
dos, ou eles estipulam expressamente com aqueles que de-
têm o poder. Posto isso, passo ao Estado hebraico, que des-
crevo pormenorizadamente, para explicar por que razão e
por ordem de quem a Religião começou a ter força de lei,
bem como outras coisas que, de caminho, me pareciam dig-
nas de registro. Para terminar, mostro como é que os que de-
têm o poder soberano são os responsáveis e os intérpretes,
não só do direito civil, mas também do direito canônico, e que
só eles possuem o direito de discernir o que é justo e o que
14 ESPINOSA

é injusto, o que é piedoso e o que é ímpio, concluindo, en-


[12] fim, que para manterem em plenitude esse direito e conser-
varem tranqüilamente o poder eles devem consentir a cada
um pensar aquilo que quiser e dizer aquilo que pensa.
É isso, leitor filósofo, o que submeto aqui à tua aprecia-
ção" na esperança de não ser mal acolhido, tendo em conta
a importância e utilidade do tema, quer da obra, quer até de
cada um dos capítulos. Tinha ainda mais coisas a dizer, mas
não quero que este prefácio se alongue a ponto de parecer
um volume, sobretudo porque julgo que o essencial é sobe-
jamente conhecido dos filósofos. Quanto aos outros, não ten-
to sequer recomendar-lhes este tratado, pois nada me leva a
esperar que ele, por qualquer razão, lhes possa agradar. Sei,
efetivamente, quão arreigados estão na mente os preconcei-
tos a que se adere como se de coisa piedosa se tratasse; sei,
além disso, que é impossível libertar o vulgo da superstição
e do medo; e sei, finalmente, que a constância no comum
dos homens é obstinação e que, em vez de ser a razão que
os guia, é a tendência para louvar ou vituperar que os arreba-
ta. Não convido, portanto, o vulgo, nem aqueles que compar-
tilham das suas paixões, a lerem este livro. É preferível que o
desprezem a que me aborreçam com interpretações tenden-
ciosas, como costumam fazer sempre, não aproveitando eles
nem deixando que aproveitem os que poderiam filosofar
mais livremente se a tanto os não impedisse julgar que a ra-
zão deve ser serva da teologia: porque a estes, ainda tenho,
efetivamente, esperanças de que a obra venha a ser de extre-
ma utilidade 10.
E posto que a muitos talvez falte o vagar ou a paciência
para ler tudo, vejo-me obrigado a prevenir, aqui como no
fim deste tratado, que não escrevi nada que de bom grado
não submeta ao exame e apreciação das autoridades sobera-
nas da minha Pátria: se elas acharem que algo do que eu digo
vai contra as leis deste país ou é prejudicial aos interesses da
coletividade, retiro o que disse. Sei que sou homem e pode-
rei ter-me enganado; mas fiz todo o possível para que isso
não acontecesse e, sobretudo, para não escrever nada que
não esteja em conformidade absoluta com as leis da pátria, a
piedade e os bons costumes.
CAPÍTULO 1 [15]

Da profecia

Profecia ou Revelação é o conhecimento certo de algu-


ma coisa revelado por Deus aos homens. O profeta, por con-
seguinte, é o que interpreta as coisas que Deus revela para
aqueles que delas não podem ter um conhecimento certo e
que, por isso, só pela fé as podem perfilhar. Entre os hebreus,
efetivamente, o profeta chama-se nabi*, quer dizer, orador e
intérprete, e na Escritura ele é sempre tomado por intérprete
de Deus, como se infere do cap. VII, 1, do Êxodo, no qual
Deus diz a Moisés: eis que te constituo Deus do Faraó, e Arão,
teu irmão, será o teu profeta. É como se dissesse: já que Arão,
ao interpretar para o Faraó as palavras que tu pronuncias, faz
de profeta, então tu serás como que o Deus do Faraó, ou seja,
aquele que faz as vezes de Deus.

• Anotação !. Quando a terceira letra do radical das palavras pertence


ao grupo das que chamamos quiescentes, é habitualmente suprimida e, em
seu lugar, dobra-se a segunda. Assim, de Killah, suprimida a quiescente he,
obtém-se Kolell e Kol; de nibba, obtém-se novev, donde, niv sefataim, pala-
vra ou discurso; de shaga, shagag, shug, mashgha; de amam, amma; de be-
lijaal, bala/, bilia.
R. Salomon Jarchi interpretou, portanto, muito bem a palavra nabi,
não tendo razão Aben Esdra, que sem possuir um conhecimento tão exato
da língua hebraica o critica. Deve, além disso, notar-se que a palavra ne-
vuah, profecia, é um termo geral e aplica-se a todos os modos de profetizar,
ao passo que as outras palavras têm um sentido mais específico e aplicam-
se só a este ou àquele gênero de profecia, como creio ser do conhecimento
dos eruditos.
16 ESPINOSA

Sobre os profetas, falaremos no capítulo seguinte. Aqui,


tratar-se-á da profecia, sendo que, pela definição já apresen-
tada, se pode chamar profecia ao conhecimento natural, pois
o que nós conhecemos pela luz natural depende exclusiva-
mente do conhecimento de Deus e dos seus eternos decretos.
É verdade que esse conhecimento natural, por ser comum a
todos os homens, visto depender de fundamentos comuns a
todos, não é tido em grande conta pelo vulgo, o qual está
sempre desejoso de coisas raras e alheias à sua natureza, ao
mesmo tempo que despreza os dons naturais e, por isso, quan-
do fala de conhecimento profético, quer que se exclua o na-
tural. Contudo, o conhecimento natural tem tanto direito como
qualquer outro a chamar-se divino, porquanto nos é como que
ditado pela natureza divina, na medida em que nós participa-
mos dela 1 , e pelos decretos de Deus. Além disso, ele só dife-
re do conhecimento a que todos chamam divino porque este
se estende para lá dos limites do primeiro e porque as leis da
natureza, consideradas em si mesmas, não podem ser a sua
causa. Mas no que toca à certeza que o conhecimento natu-
[161 ral envolve e à fonte de que deriva (Deus, evidentemente),
em nada fica atrás do conhecimento profético 2 • A menos que
alguém pretenda pensar, ou antes, sonhar que os profetas ti-
veram, de fato, um corpo humano mas não a mente 3 que têm
os homens, e que, nesse caso, as suas sensações e a sua cons-
ciência eram de uma natureza completamente diferente da-
quela que apresentam as nossas.
No entanto, muito embora seja divina a ciência natural,
os seus divulgadores não podem ser considerados profetas*.

• Anotação li. Quer dizer, intérpretes de Deus. O intérprete de Deus é,


com efeito, aquele que interpreta os decretos divinos que lhe foram revelados
para outros a quem eles não o foram e que, para os aceitar, têm de se apoiar
exclusivamente na autoridade do profeta e na confiança que nele têm. Porque,
se os homens que escutam os profetas se tomassem profetas, como se tomam
filósofos os que ouvem os filósofos, então o profeta não seria um intérprete
dos decretos divinos, pois quem o ouvia não se apoiava no seu testemunho e
autoridade, mas sim na revelação divina e no testemunho interior. Acontece
exatamente o mesmo com os poderes soberanos, os quais são os intérpretes do
direito do seu Estado porque as leis por eles promulgadas dependem exclusi-
vamente da sua autoridade e baseiam-se apenas no seu testemunho.
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍTlCO 17

Com efeito, aquilo que ensinam pode ser compreendido e acei-


to pelos restantes homens com a mesma certeza e no mesmo
nível que eles o compreendem, e não apenas pela fé.
Como a nossa mente, só pelo fato de conter em si obje-
tivamente a natureza de Deus e dela participar, tem o poder
de formar certas noções que explicam a natureza das coisas e
nos ensinam a conduzir na vida, poderemos afirmar que a
primeira causa da revelação divina é justamente a natureza da
mente enquanto faculdade do conhecimento natural. Porque
tudo o que conhecemos clara e distintamente é a idéia de
Deus (conforme indicamos) e a natureza de quem no-lo dita,
não por palavras, mas de uma forma ainda mais excelente e
adequada à natureza da mente, como, sem dúvida, sabe por
experiência própria todo aquele que alguma vez experimen-
tou a certeza do entendimento. Mas, como o meu intuito é fa-
lar sobretudo do que diz respeito só à Escritura, não vou di-
zer mais sobre a luz natural. Passo, portanto, às outras causas
e meios pelos quais Deus revela aos homens o que ultrapas-
sa os limites do conhecimento natural e até o que não o ultra-
passa (pois nada impede que Deus comunique de modo di-
ferente aos homens aquilo mesmo que conhecemos pela luz
natural). Sobre isso, falaremos mais pormenorizadamente.
Antes de mais nada, tudo quanto se pode dizer a tal res-
peito deve procurar-se exclusivamente nas Escrituras. Que
podemos nós, com efeito, dizer de coisas que excedem os li-
mites do nosso entendimento, a não ser aquilo que os pró-
prios profetas, oralmente ou por escrito, nos transmitiram? Sen-
do assim e visto que hoje em dia não temos, que eu saiba,
nenhum profeta\ só nos resta abrir os sagrados volumes que
eles nos deixaram. Mas com a precaução de não afirmar so-
bre tais assuntos nem atribuir aos profetas nada que eles não
tenham claramente exposto. E aqui deve sobretudo notar-se
que os judeus nunca mencionam nem procuram as causas in-
termédias ou particulares, recorrendo sempre a Deus, seja por
religião, por piedade ou, como costuma dizer o vulgo, por (171
devoção. Se, por exemplo, ganharam dinheiro num negócio,
dizem que foi Deus que lho ofereceu; se desejam que algu-
ma coisa aconteça, dizem que foi Deus que assim lhes pre-
18 ESPINOSA

dispôs o coração; até quando pensam qualquer coisa dizem


que foi Deus que lha sugeriu. Por conseguinte, não deve
ver-se como uma profecia ou um conhecimento sobrenatural
em todas as passagens em que a Escritura diz que Deus falou
a alguém, mas só onde ela expressamente o afirma ou onde
o contexto da narração permite concluir que se trata de pro-
fecia ou revelação.
Se folhearmos os sagrados volumes, verificaremos que
tudo o que Deus revelou aos homens foi revelado, ou por pa-
lavras, ou por figuras, ou de ambos os modos, quer dizer,
por palavras e figuras. As palavras, tal como as figuras, ou fo-
ram verdadeiras, não dependendo então da imaginação do
profeta que as ouvia (ou via), ou foram imaginárias, porquan-
to a imaginação do profeta, mesmo quando acordado, estava
predisposta de modo que lhe parecesse ouvir palavras ou
ver alguma coisa com toda a clareza5 .
De fato, Deus revelou de viva voz a Moisés as leis que
queria prescrever ao hebreus, tal como consta do Êxodo, cap.
XXV, 22, onde se diz: e aí te esperarei, e falarei contigo da-
quela pane do propiciatóricf que está entre dois querubins. O
que mostra que Deus usou realmente uma voz, já que Moi-
sés, sempre que queria, encontrava ali Deus pronto para lhe
falar. E só esta voz, pela qual evidentemente foi anunciada
a lei, foi uma verdadeira voz, conforme demonstrarei mais
adiante.
Poder-se-ia supof que fosse verdadeira a voz com que
Deus chamou Samuel, pois em Samuel, 1 cap. III, último ver-
sículo7, afirma-se: e Deus apareceu de novo a Samuel em Silo,
porque em Silo Deus se manifestou a Samuel pela sua pala-
vra. É como se disséssemos que a aparição de Deus a Samuel
consistiu apenas em manifestar-se-lhe pela palavra, ou, dito
de outro modo, não foi senão o fato de Samuel ouvir Deus
falar. No entanto, e porque somos obrigados a distinguir a
profecia de Moisés da dos restantes profetas, deve acrescen-
tar-se que essa voz ouvida por Samuel era imaginária. O que
se compreende, de resto, pois era parecida com a voz de Heli,
que Samuel costumava ouvir freqüentemente e podia, portan-
to, imaginar com facilidade: se virmos bem, três vezes Deus o
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 19

chamou e três vezes ele julgou que era Heli quem o chama- [17]
va. Imaginária foi também a voz que Abimelec escutou. Com
efeito, diz-se no Gênesis, cap. XX, 6: e Deus disse-lhe em so-
nhos, etc. Não foi, portanto, quando estava acordado, mas só
em sonhos (ou seja, na altura em que a imaginação está na-
turalmente mais propensa a imaginar coisas que não existem)
que pôde imaginar a vontade de Deus.
Tampouco as palavras do Decálogo, na opinião de al-
guns judeus, foram proferidas por Deus. Segundo eles, os is-
raelitas ouviram só um ruído, sem que nenhuma palavra ti-
vesse sido proferida, e entretanto apreenderam, mentalmen-
te apenas, as Leis do Decálogo. Eu próprio assim pensei al-
gumas vezes, por ver que as palavras do Decálogo variam do
Êxodo para o Deuteronômio, donde parece resultar (já que
Deus só falou uma vez) que o Decálogo não pretende ensi-
nar as palavras mas apenas os decretos de Deus. Todavia, se
não quisermos forçar a Escritura, é absolutamente necessário
admitir-se que os israelitas ouviram uma verdadeira voz. Na
verdade, a Escritura (Deuteronômio cap. V, 4) diz expressamen-
te: Deus falou convosco face a face, isto é, da mesma forma
que dois homens trocam idéias entre si através dos respecti-
vos corpos. Parece, pois, ser mais conforme com a Escritura
dizer-se que Deus criou uma voz autêntica por meio da qual
ele próprio revelou o Decálogo. Quanto ao motivo por que
as palavras e a sua disposição diferem de um livro para o ou-
tro, veja-se o cap. VIII.
Mas nem mesmo assim se elimina por completo a difi-
culdade, uma vez que não parece lá muito razoável admitir
que uma coisa criada, que depende de Deus como qualquer
outra, pudesse, por si mesma, exprimir ou explicar a essên-
cia ou a existência de Deus, fosse real ou verbalmente, e de-
clarar na primeira pessoa: eu sou Jeová teu Deus, etc. É certo
que, se alguém diz com a boca eu entendi, ninguém vai jul-
gar que foi a boca que entendeu mas sim a mente do homem
que o afirma, já porque a boca pertence à sua natureza, já
porque aquele a quem isso é dito, compreendendo a nature-
za do entendimento, facilmente compreende, por analogia
consigo, o pensamento do homem que lhe fala. Porém, se
20 ESP/NOSA

anteriormente eles não conheciam de Deus senão o nome, e,


se lhe desejavam falar para se certificarem da sua existência,
não vejo como podia esse seu desejo ser satisfeito por meio
de uma criatura (que para Deus não representa mais do que
as outras coisas criadas nem pertence à natureza divina) que
[191 dissesse eu sou Deus. Será que, se Deus forçasse os lábios de
Moisés (mas por que de Moisés? até de um animal qualquer) a
pronunciar aquelas palavras e a dizer eu sou Deus, eles iriam
admitir por isso a existência de Deus? Por outro lado, a Escri-
tura parece indicar peremptoriamente que o próprio Deus
falou (descendo, para tanto, do céu ao monte Sinai) e que
não só os judeus o ouviram falar como até os chefes mais
importantes o viram (Êxodo, cap. XXIV). Tampouco a Lei re-
velada a Moisés, à qual não era lícito acrescentar ou suprimir
fosse o que fosse e que ficou como direito da Pátria, alguma
vez ordena que acreditemos que Deus é incorpóreo ou que
não tem nenhuma imagem ou figura: o que diz é que Deus
existe, que devemos acreditar nele e só a ele adorar, proibin-
do, para que não se desviassem do seu culto, que dele con-
cebessem ou fabricassem qualquer imagem. Na verdade,
como eles não tinham visto a imagem de Deus, não podiam
fazer nenhuma que o representasse, pois todas quantas fizes-
sem representariam necessariamente uma outra coisa criada
que já tivessem visto. Assim, onde quer que adorassem a
Deus por essa imagem, pensariam, não em Deus, mas naqui-
lo que ela de fato representava, prestando-lhe o culto e as
honras que só a Deus são devidas. E, além disso, a Escritura
indica claramente que Deus tem uma figura e que Moisés a
observava quando ouvia Deus falar, embora não chegasse a
vê-la senão por detrás. Não tenho, por conseguinte, dúvida
de que há aqui algum mistério, do qual falaremos mais adian-
te. Agora, passarei a apresentar as passagens da Escritura que
indicam os meios por que Deus revelou aos homens os seus
decretos.
Que houve revelação só por imagens, é o que ressalta
do Livro I dos Paralipômenos, cap. XXI, onde Deus mostra a
Davi a sua cólera por meio de um anjo que empunha uma
espada. O mesmo acontece com Balaão. E, se bem que Mai-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 21

mônides e alguns outros pretendam que essa história, tal como


todas as que contam a aparição de um anjo (por exemplo, a
de Manué, a de Abraão quando tencionava imolar o filho,
etc.) aconteceram só em sonhos, pois acham que ninguém
poderá, de olhos abertos, ver um anjo, julgo que não estão
falando a sério, já que a única coisa que procuraram foi ex-
torquir à Escritura as frivolidades aristotélicas e as próprias
invenções, coisa que a mim me parece sumamente ridícula.
Em contrapartida, foi por imagens não reais e fruto apenas
da imaginação do profeta que Deus revelou a José o seu fu-
turo poder.
Por imagens e ao mesmo tempo por palavras revelou [20]
Deus a Josué que havia de combater pelos hebreus, mostran-
do-lhe, através de um anjo com uma espada, qual chefe mili-
tar, o mesmo que lhe revelava por palavras e que ele ouvia da
boca do anjo. Também a Isaías (conforme se lê no cap. VI)
foi anunciado por figuras que a providência de Deus abando-
nara o povo, porquanto imaginou o Deus três vezes Santo
num trono altíssimo e os israelitas manchados pela imundície
dos pecados, como que metidos em esterco, muito longe, por
conseguinte, de Deus. Compreendeu assim o miserável esta-
do em que o povo se encontrava, ao mesmo tempo que as
calamidades futuras lhe eram reveladas em palavras que pa-
reciam pronunciadas por Deus. Poderia acrescentar ainda mui-
tos outros exemplos tirados da Sagrada Escritura, mas julgo
que o assunto é suficientemente conhecido.
Tudo isso, aliás, vem claramente confirmado num texto
dos Números (cap. XII, 6 e 7) que reza assim: se alguém de
entre vós for profeta de Deus, revelar-me-ei a ele numa visão
(isto é, por figuras e sinais hieroglíficos, ao passo que da pro-
fecia de Moisés se afirma que é uma· visão sem hieróglifos);
falar-lhe-ei em sonhos (quer dizer, sem ser por autênticas pa-
lavras nem de viva voz). No entanto, a Moisés não (me reve-
lo) assim: com ele falo cara a cara e ele me vê, mas não por
enigmas, e distingue a imagem de Deusª. Isto é, fala comigo
como se fosse com um amigo e não cheio de medo, confor-
me se demonstra pelo 'Êxodo, cap. XXXIII, 11. É, portanto, evi-
dente, que os outros profetas não ouviram uma voz autênti-
22 ESPINOSA

ca, o que pode, aliás, ver-se ainda com mais clareza no Deu-
teronômio, cap. XXXIV, 10, onde se diz: e não houve(ou me-
lhor, não se levantou) em Israel mais nenhum profeta como
Moisés, que conheceu Deus face a face-, conheceu, entenda-
se, só pela voz, dado que nem o próprio Moisés viu alguma
vez a face de Deus (Êxodo, cap. XXXIII).
Tirando estes, não encontro na Sagrada Escritura nenhum
outro meio pelo qual Deus tenha se comunicado com os ho-
mens e, por conseguinte, como demonstramos, mais nenhum
é de admitir ou supor. E embora se compreenda que Deus
pode, sem dúvida, comunicar-se imediatamente com os ho-
mens, pois comunica a sua essência à nossa mente sem pre-
cisar de nenhum meio corporal, todavia, para que um homem
[211 percebesse só pela mente certas coisas que não estão conti-
das nos primeiros princípios do nosso conhecimento, nem de-
les se podem deduzir, a sua mente teria de ser por força su-
perior e, de longe, mais perfeita que a mente humana. Assim
sendo, não creio que alguém tenha atingido tanta perfeição,
a não ser Cristo9 , a quem os preceitos divinos que conduzem
os homens à salvação foram revelados imediatamente, sem
palavras nem visões: Deus manifestou-se, portanto, aos após-
tolos através da mente de Cristo como outrora a Moisés por
meio de uma voz que vinha do ar. E assim, à voz de Cristo,
tal como àquela que Moisés ouvia, pode chamar-se a Voz de
Deus. Nesse sentido, podemos afirmar que a Sabedoria di-
vina, isto é, a Sabedoria que é superior à do homem, assu-
miu em Cristo a natureza humana e Cristo foi o caminho da
salvação.
Convém, no entanto, advertir que me abstenho comple-
tamente de falar do que certas Igrejas afirmam sobre Cristo -
e nem sequer pretendo negá-lo - visto que, confesso com
toda franqueza, não compreendo. Tudo o que até agora afir-
mei resulta da própria Escritura. E em parte alguma eu li que
Deus apareceu a Cristo, ou que lhe falou, mas sim que ele foi
revelado por Cristo aos apóstolos, que Cristo é o caminho da
salvação e, finalmente, que a lei antiga foi anunciada por um
anjo e não diretamente por Deus, etc. Por conseguinte, en-
quanto Moisés falava com Deus face a face, tal como um ho-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 23
mem fala habitualmente com um seu companheiro (isto é,
mediante os seus dois corpos) Cristo comunicou-se com Deus
de mente para mente.
Está, portanto, assentido que ninguém, além de Cristo,
recebeu nenhuma revelação de Deus sem o recurso à imagi-
nação, quer dizer, sem palavras nem figuras, e que, para pro-
fetizar, não é necessário ser dotado de uma mente mais per-
feita, mas sim de uma imaginação mais viva, conforme mos-
trarei com mais clareza no capítulo seguinte. Para já, é preciso
averiguar o que nas Sagradas Escrituras se entende por Espí-
rito de Deus infundido nos profetas, ou seja, em que sentido
os profetas falavam pelo Espírito de Deus. Vejamos, antes de
mais nada, o que significa a palavra hebraica ruagh, vulgar-
mente traduzida por Espírito.
Ruagh, no sentido genuíno, significa, como se sabe, "ven-
to", mas emprega-se muitas vezes para significar várias outras
coisas, as quais, todavia, derivam daquela. Assim:
1 - Hálito, como no Salmo 135, 17: e tampouco existe es-
pírito na sua boca.
2 - Ânimo ou respiração, como em Samuel, I, cap. XXX,
12: e voltou-lhe o Espírito, isto é, respirou. [22]
3 - Coragem, força, como emjosué, cap. II, 11: e não fi-
cou depois espírito em nenhum homem; idem em Ezequiel,
cap. II, 2: e veio a mim o espírito (ou força) que me obrigou a
levantar sobre os meus próprios pés.
4 - Virtude, aptidão, como em ]ó, cap. XXXII, 8: certa-
mente, o Espírito está no homem, ou seja, a ciência não deve
procurar-se unicamente nos velhos, já que depende da virtu-
de e da capacidade de cada homem; idem nos Números, cap.
XXVII, 18: O homem, em quem está o Espírito.
5 - Convicção, como nos Números, cap. XIV, 24: porque
foi outro o seu Espírito, quer dizer, uma outra convicção, um
outro pensamento; idem nos Provérbios, cap. I, 23: eu vos di-
rei o meu Espírito (isto é, a minha idéia). Nesse mesmo senti-
do, emprega-se para significar a vontade, a decisão, o apeti-
te e o ímpeto da alma, como em Ezequiel, cap. I, 12: iam para
onde tinham o Espírito (ou vontade) de ir; idem em Isaías,
cap. XXX, 1: e urdis uma teia que não é segundo o meu Espí-
24 ESPINOSA

rito; e no cap. XXIX, 10: porque Deus derramou sobre eles o


Espírito (isto é, a vontade) de dormir, e no livro dos juízes,
cap. VIII, 3: mitigou-se então o seu Espírito, ou ímpeto; idem
nos Provérbios, cap. XVI, 32: quem domina o seu Espírito (ou
apetite) é maior do que quem toma uma cidade; e no cap.
XXV, 28: o homem que não domina o seu Espírito; idem em
Isaías, cap. XXXIII, 11: o vosso Espírito é um fogo que vos con-
some. Além disso, na medida em que a palavra ruagh signi-
fica ânimo, serve para exprimir todas as paixões e até os do-
tes anímicos, como Espírito elevado para significar soberba,
Espírito submisso para significar humildade, Espírito mau,
para significar ódio e melancolia, Espírito bom, para benigni-
dade, espírito de ciúme, Espírito (ou apetite) de fornicação,
Espírito de sabedoria, de prudência, de coragem, isto é (por-
que em hebraico se usam mais freqüentemente os substanti-
vos que os adjetivos), um ânimo sábio, prudente, forte, ou
virtude da sabedoria, da prudência, da coragem, Espírito de
benevolência, etc.
[23] 6 - A própria mente, ou a alma, como no Eclesiastes, cap.
III, 19: o Espírito (ou a alma) é o mesmo em todos os homens
e o Espírito volta-se para Deus.
7 - Finalmente, significa as partes do mundo (em virtu-
de dos ventos 10 que delas sopram) e ainda os lados de qual-
quer coisa correspondentes a essas partes. Ver Ezequiel, cap.
XXXVII, 9; XLII, 16, 17, 18, 19, etc. 11 •
É de notar, por outro lado, que uma coisa é referida a
Deus e se chama coisa de Deus:
1 - Porque pertence à sua natureza e é como que parte
dele, tal como quando falamos da potência de Deus ou dos
olhos de Deus.
2 - Porque está ao alcance do poder de Deus e age se-
gundo a sua vontade: assim, a Escritura chama aos céus céus
de Deus, por serem o seu carro e o seu domicílio, aos assírios
flagelo de Deus, a Nabucodonosor servo de Deus, etc.
3 - Porque lhe é dedicada, como o templo de Deus, o Na-
zareno de Deus, o pão de Deus, etc.
4 - Porque é transmitida pelos profetas mas nào revela-
da pela luz natural, como é o caso da Lei de Moisés, que é
designada por Lei de Deus.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 25
5 - Para exprimir uma coisa no grau superlativo, tal como
montes de Deus, ou seja, montes altíssimos, um sono de
Deus, isto é, profundíssimo: é nesse sentido que se deve ex-
plicar Amós, cap. IV, 11, em que o próprio Deus fala do se-
guinte modo: Eu destruí-vos como a destruição de Deus (des-
truiu) Sodoma e Gomorra, quer dizer, à semelhança dessa me-
morável destruição; não pode, efetivamente, explicar-se de
outro modo, uma vez que é o próprio Deus quem fala. Da
mesma forma, a sabedoria natural de Salomão é designada
por sabedoria de Deus, ou seja, divina, fora do comum. Nos
Salmos, fala-se também de cedros de Deus quando se quer
aludir à sua insólita grandeza. E em Samuel, Livro 1, cap. II,
7, para exprimir um medo particularmente grande, diz-se:
um medo de Deus abateu-se sobre o povo. Nesse sentido, tudo
o que ia além da capacidade de compreensão dos judeus e
tudo aquilo de que, na altura, ignoravam as causas naturais
era habitualmente atribuído a Deus. À tempestade chama-
vam repreensão de Deus, aos trovões e relâmpagos flechas de
Deus, porquanto julgavam que Deus tinha os ventos encar-
cerados em cavernas a que chamavam a forja de Deus, não
divergindo dos pagãos sob esse aspecto, a não ser por julga-
rem que era Deus e não Eolo o guarda dos ventos. Pela mes-
ma razão ainda, aos milagres chamam obras de Deus, quer
dizer, obras estupendas, uma vez que, em boa verdade, todas
as coisas naturais são obras de Deus e só pelo poder divino [24]
existem e agem. É, portanto, nesse sentido que o salmista
chama poderes de Deus aos milagres do Egito, já porque, nu-
ma situação de extremo perigo, abriram aos hebreus uma via
de salvação absolutamente fora do que podiam esperar, já
porque os deixaram extremamente maravilhados.
Dado, pois, que às obras insólitas da natureza se chama
obras de Deus e às árvores de altura descomunal árvores de
Deus, nã; nos devemos admirar que no Génesis se chame fi-
lhos de Deus aos homens de estatura elevada e com muita
força, ainda que sejam ímpios, ladrões e devassos. Porque os
antigos, tanto os judeus como os gentios, costumavam atri-
buir a Deus tudo aquilo em que alguém excedia os demais.
Quando o Faraó ouviu a interpretação do sonho, disse que a
26 ESPINOSA

mente dos deuses estava em José, do mesmo modo que Na-


bucodonosor disse a Daniel que este possuía a mente dos deu-
•ses sagrados. E, até entre os latinos, não há nada mais freqüen-
te que dizer-se de uma coisa feita com arte que ela foi fabri-
cada por mão divina, o que, se quiséssemos traduzir para o
hebraico, deveríamos dizer, como muito bem sabem os he-
braístas, fabricada pela mão de Deus.
Com esses elementos, já podemos facilmente entender e
explicar as passagens da Escritura em que se menciona o Es-
pírito de Deus. De fato, o Espírito de Deus, o Espírito de Jeo-
vá, em algumas dessas passagens, não significa outra coisa
que um vento fortíssimo, extremamente seco e funesto, como
em Isaías, cap. XL, 7: o vento dejeová soprou sobre ele, isto é,
vento extremamente seco e funesto. E no Gênesis, cap. I, 2:
e o vento de Deus (ou vento fortíssimo) movia-se sobre as
águas. A mesma expressão significa ainda grande força: as-
sim, a força de Gedeão e de Sansão é d~signada, nos textos
sagrados, por Espírito de Deus, isto é, força cheia de audácia
e pronta para tudo. Da mesma maneira, chama-se Espírito ou
virtude de Deus a toda a virtude ou força fora do comum, tal
como no Ê.xodo, cap. XXXI, 3: e enchê-lo-ei (a Beseleel) do Es-
pírito de Deus, ou seja (como explica a própria Escritura), de
engenho e arte acima do comum dos homens. E em Isaías,
cap. XI, 2: repousará sobre ele o Espírito de Deus, quer dizer,
conforme o profeta explica mais adiante, e à semelhança do
que acontece freqüentemente nos textos sagrados, a virtude
da sabedoria, da prudência, da fortaleza, etc. Igualmente a
melancolia de Saul é referida como um Espírito maligno de
[251 Deus, isto é, uma melancolia profundíssima: foram, de fato,
os criados que o convenceram a chamar para junto de si um
músico que o divertisse tocando cítara, o que prova que, não
obstante chamarem à melancolia de Saul melancolia de Deus,
a tinham por melancolia natural.
O Espírito de Deus significa ainda a própria mente do ho-
mem, como emjó, cap. XXVII, 3: e o Espírito de Deus no meu
nariz, por alusão à passagem do Gênesis em que Deus insu-
fla o sopro da vida no nariz do homem. Igualmente Ezequiel,
profetizando aos mortos, diz (cap. XXXVII, 14): dar-vos-ei o
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 27

meu Espírito e vivereis, ou seja, restituir-vos-ei a vida. No mes-


mo sentido, afirma-se em ]ó, cap. XXXIV, 14: se Ele (Deus)
quiser, recolherá o seu Espírito (isto é, a mente que nos deu)
e a sua alma. É desse modo que se deve também entender o
Gênesis, cap. VI, 3: nunca mais o meu espírito raciocinará
(ou discernirá) no homem, porque ele é carne; ou seja, a par-
tir de agora, o homem agirá segundo a lei da carne e não da
mente que Eu lhe dei para que discernisse o bem. Do mes-
mo modo no Salmo LI, 12, 13: cria em mim, ó Deus um co-
ração puro e renova em mim um espírito (um apetite) decen-
te (moderado), não me afastes do teu olhar nem me tires a
idéia da tua santidade. Como acreditavam que a única fonte
dos pecados era a carne, enquanto a mente só aconselhava o
bem, o salmista invoca o auxílio de Deus contra o apetite
carnal, ao passo que para a mente, que lhe foi dada pelo Deus
Santo, só pede que Deus lha conserve. Ora, assim como a
Escritura costuma descrever Deus à semelhança do homem
e, dada a ignorância do vulgo, atribuir-lhe mente, vontade,
paixões, até mesmo um corpo e um hálito, assim também
utiliza muitas vezes espírito de Deus por mente, quer dizer,
por ânimo, paixão, força e hálito da boca de Deus. Assim,
Isaías, no cap. XL, 13, pergunta: quem dispôs o espírito de Deus
(ou a mente), quer dizer, quem, a não ser o próprio Deus,
levou a mente divina a querer algo? E no cap. LXIII, 10: en-
cheram de amargura e de tristeza o espírito da sua santida-
de. É por isso que Espírito de Deus se costuma traduzir por
Lei de Moisés, dado que, de algum modo, ela exprime a
mente de Deus, conforme se observa em Isaías, no mesmo [26J
capítulo, vers. 11: onde está (o) que pôs no meio deles o espí-
rito da sua santidade(?), isto é, a Lei de Moisés, de acordo
com todo o contexto da frase. E em Nehemias, cap. IX, 20:
deste-lhes o espírito, a tua mente boa, para os tornares inteli-
gentes. Isso por alusão ao tempo da Lei, a qual também alu-
de aquela passagem do Deutoronômio cap. IV, 6, em que
Moisés diz: porque ela (a Lei) é a vossa ciência e a vossa pru-
dência, etc. O mesmo se passa no Salmo CXLIII, 10: a tua
mente boa conduzir-me-á pela planície, isto é, a tua mente,
que nos foi revelada, conduzir-me-á pelo reto caminho.
28 ESPINOSA

Mas Espírito de Deus, como dissemos, significa também o


hálito, que a Escritura, à semelhança do que faz com a men-
te, o ânimo e o corpo, impropriamente atribui a Deus, como
acontece no Salmo XXXIII, 6; significa ainda o poder, a força,
ou virtude de Deus, como em ]ó, cap. XXXIII, 4: o espírito de
Deus me criou, quer dizer, a sua virtude, o seu poder ou, se
quisermos, o seu decreto. E o salmista, falando poeticamente,
diz ainda que por ordem de Deus foram feitos os céus e pelo
espírito ou sopro da sua boca (isto é, pelo seu decreto, emiti-
do como que por um sopro) se criou todo o seu exército. O
mesmo acontece no Salmo CXXXIX, 7: aonde irei (que esteja)
fora do teu espírito, ou para onde fugirei (que fique) fora do
teu alcance, quer dizer, como se vê pelas passagens em que
o próprio salmista desenvolve depois esta idéia, aonde posso
eu ir que escape ao teu poder e à tua presença?
Finalmente, Espírito de Deus emprega-se nas Escrituras
para significar as predisposições da vontade divina, a sua
bondade e misericórdia, como em Miquéias, cap. II, 7: acaso
diminuiu o espírito de Deus (quer dizer, a sua misericórdia)?
São essas (crueldades) as suas obras? Igualmente em Zaca-
rias, cap. IV, 6: não por meio de um exército, nem pela força,
mas apenas pelo meu espírito, ou seja, apenas pela minha
misericórdia. É nesse sentido que penso dever entender-se
também o vers. 12 do capítulo VII do mesmo profeta: e o seu
coração tornou-se astucioso, para não obedecerem à Lei e aos
Mandamentos que Deus, através dos primeiros profetas, lhes
enviou segundo o seu espírito (isto é, a sua misericórdia). Diz,
no mesmo sentido, Ageu, cap. II, 5: o meu espírito (ou a mi-
nha graça) permanece entre vós, não tenhais medo. Quanto
[271 ao que diz Isaías - e agora o Senhor Deus me enviou, e o seu
espírito (cap. XLVIII, 16) - tanto pode entender-se por vonta-
de e misericórdia de Deus como ainda pela sua mente reve-
lada na Lei. Com efeito, ele diz: desde o princípio (desde·a
primeira vez que vim junto de vós para pregar a cólera de
Deus e a sentença por ele proferida contra vós) jamais falei
às escondidas, desde que ela foi (proferida) eu compareci
(como o profeta confirmou no cap. VII), mas agora sou um
mensageiro da alegria enviado pela misericórdia de Deus para
TRATADO TEOLÓGICO-POÚT1CO 29
cantar a vossa restauração. Também pode, como disse, tradu-
zir-se por mente divina revelada na Lei, quer dizer, por aqui-
lo de que o profeta, conforme já estava determinado na Lei
(Levítico, cap. XIX, 17) os veio advertir. Por isso ele os adver-
te nas mesmas condições e do mesmo modo que Moisés cos-
tumava fazer. E termina, enfim, predizendo-lhes a restauração,
como também fizera Moisés. A primeira explicação parece-me,
no entanto, mais ajustada.
Dito isso, e para voltar, finalmente, ao que nos interes-
sa, ficam explicadas frases como estas que vêm na Escritura:
o profeta teve o espírito de Deus, Deus infunde o seu espírito
nos homens, os homens estão repletos do espírito de Deus e do
Espírito Santo, etc. Na verdade, elas significam apenas que
os profetas eram dotados• de uma virtude singular e acima
do comum e cultivavam, com exímia perseverança, a pieda-
de, além de que percebiam a mente e a intenção de Deus.
Demonstramos, com efeito, que espírito tanto pode significar
em hebraico a mente como a intenção e que, por tal motivo,
a própria Lei, na medida em que exprimia a mente de Deus,
era designada por mente ou Espírito de Deus. Por idêntico
motivo, a imaginação dos profetas podia designar-se por
mente de Deus, já que por ela eram revelados os decretos di-
vinos, e podia dizer-se que os profetas tinham a mente de
Deus. E embora a mente de Deus e os seus eternos pensa-
mentos estejam igualmente inscritos na nossa mente e, por
conseguinte, também nós compreendemos (para falar como
a Escritura) a mente de Deus, no entanto, como o conheci-

•Anotação III. Embora alguns homens possuam certos dons que a na-
tureza recusa aos outros, não se diz, contudo, que eles excedem a natureza
humana, a menos que esses dons sejam tais que não possam compreender-
se a partir da definição da mesma natureza. Por exemplo, a altura do gigante
é rara, mas, apesar disso, é humana. Pouquíssimos são os que conseguem
improvisar poemas e, no entanto, isso é humano [há até quem o faça com
a maior das facilidades]. Ou imaginar certas coisas de olhos abertos com
tanta vivacidade como se elas estivessem mesmo na frente. Porém, se exis-
tisse alguém que tivesse um outro meio de compreender e outros funda-
mentos para o conhecimento, esse sim, ultrapassaria os limites da natureza
humana.
30 ESPINOSA

menta natural é comum a todos, já não possui, conforme dis-


semos, o mesmo valor aos olhos dos homens, em particular
dos hebreus, que se gabavam de ser superiores a todos e,
em geral, tinham até desprezo por todos, desprezando, con-
seqüentemente, a ciência que é comum aos homens. Por úl-
timo, dizia-se que os profetas tinham o espírito de Deus por-
que os homens ignoravam as causas do conhecimento profé-
(28] tico e, por isso, admiravam-no e atribuíam-no a Deus, como
faziam com qualquer outro prodígio, chamando-lhe conheci-
mento de Deus.
Pode-se, pois, afirmar agora sem nenhuma reticência que
os profetas não perceberam a revelação divina senão através
da imaginação, isto é, mediante palavras ou imagens, as quais
ora eram reais, ora imaginárias. Na verdade, se não encontra-
mos na Escritura outros meios além destes, também não nos é
lícito, conforme demonstramos, inventá-los. No que toca, po-
rém, às leis da natureza segundo as quais tal aconteceu, con-
fesso que as ignoro. Poderia, evidentemente, dizer, como ou-
tros fazem, que é em virtude do poder de Deus, mas isso não
passava de conversa fiada. Seria o mesmo que querer expli-
car a forma de qualquer coisa singular por um termo trans-
cendental 12. De fato, tudo é feito pelo poder de Deus e, além
disso, na medida em que o poder da natureza não é senão o
próprio poder de Deus, nós não compreenderemos este en-
quanto ignorarmos as causas naturais. É, portanto, insensato
recorrer a ele quando ignoramos ainda a causa natural de
qualquer coisa, que o mesmo é dizer, o próprio poder de
Deus. Verdadeiramente, nem sequer é preciso sabermos qual
a causa do conhecimento profético: como já disse, o que ten-
tamos aqui analisar são apenas os ensinamentos das Escritu-
ras, para deles extrairmos, como se se tratasse de dados natu-
rais, as nossas conclusões. Quanto às causas de tais ensinamen-
tos, essas não nos preocupam13 .
Tendo, portanto, os profetas percebido pela imaginação
o que Deus lhes revelou, não restam dúvidas de que eles po-
deriam ter percebido muitas coisas que excedem os limites do
entendimento, pois com palavras e imagens se podem com-
por muitas mais idéias do que só com os princípios e as no-
ções em que se baseia todo o nosso conhecimento natural1 4 •
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍT1CO 31

É, além disso, evidente a razão por que os profetas per-


ceberam e ensinaram quase tudo por parábolas e enigmas e
exprimiram sob forma corpórea todas as coisas espirituais: é
que assim elas se adaptam melhor à natureza da imaginação.
E não é para admirar o fato de as Escrituras ou os profetas fa-
larem tão imprópria e obscuramente do espírito ou da mente
de Deus, como nos Números, cap. XI, 17, nos Reis, livro 1, cap.
XXII, 2, etc. Ou de Miquéias ver Deus sentado, enquanto Da-
niel o vê com o aspecto de um ancião vestido de branco e
Ezequiel como uma chama; ou ainda de os discípulos de Cris-
to terem visto o Espírito Santo como uma pomba que descia
e os apóstolos o verem como línguas de fogo; ou, finalmente,
de Paulo, antes da conversão, ter visto uma grande luz. Tudo [29l
isso está, com efeito, plenamente de acordo com o que o vul-
go imagina sobre Deus e os espíritos.
Por último, e porque a imaginação é vaga e inconstante,
a profecia era depressa esquecida pelos profetas, além de
não ser freqüente mas extremamente rara, isto é, concedida
a muito poucos homens e, mesmo a estes, só muito raramen-
te. Assim sendo, temos de ver agora onde é que se baseava a
certeza dos profetas a respeito de coisas que percebiam ape-
nas pela imaginação e não pelos princípios certos da mente.
Porém, tudo quanto acerca disso se pode afirmar tem de ser
extraído da Escritura, visto não possuirmos, como já disse, uma
verdadeira ciência de tais assuntos nem os podermos expli-
car pelas causas primeiras. Vou, por isso, expor no próximo
capítulo o que a Escritura ensina sobre a certeza que possuíam
os profetas, visto que são eles, precisamente, o tema que aí
decidi abordar.
CAPÍTULO II

Dos profetas

Do capítulo anterior, como já referimos, resulta que os


profetas não foram dotados de uma mente mais perfeita mas
sim de uma capacidade de imaginar mais viva, conforme as
narrativas da Escritura abundantemente ensinam. Consta, com
efeito, que Salomão era superior aos outros pela sabedoria e
não pelo dom profético. Da mesma forma, homens de gran-
de saber, como Heman, Darda, Kalchol, não foram profetas,
e homens rústicos e alheios a qualquer ciência, ou até mu-
lherzinhas como Agar, serva de Abraão, tiveram o dom profé-
tico. O que está, aliás, de acordo com a experiência e a razão:
aqueles que sobressaem pela imaginação são menos aptos
para compreender as coisas de maneira puramente intelec-
tual; em contrapartida, os que sobressaem mais pelo intelec-
to e o cultivam superiormente, possuem uma capacidade de
imaginar mais temperada, mais regrada e como que a re-
freiam para que assim não se misture com o intelecto. Estão,
portanto, no caminho errado os que procuram a sabedoria e
o conhecimento, quer das coisas naturais, quer das espirituais,
nos livros dos profetas. E é isso que. eu me proponho de-
monstrar aqui desenvolvidamente, já que tanto a nossa épo-
ca, como a Filosofia e o próprio argumento do livro o exigem,
pouco me importando que a superstição desate aos gritos, ela
[301 que odeia acima de tudo os que cultivam a verdadeira ciên-
cia e a verdadeira vida. Porque as coisas, infelizmente, chega-
ram a um ponto em que até homens que confessam aberta-
TRATADO 7EOLÓGICO-POLÍT1CO 33
mente não ter a mínima idéia de Deus nem o conhecer senão
pelas coisas criadas (das quais ignoram as causas) não se en-
vergonham de acusar de ateísmo os filósofos.
Indo por partes, mostrarei que as profecias variam em
função, quer da imaginação e da compleição física de cada
profeta, quer das opiniões de que eles estavam imbuídos; mos-
trarei, além disso, que a profecia nunca tornou os profetas
mais sábios, conforme a seguir explicarei desenvolvidamente.
Antes, porém, tenho de tratar aqui da certeza dos profetas, já
porque ela tem a ver com o tema deste capítulo, já porque é
de alguma utilidade para o que pretendemos demonstrar.
Uma vez que a simples imaginação não envolve por si
mesma, como acontece com toda a idéia clara e distinta, uma
certeza, sendo necessário, para estarmos certos das coisas que
imaginamos, acrescentar-lhe algo mais, a saber, o raciocínio,
resulta que a profecia não implica em si mesma uma certeza,
pois depende, como já demonstramos, apenas da imagina-
ção. Daí que os profetas não tivessem a certeza da revelação
de Deus através da própria revelação, mas sim através de
qualquer sinal1, como aconteceu com Abraão (ver Génesis,
cap. XV, 8), que, depois de ouvir a promessa de Deus, rogou
um sinal. Mas ele acreditava em Deus, e não foi, portanto,
para ter fé que pediu o sinal, mas para ter a certeza de que
era Deus quem lhe fazia tal promessa. O mesmo acontece,
mais claramente ainda, com Gedeão, que se dirige a Deus
nestes termos: dá-me um sinal (para que eu saiba) que és tu
que falas comigo (juízes, cap. VI, 17). Também a Moisés Deus
diz: que isto (seja) para ti um sinal de que eu te enviei. Eze-
quias, que desde há muito sabia que Isaías era profeta, pediu-
lhe um sinal da profecia em que este anunciava que ele se
havia de curar. Isso mostra precisamente que os profetas ti-
nham sempre um sinal qualquer através do qual se certifica-
vam das coisas que profeticamente imaginavam. Moisés, in-
clusive, adverte-os (Deuteronômio, cap. XVIII, último versí-
culo) para que exijam do profeta um sinal, isto é, o prenúncio
de um acontecimento futuro. Desse ponto de vista, a profecia
é, portanto, inferior ao conhecimento natural, que não preci-
sa de nenhum s~nal uma vez que, pela sua própria natureza,
34 ESPINOSA

já implica uma certeza. Com efeito, a certeza profética não


era, evidentemente, uma certeza matemática, mas apenas mo-
[311 ral, conforme consta também da própria Escritura. Moisés
(Deuteronômio, cap. XIII) avisa que, se algum profeta quiser
ensinar novos deuses, deve ser condenado à morte, mesmo
que confirme a sua doutrina por meio de sinais e milagres, pois,
como acrescenta ainda Moisés, Deus também faz sinais e mi-
lagres para tentar o povo 2 • E Cristo fez a mesma advertência
aos discípulos, como se pode ver em Mateus, cap. XXIV, 24.
Também Ezequiel (cap. XIV, 9) ensina claramente que Deus
engana por vezes os homens com falsas revelações, pois diz:
e quando um profeta (isto é, um falso profeta) se enganar e
pronunciar uma palavra, fui eu, vosso Deus, que enganei
esse profeta. E Miquéias (ver Reis, livro I, cap. XXII, 23) expri-
me a mesma opinião sobre os profetas de Acab.
Embora isso pareça mostrar que a profecia e a revelação
eram coisas bastante duvidosas, havia nelas, contudo, e como
dissemos, muito de certeza. Deus, efetivamente, nunca enga-
na os piedosos e os eleitos; pelo contrário, como reza o dita-
do antigo (ver Samuel, livro I, cap. XXIV, 14), e como se vê
pela história de Abigael e pela sua oração, Deus serve-se dos
piedosos como instrumentos da sua piedade e dos ímpios
como executores e intermediários da sua cólera. No citado caso
de Miquéias, verifica-se isso mesmo com toda clareza: apesar
de Deus ter decidido enganar Acab por meio dos profetas,
serviu-se unicamente de falsos profetas, revelando a verdade
das coisas a um que era piedoso, sem o proibir de a predi-
zer. No entanto, tal como eu disse, a certeza do profeta era
apenas moral, pois ninguém pode justificar-se perante Deus
nem orgulhar-se de ser o instrumento da divina piedade,
como ensina a Escritura e como resulta da própria natureza
das coisas. Até Davi, cuja piedade é abundantemente confir-
mada na Escritura, foi levado pela cólera de Deus a fazer o
recenseamento do povo 3 •
Toda a certeza profética assentava, por conseguinte, nes-
tes três fundamentos: 1º - os profetas imaginavam as coisas
reveladas de forma extremamente nítida, tal como os objetos
se nos costumam apresentar quando estamos acordados; 2º -
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTlCO 35
obtinham um sinal; 3º - por último, e acima de tudo, a única
coisa que os movia era a justiça e o bem. Apesar de a Escri-
tura nem sempre mencionar o sinal, é de crer que os profe-
tas o tiveram sempre, dado que ela não costuma (como já foi
observado por muitos) descrever todas as condições e cir-
cunstâncias, pressupondo, pelo contrário, certas coisas como já
conhecidas. Podemos até admitir que os profetas que não (321
profetizassem nada de novo e que não estivesse já contido
na Lei de Moisés não precisavam de sinal, uma vez que eram
confirmados pela Lei. Por exemplo: a profecia de Jeremias
sobre a devastação de Jerusalém era confirmada pelas profe-
cias de outros profetas e pelas ameaças da Lei, não precisan-
do, portanto, de um sinal; mas Ananias, que profetizava, ao
contrário de todos os profetas, a restauração da cidade para
daí a pouco, tinha necessidade de um sinal, pois, de outra for-
ma, seria obrigado a duvidar da sua profecia até que a ocor-
rência das coisas por ele preditas a confirmasse (ver jeremias,
cap. XXVIII, 9).
Visto, pois, que a certeza que os profetas obtinham pe-
los sinais não era matemática (ou seja, resultante da necessi-
dade da percepção da coisa percebida ou vista), mas apenas
moral, e como os sinais não se destinavam senão a persuadir
o profeta, resulta que eles eram adaptados às opiniões e à
capacidade de cada um, de tal maneira que o sinal que dava
a esse profeta a certeza da sua profecia podia não convencer
minimamente um outro que estivesse imbuído de opiniões
diferentes. Por isso, os sinais variavam conforme o profeta. A
própria revelação, como já dissemos, variava de profeta para
profeta, conforme o seu temperamento, a sua imaginação e
as opiniões que anteriormente perfilhava. As variações que
se verificavam em função do temperamento eram assim: se o
profeta era alegre, revelavam-se-lhe as vitórias, a paz e tudo
o que é motivo de alegria para os homens, visto as pessoas
com esse temperamento costumarem imaginar com freqüên-
cia semelhantes coisas; se, pelo contrário, ele era macambú-
zio, revelavam-se-lhe as guerras, os suplícios e todos os ma-
les; em suma, conforme ele fosse bondoso, afável, irascível,
severo, etc., assim estaria mais apto para estas ou para aque-
36 ESPINOSA

las revelações. Em função da imaginação também se verifica-


vam diferenças, tais como: se o profeta era requintado, re-
quintado era também o estilo em que apreendia a mente de
Deus; se, pelo contrário, era confuso, apreendia-a confusa-
mente. Outro tanto acontece com as revelações por imagens:
se o profeta era um rústico, apareciam-lhe bois e vacas; se
era, porém, soldado, apareciam-lhe chefes e exércitos; se era,
enfim, um homem da corte, o que lhe aparecia era o trono
real e coisas semelhantes. Por último, a profecia variava con-
forme a diversidade de opiniões dos profetas: aos Magos (ver
Mateus, cap. II), que acreditavam nas frivolidades da astrolo-
gia, o nascimento de Cristo foi anunciado pela aparição de
(331 uma estrela surgida no Oriente; aos adivinhos de Nabucodo-
nosor (ver Ezequiel, cap. XXI, 26) foi revelada a destruição
de Jerusalém nas vísceras dos animais, revelação que o rei ti-
vera também pelos oráculos e pela direção das setas dispara-
das para o ar. E, aos profetas que acreditavam que os homens
agem por livre-arbítrio e pelo próprio poder, Deus revelava-
se como indiferente e desconhecedor das futuras ações hu-
manas. Mas já demonstraremos tudo isso em pormenor e com
base na Escritura.
O primeiro ponto está patente no caso de Eliseu (Reis,
livro II, cap. III, 15), o qual, para profetizar a Jeroboão, pediu
um instrumento musical e não conseguiu perceber a mente de
Deus enquanto não se deleitou com a música desse instru-
mento: só então predisse a Jeroboão e aos seus companhei-
ros boas notícias, coisa que antes não podia acontecer por-
que estava irritado com o rei. Quem está irritado com al-
guém é capaz de imaginar males a seu respeito, nunca coisas
boas. Mas os que pretendem que Deus não se revela aos ira-
dos e aos tristes estão, de fato, delirando, porque Deus reve-
lou a Moisés, que estava irado contra o faraó, a terrível ma-
tança dos primogênitos (Êxodo, cap. II, 8), sem a ajuda de
nenhum instrumento musical. Da mesma forma, Deus reve-
lou-se a Caim quando este estava furioso. A Ezequiel, impa-
ciente de ira, foi revelada a desgraça e a obstinação dos ju-
deus (Ezequiel, cap. III, 14); Jeremias, acabrunhado e invadi-
do por um enorme tédio pela vida, profetizou as calamida-
TRATADO TEOLÓG/CO-POLÍ11CO 37
des dos judeus, de tal maneira que ]osias não o quis consultar,
preferindo uma mulher da mesma idade que estivesse, pelo
seu caráter feminino, mais predisposta a revelar-lhe a miseri-
córdia de Deus (Paralipômenos, livro II, cap. XXXIV). Mi-
quéias, por seu turno, jamais profetizou algo de bom para
Acab, embora outros profetas verdadeiros o tenham feito
(como se pode ver no livro I dos Reis, cap. XX), e durante
toda a sua vida só lhe anunciou males (Reis, livro I, cap.
XXII, 8, e, de maneira ainda mais clara, Paralipômenos, Livro
II, cap. XVIII, 7). Conforme o seu temperamento, assim os pro-
fetas estavam, portanto, mais aptos para estas ou para aque-
las revelações.
Depois, o estilo da profecia variava segundo a eloqüên-
cia de cada profeta. As profecias de Ezequiel e de Amós não
possuem o estilo elegante das de Isaías e Naum e estão escri-
tas de forma mais rude. Se alguém que domine a língua he-
braica o quiser verificar com mais atenção, compare os capítu-
los de vários profetas que versam sobre o mesmo tema e notará
uma grande discrepância de estilo. Compare, por exemplo, o
capítulo I do homem da corte que é Isaías (do versículo 11
até o 20) com o capítulo V do camponês Amós (do versículo [341
21 até o 24). Compare depois a ordem e os argumentos da
profecia que Jeremias escreveu (cap. XLIX) contra a Iduméia
com a ordem e os argumentos de Abdias. Compare ainda os
capítulos XL, 19-20, e XLIV, a partir do versículo 8 de Isaías
com os capítulos VIII, 6, e XIII, 2 de Oséias. Etc. Corretamen-
te analisados, todos esses exemplos mostram que Deus não
possui nenhum estilo peculiar de falar e que, conforme a eru-
dição e os dotes do profeta, assim ele será requintado, lacôni-
co, severo, rude, prolixo ou obscuro.
As representações proféticas e os sinais hieroglíficos, em-
bora significassem o mesmo, eram, contudo, diferentes: a gló-
ria de Deus abandonando o templo não se apresenta a Isaías
da mesma forma que a Ezequiel. Os rabinos, é verdade, pre-
tendem que uma e outra representação foram absolutamente
idênticas, não obstante Ezequiel, como rústico que era, ter fi-
cado extremamente admirado e fazer, por isso, a sua descri-
ção com todos os pormenores. Mas isso é pura invenção, a
38 ESPINOSA

menos que eles tenham tido uma tradição absolutamente se-


gura sobre o assunto, o que eu não acredito. Porque Isaías vê
serafins de seis asas e Ezequiel vê animais de quatro. Isaías vê
Deus vestido e sentado num trono régio. Ezequiel o vê como
uma chama. Ambos o vêem, sem dúvida, mas conforme cada
um costumava imaginá-lo.
As representações variavam, além disso, não só pela sua
natureza mas também pela nitidez: as de Zacarias, como ele
próprio narra, eram obscuras demais para que as pudesse
compreender sem explicação; porém, as de Daniel, nem mes-
mo explicadas ele pôde compreendê-las. Não pela dificulda-
de do assunto revelado (tratava-se apenas de coisas huma-
nas, não excedendo, portanto, os limites da capacidade hu-
mana a não ser por pertencerem ao futuro), mas unicamente
porque a imaginação de Daniel não tinha a mesma capacida-
de de proferizar quando ele estava acordado e quando so-
nhava, como se vê pelo fato de ter ficado, mal começou a re-
velação, tão aterrado que quase desesperou das suas forças.
Foi portanto, pela debilidade da sua imaginação e das suas
forças que as coisas se lhe representaram tão obscuras e não
as pôde compreender mesmo depois de explicadas. Convém
aqui lembrar que as palavras ouvidas por Daniel (mostramo-
lo acima) foram só imaginárias; não admira, pois, estando ele
[351 perturbado nesse momento, que tenha também imaginado
confusa e obscuramente todas aquelas palavras, de tal modo
que não conseguiu depois entender nada do que imaginara.
Quanto àqueles que pretendem que Deus não quis fazer
uma revelação clara a Daniel, parece que não leram as pala-
vras do anjo, o qual diz expressamente (cap. X, 14) que veio
para fazer Daniel compreender o que aconteceria ao seu
povo nos dias futuros. As coisas ficaram, portanto, obscuras
porque na altura não havia ninguém com suficientes dotes
de imaginação para que elas lhe pudessem ser reveladas de
modo mais claro. Finalmente, os profetas a quem foi revela-
do que Deus iria arrebatar Elias queriam convencer Eliseu de
que ele fora levado para um outro lugar onde ainda o pode-
riam encontrar, o que mostra que não tinham entendido cor-
retamente a revelação de Deus. Não é necessário, aliás, insis-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO 39

tir muito nessa matéria, pois não há nada que a Escritura ex-
plicite com mais clareza que o fato de Deus ter concedido o
dom de profetizar a uns profetas em grau mais elevado que
a outros/Mostrarei, todavia, com mais atenção e pormenor,
que as profecias ou representações variavam segundo as opi-
niões perfilhadas pelos profetas e que estes tiveram opiniões
diferentes, até mesmo opostas, além de preconceitos diversos
(refiro-me apenas a coisas especulativas, pois quanto à probi-
dade e aos bons costumes há que pensar de outra maneira).
Julgo ser essa a questão mais importante, já que é a partir daí
que vou concluir que a profecia nunca torna os profetas mais
sábios, antes os deixa com as suas opiniões preconcebidas,
razão pela qual não somos obrigados a dar-lhes crédito em
matérias puramente especulativas.
É, de fato, surpreendente a facilidade com que toda a
gente se persuadiu de que os profetas sabiam tudo quanto o
entendimento humano pode atingir, e, como se julga preferí-
vel, apesar de certas passagens da Escritura dizerem claramen-
te que eles ignoravam algumas coisas, confessar que não se
entendem essas passagens a admitir que os profetas ignora-
ram algo. Ou, então, as pessoas esforçam-se por torturar as
palavras da Escritura a ver se as obrigam a dizer o que, ma-
nifestamente, elas não querem dizer. É claro que, se fosse lí-
cito qualquer desses dois processos, ficaria em causa toda a
Escritura; debalde tentaríamos, com efeito, demonstrar fosse
o que fosse a partir dela, se nada nos impedisse de colocar
passagens que são meridianamente claras entre as que são
obscuras e impenetráveis ou de interpretá-las como quisés-
semos. Por exemplo, não há coisa mais óbvia na Escritura
que o fato de Josué, e porventura o autor que escreveu a sua
história, julgarem que o Sol se movia em torno da Terra, que (36]
esta, por seu turno, estava parada e que o Sol permaneceu
imóvel por alguns instantes. Há, todavia, quem, por não que-
rer admitir que se possa verificar alguma mudança nos céus,
explique aquela passagem de tal maneira que ela já não pa-
rece dizer nada de semelhante; outros, ainda, que aprende-
ram a filosofar de forma mais correta e sabem que a Terra se
move ao passo que o Sol está parado, ou melhor, não se move
40 1ESPINOSA

à volta da Terra, tentam por todos os meios extorquir essa


verdade da Escritura, por mais que ela diga exatamente o
contrário 4 • É realmente de ficar maravilhado. Acaso, pergun-
to eu, seremos obrigados a acreditar que um soldado como
Josué era versado em astronomia? Ou que não podia ter-lhe
sido revelado um milagre? Ou que a luz do Sol não podia
permanecer mais tempo que de costume no horizonte, sem
que Josué soubesse a razão desse fenômeno? Qualquer des-
sas interpretações me parece, evidentemente, ridícula. Prefi-
ro dizer abertamente que Josué ignorava a verdadeira razão
por que se demorava mais a luz do dia e que, à semelhança
da multidão que estava à sua volta, julgava que o Sol girava
à volta da Terra mas tinha parado, naquele dia, por alguns
instantes, acreditando ser esta a razão por que continuava a
ser dia, sem reparar que a excessiva quantidade de gelo que,
naquele momento, havia na atmosfera (ver Josué, cap. X, 11),
podia ter originado uma refração maior do que era habitual,
ou qualquer outro fenômeno semelhante que não investiga-
remos aqui.
De igual modo, o sinal de retrogradação da sombra foi
revelado a Isaías de maneira adequada à sua inteligência, ou
seja, pela retrogradação do Sol, pois também ele julgava que
o Sol se movia e que a Terra estava parada. E nem por so-
nhos pensou alguma vez nos parélios'. Mas nós podemos
afirmá-lo sem nenhum escrúpulo, porque o sinal podia efeti-
vamente verificar-se e ser anunciado por Isaías ao Rei, se
bem que o profeta ignorasse a sua verdadeira causa. O mes-
mo se diga da obra de Salomão, se, de fato, ela foi revelada
por Deus, isto é, que todas as medidas lhe foram reveladas
de maneira adequada à sua capacidade de compreensão e às
suas opiniões. Com efeito, não sendo nós obrigados a acre-
ditar que Salomão era matemático, podemos afirmar que ele
ignorava a proporção existente entre o perímetro e o diâme-
tro duma circunferência, julgando, como qualquer dos ope-
rários, que era de 3 para 1. Porque, se é lícito dizer que nós
não compreendemos aquele texto do livro I dos Reis, cap.
VII, 23, muito francamente, não sei o que podemos com-
preender da Escritura, já que nessa passagem apenas se des-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 41

creve a obra numa perspectiva estritamente histórica. E, se


fosse possível supor que [o autor d'] a Escritura era de outra
opinião mas que, por qualquer motivo desconhecido, quis 1371
escrever assim, estaríamos então, nem mais nem menos, dian-
te da completa ruína de toda a Escritura: quem quer que fos-
se poderia, efetivamente, e, com igual direito, dizer o mesmo
de todas as outras passagens e tudo o que de absurdo e mau
a malícia humana é capaz de excogitar seria licitamente de-
fensável e perpetrável a coberto da autoridade da Escritura.
Não existe, aliás, nenhuma coisa de ímpio naquilo que sus-
tentamos, pois Salomão, Isaías, Josué, etc., apesar de serem
profetas, foram, contudo, homens e nada do que é humano
se lhes deve considerar estranho. Também a Noé foi revela-
do, de acordo com a sua capacidade de compreensão, que
Deus destruiria o gênero humano, pois ele julgava que o
mundo não era habitado para além da Palestina. Coisas des-
se gênero e até outras de maior importância podem ter sido,
e foram mesmo, ignoradas pelos profetas, sem prejuízo da
sua piedade. Efetivamente, eles não ensinaram nada de es-
pecial a respeito dos atributos divinos; pelo contrário, sus-
tentaram opiniões sobre Deus absolutamente vulgares. Aliás,
as suas revelações estão em conformidade com tais opiniões,
como irei demonstrar através de muitos exemplos da Escritu-
ra, a fim de que o leitor veja facilmente que não é tanto pela
excelência e superioridade do seu talento que os profetas são
louvados e recordados, mas sim pela piedade e perseveran-
ça da vontade.
Adão, o primeiro a quem Deus se revelou, ignorava que
Deus está em toda parte e é onisciente, pois escondeu-se e
tentou desculpar-se do seu pecado como se estivesse peran-
te outro homem. Isso mostra que também a ele Deus se re-
velou de acordo com a sua capacidade de compreensão,
quer dizer, como alguém que não estivesse em toda parte e
que desconhecesse, tanto o pecado de Adão, como o lugar
onde ele se escondia. Por isso ouviu, ou pareçeu-lhe ouvir,
Deus andar pelo jardim a chamá-lo e a perguntar-lhe onde
estava, inquirindo depois, ao vê-lo envergonhado, se tinha
comido o fruto da árvore proibida. Adão, por conseguinte,
42 ESPINOSA

não conhecia nenhum atributo de Deus, exceto o ter sido ele


o autor de todas as coisas.
Também a Caim Deus se revelou de maneira adequada à
sua capacidade de compreensão, a saber, como ignorante das
coisas humanas; nem, de resto, era necessário, para se arre-
pender do seu pecado, ter um conhecimento mais perfeito de
Deus. A Labão revelou-se como o Deus de Abraão, porque ele
acreditava que cada nação possuía o seu deus particular ( Gê-
nesis, cap. XXXI, 29). E mesmo Abraão ignorou que Deus está
em toda parte e conhece antecipadamente todas as coisas:
com efeito, ao ouvir a sentença contra os habitantes de Sodo-
[381 ma, pediu a Deus que não a executasse antes de saber se to-
dos seriam merecedores daquele suplício. Talvez - diz ele ( Gê-
nesis, cap. XVIII, 24) - se encontrem nessa cidade cinqüenta
justos. Deus, aliás, não se lhe tinha revelado de outro modo,
já que fala assim na imaginação de Abraão: descerei agora,
para ver se os seus atos foram tão graves quanto o clamor que
me chegou ou, se assim não for, para que (o) saiba. Inclusive,
o testemunho divino sobre Abraão (Gênesis, cap. XVIII, 19) re-
fere apenas a sua obediência e os conselhos que dava aos cria-
dos para que fossem justos e bons, mas não que ele tivesse
idéias sublimes acerca de Deus.
Tampouco Moisés percebeu bem que Deus é onisciente
e que todas as ações humanas se regem unicamente pela sua
lei, pois, apesar de Deus lhe ter dito (Êxodo, cap. III, 18) que
os israelitas lhe haviam de obedecer, põe isso em dúvida e
replica (Êxodo, cap. IV, 1): e se eles não acreditam em mim e
não me obedecem? Deus, por conseguinte, também a ele se
revelou como indiferente e desconhecedor das futuras ações
humanas. Por isso lhe deu dois sinais e disse (Êxodo, cap. IV,
8): se, por acaso, não acreditarem no primeiro, acreditarão
ao menos no último; mas, se nem sequer neste acreditarem,
toma (então) um pouco de água do rio, etc.
É, por outro lado, evidente que, se alguém quiser anali-
sar sem preconceitos as declarações de Moisés, verá claramen-
te que a opinião que ele fazia de Deus se resume a um ser
que sempre existiu, existe e existirá. Essa é a razão por que o
designa pelo nome de Jeová, que em hebraico exprime estes
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍTTCO 43

três tempos do verbo "existir". Mas, quanto à sua natureza,


nào ensinou nada a nào ser que ele é misericordioso, bene-
volente, etc. e, acima de tudo, ciumento, como consta de vá-
rias passagens do Pentateuco. Acreditou e ensinou, além dis-
so, que esse ser é de tal modo diferente de todos os outros
que seria impossível exprimi-lo por qualquer imagem de coi-
sa visível e que nem sequer pode ser visto, não tanto porque
isso fosse contraditório como por incapacidade humana. De-
pois, acreditou que Deus, no que respeita ao poder, é singu-
lar e único, embora concedendo que existam seres que (cer-
tamente por ordem e mandato divino) fazem as vezes dele,
isto é, seres a quem Deus concedeu autoridade, direito e po-
der para dirigir as nações, providenciar e cuidar delas. Ensi-
nou, contudo, que este ser a quem eram obrigados a prestar [391
culto era o Deus soberano e supremo, ou (para usar a ex-
pressão dos hebreus) o Deus dos deuses. Daí o afirmar no
cântico do Êxodo (cap. XV, 11): qual dentre os deuses é seme-
lhante a ti, Jeová? E Jetro (cap. XVIII, 11) diz: agora reconhe-
ço que Jeová é maior que todos os deuses, ou seja, sou obriga-
do a concordar com Moisés que Jeová é maior que todos os
deuses e que o seu poder é único.
É, no entanto, duvidoso que Moisés acreditasse realmen-
te que estes entes que faziam as vezes de Deus tinham sido
por ele criados, uma vez que, primeiro, e tanto quanto sei,
não diz nada sobre a sua criação e o seu princípio; segundo,
ensina que esse ser fez com que o mundo visível passasse
do caos à ordem (ver Gênesis, cap. I, 2) e introduziu-lhes os
gérmens 6 da natureza possuindo, por isso, o supremo direito
e o supremo poder sobre todas as coisas, e que (ver Deute-
ronômio, cap. X, 14-15) por esse seu direito e poder esco-
lheu só para si a nação hebraica e uma determinada região
do mundo (Deuteronômio, cap. IV, 19, a cap. XXXII, 8-9),
abandonando as outras nações e regiões ao cuidado dos ou-
tros deuses seus substitutos. Daí a razão por que se lhe cha-
mava Deus de Israel e Deus de Jerusalém (ver Paralipôme-
nos, livro II, cap. XXXII, 19), enquanto aos outros se chama-
va deuses das respectivas nações. .·•
44 ESP/NOSA

Era igualmente por esse motivo que os judeus acredita-


vam que aquela região que Deus tinha escolhido para si re-
queria um culto especial e completamente diferente do culto
das outras regiões, não podendo, portanto, ser ali tolerado
nenhum culto a outros deuses e próprio de outras regiões.
Tanto que acreditavam que aquelas gentes conduzidas pelo
rei da Assíria para as terras dos hebreus haviam de ser dilace-
radas pelos leões, pois ignoravam o culto dos deuses desta
terra (ver Reis, livro II, cap. XVII, 25-26, etc.). Por isso Jacó,
na opinião de Aben Esdra, quando quis tornar à pátria, disse
aos filhos para se prepararem para um novo culto e abando-
narem os deuses estrangeiros, isto é, o culto dos deuses
daquela terra 7 onde estavam na altura (Génesis, cap. XXXV,
2-3). De igual modo Davi, para dizer a Saul que tinha sido
obrigado, em virtude da perseguição que ele lhe movera, a vi-
ver longe da pátria, afirma que o expulsaram da herança de
Deus e o obrigaram a prestar culto a outros deuses (Samuel,
livro 1, cap. XXVI, 19).
Finalmente, Moisés acreditou que esse ser que era Deus
tinha o seu domicílio nos céus (Deuteronômio, cap. XXXIII,
27), opinião que era freqüente entre os gentios.
[401 Se repararmos agora nas revelações feitas a Moisés, ve-
rificaremos que elas se ajustavam a essas suas opiniões. Na
verdade, como ele acreditava que a natureza de Deus estava
sujeita aos condicionalismos que referimos, a saber, a miseri-
córdia, a benevolência, etc., Deus revelou-se-lhe de acordo
com tal opinião e sob esses atributos (ver Êxodo, cap. XXIV,
6-7, onde se descreve de que modo Deus apareceu a Moisés,
e Decálogo, 4 e 5). Seguidamente, no cap. XXXIII, 18, conta-
se que Moisés pediu a Deus que o deixasse vê-lo; mas como
Moisés, de acordo com o que já dissemos, não tinha nenhu-
ma imagem de Deus formada no cérebro, e dado que Deus,
consoante já mostrei, não se revela aos profetas senão em
conformidade com a sua imaginação, não lhe apareceu sob
nenhuma imagem. E aconteceu assim, repito, só porque re-
pugnava à imaginação de Moisés, já que outros profetas ga-
rantem que viram Deus, tais como, Isaías, Ezequiel, Daniel,
etc. Esse é o motivo por que Deus responde a Moisés: não
TRATADO TEOLÓG/CO-POLÍ17CO 45

poderás ver a minha face. Mas, como Moisés acreditava que


Deus era visível, isto é, que da parte da natureza divina não
implicaria nenhuma contradição o fato de ser visível (de con-
trário, nunca pediria semelhante coisa), Deus acrescentou: por-
que ninguém que me contempla ficará com vida. Dá, portan-
to, uma justificação consentânea com a imaginação de Moi-
sés. Não diz que isso implicaria uma contradição na natureza
divina, como, na realidade, implica, mas apenas que não pode
acontecer em virtude da incapacidade humana. E, de igual
modo, para revelar a Moisés que os israelitas, ao adorarem
um bezerro, tinham se tornado semelhantes aos outros po-
vos, Deus afirma (cap. XXXIII, 2-3) que vai enviar um anjo,
isto é, um ser que cuidasse dos israelitas em substituição do
ser supremo, pois não quer continuar no meio deles. Assim,
já nada restava a Moisés que o levasse a crer que os israelitas
eram mais amados por Deus que as restantes nações, as quais
também tinham sido entregues aos cuidados de outros entes,
ou seja, de anjos", conforme consta do versículo 16 domes-
mo capítulo. Finalmente, porque Moisés acreditava que Deus
morava nos céus, Deus revelava-se como que descendo do
céu sobre a montanha, enquanto Moisés, para lhe falar, su-
bia à mesma montanha, coisa que seria desnecessária se ele
pudesse imaginar com igual facilidade que Deus está em
toda parte.
Os israelitas não conheceram quase nada acerca de Deus,
embora ele se lhes tenha revelado, como abundantemente
demonstraram, poucos dias depois, ao prestarem as honras e
o culto que lhe era devido a um bezerro e ao acreditarem se-
rem deuses como Este que os tinham tirado do Egito. Nem é
de crer que homens habituados às superstições dos egípcios, [411
rudes e alquebrados pelas misérias da escravidão, tenham
pensado algo de saudável acerca de Deus, ou que Moisés
lhes tenha ensinado mais do que uma norma de vida;não na
qualidade de filósofo, de maneira que fossem de livre vonta-
de coagidos a praticar o bem, mas na qualidade de legislador,
de maneira que o fizessem por força da lei. Por isso, a ra-
zão de viver bem9 , isto é, a verdadeira vida, o culto e o amor
de Deus, foi para eles mais uma escravidão que uma verda-
46 ESPINOSA

1\deira liberdade, uma graça ou um dom de 'Deus. De fato, Moi-


sés mandou-os amar a Deus e observar a sua lei de forma que
se mostrassem reconhecidos pelos benefícios que ele já lhes
fizera (tais como a libertação do cativeiro do Egito, etc.); além
disso, amedrontou-os com ameaças para o caso de transgre-
direm esses preceitos e prometeu-lhes largos benefícios se
acaso os observassem. Ensinou-os, portanto, como os pais
costumam ensinar os meninos ainda privados do uso da ra-
zão. Donde, é evidente que eles ignoravam a superioridade
da virtude e a verdadeira felicidade. Jonas jl)lgou que fugia
ao olhar de Deus, o que parece mostrar que também ele
acreditava que Deus confiara o cuidado das terras além da
Judéia a outras potências que o substituíam. No Antigo Tes-
tamento, não há ninguém que tenha falado de Deus mais de
acordo com a razão do que Salomão, que foi, pela luz natu-
ral, superior a todos os seus contemporâneos. Por isso ele se
julgou superior à Lei (dado que esta foi promulgada só para
os que carecem da razão e dos ensinamentos do entendi-
mento natural) e não ligou aos preceitos que diziam respeito
ao Rei, os quais eram principalmente três (ver Deuteronômio,
cap. XVII, 16, 17); pior do que isso, violou-os por completo
(embora aqui tenha feito mal e atuado de forma indigna de
um filósofo, pois se entregou à sensualidade) e ensinou que
todos os hens da fortuna são coisas vãs para os mortais ever
Eclesiastes), que os homens não possuem nada de mais valor
que o intelecto e que o maior suplício com que podem ser
punidos é a loucura (Provérbios, cap. XVI, 22). Mas voltemos
aos profetas, cujas divergências de opinião nos tínhamos tam-
bém proposto assinalar.
Os rabinos que nos legaram os livros dos profetas (os
que ainda subsistem) acharam as afirmações de Ezequiel tão
contrárias às de Moisés (conforme consta do Tratado do Sa-
bat, cap. I, foi. 13, p. 2) que estiveram quase para decidir
que o seu livro não seria admitido entre os canônicos. E tê-
lo-iam mesmo excluído se um certo Ananias não se encarre-
gasse de o explicar, coisa que, segundo se diz, conseguiu com
enorme esforço e dificuldade (vero citado livro, no qual isso
[421 se conta). Como é que o fez? Não se sabe bem. Teria escrito
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍT1CO 47
um comentário que entretanto se perdeu, ou mudou as pala-
vras e as frases de Ezequiel (tal foi a audácia!) e reescre-
veu-as à sua maneira? Fosse como fosse, o cap. XVIII, pelo me-
nos, não parece estar de acordo com o versículo 7 do cap.
XXXIV do Êxodo, nem com o versículo 18, cap. XXXII de je-
remias, etc.
Samuel acreditava que Deus, quando decidia alguma
coisa, não mais voltava atrás (Samuel, livro I, cap. XV, 29),
porquanto diz a Saul, arrependido do seu pecado e queren-
do adorar a Deus e pedir-lhe perdão, que Deus não alteraria
a sentença pronunciada contra ele. A Jeremias, porém, foi re-
velado o contrário (ver cap. XVII, 8-10), ou seja, que Deus,
apesar de já ter decidido qualquer castigo ou benefício para
uma nação, pode ainda revogar a sua decisão caso os ho-
mens, depois de pronunciada tal sentença, mudem para me-
lhor ou para pior. Joel, por seu turno, ensinou que Deus só
revoga castigos (ver o cap. II, 13, do seu livro). Consta, en-
fim, do Gênesis, cap. IV, 7, que o homem pode vencer as
tentações do pecado e fazer o bem: isso foi realmente dito a
Caim, o qual, todavia, como se pode ver pela própria Escri-
tura e pelo livro de Josefo, nunca as venceu. O mesmo se
pode concluir com toda clareza do capítulo de jeremias cita-
do, uma vez que nele se afirma que Deus se arrepende da
sentença proferida contra ou a favor dos homens quando es-
tes desejam mudar os seus costumes e a sua maneira de vi-
ver. Em contrapartida, não há nada que Paulo ensine mais
abertamente que a idéia de que os homens não possuem ne-
nhum domínio sobre as tentações da carne a não ser por uma
especial vocação e graça de Deus. Veja-se a Epístola aos Ro-
manos, cap. IX, a partir do versículo 10, e repare-se que, no
cap. III, 5, e cap. VI, 19, quando atribui a justiça a Deus, ele
corrige dizendo que fala à maneira dos homens e devido à fra-
queza da carne.
Por tudo quanto expusemos, está mais que evidente aqui-
lo que nos tínhamos proposto mostrar, a saber, que Deus
adaptou as revelações à inteligência e às opiniões dos profe-
tas, que estes podiam ignorar, e ignoraram mesmo, coisas que
são puramente especulativas 1º e não dizem respeito à carida-
48 ESPINOSA

de nem à vida prática e, finalmente, que tiveram opiniões di-


vergentes. É, pois, escusado exigir deles um conhecimento das
coisas naturais e espirituais. Em conclusão, apenas somos obri-
gados a acreditar nos profetas quando se trata daquilo que é
a finalidade e a substância da revelação; quanto _ao resto, cada
um é livre para acreditar conforme lhe aprouver. Por exem-
plo: a revelação feita a Caim ensina-nos apenas que Deus o
[431 exortou à verdadeira vida. Porque é somente aí que reside o
objetivo e a substância da revelação, e não em ensinar a li-
berdade da vontade ou questões filosóficas. E, embora a liber-
dade da vontade esteja nitidamente implícita nos termos e
nas razões daquela admoestação, é, todavia, lícito admitir o
contrário, visto esses termos e essas razões estarem adapta-
dos exclusivamente à maneira de pensar de Caim. Do mes-
mo modo, a revelação de Miquéias pretende apenas ensinar
que Deus lhe revelou o verdadeiro resultado da batalha de
Acab contra Aram, pelo que não somos obrigados a acreditar
mais do que isso; tudo quanto vem, para além disso, na re-
velação, ou seja, o que aí é dito sobre o verdadeiro e o falso.
espírito de Deus, sobre o exército celeste que está à direita e
à esquerda de Deus, e bem assim outros pormenores da mes-
ma revelação, não nos dizem nenhum respeito: ainda aqui,
cada um acredite no que lhe parecer mais consentâneo com
a sua razão.
Quanto aos argumentos com que Deus demonstra a Jó a
sua onipotência, se é realmente verdade q"ue eles foram re-
velados a Jó e que o autor tenta narrar fatos históricos e não
(como alguns crêem) dar uma forma figurada aos seus pró-
prios conceitos, outro tanto se deve dizer, ou seja, que eles fo-
ram aduzidos de maneira acessível a Jó e para o convence-
rem apenas a ele, não se tratando, portanto, de argumentos
universais aptos a convencer toda a gente. Nem há que pen-
sar diferentemente dos argumentos com que Cristo convence
os fariseus de contumácia e ignorância e exorta os discípulos
à verdadeira vida: trata-se de argumentos que Cristo adaptou
às opiniões e aos princípios de cada um. Quando, por exem-
plo, ele disse aos fariseus (Mateus, cap. XII, 26): e, se Satanás
lança fora a Satanás, está dividido contra si mesmo; de que
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 49

modo subsistiria, então, o seu reino? quis apenas convencer


os fariseus com base nos princípios deles, e não ensinar que
há demônios ou um reino qualquer dos demônios. Igual-
mente, quando diz aos discípulos (Mateus, XVIII, 10): cuida-
do, não desprezeis uma só dessas crianças, pois eu vos digo
que os seus anjos nos céus etc., quer somente ensinar que não
devem ser soberbos nem desprezar ninguém, e não outras
coisas que estão implícitas nos seus argumentos mas que ele
invoca apenas para melhor persuadir os discípulos. O mes-
mo, enfim, há que dizer dos argumentos e das imagens que
usam os apóstolos. Não é necessário, de resto, alongar-me
aqui sobre esse assunto, porque, se fosse enumerar todas as
passagens da Escritura que foram escritas unicamente ad ho-
minem, ou seja, adaptadas à capacidade de compreensão de
alguém, e que são defendidas, não sem graves prejuízos para
a filosofia, como se fossem ensinamentos divinos, iria parar [441
muito longe da concisão que eu me proponho. Aquelas, pou-
cas e de interesse geral, que referi são o bastante. O leitor, se
tiver curiosidade, examinará por si as outras. No entanto, e
muito embora só o que acabamos de ver sobre os profetas e a
profecia esteja diretamente relacionado com o meu objetivo -
separar a Filosofia da Teologia -, uma vez que abordei essa
questão em termos gerais, será conveniente averiguar ainda
se porventura o dom da profecia foi reservado apenas aos he-
breus ou se ele foi comum a todas as nações, e bem assim o
que deve pensar-se da vocação dos hebreus. É isso o que va-
mos ver no capítulo seguinte.
CAPÍTULO III

Da vocação dos hebreus e se o dom


da profecia terá sido um privilégio
exclusivamente seu

A verdadeira felicidade e beatitude do indivíduo consis-


te unicamente na fruição do bem e não, como é evidente, na
glória de ser o único a fruir quando os outros dele carecem;
quem se julga mais feliz só porque é o único que está bem,
ou porque é mais feliz e mais afortunado que os outros, ig-
nora a verdadeira felicidade e a beatitude 1 • Porque a alegria
que assim se experimenta, a menos que seja infantil, não pode
resultar de outra coisa que não seja a inveja e a má vontade.
Exemplificando: a verdadeira felicidade e beatitude dum ho-
mem consiste apenas na sabedoria e no conhecimento da
verdade e não em ser mais sábio do que os outros ou no fato
de eles não possuírem o verdadeiro conhecimento, pois isto
não acrescenta absolutamente nada à sua sabedoria, que o
mesmo é dizer, à sua verdadeira felieidade. Quem, por con-
seguinte, se regozija por tal fato, regozija-se com o mal dos
outros, é invejoso e mau e não conhece nem a verdadeira sa-
bedoria nem a tranqüilidade da verdadeira vida. Assim sen-
do, quando a Escritura, para exortar os hebreus a obedece-
rem à lei, diz que Deus os escolheu dentre as outras nações
(Deuteronômio, cap. X, 15), que está perto deles e não dos
outros (Deuteronômio, IV, 4-7), que só a eles é que ditou leis
justas (ibid., 8), que, em suma, só a eles se deu a conhecer,
desprezando os outros (ibid., 32), etc., está apenas falando de
modo que seja compreendida pelos hebreus, os quais, como
vimos no capítulo anterior e como também confirma Moisés
[451 (Deuteronômio, IX, 6, 7), não conheciam a verdadeira beati-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 51

tude. Com efeito, eles não teriam sido menos felizes se Deus
tivesse igualmente chamado todos os homens à salvação;
nem Deus lhes teria sido menos propício se tivesse prestado
igual assistência aos outros; nem as leis seriam menos justas,
ou eles seriam menos sábios, se aquelas fossem prescritas a
todos; nem os milagres evidenciariam menos o poder de
Deus se tivessem sido feitos em atenção também às outras na-
ções; nem, finalmente, os hebreus seriam menos obrigados a
prestar culto a Deus se ele tivesse prodigalizado esses dons a
todos por igual. Quanto àquilo que Deus diz a Salomão (Reis,
livro 1, cap. III, 12), isto é, que ninguém no futuro seria tão
sábio como ele, parece tratar-se apenas de um modo de falar
para traduzir a_ sua excepcional sabedoria; seja como for, não
se pode de maneira alguma acreditar que Deus tenha prome-
tido a Salomão, para o fazer mais feliz, que não concederia a
ninguém, depois dele, uma tão grande sabedoria, uma vez
que isso não acrescentaria nada à inteligência de Salomão,
nem o Rei sábio teria de agradecer menos a Deus um tão gran-
de benefício se acaso Deus lhe tivesse dito que daria a todos
igual sabedoria.
Quando dizemos que Moisés, nas passagens do Penta-
teuco citadas, falou de modo que fosse entendido pelos he-
breus, não queremos com isso negar que Deus só a eles pres-
creveu essas leis do Pentateuco, ou que só a eles tenha fala-
do, ou, enfim, que os hebreus não tenham visto coisas tão
admiráveis como a nenhuma outra nação foi dado ver; o que
pretendemos dizer é apenas que Moisés quis, desse modo e,
sobretudo, com esses argumentos, admoestar os hebreus,
adaptando-se à sua mentalidade infantil para melhor os vin-
cular ao culto de Deus. Queremos, além disso, mostrar que
os hebreus não foram superiores às outras nações, nem pela
sua ciência nem pela sua piedade, mas por uma outra razão.
Quer dizer, os hebreus (para falar, como a Escritura, em ter-
mos que eles percebam), apesar de terem sido muitas vezes
admoestados, não foram escolhidos por Deus dentre as ou-
tras nações para a verdadeira vida nem para as altas especu-
lações: foi para algo completamente diferente e que vou ago-
ra expor.
52 ESPINOSA

Antes de começar, quero ainda explicar em poucas pa-


lavras o que entendo aqui por governo 2 de Deus, por auxílio
externo ou interno de Deus, por escolha divina e, finalmen-
te, por fortuna. Por governo de Deus, entendo a ordem fixa
e imutável da natureza, ou seja, o encadeamento das coisas
[461 naturais. Já dissemos, e demonstramos algures, que as leis uni-
versais da natureza, segundo as quais todas as coisas são fei-
tas e determinadas, não são outra coisa senão os eternos de-
cretos de Deus, os quais implicam sempre eterna verdade e
necessidade. Dizer, portanto, que tudo acontece segundo as
leis da natureza é o mesmo que dizer que tudo é ordenado
por decreto e por orientação de Deus 3• Seguidamente, por-
que a potência de todas as coisas naturais não é outra coisa
senão a própria potência de Deus, pela qual tudo é produzi-
do e determinado, conclui-se que todos os bens que o ho-
mem - ele próprio parte da natureza - adquire e lhe são úteis
para a conservação do seu ser, assim como tudo o que a na-
tureza lhe oferece sem exigir trabalho, é-lhe, de fato, ofereci-
do unicamente pela potência divina, quer ela atue por meio
da natureza humana, quer por meio de coisas exteriores a
esta. Assim sendo, podemos chamar auxílio interno de Deus
a tudo quanto a natureza humana, apenas com a sua própria
potência, pode fazer para conservar o seu ser; auxílio exter-
no, por sua vez, é tudo aquilo que resulta em seu benefício
mas é produzido pela potência de causas exteriores. Donde
segue também o que deve entender-se por eleição de Deus.
Como, efetivamente, ninguém faz nada que não esteja de
acordo com a ordem predeterminada da natureza, quer di-
zer, com o governo e o eterno decreto de Deus, resulta que
ninguém escolhe para si determinada maneira de viver nem
faz seja o que for a não ser por especial vocação de Deus',
que escolhe essa pessoa dentre as outras para fazer aquela
obra ou para levar tal modo de vida. Finalmente, por fortuna
entendo unicamente o governo de Deus na medida em que
dirige as coisas humanas por causas exteriores e imprevistas.
Feitos esses esclarecimentos, voltemos agora ao nosso tema
e vejamos por que motivo se dizia da nação hebraica que ela
tinha sido eleita por Deus dentre as outras nações.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 53

Para o compreender, é preciso ter em conta o seguinte:


tudo o que podemos honestamente desejar resume-se nestes
três objetivos principais: conhecer as coisas pelas suas cau-
sas primeiras; dominar as paixões, ou seja, adquirir o hábito
da virtude; enfim, viver em segurança e de boa saúde. Os
meios que servem diretamente para se alcançar o primeiro e
o segundo desses objetivos, e que podem considerar-se como
causas próximas e eficientes, estão contidos na própria natu-
reza humana, de maneira que a sua aquisição depende ape-
nas da nossa potência, ou seja, das leis da natureza humana.
Por essa razão, é obrigatório reconhecer que tais dons não
são específicos de nenhuma nação, pois foram sempre co- l47l
muns a todo o gênero humano. A menos que queiramos ima-
ginar que a natureza procriou outrora diversos gêneros de
homens! Porém, os meios que servem para se viver em segu-
rança e para a conservação do corpo residem sobretudo nas
coisas exteriores a nós e, por isso, chamam-se dons da fortu-
na, porquanto dependem em boa parte da evolução de cau-
sas exteriores, as quais ignoramos. Sob esse aspecto, poder-
se-á dizer que o insensato é quase tão feliz ou infeliz como o
que é prudente. No entanto, se queremos viver em seguran-
ça e evitar os ataques de outros homens, ou até das feras, a
orientação e a vigilância por parte do homem podem ser de
grande utilidade. Ora, tanto a razão como a experiência en-
sinam que não há processo mais seguro para atingir tais fins
do que fundar uma sociedade com leis fixas, ocupar uma de-
terminada região do mundo e congregar as forças de todos
para formar como que um só corpo, o corpo da sociedade'.
O que acontece é que, para constituir e manter uma socieda-
de, se requer um talento e uma atenção fora do comum. Por
isso, a sociedade é tanto mais segura, mais estável e menos
sujeita aos azares da fortuna 6 quanto mais sensato e vigilante
for quem a funda e quem a governa; pelo contrário, quando
ela é formada por homens rudes, está em boa parte à mercê
da fortuna e é menos estável. Se, mesmo assim, ela subsistir
por muito tempo, tal ficará a dever-se, não ao seu próprio
governo, mas a um governo alheio. E, se, além disso, supe-
rar enormes perigos e as coisas lhe correrem de feição, nes-
54 ESPINOSA

se caso não poderá deixar de se maravilhar com o governo de


Deus e adorá-lo (na medida em que Deus age mediante cau-
sas exteriores desconhecidas e não pela natureza e pela men-
te humana), já que nada lhe acontece que não seja de todo
em todo inesperado e impensável, podendo realmente ser
tido por milagre. ,.
As nações, por conseguinte, só se distinguem umas das
outras pela organização social e pelas leis sob as quais vivem
e pelas quais se regem; sendo assim, a nação hebraica foi es-
colhida por Deus, não pela sua inteligência ou serenidade,
mas sim pela organização social e pela fortuna que lhe pro-
piciou um Estado e lho conservou por tantos anos. Aliás, isso
pode ser visto com toda clareza até na própria Escritura: se al-
guém a folhear, mesmo que seja ao de leve, facilmente verá
que os hebreus só são superiores às outras nações pela for-
ma feliz como geriram aquilo que dizia respeito à sua segu-
rança de vida, superando assim enormes perigos, tudo gra-
ças unicamente ao auxílio externo de Deus; mas, quanto ao
[481 resto, foram iguais aos outros, já que Deus é igualmente pro-
pício a todos. Com efeito, no que toca à inteligência, é óbvio
(como mostramos no capítulo anterior) que as idéias que eles
tinham sobre Deus e sobre a natureza eram absolutamente
vulgares; logo, não era pela inteligência que eles seriam pre-
feridos aos outros. Tampouco o foram pela virtude ou pela
verdadeira vida, pois também nessa matéria foram iguais às
outras gentes e muito poucos foram eleitos. A sua vocação e
eleição consistem, por isso, apenas na prosperidade tempo-
ral do seu Estado e dos seus haveres, e não vemos que Deus
tenha prometido mais alguma coisa aos Patriarcas* e aos seus
sucessores; pelo contrário, na Lei, nada se promete aos he-
breus em troca da obediência senão a contínua prosperidade
do Estado e os outros bens desta vida, da mesma forma que,
pela desobediência e pela ruptura do pacto, se ameaça com

• Anotação IV. Conta-se, no capítulo XV do Génesis, que Deus disse a


Abraão que seria o seu defensor e lhe daria uma ampla remuneração; ao
que Abraão responde que já nada de importante esperava para si, porquan-
to não tinha filho8 e e8tava já em idade avançada.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 55
a ruína do Estado e com as piores adversidades. O que não
admira, pois o fim de qualquer sociedade ou Estado (como
resulta de tudo quanto dissemos e como vamos seguidamen-
te mostrar mai~ pormenorizadamente) é viver em segurança
e em comodidade.
Um Estado, porém, não pode subsistir sem leis a que to-
dos estejam sujeitos; porque, se todos os membros de uma
sociedade quiserem prescindir das leis, ato contínuo dissol-
vem a sociedade e destroem o Estado. À sociedade dos he-
breus, por conseguinte, não poderia ter sido prometida outra
coisa pela constante observância das leis senão uma vida tran-
qüila e bens materiais*; em contrapartida, pela desobediên-
cia, nenhum castigo lhe poderia ser anunciado com maior cer-
teza do que a ruína do Estado e os males que em regra daí
advêm, bem como os outros que a ruína específica do seu
Estado implicaria. Mas quanto a estes não é necessário, por
agora, alongar-me mais. Acrescentarei apenas isto: as leis do
Antigo Testamento não foram reveladas e prescritas senão
aos judeus. Com efeito, uma vez que Deus os escolheu só a
eles para constituir uma sociedade especial e um Estado, for-
çosamente eles tinham também de possuir leis especiais;
quanto às outras nações, não tenho a certeza se Deus lhes
prescreveu leis especiais e se ele se revelou por profecias aos
seus legisladores, isto é, sob aqueles atributos com que os
profetas o costumavam imaginar. Mas sabe-se, pela própria
Escritura, que, pelo menos houve, outras nações que, seguin-
do a orientação externa de Deus, tiveram também um Estado
e leis particulares.
Para o demonstrar, citarei apenas duas passagens: no Gé-
nesis, cap. XIV, 18, 19, 20, conta-se que Melquisedeque foi
rei de Jerusalém e pontífice do Deus altíssimo, que aben- [491
çoou Abraão como competia a um pontífice e, por último, que
Abraão lhe deu a décima parte de todos os seus bens. Tudo

• Anotação V. Que para a vida eterna não basta observar os manda-


mentos do Antigo Testamento, é evidente pelo que lemos em Marcos, cap.
X, 21.
56 ESPJNOSA

isso demonstra que Deus, ainda antes de fundar a nação is-


raelita, já havia estabelecido reis e pontífices em Jerusalém,
aos quais prescrevera determinados ritos e leis. Se o fez atra-
vés de profecias, quanto a isso, não há, como já disse, da-
dos suficientes para o afirmar. Mas estou persuadido de que
Abraão, pelo menos enquanto aí residiu, viveu religiosamen-
te segundo essas leis, porquanto Deus não lhe recomendou
nenhum rito em especial e, todavia, diz-se no Gênesis, cap.
XXVI, 5, que ele observou o culto, os preceitos, as institui-
ções e as leis de Deus, pelo que é forçoso admitirmos que esse
culto, preceitos, instituições e leis eram os do rei Melquise-
deque. Malaquias (cap. I, 10, 11) faz, por seu turno, a seguin-
te interpelação aos judeus: quem dentre vós fechará as portas
(do Templo) para que não seja em vão que se acenda o fogo
no meu altar? A minha felicidade não está em vós, etc., por-
que, desde o nascer até o pôr-do-sol, o meu nome é grande
entre as nações e em toda parte me oferecem peifume e obla-
ções puras; pois o meu nome é grande entre as nações, diz o
deus dos exércitos. Ora, uma vez que tais palavras não po-
dem ser interpretadas, a menos que se force o sentido, em
outro tempo que não seja o presente, está mais que provado
que os judeus, àquela altura, não eram preferidos por Deus
às outras nações; que, inclusive, Deus se manifestava através
de milagres com mais freqüência a estas do que aos judeus,
os quais, sem milagres, tinham entào reconquistado em par-
te o seu Estado; e, finalmente, que as nações tinham ritos e
cerimônias que as tornavam aceitas aos olhos de Deus.
Deixo, porém, esta questão, visto que para o meu inten-
to era suficiente mostrar que a eleição dos judeus não tinha
a ver senão com a liberdade e a felicidade temporal; quer di-
zer, com o Estado, com o modo e os meios através dos quais
eles o conseguiram, com as leis, na medida em que eram ne-
cessárias para a estabilidade desse Estado particular, e, com
a maneira, enfim, como essas foram reveladas. Quanto às ou-
tras coisas, aquelas em que consiste a verdadeira felicidade
do homem, eles foram iguais aos outros. Assim, quando se diz
na Escritura (Deuteronômio, cap. IV, 7) que nenhuma nação,
(501 tem os deuses tão perto de si como Deus está dos judeus, há
TRATADO 'TEOLÓGICO-POIÍT1CO ')7

que entender que isso se refere apenas ao Estado 7 e só du-


rante aquele tempo em que lhe aconteceram tantos milagres.
No que toca à inteligência e à virtude, isto é, à felicidade,
como já dissemos e demonstramos com argumentos, Deus é
de igual modo propício a todos. Mas isso vem também bas-
tante explícito na Escritura. Diz, efetivamente, o salmista
(Salmo CXLV, 18): Deus está próximo de todos aqueles que o
chamam, de todos os que verdadeiramente o chamam. E, ain-
da no mesmo salmo, no versículo 9: Deus é benigno para to-
dos e a sua misericórdia (estende-se) a tudo o que ele fez. No
Salmo XXXIII, 1,5, diz-se claramente que Deus deu a todos a
mesma inteligência: aquele que forma do mesmo modo o cora-
ção deles. O coração era, de fato, tido pelos hebreus como a
sede da alma e do intelecto, conforme julgo ser do conheci-
mento de todos 8 • Consta, além disso, do cap. XXIX, 28, de ]ó,
que Deus prescreveu a todo o gênero humano9 esta lei que
manda adorá-lo e abster-se de más ações, isto é, fazer o bem,
e é por isso que ]ó, sendo embora um pagão, foi de todos o
mais amado por Deus, pois a todos excedeu em piedade e
religiosidade. Por último, no cap. IV, 2, de Jonas, vê-se clara-
mente que não é só para com os judeus, é para com todos
que Deus é propício, misericordioso, magnânimo, cheio de
benevolência e condoído pelo mal que lhes acontece. Diz,
efetivamente, Jonas: já tinha decidido fugir de Tarso, pois sa-
bia (pelas palavras de Moisés, Êxodo, cap. XXXIV, v. 6) que tu
és um Deus propício, misericordioso, etc., e por isso perdoa-
ria aos ninivitas, que eram pagãos. Conclui-se, pois, uma vez
que Deus é igualmente propício a todos e que os hebreus
não foram eleitos senão no que diz respeito à sociedade e ao
Estado), que um indivíduo judeu, considerado isoladamente
e à margem da sociedade e do Estado, não usufrui de ne-
nhum dom divino que o coloque acima dos outros, nem exis-
te nenhuma diferença entre ele e um pagão. Donde, se é ver-
dade que Deus a todos é propício, benigno, etc., e que a fun-
ção dos profetas não foi tanto ensinar as leis específicas da
pátria como ensinar a verdadeira virtude e instruir nela os
homens, é evidente que todas as nações tiveram profetas
58 ESPINOSA

e que o dom da profecia não foi privilégio exclusivo dos


judeus.
É isso, aliás, o que diz também a história, tanto a profa-
na, como a sagrada. Naturalmente, as sagradas narrativas do
(511 Antigo Testamento não referem que outras nações tivessem
tantos profetas como os hebreus, ou até que algum profeta
pagão tenha sido expressamente enviado por Deus, mas isso
não tem nenhuma importância, visto que os hebreus procu-
ravam narrar unicamente os seus próprios eventos e não os
das outras nações. Basta o fato de encontrarmos no Antigo
Testamento homens pagãos e não circuncidados, tais como
Noé, Enoque, Abimelec, Balaão, etc., que profetizaram, e de
os profetas hebreus terem sido enviados a muitas outras na-
ções que não apenas a sua. Ezequiel profetizou a todas as na-
ções conhecidas do seu tempo; Obadias, que se saiba, só pro-
fetizou aos idumeus; e Jonas profetizou sobretudo aos ninivi-
tas. Isaías não lamenta só as desgraças dos judeus, ao mesmo
tempo que anuncia e celebra a sua restauração: fala também
de outras nações. Diz, efetivamente, no cap. XVI, 9: por isso
chorarei sobre jazer; e, no capítulo XIX, profetiza primeiro
as desgraças do Egito e depois a sua restauração (ver, no
mesmo capítulo, versículos 19, 20, 21, 25), ou seja, que Deus
lhes enviará um Salvador que os libertará, que Deus se lhes
manifestará e, finalmente, que os egípcios lhe prestarão culto
com sacrifícios e oferendas, razão por que chama a esta na-
ção o povo egípcio abençoado por Deus, tudo coisas que são,
realmente, dignas de nota. Jeremias, enfim, é considerado
profeta, não apenas da nação hebraica, mas de todas as nações
(ver jeremias, cap. 1, 5), pois chora também quando anuncia
as desgraças das nações e ao predizer a sua restauração. Diz,
efetivamente (cap. XLVIII, 31), o profeta, referindo-se aos moa-
bitas: por isso lamentarei por Moab, gritarei por toda Moab,
etc.; e no versículo 36, por isso o meu coração rufará como
tambores por causa de Moab; por fim, anuncia a sua restaura-
ção, tal como a dos egípcios, a dos amonitas e a dos elamitas.
É, portanto, evidente que as outras nações tiveram tam-
bém, à semelhança dos judeus, os seus profetas e que esses
profetizaram, tanto para elas como para os próprios judeus.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 59

E, se bem que a Escritura mencione apenas Balaão, a quem


foi revelado o futuro dos judeus e das outras nações, não é
de crer, contudo, que Balaão tenha profetizado só nessa oca-
sião; de resto, essa mesma narrativa refere que ele se distin-
guira, desde há muito, pela profecia e por outros dons divi-
nos. Na realidade, quando o manda vir junto a si, Balac afir-
ma (Números, cap. XXII, 6): porque eu sei que aquele a quem (521
abençoares será bendito e aquele a quem amaldiçoares será
maldito. Ele possuía, portanto, aquela mesma virtude que
Deus concedeu (Génesis, cap. XII, 3) a Abraão. Depois, Ba-
laão, como alguém habituado às profecias, responde aos que
lhe foram enviados que terão de esperar até que a vontade
de Deus se revele. E, quando profetizava, isto é, quando in-
terpretava o verdadeiro pensamento de Deus, costumava di-
zer a respeito de si o seguinte: a palavra daquele que ouve as
palavras de Deus e conhece a ciência (isto é, a mente e a
presciência) do Altíssimo, que vê a visão do Onipotente, que
cai por terra mas de olhos abertos. Finalmente, depois de ter
por ordem de Deus abençoado os hebreus, como costuma-
va, começou a profetizar para as outras nações e a predizer
o seu futuro. O que mostra que ele sempre foi profeta ou,
pelo menos, que profetizou muitas vezes e que (note-se ain-
da) possuía aquilo que era para os profetas o principal ga-
rante da profecia, quer dizer, um coração voltado exclusiva-
mente para a justiça e para o bem. Com efeito, ele não aben-
çoava ou amaldiçoava a quem queria, como julgava Balac,
mas só aqueles a quem Deus queria abençoar ou amaldi-
çoar. Por isso responde a Balac: ainda que Balac me desse
ouro e prata que chegasse para encher a sua casa, não pode-
ria transgredir o veredicto de Deus para fazer o bem ou o mal
à minha vontade; o que Deus disser, eu o direi. Quanto ao
fato de Deus ter se irado contra ele durante a viagem, isso
aconteceu também a Moisés, quando ia, mandado por Deus,
ao Egito (Êxodo, cap. IV, 24); quanto a receber dinheiro por
profetizar, Samuel fazia o mesmo (ver Samuel, livro I, cap.
IX, 7, 8); e, se pecou em alguma coisa (sobre isto, ver Pedro,
Epístola II, cap. II, 15, 16, e judas, 11), ninguém é tão justo que
possa agir sempre bem e que nunca peque(ver Eclesiastes, cap.
60 ESPJNOSA

VII, 20). Por outro lado, as suas orações devem ter sido sem-
pre de alto valor aos olhos de Deus e o seu poder de amaldi-
çoar foi, com certeza, enorme, já que se lê tantas vezes na Escri-
tura, para testemunhar a grande misericórdia de Deus para com
os israelitas, que Deus não quis atender a Balaão e que con-
verteu em bênção a maldição por ele proferida (Deuteronô-
mio, XXIII, 6; Josué, XXIV, 10; Neemias, XIII, 2). Tinha, por con-
seguinte, grande aceitação junto de Deus, pois as orações dos
[531 ímpios, tal como as suas maldições, em nada afetam a Deus.
Ora, se Balaão, sendo um verdadeiro profeta, é, todavia,
designado por Josué como adivinho ou áugure (cap. XIII,
22), é claro que este nome era também utilizado no bom sen-
tido e que aqueles a quem os gentios costumavam chamar
áugures e adivinhos eram verdadeiros profetas, ao passo que
aqueles a quem a Escritura muitas vezes acusa e condena
eram falsos adivinhos que enganavam os pagãos como os fal-
sos profetas enganavam os judeus, conforme também consta
de outras passagens da Escritura. A conclusão, portanto, é que
o dom da profecia não foi exclusivo dos hebreus, mas comum
a todas as nações.
Porém, os fariseus sustentam acerrimamente o contrário,
ou seja, que o dom da profecia foi exclusivo da sua nação,
ao passo que as outras adivinhariam os acontecimentos futu-
ros por não sei que virtude diabólica (as coisas que inventa
a superstição!). A principal citação que eles vão buscar ao
Antigo Testamento para confirmar, pela autoridade deste, a
sua opinião é aquela passagem do Êxodo, XXXIII, 16, onde
Moisés diz a Deus: de que modo se reconhecerá que eu e o teu
povo achamos graça diante dos teus olhos? Certamente pelo
fato de ires conosco e nos separares, a mim e ao teu povo, de
todos os povos que existem à superfície da terra. Como disse,
é daqui que eles pretendem inferir que Moisés pediu a Deus
que prestasse assistência aos judeus, que se lhes revelasse
profeticamente e que não concedesse essa graça a nenhuma
outra nação. Mas é claro que seria ridículo Moisés invejar a
assistência de Deus aos gentios ou atrever-se a pedir a Deus
qualquer coisa de semelhante. O que acontece é que Moisés,
conhecendo o caráter e o ânimo insubmisso da sua nação,
TRATADO TEOLÓGICO-POLtnco 61

vê com toda clareza que só com grandes milagres e com o


especial auxílio externo de Deus é que poderiam levar a
bom termo a obra iniciada. Sem esse auxílio, eles pereceriam
irremediavelmente. E assim, para que ficasse claro que Deus
queria defendê-los, Moisés pediu a Deus esse auxílio exter-
no singular. Diz, com efeito, no cap. XXXIV, 9: se achei gra-
ça a teus olhos, Senhor, rogo-te que o Senhor caminhe no
meio de nós, pois este povo é insubmisso, etc. A razão por que ·
pede a Deus um auxílio externo especial é, pois, porque o
povo é insubmisso. E o que mostra ainda com mais clareza
que Moisés não pediu outra coisa senão esse mesmo auxílio
é a própria resposta de Deus: eis que celebro uma aliança -
diz, efetivamente, logo a seguir, vers. 10 do mesmo capítulo
- e farei perante todo o teu povo prodígios como nunca se fi- (54]
zeram em toda a terra ou em qualquer nação, etc. Donde,
Moisés está tratando aqui unicamente da eleição dos he-
breus, no sentido em que .eu a expliquei, e não pede nenhu-
ma outra coisa a Deus.
Mas há na Epístola de Paulo aos Romanos um outro tex-
to que me impressiona ainda mais, e que vem no cap. III, 1,
2, onde o autor parece ensinar algo diferente daquilo que
nós estamos dizendo: qual é, pois - diz ele -, o privilégio do
judeu? Ou qual é a utilidade da circuncisão? É enorme, seja
de que ponto de vista for, e antes de mais nada, porque lhe fo-
ram confiadas as palavras de Deus. No entanto, se reparar-
mos na doutrina que Paulo quer acima de tudo ensinar, não
encontramos nada que repugne ao que nós dizemos: pelo
contrário, ele ensina o mesmo que nós aqui ensinamos 10 • Na
verdade, diz no versículo 29 do mesmo capítulo que Deu~ é
Deus dos judeus e dos pagãos e, no cap. II, 25, 26, acrescen-
ta: se o circuncidado se afasta da lei, a circuncisão reduzir-
se-á a simples prepúcio; se, pelo contrário, o não-circuncida-
do observa o que a lei manda, o seu prepúcio será tido como
circuncisão. Depois, no cap. III, 9 e em IV, 15, diz que to-
dos, ou seja, judeus e gentios, estão igualmente sujeitos ao
pecado, mas que não há pecado sem o mandamento e sem
a lei. Por aqui se vê, com toda a evidência, que a lei foi reve-
lada a todos sem distinção (conforme já tínhamos mostrado
62 ESPINOSA

no cap. XXVIII, 28, de jô) e que todos viveram sob o seu do-
mínio, ou seja, sob o domínio da lei que concerne unica-
mente a verdadeira virtude e não daquela que é estabelecida
para cada Estado particular, em função da respectiva consti-
tuição, e se adapta à índole de apenas uma nação. Paulo con-
clui, por fim, que, sendo Deus o Deus de todas as nações, quer
dizer, igualmente propício a todas elas, e uma vez que todas
estavam de igual modo submetidas à lei e ao pecado, a to-
das Deus enviou o seu Cristo para que as libertasse da servi-
dão da lei e para que não mais fizessem o bem por impera-
tivo da lei mas por firme decisão da vontade. Paulo ensina,
pois, exatamente aquilo que nós pretendemos. Daí que, quan-
do ele diz que só aos judeus foram confiadas as palavras de
Deus, seja necessário, ou entender que só a eles foram con-
fiadas as leis por escrito, enquanto às outras nações o foram
por revelação interior, ou então dizer (já que ele tenta rejeitar
uma objeção que só os judeus podiam fazer) que Paulo res-
ponde de acordo com a capacidade de compreensão e as
opiniões então aceitas pelos judeus. Recorde-se que, para en-
sinar aquilo que em parte vira e em parte ouvira, ele se fazia
grego entre os gregos e judeu entre os judeus.
Resta-nos agora responder apenas aos argumentos da-
(551 queles que se querem persuadir de que a eleição dos he-
breus não foi transitória e em função unicamente do Estado,
mas sim eterna. Dizem eles que os judeus, após a destrui-
ção do Estado, sobreviveram todos estes anos, como esta-
mos vendo, espalhados por toda parte e separados de to-
das as nações, coisa que não aconteceu com nenhum outro
povo. Dizem ainda que a Sagrada Escritura parece ensinar,
em muitas passagens, que Deus fez dos judeus os seus elei-
tos para todo o sempre e, desse modo, tendo embora per-
dido o Estado, continuam a ser os eleitos de Deus. As pas-
sagens que do seu ponto de vista demonstrariam com toda
a clareza essa eleição para toda a eternidade são principal-
mente as seguintes:
1 - jeremias, cap. XXXI, 36, onde o profeta garante que
a semente de Israel continuará a ser para todo o sempre o
povo de Deus, comparando os judeus com a ordem fixa dos
céus e da natureza.
TRATADO 1EOLÓGJCO-POLÍT1CO 63

2 - Ezequiel, cap. XX, 32, etc., onde, ao que parece, se


pretende que, mesmo que os judeus queiram deliberadamen-
te abandonar o culto de Deus, este os recolherá de todas as
regiões por onde se dispersaram e os conduzirá ao deserto
dos povos, tal como conduziu os seus pais aos desertos do
Egito, e os fará, finalmente, depois de os ter apartado dos re-
beldes e trânsfugas, subir à montanha da sua santidade, onde
toda família de Israel o servirá.
Há ainda outras passagens, além dessas, que costumam
ser citadas, especialmente pelos fariseus, mas penso que res-
ponderei de forma satisfatória a todas elas se responder a es-
tas duas, coisa que farei sem grande dificuldade depois de ter
demonstrado, com base na própria Escritura, que Deus não
elegeu os hebreus para sempre, mas unicamente nas mesmas
condições em que antes elegera os cananeus, os quais tam-
bém tiveram, como já explicamos, pontífices que prestavam
culto religioso a Deus e, não obstante, Deus rejeitou-os em
virtude da sua luxúria, indolência e falso culto. De fato, Moi-
sés (Levítico, cap. XVIII, 27, 28) avisa os israelitas para que não
se conspurquem com incestos, como os cananeus, para que
a terra não os vomite como vomitou as nações que habita-
vam naquela região. E no Deuteronômio, VIII, 19, 20, amea-
ça-os mesmo, em palavras absolutamente explícitas, com a
ruína total. Diz assim: hoje vos garanto que haveis de perecer
de todo; tal como as nações que Deus faz perecer na vossa
presença, assim perecereis vós.
Como estas, encontram-se várias outras passagens na Lei
que indicam expressamente que Deus não tinha escolhido a
nação hebraica incondicionalmente e para todo o sempre. As-
sim, se os profetas lhes anunciaram uma nova e eterna alian-
ça de conhecimento, amor e graça de Deus, não é difícil com-
preender que ela foi prometida só aos piedosos. Com efeito, [56]
no mesmo capítulo de Ezequiel que há pouco citamos, diz-
se expressamente que Deus apartará do meio deles os rebel-
des e os trânsfugas e, em Sofonias, cap. III, 12, 13, que Deus
destruirá os soberbos e deixará incólumes os pobres. Dado,
pois, que essa eleição diz respeito à verdadeira virtude, não
é de supor que ela tenha sido prometida apenas aos homens
64 ESPINOSA

piedosos dentre os judeus e excluísse todos os outros; o que


temos é de aceitar plenamente que os verdadeiros profetas
pagãos - que todas as nações tiveram, conforme mostramos -
prometeram também a mesma aliança aos fiéis <las suas na-
ções e com ela os consolaram. Donde, essa eterna aliança de
conhecimento e de amor de Deus é universa1'1, como consta
igualmente de Sofonias, cap. III, 10, 11, não sendo de admi-
tir a esse respeito nenhuma diferença entre judeus e gentios,
nem havendo, portanto, nenhuma outra eleição peculiar a
não ser aquela de que já falamos. E, se os profetas, a propó-
sito dessa eleição que concerne só a verdadeira virtude, fala-
ram de muitas coisas, tais como sacrifícios e outras cerimô-
nias, da reedificação do Templo e da Cidade, etc., foi porque
quiseram, de acordo com o que era costume e com a natu-
reza da profecia, explicar por meio dessas imagens coisas es-
pirituais, de modo que indicassem simultaneamente aos ju-
deus, de quem eram profetas, que deviam esperar a restaura-
ção, no tempo de Ciro, do Estado e do Templo.
Hoje em dia, portanto, os judeus não possuem absolu-
tamente nenhuma razão para se considerarem acima das
outras nações. O próprio fato de terem subsistido, apesar de
andarem há tantos anos dispersos e sem um Estado, não é
para admirar, visto que se apartaram de qualquer nação e
atraíram sobre si o ódio de todas elas, não apenas pelos ri-
tos exteriores, que são contrários aos das outras gentes, mas
também pelo sinal da circuncisão, que conservam religiosa-
mente12. A experiência, de resto, ensina que o ódio das na-
ções contribui imenso para a coesão dos judeus. Quando ou-
trora o rei de Espanha os obrigou a abraçar a religião do rei~
no ou se exilarem, muitos deles se converteram ã religião
dos papas. E assim que foram concedidos aos que abraça-
ram o catolicismo todos os privilégios próprios dos espa-
nhóis e os consideraram dignos de todas as honras, imedia-
tamente se integraram, de tal maneira que, pouco tempo de-
pois, já não restava deles o mínimo vestígio ou recordação.
Porém, àqueles a quem o rei de Portugal obrigou a aceitar a
religião do seu país aconteceu exatamente o contrário: ape-
sar de convertidos, continuaram a viver separados dos ou-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 65

tros, uma vez que lhes tinham sido vetados todos os cargos
honoríficos 13 •
Quanto ao sinal da circuncisão, considero-o também tão (571
importante a esse respeito que estou persuadido de que, só
por si, ele chegaria para manter para sempre unida essa na-
ção. Inclusive, se os fundamentos da sua religião não lhes
enfraquecessem o ânimo, estaria absolutamente convencido
de que, um dia, chegada a ocasião - de tal maneira são ins-
táveis as coisas humanas - eles hão-de reconstituir de novo
o seu Estado e Deus de novo os há-de eleger. Temos um ex-
celente exemplo disso mesmo nos chineses, os quais usam
religiosamente na cabeça aquela espécie de rabicho com que
se distinguem de todos os outros e desse modo a sua nação
tem sobrevivido ao longo de tantos milênios, que supera de
longe em antiguidade todas as demais. É verdade que nem
sempre se mantiveram como Estado independente, mas sem-
pre que perderam a independência acabaram por reconquis-
tá-la outra vez, mal o ânimo dos tártaros começou a enfraque-
cer devido à indolência e à vida luxuosa.
Em suma, se alguém insiste que os judeus, por este ou
por aquele motivo, serão para sempre os eleitos de Deus, não
serei eu a opor-me, desde que fique bem claro que essa elei-
ção, transitória ou eterna, se não refere, naquilo que tem de
peculiar, senão ao Estado e aos bens materiais (pois só por
isso se pode distinguir uma nação da outra); no que toca,
porém, à inteligência e à verdadeira virtude, nenhuma nação
se distingue de outra nem Deus escolhe esta de preferência
àquela em função de tais critérios.
CAPÍTULO IV

Da lei divina

A palavra lei, tomada em sentido absoluto, significa aqui-


lo que faz um indivíduo, ou todos, ou alguns de uma mesma
espécie, agir sempre de uma certa e determinada maneira. A
lei depende, ou da necessidade natural, ou da decisão do
homem. A lei que depende da necessidade natural é aquela
que deriva necessariamente da própria natureza, ou seja, da
definição de uma coisa; a que depende de uma decisão hu-
mana, e à qual se chamaria com mais propriedade direito, é
aquela que os homens, para tornar a vida mais segura e mais
cômoda, ou por outro motivo qualquer, prescrevem a si e
aos outros. Que, por exemplo, todos os corpos, quando en-
contram outros menores, percam tanto movimento quanto o
que lhes transmitem, é uma lei universal dos corpos que de-
[58] corre da necessidade da natureza. De igual modo, que um
homem, quando se lembra de uma coisa, imediatamente se
lembre de outra que lhe é parecida ou de que se tinha aper-
cebido simultaneamente com a primeira, é ainda uma lei que
decorre necessariamente da natureza humana. Que, pelo con-
trário, os homens cedam ou sejam obrigados a ceder uma
parte do seu direito natural e assumam viver segundo uma
certa regra, isso depende de uma decisão sua. E embora eu
sustente sem nenhuma restrição que todas as coisas são de-
terminadas por leis universais da natureza que existem e que
agem de uma certa e determinada maneira, ainda assim,
repito, essas leis dependem de uma decisão tomada pelos
homens:
7RA TADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 67
1 - Porque o homem, na medida em que é parte da na-
tureza', constitui uma parte da potência desta; assim, tudo o
que procede da necessidade da natureza humana, isto é, da
própria natureza enquanto a concebemos como determinada
pela natureza humana, deriva, necessariamente embora, da
potência humana. Daí o poder perfeitamente dizer-se que a
fixação dessas leis depende da decisão do homem, visto de-
pender principalmente da potência da mente humana, de tal
modo que esta, enquanto considerada como capaz de distin-
guir o verdadeiro do falso, pode conceber-se com toda clare-
za sem tais leis, ainda que não o possa sem uma lei necessá-
ria no sentido em que há pouco a definimos.
2 - Em segundo lugar, essas leis dependem, como dis-
se, da decisão do homem, porque devemos definir e expli-
car as coisas pelas suas causas próximas, e também porque
fazer considerações gerais sobre o destino e o encadeamen-
to das causas não serve de nada quando se trata de formar
e de ordenar os nossos pensamentos acerca de coisas parti-
culares. A isso acresce o fato de ignorarmos completamente
a própria coordenação e concatenação das coisas, isto é, de
que modo elas estão realmente ordenadas e concatenadas,
tornando-se, por isso mesmo, preferível e até necessário con-
siderá-las na prática como possíveis. Isso, quanto à lei em
sentido absoluto.
Visto, no entanto, a palavra lei se aplicar metaforicamen-
te às coisas naturais, e visto que, de costume, só se entende
por lei uma ordem que os homens tanto podem executar
como desrespeitar, até porque restringe a potência humana
dentro de certos limites para lá dos quais esta se estende ain-
da e, por outro lado, não impõe nada que exceda as suas
forças, convirá defini-la mais especificamente, a saber, como
uma regra de vida que o homem prescreve a si mesmo ou
aos outros em função de um determinado fim. Porém, uma
vez que a verdadeira finalidade das leis nào costuma ser cla-
ra senão para um pequeno número, ao passo que a maioria [591
dos homens são praticamente incapazes de a perceber e le-
vam uma vida que se rege por tudo menos pela razão, os le-
gisladores, para obrigar a todos sem distinção, estabeleceram
68 ESPINOSA

sabiamente uma outra finalidade bem distinta daquela que


deriva necessariamente da natureza das leis: prometem aos
defensores das leis aquilo de que o vulgo mais gosta e amea-
çam, por outro lado, os que as violam com o que ele mais
teme 2 • Desse modo procuram conter o vulgo, tanto quanto é
possível fazê-lo, assim como se segura um cavalo com a aju-
da de um freio. Por isso é que se considera a lei, antes de
mais nada, uma maneira de viver imposta a alguns homens
pelo poder de outros e, conseqüentemente, diz-se daquele
que obedece às leis que ele vive sob a lei e parece ser como
que seu escravo. É certo que quem dá a cada um o que lhe
é devido porque teme o patíbulo age por imposição alheia e
coagido pelo mal, não podendo sequer dizer-se que seja jus-
to; mas aquele que dá a cada um o que lhe é devido por co-
nhecer a verdadeira razão das leis e a sua necessidade age
com ânimo perseverante, por sua própria decisão e não por
decisão de outrem, merecendo por isso que lhe chamem jus-
to-1. Foi o que Paulo, segundo creio, quis também ensinar
quando disse que os que viviam subjugados pela lei não po-
diam ser justificados pela lei: a justiça, com efeito, tal como é
vulgarmente definida, é a constante e perpétua vontade de
dar a cada um o que lhe é devido. Igualmente Salomão diz
nos Provérbios, cap. XXI, 15, que o justo se alegra quando
chega a hora do julgamento, mas os injustos tremem.
Não sendo, portanto, a lei mais do que uma regra de vida
que os homens prescrevem a si mesmos ou a outros com de-
terminada finalidade, parece que a devemos distinguir em hu-
mana e divina. Por lei humana, entendo uma regra de vida
que serve unicamente para manter a segurança do indivíduo
e da coletividade; por lei divina, entendo uma regra que diz
respeito apenas ao soberano bem, isto é, ao verdadeiro co-
nhecimento e amor de Deus4 • A razão por que chamo divina
uma tal lei tem a ver com a natureza do sumo bem, que vou
aqui explicar em poucas palavras e tão claramente quanto
puder.
Dado que o entendimento é a melhor parte do nosso ser,
torna-se evidente que, se queremos realmente procurar o que
é do nosso interesse, devemos acima de tudo esforçar-nos
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO 69
por aperfeiçoá-lo tanto quanto possível, já que é na sua per-
feição que deverá consistir o soberano bem. Além disso, como
todo o nosso conhecimento, e bem assim a certeza que afas-
ta efetivamente toda dúvida, dependem apenas do conheci-
mento de Deus, já porque sem Deus nada pode existir nem
ser concebido, já porque podemos duvidar de tudo enquanto [60]
não tivermos de Deus uma idéia clara e distinta, segue-se que
o nosso supremo bem e a nossa perfeição dependem exclu-
sivamente do conhecimento de Deus, etc. Depois, como sem
Deus nada pode existir nem ser concebido, é evidente que
todas as coisas que existem na natureza implicam e expri-
mem a idéia de Deus na proporção da sua essência e da sua
perfeição5 . Por conseguinte, quanto mais conhecemos as coi-
sas naturais, maior e mais perfeito conhecimento adquirimos
de Deus, ou seja (já que conhecer o efeito pela causa não é
outra coisa que conhecer alguma propriedade da causa),
quanto mais conhecemos as coisas naturais, mais perfeita-
mente conhecemos a essência de Deus (que é causa de to-
das as coisas). Sendo assim, todo o nosso conhecimento, isto
é, o nosso bem supremo, não só está dependente do conhe-
cimento de Deus, como até reside exclusivamente nele. É o
que se pode, aliás, deduzir também do fato de a perfeição
do homem aumentar ou diminuir em função da natureza e
da perfeição da coisa que ele mais ama: assim, o mais perfei-
to e o que mais participa da suma felicidade é, necessaria-
mente, aquele que ama acima de tudo o conhecimento inte-
lectual de Deus, ou seja, do ser absolutamente perfeito, e
que daí extrai maior prazer do que de qualquer outra coisa.
O nosso supremo bem e a nossa felicidade resumem-se,
pois, no conhecimento e amor de Deus. Os meios que essa
finalidade requer de todas as ações humanas, isto é, o pró-
prio Deus na medida em que a idéia dele está em nós, po-
dem designar-se por mandamentos de Deus, uma vez que
nos são de alguma forma prescritos por ele enquanto exis-
tente na nossa mente. Por isso, a regra de vida que concerne
essa finalidade poderá com razão chamar-se lei divina. Quais
são, porém, esses meios, qual a regra de vida que essa finali-
dade impõe? E como deduzir dela os fundamentos do me-
70 ESPINOSA

lhor Estado e as regras de convivência entre os homens? Tais


questões pertencem à Ética universal. Aqui, continuarei a fa-
lar apenas da lei divina em geral 6 •
Sendo o amor de Deus a suprema felicidade, a beatitu-
de do homem, o fim último e o objetivo de todas as suas
ações, só segue a lei divina quem procura amar a Deus, não
por temer o castigo nem por amor de nenhuma outra coisa,
sejam prazeres, fama, etc., mas apenas porque conhece a Deus,
ou seja, porque sabe que o conhecimento e o amor de Deus
são o bem supremo. Tal lei divina se resume, portanto, nes-
[611 te preceito: amar a Deus como soberano bem, isto é, e como
já dissemos, sem ser por receio de algum suplício ou castigo,
nem por amor de nenhuma outra coisa com que desejáva-
mos nos deleitar. O que a idéia de Deus prescreve é que Deus
é o nosso bem supremo ou, por outras palavras, que o co-
nhecimento e o amor de Deus são o fim último para o qual
devem estar orientadas todas as nossas ações. O homem car-
nal, todavia, não pode compreender essas coisas, que lhe pa-
recem vãs porque tem de Deus um conhecimento por demais
insuficiente e porque não encontra nesse soberano bem nada
que possa tocar, comer ou, enfim, que tenha relação com a
carne, sua principal fonte de prazer, dado que um tal bem é
de natureza meramente especulativa7 e intelectual. Mas aque-
les que reconhecerem que não possuem em si nada de mais
importante que o entendimento e a mente sã tomarão isso,
com certeza, por uma verdade inabalável. ,
Ficou, portanto, explicado em que consiste essencial-
mente a lei divina, bem como o que são as leis humanas, quer
dizer, todas aquelas que visam um outro fim, exceto se tive-
rem sido sancionadas por revelação, pois, se for este o caso,
elas atribuem-se também, como já demonstramos, a Deus: é
nesse sentido que a lei de Moisés, embora não seja universal
e esteja sobretudo adaptada à maneira de ser e à conserva-
ção de um determinado povo, pode designar-se por Lei de
Deus ou Lei divina, porquanto acreditamos que ela foi san-
cionada pela luz profética. Se atentarmos agora na natureza
da lei divina natural, tal como a explicamos, veremos o se-
guinte: primeiro, que ela é universal, isto é, comum a todos
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍT1CO 71

os homens, uma vez que a deduzimos da natureza humana


na sua acepção universal; segundo, que não exige que acre-
ditemos em relatos históricos, quaisquer que eles sejam, vis-
to que, se essa lei divina natural se conhece tendo em consi-
deração apenas a natureza humana, é evidente que a pode-
remos conceber da mesma forma em Adão como em qual-
quer outro homem, tanto num homem que vive entre outros
homens como num homem que leva uma vida solitária. A fé
nos relatos históricos, por maior que seja a certeza que ela
implica, não nos pode dar o conhecimento nem, conseqüen-
temente, o amor de Deus. Porque o amor de Deus nasce do
seu conhecimento e o conhecimento de Deus deve ser bus-
cado em noções comuns, certas e conhecidas por si mesmas,
estando, portanto, a fé nos relatos históricos muito longe de
constituir um requisito necessário para podermos alcançar o
nosso bem supremo. Contudo, e se bem que a fé nos relatos
históricos não possa proporcionar-nos o conhecimento e o
amor de Deus, temos de reconhecer que a sua leitura é bas-
tante útil no que se refere à vida em sociedade. De fato, quan- [621
to mais observarmos e conhecermos os costumes e as condi-
ções de vida dos homens (e a melhor forma de os conhecer
é através das suas ações), mais cautelosamente viveremos en-
tre eles e saberemos adaptar melhor as nossas ações e a nos-
sa vida à sua maneira de ser, pelo menos até onde isso for
razoável. Em terceiro lugar, vemos que esta lei divina natural
não exige cerimônias, isto é, ações que em si mesmas são in-
diferentes e só por convenção se consideram boas, ou que
simbolizam um bem necessário à salvação, ações, se quiser-
mos, cuja razão de ser ultrapassa a capacidade de compreen-
são humana. A luz natural, com efeito, não exige nada que
essa mesma luz não atinja, mas apenas aquilo que ela nos
pode com toda clareza indicar como um bem, ou seja, como
um meio de chegar à nossa beatitude. Ora, as coisas que são
boas só por mandamento e convenção, ou porque simboli-
zam algum bem, não podem contribuir para a perfeição do
nosso entendimento e não passam de meras sombras, não se
podendo contar entre as ações que são como que a prole ou
os frutos do entendimento e de uma mente sã. Não é neces-
72 ESPINOSA

sário mostrar isso aqui mais desenvolvidamente. Em quarto e


último lugar, vemos que a mais alta recompensa pela lei di-
vina consiste nela mesma, isto é, em conhecer a Deus e amá-
lo como seres verdadeiramente livres, de ânimo íntegro e per-
severante; o castigo, pelo contrário, consiste na privação des-
ses bens e na servidão da carne, isto é, na inconstância e na
instabilidade de ânimo.
Isso posto, convirá agora investigarmos o seguinte: pri-
meiro, se pela luz natural podemos conceber Deus como um
legislador ou como um príncipe que prescreve leis aos ho-
mens; segundo, o que é que a Sagrada Escritura ensina a res-
peito dessa luz e dessa lei natural; terceiro, com que finalida-
de foram outrora instituídas as cerimônias religiosas; quarto,
para que serve, enfim, conhecer a história sagrada e acredi-
tar nela. Os dois primeiros pontos serão tratados neste capítu-
lo; os dois últimos ficarão para o seguinte.
A resposta à primeira dessas questões deduz-se facil-
mente da natureza da vontade de Deus, a qual não se distin-
gue do entendimento divino a não ser na perspectiva da nos-
sa razão. Quer dizer, a vontade de Deus e o seu entendimen-
to são, na realidade, uma e a mesma coisa, distinguindo-se
apenas do ponto de vista das idéias que nós fazemos a res-
peito do entendimento divino. Assim, por exemplo, quando
atendemos só a que a natureza do triângulo está contida des-
de toda a eternidade na natureza de Deus como uma verda-
de eterna, dizemos que Deus tem a idéia do triângulo, ou
[631 seja, que entende a natureza do triângulo. Mas, se tivermos
depois em conta o fato de a natureza do triângulo estar con-
tida na natureza divina, por necessidade apenas dessa natu-
reza e não da essência e da natureza do triângulo, e inclusi-
ve, que a necessidade da essência e das propriedades do triân-
gulo, enquanto concebidas também como verdades eternas,
dependem exclusivamente da necessidade da natureza e do
entendimento divino, não da natureza do triângulo, nessa al-
tura, chamamos vontade ou decreto de Deus àquilo que an-
tes chamamos entendimento de Deus. Desse modo, dizer a
respeito de Deus que ele quis e decidiu, desde toda a eterni-
dade, que os três ângulos de um triângulo fossem iguais a
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 75

dois retos, ou dizer que ele entende essa mesma verdade,


equivale a dizer a mesma coisa". Donde segue que as afirma-
ções e as negações formuladas por Deus envolvem sempre
uma necessidade, ou seja, uma verdade eterna. Se, por exem-
plo, Deus disse a Adão que não queria que ele comesse do
fruto da árvore da ciência do bem e do mal, seria contraditó-
rio e, por conseguinte, impossível que Adão comesse, uma
vez que o decreto divino deveria implicar eterna necessidade
e verdade. Como, porém, a Escritura narra que Deus proibiu
Adão e que, mesmo assim, ele comeu, temos forçosamente
de admitir que Deus só revelou a Adão o mal que necessa-
riamente lhe aconteceria se ele comesse e não a necessidade
com que esse mal viria a seguir. Por isso é que Adão enten-
deu essa revelação, não como uma verdade eterna e neces-
sária, mas como uma lei, isto é, como algo instituído a que se
seguiria um prêmio ou um castigo, não pela necessidade e
pela natureza da ação perpetrada, mas unicamente pelo ca-
pricho e pela autoridade absoluta de um príncipe. Assim, só
na perspectiva de Adão e em virtude da sua falta de conhe-
cimento é que essa revelação foi uma lei e Deus surgiu como
legislador ou príncipe. Por essa mesma razão, isto é, por fal-
ta de conhecimento, o Decálogo foi uma lei só na perspecti-
va dos hebreus, já que, não conhecendo eles a existência de
Deus como uma verdade eterna, tinham de tomar por uma
lei aquilo que lhes foi revelado no Decálogo, a saber, que
Deus existe e só a ele se deve adorar. Porque, se Deus lhes
tivesse falado diretamente, sem recorrer a meios corporais de
espécie nenhuma, não o teriam entendido como uma lei, mas
sim como uma verdade eterna.
O que dizemos de Adão e dos israelitas deve igualmen-
te dizer-se de todos os profetas que escreveram leis em no- [64J
me de Deus, pois também eles não perceberam os decretos
divinos de maneira adequada, quer dizer, como verdades
eternas. Do próprio Moisés, por exemplo, deve dizer-se que
ele percebeu por revelação, ou concluiu dos princípios que
lhe foram revelados, a forma como o povo de Israel melhor se
poderia agregar numa determinada região do mundo e formar
uma sociedade em toda a acepção da palavra, ou seja, cons-
74 ESPINOSA

tituir um Estado, e bem assim a melhor maneira de compelir


aquele povo à obediência. Mas o que ele não percebeu, nem
lhe tinha sido revelado, foi que essa maneira era efetivamen-
te a melhor e que, mediante a obediência de todo o povo, al-
cançariam necessariamente, naquela região, o fim que perse-
guiam. Não percebeu, em suma, nenhuma dessas coisas como
verdade eterna, mas sim como um preceito e como algo de
instituído, prescrevendo-as como leis de Deus. Daí que os
hebreus imaginassem Deus como um chefe, um legislador,
um rei, misericordioso, justo, etc., quando, afinal, tudo isso
são atributos que pertencem apenas à natureza humana e
devem ser inteiramente dissociados da natureza divina. Isso,
note-se, no que se refere unicamente aos profetas, que em
nome de Deus escreveram leis, não no que se refere a Cris-
to. Porque deste, embora ele pareça também ter prescrito
leis em nome de Deus, deve, pelo contrário, afirmar-se que
teve uma percepção verdadeira e adequada das coisas: Cris-
to, de fato, não foi tanto um profeta quanto a própria boca
de Deus9 .
Através da mente de Cristo (conforme demonstramos no
capítulo I) Deus revelou, tal como anteriormente tinha feito
através dos anjos, isto é, de uma voz criada, de visões, etc.,
certas coisas ao gênero humano. Seria, por isso, tão contrário
à razào admitir que Deus adaptou as suas revelações às opi-
niões de Cristo quanto supor que antes ele as tinha adaptado
às opiniões dos anjos, isto é, de uma voz criada e de visões,
para comunicar aos profetas as coisas que tinha a revelar. Maior
absurdo que este seria impensável, tanto mais que Cristo foi
enviado para ensinar, não só aos judeus, mas a todo o gêne-
ro humano, pelo que não bastaria que ele tivesse a mente
adaptada apenas às opiniões dos judeus, era preciso que a
adaptasse também às opiniões e aos princípios universalmen-
te reconhecidos por todo o gênero humano, ou seja, às no-
ções comuns e verdadeiras. Por conseguinte, se Deus se re-
velou a Cristo ou à sua mente, de maneira imediata e não por
palavras e imagens como se tinha revelado aos profetas, a
única coisa que podemos concluir daí é que Cristo percebeu
ou entendeu verdadeiramente coisas reveladas. Com efeito,
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 75

diz-se que entendemos uma coisa quando a percebemos pela


mente, sem imagens nem palavras. Sendo assim, Cristo per- [651
cebeu verdadeira e adequadamente as coisas reveladas e, por-
tanto, se alguma vez as prescreveu como leis, foi por causa
da ignorância e da obstinação do povo. Fez, deste modo, as
vezes de Deus, adaptando-se à maneira de ser do povo e, por
isso mesmo, se bem que falasse um pouco mais claramente
do que os outros profetas, ensinou as coisas reveladas de for-
ma obscura e muitas vezes por parábolas, especialmente quan-
do se dirigia a homens a quem ainda não era dado conhecer
o reino dos céus (ver Mateus, cap. XIII, 10, etc.). Mas àqueles
a quem era dado conhecer os mistérios dos céus, é claro que
ensinou essas mesmas coisas como verdades eternas e não
as prescreveu como leis, e por isso os libertou da servidão
da lei ao mesmo tempo que a confirmava, estabelecia e ins-
crevia no mais fuQdo dos seus corações.
É isso que Paulo parece indicar em algumas passagens,
como na Epístola aos Romanos, cap. VII, 6, e cap. III, 28. Mas
nem mesmo ele quer falar abertamente; pelo contrário, e
conforme diz no cap. III, 5, e cap. VI, 19, da mesma Epístola,
fala à maneira humana e reconhece-o explicitamente quando
chama a Deus justo, sendo com certeza também por causa
da fraqueza da carne que lhe atribui a misericórdia, a graça,
a cólera, etc., e que adapta as suas palavras à maneira de ser
da plebe, isto é, conforme ele próprio diz na Epístola aos Co-
ríntios, I, cap. III, 1, 2, dos homens carnais. A prova está em
que, no cap. IX, 18, da Epístola aos Romanos, ele ensina sem
margem para dúvidas, primeiro, que a cólera de Deus e a
sua misericórdia não dependem das obras dos homens mas
apenas do chamamento de Deus, isto é, da sua vontade; se-
gundo, que ninguém é justificado pelas obras da lei mas ape-
nas pela fé (ver Epístola aos Romanos, cap. III, 28), não en-
tendendo por isso, com certeza, outra coisa que não seja o
pleno assentimento da vontade; por último, que ninguém será
feliz se não tiver em si a mente de Cristo (ver Epístola aos Ro-
manos, cap. VIII, 9), através da qual percebe efetivamente as
leis de Deus como verdades eternas.
76 ESPINOSA

Concluímos, portanto, que Deus só é descrito como le-


gislador ou como príncipe e apelidado de justo, misericor-
dioso, etc., em virtude da maneira de entender do vulgo e
pela sua falta de conhecimentos. Na realidade, Deus age e
dirige todas as coisas unicamente pela necessidade da sua
natureza e perfeição; os seus decretos, enfim, e as suas voli-
ções são verdades eternas e implicam sempre uma necessi-
dade. Era isso o que eu pretendia explicar e demonstrar em
primeiro lugar.
Passemos agora ao segundo ponto, percorramos as pági-
[66J nas sagradas e vejamos o que elas ensinam a respeito da luz
natural e dessa lei divina. O primeiro texto que aí encontra-
mos é precisamente a história do primeiro homem, onde se
conta que Deus ordenou a Adão que não comesse do fruto
da árvore da ciência do bem e do mal, o que aparentemente
significa que Deus ordenou a Adão que fizesse e procurasse
o bem pelo bem e não por ser contrário ao mal, isto é, que
procurasse o bem por amor do bem e não por receio do mal.
Quem, com efeito, faz o bem, como já mostramos, porque o
conhece e ama, age livremente e de ânimo perseverante;
quem, todavia, o faz por recear o mal, age servilmente e coa-
gido pelo mal, vivendo, portanto, às ordens de outrem. Só
esse preceito dado por Deus a Adão já contém em si, por
conseguinte, toda a lei divina natural e concorda inteiramen-
te com o que manda a luz natural. Nem seria difícil, de resto,
explicar com base em tal fundamento toda essa história ou
parábola do primeiro homem. Não quero, porém, fazê-lo, já
porque não estou absolutamente certo de que a minha expli-
cação estaria de acordo com a intenção do autor, já porque a
maioria não concorda que essa história seja uma parábola e
admite que se trata de uma narração pura e simples. Será pre-
ferível citar aqui outras passagens da Escritura, principalmen-
te as que são tiradas de alguém que fala em virtude da luz na-
tural com que superou todos os sábios do seu tempo, de al-
guém cujas palavras o povo acolheu com tanto respeito como
as dos profetas: estou pensando em Salomão, de quem os Li-
vros Sagrados exaltam não tanto a profecia e a piedade quan-
to a prudência e a sabedoria.
TRATADO TEOLÓG/CO-POÚ17CO 77
Salomão, nos seus Provérbios, chama ao entendimento
humano a fonte da verdadeira vida e faz consistir o infortú-
nio exclusivamente na insensatez. Diz ele (cap. XVI, 22): o
entendimento (é) para o seu dono• uma fonte de vida e o su-
plício dos insensatos é a sua insensatezº. Note-se que por
vida, em termos absolutos, entende-se em hebraico a verda-
deira vida, como se vê pelo Deuteronômio, cap. XXX, 19. Por
conseguinte, para Salomão, o fruto do entendimento consis-
te unicamente na verdadeira vida, tal como o suplício consis-
te em ser privado dele, o que está perfeitamente de acordo
com o que dissemos em quarto lugar a respeito da lei divina
natural. Mas o mesmo Salomão ensina também explicitamen-
te que só essa fonte da vida, isto é, que só o entendimento,
como já dissemos, prescreve leis aos sábios, uma vez que
afirma no cap. XIII, 14: a lei do prudente (é) fonte da vida, ou [67l
seja, como se pode ver pelo texto acima citado, é o entendi-
mento. Além disso, no cap. III, 13, ensina por palavras bem
explícitas que o entendimento dá ao homem a beatitude e a
felicidade e bem assim a verdadeira tranqüilidade de ânimo:
feliz o homem que encontrou a ciência e o filho do homem
que descobriu o entendimento. E a razão (como se vê a se-
guir, nos versículos 16 e 17) é porque o entendimento dá di-
retamente uma longa duração dos dias• • e indiretamente
riquezas e honra: os seus caminhos (isto é, os que a ciência
indica) são amenos e todas as suas veredas são pacificas. Só
os sábios, portanto, ainda segundo Salomão, vivem em paz e
tranqüilidade e não como os ímpios, cujo ânimo flutua agita-
do por paixões contrárias e que, por conseguinte, como diz
Isaías, cap. LVII, 20, não têm paz nem sossego. Finalmente
desses Provérbios de Salomão, deve sobretudo notar-se o
que vem no capítulo II e que confirma com meridiana clare-
za a nossa opinião. Começa assim o versículo 3 daquele ca-

• Hebraísmo. Quem possui uma coisa ou a contém na sua natureza diz-


se dono dessa coisa; assim, o pássaro diz-se em hebraico o dono das asas
porque tem asas; por sua vez, o dono do entendimento diz-se inteligente
porque tem entendimento.
• • Hebraísmo que significa simplesmente a vida.
78. ESPINOSA

pítulo: porque, se invocares a prudência e te fizeres arauto


da inteligência, etc., então conhecerás o temor de Deus e en-
contrarás a sua ciência (ou antes, o amor, já que este termo
"Jadah" significa tanto uma coisa como outra). Deus dá asa-
bedoria, da sua boca (emana) a ciência e a prudência. Tais
palavras deixam suficientemente claro, primeiro, que só asa-
bedoria, isto é, o entendimento, nos ensina a temer a Deus,
que o mesmo é dizer, a prestar-lhe culto segundo a verda-
deira religião; segundo, que a sabedoria e a ciência brotam
da boca de Deus e que é Deus quem as concede, como tam-
bém já mostramos, ou seja, que o nosso entendimento e ciên-
cia dependem exclusivamente da idéia ou conhecimento de
Deus, idéias onde têm a sua origem e na qual atingem a sua
perfeição. A seguir, no versículo 9, Salomão ensina explicita-
mente que essa ciência contém, e por isso dela se deduzem,
a verdadeira Ética e a verdadeira Política: então compreende-
rás ajustiça e o juízo, os caminhos certos (e) todos os atalhos
convenientes. Não contente com isso, diz ainda: quando a
[681 ciência entrar no teu coração e a sabedoria te for suave, en-
tão a tua providência• há de vigiar-te e a prudência guar-
dar-te-á. Tudo isso concorda inteiramente com a ciência na-
tural, que ensina a Ética e a verdadeira virtude só depois de
adquirirmos o conhecimento das coisas e experimentarmos a
superioridade da ciência. Por isso, a felicidade e a tranqüili-
dade de quem cultiva o entendimento natural, de acordo ain-
da com Salomão, não depende do império da fortuna (isto é,
do auxílio externo de Deus), mas sim e principalmente da sua
própria virtude interior (isto é, do auxílio interno de Deus).
Por outras palavras, conserva-se sobretudo através da vigilân-
cia, da atividade e dos bons conselhos.
Finalmente, não se deve esquecer aquela passagem de
Paulo que se encontra no capítulo 1 da Epístola aos Romanos
e que diz assim (de acordo com a tradução de Tremellius 11 do
texto siríaco): as coisas de Deus escondidas desde a fundação
do mundo são descobertas pelo entendimento nas suas cria-

• "Mezina" significa exatamente pensamento, deliberação e vigilância.


TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍ'J1CO 79
turas, bem como a sua virtude e a sua divindade que é eter-
na, de forma que não têm desculpa. Tais palavras mostram
claramente que qualquer um pode compreender a virtude de
Deus e a sua eterna divindade pela luz natural, luz esta com
que pode igualmente saber e deduzir as coisas que deve pro-
curar e aquelas que deve evitar. A conclusão, portanto, é que
ninguém tem desculpa e que nem a ignorância pode ser ale-
gada, ao contrário do que aconteceria se o autor estivesse fa-
lando da luz sobrenatural, ou da paixão que Cristo padeceu
na carne, ou da ressurreição, etc. Por isso ele acrescenta, um
pouco mais adiante, no versículo 24: por esta razão, Deus
entregou-os às imundas concupiscências dos seus corações,
etc. E prossegue até o fim do capítulo descrevendo os vícios
da ignorância, os quais apresenta como castigos da mesma
ignorância, em inteira conformidade com o já citado provér-
bio de Salomão (cap. XVI, 22): e o suplício dos insensatos é a
sua insensatez. Não é de estranhar, pois, que Paulo diga que
os que fazem o mal não têm desculpa. Cada um colhe con-
forme o que semeou: do mal, outros males virão por força 1',
se não for prudentemente corrigido; o bem, pelo contrário,
atrai o bem, se for acompanhado de perseverança. Em con-
clusão, a Escritura elogia sem nenhuma reticência a luz natu-
ral e a lei divina natural. Dou assim por encerradas as ques-
tões que me tinha proposto abordar neste capítulo.
[691 CAPÍTULO V

Da razão pela qual foram instituídas


as cerimônias e da fé nas narrativas
históricas, ou seja, por que motivo
e a quem ela é necessária

No capítulo anterior, mostramos como a lei divina, que


torna os homens felizes e lhes ensina a verdadeira vida, é
universal; além disso, deduzimo-la da natureza humana, de
maneira que ela deve considerar-se inata 1 e como que inscri-
ta na mente do homem. As cerimônias, porém, pelo menos
aquelas que se encontram no Antigo Testamento, foram ins-
tituídas exclusivamente para os hebreus e adaptadas ao seu
Estado, de tal modo que a maior parte delas só podia ser ce-
lebrada pela comunidade em conjunto e não por um indiví-
duo isoladamente. É, portanto, evidente que elas não perten-
cem à lei divina nem tampouco adiantam seja o que for
para a beatitude ou para a virtude, dizendo unicamente res-
peito à eleição dos hebreus, isto é (por aquilo que mostra-
mos no cap. III), à contingente' felicidade do corpo e do Es-
tado, pelo que não podiam ter nenhuma aplicação a não ser
enquanto durasse o Estado. Se, por conseguinte, essas ceri-
mônias estavam no Antigo Testamento ligadas à lei de Deus,
era unicamente por terem sido instituídas por revelação ou
com base em princípios revelados. Contudo, uma vez que a
razão, por mais sólida que seja, pouco valor tem para o co-
mum dos teólogos, convirá aqui confirmar também pela au-
toridade da Escritura o que acabamos de dizer, para mostrar
depois, de maneira ainda mais nítida, por que e como ser-
viam as cerimônias para a manutenção e a defesa do Estado
dos judeus.
TRATADO TEOLÓGICO-POIÍ11CO 81

De tudo quanto Isaías ensina, a coisa mais óbvia é que


a lei de Deus, em sentido absoluto, significa aquela lei uni-
versal que consiste numa verdadeira regra de vida e não em
cerimônias. De fato, no capítulo 1, 10, o profeta apela à sua
gente para que ouça da sua boca a Lei divina, mas antes ex-
clui dela toda a espécie de sacrifício e festas; só então é que
ensina a lei (ver vers. 16 e 17), que resume, aliás, a muito pou-
cos preceitos: a purificação da vontade, a prática, ou seja, o há-
bito das virtudes, que o mesmo é dizer das boas ações e, fi-
nalmente, a ajuda prestada aos pobres. Não menos esclarece-
dor é o testemunho que se encontra no Salmo XL, 7, 9, onde
o salmista se dirige assim a Deus: não quiseste sacrifício nem [70]
oferenda, peifuraste-me os ouvidos•, não pediste holocausto
nem oblação pelo resgate do pecado; quis cumprir a tua von-
tade, ó meu Deus, porque a tua lei está nas minhas entra-
nhas. Chama, portanto, lei de Deus só àquela que está inscri-
ta nas entranhas ou na mente e exclui dela as cerimônias; es-
tas, com efeito, são boas só por convenção e não por nature-
za, pelo que não estão inscritas nas mentes. Há ainda outras
passagens na Escritura que confirmam a mesma coisa, mas
as duas que citei são suficientes.
Quanto ao fato de as cerimônias em nada contribuírem
para a beatitude e, pelo contrário, dizerem apenas respeito à
contingente prosperidade do Estado, ele consta igualmente
da Escritura, a qual não promete senão comodidades e pra-
zeres corporais pela observância das cerimônias, ao passo
que pela observância da lei divina universal promete a beati-
tude. Na verdade, nos cinco livros que vulgarmente se atri-
buem a Moisés, não se promete, como já dissemos, outra coi-
sa para além dessa felicidade contingente, quer dizer, hon-
ras, fama, vitórias, riquezas, prazeres e saúde. E muito embo-
ra esses cinco livros contenham, além das cerimônias, muitos
preceitos morais, todavia, estes não vêm incluídos a título de
ensinamentos morais para todos os homens, mas antes como
ordens adequadas à compreensão e à maneira de ser exclu-

• Expressão que significa a percepção.


82 ESPINOSA

sivamente da nação hebraica, visando apenas, por isso mes-


mo, a prosperidade do seu Estado5 . Moisés, por exemplo, não
ensina os judeus como um doutor ou como um profeta a
não matar e a não roubar: ordena-lhes como um legislador e
como um príncipe. Nem prova pela razão aquilo que ensina;
pelo contrário, quando dá ordens anuncia também as san-
ções e estas, como a experiência abundantemente demons-
tra, podem e devem variar conforme a índole própria de cada
nação. Da mesma forma, o mandamento que proíbe o adul-
tério tem apenas em vista a ordem pública e o interesse do
Estado; porque se ele significasse um ensinamento moral que
contemplasse, não só o interesse do Estado, mas também a
tranqüilidade e a beatitude de cada um, Moisés não teria con-
denado só a ação exterior, mas até o próprio assentimento
da vontade, como fez Cristo, o qual deixou apenas ensina-
mentos universais (ver Mateus, cap. V, 28) e, por isso mesmo,
a recompensa que promete é espiritual e não corporal como
a de Moisés.
Cristo, como já disse, foi enviado, não para manter um
[711 Estado e instituir leis, mas somente para ensinar a lei univer-
sal. Donde, facilmente se compreende, Cristo não revogou
de forma alguma a lei de Moisés, porquanto não pretendeu
introduzir na sociedade nenhuma lei nova nem procurou ou-
tra coisa que não fosse dar ensinamentos morais e separá-los
das leis do Estado. E isso, sobretudo por causa da ignorância
dos fariseus, que pensavam que viver em beatitude significa-
va defender o direito público, ou seja, a lei de Moisés, quan-
do esta, conforme dissemos, só existia em função do Estado
e servia, não tanto para ensinar, como para coagir os hebreus.
Mas voltemos ao assunto que nos ocupa e citemos outras
passagens da Escritura em que pela observância das cerimô-
nias não se promete nada a não ser vantagens materiais, en-
quanto pelo cumprimento da lei divina universal, e só por ele,
se promete a beatitude.
Dentre todos os profetas, nenhum ensinou isso com mais
clareza do que Isaías, que no capítulo LVIII, após ter condena-
do a hipocrisia, recomenda a liberdade e a caridade para con-
sigo mesmo e para com o próximo, prometendo, em compen-
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍT7CO 83

sação, o seguinte: então a tua luz há de romper como uma


aurora, a tua saúde florescerá imediatamente, a tua justiça
irá na tua frente e a glória de Deus agregar-te-á•. A seguir,
recomenda também o sábado, prometendo aos que o obser-
varem: divertir-te-ás então com Deus•• e far-te-ei cavalgar
aos píncaros da terra,• • • dar-te-ei por alimento a herança
de jacó, teu pai, conforme a palavra que saiu da boca de Jeo-
vá. Vemos, portanto, que o profeta promete, a troco da liber-
dade e da caridade, mente sã em corpo são, além da glória
de Deus depois da morte; porém, a troco das cerimônias, mais
não promete que a segurança do Estado, a prosperidade e o
bem-estar material.
Já nos Salmos XV e XXIV, não se faz nenhuma menção
das cerimônias, mas só dos ensinamentos morais, sem dúvi-
da porque aí se trata unicamente da beatitude e por ser esta
a única coisa que aí se tem em vista, ainda que seja como
parábola. Com efeito, por monte de Deus, por tendas divinas
e por ocupação destas é evidente que se entende aqui a bea-
titude e a tranqüilidade de ânimo, e não o monte de Jerusalém
ou o tabernáculo de Moisés. Porque esses locais não eram ha- [72]
bitados nem administrados por ninguém a não ser pelos da
tribo de Levi. Além disso, todas aquelas sentenças de Salomão
que citei no capítulo anterior prometem a verdadeira beatitu-
de só àqueles que cultivam o entendimento e a sabedoria,
porquanto só através desta se compreende o temor de Deus
e se alcança a ciência divina.
Em relação ao fato de os hebreus, uma vez destruído o
Estado, nào serem mais obrigados a observar as cerimônias,
isso vê-se em Jeremias, o qual, quando percebe e prega que
a cidade será em breve devastada, diz o seguinte: Deus só
ama aqueles que sabem e compreendem que ele exerce no mun-

• Hebraísmo que significa a hora da morte; ser agregado ao seu povo


significa morrer (ver Gênesis, cap. XLIX, 29, 33).
• • Quer dizer, divertir-se honestamente, como também se diz em fla-
mengo, "met Godt/en met eere"
Significa domínio, tal como quando se segura um cavalo pelo
freio.
84 ESPJNOSA

do a misericórdia, o julgamento e a justiça; por isso, no futu-


ro, só os que conheceram isso é que serão julgados dignos de
louvor (ver cap. IX, 23); quer dizer, depois da destruição da
cidade, Deus já não exige dos judeus nada de especial e
pede-lhes simplesmente que observem a lei natural, a que
estão sujeitos todos os mortais. No Novo Testamento, isto vem
também plenamente confirmado, visto que, como já disse-
mos, não se encontram aí senão ensinamentos morais, por
cujo cumprimento se promete o reino dos céus; as cerimô-
nias, pelo contrário, foram abandonadas pelos apóstolos a
partir do momento em que o Evangelho começou a ser pre-
gado a outras gentes, sujeitas às leis de um outro Estado. E,
se os fariseus, mesmo depois de perdida a independência
política4 , conservaram pelo menos a maior parte delas, foi
mais por animosidade contra os cristãos do que para agradar
a Deus. De fato, após a primeira destruição da cidade, quan-
do foram levados para o cativeiro da Babilônia, como na al-
tura não estavam, que eu saiba, divididos em seitas, negli-
genciaram logo as cerimônias, abandonaram por completo a
própria lei de Moisés, esqueceram o direito da sua pátria como
algo de inteiramente supérfluo e começaram a misturar-se
com as outras nações, conforme consta sobejamente em Es-
dras e Neemias. É, portanto, evidente que, após a dissolução
do Estado, os judeus ficaram tão sujeitos à lei de Moisés
como estavam antes de ser fundada a sua sociedade e o seu
Estado. Ora, enquanto eles viveram no meio de outras gen-
tes, antes da saída do Egito, não tiveram nenhuma lei parti-
cular, estando sujeitos apenas ao direito natural e, claro, ao
direito do Estado em que viviam, contanto que este não fos-
se contra a lei divina natural. Dir-se-á que os patriarcas ofe-
reciam sacrifícios a Deus mas julgo que o faziam só para me-
lhor incutir no seu ânimo, assim habituado desde a infância,
a devoção. É que todos os homens, desde os tempos de Enós,
[731 estavam habituados a oferecer sacrifícios para melhor se sen-
tirem inclinados à devoção. Os patriarcas, por conseguinte,
ofereceram sacrifícios a Deus, não por obediência a algum
direito divino ou por conhecerem os princípios universais da
lei divina, mas simplesmente porque era costume naquele
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO

tempo. E, se acaso o fizeram por ordem de alguém, essa or-


dem não traduzia senão o direito do Estado onde viviam e
ao qual também estavam sujeitos, como já aqui observamos
e como já tínhamos visto no capítulo III, ao falar de Melqui-
sedeque.
Penso ter assim comprovado pela autoridade da Escritu-
ra a minha opinião. Resta agora mostrar como e por que mo-
tivo as cerimônias serviam para manter e consolidar o Estado
dos hebreus. É isso que vou fazer, em palavras tão breves
quanto possível e com base em princípios universais. A so-
ciedade é uma coisa extremamente útil e até absolutamente
necessária, não só porque nos protege dos inimigos, mas tam-
bém porque nos poupa a muitas tarefas; de fato, se os ho-
mens não quisessem entreajudar-se, faltar-lhes-ia tempo e ca-
pacidade para, na medida do possível, se sustentarem e con-
servarem. Nem todos são igualmente aptos para tudo e nin-
guém seria capaz de acorrer sozinho a tudo aquilo de que
necessita imprescindivelmente. Por outras palavras, ninguém
teria a força e o tempo necessário se fosse obrigado a lavrar,
semear, ceifar, cozer, tecer, costurar e fazer sozinho tudo o
mais que é preciso para o sustento, não falando já nas artes
e ciências, que são também sumamente necessárias à perfei-
ção da natureza humana e à sua beatitude 5 . Veja-se como
aqueles que vivem na barbárie e sem organização política le-
vam uma vida miserável e quase de animais e, mesmo assim,
o pouco que têm, por miserável e rude que seja, só o conse-
guem através da cooperação mútua, seja ela de que tipo for.
Ora, se os homens fossem por natureza constituídos de mo-
do que não desejassem senão o que ensina a reta razão, cer-
tamente a sociedade não necessitaria de nenhuma lei, bas-
tando apenas fornecer aos homens os verdadeiros ensinamen-
tos morais para que, espontaneamente e de inteira e livre von-
tade, fizessem aquilo que verdadeiramente interessa. Quão
diferente, porém, é a constituição da natureza humana! To-
dos procuram, de fato, o que lhes é útil, mas quase nunca se-
gundo os preceitos da reta razão; pelo contrário, a maioria das
vezes desejam as coisas e consideram-nas úteis unicamente
por capricho e por paixão, sem olhar para o futuro nem para
86 ESPINOSA

[74] razões de nenhuma outra espécie. Daí que nenhuma socie-


dade possa subsistir sem o poder e a força, nem, conseqüen-
temente, sem leis que moderem e coíbam o desejo e os de-
senfreados impulsos dos homens6 •
A natureza humana, porém, não tolera ser totalmente
coagida e, como diz Sêneca, o Trágico, nunca um poder vio-
lento se agüentou por muito tempo; um poder moderado,
pela contrário, é duradouro. Na verdade, quando os homens
agem apenas por medo, fazem o que menos gostariam de fa-
zer e não se importam com a utilidade nem com a necessida-
de do que fazem, procurando unicamente não pôr a cabeça
em risco, isto é, não se expor aos castigos. Por outro lado,
será inevitável que se alegrem com o mal e os prejuízos da-
quele que tem o poder, ainda que isso acarrete também o seu
próprio mal, e que lhe augurem e causem todos os danos
que puderem. Porque o que os homens menos suportam é es-
tar submetidos aos seus semelhantes e ser comandados por
eles. E não há nada, enfim, mais difícil que tirar-lhes a liber-
dade depois de lha ter concedido. Daqui se conclui o se-
guinte: em primeiro lugar, que o poder, ou está colegialmen-
te nas mãos de toda a sociedade, se isso for possível, de modo
que cada um obedeça a si mesmo e não aos seus semelhan-
tes, ou então, se estiver nas mãos de uns tantos ou até de um
só, este terá de possuir algo de superior ao que é comum na
natureza humana ou ao menos esforçar-se o possível para
que o vulgo se convença de que é assim7 • Em segundo lugar,
as leis, qualquer que seja o regime, terão de ser definidas de
forma que os homens se sintam constrangidos, não tanto
pelo medo como pela esperança de algum bem que desejem
acima de tudo. Só assim é que cada um cumprirá de boa
vontade a sua obrigação. Por último, e visto que a obediên-
cia consiste em executar ordens exclusivamente emanadas
da autoridade de quem manda, segue-se que ela não tem ne-
nhum lugar numa sociedade em que o poder está nas mãos
de todos e onde as leis são sancionadas por consentimento
comum: aí, quer aumente, quer diminua o número das leis,
o povo continua igualmente livre, pois não atua por submis-
são ã autoridade de outrem, mas por seu consentimento. Já
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 87

quando é só um a deter o poder absoluto, acontece o contrá-


rio; aqui, todos executam as ordens do poder submetendo-se
à autoridade de um só e, por isso, se não tiverem sido, des-
de o princípio, educados de maneira que estejam sempre de-
pendentes da palavra daquele que manda, será muito difícil
a este, em caso de necessidade, instituir leis novas e tirar ao
povo a liberdade depois de lha ter concedido".
Feitas essas considerações de ordem geral, passemos
agora ao Estado dos hebreus. Quando estes saíram do Egito,
deixaram de estar sujeitos ao direito de qualquer naçào, pelo
que lhes era lícito instituir novas leis a seu bel-prazer, isto é, [75]
constituir um novo ordenamento jurídico, estabelecer um Es-
tado no local onde quisessem e ocupar as terras que lhes
apetecessem. Contudo, nào deveria haver nada mais longe
das suas aptidões que a ciência para determinar as regras do
direito e exercer colegialmente o poder. Eram quase todos
de natureza rude e estavam alquebrados da penosa escravi-
dão. Donde, o poder teve de ficar nas mãos de um só, que fos-
se capaz de mandar nos outros, de os coagir pela força e de,
finalmente, lhes prescrever leis e interpretá-las. Moisés con-
seguiu facilmente manter esse poder, pois era superior aos
outros por virtude 9 divina e persuadiu o povo de que a pos-
suía, apresentando numerosos testemunhos (ver Êxodo, cap.
XIV, último versículo, e cap. XIX, 9). Desse modo, através des-
sa virtude que o distinguia, instituiu o direito divino e pres-
creveu-o ao povo, tendo, no entanto, o maior cuidado em
procurar que este cumprisse a sua obrigação, não tanto por
medo, mas de livre vontade. Foram sobretudo duas as razões
que o obrigaram a agir assim: o caráter insubmisso do povo
(que não suporta ser obrigado unicamente pela força) e a
ameaça de guerra, onde, para se ter êxito, é mais necessário
exortar os soldados que aterrorizá-los com castigos e amea-
ças, pois só assim cada um deles procurará distinguir-se pela
força e pela coragem em vez de tentar simplesmente escapar
ao castigo. Foi por essa razão que Moisés, com as suas qua-
lidades e por ordem divina, introduziu a religião no Estado,
a fim de que o povo cumprisse o seu dever, não tanto por
medo, como por devoção. Além disso, aliciou-os com bene-
88 ESPINOSA

fícios, prometeu-lhes, em nome de Deus, inúmeras coisas para


o futuro e não promulgou leis excessivamente severas, como
concordará qualquer pessoa que estude esses assuntos, so-
bretudo se reparar nas circunstâncias que eram requeridas para
condenar qualquer réu. Por último, para que o povo, inca-
paz de se autogovernar, estivesse dependente da palavra da-
quele que detinha o poder, não permitiu que esses homens
acostumados à escravidão fizessem fosse o que fosse a seu
bel-prazer. De fato, o povo não podia fazer nada sem que, ao
mesmo tempo, não fosse obrigado a lembrar-se da lei e a se-
guir ordens que dependiam apenas da vontade do chefe.
Não podia lavrar, semear ou ceifar à vontade, mas unicamen-
te segundo um certo e determinado preceito da lei; nem se-
quer podia comer alguma coisa, vestir-se, cortar o cabelo ou
a barba, divertir-se ou fazer fosse o que fosse a não ser de
acordo com as ordens e indicações prescritas nas leis. E havia
mais. Até nas ombreiras das portas, nas mãos e entre os olhos
(76] eram obrigados a ter certos sinais que continuadamente os
admoestavam à obediência. O objetivo das cerimônias foi,
portanto, fazer com que os homens nunca atuassem por de-
liberação própria, mas sim segundo as ordens de outrem, e
reconhecessem, em todas as ações e em todos os pensamen-
tos, que não eram donos de si mesmos e estavam, pelo con-
trário, inteiramente submetidos a normas impostas.
De tudo quanto dissemos, resulta com meridiana clare-
za que os rituais nada adiantam para a beatitude e que os do
Antigo Testamento, até mesmo toda a lei de Moisés, têm uni-
camente em vista o Estado dos hebreus e, por conseqüên-
cia, os bens materiais. Quanto às cerimônias dos cristãos, tais
como, o Batismo, a Ceia do Senhor, as festas, as orações ex-
teriores e outras semelhantes, que são e sempre foram co-
muns a todo o cristianismo, se de fato elas foram alguma vez
instituídas por Cristo ou pelos apóstolos (o que, para mim,
não está ainda bem esclarecido), foram-no a título de sinais
exteriores da Igreja universal e não como coisas que contri-
buam para a beatitude ou que tenham em si mesmas algo de
sagrado. Por isso, muito embora essas cerimônias nào tenham
sido instituídas em função de um Estado, foram-no contudo
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO H')

em função de toda a sociedade; conseqüentemente, quem


vive isolado não está de forma alguma obrigado a elas. Por
outro lado, quem viver num Estado onde a religião cristã {_·
interdita, estará obrigado a abster-se dessas cerimônias e, no
entanto, pode ainda assim viver em beatitude. Exemplo dis-
so é o que se passa no Japão, onde a religião cristã é interdi-
ta e os holandeses que aí vivem são obrigados, por determi-
nação da Companhia das Índias Orientais, a se absterem de
todo culto externo. Não creio que seja preciso invocar agora
outra autoridade para o confirmar. E, embora não fosse difí-
cil deduzi-lo também dos princípios do Novo Testamento, e
talvez até demonstrá-lo com provas evidentes, prefiro, no
entanto, deixar essa questão porque estou com pressa de
abordar outras. Passo, pois, à segunda parte deste capítulo: a
quem e por que razão é necessária a fé nas narrativas históri-
cas dos Livros Sagrados. Para investigar esse assunto na pers-
pectiva da luz natural, há que proceder da forma como a se-
guir se descreve.
Se alguém quiser persuadir ou dissuadir os homens de
alguma coisa que não é conhecida por si mesma, deverá,
para os pôr de acordo consigo, deduzi-la a partir daquilo que
eles já admitem e convencê-los pela experiência ou pela ra-
zão, isto é, com base em fatos que eles observam pelos sen-
tidos ocorrerem na natureza ou com base em axiomas do en-
tendimento em si mesmo evidentes. Porém, se a experiência
não for de modo que se compreenda clara e distintamente,
ainda que se convença alguém, não conseguirá atingir-se-lhe [77]
o intelecto nem dissipar-lhe as dúvidas da mesma maneira
que acontece quando as coisas que se querem ensinar são
deduzidas apenas de axiomas intelectuais, isto é, pela sim-
ples capacidade do intelecto aplicado com método. Isso, so-
bretudo quando se trata de uma coisa espiritual e que de mo-
do nenhum é abrangida pelos sentidos. A verdade é que, para
deduzir algo a partir unicamente de noções intelectuais, se
requer muitas vezes um longo encadeamento de percepções,
além de uma extrema prudência, perspicácia e contenção,
todas qualidades que só muito raramente se encontram nos
homens. Por isso eles preferem ser ensinados através da ex-
90 ESPINOSA

periência a ter de deduzir todas as suas percepções de um


pequeno número de axiomas e encadeá-las umas nas outras.
Assim, se alguém quiser ensinar uma doutrina a toda uma na-
ção, para não dizer a todo o gênero humano, e quiser ser en-
tendido por todos e em todos os pormenores, terá de a de-
monstrar unicamente pela experiência e adaptar os seus ar-
gumentos e as definições das coisas que vai ensinar à capaci-
dade de compreender própria da plebe, que constitui a maior
parte do gênero humano, em vez de os encadear e de apre-
sentar as definições que melhor serviriam para esse efeito.
Caso contrário, condena-se a escrever unicamente para os sá-
bios, quer dizer, não poderá ser entendido senão por um pu-
nhado de homens proporcionalmente muito reduzido 10 • Ora,
uma vez que toda a Escritura foi revelada, primeiro, para
toda uma nação, e depois, para todo o gênero humano, ne-
cessariamente, o seu conteúdo deve estar adaptado ao nível
de compreensão da plebe e comprovar-se pela experiência
apenas. Eu explico.
As verdades de natureza meramente especulativa que a
Escritura pretende ensinar são, essencialmente, as seguintes:
existe um Deus, ou seja, um ser que fez, dirige e sustenta to-
das as coisas com suma sabedoria, que cuida dos homens,
ou melhor, daqueles que vivem piedosa e honestamente, já
que aos outros os castiga com numerosos suplícios e os apar-
ta dos bons. Tudo isso a Escritura demonstra apenas pela ex-
periência, quer dizer, pelas histórias que narra, sem apresen-
tar nenhuma definição dessas coisas e adaptando todas as pa-
lavras e todos os argumentos à mentalidade do vulgo. É que,
muito embora a experiência não possa fornecer de tais coi-
sas nenhum conhecimento claro nem ensinar o que é Deus e
de que forma ele conserva e dirige todas as coisas e cuida
dos homens, ela pode pelo menos instruir e esclarecer os
[781 homens o suficiente para lhes imprimir no ânimo a obediên-
cia e a devoção. Assim sendo, creio que resulta claro a quem
e por que razão é necessária a fé nas histórias que vêm nos
Livros Sagrados. É, com efeito, evidente, pelo que acabei de
expor, que o conhecimento e a fé nessas histórias são extre-
mamente necessários ao vulgo, cuja maneira de ser é inca-
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍT7CO ') 1

paz de perceber as coisas clara e distintamente 11 • Por outro


lado, quem não acredita nessas histórias porque não crl.· que
Deus exista e providencie pelas coisas e pelos homens é um
ímpio. Porém, aquele que as ignora e todavia reconhece pela
luz natural que Deus existe, etc., e observa, além disso, a ver-
dadeira regra de vida, esse possui inteiramente a beatitude,
mais até do que o vulgo, pois além de opiniões verdadeiras
tem, acima de tudo, um conceito claro e distinto. É, por últi-
mo, evidente que todo aquele que ignora essas histórias da
Escritura e não conhece nada pela luz natural, se não é ímpio
ou insubmisso, é, com certeza, um ser desumano, quase como
um animal, e não possui nenhum dom de Deus.
Note-se que, quando dizemos ser extremamente neces-
sário o vulgo conhecer as histórias da Escritura, não estamos
falando no conhecimento de todas as histórias que vêm na
Sagrada Escritura, mas. apenas das principais, daquelas que,
só por si, mostram com toda a evidência a doutrina que refe-
rimos atrás e chegam para incitar os ânimos dos homens. Se
todas as histórias da Escritura fossem necessárias para provar
a sua doutrina, e se não se pudesse chegar a uma conclusão
sem primeiro as tomar a todas em devida conta, é evidente
que a demonstração e a conclusão dessa doutrina estariam
acima da capacidade de compreensão e das forças, não só do
vulgo, mas de toda a humanidade. Quem, efetivamente, po-
deria atender ao mesmo tempo a um tão grande número de
narrativas, a tantas circunstâncias e partes da doutrina quantas
as que deveriam ser extraídas de tantas e tão diversas histó-
rias? Eu, pelo menos, não consigo convencer-me de que os
homens que nos deixaram a Escritura, tal como hoje a te-
mos, fossem assim tão dotados que pudessem seguir uma tal
demonstração, e muito menos de que a doutrina da Escritu-
ra não possa compreender-se sem ouvir antes contar as alter-
cações de Isaac, os conselhos dados por Aquitofel a Absalão,
a guerra civil dos judeus e dos israelitas, etc. Ou, ainda, que
aos primeiros judeus, os que viveram no tempo de Moisés, tal
doutrina não pudesse demonstrar-se tão facilmente como (791
àqueles que viveram no tempo de Esdras. Mas, sobre isso, fa-
laremos adiante, pormenorizadamente.
92 ESPINOSA

O vulgo, por conseguinte, só tem de conhecer as histó-


rias que melhor possam incutir-lhe no ânimo a obediência e
a piedade. Mas, o vulgo não é sequer suficientemente apto
para ter uma opinião sobre essas matérias, e por isso gosta mais
das narrativas e do seu lado insólito e inesperado do que
propriamente da doutrina aí contida. Donde, além da leitura
das histórias, precisa ainda de pastores ou ministros da Igre-
ja que o ensinem de maneira adequada às suas fracas capa-
cidades.
Não nos afastemos, porém, do nosso intento e fiquemo-
nos com aquilo que sobretudo pretendíamos demonstrar, a
saber, que a fé nas histórias da Bíblia, quaisquer que elas se-
jam, não tem a ver com a lei divina, nem dá, só por si, a bea-
titude aos homens, nem possui nenhuma utilidade a não ser
em função da doutrina, única razão por que certas histórias
podem ser consideradas mais importantes que outras. As nar-
rativas que vêm no Antigo e no Novo Testamento são, por
conseguinte, mais ou menos importantes que as narrativas
profanas, ou são mais ou menos importantes umas que as ou-
tras, conforme as opiniões salutares que delas se extraírem.
Porque, se alguém lê as narrativas da Escritura Sagrada e ne-
las deposita uma fé incondicional, sem contudo atender à
doutrina que a mesma Escritura tenta por esse meio ensinar,
nem corrigir a sua vida, é a mesma coisa que ler o Corão,
poemas dramáticos ou crônicas triviais com a atenção com
que o vulgo costuma lê-las. Pelo contrário, e como já disse-
mos, aquele que ignora totalmente essas narrativas mas tem
opiniões salutares e uma verdadeira regra de vida, esse pos-
sui inteiramente a beatitude e tem de fato em si o Espírito de
Cristo.
Os judeus, todavia, julgam precisamente o oposto, já que
pretendem que as opiniões verdadeiras e uma verdadeira
regra de vida em nada adiantarão para a beatitude enquan-
to os homens as abraçarem só pela luz natural e não como
ensinamentos revelados profeticamente a Moisés. Maimôni-
des teve a ousadia de o afirmar abertamente por estas pala-
vras (Reis, cap. VIII, lei 11): todo aquele que aceita os sete
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 93

preceitos•, e os cumpre diligentemente, esse é um dos homens [801


piedosos das nações e herdeiro do mundo de amanhã, desde
que os aceite e os cumpra porque Deus os prescreveu na lei e
nos revelou através de Moisés que eles tinham sido anterior-
mente dados aos filhos de Noé; porém, se os tiver cumprido le-
vado apenas pela razão, não estará incluído entre os piedo-
sos nem entre os sábios das nações. E a essas palavras de Mai-
mônides, R. Joseph", filho de Shem Tob, acrescenta, no seu
livro Kebod Elohim, ou seja, Glória de Deus, que, embora
Aristóteles (que ele crê ter escrito o supra-sumo da Ética e
considera superior a todos) não tivesse omitido nada daqui-
lo que pertence à verdadeira Ética e que ele próprio aceita,
tendo mesmo cumprido zelosamente tudo isso, de nada lhe
adiantou para a salvação, pois não assumiu os princípios que
ensina como verdades divinas profeticamente reveladas, mas
apenas por mero imperativo da razão. Estamos, pura e sim-
plesmente, perante ficções sem base, nem na razão, nem na
autoridade da Escritura, como creio ser evidente para quem
quer que as tenha lido atentamente. Para refutar coisas des-
tas, basta mencioná-las.
Tampouco está nos meus projetos refutar aqui a opinião
dos que admitem que a luz natural não pode ensinar nada
de útil no que respeita à verdadeira salvação. Quem a si mes-
mo não reconhece uma réstia de razão também não pode
provar com razão alguma a opinião que sustenta. E, se eles
se vangloriam de possuir algo de superior à razão, isso não
passa de pura ficção, que é de longe inferior à razão, como
se tem visto pela vida que habitualmente levam. Mas, sobre
isso, não é preciso dizer mais nada. Acrescentarei apenas que
não se pode conhecer ninguém a não ser pelas suas obras.
Por isso, quem produzir em abundância frutos como a cari-
dade, a alegria, a paz, a paciência, a benevolência, a banda-

• Os judeus pensam que Deus deu sete mandamentos a Noé, os úni-


cos a que estariam sujeitas todas as nações, mas que teria dado muito mais
ao povo hebreu, a fim de o tornar superior aos outros em beatitude.
94 ESPINOSA

de, a fé, a afabilidade, a temperança, aos quais, como diz


Paulo, na Epístola aos Gálatas, cap. V, 22, a lei não se
opõe, esse, quer se guie só pela razão ou só pela Escritu-
ra, é realmente guiado por Deus e possui a beatitude. E é
tudo quanto queria dizer acerca da lei divina.
CAPÍTULO VI [811

Dos milagres

Da mesma forma que chamam divina à ciência que ultra-


passa a capacidade de compreensão humana, assim também
a uma obra cuja causa o vulgo desconhece os homens costu-
mam chamar divina ou de Deus. O vulgo, com efeito, pensa
que a providência e o poder de Deus nunca se manifestam
tão claramente como quando parece acontecer algo de insó-
lito e contrário à opinião que habitualmente faz da natureza,
em especial se resultar em seu proveito ou vantagem. Além
disso, julga que não existe prova mais clara da existência de
Deus que o fato de a natureza, ao que ele supõe, não man-
ter a sua própria ordem, razão pela qual crê que todos aque-
les que explicam ou tentam compreender as coisas e os mi-
lagres por causas naturais negam Deus ou, pelo menos, a
sua providência. Por outras palavras, pensa que Deus está
inativo quando a natureza age de acordo com a ordem nor-
mal e que, por seu turno, a potência da natureza e as causas
naturais estão paradas quando Deus age. Imagina, assim, duas
potências numericamente distintas uma <la outra: a de Deus
e a das coisas naturais, se bem que esta última seja de certo
modo determinada por Deus ou por ele criada, como pensa
hoje em dia a maior parte. Se lhe perguntarem o que enten-
de por uma ou por outra, ou o que entende por Deus e por
natureza, nada sabe; quando muito, imagina a potência de
Deus como o poder de uma majestade real e a da natureza
como uma força e um ímpeto'.
96 ESPINOSA

O homem comum chama, portanto, milagres ou obras


de Deus aos fatos insólitos da natureza e, em parte por devo-
ção, em parte pelo desejo de contrariar os que cultivam as
ciências da natureza, prefere ignorar as causas naturais das
coisas e só anseia por ouvir falar do que mais ignora e que,
por isso mesmo, mais admira. Isso, porque o vulgo é incapaz
de adorar a Deus e atribuir tudo ao seu poder e à sua vonta-
de, sem elidir as causas naturais ou imaginar coisas estranhas
ao curso da natureza. Se alguma vez ele admira a potência
de Deus, é quando a imagina como que a subjugar a potên-
cia da natureza. Tal opinião, de resto, parece vir já dos pri-
meiros judeus, os quais, para convencer os gentios de então,
que adoravam deuses visíveis, tais como, o Sol, a Lua, a Ter-
[821 ra, a Água, o Ar, etc., e mostrar-lhes que esses deuses eram
fracos e inconstantes, isto é, mutáveis e submetidos à autori-
dade de um Deus invisível, narravam os seus milagres, ten-
tando assim demonstrar também que toda a natureza estava
ordenada em benefício exclusivamente deles pelo poder do
Deus que adoravam. E, de fato, isso agradou de tal maneira
aos homens que, até hoje, ainda não pararam de inventar
milagres para fazer crer que Deus os ama a eles mais do que
aos outros e que são a causa final que levou Deus a criar e a
reger continuamente todas as coisas. De quanta presunção se
arroga a insensatez do vulgo, que não tem de Deus nem da
natureza um só conceito que seja correto, que confunde as
volições de Deus com as dos homens e que, ainda por cima,
imagina a natureza de tal modo limitada que acredita ser o
homem a sua parte principal!
Até aqui, enunciei de forma exaustiva as opiniões e pre-
conceitos do homem comum sobre a natureza e os milagres.
E, para apresentar metodicamente o assunto, passo em se-
guida a demonstrar: 1º que nada acontece que seja contrário
à natureza e que esta mantém uma ordem externa, fixa e
imutável (explicarei, entretanto, o que deve entender-se por
milagre); 2º que não se pode conhecer pelos milagres, nem
a essência, nem a existência, nem, por conseguinte, a provi-
dência de Deus, ao passo que pela ordem fixa e imutável da
natureza podemos conhecer tudo isso muito melhor; 3º mos-
trarei ainda, através de alguns exemplos tirados da Escritura,
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO <)7

que os decretos e ordens de Deus e, conseqüentemenll', a


sua providência não significam na Escritura senão a prúpria
ordem da natureza que deriva necessariamente das suas leis
eternas; 4º por último, falarei sobre o modo como interpretar
os milagres da Escritura e sobre aquilo a que na sua descri-
ção se deverá prestar especial atenção. São esses os princi-
pais pontos que integram o tema do presente capítulo e aos
quais, de resto, atribuo a maior importância do ponto de vis-
ta dos objetivos de toda essa obra.
No que toca ao primeiro ponto, demonstra-se facilmente
depois de quanto dissemos no capítulo IV acerca da lei divi-
na, a saber, que tudo o que Deus quer ou determina envolve
necessidade e verdade eternas. Mostramos, com efeito, que
uma vez que o intelecto divino não se distingue da sua von-
tade, tanto faz dizer que Deus quer uma coisa ou que ele a
entende. Sendo assim, com a mesma necessidade com que
da natureza e perfeição de Deus resulta que ele entende uma
coisa tal como ela é, resulta também que ele a quer tal qual
ela é. Dado, porém, que não há nada que seja necessariamen-
te verdadeiro a não ser por decreto divino, conclui-se clara-
mente que as leis universais da natureza são meros decretos [83]
de Deus que resultam da necessidade e da perfeição da natu-
reza divina. Se, por conseguinte, acontecesse na natureza algo
que repugnasse às suas leis universais, repugnaria, necessária
e igualmente, ao decreto, ao entendimento e à natureza de
Deus; por outro lado, se admitíssemos que Deus faz alguma
coisa contrária às leis da natureza, seríamos também obriga-
dos a admitir que Deus age em contradição com a sua pró-
pria natureza, o que é um absurdo. Poderíamos ainda demons-
trá-lo facilmente pelo fato de a potência da natureza ser a
própria potência e virtude de Deus e de a potência divina ser,
por sua vez, exatamente a mesma coisa que a essência de
Deus, mas prefiro, por enquanto, omitir este aspecto 2 •
Na natureza•, portanto, não acontece nada que seja con-
trário às suas leis universais, ou até que não esteja de acordo

• Por natureza, não entendo aqui somente a matéria e as suas afecções,


mas toda uma infinidade de outras coisas.
98 ESPINOSA

ou que não seja uma conseqüência delas. Com efeito, tudo o


que existe existe por vontade e eterno decreto de Deus, que
o mesmo é dizer, conforme já demonstramos, tudo o que
existe segundo leis e regras que implicam eterna verdade e
necessidade. A natureza observa sempre leis e regras que im-
plicam eterna verdade e necessidade, ainda que não as co-
nheçamos a todas, e segue, por isso, uma ordem fixa e imu-
tável. Nem sequer há nenhuma razão válida para atribuirmos
à natureza uma potência e uma virtude limitadas e concluir-
mos que as suas leis se aplicam unicamente a certas coisas e
não a todas. Porque se a virtude e a potência da natureza são
a própria virtude e potência divinas, se as leis e regras da na-
tureza são os próprios decretos de Deus, então somos obri-
gados a admitir que a potência da natureza é infinita e que
as suas leis são tão amplas que se estendem a tudo o que é
concebido pelo entendimento divino. De outro modo, tería-
mos de admitir que Deus criou uma natureza de tal maneira
impotente e que as suas leis e regras são tão ineficazes que
se vê freqüentemente obrigado a vir de novo em seu auxílio
se quer que ela se conserve e que as coisas se passem con-
forme deseja. Mas isso, presumo, não faz sentido.
A partir daqui, ou seja, de nada acontecer na natureza
que não dependa das suas leis, de estas se estenderem a tudo
o que o entendimento divino concebe e de, finalmente, a na-
tureza manter uma ordem fixa e imutável, resulta claro que a
palavra milagre só pode ser entendida relativamente às opi-
[841 niões humanas e não significa senão um fato cuja causa na-
tural não podemos explicar ou pelo menos quem registra ou
conta o milagre não pode explicar por analogia com outra
coisa que habitualmente ocorre. Poderia ainda dizer que um
milagre é algo de que não podemos explicar a causa pelos
princípios das coisas naturais conhecidos pela luz natural.
Mas visto que os milagres foram feitos para serem compreen-
didos pelo vulgo, o qual ignorava totalmente os princípios das
coisas naturais, não há dúvida de que aquilo que os antigos
consideravam milagre era o que não podiam explicar da ma-
neira que o vulgo habitualmente explica as coisas naturais,
isto é, recorrendo à memória para se recordar de um caso se-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO 99

melhante que lhe seja familiar. Na verdade, o homem comum


julga que entende bem uma coisa quando não fica admirado
com ela. Por isso, os antigos, e quase todos os homens até os
nossos dias, avaliaram os milagres unicamente por este crité-
rio, não restando nenhuma dúvida de que nas Sagradas Es-
crituras se descrevem como milagres muitos fatos que se po-
dem facilmente explicar pelos princípios que se conhecem
das coisas naturais, conforme deixamos entender no capítulo
II, quando falamos da paragem do Sol que se verificou no
tempo de Josué e do seu retrocesso ocorrido no tempo de
Acaz. Voltaremos mais pormenorizadamente a esse aspecto,
ou seja, à interpretação dos milagres, de que prometi falar no
presente capítulo. Por agora, é tempo de passar ao segundo
ponto e mostrar que não se pode entender, nem a essência,
nem a existência, nem a providência de Deus, através dos mi-
lagres, e que tudo isso pode co_mpreender-se muito melhor
pela ordem fixa e imutável da natureza, conforme irei segui-
damente demonstrar.
Não sendo a existência de Deus conhecida por si mes-
ma•, ela deve necessariamente deduzir-se de noções cuja ver-
dade seja tão firme e inabalável que não possa haver nem
conceber-se um poder capaz de as alterar. Pelo menos a par-
tir do momento em que delas concluímos a existência de
Deus, essas noções têm de parecer-nos como tal, se quere-

• Anotação VI. Duvidamos da existência de Deus e, conseqüentemente,


duvidamos de tudo, enquanto dele tivermos, não uma idéia clara e distinta,
mas apenas uma idéia confusa. Porque, assim como aquele que não conhe-
ce corretamente a natureza do triãngulo ignora que os seus três ângulos são
iguais a dois retos, também o que concebe a natureza divina confusamente
não vê que nela está incluída a existência. Ora, para que a natureza de Deus
possa ser por nós concebida clara e distintamente, é necessário ter em con-
ta certas noções muito simples a que chamamos comuns e encadear nelas
aquilo que pertence ã natureza divina. Só então se nos tomará claro, pri-
meiro, que Deus existe necessariamente e está em toda parte; segundo, e si-
multaneamente, que tudo o que nós concebemos envolve em si a natureza
de Deus e é concebido por ela; por último, que é verdadeiro tudo o que nós
concebemos adequadamente. Mas, sobre isso, veja-se o Prolegômeno do
livro intitulado Princípios d~ Filosofia demonstrados segundo o método
geométrico.
100 ESPINOSA

mos que a conclusão esteja a salvo de qualquer risco de dú-


vida. Porque, se fosse concebível que tais noções pudessem
ser alteradas por alguma potência, qualquer que ela fosse,
então duvidaríamos se elas eram verdadeiras e, conseqüen-
temente, duvidaríamos também da nossa conclusão, isto é,
da existência de Deus, e jamais poderíamos estar certos de al-
guma coisa. Por outro lado, sabemos que só está de acordo
ou contradiz a natureza aquilo que demonstrarmos estar de
acordo ou contradizer esses princípios. Assim, se fosse con-
cebível que na natureza poderia acontecer, por força de uma
potência qualquer, alguma coisa que lhe repugnasse, isso re-
pugnaria também a essas noções primeiras e teríamos então
que o rejeitar como absurdo ou duvidar das noções primei-
ras (como acabamos de demonstrar) e, conseqüentemente,
de Deus e de tudo quanto percebemos, seja de que modo
for. Longe, pois, de demonstrarem a existência de Deus, os mi-
lagres, se por eles entendermos um fato que repugna à or-
dem natural, fariam com que dela duvidássemos; sem eles,
pelo contrário, poderemos estar absolutamente certos dessa
experiência, porquanto sabemos que tudo segue a ordem fixa
e imutável da natureza.
Suponhamos, porém, que o milagre é aquilo que não pode
ser explicado por causas naturais, definição que pode enten-
der-se de duas maneiras, pois tanto pode querer dizer que
ele tem causas naturais mas estas escapam ao entendimento
humano, como querer dizer que não admite outra causa além
de Deus, ou seja, além da divina vontade. Dado que tudo o
que acontece devido a causas naturais acontece também gra-
ças unicamente à potência e à vontade de Deus, chega-se
necessariamente à conclusão de que um milagre, quer tenha
ou não causas naturais, é de um fato que não pode explicar-
se pela causa, isto é, um fato que ultrapassa a compreensão
humana. Ora, de um fato, como, ao fim e ao cabo, de tudo
aquilo que ultrapassa a nossa compreensão, nada podemos
conhecer. Com efeito, tudo o que conhecemos clara e distin-
tamente deve ser-nos dado a conhecer, ou por si, ou por
qualquer outra coisa que por si mesma se conhece clara e
distintamente. Donde, pelo milagre, isto é, por um fato que
1RA TADO 1EOLÓG/CO-POLÍ11CO 101

ultrapassa a nossa compreensão, não podemos conhecer nem


a essência, nem a existência, nem seja o que for de Deus e
da natureza. Em contrapartida, se sabemos que todas as coi-
sas estão determinadas e de acordo com a vontade de Deus,
que os fatos que se produzem na natureza são conseqüên-
cias da essência de Deus e que as leis da natureza corres-
pondem a eternas determinações e vontades de Deus, então,
é absolutamente obrigatório concluir que se conhece tanto
melhor Deus e a sua vontade quanto melhor conhecemos as
coisas naturais 3 e mais claramente entendemos de que modo
elas dependem da sua causa primeira e agem segundo as
eternas leis da natureza. Daí que, em relação ao nosso enten-
dimento, há muito mais razão para chamar obras de Deus e
atribuir à sua vontade os fatos que conhecemos clara e dis-
tintamente do que aqueles que de todo em todo ignoramos,
muito embora preencham a imaginação dos homens e os ar-
rebatem de admiração. Na verdade, só as obras da natureza
que conhecemos clara e distintamente nos oferecem de Deus (86]
o conhecimento mais sublime e nos indicam sem sombra de
dúvida a sua vontade e os seus decretos. Estão, portanto, com-
pletamente enganados os que invocam a vontade de Deus
sempre que não sabem explicar uma coisa. Que maneira mais
ridícula de confessar a ignorância! Para mais, ainda que pu-
déssemos tirar alguma conclusão dos milagres, nem assim se
poderia de forma nenhuma concluir a existência de Deus.
De fato, sendo o milagre uma obra limitada e que nunca ex-
prime mais do que uma certa e limitada potência, é evidente
que de um tal efeito não podemos concluir a existência de
uma causa cuja potência seja infinita; no máximo, de uma
causa cuja potência seja maior. E digo "no máximo", porque
do concurso de muitas causas pode obter-se também um
efeito cuja força e potência seja inferior à potência de todas
essas causas juntas, mas superior em muito à de cada uma
em particular. Visto, porém, que as leis da natureza (como já
demonstramos) se estendem ao infinito e são concebidas por
nós sob uma certa espécie de eternidade, e visto que a natu-
reza procede de acordo com elas numa ordem fixa e imutá-
vel, tais leis revelam-nos, de algum modo, a infinidade, a eter-
102 ESPINOSA

nidade e a imutabilidade de Deus. Concluímos, pois, que pe-


los milagres não podemos conhecer Deus, nem a sua exis-
tência e providência, ao passo que da ordem fixa e imutável
da natureza as podemos deduzir muito melhor.
Quando falo, nesta conclusão, de milagre, é só na medi-
da em que por essa palavra não se entende outra coisa a não
ser um fato que ultrapassa ou é suposto ultrapassar a com-
preensão humana, já que, se supuséssemos que ele destrói
ou interrompe a ordem da natureza, ou repugna às suas leis,
não só não poderia, como já dissemos, fornecer nenhuma
idéia de Deus, como até subverteria aquela que Dele temos
naturalmente, fazendo-nos duvidar de Deus e de tudo o mais.
Tampouco estabeleço aqui qualquer distinção entre um fato
antinatural e um fato sobrenatural\ isto é, um fato que, como
alguns dizem, apesar de não contrariar a natureza, não pode,
no entanto, ser produzido ou determinado por ela. Na verda-
de, como o milagre não acontece fora da natureza, mas sim
na própria natureza, ainda que o tenhamos por sobrenatural
ele não deixará de interromper forçosamente a ordem da na-
tureza, a qual, por outro lado, concebemos como fixa e imu-
tável em virtude dos decretos de Deus. Portanto, qualquer
coisa que ocorresse na natureza e que não estivesse conforme
às suas leis repugnaria à ordem necessária que Deus estabe-
[871 leceu para toda a eternidade, mediante leis universais, além
de que seria contrário à natureza e às suas leis. Conseqüen-
temente, acreditar em tal hipótese seria duvidar de tudo e
cair no ateísmo 5• Julgo ter assim demonstrado o que havia
proposto no segundo ponto, e com argumentos bastante só-
lidos, de onde podemos uma vez mais concluir que o milagre,
seja ele entendido como contrário à natureza ou como so-
brenatural, é simplesmente um absurdo. Por essa razão, nos
Livros Sagrados, não pode entender-se por milagre outra coi-
sa que não sejam os fatos naturais que ultrapassam ou são
supostos ultrapassar a capacidade de compreensão humana.
Antes de passar ao terceiro ponto, é conveniente confir-
mar pela autoridade da Escritura esta nossa afirmação de que
pelos milagres não podemos conhecer a Deus. Embora a Es-
critura em parte alguma o ensine abertamente, é, contudo,
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍT7CO 103

possível deduzi-lo com facilidade, antes de mais, daquela pas-


sagem em que Moisés (Deuteronômio, cap. XIII) prescreve
que condenem à morte o falso profeta, ainda que ele faça mi-
lagres. Diz Moisés: e (mesmo que) apareça o sinal e o prodí-
gio que ele te anunciou (. .. ) não queiras, ainda assim, acre-
ditar nas palavras desse profeta (. .. ) porque o Senhor vosso
Deus vos tenta(. .. ) Que esse profeta seja (portanto) condena-
do à morte, etc. Donde se segue, com toda a clareza, que até
os falsos profetas podem fazer milagres e que os homens, se
não estiverem munidos do verdadeiro conhecimento e amor
de Deus, tào facilmente podem, levados pelos milagres, acre-
ditar nos falsos deuses como no verdadeiro. Moisés, com efei-
to, acrescenta: pois que Jeová, vosso Deus, vos tenta, para sa-
ber se porventura o amais com todo o coração e todo o ânimo.
Por outro lado, os israelitas, com tantos milagres, nunca
conseguiram formar uma idéia correta de Deus, como de-
monstra a própria experiência. De fato, quando se persuadi-
ram de que Moisés os abandonara, pediram a Arão divinda-
des que se pudessem ver e foi um vitelo, que vergonha! a
idéia que depois de tantos milagres fizeram de Deus. Asaf,
apesar de ter ouvido contar tantos milagres, duvidou da pro-
vidência de Deus e ter-se-ia afastado do verdadeiro caminho
se não tivesse, enfim, conhecido a beatitude (ver Salmo LXXIII).
Até Salomão, no tempo em que os judeus estavam em fran-
ca prosperidade, suspeita que tudo acontece por acaso (ver
Eclesiastes, cap. III, 19, 20, 21, e cap. IX, 2, 3, etc.). Ao fim e
ao cabo, foi para quase todos os profetas uma questão extre- [88]
mamente obscura saber como a ordem da natureza e os
acontecimentos humanos poderiam conciliar-se com a idéia
que faziam da providência de Deus. Mas, para os filósofos, que
tentam compreender as coisas, não por milagres, mas por
conceitos claros, isto foi sempre bastante evidente, em parti-
cular para os que baseiam a verdadeira felicidade apenas na
virtude e na tranqüilidade de ânimo, que não procuram que
a natureza lhes obedeça mas procuram, em vez disso, obede-
cer-lhe, que sabem que Deus dirige a natureza conforme exi-
gem as leis universais e não conforme as leis particulares do
gênero humano e que, por isso mesmo, zela não só por este
104 ESPINOSA

mas por toda a natureza. Portanto, também consta da Escritu-


ra que os milagres não fornecem o verdadeiro conhecimento
de Deus nem ensinam claramente a sua providência6 •
Quanto ao fato de a Escritura repetir freqüentemente que
Deus fez prodígios para se dar a conhecer aos homens, como,
por exemplo, no Êxodo, cap. X, 2, onde se diz que iludiu os
egípcios e deu aos israelitas sinais de si para que soubessem
que ele era Deus, não se conclui daí que os milagres conte-
nham realmente esse ensinamento, mas apenas que os ju-
deus possuíam opiniões tais que podiam facilmente deixar-se
convencer por aqueles milagres. Já no capítulo II tínhamos,
com efeito, deixado claro que os argumentos proféticos, isto
é, os argumentos com base na revelação, não se obtêm a par-
tir de noções universais e comuns, mas sim a partir das con-
vicções, mesmo que sejam absurdas, e das opiniões daqueles
a quem é feita a revelação ou a quem o Espírito Santo quer
convencer, conforme explicamos por variadíssimos exem-
plos e, inclusive, pelo testemunho de Paulo, que era grego en-
tre os gregos e judeu entre os judeus7 • Mas, tais milagres, se
podiam convencer os egípcios e os judeus, apoiando-se nas
suas convicções, não podiam, no entanto, fornecer uma idéia
e um conhecimento verdadeiro de Deus; quando muito, po-
diam fazer com que acreditassem numa divindade com po-
der superior a tudo aquilo que eles conheciam e que zelava
pelos hebreus, a quem nessa altura as coisas corriam pelo me-
lhor e acima até do que poderiam esperar, como não zelava
por mais nenhum outro povo; o que esses milagres não po-
diam era fazer com que eles acreditassem que Deus cuida
igualmente de todas as coisas, pois isto só a Filosofia o pode
ensinar. Daí que os judeus e todos aqueles que conheciam a
providência divina apenas pela desigualdade de condições e
pela diferente sorte dos homens se tenham persuadido de
que eles, judeus, eram mais amados por Deus do que os ou-
tros, muito embora não fossem superiores a eles na verda-
deira perfeição humana, como já mostramos no capítulo III.
[891 Passo, pois, ao terceiro ponto, a fim de demonstrar pela
Escritura que os decretos e mandamentos de Deus e, por con-
seguinte, a providência, não são senão a ordem da natureza,
TRATADO TEOLÓGICO-POÚ17CO 105

ou seja, que quando a Escritura diz que isto ou aquilo foi fei-
to por Deus ou pela sua vontade se deve entender simples-
mente que foi feito de acordo com as leis e a ordem da na-
tureza, e não, como julga o comum dos homens, que a natu-
reza deixou por um momento de agir ou que a sua ordem
foi por algum tempo interrompida8 • A Escritura, porém, não
ensina diretamente aquelas coisas que não concernem a sua
doutrina, dado que o seu intuito não é (já o demonstramos a
propósito da lei divina) ensinar as coisas pelas causas natu-
rais, nem sequer ensinar coisas meramente especulativas.
Por essa razão, o que pretendemos aqui provar deverá ex-
trair-se como uma conseqüência de certas histórias da Escri-
tura que, por acaso, vêm narradas com mais pormenores e
circunstâncias. Vou referir só algumas delas. Em Samuel, li-
vro I, cap. IX, 15, 16, conta-se que Deus revelou ao profeta
que lhe ia enviar Saul. Ora bem, Deus não enviou Saul a Sa-
muel como os homens costumam enviar alguém a outra pes-
soa, pois este enviar da parte de Deus significa apenas a or-
dem da natureza. Saul procurava (como se conta no capítulo
citado) as jumentas que tinha perdido e, quando já estava de-
cidido a voltar para casa sem as encontrar, foi, a conselho de
um criado, ter com o profeta Samuel para que este lhe dis-
sesse onde as poderia encontrar. Não consta, em toda essa
descrição, que Saul tenha recebido alguma ordem de Deus
para além desta, absolutamente natural, de ir ter com Sa-
muel. No Salmo CV, 24, diz-se que Deus alterou o ânimo dos
egípcios para que odiassem os israelitas. Ora, uma tal altera-
ção foi também inteiramente natural, como se pode ver no
capítulo I do Êxodo, onde se refere a razão, e não era assim
tão pouca, que levou os egípcios a reduzir os israelitas à es-
cravidão. No Gênesis, cap. IX, 13, Deus diz a Noé que fará
aparecer o arco-íris. Mas esta ação divina não é mais do que
a refração e reflexão que sofrem os raios solares nas gotas de
água. No Salmo CXLVII, 18, chama-se o verbo de Deus à ação
natural do vento quente que liquefaz a geada e a neve, ao pas-
so que, no versículo 15, se chama sentença e verbo de Deus
ao vento frio; o vento e o fogo são ainda, no Salmo CIV, 4,
designados por enviados e ministros de Deus. E, para além
106 ESPINOSA

destas, há muitas outras passagens do .mesmo gênero na Escri-


tura de onde resulta, com toda a clareza, que decreto, manda-
mento, sentença e palavra de Deus não significam outra coi-
sa que não seja a ação e a ordem da natureza.
[901 É, portanto, inegável que todos os fatos narrados na Es-
critura aconteceram naturalmente; e se ela os atribui a Deus
é porque o intuito da Escritura, como já vimos, não é ensinar
as coisas pelas causas naturais, mas unicamente narrar aque-
las que dão margem abundante à imaginação, e isso segun-
do o método e o estilo que melhor servem para despertar a
admiração por tais coisas e, conseqüentemente, incutir a pie-
dade no ânimo do vulgo. Assim, encontrar nos Livros Sagra-
dos alguns fatos de que desconhecemos as causas e que pa-
recem ocorrer fora, senão mesmo contra, a ordem da nature-
za não deve constituir nenhum obstáculo a que estejamos
convictos de que tudo o que na realidade acontece, acontece
naturalmente. De resto, isso se confirma também pelo fato de
depararmos nos milagres com várias circunstâncias que, ape-
sar de nem sempre virem narradas, sobretudo quando se tra-
ta de um estilo poético, mostram que eles requerem causas
naturais. Por exemplo, para que os egípcios fossem infesta-
dos pela lepra, foi necessário que Moisés atirasse cinza ao ar
(Êxodo, cap. IX, 10). Igualmente os gafanhotos, foi graças a
uma ordem natural de Deus, ou seja, graças ao vento de les-
te que soprou durante todo um dia e uma noite, que invadi-
ram a terra dos egípcios, tal como depois a deixaram graças
a um vento fortíssimo que soprou de oeste (Êxodo, cap. X,
14, 19). E foi ainda por uma ordem semelhante de Deus que
o mar abriu caminho aos judeus (Êxodo, cap. XIV, 21), ou
seja, devido ao Euro, que soprou fortemente durante toda
uma noite. Eliseu, para reanimar aquele menino que julga-
vam já morto, teve de se lhe deitar algum tempo em cima, até
que ele reaqueceu e abriu finalmente os olhos (Reis, livro II,
cap. IV, 34, 35). Da mesma forma, no Evangelho de joão, cap.
IX, vêm referidas algumas circunstâncias de que Cristo se ser-
viu para curar o cego. E, como essas, há muitas mais passagens
na Escritura a mostrarem todas que os milagres requerem
algo mais do que a chamada ordem absoluta de Deus. É ne-
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 107

cessário, portanto, aceitar que, embora suas circunstâncias e


causas naturais nem sempre e nem todas estejam descritas,
sem elas os milagres não acontecem. E isso se vê também
pelo Êxodo, cap. XIV, 27, no qual apenas se relata que, a um
simples gesto de Moisés, o mar se encapelou de novo, sem
se fazer nenhuma menção do vento. Todavia, nos Cânticos
cap. XV, 10, diz-se que tal aconteceu por que Deus soprou
com o seu vento (isto é, com um vento fortíssimo): é que,
omitindo-se na história essa circunstância, o milagre parece [911
ainda maior9 .
No entanto, dir-se-á, encontramos na Escritura um bom
número de fatos que não parecem poder de forma alguma
explicar-se por causas naturais, como, por exemplo, que os
pecados dos homens e suas orações podem acarretar, res-
pectivamente, o mau tempo ou a fertilidade da terra, ou que
a fé pode curar os cegos e outros fatos do mesmo tipo narra-
dos na Bíblia. Julgo, porém, que já respondi a essa objeção.
Efetivamente, mostrei que a Escritura não explica as coisas
pelas suas causas próximas; descreve-as, sim, pela ordem e
com as frases mais adequadas para incentivar os homens, e
principalmente o vulgo, ã devoção. Por esse motivo, ela fala
com bastante impropriedade de Deus e das coisas, uma vez
que não pretende convencer a razão mas impressionar e
ocupar a fantasia e a imaginação dos homens. Se a Escritura
narrasse a destruição de um Estado como fazem habitual-
mente os historiadores políticos 10 , o vulgo ficaria indiferente;
pelo contrário, descrevendo tudo poeticamente e atribuindo
tudo a Deus, tal como costuma fazer, ele fica extremamente
comovido. Assim, quando a Escritura diz que a terra é estéril
devido aos pecados dos homens, ou que os cegos são cura-
dos pela fé, não devemos ficar mais impressionados do que
quando ela afirma que Deus, por causa dos pecados dos ho-
mens, se irrita, fica triste, arrepende-se do bem prometido ou
que já fez, ou até que Deus se recorda, ao ver um sinal, da-
quilo que prometeu, e tantas outras coisas que, ou estão ditas
de forma poética, ou são relatadas em conformidade com as
opiniões e preconceitos do escritor. Concluímos, por isso, que
tudo o que na Escritura se diz ter de fato acontecido aconte-
108 ESPINOSA

ceu segundo as leis da natureza, como é necessário que tudo


aconteça; e, se lá se encontrar alguma coisa da qual se possa
apoditicamente provar que repugna às leis da natureza, ou
que não pode ser conseqüência delas, nesse caso, devemos
ter por absolutamente certo que foi um acrescento feito nos
Livros Sagrados por homens sacrílegos. Tudo o que é contrá-
rio à natureza é contrário à razão; e o que é contrário à razão
é absurdo e deve, por conseguinte, ser repudiado 11 •
Resta agora fazer algumas breves observações sobre a in-
terpretação dos milagres, ou melhor, recapitular, uma vez
que o essencial já foi dito, e ilustrar com um ou outro exem-
plo, conforme prometi fazer neste quarto ponto. E quero fa-
zê-lo, ainda assim não vá alguém, interpretando mal um mila-
gre, suspeitar que se encontra na Escritura alguma coisa que
repugne à luz natural. É muito raro os homens contarem uma
coisa tal como ela aconteceu, sem acrescentar nada da sua
opinião pessoal. Por outro lado, sempre que eles vêem ou
[921 ouvem algo de novo, se não tiverem o maior cuidado com
os seus preconceitos, ficam de tal maneira preocupados que
percebem uma coisa completamente diferente daquilo que
vêem ou ouvem contar, em especial quando é algo que ul-
trapassa a compreensão do narrador ou daquele que o escu-
ta, e mais ainda se têm interesse em que essa coisa aconteça
de determinada maneira. Esse é o motivo por que, nas suas
crônicas e histórias, os homens referem mais as suas opiniões
do que os próprios fatos ocorridos, de tal maneira que um só
e mesmo caso é descrito por dois homens com opiniões di-
versas de forma tão diferente que parece que estão falando
de casos distintos. Muitas vezes, até nem é muito difícil inves-
tigar, só pelas histórias, as opiniões do cronista ou do histo-
riador. Poderia citar aqui, em abono dessa verificação, mui-
tos exemplos, tanto de cronistas como de filósofos que escre-
veram sobre a história da natureza 12 , se não considerasse que
era supérfluo. Citarei apenas um, tirado da Sagrada Escritura,
e o leitor que ajuíze dos outros.
No tempo de Josué, conforme já dissemos, os hebreus
acreditavam, e o vulgo ainda hoje acredita, que o Sol se mo-
via segundo o chamado movimento diurno, enquanto a Ter-
1RA TADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 109

ra estava imóvel, adaptando a essa opinião preconcebida o


milagre que lhes aconteceu durante a guerra contra aqueles
cinco reis. Não se limitaram, pois, a contar que esse dia tinha
durado mais do que o habitual: acrescentaram que o Sol e a
Lua tinham parado, ou seja, que tinham interrompido o seu
movimento, coisa que a essa altura lhes podia ser de grande
utilidade para convencer os gentios, que adoravam o Sol, e
para lhes provar pela própria experiência que o Sol estava
submetido ao poder de uma outra divindade que só com um
gesto o obrigava a alterar o seu curso natural. Assim, em par-
te por religião, em parte por opinião preconcebida, pensa-
ram e descreveram um fato totalmente diferente daquilo que
podia realmente ter acontecido. Por conseguinte, para inter-
pretar os milagres da Escritura e perceber pela sua descrição
o modo como as coisas se passaram de fato, é necessário co-
nhecer as opiniões daqueles que em primeira mão os narra-
ramn e no-los deixaram por escrito, distinguindo-as daquilo
que eles presenciaram pelos sentidos; de outra forma, con-
fundimos as suas opiniões e apreciações com o próprio mi-
lagre, como realmente já aconteceu. E não é só por isso que
importa conhecer essas opiniões; é também para não se con-
fundirem as coisas que de fato se verificaram com coisas ima-
ginárias que não foram senão imagens proféticas.
Na Escritura, efetivamente, narram-se muitas coisas como
reais, e assim eram consideradas, muito embora não passas- [931
sem de visões e coisas imaginárias. Diz-se, por exemplo, que
Deus (o Ser supremo) desceu do céu (Êxodo, cap. XIX, 18, e
Deuteronômio, cap. V, 19) e que o monte Sinai fumegava por-
que Deus tinha descido sobre ele circundado de fogo, ou que
Elias subiu ao céu num carro de fogo puxado por cavalos
igualmente de fogo, tudo coisas que certamente não passa-
ram de imagens adaptadas às opiniões daqueles que no-las
contaram tal como elas lhe pareceram, isto é, como realida-
des. Quem quer que saiba alguma coisa mais do que o vulgo
sabe que Deus não tem direita nem esquerda, que não se
move nem permanece imóvel, que não está num determina-
do lugar mas que é absolutamente infinito e contém em si
todas as perfeições. Tudo isso, repito, sabem-no os que jul-
110 ESPINOSA

gam as coisas por puras percepções do intelecto e não con-


forme a imaginação é afetada pelos sentidos externos, como
costuma fazer o vulgo que imagina, por isso mesmo, que
Deus tem um corpo e está investido de um poder como o
dos reis, num trono supostamente plantado na abóbada ce-
leste, por cima das estrelas, as quais, de resto, julga que estão
a uma pequena distância da Terra. É a essas opiniões e a ou-
tras semelhantes que está adaptado, como dissemos, um gran-
de número de casos da Escritura, que não devem, por conse-
guinte, ser considerados como reais pelos filósofos' 4 •
Importa, finalmente, para entender os milagres tal como
aconteceram, conhecer as expressões e as figuras de retórica
utilizadas pelos hebreus. Quem não tiver isso em devida con-
ta acrescentará à Escritura muitos milagres que os seus auto-
res nunca pensaram em narrar e, desse modo, ignorará total-
mente, não só as coisas e os milagres tal como de fato ocor-
reram, mas também o pensamento dos autores dos sagrados
códices. Por exemplo, Zacarias, falando de uma próxima guer-
ra, diz no cap. XIV, 7: e será um dia inteiro, um dia que só
Deus conhece (pois não será) nem dia nem noite, mas ã tar-
de surgirá a luz. Com essas palavras, parece que está predi-
zendo um grande milagre e, no entanto, quer dizer apenas
que o combate estará indeciso durante todo o dia, que só
Deus sabe o seu desfecho, e que à tarde alcançam a vitória.
Era com frases dessas, efetivamente, que os profetas costu-
mavam predizer e escrever as vitórias e as derrotas das nações.
Do mesmo modo, vemos Isaías, que descreve assim, no cap.
1941 XIII, a destruição de Babilônia: porque as estrelas e os astros
do céu não mais iluminarão com a sua luz, o Sol escurecer-
se-á ao nascer e a Lua não propagará o esplendor da sua cla-
ridade. Presumo que ninguém, com certeza, acredita que
isso tenha acontecido quando da destruição daquele impé-
rio, tal como ninguém acredita no que o profeta acrescenta
pouco depois: por isso farei tremer os céus, e a Terra muda-
rá de lugar. O mesmo Isaías (cap. XLVIII, penúltimo versícu-
lo, para dizer aos judeus que voltariam sãos e salvos da Ba-
bilônia para Jerusalém e que não sofreriam a sede durante o
caminho, diz: e não sofreram sede, conduziu-os através dos
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 111

desertos e para eles fez brotar a água do rochedo, partiu a pe-


dra e as águas jorraram. Com essas palavras, note-se, quer
simplesmente dizer que os judeus encontrariam no deserto,
como de fato aconteceu, fontes em que saciariam a sede.
Não consta, efetivamente, que, uma vez autorizados por Ciro
a regressar a Jerusalém, lhes tenham acontecido milagres se-
melhantes. E há nos Livros Sagrados inúmeras expressões des-
sas, que são simples modos de dizer dos judeus e que é es-
cusado referir aqui todos um por um. Quero apenas fazer no-
tar que os hebreus não usavam tais expressões apenas como
ornamentos literários, mas também e sobretudo para· falarem
com devoção. Por isso é que se encontra nos Livros Sagrados
a expressão bendizer a Deus em vez de maldizer (Reis, livro
1, cap. XXI, 10, e ]ó, cap. II, 9), e por isso também eles atribuíam
tudo a Deus, de tal modo que a Escritura não parece descrever
senão milagres, mesmo quando fala das coisas mais naturais,
como os exemplos que já apresentamos demonstram.
Há, portanto, que admitir que a Escritura, quando diz
que Deus endureceu o coração do Faraó, quer significar ape-
nas que o Faraó se obstinou; quando diz que Deus abriu as
janelas do céu, quer dizer que a chuva caiu em abundância;
e assim por diante. Se tivermos isso em conta, e bem assim o
fato de muitas coisas virem narradas de forma excessivamen-
te breve, com poucos pormenores e como que truncadas,
não encontraremos na Escritura coisa alguma da qual se pos-
sa demonstrar que repugna à luz natural. Pelo contrário, mui-
ta coisa que é tida por extremamente obscura poderá, com
um mínimo de reflexão, compreender-se e interpretar-se fa-
cilmente. E, com isso, julgo ter demonstrado com suficiente
clareza o que tinha prometido.
Mas, antes de dar por terminado este capítulo, quero
ainda fazer uma advertência: segui, no que se refere aos mi-
lagres, um método inteiramente diferente do que tinha usa-
do ao tratar da profecia. Sobre esta, com efeito, não afirmei [951
senão aquilo que pude concluir de fundamentos revelados
nos Livros Sagrados, ao passo que neste capítulo utilizei so-
bretudo os princípios conhecidos pela luz natural. E o fiz
propositadamente. Porque da profecia, na medida em que ela
112 ESPJNOSA

ultrapassa a compreensão humana e é uma questão teológi-


ca, nada poderia afirmar e nem sequer poderia saber em que
é que ela consiste exatamente, a não ser a partir de princí-
pios revelados. Fui, por isso, obrigado a fazer a história da
profecia e a extrair dela alguns dogmas que me dessem a co-
nhecer, na medida do possível, a sua natureza e as suas pro-
priedades. A respeito dos milagres, porém, uma vez que o ob-
jeto da nossa investigação (saber se se pode aceitar que algo
aconteça na natureza que repugne às suas leis ou que delas
não possa derivar) é puramente filosófico, não se requeria
nada de semelhante; achei até preferível resolver essa ques-
tão com base em princípios conhecidos pela luz natural, por-
quanto são os que melhor conhecemos. E digo que achei pre-
ferível, porque também podia resolvê-lo facilmente por meio
de dogmas e princípios extraídos unicamente da Escritura,
conforme vou aqui demonstrar em poucas palavras, a fim de
que fique claro para todos.
Referindo-se à natureza em geral, a Escritura diz em al-
gumas passagens que ela mantém uma ordem fixa e imutá-
vel, como no Salmo CXLVIII, 6, e em jeremias, cap. XXXI,
35, 36. O filósofo, além disso, no seu Eclesiastes, cap. 1, 10,
deixa claro que nada de novo acontece na natureza e, nos ver-
sículos 11 e 12, ao explicar esta afirmação, diz que, embora
algumas vezes aconteça algo que parece novo, na realidade
nào é, pois aconteceu já em séculos passados de que não res-
ta nenhuma memória. Como ele mesmo afirma, dos antigos
não subsiste hoje nenhuma recordação, da mesma forma que
a posteridade não guardará nenhuma dos homens do nosso
tempo. Mais à frente, no cap. III, 11, diz que Deus ordenou
tudo da melhor maneira e a seu tempo, e no versículo 14,
que tudo o que Deus faz permanecerá para a eternidade,
sem que se lhe possa tirar ou acrescentar seja o que for. Por
aqui se vê claramente que a natureza observa uma ordem
fixa e imutável, que Deus foi sempre o mesmo em todos os
séculos por nós conhecidos ou desconhecidos, que as leis
da natureza são tão perfeitas e fecundas que nada se lhes pode
acrescentar ou subtrair e que, finalmente, os milagres só por
ignorância dos homens surgem como algo de excepcional. É
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 113

isso o que a Escritura expressamente ensina. Em parte algu-


ma, pelo contrário, ela diz que acontece algo na natureza que
repugne às suas leis ou que não possa derivar delas, pelo que [961
também não devem atribuir-se-lhe tais intervenções. A isso
acresce que os milagres requerem (como já mostramos) cau-
sas e circunstâncias e não são conseqüência de um não sei
que poder real ficticiamente atribuído a Deus pelo vulgo, mas
sim do poder e do decreto divinos, isto é (como também
demonstramos com base na própria Escritura), das leis da
natureza e da sua ordem, e que, finalmente, os milagres po-
dem ser feitos também por impostores, conforme se tem de
admitir pelo cap. XIII do Deuteronômio e o cap. XXIV, 24,
de Mateus.
Daqui se conclui obviamente que os milagres foram fe-
nômenos naturais e devem, por conseguinte, ser explicados
de forma que não pareçam algo de novo (para usar a expres-
são de Salomão) ou contra a natureza, mas sim, já que o po-
demos fazer, como totalmente inseridos entre as coisas natu-
rais. Foi precisamente para que todos o pudessem fazer com
facilidade que apresentei algumas regras extraídas unicamen-
te da Escritura. Mas, embora afirme que esta o ensina, não
penso que o ensine como algo de imprescindível para a salva-
ção. Julgo, pelo contrário, que os profetas partilhavam dessa
nossa opinião sobre os milagres, acerca dos quais, por conse-
guinte, cada um é livre de pensar como entender que é me-
lhor para corroborar os seus sentimentos religiosos e o culto
prestado a Deus. É, de resto, o que pensa Josefa, quando es-
creve na conclusão do livro II das Antiguidades: Que nin-
guém fique incrédulo perante a palavra milagre, se para ho-
mens antigos e isentos de qualquer malícia foi evidente que a
via da salvação se abriu através do mar, fosse por vontade de
Deus ou fosse espontaneamente, já que também para aqueles
que estiveram outrora com Alexandre, rei da Macedônia, o
mar de Panfília se abriu e, não havendo outro caminho, deu-
lhes passagem, pois Deus queria destruir, por intermédio de-
les, o império dos Pereas. É isso o que confessam todos os que
relataram os feitos de Alexandre, de modo que, sobre o assun-
to, cada um pense como quiser. São essas as palavras de Jo-
sefa e a apreciação que faz acerca da fé nos milagres.
[971 CAPÍTULO VII

Da interpretação da Escritura

Toda a gente diz que a Sagrada Escritura é a palavra de


Deus que ensina aos homens a verdadeira beatitude ou ca-
minho da salvação: na prática, porém, o que se verifica é com-
pletamente diferente. Não há, com efeito, nada com que o
vulgo pareça estar menos preocupado do que em viver se-
gundo os ensinamentos da Sagrada Escritura. É ver como an-
dam quase todos fazendo passar por palavra de Deus as suas
próprias invenções e não procuram outra coisa que não seja,
a pretexto da religião, coagir os outros para que pensem
como eles. Boa parte, inclusive, dos teólogos está preocupa-
da é em saber como extorquir dos Livros Sagrados as suas
próprias fantasias e arbitrariedades, corroborando-as com a
autoridade divina. Nem há mesmo nada que eles façam com
menos escrúpulos e com maior temeridade que a interpreta-
ção da Escritura, ou seja, da mente do Espírito Santo; e, se al-
guma coisa nessa tarefa os aflige, não é o receio de atribuir
ao Espírito Santo algum erro e afastarem-se do caminho da
salvação, mas sim poderem ser apanhados em erro pelos ou-
tros e, desse modo, verem a sua própria autoridade calcada
aos pés dos adversários e serem alvo de escárnio. Porque, se
os homens fossem sinceros quando falam da Escritura, teriam
uma regra de vida completamente diferente: as suas mentes
não andariam agitadas com tanta discórdia, não se combate-
riam uns aos outros com tanto ódio, nem manifestariam um
tão cego e temerário desejo de interpretar a Escritura e de in-
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 115

ventar na religião coisas novas. Pelo contrário, não ousariam


abraçar como doutrina da Escritura senão o que ela ensina
com a maior clareza, e esses sacrílegos, enfim, que não hesi-
taram em adulterar a Escritura em inúmeros trechos, guardar-
se-iam de cometer tamanho crime e afastariam dela as sacrí-
legas mãos'.
Todavia, a ambição e o crime foram tão longe que a re-
ligião acaba por consistir menos em obedecer aos ensina-
mentos do Espírito Santo que em defender humanas fantasias,
e por não se traduzir pela propagação da caridade mas pela
disseminação das discórdias e do ódio mais feroz entre os
homens, disfarçado embora de zelo divino e fervor ardente.
E, como se esses males não bastassem, há ainda a supersti-
ção, que os ensina a desprezar a natureza e a razão e a admi-
rar e venerar apenas o que as contradiz, pelo que não é de [98]
espantar se eles se empenham assim tanto, para melhor ad-
mirarem e venerarem a Escritura, em explicá-la de modo que
pareça estar em perfeito contraste com a natureza e a razão.
É por isso que eles sonham que nos Livros Sagrados se es-
condem mistérios profundíssimos, e nisso, quer dizer, na in-
vestigação desses absurdos, se afadigam, desprezando outras
coisas que seriam bem mais úteis. E tudo quanto nesse seu
delírio inventam é atribuído ao Espírito Santo e defendido
com toda a veemência e paixão. Os homens, de fato, são as-
sim: aquilo que concebem pelo puro entendimento defen-
dem-no só pelo entendimento e pela razão; pelo contrário,
aquilo que opinam por força das paixões é com essas que o
defendem. Ora, para sair de tais confusões, libertarmos a men-
te dos preconceitos dos teólogos e não abraçarmos temera-
riamente invenções humanas como se fossem ensinamentos
divinos, temos de abordar e discutir o verdadeiro método para
interpretar a Escritura 2 • Enquanto não o conhecermos, nada
poderemos saber ao certo sobre o que a Escritura, ou seja, o
Espírito Santo, quer ensinar.
Muito resumidamente, o método de interpretar a Escri-
tura não difere em nada do método de interpretar a nature-
za; concorda até inteiramente com ele 3 • Na realidade, assim
como o método para interpretar a natureza consiste essen-
116 ESPINOSA

cialmente em descrever a história da mesma natureza e con-


cluir daí, com base em dados certos, as definições das coisas
naturais, também para interpretar a Escritura é necessário ela-
borar a sua história autêntica e, depois, com base em dados
e princípios certos, deduzir daí como legítima conseqüência
o pensamento dos seus autores. Desse modo, quer dizer, se
na interpretação da Escritura e na discussão do seu conteúdo
não se admitirem outros princípios nem outros dados além
dos que se podem extrair dela mesma e da sua história, esta-
remos procedendo sem perigo de errar e poderemos discutir
com tanta segurança as coisas que ultrapassam a nossa com-
preensão como aquelas que conhecemos pela luz natural. No
entanto, e para que fique claro que essa via é, não só a cor-
reta, mas também a única, além de estar em conformidade
com o método de interpretação da natureza, é preciso notar
que a Escritura trata freqüentemente de coisas que não po-
dem deduzir-se dos princípios conhecidos pela luz natural.
Com efeito, ela compõe-se em boa parte de histórias e reve-
lações; ora, as histórias contêm principalmente milagres, isto
[99l é (como mostramos no capítulo anterior), descrições de fatos
insólitos da natureza adaptados às opiniões e à mentalidade
dos historiadores que as escreveram; as revelações, por seu
turno, estão também adaptadas às opiniões dos profetas e ul-
trapassam realmente, como demonstramos no capítulo II, a
compressão humana. Daí que o conhecimento de todas es-
sas coisas, ou seja, de quase tudo o que vem na Escritura,
deva investigar-se unicamente na própria Escritura, do mes-
mo modo que o conhecimento da natureza se investiga na
própria natureza.
Quanto aos ensinamentos morais que também vêm na
Bíblia, embora eles possam demonstrar-se com base em no-
ções comuns, não se pode, todavia, a partir dessas noções,
demonstrar que ela os ensina, pois isso só poderá afirmar-se
com base na Escritura. Assim, se quisermos provar sem pre-
conceitos a divindade da Escritura, terá de se provar, com
base exclusivamente nela, que estão lá contidos verdadeiros
ensinamentos morais. De outra forma, não poderá demons-
trar-se a sua divindade, porquanto já explicamos que a certe-
TRATADO TEOLÓGICO-POIÍ71CO 117

za dos profetas se baseia principalmente no fato de eles terem


o ânimo predisposto para a justiça e a bondade. Nessa medi-
da, para que possamos acreditar neles é preciso que esses fa-
tos sejam evidentes também para nós. Dos milagres, contu-
do, não se pode deduzir a divindade de Deus, como já de-
monstramos, nem vale a pena acrescentar que eles podem
também ser feitos por um falso profeta. Por conseguinte, a
divindade da Escritura deve concluir-se unicamente do fato
de ela ensinar a verdadeira virtude. Mas isso só pela Escritu-
ra se pode provar. E, se acaso não o pudesse, então, só por
enorme preconceito se aceitaria a Escritura e se afirmaria a
sua divindade. Todo o conhecimento sobre a Escritura deve,
portanto, extrair-se unicamente dela mesma.
Por último, a Escritura não dá definições das coisas de
que fala, da mesma forma que a natureza também as não dá.
Por isso, tal como temos de concluir as definições das coisas
naturais a partir das diversas ações da natureza, assim tam-
bém é necessário extraí-las das diversas narrações que a Es-
critura apresenta de cada fato. Donde, a regra universal a se-
guir na sua interpretação é a de não lhe atribuir outros ensi-
namentos além dos que tenhamos claramente concluído pela
sua história'. Mas vejamos como deve ser essa história e o
que ela deve acima de tudo explicar. Assim:
I - Deve incluir a natureza e as propriedades da língua
em que foram escritos os livros da Escritura e em que os seus
autores falavam habitualmente. Só assim se poderá, com efei- [100]
to, examinar todos os sentidos que cada frase pode ter de
acordo com o uso normal da língua. E, uma vez que todos
os autores, tanto os do Antigo como os do Novo Testamento,
foram hebreus, é evidente que a história da língua hebraica é
necessária para se compreenderem, não só os livros do primei-
ro, que foram escritos nessa língua, mas também os do se-
gundo, os quais, embora tenham sido divulgados em outros
idiomas, trazem, no entanto, hebraísmos.
II - Deve coligir as opiniões contidas em cada livro e re-
duzi-las aos pontos principais, de forma que se encontrem fa-
cilmente todas as que se referem ao mesmo assunto. Em se-
guida, deve registrar todas as que são ambíguas ou obscuras
118 ESPINOSA

ou que parecem estar em contradição entre si. Considero,


para esse efeito, que uma opinião é clara ou obscura confor-
me a facilidade ou dificuldade com que se tira o seu sentido
pelo contexto e não conforme a facilidade ou dificuldade com
que se apreende a sua verdade pela razão. Trata-se aqui ape-
nas do sentido e não da verdade dos textos. Assim, quando
estamos investigando o sentido da Escritura, há que evitar a
todo custo deixarmo-nos influenciar pelo nosso raciocínio
(para não falar dos nossos preconceitos), porquanto ele as-
senta nos princípios do conhecimento natural. Para não con-
fundirmos o verdadeiro sentido com a verdade das coisas,
deveremos examiná-lo com base unicamente na norma lin-
güística ou num raciocínio que tenha por único fundamento
a Escritura. Mas vou dar um exemplo para que todas essas
questões se compreendam melhor. Expressões como as de
Moisés segundo as quais "Deus é fogo", ou "Deus é ciumen-
to", resultam claríssimas quando atendemos apenas ao signi-
ficado das palavras, e por isso as coloco entre os enunciados
claros, muito embora elas sejam do mais obscuro no que toca
à verdade e à razão. Mesmo quando o sentido literal repug-
na à luz natural, devemos mantê-lo, a não ser que esteja em
flagrante contradição com os princípios e os fundamentos ti-
rados da história da Escritura. Se, pelo contrário, víssemos
que essas frases, interpretadas literalmente, repugnavam aos
princípios tirados da Escritura, ainda que elas concordassem
totalmente com a razão, teríamos de admitir uma outra inter-
pretação (isto é, uma interpretação metafórica). Portanto,
para saber se Moisés acreditou realmente que Deus era fogo
ou qualquer outra coisa, de modo algum se pode deduzi-lo
do fato de essa opinião convir ou repugnar à razão, mas uni-
[lüll camente a partir de outras opiniões de Moisés. Ora, uma vez
que ele ensina com toda a clareza, em numerosas passagens,
que Deus não tem nenhuma parecença com as coisas visí-
veis existentes nos céus, na terra ou na água, tem de se con-
cluir que essa frase, assim como todas as outras do mesmo
gênero, se devem entender em sentido metafórico. Todavia,
como é necessário nos afastarmos o menos possível do senti-
do literal, temos primeiro de saber se esta expressão "Deus é
TRATADO TEOLÓGICO-POÚ11CO 119

fogo" admite um outro sentido que não o literal, isto é, se a


palavra "fogo" significa outra coisa além de fogo natural.
Porque, se verificássemos que em hebraico ela não tinha ou-
tro significado, não poderíamos também interpretar a frase
de outra forma, muito embora esta repugne à razão. Em con-
trapartida, todas as outras frases, ainda quando consentâneas
com a razão, teriam de ser interpretadas de acordo com ela.
E, se nem isso fosse possível no quadro da norma lingüística,
então essas frases seriam incompatíveis e, por conseguinte,
haveria que suspender qualquer juízo sobre elas. No entan-
to, como a palavra "fogo" é usada também para significar có-
lera e ciúme (ver ]ó, cap. XXXI, 12), é fácil conciliar as frases
de Moisés e concluir que as expressões "Deus é fogo" e "Deus
é ciumento", traduzem uma só e mesma opinião. Além disso,
e uma vez que Moisés ensina claramente que Deus é ciu-
mento e em parte nenhuma ensina que ele está imune de
paixões ou alterações de ânimo, temos forçosamente de con-
cluir que Moisés acreditava nisso ou que, pelo menos, pre-
tendia ensiná-lo, por muito que repugne à nossa razão 5 • De
fato, não é lícito, como já mostramos, forçar o sentido da Es-
critura para o ajustar aos imperativos da nossa razão e às
nossas opiniões preconcebidas: o conhecimento dos livros
da Bíblia tem de extrair-se todo ele unicamente dos livros da
Bíblia.
III - Por último, a história da Escritura deve descrever os
pormenores de todos os livros dos profetas de que chegou no-
tícia até nós, ou seja, a vida, os costumes, os estudos de cada
um dos autores, quem era ele, em que ocasião, em que épo-
ca, para quem e, finalmente, em que língua escrevia. Depois,
as voltas que deu cada livro: como foi originalmente acolhi-
do, em que mãos foi parar, quantas versões conheceu, a con-
selho de quem foi incluído entre os Livros Sagrados e, enfim,
de que modo foram reunidos num único corpo todos os li-
vros já universalmente reconhecidos como sagrados. Tudo
isso, sublinho, deve estar incluído na história da Escritura. Na
verdade, para saber quais as opiniões que são enunciadas
como leis e quais as que são como ensinamentos morais, im- [1021
porta conhecer a vida, os costumes e os estudos do autor,
120 ESPINOSA

além de que podemos explicar as palavras de alguém tanto


mais facilmente quanto melhor conhecermos o seu talento e
a sua maneira de ser. Depois, para não confundir os ensina-
mentos eternos com aqueles que eram válidos apenas por
um determinado tempo e para um reduzido número de pes-
soas, importa também saber em que ocasião, em que época
e para que nação ou século foram escritos todos esses ensi-
namentos. Finalmente, é importante conhecer todas as ou-
tras circunstâncias de que tínhamos falado, para saber não só
que autoridade devemos atribuir a cada livro, mas também
se ele não poderá ter sido conspurcado por mãos que o adul-
teraram, se acaso lhe introduziram erros e se esses foram cor-
rigidos por homens competentes e dignos de crédito. Tudo
isso é absolutamente necessário saber, a fim de que não acei-
temos, arrebatados por cegos impulsos, seja o que for que
nos propõem, mas unicamente o que for certo e indubitável.
Obtida assim a história da Escritura e tomada a firme de-
cisão de não admitir como doutrina dos profetas senão o que
por essa mesma história se conclui, ou seja, o que dela se
deduz com a maior clareza, agora é altura de nos cingirmos à
investigação do pensamento dos profetas e do Espírito San-
to. Mas, para isso, é também necessário um método e uma
ordem semelhante à que usamos na interpretação da nature-
za com base na sua história. Com efeito, da mesma forma
que ao estudar as coisas naturais procuramos, primeiro que
tudo, aquelas que são absolutamente universais e comuns a
toda a natureza, tais como o movimento, o repouso e as res-
pectivas leis e· regras, que a mesma natureza observa sempre
e segundo as quais age continuamente, passando-se depois
gradualmente a outras coisas menos universais, também na
história da Escritura é preciso, antes de tudo, procurar aqui-
lo que é mais universal e constitui a base e o fundamento de
toda ela, aquilo, enfim, que todos os profetas recomendam
como doutrina eterna e de maior utilidade para qualquer mor-
tal. Por exemplo, que existe um só Deus que é onipotente e
o único a quem se deve adorar, que olha por todos e ama so-
bretudo os que o adoram e amam o próximo como a si mes-
mos, etc. Tais ensinamentos e outros do mesmo gênero es-
1RA TADO 1EOLÓGICO-POLÍ71CO 121

tão de tal maneira claros e explícitos em toda a Escritura que


não houve jamais alguém que duvidasse do seu sentido. Mas,
quanto a saber o que é Deus, como vê ele todas as coisas e
por elas providencia, a Escritura não ensina nada de concre- [1031
to e a título de doutrina eterna, tal como de outros assuntos
parecidos; pelo contrário, os próprios profetas, como já mos-
tramos, não estão de acordo sobre tais questões, pelo que não
existe nada que possa a seu respeito ser tido por doutrina do
Espírito Santo, ainda que elas se resolvam muito bem pela
luz natural.
Uma vez suficientemente conhecida a doutrina universal
da Escritura, deve-se passar depois a outros assuntos que,
sendo embora menos universais, se referem contudo aos as-
pectos práticos da vida e derivam, qual riacho, daquela dou-
trina universal: estão nesse caso todos os atos particulares e
exteriores de verdadeira virtude, que só podem praticar-se
numa dada ocasião. Quanto a isso, tudo o que encontrarmos
de obscuro ou ambíguo na Escritura deverá ser esclarecido e
determinado com base na doutrina universal da mesma Es-
critura; se encontrarmos passagens contraditórias entre si, te-
remos de ver em que altura, em que época, ou para quem é
que elas foram escritas. Por exemplo, quando Cristo diz feli-
zes os que choram porque serão consolados, não sabemos, só
por esse texto, a quem é que se refere; mas como ele ensina
mais à frente que não nos devemos preocupar senão com o
reino de Deus e a sua justiça, a qual nos recomenda como
sendo o sumo bem (Mateus, cap. VI, 33), segue-se que por
"aqueles que choram" ele entende unicamente os que cho-
ram pelo desprezo a que os homens votam o reino de Deus
e a justiça, dado que só por isso pode chorar quem não ama
senão o reino de Deus, isto é, a justiça, e despreza por com-
pleto todos os outros favores da fortuna. O mesmo se passa
quando ele diz mas àquele que te bateu na face direita ofere-
ce-lhe também a outra, etc. Se Cristo impusesse isso aos juí-
zes enquanto legislador, destruiria com tal preceito a lei de
Moisés, coisa contra a qual ele próprio se insurge abertamen-
te (Mateus, cap. V, 17); portanto, temos de ver quem é que
disse isso, a quem o disse. e em que altura. Quem o disse foi
122 ESPINOSA

Cristo, que não instituía leis como se fosse um legislador, mas


ensinava como um mestre, pois queria corrigir, não tanto as
ações exteriores, quanto a disposição interior. Disse-o a ho-
mens oprimidos que viviam num Estado corrupto, onde a
justiça era totalmente desprezada e cuja ruína parecia imi-
nente. Aliás, isso mesmo que Cristo aqui ensina, estando imi-
nente a destruição da cidade, vemos também Jeremias ensi-
ná-lo por alturas da anterior destruição, ou seja, numa época
bastante parecida (ver Lamentações, cap. III, letras Tet e Jot).
Por conseguinte, se os profetas ensinaram isso só em tempos
[104] de opressão e nunca como se fosse uma lei, se, por outro
lado, Moisés (que não escreveu numa época de opressão, mas
- repare-se - no intuito de constituir um Estado sólido), mui-
to embora condenasse também a vingança e o ódio ao pró-
ximo, ordenou, no entanto, que se pagasse olho por olho,
segue-se com toda a clareza, pelos princípios da própria Es-
critura, que esse ensinamento de Cristo e de Jeremias para se
tolerarem as injúrias e se perdoar tudo aos ímpios só é perti-
nente nos lugares em que a justiça é desprezada e em épo-
cas de opressão. Nunca num Estado consolidado, onde a jus-
tiça é defendida e onde quem quiser ser tido por justo deve
exigir que as injúrias sejam julgadas (ver Levítico, cap. XIII,
1), não por vingança (Levítico, cap. XIX, 17, 18), mas por de-
sejo de defender a justiça e as leis da Pátria e para que os
maus não lucrem com a maldade 6 • Tudo isso, aliás, concorda
plenamente com a razão natural. E, como estes, poderia citar
vários outros exemplos, mas julgo que chega para explicar a
minha idéia e a utilidade desse método, única preocupação
que tenho de momento.
Até aqui, mostramos apenas como se devem analisar os
textos da Escritura respeitante à vida prática e que são, por
isso mesmo, mais fáceis de estudar; de fato, nunca houve real-
mente controvérsia a seu respeito entre os autores da Bíblia.
Já os textos que sào unicamente especulativos não podem ser
analisados com a mesma facilidade. Para estes, o caminho é
mais estreito, pois em matérias especulativas (como já mostra-
mos) os profetas estavam em desacordo e as narrações eram
em boa parte adaptadas aos preconceitos das respectivas épo-
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO 123

cas. Daí o não se poder deduzir o pensamento de um profe-


ta a partir de passagens mais claras de um outro, a menos que
conste com toda a evidência que eles foram da mesma opi-
nião. Vou, por isso, expor agora muito rapidamente o modo
como podemos, nesses casos, conhecer o pensamento dos
profetas pela história da Escritura.
Também aqui, devemos começar por princípios absolu-
tamente universais, averiguando, através de frases da Escritu-
ra que sejam claras, em primeiro lugar, o que é a profecia ou
revelação e em que consiste essencialmente; depois, o que é
um milagre; e assim por diante, até às coisas mais comuns.
Daí, passamos às opiniões de cada profeta; destas, por sua vez,
passamos ao sentido de cada revelação ou profecia, de cada
narrativa e de cada milagre. Quanto às precauções a tomar [105]
para não confundir o pensamento dos profetas e dos histo-
riadores com o do Espírito Santo e com a verdade, já falamos
nisso na devida altura e apresentamos muitos exemplos. Não
há, portanto, necessidade de voltar ao assunto. Deve, todavia,
notar-se, no que toca ao sentido da revelação, que esse mé-
todo só ensina a investigar o que os profetas realmente vi-
ram ou ouviram, não o que eles quiseram significar ou repre-
sentar com aqueles sinais hieroglíficos. Sobre isso, podemos
apenas conjecturar, mas não concluir com certeza e com fun-
damento na Escritura.
Apresentamos assim o modo de interpretar a Escritura e
demonstramos, ao mesmo tempo, ser esta a mais firme e até
a única via para se procurar o seu verdadeiro sentido. Admi-
to, evidentemente, que esteja mais seguro de qual é esse sen-
tido alguém que tenha recebido, se acaso existe alguém as-
sim, a genuína tradição ou a verdadeira explicação dos próprios
profetas, como pretendem os fariseus, ou então aqueles que
têm um Pontífice que é infalível a interpretar a Escritura,
como alardeiam os católicos ron\anos7 • Mas, como não pode-
mos estar certos, nem dessa tradição, nem da autoridade do
Papa, também não se pode fundamentar nenhuma certeza
sobre tais bases. Esta, com efeito, era negada pelos cristãos
mais antigos, aquela, pelas mais antigas seitas dos judeus. E,
se repararmos depois no cálculo dos anos (para não falar de
124 ESPINOSA

outras coisas), que foi transmitido aos fariseus pelos seus ra-
binos e através do qual eles fazem remontar a tradição até
Moisés, verificamos que ele é falso, como irei demonstrar em
outro local. Donde, uma tal tradição deve ter-se como parti-
cularmente suspeita. Isso, não obstante sermos obrigados pelo
nosso método a supor como isenta de corrupção uma tradi-
ção dos judeus, a saber, o significado das palavras da língua
hebraica que deles recebemos. E, se duvidamos daquela, já o
mesmo não sucede em relação a esta. De fato, é impossível
que alguma vez tenha havido alguém que achasse utilidade
em alterar o significado de uma palavra, embora seja freqüen-
te isso acontecer com o sentido das frases. Até porque é mui-
to difícil: quem quisesse alterar o significado de uma palavra
teria simultaneamente de explicar, de acordo com a maneira
de ser e a mentalidade de cada um, todos os autores que es-
creveram na mesma língua e que empregaram essa palavra
na sua acepção tradicional, ou então, teria de os falsificar
com a maior cautela. Depois, a língua é tanto do vulgo como
dos sábios, enquanto o sentido dos textos e os livros só os
sábios os possuem. É fácil, portanto, entender que os sábios
podiam alterar ou corromper o significado de uma frase de
[1061 um livro qualquer raríssimo que estivesse em seu poder, mas
não o significado das palavras. Além de quê, se alguém qui-
sesse alterar o significado usual de uma palavra, dificilmente
poderia depois respeitar essa alteração sempre que falasse
ou escrevesse. Por essas e outras razões, não custa acreditar
que a ninguém passará pela cabeça corromper uma língua.
O que de fato acontece com freqüência é corromper-se o
pensamento de um autor, alterando-lhe as frases ou interpre-
tando-as mal.
Uma vez que o nosso método (baseado na regra de que
o conhecimento da Escritura deve extrair-se apenas da Escri-
tura) é o único verdadeiro, tudo quanto ele não nos puder
oferecer para chegarmos ao completo conhecimento da Es-
critura há que desistir de o atingir. Mas que tipo de dificulda-
des apresenta esse método? O que é que lhe falta para que
nos possa levar até o conhecimento total e seguro dos Sagra-
dos Códices? É isso o que vamos ver agora. A primeira gran-
TRATADO T'EOLÓGICO-POLÍ11CO 125

de dificuldade desse método deriva do fato de ele exigir um


domínio total da língua hebraica. Onde é que se pode adqui-
rir agora esse domínio? Os antigos hebraístas não legaram
nada à posteridade sobre os fundamentos e a estrutura dessa
língua. A nós, pelo menos, não chegou absolutamente nada:
nem um Dicionário, nem uma Gramática8 , nem uma Retóri-
ca. A nação hebraica perdeu todas as suas glórias e pergami-
nhos (o que não admira, depois de ter sofrido tantos desas-
tres e perseguições) e não conservou senão alguns fragmen-
tos da sua língua e da sua literatura. Com o andar dos tempos,
quase todos os nomes de frutos, pássaros, peixes e de muitas
outras coisas se perderam. O significado de muitos substanti-
vos e verbos que surgem na Bíblia é totalmente desconhecido
ou discutível. E o pior é que tampouco dispomos de uma se-
mântica do hebraico, porquanto as frases e expressões idio-
máticas dos judeus foram quase por completo varridas da me-
mória dos homens pela ação devastadora do tempo. Assim, e
ao contrário do que seria nosso desejo, não podemos averi-
guar todos os sentidos que um texto pode ter no âmbito da
língua, além de que deparamos com muitas passagens que,
expressas embora em termos conhecidíssimos, o seu sentido é,
todavia, bastante obscuro e totalmente incompreensível.
A isso, ou seja, ao fato de não dispormos de uma histó-
ria completa do hebraico, acresce ainda a própria constitui-
ção e natureza dessa língua, devido à qual são tantas as am-
bigüidades com que deparamos que é impossível encontrar [107]
um método* que permita determinar com segurança o verda-
deiro sentido de todos os textos da Escritura. De fato, para
além dos fatores de ambigüidade comuns a todas as línguas,
existem alguns que só se verificam no hebraico. Vale a pena
referi-los aqui.
Em primeiro lugar, a ambigüidade e a obscuridade das
frases da Bíblia derivam muitas vezes de se confundirem as
letras pronunciadas com o mesmo órgão. Os hebreus divi-

• Anotação VII. Quer dizer, para nós que não estamos acostumados a
essa língua e desconhecemos o significado das suas frases idiomáticas.
126 ESPINOSA

dem as letras do alfabeto em cinco grupos, consoante os cin-


co órgãos vocais que servem para as pronunciar: lábios, lín-
gua, dentes, palato e garganta. Assim, por exemplo, as letras
Aleph, Ghet, Hgain e He chamam-se guturais e, tanto quanto
sabemos, empregam-se indiscriminadamente. El, que signifi-
ca para, toma-se muitas vezes por hgal, que significa sobre,
e vice-versa. Daí acontecer que todas as partes da proposição
se tornam muitas vezes ambíguas ou aparecem como sons
sem nenhum significado.
Uma segunda causa dessa ambigüidade reside na multi-
plicidade de significados que têm as conjunções e os advér-
bios. Por exemplo, vau é indistintamente uma conjuntiva ou
uma disjuntiva, significando e, mas, porque, no entanto e en-
tão. A palavra ki tem sete ou oito significados: porque, apesar
de, se, quando, como, que, combustão, etc. E acontece o mes-
mo com quase todas as partículas.
Uma terceira fonte de muitas ambigüidades é que os ver-
bos no indicativo não têm nem presente, nem pretérito im-
perfeito ou mais-que-perfeito, nem futuro perfeito, nem ou-
tros tempos que são freqüentes nas demais línguas; no impe-
rativo e no infinito então, faltam todos os tempos exceto o
presente; no conjuntivo faltam mesmo todos. E, embora toda
esta ausência de tempos e de modos pudesse ser suprida, até
com certa elegância, mediante certas regras deduzidas dos
princípios da língua, a verdade é que os escritores mais anti-
gos as negligenciaram por completo, usando indiscriminada-
mente o futuro pelo presente e pelo pretérito, o pretérito pelo
futuro, ou ainda o indicativo pelo imperativo e pelo conjunti-
vo, o que ocasionou inúmeros equívocos.
Além desses três fatores de ambigüidade no hebraico, há
ainda a assinalar mais dois, igualmente graves. O primeiro é
[108] que não havia vogais. O segundo é que não se usava ne-
nhum sinal, tanto para separar as orações, como para dizer
como se pronunciava e como se devia entender o sentido. E,
se bem que a falta desses dois elementos - as vogais e os si-
nais - costume agora colmatar-se através de pontos e acen-
tos, não podemos, contudo, fiar-nos, dado que esses foram
inventados e instituídos já em época posterior, por homens a
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍTJCO 127

cuja autoridade não se deve atribuir nenhuma importância9 •


Os antigos, como se confirma por múltiplos testemunhos, es-
creveram sem pontos (quer dizer, sem vogais e sem acen-
tos). Os que vieram depois é que os acrescentaram, de acor-
do com a interpretação que lhes pareceu dever dar-se à Bí-
blia. Por conseguinte, os pontos e acentos que temos agora
são meras interpretações dos modernos e não merecem mais
crédito nem é de se lhes atribuir mais autoridade que às ou-
tras explicações dos autores. Quem ignorar isso fica sem sa-
ber como é que se pode desculpar o autor da Epístola aos
Hebreus por ter interpretado, no cap. XI, 21, o texto do Gê-
nesis, cap. XLVII, 31, de forma totalmente diversa da que
consta no texto hebraico pontuado, como se o apóstolo de-
vesse aprender o sentido da Escritura com aqueles que a
pontuaram. Para mim, é evidente que estes é que são os cul-
pados. E, para que todos vejam que é assim e que essa diver-
gência se deve unicamente à falta de vogais, apresentarei aqui
as duas interpretações. Aqueles que pontuaram o texto inter-
pretam: e Israel inclinou-se sobre, ou (mudando Hgain em
Aleph, isto é, numa letra do mesmo grupo) para a cabeceira
do leito; o autor da Epístola, porém, interpreta: e Israel incli-
nou-se sobre o cabo do cajado, lendo mate onde os outros
lêem mita, palavras cuja diferença reside apenas nas vogais.
Ora, como naquela narrativa se fala apenas da velhice de Jacó
e não, como acontece no capítulo seguinte, da sua doença,
parece mais verossímil que o historiador tenha tido em mente
que Jacó se inclinou sobre o cabo do cajado, como os velhos
de idade muito avançada precisam fazer para se apoiarem, e
não para a cabeceira do leito, tanto mais que, assim, não é ne-
cessário supor nenhuma substituição de letra. Com esse exem-
plo, não quis apenas conciliar o texto da Epístola aos Hebreus
com o do Génesis, mas sobretudo mostrar a pouca confiança
que se deve ter nos pontos e nos acentos atuais: quem quiser
interpretar a Escritura sem nenhum preconceito, tem de des-
confiar deles e reexaminar tudo desde o princípio.
Em face disso, qualquer pessoa, para voltarmos ao que
estávamos dizendo, poderá facilmente imaginar como dessa [1091
128 ESPINOSA

constituição e natureza da língua hebraica devem surgir tan-


tas ambigüidades que será impossível haver um método pelo
qual sejamos capazes de as esclarecer a todas. Na realidade,
não é de esperar que através do confronto dos textos (única
via, já o demonstramos, para selecionar o verdadeiro sentido
de entre os muitos que uma frase qualquer pode ter no âm-
bito da língua), se consiga fazê-lo cabalmente. Já porque esse
confronto de textos só por mero acaso poderá esclarecer al-
guma frase, pois nenhum profeta escreveu com o intuito ex-
presso de explicar as palavras de um outro, ou mesmo as suas;
já porque não podemos concluir o pensamento de um pro-
feta, ou apóstolo, etc., a partir do de um outro, exceto no
que se refere à vida prática, como ficou demonstrado de for-
ma evidente. Nunca quando eles falam de assuntos especula-
tivos, ou quando narram milagres ou descrevem aconteci-
mentos. Há mais exemplos que demonstram o mesmo, ou
seja, que surgem frases inexplicáveis na Sagrada Escritura,
mas, para já, prefiro deixar essa questão, passando a outros
aspectos que ainda aqui não tratei, ou melhor, a outras difi-
culdades que esse verdadeiro método de interpretar a Escri-
tura apresenta.
Uma delas provém do fato de ele exigir a história de to-
das as vicissitudes por que passaram os livros da Escritura, a
maior parte das quais nos são desconhecidas. De muitos des-
ses livros, com efeito, ignoramos completamente quem foi o
autor ou, se se prefere, quem os escreveu, ou então temos dú-
vidas, como demonstrarei mais adiante. Depois, também não
sabemos em que ocasião e em que época esses livros, de que
ignoramos os autores, foram escritos. Desconhecemos em que
mãos foram parar, em que exemplares surgiram tantas varian-
tes, ou até se não haveria ainda mais em outros exemplares.
E, no entanto, é da maior importância conhecer-se tudo isso,
conforme em devido tempo indiquei sucintamente, embora
tenha então omitido, de propósito, certas considerações que
é agora altura de fazer.
Quando lemos um livro em que vêm coisas inacreditá-
veis ou incompreensíveis, ou um livro que está escrito em
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍT7CO 129

termos extremamente obscuros, se não sabemos quem é o


seu autor, em que época e em que ocasião foi escrito, debal-
de tentaremos saber ao certo o seu verdadeiro sentido. Por-
que, se ignoramos tudo isso, não podemos de maneira ne-
nhuma saber qual foi ou qual poderia ser a intenção do au-
tor; pelo contrário, se o conhecermos exatamente, organiza- [110]
remos os nossos pensamentos de forma que não seremos as-
saltados por nenhum preconceito, quer dizer, a não atribuir
ao autor ou àquele em nome de quem ele escreveu nem
mais nem menos do que aquilo que é justo e a não imaginar
coisas diferentes das que o autor poderia ter em mente ou
do que a sua época e as circunstâncias impunham 10 • Penso
que isso é evidente para todos. De fato, acontece muitas ve-
zes lermos histórias bastante parecidas em vários livros e ter-
mos a seu respeito uma idéia muito diferente, conforme as
diferentes opiniões que temos dos seus autores. Recordo-me
de ter lido outrora em um livro qualquer que um homem, de
nome Orlando Furioso, costumava andar pelos ares numa
espécie de monstro alado, sobrevoando todas as regiões que
lhe apeteciam, massacrando sozinho uma enorme quantida-
de de homens e de gigantes, assim como outras fantasias do
gênero que são completamente incompreensíveis do ponto
de vista do intelecto. Tinha, no entanto, lido em Ovídio uma
história muito parecida sobre Perseu, e uma outra, enfim, nos
livros dos juízes e dos Reis sobre Sansão (o qual, sozinho e
sem armas, massacrou milhares de homens) e sobre Elias,
que voava pelos ares e acabou por chegar ao céu num carro
de fogo puxado por cavalos igualmente de fogo. Todas essas
histórias são muito parecidas e, no entanto, fazemos de cada
uma delas uma idéia bem diferente: o primeiro autor preten-
dia escrever apenas frivolidades; o segundo, fatos políticos;
o terceiro, finalmente, coisas sagradas. E o único motivo que
nos leva a pensar assim é a opinião que temos dos respecti-
vos autores. É, pois, evidente que a informação sobre os au-
tores que escreveram coisas obscuras ou inteligíveis é abso-
lutamente necessária se queremos interpretar os seus escri-
tos. E, pelas mesmas razões, para se poder determinar quais são
as autênticas de entre as várias versões de um texto que conte-
130 ESPINOSA

nha histórias obscuras, é preciso saber em que exemplares fo-


ram encontradas essas variantes e se, porventura, não terá ha-
vido outras apresentadas por homens de maior autoridade.
Uma última dificuldade que apresenta a interpretação de
certos livros da Escritura segundo esse método reside em não
os possuirmos na língua em que originalmente foram escritos.
O Evangelho segundo Mateus, e certamente também a Epíst~
la aos Hebreus, foram, de acordo com a opinião comum, escri-
tos em hebraico e, no entanto, o respectivo texto já não exis-
te. Quanto ao Livro de ]ó, não sabemos ao certo em que língua
[111]
foi escrito. Aben Esdra, nos seus comentários, afirma que ele
foi traduzido para hebraico de uma outra língua, residindo aí
a razão da sua obscuridade. E já não falo dos livros apócrifos 11 ,
cuja autoridade é de natureza muito diferente.
São essas as dificuldades que apresenta o método de in-
terpretação da Escritura com base nos dados da sua própria
história que for possível obter, dificuldades que eu tinha pro-
metido enunciar e que considero tão grandes que não tenho
dúvidas em afirmar que, em muitas passagens da Escritura,
ou ignoramos o seu verdadeiro sentido, ou nos pomos a adi-
vinhá-lo sem nenhuma certeza. E, todavia, convém sublinhar
uma vez mais, todas essas dificuldades podem apenas impe-
dir que compreendamos o pensamento dos profetas no que
se refere a coisas ininteligíveis e que não sejam senão imagi-
náveis, mas de forma alguma no que se refere a coisas que é
possível compreender pelo entendimento e das quais pode-
mos facilmente formar um conceito claro*. Porque as coisas

•Anotação VIII. Por coisas perceptíveis não entendo só as que se de-


monstram rigorosamente, mas também as que estamos habituados a aceitar
por força de uma certeza moral e a ouvir sem surpresa, ainda que não pos-
sam ser demonstradas. As proposições de Euclides podem ser percebidas
por qualquer pessoa, ainda antes de serem demonstradas. O mesmo se pas-
sa com as histórias, tanto as que se referem ao futuro como as que se refe-
rem ao passado, desde que não excedam a credibilidade humana, e bem as-
sim com as regras do direito, as instituições e os costumes, que considero
perceptíveis e claras, embora não possam demonstrar-se matematicamente.
Chamo, pelo contrário, imperceptíveis os sinais hieroglíficos e as histórias
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO 131

que pela sua natureza se percebem com facilidade nunca


poderão ser ditas de forma tão obscura que deixem de ser
percebidas, conforme diz aquele ditado: "a bom entendedor,
meia palavra hasta". Euclides, que só escreveu coisas extre-
mamente simples e altamente inteligíveis, pode facilmente ser
explicado a toda a gente e em qualquer língua. Nem é preci-
so, para apreendermos o seu pensamento e ficarmos seguros
do seu verdadeiro sentido, ter um conhecimento completo
da língua em que ele escreveu: basta um conhecimento vul-
gar e no nível quase de uma criança. É igualmente desneces-
sário conhecer a vida do autor, os seus estudos e hábitos, em
que língua, para quem, e quando escreveu, o destino que co-
nheceram os livros, as suas variantes ou, finalmente, por de-
liberação de quem foi reconhecido. E o que se diz de Eucli-
des diz-se de quantos escreveram sobre coisas que são por
natureza perceptíveis, donde resulta que podemos compreen-
der facilmente a Escritura e estar seguros do seu verdadeiro
significado, no que concerne a ensinamentos morais, a partir
dos dados históricos que é possível obter sobre a mesma Es-
critura. O ensinamento da verdadeira piedade exprime-se,
com efeito, por palavras as mais correntes, porquanto é ex-
tremamente comum, simples e fácil de entender. Ora, se a ver-
dadeira salvação e a beatitude consistem na verdadeira tran-
qüilidade de ânimo, e, se nós só descansamos de fato naqui-
lo que conhecemos com toda a clareza, é evidente que po-
demos sem dúvida atingir o conteúdo da Escritura no que
toca às coisas salutares e necessárias para a beatitude. Nessa
medida, também não temos que nos inquietar quanto ao res-
to, já que, não o podendo a maioria das vezes abraçar pela
razão e pelo intelecto, é mais um problema de curiosidade
que de utilidade. (112]
Com isso, creio ter apresentado o verdadeiro método de
interpretação da Escritura e explicado suficientemente a mi-

que parecem exceder os limites da credibilidade; entre estas, porém, há al-


gumas que podem ser estudadas pelo nosso método de forma que perce-
bamos a idéia do autor.
132 ESPINOSA

nha maneira de ver. Não tenho, aliás, dúvida de que já todos


viram que este método não exige nenhuma luz para além da
luz natural. Na verdade, a natureza e a virtude dessa luz con-
sistem principalmente em deduzir, a título de legítimas ila-
ções, as coisas obscuras das que são conhecidas ou se apre-
sentam como tal, que é tudo quanto requer o nosso método.
E, concordando embora que ele não é suficiente para investi-
gar com segurança tudo o que vem na Bíblia, tal não se fica,
porém, a dever a que seja em si mesmo limitado, mas sim ao
fato de o caminho que ele aconselha como verdadeiro e reto
jamais ter sido seguido nem trilhado pelos homens e se ter,
assim, tornado particularmente árduo e quase impraticável, à
medida que o tempo foi passando. Julgo que isso ficou clara-
mente provado, até pelas dificuldades que apontei.
Resta-nos agora examinar as opiniões daqueles que dis-
cordam de nós. Em primeiro lugar, a dos que sustentam que
a luz natural não tem capacidade para interpretar a Escritura
e que, para o fazer, é absolutamente necessária a luz sobre-
natural. Quanto ao que seja essa luz que está para além da na-
tural, remeto essa questão para eles. Pela minha parte, não
consigo senão pensar que pretendiam, em termos ainda mais
obscuros, confessar as dúvidas que também eles nutriam quan-
to ao verdadeiro sentido da Escritura num bom número de
passagens: se, de fato, repararmos nas suas explicações, ve-
remos que não têm nada de sobrenatural; muito pelo contrá-
rio, são apenas simples conjecturas. Se se quiser, comparem-
se com as explicações daqueles que confessam sinceramen-
te que não possuem outra luz além da natural e ver-se-á que
são perfeitamente idênticas, isto é, humanas, meditadas du-
rante muito tempo e só com muito trabalho encontradas.
Quando eles dizem, pois, que a luz natural é insuficiente, isso
é falso: primeiro, e conforme demonstramos, porque nenhu-
ma dificuldade em interpretar a Escritura provém da fraque-
za da luz natural, mas unicamente da preguiça, para não di-
zer da malícia dos homens que negligenciaram a .história da
Escritura enquanto a podiam ainda fazer; segundo, porque
essa luz sobrenatural, como todos, creio eu, concordarão, é
um dom divino concedido exclusivamente aos fiéis. Ora, os
TRATADO TEOLÓGICO-POIÍ11CO 133

profetas e os apóstolos costumavam pregar, não apenas aos


fiéis, mas sobretudo aos infiéis e aos ímpios, prova de que es-
tes estavam, portanto, aptos a entender o seu pensamento. Se
assim não fosse, os profetas e os apóstolos deveriam pregar [113]
às criancinhas e não a homens dotados de razão, da mesma
forma que seria inútil Moisés ter prescrito leis se elas só pu-
dessem ser entendidas pelos fiéis, já que estes não necessi-
tam de nenhuma lei. Por isso, os que exigem uma luz sobre-
natural para entender o pensamento dos profetas e dos após-
tolos parecem é estar carecidos da luz natural. E longe de
mim julgá-los possuidores de um dom divino sobrenatural
qualquer.
Maimônides foi de parecer completamente diferente. Se-
gundo ele, cada passagem da Escritura admite sentidos vá-
rios e até opostos, sendo impossível saber ao certo qual o
verdadeiro se não estivermos seguros de que essa passagem,
tal como a interpretamos, não contém nada que não esteja
de acordo com a razão, ou seja, que lhe repugne. Porque, se
notarmos que o seu sentido literal repugna à razão, ainda
quando ele pareça claro, devemos interpretá-la de outra for-
ma, consoante vem indicado, sem margem para dúvidas, no
capítulo XXV, parte II, do livro More Nebuchim. Diz Maimô-
nides: Sabei que o motivo por que evitamos dizer que o mun-
do existe desde toda a eternidade não são os textos que sur-
gem na Escritura sobre a criação do mundo. Na verdade,
nem os textos que ensinam que o mundo foi criado são em
maior número que aqueles que ensinam que Deus tem corpo,
nem os acessos à explicação dos textos que aparecem sobre
essa matéria da criação do mundo estão vedados ou impedi-
dos, uma vez que os poderíamos explicar, tal como fizemos
quando rejeitamos a corporeidade em Deus; é possível até
que essa explicação fosse muito mais fácil e cômoda e que
pudéssemos sustentar a eternidade do mundo com menos di-
ficuldade do que explicamos a Escritura de modo que rejeite
que Deus tenha um corpo. Há, porém, duas razões que mele-
vam a não o fazer e a não acreditar nisso (isto é, que o mun-
do seja eterno): primeiro, porque, se pode demonstrar clara-
mente que Deus não tem corpo, sendo, portanto, necessário
134 ESPINOSA

explicar todas as passagens cujo sentido literal contradiz essa


demonstração, visto elas terem necessariamente uma expli-
[1141 cação (diferente da literal). Pelo contrário, não há nenhuma
demonstração que prove que o mundo seja eterno; por isso,
não é necessário violentar as Escrituras e explicá-las em fun-
ção de uma opinião aparente, quando podemos, por alguma
razão que seja conveniente, preferir aquela que lhe é contrá-
ria. Segundo, porque acreditar que Deus é incorpóreo não
tem nada de contrário aos fundamentos da Lei, etc., ao pas-
so que acreditar na eternidade do mundo, como Aristóteles,
subverte os fundamentos da Lei.
Dessas palavras de Maimônides segue-se, evidentemen-
te, o que há pouco dissemos: se, de fato, se demonstrasse
pela razão que o mundo era eterno, ele não hesitaria em for-
çar a Escritura e explicá-la de modo que esta parecesse ensi-
nar o mesmo. Ficaria, assim, imediatamente seguro de que
ela, apesar de tudo quanto diz em contrário, pretendera en-
sinar a eternidade do mundo. Mas do que Maimônides não
poderia jamais estar seguro era do seu verdadeiro sentido,
por mais claro que este fosse, enquanto pudesse duvidar da
verdade do que ela diz ou enquanto essa verdade não lhe
surgisse como evidente. Porque, enquanto não se determina
a verdade de uma coisa, não sabemos se ela concorda com a
razão ou se a contradiz; logo, ignoramos também se o senti-
do literal é verdadeiro ou falso. Mas, se uma tal maneira de
ver fosse verdadeira, eu concordaria absolutamente que pre-
cisávamos, para interpretar a Escritura, de uma outra luz além
da natural. De fato, quase nada do que nela se encontra é
deduzível dos princípios conhecidos pela luz natural, confor-
me já demonstramos, pelo que, com base nessa luz, não po-
demos provar a verdade de quanto vem na Escritura, nem,
por conseguinte, qual o seu verdadeiro sentido e o seu pen-
samento. Para isso, seria necessária uma outra luz.
Depois, se essa opinião de Maimônides fosse verdadei-
ra, então o homem vulgar, que a maioria das vezes ignora as
demonstrações ou não tem vagar para elas, nada poderia ad-
mitir a respeito da Escritura a não ser pela autoridade e pelo
testemunho dos que filosofam, devendo, para tal, supor que
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 135

os filósofos são infalíveis na sua interpretação; seria, afinal,


uma nova autoridade eclesiástica e uma nova espécie de sa-
cerdócio ou de pontificado, que o vulgo estaria mais tentado
a ridicularizar que a venerar. E, embora o nosso método de
interpretação exija o conhecimento do hebraico, estudo a que
o homem comum não pode dedicar-se, nada de parecido se
nos poderá objetar, uma vez que o comum dos judeus e dos
gentios, a quem outrora pregaram e para quem escreveram
os profetas e os apóstolos, entendia a língua em que estes se [115]
exprimiam e através dela percebia o seu pensamento; o que
não percebia eram as razões das coisas que eles pregavam e
que, segundo a opinião de Maimônides, seriam condição ne-
cessária para se compreender o pensamento dos profetas. O
nosso método não exige, portanto, que o vulgo aceite obri-
gatoriamente o testemunho dos intérpretes. Aliás, o exemplo
que eu dou é o de um povo calejado na língua dos profetas
e dos apóstolos; Maimônides, em contrapartida, não apre-
senta nenhum povo que conheça as razões das coisas para,
através delas, apreender o pensamento dos profetas. E, no
que se refere ao comum das pessoas dos nossos dias, já de-
monstramos que tudo quanto é preciso para se salvarem, mes-
mo ignorando as suas razões, pode facilmente ser compreen-
dido em qualquer língua, de tal forma é simples e acessível:
é nessa compreensão, e não no testemunho dos intérpretes,
que o vulgo confia 12 • Quanto ao resto, homem comum e sá-
bios estão na mesma situação.
Mas voltemos à tese de Maimônides e tentemos exami-
ná-la com mais atenção. Em primeiro lugar, ele supõe que os
profetas estão de acordo entre si e a respeito de tudo, e que
foram todos grandes filósofos e grandes teólogos. Diz, com
efeito, que eles tiravam as conclusões a partir da verdade das
coisas e isso, como mostramos no capítulo II, é falso. Supõe,
em seguida, que não se pode determinar o sentido da Escri-
tura a partir da própria Escritura, uma vez que a verdade das
coisas não se determina pela própria Escritura, na medida em
que ela não demonstra nada, nem ensina as coisas de que
fala por definições e pelas suas causas primeiras; donde, se-
gundo Maimônides, nem mesmo o verdadeiro sentido da Es-
136 ESPINOSA

critura poderá ser determinado com base no seu conteúdo,


pelo que não deve deduzir-se dele. Também isso, no entan-
to, é falso, como resulta do presente capítulo, onde já demons-
tramos, tanto por argumentos como por exemplos, que o sen-
tido da Escritura é determinado através unicamente da Escri-
tura e só dela deve deduzir-se, mesmo quando fala de coisas
conhecidas pela luz natural. Supõe, finalmente, Maimônides
que é lícito explicar e forçar as palavras da Escritura de acor-
do com as nossas opiniões preconcebidas, e bem assim rejei-
tar e substituir por qualquer outro o sentido literal, ainda
quando este é manifesto e está bem explícito. Um tal abuso
da liberdade, além de ser diametralmente oposto ao que de-
monstramos neste e em outros capítulos, não haverá ninguém
que não o tenha por excessivo e temerário. Mas seja, conce-
damos-lhe essa grande liberdade. De que lhe serve? De nada,
seguramente. Porque tudo o que é indemonstrável, e está nes-
te caso a maior parte da Escritura, não pode ser investigado
[1161 através da razão, nem explicado ou interpretado seguindo a
regra de Maimônides. Em contrapartida, seguindo o nosso
método, podemos explicar muitas coisas desse gênero e ex-
pô-las com segurança, tal como já demonstramos por argu-
mentos e exemplos. No que se refere, porém, àquilo que é
por natureza compreensível, o seu sentido tira-se facilmente,
como também mostramos, só pelo contexto das frases. Por
isso, o método de Maimônides é de todo em todo inútil. Além
de que liquida completamente qualquer certeza sobre o sen-
tido da Escritura que o vulgo possa obter através de uma lei-
tura sincera ou que alcancemos através de um método dife-
rente. Em suma, rejeitamos tal opinião por prejudicial, inútil
e absurda.
No que toca à tradição dos fariseus, já dissemos anterior-
mente que se contradiz a si mesma; e, quanto à autoridade
dos pontífices romanos, ela precisaria de uma prova muito
mais conclusiva: é esta a única razão por que a refuto 13 . Por-
que, se eles a pudessem deduzir da Escritura com a mesma
certeza com que o faziam antigamente os pontífices dos judeus,
eu nem sequer me importaria com o fato de entre os roma-
nos pontífices ter havido hereges e ímpios. Também entre os
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍTJCO 137

pontífices hebreus houve hereges e ímpios que ocuparam o


pontificado por processos sinistros e que, no entanto, tinham
nas suas mãos, por imperativo da Escritura, o soberano po-
der de interpretar a Lei (ver Deuteronômio, cap. XVII, 11, 12,
e cap. XXXIII, 10; Malaquias, cap. II, 8). Mas no caso dos pon-
tífices romanos, como não apresentam nenhuma prova des-
se gênero, a sua autoridade revela-se particularmente suspei-
ta. E, para que ninguém fique pensando, levado pelo exem-
plo do pontífice dos hebreus, que a religião católica precisa
também de um pontífice, convém notar que as leis de Moi-
sés, por constituírem o direito público da Pátria, necessitavam
absolutamente, para se manter, de uma autoridade pública
qualquer. Se, efetivamente, cada um tivesse a liberdade de in-
terpretar à sua vontade as leis, nenhum Estado poderia so-
breviver, dissolvendo-se imediatamente e transformando-se
o direito público em direito privado. Mas o que se passa com
a Religião é muito diferente. Porque na medida em que ela
consiste não tanto em ações exteriores como na simplicidade
e na autenticidade de ânimo, não está submetida a nenhuma
lei nem a nenhuma autoridade pública. A simplicidade e a
autenticidade não se infundem, de fato, nos homens por im-
perativo legal ou por meio da autoridade pública, visto nin-
guém poder ser coagido, pela força ou pelas leis, a atingir a
beatitude. Para isso, requere-se a advertência fraterna e pie-
dosa, a educação bem conduzida e, acima de tudo, a livre de- [1171
cisão do próprio. Ora, se todos possuem o pleno direito de
pensar livremente, mesmo em matéria religiosa, não poden-
do sequer conceber-se alguém que renuncie a esse direito,
então todos são igualmente possuidores do pleno direito e da
plena autoridade de julgar em matéria religiosa e, conse-
qüentemente, de a explicarem e interpretarem para si pró-
prios. Com efeito, a única razão por que os magistrados têm
autoridade soberana para interpretar as leis e a última pala-
vra sobre assuntos de ordem pública é precisamente o tratar-
se de direito público. Pela mesma razão, cabe a cada um a
suprema autoridade de explicar a Religião e julgar em maté-
ria religiosa, uma vez que isso pertence ao direito individual.
Longe, portanto, de se poder deduzir da autoridade do pon-
138 ESPINOSA

tífice dos hebreus para interpretar as leis da Pátria a autorida-


de do pontífice romano para interpretar a religião, é, pelo
contrário, mais fácil concluir daí que essa autoridade perten-
ce inteiramente a cada indivíduo. E também por aqui se pode
ver que o nosso método de interpretação da Escritura é o me-
lhor. Se, de fato, cada um possui plena autoridade para inter-
pretar a Escritura, então, a norma para essa interpretação só
pode ser a luz natural comum a todos e não uma luz qual-
quer superior à natureza, ou uma autoridade externa qualquer,
além de que o método não deve ser tão difícil que só os filó-
sofos muito argutos o possam seguir; deve é ser um método
em consonância com a índole e a capacidade natural do co-
mum dos homens, conforme demonstramos ser o caso do
nosso. Vimos, com efeito, que as dificuldades com que pre-
sentemente ele se defronta não resultaram da sua natureza,
mas sim da negligência dos homens.
CAPÍTULO VIII

Onde se demonstra que o Pentateuco,


assim como os livros de Josué, dos
Juízes, de Rute, de Samuel e dos Reis são
apógrafos, e se averigua depois se esses
livros foram escritos por várias pessoas
ou por uma só e quem terá sido

No capítulo anterior, abordamos os fundamentos e os


princípios do conhecimento das Escrituras e demonstramos
que consistem unicamente na história rigorosa das mesmas
Escrituras 1 • Esta, porém, apesar de absolutamente necessária,
foi negligenciada pelos antigos ou, se acaso a escreveram ou
transmitiram, foi vítima das injúrias do tempo. Conseqüente-
mente, uma boa parte dos fundamentos e princípios desapa- [118]
receu. Mas ainda isso seria tolerável se os que vieram depois
se tivessem mantido adentro dos justos limites e transmitido
de boa fé aos seus sucessores o pouco que teriam recebido ou
encontrado, sem acrescentarem inovações extraídas da sua
própria cabeça. Não sendo, todavia, isso o que aconteceu, a
história da Escritura ficou não só incompleta como também
incorreta, o que significa que os fundamentos do seu conhe-
cimento, além de ser insuficientes para que a partir deles se
possa fazer uma reconstituição integral, estão também erra-
dos. É meu intuito corrigi-los e denunciar os habituais pre-
conceitos da teologia. Receio, no entanto, ter lançado mão a
esse empreendimento já um pouco tarde. As coisas estão num
ponto tal que os homens não admitem mais ser corrigidos a
140 ESPINOSA

esse respeito, defendendo obstinadamente aquilo a que se


agarraram como se fosse a religião. Já não há, aparentemen-
te, lugar para a razão, a não ser aos olhos de um número mui-
to restrito se comparado com o dos outros, de tal maneira os
preconceitos invadiram a mente dos homens. Apesar disso,
vou tentar. E não desistirei, porquanto não há razão para de-
sesperar por completo.
Para irmos por ordem, começarei pelos preconceitos re-
lativos aos autores dos Livros Sagrados e, antes de mais, ao au-
tor do Pentateuco, que quase toda a gente acredita ter sido
Moisés. Os Fariseus, inclusive, defendiam isso com tanto em-
penho que tinham por herege quem sustentasse um ponto
de vista diferente. Essa é a razão por que Aben Esdra', ho-
mem de mentalidade mais aberta e de uma não medíocre
erudição, que foi o primeiro, pelo menos daqueles que eu li,
que se apercebeu desse preconceito, não ousou explicar cla-
ramente a sua idéia, indicando-a apenas em termos assaz
obscuros, os quais não hesitarei em esclarecer aqui a fim de
expor a questão com toda evidência. Eis as palavras de Aben
Esdra, no seu comentário ao Deuteronômio: Para lá do Jor-
dão, etc.; de modo que compreendes o mistério dos doze( ... ),
e Moisés escreveu também a lei( ... ), e o cananeu estava então
na terra (. ..), será revelado no monte de Deus (. ..), eis então
o seu leito, um leito de ferro( ... ), então conhecerás a verdade.
Por essas escassas palavras, indica e ao mesmo tempo prova
que não foi Moisés quem escreveu o Pentateuco, mas alguém
que viveu muito depois, e que o livro que de fato Moisés es-
creveu era diferente.
Para demonstrá-lo, observa, primeiro, que o próprio pre-
[119] fácio do Deuteronômio não pode ter sido escrito por Moisés,
o qual não atravessou o Jordão; segundo, que todo o livro de
Moisés ficou escrito de forma extremamente clara por cima
de um único altar (ver Deuteronômio, cap. XXVII, ejosué, cap.
VIII, 37), que pela descrição dos rabinos era feito de doze pe-
dras apenas; donde se conclui que o livro de Moisés era mui-
to menos extenso do que o Pentateuco. Foi isso, julgo, o que
o autor quis significar por mistério dos doze, a menos que por-
ventura entendesse aquelas doze maldições que se encontram
no supracitado capítulo do Deuteronômio e pensasse que não
TRATADO 7EOLÓGICO-POLÍ17CO 141

estavam descritas no livro da Lei, devido ao fato de Moisés,


além da descrição da lei, ordenar ainda aos Levitas que reci-
tassem essas maldições para obrigar o povo, sob juramento,
a observar a mesma lei. Ou então se referia ao último capítu-
lo do Deuteronômio, que narra a morte de Moisés e que se
compõe de doze versículos. Mas é inútil examinamos aqui
pormenorizadamente estas e outras conjecturas que se fazem
a tal propósito.
Observa depois, em terceiro lugar, que no Deuteronômio,
cap. XXXI, 9, se diz: e Moisés escreveu a lei, palavras que não
podem ser de Moisés, mas sim de um outro autor que des-
creve os feitos e os escritos deles. Em quarto lugar, faz notar
que, no Gênesis, cap. XII, 6, onde se conta que Abraão per-
corria a terra dos cananeus, o autor acrescenta que o cana-
neu estava então naquela terra, excluindo assim, nitidamente,
o tempo em que escrevia. Por conseguinte, tais palavras de-
vem ter sido escritas depois da morte de Moisés e numa altura
em que os cananeus tinham sido expulsos e já não ocupa-
vam essas regiões. É a leitura que faz Aben Esdra, ao comen-
tar a passagem e o cananeu estava então naquela terra: pa-
rece que Canaã (neto de Noé) ocupou a terra que anterior-
mente estava na posse de outro; se assim não for, há aqui um
mistério, e, quem o compreender, cale-se. Quer dizer, se Ca-
naã invadiu esse território, o sentido será o Cananeu já esta-
va então naquela terra, coisa que não acontecia antes, quan-
do ela era habitada por uma outra gente. Se, pelo contrário,
Canaã foi o primeiro a cultivá-la, como se conclui do capítu-
lo X do Gênesis, então o texto pretende distanciar os aconte-
cimentos do tempo em que são descritos, pelo que o seu nar-
rador não é Moisés, no tempo do qual os cananeus possuíam
ainda aquele território: e é esse o mistério que Aben Esdra re-
comenda que deve ser silenciado.
Em quinto lugar, observa que, no Gênesis, cap. XXII, 14, o [1201
monte Morya é denominado* monte de Deus, nome que lhe

• Anotação IX. Pelo historiador, e não por Abraão. Com efeito, aquele
diz que o lugar que hoje se chama será revelado no monte de Deus era de-
signado por Abraão Deus providenciará.
142 ESPINOSA

deram só depois de ter sido escolhido para aí se construir o


templo; ora, tal escolha não fora ainda feita no tempo de Moi-
sés. Este, com efeito, não indica nenhum local escolhido por
Deus e, pelo contrário, anuncia até que Deus escolherá, um
dia, um lugar a que se dará o seu nome.
Em sexto e último lugar, anota que, no cap. III do Deu-
teronômio, se intercalam na descrição relativa a Og, rei de
Basan, as seguintes palavras: apenas Og, rei de Basan, sobre-
viveu de toda a estirpe• dos gigantes, e eis que o seu leito era
um leito de ferro, certamente aquele (leito) de nove côvados
de comprimento que está em Rabat, cidade dos filhos de Amon,
etc. Tal parêntesis indica com toda a clareza que quem es-
creveu estes livros viveu muito depois de Moisés. A sua ma-
neira de falar é a de quem conta coisas muito antigas e, em
abono do que escreve, menciona relíquias desse passado;
porque é evidente que esse leito de ferro só foi encontrado
no tempo de Davi, que conquistou aquela cidade, conforme
se narra em Samuel, livro II, cap. XII, 30. Mas não é só isso,
porque, um pouco mais à frente, o historiador acrescenta às
palavras de Moisés: jair, filho de Manassés, tomou conta de
toda a jurisdição de Argob, até os confins de Gessuri e de Ma-
cati, e deu a esses lugares o seu nome, de modo que os povoa-
dos de Basan se chamam ainda hoje povoados de jair. Isso,
repito, acrescenta o historiador para explicar as palavras de
Moisés que acabara de transcrever: e o resto de Galaad e todo
o Basan, reino de Og, dei-o à meia-tribo de Manassés, toda a
jurisdição de Argob e todo o Basan, que se chama terra dos
Gigantes. Os hebreus contemporâneos desse autor sabiam,
disso não restam dúvidas, o que eram as aldeias de Jair, da tri-
bo de Judá, mas não as conheciam pelo nome de jurisdição
de Argob nem de terra dos Gigantes; por isso ele teve de ex-
plicar quais eram esses lugares que antigamente assim se cha-
mavam e, simultaneamente, dizer a razão por que seus habi-
tantes eram, nesse tempo, conhecidos pelo nome de Jair, em-

• N. B. Em hebraico, rephaím significa condenados e parece ser tam-


bém, segundo os Paralípômenos, 1, cap. XX, um nome próprio. Julgo, por isso,
que neste caso se refere a uma família.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍT1CO 143

bora sendo este da tribo de Judá e não de Manassés (ver Pa-


ralipômenos, I, cap. II, 21 e 22). Fica assim explicada a opi-
nião de Aban Esdra, bem como as passagens do Pentateuco
que ele cita para confirmá-la. Porém, Aben Esdra não referiu
tudo, nem sequer o principal, pois há outras coisas, e ainda
de maior importância, a notar a respeito desses livros. Assim:
I - Quem os escreveu, não só fala de Moisés na terceira [121]
pessoa, como, além disso, lhe faz várias referências do gêne-
ro Deus falou com Moisés, Deus falava com Moisés cara a
cara, Moisés era o mais humilde de todos os homens (Núme-
ros, cap. XII, 3), Moisés enfureceu-se com os chefes do exérci-
to (Números, cap. XXXI, 14), Moisés, homem divino (Deutero-
nômio, cap. XXXIII, 1), Moisés, servo de Deus, morreu, nun-
ca surgiu em Israel profeta como Moisés, etc. Pelo contrário,
no Deuteronômio, onde se transcreve a lei que Moisés escre-
vera e explicara ao povo, o mesmo Moisés fala e narra os seus
feitos na primeira pessoa, dizendo: Deus falou-me (Deutero-
nômio, cap. II, 1, 17, etc.), pedi a Deus, etc. Só no fim do li-
vro, depois de citar as palavras de Moisés, é que o historia-
dor retoma a narração na terceira pessoa, dizendo como ele
apresentou por escrito essa lei (que tinha explicado) ao povo,
como o advertiu uma última vez e como, finalmente, termi-
nou os seus dias. Tudo isso, a maneira de falar, os testemu-
nhos e o próprio contexto de toda a narração, chegam para
nos persuadir inteiramente de que esses livros não foram es-
critos por Moisés, mas sim por um outro.
II - Deve-se também notar que nessa narrativa não se
conta apenas como Moisés faleceu e foi enterrado, e o luto
de trinta dias que os hebreus guardaram, como, além disso,
se afirma que, feita a comparação com todos os profetas que
viveram depois, ele a todos excedeu. Nunca existiu - diz o
narrador - em Israel um profeta como Moisés, que conheceu
Deus cara a cara. Tal afirmação não pode, evidentemente,
ser do próprio Moisés, nem de alguém que tenha vivido logo
a seguir a ele, mas sim de alguém que viveu muitos séculos
depois, tanto mais que o historiador fala no pretérito: nunca
existiu um profeta, etc. E, a respeito da sepultura, diz que nin-
guém mais, até hoje, soube dela.
144 ESPINOSA

III - Por outro lado, certos locais não estão indicados pe-
los nomes que tinham no tempo de Moisés mas por outros que
só mais tarde lhes foram dados. Diz-se, por exemplo, que
Abraão perseguiu os inimigos até Dan (Gênesis, XIV, 14) no-
me que só foi dado a essa cidade muito depois da morte de
Josué (ver juízes, cap. XVIII, 29).
IV - Por vezes, as narrativas estendem-se para lá do tem-
po em que viveu Moisés. No Êxodo, cap. XVI, 34, conta-se que
os filhos de Israel comeram maná durante quarenta anos, até
[1221 que chegaram a uma terra habitada, nos confins de Canaã, ou
seja, até aquele momento de que fala o livro de Josué, cap.
V, 10. No Gênesis, cap. XXXVI, 31, afirma-se também: são es-
tes os reis que reinaram em Edom antes que um rei reinasse
sobre os filhos de Israel. Aqui, o historiador fala certamente
dos reis que tiveram os idumeus antes de Davi os submeter*
e instalar guarnições na própria Iduméia (ver Samuel, II, cap.
VIII, 14).
Por tudo isso, é, pois, meridianamente claro que o Pen-
tateuco não foi escrito por Moisés e sim por alguém que vi-
veu muitos séculos depois dele 3 • Mas, se se quiser, atente-se
ainda nos livros que Moisés escreveu e que são citados no
Pentateuco, e ver-se-á, até por aí, que eles são diferentes da-
queles que constituem o Pentateuco. Em primeiro lugar,
consta do Êxudo, cap. XVII, 14, que Moisés descreveu por or-
dem de Deus a guerra contra Amalec; no mesmo capítulo não
consta, porém, em que livro o fez. Ora, nos Números, cap.
XXI, 14, cita-se um certo livro, dito das guerras de Deus, no

• Anotação X. Desde esse tempo até o reinado de Jorão, altura em que


se tornaram independentes (Reis, II, cap. VIII, 20), idumeus não tiveram reis,
mas em seu lugar tinham governadores designados pelos judeus (ver Reis 1,
cap. XXII, 48); por isso, o governador da Iduméia era designado por rei
(Reis, II, cap. III, 9). Terá, no entanto, o último deles começado a reinar antes
de Saul ter se tornado rei, ou a Escritura, neste capítulo do Génesis, quer
apenas apresentar os nomes dos reis que morreram sem conhecer a derro-
ta? Não se sabe. Além disso, é pura ficção querer incluir na lista dos reis dos
hebreus a Moisés, que instituiu, por inspiração divina, um Estado absoluta-
mente distinto da monarquia.
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ17CO 145

qual vinha, sem dúvida, a descrição dessa guerra contra Ama-


lec, bem como de todas as expedições que o autor do Penta-
teuco, nos Números, cap. XXXIII, 2, declara terem sido des-
critas por Moisés. Fala-se ainda, no Êxodo, cap. XXIV, 4, 7, de
um outro livro chamado o livro do pacto•, que Moisés leu aos
israelitas quando concluíram o primeiro pacto com Deus.
Mas esse livro, ou essa epístola, continha muito pouca coisa,
nada mais que as leis ou mandamentos de Deus que se des-
crevem do versículo 22 do capítulo XX até o capítulo XXIV
do Êxodo, como toda a gente reconhecerá se ler o capítulo
citado com um mínimo de lucidez e de imparcialidade. Aí se
conta, efetivamente, que Moisés, assim que conheceu a opi-
nião do povo sobre o pacto a estabelecer com Deus, escre-
veu imediatamente as palavras e os mandamentos divinos e,
de madrugada, terminadas as cerimônias, leu perante toda a
assembléia do povo as condições do pacto; feita a leitura e,
com certeza, após toda a multidão ter compreendido essas
condições, o povo exprimiu o seu inteiro acordo. Donde, já
pelo pouco tempo que levou a ser escrito, já pelo teor do
pacto, esse livro não deveria conter senão aquele reduzido
número de coisas que acabei de mencionar.
Consta, enfim, que Moisés, no quadragésimo ano após a
saída do Egito, explicou todas as leis que havia promulgado
(Deuteronômio, cap. I, 5) e de novo obrigou o povo a sub-
meter-se-lhes (Deuteronômio, cap. XXIX, 14) e escreveu, en-
fim, um livro onde vinham explicadas essas leis e esse novo4 [123]
pacto (Deuteronômio, cap. XXXI, 9). O livro chamou-se livro
da lei de Deus e, mais tarde, Josué acrescentou-lhe a descri-
ção do pacto pelo qual, no seu tempo, o povo se comprome-
teu uma vez mais e que foi o terceiro que firmaram com
Deus (Josué, cap. XXIV, 25 e 26). Todavia, como não possuí-
mos nenhum livro que contenha este pacto de Moisés junta-
mente com o de Josué, temos forçosamente de admitir que
esse livro se perdeu, a menos que se queira endoidecer com
o parafrasta caldeu Jonathan5 e distorcer livremente as pala-

• Sepher, em hebraico, significa, muitas vezes, epístola ou carta.


146 ESPJNOSA

vras da Escritura. Este, com efeito, ante a mesma dificuldade,


preferiu corromper a Escritura a confessar a sua ignorância,
traduzindo em caldaico a frase do livro de Josué, cap. XXIV,
26, e Josué escreveu essas palavras no livro da Lei de Deus, do
seguinte modo: e Josué escreveu essas palavras e guardou-as
com o Livro da Lei de Deus. O que é que se há de fazer com
quem não vê senão o que lhe apraz? Que outra coisa signifi-
cará isso, pergunto, senão a negação da própria Escritura e a
invenção de uma nova, fruto da sua própria cabeça? De nos-
sa parte, concluímos que esse livro da lei de Deus que Moi-
sés escreveu não era o Pentateuco mas um outro completa-
mente diferente que o autor do Pentateuco inseriu a dado
passo na sua obra, como se deduz, quer do que acabamos
de dizer, quer daquilo que segue. De fato, quando, na citada
passagem do Deuteronômio, se refere que Moisés escreveu o
livro da lei, o historiador acrescenta que este o entregou aos
sacerdotes e que, além disso, lhes ordenou que o lessem a
todo o povo em determinados momentos, o que mostra que
esse livro era muito menor que o Pentateuco, pois podia ser
integralmente lido numa assembléia e de forma que todos o
compreendessem. Por outro lado, não se deve perder de vis-
ta que, de todos os livros escritos por Moisés, só este do se-
gundo pacto e o Cântico (escrito mais tarde, para que todo o
povo o aprendesse) é que ele mandou guardar e conservar
religiosamente. Porque o primeiro pacto obrigava apenas os
que então viviam, ao passo que o segundo comprometia tam-
bém a posteridade (ver Deuteronômio, cap. XXIX, 14 e 15),
razão por que Moisés ordenou que o livro deste segundo
pacto fosse religiosamente conservado pelos séculos futuros,
bem como o Cântico, que se refere essencialmente aos sécu-
[1241 los vindouros. Ora, como não consta que Moisés tenha escri-
to nem mandado conservar religiosamente para a posterida-
de senão o livrinho da lei e o Cântico, e dado que há várias
passagens no Pentateuco que não podem ter sido escritas
por Moisés, ninguém poderá afirmar com um mínimo de fun-
damento que Moisés é o autor do Pentateuco. Pelo contrário,
uma afirmação dessas repugnaria à razão.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 147

Haverá talvez quem pergunte se Moisés não teria, além


desses dois trechos, escrito também as leis aquando da pri-
meira vez que lhe foram reveladas, isto é, se ao longo de
quarenta anos ele não escreveu nenhuma das leis que pro-
mulgava, para além daquele pequeno número que eu disse
estar contido no livro do primeiro pacto. A isso responderei
que, admitindo embora parecer consentâneo com a razão
que Moisés escrevesse as leis no momento e no local em que
fez a sua comunicação, nego todavia que só por esse motivo
seja lícito afirmá-lo. Na verdade, já mostramos lá atrás que
em semelhantes casos só podemos afirmar o que consta da
própria Escritura ou o que, a título de legítima conseqüência,
se deduz apenas dos seus fundamentos e não do que parece
consentâneo com a razão. Até porque a razão não nos obri-
ga a tanto. É muito possível, com efeito, que o Senado trans-
mitisse ao povo por escrito os éditos de Moisés, os quais fo-
ram mais tarde coligidos pelo historiador e inseridos por or-
dem na biografia de Moisés. Isso no que diz respeito aos cin-
co livros de Moisés. É agora altura de examinarmos tambun
os outros.
Quanto ao livro de Josué, prova-se por razões semelhan-
tes que ele não é autógrafo. É, com efeito, outra pessoa que,
falando de Josué, diz que a sua fama se estendeu por toda a
terra (ver cap. VI, 27), que observou tudo quanto Moisés ha-
via prescrito (ver o último versículo do capítulo VIII e o cap.
XI, 15), que ao chegar a velho convocou toda a gente para
uma assembléia e terminou, enfim, os seus dias. Além disso,
são igualmente narrados certos fatos que ocorreram já depois
da sua morte. Por exemplo, que após ele ter morrido os israe-
litas prestaram culto a Deus enquanto viveram os velhos que
o tinham conhecido; e (capítulo XVI, 10) que eles (Efraim e
Manassés) não expulsaram o cananeu que habitava em Ga-
zer, e (acrescenta) o cananeu habitou entre os de Efraim até
aos dias de hoje, pagando tributo, exatamente o mesmo que
se narra no livro dos juízes, cap. I, além de que a expressão
até aos dias de hoje mostra bem que o autor fala de uma coi-
sa antiga. Muito parecido com esse texto é o do capítulo XV,
último versículo, sobre os filhos de Judá, e a história de Ca-
148 ESPJNOSA

leb, a partir do versículo 13 do mesmo capítulo. Também o


caso que é relatado no capítulo XXII, versículo 10 e seguin-
[1251 tes, das duas tribos e meia que edificaram um altar do outro
lado do Jordão, parece ter ocorrido já depois da morte de Jo-
sué, porquanto em toda essa história não se faz nenhuma
menção a Josué: é o povo sozinho que delibera na questão
da guerra, que envia emissários, que espera a sua resposta e
que, finalmente, aprova. Por último, do capítulo X, 14, conclui-
se claramente que este livro foi escrito muitos séculos depois
de Josué, na medida em que nele se garante que nunca hou-
ve outro dia como aquele, nem antes nem depois, em que Deus
obedecesse(assim) a alguém, etc. Se, portanto, Josué escreveu
alguma vez um livro, foi com certeza o que é citado nesta
mesma narrativa, no capítulo X, 13.
Em relação ao livro dos juízes, acho que nenhuma pes-
soa que esteja boa da cabeça se convence de que ele foi es-
crito pelos próprios juízes; com efeito, até o epílogo de toda
a história que aparece no capítulo II mostra, sem margem
para dúvidas, que todo ele foi escrito por um único historia-
dor. Além disso, como o seu autor frisa repetidamente que
naquele tempo não havia rei em Israel, está fora de questão
que o livro foi escrito já depois de os reis terem passado a ocu-
par o poder.
Quanto aos livros de Samuel, também não há razão para
neles nos demorarmos, já que a história decorre muito depois
de ele ter vivido. Quero, contudo, fazer apenas notar que este
livro também foi escrito muitos séculos depois de Samuel.
Na verdade, o historiador, no livro I, capítulo IX, 9, faz entre
parêntesis esta advertência: antigamente, em Israel, quando
alguém ia consultar Deus, dizia "vamos ao vidente'', pois se
chamava então vidente àquilo que hoje chamamos profeta.
Finalmente, os livros dos Reis, como deles mesmos cons-
ta, são tirados dos livros dos feitos de Salomão (ver Reis, I,
cap. XI, 41), das crônicas dos reis de Judá (ver cap. XIV, 19,
29 do mesmo livro) e das crônicas dos reis de Israel. Em con-
clusão, todos os livros que recenseamos até aqui são apógra-
fos e aquilo que neles vem está descrito como sendo fatos
antigos.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 149

Se repararmos agora na ligação e no argumento de todos


esses livros, compreenderemos facilmente que eles foram es-
critos por um só e mesmo historiador, o qual quis escrever a
história antiga dos judeus desde a sua origem mais remota
até a primeira destruição da Cidade. De fato, esses livros es-
tão de tal maneira interligados que só por aí já se pode ver
que não contêm senão uma única narração feita por um úni-
co historiador. Mal ele acaba de contar a vida de Moisés,
passa logo à história de Josué: e aconteceu, após a morte de
Moisés, seroo de Deus, que Deus disse a]osué, etc. E, uma vez
terminada a narração da morte de Josué, começa a história [126]
dos juízes, fazendo idêntica transição e a mesma ligação: e
aconteceu, após a morte de Josué, que os filhos de Israel pedi-
ram a Deus, etc. Ao livro dos juízes está ligado, como em
apêndice, o de Rute, através das seguintes palavras: e aconte-
ceu naqueles dias, quando os juízes governavam, haverfome
naquela terra. Ao livro de Rute liga-se, também da mesma
maneira, o livro Ide Samuel e, terminado este, o autor passa
ao segundo, uma vez mais através da fórmula habitual. De-
pois, quando ainda não acabou a história de Davi, liga ao II
livro de Samuel o I dos Reis, recomeçando a narrar a história
de Davi, até que, finalmente, faz a passagem deste I livro para
o II dos Reis, sempre da mesma maneira.
O contexto e a ordem dos relatos indicam igualmente
tratar-se de um só historiador, o qual se impôs a si próprio
um plano bem determinado. Começa, efetivamente, por des-
crever a origem da nação hebraica; a seguir, expõe por or-
dem em que ocasião e em que circunstâncias Moisés pro-
mulgou as leis e fez aos hebreus muitas profecias; depois, con-
ta como invadiram a terra prometida, de acordo com as pro-
fecias de Moisés (ver Deuteronômio, cap. VII), como, uma
vez estarem na posse dela, abandonaram as leis (Deuteronô-
mio, cap. XXXI, 16) e bem assim os muitos males que daí ad-
vieram (idem, vers. 17); como, em seguida, quiseram eleger
reis (Deuteronômio, cap. XVII, 14), a quem as coisas corre-
ram de maneira próspera ou infeliz conforme eles cumpriram
ou não as leis (Deuteronômio, cap. XXVIII, 36 e último), e as-
sim até a narração final da destruição do Estado, consoante
150 ESPINOSA

Moisés havia predito. Quanto ao resto, tudo o que não servia


para confirmar a Lei é totalmente silenciado ou então reme-
te-se o leitor a outros historiadores. Todos esses livros visam,
portanto, um único e mesmo objetivo, que é ensinar os decre-
tos e a doutrina de Moisés e demonstrá-la através dos fatos.
Considerando, pois, essas três características - unidade
do argumento de todos esses livros, a sua interligação e o
fato de serem apógrafos e escritos muitos séculos depois das
coisas relatadas - conclui-se, como já dissemos, que todos
eles foram escritos por um só historiador. Quem foi ele, não
o posso dizer com absoluta certeza; suspeito, no entanto,
que tenha sido Esdras, e há sérias razões para essa minha con-
jectura. Com efeito, uma vez que o historiador (que já sabe-
mos ter sido só um) prolonga a narrativa até a libertação de
Joaquim e acrescenta, além disso, que toda a sua vida se sen-
tou à mesa do rei (ou seja, à de Joaquim ou à de Nabucodo-
nosor, pois o sentido é totalmente ambíguo), não pode ter
[1271 sido alguém anterior a Esdras. Por outro lado, a Escritura não
menciona ninguém que se tenha evidenciado nessa altura a
não ser Esdras (ver Esdras, cap. VII, 10), o qual dedicava to-
dos os seus esforços ao estudo e comentário da lei de Deus
e era um escritor experimentado na legislação mosaica (idem,
6). Por essa razão, além de Esdras, não vemos ninguém que
se possa supor ter escrito estes livros.
Em segundo lugar, verifica-se por esse testemunho so-
bre Esdras que ele se dedicava não só a estudar a lei de
Deus como também a comentá-la, e em Neemias, cap. VIII,
9, diz-se ainda que leram o livro da lei de Deus explicada e
aplicaram o seu entendimento e compreenderam a Escritura.
Como o livro do Deuteronômio não contém apenas a lei de
Moisés ou a maior parte dela, mas acrescenta, além disso,
muitos outros dados para uma mais cabal explicação, con-
cluo daí que foi esse livro da lei de Deus, escrito, comentado
e explicado por Esdras, que leram aqueles de que fala Nee-
mias. Já apresentamos, aliás, dois exemplos para provar que
no Deuteronômio se inserem entre parêntesis muitas explica-
ções, quando analisamos a opinião de Aben Esdra. E há ou-
tros igualmente dignos de menção, tais como este do capítu-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 151

lo II, 12: e em Sehir habitaram primeiro os Horreus, mas os.fi-


lhos de Esaú expulsaram-nos e fizeram-nos desaparecer da
sua vista e ocuparam o seu lugar, como fez Israel na terra da
sua herança, que Deus lhe deu. Isso, para explicar os versí-
culos 3 e 4 do mesmo capítulo, ou seja, para dizer que, quan-
do os filhos de Esaú ocuparam o monte de Sehir que lhes
coubera em herança, ele não estava desabitado; pelo contrá-
rio, tiveram de o invadir e, à semelhança do que Israel fez
aos Cananeus após a morte de Moisés, desbaratar e expulsar
de lá os hebreus. Do mesmo modo, os versículos 6, 7, 8 e 9
do capítulo X são igualmente um parêntesis acrescentado às
palavras de Moisés; não há, com efeito, ninguém que não
veja que o versículo 8, que começa por naquele tempo Deus
separou a tribo de Levi, se refere necessariamente ao versícu-
lo 5 e não à morte de Aarão, que Esdras parece referir aqui
unicamente porque Moisés, ao narrar a adoração do bezerro
pelo povo, tinha dito (ver cap. IX, 20) que rezara a Deus por
Aarão. Esdras, aliás, explica a seguir que Deus, no tempo a
que Moisés se refere, elegeu para si a tribo de Levi, mostran-
do as razões dessa eleição e de os Levitas terem sido excluí-
dos da herança; feito isso, retoma o fio da narrativa com pa-
lavras de Moisés.
Acresce ainda o prefácio do livro e todas as passagens [128]
que falam de Moisés na terceira pessoa, além de muitas ou-
tras que não podemos analisar e que o autor acrescenta ou
traduz por outras palavras, para que os homens do seu tem-
po mais facilmente compreendessem. Se nós dispuséssemos
do próprio livro de Moisés, não tenho dúvidas de que acha-
ríamos uma grande discrepância, tanto nas palavras como na
ordem e na justificação dos preceitos. Na verdade, quando
comparo o Decálogo do Deuteronômio com o Decálogo do
Êxodo (onde a sua história está expressamente relatada), vejo
que aquele difere deste em tudo: o quarto mandamento, por
exemplo, não só está formulado de outra maneira, como, além
disso, vem apresentado muito mais prolixamente6. E quanto
à justificação que neste livro é dada, não podia ser mais dife-
rente da que dá o Êxodo. Até a ordem por que é aqui expli-
citado o décimo mandamento não coincide com a do Êxodo.
152 ESPINOSA

Penso, pois, que tais modificações, nestas e noutras pas-


sagens, foram feitas, como já disse, por Esdras, uma vez que
este explicou a lei de Deus aos seus contemporâneos e, por
conseguinte, é o Deuteronômio o livro da lei de Deus apre-
sentada e explicada por ele. Julgo, além disso, que foi esse o
primeiro de todos quantos eu disse que ele tinha escrito, su-
posição que se baseia no fato de o livro conter as leis da Pá-
tria, das quais um povo precisa mais que tudo, e não estar li-
gado àquele que o precede por uma conjunção, como acon-
tece com todos os demais, começando, em vez disso, por
uma proposição não-subordinada: Estas são as palavras de
Moisés, etc. Só depois de ter acabado este livro e ensinado as
leis ao povo, então é que, penso eu, Esdras se pôs a escrever
toda a história dos hebreus, isto é, desde a criação do mun-
do até a definitiva destruição da Cidade, inserindo depois no
lugar próprio o livro do Deuteronômio. Possivelmente, de-
signou os seus cinco primeiros livros pelo nome de Moisés
por ser sobretudo a biografia deste o que neles se contém,
tomando assim o nome da personagem principal. Pela mesma
razão, chamou ao sexto de Josué, ao sétimo dos juízes, ao oita-
vo de Rute, ao nono e talvez também ao décimo de Samuel,
ao décimo primeiro e ao décimo segundo dos Reis. Se foi real-
mente Esdras quem deu a última demão nessa obra e a termi-
nou conforme desejavam isso veremos no capítulo seguinte.
CAPÍTULO IX [129]

Onde se analisam outras questões


a respeito ainda dos mesmos livros,
em particular se foi Esdras quem os
concluiu e se as notas à margem que
se encontram nos códices hebreus
constituem variantes

As passagens que citamos para comprovar a nossa opi-


nião sobre esse assunto são suficientes para se perceber quan-
to a discussão anterior sobre a autenticidade do autor desses
livros é importante para os compreender exatamente e como
sem essa discussão eles pareceriam obscuros. Todavia, além
da questão do autor, há outras nos referidos livros que é pre-
ciso ter em conta e que a habitual superstição do vulgo ini-
be. A principal é que Esdras (tomá-lo-ei por autor dos livros
a que aludi enquanto ninguém me mostrar outro mais prová-
vel) não foi o responsável pela última revisão das narrativas
que vêm nesses livros e, por outro lado, não fez mais do que
coligir histórias de diversos autores, quando não se limitou
simplesmente a transcrevê-las, deixando-as tal qual ã poste-
ridade, sem as examinar nem ordenar. Que razões o terão
impedido de terminar esse seu trabalho, é coisa que não pos-
so sequer conjecturar (a menos que tenha sido a morte pre-
matura). O fato é que, apesar de não dispormos dos escritos
dos antigos historiadores dos hebreus, os escassos fragmen-
tos que possuímos são suficientes para demonstrá-lo. A his-
tória de Ezequias, a partir do versículo 17, capítulo XVIII, do
154 ESPINOSA

livro II dos Reis, é decalcada da descrição de Isaías, a qual


foi, por sua vez, transcrita nas Crônicas dos Reis de Judá. De
fato, toda essa história se pode ler no livro de Isaías, que es-
tava incluído nas Crônicas dos Reis dejudá (ver Paralipôme-
nos, II, cap. XXXII, penúltimo versículo), e contada nos mes-
mos termos em que aparece no livro dos Reis, salvo raras ex-
ceções*, das quais, aliás, a única coisa que se pode concluir
é que existiam diversas versões do relato de Isaías. A menos
que alguém prefira inventar mistérios até a propósito disso ...
Depois, o último capítulo do livro dos Reis vem no último
capítulo de jeremias, 39 e 40. E o capítulo VII do livro II de
Samuel está reproduzido no livro I dos Paralipômenos, cap.
XVII, muito embora nesse caso as palavras, em certas passa-
gens, estejam de tal forma modificadas** que se reconhece
com facilidade que os dois capítulos foram tirados de dife-
[1301 rentes exemplares da história de Natan. Finalmente, a genea-
logia dos reis da Iduméia que vem no Génesis, cap. XXVI, a
partir do versículo 31, aparece nos mesmos termos no livro I
dos Paralipômenos, cap. I, apesar de se saber que o autor
desse livro foi buscar a matéria das suas narrativas a outros
historiadores e não aos doze livros por nós atribuídos a Es-

• Anotação XI. Por exemplo, no livro II dos Reis, cap. XVIII, 20, lê-se na
segunda pessoa: tu falaste, mas apenas com a boca. No entanto, em Isaías,
cap. XXXVI, 5: eu disse, e são palavras exatas, que para a guerra era preciso
prudência e coragem. Depois, no versículo 22, lê-se: mas direis talvez, no
plural, portanto, quando na versão de Isaías está no singular. Além disso, no
texto de Isaías não se lêem estas palavras do versículo 32 do citado capítu-
lo: numa região de oliveiras que dão azeite e de mel vivereis e não morrereis.
[É por essa razão que eu não tenho dúvidas de que são supostas palavras.]
E, como esta, encontram-se muitas variantes entre as quais ninguém saberá
alguma vez por qual se deve optar.
•• Anotação XII. Por exemplo, em Samuel, II, cap. VII, 6, lê-se: andei
incessantemente por aqui e por ali com uma tenda e um tabernáculo; nos
Paralipômenos, i, cap. XVII, 5: e ia de tenda em tenda e de tabernáculo ... ,
mudando-se, portanto, apenas algumas palavras. Outro exemplo vem no ver-
sículo 10 do referido capítulo de Samuel, onde se lê: para o afligir, e nos
Paralipômenos, cap. citado, vers. 9, para o esmagar. E há várias outras di-
vergências, de maior importância até, em que só um cego ou alguém que
esteja fora do seu juízo é que não reparará, se comparar esses capítulos.
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTICO 155

dras. É evidente que, se tivéssemos acesso às obras desses his-


toriadores, o assunto esclarecer-se-ia diretamente; como não
temos, só nos resta examinar os próprios textos, a sua ordem
e o seu encadeamento, as diversas repetições e, enfim, a sua
discrepância no cômputo dos anos, para se poder assim ajui-
zar o resto.
Examinemos, pois, esses textos, ou pelo menos os prin-
cipais. Em primeiro lugar, aquela história de Judá e Tamar que
o narrador, no Gênesis, cap. XXXVIII, começa assim a contar:
Aconteceu naquele tempo que Judá se afastou dos seus ir-
mãos. O tempo aqui mencionado refere-se, necessariamente,
àquele outro de que se falou imediatamente antes*; o proble-
ma é que é de todo em todo impossível que ele se refira a
esse tempo de que se fala imediatamente antes no Gênesis.
Com efeito, entre o dia em que José foi levado para o Egito
e o momento em que o patriarca Jacó para lá se pôs a cami-
nho com toda a sua família podem-se contar, no máximo,
vinte e dois anos: José tinha dezessete quando foi vendido
pelos seus irmãos e trinta quando o Faraó mandou tirá-lo da
prisão; se acrescentarmos a esses [treze) os sete de abundân-
cia e os dois de carestia, faz ao todo vinte e dois anos. Em tão
pouco tempo, é impossível conceber que tenham acontecido
tantas coisas; que Judá tenha tido, um após outro, três filhos
da única mulher com quem casou; que o mais velho deles te-
nha, assim que a idade lho consentiu, casado com Tamar;
que, após a morte deste, Tamar tenha casado com o segun-
do; que o próprio Judá, depois de lhe ter morrido também

• Anotação XIII. Que este texto não se refere a nenhum outro tempo
que não seja aquele em que José foi vendido, decorre não só do contexto,
mas também da própria idade de Judá, que tinha então, no máximo, 22
anos, se é que é lícito fazer o cálculo a partir da narração anterior. Vemos,
com efeito, no último versículo do capítulo XX.IX do Génesis, que Judá
nasceu dez anos depois de o patriarca Jacó ter começado a trabalhar para
Labão, e José quatro anos mais tarde. Ora, se José, quando foi vendido, tinha
17 anos, Judá teria 21, e não mais. Iludem-se, pois, os que acreditam que
essa longa ausência de Judá se deu antes de José ser vendido, além de que
parecem estar mais preocupados com a divindade da Escritura do que se-
guros dela.
156 ESPINOSA

este filho e de ter acontecido tudo isso, tenha tido relações


com Tamar, ignorando que era a sua nora, relações de que
nasceram dois filhos gêmeos, um dos quais, ainda no mes-
mo lapso de tempo, teria, por sua vez, se tornado pai. É im-
possível que tudo isso se reporte ao tempo indicado no Gê-
nesis! Assim sendo, temos necessariamente de ver aqui uma
alusão a um outro tempo, mencionado imediatamente antes
num outro livro, do qual Esdras se limitou a transcrever essa
história e a juntá-la às outras sem nem sequer examiná-la.
Não é só este capítulo, aliás, que temos de reconhecer
que foi extraído e transcrito de diversos historiadores: é toda
[1311 a história de José e de Jacó, tão pouca é a concordância que
se verifica entre as suas partes. No capítulo XLVII, o Gênesis
conta que Jacó, quando foi levado por José a cumprimentar
pela primeira vez o Faraó, tinha 130 anos; se descontarmos
os 22 que ele passou amargurado pela ausência de José, os
17 que era a idade deste quando foi vendido, e, finalmente,
os sete durante os quais Jacó serviu por causa de Raquel,
concluímos que tinha já uma provecta idade, aí uns 84 anos,
quando tomou Lia por esposa. Em contrapartida, Dina tinha
apenas sete* quando foi violada por Siquem, e Simeão e Levi

• Anotação XIV. Dizer, como alguns, que Jacó levou oito a dez anos
para ir da Mesopotâmia para Betel, isso cheira-me a asneira, salvo o devido
respeito para com Aben Esdra. Com efeito, quer pelo desejo que certamente
tinha de ver os seus pais, de idade já muito avançada, quer para cumprir o
voto que fizera quando fugira do irmão (ver Gênesis, cap. XXVIII, 10, cap.
XXXI, 13, e cap. XXXV, 1), Jacó apressou-se o mais que pôde, até porque
Deus o avisou para que fosse cumprir o seu voto (Gênesis, cap. XXXI, 3 e 13),
prometendo-lhe a sua ajuda para o conduzir de regresso à Pátria.
Se, todavia, eles acharem que isso são conjecturas e não razões, pois
bem, concedamos, Jacó demorou oito a dez anos, ou até mais, se se quiser,
para fazer esta curta viagem, tendo, com certeza, sido mais contrariado pelo
destino do que Ulisses. O que não poderão negar é que Benjamim nasceu
no último ano dessa viagem, ou seja, aceitando aquela hipótese, 15 ou 16
anos depois de José. Com efeito, Jacó despediu-se de Labão quando José
tinha sete anos e se, conforme demonstramos neste mesmo capítulo, entre
os 17 anos de José e o momento em que o próprio patriarca foi ao Egito não
passaram mais que 22 anos, Benjamim, nessa altura, isto é, quando partiu
para o Egito, teria no máximo 23 ou 24 anos; ora, segundo consta, nessa ai-
1RA TADO TEOLÓGJCO-POIÍflCO 157

tinham doze e onze, respectivamente, quando saquearam toda


aquela cidade de que fala o Gênesis e mataram à punhalada
todos os seus habitantes. Mas não é preciso analisar aqui tudo
o que vem no Pentateuco. Se tivermos em conta a forma con-
fusa e desordenada como nesses cinco livros todos os pre-
ceitos e histórias vêm descritos, baralhando-se os tempos e
repetindo-se freqüentemente a mesma história, por vezes de
maneira diferente, é fácil verificar que tudo isso foi reunido e
acumulado com vista a ser posteriormente examinado e redi-
gido na devida ordem. Aliás, não é só o que vem nestes cin-
co livros que foi assim coligido; foram também as restantes
histórias que vão até a destruição da Cidade e que se encon-
tram nos outros sete livros. Quem é que não vê que, no ca-
pítulo II dos juízes, a partir do versículo 6, se passa a citar
um outro historiador (que já tinha narrado os feitos de Josué,
cujas palavras são simplesmente transcritas)? Com efeito, de-
pois de ter relatado, no último capítulo de Josué, a morte e o
enterro deste, e prometer, no cap. I dos juízes, que ia contar
o que aconteceu a seguir a essa morte, como poderia o nos-
so historiador, se quisesse seguir o fio da narrativa, fazer a li-
gação entre o que vem antes e o que aí começa a contar do
mesmo Josué?* Igualmente os capítulos XVII, XVIII, etc., do
livro I de Samuel são tirados de um outro historiador, o qual
pensava que Davi tinha começado a freqüentar a corte de
Saul por um motivo muito diferente daquele que é apresenta-
do no capítulo XVI do mesmo livro. Efetivamente, a sua opi-
nião não é que Saul tenha chamado Davi, a conselho dos seus

tura ele já tinha netos na flor da idade (compare-se o texto do Gênesis, cap.
XLVI, 21, com os vers. 38, 39, 40 do cap. XXVI dos Números e com os vers.
1 e seguintes do capítulo VIII, livro I dos Paralipômenos). É que Belah, o
primogênito de Benjamim, tinha já dois filhos, Ared e Nahaman. Isso seria,
com certeza, tão estranho à razão como pretender que Dina foi violada aos
sete anos e outras inverosimilhanças que apontamos na seqüência dessa
história. Por aí se vê como as pessoas inábeis, quando tentam resolver uma
dificuldade, caem em outra e tornam a situação ainda mais intrincada.
• Anotação XV. [Isto é, em outros termos e por ordem diferente daque-
la em que se encontram no livro de Josué.]
158 ESPINOSA

criados, como se relata no capítulo XVI, mas sim que o pai de


Davi, por mero acaso, o mandou ter com os irmãos aos acam-
pamentos' e que Saul só deu por ele quando o viu derrotar o
filisteu Golias, após o que ficou então na corte. E suspeito
(132] que se passa o mesmo com o capítulo XXVI deste livro, na
medida em que o historiador parece contar aí a mesma his-
tória que vem no capítulo XXIV, embora numa outra versão.
Dou, no entanto, esse assunto por encerrado e passo a ana-
lisar o cômputo dos anos.
No capítulo VI do livro 1 dos Reis, diz-se que Salomão
construiu o templo no ano 480 após a saída do Egito. A ava-
liar, no entanto, pelos textos, temos de concluir que foi um nú-
mero de anos muito superior.
Assim:

Moisés governou o povo no deserto .............. . 40 anos


Josué, que viveu 110 anos, terá governado,
segundo a opinião de Josefa e outros
historiadores .......................................... . 26 anos
Kusan Rasataim subjugou o povo .................. .. 8 anos
Otoniel, filho de Cenez, foi juiz* .................... . 140 anos

• Anotação XVI. R. Levi ben Gerson e alguns outros crêem que estes 40
anos que a Escritura diz terem decorrido em liberdade se contam a partir da
morte de Josué, incluindo por isso os oito anos que durou a dominação de
Kusan Rasataim; da mesma forma, pretendem que os 18 anos que se se-
guiram àqueles 40 e em que os hebreus estiveram subjugados se devem in-
cluir no cômputo dos 80 em que Aod e Samgar foram juízes. Em resumo, in-
cluem anos de dominação estrangeira entre aqueles que a Escritura confir-
ma terem sido de liberdade para os hebreus. Mas uma vez que a Escritura
enumera expressamente os anos de servidão e os anos de liberdade e con-
ta (cap. II, 18) que os interesses dos hebreus prosperaram sob os juízes, tor-
na-se evidente que este rabino, homem aliás de grande erudição, bem como
os outros que lhe seguem as pisadas, ao tentarem resolver semelhantes difi-
culdades, mais do que explicar a Escritura, a estão corrigindo. O mesmo se
passa com os que admitem que a Escritura, quando apresenta aquele côm-
puto geral dos anos, se refere apenas aos períodos durante os quais houve
um Estado judeu e não aos anos de anarquia [designam-se assim por ódio
ao Estado Popular] e de servidão, que consideram desafortunados e como
que de interregnos. [Dizer que os hebreus não quiseram assinalar nos seus
TRATADO TEOLÓGICO-POIÍ11CO 159

Eglon, rei de Moab, subjugou o povo ........... .. 18 anos


Aod e Samgar foram juízes .............................. . 30 anos
Jabin, rei de Canaã, subjugou de novo o povo 20 anos
Seguidamente, o povo esteve em paz ............ . 40 anos
Depois, esteve submetido ao Madianitas ...... .. 7 anos
Viveu em liberdade, no tempo de Gedeão ... .. 40 anos
Sob o domínio de Abimelec ........................... .. 3 anos
Tola, filho de Fua, foi juiz .............................. .. 23 anos
Jair ..................................................................... . 22 anos
O povo foi de novo subjugado pelos Filisteus
e Amonitas ............................................ .. 18 anos

Anais os tempos de ( ... ) do seu Estado, por serem tempos de infelicidade e


como que de interregno, ou que rasuraram os anos de dominação, se não é
uma calúnia, é uma ficção quimérica e um puro absurdo.] Porque a Escritu-
ra, se passa de fato sob silêncio os períodos de anarquia, não refere menos
os anos de servidão que os de liberdade, nem costuma, como eles imagi-
nam, expurgá-los dos Anais. Dizer, porém, que Esdras [autor desses livros,
como fizemos ver] quis incluir no referido cômputo absolutamente todos os
anos desde a saída do Egito [até o quarto ano do reinado de Salomão], é
algo tão evidente que ninguém que seja versado na Escritura alguma vez o
pôs em dúvida. Porque, mesmo descontando já as palavras do texto, a
própria genealogia de David que é apresentada no fim do livro de Rute e
nos Paralipômenos, livro 1, cap. II, dificilmente permitiria chegar a um tão
grande número de anos [isto é, 480]. Nahasson era chefe da tribo de Judá
dois anos após a saída do Egíto (ver Números, cap. VII, 11 e 12) e morreu,
por conseguinte, no deserto [com todos os que, atingindo os 20 anos, es-
tavam em idade militar]; o seu filho Salmon atravessou com Josué o Jordão.
Ora, este Salmon, segundo a genealogia de David, foi o seu trisavô. [Portan-
to, não é necessário imaginar que esse Salmon tivesse, pelo menos, 91 anos
quando foi pai de Bohgar e que este, por sua vez, tivesse outros tantos
quando nasceu Davi. Porque Davi (admitindo que o ano 4 do reinado de
Salomão, conforme diz o livro 1 dos Reis, cap. VI, fosse o 480º após a saída
do Egito) nasce no ano 366 após a travessia do Jordão.] Se desse total de 480
anos tirarmos os 4 anos do reinado de Salomão, os 70 que viveu Davi e os
40 passados no deserto, vemos que Davi nasceu 366 anos após a travessia
do Jordão; e [supondo que Salmon, antepassado de Davi, nasceu durante a
mesma travessia] seria ainda necessário que [Salmon, Bohgar, Obed e ]esse]
o seu pai, o avô, o bisavô e o trisavô [sucessivamente] tivessem tido os filhos
[já no fim da vida] com a idade de 90 anos. [Por conseguinte, se a Escritura
não o dissesse expressamente, seria muito difícil contarem-se 480 anos entre
a saída do Egito e o 4º ano do reinado de Salomão.]
160 ESPINOSA

J efté foi juiz ...................................................... . 6 anos


Abesan de Belém ............................................. . 7 anos
Aialon Zabulonita ............................................ . 10 anos
Abdon, filho de Faraton .................................. . 8 anos
De novo, o povo esteve submetido aos Fi-
listeus .................................................... . 40 anos
Sansão foi juiz* ................................................. . 20 anos
Heli .................................................................. . 40 anos
Outra vez ainda, o povo esteve submetido aos
Filisteus até ser libertado por Samuel... 20 anos
Davi reinou ...................................................... . 40 anos
Salomão, antes de construir o templo, reinou 4 anos
Tudo isso somado faz....................................... 580 anos

[1331 E ainda falta aqui acrescentar os anos que se seguiram ã


morte de Josué, durante os quais foi próspero o Estado he-
braico, até ser submetido por Kusan Rasataim, e creio que fo-
ram muitos. De fato, não consigo convencer-me de que, mal
se deu a morte de Josué, todos os que tinham visto os seus
prodígios morreram de um momento para o outro, nem que
os seus descendentes deixaram logo de cumprir as leis, pas-
sando abruptamente de mais alta virtude ã mais baixa corrup-
ção e covardia, nem, finalmente, que Kusan Rasataim os te-
nha submetido num abrir e fechar de olhos. Cada uma dessas
coisas leva quase uma geração, pelo que não há nenhuma dú-
vida de que a Escritura, no capítulo II, 7, 9 e 10, do livro dos
juízes, resume e passa em silêncio muitos anos de história.

• Anotação XVII. Sansão nasce já depois de os filisteus terem subjuga-


do os hebreus. [É duvidoso se esses 20 anos .se devem reportar aos anos de
liberdade, ou se estão incluídos nos 40 imediatamente anteriores, durante os
quais o povo esteve sob o jugo dos filisteus. Por mim, confesso que acho
mais verossímil e mais provável que os hebreus tenham recuperado a sua
liberdade quando os mais importantes filisteus morreram com Sansão. Por
isso, incluí estes vinte anos de Sansão entre aqueles que durou o jogo dos
filisteus, quer porque Sansão nasceu já depois de eles terem subjugado os
hebreus, quer ainda porque no Tratado do Sabbat se menciona um tal livro
de jerusalém onde se diz que Sansão julgou o povo durante quarenta anos;
mas a questão não está só nesses anos.]
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 161

A isso há que acrescentar ainda os anos em que Samuel


foi juiz e cujo número também não vem na Escritura, hem
como os anos de reinado de Saul, que eu omiti no cômputo
anterior porque a sua história não determina de forma exata
quando tempo ele reinou: no capítulo XIII, 1, do livro 1 de
Samuel, diz-se que foram dois anos, mas não só o texto está
truncado, como até se deduz da própria história um número
superior. Que o texto está truncado é coisa de que ninguém
que tenha os mais elementares rudimentos de hebraico pode
duvidar. Ele começa assim: Saul tinha[. .. ] anos quando setor-
nou rei, e reinou dois anos sobre Israel. Quem não vê, pois,
que esse texto omite o número de anos que Saul tinha quan-
do chegou ao poder? Quanto a termos de admitir, pela pró-
pria história, um número maior de anos, ninguém, creio eu,
duvidará. Com efeito, no capítulo XXVII, 7, do mesmo livro,
vemos que Davi, fugido a Saul, ficou um ano e quatro meses
com os filisteus. Porém, a ser assim, todo o resto deveria ter-
se passado num intervalo de oito meses, o que ninguém,
presumo, admitirá. Pelo menos ]osefo, no final do sexto livro
das Antiguidades, corrige assim o texto: Saul reinou, portan-
to, dezoito anos enquanto Samuel era vivo e mais dois após a
sua morte. Toda essa história do capítulo XIII está, por outro
lado, completamente em desacordo com o que a precede. No
final do cap. VII, conta-se que os filisteus foram de tal modo
desbaratados pelos hebreus que, enquanto Samuel viveu, não
mais ousaram atravessar as fronteiras de Israel; porém, no cap.
XIII, diz-se que os hebreus foram (em vida de Samuel) inva-
didos pelos filisteus e reduzidos a tal miséria e pobreza que se
viram sem armas para se defenderem e, ainda por cima, sem [134]
meios para as fabricarem. Muito haveríamos de suar se ten-
tássemos conciliar todas essas histórias que vêm no livro 1 de
Samuel, de modo que parecem escritas e ordenadas por um
único historiador!
Voltando à minha questão, é, portanto, necessário acres-
centar à soma atrás referida os anos do reinado de Saul. E tam-
bém não contei, enfim, os anos em que os hebreus viveram
na anarquia, pois não constam da Escritura. Melhor dizendo,
não sei quanto tempo levaram os acontecimentos narrados
162 ESPINOSA

desde o capítulo XVII até o fim do livro dos juízes. De tudo


isso, resulta claro que nem o número exato de anos consta
das narrativas, nem essas se harmonizam num todo, sendo ab-
solutamente necessário supor que se trata de várias histórias.
Por conseguinte, temos de confessar que tais narrativas foram
coligadas a partir de diversos autores, não sem que antes não
tenham sido nem sequer ordenadas e examinadas.
Mas a discrepância não parece ter sido menor, no que
se refere à contagem dos anos, entre os livros das Crônicas
dos Reis de Judá e os das Crônicas dos Reis de Israel. Nessas,
efetivamente, diz-se que Jorão, filho de Acab, subiu ao trono
no segundo ano do reinado de Jorão, filho de Josafat (Reis,
liv. II, cap. 1, 17) ao passo que, nas CrônicasdosReisdejudá,
diz-se que ]oram, filho de Josafat, começou a reinar no quin-
to ano do reinado de Jorào, filho de Acab (cap. VIII, 16, des-
te mesmo livro). E, se quiséssemos comparar os relatos dos
livros dos Paralipômenos com os dos livros dos Reis, encon-
traríamos muitas outras divergências parecidas que não vale
a pena referir aqui, o mesmo se podendo dizer, por maioria
de razão ainda, dos comentários dos autores que tentam
conciliar tais histórias. Os rabinos, de fato, deliram pura e sim-
plesmente. E, quanto aos comentadores que eu li, ou sonham
ou forjam explicações e acabam por corromper completa-
mente a própria língua. Por exemplo, quando se diz no livro
II dos Paralipômenos que Ocozias tinha quarenta e dois anos
no momento em que subiu ao trono, há quem imagine que
esses anos são contados a partir do reinado de Amri e não do
nascimento de Ocozias. Se alguém me pudesse demonstrar
que foi essa a intenção do autor dos livros dos Paralipôme-
nos, eu não hesitaria em afirmar que ele não sabia falar! E,
como esta, há muitas outras coisas que eles inventam e que,
a serem verdadeiras, dir-se-ia que os antigos hebreus ignora-
vam por completo, quer a sua própria língua, quer a ordem
a seguir numa narração, além de quê, não havendo nenhum
critério ou regra a observar na interpretação das Escrituras,
cada um poderia inventar tudo à sua vontade.
[1351 Haverá, talvez, quem julgue que eu estou generalizando
sem bases suficientes. Se assim for, rogo-lhe que me indique
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 163

uma ordem exata qualquer nesses textos, uma ordem que os


historiadores, ao estabelecerem as cronologias, pudessem se-
guir sem perigo de erro. Peço-lhe, além disso, que ao inter-
pretar as narrativas e ao tentar conciliá-las observe estritamen-
te as mesmas frases, as mesmas expressões, a disposição e a
ligação das proposições, explicando-as por forma a que pos-
samos, seguindo essa explicação, imitá-lo nos nossos escri-
tos*: se me aparecer alguém que o consiga, darei imediata"
mente a mão e tê-lo-ei na conta de um verdadeiro Apolo. De
fato, confesso que, apesar de ter investigado durante longo
tempo, nunca consegui chegar a algo que se parecesse. Acres-
centarei até que não escrevo aqui nada que não tenha medi-
tado longamente. Todavia, muito embora estivesse desde a
infância imbuído das opiniões comuns sobre a Escritura, foi
impossível não chegar às presentes conclusões 2 • Mas não há
razão para o leitor demorar por mais tempo nesse assunto
nem para lhe propor tarefas impossíveis. Simplesmente, foi
necessário desenvolver essa questão para explicar melhor o
meu pensamento. Passo, portanto, às restantes observações
que julgo dever fazer acerca do destino desses livros.
Na verdade, para além do que até aqui já referimos, é
de notar ainda que esses livros não foram guardados pelas
sucessivas gerações com o cuidado que era necessário para
os preservar de quaisquer erros. Já os antigos escribas aí de-
tectaram algumas versões duvidosas, bem como várias pas-
sagens truncadas, embora nem todas o sejam na realidade 3•
Não discuto agora se essas falhas são de uma tal gravidade
que levantem embaraços ao leitor. Não creio, no entanto, que
ela seja assim tão grande, pelo menos para aqueles que lêem
as Escrituras sem preconceitos, e posso garantir, pela minha
parte, que não encontrei acerca dos ensinamentos morais ne-
nhum erro ou discrepância de versões que os tornasse obs-
curos ou duvidosos. Porém, a maioria dos intérpretes, nem se-
quer nas restantes matérias, admite que o texto possa estar vi-

• Anotação XVIII. Aliás, corrigem as palavras da Escritura em lugar de


as explicar.
164 ESPINOSA

ciado. Pelo contrário, garantem que, por um ato singular da


providência, Deus preservou intata toda a Bíblia; dizem que
as variantes são um indício de mistérios altamente profundos
e teimam que se passa o mesmo com os asteriscos, os quais
se contam em cada parágrafo até 28; inclusive nos acentos
das palavras eles asseguram que estão contidos altos arca-
nos. Se o dizem por estúpida e senil devoção ou por arro-
gância e malícia, para se julgar que só eles têm acesso aos di-
vinos arcanos, não sei; o que eu sei é que nunca li nos seus
livros algo que cheire 4 a mistério, mas unicamente especula-
ções infantis. Li também e conheci até pessoalmente alguns
(1361 desses impostores e cabalistas5, cujos delírios nunca cheguei
a admirar. Creio, no entanto, que ninguém que esteja em seu
juízo duvida que foram introduzidas algumas alterações, se
acaso ler aquele texto sobre Saul que vem no livro 1 de Sa-
muel, cap. XIII, 1, que já citamos, ou o versículo 2, capítulo
VI, do livro II de Samuel: e Davi levantou-se e partiu de]udá,
com todo o povo que estava consigo, para daí levarem a arca
de Deus. Também aqui, não há ninguém que não veja que o
local para onde se dirigiram, ou seja, Kirjat Jeharim*, e para
onde levaram a arca, não está mencionado. Da mesma for-
ma, ninguém pode negar que o versículo 37, capítulo XIII,
do livro II de Samuel foi alterado e truncado: e Absalão fu-
giu e foi ter com Ptolomeu, filho de Amiud, rei de Gesur, e
chorou o seu filho todos os dias, e Absalão fugiu e foi para
Cessur e aí ficou três anos**. E, como estas, já mencionei an-

* Anotação XIX. Kitjat Jeharim chama-se também Bahgal Jehuda, o que


leva Kimchi e outros a suporem que "Bahgale Jehuda", que eu traduzi por
do povo dejudá, era nome de cidade; mas estão enganados, porque a pala-
vra "Bahgale" está no plural. Para mais, se compararmos este texto de Sa-
muel com aquele dos Paralipômenos, 1, veremos que Davi não se levantou
para partir de Bahgal, mas para ir para Bahgal. Se o autor do II livro de Sa-
muel tivesse querido indicar só o local de onde Davi levou a arca, então,
para falar em hebraico, teria dito assim: e Davi levantou-se e partiu, etc., de
Bahgal de Judá e de lá levou a arca de Deus.
** Anotação XX. Os que se meteram a comentar esse texto, corrigiram-
no assim: e Absalão fugiu e retirou-se para junto de Ptolomeu, filho de Hami-
hud, rei de Gesur, onde permaneceu três anos, e Davi chorou o seu filho todo
TRATADO TEOLÓG/CO-POLÍ11CO 165
teriormente outras passagens que neste momento não me
ocorrem.
Quanto às anotações à margem que se encontram a cada
passo nos códices hebreus, é impossível alguém duvidar de
que se trata de versões duvidosas, se pensarmos que a maio-
ria delas tem origem na enorme semelhança entre as letras
hebraicas, particularmente entre o Kaf e o Bet, o jod e o Vau,
o Dalet e o Res, etc. Por exemplo, quando no livro II de Sa-
muel, cap. V, penúltimo versículo, se escreve e naquele (tem-
po) em que ouvires, vem numa nota à margem quando ouvi-
res; no livro dos juízes, cap. XXI, 22, o texto é e quando os
seus pais e os seus irmãos vieram para junto de nós em multi-
dão (isto é, muitas vezes) etc., e à margem aparece: para dis-
cutir. Muitas outras provêm também do uso das letras a que
chamamos "quiescentes"6 e que, a maioria das vezes, quase
não se pronunciam, pelo que se confundem umas com as ou-
tras. Por exemplo, no Levítico, cap. XXV, 30, está escrito e será
consolidada a casa que está numa cidade onde não existe
muralha, e à margem vem: onde existe muralha, etc. Mas,
apesar de isso ser tudo, só por si, suficientemente claro, con-
virá responder aos argumentos de certos fariseus que tentam
persuadir-nos de que essas notas à margem foram acrescen-
tadas pelos próprios autores dos Livros Sagrados, ou por sua
indicação, para significar algo de misterioso.
O primeiro desses argumentos, que em verdade não me
diz quase nada, é extraído da forma como se liam normal-
mente as Escrituras: se, dizem eles, essas notas foram acres-
centadas por causa da diversidade de versões, entre as quais
as gerações seguintes não conseguiriam optar, por que moti-
vo prevaleceu então o hábito de adotar sempre o sentido in-
dicado à margem? Por que registraram nas anotações o sen-
tido que pretendiam que se adotasse? Não deveriam, pelo [137]

o tempo em que ele esteve em Gesur. Mas, se é a isso que chamam interpre-
tar, e se é lícito usar de uma tal liberdade na exposição da Escritura e alter-
ar assim frases inteiras, acrescentando ou suprimindo qualquer coisa, então,
há que dizer que é lícito corromper a Escritura e dar-lhe, como se faz a um
pedaço de cera, tantas formas quantas se quiser.
166 ESPINOSA

contrário, ter escrito os textos como queriam que eles fossem


lidos, em vez de anotar à margem o sentido e a versão que
tinham por verdadeira?
O segundo argumento, que aparentemente tem algum
conteúdo, é tirado da própria natureza das coisas: refiro-me
ao fato de os erros, segundo dizem, não aparecerem nos có-
dices de propósito mas sim por puro acaso, podendo, por
isso, explicar-se por mil e uma razão. Todavia, em qualquer
dos cinco livros, a palavra hebraica que significa menina é
sempre, exceto numa única passagem, escrita sem a letra He,
contrariamente à regra da gramática, ao passo que nas notas
à margem aparece corretamente escrita de acordo com a re-
gra geral. Será que isso também aconteceu por lapso do es-
criba? E como é que se pôde dar essa fatalidade de a pena
saltar sistematicamente, de todas as vezes que ocorre essa pa-
lavra? Aliás, teria sido fácil, mais tarde, acrescentar sem ne-
nhum escrúpulo aquela letra e corrigir o erro de acordo com
as regras da gramática. Donde - concluem eles - se essas va-
riantes não são fruto do acaso e se não foram corrigidos er-
ros tào manifestos, é 'porque tais erros foram intencionalmen-
te cometidos pelos primitivos escribas com o intuito de, atra-
vés deles, significarem alguma coisa.
Não é difícil responder a tais argumentos. Quanto ao pri-
meiro, que invoca o modo de ler que prevaleceu entre eles,
nem sequer me vou demorar a analisá-lo. Não sei de que é
que a superstição os convenceu, mas talvez que procedes-
sem assim por considerarem ambas as versões igualmente
boas ou aceitáveis e, nessa medida, para que nenhuma se
perdesse, estabelecessem que uma devia ser escrita e a outra
lida. Receavam porventura pronunciar-se definitivamente so-
bre um assunto tão importante, ainda assim não tomassem a
versão falsa por verdadeira, e daí o não quererem dar prefe-
rência a nenhuma delas, coisa que teriam necessariamente
de fazer se decidissem que se escrevesse e lesse a mesma,
tanto mais que nos Livros Sagrados não se escreviam notas à
margem. Ou talvez isso acontecesse porque pretendiam que
certas palavras, apesar de corretamente escritas, fossem toda-
via lidas de outra maneira, isto é, como punham na anota-
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍT1CO 167

ção. E assim instituíram o hábito universal de ler a Bíblia se-


gundo as anotações marginais. Mas que motivo terá levado
os escribas a anotarem à margem certas palavras que deviam
expressamente ser lidas? A razão é que nem todas as notas
marginais são versões duvidosas, pois também as há destina-
das a corrigir expressões caídas em desuso, a saber, palavras
obsoletas e palavras que os bons costumes a essa altura já não
consentiam que se lessem em público. Na verdade, os auto-
res antigos, porque não tinham nenhuma malícia, chamavam
as coisas pelos nomes próprios, sem rodeios palacianos. Mas,
quando passou a reinar a malícia e a luxúria, aquilo que os [138]
antigos diziam sem obscenidade passou a ser tido por obsce-
no. Claro que não era razão para mudar a própria Escritura;
no entanto, para prevenir a falta de senso dos populares, in-
troduziram anotações de modo que os termos que designam
o coito e os excrementos fossem substituídos na leitura em
público por outros mais decentes, precisamente aqueles que
colocaram nas margens. Em suma, qualquer que tenha sido
a razão por que se instituiu o costume de ler e interpretar a
Escritura de acordo com as anotações à margem, uma coisa
é certa: não foi porque a verdadeira interpretação tenha for-
çosamente de ser feita assim. Com efeito, além de os pró-
prios rabinos no Ta/mude se afastarem freqüentemente do
texto masorético e seguirem outras versões que considera-
vam preferíveis conforme demonstrarei daqui a pouco, de-
paramos nas anotações com certas variantes que não pare-
cem muito em conformidade com a norma lingüística. Por
exemplo, no livro II de Samuel, cap. XIV, 22, está escrito
porque o rei agiu segundo o parecer do seu servo, construção
que é inteiramente correta e está de acordo com a do versí-
culo 15 do mesmo capítulo; mas aquela que está na margem
(do teu servo) não concorda com a pessoa do verbo. Assim
também no último versículo do capítulo XVI desse mesmo li-
vro, lemos como quando se consulta (quer dizer, é consulta-
da) a palavra de Deus, e à margem acrescenta-se alguém,
como sujeito do verbo. Isso, porém, não parece estar exato,
porquanto é usual nesta língua empregarem-se os verbos im-
pessoais na terceira pessoa do singular da voz ativa, como
168 ESPINOSA

muito bem sabem os gramáticos. Da mesma forma, encontra-


mos muitas notas que não podem de maneira nenhuma ser
preferidas em detrimento da versão que vem no texto.
No que concerne ao segundo argumento dos fariseus, a
resposta é igualmente fácil por aquilo que há pouco disse-
mos, a saber, que os escribas, além das versões duvidosas,
anotaram também as palavras obsoletas. É evidente que na lín-
gua hebraica, tal como nas outras, muitos termos foram com
o tempo caindo em desuso e tornando-se antiquados, razão
pela qual os últimos escribas, deparando com eles no texto
bíblico, lhe apuseram anotações, como já dissemos, a fim de
que fossem lidos em público de acordo com a maneira de fa-
lar da altura. É esse o motivo por que a palavra nahgarapa-
rece sempre anotada, já que antigamente ela era comum aos
dois gêneros e tinha o mesmo significado que o latim juve-
nis. De igual modo, a capital dos hebreus chamava-se anti-
gamente jerusalém e não jerusalaim. O mesmo se verifica
com o pronome que significa "ele próprio" e "ela própria",
no qual os autores mais recentes substituíram o Vau por um
]od (alteração freqüente em hebraico) sempre que queriam
[1391 indicar o gênero feminino, ao passo que os antigos costuma-
vam distinguir o feminino do masculino desse pronome ape-
nas por vogais. Por outro lado, as formas irregulares de cer-
tos verbos variaram também de época para época e, final-
mente, os antigos, por uma questão de estilo próprio do seu
tempo, empregavam as letras paragógicas Vau, jod, He, Aleph,
Mem, Nun, Tet. Tudo isso eu poderia ilustrar aqui com mui-
tos exemplos, mas não quero enredar o leitor numa leitura
que seria fastidiosa. E, se alguém quiser saber onde é que eu
os fui descobrir, a minha resposta é que os encontrei inúme-
ras vezes nos escritores mais antigos, ou seja, nos livros da
Bíblia, e que os escritores que vieram depois não os quise-
ram imitar dado ser essa a única razão por que nas outras
línguas, mesmo as já mortas, deparamos com palavras caídas
em desuso.
Todavia, retorquirá porventura alguém, se eu admito que
a maior parte das notas à margem são variantes duvidosas,
por que razão nunca haverá, para cada passagem, mais do
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 169

que duas versões? Por que não, de vez em quando, três ou


até mais? Objetar-se-á, por outro lado, que há coisas no tex-
to que manifestamente repugnam ã gramática e que, na ano-
tação, aparecem de maneira correta, sendo, portanto, impos-
sível acreditar que os escribas tenham hesitado e posto em
dúvida qual das duas versões fosse a verdadeira. Ainda aqui,
é fácil responder. Começando pela primeira objeção, direi
que existiram mais variantes do que aquelas que vêm nos
códices de que dispomos. No Ta/mude, com efeito, encon-
tramos muitas que os Masoretas desprezaram, sendo os dois
textos de tal maneira divergentes em inúmeras passagens que
até mesmo aquele supersticioso revisor da Bíblia de Bom-
berg foi obrigado, no prefácio, a confessar que não sabia como
conciliá-los: quanto a isso, diz ele, não sabemos como res-
ponder a não ser repetindo o que já dissemos, ou seja, que é
costume o Ta/mude estar em contradição com os Masoretas.
Não possuímos, portanto, bases suficientes para afirmar que
nunca houve mais que duas variantes da mesma passagem.
Mas não é difícil admiti-lo e creio mesmo que foi, de fato, as-
sim. Isso, por duas razões:
1 - A causa que demonstramos estar na origem dessas
variantes contraria a hipótese de elas serem mais que duas.
Como dissemos, aquilo que os motiva é principalmente a se-
melhança entre certas letras. Por isso, a dúvida residia quase
sempre em saber ver com qual das duas letras devia escre-
ver-se, se um Bet ou um Kaf, um jod ou um Vau, um Dalet
ou um Res, etc., sendo que todas elas eram de uso bastante
freqüente e podendo acontecer muitas vezes que tanto uma [140]
como outra dessem lugar a um significado possível. Depois,
a questão estava também em saber se a sílaba era longa ou
breve, uma vez que a sua duração se determina por meio da-
quelas letras a que chamamos "quiescentes". E a isso acresce
ainda o fato de nem todas as anotações constituírem varian-
tes duvidosas: muitas delas, já o dissemos, foram introduzi-
das por uma questão de decoro ou para explicar palavras ar-
caicas que já não se usavam.
II - A segunda razão pela qual estou persuadido de que
não existiram mais do que duas variantes para cada passa-
170 ESPINOSA

gem é porque julgo que os escribas tinham à mão um núme-


ro muito reduzido de exemplares, possivelmente só dois ou
três. No Tratado dos Escribas (cap. VI), referem-se apenas
três, que se finge terem sido encontrados no tempo de Es-
dras porque se quer fazer passá-lo por autor das anotações
aí introduzidas. Seja como for, se eles eram três, não é difícil
supor que houvesse sempre dois que coincidissem sobre a
mesma passagem, dado que seria realmente extraordinário
que em apenas três exemplares se encontrassem três versões
da mesma passagem. Mas por que fatalidade aconteceu en-
tão que depois de Esdras tenha havido uma tal penúria de
exemplares? Basta ler o cap. I do livro I dos Macabeus ou o
cap. V do livro XII das Antiguidades de Josefa para que isso
deixe de nos causar admiração. Pelo contrário, o que parece
prodigioso é que, após uma tão longa perseguição, ainda te-
nham podido sobreviver esses poucos exemplares, como su-
ponho ninguém duvidará se ler com um mínimo de atenção
essa história.
Vimos assim as razões por que nunca nos aparecem mais
que duas variantes. Quão longe estamos, afinal, de poder daí
concluir que a Bíblia, nas passagens a que se referem as no-
tas, tenha sido propositadamente escrita de forma incorreta
para significar algum mistério!
No que concerne à segunda objeção, a de que certas
passagens estão tão mal escritas que é impossível pensar que
houve alguma época em que elas não violassem as regras or-
tográficas e que não devessem absolutamente ser corrigidas
em vez de anotadas, isso a mim pouco me afeta, dado que
nem consigo perceber o respeito religioso que levou os co-
pistas a não o fazerem. Talvez tenha sido por uma questão
de sinceridade, por quererem transmitir a Bíblia aos vindou-
ros tal como a tinham encontrado nesse pequeno número de
originais, anotando as divergências existentes entre estes, não
como versões duvidosas, mas como simples variantes. Eu pró-
prio só lhes chamei duvidosas porque de fato se me afiguram
quase sempre de tal modo que não sei se se deva optar por
uma ou por outra.
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ77CO 171

Finalmente, além dessas versões duvidosas, os escribas


anotaram ainda (deixando um espaço em branco no meio do [141]
parágrafo) várias passagens truncadas cujo número é assina-
lado pelos Masoretas: vinte e oito. Ignoro se esse número, em
sua opinião, encerra algum mistério; os fariseus, pelo menos,
observam religiosamente a dimensão exata do espaço deixa-
do em branco. Um exemplo (para dar apenas um) é o que
vem no Génesis, cap. IV, 8: E Caim disse a seu irmão Abel...
e aconteceu enquanto estavam no campo que Caim, etc. Dei-
xa-se aqui um espaço em branco no local onde estávamos à
espera de saber o que Caim disse ao seu irmão. Como este
(e além dos que já assinalamos) há vinte e oito deixados pe-
los escribas, muitos dos quais, no entanto, não pareceriam
truncados se não fosse o espaço em branco neles intercalado.
Mas, sobre isso, já basta.
CAPÍTULO X

Onde se analisam, segundo o mesmo


critério utilizado para os anteriores,
os restantes livros do Antigo Testamento

Passo aos outros livros do Antigo Testamento. Sobre os


dois livros dos Paralipômenos, não tenho nada a dizer de
preciso e que valha a pena, a não ser que devem ter sido es-
critos muito depois de Esdras e talvez até depois da recons-
trução* do templo por Judas Macabeu. No capítulo IX do livro
1, efetivamente, o historiador diz quais as famílias que primei-

• Anotação XXI. É aqui que tem origem a suspeita, se é que podemos


chamar suspeita a uma certeza, relativamente ã dedução da genealogia do
rei Jeconias apresentada nos Paralipômenos, livro 1, cap. III, que se prolon-
ga até os filhos de Eliohenal, descendentes daquele na décima terceira gera-
ção [em linha retal; deve ainda notar-se que este jeconias não tinha filhos
quando foi feito prisioneiro mas parece que fez [dois] no cárcere, tanto
quanto é lícito conjecturar pelos nomes que lhes deu. Relativamente aos ne-
tos, e conjecturando ainda pelos seus nomes, parece terem nascido depois
que o soltaram. Assim, Fadaia (que quer dizer "Deus libertou"), de quem se
diz neste capítulo ser [pai de Zorobabel, nasceu] no ano 37 ou 38 do
cativeiro de Jeconias, isto é, 33 anos antes de o rei Ciro ter agraciado os
judeus; conseqüentemente, Zorobabel, que Ciro pusera à frente dos judeus,
teria a essa altura, ao que parece, 13 ou 14 anos, no máximo. Achei, no en-
tanto, preferível não falar nisso por razões que as dificuldades do tempo
presente [em que reinam as injúrias e a superstição] não permitem explicar.
Mas, para os mais esclarecidos, basta mencionar o assunto. Se passarem os
olhos com um mínimo de atenção por toda essa descendência de Jeconias
apresentada no capítulo lII do livro 1 dos Paralipômenos, desde o versículo
17 até final do capítulo, e compararem o texto hebraico com a versão dita
dos Setenta, verão facilmente que esses livros foram reelaborados após a se-
gunda restauração da Cidade por Judas Macabeu, na altura em que os des-
cendentes de Jeconias perderam o trono, e não antes.
TRATADO 1EOLÓGICO-POIÍ71CO 173

ro (isto é, no tempo de Esdras) habitaramjernsalém; depois,


no versículo 17, indica o nome dos poneiros, dois dos quais
são também referidos em Neemias, cap. XI, 19. O que mostra
que esses livros foram escritos muito depois da reedificação
da Cidade. Para além disso, não me consta mais nada sobre o
verdadeiro autor de cada um deles, nem sobre a respectiva
autoridade, interesse e doutrina. Muito me admira até que te-
nham sido admitidos entre os livros sagrados por aqueles mes-
mos que haviam excluído do cânon o livro da Sabedoria, o
de Tobias e outros considerados apócrifos. Mas a minha inten-
ção não é impugnar a sua autoridade: uma vez que todos os
aceitam, vou também deixá-los tal como estão.
Os Salmos foram igualmente recolhidos e distribuídos por
cinco livros, já o templo estava reconstruído. De fato, e de acor-
do com o testemunho de Filon, o judeu, o Salmo LXXXVIII
foi publicado quando o rei Joaquim ainda estava preso na
Babilônia e o salmo LXXXIX quando ele já estava em liberda- [142]
de: não creio que Filon alguma vez dissesse isso se não fosse
uma opinião corrente no seu tempo ou se não o tivesse ou-
vido a outras pessoas dignas de fé. Julgo, além disso, que os
Provérbios de Salomão foram coligidos na mesma altura ou,
pelo menos, no tempo do rei Josias 1 e isso porque no cap.
XXIV, último versículo, se afirma: Estes são os Provérbios de
Salomão que os homens de Ezequias, rei de Judá, transmiti-
ram. Nesse caso, porém, não posso deixar em claro a audá-
cia dos rabinos, que queriam excluir esse livro, tal como o
Eclesiastes, do cânon dos Livros Sagrados e guardá-lo junto
com os outros de que já perdemos o rasto. E certamente o te-
riam mesmo excluído se não deparassem com certas passa-
gens onde a lei de Moisés é recomendada. Infelizmente, as
coisas sagradas, até as melhores, estiveram sujeitas ao critério
de pessoas assim! Claro que lhes estou grato por terem queri-
do transmitir-nos também esses livros, mas é impossível não
me interrogar se os terão transmitido de boa fé, coisa que,
aliás, não pretendo submeter aqui a um exame rigoroso.
Passo, portanto, aos livros dos profetas. Examinando-os
com atenção, noto que as profecias que aí se encontram fo-
ram coligidas de outros livros e que nem sempre vêm apre-
174 ESPINOSA

sentadas segundo a ordem pela qual foram pronunciadas ou


escritas pelos próprios profetas, além de que não estão todas
lá, mas unicamente as que se puderam aqui ou ali encontrar.
Tais livros constituem, portanto, apenas fragmentos das obras
dos profetas. Isaías começou a profetizar no reinado de Osias,
conforme diz o narrador, logo no primeiro versículo. Porém,
não se limitou, durante esse tempo, a profetizar, porquanto
descreveu ainda todos os feitos desse rei (ver Paralipôme-
nos, livro II, cap. 22), livro que já não possuímos. Tudo quan-
to resta foi, como já mostramos, transcrito das Crônicas dos
Reis de Judá e de Israel. Acresce ainda que os rabinos dizem
que o profeta profetizou também no reinado de Manassés,
por quem viria a ser morto, e embora pareça que estão con-
tando uma fábula, dá no entanto a impressão de que eles
crêem que nem todas as suas profecias se conservaram.
Depois, as profecias de.Jeremias, apresentadas sob a for-
ma de relato histórico, são igualmente tiradas e coligidas a
partir de várias crônicas. Com efeito, além de se amontoarem
confusamente e sem nenhuma consideração pelas datas, re-
petem a mesma história de diversas maneiras. Assim, por
exemplo, no capítulo XXI, indica-se o motivo da prisão de
Jeremias, ou seja, o ter profetizado a destruição da Cidade a
Sedecias, que o mandara consultar; interrompida essa histó-
ria, passa-se, no capítulo XXII, a descrever a advertência fei-
[1431 ta por Jeremias a Joaquim, que reinou antes de Sedecias, e a
predizer o cativeiro do rei; e mais adiante, no capítulo XXV,
aparece a descrição de coisas que foram reveladas ao profe-
ta antes disso, quer dizer, no quarto ano do reinado de Joa-
quim. A seguir, narram-se as que foram reveladas no primei-
ro ano desse mesmo reinado e por aí fora, numa acumulação
de profecias sem o mínimo sentido das datas, até que, final-
mente, no capítulo XXXVIII, se volta àquilo que se começara
a contar no capítulo XXI, como se esses quinze capítulos fos-
sem apenas um simples parêntesis. A conjugação por que co-
meça o capítulo XXXVIII refere-se, efetivamente, aos versícu-
los 8, 9 e 10 do capítulo XXI, além de que se descreve aí a úl-
tima prisão de Jeremias de forma totalmente diferente e se
apresenta um motivo para a sua prolongada detenção no
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 175

átrio do cárcere que não coincide com o que vem no capítu-


lo XXXVII. Donde se vê claramente que tudo isso foi recolhi-
do de diversos historiadores. Nem há, de resto, outra razão que
o possa explicar. No que concerne, porém, às restantes pro-
fecias, aquelas que vêm nos outros capítulos e onde Jeremias
fala na primeira pessoa, essas parecem transcritas do volume
que o próprio profeta ditou a Baruc. De fato, e como consta
do capítulo XXXVI, 2, aí vinha apenas o que foi revelado a
Jeremias desde o tempo de Josias até o quarto ano do reina-
do de Joaquim, altura em que também começa este livro. Do
mesmo volume parece ter sido extraído igualmente o que
vem do capítulo XLV, 2, até ao capítulo LI, 59.
Quanto ao livro de Ezequiel, os seus primeiros versícu-
los indicam com toda a clareza tratar-se de um fragmento.
Quem é que não vê que a conjunção pela qual o livro come-
ça se refere a coisas que foram ditas anteriormente e que por
seu intermédio se ligam com o que a seguir se vai dizer? Mas
não é só a conjunção, é todo o contexto da frase que faz
pressupor a existência de outros escritos: a referência ao tri-
gésimo ano com que o livro começa mostra que o profeta
continua a narrar e não que ele principia, conforme o pró-
prio narrador frisa pelo parêntesis do versículo 3, onde es-
creve que a palavra de Deus fora muitas vezes dirigida a
Ezequiel, filho de Buzi, sacerdote na terra dos Caldeus, etc.,
como que a dizer que as palavras de Ezequiel até aí transcri-
tas se referiam a outras revelações anteriores a esse trigésimo
ano. Por outro lado, Josefa, no livro X das Antiguidades, ca-
pítulo VII, conta que Ezequiel predissera que Sedecias não
veria Babilônia, coisa que não se lê no livro do profeta que
possuímos e onde se afirma, pelo contrário, no capítulo XVII,
que ele seria conduzido como prisioneiro à Babilônia*.
No que diz respeito a Oséias, não podemos dizer ao cer-
to se escreveu algo além do que vem no livro que lhe é atri-

• Anotação XXII. E por isso ninguém poderia suspeitar que a sua pro-
fecia estivesse em contradição com a de Jeremias, ao passo que, segundo a
narração de Josefa, toda a gente suspeitou até o dia em que, ocorridos os fa-
tos, viu que ambos tinham profetizado a verdade.
176 ESPINOSA

buído. Admira-me, no entanto, não termos mais nada de al-


guém que, segundo o testemunho da Escritura, profetizou
[1441 durante mais de 84 anos. Sabe-se, pelo menos, que, de uma
maneira geral, os que redigiram esses livros não coligiram as
profecias de todos os profetas e que tampouco daqueles que
conhecemos coligiram as profecias todas. Com efeito, não pos-
suímos absolutamente nada dos profetas que profetizaram
no reinado de Manassés e que são mencionados em termos
gerais no livro II dos Paralipômenos, capítulo XXXIII, 10, 18
e 19; nem sequer dispomos de todas as profecias dos doze
profetas 2 • De Jonas, por exemplo, só as profecias acerca dos
Ninivitas são reproduzidas, embora ele tivesse profetizado
também acerca dos israelitas, como se pode ver no livro II
dos Reis, capítulo XIV, 25.
Sobre o livro de ]ó e sobre o próprio Jó, muita contro-
vérsia tem havido entre os comentadores! Há os que pensam
que foi Moisés quem o escreveu e que toda a história não é
senão uma parábola, conforme ensinam alguns dos rabinos
no Ta/mude, secundados por Maimônides no seu livro More
Nebuchim; e há os que julgam que se trata de uma história
verdadeira, chegando alguns a pensar que Jó tinha vivido no
tempo de Jacó e casado com a sua filha Dina. Porém, Aben
Esdra, como já referi mais atrás, afirma nos seus comentários
a este livro que ele foi traduzido de uma outra língua para o
hebraico, coisa que eu gostaria que tivesse demonstrado com
mais clareza, porque então poderíamos concluir que os gen-
tios também tiveram livros sagrados. Assim, fico na dúvida,
mas imagino que Jó foi um pagão dotado de grande perseve-
rança que experimentou, primeiro, a prosperidade, depois, a
adversidade, e foi, por fim, extremamente feliz 3 • Ezequiel, no
capítulo XIV, 14, entre outros nomes, menciona o dele. Creio,
aliás, que tanto as reviravoltas da fortuna como a grande per-
severança de Jó foram pretexto para muitas discussões sobre
a providência divina. Pelo menos ao autor do livro que leva
o seu nome proporcionaram a oportunidade de compor um
diálogo cujo conteúdo e estilo não parecem de um homem a
definhar miseravelmente entre cinzas, mas sim de alguém a
meditar ociosamente na sua biblioteca. Nesse aspecto, con-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 177

cardo com Aben Esdra que este livro foi traduzido de uma
outra língua, até porque faz lembrar a poesia dos pagãos: o
Pai dos deuses convoca por duas vezes o concílio, e Momo4,
que aqui se chama Satanás, critica as palavras de Deus com a
maior das liberdades, etc. Mas tudo isso não passa de meras
conjecturas sem fundamento bastante.
Vejamos o livro de Daniel. Aqui, sem dúvida alguma, vêm
textos escritos pelo próprio Daniel, a partir do capítulo VIII.
Ignoro, no entanto, de onde terão sido transcritos os sete pri-
meiros capítulos. Pode-se supor, dado que, à exceção do [145]
primeiro, estão escritos em caldaico, que a sua fonte tenham
sido as Crônicas dos Caldeus. Se isso estivesse perfeitamente
demonstrado, seria até uma excelente prova de que a Escri-
tura é sagrada só porque através dela compreendemos as coi-
sas que aí vêm expressas, e não por compreendermos aspa-
lavras, ou seja, a língua e as frases em que elas estão expres-
sas5. E ficaria igualmente provado que todos os livros que
ensinam e contam coisas excelentes são sagrados, não im-
portando a língua e a nação em que foram escritos. Para já,
podemos, pelo menos, registrar que estes capítulos foram es-
critos em caldaico e, no entanto, são tão sagrados como os
outros livros da Bíblia.
O I livro de Esdras está de tal forma interligado com o
de Daniel que se vê facilmente que foram escritos pela mes-
ma pessoa e que esta continua narrando aqui a história dos
judeus a partir do primeiro cativeiro. Ao livro de Esdras liga-
se, indubitavelmente, o livro de Ester, pois a conjunção pela
qual principia não se pode referir a mais nenhum outro. Nem
é de crer que este livro seja o mesmo que Mardoqueu escre-
veu. De fato, no capítulo IX, 20, 21 e 22, é uma outra pessoa
que conta que o mesmo Mardoqueu tinha escrito epístolas,
que revela o seu conteúdo e que, no versículo 31, diz que a
rainha Ester determinara por decreto o modo de celebrar a
festa das Sortes (Purim), decreto esse que foi inserido no li-
vro, isto é, (conforme o significado da palavra em hebraico),
num livro que na época todos conheciam e onde se registra-
vam esses assuntos. Ora, esse livro, como reconhece Aben
Esdra e como qualquer pessoa é obrigada a reconhecer, de-
178 ESPINOSA

sapareceu também. Finalmente, o historiador, para mais infor-


mações acerca de Mardoqueu, remete para as Crônicas dos
Reis da Pérsia. Não resta, portanto, nenhuma dúvida de que
esse livro não é do historiador que escreveu a história de Da-
niel e a de Esdras, o mesmo se podendo afirmar do livro de
Neemias*, também chamado o II de Esdras.
Todos estes quatro livros - Daniel, Esdras, Ester e Nee-
mias - foram certamente escritos pelo mesmo historiador.
Quem foi ele, não faço a menor idéia. Todavia, para saber-
mos onde é que esse autor, fosse ele quem fosse, teve co-
nhecimento de tais histórias e de onde talvez tenha transcri-
to a maior parte, é preciso notar que os prefeitos ou chefes
dos judeus na época do segundo templo, tal como os reis na
época do primeiro, tiveram escribas ou historiadores que es-
creviam os anais, isto é, as suas crônicas. Estas crônicas ou
anais são, a cada passo, citadas nos livros dos Reis; quanto às
dos chefes e sacerdotes do segundo templo elas vêm citadas,
(1461 primeiro, no livro de Neemias, cap. XII, 23, depois no livro I
dos Macabeus, cap. XVI, 24. E é certamente este o livro (ver
Ester, cap. IX, 31) de que falávamos há pouco, onde se en-
contrava o édito de Ester e aquelas referências a Mardoqueu,
livro que, conforme dissemos, corroborando Aben Esdra, se
perdeu. Foi daí que se extraiu ou transcreveu, ao que parece,
tudo quanto vem nos livros referidos, visto nenhum outro
ser citado pelo seu autor nem conhecermos mais nenhum
que goze de autoridade publicamente reconhecida.
Que esses livros não foram escritos nem por Esdras nem
por Nehemias, vê-se pelo fato de Neemias, cap. XII, 10, 11,
apresentar a descendência do sumo-sacerdote Jesuá até Jadoá,
sexto pontífice, que compareceu diante de Alexandre Magno
quando o Império Persa já estava quase submetido (ver Jose-

•Anotação XXII!. O próprio historiador confirma, no cap. I, 1, que a


maior parte deste livro é transcrita daquele que o ptóprio Neemias escreveu.
Mas o que se conta desde o cap. VIII até o cap. XII, 26, bem como os dois
últimos versículos deste capítulo, que são inseridos entre parêntesis no meio
das palavras de Neemias, foi indiscutivelmente acrescentado pelo historia-
dor, o qual viveu depois de Neemias.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 179

fo, Antiguidades, livro XI, cap. VIII), ou, como diz Fílon, o Ju-
deu, no livro das Eras, o sexto e último sumo-sacerdote
sob o domínio persa. No mesmo capítulo de Neemias, versí-
culo 22, isso vem também com toda a clareza: Os Levitas -
diz o historiador - do tempo de Eliasib, de jojada, de jona-
than e de ]edoá, sobre• o reinado de Dario o Persa foram ins-
critos, inscritos, obviamente, nas Crônicas. E creio que nin-
guém vai acreditar que Esdras• ou Neemias tiveram uma tal
longevidade que sobreviveram a 14 reis da Pérsia. Porque
entre Ciro, que foi quem primeiro deu autorização aos judeus
para reconstruírem o Templo, e Dario, décimo quarto e últi-
mo rei dos persas, vão, com efeito, mais de 230 anos. Daí que
eu esteja seguramente convicto de que esses livros foram es-
critos muito depois de Judas Macabeu ter restabelecido o cul-
to no Templo, e isso porque, a essa altura, certas pessoas mal
intencionadas que pertenciam, com certeza, à seita dos sadu-
ceus, divulgavam falsos livros de Daniel, Esdras e Ester. Os fa-
riseus, que eu saiba, nunca aceitaram tais livros6 • E, embora
se encontrem no livro considerado o IV de Esdras certas fá-
bulas que se lêem igualmente no Talmude, elas não são,

• A menos que a palavra signifique além de, houve aqui erro do co-
pista, que escreveu sobre em vez de até.
• Anotação XXIV. Esdras era tio do primeiro Sumo-Pontífice, Josué (Es-
dras, cap. XXIV, 1, e Paralipômenos I, cap. VI, 14, 15), e partiu da Babilônia
para Jerusalém com Zorobabel (Neemias, cap. XII, 1). Mas, quando viu as
coisas complicadas entre os judeus, parece que voltou de novo ã Babilônia,
tal como outros fizeram, de acordo com Neemias, cap. I, 2, permanecendo aí
até o reinado de Artaxerxes, altura em que, obtido o que queria, voltou a Je-
rusalém. Também Neemias partiu para Jerusalém com Zorobabel no tempo
de Ciro (ver Esdras, cap. II, 2 e 63, e Neemias, cap. X, 9, e cap. X, 1). De fato,
os intérpretes não justificam com nenhum outro exemplo a tradução da pa-
lavra "Hathirschata" por legado, sabendo-se, em contrapartida, que aos ju-
deus que iam freqüentar a corte eram impostos novos nomes. Por exemplo,
Daniel chamava-se Baltazar, Zorobabel chamava-se Sesbatsar (ver Daniel,
cap. I, 7; Esdras, cap. I, 8, e cap. V, 14) e Neemias Hathirshata. Devido, porém,
ao seu ofício, era costume saudarem-se pelo nome de "pehah", procurador,
isto é, governador(ver Neemias, cap. V, 14, e cap. XlI, 26). [É, pois, seguro
que Hathirshata é um nome próprio, como Hatselefon, Hatsobeba (Paralipô-
menos, I, cap. IV, 3, 8), Halloghes (Neemias, cap. X, 25) etc.]
180 ESPINOSA

contudo, de atribuir aos fariseus, pois, à parte os mais estú-


pidos, não há entre eles ninguém que não esteja convicto de
que essas fábulas foram acrescentadas por um impostor
qualquer, até para ridicularizar as tradições aos olhos de to-
dos. Ou talvez os livros em questão tenham sido transcritos e
divulgados nessa época para mostrar ao povo que as profe-
cias de Daniel se tinham cumprido, para consolidar assim o
[1471 seu sentimento religioso e fazer com que, no meio de tantas
calamidades, não deixasse de ter esperança em melhores dias
e na salvação futura. Mas mesmo assim, apesar de serem tão
recentes, ainda aí aparecem muitos erros, os quais se devem,
se não me engano, à excessiva pressa dos copistas. Com efei-
to, e tal como nos outros, ou ainda mais, encontramos nesses
livros as anotações à margem de que falávamos no capítulo
anterior, além de certas passagens que, como vou demons-
trar, só se podem explicar por erro de transcrição. Antes, po-
rém, quero prevenir, ainda a propósito dessas variantes que
vêm à margem, que, se aceitássemos, como os fariseus, que
elas remontam aos próprios autores desses livros, então te-
ríamos necessariamente de confessar que tais autores, se é
que eles foram vários, fizeram as anotações porque acharam
que as crônicas de onde transcreviam não tinham sido elabo-
radas com o devido rigor e que, apesar de certos erros serem
evidentes, não se atreveram a corrigir os escritos dos antigos
e dos antepassados. É, de resto, escusado voltar a tratar aqui
essa questão pormenorizadamente. Vou, portanto, indicar ape-
nas os erros que não estão anotados à margem.
No cap. II de Esdras, nem sei dizer quantos terão esca-
pado. Com efeito, no versículo 64, vem a soma de todas as
pessoas que ao longo do capítulo se contaram por famílias e
refere-se um total de 42 360; ora, se somarmos todas as par-
celas, o resultado são apenas 29 818; há, portanto, aqui um
erro, no total ou nas parcelas. O total, no entanto, é de crer
que esteja exato, pois toda a gente o sabia com certeza de
cor e o tinha por algo de memorável, o mesmo não se passan-
do com as parcelas. Donde, se o erro estivesse no total, qual-
quer um teria logo se dado conta e facilmente ele seria corri-
gido. É o que se confirma pelo fato de, em Neemias, cap. VII,
TRATADO TEOLÓGICO-POÚT1CO 181

onde vem transcrito este capítulo de Esdras a que se chama


"Epístola da Genealogia'', como se diz expressamente no ver-
sículo 5 do mesmo capítulo de Neemias, a soma total concor-
dar inteiramente com esta do livro de Esdras, ao passo que
nas parcelas existem muitas discrepâncias: de fato, umas são
superiores, outras inferiores às que encontramos em Esdras,
e todas juntas perfazem 31089. Logo, não restam dúvidas, só
nas parcelas, tanto do livro de Esdras como do de Neemias, é
que surgem vários erros.
Os comentadores, porém, na tentativa de conciliar es-
sas contradições manifestas, inventa cada um aquilo que pode
e o engenho lhe deixa, e, enquanto estão assim adorando as
letras e as palavras da Escritura, mais não fazem, como já dis-
semos, que expor os autores da Bíblia ao ridículo, a ponto [148]
de parecer até que eles não sabiam falar nem expor com
nexo aquilo que tinham para dizer. O resultado é tornarem
completamente obscuro o que há de transparente na Escri-
tura: porque, se alguma vez fosse lícito interpretar as Escri-
turas à maneira deles, não haveria certamente uma única
frase de cujo verdadeiro sentido não pudéssemos duvidar.
Mas não há razão para continuar por mais tempo com esse
assunto. Estou convencido de que, se algum historiador qui-
sesse imitar tudo quanto eles atribuem devotamente aos au-
tores da Bíblia, eles próprios o cobririam de ridículo. E,
dado que consideram ser um blasfemo quem disser que a
Escritura está por vezes errada, pergunto então que nome
lhes hei de chamar a eles, que ã mesma Escritura atribuem
aquilo que lhes apetece. A eles, que prostituem os historia-
dores sagrados a ponto de estes parecerem gaguejar e con-
fundir tudo. A eles, em suma, que negam os significados
mais claros e evidentes da Escritura. Haverá, efetivamente,
alguma coisa mais clara na Escritura que o fato de Esdras,
com os seus companheiros, na "Epístola da Genealogia" re-
produzida no cap. II do livro que tem o seu nome, calcular
por grupos o número de todos os que partiram para Jerusa-
lém, visto que apresenta, não apenas o número dos que pu-
deram indicar a respectiva genealogia, mas também o da-
queles que não o conseguiram? Há alguma dúvida, perante
182 ESPINOSA

o versículo 5 do cap. VII de Neemias, que esse capítulo trans-


creve pura e simplesmente aquela Epístola? Se assim é,
aqueles que explicam essas passagens de forma diferente es-
tão apenas negando o verdadeiro significado da Escritura e,
por conseguinte, a própria Escritura. Julgam eles que é obra
piedosa pôr uma passagem da Escritura de acordo com as
outras: ridícula piedade esta, que concilia passagens eviden-
tes com passagens obscuras, passagens corretas com passa-
gens erradas, corrompendo assim o que está são com aqui-
lo que está podre! Longe de mim, todavia, chamar-lhes blas-
femos, uma vez que não o fazem por má intenção e errar é
próprio do homem.
Mas, voltando ao que ia dizendo, além dos erros que te-
mos de reconhecer nas contas da "Epístola da Genealogia'',
seja em Esdras seja em Neemias, há ainda outros que se ve-
rificam nos próprios nomes das famílias, nas genealogias, nos
relatos históricos, e receio que até nas próprias profecias. De
fato, a profecia que vem em Jeremias, cap. XXII, sobre Jeco-
nias, não parece de modo algum estar de acordo com a sua
história (ver o final do livro dos Reis, o livro de jeremias e os
Paralipômenos, livro 1, cap. III, 17, 18 e 19), nomeadamente
as palavras do último versículo daquele capítulo. Da mesma
forma, não vejo como podia o profeta dizer a Sedecias, a
quem arrancaram os olhos logo após ter visto matar os seus
[149] filhos, tu morrerás em paz, etc. (jeremias, cap. XXXIV, 5). Se
se devesse interpretar as profecias com base nos fatos, esses
nomes teriam de ser trocados, tudo indicando que onde está
o de Jecomias se deveria pôr o de Sedecias e vice-versa. Mas
isso seria excessivamente paradoxal, pelo que prefiro deixar
a questão como incompreensível, tanto mais que, se há aqui
erro, ele se deve ao historiador, e não a um defeito dos ma-
nuscritos.
Quanto aos outros erros de que falei, não creio ser opor-
tuno assinalá-los aqui, porquanto seria extremamente abor-
recido para o leitor, sobretudo porque já outros o fizeram.
Foi, com efeito, por causa das contradições óbvias que ob-
servou nos relatos genealógicos que R. Selomo7 foi obrigado
a desabafar nestes termos (veja-se o seu comentário ao livro
TRATADO TEOLÓGJCO-POÚTICO 183

I, cap. VIII dos Paralipômenos): Se Esdras (que ele julga ser


quem escreveu os Paralipômenos) chama os filhos de Benja-
mim por outros nomes e lhe atribui uma descendência dife-
rente da que vem no Gênesis, se indica a maioria das cidades
dos Levitas diferentemente de Josué, é porque se encontrou pe-
rante exemplares que divergiam. E um pouco mais à frente:
se a descendência de Gabaão e outros é apresentada por
duas vezes e de forma diversa, é porque Esdras deparou com
várias Epístolas da Genealogia diferentes umas das outras,
seguindo na transcrição a versão apresentada pela maioria
dos exemplares; quando, porém, o número dos que apresen-
tavam uma genealogia era igual ao dos que apresentavam a
genealogia oposta, nesse caso ele transcreve as duas. Assim
sendo, Selomo concorda absolutamente que esses livros fo-
ram transcritos de originais que não eram nem suficientemen-
te corretos nem suficientemente garantidos. Donde, os pró-
prios comentadores, na tentativa de conciliar diversas passa-
gens, muitas vezes não fazem mais do que apontar as causas
dos erros. Julgo, enfim, que ninguém que esteja em seu juí-
zo admitirá que os historiadores sagrados quisessem delibe-
radamente escrever de modo que parecessem, uma vez por
outra, contradizer-se a si mesmos.
Dir-se-á, talvez, que com esse argumento eu arruíno por
completo a Escritura, uma vez que assim se poderá sempre
suspeitar que estejam erradas todas as passagens. O que eu
mostrei, porém, foi o contrário, isto é, que examinando com
esse critério as Escrituras não se conciliam nem corrompem
as passagens claras e autênticas com as erradas. E o fato de
certas passagens estarem alteradas não é razão para que seja
lícito suspeitar de todas elas, dado que jamais existiu livro al-
gum que não tivesse erros. E alguém vai, por esse motivo,
suspeitar que eles estejam errados da primeira à última linha?
É evidente que não, sobretudo quando o texto é claro e se
entende claramente o pensamento do autor.
Terminei assim as observações que pretendia fazer em
torno da história dos livros do Antigo Testamento. A partir [1501
daqui, é fácil concluir que antes dos Macabeus não existia ne-
184 ESPINOSA

nhum cânon dos Livros Sagrados• e que, além disso, aqueles


de que atualmente dispomos foram escolhidos dentre muitos
outros pelos fariseus da época do segundo templo, que ins-
tituíram também as fórmulas para as orações, e só por sua de-
terminação expressa foram adotados. Quem, por conseguin-
te, quiser demonstrar a autoridade da Escritura terá que de-
monstrar a autoridade de cada um dos seus livros. E não bas-
ta provar que um deles é divino para concluir o mesmo de
todos os outros, pois, se assim fosse, ter-se-ia de admitir que
a assembléia dos fariseus era infalível ao fazer a escolha dos
livros, coisa que ninguém alguma vez demonstrará. A razão
que me leva a admitir que foi só com os fariseus que se es-
colheram os livros do Antigo Testamento e se determinou o
cânon dos Livros Sagrados é o fato de, no livro de Daniel,
último capítulo, versículo 2, se anunciar a ressurreição dos
mortos, a qual os saduceus negavam. De resto, os próprios
fariseus deixam isso bem claro no Ta/mude, quando afirmam,
no Tratado do Sabat, cap. II, foi. 30, p. 2: disse R. jehuda, a
quem chamavam Rabi, que os peritos quiseram esconder o li-
vro do Eclesiastes porque as suas palavras contradizem as

• Anotação X:XV. A chamada Grande Sinagoga só começou a existir


depois <la conquista da Ásia pelos Macedônios. A hipótese de Maimônides,
do R. Abraão Ben David e outros, segundo a qual os presidentes desse con-
cílio teriam sido Esdras, Daniel, Neemias, Ageu, Zacarias, etc., é uma in-
venção ridícula e sem nenhum fundamento a não ser na tradição rabínica,
que pretende que o Império Persa não durou mais de 34 anos. Nem havia
outra forma de provar que os decretos [rejeitados pelos saduceus] dessa
grande Sinagoga ou Sínodo, composta apenas por fariseus, tinham sido
recolhidos diretamente da boca dos profetas, os quais os teriam por sua vez
recebido de outros profetas, e assim até Moisés, que os tinha recebido do
próprio Deus e transmitido oralmente, e não por escrito. Bem podem os
fariseus acreditar em tais coisas, com a sua habitual obstinação! As pessoas
esclarecidas, que conhecem as razões de ser dos concílios e dos sínodos,
bem como as controvérsias dos fariseus e dos saduceus, poderão facilmente
imaginar o motivo por que essa grande sinagoga ou concílio foi convocado.
O que é certo é que o dito concílio não contou com nenhum profeta entre
os seus membros e os decretos dos fariseus, a que eles chamam tradição,
[em torno dos quais se fez tanto barulho] não possuem outra autoridade
senão a do mesmo concílio.
TRATADO TEOLÓG/CO-POLÍ11CO 185

palavras da lei (N. B. o livro da lei de Moisés). Por que não


o esconderam então? Porque começa segundo a lei e sep,undo
a lei termina. Um pouco mais à frente: e também quiseram es-
conder o livro dos Provérbios, etc. Finalmente, ainda no mes-
mo Tratado, cap. I, foi. 13, p. 2: merece ser recordado, pela
sua benevolência, aquele homem de nome Neghunja, filho de
Ezequias, pois se não fosse ele o livro de Ezequiel teria sido es-
condido porque as suas palavras contradiziam as palavras
da lei. Por aqui se vê com toda a clareza que os peritos na lei
se reuniram em conselho para deliberar quais os livros que
deveriam ser tidos por sagrados e quais os que deveriam ser
excluídos. Quem, portanto, quiser estar seguro da autoridade
de todos eles, reconstitua do princípio ao fim esse conselho
e tente indagar qual o critério seguido.
Seria agora altura de examinar também os livros do Novo
Testamento. No entanto, porque sei que isso já foi feito por
homens extremamente conhecedores das ciências e ainda
mais das línguas; porque, além disso, não tenho um conhe-
cimento tão completo da língua grega que me atreva a meter
em tal domínio; e, enfim, porque não possuímos exemplares
dos livros que foram escritos em hebraico, é preferível renun- (151]
ciar a essa tarefa. Sublinharei apenas alguns aspectos que jul-
go mais diretamente ligados ao tema, conforme se verá nas
páginas que se seguem.
CAPÍTULO XI

Onde se averigua se os apóstolos


escreveram as suas epístolas na
qualidade de apóstolos e de profetas
ou na qualidade de doutores, e se
mostra depois qual foi a função
específica dos apóstolos

Ninguém que leia o Novo Testamento poderá pôr em


dúvida que os apóstolos foram profetas. Dado, porém, que
os profetas nem sempre falavam a partir de uma revelação,
coisa que era, aliás, bastante rara, como se mostrou no final
do capítulo I, podemo-nos interrogar se porventura os após-
tolos escreveram as suas epístolas como profetas, com base,
portanto, numa revelação e num mandato expresso, tal como
Moisés, Jeremias e outros, ou simplesmente a título particular
e como doutores'. Isso, sobretudo porque na I Epístola aos
Coríntios, cap. XIV, 6, Paulo distingue duas maneiras de pre-
gar, uma pela revelação, a outra pelo conhecimento, e daí,
repito, o podermo-nos interrogar se nas epístolas eles profe-
tizam ou ensinam.
Se repararmos no estilo, verificamos que o das epístolas
é muito diferente do da profecia. Os profetas, com efeito, cos-
tumavam estar sempre a garantir que falavam por ordem de
Deus: esta é a palavra de Deus, diz o Deus dos exércitos, o
mandamento de Deus, etc.; e não só quando falavam em pú-
blico, mas também nas cartas que continham revelações, como
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 187

se vê por aquela que Elias manda a Jorão (Paralipômenos, li-


vro II, cap. XXI, 12), a qual também começa por esta é pala-
vra de Deus. Nas epístolas dos apóstolos não encontramos
nada que se pareça. Pelo contrário, na I aos Coríntios, cap.
VII, 40, Paulo fala segundo a sua própria opinião. Em muitas
passagens, surgem até maneiras de dizer que denotam incer-
teza e perplexidade, como na Epístola aos Romanos, cap. III,
28: nós pensamos, portanto*; no cap. VIII, 18: eu, efetivamen-
te, julgo; e várias outras passagens do mesmo gênero. Por ou-
tro lado, encontram-se aí expressões que estão muito longe
daquilo que era a autoridade profética, tais como: digo isto,
no entanto, pelas minhas fracas capacidades e não por man-
dato (I Epístola aos Coríntios, cap. VII, 6); aconselho-vos como
homem,porqueagraçadeDeuséfiel(idem, cap. VII, 25); etc. (1521
E note-se que sempre que ele diz, neste capítulo, que tem ou
que não tem ordem ou mandato de Deus, nunca entende
por isso uma ordem ou um mandato revelado por Deus, mas
unicamente os ensinamentos dados por Cristo aos seus discí-
pulos na montanha.
Se repararmos depois na forma como os apóstolos apre-
sentam a doutrina evangélica, veremos que ela é também
muito diferente da dos profetas. Os apóstolos usam sempre
o raciocínio', de tal modo que não parecem profetizar mas
sim discutir; as profecias, pelo contrário, contêm apenas me-
ros dogmas e decretos, dado que nelas aparece Deus falan-
do e Deus não raciocina, decide pelo poder absoluto da sua
natureza. Além de quê, a autoridade do profeta não é passí-

• Anotação XXVI. Os intérpretes desta passagem traduzem a palavra


JogSzomai por concluo e sustentam que Paulo a utiliza em vez de sul-
logSzomai; na realidade, ela significa em grego o mesmo que "Hashab" em
hebraico, isto é, contar, pensar, calcular, significado que concorda perfeita-
mente com o texto siríaco. A tradução siríaca, com efeito (se é que se trata
de uma tradução, o que é duvidoso, pois não conhecemos nem o tradutor
nem a data em que terá aparecido, além de que a língua materna dos após-
tolos era o siríaco), traduz assim o texto de Paulo: "metraghenan hachil", que
Tremellius traduz, e muito bem, por julgamos, portanto. De fato, o substan-
tivo "rehgjono", formado a partir desse verbo, significa decisão, e correspon-
de ao hebraico "rehgutha", vontade-, por isso, queremos ou julgamos.
188 ESPINOSA

vel de raciocínios, pois quem quer confirmar pela razão os


seus próprios dogmas submete-os ao julgamento alheio. É
precisamente isso que Paulo, porque raciocina, parece fazer
quando afirma, na I Epístola aos Coríntios, cap. X, 15: falo-vos
como a sábios, julgai vós mesmos o que eu digo.
Por último, os profetas, como vimos no capítulo I, não
entendiam as coisas reveladas por via da luz natural, isto é,
raciocinando. E, se bem que nos cinco livros pareçam, às ve-
zes, chegar também a algumas conclusões através de ilações,
se alguém as analisar com atenção, verá que de modo al-
gum podem ter-se na conta de argumentos peremptórios. Por
exemplo, o que Moisés diz ao israelitas (Deuteronômio, cap.
XXXI, 27): se, enquanto eu vivi no meio de vós fostes rebeldes
à vontade de Deus, muito mais o sereis depois de eu morrer.
Não podemos tomar essa frase como se Moisés quisesse con-
vencer pela razão os israelitas de que após a sua morte se
afastariam necessariamente do verdadeiro culto de Deus. Até
porque o argumento seria falso, como também se pode de-
monstrar pela própria Escritura, pois os israelitas permanece-
ram fiéis enquanto viveu Josué, tal como depois sob os An-
ciãos e durante a vida de Samuel, Davi, Salomão, etc. Aque-
las palavras de Moisés são, portanto, apenas uma expressão
moral com que ele prediz, retoricamente e de forma que pu-
desse imaginar-se, com maior nitidez, a futura defecção do
povo. E só não digo que ele falou em seu próprio nome,
como alguém que quisesse tornar a sua profecia verossímil
aos olhos do povo e não como profeta que estivesse na pos-
se de uma revelação, porque no versículo 21 desse capítulo
se conta que Deus, por outras palavras embora, já tinha re-
velado isso mesmo a Moisés, o qual, evidentemente, não pre-
cisava de argumentos verossímeis para ficar ciente dessa pro-
[153] fecia divina: precisava, sim, como vimos no capítulo I, que
ela se lhe representasse na imaginação com a maior expres-
sividade; e, para o conseguir, nada melhor que imaginar como
futura a presente insubmissão do povo que ele tantas vezes
experimentara. Assim é que se devem interpretar todos os ar-
gumentos de Moisés que vêm nos cinco livros, ou seja, não
como algo extraído dos escrínios da razão, mas unicamente
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 189

como maneiras de dizer através das quais ele exprimia mais


eficazmente e imaginava com maior vivacidade as ordens de
Deus. Não pretendo, porém, excluir absolutamente que os
profetas pudessem argumentar a partir de uma revelação; afir-
mo simplesmente que, quanto mais rigorosa é a sua argumen-
tação, mais o conhecimento que têm da matéria revelada se
aproxima do conhecimento natural. É sobretudo por essa ra-
zão que se diz que os profetas possuem um conhecimento
acima do natural, isto é, por falarem em termos de puros dog-
mas, decretos ou sentenças. E por isso é que o maior dos
profetas, Moisés, jamais produziu um verdadeiro argumento.
Já quanto às longas deduções e argumentos de Paulo
que se encontram na Epístola aos Romanos, estou, pelo con-
trário, convencido de que não foram de modo algum escritos
por revelação sobrenatural. Tanto a maneira de falar como a
maneira de discutir dos apóstolos evidenciadas nas Epístolas
indicam, com toda a clareza, que elas não foram escritas por
revelação e mandato divino, mas apenas por discernimento
natural dos seus autores, e que não contêm senão advertên-
cias fraternais à mistura com uma delicadeza que é comple-
tamente alheia à autoridade com que falavam os profetas, tal
como aquele pedido de desculpa apresentado por Paulo na
Epístola aos Romanos, cap. XV, 15: escrevi em termos um pou-
co mais agrestes, irmãos. O mesmo se pode, aliás, concluir
do fato de não se ler em parte alguma que os apóstolos te-
nham recebido ordens para escrever, mas unicamente para
pregarem por toda parte aonde fossem e confirmarem as
suas palavras através de sinais. Com efeito, a sua presença, tal
como os sinais, eram absolutamente necessários para conver-
ter e confirmar os gentios na religião, como o próprio Paulo
expressamente indica na hpístola aos Romanos, cap. I, 11: por-
que desejo ardentemente ver-vos para repartir convosco o dom
do Espírito, a fim de que sejais confirmados.
Aqui, no entanto, objetar-se-á que, a ser assim, podería-
mos também concluir que os apóstolos não pregavam como
profetas. E, de fato, quando eles iam pregar aqui ou ali, não o
faziam por um mandato expresso, como outrora os profetas.
No Antigo Testamento, lemos que Jonas foi pregar a Nínive,
190 ESPINOSA
[1541 mas lemos também que foi lá expressamente enviado e que
lhe foi revelado o que aí devia pregar. O mesmo se passa
com Moisés, de quem se conta pormenorizadamente como
partiu para o Egito na qualidade de enviado de Deus e, por
outro lado, o que deveria dizer aos israelitas e ao rei faraó e
que sinais deveria fazer na frente deles para que o acreditas-
sem. Isaías, Jeremias e Ezequiel foram expressamente man-
dados pregar aos israelitas. Em suma, os profetas não prega-
ram coisa alguma que a Escritura não garanta ter sido recebi-
do de Deus. No Novo Testamento, porém, não vem nada de
parecido, a não ser excepcionalmente, acerca dos apóstolos,
quando estes iam pregar aqui ou ali. Pelo contrário, encon-
tramos certas passagens indicando explicitamente que eles
escolhiam por sua livre iniciativa as localidades aonde iam
pregar, a ponto de ter havido aquela discussão, que por pou-
co não se transformava em discórdia, entre Paulo e Barnabé,
como se pode ver nos Atos, cap. XV, 37, 38, etc. Muitas ve-
zes até, foi em vão que tentaram ir a algum lado, como diz
ainda Paulo, na Epístola aos Romanos, cap. 1, 13: quantas ve-
zes quis ir ter convosco e fui impedido; e no cap. XV, 22: por
causa disso, fiquei várias vezes impedido de ir ter convosco; e
no último capítulo da 1 Epístola aos Coríntios, 12; quanto a
Apolo, meu irmão, pedi-lhe encarecidamente que fosse até
junto de vós com os irmãos, mas ele não tinha nenhuma von-
tade de ir; logo que ele tenha oportunidade, etc. Donde, já
pela maneira de falar e pela discussão que se levantou entre
os apóstolos, já pelo fato de a Escritura não afirmar, quando
vão pregar a qualquer lado, que o fazem por ordem de Deus,
como afirma dos antigos profetas, dever-se-ia concluir que
eles pregaram como doutores e não como profetas. Mas a
questão resolve-se mais facilmente ainda se repararmos na
diferença entre a vocação dos apóstolos e a dos profetas do
Antigo Testamento. Estes, com efeito, não foram chamados
para pregar e profetizar a todas as nações, mas unicamente a
algumas, precisando por isso de um mandato expresso e sin-
gular para cada uma delas. Os apóstolos, pelo contrário, fo-
ram chamados para pregar a todas as nações e convertê-las à
religião. Por isso, aonde quer que fossem, cumpriam o man-
TRATADO 1EOLÓGJCO-POI111CO 191

dato de Cristo e não era necessário, antes de irem, revelar-


lhes o que deveriam pregar, porquanto eram discípulos de
Cristo a quem ele dissera: quando vos entregarem, não este-
jais preocupados com o que haveis de dizer nem com a ma-
neira como haveis de falar; porque na mesma hora ser-vos-á
dado o que haveis de dizer (Mateus, cap. X, 19 e 20). Em [155]
conclusão, os apóstolos só obtiveram mediante revelação par-
ticular aquilo que pregaram de viva voz e que também con-
firmaram por sinais (ver o que demonstramos no princípio
do capítulo II); mas aquilo que eles se limitaram a ensinar,
oralmente ou por escrito, sem o confirmar por sinais, isso foi
dito ou escrito mediante o conhecimento (natural, evidente-
mente), como se pode ver pela Epístola aos Coríntios, cap.
XIV, 6. Nem vale a pena determo-nos agora no fato de todas
as epístolas começarem com a invocação da qualidade de
apóstolo do seu autor, uma vez que, conforme demonstrarei
daqui a pouco, aos apóstolos foi concedida, não só a capaci-
dade de profetizar, mas também a autoridade para ensinar.
Admitimos, pois, que eles escreveram as suas epístolas na
qualidade de apóstolos, sendo essa a razão por que todos a
assumem no exórdio. Ou, talvez, para mais facilmente cati-
varem o ânimo dos leitores e chamarem a sua atenção, qui-
sessem garantir, antes de mais nada, que eram aqueles mes-
mos a quem já todos os fiéis conheciam pela sua pregação e
que tinham demonstrado, por testemunhos inequívocos, que
ensinavam a verdadeira religião e o caminho da salvação. De
fato, tudo quanto nessas epístolas se diz da vocação dos
apóstolos ou do Espírito Santo e divino que os inspirava refe-
re-se às pregações que tinham feito, exceto naquelas passa-
gens em que "Espírito de Deus" e "Espírito Santo" significam
uma mente sã, feliz e consagrada a Deus, etc., como explica-
mos no capítulo I. Paulo diz, por exemplo, na Epístola aos
Coríntios, cap. VII, 40: ( ... ) mas será feliz, em minha opinião,
se se mantiver assim, porquanto julgo também que o Espírito
de Deus está em mim. Donde, por "Espírito de Deus" ele en-
tende a sua própria mente, como se vê até pelo contexto da
frase, a qual significa o seguinte: a viúva que não quer voltar
a casar é, em minha opinião, feliz, porquanto eu decidi viver
192 ESPINOSA

em celibato e julgo-me feliz. E há outras passagens do mes-


mo gênero, que considero supérfluo citar.
Uma vez assentido que as Epístolas dos apóstolos foram
inspiradas unicamente pela luz natural, há que ver como pu-
deram eles, com base apenas no conhecimento natural, ensi-
nar coisas que não são do domínio deste. Em boa verdade,
se tivermos em conta o que dissemos no cap. VII deste trata-
do sobre a interpretação da Escritura, todas as dificuldades
desaparecem. Porque, muito embora o conteúdo da Bíblia
[1561 ultrapasse freqüentemente a nossa compreensão, podemos,
contudo, discuti-lo com segurança, desde que não admitamos
outros princípios além daqueles que se extraem da mesma
Escritura. Era exatamente o que se passava também com os
apóstolos, que a partir do que tinham visto, ouvido e obtido
por revelação podiam deduzir e concluir muitas outras coi-
sas e ensiná-las aos homens, se assim lhes aprouvesse. Além
disso, embora a religião, tal como era pregada pelos apósto-
los, isto é, pela simples narração da história de Cristo, não
seja do domínio da razão, o seu essencial, que consta sobre-
tudo de ensinamentos morais, assim como toda a doutrina
de Cristo*, pode facilmente ser seguido por qualquer um me-
diante apenas a luz natural3. Por último, os apóstolos não
precisavam de uma luz sobrenatural para adaptar a religião
que antes tinham confirmado por sinais à inteligência vulgar
dos homens e torná-la assim aceitável aos olhos de cada um.
Tampouco precisavam de uma tal luz para admoestarem os
homens. Ora, o objetivo das epístolas era precisamente esse:
ensinar e admoestar os homens através dos meios que cada
um dos apóstolos considerasse melhor para os confirmar na
religião.
Convém aqui lembrar o que dissemos mais acima: os
apóstolos tinham recebido, não só o poder de pregar a histó-
ria de Cristo como profetas, isto é, confirmando-a por sinais,
mas também a autoridade necessária para ensinar e admoes-

•Anotação XXVII. [A saber, aquela que Jesus Cristo tinha ensinado na


montanha, e que São Mateus menciona nos caps. V e seguintes.]
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTICO 193

tar pela via que cada um achasse melhor. Paulo refere um e


outro desses dons na II Epístola a Timóteo, cap. 1, 11: (. .. ) no
qual fui constituído arauto, apóstolo e doutor dos gentios. E
na 1 Epístola a Timóteo, cap. II, 7: fui constituído arauto e
apóstolo (digo a verdade por Cristo, não minto), doutor dos
gentios na fé [N. B] e na verdadé'. Por essas palavras, repito,
Paulo evidencia claramente a sua dupla qualidade de apósto-
lo e doutor. Quanto à autoridade para admoestar quem quer
que seja e sempre que quiser, ela vem expressa nestes ter-
mos da Epístola a Filêmon (v. 8): embora tenha a maior li-
berdade em jesus Cristo de te prescrever o que te convém, no
entanto, etc. É de notar que, se fosse como profeta que Pau-
lo tinha sabido de Deus o que era necessário prescrever a Fi-
lêmon, e se tivesse de lho prescrever na mesma qualidade,
não lhe seria lícito mudar para orações aquilo que Deus or-
denara. Donde, temos absolutamente de concordar que ele
fala da faculdade de admoestar que possuía enquanto doutor
e não enquanto profeta. Todavia, não fica ainda suficiente- [1571
mente claro que os apóstolos pudessem escolher o método
de ensinar que cada um deles considerasse melhor, mas uni-
camente que, pela sua missão de apóstolos, eram não só pro-
fetas como também doutores. Isso, se não quisermos apelar
para a razão, segundo a qual quem tem autoridade para en-
sinar tem também autoridade para escolher o método que
entender. Mas será melhor demonstrá-lo só pela Escritura.
Na realidade, vem com toda a clareza na Escritura que
cada um dos apóstolos escolheu o seu próprio método, como
se vê pelas palavras de Paulo na Epístola aos Romanos, cap.
XV, 20: tendo o cuidado de não pregar onde o nome de Cris-
to já era invocado, a fim de não construir sobre fundamentos
alheios. Porque, se todos tivessem seguido o mesmo método
de ensino e fizessem assentar a religião cristã no mesmo fun-
damento, Paulo não teria nenhuma razão para chamar alheios
aos fundamentos em que se baseiam outros apóstolos, uma
vez que ele próprio se basearia neles. Mas como efetivamen-
te ele os considera alheios, é necessário concluir que cada
qual fundamentava diferentemente a religião e que acontecia
194 ESPINOSA

aos apóstolos, quando ensinavam, o mesmo que aos outros


doutores, que têm cada um o seu método particular de ensi-
no e que preferem ensinar aqueles que estão ainda comple-
tamente ignorantes e não começaram a aprender com mais
ninguém as línguas, as ciências ou até as matemáticas, de cuja
verdade ninguém duvida.
Por outro lado, se lermos as epístolas com um mínimo de
atenção, veremos que os apóstolos, estando embora de acor-
do quanto à religião em si mesma, divergiam imenso sobre
os seus fundamentos. Paulo, para confirmar os homens na re-
gião e demonstrar-lhes que a salvação depende só da graça
de Deus, ensinou que ninguém pode vangloriar-se das obras,
mas apenas da fé, que ninguém é justificado pelas obras (Epís-
tola aos Romanos, cap. III, 27, 28), e assim por diante, toda a
doutrina da predestinação. Tiago, pelo contrário, ensina na
sua Epístola que o homem é justificado pelas obras e não ape-
nas pela fé (Epístola de Tiago, cap. II, 24), resumindo toda a
doutrina religiosa em brevíssimas palavras e deixando de lado
todas aquelas discussões de Paulo5•
Por último, é evidente que esse fato de os apóstolos
edificarem a religião sobre uma tal diversidade de alicerces
está na origem de muitas controvérsias e cismas pelos quais a
Igreja foi, desde os tempos dos apóstolos até hoje, incessan-
temente vexada e com certeza continuará a sê-lo até o dia
[1581 em que a religião, finalmente, se aparte das especulações fi-
losóficas e se reduza àquele pequeno número de dogmas
muito simples que Cristo ensinou aos seus discípulos. Mas
isso os apóstolos não o podiam fazer, dado que os homens
desconheciam o Evangelho e por essa razão é que adapta-
vam, tanto quanto possível, a sua doutrina à mentalidade da
época, ainda assim ela não ferisse excessivamente os ouvi-
dos dos seus contemporâneos (vide I Epístola aos Coríntios,
cap. IX, 19, 20, etc.), erigindo-a sobre os fundamentos mais
conhecidos e aceitos de então. Daí que nenhum dos apósto-
los tenha filosofado mais do que Paulo, que foi chamado a
pregar aos gentios. Os restantes, que pregaram aos judeus,
isto é, a gente que desprezava a filosofia, adaptaram-se tam-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO 195

bém à sua mentalidade (sobre isto, veja-se a bpístola aos Gá-


latas, cap. II, 11, etc.) e ensinaram a religião despojada de
especulações filosóficas. Quão feliz seria agora o nosso tem-
po se a víssemos igualmente liberta de toda espécie de su-
perstição!
CAPÍTULO XII

Do verdadeiro texto da lei divina


e por que razão a Escritura se designa
por sagrada e se considera a palavra
de Deus. Onde se demonstra, em suma,
que a mesma Escritura, enquanto
portadora da palavra de Deus,
chegou até nós intacta

Aqueles que consideram os livros da Bíblia, tal como hoje


existem, uma espécie de carta que Deus mandou lá do céu
aos homens vão com certeza exclamar que eu cometi um pe-
cado contra o Espírito Santo por considerar que a palavra de
Deus está errada, truncada, adulterada e incoerente consigo
mesma, que só possuímos alguns fragmentos dela e, finalmen-
te, que o documento do pacto firmado por Deus com os ju-
deus se perdeu. Estou, no entanto, seguro de que, se concor-
darem em examinar o assunto, deixarão logo de protestar.
Com efeito, tanto a razão como as declarações dos profetas e
dos apóstolos proclamam abertamente que o verbo eterno de
Deus, o seu pacto e a verdadeira religião estão inscritos pela
mão divina no coração dos homens, isto é, na mente do ho-
mem: é esse o verdadeiro documento de Deus, aquele que
ele próprio autenticou com o seu selo, quer dizer, com a idéia
de si, essa como que imagem da sua divindade.
[1591 Aos primitivos judeus, a religião foi dada por escrito e
sob a forma de lei, porque nesse tempo eles eram quase como
crianças. Mais tarde, porém, Moisés (Deuteronômio, cap. XXX,
6) e Jeremias (cap. XXXI, 33) pregaram-lhes que viria o tem-
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTICO 197

po em que Deus inscreveria a lei nos seus corações. Nessa


medida, só aos judeus, e especialmente aos saduceus 1, com-
petia outrora pugnar pela lei escrita nas tábuas, não àqueles
que a têm inscrita nas suas mentes. Quem tiver isso em con-
sideração não encontrará no que acima ficou dito alguma coi-
sa que contradiga a palavra de Deus, ou seja, a verdadeira
religião e a fé, ou que a possa pôr em causa; pelo contrário,
verificará que nós a confirmamos, conforme ficou demons-
trado no final do capítulo X. Se assim não fosse, eu teria de-
cidido calar-me por completo a respeito de tais questões e
admitiria até, para evitar quaisquer problemas, que há misté-
rios profundíssimos escondidos nas Escrituras. Mas como foi
precisamente isso que deu azo a uma intolerável superstição
e bem assim a outros inconvenientes gravíssimos de que já
falei no preâmbulo do capítulo VII, tive para mim que não
deveria abster-me de analisá-lo. Sobretudo porque a religião
dispensa os ornamentos da superstição e fica, pelo contrário,
privada do seu próprio esplendor quando adornada com se-
melhantes invenções. Dirão, no entanto, que, embora a lei
divina esteja inscrita nos corações, a Escritura não deixa ain-
da assim de ser a palavra de Deus, pelo que não é lícito di-
zer, da Escritura como da palavra de Deus, que ela está trun-
cada e falsificada. Mas o que eu receio, de fato, é que, de tão
santos pretenderem ser, eles convertam a religião em supers-
tição e comecem até a adorar simulacros e imagens, isto é,
papel e tinta, como se fossem a palavra de Deus. Tenho cer-
teza de que não disse nada de indigno para a Escritura ou
para a palavra de Deus e que não afirmei nada que não te-
nha demonstrado ser verdadeiro mediante argumentos extre-
mamente evidentes. Por essa razão ainda, posso garantir que
não disse nada de ímpio ou que cheire a impiedade. Admito
que certas pessoas sem escrúpulos, para as quais a religião é
um fardo, possam retirar daquilo que eu disse uma justifica-
ção para pecar e concluir, sem nenhuma razão e unicamen-
te para se entregarem aos prazeres, que a Escritura está cheia
de erros e falsificações, sendo, por isso, destituída de qual-
quer autoridade. De coisas dessas, porém, ninguém está li-
vre, de acordo com aquele provérbio segundo o qual é im-
198 ESPINOSA

possível dizer alguma coisa de forma tão correta que ela não
possa, interpretando-a mal, vir a ser deturpada. Quem quer
ceder ã licenciosidade, arranja sempre uma justificação qual-
quer. Nem sequer aqueles que possuíam, antigamente, os
textos originais - a arca da aliança - nem os que tinham ã sua
[160] disposição os próprios profetas e apóstolos, foram melhores
ou mais obedientes: todos eles, tanto judeus como gentios,
foram sempre a mesma coisa e, em todos os tempos, a virtude
foi extremamente rara. Apesar disso, e para remover qualquer
escrúpulo, temos de mostrar aqui, primeiro, em que sentido a
Escritura, ou qualquer outra coisa sem voz, se pode tomar
por sagrada e divina; segundo, o que é realmente a palavra de
Deus e como ela não se restringe a um determinado número
de livros; por último, que a Escritura, enquanto ensina o que
é necessário para a obediência e a salvação, não pode ter-se
corrompido. Por aí se poderá facilmente constatar que não
dissemos nada contra a palavra de Deus nem demos alguma
vez lugar à impiedade.
Chama-se sagrado e divino aquilo que se destina ao exer-
cício da piedade e da religião. Uma coisa é sagrada só en-
quanto os homens a usarem religiosamente; se os homens
deixarem de ser piedosos, de imediato ela deixa de ser sagra-
da; por outro lado, se a utilizarem para perpetrar ações ím-
pias, então essa mesma coisa, que antes era sagrada, tornar-
se-á imunda e profana. Assim, por exemplo, o patriarca Jacó
chamou casa de Deus a um determinado lugar porque Deus
aí se lhe revelou e ele lhe prestou culto; porém, o mesmo lu-
gar foi designado pelos profetas como casa da iniqüidade
(Amós, cap. V, 5, e Oseu, cap. X, 5) porque os israelitas, por
ordem de Jeroboão, costumavam lá oferecer sacrifícios aos
ídolos. Vejamos um outro exemplo que aponta claramente
no mesmo sentido. As palavras só possuem determinado sig-
nificado em função da maneira como se usam; se, de acordo
com essa sua utilização, elas vêm ordenadas de forma que
sugiram a quem as lê sentimentos devotos, tais palavras se-
rão sagradas, bem como o livro que resulta dessa sua dispo-
sição. Mas, se elas depois deixarem de ser usadas, a ponto
de já não terem nenhum significado, ou se o livro for total-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO 199

mente esquecido, seja pela malícia dos homens, seja por já


não se precisar dele, então, quer as palavras quer o livro não
têm mais nenhuma utilidade nem réstea de santidade. Se, en-
fim, as mesmas palavras forem dispostas de outra maneira, ou
se a norma em vigor lhes atribuir um significado oposto, en-
tão também, palavras e livro, que antes eram sagrados, tornar-
se-ão impuros e profanos. Donde se conclui que nada, em si
mesmo, é sagrado, profano ou impuro, e que só em função da
mente o poderá ser, de acordo também com inúmeras passa-
gens da Escritura.
Jeremias (para dar apenas um ou dois exemplos) diz, no
cap. VII, 4, que os judeus do seu tempo chamavam errada-
mente ao templo de Salomão o templo de Deus: é que, acres-
centa no mesmo capítulo, o nome de Deus só deveria aplicar- [161]
se ao templo enquanto este fosse freqüentado por homens
que honram esse nome e defendem a justiça; porque, se for
freqüentado por homicidas, ladrões, idólatras e outros crimi-
nosos, então o que ele é, de fato, é um covil de malfeitores.
A Escritura, por outro lado, não refere o que foi feito da arca
da aliança, coisa que muitas vezes me deixou admirado, mas
não restam dúvidas de que ela se perdeu ou ardeu com o
templo, muito embora não houvesse nada mais sagrado e me-
recedor de maior respeito aos olhos dos hebreus. Por isso
mesmo, também a Escritura é sagrada e os seus textos são
divinos enquanto induzirem os homens à devoção para com
Deus; se estes a desprezarem por completo, como fizeram
outrora os judeus, reduzir-se-á a simples papel e tinta, sendo
totalmente profanada e ficando sujeita à deturpação. Mas, a
essa altura, se ela realmente for deturpada ou desaparecer,
será falso dizer-se que a palavra de Deus se deturpou ou per-
deu, tal como seria falso, no tempo de Jeremias, dizer que era
o templo de Deus aquele que tinha sido destruído pelas cha-
mas. Jeremias, aliás, diz isso também a respeito da própria lei,
quando interpela os ímpios do seu tempo nestes termos: Com
que direito dizeis "nós somos os especialistas, a lei de Deus
está conosco"? Decerto foi em vão que ela foi posta por escrito
e que a pena dos escribas (a escreveu), ou seja, é falso dizer-
des que possuís a lei de Deus, ainda que tenhais a Escritura
200 ESPINOSA

em vosso poder, pois fizestes dela uma coisa inútil. Do mes-


mo modo, quando Moisés partiu as primeiras tábuas da lei,
não foi de maneira nenhuma a palavra de Deus que ele, en-
colerizado, arremessou e partiu. Quem poderia supor seme-
lhante coisa, tratando-se de Moisés e da palavra de Deus? Fo-
ram unicamente pedras, que, embora antes fossem sagradas
porque nelas estava inscrito o pacto pelo qual os judeus se
tinham comprometido a obedecer a Deus, contudo, a partir
do momento em que eles romperam o pacto adorando um
bezerro, tinham ficado desprovidas de qualquer santidade. E
as segundas tábuas podem ter desaparecido, juntamente com
a arca, por essa mesma razão. Não admira, pois, que os ma-
nuscritos originais de Moisés também já não existam e que
os livros que chegaram até nós tenham conhecido as vicissi-
tudes que já referimos, quando até o original que continha o
pacto divino e que era o mais santo de todos eles pôde desa-
parecer por completo. Cessem, portanto, de nos acusar de
impiedade, a nós que nada dissemos contra a palavra de Deus
nem a conspurcamos, e voltem à ira, se é que são capazes de
uma justa ira, contra os antigos cuja malícia profanou e ex-
[162] pôs à deturpação a arca de Deus, o templo, a lei e tudo quan-
to era sagrado. E, se, de acordo com o que diz o apóstolo, na
II Epístola aos Coríntios, cap. III, 3, têm dentro de si a pala-
vra de Deus, escrita, nào com tinta, mas com o Espírito divi-
no, nào em tábuas de pedra 2 , mas nas tábuas de carne do co-
ração, deixem de adorar a letra e de estar tão preocupados
com ela.
Com isso, creio ter explicado suficientemente em que
sentido a Escritura deve ser tida por sagrada e divina. Vejamos
agora o que se deve propriamente entender por debar jeho-
va (palavra de Deus) Debar significa palavra, discurso, édito
e coisa. Por que razão se diz, em hebraico, que algo perten-
ce ou se refere a Deus, já o explicamos no cap. I e, portanto,
é fácil perceber o que significa, na Escritura, palavra, discur-
so, édito, coisa de Deus. É escusado, pois, repetir aqui tudo
isso, o mesmo acontecendo com o que apresentamos em ter-
ceiro lugar no cap. VI, ao falarmos dos milagres. Bastará uma
indicação apenas para que se compreenda melhor o que que-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 201

remos dizer: a palavra de Deus, quando é predicado de um


sujeito que não o próprio Deus, significa precisamente essa
lei divina de que falamos no capítulo IV, isto é, a religião uni-
versal ou católica3 , comum a todo o gênero humano, como
se pode ver em Isaías, cap. I, 10, etc., onde o profeta ensina
a verdadeira regra de vida, que não consiste em cerimônias
mas na caridade e autenticidade, chamando-lhe indiscrimina-
damente lei e palavra de Deus. A expressão é, por outro lado,
usada metaforicamente para significar a própria ordem da
natureza, o destino (na medida em que ele depende e decor-
re, na realidade, do eterno decreto da natureza divina), e em
particular aquilo que dessa ordem os profetas previram, já
que eles não se apercebiam das coisas futuras através das suas
causas naturais, mas sim como vontades e decretos de Deus.
Significa também um édito promulgado por qualquer dos
profetas, na medida em que este o compreendera pela sua
singular virtude, ou seja, pelo dom profético, e não através
da luz natural comum; isso, porque os profetas costumavam,
de fato, ver em Deus um legislador, tal como mostramos no
capítulo IV. A Escritura, por conseguinte, chama-se palavra
de Deus por três motivos: primeiro, porque ensina a verda-
deira religião de que é autor o Deus eterno; segundo, por-
que apresenta as profecias sobre coisas futuras como decrec
tos de Deus; finalmente, porque aqueles que foram de fato os
seus autores ensinaram, a maioria das vezes, não através da
luz natural comum, mas de uma luz qualquer que lhes era
peculiar, pondo inclusive Deus para pronunciar tais ensina- [1631
mentas. E, se bem que a Escritura contenha, além disso, ou-
tras coisas que são meramente históricas e percebidas pela
luz natural, no entanto aquela designação advém-lhe do seu
conteúdo principal.
Percebe-se assim em que sentido se deve entender que
Deus é o autor dos livros da Bíblia: é, evidentemente, porque
aí se ensina a verdadeira religião e não porque Deus tenha
querido transmitir aos homens um certo número de livros.
Podemos também concluir daí a razão por que a Bíblia está
dividida em livros do Antigo e do Novo Testamento: é que,
antes do advento de Cristo, os profetas costumavam pregar a
202 ESPINOSA

religião como lei da Pátria baseada no pacto concluído no


tempo de Moisés, ao passo que os apóstolos a pregaram de-
pois a todos os homens como lei católica e baseada apenas
na paixão de Cristo. Não que eles sejam diferentes pela dou-
trina ou que tenham sido escritos como certidões de um pac-
to, ou ainda que a religião católica, que é sumamente natu-
ral, constituísse algo de novo a não ser do ponto de vista dos
homens, que antes não a conheciam: ele estava no mundo -
diz João Evangelista, no cap. 1, 10 - e o mundo não o conhe-
ceu. Mesmo que tivéssemos menos livros, tanto do Antigo
como do Novo Testamento, nem por isso estaríamos priva-
dos da palavra de Deus (expressão pela qual, em rigor e
como já dissemos, se entende a verdadeira religião), da mes-
ma forma que não pensamos estar privados dela muito em-
bora faltem alguns escritos da maior importância, como o li-
vro da Lei, que estava religiosamente guardado no Templo a
título de certidão da aliança, e os livros das Guerras, das Crô-
nicas e um bom número de outros de que foram tirados e co-
ligidos os que vêm no Antigo Testamento. Há, de resto, mui-
tos argumentos a confirmá-lo. Assim:
1 - Os livros de ambos os Testamentos não foram escritos
por mandato expresso e de uma vez por todas, mas por sim-
ples acaso, por certos e determinados homens, em conformi-
dade com as exigências do seu tempo e a sua própria manei-
ra de ser, como indica claramente a vocação dos profetas
(que foram chamados para admoestar os ímpios do seu tem-
po) e as Epístolas dos apóstolos.
II - Uma coisa é compreender a Escritura e o pensamen-
to dos profetas, outra coisa é compreender a mente de Deus,
isto é, a verdade, como resulta daquilo que explicamos no ca-
pítulo II a propósito dos profetas. O mesmo se poderá dizer
em relação às narrativas sobre os milagres, como frisamos no
cap. VI, embora não se possa aplicar àquelas passagens onde
se trata da verdadeira virtude.
[1641 III - Os livros do Antigo Testamento foram escolhidos
dentre muitos outros e reunidos e aprovados por um concí-
lio de fariseus, como mostramos no cap. X; os livros do Novo
Testamento foram também admitidos no cânon por decretos
TRATADO TEOLÓGICO-POÚT1CO 203

de vários concílios, nos quais se rejeitaram como espúrios al-


guns outros que muita gente tinha por sagrados. Ora, entre os
participantes desses concílio (tanto dos fariseus como dos cris-
tãos) não havia profetas, mas só peritos e doutores, e não obs-
tante temos de admitir que, nessa seleção, o critério usado foi
a palavra de Deus. Sendo assim, antes de aprovarem todos
os livros, eles tinham necessariamente de ter conhecimento
dessa mesma palavra de Deus4 •
IV - Os apóstolos, como dissemos no capítulo anterior,
não escreveram na qualidade de profetas mas de doutores e
escolheram o método que consideraram mais fácil para os
discípulos a quem queriam ensinar; daí haver nos seus escri-
tos (como também concluímos no fim do dito capítulo) mui-
tas coisas de que hoje poderíamos, no que diz respeito à re-
ligião, prescindir.
V - Finalmente, quem é que acredita, pelo fato de haver
quatro evangelistas no Novo Testamento, que Deus quisesse
contar e transmitir por escrito aos homens quatro vezes a
história de Cristo? E, embora num se encontrem certas coisas
que não vêm no outro e, muitas vezes, este ajudar a com-
preender aquele, não vamos, todavia, concluir daí que tudo
o que é contado por eles quatro é indispensável e que Deus
os escolheu para escreverem com a finalidade de se enten-
der melhor a história de Cristo. De fato, cada um deles pre-
gou o seu Evangelho em diferente lugar e cada um escreveu
o que havia pregado, única e simplesmente para contar de
maneira clara a história de Cristo e não para explicar o que
os outros tinham escrito. Se pela comparação dos Evangelhos
se consegue, às vezes, compreendê-los melhor e mais facil-
mente, isso acontece só por acaso e com muito poucas pas-
sagens, as quais poderíamos ignorar, que a história não fica-
va menos clara nem os homens eram menos felizes.
Ficou assim demonstrado que a Escritura, em rigor, só
pode chamar-se palavra de Deus na perspectiva da religião,
isto é, da lei divina universal. Resta agora mostrar que, consi-
derada nessa perspectiva, ela não tem erros nem está deturpa-
da ou truncada. Por errado, deturpado e truncado entende-se
aqui um texto tão mal escrito e composto que é impossível
204 ESPINOSA

descobrir o seu sentido com base na norma lingüística ou de-


(1651 duzi-lo apenas da Escritura. De forma alguma pretendo afir-
mar que a Escritura, só porque contém a lei divina, manteve
sempre os mesmos acentos, as mesmas letras e, em suma, as
mesmas palavras (deixo aos Masoretas e aos que têm uma
adoração supersticiosa pela letra o trabalho de o demonstra-
rem); quero apenas dizer que o significado, que é a única
coisa que conta para que um texto se possa apelidar de divi-
no, chegou até nós intacto, muito embora se presuma que as
palavras em que originalmente foi expresso possam ter sido
muitas vezes alteradas. Como dissemos, isso não retira nada
à divindade da Escritura, já que ela seria igualmente divina
se fosse escrita com outras palavras e em outra língua. Nesse
sentido, ninguém poderá pôr em dúvida que a lei divina
chegou até nós intacta. Com efeito, é a própria Escritura que
explica, sem nenhuma dificuldade ou ambigüidade, que a lei
se resume em amar a Deus sobre todas as coisas e ao próxi-
mo como a nós mesmos. E isso não pode ter sido adulterado
ou escrito por uma pena apressada e deturpadora. Porque,
se acaso a Escritura alguma vez ensinou algo diferente disso,
então deve ter também ensinado diferentemente todo o res-
to, já que isso é o fundamento de toda a religião, retirado o
qual todo o edifício se desmorona no mesmo instante. Além
de quê, nesse caso, a Escritura já não seria a mesma de que
temos vindo aqui falar, mas um livro completamente diferen-
te. É, portanto, incontroverso que a Sagrada Escritura jamais
ensinou outra coisa e, conseqüentemente, sobre esse ponto
não poderia incidir nenhum erro que alterasse o sentido e
que não fosse, de imediato, detectado, da mesma forma que
ninguém podia tê-lo deturpado sem que a sua malícia não
saltasse logo à vista.
Porém, se esse fundamento tem de aceitar-se como ten-
do chegado até nós sem nenhuma alteração, há que reco-
nhecer o mesmo a respeito de tudo quanto daí deriva de for-
ma incontroversa e que é igualmente fundamental, a saber,
que Deus existe, que a sua providência é universal, que é oni-
potente, que os bons, ante sua lei, serão recompensados e os
maus castigados, e que a nossa salvação depende unicamen-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 205

te da sua graça. Tudo isso a Escritura o ensina claramente em


qualquer das suas partes, e sempre o deve ter ensinado, pois
de outra forma todo o resto seria vão e sem fundamento.
Igualmente intactas se devem considerar as outras verdades
morais, porquanto derivam com toda evidência daquele fun-
damento universal: por exemplo, defender a justiça, auxiliar
os pobres, não matar, não cobiçar o alheio, etc. Aí, repito, nem
a malícia dos homens pôde deturpar nem o tempo pôde apa-
gar fosse o que fosse. Porque tudo aquilo que dessas verdades
fosse suprimido imediatamente o seu fundamento universal
o restabeleceria de novo, em particular o ensinamento da ca- [166J
ridade, que quer o Antigo quer o Novo Testamento tanto re-
comendam. A isso acresce que, muito embora seja impossí-
vel imaginar um crime tão execrável que não tenha já sido
alguma vez cometido, não há, no entanto, ninguém que para
desculpar os seus crimes tente fazer desaparecer as leis ou
introduzir uma impiedade como ensinamento eterno e útil à
salvação. O que se verifica é que a natureza humana está
constituída de tal maneira que quem quer que pratique (seja
rei seja súdito) qualquer ação torpe procura apresentar aqui-
lo que fez de maneira que pareça que não cometeu nada de
injusto ou indigno.
Concluindo, toda a lei divina universal que a Escritura
ensina chegou até nós isenta de qualquer adulteração. Para
além disso, existem ainda outros pontos de que não pode-
mos duvidar e que nos foram até transmitidos de boa fé. É o
caso dos mais importantes relatos históricos da Escritura, uma
vez que se trata de fatos que eram conhecidos de todos. En-
tre os judeus, o povo costumava antigamente cantar em sal-
mos a história da nação. Da mesma forma, o essencial daqui-
lo que Cristo fez e a sua paixão foram imediatamente divul-
gados por todo o Império Romano. É, efetivamente, impen-
sável, a menos que a maior parte da humanidade se tivesse
posto de acordo a esse respeito, o que não é de admitir, que
o essencial desses relatos fosse transmitido pelas gerações
posteriores de forma diferente daquela em que os tinham rece-
bido. As adulterações e os erros, por conseguinte, só podem
ter incidido sobre outros aspectos, melhor dizendo, num ou
206 ESPINOSA

noutro pormenor da narrativa ou da profecia, para incentivar


o povo à devoção; neste ou naquele milagre, para confundir
os filósofos; ou, enfim, nas matérias de ordem especulativa, a
partir do momento em que estas começaram a ser introduzi-
das na religião pelos cismáticos, para que cada um pudesse
abusivamente fundamentar na autoridade divina as suas in-
venções. Para a salvação, todavia, pouco importa que esse gê-
nero de coisas tenham ou não sido adulteradas: é o que vou
especificamente demonstrar no capítulo seguinte, embora
creia que isso já tenha ficado claro pelo que disse anterior-
mente, em particular no capítulo II.
CAPÍTULO XIII [167]

Onde se mostra que a Escritura só ensina


coisas muito simples e não tem por
objetivo senão a obediência; mesmo da
natureza de Deus, ela não ensina senão
aquilo que os homens podem imitar
através de uma certa regra de vida

No capítulo II deste Tratado, mostramos como os profe-


tas eram dotados de uma especial capacidade de imaginar,
sim, mas não de compreender, que Deus não lhes revelou ne-
nhum segredo da filosofia, mas apenas coisas extremamente
simples, e que, além disso, se adaptou às suas opiniões pre-
concebidas. Mostramos depois, no capítulo V, que a Escritura
expõe e ensina as coisas de maneira que possam ser facilmen-
te percebidas por qualquer pessoa. Dito de outro modo, ela
não as deduz e encadeia a partir de axiomas e definições, mas
limita-se a dizê-las de um modo simples, além de quê, em
abono das suas palavras, utiliza exclusivamente a experiên-
cia', isto é, os milagres e os relatos históricos, os quais, por sua
vez, estão também descritos num estilo e em frases destina-
das a emocionar os ânimos do vulgo (sobre esse aspecto, veja-
se o que ficou demonstrado no terceiro ponto do capítulo
VI). Finalmente, no capítulo VII, mostramos como a dificulda-
de em compreender a Escritura reside unicamente na língua e
não na transcendência do assunto. Acontece até que os pro-
fetas não pregaram para os sábios, mas para todos os judeus sem
distinção, tal como os apóstolos costumavam ensinar a dou-
trina do Evangelho nas igrejas', onde se reunia toda a gente.
208 ESPINOSA

De tudo isso resulta que a doutrina da Escritura não in-


clui altas especulações ou considerações filosóficas, mas tão-
só coisas simplicíssimas que qualquer um, por mais rude que
seja, pode entender. Admira-me bastante, pois, a engenhosi-
dade de pessoas, como aquelas de quem já falei, que enxer-
gam na Escritura mistérios tão profundos que se toma impos-
sível explicá-los em qualquer língua humana e que, além dis-
so, introduziram na religião tantas matérias de especulação
filosófica que a Igreja até parece uma academia e a religião
uma ciência, ou melhor, uma controvérsia. Em boa verdade,
nem sequer é de admirar que homens que se gabam de pos-
suir uma luz sobrenatural não queiram considerar-se inferio-
res em conhecimentos aos filósofos, que nada mais têm se-
não a luz natural. O que seria para admirar era se eles ensi-
nassem algo de novo no campo da pura especulação, algo
[1681 que não fosse já outrora extremamente banal entre os filóso-
fos pagãos, a quem, no entanto, eles acusam de ser cegos.
Se, com efeito, se averiguar que mistérios eles vêem escondi-
dos na Escritura, ninguém encontrará nada a não ser ficções
de Aristóteles, de Platão ou de qualquer outro parecido, fic-
ções que, na maior parte dos casos, é mais fácil qualquer
idiota imaginá-las a sonhar que um grande erudito descobri-
las a partir da Escritura 3 • Não é que pretendamos de todo em
todo afirmar que nenhuma verdade que seja de pura especu-
lação pertence à doutrina da Escritura, pois no capítulo ante-
rior referimos como fundamentais algumas desse gênero. O
que eu quero dizer é apenas que elas são muito poucas e
muito simples.
Quais são essas verdades e por que método as podemos
determinar? Eis o que me proponho apresentar no presente
capítulo. E nào será difícil, uma vez que já vimos que o ob-
jetivo da Escritura nào era ensinar as ciências, daí se poden-
do finalmente concluir que ela só exige dos homens a obe-
diência e condena a insubmissão, não a ignorância. Depois,
como a obediência a Deus consiste unicamente em amar o
próximo (pois quem ama o próximo com a intenção de obe-
decer a Deus cumpre a Lei, como diz Paulo na Epístola aos
Romanos, cap. XIII, 8), segue-se que a única ciência4 reco-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 209

mendada pela Escritura é a que é necessária a todos os ho-


mens para obedecer a Deus segundo esse preceito, ciência
que, se eles ignorarem, serão necessariamente insubmissos
ou, pelo menos, privados da disciplina da obediência. Quan-
to às restantes especulações, que não visam diretamente este
objetivo, quer contemplem o conhecimento de Deus ou o das
coisas naturais, não dizem respeito à Escritura e devem, por
conseguinte, estar separadas da religião revelada 5 •
Como dissemos, tudo isso é óbvio para qualquer pessoa.
No entanto, e porque o problema é decisivo para toda a Re-
ligião, vou expor mais pormenorizadamente e explicar de ma-
neira mais clara todo esse assunto. Para tanto, é necessário
demonstrar, primeiro, que o conhecimento intelectual, isto é,
exato, de Deus não é um dom comum a todos os fiéis, como
o é a obediência; em segundo lugar, que o único conheci-
mento que Deus, por intermédio dos profetas, exigiu a todos
sem exceção e que cada um é obrigado a possuir é o conhe-
cimento da sua divina justiça e caridade.
Qualquer desses pontos é demonstrado com facilidade
pela Escritura. O primeiro é uma conseqüência absolutamen-
te evidente do Êxodo, cap. VI, 3, onde Deus, para evidenciar
a singular graça que concedeu a Moisés, diz o seguinte: e re- [1691
velei-me a Abraão, a Isaac e a ]acó como Deus Sadai, mas
não me conheceram pelo meu nome de Jeová. Para melhor
compreensão dessa passagem, convém notar que El Sadai
significa, em hebraico, "Deus que basta", na medida em que
dá a cada um o bastante; e, embora se empregue Sadai mui-
tas vezes isoladamente para significar Deus, não há nenhu-
ma dúvida de que está sempre subentendida a palavra El
(Deus). É de notar também que não se encontra na Escritura
nenhum nome, além de Jeová, que exprima a essência abso-
luta de Deus independentemente da sua relação com as coi-
sas criadas. Por isso é que os hebreus pretendem que esse é
o único nome próprio de Deus, não passando os outros de
apelativos. E, realmente, os restantes nomes de Deus, sejam
eles substantivos ou adjetivos, são atributos6 que convêm a
Deus só enquanto este se considera relacionado com as coi-
sas criadas ou manifestando-se através delas: por exemplo El
210 ESPINOSA

ou, com a letra paragógica He, Eloah, que não significa se-
não poderoso, como se sabe, e que só se adapta a Deus no
sentido de "o poderoso por excelência", tal como quando
chamamos a Paulo o Apóstolo. Outras vezes, explicitam-se
as virtudes do seu poder: El (poderoso) grande, tremendo,
justo, misericordioso, etc. ou então, para indicar simultanea-
mente todas essas virtudes, usa-se a palavra no plural mas
com significado singular, coisa que é muito freqüente na Es-
critura. Ora, se Deus diz a Moisés que os antepassados não o
conheceram pelo nome de Jeová, é porque eles não conhe-
ceram nenhum atributo de Deus que traduza a sua essência
absoluta, mas unicamente os seus efeitos e promessas, isto é,
a sua potência enquanto manifestada através de coisas visí-
veis. E isso não é dito por Deus para acusar de infidelidade
os antepassados de Moisés; pelo contrário, é para elogiar a
sua credulidade e a sua fé, pois, apesar de não terem tam-
bém um conhecimento especial de Deus como o de Moisés,
mesmo assim acreditaram firmes e convictos nas promessas
de Deus e não fizeram como Moisés, que, embora tivesse
idéias mais elevadas sobre Deus, duvidou das suas promes-
sas e ripostou a Deus que, em lugar da salvação prometida,
mudara para pior a condição dos judeus. Assim sendo, uma
vez que os antepassados ignoravam o nome específico de
Deus e Deus refere este fato para louvar o seu ânimo sim-
ples e a sua fé, e, ao mesmo tempo para lembrar a singular
graça concedida a Moisés, há que concluir daí, com toda evi-
dência, aquilo que tínhamos afirmado em primeiro lugar, ou
(1701 seja, que nenhum mandamento obriga os homens a conhe-
cer os atributos de Deus e que tal conhecimento é um dom
peculiar concedido apenas a alguns fiéis. Nem sequer vale a
pena demonstrá-lo por meio de exemplos tirados da Escritu-
ra. Quem, com efeito, não vê que os fiéis não tiveram todos
igual conhecimento acerca de Deus e que ninguém pode ser
sábio, da mesma forma que não pode viver ou existir, por
obediência a uma ordem? Homens, mulheres, crianças, todos
podem de igual modo agir por obediência a um mandamen-
to, mas não podem ser sábios. E, se alguém me diz que não é
necessário compreender os atributos de Deus, mas simples-
TRATADO TEOLÓG/CO-POLÍT1CO 211

mente acreditar, sem demonstração alguma, está, com certe-


za, delirando. Porque as coisas invisíveis, que são objeto só
da mente, não podem ser vistas com outros olhos que não se-
jam as demonstrações. Aquele a quem estas faltarem, não verá
absolutamente nada de tais coisas, além de que tudo quanto
sobre elas repete por ouvir dizer afeta ou exprime tanto a
sua mente como as palavras de um papagaio ou de um autô-
mato, que falam sem ter nenhuma idéia ou conhecer o signi-
ficado daquilo que dizem.
Antes de passar a outros assuntos, tenho ainda de mos-
trar a razão por que no Gênesis se afirma freqüentemente
que os patriarcas pregaram em nome de Jeová, coisa que pa-
rece inteiramente contrária ao que atrás ficou dito. Basta, no
entanto, reparar naquilo que expusemos no capítulo VIII
para ser fácil verificar que não há aqui nenhuma incompati-
bilidade. De fato, nesse capítulo, vimos como o autor do Pen-
tateuco não designa as coisas e os lugares exatamente pelos
nomes que tinham no tempo de que está falando, mas sim pe-
los que se usavam no seu próprio tempo. Por isso, o Gênesis
refere que Deus se fez anunciar aos patriarcas pelo nome de
Jeová, não porque os antigos o conhecessem por esse nome,
mas por tratar-se de um nome que despertava entre os judeus
o maior respeito. Não há mesmo hipótese de se pensar de
outro modo, repare-se, já que esse nosso texto do Êxodo diz
expressamente que os patriarcas não conheciam Deus por
esse nome, além de quê, no cap. III, 13, do mesmo livro, Moi-
sés quer saber o nome de Deus: se porventura já fosse ante-
riormente conhecido, não haveria, ao menos ele, de o saber?
A conclusão, portanto, é, como nós pretendíamos, que os fiéis
patriarcas ignoraram esse nome de Deus e que o conheci-
mento de Deus é um dom, não um mandamento.
É altura de passarmos então ao segundo ponto, isto é, de
mostrar que Deus não exige aos homens, através dos profe-
tas, que conheçam dele outra coisa que não seja a sua divina
justiça e caridade, quer dizer, aqueles atributos que os homens
podem imitar mediante uma certa regra de vida. É o que Je- [1711
remias ensina em termos absolutamente claros. Diz ele, falan-
do do rei Josias, no cap. XXII, 15, 16: na verdade, o teu pai
212 ESPINOSA

comeu e bebeu; foi reto e fez justiça, e por isso prosperou;


atendeu aos direitos do pobre e do indigente, e por isso pros-
perou; porque isso (note-se bem) é conhecer-me, disse Jeová.
Não menos claro é o que vem no cap. IX, 23: mas cada um
vanglorie-se apenas de me conhecer e de saber que eu, Jeová,
pratico a caridade, a retidão e a justiça sobre a terra, porque
é isso que me agrada, diz Jeová. A mesma coisa se conclui do
Êxodo, cap. XXXIV, 6, 7, em que Deus não revela a Moisés,
que deseja vê-lo e conhecê-lo, nenhum atributo a não ser os
que manifestam a divina justiça e caridade. Por último, é im-
portante referir aqui aquela passagem de joão, da qual volta-
remos ainda a falar, que explica Deus, já que ninguém o viu,
unicamente pela caridade, concluindo que quem tem a virtu-
de da caridade possui realmente Deus e o conhece.
Jeremias, Moisés e João r_esumem, portanto, o conhe-
cimento de Deus obrigatório para todos a muito pouca coi-
sa e fazem-no consistir, tal como pretendíamos, apenas nisso:
Deus é sumamente justo e sumamente misericordioso, ou
seja, Deus é o único modelo da verdadeira vida7 • A isso acres-
ce que a Escritura não dá expressamente nenhuma definição
de Deus, não obriga a admitir outros atributos além dos que
acabamos de mencionar, nem recomenda explicitamente mais
nenhum. Donde se conclui que o conhecimento intelectual
de Deus, que considera a sua natureza tal como ela é em si
mesma, natureza esta que é impossível ser imitada pelos ho-
mens através de qualquer norma de vida nem sequer ser to-
mada como modelo para definir aquela que seria a verdadei-
ra regra de vida, esse conhecimento, dizíamos, não concerne
de modo algum a fé e a religião revelada, podendo, por con-
seguinte, os homens errar a respeito dele sem que isso cons-
titua um crime de bradar ao céu. Não é de estranhar, pois,
que Deus se tenha adaptado às imaginações e às opiniões
preconcebidas dos profetas, ou que os fiéis tenham sustenta-
do pontos de vista diferentes sobre Deus, como demonstra-
mos com muitos exemplos no capítulo II. Tampouco sur-
preende até o fato de os Livros Sagrados falarem freqüente-
mente de Deus com tão pouca propriedade, atribuindo-lhe,
[1721 não apenas mãos, pés, olhos, orelhas, mente e movimento lo-
TRATADO TEOLÓGICO-POÚ71CO 213

calª, mas também emoções, tais como o ciúme, a misericórdia,


etc., e de, enfim, o descreverem como um juiz, sentado nos
céus sobre um trono real, com o Cristo ã sua direita. Porque
eles falam segundo a capacidade de compreensão do vulgo,
ao qual a Escritura não pretende tornar sábio mas obediente.
O comum dos teólogos, todavia, entende que se devem in-
terpretar metaforicamente aquelas passagens em que se atri-
buem a Deus coisas que eles conseguem ver pela luz natural
serem incompatíveis com a natureza divina, ao passo que
tudo aquilo que escapa ã sua capacidade de compreensão se
deverá aceitar ã letra. Porém, se todas as passagens daquele
gênero que se encontram na Escritura tivessem obrigatoria-
mente de ser interpretadas e entendidas metaforicamente, en-
tão a Bíblia não teria sido escrita para o povo e para o vulgo
ignorante, mas unicamente para os especialistas, designada-
mente os filósofos. Mais ainda, se houvesse impiedade em
acreditar piamente e com simplicidade naquilo que acaba-
mos de referir acerca de Deus, então os profetas deveriam,
com certeza, ter evitado semelhantes frases, se mais não fos-
se por atenção ã incapacidade do vulgo, e ensinar, pelo con-
trário e primeiro que tudo, clara e explicitamente, os atribu-
tos de Deus sob a forma em que todos são obrigados a acre-
ditar neles, coisa que não aconteceu. Daí não se poder de
modo algum aceitar que as opiniões, absolutamente conside-
radas e sem ter em conta as obras, tenham em si algo de pie-
doso ou de ímpio9 ; o que há que dizer é que elas só têm uma
ou outra dessas características em função do homem, na me-
dida em que suas opiniões o levam ã obediência ou, pelo
contrário, delas retira permissão para pecar ou para se revol-
tar. Tanto assim é que, se alguém que acredita em coisas ver-
dadeiras for desobediente, a sua fé será realmente ímpia; se,
pelo contrário, acreditar em coisas falsas mas for obediente, a
sua fé será piedosa. De fato, mostramos como o verdadeiro
conhecimento de Deus não é um mandamento mas sim um
dom divino, e que Deus não exigiu dos homens nenhum ou-
tro conhecimento senão o da sua justiça e caridade, conheci-
mento este que não é necessário para a ciência, mas apenas
para a obediência.
[173] CAPÍTULO XIV

O que é afé, quem é fiel, quais


os fundamentos da fé e como se
distingue da filosofia

Para se ter um verdadeiro conhecimento do que é a fé,


torna-se absolutamente necessário, em primeiro lugar, saber
que a Escritura está adaptada à compreensão, não só dos pro-
fetas, mas também do diversificado e inconstante povo judeu.
Por mais superficialmente que aborde a questão, ninguém
poderá ignorar esse princípio. Quem, com efeito, aceitar in-
discriminadamente como doutrina universal e absoluta sobre
Deus tudo o que vem na Escritura, sem identificar com cuida-
do o que nela está adaptado à compreensão do vulgo, será
impossível não confundir as opiniões deste com a doutrina
de Deus e não abusar da autoridade da Escritura, apregoan-
do como ensinamentos divinos o que não passa de invenções
e caprichos dos homens. Quem é que não percebe que resi-
de aqui a principal razão por que as várias seitas ensinam tan-
tas e tão diferentes opiniões como artigos de fé, e todas basea-
das em muitos exemplos tirados da Escritura? Lá diz aquele
velho provérbio holandês: geen ketter zonder letter'.
De fato, os livros sagrados não foram escritos por um úni-
co autor nem para o vulgo de uma só época: são, pelo contrá-
rio, obra de muitos homens, com maneiras de ser diferentes
e vivendo em épocas igualmente diferentes. Se quiséssemos
contar o tempo que vai do primeiro ao último deles, tería-
mos perto de dois mil anos ou talvez muito mais. Não quero,
no entanto, acusar de impiedade os adeptos das várias seitas
por adaptarem às suas opiniões as palavras da Escritura. Por-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 215

que, da mesma forma que ela foi antigamente adaptada à


compreensão do vulgo, assim também será lícito a cada um
adaptá-la às suas opiniões, se vir que desse modo poderá obe-
decer a Deus de ânimo ainda mais consentâneo no que toca
à justiça e à caridade. Acuso-os de não querer reconhecer aos
outros a mesma liberdade e perseguir como inimigos de Deus
todos os que não pensam como eles, por mais honestos e
praticantes da verdadeira virtude que sejam, ao mesmo tem-
po que estimam como eleitos de Deus os que os seguem em
tudo, ainda quando se trata de pessoas moralmente incapa-
zes2. Mais criminoso do que isso, e mais nocivo para o Estado,
é impossível imaginar alguma coisa! Daí que, para determi-
nar até onde vai, em matéria de fé, a liberdade de cada um [1741
pensar como quiser e quais são aqueles que devemos consi-
derar como fiéis, não obstante a diversidade das suas maneiras
de ver, há que definir o que é a fé e as suas características
fundamentais. É isso que me proponho fazer no presente ca-
pítulo, além da distinção entre a fé e a filosofia, que constitui
o objetivo principal de toda esta obra.
Por uma questão de método, recordemos aquilo que é o
principal intento de toda a Escritura, dado que aí encontra-
mos o verdadeiro critério para definir a fé. No capítulo pre-
cedente, dissemos que o objetivo da Escritura é apenas ensi-
nar a obediência. Quanto a isso, ninguém pode estar contra.
Na verdade, quem não reconhecerá que tanto um como o
outro Testamento não são mais que uma lição de obediência?
Ou que o único objetivo que perseguem é fazer com que os
homens se submetam de livre vontade? Sem querer voltar
agora àquilo que demonstrei no capítulo anterior, direi ape-
nas que Moisés não tentou convencer os israelitas pela ra-
zão, mas comprometê-los por um pacto, com juramentos e
benefícios, após o que intimou o povo com castigos e exor-
tou-o com recompensas a obedecer às leis, todos processos
adequados apenas à obediência e não à ciência. A doutrina
evangélica, por seu lado, não contém senão a simples fé: crer
em Deus e adorá-lo ou, o que vem a dar no mesmo, obede-
cer-lhe. Não há, por conseguinte, para que isso fique demons-
trado com a maior evidência, necessidade de acumular tex-
216 ESPINOSA

tos da Escritura que recomendam a obediência e que em tão


grande número se encontram em ambos os Testamentos. De-
pois, a mesma Escritura também ensina com toda a clareza e
em muitas passagens o que cada um deve fazer para agradar
a Deus, quando diz que toda a lei consiste unicamente em
amar o próximo: nessa medida, ninguém pode negar que
todo aquele que ama o próximo como a si mesmo porque
Deus manda é realmente obediente e feliz segundo a lei, en-
quanto aquele que odeia e despreza o próximo é rebelde e
insubmisso. Por último, não há ninguém que não reconheça
que a Escritura não foi escrita e divulgada só para especialis-
tas, mas para todos os homens, sem distinção de idade ou de
sexo. Bastaria isso para se poder concluir com toda a evidên-
cia que, pela Escritura, só somos obrigados a acreditar naqui-
lo que é absolutamente necessário para cumprir aquele man-
damento.
Tal mandamento é, portanto, o único critério de toda a
fé católica e só em função dele devem ser determinados to-
dos os dogmas da fé, ou seja, todos aqueles a que somos
[1751 obrigados a aderir. Todavia, poderá alguém pensar, se isso é
assim tão evidente e se tudo pode legitimamente deduzir-se
a partir apenas desse fundamento, ou desse critério, como é
que foi possível surgirem tantas dissensões na Igreja? Não
terá havido outras razões para além das que enunciamos no
início do capítulo VII? É por essas razões que sou obrigado a
mostrar aqui a forma de proceder e o método a seguir na de-
terminação dos dogmas da fé a partir do fundamento já en-
contrado. Se não o fizesse, e se não definisse a esse respeito
regras precisas, julgar-se-ia, com razão, que até aqui eu pouco
tinha adiantado, porquanto seria lícito cada um propor aqui-
lo que lhe apetecesse, a pretexto de que era um meio neces-
sário para suscitar a obediência, designadamente quando fos-
se questão dos atributos divinos.
Para tratar, pois, metodicamente todo esse problema, co-
meçarei pela definição da fé, a qual, tendo em conta o fun-
damento que se estabeleceu, deverá consistir apenas em atri-
buir a Deus características tais que, se forem ignoradas, desa-
parece a obediência para com Deus e se, pelo contrário, se
TRATADO TEOLÓG/CO-POLÍ11CO 217

pressupõe essa obediência, elas têm necessariamente de se


supor. De tal maneira essa definição é clara e tão manifesta-
mente ela decorre do que já demonstramos, que não precisa
de nenhuma explicação. Passo, por isso, imediatamente a ex-
por em poucas palavras aquilo que daí resulta. Assim:
I - A fé pode salvar, não por si mesma, mas em função
da obediência, ou, como diz Tiago, cap. II, 17, a fé sem obras
é morta (ver, sobre este ponto, todo o capítulo citado).
II - Em conseqüência, aquele que é de fato obediente pos-
sui necessariamente a verdadeira fé, que leva à salvação, pois,
como dissemos, verificando-se a obediência, verifica-se a fé. É
também o que· diz explicitamente aquele mesmo apóstolo, cap.
II, 18: mostra-me a tua fé sem as obras e eu mostrar-te-ei a mi-
nha fé pelas minhas obras. E João, na Epístola I, cap. IV, 7 e 8:
quem ama (o próximo) nasceu de Deus e conhece Deus; quem
não ama não conhece Deus, pois Deus é caridade.
Daqui se conclui, uma vez mais, que ninguém deve ser
considerado fiel ou infiel a não ser pelas suas obras 3 • Se as
obras forem boas, quem as pratica é fiel, mesmo que discor-
de dos outros fiéis no que respeita aos dogmas; se, pelo con-
trário, as obras forem más, ele é infiel, por mais que as suas pa-
lavras concordem com as dos fiéis. Porque havendo obe-
diência, necessariamente haverá fé, e a fé sem obras é mor-
ta. É o que João ensina expressamente, no versículo 13 do
mesmo capítulo: por isto, diz o apóstolo, sabemos que estamos
nele e que ele continua em nós: porque nos deu do seu espíri- [1761
td, quer dizer, a caridade. De fato, tinha dito antes que Deus
é caridade, concluindo daí (ou seja, dos princípios assim ad-
mitidos) que quem possui a caridade possui realmente o es-
pírito de Deus. Além disso, como ninguém alguma vez viu
Deus, o apóstolo conclui ainda que ninguém pressente ou se
apercebe de Deus a não ser pela caridade para com o próxi-
mo, e que é, por conseguinte, impossível conhecer outro atri-
buto de Deus além dessa mesma caridade na medida em que
dela participamos.
Não sendo peremptórios, tais argumentos explicam to-
davia com bastante clareza o que João tinha em mente, mui-
218 ESPINOSA

to em especial nesta passagem do cap. II, 3, 4, da mesma epís-


tola, onde ele ensina, em termos absolutamente explícitos, o
que pretendemos aqui mostrar: por isto, diz, sabemos se o co-
nhecemos: se observarmos os seus preceitos. Aquele que diz
"eu conheço-o" e não observa os seus preceitos, esse é menti-
roso e nele não está a verdade. Ainda aqui, a conclusão a ti-
rar é que só são, de fato, Anticristos 5 aqueles que perseguem
os homens honestos e amigos da justiça pelo fato de discor-
darem deles e não defenderem os mesmos dogmas. Quem,
efetivamente, ama a justiça e a caridade, basta isso para sa-
bermos que é fiel; e quem persegue os fiéis é Anticristo.
Uma última conclusão a tirar é que a fé não requer tan-
to dogmas verdadeiros como dogmas piedosos, isto é, que
levem o ânimo à obediência mesmo que em muitos deles
não haja uma sombra de verdade: o que é preciso é que aque-
le que os abraça ignore que eles são falsos, pois caso contrá-
rio tornar-se-ia forçosamente insubmisso. Como é que al-
guém que procura amar a justiça e agradar a Deus poderia,
com efeito, adorar como divina uma coisa· que ele sabe ser
estranha à divina natureza? No entanto, os homens podem er-
rar por simplicidade de ânimo e a Escritura, como já demons-
tramos, não condena a ignorância mas a desobediência. Aliás,
isso deriva necessariamente da simples definição de fé, cujos
elementos devem inferir-se do princípio universal que já es-
tabelecemos e da finalidade única de toda a Escritura, se aca-
so não pretendemos misturar aqui os nossos próprios dese-
jos. Porque a fé não exige expressamente dogmas verdadei-
ros, exige, sim, dogmas que são necessários para a obediên-
cia, isto é, que confirmem a vontade no amor do próximo,
pois só em função desse amor cada um estará em Deus (para
falar como João) e Deus estará em cada um.
Dado que a fé de cada um só pode ser considerada pie-
dosa ou ímpia em função da obediência ou insubmissão, e
não da verdade ou falsidade, e dado também que a maneira
[1771 de ser é, indiscutivelmente, muito diversa de homem para ho-
mem, fazendo com que não estejam todos de acordo acerca
de tudo e se regulem por opiniões tão diferentes que a mes-
ma que leva um a ser devoto é objeto de escárnio e despre-
TRATADO TEOLÓG/CO-POÚ11CO 219

zo para outro, segue-se que à fé católica, ou seja, universal,


não pertence nenhum dogma a respeito do qual se possa ge-
rar alguma controvérsia entre homens honestos. Os dogmas
desse tipo podem, com efeito, ser piedosos para um e ímpios
para outro, porquanto os homens devem ser julgados apenas
pelas obras. Assim sendo, só pertencem à fé católica os dog-
mas que a obediência a Deus pressupõe absolutamente e
que, se se ignorarem, essa obediência tornar-se-á de todo em
todo impossível; quanto aos outros, cada qual, na medida
em que se conhece melhor que ninguém, julgará o que lhe
parecer mais adequado com vista a fortalecer-se no amor da
justiça. Com tal critério, penso, não haverá na Igreja lugar
para mais controvérsias. Nem há que ter receio, a partir de
agora, de enumerar os dogmas da fé universal, isto é, os dog-
mas fundamentais que toda a Escritura visa estabelecer" e que
(conforme resulta com toda evidência do que expusemos
neste capítulo e no anterior) devem convergir para o seguin-
te princípio: existe um ser supremo que ama a justiça e a ca-
ridade, ao qual, para ser salvos, todos têm de obedecer e ado-
rar, cultivando a justiça e a caridade para com o próximo. Com
base nesse princípio, é fácil determinar os restantes, que po-
dem resumir-se assim:
I - Existe um Deus, isto é, um ser supremo, sumamente
justo e misericordioso, modelo da verdadeira vida: com efei-
to, quem não sabe ou não acredita que ele exista não lhe
pode obedecer ou reconhecê-lo como juiz.
II - Existe um único Deus: ninguém pode pôr em dúvi-
da que também isso seja absolutamente necessário para que
Deus suscite a máxima devoção, admiração e amor, dado que
estes sentimentos surgem apenas da superioridade de um so-
bre todos os outros.
III - Deus está em toda parte, ou seja, nada lhe é oculto:
se se acreditasse que para ele havia coisas escondidas ou se se
ignorasse que ele vê tudo, então duvidar-se-ia ou ignorar-se-ia
mesmo a eqüidade da justiça com que rege todas as coisas.
IV - Deus tem, sobre todas as coisas, o direito e o domí-
nio total e tudo quanto faz é por seu beneplácito absoluto e
em virtude de um dom singular, e não por coação de uma lei
220 ESPINOSA

qualquer: com efeito, todos estão obrigados a obedecer-lhe


em tudo e ele não obedece a ninguém.
V - O culto e a obediência a Deus consistem unicamente
na justiça e na caridade, isto é, no amor para com o próximo.
Vl - Só aqueles que obedecem a Deus, seguindo essa
[1781 norma de vida, obtêm a salvação, ao passo que os outros, os
que vivem sob o império das paixões, estão perdidos: se os
homens não acreditassem firmemente nisso, não haveria ne-
nhuma razão para preferirem obedecer antes a Deus do que
às paixões.
Vll - Finalmente, Deus perdoa os pecados aos que se ar-
rependem: de fato, como não há ninguém que não peque, se
não se admitisse que era assim, todos desesperariam da sal-
vação e não teriam nenhum motivo para acreditar na miseri-
córdia divina. Mas aquele que acredita firmemente que Deus,
pela misericórdia e graça com que rege todas as coisas, per-
doa os pecados dos homens, e que por esse motivo se infla-
ma ainda mais de amor para com Deus, esse conhece verda-
deiramente Cristo segundo o Espírito e Cristo está nele.
Tudo isso, ninguém o pode negar, é imprescindível ser
conhecido para que todos os homens sem exceção possam
obedecer a Deus de acordo com o preceito da lei anterior-
mente explicado, uma vez que, se se rejeita qualquer desses
dogmas, rejeita-se também a obediência. Quanto a saber o
que é Deus, isto é, esse modelo de verdadeira vida, se ele é
fogo, espírito, luz, pensamento, etc., isso não tem nada a
ver com a fé, tal como o saber por que é que ele é modelo
de verdadeira vida, se é porque tem uma vontade justa e mi-
sericordiosa ou porque todas as coisas são e agem por ele e,
conseqüentemente, se é também por ele que nós compreen-
demos e vemos o que é verdadeiro, justo e bom. Seja o
que for que cada um pense a respeito de tais questões, é in-
diferente.
Em segundo lugar, também não interessa para a fé se
uma pessoa acredita que Deus está em toda parte em virtude
da sua essência ou da sua potência, se rege as coisas pela li-
berdade ou pela necessidade da natureza, se prescreve leis
tal como faz um príncipe ou se as ensina como verdades eter-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 221

nas, se o homem obedece a Deus por livre-arbítrio ou pela


necessidade do decreto divino, se, enfim, a recompensa dos
bons e o castigo dos maus é natural ou sobrenatural. Do pon-
to de vista da fé, repito, essas questões e outras semelhantes
não têm nenhuma importância, seja qual for a maneira como
são entendidas, contanto que daí se não tente extrair maior li-
berdade para pecar ou para ser menos obediente a Deus. Além
disso, como já dissemos lá atrás, cada pessoa deve adaptar
esses dogmas da fé à sua capacidade de compreensão e in-
terpretá-los como lhe parecer que é mais fácil aceitá-los sem
reticências e de ânimo plenamente convicto, a fim de obede-
cer a Deus com total aquiescência. Já o dissemos, de resto:
tal como outrora a fé foi revelada e escrita de acordo com a
capacidade de compreensão e as opiniões dos profetas e do [179]
povo de então, assim também agora cada um deve adaptá-la
às suas opiniões, para que desse modo a abrace sem reser-
vas mentais nem hesitações. Como tínhamos demonstrado, a
fé não exige tanto a verdade quanto a piedade e só é piedo-
sa e pode salvar em função da obediência, pelo que ninguém
é fiel a não ser em função da sua obediência. Não é, portan-
to, quem apresenta os melhores argumentos que necessaria-
mente demonstra a maior fé, mas sim quem apresenta as me-
lhores obras de justiça e caridade. E quão salutar e necessária
não será uma tal doutrina para a sociedade, se queremos
que os homens vivam em paz e concórdia! Quantos motivos
de distúrbios e crimes ela não afasta! Deixo isso à considera-
ção de cada um ...
Antes de passar adiante, convirá aqui frisar que, por aqui-
lo que acabamos de mostrar, é fácil responder às objeções le-
vantadas no capítulo 1, quando abordamos as palavras dirigi-
das por Deus aos israelitas do alto do Sinai: de fato, embora
essa voz que eles ouviram não pudesse oferecer a esses ho-
mens nenhuma certeza filosófica ou matemática da existên-
cia de Deus, era, no entanto, suficiente para os arrebatar de
admiração perante Deus, de acordo com a idéia que já tinham
dele, e levá-los à obediência, única finalidade daquele espe-
táculo. Deus, efetivamente, não pretendia ensinar aos Israeli-
tas os atributos absolutos da sua essência (de fato, ainda não
222 ESPINOSA

tinha, até então, revelado nenhum), mas sim vergar o seu âni-
mo insubmisso e trazê-los à obediência: foi por isso que não se
lhes dirigiu com argumentos mas com estrépito de trombetas,
trovões e relâmpagos (Êxodo, cap. XX, 20).
Resta, enfim, demonstrar que entre a fé, ou teologia, e a
filosofia não existe nenhuma relação nem nenhuma afinida-
de, como terá obrigatoriamente de admitir quem quer que co-
nheça o objetivo e o fundamento dessas duas disciplinas em
tudo divergentes. O objeto da filosofia é unicamente a verda-
de; o da fé, como ficou abundantemente demonstrado, é ape-
nas a obediência e a piedade. Depois, os fundamentos da fi-
losofia são as noções comuns, devendo toda ela ser deduzi-
da a partir apenas da natureza; os da fé, por seu turno, são
as narrativas históricas e a língua, pelo que não podemos de-
duzi-la senão da Escritura e da revelação, conforme demons-
tramos no capítulo VII. A fé, portanto, concede a cada um a
[180] máxima liberdade de filosofar, de tal modo que se pode, sem
cometer nenhum crime, pensar o que se quiser sobre todas
as coisas. As únicas pessoas que ela condena como heréticas
e cismáticas são as que ensinam opiniões que incitem à in-
submissão, ao ódio, às dissenções e à cólera; em contraparti-
da, só considera fiéis aqueles que, tanto quanto a sua razão
e as suas capacidades lhes permitem, espalham a justiça e a
caridade.
Por último, e tendo em conta que isso constitui o princi-
pal objetivo do presente Tratado, gostaria, antes de continuar,
de pedir encarecidamente ao leitor que se dignasse reler com
particular atenção e reexaminar esses dois capítulos. Oxalá fi-
que persuadido de que não escrevemos pelo desejo de trazer
coisas novas, mas para corrigir coisas que andam distorcidas
e que esperamos ainda um dia ver finalmente emendadas.
CAPÍTULO XV

Onde se demonstra que nem a teologia


está a serviço da razão, nem a razão
da teologia, e se apresenta o motivo
por que estamos persuadidos da
autoridade da Sagrada Escritura

Entre aqueles que não distinguem a filosofia da teolo-


gia, discute-se a questão de saber se é a Escritura que deve
estar a serviço da razão ou se, pelo contrário, é a razão que
deve estar a serviço da Escritura; em outras palavras, se é o
sentido da Escritura que deve adaptar-se à razão ou se é esta
que deve adaptar-se à Escritura. Os céticos, que negam a
certeza da razão, sustentam esta última tese, ao passo que a
primeira é sustentada pelos dogmáticos'. É, todavia, claro, por
aquilo que já dissemos, que tanto uns como os outros sus-
tentam um erro crasso. Com efeito, qualquer que seja dessas
opiniões a que se adopte, será sempre necessário adulterar, ou
, a razão, ou a Escritura. Mostramos como a Escritura não en-
sina questões filosóficas, mas apenas a piedade, e como tudo o
que nela se contém está adaptado à compreensão e às opi-
niões preconcebidas do vulgo. Quem, por conseguinte, a qui-
ser adaptar à filosofia terá, com certeza, de atribuir aos pro-
fetas muitas coisas que eles nem por sonhos pensaram e de
interpretar incorretamente o seu pensamento. Quem, pelo con-
trário, faz da razão e da filosofia servas da teologia, terá de
admitir como coisas divinas preconceitos populares de tem-
pos antigos, deixando que estes o ceguem e lhe inundem a
224 ESPINOSA

mente. Um com a razão, o outro sem ela, vão ambos, por cer-
to, ensandecer.
O primeiro dentre os fariseus que defendeu abertamen-
[181] te que se devia adaptar a Escritura à razão foi Maimônides,
cuja opinião recenseamos e refutamos com inúmeros argu-
mentos no cap. VII. Não obstante ter gozado de grande auto-
ridade, a maior parte dos fariseus afastou-se dele nessa ques-
tão e aderiu à opinião de um certo R. Judas Alpakhar', o qual,
querendo evitar o erro de Maimônides, caiu no erro contrá-
rio. Segundo Alpakhar•, a razão tem de ser serva da Escritu-
ra e subordinar-se-lhe inteiramente, julgando, por isso, que
não se deve explicar metaforicamente nenhuma passagem
da Escritura só porque o seu sentido literal repugna à razão,
mas unicamente quando ele repugna à própria Escritura, isto
é, aos dogmas que ela ensina claramente. Com base nisso,
formula esta regra universal: tudo o que a Escritura ensina
como dogma• e afirma expressamente tem de se admitir, por
força da sua própria e exclusiva autoridade, como absoluta-
mente verdadeiro, sendo mesmo impossível encontrar-se na
Bíblia qualquer outro dogma que de forma direta o contradi-
ga; só implicitamente, isto é, na medida em que as expres-
sões da Escritura deixam muitas vezes supor o contrário da-
quilo que ela ensina expressamente, razão por que nesses
casos, e em mais nenhum, se deve interpretar metaforicamen-
te. Assim, por exemplo, a Escritura ensina com toda a clare-
za que só há um Deus (Deuteronômio. cap. VI, 4) e em par-
te nenhuma se encontra uma passagem que diretamente afir-
me que existem mais deuses. Há, no entanto, várias partes
onde Deus fala de si mesmo e onde os profetas falam de
Deus no plural, deixando supor, com essa simples maneira
de dizer, que existem diversos deuses, o que não traduz o
sentido da própria frase e deve, por isso, explicar-se metafo-
ricamente, não porque repugne à razão haver vários deuses,

• Lembro-me de ter lido isso outrora na "Epístola contra Maimônides",


que vem incluída junto às Epístolas atribuídas ao próprio Maimônides.
•Anotação XXVIII. Ver lnterpret. Scripturae, p. 75.
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍ11CO 225

mas porque a Escritura afirma explicitamente que só há um.


Da mesma forma, porque a Escritura afirma (segundo julga
Alpakhar) no Deuteronômio, cap. IV, 15, que Deus é incor-
póreo, por esse motivo, ou seja, por causa dessa passagem e
não da autoridade da razão, somos obrigados a acreditar que
Deus não tem corpo e, por conseqüência, temos de explicar
metaforicamente, em virtude apenas da autoridade da Escri-
tura, todas as passagens que atribuem a Deus mãos, pés, etc.,
e que pela maneira como estão escritas deixam supor um Deus
corporal. É essa, em resumo, a opinião de Alpakhar, a quem,
aliás, eu presto homenagem, porquanto pretende explicar as
Escrituras pelas Escrituras.
, Surpreende-me, no entanto, que um homem dotado de
razão se esforce por destruí-la. É, de fato, verdade que a Es- [182]
critura deve ser explicada pela Escritura enquanto estamos
investigando o sentido das frases e o pensamento dos profe-
tas; mas uma vez encontrado o verdadeiro significado, temos
necessariamente de recorrer ao juízo e à razão para lhe po-
dermos dar o nosso assentimento. É que, se a razão, apesar
dos seus protestos contra a Escritura, deve submeter-se-lhe
assim inteiramente, então é de perguntar se temos de fazer
isso servindo-nos da razão ou sem ela e como se fôssemos
cegos. Se for sem a razão, estamos procedendo como loucos
e sem juízo; se for com a razão, nesse caso é porque só por
uma decisão racional aceitamos a Escritura e, por conseguin-
te, se esta estivesse em contradição com a razão, não a acei-
taríamos. E quem, pergunto eu, poderá estar mentalmente
de acordo com alguma coisa contra a qual a razão protesta?
O que significa, no fim de contas, negar mentalmente algu-
ma coisa senão que a razão protesta contra ela 3? Decidida-
mente, é impossível não ficarmos espantados quando que-
rem submeter a razão, o maior dos dons, essa luz divina, à
letra morta que a malícia humana pode ter falsificado! Quan-
do não se considera crime falar de forma indigna contra a
mente, esse autêntico certificado do verbo divino, e se admi-
te que ela está corrompida, cega e perdida, ao mesmo tem-
po que se tem como o maior dos crimes pensar tais coisas da
letra e da imagem da palavra de Deus! Julgam que é piedoso
226 ESPINOSA

não se fiar na razão e no próprio juízo e que é ímpio duvidar


daqueles que nos transmitiram os livros sagrados: mas isso
não é piedade, é pura demência! Afinal, pergunto eu. o que
é que os preocupa? O que é que receiam? Porventura a reli-
gião e a fé só podem ser mantidas se os homens forem total-
mente ignorantes e despedirem definitivamente a razão? Se é
isso o que pensam, então é porque a Escritura lhes inspira
mais medo que confiança. Longe vá, no entanto, essa idéia
de que a religião e a piedade querem fazer da razão sua es-
crava, ou que esta pretende fazer o mesmo à religião, como
se elas não pudessem, na maior das concórdias, ocupar cada
uma o seu próprio domínio. Já veremos essa questão, mas
primeiro convirá analisar aqui a regra enunciada pelo referi-
do rabino.
Segundo Alpakhar, como já dissemos, nós somos obri-
gados a aceitar como verdadeiro tudo o que a Escritura afir-
ma e a rejeitar como falso tudo o que ela nega. Mas ainda, a
Escritura nunca afirmaria ou negaria expressamente fosse o
que fosse que se revelasse contrário ao que já tinha afirmado
ou negado. Trata-se, evidentemente, de duas afirmações te-
merárias. Com efeito, e não falando já no fato de ele ignorar
que a Escritura consta de diversos livros e foi escrita em dife-
rentes épocas, para diferentes homens e, enfim, por diferen-
tes autores, acontece que Alpakhar se baseia na sua própria
autoridade, visto nem a razão nem a Escritura dizerem algo
[1831 de parecido. O que ele deveria, antes de mais, ter demonstra-
do era que todas aquelas passagens que estão em contradi-
ção com outras, mas só implicitamente, podem sem dificulda-
de interpretar-se metaforicamente a partir da natureza da lín-
gua e do contexto, e bem assim que a Escritura chegou até nós
intacta. Mas examinemos a questão por ordem.
Quanto ao primeiro ponto, eu pergunto: o que é que se
deve fazer no caso de a razão protestar? Teremos, ainda as-
sim, de abraçar como verdadeiro o que a Escritura afirma e
rejeitar como falso o que ela nega? Dir-se-á, talvez, que não
há nada na Escritura que repugne à razão. Mas, nesse caso,
responderei que ela afirma e ensina explicitamente que Deus
é ciumento (no próprio Decálogo, no Êxodo, cap. XXXIV,
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 227

144, no Deuteronômio, cap. IV, 24, e em várias outras passa-


gens), o que repugna à razão e, no entanto, teríamos de o ad-
mitir como verdadeiro. Inclusive, se houver na Escritura quais-
quer passagens que pressuponham que Deus não é ciumen-
to, terão de interpretar-se metaforicamente para que não pa-
reçam dizer nada de semelhante. A Escritura, por outro lado,
diz explicitamente que Deus desceu ao monte Sinai (Êxodo,
cap. XIX, 20, etc.) e atribui-Lhe outros movimentos de um lo-
cal para outro, não ensinando em parte alguma de maneira
explícita que Deus não se move: logo, também isso terá de
ser admitido por toda a gente como verdadeiro; e, se Salo-
mão diz que Deus não está em nenhum lugar (Reis, I, cap.
VIII, 27), na medida em que ele não afirma expressamente e
que só implicitamente se pode concluir daí que Deus não se
move, há que interpretar aquela passagem de modo que não
pareça que se nega em Deus o movimento local. Pela mesma
razão, os céus deveriam ser considerados como a morada e o
trono de Deus, pois a Escritura assim o afirma explicitamente.
E aí por diante, todo um sem-número de afirmações adapta-
das às opiniões dos profetas e do povo, que só a razão e a fi-
losofia, e não a Escritura, ensinam que são falsas e que, de acor-
do com o nosso autor, deveriam todas ser tomadas por verda-
deiras, visto não ter, nesta matéria, de se consultar a razão.
Depois, é também falso o que ele afirma quando diz que
só implícita e não diretamente poderá haver contradição entre
duas passagens. Na realidade, Moisés afirma diretamente que
Deus é fogo (Deuteronômio, cap. IV, 24) e diretamente nega
que Deus tenha qualquer semelhança com as coisas visíveis
(Deuteronômio, cap. IV, 12). E, se Alpakhar argumentasse
que Moisés não nega diretamente que Deus seja fogo, mas
só implicitamente, havendo, portanto, que adaptar a passa-
gem de modo que não o pareça negar, então, seja, conceda-
mos que Deus é fogo, ou melhor, deixemos isso, ainda assim
não enlouqueçamos com ele, e vejamos outro exemplo. Sa- [184]
muel* nega explicitamente que Deus se arrependa de uma

• Anotação XXIX. Interpret. Scripturae, 76.


228 ESPINOSA

decisão (ver Samuel, I, cap. XV, 29), enquanto Jeremias afir-


ma que Deus se arrepende do bem e do mal que tinha decre-
tado (ver jeremias, cap. XVIII, 8, 10). Que fazer? Porventura
não se contradizem diretamente essas duas afirmações? Qual
delas então se pretende que se interprete metaforicamente?
Ambas são universais e, entre si, contrárias: o que uma afirma
diretamente, a outra diretamente nega. De acordo com a sua
regra, o nosso autor teria, portanto, de admitir a mesma coisa
como verdadeira e ao mesmo tempo rejeitá-la como falsa.
Além disso, que importa que uma passagem não contradiga
direta mas só implicitamente uma outra, se o que está implí-
cito é claro e se tanto a natureza dessa passagem como o seu
contexto não são passíveis de interpretação metafórica? E en-
contram-se muitas passagens dessas nos livros da Bíblia. Veja-
se, a esse respeito, o capítulo II, onde mostramos como os
profetas sustentaram opiniões diferentes e até contrárias, e em
especial as contradições que, nos capítulos IX e X, demonstra-
mos existirem nas narrativas históricas. Nem é preciso recapitu-
lá-las agora todas; o que já dissemos é suficiente para provar
os absurdos que decorrem desse método e dessa maneira de
ver, bem como a sua falsidade e a precipitação do seu autor.
Foi por isso que rejeitamos, tanto a posição de Alpakhar
como a de Maimônides, e demos por incontestável que nem
a teologia tem de subordinar-se à razão, nem a razão à teo-
logia, visto cada uma delas possuir o seu próprio domínio: a
razão, como já dissemos, o domínio da verdade e do saber;
a teologia, o domínio da piedade e da obediência. De fato, o
poder da razão, tal como já demonstramos, não vai ao pon-
to de afirmar que os homens possam atingir a beatitude só
pela obediência e sem o conhecimento das coisas. A teolo-
gia, porém, não diz senão isso nem prescreve senão a obe-
diência, além de que não pretende nem pode nada contra a
razão: determina os dogmas da fé, como mostramos no capí-
tulo anterior, mas só na medida em que eles são indispensá-
veis com vista à obediência, deixando à razão a tarefa de de-
terminar como é que eles devem ser entendidos com rigor e
em função da verdade, razão que é autêntica luz da mente,
sem a qual esta não vê senão sonhos e ilusões. E por teolo-
TRATADO TEOLÓGICO-POÚ17CO 229

gia entendo aqui precisamente a revelação, na medida em


que esta indica o objetivo para o qual dissemos apontar a Es-
critura (isto é, a razão por que e o modo como devemos obe-
decer, ou melhor, os dogmas da verdadeira piedade e da fé),
quer dizer, aquilo a que se chama com propriedade a pala- [185]
vra de Deus e que não consiste num determinado número
de livros (sobre isso, ver o capítulo XII). Entendida assim a
teologia, se analisarmos os seus preceitos e os ensinamentos
que dá para a vida, verificaremos que ela está inteiramente
de acordo com a razão; e, se tivermos em conta o seu intui-
to e finalidade, concluiremos que não contradizem em nada a
mesma razão e que, por conseguinte, são universais. No que
toca à Escritura no seu conjunto, também já mostramos no ca-
pítulo VII que o seu sentido deveria ser determinado com
base apenas na sua própria história e não na história univer-
sal da natureza, que é fundamento só da filosofia. E nem há
motivo para nos atrapalharmos se, depois de ter investigado
assim o seu verdadeiro sentido, deparamos com alguma coi-
sa que repugne à razão. Porque tudo quanto possa existir des-
se gênero nos livros da Bíblia, ou que os homens possam ig-
norar sem prejuízo da caridade, temos a certeza de que não
concerne à teologia ou à palavra de Deus e, conseqüente-
mente, cada um poderá pensar como quiser a tal respeito,
sem que isso constitua crime. Concluímos, portanto, que, em
absoluto, nem a Escritura deve se adaptar à razão, nem a ra-
zão deve se adaptar à Escritura.
Todavia, se não podemos demonstrar pela razão a ver-
dade ou falsidade do princípio fundamental da teologia, se-
gundo o qual os homens se salvam apenas pela obediência,
poder-se-á objetar-nos: por que é que acreditamos então nes-
se princípio? Se é à margem da razão e como cegos que o
aceitamos, estaremos também agindo como insensatos e sem
discernimento; se, pelo contrário, pretendemos que esse fun-
damento pode ser demonstrado pela razão, nesse caso, a teo-
logia será uma parte da filosofia e não deverá separar-se dela.
A minha resposta é que admito absolutamente que esse dog-
ma fundamental da teologia não pode ser investigado pela
luz natural ou, pelo menos, que não houve ainda ninguém
230 ESPINOSA

que o demonstrasse, pelo que a revelação foi extremamente


necessária; no entanto, nós podemos usar da faculdade de
julgar para abraçarmos, pelo menos com uma certeza moral,
aquilo que foi revelado. E digo certeza moral, porque não há
razão para aspirarmos a ter sobre tal questão uma certeza
maior do que aquela que tiveram os próprios profetas, a
quem primeiramente foi feita a revelação e que dela só tive-
ram uma certeza moral, como mostramos no capítulo II des-
te tratado. Estão, portanto, na via errada os que se esforçam
por estabelecer a autoridade da Escritura através de demons-
trações matemáticas 5• A autoridade da Bíblia, com efeito, de-
pende da autoridade dos profetas e não pode, por isso, ser
demonstrada com argumentos mais decisivos que aqueles
[1861 com que outrora os profetas costumavam persuadir o povo
da sua autoridade. Até porque a nossa certeza a esse respei-
to não pode repousar em nenhum fundamento que não seja
aquele sobre o qual os profetas fundamentavam a sua pró-
pria certeza e a sua autoridade.
Como dissemos, a certeza dos profetas assentava em três
coisas: 1º - imaginação viva e nítida; 2º - um sinal; 3º - por
último, e acima de tudo, ânimo dado ã justiça e ao bem. Fora
isso, não se baseavam em nenhum outro argumento, pelo
que também não podem ter demonstrado diferentemente a
sua autoridade, quer ao povo, a quem outrora falaram de
viva voz, quer a nós, a quem falam por escrito. Ora, a pri-
meira base da certeza dos profetas, isto é, o imaginar com ni-
tidez as coisas, só podia ser evidente para eles; logo, toda a
nossa certeza a respeito da revelação só pode e deve fundar-
se nas duas restantes: o sinal e a doutrina. É, aliás, o que tam-
bém ensina expressamente Moisés, quando, no Deuteronômio,
cap. XVIII, manda o povo obedecer ao profeta que em nome
de Deus apresentar um sinal verdadeiro, a não ser que ele
profetize algo de falso, ainda que seja também em nome de
Deus, pois nesse caso devem-no condenar ã morte. Igual pro-
cedimento, de resto, deve ser adotado para com aquele que
quiser afastar o povo da verdadeira religião, mesmo que confir-
me a sua autoridade através de sinais e prodígios (sobre esse
ponto, ver Deuteronômio, cap. XIII). Donde se conclui que o
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTJCO 231

verdadeiro profeta se distingue do falso, simultaneamente,


pela doutrina e pelo milagre: é, com efeito, esse que Moisés
declara ser o verdadeiro e no qual manda que acreditem sem
receio de qualquer fraude; em contrapartida, diz que são fal-
sos aqueles que profetizarem algo de falso, ainda que seja
em nome de Deus, ou que ensinem falsos deuses, mesmo
que tenham feito autênticos milagres. Daí que, também nós,
só por essa razão tenhamos de acreditar na Escritura, ou seja,
nos próprios profetas: a sua doutrina confirmada por sinais.
É porque vemos os profetas recomendarem acima de tudo a
caridade e a justiça e não pretenderem outra coisa, que con-
cluímos que não era de má fé, mas com sinceridade, que en-
sinavam que os homens se tornariam felizes pela obediência
e pela fé; e corno, além disso, confirmaram esse ensinamen-
to através de sinais, reconhecemos que não o disseram teme-
rariamente nem estavam delirando quando profetizavarn6 .
Se, por outro lado, repararmos que não deixaram nenhum
ensinamento moral que não esteja inteiramente de acordo
com a razão, mais seguros ficaremos ainda, porquanto não é
por puro acaso que a palavra de Deus que está nos profetas
concorda absolutamente com a palavra de Deus que se faz
ouvir em nós 7 •
Quanto a esses ensinamentos, repito, podemos deduzi-
los dos livros da Bíblia com tanta certeza corno antigamente
os judeus os deduziam ouvindo os profetas de viva voz. Isso (187]
porque, conforme lá atrás, no final do capítulo XII, ficou de-
monstrado, a Escritura, no que diz respeito à doutrina e às
principais narrativas históricas, chegou às nossas mãos intac-
ta. Justifica-se, portanto, que aceitemos esse fundamento de
toda a teologia e da Escritura, ainda que não se possa prová-
lo por demonstração matemática. Seria, na verdade, estupi-
dez não querer aceitar urna coisa que é confirmada pelo tes-
temunho de tantos profetas e da qual tiram tanta consolação
aqueles que só pelo raciocínio não vão muito longe, que tão
útil se revela para a sociedade e na qual, enfim, podemos
acreditar sem o mínimo perigo ou prejuízo, unicamente por-
que não é possível demonstrá-la matematicamente. Corno se
para orientar com prudência a nossa vida só admitíssemos
232 ESPINOSA

como verdadeiro aquilo de que não temos nenhuma razão


para duvidar, ou como se a maior parte das nossas ações
não fossem extremamente incertas e cheias de risco! Eu com-
preendo, claro, que aqueles que julgam que a .filosofia e a
teologia se contradizem mutuamente e que, por esse motivo,
consideram que uma delas tem de ser desapossada do seu
reino, pois há que renunciar a uma ou a outra, têm razão em
procurar estabelecer a teologia em fundamentos sólidos e
em tentar demonstrá-la matematicamente. Quem, com efeito,
a não ser um desesperado e insensato, pretenderia renunciar
ã razão, desprezar as artes e as ciências ou negar a certeza
da razão? Ainda assim, não podemos, todavia, desculpá-los
de forma alguma, porquanto querem chamar a razão em seu
auxílio para depois a rejeitarem, e procuram tornar incerto o
que nela há de certo. Mais ainda, quando tentam provar por
demonstrações matemáticas a verdade e a autoridade da teo-
logia e tirar ã razão e ã luz natural a respectiva autoridade, a
única coisa que conseguem é colocar a teologia sob o domí-
nio da razão, parecendo supor que a autoridade daquela só
se reveste de algum brilho se for iluminada pela luz natural
da razão. E se, pelo contrário, se gabam de se basearem in-
teiramente no testemunho interior do Espírito Santo e de só
recorrerem ã razão por causa dos infiéis, ou seja, para os
convencerem, não nos devemos fiar no que eles dizem, pois
é fácil mostrar que falam assim inspirados pelas paixões ou
pela vanglória. Não resultará, com efeito, absolutamente evi-
dente, pelo capítulo anterior, que o testemunho do Espírito
Santo só se manifesta nas boas ações, a que Paulo chama, por
[188] esse motivo, na Epístola aos Gálatas, cap. V, 22, os frutos do
Espírito Santo, e que tal testemunho mais não é do que a tran-
qüilidade interior que as boas ações produzem na mente? No
que toca, porém, ã verdade e ã certeza sobre as coisas que
são de pura especulação, nenhum espírito as confirma a não
ser a razão, dado que só ela, como já mostramos, reivindica
para si o reino da verdade. Se, portanto, além deste, eles pre-
tendem ter um outro espírito qualquer que lhes dê a garantia
da verdade, é porque se vangloriam com a mentira e falam
só por preconceito inspirado pelas paixões; ou então é por-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 233
que, cheios de medo ainda assim não sejam vencidos pelos
filósofos e publicamente expostos ao ridículo, se refugiam no
sagrado. Mas é inútil, pois a que altar se poderá acolher quem
lesa a majestade da razão?
Deixemos isso, porquanto, julgo que cumpri a minha ta-
refa mostrando em que medida a filosofia se deva separar da
teologia e, sobretudo, em que é que elas consistem; mostran-
do, por outro lado, que nenhuma deve estar subordinada,
pois cada uma ocupa o seu reino sem nenhuma oposição da
outra; e mostrando, enfim, sempre que se ofereceu uma oca-
sião, os absurdos, incômodos e prejuízos causados pelo fato
de os homens confundirem, de maneira surpreendente, essas
duas disciplinas e não saberem distingui-las com rigor nem se-
pará-las uma da outra. Antes de prosseguir, quero* deixar
bem vincada (embora isso já tenha sido dito) a utilidade e a
necessidade da Sagrada Escritura ou revelação, que conside-
ro da maior importância. Com efeito, uma vez que não po-
demos compreender pela luz natural que a simples obediên-
cia é uma via para a salvação**, e uma vez que a revelação
ensina acontecer assim por uma singular graça de Deus im-
possível de atingir pela razão, segue-se que a Escritura veio
trazer aos mortais uma enorme consolação. É que todos po-
dem obedecer e só um número muito reduzido, se o compa-
rarmos com a totalidade do gênero humano, adquire o hábi-
to da virtude conduzido apenas pela razão, de tal maneira
que, se não tivéssemos o testemunho da Escritura, seria caso
para duvidar da salvação de quase todos8 .

•Anotação XXX. Interpret. Scripturae, p. 115.


•• Anotação XXXI. Isto é, só a revelação, e não a razão [nós não sabe-
mos naturalmente] pode ensinar que é suficiente para a salvação ou beati-
tude aceitar esses decretos divinos como regras ou mandamentos, e que não
é necessário concebê-los como verdades eternas, conforme se vê pelas de-
monstrações apresentadas no capítulo IV.
[189] CAPÍTULO XVI

Dos fundamentos do Estado, do direito


natural e civil de cada indivíduo
e do direito dos soberanos

Até aqui, procuramos separar a filosofia da teologia e


mostrar a liberdade de filosofar que esta última concede a
cada um'. É agora altura de nos interrogarmos até onde deve
ir, num Estado bem ordenado', essa liberdade de cada um
pensar e dizer o que pensa. Para examinar metodicamente o
problema, temos de falar sobre os fundamentos do Estado e,
antes de mais nada, sobre o direito natural do indivíduo3 , sem
atender, por enquanto, ao Estado e à Religião.
Por direito e instituição natural 4 entendo unicamente as
regras da natureza de cada indivíduo, regras segundo as
quais concebemos qualquer ser como naturalmente determi-
nado a existir e a agir de uma certa maneira. Os peixes, por
exemplo, são por determinação da natureza feitos para na-
dar e os maiores dentre eles para comer os menores, pelo que
os peixes são, de pleno direito natural, donos da água, da
mesma forma e com o mesmo direito com que os grandes
comem os menores. É, com efeito, evidente que a natureza,
considerada em absoluto, tem direito a tudo o que está em
seu poder, isto é, o direito da natureza estende-se até onde
se estende a sua potência, pois a potência da natureza é a
própria potência de Deus, o qual tem pleno direito a tudo.
Visto, porém, que a potência universal de toda a natureza não
é mais do que a potência de todos os indivíduos em conjun-
to, segue-se que cada indivíduo tem pleno direito a tudo o
que está em seu poder, ou seja, o direito de cada um esten-
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍ17CO 235
de-se até onde se estende a sua exata potência. E, uma vez
que é lei suprema da natureza que cada coisa se esforce, tan-
to quanto esteja em si, por perseverar no seu estados, sem ter
em conta nenhuma outra coisa a não ser ela mesma, resulta
que cada indivíduo tem pleno direito a fazê-lo, ou seja (con-
forme já disse), a existir e agir conforme está naturalmente de-
terminado. Nem vemos que haja aqui nenhuma diferença en-
tre os homens e os outros seres da natureza, ou entre os ho-
mens dotados de razão e os outros que ignoram a verdadei-
ra razão, ou ainda entre os imbecis e dementes e as pessoas
sensatas. Tudo o que uma coisa faz segundo as leis da sua l190l
natureza fá-lo com todo o direito, pois age conforme foi de-
terminado pela natureza e não pode sequer agir de outra for-
ma. É por isso que, no que respeita aos homens, enquanto
considerados como vivendo sob o império unicamente da
natureza, tanto está no seu pleno direito aquele que ainda
não conheceu a razão ou que ainda não contraiu o hábito da
virtude e vive simplesmente pelas leis do instinto, como
aquele que rege a sua vida pelas leis da razão. Por outras pa-
lavras, tal como o sábio tem todo o direito de fazer tudo o que
a razão manda, ou seja, a viver segundo as leis da razão,
também o ignorante e o pusilânime têm todo o direito de fa-
zer tudo o que o instinto lhes inspire, isto é, de viver segun-
do as leis do instinto. É, de resto, o que ensina Paulo, que
não reconhece pecado algum antes da lei, quer dizer, enquan-
to se consideram os homens como vivendo sob o império da
natureza.
O direito natural de cada homem determina-se, portan-
to, não pela reta razão, mas pelo desejo e pela potência. Nem
todos, com efeito, estão naturalmente determinados a agir
segundo as regras e as leis da razão; pelo contrário, todos nas-
cem para ignorar tudo e, antes que possam conhecer o ver-
dadeiro modo de viver e adquirir o hábito da virtude, vai-se
a maior parte da sua vida, ainda quando tenham sido bem
educados. E, todavia, têm entretanto de viver e conservar-se
por todos os meios de que dispõem, isto é, seguindo o im-
pulso apenas do desejo, porquanto a natureza não lhes deu
nenhum outro meio e lhes negou o poder efetivo de viver
236 ESPJNOSA

segundo a reta razão; nessa medida, são tão obrigados a viver


de acordo com ela como um gato é obrigado a viver segun-
do as leis da natureza do leão. Tudo aquilo que um indivíduo,
considerado como submetido unicamente ao império da na-
tureza, julga que lhe é útil, seja em função da reta razão ou
da violência das suas paixões, está no pleno direito natural de
o cobiçar e pode licitamente obtê-lo, seja pela razão, seja pela
força, a astúcia, as preces, enfim, pelo processo que lhe pare-
cer mais fácil, e considerar, por conseguinte, como seu ini-
migo quem o quiser impedir de satisfazer o seu intento.
De tudo isso conclui-se que o direito e aquilo que foi ins-
tituído pela natureza, direito sob o qual todos nascem e sob
o qual vive a imensa maioria, não proíbe nada a não ser o que
ninguém deseja e ninguém pode: conflitos, ódios, cólera, ar-
dis, seja o que for que o desejo sugira, nada disso lhe repug-
na. Nem é, aliás, para admirar, porquanto a natureza não se
confina às leis da razão humana, as quais só visam aquilo que
é verdadeiramente útil e a conservação dos homens; inclui
[1911 também uma infinidade de outras leis, as quais contemplam
a ordem eterna de toda a natureza, de que o homem é uma
pequena parte. Só pela necessidade que essa ordem implica
é que todos os seres individuais estão determinados a existir
e a agir de uma certa maneira. Por este motivo, sempre que
algo na natureza nos parece ridículo, absurdo ou mau, é por-
que só conhecemos as coisas em parte e ignoramos em gran-
de medida a ordem e a coerência de toda a natureza, além de
que pretendemos que tudo esteja orientado segundo as nor-
mas da nossa razão, quando o que a razão considera ser mau
não o é do ponto de vista da ordem e das leis de toda a natu-
reza, mas apenas do ponto de vista das leis da nossa própria
natureza 6•
Posto isso, é igualmente incontroverso ser muito mais útil
para os homens viverem segundo as leis e os rigorosos dita-
mes da razão, que apontam, como já dissemos, apenas para
o que lhes é verdadeiramente útil. Além disso, não há nin-
guém que não deseje viver, tanto quanto possível, ao abrigo
do medo, coisa que não poderá verificar-se enquanto cada
um for livre de fazer tudo quanto quiser e não se confiram à
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 237
razão mais direitos do que ao ódio e à cólera. Não há, efeti-
vamente, ninguém que, no meio de inimizades, ódios, cólera
e intrigas, não viva em ansiedade e não tente, por isso, fazer
tudo o que esteja em si para o evitar. Se tivermos, além dis-
so, em conta que os homens, quando não se entreajudam, vi-
vem miseravelmente e que, quando não cultivam a razão,
vivem escravos da necessidade, conforme demonstramos no
capítulo V, veremos com toda a clareza que, para viver em
segurança e o melhor possível, eles tiveram forçosamente de
unir-se e fazer assim com que o direito natural que cada um
tinha sobre todas as coisas se exercesse coletivamente e fos-
se determinado, já não pela força e pelo desejo do indivíduo,
mas pelo poder e pela vontade de todos em conjunto. De-
balde, porém, o tentariam fazer, se não quisessem dar ouvi-
dos senão ao instinto, uma vez que, pelas leis do instinto,
cada um é arrastado para seu lado. Por isso, tiveram de esta-
tuir firmemente e acordar entre si que tudo seria regido ape-
nas pelos ditames da razão, à qual ninguém ousa opor-se aber-
tamente ainda assim não pareça demente, que refreariam o
instinto sempre que ele sugerisse algo que redundasse em
prejuízo de outrem, que não fariam a ninguém o que não qui-
sessem que se lhes fizesse, e que defenderiam, enfim, o direi-
to do próximo como se se tratasse do seu. De que modo, po-
rém, deve esse pacto ser estipulado, para que seja ratificado
e duradouro? É o que vamos ver agora 7 •
Manda a lei universal da natureza humana que ninguém
despreze o que considera ser bom, a não ser na esperança
de um maior bem ou por receio de um maior dano, nem [192]
aceite um mal a não ser para evitar outro ainda pior ou na
esperança de um maior bem. Entre dois bens, escolhe-se
aquele que se julga ser o maior, e entre dois males, o que pa-
reça menor. Sublinho que é aquele bem ou mal que parece
ser o maior ou o menor, respectivamente, para quem esco-
lhe, já que as coisas podem não ser necessariamente assim
como ele julga. Essa lei está tão firmemente inscrita na natu-
reza humana que temos de colocá-la entre aquelas verdades
eternas que ninguém pode ignorar. Dela resulta necessaria-
238 ESPINOSA

mente que só por malícia alguém prometerá* renunciar ao di-


reito que tem sobre todas as coisas, e que só por medo de um
mal maior ou na esperança de um maior bem alguém cum-
prirá tais promessas. Para que isso fique mais claro, suponha-
mos que um ladrão me obriga a prometer que lhe vou entre-
gar os meus bens onde ele quiser. Uma vez que o meu di-
reito natural está limitado, como já demonstrei, apenas pela
minha potência, é evidente que, se eu puder astuciosamente
libertar-me desse ladrão prometendo-lhe tudo o que ele qui-
ser, ser-me-á lícito, por direito natural, fazê-lo, ou seja, ludi-
briá-lo aceitando o contrato que ele me propõe. Ou então,
suponhamos que eu, sem intuitos fraudulentos, prometi a al-
guém abster-me, durante vinte dias, de pão ou qualquer ou-
tro alimento e que, mais tarde, vejo que fiz uma promessa tola
e que não a posso cumprir sem graves prejuízos; uma vez
que, pelo direito natural, entre dois males eu sou obrigado a
escolher o menor, tenho todo o direito de romper tal pacto e
dar o dito por não dito. E isso, note-se, é lícito por direito na-
tural, quer eu veja com toda a certeza da razão que fiz mal
em prometer, quer me pareça apenas vê-lo: com efeito, este-
ja eu vendo correta ou erradamente, terei sempre receio do
inaior mal e esforçar-me-ei por todas as maneiras por evitá-
lo, conforme o que está determinado pela natureza. De tudo
isso, conclui-se que um pacto não pode ter nenhuma força a
não ser em função da sua utilidade e que, desaparecida esta,
imediatamente o pacto fica abolido e sem eficácia. É por isso
que será insensatez uma pessoa pedir a outra que jure para
todo o sempre, sem tentar, ao mesmo tempo, fazer com que
a ruptura desse pacto traga ao que o romper mais desvanta-
gens que vantagens. Ora, isso é de importância capital na fun-
dação de um Estado".

• Anotação XXXII. No estado civil, em que se decide com base no di-


reito comum o que é bem e o que é mal, faz-se justamente a distinção entre
o dolo bom e o mau. Porém, no estado de natureza, em que cada um é [por
direito] juiz de si próprio e tem o supremo direito de se prescrever a si mes-
mo as leis, de interpretá-las e até de revogá-las se achar preferível, aí, é evi-
dentemente impossível conceber alguém que atue por dolo mau.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 239

Se todos os homens pudessem com facilidade guiar-se


unicamente pela razão e se conhecessem a enorme utilidade
e a necessidade do Estado, não haveria ninguém que não de-
testasse a falsidade, e todos, por desejo daquele que é o maior
dos bens, ou seja, a conservação do Estado, observariam in-
tegralmente e com a máxima fidelidade os contratos e man-
teriam, acima de tudo, a palavra dada, que é o mais forte ba-
luarte do Estado. Quão longe, no entanto, estamos de pode- [1931
rem todos conduzir-se unicamente pela razão! Cada um dei-
xa-se levar pelo seu bel-prazer e, a maioria das vezes, tem a
mente a tal ponto inundada pela avareza, a glória, a inveja, o
ódio, etc., que não lhe fica o mínimo espaço para a razão. Por
isso é que, muito embora os homens dêem provas de since-
ridade quando prometem e assumem o compromisso de man-
ter a palavra dada, ninguém, mesmo assim, pode com segu-
rança fiar-se no próximo se à simples promessa não se juntar
algo mais; de fato, à luz do direito natural, o indivíduo pode
agir dolosamente e ninguém está obrigado a respeitar os
contratos, exceto se tiver esperança de um bem maior ou re-
ceio de maior mal 9 . Ora, como já demonstramos que o direi-
to natural tem por único limite a potência de cada um, se-
gue-se que um indivíduo, necessariamente, cederá tanto do
seu direito em favor de outrem quanto da sua potência trans-
ferir para ele, espontaneamente ou à força. Nessa medida,
quem tiver plenos poderes para dominar a todos pela força e
a todos conter pelo receio da pena capital, universalmente
temida, goza de um direito supremo sobre todos. Mas só
manterá esse direito enquanto conservar o poder de fazer
tudo o que quiser; de outro modo, o seu poder será precário
e ninguém que seja mais forte estará, se não quiser, obriga-
do a obedecer-lhe 10 •
A condição para que uma sociedade possa ser constituí-
da sem nenhuma contradição com o direito natural e para que
um pacto possa ser fielmente observado é, pois, a seguinte:
cada indivíduo deve transferir para a sociedade toda a sua
própria potência, de forma que só aquela detenha, sobre tudo
e todos, o supremo direito de natureza, isto é, a soberania su-
prema, à qual todos terão de obedecer, ou livremente ou por
240 ESPINOSA

receio da pena capital. O direito de uma sociedade assim cha-


ma-se Democracia", a qual, por isso mesmo, se define como
a união de um conjunto de homens que detêm colegialmen-
te o pleno direito a tudo o que estiver em seu poder. Donde
se conclui que o poder supremo não está sujeito a nenhuma
lei e que todos lhe devem obediência em tudo; foi isso o que
acordaram todos, tácita ou expressamente, quando transferi-
ram para ela todo o poder de se defenderem, ou seja, todo o
seu direito. Porque, se tivessem pretendido reservar algum
desse direito, teriam simultaneamente de tomar precauções
para o poderem defender; como não o fizeram, nem o pode-
riam, aliás, fazer sem uma divisão e a conseqüente destruição
da autoridade, nessa medida, submeteram-se por completo
ao arbítrio do poder soberano. Sendo assim, e porque, con-
(1941 forme já demonstramos, a necessidade a tanto obriga e a ra-
zão aconselha, se não queremos ser inimigos do Estado nem
agir contra a razão, a qual recomenda que o defendamos com
todas as nossas forças, temos de seguir absolutamente as or-
dens do poder supremo, por mais absurdas que elas sejam,
pois até nesse caso a razão manda que cumpramos, escolhen-
do assim o menor dentre dois males. Acontece, aliás, que qual-
quer indivíduo pode sem problemas expor-se a esse risco de
se submeter por completo ao poder e ao arbítrio de outrem,
dado que, como dissemos, esse direito de impor tudo o que
quiserem só compete às autoridades soberanas enquanto elas
detêm realmente o poder supremo: se o perderem, perdem
simultaneamente o direito de impor seja o que for, indo este
parar às mãos daquele ou daqueles que o conquistaram e po-
dem conservar. Por isso é que é extremamente raro que os
soberanos ordenem algo assim tão absurdo. A verdade é que
têm todo o interesse, para se precaverem e conservarem o
poder, em olhar pelo bem comum e conduzir tudo conforme
os ditames da razão: como diz Sêneca, ninguém conservou
por muito tempo o poder à custa da violência 12 • A isso acres-
ce que, num Estado democrático, são menos de recear os ab-
surdos: primeiro, por ser quase impossível que a maior parte
de um conjunto de homens reunidos, se for um conjunto su-
ficientemente grande, concorde com um absurdo; segundo,
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 241

pelo próprio fundamento e finalidade da democracia, o qual,


como também já dissemos, não é senão o de evitar os absur-
dos do instinto e conter os homens, tanto quanto possível,
dentro dos limites da razão, para que vivam em concórdia e
paz. Sem esse fundamento, todo o edifício ruirá. Por conse-
guinte, só às autoridades soberanas compete providenciar nes-
se sentido; aos súditos, como tínhamos dito, compete execu-
tar as suas ordens e não reconhecer como direito senão aqui-
lo que o poder supremo declara ser o direito.
É possível que alguém pense que, com tal argumento,
fazemos dos súditos escravos, na medida em que se conside-
ra que é escravo aquele que age a mando de outrem e livre
o que se comporta como bem entende, coisa que, todavia,
não é absolutamente verdadeiro. Porque ninguém, na reali-
dade, é mais escravo do que aquele que se deixa arrastar pe-
los prazeres e é incapaz de ver ou fazer seja o que for que
lhe seja útil; pelo contrário, só é livre aquele que sem reser-
vas se deixa conduzir unicamente pela razão. O agir de acor-
do com uma ordem, quer dizer, a obediência, retira, é um
fato, até certo ponto a liberdade; não torna, porém, automa-
ticamente um homem escravo, já que só o móbil da ação po-
der levar a tanto 13 . Se o fim da ação não é a utilidade de quem
a pratica, mas daquele que a ordena, então o que a pratica é
escravo e inútil a si próprio; porém, num regime político e
num Estado em que a lei suprema é o bem-estar de todo o
povo e não daquele que manda, quem obedece em tudo à [1951
autoridade não deve considerar-se escravo e inútil a si mes-
mo, mas apenas súdito. Por isso, a república mais livre é aque-
la cujas leis se fundamentam na reta razão; porque aí, cada
um, sempre que quiser, pode ser livre*, isto é, viver inteira-

• Anotação XXXJII. Seja qual for o regime político em que viver, o ho-
mem pode sempre ser livre, na medida em que ser livre é deixar-se guiar
pela razão. Todavia (N. B.: Hobbes é de opinião diferente), a razão, em to-
das as circunstâncias, aconselha a paz, e a paz só pode ser conseguida se o
direito público do Estado se mantiver inviolado. Assim, quanto mais um ho-
mem se conduzir pela razão, isto é, quanto mais livre for, mais inabalavel-
mente observará as leis do Estado e executará aquilo que ordena o poder
supremo do qual é súdito.
242 ESPINOSA

mente de acordo com a razão. É como acontece com as crian-


ças, que, embora tenham de obedecer a todas as ordens dos
seus pais, não são, no entanto, escravas, uma vez que as or-
dens dos pais visam, acima de tudo, a utilidade dos filhos.
Há, pois, a nosso ver, uma grande diferença entre um escra-
vo, um filho e um súdito: escravo é aquele que é obrigado a
obedecer às ordens do dono, que não visam senão o que é
útil para quem manda; filho, porém, é aquele que faz o que
lhe é útil por ordem dos pais; súdito, finalmente, é aquele que
faz, por ordem da autoridade soberana, o que é útil ao bem
comum e, conseqüentemente, também é útil a si próprio.
Penso, com isso, ter deixado suficientemente claro quais
são os fundamentos do Estado democrático. Se preferi falar
dele em vez de falar dos outros, é porque me parece o mais
natural e o que mais se aproxima da liberdade que a nature-
za reconhece a cada um. Em democracia, com efeito, ninguém
transfere o seu direito natural para outrem a ponto de este
nunca mais precisar de o consultar; transfere-o, sim, para a
maioria do todo social, de que ele próprio faz parte e, nessa
medida, todos continuam iguais, tal como acontecia anterior-
mente no estado de natureza. Em segundo lugar, quis falar
expressamente só desse regime porque é o que melhor se
presta ao objetivo que eu me propus, a saber, mostrar a uti-
lidade para o Estado da manutenção da liberdade. Não vou,
portanto, referir-me aos fundamentos dos regimes restantes,
nem é já necessário, para conhecer o respectivo direito, sa-
ber qual foi e qual é ainda freqüentemente a sua origem,
dado que, por aquilo que já dissemos, ela é mais que eviden-
te. Quem quer que detenha a soberania - seja um só, alguns
ou todos os indivíduos - é garantido que goza do pleno direi-
to de ordenar aquilo que quiser. Além disso, quem quer que
transfira, coagido ou espontaneamente, para outrem o poder
de se defender renuncia por completo ao seu direito natural
e, por conseguinte, obedece-lhe absolutamente em tudo,
obediência que é obrigado a prestar enquanto o rei, os no-
bres ou o povo conservarem o poder soberano, que foi o
fundamento daquela transferência de direito. Sobre isso, não
é necessário acrescentar mais nada.
TRATADO TEOLÓGICO-POÚ17CO 243

Apresentados os fundamentos e o direito do Estado, será


fácil determinar agora, em primeiro lugar, o que é o direito (1961
civil privado e a sua violação 14, a justiça e a injustiça numa so-
ciedade constituída; em segundo lugar, quem são os aliados
e quem são os inimigos; por último, o que é um crime de
lesa-majestade. Por direito civil privado não podemos enten-
der outra coisa senão a liberdade que cada um tem de se
conservar no seu estado, liberdade que é definida pelos édi-
tos do poder soberano e garantida unicamente pela sua auto-
ridade. A partir, com efeito, do momento em que o indivíduo
transferiu para um outro o direito de viver a seu bel-prazer,
isto é, a sua liberdade e o seu poder de se defender, direito
esse que não tinha outros limites senão os da sua própria
potência, a partir daí fica obrigado a viver de acordo exclusi-
vamente com as regras desse outro e a defender-se apenas
com a proteção que ele lhe oferece.
Há violação do direito quando um cidadão ou súdito é
obrigado a sofrer da parte de outro qualquer dano em con-
travenção ao direito civil, ou seja, ao édito da suprema auto-
ridade. A injúria ou violação do direito só pode conceber-se
no estado civil; porém, as autoridades soberanas, a quem por
direito tudo é lícito, não podem fazer nenhuma injúria aos sú-
ditos; logo, ela só pode ter lugar entre particulares, a quem o
direito interdiz o prejudicarem-se reciprocamente.
A justiça é a disponibilidade constante para atribuir a
cada um aquilo que, de acordo com o direito civil, lhe é de-
vido; a injustiça, pelo contrário, consiste em tirar a alguém,
sob uma falsa aparência de direito, o que lhe pertence se-
gundo a verdadeira interpretação das leis. À justiça e à injus-
tiça também se chama eqüidade e iniqüidade, porquanto os
que estão incumbidos de dirimir os litígios não devem entrar
em linha de conta com o estatuto social do indivíduo; estão,
pelo contrário, obrigados a tomar todos por iguais, a defen-
der igualmente o direito de cada um e a não invejar o rico
nem desprezar o pobre.
Dizemos que há aliados quando os homens de duas na-
ções diferentes, para evitar o perigo de guerra ou com qual-
quer outra finalidade útil, se comprometem mutuamente a
244 ESPINOSA

não se prejudicarem e a se assistirem em caso de necessida-


de, continuando cada uma dessas nações a manter a respec-
tiva soberania. Esse contrato será válido só enquanto subsis-
tir o seu fundamento, isto é, o motivo do perigo ou do inte-
resse, já que ninguém firma um acordo ou é sequer obrigado
a respeitar os pactos se não espera nenhuma vantagem ou
não receia nenhum mal; desaparecido esse fundamento, o
pacto cessa por si mesmo, como também ensina a experiên-
cia. Na verdade, ainda que vários Estados independentes
acordem entre si não se prejudicarem reciprocamente, mes-
mo assim, eles tentam, até onde podem, impedir que um de-
les se torne mais forte que o outro, além de que não se fiam
nos termos do contrato se não vêem com clareza suficiente a
sua razão de ser e o seu interesse para ambas as partes. Em
outras palavras: receiam ser enganados, e têm razão para isso.
Quem, com efeito, senão um tolo que ignore o direito das
[1971 autoridades, confiará nas palavras e nas promessas de alguém
que detém o poder soberano e o direito de fazer o que qui-
ser, de alguém para quem a lei suprema é o bem-estar e o
interesse do seu próprio Estado? E, se tivermos então em
conta a piedade e a religião, veremos ainda melhor que ne-
nhum soberano pode licitamente cumprir as suas promessas
quando isso implica um prejuízo para o respectivo Estado.
Porque todas as promessas que ele tenha feito e que depois
se revelem prejudiciais ao Estado só as poderá cumprir train-
do a confiança dos seus súditos, à qual, no entanto, está aci-
ma de tudo obrigado, até porque é costume jurar solenemen-
te que a vai respeitar' 5•
Inimigo, por sua vez, é aquele que vive fora do Estado,
no sentido em que, nem como aliado, nem como súdito, re-
conhece a sua autoridade. Não é, com efeito, o ódio que faz
o inimigo do Estado, mas sim o direito, sendo que o direito
que tem o Estado sobre aquele que nào reconhece a sua au-
toridade através de nenhum tipo de contrato é igual ao que
ele possui sobre aquele que lhe causou danos: está, portan-
to, no direito de o obrigar, por todos os meios de que dispo-
nha, a submeter-se-lhe ou a ser seu aliado.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 245
O crime de lesa~majestade, finalmente, só pode ocorrer
entre súditos ou cidadãos que, por um pacto tácito ou explí-
cito, transferiram todos os seus direitos para o Estado. Diz-se
que um súdito comete esse crime quando ele tenta, por qual-
quer razão, arrebatar o direito do poder soberano ou transfe-
ri-lo para outro. E digo "quando tenta'', porque, se ele ape-
nas devesse ser condenado depois de ter efetivamente co-
metido o crime, seria, na maior parte dos casos, já muito tarde
para o Estado o procurar fazer, uma vez que o direito já teria
sido usurpado ou transferido para outro. Digo, além disso,
"todo aquele que por qualquer razão tenta tirar o direito ao
poder soberano'', porque, em meu entender, tanto faz que
daí resulte um prejuízo ou um benefício para o Estado. Qual-
quer que seja o pretexto para tal tentativa, é sempre de lesa-
majestade e condenada pelo direito. Aliás, em tempo de guer-
ra, não há ninguém que não confesse que é de toda a justiça
tal condenação. Quando, por exemplo, um soldado não se
mantém no seu posto e avança, contra as ordens do chefe,
para o inimigo, será condenado à pena capital por violar o
direito do chefe e o seu juramento, por mais avisada que te-
nha sido a decisão de atacar (mas por sua livre iniciativa) e
ainda que tenha vencido o inimigo. O que para alguns já não
é assim tão evidente é que qualquer cidadão esteja sujeito a
esse direito em qualquer circunstância: a razão, no entanto, é
exatamente a mesma. Na verdade, uma vez que o Estado se
deve manter e ser dirigido exclusivamente pelas decisões do
poder soberano, e uma vez que só a ele, de acordo com o
pacto, pertence absolutamente esse direito, se alguém, por
conseguinte, se meter, por sua própria iniciativa e à revelia
da suprema autoridade, a tratar de qualquer assunto público,
mesmo que daí resultem melhorias para o Estado, nem por [198]
isso deixa de violar o direito da suprema autoridade e de le-
sar a sua majestade, sendo justamente condenado.
Resta-nos agora, para afastar toda e qualquer reticência,
responder à seguinte pergunta: não será aquilo que anterior-
mente tínhamos afirmado, ou seja, que o indivíduo privado
de razão tem todo o direito de viver no estado de natureza e
segundo as leis do instinto, abertamente contrário ao direito
246 ESPINOSA

divino revelado? Na verdade, se devemos todos (quer tenha-


mos ou não o uso da razão) amar o próximo como a nós mes-
mos, de acordo com o mandamento divino, não podemos,
sem violação do direito, prejudicar os outros e viver exclusi-
vamente segundo as leis do instinto. É, no entanto, fácil res-
ponder a essa objeçãa16 , desde que tenhamos apenas em con-
ta o estado de natureza, porquanto este é, lógica e cronolo-
gicamente, anterior à religião. Ninguém, por natureza, sabe*
que deve obediência a Deus, e também não o podemos con-
cluir por um raciocínio qualquer: só pela revelação, confir-
mada por sinais, o indivíduo pode chegar lá. Daí que, antes
da revelação, ninguém pode estar vinculado ao direito divi-
no, o qual é impossível não ignorar. O estado de natureza,
por conseguinte, não deve, de maneira alguma, confundir-se

• Anotação XXXIV. Quando Paulo diz que os homens não têm ma-
neira de escapar, fala ã maneira humana. Com efeito, no cap. IX [vers. 18] da
mesma Epístola, ele ensina expressamente que Deus é misericordioso para
quem quer e endurece o coração de quem quer, e que a única razão por
que os homens não têm desculpa é porque estão para o poder de Deus
como a argila está para o poder do oleiro, o qual da mesma massa faz vasos
que têm um destino nobre e outros que têm um destino menos próprio, e
não porque tenham sido antecipadamente avisados. Quanto à lei divina na-
tural, cujo preceito principal dissemos que era amar a Deus, só lhe chamei
lei no sentido em que os filósofos chamam leis às regras da natureza segun-
do as quais tudo acontece [necessariamente]. Porque o amor de Deus não é
obediência, mas sim virtude, que necessariamente existe no homem que
possui um conhecimento autêntico de Deus. A obediência contempla a von-
tade daquele que comanda, não a necessidade e a verdade da coisa. Ora,
como ignoramos a natureza da vontade divina e temos, pelo contrário, a
certeza de que tudo o que acontece, acontece exclusivamente pelo poder de
Deus, não podemos de forma nenhuma saber, a não ser por revelação, se
Deus quer que os homens lhe prestem culto e o rodeiem de honras como a
um príncipe. Acrescente-se que, já o mostramos, as leis de Deus só nos pa-
recem direitos ou leis instituídas enquanto ignoramos a sua causa; assim que
a conhecemos, deixam logo de ser direitos e passamos a aceitá-las como
verdades eternas. Isto é, a obediência passa imediatamente a ser amor, que
brota do conhecimento verdadeiro com a mesma necessidade com que a luz
jorra do Sol. Conduzidos pela razão, podemos, pois, amar a Deus, mas não
obedecer-lhe, uma vez que não podemos aceitar o direito divino, enquanto
ignoramos a sua causa, como divino, nem podemos pela razão conceber
Deus como um príncipe a promulgar leis.
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍ11CO 247
com o estado de religião. Pelo contrário, deve entender-se
como estranho à religião e à lei e, conseqüentemente, ao pe-
cado e à injúria, conforme há pouco fizemos, confirmando-o
pela autoridade de Paulo. E não é só por causa da ignorân-
cia que nós entendemos o estado de natureza como anterior
e estranho ao direito divino revelado; é também por causa
da liberdade com que nascem todos os seres. Se os homens
estivessem naturalmente vinculados ao direito divino, ou se
o direito divino fosse um direito de natureza, era supérfluo
Deus estabelecer um contrato com os homens e obrigá-los
pelo pacto e pelo juramento. Há portanto, que concordar em
absoluto que o direito divino entrou em vigor no momento
em que os homens, através de um pacto explícito, se com-
prometeram a obedecer a Deus em todas as coisas e como
que renunciaram à liberdade natural, transferindo o seu direi-
to para Deus, conforme vimos que acontece no estado civil.
Sobre isso, porém, falarei pormenorizadamente mais à frente.
Uma outra objeção que se nos poderá apontar a esse
respeito é que os soberanos estão tão sujeitos ao direito divi-
no quanto os seus súditos e, no entanto, nós dissemos que
eles conservam o direito natural e que tudo lhes é, por direi-
to, permitido. Para afastar por completo tal dificuldade, que
surge não tanto a propósito do estado de natureza como do
direito natural' 7 , direi que, no estado de natureza, o motivo
por que o indivíduo se submete ao direito revelado é o mes-
mo por que se submete a viver segundo os ditames da reta
razão, isto é, porque isso lhe é mais útil e necessário para o [199]
seu bem-estar. Porque, se assim não quiser, está no seu di-
reito, desde que assuma os riscos. E pode, efetivamente, vi-
ver em plena autonomia em vez de viver segundo o código
de outrem, da mesma forma que não está obrigado a reco-
nhecer nenhum mortal como juiz ou como legítimo defensor
da religião. Ora, é esse mesmo direito que eu digo que o po-
der soberano conservou. Ele pode ouvir a opinião dos ho-
mens mas não é obrigado a reconhecer seja quem for como
juiz, tal como não é obrigado a reconhecer nenhum dentre
os mortais, além dele próprio, como defensor de nenhum
direito, a menos que se trate de um profeta expressamente
248 ESPINOSA

enviado por Deus e que prove por sinais indubitáveis essa


sua proveniência. E, mesmo nesse caso, quem ele está obri-
gado a reconhecer como juiz não é um homem, mas sim o
próprio Deus. Porque, se o soberano não quiser obedecer a
Deus no que diz respeito ao seu direito revelado, não há aí
nada de ilícito, desde que assuma os riscos e danos. Quer di-
zer, não há nenhum direito civil ou natural que se lhe opo-
nha. O direito civil, com efeito, depende exclusivamente da
sua decisão; quanto ao direito natural, esse depende das leis
da natureza, as quais existem, não em função da religião,
que visa o interesse apenas dos homens, mas da ordem uni-
versal da natureza, ou seja, de um eterno decreto de Deus
que nos é desconhecido. É isso mesmo que parecem ter em
mente, se bem que de maneira mais confusa, aqueles que ad-
mitem que o homem pode, de fato, pecar contra a vontade
revelada de Deus, mas não contra o seu eterno decreto, pelo
qual ele tudo predeterminou.
Poderá, no entanto, alguém perguntar: e se o poder so-
berano ordena alguma coisa contra a religião e a obediência
que, pelo pacto, nós prometemos expressamente a Deus?
Deveremos obedecer ao mandamento divino ou ao humano?
Como vou abordar, nas páginas seguintes, essa mesma ques-
tão, limitar-me-ei, por agora, a dizer, em resumo, que se deve
acima de tudo obedecer a Deus, sempre que tivermos uma
revelação certa e indubitável. Mas visto que é no que toca à
religião que os homens mais costumam errar, e visto que a
diversidade das duas maneiras de ser os leva a inventar as
mais variadas coisas, como está já abundantemente demons-
trado pela experiência, é evidente que, se ninguém, por direi-
to, fosse obrigado a obedecer ao soberano em nada do que
julga dizer respeito à religião, então o direito civil depende-
ria do critério e do sentimento particular de cada um. Nin-
guém, com efeito, estaria obrigado àquilo que julgasse con-
trário à sua fé ou à sua superstição, além de quê, com um tal
pretexto, todos se sentiriam autorizados a fazer fosse o que
fosse. Ora, como o direito civil, em semelhantes condições,
seria sistematicamente violado, resulta que ao soberano, a
quem exclusivamente incumbe, quer por direito divino, quer
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 249
por direito natural, conservar e defender os direitos do Esta-
do, compete o supremo direito de determinar o que enten-
der em matéria de religião 18 • E todos têm de obedecer ao que (200]
ele decreta e ordena a esse respeito, dada a fidelidade que
juraram e que Deus manda observar em absoluto.
Daí decorre ainda que, se aqueles que detêm a sobera-
nia forem pagãos, de duas uma: ou não se deve pactuar com
eles seja o que for, preferindo-se sofrer os piores castigos a
transferir o direito natural para as suas mãos; ou então, se
pactuarmos e transferirmos para eles esse direito, na medida
em que assim renunciamos a defender-nos a nós próprios e
à religião, seremos obrigados a obedecer-lhes e a manter, es-
pontaneamente ou coagidos, a palavra dada. Só há exceção
para aquele a quem Deus, por uma revelação singular e ga-
rantida, prometeu auxílio contra o tirano ou quis expressa-
mente isentar. Vemos, por exemplo, que, de todos os judeus
que estavam na Babilônia, só três jovens, que não duvidavam
do auxílio de Deus, se recusaram a obedecer a Nabucodono-
sor: os outros, à exceção ainda de Daniel, a quem o próprio
Rei tinha adorado, obedeceram coagidos pelo direito, pen-
sando talvez no seu íntimo que tinham sido, por decreto de
Deus, entregues ao Rei e que este obtivera e mantinha a so-
berania por divina determinação. Eleazar, pelo contrário,
tendo em atenção que, de alguma forma, a Pátria ainda sub-
sistia, quis dar aos seus o exemplo da constância para que,
tal como ele, preferissem sofrer tudo a transferir o seu direi-
to e poder para os gregos, experimentar o pior a serem coa-
gidos a professar a fé dos pagãos.
A experiência dos dias de hoje mostra exatamente o mes-
mo. Na verdade, os soberanos cristão também não hesitam,
para sua maior segurança, em concluir tratados com os turcos
e os pagãos e em ordenar aos seus súbitos que forem habitar
esses países que não tomem, tanto no que diz respeito às coi-
sas humanas, como às divinas, maior liberdade que aquela
que estipularam por contrato ou que o soberano dos mesmos
países lhes concedeu. É o que se pode ver pelo tratado dos
holandeses com os japoneses de que falávamos lá atrás.
[201] CAPÍTULO XVII

Onde se mostra que é impossível e


desnecessário alguém transferir todos
os seus direitos para o poder soberano;
como era o Estado hebraico enquanto
viveu Moisés e como foi depois, entre a
morle deste e o início da eleição dos reis;
até que ponto ele estava numa posição
privilegiada e quais as razões por que
desapareceu, enfim, o Estado teocrático
e por que é que só se não houvesse lutas
intestinas ele poderia subsistir

Por mais que a doutrina apresentada no capítulo ante-


rior, em torno do direito absoluto das autoridades soberanas
e do direito natural do indivíduo que para elas é transferido,
seja compatível com a prática, e por mais que esta possa es-
tar regulamentada de maneira que se aproxime cada vez mais
de tal doutrina, é, todavia, impossível que em muitos aspec-
tos ela não se fique pela mera teoria. Ninguém, com efeito,
pode alguma vez transferir para outrem o seu poder e, con-
seqüentemente, o seu direito, a ponto de renunciar a ser um
homem. Tampouco haverá soberano algum que possa fazer
tudo à sua vontade: debalde ele ordenaria a um súdito que
odiasse o seli benfeitor ou que amasse quem lhe tivesse fei-
to mal, que não se ofendesse com injúrias, que não desejas-
se libertar-se'do medo, e muitas outras coisas semelhantes que
decorrem necessariamente das leis da natureza humana. ]ui-
TRATADO 1EOLÓGJCO-POLÍT1CO 251

go que a própria experiência ensina isso de forma bastante


clara: jamais os homens renunciaram ao seu próprio direito e
transferiram para outrem o seu poder em termos de tal ma-
neira definitivos que aqueles que receberam das suas mãos o
direito e o poder deixassem de os temer e que o Estado não
estivesse mais ameaçado pelos cidadãos, ainda que privados
do seu direito, do que pelos inimigos'. E é evidente que, se
os homens pudessem ser privados do seu direito natural a
ponto de não poderem depois fazer* senão o que aqueles que
d.etêm o direito supremo deixassem, então seria lícito reinar
praticando impunemente as maiores violências para com os
súditos, coisa que eu julgo não passar pela cabeça de nin-
guém. Há, por conseguinte, que reconhecer que o indivíduo
reserva para si uma boa parte do seu direito, a qual, desse
modo, não fica dependente das decisões de ninguém a não
ser ele próprio.
Porém, para se compreender até onde se estende exata-
mente o direito e o poder do Estado 2 , deve-se notar que, em
rigor, esta não consiste em submeter os homens pelo medo, (202]
mas absolutamente em tudo o que possa fazer com que eles
obedeçam às suas ordens: não é, efetivamente, a razão da
obediência, mas sim a obediência, que faz o súdito. Porque
seja qual for o motivo pelo qual um homem decide executar
as ordens do soberano - o medo do castigo, a esperança de
obter alguma coisa, o amor da pátria ou qualquer outro sen-
timento -, a deliberação é sempre sua e não é por isso que ,
ele deixa de agir segundo as ordens do soberano. Pelo fato
de um homem fazer algo por sua iniciativa não se deve ime-
diatamente concluir que age por direito próprio e não por
direito do Estado; com efeito, na medida em que o homem
atua sempre por sua própria deliberação e decisão, quer
quando o faz por amor, quer quando é coagido pelo medo
de um mal que quer evitar, ou o Estado era nulo e não tinha
nenhum direito sobre os súditos, ou então estende-se neces-

• Anotação XXXV. Dois soldados rasos tomaram a iniciativa de trans-


ferir a soberania do povo romano, e transferiram-na (Tácito, Hist., liv. !).
252 ESPINOSA

sariamente a tudo o que pode fazer com que os homens de-


cidam submeter-se-lhe. Sendo assim, desde que esteja con-
forme às ordens do soberano, faça um súdito aquilo que fi-
zer, seja movido por amor ou coagido por medo, seja (o que
é mais freqüente) levado pela esperança e pelo medo ao
mesmo tempo, seja por reverência, que é uma paixão com-
posta de medo e admiração, seja, enfim, por qualquer outro
motivo, é sempre por direito do Estado e não por direito pró-
prio que ele age.
A mesma conclusão decorre, com toda a clareza, do fato
de a obediência não ser tanto uma ação exterior como uma
ação interior da vontade. Aquele que decide com pleno con-
sentimento obedecer a todas as ordens de um outro fica com-
pletamente a mando dele. Por conseguinte, o maior poder é
o daquele que reina sobre os ânimos dos súditos. Se fossem
os mais temidos os que tinham maior poder, então o maior
poder seria o que têm os súditos dos tiranos, a quem estes
temem mais que a qualquer outra coisa. Por outro lado, se é
verdade que não se podem submeter os ânimos da mesma
forma que se submetem as línguas, apesar disso, os ânimos
estão de certo modo sob o poder do soberano, o qual dispõe
de muitos meios para fazer com que a grande maioria dos ho-
mens acredite, ame ou odeie o que ele quiser. E, se bem que
esses sentimentos não surjam diretamente por ordem do so-
berano, muitas vezes, como a experiência abundantemente
confirma, eles surgem, no entanto, por força da sua autorida-
de e sob a sua orientação, isto é, em virtude do seu direito 3 .
Daí que possamos conceber, sem violentar minimamente a
inteligência, homens que não acreditem, odeiem, desprezem
ou sejam arrebatados por qualquer outro sentimento a não
ser em virtude do direito do Estado.
[2031 Porém, apesar de concebermos assim o direito e o po-
der do Estado de maneira bastante ampla, jamais ele será tão
grande que aqueles que o detêm possam fazer absolutamente
tudo o que quiserem, conforme creio já ter mostrado com
suficiente clareza. Quanto às condições para que um Estado
soberano possa se constituir de forma que se mantenha sem-
pre em segurança, já disse que não era minha intenção expô-
TRATADO 1EOLÓGICO-POJÍT1CO 253
las aqui. No entanto, para chegar aonde pretendo, sublinharei
aquilo que, com essa mesma finalidade, a divina revelação
ensinou outrora a Moisés; em seguida, examinaremos a his-
tória dos hebreus e as suas vicissitudes, com base nas quais
veremos, finalmente, que coisas os soberanos devem sobre-
tudo conceder aos súditos para garantir a maior segurança e
o desenvolvimento do Estado.
Que a manutenção do Estado depende, antes de mais
nada, da fidelidade dos súditos, da sua virtude e da sua per-
severança na execução das ordens, a razão e a experiência
ensinam-no sem margem para dúvidas. Descobrir, porém, o
modo como eles devem ser governados para que mante-
nham sempre a fidelidade e a virtude já não é assim tão fácil.
Todos, com efeito, sejam governantes ou governados, são
homens, que o mesmo é dizer, têm tendência para fugir ao
trabalho e procurar o prazer. Quem tenha alguma experiên-
cia da sempre mutável índole da multidão quase que deses-
pera de o descobrir: porque a multidão não se rege pela ra-
zão, rege-se pelas paixões, tudo a atrai e deixa-se facilmente
corromper, seja pela avareza, seja pelo luxo. Cada qual julga
que só ele sabe tudo e quer que tudo seja orientado segun-
do a sua maneira de ver; conforme pensa que uma coisa lhe
trará lucro ou prejuízo, assim a considera justa ou iníqua, le-
gítima ou ilegítima; por amor à glória, despreza os seus se-
melhantes e nào suporta ser governado por eles; por inveja
de um título mais elevado, ou da fortuna, que nunca está igual-
mente repartida, deseja o mal a outrem e sente prazer nisso;
nem vale a pena prosseguir, uma vez que ninguém ignora a
que crimes o descontentamento pela sua condição presente e
o desejo de novas coisas, a cólera arrebatada, o desprezo pela
pobreza, inspiram freqüentemente aos homens e quanto essas
paixões lhes invadem e agitam os ânimos. Obviar pois, a to-
dos esses males, instituir um Estado em que nào haja lugar para
a fraude, organizar tudo, em suma, de forma que todos, seja
qual for a sua maneira de ser, ponham o direito público acima
dos seus interesses privados, aí é que está o problema4 •
A premência dessa questão tem exigido a busca de inú-
meros expedientes, mas nunca se atingiu um ponto em que
254 ESPINOSA

o Estado não estivesse mais ameaçado pelos cidadãos do que


[204] pelos inimigos e em que os que detêm o poder não tivessem
menos medo destes do que daqueles. Exemplo disso é a Re-
pública Romana, invencível ante os inimigos e tantas vezes
vencida e miseravelmente oprimida pelos seus cidadãos, em
particular na guerra civil de Vespasiano contra Vitélio. Veja-
se, a esse respeito, o início do livro IV das Histórias de Táci-
to, onde se descreve o aspecto miserável da cidade. Alexan-
dre, como diz Quinto Cúrcio, no final do livro VIII, conside-
rava mais fácil ter fama entre os inimigos do que na sua cida-
de, pois acreditava que a sua grandeza podia ser destruída
pelos concidadãos, etc. Temendo, aliás, pelo seu destino, di-
rige aos amigos estas palavras: Livrai-me apenas das conju-
ras internas e das insídias dos súditos, que eu afrontarei sem
medo o perigo na guerra e nos combates. Filipe esteve mais
seguro na frente da batalha do que no teatro; evitou muitas
vezes a mão dos inimigos, mas não conseguiu fugir às mãos
dos seus. Se repararem também no fim que tiveram os outros
reis, verificarão que são mais os que foram mortos pelos seus
do que aqueles que o foram pelo inimigo (ver Quinto Cúrcio,
livro IX, § 6). Por essa razão, os que tinham anteriormente
usurpado o poder tentaram, para garantir a própria seguran-
ça, fazer crer que a sua origem ascendia aos deuses imortais5•
Isso, porque pensavam que, se os súditos e todos os outros os
considerassem, não como seus semelhantes, mas sim como
deuses, suportariam mais facilmente ser governados por eles
e entregar-se-lhes-iam com facilidade. Foi assim que Augus-
to convenceu os romanos de que descendia de Enéias, o
qual se acreditava ser filho de Vênus e pertencer ao número
dos deuses, e quis ser adorado nos templos, sob a efígie das
divindades, por flâmines e sacerdotes (Tácito, Anais, livro I).
Alexandre, esse quis ser saudado como filho de Júpiter. E
parece que o fez, não por orgulho, mas por prudência, como
se depreende da sua resposta à invectiva de Hermolau. Era -
diz ele - quase ridículo aquilo que Hermolau me exigia ao pe-
dir que renegasse Júpiter, por cujo oráculo sou reconhecido.
Porventura estará também em meu poder aquilo que os deu-
ses respondem? Júpiter ofereceu-me o nome de filho, eu acei-
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTICO 255
tei (N.B.) e essa decisão não foi alheia aos nossos interesses.
Oxalá os indianos também acreditem que eu sou um deus.
Há guerras que se decidem pela fama e, freqüentemente,
uma falsidade em que se acredita vale como se fosse uma ver-
dade (Quinto Cúrcio, liv. VIII, § 8). Com essas breves pala-
vras, continua sutilmente a persuadir os ignorantes de uma
coisa simulada, ao mesmo tempo que insinua o motivo da si-
mulação. E o mesmo fez Cléon, no discurso com que tenta-
va convencer os macedônios a se submeterem ao Rei. Com
efeito, após ter emprestado à simulação uma aparência de
verdade, descrevendo entusiasticamente as glórias de Ale-
xandre e enumerando os seus méritos, refere assim as vanta-
gens desse processo: não era só por piedade, era também por [205]
prudência que os persas prestavam aos reis o mesmo culto
que aos deuses: porque a majestade é a garantia da seguran-
ça do Estado. E para terminar afirma ainda: eu próprio, quan-
do o rei entrar na sala do banquete, prostrar-me-ei por terra.
Os outros, a começar por aqueles que são prudentes e sábios,
devem fazer o mesmo (ver ibid., livro VIII, § 5). Os macedô-
nios, porém, eram pessoas mais esclarecidas e, de resto, os
homens, a menos que sejam bárbaros por completo, não to-
leram ser tão abertamente enganados e que os façam baixar
de súditos a escravos inúteis. Mas houve outros que lograram
facilmente fazer crer que a soberana majestade é sagrada,
que faz na terra as vezes de Deus, que foi instituída por Deus
e não por sufrágio e consentimento dos homens, e que, além
disso, se mantém e defende por especial providência e auxí-
lio divino. E como estas, muitas outras coisas que os monar-
cas inventaram para segurança do seu próprio Estado e que
passo aqui sob silêncio. Para ir direto ao que me interessa, in-
dicarei e analisarei, como disse, só aquilo que a revelação di-
vina ensinou outrora a Moisés com esse mesmo objetivo.
Já anteriormente, no capítulo V, dissemos que após te-
rem saído do Egito os hebreus deixaram de estar vinculados
ao direito de qualquer nação estrangeira e podiam legitima-
mente instituir novas leis e ocupar as terras que quisessem.
Na verdade, uma vez libertos da intolerável opressão dos egíp-
cios, e não estando sujeitos por nenhum contrato a ninguém
256 ESPINOSA

dentre os mortais, readquiriram o direito natural a tudo o que


estivesse em seu poder e cada um deles podia de novo deli-
berar em absoluto se pretendia conservar ou ceder e transfe-
rir para outrem esse direito. Foi então que, regressados ao es-
tado de natureza, decidiram, a conselho de Moisés, em quem
tinham a máxima confiança, não transferir o seu direito para
nenhum dentre os mortais, mas somente para Deus, e todos,
sem hesitação, prometeram em uníssono obedecer integral-
mente aos seus mandamentos e não reconhecer outro direi-
to senão o que ele próprio estatuísse por revelação profética.
E essa promessa, quer dizer, essa transferência do direito para
Deus, processou-se exatamente do mesmo modo que nós tí-
nhamos dito que acontece em qualquer sociedade, quando os
homens decidem renunciar ao seu direito natural. Primeiro,
através de um pacto explícito (Êxodo, cap. XXIV, 7) e de um
juramento, cederam livremente, sem serem coagidos pela
força ou atemorizados, o seu direito natural, transferindo-o
para Deus. Segundo, e para que esse pacto fosse firmado em
termos irrevogáveis e estivesse ao abrigo de qualquer suspei-
ta de fraude, Deus só o ratificou depois de eles terem expe-
rimentado a sua admirável potência, a única que lhes tinha
[206] até aí assegurado a sobrevivência e poderia, de futuro, con-
tinuar a assegurá-la (Êxodo, cap. XIX, 4 e 5). Foi exatamente
por isso, por acreditarem que só podiam manter-se graças ã
divina potência, que transferiram para ela todo o poder natu-
ral de se manterem que antes julgavam ter em si mesmos e,
conseqüentemente, todo o seu direito.
Deus ficou, portanto, com todo o poder sobre o Estado
hebreu e só este, graças ao pacto, podia legitimamente ser
chamado o Reino de Deus 6, da mesma forma que a Deus se
podia chamar com propriedade o Rei dos hebreus. Assim, os
inimigos daquele Estado eram inimigos de Deus, os cidadãos
que quisessem usurpá-lo eram réus de lesa-divina-majestade
e, finalmente, as leis em vigor eram as leis e mandamentos di-
vinos. Nesse Estado, portanto, o direito civil e a religião, que
consiste, como já demonstramos, unicamente em obedecer a
Deus, eram uma e a mesma coisa. Quer dizer, os dogmas da
religião não eram ensinamentos mas normas jurídicas e man-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 257

<lamentos, tal como a piedade era tida por justiça e a impie-


dade por crime e injustiça. Quem desprezasse a religião dei-
xava de ser cidadão e só por isso era tido como inimigo; quem
tivesse dado a vida pela religião era como se tivesse morrido
pela Pátria; entre o direito civil e a religião não havia absolu-
tamente nenhuma distinção. Eis o motivo por que a tal Esta-
do pôde chamar-se "teocracia", porquanto os seus cidadãos
não estavam subordinados a nenhum direito a não ser aque-
le que Deus tinha revelado. Tudo isso, no entanto, era mais
uma suposição do que uma situação de fato, já que os he-
breus mantiveram em absoluto o direito estatal, como se ve-
rificará pelo que vamos dizer a seguir, isto é, pela maneira e
pelo processo como se administrava esse Estado e que me
proponho explicar aqui7.
Uma vez que os hebreus não transferiram para ninguém
o seu direito e todos eles, como numa democracia, lhe renun-
ciaram igualmente, proclamando em uníssono "tudo o que
Deus disser (sem ficar previsto nenhum intermediário) nós o
faremos", segue-se, em virtude desse pacto, que todos passa-
ram a ser completamente iguais, a ter idêntico direito de in-
terpelar Deus, de receber e interpretar as leis e de participar
em todas as tarefas da administração do Estado. Eis o motivo
por que, num primeiro momento, se aproximaram todos de
Deus para ouvir o que lhes queria ordenar; ficaram, porém,
tão aterrados nessa primeira prestação de vassalagem e ouvi-
ram de tal maneira atônitos a palavra de Deus que julgaram
ser chegado o fim dos seus dias. Então, cheios de medo, fo-
ram novamente a Moisés: eis que ouvimos Deus falando no
meio do fogo e não há razão para que queiramos morrer;
esse fogo imenso devorar-nos-á com cerleza; se nós ouvirmos
outra vez a voz de Deus, por cerlo morreremos. Vai tu, pois,
escuta todas as palavras do nosso Deus e serás tu (não Deus) [207]
a falar-nos: a tudo o que Deus te disser nós obedeceremos e
havemos de cumpri-lo. Com essas palavras, aboliram clara-
mente o primeiro pacto e transferiram por completo para Moi-
sés o seu direito de interpelar Deus e interpretar os seus édi-
tos8. Aqui, o que prometeram já não foi, como antes, obede-
cer a todas as palavras que Deus lhes dissesse, mas sim a to-
258 ESPINOSA

das as que ele dissesse a Moisés (ver Deuteronômio, cap. V,


depois do Decálogo, e cap. VIII, 15 e 16).
Moisés ficou, portanto, sendo o único portador e intér-
prete das leis divinas e, conseqüentemente, também o juiz su-
premo a quem ninguém podia julgar, o único que entre os
hebreus fazia as vezes de Deus; dito de outro modo, alcan-
çou a majestade suprema, porquanto só ele tinha o direito de
consultar Deus, de dar ao povo as respostas divinas e de o
obrigar a executá-las. O único, repito, pois, se alguém, em
vida de Moisés, quisesse pregar qualquer coisa em nome de
Deus, mesmo que fosse um verdadeiro profeta, era réu e usur-
pador do direito supremo (Números, cap. XI, 28)*. A esse
respeito, é de notar que, embora o povo tenha eleito Moisés,
não pôde, contudo, à luz do direito, eleger o sucessor deste.
Porque, no mesmo instante em que transferiram para Moisés
o direito de consultar Deus e prometeram confiar-lhe a fun-
ção de oráculo divino, perderam absolutamente todo o direi-
to e ficaram obrigados a aceitar aquele que Moisés escolhes-
se para seu sucessor como se tivesse sido escolhido por
Deus. E, se Moisés tivesse eleito alguém que, tal como ele, se
encarregasse de toda a administração do Estado, isto é, que
fosse o único a ter o direito de consultar Deus na sua tenda

• Anotação XXXVI. Nesta passagem [dos Números], dois homens [cujos


nomes se referem no cap. II, 28, deste livro] são acusados de ter profetizado
nos acampamentos [a notícia chegou logo a Moisés] e Josué decide prendê-
los; ora, não teria feito [nem o caso teria sido contado a Moisés como um
delito], se fosse permitido a qualquer um, sem ordem de Moisés, transmitir ao
povo as respostas de Deus. Moisés, todavia, prefere absolver os réus e criti-
ca Josué por o aconselhar a manter os seus direitos soberanos numa altura
em que sentia tal tédio pelo poder que teria preferido morrer a reinar sozi-
nho, como demonstra o versículo 14 [e 15] do mesmo capítulo, onde, efetiva-
mente, responde assim a Josué: irritas-te por minha causa? Oxalá todo o
povo de Deus fosse profeta, quer dizer, [tu querias que só eu reinasse, mas eu
preferia que o povo voltasse a ter o direito de consultar diretamente a Deus
para que tivesse o poder nas suas mãos e me deixasse em pazl. Josué, por-
tanto, não ignorou o direito [e a autoridade] mas não teve em conta a opor-
tunidade e, por isso, foi repreendido por Moisés, tal como Abiseu o foi por
Davi, quando o aconselhou a condenar ã morte Shimhgi, que era indiscutivel-
mente réu de [iesa-]majestade. (Ver Samuel, II, cap. XIX, 22, 23.)
TRATADO 1EOLÓGJCO-POÚ11CO 259
e, por conseguinte, autoridade para decretar leis e para as re-
vogar, tomar decisões quanto à guerra e à paz, enviar embai-
xadores, nomear juízes, escolher o seu sucessor e desempe-
nhar, de modo absoluto, todas as funções do soberano, o Es-
tado teria sido puramente monárquico. Com uma única dife-
rença: é que uma monarquia, habitualmente, rege-se, ou
devia reger-se, por um decreto de Deus oculto até para o pró-
prio monarca, ao passo que a dos hebreus, de certo modo, era
regida por um decreto de Deus revelado apenas ao monarca.
Essa diferença, porém, não diminui, antes aumenta, o poder
do monarca e o seu direito sobre todos. Tanto num como no
outro Estado, o povo encontra-se submetido e igualmente ig-
norante do decreto divino, já que em ambos está dependen-
te da palavra do monarca e só através dela conhece o que é
legítimo ou ilegítimo. Não é por acreditar que tudo o que o
monarca lhe ordena está de acordo com o decreto de Deus
só a ele revelado que o povo lhe será menos submisso; mui-
to pelo contrário, sê-lo-á até ainda mais. Moisés, porém, não
escolheu tal sucessor, deixando às gerações seguintes um Es- [2081
tado administrado de tal forma que não se lhe pode chamar
nem popular, nem aristocrático, nem monárquico, mas sim
teocrático9 • O direito de interpretar as leis e comunicar as res-
postas de Deus estava nas mãos de um; o direito e o poder
de administrar o Estado, segundo as leis já explicadas e as res-
postas já comunicadas, estava nas mãos de outro. Sobre esse
ponto, ver Números, cap. XXVIII, 21 •.

• Anotação XXXVII. Os intérpretes que tive oportunidade de consultar


traduzem mal os versículos 19 e 23 deste capítulo. É que, de fato, não se diz
aí que lhe deu ordens ou sequer que lhe deu instruções sobre os preceitos,
mas que nomeou, ou seja, constituiu Josué chefe supremo, o que é freqüente
na Escritura, como acontece no Ê.xodo, cap. XVIII, 23, em Samuel, i, cap. XIII,
15, emjosué, cap. 1, 9, e em Samuel, i, cap. XXV, 30, etc.
[Quanto mais os intérpretes se esforçam por traduzir palavra por pala-
vra os vers. 19 e 23 deste capítulo, menos inteligíveis eles ficam. Estou até
certo de que muito poucas pessoas entendem o seu verdadeiro sentido;
porque a maioria imagina que Deus ordena a Moisés, no vers. 19, que dê ins-
truções a Josué em presença da Assembléia e que, no vers. 23, ele lhe im-
põs as mãos e os instruiu. O que se esquece é que essa maneira de falar é
260 ESPINOSA

Para compreender melhor a questão, vou descrever por


ordem como era toda a administração do Estado. Em primei-
ro lugar, foi ordenado ao povo que construísse uma casa que
fosse como que a corte de Deus, ou seja, da suprema majes-
tade desse Estado. Essa casa deveria ser construída a expen-
sas, não de um só, mas de todo o povo, a fim de que a casa
onde Deus seria consultado fosse propriedade comum. Para
áulicos e administradores dessa divina corte foram eleitos os
levitas; como seu chefe e para ocupar o segundo lugar logo
a seguir ao rei, que era Deus, foi escolhido Aarão, irmão de
Moisés, que teria como legítimos sucessores os próprios fi-
lhos. Assim, Aarão, sendo o mais próximo de Deus, era o su-
premo intérprete das leis divinas, aquele que dava ao povo as
respostas do oráculo divino e que, finalmente, dirigia a Deus
as súplicas do povo. Se tivesse também o direito de impor es-
sas mesmas leis, teria tudo quanto era necessário para ser um
monarca absoluto. Faltava-lhe, no entanto, esse direito, uma
vez que a tribo de Levi ficou a tal ponto arredada do poder
político que nem sequer lhe foi atribuída, tal como às outras,
a posse de uma parcela de território de onde pudesse tirar ao
menos o necessário para a sua subsistência. Ficou, pelo con-
trário, assentido que. ela seria sustentada pelo resto do povo,
embora de modo que fosse tida na maior consideração pelo
comum da plebe, porquanto era a única dedicada a Deus.
Em segundo lugar, constituído um exército pelas restan-
tes doze tribos, foi-lhes ordenado que invadissem o território
dos cananeus e o dividissem à sorte pelas tribos: para essa mis-
são foram eleitos doze chefes, um de cada tribo, aos quais,

muito freqüente entre os hebreus para declarar que a eleição do Príncipe é


legítima e que ele é confirmado no seu cargo. É assim que fala Jetro, quando
aconselha Moisés a escolher coadjutores que o auxiliem a julgar o povo: Se
fizeres isso (disse), então Deus ordenar-te-á, como que dizendo que a sua au-
toridade seria firme e duradoura. A esse respeito, ver o Êxodo, cap. XVIII, 23,
o livro 1 de Samuel, cap. XIII, 15 e cap. XXV, 30, e sobretudo o cap. 1, 9, de
Josué, onde Deus lhe diz: Não te ordenei? Ganha coragem e mostra-te homem
de ânimo forte! É como se Deus lhe dissesse: Não fui eu que te constitui Prin-
cipe? Não tenhas medo de nada, pois eu estarei sempre contigo!]
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 261

juntamente com Josué e o sumo-sacerdote Eleázaro, foi con-


ferido o direito de dividir as terras em doze lotes iguais e re-
parti-los à sorte. Josué foi designado comandante supremo
do exército e só ele, nessa nova situação, passou a ter o di-
reito de consultar Deus (não como Moisés, a sós na sua ten-
da, ou no tabernáculo, mas por intermédio do sumo-sacerdo-
te, que era o único a quem eram dadas as respostas de Deus),
de promulgar depois as ordens divinas comunicadas através
do pontífice, obrigar o povo a respeitá-las, procurar e utilizar
todos os meios para que elas fossem executadas, recrutar para
o exército quantos homens quisesse e aqueles que quisesse,
enviar embaixadores em seu nome e decidir sozinho sobre [209]
todas e quaisquer questões militares. Mas ninguém podia su-
ceder-lhe legitimamente ou ser eleito por quem quer que fos-
se a não ser diretamente por Deus, e só quando o interesse
de todo o povo o exigisse. Caso contrário, todos os assuntos
relativos à guerra e à paz seriam administrados pelos chefes
das tribos, conforme mostrarei daqui a pouco.
Finalmente, Moisés ordenou que todos, entre os 20 e os
60 anos, ficassem obrigados ao serviço militar e que se for-
masse um exército só de nacionais, o qual juraria fidelidade,
não ao seu comandante nem ao sumo-pontífice, mas à reli-
gião, isto é, a Deus. Esse exército era, por isso, chamado exér-
cito de Deus e os seus batalhões, batalhões de Deus; este, por
sua vez, era designado entre os hebreus por Deus dos exér-
citos, razão pela qual, nas grandes batalhas de cujo desfecho
dependia a vitória ou a derrota de todo um povo, a arca da
aliança era levada no meio do exército para que o povo, ven-
do o seu rei como se estivesse ali presente, combatesse com
o máximo das suas forças.
Por essas indicações que Moisés deu aos seus sucesso-
res conclui-se facilmente que ele tinha escolhido administra-
dores e não dominadores do Estado. A ninguém, com efeito,
conferiu o direito de interpelar Deus onde quisesse e a sós:
conseqüentemente, não deu a ninguém a autoridade, que ele
próprio tinha, de estatuir leis e de as revogar, decidir sobre a
guerra e a paz, eleger os administradores, tanto do templo
como da cidade, prerrogativas que pertencem todas a quem
262 ESPINOSA

ocupa o poder supremo. O Sumo-Pontífice tinha, efetivamen-


te, o direito de interpretar as leis e transmitir as respostas de
Deus. Mas não quando quisesse, como acontecia com Moi-
sés; só quando lhe fosse solicitado pelo chefe dos exércitos,
pelo Conselho Supremo ou por outras entidades semelhan-
tes. Em contrapartida, o comandante supremo dos exércitos
e os Conselhos podiam consultar Deus quando quisessem,
mas só recebiam respostas através do Sumo-Pontífice. Por isso,
as palavras de Deus não eram decretos na boca do pontífice,
tal como o eram na de Moisés, mas simplesmente respostas;
só depois de recebidas por Josué e pelos Conselhos é que ad-
quiriam, finalmente, força de lei e de mandamento.
Por outro lado, este sumo-pontífice, que recebia de Deus
as suas respostas, não tinha exército nem possuía, por direi-
to, poder político; pelo contrário, aqueles que tinham a juris-
dição das terras não podiam, em face do direito, estatuir leis.
Além disso, os sumo-pontífices, no caso de Aarão e do seu fi-
lho Eleázaro, foram ambos designados por Moisés; mas uma
vez falecido este, mais ninguém teve o direito de designar um
pontífice, sucedendo o filho legitimamente ao pai. O coman-
dante supremo dos exércitos foi também designado por Moi-
sés, assumindo esse papel, não em virtude do direito do sumo-
pontífice, mas sim em virtude do direito de Moisés, que lhe
[2101 foi transmitido. Daí que, falecido Josué, o pontífice não ele-
geu mais ninguém para o seu lugar e os chefes das tribos tam-
bém não consultaram Deus sobre a designação de um novo
comandante: cada um deles assenhorou-se do direito que Jo-
sué tinha sobre o exército da respectiva tribo, ficando os
doze em conjunto com o direito que ele possuía sobre todo
o exército. E, ao que parece, não era necessário um coman-
dante geral, a não ser quando, reunindo todas as forças, ti-
nham de combater contra um inimigo comum, como aconte-
ceu sobretudo no tempo de Josué, em que ainda não pos-
suíam todas um território fixo e em que tudo pertencia por
direito a todos. Porém, a partir do momento em que todas as
tribos dividiram entre si as terras adquiridas por direito de
conquista, bem como as que até aí estavam autorizadas a pos-
suir, deixando de pertencer tudo a todos, a partir de então
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 263
não se justificava mais a existência de um único comandante,
visto que, feita aquela divisão, as diversas tribos não deve-
riam em rigor considerar-se concidadãs, mas sim confedera-
das. No que concerne a Deus e à religião, há, de fato, que con-
siderá-las concidadãs; mas no que concerne ao direito que
cada uma das tribos tinha sobre a outra, elas eram confede-
radas, à semelhança quase, se excetuarmos o templo comum,
dos Estados Confederados da Holanda 10 • Na realidade, a divi-
são da coisa pública em várias partes consiste apenas em
cada um passar a ser o único dono da sua parte, renuncian-
do os outros ao direito que sobre ela tinham. O móbil que
levou Moisés a nomear chefes das tribos foi, port:mto, fazer
com que, após a divisão do Estado, cada um fosse responsá-
vel pela sua parte, isto é, por consultar Deus sobre os assun-
tos da sua tribo através do sumo-pontífice, comandar a sua
milícia, fundar e fortificar cidades, nomear juízes para cada
uma delas, combater os inimigos do território sob a sua juris-
dição e gerir integralmente as questões da guerra e da paz. O
chefe não era obrigado a reconhecer nenhum outro juiz além
de Deus* ou alguém expressamente enviado por esse como

• Anotação XXXVIII. Os rabinos supõem que foi Moisés que instituiu


aquilo a que vulgarmente se chama o Grande Sinédrio [Grande Conselho].
. Aliás, não são só os rabinos, são também muitos cristãos, que comungam
das suas tolices. É verdade que Moisés elegeu setenta coadjutores para com
ele se ocuparem dos assuntos do Estado, já que não podia suportar sozinho
o encargo de todo um povo; mas nunca fez nenhuma lei para instituir um
colégio de setenta membros; pelo contrário, ordenou que cada tribo, nas ci-
dades que Deus lhe tinha atribuído, constituísse juízes para dirimirem os lití-
gios de acordo com as leis por ele definidas [e punir os delinqüentes]. Se,
por acaso, os próprios juízes tivessem dúvidas sobre o direito, deveriam ir
consultar o Sumo-Pontífice (quer dizer, o supremo intérprete das leis) ou o
juiz a que nesse momento estivessem subordinados (pois era a ele que cabia
o direito de consultar o pontífice), e resolver a contenda segundo a expli-
cação recebida. Porque, se o juiz subordinado [ou inferior] pretendesse que
não era obrigado a pronunciar a sua sentença de acordo com a opinião do
Sumo-Pontífice, quer a tivesse recebido dele, quer ela lhe tivesse sido trans-
mitida pelo seu soberano, era condenado à morte, precisamente pelo juiz
supremo que estivesse em funções na altura e por quem havia sido nomea-
do (cf. Deuteronômio, cap. XVII, 9). Quer dizer, por alguém que fosse, ou o
comandante-em-chefe, como Josué, de todo o povo israelita, ou o chefe de
264 ESPINOSA

profeta; em contrapartida, se se afastasse de Deus, as outras


tribos não o deviam julgar como súdito; deviam, sim, atacá-lo
como inimigo, uma vez que tinha sido infiel ao pacto.
Temos exemplos disso na Escritura. Assim, após a mor-
te de Josué, foram os filhos de Israel, e não um novo coman-
dante quem consultou Deus. E, quando se percebeu que a tri-
bo de Judá devia ser a primeira de todas a mover guerra ao
seu inimigo, ela fez sozinha um tratado com a tribo de Si-
meão para juntarem suas forças contra o inimigo comum, tra-
tado este em que não foram incluídas as outras tribos (juízes,
cap. 1, 1, 2 e 3). Cada uma delas resolvia em separado (con-
forme se relata no citado capítulo) a guerra contra o respec-
[211] tivo inimigo e aceitava a submissão e a palavra de quem qui-
sesse, muito embora constasse dos preceitos que não deveriam
em condição alguma celebrar pactos, mas sim exterminar to-
dos os inimigos. É certo que eram recriminadas por essa fal-
ta, mas ninguém as convocava para serem julgadas. Nem isso
constituía motivo para começarem a guerrear entre si ou a se
intrometerem nos assuntos internos umas das outras; em con-

qualquer das tribos, a quem passou a competir, após a divisão, o direito de


consultar o pontífice sobre os assuntos da sua tribo, sobre a guerra e a paz,
as cidades a fortificar, os juízes a eleger [nas cidades sob a sua jurisdição],
etc., ou ainda o rei, para o qual todas as tribos ou pelo menos algumas ti-
nham transferido os seus direitos. Em abono dessa verdade, poderia alegar
vários exemplos tiradós das narrativas históricas, mas darei apenas um, que
me parece o principal. Quando o profeta Silonita elegeu o rei Jeroboão, deu-
lhe por inerência o direito de consultar o pontífice e de estabelecer juízes, de
forma que ele tinha sobre dez tribos todos os direitos que Jeroboão tivera so-
bre duas. Por isso, Jeroboão podia instituir na sua própria corte um Conselho
de Estado, com o mesmo direito com que Josafá o instituíra em Jerusalém
(ver Paralipômenos, II, cap. XIX, 8 ss.). Porque, de fato, nem Jeroboão, na
medida em que era rei por mandato divino, nem, por conseguinte, os seus
súditos, eram obrigados, segundo a lei de Moisés, a reconhecer Roboão, ao
qual não estavam subordinados, como juiz; e muito menos ainda estavam su-
jeitos ao tribunal de Jerusalém, por ele instituído e a ele subordinado. Assim
que o Estado hebreu se dividiu, houve tantos conselhos supremos [diferentes
e independentes uns dos outros] quantas as partes resultantes dessa divisão.
Quando não se tem em conta a diversidade de situações políticas pelas quais
passaram os hebreus e se reduzem todas elas a uma só [como se se tratasse
sempre da mesma coisa], fica-se enredado em múltiplas dificuldades.
TRATADO 1EOLÓGICO-POÚ11CO 265

trapartida, quando a tribo de Benjamim ofendeu as outras e


rompeu o vínculo da paz, a tal ponto que já nenhum habitan-
te das outras tribos confederadas podia lá instalar-se em se-
gurança, pegarem em armas, invadiram-na e, ao cabo de três
batalhas, venceram-na e mataram todos, quer os culpados,
quer os inocentes, como mandava a lei da guerra, coisa de
que vieram depois, quando já era tarde, a arrepender-se.
Tais exemplos confirmam integralmente o que dissemos
sobre o direito de cada tribo. Perguntar-se-á, porventura, quem
é que designava o sucessor do chefe de cada uma delas. A
esse respeito, não posso concluir nada ao certo das Escritura.
Presumo, no entanto, visto cada uma estar dividida em famí-
lias cujos chefes eram escolhidos entre os mais velhos, que o
mais idoso de toda a tribo sucederia por direito ao chefe da
tribo. Foi, com efeito, dentre esses anciãos que Moisés esco-
lheu os setenta colaboradores que com ele formavam o Con-
selho Supremo; por outro lado, aqueles a quem coube gerir
o poder após a morte de Josué são designados nas Escrituras
por Velhos; e não há nada, enfim, mais freqüente entre os he-
breus, como julgo que toda a gente sabe, do que chamar os
juízes pelo nome de velhos. Pouco importa, aliás, para aqui-
lo que estamos tratando, saber ao certo como eram escolhi-
dos os chefes das tribos; basta que fique esclarecido que,
após a morte de Moisés, não houve mais ninguém que tivesse
exercido ao mesmo tempo todas as funções do poder supre-
mo. Na verdade, uma vez que não estava tudo dependente
da decisão de um único homem, nem de um único Conse-
lho, nem do povo, cabendo, pelo contrário, a uma tribo a ad-
ministração de certas coisas, às outras em conjunto e em igual-
dade de direitos e administração das restantes, segue-se com
toda evidência que, depois da morte de Moisés, o Estado dei-
xou de ser monárquico, aristocrático ou popular, e passou a
ser teocrático: primeiro, porque a verdadeira casa real era o
templo e só por essa razão, como demonstramos, os habitan-
tes de todas as tribos eram concidadãos; segundo, porque to-
dos os cidadãos deveriam jurar fidelidade a Deus, seu juiz
supremo, o único a quem tinham prometido obedecer abso-
lutamente em tudo; finalmente, porque o chefe supremo,
266 ESPINOSA

quando fosse necessário, não era escolhido por ninguém a não


ser por Deus. É assim que Moisés expressamente determina
ao povo (Deuteronômio, cap. XVIII, 15) e é, na realidade, o
[212] que a eleição de Gedeão, Sansão e Samuel confirmam; não há,
portanto, nenhuma razão para duvidar que os outros chefes
fiéis não tenham sido designados de maneira semelhante,
apesar de isso não constar da sua história.
Enunciados esses princípios, é altura de vermos até que
ponto um Estado assim constituído poderia moderar os âni-
mos e refrear tanto os governantes como os governados, de
modo que nem estes se tornassem rebeldes, nem aqueles
tiranos.
Os que exercem ou que detêm o poder, sempre que co-
metem algum crime, procuram apresentá-lo como se fosse
um direito e persuadir o povo de que agiram honestamente,
coisa que conseguem com facilidade quando toda a interpre-
tação do direito depende unicamente deles. É evidente que,
quando assim acontece, eles extraem do próprio direito a má-
xima liberdade para fazerem tudo o que querem e que o ins-
tinto lhes sugere; pelo contrário, se o direito de interpretar as
leis pertencer a um outro e se, ao mesmo tempo, a sua ver-
dadeira interpretação for de tal maneira clara para todos que
não deixe nenhuma margem para dúvidas, essa liberdade es-
tará em boa parte vedada. Donde, é evidente que a principal
fonte de crimes era subtraída aos chefes dos hebreus ao atri-
buir-se o direito de interpretar as leis apenas aos levitas (Deu-
teronômio, cap. XXI, 5), que não tinham nenhuma interferên-
cia nem participavam na administração do Estado e cuja for-
tuna e prestígio dependiam integralmente da verdadeira in-
terpretação das leis. Depois, todo o povo estava obrigado a
reunir-se, de sete em sete anos, num determinado lugar, a fim
de ser instruído nas leis pelo pontífice, além de quê, cada um
em particular devia ler e reler constantemente e com a maior
atenção o livro da lei (ver Deuteronômio, cap. XXXI, 9, etc.,
e cap. VI, 7). Os chefes deveriam, portanto, até no seu próprio
interesse, procurar administrar tudo segundo as leis prescri-
tas, bem conhecidas de todos, se queriam ser alvo das maiores
honras por parte do povo, que nesse caso os venerava como
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍT1CO 267
ministros do reino de Deus e seus vigários. Caso contrário, não
conseguiriam escapar ao pior dos ódios que os súditos podem
nutrir, isto é, o ódio teológico.
Para esse mesmo fim, isto é, para conter a concupiscên-
cia desenfreada dos chefes, contribuía também outro fato da
maior importância: ser o exército formado por todos os cida-
dãos entre os 20 e os 60 anos, sem exceção, e os chefes não
poderem contratar nenhum soldado estrangeiro como mer-
cenário. Isso, repito, foi da maior importância, visto ser evi- [213]
dente que os príncipes só com um exército pago por si po-
dem oprimir o povo, ao passo que não há nada que eles mais
receiem do que a liberdade de um exército de cidadãos, cuja
coragem, trabalho e sangue abundantemente derramado fi-
zeram nascer a liberdade e a glória de um Estado. Por isso é
que Alexandre, quando se viu forçado a combater Dario pela
segunda vez, por ter seguido o conselho de Parménion, não
se voltou contra este, que o tinha aconselhado, mas sim con-
tra Polisperconte, que era da mesma opinião. De fato, como
diz Cúrcio, livro IV, § 13, não ousou punir de novo Parmé-
nion, a quem, pouco tempo antes, tinha criticado mais seve-
ramente do que desejava, nem conseguiu oprimir a liberda-
de dos Macedônios, a quem, como já dissemos, temia mais
que tudo, enquanto o número dos cativos ingressados no
exército não superou o dos soldados macedônios. Só então,
reduzido o ânimo à impotência e coarctada a liberdade dos
melhores dentre os cidadãos, ele pôde dar largas às suas pai-
xões. Ora, se essa liberdade característica de um exército de
concidadãos inibe os príncipes de um Estado simplesmente
humano, que costumam usurpar só para si toda a glória das
vitórias alcançadas, quanto mais não deve ela ter inibido os
príncipes dos hebreus, cujas tropas combatiam, não pela gló-
ria do príncipe, mas pela glória divina, e que não entravam
nem sequer em combate enquanto não recebessem ordens
de Deus. Além disso, os príncipes dos hebreus estavam liga-
dos entre si apenas pelo vínculo da religião; nessa medida,
se algum deles a renegasse e violasse o direito divino de cada
um, podia ser tido pelos outros como inimigo e legitimamen-
te esmagado.
268 ESPINOSA

Em terceiro lugar, havia o receio de qualquer novo pro-


feta. Bastava, efetivamente, que um homem de vida irre-
preensível mostrasse, por meio de certos sinais reconheci-
dos, que era um profeta, para ter, só por isso, o supremo di-
reito de mandar, tal como Moisés, em nome de Deus, o qual
se lhe revelara diretamente e não através da consulta do pon-
tífice, como acontecia com os príncipes. E o certo é que tais
profetas podiam sem problemas levar atrás de si um povo
oprimido e convencê-lo, com os mais simples sinais, daquilo
que quisessem. Já quando as coisas andavam corretamente
administradas, o príncipe podia, pelo contrário, precaver-se
a tempo, a fim de que o profeta tivesse primeiro de compa-
recer na sua presença para ele averiguar se a sua vida era ir-
repreensível, se apresentava sinais certos e indubitáveis de
que fora enviado e, finalmente, se o que pretendia dizer em
nome de Deus estava de acordo com a doutrina recebida e
as leis gerais da Pátria. Porque, se os sinais não fossem sufi-
cientes, ou se a doutrina fosse novidade, o príncipe podia
[214] condená-lo à morte; caso acontecesse o contrário, ainda as-
sim, era só através da autoridade e do testemunho do prínci-
pe que o profeta ficava reconhecido''.
Em quarto lugar, o chefe não era superior aos outros,
nem pela pobreza nem pelo direito de sangue, pois só em
virtude da sua idade e da sua virtude lhe competia a admi-
nistração do Estado.
Por último, nem os chefes nem o conjunto do exército
podiam ambicionar a guerra mais do que a paz. O exército,
com efeito, tal como dissemos, era constituído apenas por ci-
dadãos, sendo, portanto, os mesmos homens que adminis-
travam, quer os assuntos respeitantes à guerra, quer os res-
peitantes à paz. Quem nas trincheiras era soldado, na praça
pública era cidadão; quem no campo de batalha era coman-
dante, no tribunal era juiz; quem, enfim, no exército era co-
mandante supremo, na cidade era o príncipe. Desse modo,
ninguém podia desejar a guerra pela guerra, mas sim pela
paz e pela defesa da liberdade. E é provável que o príncipe,
para não ser obrigado a dirigir-se ao Sumo-Pontífice nem ter
de estar perante ele em posição de inferioridade, se abstives-
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍ17CO 269
se o mais possível de alterar as coisas. Isso, no que toca às
razões que faziam o chefe manter-se nos seus devidos limi-
tes. Vejamos agora por que razão o povo se mantinha coeso.
Mas também isso os fundamentos do Estado indicam com
toda a clareza. De fato, se repararmos neles, nem que seja
por alto, ver-se-á imediatamente quão singular deveria ser o
amor que despertavam nos ânimos dos cidadãos, para não
haver nada mais difícil de acudir à cabeça de alguém que a
idéia de trair a Pátria ou desertar, e para todos lhe estarem,
pelo contrário, tão ligados que preferiam morrer a serem do-
minados por estrangeiros. Na realidade, assim que transferi-
ram o seu direito para Deus, passaram a acreditar que o seu
reino era o reino de Deus e que só eles eram filhos de Deus,
ao passo que as outras nações eram inimigas de Deus, razão
por que estas lhes inspiravam o maior ódio (julgavam até
que tal ódio era um gesto de piedade, como no Salmo
CXXXIX, 21, 22); nada lhes era mais abominável do que jurar
fidelidade a um estrangeiro e prometer-lhe obediência; nada
mais vergonhoso nem mais execrável a seus olhos do que
trair a sua pátria, isto é, o próprio reino do Deus a quem
adoravam. Até o ir habitar para qualquer lugar em terra es-
trangeira era já considerado infamante, dado que só na sua
pátria era permitido exercer-se o culto de Deus a quem esta-
vam obrigados, de tal maneira que, fora do solo sagrado da
sua terra, qualquer outro sítio lhes parecia imundo e profa-
no. É por isso que Davi, obrigado a exilar-se, se queixa as-
sim a Saul: Se os que te instigam contra mim são homens, [215]
malditos sejam eles, já que me expulsam para não partilhar
da herança de Deus e me dizem "vai, adora os deuses estran-
geiros". Também por esse motivo, nenhum cidadão (o que é
particularmente digno de nota), era condenado ao exílio:
aquele que peca é, com efeito, digno de suplício, mas não de
opróbrio".
O amor dos hebreus pela Pátria não era, pois, um sim-
ples amor, era piedade, e esta, juntamente com o ódio pelas
outras nações, alimentava e fomentava de tal forma o culto
cotidiano que acabou por se converter na própria natureza
dos hebreus. De fato, o seu culto cotidiano não era só intei-
270 ESPINOSA

ramente diferente (o que fazia a sua absoluta singularidade e


completa separação dos outros povos): era, além disso, total-
mente oposto. Dessa cotidiana recriminação, deveria, por isso,
nascer um ódio contínuo e o mais persistente que se poderia
cravar nos ânimos: o ódio nascido da devoção ou da pieda-
de e que, por isso mesmo, se considerava piedoso, o ódio
que é, sem dúvida alguma, o mais profundo e o mais irredu-
tível. Não faltava sequer aquela causa que habitualmente faz
com que um ódio se torne cada vez mais aceso, ou seja, o
sentimento recíproco por parte dos outros, já que as nações
estrangeiras não podiam deixar de também nutrir por eles o
ódio mais violento.
Em que medida é que todas essas circunstâncias, quer
dizer, o estarem livres de um poder humano, a devoção à
Pátria, o direito absoluto sobre todos os outros, o ódio, não
apenas lícito mas até piedoso, para com todos os inimigos, a
singularidade dos costumes e dos ritos, em que medida, di-
zia eu, contribuiu isso para fortalecer os ânimos dos hebreus
de modo que suportassem tudo pela Pátria com uma cons-
tância e uma coragem ímpares? A razão explica-o com toda a
clareza e a própria experiência o confirma. De fato, enquan-
to a Cidade esteve de pé, nunca eles se deixaram ficar por
muito tempo sob o jugo estrangeiro, razão pela qual Jerusa-
lém era vulgarmente conhecida por cidade rebelde (ver Es-
dras, cap. IV, 12, 15). O segundo Estado, que já era só uma
sombra do primeiro, visto os pontífices terem usurpado tam-
bém o poder político, dificilmente pôde ser destruído pelos
Romanos, conforme o próprio Tácito testemunha em Histórias,
livro II: Vespasiano tinha levado a cabo a guerra contra os
judeus, faltando-lhe apenas expugnar jerusalém, empresa di-
fícil e árdua, mais pela maneira de ser dessa gente e pelo seu
obstinado fana tismo do que por restarem aos sitiados forças
suficientes para suportarem as privações. Independentemen-
te, porém, dessas forças, cuja apreciação é subjetiva, havia
neste Estado inabalável uma outra que lhe era específica e
por meio da qual deveriam sobretudo os cidadãos ser manti-
dos de forma que não pensassem em desertar nem ter ne-
nhum desejo de abandonar a Pátria: refiro-me ao interesse,
TRATADO TEOLÓGJCO-POÚ17CO 271

que é o cerne e o estímulo de todas as ações humanas mas (216]


que, neste Estado, repito, era especial.
Na verdade, em parte alguma os cidadãos tinham tão as-
segurado o direito de propriedade como os súditos do Esta-
do hebreu, os quais possuíam uma parcela de terras e cam-
pos igual à do chefe e ficavam donos dela para sempre. Por-
que, se alguém, coagido pela pobreza, vendesse os seus
bens ou a sua propriedade, na altura do Jubileu ela ser-lhe-ia
integralmente restituída. E havia outras instituições semelhan-
tes para impedir que alguém pudesse alienar os seus bens.
Em parte alguma, além disso, a pobreza poderia ser mais fa-
cilmente suportada do que numa terra onde a caridade para
com o próximo, melhor dizendo, para com o concidadão,
deveria ser praticada com o máximo de piedade a fim de
que Deus, seu Rei, lhe fosse propício. Desse modo, os cida-
dãos hebreus só podiam sentir-se bem na sua pátria, ao pas-
so que longe dela só tinham a esperar os maiores prejuízos e
a desonra.
Outros motivos que os persuadiam, não só a ficar em
solo pátrio, mas também a evitar as guerras civis e a reprimir
as causas de discórdia, eram, primeiro, ninguém ser escravo
do seu semelhante, mas apenas de Deus; segundo, ter-se a
caridade e o amor para com os concidadãos por suma pieda-
de, alimentada em boa parte pelo ódio que habitualmente
nutriam pelas outras nações e que estas lhes retribuíam. Para
isso contribuía também a rigorosa disciplina da obediência
em que eram educados e segundo a qual tudo o que faziam
devia reger-se pelo que estava prescrito na lei: não podiam
lavrar à sua vontade, mas só em certas épocas, em certos
anos e sem juntar duas bestas de espécies diferentes; além
disso, só era lícito semear e ceifar de determinada maneira e
num dado momento; toda a sua vida, em suma, era um con-
tínuo exercício de obediência (sobre esse aspecto, ver o ca-
pítulo V, relativo à utilidade das cerimônias). E tão habitua-
dos estavam a essa vida que ela já nem devia parecer-lhes
escravidão mas liberdade: era possível até acontecer que nin-
guém desejasse o proibido, mas apenas aquilo que estava or-
denado.
272 ESPJNOSA

Para o mesmo efeito, contribuiu também imensamente,


ao que parece, o fato de, em certas alturas do ano, serem
obrigados a descansar e a divertir-se, não para fazerem a sua
vontade, mas para fazerem a vontade de Deus: três vezes por
ano eram convidados de Deus (Deuteronômio, cap. XVI), ao
sétimo dia da semana deveriam cessar todo o trabalho e des-
cansar, além de várias outras ocasiões marcadas em que os
divertimentos honestos e os banquetes festivos eram, não só
autorizados, mas prescritos. Mais eficaz do que isso para fa-
zer vergar o ânimo dos homens, não creio que se possa in-
ventar alguma coisa, visto que não há nada mais arrehatador
que a alegria nascida da devoção, isto é, do amor e, ao mes-
[2171 mo tempo, da admiração. Nem sequer havia o risco de se-
rem facilmente invadidos pelo tédio da repetição, uma vez
que o culto destinado aos dias de festa era variado e só de
tempos em tempos.
A isso acresce o profundo respeito pelo templo que eles
sempre conservaram religiosamente em virtude do caráter
singular do seu culto e dos ritos que era preciso observar an-
tes que fosse permitido a alguém o acesso, de tal forma que
ainda hoje não é sem um profundo horror que eles lêem a
ignomínia de Manassés, que teve a audácia de pôr um ídolo
lá dentro. E em relação às leis, que eram religiosamente guar-
dadas no sacrário mais inacessível, o respeito do povo não
era menor. Por isso, as murmurações e preconceitos não cau-
savam aqui a mínima preocupação: ninguém, com efeito,
ousava fazer juízos sobre as coisas divinas; pelo contrário, es-
tavam obrigados a obedecer, sem consultar a sua própria ra-
zão, a tudo o que lhes era imposto em nome da autoridade
da resposta divina recebida no templo ou da lei estabelecida
por Deus.
Penso, com isso, ter exposto de maneira breve mas sufi-
cientemente clara o essencial do Estado hebreu. Resta agora
averiguar também as causas por que se afastaram os hebreus
tantas vezes da lei, por que foram tantas vezes subjugados e
por que foi, enfim, o Estado completamente destruído. Dir-
se-á talvez que foi por causa da rebeldia dessa gente. Mas isto
é infantil! Por que esta nação foi mais insubmissa do que as
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍT1CO 273
outras? Seria pela sua natureza? Mas a natureza não cria na-
ções, cria indivíduos, e estes são de nacionalidades distintas
em virtude apenas da diversidade da língua, das leis e dos
costumes herdados. Só estes dois últimos aspectos, as leis e
os costumes, podem fazer com que cada nação tenha uma
índole particular, condições específicas e, enfim, preconcei-
tos próprios. Se, por conseguinte, fosse de admitir que os he-
breus foram mais insubmissos do que o resto dos mortais,
haveria que o imputar a qualquer deficiência das leis ou dos
costumes herdados. Sem dúvida que, se Deus quisesse que o
Estado hebreu fosse dotado de maior estabilidade, teria insti-
tuído outras leis, outros direitos e outro sistema de governo.
Sendo assim, o que podemos nós dizer, senão que eles tive-
ram contra si a ira de Deus, não só, como diz jeremias, cap.
XXXII, 31, desde a fundação da Cidade, mas logo desde a
fundação das leis? É, afinal, o que Ezequiel corrobora (cap.
XX, 25): Dei-lhes também estatutos que não eram bons e re-
gras com as quais eles não poderiam viver; porque os tornei
impuros até pelas suas oferendas, ao terem de pagar resgate
por toda a abertura de vulva (isto é, por todo o primogênito)
a fim de os destruir e para que soubessem que eu sou Jeová.
Para entender corretamente estas palavras e a causa da ruína
do Estado, deve-se notar que a primeira intenção tinha sido [218]
entregar o ministério sagrado aos primogênitos e não aos Le-
vitas (ver Números, cap. VIII, 17); mas, a partir do momento
em que todos, com exceção dos Levitas, adoraram o bezerro,
os primogênitos foram repudiados e considerados impuros,
sendo os levitas eleitos em seu lugar (Deuteronômio, cap. X,
8). Quanto mais eu penso nessa modificação, mais me sinto
obrigado a exclamar com Tácito que naquele momento Deus
não estava pensando na sua segurança, mas sim na sua pu-
nição. E nem sei como dizer até que ponto me espanta o
existir no seu ânimo celeste uma cólera tão grande que até
as próprias leis, que se destinam sempre a proporcionar a hon-
ra, o bem e a segurança de um povo, ele as tenha instituído
com o intuito de se vingar e de os punir de tal maneira que
já nem pareciam leis, ou seja, o bem do povo, mas antes pe-
nas e suplícios.
274 ESPINOSA

Na realidade, todas as oferendas que eram obrigados a


dar aos levitas e aos sacerdotes, o dever de resgatar os pri-
mogênitos e pagar por cada um deles uma certa quantia aos
mesmos levitas, bem como o privilégio a estes concedido de
serem os únicos a ter acesso às coisas sagradas, tudo isso
lhes fazia constantemente lembrar a sua impureza e o terem
sido repudiados. Depois, os levitas teriam sempre algo que se
lhes censurasse. De fato, entre tantos milhares deles, haveria
certamente um bom número de insuportáveis "teologastros" 13 ,
o que explica o desejo que o povo tinha de espiar os atos
dos levitas, que ao fim e ao cabo também eram homens, e
de os acusar a todos pelo delito de um só. Daí os constantes
boatos e, conseqüentemente, a repulsa que sentiam para sus-
tentar, sobretudo em tempos de carestia, homens ociosos e
odiados a que nem sequer estavam ligados pelo sangue. Não
é, portanto, de admirar, que em períodos calmos, quando os
milagres cessavam 14 e não existiam homens de excepcional
autoridade, o ânimo do povo, irritado e avaro, começasse a
enfraquecer e acabasse por abandonar um culto que, embo-
ra divino, se lhe tornava ignominioso e até suspeito, passan-
do a desejar outro diferente. Tampouco é de estranhar que
os chefes, que para obter só para si a suprema autoridade so-
bre o Estado procuravam sempre um meio de atrair o povo
e desviá-lo do pontífice, lhe tenham feito todas as concessões
e introduzido cultos novos. Porque, se o Estado fosse consti-
tuído de acordo com o primeiro projeto, a cada uma das tri-
bos caberia igual direito e dignidade e tudo se teria mantido
em perfeita segurança. Quem, com efeito, haveria de querer
violar o direito sagrado dos seus consanguíneos? Acaso dese-
jariam coisa melhor que sustentar gente do mesmo sangue,
seus pais e irmãos, de acordo com o preceito religioso, apren-
[2191 der com eles a interpretação das leis, esperar deles, enfim, as
divinas respostas?
Por outro lado, as tribos permaneceriam muito mais es-
treitamente unidas assim, quer dizer, se tivessem todas igual
direito a administrar as coisas sagradas; nem sequer haveria
algo a temer se a própria eleição dos levitas tivesse sido mo-
tivada por uma outra causa que não a cólera e a vingança.
TRATADO TEOLÓGICO-POLtnco 275

No entanto, e como tínhamos dito, eles incorreram na ira do


seu Deus, o qual, para repetirmos as palavras de Ezequiel, os
tornou impuros nas próprias oferendas, ao terem de pagar
resgate por toda a abertura de vulva, a fim de os destruir. Es-
sas palavras, aliás, são confirmadas pela própria história. As-
sim que o povo começou a ficar ocioso no deserto, houve
logo muitos, e não só da plebe, que deram em manifestar má
vontade contra a eleição dos levitas, ao mesmo tempo que
começavam a suspeitar que Moisés criara todas aquelas insti-
tuições, não por mandato divino mas por sua iniciativa, por-
quanto tinha escolhido, dentre todas, a sua própria tribo e
conferido para sempre o pontificado ao seu irmão. Por isso,
foram ter com ele em agitado tumulto, gritando que eram to-
dos igualmente santos e que o fato de se ter alçado acima
deles era contrário ao direito. E não houve maneira de os
acalmar com nenhum argumento, até que Moisés fez um mi-
lagre em sinal da sua fé e foram todos aniquilados. Daqui re-
sultou uma nova sedição, dessa vez de todo o povo, por
pensar que os revoltosos tinham morrido, não em virtude de
uma sentença divina, mas por artes de Moisés. Só depois de
ter havido uma grande calamidade ou peste é que o povo, já
cansado, se acalmou, mas num tal estado que preferiam to-
dos morrer a continuar vivos. A bem dizer, era mais o fim da
rebelião do que o início da concórdia.
Isso mesmo vem confirmado na Escritura (Deuteronômio,
cap. XXXI, 21), quando Deus, após ter vaticinado a Moisés
que o povo se afastaria do culto divino assim que ele mor-
resse, diz o seguinte: porque eu conheço a sua cupidez e
aquilo que já hoje ele trama, quando ainda nem o conduzi à
terra prometida. Um pouco mais à frente, é Moisés que diz
ao próprio povo: conheço a vossa rebeldia e insubmissão. Se
enquanto eu ainda estou convosco sois rebeldes a Deus,
quanto mais não o sereis depois da minha morte. E assim
aconteceu efetivamente, como se sabe. Houve grandes alte-
rações, liberdade de fazer tudo, licenciosidade e covardia,
razão pela qual as coisas começaram a se deteriorar, até que,
subjugados por diversas vezes, romperam por completo com
o direito divino e quiseram um rei mortal, de modo que a
276 ESPINOSA

sede do poder deixasse de ser o templo para passar a ser uma


corte e os habitantes de todas as tribos continuassem, de fato,
a ser concidadãos, mas em função dos reis e não já do direi-
to divino e do pontificado 15 •
Tais alterações deram, no entanto, matéria abundante para
novas desordens, de que resultou, enfim, a ruína total do Es-
tado. Que há, efetivamente, de mais insuportável para os reis
(2201 que reinar a título precário e ter de tolerar um Estado dentro
do Estado? Ainda os primeiros, como tinham sido eleitos den-
tre os cidadãos, contentaram-se com o grau de dignidade a
que ascenderam. Mas quando os filhos deles tomaram conta
do reino, por direito de sucessão, começaram pouco a pou-
co a mudar tudo para chamar a si a plena soberania, boa
parte da qual lhes escapava na medida em que o poder de
legislar não dependia de si mas do pontífice, que guardava
as leis no santuário e as interpretava para o povo. Na realida-
de, eles estavam, tal como os súditos, sujeitos às leis e não ti-
nham o direito de as revogar nem de instituir outras com igual
autoridade. Por outro lado, o direito dos levitas vedava aos
reis e aos súditos, por serem igualmente profanos, a adminis-
tração das coisas sagradas. E, além disso, toda a estabilidade
do seu poder ficava à mercê da vontade de um só homem,
desde que este fosse reconhecido como profeta, conforme
algumas vezes sucedeu. Veja-se, por exemplo, com que liber-
dade Samuel não ordenava tudo a Saul e com que facilidade
não transferiu para Davi, por causa de um único delito, o di-
reito ao trono. Os reis tinham, pois, um Estado dentro do Es-
tado e reinavam a título precário.
Foi para obviar a tais limitações que eles autorizaram que
se edificassem outros templos aos deuses, de modo que não
tivessem mais de consultar os levitas, e que procuraram de-
pois vários indivíduos que profetizassem em nome de Deus,
a fim de terem profetas para contrapor aos verdadeiros. Mas
nunca, apesar de o terem tentado por todos os meios, conse-
guiram levar até ao fim os seus intentos. Com efeito, os pro-
fetas, que estavam dispostos a tudo, esperavam o momento
oportuno, ou seja, a chegada ao poder de um novo rei, cuja
autoridade é sempre precária enquanto perdura a memória
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 277

daquele que o antecedeu: nessa altura, podiam então, invocan-


do a autoridade divina, induzir com facilidade alguém que
fosse inimigo do rei e conhecido pela sua coragem a vingar
o direito divino e a tomar legitimamente o poder ou parte
dele. Mas tampouco os profetas podiam, por esta via, adian-
tar alguma coisa, pois embora extorquissem do seio da so-
ciedade um tirano, as causas da tirania ficavam: a única coisa
que faziam era comprar, a preço de muito sangue de cidadãos,
um novo tirano. As discórdias e guerras civis foram, por con-
seguinte, constantes, já que as razões da violação do direito
divino permaneciam sempre idênticas, sendo, ali~s, impossí-
vel extingui-las sem com elas extinguir todo o Estado.
Vimos como a religião foi introduzida na sociedade he-
braica e em que medida o seu Estado teria podido ser eterno
se a justa cólera do legislador o tivesse deixado continuar
como a princípio. Mas, uma vez que não pôde acontecer as-
sim, acabou por desaparecer. De resto, só falei aqui do pri-
meiro Estado, porquanto o segundo mais não foi que uma
sombra do primeiro, visto os hebreus estarem sujeitos ao di- [2211
reito dos persas, de quem eram súditos, e os pontífices, após
a conquista da independência, terem usurpado o direito dos
chefes e assumido o poder absoluto. Daí a enorme ambição
de governar e ocupar simultaneamente o pontificado que se
apossou dos sacerdotes. Não havia, portanto, nenhuma ne-
cessidade de dizer mais coisas sobre esse segundo Estado.
Quanto a saber se o primeiro, estável como o concebemos,
poderá ser imitado ou se é louvável imitá-lo até onde for
possível, é o que veremos nos capítulos seguintes. Queria ape-
nas, a título de conclusão, sublinhar aquilo que já tinha suge-
rido antes, isto é, que de tudo quanto expusemos neste capí-
tulo resulta evidente que o direito divino ou religioso tem ori-
gem num pacto, sem o qual não existe senão o direito natural.
Por isso, os hebreus não estavam obrigados, por determina-
ção religiosa, a nenhum gesto de piedade para com as gentes
que não tinham participado nesse pacto, mas apenas para
com os seus concidadãos.
CAPÍTULO XVIII

Onde se deduzem, a partir das


instituições hebraicas e da sua história,
alguns princípios políticos

Embora o Estado hebreu, tal como o apresentamos no


capítulo anterior, pudesse ter durado indefinidamente, é, con-
tudo, impossível tomá-lo, hoje em dia, por modelo. Nem isso,
aliás, seria aconselhável. De fato, se houvesse alguns homens
que quisessem transferir o seu direito para Deus, eles teriam,
à semelhança dos hebreus, de concluir com Deus um pacto
explícito, para o qual seria necessário, nào só a sua vontade
de transferir o seu direito, mas também a vontade de Deus,
para quem esse direito seria transferido. Ora, Deus revelou
por meio dos apóstolos que o seu pacto não mais seria escri-
to com tinta, nem sobre tábuas de pedra, mas com o espírito
de Deus e no coração. Depois, tal organização do Estado po-
deria, talvez, convir a homens que quisessem viver isolados,
sem comércio externo, fechados no interior das suas frontei-
ras e isolados do resto do mundo, mas de forma nenhuma a
homens a quem é necessário ter contatos com o estrangeiro.
Assim sendo, tal organização política só pode convir a um
número muito restrito.
A verdade é que, apesar de não poder ser imitada em
tudo, ela teve, ainda assim, muitos aspectos altamente meri-
tórios que serão, pelo menos, dignos de registro e que talvez
fosse aconselhável imitar. Não sendo, todavia, minha inten-
ção, como já preveni, tratar expressamente do Estado, deixa-
rei de lado a maior parte desses aspectos e registrarei apenas
[222) aquilo que tenha a ver com o meu objetivo. Primeiro, que
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 279
não é contrário ao reino de Deus eleger uma suprema majes-
tade que detenha o poder soberano. Com efeito, os hebreus,
após terem transferido o seu direito para Deus, atribuíram a
Moisés o poder soberano, pelo que só ele teve autoridade
para instituir e revogar leis em nome de Deus, escolher os
ministros sagrados, julgar, ensinar, castigar, enfim, mandar ab-
solutamente em todos e em tudo. Em segundo lugar, que os
ministros sagrados, sendo embora os intérpretes das leis, não
tinham competência, nem para julgar os cidadãos, nem para
excomungar quem quer que fosse, dado que esse direito per-
tencia apenas aos juízes e aos chefes eleitos pelo povo (Jo-
sué, cap. VI, 26; juízes, cap. XXI, 18, e Samuel, 1, cap. XIV, 24).
Além desses, se quisermos entrar também em linha de conta
com os fatos e as narrativas históricas dos hebreus, encontra-
remos ainda outros aspectos dignos de nota. Assim:
1 - Não houve nenhuma seita religiosa a não ser quan-
do, no segundo Estado, os pontífices passaram a ter autori-
dade para promulgar decretos e tratar dos assuntos políticos,
usurparam, para que essa autoridade durasse indefinidamen-
te, os direitos da soberania e quiseram, finalmente, ser desig-
nados por reis. A razão está à vista: no Estado anterior, não
podia haver decretos promulgados em nome do pontífice, na
medida em que este não tinha o direito de os decretar, mas
apenas o de comunicar, a pedido dos chefes ou dos Conse-
lhos, as respostas de Deus. Assim sendo, não podiam, a essa
altura, ter a pretensão de decretar novas leis, limitando-se a
administrar e a preservar as que havia e tinham sido herda-
das. Aliás, o único processo que tinham de assegurar a sua li-
berdade ante os princípios era impedirem a deturpação das
leis. No entanto, assim que se apossaram do poder de gerir
os assuntos do Estado e juntaram ao pontificado o poder po-
lítico, começou cada um a procurar a sua glória pessoal, tan-
to na religião como no resto, impondo em tudo a pontifícia
autoridade e decretando todos os dias coisas novas a respei-
to das cerimônias, da fé e de tudo o mais, com a pretensão de
que fossem tão sagradas e se revestissem de tanta autoridade
como as leis de Moisés. Daí, a religião degenerar em funesta
280 ESPINOSA

superstição e corromper-se o verdadeiro sentido e a interpre-


tação das leis.
A isso acresce também o fato de os pontífices, nos pri-
meiros tempos da restauração, quando preparavam já o cami-
nho em direção ao poder político, tolerarem tudo para atrair
a si a plebe, quer dizer, aprovarem as suas ações ainda que
[2231 fossem ímpias e adaptarem a Escritura aos seus costumes
mais iníquos. É o que Malaquias confirma em termos certíssi-
mos; de fato, após ter invectivado os sacerdotes do seu tem-
po, acusando-os de desprezarem o nome de Deus, continua
a vituperá-los do seguinte modo: Os lábios do Pontifice guar-
dam a ciência e é da sua boca que se espera a lei; porque ele
é o enviado de Deus. Mas vos afastastes do caminho, fizestes
com que a lei se transformasse para muitos em motivo de es-
cândalo. Rompestes o pacto de Levi, diz o Deus dos exércitos.
E o profeta prossegue as acusações dizendo que eles inter-
pretavam as leis a seu bel-prazer, não olhando a Deus mas
apenas aos cargos. É certo que os pontífices nunca puderam
atuar com a cautela suficiente para passarem despercebidos
aos mais avisados e, por isso mesmo, estes afirmaram com
ousadia crescente que só se deveriam respeitar as leis que
estavam escritas; os outros decretos, a que por engano os fa-
riseus (na sua maioria gente do povo, como diz ]osefo, nas
Antiguidades) chamavam as tradições dos antepassados, não
tinham nada que ser observados. Fosse como fosse, não há
dúvida de que a bajulação dos pontífices, a corrupção da re-
ligião e das leis e a inacreditável proliferação destas oferece-
ram freqüentemente aso a controvérsias e altercações impos-
síveis de sanar. Quando os homens entram em litígio anima-
dos de fervor supersticioso, se uma das facções tem o apoio
do magistrado, é impossível apaziguá-los: inevitavelmente,
eles dividir-se-ão em seitas 1 •
II - É de notar que os profetas, na medida em que eram
simples particulares, irritaram mais os homens do que os cor-
rigiram, dada a liberdade com que os admoestavam, critica-
vam e cobriam de vergonha. Em contrapartida, esses mes-
mos homens, quando admoestados ou castigados pelos reis,
vergavam-se facilmente. Muitas vezes, os profetas tornaram-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 281

se insuportáveis até para os reis, e mesmo para os que eram


piedosos, pela autoridade que tinham de julgar se o que eles
faziam era ou não impiedade e de os punir se acaso se atre-
vessem a resolver qualquer assunto, público ou privado, ao
arrepio do seu parecer. O rei Asa, que reinou piedosamente,
segundo diz a Escritura, mandou decepar o profeta Ananias
(Paralipômenos, II, cap. XVI) por ter tido a audácia de o re-
preender e criticar abertamente quando celebrou um pacto
com o rei da Araméia. E, como este, há outros exemplos que
mostram que tal liberdade resulta mais em detrimento do que
em incremento da religião, para não falar já das tremendas [224]
guerra~ civis que tiveram também origem no fato de os pro-
fetas se reservarem tão amplos direitos'.
III - Igualmente digno de nota é ter havido, enquanto o
povo deteve o poder, apenas uma guerra civil, a qual viria,
no entanto, a ser completamente sanada, além de quê, os
vencedores se mostraram de tal maneira misericordiosos para
com os vencidos que tentaram por todos os meios reintegrá-
los na sua primitiva dignidade e com as mesmas posses. Mas
assim que o povo, que não estava nada habituado a reis,
substituiu pela monarquia o regime anterior, as guerras civis
não mais tiveram fim e travaram-se combates tão violentos
como nunca se tinha ouvido falar. Só num deles (parece in-
crível) foram massacrados quinhentos mil israelitas que, por
sua vez, trucidaram não sei quantos judeus (o número não
vem na Escritura), aprisionaram o rei, demoliram quase por
completo a muralha de Jerusalém e (o que revela que a sua
cólera não tinha limites) espoliaram totalmente o próprio
Templo. Depois, carregados com o enorme saque feito entre
os seus irmãos e saciados de sangue, levando reféns e aban-
donando o rei no seu reino já quase devastado, depuseram
finalmente as armas, confiantes, não na fidelidade, mas na fra-
queza dos judeus. E, de fato, poucos anos mais tarde, assim
que estes se recompuseram, eclode uma nova guerra em que
os israelitas saem de novo vencedores, trucidam 120 mil ju-
deus, levam prisioneiras duzentas mil mulheres e crianças e
fazem outro saque enorme. E assim, esgotados por estes e ou-
tros combates que vêm contados ao longo das narrativas his-
282 ESPINOSA

tóricas, acabaram por se tornar presa dos inimigos. Por outro


lado, se quisermos considerar também o tempo em que lhe
foi permitido gozar de paz absoluta, verificamos um enorme
contraste: antes dos reis, passaram-se freqüentemente quaren-
ta e até, uma vez, oitenta anos (o que supera tudo quanto se
poderia prever) em plena concórdia, sem guerras civis ou
contra o estrangeiro. Mas depois que os reis conquistaram o
poder, como já não se tinha de combater pela paz e pela li-
berdade, como anteriormente, mas pela glória, vemos que, à
exceção apenas de Salomão (cuja virtude, ou seja, a sabedo-
ria, tinha mais possibilidades de se afirmar em tempo de paz
do que na guerra), todos eles empreenderam guerras. E há
ainda o insaciável apetite de poder, que na maior parte dos
casos lhes encharcou de sangue o caminho até o trono. Por
último, vemos que as leis, enquanto o poder esteve nas màos
do povo, se conservaram intactas e foram mais assiduamen-
te observadas. Antes dos reis, com efeito, foram pouquíssi-
[2251 mos os profetas que admoestaram o povo; mal o primeiro foi
eleito, passou logo a haver muitos. Abdias salvou cem duma
carnificina, escondendo-os para não serem mortos como os
outros. Além disso, o povo só foi enganado por falsos profe-
tas depois de o poder ter caído nas mãos dos reis, a quem a
maior parte deles procurava agradar. O povo, em suma, cujo
ânimo é humilde ou soberbo conforme as circunstâncias, cor-
rigia-se facilmente nas calamidades, convertendo-se a Deus,
restabelecendo as leis e pondo-se assim a salvo de qualquer
perigo. Pelo contrário, os reis, que são sempre orgulhosos e
não podem ceder sem ignomínia, perseveraram obstinada-
mente nos seus vícios até a completa devastação da Cidade.
Por aqui se vê com toda a clareza:
I - Quão pernicioso, quer para a Religião, quer para o
Estado, é conceder aos ministros do culto o direito de decre-
tarem o que quer que seja ou se imiscuírem em assuntos po-
líticos; em contrapartida, haverá muito mais estabilidade se
eles estiverem sujeitos a dar a sua opinião só quando forem
interrogados e a limitar a sua atividade e o seu ensino àquilo
que é tradicionalmente aceito e consagrado pelo costume.
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍT1CO 283

II - Quão perigoso é remeter questões de ordem pura-


mente especulativa para o direito divino e basear as leis em
opiniões sobre as quais os homens costumam ou, pelo me-
nos, podem discutir. Onde quer que as opiniões que cada
um tem o direito de possuir, direito a que ninguém pode re-
nunciar, são consideradas crime, aí, reina a violência. Quan-
do assim acontece, inclusive, é a cólera popular que costuma
ser soberana: Pilatos, para ceder à ira dos fariseus, mandou
crucificar Cristo, que sabia ser inocente. Depois, os fariseus,
para retirar aos mais dotados as suas honrarias, começaram
a levantar questões religiosas e a acusar os saduceus de im-
piedade; e a exemplo dos fariseus, os piores hipócritas, ani-
mados pela mesma raiva, a que chamam zelo pelo direito
divino, perseguiram por toda parte homens insignes pela
sua honestidade e reconhecidos pela sua virtude e, por isso
mesmo, mal vistos pela plebe, reprovando publicamente as
suas opiniões e inflamando contra eles as fúrias da multidão.
E esse abuso descarado, porque se acoberta sob a aparência
de religião, não é fácil de reprimir, especialmente quando
os poderes soberanos introduziram alguma seita de que não
são eles próprios os fundadores, pois nesse caso já não são
considerados como intérpretes do direito divino mas sim-
ples membros de uma seita, isto é, homens que reconhecem
como intérpretes do direito divino os doutores dessa mesma
seita. Daí a razão por que a autoridade dos magistrados não [226]
costuma, em tais matérias, ter grande peso junto do povo,
ao passo que a dos doutores, a cujas interpretações se pen-
sa que até os reis devem estar submetidos, é tida na mais alta
consideração. Por conseguinte, para obviar a tais inconve-
nientes, não há nada mais seguro que se possa descobrir
para qualquer Estado do que considerar como piedade e cul-
to religioso unicamente as obras, isto é, a prática da justiça
e da caridade, deixando a cada um a liberdade de ajuizar so-
bre todo o resto; falaremos disso pormenorizadamente mais
adiante.
III - Vemos também quão necessário, tanto para o Esta-
do como para a religião, é reconhecer aos poderes soberanos
o direito de decidir o que é lícito e o que é ilícito. Na verda-
284 ESPINOSA

de, se esse direito de discernir sobre as ações nem sequer aos


divinos profetas se pôde conceder sem grave prejuízo para o
Estado e a religião, muito menos deve atribuir-se a homens
que não sabem predizer o futuro nem podem fazer milagres.
Mas isso será expressamente tratado no capítulo seguinte.
IV - Vemos, enfim, como é fatal para um povo, que não
está habituado a viver sob a monarquia e que já tem leis ins-
tituídas, eleger um monarca. De fato, nem este conseguirá
manter um poder assim tão amplo, nem a autoridade régia
poderá suportar as leis e os direitos populares instituídos por
alguém com uma autoridade inferior à sua e, muito menos
ainda, ser levada a defendê-las, sobretudo porque no mo-
mento da sua instituição não se teve minimamente em conta
o rei, mas apenas o povo ou o Conselho que se tinha por so-
berano. Desse modo, se o rei defendesse os antigos direitos do
povo, pareceria mais seu escravo do que seu senhor. O novo
monarca tentará, por isso, introduzir a todo o custo leis no-
vas, reformar em seu proveito os direitos do Estado e reduzir
o povo a uma condição tal que lhe seja mais fácil atribuir hon-
ras aos reis do que retirar-lhas 3•
Aqui, porém, não posso deixar de frisar que também
não é menos perigoso liquidar um monarca, ainda quando
seja absolutamente evidente que ele é um tirano4 • Porque o
povo, acostumado à autoridade do rei e só por ela refreado,
irá desprezar e pôr a ridículo qualquer autoridade inferior.
Por isso, se liquida um, ser-lhe-á necessário, como outrora
aos profetas, eleger outro em lugar do anterior, e este, mes-
mo que o não queira, será necessariamente um tirano. Como
é que ele pode encarar as mãos dos cidadãos ainda ensan-
güentadas pelo assassínio de um rei, cidadãos que se vanglo-
riam de um parricídio como se fosse de uma boa ação e que
fizeram tudo isso unicamente para que lhe servisse a ele de
exemplo? É evidente que, se quer mesmo ser rei e não reco-
nhecer o povo como seu juiz e senhor, se não quer reinar
[2271 provisoriamente, tem de vingar a morte do seu antecessor e
contrapor assim um novo exemplo, de modo que o povo
não ouse repetir tal façanha. Mas ser-lhe-á muito difícil vin-
gar a morte do tirano pelo assassínio de cidadãos, se ao mes-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 285

mo tempo não fizer sua a causa daquele a quem sucede, não


aprovar os seus atos e não seguir, por conseguinte, todas as
suas pisadas. Daí o povo mudar tantas vezes de tirano sem
nunca abolir a tirania nem substituir o poder monárquico por
um outro diferente.
O exemplo do povo inglês é, a esse respeito, flagrante.
Primeiro, procurou argumentos para, salvando as aparências
do direito, liquidar o monarca; uma vez eliminado este, o mí-
nimo que pôde fazer foi mudar a forma de governo; porém,
depois de muito sangue derramado, acabou por reconhecer
um novo monarca sob outro nome (como se toda a questão
fosse apenas de nome) o qual, por sua vez, não tinha outro
processo de se manter senão destruir radicalmente a estirpe
régia, matando os amigos do rei ou simples suspeitos e im-
pedindo através da guerra o lazer da paz, sempre propício às
conspirações, a fim de que a plebe, distraída com novos acon-
tecimentos e interesses, esquecesse o regicídio. Só já tarde é
que o povo se apercebeu de que, pela salvação da pátria, a
única coisa que tinha feito fora violar o direito do legítimo
rei e mudar tudo para pior! Então, decidiu voltar atrás, onde
ainda era possível, e não descansou enquanto não viu tudo
reposto no seu primitivo estado.
Objetar-se-á, talvez, com base no exemplo dos romanos,
que um povo pode facilmente livrar-se de um tirano; julgo,
no entanto, que tal exemplo vem antes confirmar em absolu-
to a nossa opinião. É verdade que o povo romano podia de-
sembaraçar-se muito mais facilmente do tirano e mudar a for-
ma de governo, visto que o direito de eleger o rei e o seu su-
cessor estava nas mãos do próprio povo e este não se tinha
ainda habituado, de tal maneira estava cheio de agitadores e
revoltosos, a obedecer aos reis. Tanto que, dos seis que tinha
tido, assassinara três. E, todavia, a única coisa que ele fez foi
eleger, em vez de um, vários tiranos que o obrigaram, mercê
de guerras externas e internas, a andar miserável e perma-
nentemente em luta, até que, por fim, o poder caiu de novo
nas mãos de um monarca, embora com outro nome, exata-
mente como aconteceu na Inglaterra.
No que concerne, porém, aos Estados da Holanda, eles
nunca tiveram, que eu saiba, reis, mas sim condes, para os
286 ESPINOSA

quais em momento algum foi transferida a soberania. Con-


[228] forme as próprias Cortes Soberanas da Holanda fazem saber,
por determinação publicada no tempo do conde de Leices-
ter5, elas sempre se reservaram a autoridade de advertir os
condes das suas obrigações, conservando o poder necessário
para defender essa sua prerrogativa e a liberdade dos cida-
dãos, para se vingarem, caso eles degenerassem em tiranos,
e para os limitarem de modo que lhe fosse impossível fazer
fosse o que fosse sem autorização e aprovação das Cortes.
Donde se conclui que esteve sempre nas mãos das Cortes o
direito de soberania que o último dos condes tentou usurpar.
Não houve, portanto, nenhuma traição no fato de elas terem
restaurado o seu primitivo poder, que já tinham quase perdi-
do. Confirma-se, assim, por esses exemplos, aquilo que disse-
mos: o regime próprio de cada Estado deve manter-se e não
pode sequer ser alterado sem o risco de total ruína do mesmo
Estado. E é tudo quanto me pareceu oportuno registrar aqui.
CAPÍTULO XIX

Onde se demonstra que o direito em


matéria religiosa pertence integralmente
às autoridades soberanas e que o culto
externo não deve perturbar a paz
do Estado, se se quer obedecer
fielmente a Deus

Quando, há pouco, disse que só aqueles que detêm o


poder soberano tinham direito a tudo e que todo direito de-
pende exclusivamente do que eles decidirem, não me referia
apenas ao direito civil, mas também ao direito sagrado', do
qual devem ser ao mesmo tempo intérpretes e defensores. E
quero aqui vincá-lo e ocupar-me especificamente do assunto
no presente capítulo, pois há muitos autores que negam que
esse direito de decidir sobre questões sagradas seja da com-
petência das autoridades supremas e se recusam a reconhe-
cê-las como intérpretes do direito divino; daí a liberdade que
assumem para as acusar, injuriar e até para as excomungar
da Igreja, como fez outrora Ambrósio ao imperador Teodó-
sio'. Veremos, no seguimento deste capítulo, como, através
de tal processo, eles quebram a unidade do Estado, se é que
não se preparam para dele se apoderar. Mas, antes, quero
mostrar como a religião só adquire força de lei por decreto
daqueles que detêm a soberania, que Deus não exerce ne-
nhum reinado especial sobre os homens, a não ser através
daqueles que detêm o poder soberano, e que, além disso, o
culto religioso e as práticas piedosas se devem conciliar com [229]
a paz e o interesse público, razão pela qual só as autoridades
soberanas o devem definir e ser seus intérpretes.
288 ESPINOSA

Refiro-me, evidentemente, à prática da piedade e ao cul-


to religioso externo, não à piedade em si mesma e ao culto
interno, quer dizer, aos meios pelos quais a mente se dispõe
no seu íntimo e com toda a sua vontade a prestar culto a
Deus. Porque esse culto interno de Deus, bem como a pró-
pria piedade, são, como mostramos no final do capítulo VII,
direitos individuais que não podem ser transferidos para ou-
trem. Presume, além disso, que resulta suficientemente claro
do capítulo XIV o que entendo aqui por reino de Deus: nes-
se capítulo, com efeito, demonstrei que cumprir a lei de Deus
é praticar a justiça e a caridade segundo o mandamento divi-
no, de onde se conclui que reino de Deus é todo aquele onde
a justiça e a caridade têm força de lei e de mandamento. E,
para o efeito, é totalmente indiferente se Deus ensina e orde-
na o verdadeiro culto da justiça e da caridade por meio da
luz natural ou da revelação. Não importa como esse culto é
revelado, desde que ele assuma o caráter de direito supremo
e seja a suprema lei dos homens. Se, por conseguinte, de-
monstrarmos agora que a justiça e a caridade não podem ad-
quirir força de lei e de mandamento a não ser em virtude do
direito de soberania, concluiremos facilmente, visto o direito
de soberania ser da exclusiva alçada do poder supremo, que
a religião só adquire força de lei por decreto de quem dete-
nha a soberania' e que Deus não exerce nenhum reinado es-
pecial sobre os homens a não ser por intermédio dos deten-
tores do poder político. Ora, é evidente, pelo que já disse-
mos, que o culto da justiça e da caridade só adquire força de
lei graças ao direito soberano.
De fato, no capítulo XVI, tínhamos mostrado que a ra-
zão, no estado de natureza, não possuía mais direitos que o
instinto e que tanto os que vivem segundo as leis do instinto
como os que vivem segundo as leis da razão têm direito a
tudo o que está em seu poder. Por esse motivo, era impossí-
vel conceber o pecado no estado de natureza, ou sequer Deus
como um juiz que castiga os homens pelos seus pecados; aí,
tudo se passa de acordo com as leis comuns a toda natureza,
estando, para falar como Salomão, sujeitos à mesma sorte o
justo e o ímpio, o puro e o impuro, etc., e não havendo lu-
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 289

gar, nem para a justiça, nem para a caridade. Para que os en-
sinamentos da reta razão, ou seja (conforme demonstramos
no capítulo IV, onde se fala da lei divina), os próprios ensi-
namentos de Deus, tivessem absoluta força de lei, foi preci-
so que cada um renunciasse ao seu direito natural e que to- [230]
dos o transferissem para todos, para alguns, ou para um só.
Então é que surgiram, pela primeira vez, as noções de justiça,
injustiça, eqüidade e iniqüidade.
A justiça, por conseguinte, tal como todos os ensinamen-
tos da reta razão, incluindo a caridade para com o próximo,
só assume força de lei e de mandamento em virtude do po-
der político, isto é (por aquilo que mostramos neste mesmo
capítulo), da decisão exclusiva daqueles que detêm a sobera-
nia. E como o reino de Deus, conforme já demonstrei, consis-
te unicamente na imposição legal da justiça e da caridade, ou
seja, da verdadeira religião, resulta, como pretendíamos, que
Deus não exerce nenhum reinado sobre os homens a não ser
através daqueles que detêm o poder político. E tanto faz, re-
pito, que concebamos a religião como revelada pela luz natu-
ral ou pela luz profética: a demonstração é universal, por-
quanto a religião é a mesma e igualmente revelada por Deus,
qualquer que seja o modo segundo o qual se supõe que ela
foi dada a conhecer aos homens. Por isso mesmo, para que a
religião profeticamente revelada tivesse força de lei entre os
hebreus, foi preciso que cada um deles cedesse primeiro o
seu direito natural e que todos decidissem, de comum acor-
do, obedecer apenas àquilo que lhes fosse profeticamente re-
velado por Deus, exatamente como mostramos que acontece
no regime democrático, onde todos deliberam, de comum
acordo, viver apenas segundo os ditames da razào4 •
Apesar de os hebreus terem transferido primeiro o seu
direito para Deus, tal transferência, no entanto, só pôde ser
feita em termos muito mais teóricos do que práticos. Na rea-
lidade (como vimos mais acima), eles conservaram integral-
mente o poder político enquanto não o transferiram para Moi-
sés, o qual, desde então, ficou a ser rei absoluto e só por seu
intermédio Deus reinou sobre os hebreus. Além disso, e pelo
mesmo motivo (ou seja, por a religião só adquirir força de lei
290 ESPINOSA

em virtude do poder político) Moisés não pôde aplicar ne-


nhum castigo àqueles que, antes do pacto, quando, por con-
seguinte, eram ainda juridicamente senhores de si próprios,
violaram o sábado (Êxodo, cap. XVI, 27), como pôde fazê-lo
depois do pacto (Números, cap. XV, 36), isto é, quando cada
um já tinha renunciado ao seu direito natural e o sábado ad-
quiria força de lei mediante o poder político. Por último, e
ainda pela mesma razão, destruído o Estado hebreu, a religião
revelada deixou de ter força jurídica. Com efeito, assim que
os hebreus transferiram o seu direito para o rei da Babilônia,
é evidente que o reino de Deus e o seu direito cessaram ime-
diatamente. Isso porque, nesse preciso momento, ficou com-
pletamente anulado o pacto pelo qual tinham prometido obe-
[231] decer a tudo o que Deus dissesse e que fora o fundamento
do reino divino. Nem, de resto, poderiam mantê-lo de pé por
mais tempo, uma vez que, a partir de então, já não dependiam
juridicamente de si próprios (como no deserto ou na sua pá-
tria), mas sim do rei da Babilônia, a quem tinham (mostra-
mo-lo no capítulo XVI) de obedecer em tudo. Disso mesmo
também os adverte expressamente Jeremias, no cap. XXIX, 7:
Zelai - diz ele - pela paz da cidade para onde vos conduzi
como cativos, pois a sua segurança será a vossa segurança.
Ora, eles não podiam olhar pela segurança dessa cidade como
ministros do Estado, já que estavam prisioneiros, mas apenas
como escravos, isto é, dispondo-se, para evitar sedições, a
obedecer em tudo e a observar os direitos e as leis do Esta-
do, não obstante serem diferentes daquelas a que estavam ha-
bituados na sua pátria, etc.
A conclusão a extrair de tudo isso é, evidentemente, que
a religião adquiriu entre os hebreus força de lei graças unica-
mente ao poder político e que, destruído este, ela nunca mais
pôde ser considerada como lei de um Estado particular, mas
sim como ensinamento universal da razão. Da razão, repito,
já que a Religião Católica não era ainda conhecida por reve-
lação. Há, portanto, que concluir que a religião, quer seja re-
velada pela luz natural ou pela luz profética, só adquire for-
ça de lei por decisão dos que detêm a soberania e que só
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO 291

por intermédio destes existirá um reinado especial de Deus


sobre os homens.
O mesmo se conclui ainda, e até se compreende mais fa-
cilmente, por aquilo que dissemos no capítulo IV. Na verda-
de, ficou aí demonstrado que os decretos de Deus implicam
todos eterna verdade e necessidade e que não se pode con-
ceber Deus como um príncipe ou um legislador impondo
leis aos homens. Por isso, os divinos ensinamentos revelados
pela luz natural ou pela luz profética não recebem diretamen-
te de Deus a força de mandatos, mas sim, e necessariamen-
te, daqueles, ou por intermédio daqueles, que detêm o po-
der político e o direito de legislar. Por isso airida, não é con-
cebível que Deus reine sobre os homens e dirija os assuntos
humanos segundo a justiça e a eqüidade a não ser mediante
eles, como se comprova até pela experiência. De fato, só se
encontram marcas da justiça divina onde reinam os justos; a
não ser assim, o que se verifica (para citar de novo Salomão)
é que o justo e o injusto, o puro e o impuro, estão sujeitos à
mesma sorte, fato este que levou muitos dos que julgavam
que Deus reina diretamente sobre os homens e subordina ao
interesse deles toda a natureza a duvidarem da providência
divina. Sendo, portanto, óbvio, já pela experiência, já pela ra- [232]
zão, que o direito divino depende apenas da decisão das au-
toridades soberanas, segue-se que estas são também os seus
intérpretes. Veremos agora de que modo elas o são, pois é al-
tura de demonstrarmos que o culto religioso externo e todas
as formas exteriores da piedade têm, se queremos obedecer
a Deus com retidão, de conciliar-se com a paz e a segurança
do Estado. Uma vez demonstrado isso, será fácil compreender
em que sentido as autoridades soberanas são os intérpretes
da religião e da piedade.
É certo que a piedade para com a Pátria é a mais eleva-
da que alguém pode praticar, visto que, suprimido o Estado,
nada de bom pode subsistir e tudo fica ameaçado, reinando
apenas, por entre o medo geral, a cólera e a impiedade. Por
conseguinte, não há nenhuma ação piedosa que se possa pra-
ticar para com o próximo que não se torne uma ação ímpia
se acaso resultar em prejuízo de toda a coletividade; em con-
292 ESPINOSA

trapartida, não existe impiedade praticada na pessoa do pró-


ximo que não assuma um caráter piedoso se tiver em vista a
segurança pública. Por exemplo, se alguém me ataca e me
quer roubar a camisa, e eu lhe dou também o casaco, isso é
piedoso; mas, se se pensar que tal gesto é pernicioso para a
segurança pública, o que é piedoso é levar o ladrão a tribu-
nal, ainda que ele venha a ser condenado à morte. Por ser
assim é que Mânlio Torquato ficou célebre, já que para ele o
bem público prevaleceu sobre a piedade para com o próprio
filho. A conclusão, portanto, é que o bem público é a lei su-
prema à qual se devem sujeitar todas as outras, sejam elas hu-
manas ou divinas. Mas como só as autoridades soberanas têm
por incumbência determinar o que o bem público e a segu-
rança do Estado exigem e impor o que para tanto considera-
rem necessário, é evidente que só a elas cabe, conseqüente-
mente, determinar de que modo cada um deve exercitar a pie-
dade para com o seu semelhante, ou seja, de que modo deve
cada um obedecer a Deus.
Compreende-se, assim, claramente em que sentido as au-
toridades soberanas são os intérpretes da religião e como, além
disso, ninguém pode obedecer corretamente a Deus se não
ajustar ao interesse público a prática da piedade a que cada um
está obrigado e se, por conseguinte, não obedecer a todos os
decretos do poder soberano. Se, de fato, estamos por manda-
mento divino obrigados a exercer a piedade para com todos
sem exceção e a não causar dano a ninguém, então, a ninguém
será lícito prestar ajuda a um em detrimento de outro, e ainda
(2331 menos em detrimento de toda a coletividade. Por isso, ninguém
pode agir piedosamente para com o seu semelhante, de acor-
do com o mandamento divino, se não subordinar a piedade e
a religião ao interesse público. Ora, nenhum particular pode sa-
ber o que é do interesse da comunidade a não ser através dos
decretos das autoridades soberanas, as únicas a quem compete
tratar dos assuntos públicos; logo, ninguém pode praticar cor-
retamente a piedade nem obedecer a Deus se não obedecer a
todos os decretos do poder soberano.
Como, de resto, se confirma pela prática. Se, com efeito,
o poder soberano declara alguém, seja cidadão nacional ou
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 293

estrangeiro, simples particular ou chefe de um outro Estado,


como réu de um crime punível com a pena capital, ou como
inimigo, a nenhum dos súditos será lícito socorrê-lo. Assim
também, embora aos hebreus fosse ordenado que amassem
o seu concidadão como a si mesmos (Levítico, cap. XIX, 17,
18), eles eram, contudo, obrigados a denunciar ao juiz quem
tivesse cometido algo que fosse contra as prescrições da lei
(Levítico, cap. V, 1, e Deuteronômio, cap. XIII, 8, 9) e de o
matar, caso fosse considerado réu de morte (Deuteronômio,
cap. XVII, 7). Por outro lado, para que pudessem conservar
a liberdade adquirida e manter o domínio absoluto das terras
que haviam ocupado, foi necessário, cqmo mostramos no ca-
pítulo XVII, adaptarem a religião só aó seu Estado e aparta-
rem-se das restantes nações. Por isso lhes foi dito: ama o teu
próximo e odeia o teu inimigo (Mateus, cap. V, 43). Mas, quan-
do perderam a independência e foram conduzidos para oca-
tiveiro da Babilônia, Jeremias ensinou-lhes que zelassem pela
segurança (também) desta cidade para onde tinham sido leva-
dos em cativeiro. E Cristo, quando vê que eles iam ser disper-
sos por toda a terra, ensina-lhes que sejam piedosos para com
todos sem exceção. Por tudo isso, é absolutamente evidente
que a religião se subordinou sempre ao interesse público.
Se me perguntarem agora com que direito os discípulos
de Cristo, que eram simples particulares, podiam então pre-
gar a religião, direi que o fizeram com o direito que lhes vi-
nha do poder recebido de Cristo contra os espíritos impuros
(Mateus, cap. X, 1). Tal como adverti expressamente lá atrás,
no final do capítulo XVI, todos os indivíduos estão obrigados
a guardar fidelidade mesmo a um tirano, exceto aquele a
quem Deus tenha prometido, por uma revelação segura, es-
pecial ajuda contra o tirano. Portanto, a ninguém é lícito in-
vocar esse exemplo, a menos que tenha o poder de fazer mi-
lagres, como se pode igualmente ver pelo fato de Cristo ter
dito aos discípulos que não temessem os que matam o corpo (234]
(Mateus, cap. X, 28). Porque, se isso tivesse sido dito para to-
dos, em vão se teria instituído o Estado e aquelas palavras de
Salomão meu filho, teme a Deus e ao rei (Provérbios, cap. XIV,
21) seriam palavras ímpias, o que está longe de ser verdade.
294 ESPINOSA

É necessário, portanto, reconhecer que a autoridade dada por


Cristo aos discípulos foi concedida exclusivamente a ·eles, não
podendo ninguém mais tomá-la como exemplo.
Quanto aos argumentos dos adversários dessa tese, que
pretendem separar o direito sagrado do direito civil e susten-
tam que só este último compete ao poder soberano, enquan-
to o primeiro cabe ã Igreja universal, não vou perder tempo
com eles, até porque são tão frívolos que nem merecem ser
refutados. A única coisa que não posso deixar de frisar é a
forma como eles se enganam miseravelmente ao invocar, em
apoio dessa opinião subversiva (desculpem o termo um pou-
co duro), o exemplo do Sumo-Pontífice dos hebreus, que
teve em tempos o direito de administrar as coisas sagradas.
Como se os pontífices não tivessem recebido esse direito de
Moisés (o qual, conforme mostramos mais acima, deteve so-
zinho o poder soberano), por decreto do qual podiam igual-
mente ser privados do mesmo direito! Foi ele, com efeito,
que elegeu, não só Aarão, mas também o seu filho Eleázaro
e o seu neto Finéias, e que lhes conferiu autoridade para ad-
ministrar o Pontificado, autoridade que os pontífices conser-
varam depois, mas de modo que surgissem sempre como
substitutos de Moisés, isto é, do poder soberano.
Como já mostramos, Moisés não elegeu, efetivamente,
ninguém para lhe suceder no exercício do poder supremo;
pelo contrário, distribuiu todas as suas funções de tal modo
que os sucessores eram encarados como vigários que admi-
nistrassem o Estado de um rei que tivesse se ausentado, e
não de um rei que já tivesse morrido. Mais tarde, no segun-
do Estado, os pontífices exerceram de modo absoluto esse
direito, mas só depois de acumular o Principado juntamente
com o Pontificado. Porque o direito pontifical depende sem-
pre de um édito do poder soberano e nem mesmo os pontí-
fices alguma vez o detiveram enquanto não se apoderaram
do Principado. Assim, o direito sobre as coisas sagradas foi
sempre da competência exclusiva dos reis (conforme se verá
pelo que diremos daqui a pouco, no final deste capítulo), ex-
cetuando-se apenas o fato de lhes estar vedado intrometerem-
se nas cerimônias sagradas do templo, já que todos os que
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 295

não pertenciam à estirpe de Aarão eram considerados profa-


nos, coisa-que não acontece, evidentemente, num Estado cris-
tão. Está, portanto, fora de causa que as coisas sagradas (cuja
administração requer um determinado tipo de vida, mas não
uma família especial, e por isso quem detém o poder não
está dela excluído como profano) são, hoje em dia, da exclu- [235]
siva jurisdição das autoridades soberanas, e que ninguém, a
não ser por autorização ou concessão destas, tem o direito e
o poder de as administrar, de eleger os respectivos ministros,
de definir e estabelecer os fundamentos da Igreja e a sua
doutrina, de avaliar os costumes e as obras de piedade, de
excomungar ou admitir quem quer que seja, de providen-
ciar, enfim, pelos pobres. E isso, não só se demonstra ser ver-
dadeiro (como acabamos de ver), mas também altamente ne-
cessário para a conservação, quer da religião, quer do Esta-
do. Todos sabemos, efetivamente, a importância que o povo
atribui ao direito e à autoridade em matérias sagradas e a
que ponto cada um está dependente da palavra de quem a
possui. Pode mesmo dizer-se que quem tem essa autoridade
é quem melhor domina os ânimos. Se, por conseguinte, al-
guém pretende retirá-la aos poderes soberanos, é porque está
tentando destruir a unidade do Estado, o que, necessaria-
mente, há de originar, tal como outrora entre os reis e os pon-
tífices dos hebreus, tensões e discórdias impossíveis de sa-
nar. Por isso, quem tenta retirar essa autoridade aos poderes
soberanos prepara-se, como já dissemos, para se apoderar do
Estado. De fato, que decisões podem eles tomar, se se lhes
nega esse direito? Absolutamente nenhuma. Nem sobre a
guerra, nem sobre a paz, nem sobre nenhum outro assunto.
Se forem obrigados a esperar pela opinião de quem quer
que seja para saber se o que julgam ser útil é piedoso ou ím-
pio, tudo o que vier a acontecer será por decisão daquele que
tem o poder de julgar e determinar o que é piedoso ou ím-
pio, lícito ou ilícito. Exemplos dessa subordinação houve-os
em todos os séculos, mas citarei apenas um que é paradig-
mático. É o caso do Romano Pontífice, a quem esse direito
foi reconhecido de modo absoluto e que, por isso mesmo,
começou a ter, pouco a pouco, todos os reis sob o seu domí-
296 ESPINOSA

nio, até que foi alçado 5 aos píncaros do poder supremo. To-
das as tentativas que fizeram, mais tarde, os monarcas, em par-
ticular os imperadores germânicos, para diminuir, por pouco
que fosse, a sua autoridade não conduziram a nada; pelo
contrário, aumentaram-na ainda mais. E a verdade é que tudo
aquilo que nenhum monarca tinha podido fazer a ferro e
fogo fizeram-no os eclesiásticos exclusivamente com a pena 6,
o que dá, só por si, uma idéia da força e da potência que
confere a autoridade religiosa e, ao mesmo tempo, mostra a
necessidade que há de os poderes soberanos a reservarem
para si.
Se entrarmos aqui também em conta com aquilo que
[236J observamos no capítulo anterior, veremos ainda que este prin-
cípio é altamente propício ao incremento da religião e da
piedade. Vimos, com efeito, que os profetas, dotados embo-
ra de uma virtude divina, com a sua liberdade de admoestar,
invetivar e criticar acabaram por irritar mais os homens do
que corrigi-los, uma vez que eram simples particulares, ao
passo que, se fossem os reis a admoestá-los ou a castigá-los,
eles vergavam-se logo. Vimos, por outro lado, que os próprios
reis, precisamente porque esse direito não era da sua exclu-
siva competência, se afastaram muitas vezes da religião e,
com eles, quase todo o povo, coisa que, como se sabe, aconte-
ceu também com freqüência e pelo mesmo motivo nos Esta-
dos cristãos.
Perguntar-se-á, porventura: sendo assim, quem é que tem
o direito de vingar a piedade se acaso os que detêm o poder
decidirem ser ímpios? Dever-se-á, ainda aí, considerá-los seus
intérpretes? A isso respondo com outra pergunta: e, se os
eclesiásticos (que também são homens e simples particula-
res, a quem incumbe zelar somente pelos seus próprios inte-
resses) ou quaisquer outros em cujas mãos se pretende que
esteja a jurisdição sobre as coisas sagradas, quiserem ser ím-
pios? Dever-se-á, ainda assim, considerá-los intérpretes? É
certo que, quando aqueles que detêm o poder o querem exer-
cer ao sabor do que lhes agrada, tenham eles ou não a juris-
dição sobre as coisas sagradas, tudo, sagrado ou profano, aca-
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTICO 297
bará por se degradar. Mas essa degradação será ainda muito
mais rápida se houver particulares que pretendam sediciosa-
mente vingar o direito divino. Por isso, não adianta nada re-
cusar-lhes tal direito; pelo contrário, provoca-se até um mal
ainda maior, pois é quanto basta para que eles (tal como os
reis dos hebreus, a quem esse direito não era reconhecido
em absoluto) se tornem necessariamente ímpios e, conse-
qüentemente, os prejuízos e riscos para todo o Estado de in-
certos e contingentes se convertam em certos e necessários.
Seja, portanto, qual for a perspectiva em que ne:>s coloquemos
- a da verdade teórica, a da segurança do Estacio ou, enfim, a
do incremento da piedade -, somos sempre obrigados a reco-
nhecer que também o direito divino, ou seja, a jurisdição so-
bre as coisas sagradas, depende absolutamente do disposto
pelo poder supremo e que este é o seu intérprete e defensor.
Donde se conclui que os verdadeiros ministros da palavra de
Deus são aqueles que ensinam ao povo a piedade, com auto-
rização do poder soberano e nos termos em que ela está adap-
tada, por decreto deste, ao interesse público.
Resta-nos apenas indicar o motivo pelo qual, no Estado
cristão, houve sempre discussões em torno desse direito, ao
passo que os hebreus, que eu saiba, nunca o puseram em
questão. De fato, poderia até parecer monstruoso que uma
coisa assim tão evidente e necessária estivesse sempre a dar
azo a discussões e que o poder soberano nunca exercesse (237]
esse direito sem contestações e, inclusive, sem grave risco de
sedições e em detrimento da religião. Decididamente, se não
pudéssemos atribuir a esse fato nenhuma causa precisa, con-
vencer-me-ia de que tudo quanto apresentei neste capítulo
tinha um valor meramente teórico, isto é, pertencia a esse
gênero de especulações que nunca podem ter aplicação prá-
tica. Basta, no entanto, repararmos nos primórdios da religião
cristã para que a referida causa se torne absolutamente mani-
festa. De fato, não foram reis que ensinaram, a princípio, a re-
ligião cristã, mas simples particulares que, por largo tempo,
contra a vontade dos que detinham o poder e de quem eram
súditos, se reuniam habitualmente em Igrejas privadas, insti-
tuíam cerimônias sagradas, administravam, organizavam e de-
298 ESPINOSA

cidiam tudo sozinhos, sem terem minimamente em conta o


Estado. Quando, porém, passados muitos anos, a religião co-
meçou a introduzir-se no Império, os eclesiásticos tiveram de
a ensinar, tal como a haviam definido, aos próprios impera-
dores, o que lhes valeu serem reconhecidos como seus douto-
res e intérpretes e bem assim como pastores da Igreja e vigá-
rios de Deus. Além disso, para que mais tarde os reis cristãos
não lhes pudessem retirar essa autoridade, os eclesiásticos
tomaram excelentes precauções, como proibir o casamento
aos principais ministros da Igreja e ao supremo intérprete da
religião. A isso acresce ainda terem os dogmas da religião au-
mentado em tão grande número e confundirem-se de tal ma-
neira com a filosofia que o seu supremo intérprete tinha de
ser um grande filósofo e teólogo e atender a uma infinida-
de de especulações inúteis, o que só era possível a cidadãos
particulares com bastante tempo livre 7 •
Entre os hebreus, as coisas passaram-se de forma muito
diferente. A sua Igreja começou a existir ao mesmo tempo
que o Estado e foi Moisés, que detinha absolutamente o po-
der soberano, quem ensinou ao povo a religião e quem or-
ganizou o ministério sagrado e escolheu os seus ministros.
Daí que a autoridade régia se revestisse da maior importân-
cia perante o povo e de os reis deterem os mais amplos di-
reitos em matéria religiosa. Com efeito, muito embora após a
morte de Moisés ninguém tenha ficado detentor do poder
absoluto, o direito de decisão, quer em coisas sagradas, quer
em tudo o mais, estava, conforme já demonstramos, nas mãos
do príncipe. E depois, para se instruir na religião e na pieda-
de, o povo precisava de auscultar, tanto o pontífice como o
supremo magistrado (ver Deuteronômio, cap. XVII, 9, 11). Por
último, se bem que os reis não tivessem um direito igual ao
(2391 de Moisés, no entanto, quase toda a organização do ministé-
rio sagrado e a escolha dos respectivos ministros dependia de
uma decisão sua. Davi, com efeito, delineou toda a constru-
ção do templo (ver Paralipômenos, I, cap. XXVIII, 11, 12, etc.);
depois, dentre todos os levitas, escolheu 24 mil para o servi-
ço religioso, seis mil para juízes e magistrados, quatro mil para
guardas e quatro mil, enfim, para músicos ever, no mesmo li-
. vro, cap. XXIII, 4, 5). Dividiu-os, além disso, em coortes e
TRATADO TEOLÓGICO-POllTICO 299
nomeou os respectivos chefes, a fim de que ficassem por tur-
nos de serviço ao templo (ver, no mesmo capítulo, o v. 5).
Os sacerdotes foram divididos por igual número de coortes.
Mas para não ficar aqui enumerando uma por uma todas es-
sas disposições, remeto o leitor para o livro II dos Paralipô-
menos, cap. VIII, 13, onde se diz o seguinte: o culto de Deus
era exercido no templo, por ordens de Salomão, tal como Moi-
sés o havia instituído. E, no versículo 14, acrescenta-se que este
(Salomão) distribuiu as coortes de sacerdotes e levitas pelas
suas funções, conforme as ordens do divino Davi. Finalmen-
te, no versículo 15, o historiador confirma que não se afasta-
ram em nada do regulamento imposto pelo rei aos sacerdotes
e aos levitas, nem sequer na administração dos dinheiros.
De tudo isso, e bem assim de outras narrativas consa-
gradas aos reis, deduz-se com toda a evidência que a prática
da religião e o ministério sagrado estavam inteira e exclusi-
vamente dependentes da decisão dos reis. Quando, há pou-
co, afirmei que eles não tiveram, como Moisés, o direito de
eleger o sumo-pontífice, nem de interpelar Deus diretamen-
te, ou de condenar os profetas que profetizassem durante o
seu reinado, disse-o só porque os profetas, dada a autorida-
de de que gozavam, podiam eleger outro rei e absolver o re-
gicida, e não porque lhes fosse lícito chamar a julgamento o
rei, caso violasse as leis, ou proceder judicialmente contra
ele*. Se, por conseguinte, não tivesse havido nenhum profe-
ta que, em virtude de uma revelação singular, podiam absol-
ver impunemente o regicídio, os reis teriam gozado de um
direito absoluto sobre todas as coisas, tanto sagradas como
civis. Por isso, hoje em dia, os poderes soberanos, que já não
têm profetas nem são juridicamente obrigados a reconhecê-
los (uma vez que não estão sujeitos às leis dos hebreus), dis-
põem e hão de dispor sempre, apesar de não viverem em ce-
libato, em absoluto desse direito, contanto que não deixem
os dogmas religiosos aumentarem em número excessivo ou
se confundirem com as ciências.

• Anotação XXXIX. Tenha-se aqui em conta sobretudo o que no capí-


tulo XVI ficou dito acerca do direito.
[239) CAPÍTULO XX

Onde se demonstra que num Estado


livre é lícito a cada um pensar o que
quiser e dizer aquilo que pensa

Se fosse tão fácil mandar nos ânimos como é mandar nas


línguas, não haveria nenhum governo que não estivesse em
segurança ou que recorresse à violência, uma vez que todos
os súditos viveriam de acordo com o desígnio dos governan-
tes e só em função das suas prescrições é que ajuizariam do
que era bom ou mau, verdadeiro ou falso, justo ou iníquo.
Mas isso, como já observamos no princípio do capítulo XVII,
não é possível. A vontade de um homem não pode estar com-
pletamente sujeita a jurisdição alheia, porquanto ninguém
pode transferir para outrem, nem ser coagido a tanto, o seu
direito natural ou a sua faculdade de raciocinar livremente e
ajuizar sobre qualquer coisa 1 • Por conseguinte, todo poder
exercido sobre o foro íntimo se tem por violento, da mesma
forma que se considera ultrajar e usurpar o direito dos seus
súditos um soberano que queira prescrever a cada um o que
deve admitir como verdadeiro ou rejeitar como falso, e até as
opiniões em que deve apoiar-se na sua devoção para com
Deus: porque tudo isso pertence ao direito individual e nin-
guém, mesmo que quisesse, poderia renunciar-lhe. Bem sei
que o discernimento poder ser influenciado de muitas ma-
neiras, algumas quase inacreditáveis, a ponto de, mesmo não
estando diretamente dominado por outrem, ele depender de
tal maneira da sua palavra que seja possível e mesmo corre-
to considerá-lo subjugado. No entanto, por maiores que se-
jam os resultados a que nesse domínio chegou o artifício, ja-
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTJCO 301

mais se conseguiu que os homens, tarde ou cedo, não sentis-


sem que cada um tem discernimento que sobra e que variam
tanto as cabeças quanto os paladares. O próprio Moisés, que
tinha conquistado por completo a opinião do seu povo, não
por meio de astúcias mas pela divina virtude, de tal maneira
que se acreditava que ele era divino e que todas as suas pa-
lavras e atos eram inspirados por Deus, não pôde, mesmo as-
sim, escapar aos boatos nem às mais sinistras interpretações.
Como é que haveriam, então, de escapar os rn;tros monarcas?
E, a haver alguma maneira de o conseguir, seria, com certe-
za, num Estado monárquico, nunca numa democracia, onde
todos, ou pelo menos a maior parte dos cidadãos, detêm co-
legialmente o poder. Presumo que seja clara para toda a gen-
te a razão por que assim acontece.
Por maior que seja, pois, o direito que têm os supremos [240J
poderes sobre todas as coisas, e por muito que os considere-
mos como intérpretes do direito e da piedade, eles jamais
poderão evitar que os homens façam sobre as coisas um juí-
zo que depende da sua própria maneira de ser ou que este-
jam possuídos desta ou daquela paixão. É certo que têm o
direito de considerar como inimigos todos aqueles que não
estiverem absolutamente de acordo consigo em todas as ma-
térias; mas nós não estamos agora discutindo os seus direi-
tos, estamos discutindo o que lhes é vantajoso. Não contesto
que tenham direito a governar por meio da violência e a con-
denar cidadãos à morte pelos motivos mais fúteis. Ninguém,
todavia, pretenderá que isso seja compatível com o que dita
a razão. Assim, e dado que é impossível tal procedimento sem
pôr em grave risco todo o Estado, podemos até negar que
eles tenham o poder e, por conseguinte, o direito absoluto
de atuar desse modo. Na verdade, conforme já demonstra-
mos, o direito dos poderes soberanos é determinado pela sua
potência2 •
Portanto, se ninguém pode renunciar à sua liberdade de
julgar e pensar o que quiser, e se cada um é senhor dos seus
próprios pensamentos por superior direito da natureza, jamais
será possível, numa comunidade política, tentar sem resulta-
dos funestos que os homens, apesar de terem opiniões dife-
302 ESPJNOSA

rentes e até opostas, não digam nada que não esteja de acor-
do com aquilo que prescrevem as autoridades. Nem os mais
avisados conseguem guardar silêncio, quanto mais a plebe!
Os homens têm, habitualmente, o defeito de confiar aos ou-
tros os seus desígnios, ainda quando seria preferível ficar ca-
lados: um poder que negue aos indivíduos a liberdade de di-
zer e de ensinar o que pensam será, por conseguinte, um po-
der violento; pelo contrário, um poder que lhes conceda
essa liberdade será um poder moderado. E, todavia, é inegá-
vel que tanto se podem cometer crimes de lesa-majestade por
atos como por palavras, razão por que, se é de fato impossí-
vel retirar completamente essa liberdade aos súditos, tam-
bém será altamente pernicioso concedê-la sem nenhuma res-
trição. Sendo assim, compete-nos aqui averiguar em que me-
dida ela pode e deve ser concedida sem prejuízo da paz so-
cial e do direito dos poderes soberanos: é este, conforme
anunciei no início do capítulo XVI, o meu objetivo principal.
Dos fundamentos do Estado, já aqui expostos, resulta
com toda a evidência que o seu fim último não é dominar
nem subjugar os homens pelo medo e submetê-los a um di-
[2411 reito alheio; é, pelo contrário, libertar o indivíduo do medo a
fim de que ele viva, tanto quanto possível, em segurança, isto
é, a fim de que mantenha da melhor maneira, sem prejuízo
para si ou para os outros, o seu direito natural a existir e a
agir. O fim do Estado, repito, não é fazer os homens passar
de seres racionais a bestas ou autômatos: é fazer com que a
sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respecti-
vas funções, que eles possam usar livremente a razão e que
não se digladiem por ódio, cólera ou insídia, nem se mani-
festem intolerantes uns para com os outros. O verdadeiro fim
do Estado é, portanto, a liberdade'.
Vimos também que, para se constituir um Estado, é ne-
cessário apenas que todo poder de legislar esteja nas mãos,
ou de todos, ou de alguns, ou de um só. Na verdade, posto
que o livre juízo dos homens é extremamente diversificado e
cada qual pensa que só ele é que sabe tudo, sendo impossí-
vel que todos tenham a respeito de tudo a mesma opinião e
se manifestem por unanimidade, como poderiam eles viver
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ17CO 303

em paz se cada um não renunciasse ao seu direito de agir de


acordo apenas com o que lhe dita a sua mente? A única coi-
sa, pois, a que o indivíduo renunciou foi ao direito de agir
segundo a sua própria lei, não ao direito de raciocinar e de
julgar. Por isso, ninguém pode, de fato, atuar contra as deter-
minações dos poderes soberanos sem lesar o direito destes,
mas pode pensar, julgar e, por conseguinte, dizer absoluta-
mente tudo, desde que se limite só a dizer ou a ensinar e de-
fenda o seu parecer unicamente pela razão, sem fraudes, có-
lera, ódio ou intenção de introduzir por sua exclusiva inicia-
tiva qualquer alteração no Estado. Suponhamos, por exem-
plo, que alguém demonstra que determinada lei é contrária à
reta razão e, em conseqüência, julga que ela deve ser revo-
gada; se esta pessoa submeter a sua opinião à apreciação
dos poderes soberanos (a quem cabe exclusivamente promul-
gar e revogar as leis) e se abstiver, entretanto, de qualquer
ação contrária ao que está prescrito na mesma lei, nesse caso,
ela é, sem dúvida alguma, tão bom servidor do Estado como
qualquer cidadão exemplar; mas, se, pelo contrário, o fizer
para acusar de iniqüidade o magistrado e o tornar odioso aos
olhos do vulgo, ou se tentar subversivamente revogar essa lei
ao arrepio da vontade do magistrado, então, trata-se de um
agitador, um rebelde.
Vemos, assim, em que medida um indivíduo pode dizer
e ensinar o que pensa, sem perigo para o direito e a autori-
dade dos poderes soberanos, isto é, sem prejuízo da paz do
Estado: basta que lhes deixe a faculdade de decidirem tudo
quanto deve fazer e não pratique nenhuma ação contra as
suas ordens, ainda que tenha muitas vezes de agir contra o
que julga e professa ser o bem. E pode fazê-lo, que não há
perigo para a justiça e a piedade; pelo contrário, se quer com-
portar-se como justo e piedoso, é isso mesmo que deve fa-
zer, pois a justiça, como já demonstramos, depende exclusi- [242]
vamente da decisão dos poderes soberanos e, por conseguin-
te, só pode ser justo quem viver em conformidade com as
ordens que deles recebe. Quanto à piedade, a mais elevada,
de acordo com o que mostramos no capítulo anterior, é aque-
la que se pratica tendo em vista a paz e a tranqüilidade do
304 ESPINOSA

Estado; ora, a paz não se pode manter se a cada um for dado


viver ao arbítrio da sua própria mente; logo, é ímpio fazer
por sua iniciativa alguma coisa contra o decidido pelo poder
soberano de quem se é súdito, uma vez que, se tal fosse líci-
to a cada um, acarretaria necessariamente a ruína do Estado.
E o que é mais, não se pode fazer nada contra a lei e os di-
tames da própria razão enquanto se agir de acordo com as
disposições do poder soberano, pois foi precisamente a rogo
da razão que cada um decidiu transferir para aquele o direi-
to de agir conforme entendesse. Podemos, de resto, confirmá-
lo pela própria experiência: nos conselhos, quer dos mais al-
tos poderes, quer a outros níveis, é, com efeito, raro tomar-se
uma decisão por unanimidade e, no entanto, todas as decisões
são da responsabilidade de todos os membros, tanto dos que
votaram contra, como dos que votaram a favor.
Mas voltemos ã nossa questão. Vimos, com base nos fun-
damentos do Estado, em que medida pode cada um gozar
de liberdade de opinião sem ferir o direito dos poderes so-
beranos. Mas podemos, com a mesma facilidade, determinar
a partir daqui quais as opiniões que num Estado são subver-
sivas: são, evidentemente, aquelas cuja aceitação implica a
imediata cessação do pacto pelo qual cada um renunciou ao
direito de agir conforme entendesse. É, por exemplo, sub-
versivo pensar que o poder soberano não tem autonomia 4
ou que ninguém está obrigado a manter os juramentos, ou
que é preciso que cada um viva como entender e outras opi-
niões do mesmo gênero que estão em flagrante contradição
com o referido pacto, não tanto pelo juízo e a opinião em si
mesmos, mas por aquilo que na prática implicam, ou seja,
porque quem assim pensa está quebrando, tácita ou explici-
tamente, a fidelidade prometida ao poder soberano. Mas to-
das as outras opiniões que não implicam uma ação, ou seja,
que não envolvem a ruptura do pacto, a vingança, a cólera,
etc., não são subversivas a não ser, talvez, num Estado de al-
gum modo corrupto, onde os supersticiosos e ambiciosos,
que não podem suportar os homens livres, conquistaram tal
prestígio que têm mais autoridade sobre o povo do que os po-
[2431 deres constituídos. Não nego que haja certas opiniões que,
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO 305

embora pareçam versar unicamente sobre o verdadeiro e o


falso, são, contudo, apresentadas e divulgadas com intenções
iníquas. Mas essas já as definimos, no cap. XV, em termos que
não obstam à liberdade da razão.
Se, finalmente, considerarmos que a fidelidade de cada
um ao Estado, assim como a fidelidade a Deus, só se pode re-
conhecer pelas obras, ou seja, pela caridade para com o pró-
ximo, não oferece a menor dúvida que um Estado, para ser
bom, deve conceder aos indivíduos a mesma liberdade de fi-
losofar que a fé, tal como vimos, lhes concede. Claro que re-
conheço que tal liberdade traz por vezes certos inconvenien-
tes; mas será que já houve alguma coisa instituída com tanta
sabedoria que daí não pudesse surgir depois nenhum incon-
veniente? Quem tudo quer fixar na lei acaba por assanhar os
vícios em vez de os corrigir. Aquilo que não se pode proibir
tem necessariamente que se permitir, não obstante os danos
que muitas vezes daí advêm. Quantos males não derivam da
luxúria, da inveja, da avidez, do alcoolismo e de outras coi-
sas parecidas? E, no entanto, elas são toleradas porque não
está no poder das leis evitá-las, apesar de realmente se tratar
de vícios. Donde, por maioria de razão, deve ser permitida a
liberdade de pensamento, que é sem dúvida uma virtude e
não pode coarctar-se. Além de quê esta não provoca nenhum
inconveniente que não possa, como a seguir vou demons-
trar, ser evitado pela autoridade dos magistrados. Isso, para
já não falar de quanto ela é absolutamente necessária para o
avanço das ciências e das artes, as quais só podem ser culti-
vadas com êxito por aqueles cujo pensamento for livre e in-
teiramente descomprometido 5•
Mas suponhamos que essa liberdade pode ser reprimida
e os homens dominados a ponto de não se atreverem a mur-
murar uma palavra que contrarie o prescrito pelos poderes
soberanos; mesmo assim, nunca estes hão de conseguir que
não se pense senão o que eles querem: o que iria necessaria-
mente acontecer era os homens pensarem uma coisa e dize-
rem outra, corrompendo-se, por conseguinte, a fidelidade im-
prescindível num Estado e fomentando-se a abominável adu-
lação, a perfídia e, daí, os ardis e a completa deterioração dos
306 ESP/NOSA

bons costumes. Longe, porém, de uma coisa dessas poder


acontecer, ou seja, de todos se limitarem a dizer o que está
prescrito, quanto mais se procura retirar aos homens a liber-
dade de expressão mais obstinadamente eles resistem. Não,
como é óbvio, os avaros, os bajuladores e outros de ânimo
[2441 impotente, para quem a suprema felicidade consiste em con-
templar as moedas no cofre e ter a barriga cheia, mas aqueles
a quem uma boa educação, a integridade de costumes e a
virtude tornaram ainda mais livres.
Os homens, na sua maior parte, são constituídos de tal
maneira que não há nada que eles menos suportem do que
ver as opiniões que julgam verdadeiras rotuladas de crime e
aquilo que os estimula à piedade para com Deus e para com
os homens considerado como delito. Por isso acontece, às
vezes, detestarem as leis, atreverem-se a recorrer à força con-
tra os magistrados e julgarem que é a coisa mais honesta e
não uma vergonha fomentar com tal pretexto sublevações e
cometer toda a espécie de crimes. Sendo, portanto, evidente
que a natureza humana é assim constituída, segue-se que as
leis em matéria de opinião contemplam, não os criminosos,
mas os homens livres, e são feitas, não tanto para reprimir os
maus, como para provocar as pessoas de bem, além de quê,
não podem manter-se sem grave risco para o Estado. A isso
acresce que leis destas são de todo inúteis: com efeito, quem
acredita que são corretas as opiniões que as leis condenam
não pode obedecer a essas mesmas leis; quem, pelo contrá-
rio, as rejeita como falsas considera um privilégio as leis que
as condenam e sentir-se-á por isso de tal maneira triunfante
que o magistrado, mesmo que queira, já não consegue depois
revogá-las. E não se esqueça aquilo que tínhamos deduzido,
no capítulo XVIII, ponto II, da história dos hebreus.
Enfim, quantos cismas não surgiram na Igreja em boa
parte porque os magistrados pretenderam, através de legisla-
ção, dirimir as controvérsias dos doutores? Na verdade, se os
homens não alimentassem a esperança de pôr do seu lado as
leis e os magistrados, de triunfar dos seus adversários com o
aplauso do vulgo e de alcançar honrarias, jamais se bateriam
com tanta crueldade ou lhes subiria à cabeça tanto furor. Não
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍT1CO 307
é só a razão, é também a experiência que o ensina com exem-
plos cotidianos: semelhantes leis, que determinam aquilo em
que cada um deve acreditar e proíbem que se diga ou escre-
va qualquer coisa contra esta ou aquela opinião, foram fre-
qüentemente instituídas a título de concessão ou até de ce-
dência ã ira dos que não podem suportar as naturezas livres,
mas que, por uma não sei que terrível autoridade, podem fa-
cilmente transformar em raiva a devoção da plebe amotinada
e instigá-la contra quem eles quiserem. Quanto mais não va-
leria conter a ira e o furor do vulgo, em vez de promulgar
leis inúteis que só podem ser violadas por aqueles que pre-
zam as virtudes e as artes, leis que reduzem o Estado a uma
situação tal que é incapaz de defender os homens livres! [2451
Que coisa pior pode imaginar-se para um Estado que serem
mandados para o exílio como indesejáveis homens honestos,
só porque pensam de maneira diferente e não sabem dissi-
mular? Haverá algo mais pernicioso, repito, do que conside-
rar inimigos e condenar ã morte homens que não praticaram
outro crime ou ação criticável senão pensar livremente, e fa-
zer assim do cadafalso, que é o terror dos delinqüentes, um
palco belíssimo em que se exibe, para vergonha do sobera-
no, o mais sublime exemplo de tolerância e de virtude? Por-
que os que sabem que são honestos não têm, como os crimi-
nosos, medo de morrer nem imploram clemência; na medida
em que não os angustia o remorso de nenhum feito vergo-
nhoso - pelo contrário, o que fizeram era honesto-, recusam-
se a considerar castigo o morrer por uma causa justa e têm
por uma glória dar a vida pela liberdade. Que exemplo po-
derá então ter ficado da morte de pessoas assim, cujo ideal é
incompreendido pelos fracos e moralmente impotentes, odia-
do pelos revoltosos e amado pelos homens de hem? Ninguém,
certamente, aí colhe exemplo algum, a não ser para os imitar
ou, pelo menos, admirar.
Se se quiser, pois, que se aprecie a fidelidade e não aba-
julação, se se quiser que as autoridades soberanas mantenham
intacto o poder e não sejam obrigadas a fazer cedências aos
revoltosos, terá obrigatoriamente de conceder a liberdade de
opinião e governar os homens de modo que, professando
308 ESPINOSA

embora publicamente opiniões diversas e até contrárias, vi-


vam apesar disso em concórdia. E não há dúvida de que essa
maneira de governar é a melhor e a que traz menos inconve-
nientes, porquanto é a que mais se ajusta à natureza huma-
na. Com efeito, num Estado democrático (que é o que mais
se aproxima do estado de natureza), todos, como dissemos,
se comprometeram pelo pacto a sujeitar ao que for comu-
mente decidido os seus atos, mas não os seus juízos e racio-
cínios; quer dizer, como é impossível os homens pensarem
todos do mesmo modo, acordaram que teria força de lei a
opinião que obtivesse o maior número de votos, reservando-
se, entretanto, a autoridade de a revogar quando reconheces-
sem que havia outra melhor. Sendo assim, quanto menos li-
berdade de opinião se concede aos homens, mais nos afasta-
mos do estado mais parecido com o de natureza6 e, por conse-
guinte, mais violento é o poder.
Por outro lado, e para que nos convençamos de que
essa liberdade não acarreta inconvenientes tais que não pos-
sam ser evitados só pela autoridade do poder soberano, e de
que os homens, professando embora opiniões contrárias, são
pela mesma autoridade facilmente impedidos de se lesarem
uns aos outros, os exemplos não faltam. E nem preciso de ir
buscá-los muito longe. Basta ver como a cidade de Amster-
[2461 dam, com o seu extraordinário desenvolvimento e a admira-
ção que lhe consagram todas as nações, está colhendo os
frutos dessa liberdade! De fato, nesta florescente república e
nobilíssima cidade, todos os homens, seja qual for a sua na-
ção ou a sua seita, vivem na mais perfeita concórdia e, para
fazerem um empréstimo a alguém, a única coisa que os preo-
cupa é saber se é rico ou pobre e se costuma agir de boa ou
de má fé. Quanto ao resto, a que religião ou seita pertence,
isso não lhes interessa, visto não contar rigorosamente nada,
perante o juiz, para se ganhar ou perder uma causa. E não
existe absolutamente nenhuma seita, por mais odiada que seja,
cujos membros (desde que não prejudiquem ninguém, dêem
a cada um o que lhe é devido e vivam honestamente) não
sejam protegidos pela autoridade dos magistrados e pela guar-
da. Em contrapartida, quando outrora os políticos e os Sena-
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 309
dos das Províncias começaram a se envolver na controvérsia
dos remonstrantes e contra-remonstrantes7 sobre religião, esta
degenerou logo num cisma e provou, com inúmeros exem-
plos, primeiro, que as leis sobre matéria religiosa, isto é, des-
tinadas a dirimir as controvérsias, servem mais para exaspe-
rar os homens do que para os corrigir; segundo, que há quem
retire dessas leis pretexto para toda a espécie de abusos; e
terceiro, que os cismas não nascem do grande zelo pela ver-
dade (que é, pelo contrário, fonte de afabilidade e benevolên-
cia), mas sim do grande apetite pelo poder. Donde resulta
meridianamente claro, primeiro, que os verdadeiros cismáti-
cos são aqueles que condenam os escritos dos outros e insti-
gam contra os seus autores a insolência do vulgo, autores es-
tes que, na maior parte dos casos, escrevem apenas para os
doutos e se socorrem unicamente da razão8 ; segundo, que os
verdadeiros agitadores são aqueles que, num Estado livre,
querem abolir a liberdade de pensamento, não obstante ela
ser impossível de reprimir.
Com isso ficou demonstrado o seguinte:
1 - É impossível tirar aos homens a liberdade de dizerem
o que pensam.
II - Esta liberdade pode ser concedida aos indivíduos
sem prejuízo do direito e da autoridade dos poderes sobera-
nos, podendo cada um utilizá-la sem prejuízo ainda desse
mesmo direito, desde que daí não retire pretexto para intro-
duzir alterações na legislação do Estado ou para fazer algo
que vá contra as leis estabelecidas.
III -A mesma liberdade não representa nenhuma amea-
ça em relação à paz, nem acarreta inconvenientes que não
possam facilmente neutralizar-se.
IV - O mesmo se pode dizer em relação à piedade.
V - As leis promulgadas sobre matérias de ordem espe-
culativa são de todo inúteis. [247]
VI - Finalmente, a liberdade de opinião, não só pode ser
concedida sem que a paz do Estado, a piedade e o direito
dos poderes soberanos fiquem ameaçados, como inclusive o
deve ser, se se quiser preservar tudo isso. Na verdade, onde
quer que se tente retirá-la aos homens, onde quer que as opi-
310 ESPINOSA

niões dos dissidentes sejam levadas a tribunal e não as inten-


ções, quando só estas é que podem ser pecaminosas, aí, os
castigos que se dão para servirem de exemplo, aos olhos dos
homens de bem, parecem martírios, e aos outros, enfurecem-
nos e induzem-nos mais a ter compaixão, senão mesmo a
vingar-se, do que a ficar com medo. Depois, os bons costu-
mes e a lealdade deterioram-se, a bajulação e a perfídia são
encorajadas e é o triunfo dos inimigos porque os detentores
do poder cederam perante a sua ira e se tornaram seguidores
da doutrina de que eles próprios se têm na conta de intér-
pretes. Daí que tenham a ousadia de lhes usurpar o direito e
a autoridade e não corem de vergonha quando se gabam de
ter sido diretamente eleitos por Deus e de que os seus decre-
tos são divinos, enquanto os da suprema autoridade são sim-
plesmente humanos, razão pela qual esta se deveria subordi-
nar aos decretos divinos, ou seja, aos seus. Haverá alguém
que possa ignorar que tudo isso vai totalmente contra os in-
teresses do Estado? Concluímos, portanto, tal como já tínha-
mos feito no cap. XVIII, que não há nada melhor para a segu-
rança do Estado que fazer consistir a piedade e a religião
unicamente na prática da caridade e da justiça e limitar o di-
reito das autoridades soberanas, tanto em matéria sagrada
como profana, aos atos, deixando a cada um a liberdade de
pensar aquilo que quiser e de dizer aquilo que pensa.
E é tudo quanto tinha intenção de expor neste tratado.
Resta-me só declarar expressamente que não escrevi aqui
nada que de bom grado não submeta ao exame e à aprecia-
ção das autoridades soberanas da minha Pátria. E, se elas
acharem que alguma coisa do que eu disse vai contra as leis
deste País ou é prejudicial ao bem comum, eu próprio o dou
por não dito. Sei que sou homem e que posso ter-me enga-
nado; mas fiz todo o possível para que tal não acontecesse e,
sobretudo, para não escrever nada que não estivesse em to-
tal conformidade com as leis da Pátria, a piedade e os bons
costumes.
NOTAS

Prefácio

1. A hipótese sugerida por P. Couchoud, no livro Spinoza


(1902), segundo a qual este prefácio não seria da lavra do autor do
TT-P, mas sim de L. Meyer, ã semelhança do que acontecera com
os Princípios da Filosofia de Descartes e do que acontecerá depois
com o Tratado Político, carece de verdadeiro fundamento, como
demonstra A. Droetto (1984, pp. 10-2). De fato, se é difícil crer que
alguém a não ser o autor pudesse apresentar uma síntese tão exata
e fiel do conteúdo do Tratado, mais difícil ainda seria imputar-se essa
tarefa a L. Meyer, que sustenta idéias bem diversas sobre o mesmo
assunto, como vimos na introdução. E, se, por outro lado, o estilo
aqui se nos revela com outro vigor, é porque se trata realmente de
um prefácio, alheio, portanto, ã ordem das demonstrações que vão
seguir-se com a reconhecida sobriedade. Alheamento que é, de res-
to, relativo, uma vez que, não só a doutrina, como os exemplos ci-
tados e até algumas das expressões mais veementes, constituem um
eco daquilo que, de maneira forçosamente mais diluída e, por con-
seguinte, atenuada, se nos depara ao longo da obra.
2. A doutrina aqui exposta pressupõe e, por vezes, repete lite-
ralmente o que sobre as paixões é dito na III Parte da Ética. Veja-
se, em particular, o escólio da proposição 50: "as coisas que são
acidentalmente causas de esperança ou de medo vêm designadas
por presságios bons ou maus. ( ... ) Nós estamos por natureza dis-
postos a acreditar facilmente naquilo que esperamos e dificilmente
naquilo que tememos (. .. ). É essa a origem das superstições que
provocam em toda parte a guerra entre os homens. Aliás, não creio
que valha a pena mostrar aqui as flutuações da alma que nascem da
312 ESPINOSA

esperança e do temor, visto que pela simples definição desses sen-


timentos nós vemos que não há esperança sem temor nem temor
sem esperança (. .. )."
Por essa dialética detectada entre paixões aparentemente irre-
dutíveis, Espinosa desliga-se de Hobbes. Mas não só. O Leviathan,
com efeito, estabelece no capítulo XII (pp. 95-9) uma genealogia
das religiões que aparta, desde o início, as que considera falsas da
que considera verdadeira: as primeiras são fruto do "medo perpé-
tuo que sempre acompanha, na ignorância das causas, a humanida-
de", e por isso "alguns poetas antigos disseram que os deuses te-
riam sido, no início, criados pelo temor dos homens"; porém, a se-
gunda, que é "reconhecimento de um Deus eterno, infinito e oni-
potente, pode deduzir-se mais facilmente do desejo que os homens
têm de conhecer as causas dos corpos naturais, as suas diversas vir-
tudes e operações, que do medo pelo que possa acontecer-lhes no
futuro". Qualquer delas tem por intuito "tornar os seus fiéis mais ap-
tos à obediência, às leis, à paz, à caridade e à sociedade civil", pelo
que têm sempre caráter político. Mas as primeiras são "uma parte
da política humana" e a segunda é "política divina". Ou seja, no
momento em que os preceitos religiosos deixam de se considerar
apenas como simples conselhos e assumem caráter de leis, passam
intrinsecamente a ter caráter político, a informar um "reino", seja
este dos homens seja de Deus. Daí a conclusão de Hobbes: como o
reino de Deus, para ser algo mais do que o simples poder sobre to-
das as coisas, tem de se entender como proveniente de um pacto, o
soberano cristão é o único juiz com legitimidade para decidir sobre
o que é justo e o que é injusto e sobre as doutrinas adequadas à
manutenção da paz que devem ser ensinadas aos súditos. A neutra-
lização das controvérsias e, por conseguinte, do medo, residirá en-
tão na entrega ao soberano de todo o poder de decisão em matéria
civil ou religiosa.
A solução de Hobbes não é, nesse particular, inteiramente nova.
Já em Platão (Leis, VI, 782, D-783, A) se podia ler: "as coisas huma-
nas dependem de três desejos: comer, beber e (o mais intenso) re-
produzir-se. Deve-se tentar contê-los através dos três maiores remé-
dios, que são o medo, a lei e o logos". Em contrapartida, a de Espi-
nosa, ao propor a rigorosa abstenção do poder em matéria opinati-
va, remete, quando muito, e com outro suporte metafísico, para a
observação de Maquiavel (Discorsi, cap. VII, p. 52), segundo a qual
"nada torna uma República mais firme nem mais estável que orga-
nizá-la de modo que as excitações produzidas pelos maus humores
que a agitam tenham uma maneira legal de se expandirem".
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 313
3. É difícil precisar o que entende aqui Espinosa pela vera re-
ligio contraposta à vana religio. Porque não se trata, obviamente,
do amor intellectualis Dei teorizado na V Parte da Ética, dado que
esse prescinde de "culto e aparato". Tudo indica, pois, tratar-se de
um enunciado sem pretensões críticas que se limita a assinalar a
contaminação entre religião e política e a situá-las no domínio estri-
to da obediência, seja qual for o seu grau de razoabilidade. O que
se compreende, se tivermos em conta que o prefácio enuncia ape-
nas, em traços largos, os pressupostos a partir dos quais se irá justi-
ficar a separação da filosofia e da teologia e o mecanismo político
de salvaguarda pacífica de uma e outra, ou seja, a liberdade de ex-
pressão.
4. No capítulo VI do Tratado Político, Espinosa usará de ou-
tros termos para caracterizar o regime monárquico, divergindo en-
tão da legitimidade atribuída por Hobbes ao absolutismo e aproxi-
mando-se da monarquia constitucional tal como esta será teorizada,
por exemplo, por Locke. No presente contexto, não parece que a
acusação que lhe dirige vise mais longe do que uma simples cons-
tatação empírica, na senda do que faz Maquiavel.
5. Nesta passagem reside um dos primeiros assomos da origi-
nalidade do TT-P em termos políticos. Repare-se que a reflexão so-
bre as conseqüências das controvérsias religiosas na paz do Estado
é banal, designadamente a partir da fragmentação do cristianismo
em diversas Igrejas. Hobbes e Grócio, por exemplo, partem daí para
ensaiar diferentes soluções políticas. A novidade de Espinosa está
na constatação de que o mal não vem das controvérsias em si mes-
mas, mas do excesso do legislador ao tomar partido por uma das
facções.
6. Já no interior do aristotelismo renascentista, como referimos
na introdução, Pierre de la Ramée, entre outros, se apercebe da
contradição que é uma teologia cristã baseada em autores pagãos e
propõe, a partir daí, uma redistribuição dos campos do saber. Mas
as referências de Espinosa às "especulações dos aristotélicos ou dos
platônicos'', com a manifesta carga crítica de que sempre se acom-
panham, refletem, antes de mais, o ambiente em que se processa a
ruptura com a escolástica e se afirma o pensamento moderno. Ex-
pressões semelhantes encontram-se com freqüência em Descartes,
Bacon, Galileu ou Hobbes.
7. Sobre a expressão nec per somnium, veja-se a nota de Joa-
quim de Carvalho, na sua tradução da I Parte da Ética 0960, 2ª ed.,
pp. 114-7), onde se demonstra a clara ascendência portuguesa do
314 ESPINOSA

aforismo, detectado pelo falecido investigador já em D. Francisco


Manuel de Melo. Como assinala o mesmo]. de C., a diversidade de
traduções e, acrescentaríamos, a sua imprecisão, constituem "uma
espécie de contraprovas" deste ponto de vista.
8. Notar-se-á a çliferente extensão do conceito de "religião ca-
tólica" aqui utilizado, que abarca judaísmo e cristianismo e se fun-
damenta na unidade da Escritura, relativamente à que é habitual
atribuir-se-lhe. É verdade que, segundo a interpretação alegórica, o
Antigo Testamento se converte para os cristãos numa prefiguração
do Novo e a Bíblia se reduz assim a um núcleo de enunciados que
sucessivamente se desdobra em significação. Não é essa, porém, a
perspectiva de Espinosa, como sabemos. Se de unidade aqui se pode
falar - e é obrigatório fazê-lo para dar consistência à noção de ca-
tolicidade -, ela deriva somente da referência comum ao mesmo
Deus de diversos textos justapostos e sancionados por concílios ju-
deus e cristãos, configurando uma plataforma por onde circulam re-
ligiões que se digladiam entre si. Sendo, portanto, uma recusa da
vocação de eleitos que os hebreus a si mesmos se atribuem, nào é
menos um distanciamento de qualquer religião positiva que se arro-
gue a exclusividade da interpretação dos Testamentos.
9. Diferentemente da atitude, porventura tática, de boa parte
dos pensadores modernos, que tentam defender a legitimidade da
nova ciência alegando a sua conformidade com os princípios da re-
ligião, Espinosa sublinha, desde logo, a sua incomunicabilidade. A
própria expressão que por diversas vezes utiliza para anunciar o seu
ponto de vista evidencia a deliberada ruptura com os pressupostos
medievais da philosophia ancilla teologiae e do intellectus quaerens
/idem, /ides quaerens intellectum.
10. As especulações sobre os verdadeiros destinatários do TT-P
são inúmeras e nem sempre devidamente escoradas. Afastados,
por razões diferentes mas evidentes, os teólogos e o vulgo, restam
os filósofos explicitamente convocados no início do parágrafo. Po-
rém, aos filósofos a quem é dirigido o convite exige-se uma predis-
posição para a liberdade de pensamento que só não se atualiza
pelo obstáculo que representa o considerarem a filosofia serva da
teologia. Onde encontrará Espinosa essa predisposição? Aparente-
mente, só naqueles que já filosofam no exterior das religiões posi-
tivas, estando livres de dogmas teológicos mas procurando outros
em sua substituição. A mensagem de Espinosa poderá assim en-
tender-se como tentativa de inflectir a reflexão desses "cristãos
sem Igreja", num momento em que ela hesita por sentir a distância
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 315

entre a razão e os dogmas das várias Igrejas, ou por ver as suas con-
seqüências práticas, mas se arrisca a precipitar-se no mesmo erro
por pressupor que a salvação está em outros dogmas, sem des-
cortinar que é precisamente esse o mecanismo intrínseco de todas
as seitas.

Capítulo I

1. As concepções metafísicas de Espinosa estão, como se vê


por esta passagem, desde o início comprometidas com a teoria do
conhecimento no interior da qual se equaciona o problema da pro-
fecia. É porque o entendimento humano é parte do entendimento
divino, de acordo com o exposto na Ética, II, prop. 11, que a espe-
cificidade do conhecimento profético se tem de procurar em outras
características que não o provir de Deus. E é exatamente pela mes-
ma razão que o conhecimento intelectual se reveste de uma certeza
absoluta, fazendo com que a verdade seja critério de si mesma e do
erro, e dispensando na sua busca o recurso à dúvida metódica.
2. Estendendo-se para lá dos limites do conhecimento natural,
o conteúdo da profecia só pode ser aceito por alguém na base da
fé, a qual, tomada à letra, como faz Espinosa na nota de rodapé
onde comenta o assunto, implica sempre uma relação de confiança
no profeta e tem de se basear na sua autoridade. Daí a fé consistir
intrinsecamente numa dependência, que o mesmo é dizer, em obe-
diência, ao contrário da ciência, que ainda quando transmitida por
outrem é captada pelo próprio autonomamente, dado estar dentro
dos limites do entendimento de que é, aliás, um produto. A tese
central do Tratado é, assim, afirmada logo no seu início e levada
mesmo às suas últimas conseqüências, como se concluirá se repa-
rarmos no final da nota atrás referida, onde se assimila explicitamen-
te a autoridade profética à autoridade de qualquer soberano para
interpretar as leis do respectivo Estado.
3. A tradução literal por que optamos relativamente à palavra
latina mens, recusando o que até há pouco fazia a maior parte dos
tradutores justifica-se pelo simples fato, a que aludimos na introdu-
ção, de Espinosa evitar sempre no TT-P a palavra anima. Trata-se,
efetivamente, de uma nítida evolução terminológica que indica uma
clarificação teórica do sistema à medida que este vai recusando a
alma na sua acepção habitual de substância ou faculdade, conforme
oportunamente observaram E. C. Boscherini e A. Crapulli (1969).
316 ESPINOSA

4. À primeira vista, a observação de que não existe, hoje em


dia, nenhum profeta seria apenas um lugar-comum aceito por todas
as religiões ao tempo de Espinosa. Para a tradição judaica, o último
dos profetas fora Malaquias (séc. V a.C.); para o cristianismo, a re-
velação, prolongada embora com o objetivo de assegurar a ponte
entre o Antigo e o Novo Testamento, encerrara-se com os apósto-
los; e mesmo para o islamismo, ela terminara com Maomé. O con-
texto em que é feita essa observação oferece-lhe, no entanto, um
significado muito mais amplo e, nessa medida, polêmico. De fato,
embora cancelada a revelação, nenhuma das religiões extrai daí a
conclusão de que, para se entender a Bíblia, "só nos resta abrir os
sagrados volumes". Pelo contrário, todas elas tentam manter vivo o
efeito de autoridade que emanava do profeta, não confiando a prer-
rogativa da interpretação a qualquer um. Nem sequer a exceção a
essa norma que constituem as religiões protestantes, segundo as
quais a leitura da Escritura propiciaria uma iluminação interior e in-
dividual do cristão, pode considerar-se como coincidente com o
que diz Espinosa, uma vez que este propõe como critério exclusivo
a "luz natural", que está longe de coincidir com a "iluminação do Es-
pírito Santo" dos reformadores.
5. Fiel ao princípio de interpretar a Escritura pela Escritura, a
explanação que neste parágrafo se inicia visa mostrar que a profe-
cia, seja quando é apresentada como real percepção através dos
sentidos, seja quando se assume como fruto de sonhos ou percep-
ções imaginárias, recai sempre fora da ciência. No primeiro caso, li-
mita-se a refletir o efeito de um corpo exterior (figura ou voz) sobre
a sensibilidade do profeta, sem captar a verdadeira razão de causa-
lidade entre uma coisa e outra nem a essência daquele corpo: daí as
dificuldades que suscita e que Espinosa, na seqüência de Hobbes
(Leviathan, cap. XLV, p. 654), refere, todas elas derivadas da impos-
sibilidade de representar o infinito por uma imagem que, qualquer
que ela seja, o nega por definição (determinatio est negatio). No se-
gundo caso, que é o mais freqüente e o mais genuinamente profé-
tico, as idéias da imaginação encadeiam-se umas nas outras com
base sempre em dados sensoriais e, por isso, ã margem do entendi-
mento, podendo mesmo configurar-se em sistema coerente que, no
entanto, diferirá da ciência porque é deduzido de idéias inadequa-
das. Conforme vimos na introdução, é este, em última instância, o
mecanismo que Espinosa atribui a toda a teologia, isto é, a todo dis-
curso sobre Deus formulado a partir da idéia do soberanamente per~
feito e da causalidade transcendente.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 317

6. Por ser este o termo vulgarmente utilizado para designar a


parte superior da Arca da Aliança, onde estavam guardadas as tábuas
da Lei, optamos por não traduzir ao pé da letra a palavra tegmen
(tampa, revestimento) utilizada por Espinosa, de acordo, aliás, com
o que aparece na Bíblia dos Setenta. Propiciatório é a designação
de caráter litúrgico que usa a Vulgata para o mesmo efeito.
7. O dois livros de Samuel correspondem, na versão de São Je-
rônimo, aos dois primeiros livros dos Reis; só o terceiro e quarto é
que, na Bíblia hebraica, vêm designados por livros dos Reis (1 e II).
8. Repare-se como Espinosa, a partir de citações da Escritura,
parece corroborar integralmente a distinção que a tradição judaica
faz entre Moisés e os restantes profetas, ã semelhança do que esta-
belece Maimônides. Ao contrário, porém, do que este pretende,
quando conclui que Moisés foi um verdadeiro filósofo e possuía o
verdadeiro conhecimento de Deus, Espinosa sublinha que toda a
revelação se fica pelo domínio do imaginário embora reconhecen-
do uma graduação no interior deste. Seja por palavras, seja por vi-
sões, a profecia reduz-se ao plano da imaginação e da passionalidade,
conduzindo sempre a uma atitude de obediência e não de ciência.
Daí que Moisés não tenha prescrito senão uma legislação política,
válida apenas para o Estado judeu, abolindo inclusive a diferença
entre religião e governo.
9. A figura de Cristo, tal como por várias vezes surge na obra
de Espinosa, é altamente ambígua e, em última instância, não re-
presenta nenhum papel no sistema, conforme conclui A. Matheron
(1971, p. 276), no estudo exaustivo que dedica a essa problemática.
De notar, em primeiro lugar, a diferença estabelecida entre Cristo e
Moisés, que faz o TT-P, também neste particular, divergir do Levia-
than. Hobbes, com efeito, no cap. XLI daquela obra, que é dedica-
do ã "missão do nosso bendito Salvador" e que antecede imediata-
mente o capítulo dedicado ao "poder eclesiástico", assimila ambas
as figuras, caracterizando-as como representantes de Deus. Tal assi-
milação, é verdade, está em boa parte fundada sobre o acessório -
escolha de discípulos, instauração de ritos, etc. -, mas é nítido que
ela visa demonstrar que tanto em um como em outro caso não es-
tamos senão perante personagens que detêm "subordinadamente"
o poder que só pertence a Deus. A própria redenção operada por
Cristo consiste, segundo Hobbes, em restituir por um segundo pac-
to o poder que fora usurpado pela rebelião do povo e a eleição de
Saul. Em resumo, Cristo é representante de Deus e, nessa medida,
vice-rei; ora, como "o reino de Deus não é deste mundo", a sua
318 ESPINOSA

missão, tal como a dos seus discípulos, foi e é preparar os homens


para o "reino celestial", não devendo, portanto, interferir na ativida-
de dos soberanos.
O problema de Espinosa é inteiramente outro. Sem jamais fa-
zer uma análise do Novo Testamento como faz do Antigo, justifi-
cando-se inclusive por não dominar a língua grega, o TT-P pressu-
põe os ensinamentos de Cristo como religião universal da caridade
e da justiça, diferente, portanto, da religião dos profetas, a qual, por
decorrer no plano da imaginação, está sempre circunscrita a parti-
cularidades de lugar e tempo. À primeira vista, portanto, Cristo se-
ria um filósofo, ou seja, alguém que possuía o conhecimento inte-
lectual de Deus, assumindo no sistema espinosista o exato papel
que Moisés assumira no de Mainônides. Há, porém, uma diferença
essencial, que justifica Espinosa ter recusado a Moisés o caráter de
filósofo: é que, a este, a revelação é mediatizada por palavras e
imagens, enquanto a Cristo ela surge imediatamente. Dito de outro
modo, e em termos já não escriturísticos, o entendimento infinito
exprime-se em Cristo apenas por idéias adequadas, sem mistura de
imaginação ou conhecimento confuso. No entanto, como evitar o ab-
surdo que seria o entendimento infinito assumir a natureza huma-
na? As reservas de Espinosa a esse propósito são manifestas quan-
do declara, logo a seguir, que não compreende o que as Igrejas di-
zem sobre Cristo. E em resposta a Oldenburg (Carta LXXIII) será
ainda mais veemente e preciso, ao considerar que a sabedoria divi-
na se revela na mente humana "e de modo absolutamente particu-
lar em Jesus Cristo", remetendo, pois, a pessoa deste para a catego-
ria de um filósofo, ainda que superior, de alguém que teria com-
preendido a verdade que Espinosa deduz more geometrico. Sabedo-
ria de Deus significaria assim, como o contexto do presente capítu-
lo parece sugerir, apenas uma sabedoria fora do comum.
Mais difícil ainda é compreender-se Cristo como "caminho de
salvação". Porque, se a sua doutrina coincide com a verdade e se a
beatitude se alcança unicamente pelo conhecimento desta, como
explicar aquilo que Espinosa parece aceitar e que é a possibilidade
de salvação pela simples obediência aos dogmas universais? Como
entender a "salvação dos ignorantes", à luz da V Parte da Ética? É
esse precisamente o tema do citado livro de Matheron. Voltaremos
a ela na altura em que o TT-Pvai abordar aqueles dogmas, aos quais,
de resto, já aludimos na introdução.
10. Compare-se com a expressão, vulgar em português, "espa-
lhar ou proclamar aos quatro ventos". Já Hobbes, no cap. XXXIV,
TRATADO TEOLÓGJCO-POIÍ17CO 319

pp. 380-8, do Leviatban, interpretava metaforicamente a palavra spi-


ritus, que literalmente significa vento. No entanto, para ele este
"vento de Deus" era tido ainda como um sinal excepcionalmente
produzido por Deus para autenticar alguma das suas obras miracu-
losas. Em Espinosa, pelo contrário, trata-se apenas de um fenôme-
no natural e só nessa medida "produzido" por Deus.
11. No versículo 20 do capítulo citado, diz-se precisamente:
"Mediu a sua parede por todos os lados, segundo os quatro ventos,
andando em volta, e concluiu ter o comprimento de 500 côvados e
a largura também de 500 côvados, que era o espaço que havia en-
tre o santuário e o lugar do povo". Em contrapartida, como nota A.
Droetto (1984, p. 43), o significado de spiritus é diferente no tam-
bém citado cap. XXXVII, 9, denotando explicitamente sopro vivifi-
cador, alento, à semelhança do que Espinosa enuncia na alínea 2, e
nào como aqui na alínea 7.
12. O "termo transcendental" aqui referido, tal como na Ética,
II Parte, prop. 40, esc. 1, constitui um dos nós decisivos da metafísi-
ça escolástica, embora Espinosa não se demore em grandes porme-
nores a seu respeito. Nada tem, por conseguinte e obviamente, a ver
com o significado que vai adquirir na filosofia Kantiana. Tentando
sintetizar o que de si é bastante complexo, recorde-se que, pa esco-
lástica, transcendental poderia significar: a) aquilo que está para
além dos predicamentos ou gêneros de ser (Deus); b) aquilo que
convém a vários predicamentos (por ex., o movimento); c) aquilo
que se encontra em todos os predicamentos (por ex., a pluralidade);
d) o ser e aquilo que se diz de todo o ser. Para além do ser, são cin-
co os conceitos transcendentais: res, unum, aliquid, verum, bonum
(cf. Gredt, vol. II, 1961, p. 14). Ora, para Espinosa, como sabemos
pela Ética, I Parte, prop. 28, "nenhuma coisa singular (.. .) pode exis-
tir nem ser determinada a produzir um efeito a não ser por uma ou-
tra causa, ela própria finita e com uma determinada existência (. .. ) e
assim até o infinito". Não se pode, portanto, explicar a profecia pelo
poder de Deus enquanto infinitamente considerado, mas sim pelo
poder de Deus enquanto afetado de qualquer modo finito. É esse
que escapa à ciência, como o autor confessa, e de pouco valerá re-
meter para termos transcendentais que não explicam os fatos singu-
lares. "A existência - diz o TRE, § 55 - é concebida tanto mais con-
fusamente quanto mais genericamente a concebemos".
13. Como por mais de uma vez acontece ao longo deste capí-
tulo, a análise que o TT-P faz da Escritura pretende-se sempre um
simples exercício "crítico" destinado a apurar o significado dos tex-
320 ESPJNOSA

tos. A pretensa inocência do método levará, todavia, muito tempo a


ser reconhecida, como irá experimentar, logo a seguir, o oratoriano
Richard Simon: não obstante querer apenas reforçar com a crítica a
tradição e reconhecer que sem esta a interpretação da Bíblia é im-
possível, a ortodoxia católica abater-se-á sobre ele, designadamen-
te na pessoa de Bossuet (cf. P. Auvray, 1984).
14. A teoria aqui sintetizada fora exposta no TRE, §§ 87-9, embo-
ra reassuma o tom a rondar a ironia que já por mais de uma vez en-
contramos em casos semelhantes do TT-P. Com efeito, ao mesmo
tempo que dá a impressão de ratificar a idéia generalizada de que o
profeta excede em conhecimento o que é normal no homem, o au-
tor remete esse excesso para a categoria de conhecimento do primei-
ro gênero, ou seja, inadequado. Veja-se o que é dito nos parágrafos
do TRE a que aludimos: "( ... ) aqueles que não estabelecem cuidado-
samente a distinção entre a imaginação e o entendimento incorrem
em erros enormes ( ... ) As palavras são criadas arbitrariamente e em
conformidade com a mentalidade do vulgo. Elas não são senão sinais
das coisas tais como estas aparecem à imaginação e não ao entendi-
mento. Assim se explica o fato de muitas coisas que estão só no en-
tendimento e nào na imaginação serem muitas vezes designadas por
termos negativos, tais como incorporal, infinito, etc., e bem assim o
exprimirem-se negativamente muitas coisas positivas ou vice-versa".
É de notar, enfim, a diferente origem do erro assim estipulada
relativamente a Descartes (IV Meditação), que o faz derivar de uma
alegada assimetria entre os limites do entendimento e o ilimitado da
vontade (A. T., VII, p. 46). Na verdade, enquanto o autor do Discur-
so do Método, referindo embora que a possibilidade de errar surge
exatamente quando a vontade leva o homem a pronunciar-se sobre
matérias que excedem a sua capacidade de entender, não exclui de
modo algum a hipótese de aquela atingir a verdade se for secunda-
da por outros recursos, tais como, por exemplo, a revelação divina.
É precisamente essa hipótese que parece negada em Espinosa quan-
do nega a assimetria entre entendimento e vontade e exclui, em
conseqüência, do domínio do saber adequado toda a idéia que não
provenha do entendimento.

Capítulo II

1. A teoria da imaginação, já desenvolvida na Ética e a que fa-


zemos referência na introdução, verifica-se neste capítulo por uma
reflexão sobre os sinais que lhe oferece acrescida prova. Dado que
TRATADO TEOLÓGICO-POúTJCO 321

as coisas reveladas não são evidentes em si mesmas, jamais pode-


rão constituir ciência. Nessa medida, a certeza de que o profeta de-
las possui só poderá advir dos sinais que as acompanham. Estes,
porém, em vez de reconduzirem os enunciados da revelação ao do-
mínio científico, reforçam ainda mais a sua exterioridade, visto se-
rem intrinsecamente ambíguos: Deus também faz sinais para expe-
rimentar o povo, os prodígios tanto acompanham a verdade como
o erro. Dito de outro modo, não há nenhum processo de o conhe-
cimento certo que Deus tem das coisas se transferir para os homens
a não ser pela evidência que acompanha o conhecimento "natural",
dado que este, como sabemos, é a própria e única expressão do
entendimento infinito. A revelação, portanto, reduz-se sempre ao
campo da imaginação, isto é, a idéias que indicam apenas o "sentir"
dos homens, os efeitos das coisas sobre o corpo de cada um, sem
que alguma vez reproduzam o encadeamento causal do universo.
Assim se explicam as múltiplas contradições que atravessam a Escri-
tura e se justifica a conclusão apontada por Espinosa, segundo a
qual não somos obrigados a aceitar da revelação mais do que aqui-
lo que é o seu fim, ou seja, o ensinamento da "verdadeira vida", da
justiça e da caridade. De notar ainda que, de acordo com o mesmo
princípio, enquanto Hobbes tinha como critério do verdadeiro pro-
feta a conformidade com a religião estabelecida, recusando assim a
possibilidade de introduzir doutrina nova (cf. Leviathan, cap. XXXII,
p. 364), Espinosa põe o acento na conformidade com a justiça e o
bem, o que pode muitas vezes significar ruptura com a tradição.
2. A fidelidade ao método de interpretar a Escritura pela Escri-
tura está patente nesta recorrência a citações eivadas da idéia antro-
pomórfica de Deus, que de todo em todo o Tratado rejeita. É, com
efeito, um absurdo, como Descartes já notava e os modernos estu-
dos bíblicos sublinham, pensar-se o ser que se define pela suprema
perfeição a enviar falsos profetas para enganar e castigar o povo. O
que Espinosa acrescentará, levando, por assim dizer, o raciocínio às
suas últimas conseqüências, é que imaginá-lo como sumamente bom
é permanecer ainda no antropomorfismo. Por isso a Ética o define
como o absolutamente infinito e não como o absolutamente perfei-
to, o que equivale a retirá-lo do universo da imaginação em que de-
corre a Escritura e a posicioná-lo no universo da razão.
3. A passagem aqui aludida (Samuel, II, cap. XXIV, 1) diz ex-
pressamente que o furor do Senhor voltou de novo a acender-se
contra Israel e excitou Davi contra ele dizendo: vai e faz o recensea-
mento de Israel e de Judá. Mais adiante, e ainda no mesmo capítulo,
vers. 10, refere-se que Davi disse ao Senhor: eu cometi nesta ação
322 ESPINOSA

um grande pecado, mas rogo-te que perdoes a iniqüidade do teu


seroo (. .. ).
4. O heliocentrismo assume aqui as dimensões de caso exem-
plar no que toca ao método de interpretação da Escritura. O que se
condena é a atitude daqueles que, como Maimônides, ou o cartesia-
no L. Meyer, tentam enquadrar todos os enunciados bíblicos no in-
terior da razão, promovendo a filosofia a supremo intérprete e re-
correndo irremediavelmente a processos alegóricos para extorquir
do texto uma verdade que ele contradiz literalmente. À primeira vis-
ta, dir-se-ia, pois, uma condenação da ciência de tipo calvinista. A
diferença está em que Espinosa tampouco considera a Escritura ca-
paz de ensinar alguma coisa sobre Deus ou sobre o mundo. A solu-
ção, como oportunamente dissemos, tem de passar por uma redefi-
nição do objeto da filosofia e da fé e pela sua conseqüente separa-
ção. O que afasta Espinosa da maior parte daqueles que, como Ga-
lileu, descobrem a inexatidão da Bíblia mas a atribuem ainda ao seu
caráter didático, pressupondo que os profetas possuiriam um co-
nhecimento científico que adaptavam à mentalidade do vulgo, é
precisamente a equivalência profecia = imaginação, pela qual toda
a revelação se torna por natureza idéia inadequada, tanto no profe-
ta como no povo.
5. O fenômeno que em meteorologia se designa por parélio
ou falso sol consiste numa imagem do sol, vermelha ou branca, ob-
servada por ocasião de um halo solar. Normalmente, os parélios
apresentam-se à mesma altura do sol e à distância angular de 22
graus para um e outro lado do astro. Se este está próximo do hori-
zonte, situam-se sobre o halo ordinário; mas, se está mais alto, po-
dem-se produzir parélios brancos a 120 graus do sol e incidindo
fora do halo. Espinosa deve ter tido notícia do fenômeno através do
estudo do seu contemporâneo Huygens intitulado De coronis et pa-
rhelüs, dado que por várias vezes se refere nas suas cartas aos tra-
balhos do autor.
6. É manifesta a heterodoxia da versão que Espinosa oferece
do relato genesíaco, ainda que não seja esse o objeto de discussão
no parágrafo. Com efeito, em pleno século XVII, só em livros caba-
lísticos se poderia ainda encontrar vestígios dessa nítida tentativa de
conciliar a Bíblia com o pensamento antigo, não obstante ela ter
sido uma das tendências mais insistentes, quer entre os judeus, quer
mesmo na Patrística cristã.
Os termos que se nos deparam estão, com efeito, muito longe
da tese da criação ex nihilo consagrada por sucessivos concílios:
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 323
docuit praeterea, hoc ens mundum hunc visibilem ex Chao ( Gênesis,
2, cap. 1) in ordinem redegisse, seminaque naturae indidisse (. .. ). É,
de resto, significativo que o autor remeta para o versículo 2 do Gê-
nesis, em vez de citar o inicial no princípio criou Deus o céu e a ter-
ra. O problema, como se sabe, está na dificuldade em abarcar ra-
cionalmente o ato de criação da matéria a partir de um Deus que se
define tradicionalmente como a sua negação. A tentativa mais fre-
qüente para o resolver passa por uma conciliação, ora com as teses
do mazdaísmo persa e babilônico, que contaminam diversas franjas
do pensamento judaico, ora com o pensamento grego, onde o cris-
tianismo dos primeiros séculos procura alojar a sua doutrina, à se-
melhança, aliás, do que fazem muitos autores hebreus. Assim, por
exemplo, Justino, um dos padres da Igreja, exprime-se como se
Deus criasse a partir de uma matéria informe preexistente, assegu-
rando, além disso, que a narrativa mosaica teria inspirado a Platão
a atividade do demiurgo descrita no Timeu (cf. Tresmontant, 1961,
pp. 114-55). A versão espinosista ecoa, nitidamente, esta leitura pla-
tônica do Gênesis, quando fala da transformação do caos em mun-
do visível. Ao acrescentar, porém, a referência às "sementes da na-
tureza", a heterodoxia da leitura acentua-se ainda mais e parece
estabelecer uma súbita e sutil ponte com a sua metafísica, toda ela
anticriacionista. Na verdade, só num quadro conceptual em que a
natureza surja como engendrada e não como criada tais sementes
ou gérmenes adquirem algum sentido. E é precisamente este o caso
das correntes gnósticas, contra as quais se insurgirão sucessivos pa-
dres e concílios a braços com a necessidade de distinguir a "gera-
ção na eternidade" do Filho de Deus e a criação a partir do nada de
todos os outros seres.
Sendo embora diferente o imanentismo de Espinosa do ema-
natismo da gnose, inspirado em Plotino, não pode deixar de assina-
lar-se aqui a emergência de um tema caro ao neoplatonismo, até
pela coincidência terminológica. De fato, a expressão "sementes da
natureza" constitui a tradução evidente das razões seminais que Plo-
tino invoca, na seqüência dos logoi spermatikoi dos estóicos. Para
Crisipo, recorde-se, a geração do mundo faz-se a partir do elemen-
to por excelência, o fogo. Este, existindo a princípio só e no vazio
infinito, é animado por uma tensão de gerar que para se satisfazer
exige que o mesmo fogo se condense e se converta, primeiro, em
ar e, depois, em água. Mas a água, percorrida pelo sopro inflamado
do ar, dá origem a um gérmen que é a razão seminal ou a lei do
mundo na qual se contêm as razões seminais ou leis de organiza-
ção de todos os seres particulares. Da mesma forma, em Plotino, é
324 ESPINOSA

também por uma "superabundância" do Uno que se engendrarão as


suas sucessivas hipóteses até o aparecimento da Alma, que serve de
meio-termo entre o inteligível, de que ela provém, e a natureza sen-
sível e corporal, que ela produz segundo razões seminais que imi-
tam as idéias (cf. Robin, 1963, pp. 417 e 447).
7. Tratando-se embora de demonstrar, neste passo, a inade-
quação das idéias de Moisés sobre Deus, é também nítida a insinua-
ção do caráter secundário e "regional" dos cultos relativamente ã
religião, aspecto este que será, mais ã frente, objeto de desenvolvi-
mento, quando Espinosa refere o exemplo da Companhia das Í-
ndias Orientais, que recomenda aos seus marinheiros absterem-se
do culto externo em terras onde este seja proibido. De qualquer
forma, o que de essencial permanece, para lá das possíveis influên-
cias de um calvinismo que centra a religião na relação direta do in-
divíduo com Deus, é a representação imaginária da divindade e,
por conseguinte, a sua irremediável tradução em particularismos
sempre relativos ã situação de cada povo. Nessa medida, a consig-
nação intrínseca de cada divindade a um território, sutilmente subli-
nhada neste texto, constitui, não tanto a denúncia de um erro epi-
sódico, como a descoberta de um elemento característico de todos
os processos baseados na passividade e passionalidade dos indiví-
duos: o Deus representado na imaginação será sempre um Deus
particularizado, que indicia mais a situação de quem o imagina do
que a substância infinita e, por isso, muda de povo para povo e de
situação para situação.
8. Conforme Espinosa anteriormente sublinha (p. 145), em par-
te alguma o Gênesis refere a criação desses entes que fazem as ve-
zes de Deus e que aqui aparecem identificados com os anjos. Na
verdade, a literatura sobre o assunto aparece entre os hebreus so-
bretudo depois do exílio na Babilônia e do conseqüente contato
com os Persas, vindo, portanto, do mazdaísmo. Que essa incorpo-
ração no judaísmo tradicional foi fecunda, não obstante ter deixado
intato o monoteísmo e a crença na superioridade do Deus de Israel,
prova-o a abundância de espíritos angélicos que surgem principal-
mente em livros apócrifos e que refletem com mais exatidão as
crenças populares. São de dois tipos os espíritos que aí surgem: os
bons e os maus, os anjos e os demônios. Os anjos, por sua vez, ou
estão perante a face de Deus, ou são enviados para tomar conta,
seja dos astros, seja das nações (cf. Ricciotti, p. 86).
9. A ratio bene vivendi, apresentada aqui como sinônimo de
verdadeira vida, culto interno e amor de Deus, lembra imediatamen-
te os termos com que na V Parte da Ética se descreve a liberdade.
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 325

Não parece, todavia, absolutamente coerente acrescentar, como faz


o autor, que ela foi para os hebreus uma escravidão. O que Espino-
sa quer, decerto, frisar é a distância que vai do viver segundo uma
moral imposta que apela à obediência ao viver por determinação do
próprio entendimento e livre da sujeição passional. Só aquela po-
derá ser para alguém, e é por essência, escravidão. A "verdadeira
vida", pelo contrário, a verificar-se, é sempre libertação para quem
a experimenta.
10. As res mere speculativae, já referidas no capítulo I, são as
questões de natureza estritamente filosófica ou científica. Sobre elas,
as opiniões dos profetas são por força divergentes, na medida em
que derivam da imaginação de cada um, afetada pelas respectivas
circunstâncias, e nào da atividade do intelecto.

Capítulo III

1. O processo de demonstração utilizado neste capítulo evi-


dencia já um domínio pleno dos vetores principais do sistema, o
que parece pôr em causa as interpretações que o dào apenas como
um retomar dos temas enunciados na Apologia contra a expulsão
da Sinagoga de que o autor foi alvo a 27 de Julho de 1656. O con-
ceito-chave dessa argumentação é "a beatitude", que começa por
ser apresentada num contexto intelectual inspirado no estoicismo.
Leia-se Séneca: Quid est beata vita? Securitas et perpetua tranquili-
tas (Ad Lucilium, XCII). Por ser tranqüilidade (apatheia) que pro-
vém do conhecimento, a beatitude exclui as paixões do orgulho e
da inveja. Mais ainda, e conforme se diz no Tratado da Reforma do
Entendimento(§§ 13 e 14), a beatitude, que aí aparece como "bem
supremo" e finalidade última da natureza humana alcançável pelo
"conhecimento da união da mente com a totalidade da natureza",
tende intrinsecamente a ser partilhada: "faz parte da minha felicida-
de empregar todos os esforços para que muitos outros compreen-
dam como eu, de modo que o seu entendimento e os seus desejos
se ponham de acordo com o meu entendimento e o meu desejo''.
Muito distante já do sentido iniciático deste começo do TRE, a mes-
ma idéia é transposta para o contexto necessitarista da Ética (IV
Parte, prop. 36), assumindo aí o seu pleno significado espinosista:
"Só na medida em que os homens vivem sob a conduta da razão

- eles estão por natureza, sempre e necessariamente, de acordo";


pelo contrário (idem, prop. 34), "na medida em que os homens es-
326 ESPiNOSA

tão dominados por sentimentos que são paixoes, podem opor-se


uns aos outros". O que se verifica no presente capítulo do TT-P é
precisamente a articulação desses dois níveis, fazendo-os atravessar
a ambos pela noção de beatitude (securitas et tranquílitas), cujo
significado se bifurca assim em dois raios: o moral e o político. É
moral o imperativo que põe o indivíduo em busca do conhecimen-
to da sua verdadeira natureza e, por essa via, o levará em busca do
conhecimento da natureza na sua totalidade, aproximando-o sem-
pre mais do impossível encontro com todos os seres (ou com o Ser).
Desse ponto de vista, não há nações e o cosmopolitismo estóico re-
cobre plena justificação. Mas a neutralização dos ataques vindos de
outros homens, ou seja, do ambiente exterior a cada indivíduo, é
política (cf. mais adiante, nota 5).
2. A expressão directio Dei é freqüente na obra de Espinosa e
o seu significado próprio, no âmbito do sistema, coincide com o
que se explicita neste parágrafo. Assim sendo, julgamos estarem re-
movidas as hipóteses de ambigüidade que pudessem advir do fato
de a traduzirmos por "governo de Deus", expressão com evidentes
ressonâncias antropomórficas mas que, além de parecer mais ade-
quada em português, sintoniza com os termos "lei" e "decreto" que
lhe vêm justapostos.
3. Esta parte constituirá o objeto específico do capítulo IV. De
notar, desde já, que todo o trabalho teórico aqui operado consiste
num envolvimento de enunciados, quer religiosos, quer científicos,
na teia do imanentismo. O processo é, aliás, característico do estilo
de Espinosa, que tenta sempre levar opiniões comumente aceitas a
exprimir verdades comumente inaceitáveis, sem que o leitor se aper-
ceba de qualquer momento de ruptura. Não foi por acaso que o
TT-P pôde ser lido tantas vezes e por tanto tempo sem que se sus-
peitasse da carga metafísica que ele transporta.
4. A recusa em reconhecer os hebreus como povo eleito pro-
cessa-se por uma via a que poderemos chamar irônica: de fato, é
porque tudo o que acontece é fruto de especial eleição ou vocação
divina, quer dizer, ex Dei aeterna directione et decreto, que não faz
sentido falar em povo eleito. A menos que por essa eleição se en-
tenda o conjunto de circunstâncias que determinaram a constituição
da comunidade e do Estado hebraicos. Por detrás do argumento
está, obviamente, a particular e polêmica concepção que Espinosa
tem do problema da vontade e da liberdade. Entre muitas outras pas-
sagens onde a questão é tratada, poderemos citar a proposição 32
da I Parte da Ética: "a vontade não pode ser considerada causa li-
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍ11CO 327

vre, mas apenas causa necessária". Isso se demonstra a partir da ob-


servação de que "a vontade não é senão um determinado modo do
pensamento, tal como o entendimento, e, nessa medida, nenhuma
volição pode existir nem estar determinada a produzir um efeito se
não estiver determinada por uma outra causa, e esta, por sua vez,
por uma outra, e assim sucessivamente até ao infinito". Daí se se-
gue, conforme Espinosa acrescenta no corolário 1 da mesma pro-
posição, que "Deus não produz os seus efeitos pela liberdade da
sua vontade", mas sim pela necessidade do seu entendimento, o
que faz com que elas não possam ser diferentes daquilo que são.
5. A separação entre os dois níveis a que aludimos na nota 1
aparece aqui com toda a clareza e reforça a interpretação da políti-
ca tal como ficou apresentada na introdução. Efetivamente, são três
os objetivos principais a que se resume "tudo o que podemos ho-
nestamente desejar": conhecer as coisas pelas suas causas primei-
ras; dominar as paixões, isto é, adquirir o hábito da virtude; viver
em segurança e manter o seu próprio corpo. Os meios para alcan-
çar os dois primeiros estão contidos na própria natureza humana
enquanto racional e constituem, por isso, um "dom universal" à
mercê de cada indivíduo que se disponha a perseguir tais objetivos.
Mas os meios para obter a segurança não dependem só de cada
um, dependem de tudo o que o envolve, dos outros homens e dos
outros seres. É, portanto, um objetivo radicalmente diferente dos
anteriores, que só se alcança mediante a conjugação de forças, quer
dizer, mediante a correção do movimento que coloca cada um con-
tra o outro. E é isso que a razão recomenda. Porque a razão nunca
está em contradição com a natureza, exigindo que o indivíduo de-
seje o que lhe é realmente útil, e "nada há de mais útil ao homem
que o homem" (Ética, IV Parte, prop. 18, escólio). Os homens,
acrescenta Espinosa, "não podem desejar nada que seja melhor
para conservar o seu ser que estarem todos de acordo em tudo, de
modo que as mentes e os corpos de todos componham como que
uma só mente e um só corpo ( ... ). Daí que os homens que se go-
vernam pela razão, quer dizer, os homens que buscam sob a orien-
tação da razão o que lhes é útil, não desejam nada para si que não
desejem para os outros ( ... )". Mas é também isso o que a experiên-
cia ensina, diz o texto que vimos comentando. Na verdade, o ensi-
namento da razão é, a esse respeito, de muito pouca eficácia, uma
vez que o homem não tem "o poder absoluto de adaptar em função
do que lhe é útil as coisas exteriores" (Ética, IV Parte, apêndice,
cap. 32), a começar pela vontade dos outros, nem sequer pode ai-
328 ESPJNOSA

guma vez deixar de estar ele mesmo submetido às paixões (idem,


idem, prop. 4, corolário), como Espinosa argumenta explicitamente
contra os estóicos e contra Descartes (idem, V Parte, prefácio). É
por isso que as sociedades possuem vários graus de segurança e es-
tabilidade, podendo, no limite mínimo, subsistir por força apenas
do acaso.
6. É flagrante a coincidência entre esta passagem e a doutrina
exposta no cap. XXV do Príncipe, em que Maquiavel trata desse
conceito-chave de toda a sua concepção política que é a "fortuna",
por contraste com a "virtude". A virtude traduz o termo latino vir-
tus, ou seja, energia moral e militar a que se acrescenta, no contex-
to moderno, a eficiência e habilidade estratégica; a fortuna, por seu
turno, traduz o conjunto de elementos imponderáveis que podem
condicionar e limitar a ação do homem por serem estranhos à sua
vontade. Maquiavel compara-a, no citado capítulo, a um rio torren-
cial que, quando se enfurece, inunda os campos, derruba árvores e
edifícios, gera, em suma, o pânico geral. Todavia, acrescenta o au-
tor, os homens podem, passada a borrasca, tomar precauções e
construir diques para que o desastre não se repita. Com a fortuna
passa-se o mesmo: "ela exibe o seu poder quando não há uma vir-
tude organizada e preparada para lhe fazer face (. .. )".
7. Hobbes dedica a esse mesmo assunto uma parte do cap.
XXXV do Leviatban, concluindo também, contrariamente aos "es-
critos dos clérigos e especialmente os sermões e tratados de devo-
ção", onde o reino de Deus é amiúde interpretado como a felicida-
de eterna, que tal expressão significa na Escritura um "reino propria-
mente dito, constituído de modo muito particular pelos votos do
povo de Israel, através dos quais este escolheu Deus para seu rei
mediante o pacto celebrado com ele, quando lhe prometeu a posse
da terra de Canaã". Muito raramente, acrescenta Hobbes, "e só no
Novo Testamento", o reino de Deus aparece como uma metáfora
(pp. 396-97). Foi porque os hebreus romperam aquele pacto pela
eleição de Saul (cf. nota 9 ao cap. I) que Cristo veio para redimir a
falta e preparar os homens para o momento em que ele virá no fim
dos tempos, a tomar posse do reino de seu Pai. Até lá, nào há por-
tanto razão para desobedecer aos soberanos instituídos. Como facil-
mente se verificará, o contexto em que Espinosa retoma a questão
e a doutrina é totalmente outro.
8. A localização da alma no coração não constitui especificida-
de hebraica, como parece pretender Espinosa. Sem ser necessário
recorrermos a informações mais recentes da etnologia, bastará !em-
TRATADO 1EOLÓGICO-POÚ11CO 329

brar o pensamento grego, onde a "topologia do espiritual" é, como


se sabe, bastante variável. Platão, por exemplo, apesar de insistir
globalmente na separação radical entre a alma e o corpo, escre1·.~
também (Timeu, 45, A; 70 A-B) que a razão está somaticamente f>i-
tuada na cabeça, de onde reina sobre o resto da alma e do corpo
como se fosse de uma acrópole e controla e regula, com a ajuda da
guarnição militar sediada na região cardíaca, a desordenada ágora
dos desejos e apetites. Da mesma analogia parece derivar a caracte-
rização psicogeográfica dos povos que é apresentada na República
(435, E, s.): gregos - cabeça/razão; citas e trácios - coração/cora-
gem; egípcios e fenícios - ventre/luxúria. Em Aristóteles, que rejei-
ta a separação entre a alma e o corpo e define aquela como o con-
junto de funções que fazem de um corpo um organismo vivo, o co-
ração surge-nos como o "centro da vida" e a "acrópole do corpo"
(De partibus animalium, 670, a, 22-26), verdadeiro princípio único
(cf. Vegetti, 1981, pp. 146-8). Este mesmo "cardiocentrismo" aristo-
télico será retomado por S. Tomás, que dele retira uma analogia
para fundamentar a sua doutrina da "naturalidade" do governo mo-
nárquico (cf. De regno, trad. franc. Paris, 1946, p. 38).
9. O argumento aqui retirado de ]ó contra a pretensa eleição
dos judeus tinha sido vulgarizado na primeira metade do século
XVII em torno da questão dos mandamentos noaquitas, os sete pre-
ceitos que Deus teria dado a Noé e aos seus filhos após o dilúvio,
através dos quais se poderiam salvar, de acordo com o Ta/mude, os
não-judeus. John Selden, autor do De jure naturali et Gentium jux-
ta Disciplinam Ebreorum (Londres, 1640), menciona estes manda-
mentos citando autores judeus, entre eles Maimônides. Uriel da
Costa, por seu turno, refere-os no contexto polêmico do seu Exem-
plar Humanae Vitae, associando-os nitidamente ã "religião natural",
que conteria tudo quanto há de bom em qualquer religião positiva
(cf. ed. P. Gomes, 1982, pp. 233-6; sobre Uriel e Selden, ver H. Sa-
lomon, 1979, e Aurélio, 1985).
10. A insistência na doutrina de São Paulo é sintomática de um
certo paralelismo de situações entre o apóstolo e Espinosa, ambos
judeus e ambos heterodoxos ante a tradição na medida em que
desligam a essência da palavra de Deus do Estado de Israel e, como
tal, subtraem ã "nação" a exclusividade da eleição. Note-se, todavia,
que, enquanto o catolicismo reivindica as teses paulinas para delas
concluir o estatuto de "nova Israel" atribuído ã Igreja, o TT-P, lon-
ge de pretender substituir uma igreja por outra, invoca apenas a
universal possibilidade do conhecimento e amor de Deus, indepen-
dentemente de qualquer rito, sinal ou seita.
330 ESPINOSA

11. Uma vez mais, a "nova aliança" aparece subtraída a qual-


quer igreja em particular, fosse ela a Igreja Católica, e, por conse-
guinte, em ruptura com a teologia e a exegese cristã, que vêem no
Antigo Testamento um prenúncio do Novo. Os termos em que apa-
rece aqui a aliança são, de resto, os mesmos que traduzem o amor
intellectualis Dei da V Parte da Ética.
12. Há duas ordens de problemas que se interligam na questão
aqui aludida: uma é a dos elementos integradores da nação judaica;
outra é a das hipóteses de essa nação voltar a constituir-se em Esta-
do. A primeira deriva da constatação de que as nações não são pro-
duto da natureza, havendo, portanto, que procurar-lhe uma genea-
logia de forma que explique cabalmente a sua força e dinâmica. O
tratamento que Espinosa faz deste tema é, porventura, dos mais su-
tis e pode considerar-se pioneiro na análise das ideologias e da ca-
pacidade mobilizadora da esfera do simbólico. Por um lado, a uni-
dade hebraica é, de fato, um fruto do "inimigo externo": o ódio
generalizado que os judeus granjearam entre os povos cristãos
transforma-se em agente da identidade nacional, através de um me-
canismo em tudo similar ao que, pelo conatus ou reação ao exte-
rior, garante a identidade física e psicológica individual. Como dirá
mais tarde D. Luís da Cunha, "o procedimento da Inquisição, em lu-
gar de extirpar o judaísmo o multiplica. E Frei Domingos de São To-
más, deputado do Santo Ofício, costumava dizer que assim como
na Calcetaria havia uma casa onde se fazia moeda, no Rossio havia
outra em que se faziam judeus" (cit. por A.]. Saraiva, 1985, p. 11).
É por isso que não é totalmente improcedente a opinião de Polia-
kov quando escreve que "poucos homens na história das idéias
contribuíram tanto como Espinosa para legitimar o anti-semitismo"
(cit. in G. Brykman, 1972, p. 64), acusação que outros pensadores
judeus contemporâneos, tais como Levinas, têm reiterado. Mas, do
ponto de vista em que nos situamos aqui, o mais importante é su-
blinhar como, à pressão exterior, Espinosa acrescenta um elemento
simbólico, a circuncisão, que é como que a expressão e, ao mesmo
tempo, a condição da identidade judaica.
Quanto ao problema de os hebreus virem a refazer o seu Esta-
do, trata-se de matéria sobre a qual muito se especula ao tempo da
elaboração do TT-P. O próprio Oldenburg interroga explicitamente
Espinosa a esse respeito (carta XXXIII), fazendo-se eco de escritos
que circulam entre os judeus (por exemplo, a Esperança de Israel,
de Menasseh ben Israel) e de doutrinas milenaristas que davaljll para
breve a conversão universal e a reconciliação dos homens. besco-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ17CO 331
nhece-se qualquer carta em que o autor tenha respondido à pergun-
ta de Oldenburg. O que se pode assegurar, pela leitura deste capítu-
lo do TT-P, é que a hipótese nào lhe repugna mas é entendida à
margem de quaisquer considerações apocalípticas e como mera pos-
sibilidade histórica. Ou seja, há uma naçào fortemente integrada,
pode haver um Estado se e quando as circunstâncias o permitirem.
13. O contraste que o autor estabelece entre a assimilação dos
ex-judeus em Espanha e a sua segregação em Portugal só pode im-
putar-se a deficiente informação sobre a complexidade do processo
anti-semita em um e em outro país. Todavia, apesar dessa falta de
precisão de todo em todo marginal à tese que está a ser demonstra-
da e que certeiramente imputa a continuação do judaísmo às condi-
ções sociais que lhe são criadas (Sartre virá depois dizer que "o judeu
está em situação de judeu porque vive no seio de uma comunidade
que o tem como judeu"), deve referir-se que Espinosa define aqui
as duas atitudes possíveis ante a nação hebraica. O equívoco pare-
ce estar em atribuir o quase total desaparecimento da questão judai-
ca na Espanha de meados do século XVI a uma suposta ausência de
legislação sobre "limpeza de sangue". Na realidade, esta existe ali
desde 1449, data do édito de Toledo, sendo depois secundada, em
1478, pelo tribunal da Inquisição de Castela, que vigiava a autenti-
cidade das conversões de judeus ao catolicismo. E após a expulsão
de todos os que não quisessem converter-se, determina em 1492
pelos Reis Católicos, o estatuto de inferioridade dos Cristãos-Novos
manteve-se. As exceções - e houve muitas - ficaram-se a dever a
atividades comerciais bem-sucedidas por parte dos judeus que con-
seguiram assim ingressar na nobreza, passando então a gozar de to-
dos os privilégios e abandonando até o comércio.
Em Portugal, pelo contrário, a política de D. Manuel I para
com os judeus que aqui se fixaram, exilados de Espanha, é toda ela
apontada para uma assimilação que passaria pela igualdade de opor-
tunidades sociais, não obstante ser de extrema severidade em maté-
ria religiosa, forçando-os à conversão. Segundo A. ]. Saraiva 0985,
p. 38) esta política teve como resultado estar a comunidade hebrai-
ca portuguesa em via de total integração quando, em 1536, "o esta-
belecimento da Inquisição veio interromper este processo". Como
observa o mesmo A.]. Saraiva (idem, p. 115) o próprio Regimento
da Inquisição é uma das vias indiretas para introduzir em Portugal a
exigência da "limpeza de sangue" há muito aplicada em Espanha,
quando "dispõe no seu livro III que o filho ou neto de condenado
pelo Santo Ofício não possa ser juiz, meirinho, alcaide, notário, es-
332 ESPINOSA

crivão, procurador, feitor, almoxarife, secretário, chanceler, tesourei-


ro, médico, boticário, sangrador, contador de rendas reais, nem ter
nenhum ofício público, nem usar nenhuma insígnia de nenhuma
dignidade civil ou eclesiástica".
Importa, finalmente, notar que a tese que dá a Inquisição e
outros instrumentos políticos de pressão como "fábricas de judeus",
sem as quais eles caminhariam para a integração, levada a formula-
ções extremas como é a de Espinosa e a de tantos historiadores ain-
da hoje, tem sido alvo de contestação por parte de muitos estudio-
sos para quem o problema se reveste de outra complexidade, quer
doutrinária, quer até mesmo histórica. (Ver a opinião de Gebhardt
sobre o marranismo, transcrita nos "Cahiers Spinoza", nº 3, pp. 135-
41, ou as teses de 1. S. Révah, op. cit.).

Capítulo IV

1. Um dos processos retóricos mais freqüentes em Espinosa


consiste em partir de premissas comumente aceitas e fazê-las infle-
tir, quase sem se dar por isso, até o interior da sua metafísica. Este é
mais um exemplo. Na verdade, embora estando fora de causa que
o homem é parte da natureza enquanto esta se concebe como um
conjunto de elementos coexistentes na "ordem extensiva", já o mes-
mo não se dirá quando se passa a entendê-la como uma potência
de que os vários entes seriam graus ou "partes intensivas''.
2. O problema da aceitação das leis ou da legitimação destas
é, por assim dizer, intrínseco a toda filosofia política. Mas o que Es-
pinosa aqui introduz a esse respeito é relativamente novo, pois tal-
vez só em Maquiavel possamos encontrar semelhante distinção en-
tre a verdadeira natureza e finalidade das leis, ou seja, a segurança
coletiva, percebida apenas por alguns, e as justificações a que terá
de recorrer a "arte" do legislador para persuadir a maioria. É, além
disso, notório o contexto original em que Espinosa aborda a ques-
tão, mesmo relativamente a Maquiavel. Este, como se sabe, limita-
se a observar que todos os grandes chefes têm de recorrer à religião
para serem aceitos (Discorsi, livro I, cap. XI). Inclusive Rousseau,
que cita e comenta esta passagem (Du contrat social, livro II, cap.
VII) no quadro da soberania popular, não vai além de uma justifica-
ção da instrumentalização do sagrado como forma de impor "o jugo
da felicidade pública". O carisma de Moisés ou de Maomé, acrescen-
ta Rousseau, não foi, por conseguinte, uma "impostura, mas uma in-
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 333
tuição extraordinária que consistiu em pôr na boca de Deus as de-
cisões que eles próprios julgaram convenientes para a coletividade
e que esta não poderia perceber. Em Espinosa, pelo contrário, não
se trata de ocultar o legislador; trata-se de juntar à finalidade essen-
cial da lei diversos fins que a tomem operativa por serem compreen-
didos por todos. A influência de Maquiavel, aqui, termina na verifi-
cação de que o comum dos homens nào capta a racionalidade da
lei. A solução, porém, não passa por metamorfosear as leis em von-
tade dos deuses, passa por evidenciar outro tipo de bens que delas
decorrem e que sejam mobilizadores dos indivíduos em geral.
3. À concepção tradicional da Justiça entendida como verda-
deira virtude interior e não como simples execução das normas, Es-
pinosa junta o caráter de "autonomia" individual que será caracte-
rístico do pensamenfo moderno: em rigor, o justo só obedece a si
próprio, porquanto conhece a verdadeira natureza das leis e as van-
tagens que daí colhe, decidindo-se a cumpri-las em conformidade
com o seu próprio conhecimento.
4. A definição do soberano bem (summum bonum) aparece
em quase todas as obras de Espinosa e sempre conotado com o co-
nhecimento de Deus sive Natura. O que é importante verificar nesta
passagem é a forma como o conceito aqui aparece a distinguir dois
campos irredutíveis, o da lei divina e o das leis humanas, os quais
estão ainda misturados em outros livros, por exemplo no Tratado da
Reforma do Entendimento (§§ 9-14), quando definem o "bem supre-
mo". Decididamente, a política vai sendo, ao longo da obra do au-
tor, cada vez mais apartada da "comunidade de sábios" idealizada a
princípio, ao mesmo tempo que adquire contornos de realismo.
5. As noções de implicação e expressão constituem pontos ne-
vrálgicos da gnoseologia e metafísica espinosistas, não devendo,
por conseguinte, perder-se de vista a especificidade que elas assu-
mem no sistema e que parece sonegada nesta exposição. De fato,
as coisas implicam e exprimem Deus não apenas porque Deus en-
tra forçosamente na sua explicação, mas porque elas não são mais
que "explicação" e "expressão" de Deus. Sobre o assunto, além do
que ficou dito na nossa introdução, veja-se o livro de G. Deleuze
(1968), que apresenta uma das mais consistentes leituras da obra de
Espinosa à luz precisamente da idéia de expressão.
6. Aparentemente, este parágrafo assinalaria um adiamento da
questão em análise e a conseqüente passagem a outro assunto. Na
realidade, o que se passa é um pouco diferente. Por tradição, é da
essência do homem definida pela racionalidade que se tentam de-
334 ESPINOSA

<luzir os valores a que deve obedecer o seu comportamento. Espi-


nosa, por um lado, entende essa racionalidade como expressão do
entendimento infinito e, por isso, conclui que as regras de compor-
tamento por ela impostas são os verdadeiros mandamentos divinos.
Por outro lado, ao mesmo tempo que faz perguntas cuja resposta só
poderá encontrar-se na Ética (V Parte), continua a desenvolver o te-
ma da "lei divina em geral", chegando a conclusões da maior im-
portância a esse mesmo respeito. Assim, esta lei divina, por ser uni-
versal, não entra em consideração com as circunstâncias concretas
em que se fundam e mantêm as sociedades humanas. Daí que os
relatos históricos e as cerimônias, elementos co-naturais do político,
lhe sejam indiferentes. Daí também que a razão humana não possa
conceber Deus como um legislador. Daí, em suma, a tese funda-
mental do TT-P, que estabelece uma fratura entre ciência e obe-
diência. Para a primeira, a história ou os ritos são dispensáveis; para
a segunda, como já reconhecia Maquiavel, revestem-se da maior
importância.
7. Uma vez mais, o especulativo surge aqui como sinônimo de
teórico e desinteressado, para marcar a diferença entre o sumo bem
e os bens avulsos: ao contrário do que acontece com aquele, que
tem por objeto algo de "eterno e imperecível", estes geram sempre
"inveja, temor, ódio, numa palavra, paixão", na medida em que têm
por objeto coisas perecíveis, conforme referia já o TRE (§ 9).
8. A identificação entre o entendimento e a vontade, tanto em
Deus como no homem, são uma constante no pensamento de Espi-
nosa. Até porque (Ética, II, prop. 48, esc.) "não há no espírito nenhu-
ma faculdade absoluta de compreender, desejar, amar, etc. Donde
se segue que essas faculdades e outras semelhantes, ou são absolu-
tamente fictícias, ou são apenas entidades metafísicas, quer dizer,
universais que nós formamos habitualmente a partir das coisas par-
ticulares". Pretender, como Descartes, que as próprias verdades me-
tafísicas estão fundadas na decisão da vontade de Deus é, portanto,
algo que não faz nenhum sentido para Espinosa.
9. A mesma figura do Cristo-filósofo no sentido espinosista, a
que já se aludia no cap. I, é aqui explicitada no contexto da lei di-
vina e dos mandamentos universais da natureza humana, em con-
traste com os ensinamentos de Moisés e dos profetas, que estavam
adaptados às respectivas situações e mentalidades. Mais do que um
filósofo, Cristo é, pois, a própria filosofia, quer dizer, o conjunto de
verdades que podem ser deduzidas dos princípios universais do co-
nhecimento humano. Como tal, será sempre impossível restringir
TRATADO TEOLÓGICO-POÚ11CO 335

este Cristo espinosista a uma determinada religião positiva, porquan-


to as religiões se situam, para Espinosa, no plano da fé e da obe-
diência, enquanto o Cristo aparece para encarnar a ciência.
10. Conforme observa A. Droetto (Boscherini-Droetto, 1984, p.
121), em nota a esta mesma passagem, a tradução proposta por Es-
pinosa difere profundamente daquela da Vulgata. Assim, onde aque-
le escreve fons vitae intellectus sui domini, et supplicium stultorum
est stultitia, lê-se na versão dita de S. Jerônimo: fons vitae eruditio
possidentis, doctrina stultorum fatuitas. Além de preferir o termo
"intelecto" a uma incaracterística erudição, Espinosa apresenta a sa-
bedoria como uma virtude cujo prêmio se esgota nela mesma e cuja
ausência é, já de si, um castigo.
11. A edição do texto do Novo Testamento em siríaco, acom-
panhado da respectiva tradução latina e da versão em grego dos Se-
tenta, foi publicada, em 1569, por E. Tremellius, no mesmo ano em
que se inicia a publicação da Poliglota de Anvers. Já em 1555 surgi-
ra uma outra edição do texto siríaco, da responsabilidade de ]. A.
Widmanstad, a qual será depois incluída nas poliglotas de Paris
(1629-1645) e Londres (1654-1657). A preferência de Espinosa pela
versão siríaca, sempre que se trata do Novo Testamento, não se deve
apenas ao fato de não dominar suficientemente o grego. Como con-
fessa numa nota ao capítulo XI (p. 267), o autor suspeita até que
não está perante uma tradução, dado que o siríaco era a língua ma-
terna dos apóstolos.
12. O que é notável neste final de capítulo é a forma como se
usa uma expressão que, colocada em contexto não-espinosista, exi-
giria uma leitura que aqui se torna de todo em todo impossível.
Mais atrás, ficara dito que "Deus age e dirige todas as coisas unica-
mente pela necessidade da sua natureza e perfeição" e que "os seus
decretos e as suas volições são verdades eternas". Afastou-se, por-
tanto, a hipótese de um Deus-legislador cuja atitude dependeria das
ações dos homens, castigando ou premiando conforme os casos.
Depois, procurou-se extrair isto mesmo da Escritura. Para concluir,
afirma-se que o mal arrasta o mal e o bem atrai o bem, não como
penalização ou prêmio, mas segundo as leis da natureza: os vícios
implicados na ignorância são castigo da ignorância, as virtudes im-
plícitas na sabedoria são o prêmio da mesma sabedoria. Também
aqui, há imanência, como se pode ver até pela alusão às sementes,
metáfora privilegiada da tradição expressionista. G. Deleuse, a esse
respeito, escreve o seguinte: "o aparelho metafórico da expressão é
o espelho e o gérmen. A expressão como ratio essendi reflete-se no
336 ESPINOSA

espelho como ratio cognoscendi e reproduz-se no gérmen como


ratio fiendi. Mas note-se como o espelho parece absorver não só o
ser que nele se reflete, mas também o que contempla a imagem. O
gérmen ou o ramo parece absorver tanto a árvore de onde ele pro-
vém como aquela que dele provém".

Capítulo V

1. O inatismo a que se refere esta passagem não deve confun-


dir-se com o de Platão ou Descartes, uma vez que a mente humana
não representa para Espinosa nenhuma entidade ou faculdade au-
tônoma das idéias. Se a lei divina se pode dizer como que estando
aí inscrita, é porque a atividade racional do homem é a própria tra-
dução e expressão dessa lei.
2. Tanto no capítulo III como aqui, Espinosa utiliza o adjetivo
temporaneus para designar o caráter contingente da eleição dos he-
breus ou das cerimônias por estes consideradas essenciais. Dunin-
Borkowski (cit. in Boscherini-Droetto, p. 138) faz derivar este adje-
tivo da língua espanhola e não do baixo-latim, vendo aí um vestígio
da língua em que teria sido escrita a famosa Apologia. É, porém,
muito difícil assegurar a esse respeito algo de inquestionável, dado
que o mesmo adjetivo, com mais ou menos uso, passou para várias
das línguas latinas, em particular o italiano temporaneo e o portu-
guês "temporão". O motivo por que lhe preferimos o termo "contin-
gente" deve-se apenas ao seu fraco e localizado uso na linguagem
de hoje em dia.
3. Coerentemente com a distinção das leis em função da fina-
lidade para que estão apontadas, Espinosa reduz todo o articulado
ritual e moral do Pentateuco a um código civil do povo judeu. A
partir daqui, sublinha a distinção já apontada entre Moisés e os pro-
fetas, por um lado, e Moisés e Cristo, por outro. Diferentemente da-
queles, Moisés dá ordens e não conselhos morais; diferentemente
de Cristo, procura fundar e manter um Estado e não ensinar a lei
universal onde reside a felicidade de cada um. A política não é a
moralidade, tal como a moral adaptada à compreensão dos profetas
e às várias situações dos hebreus não é a moral universal que Cris-
to ensinou e que se pode deduzir da razão.
4. A conclusão a que chega Espinosa, apesar de lógica se con-
siderarmos que todo o cerimonial religiosos constituía um código
civil que se tornou caduco uma vez desaparecido o Estado, poderá
TRATADO TEOLÓGICO-POÚTICO 3.37
parecer paradoxal quando confrontada com a realidade histórica. É,
de fato, na diáspora que os ritos e preceitos mosaicos adquirem um
valor interpretado por vezes até ao paroxismo, o que dá a idéia de
que não estão dependentes da existência de instituições políticas.
Há, pois, que ter aqui em conta dois planos distintos: um é o plano
estritamente jurídico, ou seja, o quadro de obrigações e penas que
constitui a lei no Estado hebreu e que tende a desaparecer a partir
do momento em que o povo fica sujeito a autoridades estrangeiras;
outro é o plano simbólico subjacente a esse quadro jurídico, no qual
as elites irão fundamentar o discurso "nacionalista" com que procu-
ram evitar a desagregação. Enquanto durou o Estado, este último
funcionou como imaginário legitimador da lei, fundindo a religião e
o direito nesse todo coerente que foi a teocracia. Uma vez perdida
a independência, já não há, como Espinosa observa, razão para o
cumprimento dos ritos: as penalizações que as autoridades religio-
sas aplicam sobre os membros da comunidade, ainda em pleno sé-
culo XVII holandês, tornam-se, efetivamente, suspeitas de usurpa-
ção do direito aos olhos de muitos pensadores da altura. A verdade,
porém, é que as "gentes da nação", mercê desse potencial simbóli-
co que as faz viver segregadas dos outros e, nessa medida, sobrevi-
ver integradas, regem-se por normas que pouco têm a ver com essa
racionalidade invocada por Espinosa e que são, aliás, coerentes
com a genealogia experiencial ou passional dos Estados por ele
mesmo verificada. Daí que "a animosidade contra os cristãos" da
parte dos fariseus tenha por efeito a conservação pelos séculos fora
da maior parte da legislação de um Estado há muito desaparecido.
5. Notar-se-á que as finalidades do agrupamento social são al-
ternadamente evidenciadas por Espinosa conforme os contextos em
que o tema é abordado: umas vezes, é a segurança individual e co-
letiva; outras, a maior comodidade que propicia, ou seja, a econo-
mia de esforços na aquisição de bens; outras, como acontecerá no
capítulo XX, a garantia da liberdade. Nestes três objetivos se resu-
me, afinal, a razão de ser assumida pelos Estados modernos. Quan-
to à "perfeição da natureza humana" e à "beatitude", elas são, evi-
dentemente, facilitadas pela existência de uma sociedade organiza-
da, mas não constituem uma sua finalidade.
6. Embora não obedecendo a uma demonstração minuciosa,
como acontece no cap. XVI, a potestas, sob a forma explícita de im-
perium et vis, é aqui declarada elemento imprescindível à organiza-
ção social, tornando, portanto, duvidosas as interpretações do espi-
nosismo que o apresentam para patrocinar a abolição do Estado ou
338 ESPINOSA

um poder (potentia) sem mediação. De tal maneira que essa situa-


ção poderá mesmo ser considerada estranha ã "comum natureza
humana".
7. A leitura do Príncipe está patente ao longo de toda esta pas-
sagem e reflete-se aqui na definição do perfil individual do sobera-
no. É precisamente mediante essa leitura que a arte política vai se
converter numa transformação da paixão do medo em paixão da
esperança.
8. Uma vez mais, os vestígios de Maquiavel são nítidos nesta
análise que poderíamos dizer dos "principados", em particular no
que se refere às dificuldades que tem um chefe para se impor numa
sociedade que viveu muito tempo como República.
9. Sobre o conceito renascentista de "virtude", cf. o que ficou
dito na nota 6 ao cap. III.
10. A experiência a que se recorre na Escritura são, evidente-
mente, as histórias e os dados suscetíveis de "falarem" à imaginação
do vulgo. Como se poderá verificar, embora sendo a matéria discu-
tida de natureza teológica, a argumentação pela qual ela se separa
da racionalidade científica é igualmente aplicável à questão política.
11. A "salvação dos ignorantes'', numa doutrina como a de Es-
pinosa, em que o homem só se liberta e atinge a beatitude através
do conhecimento adequado, surge como algo de paradoxal, dando
azo a toda uma diversidade de interpretações, a mais exaustiva das
quais é, a nosso ver, a de A. Matheron 0971). Sem pretendermos
solucionar um problema que é, manifestamente, intrínseco ã filoso-
fia de Espinosa e ao qual fizemos demorada alusão nas páginas de
introdução, é de notar que a obediência incutida pelas narrativas
bíblicas leva o vulgo à prática da justiça e da caridade, ainda que
não permita a realização cabal que o homem só encontra mediante
o conhecimento adequado. Os seus efeitos, por conseguinte, são já
positivos, pelo que é necessário ultrapassarmos o binômio salva-
ção-condenação, liberdade-escravidão, e entendermos essa proble-
mática numa escala progressiva de "emendas" que vai da total sujei-
ção às "paixões tristes" até ao ideal da completa liberdade do en-
tendimento. Como vimos, toda a vida do homem, enquanto modo
finito, decorre aquém desse ideal, havendo sempre um resíduo
maior ou menor de passionalidade. É, no entanto, impossível colo-
car no mesmo pé as paixões que afastam o homem da prática da-
quilo que a razão aconselha e aquelas que daí o aproximam, como
seja o conhecimento inadequado de Deus que fornecem as narrati-
vas bíblicas.
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 339

12. O livro de R. Joseph ben Shem fora publicado em 1556 e re-


sumia-se a um breve escrito de filosofia religiosa inspirada em Aristó-
teles (cf. Dunin-Borkowski, cit. in Boscherini-Droetto, 1984, p. 149).

Capítulo VI

1. Instado, anos mais tarde, por H. Oldenburg a atenuar as


passagens mais "chocantes" do TT-P, designadamente as "ambigüi-
dades" sobre Deus e a Natureza, o valor dos milagres e a pessoa de
Cristo, Espinosa, a quem os rumores que a seu respeito circulam im-
pedirão de publicar a Ética, mantém em plena borrasca a sua idéia
inicial de que Deus é causa imanente e não transitiva e de que os
milagres equivalem a ignorância e superstição (cf. as cartas LXVIII,
LXXI, LXXIII, LXXIV, LXXV, LXXVII, LXXVIII e LXXIX, todas elas da-
tadas de novembro de 1675 a fevereiro de 1676). Se se quiser me-
dir todo o alcance polêmico deste capítulo, poder-se-á compará-lo
com o que sobre o mesmo assunto escreve Hobbes no cap. XXXVII
do Leviathan, igualmente intitulado "Dos milagres": tudo ou quase
tudo aqui é ainda repetição do que o vulgo e os teólogos imaginam
sobre os "prodígios" que Deus faz para secundar as suas decisões.
A única preocupação de Hobbes, aliás, é de natureza política e con-
siste em garantir que seja o "lugar-tenente de Deus" ou soberano
quem define os milagres que devem ser publicamente reconheci-
dos pela comunidade.
2. Alguns dos elementos da metafísica espinosista referidos
nesta passagem já por mais de uma vez se nos depararam, em par-
ticular no cap. IV. O seu tratamento exaustivo será, como se sabe, o
objeto da Ética. É, todavia, evidente que, à luz da sustentada iden-
tificação da potência da natureza com a potência e essência divinas,
deixa de fazer qualquer sentido a questão dos milagres, que pressu-
põe sempre a assimetria entre duas potências numericamente dis-
tintas. O que há são fatos explicados e fatos cuja explicação é igno-
rada, todos eles expressão da mesma potência infinita. O equívoco
da superstição consiste, portanto, em atribuir os fatos que não con-
segue explicar a uma potência diferente daquela que produz os fa-
tos que ela julga explicar.
3. Apesar de formalmente repetir um enunciado caro a toda a
tradição filosófico-religiosa segundo o qual "todas as criaturas can-
tam as glórias do Criador", é óbvio que Espinosa está dizendo algo
totalmente diferente, porquanto na sua perspectiva o conhecimen-
340 ESPINOSA

to das coisas é já conhecimento da essência de Deus "modificada"


e não reconhecimento indireto através da perfeição das suas obras.
A tese da imanência e a conseqüente recusa de um Criador trans-
cendente é o único fio condutor de todo o raciocínio levado a cabo
no TT-P.
4. A distinção entre opus contra naturam e opus supra natu-
ram aparece em Santo Alberto Magno e em São Tomás. Espinosa
refere-a ainda nos Pensamentos metafísicos (II Parte, cap. XII), para
concluir então que, mesmo havendo milagres, a ordem da natureza
não se altera: "a maior parte dentre os mais doutos teólogos concor-
da que Deus não faz nada contra a natureza, ou seja, tal como eu
explico, que Deus para agir possui muitas leis que não comunicou
ao entendimento humano e que, se estas lhe tivessem sido comuni-
cadas, pareceriam tão naturais como as outras". Das contradições
que estavam implícitas nesta concepção, fala o presente capítulo do
Tratado.
5. O círculo argumentativo fecha-se aqui em ironia, pondo as
últimas conseqüências duma premissa em contradição com ela mes-
ma: invocado em abono da potência de Deus, o milagre vem reve-
lar-se um pressuposto de ateísmo ...
6. À semelhança do que acontece com o milagre, a própria no-
ção de providência divina perde sentido num contexto imanentista.
Em contrapartida, ela apresenta-se sempre e necessariamente pro-
blemática no âmbito da teologia, dada a impossibilidade de a distin-
guir e ao mesmo tempo conciliar racionalmente com a ordem fixa da
natureza. Espinosa, como se pode ler um pouco mais ã frente, iden-
tifica uma e outra coisa.
7. Cf. 1 Epístola aos Coríntios, cap. IX, 20.
8. Todo este capítulo é atravessado por uma constante oscila-
ção do ponto de vista metodológico que o autor virá no fim reco-
nhecer (cf. p. 140). De fato, e contrariamente ã recomendação que
impediria que se extraísse da Escritura algo que não resulte com
clareza dos seus próprios enunciados, é a filosofia que emerge aqui
para protagonizar a demonstração, pedindo uma vez por outra o
abono escriturístico. Espinosa justifica-se alegando que a questão
do milagre é estritamente filosófica e deve, por isso, ser resolvida
com base na "luz natural". O que é verdade, mas na condição, con-
forme argumenta S. Zac. 0965, p. 207), "de nos colocarmos do pon-
to de vista da sua própria filosofia e da sua própria concepção do
milagre. No entanto, para os seus leitores cristãos, o milagre é uma
questão teológica, no mesmo nível que a questão da profecia (. .. ).
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 341

O que Espinosa devia demonstrar, dado o objetivo que persegue no


Tratado Teológico-Político, era que, como ele mesmo diz no final do
cap. VI, citando Flávio Josefo, a crença nos milagres não é, segun-
do a Escritura, obrigatória, podendo cada um pensar sobre eles aqui-
lo que quiser. Todavia, no interior do capítulo, o filósofo continua
vigilante e prova que a crença nos milagres é uma imbecilidade".
9. A oscilação aludida na nota anterior é flagrante nesta passa-
gem. Repare-se que ela parte da afirmação de que tudo o que na
realidade acontece é natural, excluindo a hipótese do milagre, e
evolui depois para uma verificação filológica da qual extrai apenas
a conclusão de que há circunstâncias naturais omitidas na descrição
dos milagres com o fim de os tornar mais aparatosos aos olhos do
vulgo. É, no entanto, po~sível concordar-se com esta segunda parte
e rejeitar-se a tese inicial, já que o problema, definitivamente, é sa-
ber se houve milagres e não se estes foram maiores ou menores.
Toda interpretação bíblica feita hoje em dia no campo teológico as-
sume que as narrativas tenham sido adaptadas ã mentalidade dos
seus originais destinatários, sem que por isso deixe de admitir a pos-
sibilidade de uma intervenção divina extraordinária. Mas sublinhe-
se que Espinosa, apesar do ponto de partida, não resvala para uma
indagação das causas naturais dos pretensos milagres, como fará de-
pois toda a tradição libertina sem grandes escrúpulos científicos,
mantendo-se nos limites até onde a Bíblia permite evoluir nesse do-
mínio. Talvez por isso mesmo se torne mais evidente o desajusta-
mento entre o filósofo e o filólogo.
10. O conceito de "história política" sugerido neste contexto,
por oposição a "história sagrada", faz lembra aquilo a que hoje se
chamaria "ciência política". Um bom exemplo desse tipo de história
crítica o autor podia colher na obra de Maquiavel, que ele tanto ad-
mira e com a qual se inaugura a exegese do discurso e da imagem
do político, ao mesmo tempo que os acontecimento passam a ser li-
dos ã luz da política. Nesse sentido, as narrativas bíblicas são vistas
no TT-P como enunciados pragmáticos, puros efeitos de superfície
condicionados pela relação autor-destinatários. Em contrapartida, o
texto de Espinosa integra-se na perspectiva da história moderna,
que procura desvendar o que o discurso do político ou do profeta
oculta.
11. É difícil, senão impossível, interpretar este parágrafo com
base no método filológico recomendado por Espinosa. De fato, tudo
quanto este possa apurar leva à conclusão de que houve aconteci-
mentos em que as leis da natureza foram suspensas. Se assim não
342 ESPINOSA

fosse, por que motivo se haveria· de separar a Escritura da ciência?


Não seria mais lógico optar-se, como Maimônides, por torturar a Bí-
blia e fazê-la dizer o que, manifestamente, ela não quer dizer, em vez
de se imputar o que nela repugna à razão aos acrescentos de "ho-
mens sacrílegos"? Para se aceitar a identidade entre o natural e ora-
cional, temos, evidentemente, de nos colocar, não apenas no terre-
no da filosofia, mas também no terreno da filosofia espinosista.
12. À oposição entre o "historiador sagrado" e os "historiadores
políticos" estabelecida mais atrás (p. 199) sucede neste passo uma
oposição de tipo diferente entre "cronistas" (cbronograpbt) e "histo-
riadores". A oscilação terminológica fica, obviamente, a dever-se à
ambigüidade do conceito de história no quadro disciplinar seiscen-
tista. De qualquer modo, convirá notar: a) o "historiador político" e
o "cronista" relatam fatos que tiveram os homens por protagonistas,
ao passo que os "historiadores" aqui mencionados relatam os fatos
da natureza; b) esta distinção das matérias relatadas não é decisiva
para a apreciação que Espinosa faz de cada uma dessas categorias
de estudiosos, porquanto a única que aparece demarcada da narra-
ção escriturística é a dos "historiadores políticos". Daí pensarmos
que, neste último caso, Espinosa teria em mente alguns exemplos,
como o de Maquiavel, em que os fatos descritos são sujeitos a uma
interpretação, tal como ele próprio faz em relação à Escritura.
Quanto aos "historiadores da natureza" ou "filósofos que escreve-
ram sobre a história da natureza", a opinião que Espinosa faz deles,
com exceção de Demócrito, Epicuro e Lucrécio, pode ver-se na cor-
respondência com Hugo Boxe!, o qual os invoca para garantir que
existem fantasmas: "a autoridade de Platão, Aristóteles, Sócrates,
etc. não tem para mim grande peso(. .. ). Nem é para admirar se ho-
mens que acreditaram nas qualidades ocultas, espécies intencio-
nais, formas substanciais e mil outras fantasias, imaginaram fantas-
mas e espíritos e deram fé a velhinhas para enfraquecer a autorida-
de de Demócrito. Invejavam tanto a glória dele que até queimaram
todos os livros que tinha publicado. Se lhes déssemos crédito, por
que razão haveríamos de negar os milagres da Virgem Maria e de
todos os santos, que são contados por tantos filósofos, teólogos e
historiadores dos mais ilustres(...)?" (Carta LVI).
13. A mesma "análise das mentalidades" que tinha sido prescri-
ta para se chegar ao verdadeiro sentido das profecias é agora invo-
cada a respeito dos milagres, de modo que separe os fatos ocorridos
da interpretação que implicitamente os acompanha nas narrativas da
Escritura. Não se discute, como é óbvio, até que ponto esse fato iso-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 343

lado e isento de interpretação constitui, ele próprio, um tópico de


uma mentalidade específica, dada a manifesta inoportunidade de uma
tal problemática no âmbito do racionalismo pré-Kantiano.
14. Dunin-Borkowski (citado in Boscherini-Droetto, 1984, p.
181) pretende que o adjetivo reales, utilizado por Espinosa e inexis-
tente no latim clássico, seria importação do castelhano. O termo, to-
davia, é freqüente no latim da escolástica, assumindo importância
capital no problema da distinção entre o esse e a essentia. O que não
quer dizer que o seu significado seja o mesmo num e noutro caso.
Com efeito, enquanto Espinosa o emprega como sinônimo de algo
que ocorreu de fato e não foi apenas imaginado, na escolástica ele
apresenta-se bem mais amplo, designando tudo o que se opõe ao
nada e podendo, por conseguinte cobrir a "realidade" de uma essên-
cia que já é mas que ainda não existe(cf. Gredt, 1961, vol. II, p. 125).

Capítulo VII

1. No essencial, retomam-se nesta primeira parte do capítulo


várias apóstrofes do prefácio. Mesmo a acusação de sacrilégio lan-
çada contra aqueles que teriam adulterado trechos da Escritura só
pode entender-se como retórica e ironia, uma vez que, se a inter-
pretássemos à letra, seria incoerente com a idéia que Espinosa faz
dos livros sagrados. É de notar que tal acusação foi freqüente na li-
teratura anti-semita anterior ao Concílio de Trento e daí transitou
para os panfletos deístas e libertinos, ampliada agora sob a forma
de condenação de todas as religiões positivas, às quais se imputa o
rótulo de invenções e imposturas. Um bom exemplo desse trata-
mento do tema pode ser encontrado no Exemplar humanae vitae,
atribuído a Uriel da Costa. Em contrapartida, a ortodoxia romana
defenderá que os livros incluídos no Cânon tridentino chegaram até
nós na sua integridade material e formal, isto é, doutrinal e literal,
ainda que esta última seja relativa, admitindo a ocorrência de mo-
dificações que não atingiram, todavia, o substancial dos livros (cf.
Hõpfl, 1963, pp. 219-20).
2. Pela sua radicalidade, a função do método, tal como ele sur-
ge em Espinosa, não deve confundir-se com aquilo que a maioria
das Igrejas acabou, muito depois, por assumir. A diferença está em
que o TT-P, como já se frisava no prefácio (p. 116), recusa o prin-
cípio da inspiração divina como ponto prévio a toda crítica externa
ou interna do texto, desvinculando o método de qualquer compro-
misso dogmático.
344 ESPINOSA

3. Sobre a paridade da interpretação da Escritura e da inter-


pretação da natureza, veja-se o que ficou dito na introdução. De re-
cordar ainda que a expressão interpretatio naturae, vinha contra-
posta por Bacon, no Novum Organum (cap. XXVI), às antecipari~
nes naturae, exatamente por exigir uma consideração atenta dos
vários aspectos da natureza e recusar conclusões "temerárias e pre-
maturas".
4. Como se verificará pelo que a seguir o texto explicita, o ter-
mo "história" é tomado aqui no sentido corrente na época, isto é,
como recolha de elementos de onde extrair os princípios com base
nos quais se fará a dedução científica.
5. A autoridade da Escritura não possui credenciais fora do
conjunto dos seus enunciados. Pelo fato de eles estarem em contra-
dição com aquilo que a razão determina, não se pode concluir que
o seu sentido deva ser diferente daquele que aparentam. E, da mes-
ma forma que é rejeitada a opinião dos teólogos, segundo a qual as
contradições bíblicas são de imputar aos limites da razão natural,
incapaz de compreender os mistérios sobrenaturais, tem igualmen-
te de se afastar a opinião de Maimônides e de outros racionalistas,
que tentam pelo método alegórico neutralizar todas as contradi-
ções, fazendo o texto dizer o que ele não diz.
6. A interpretação aqui feita dos ensinamentos de Moisés, por
um lado, e de Jeremias e Cristo, por outro, inscreve-se coerente-
mente na análise anterior (cap. 1 a III) que toma a revelação como
conhecimento do primeiro gênero, condicionado portanto pelas
circunstâncias que atuam sobre a imaginação: conforme a situação
política, assim os preceitos morais recomendados na Escritura, lon-
ge, portanto, da Ética universal que se impõe ao conhecimento do
terceiro gênero. A questão que se levanta, uma vez mais, é a dos
ensinamentos de Cristo, que o TT-P freqüentemente refere como
autêntica tradução dessa ética e que, no entanto, são tidos nesta
passagem no nível do simples conhecimento profético. Poderá tal-
vez dizer-se que a "essência do cristianismo" reside na caridade e
na justiça e que esta, num Estado consolidado, é incompatível com
uma tolerância para com o crime da qual só adviriam injustiças.
Porém, algumas linhas atrás, Espinosa atribui as palavras de Cristo,
quando recomenda o perdão, ao fato de ele viver num Estado cor-
rupto, cuja queda era iminente. Ou seja, considera-o fruto das cir-
cunstâncias, não obstante ele se apresentar como ensinamento
eterno e desconhecer ou recalcar o seu lado condicional. Com que
bases se presumirá então se um determinado Estado é ou não cor-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍT1CO 345

rupto, que o mesmo é dizer, quando será necessário "dar a outra


face"?
7. Anos mais tarde, a terminar a resposta a uma carta mais ou
menos insultuosa de um antigo amigo entretanto convertido ao cris-
tianismo, Albert Burgh, Espinosa defenderá com redobrada veemên-
cia o método de interpretação da Escritura, contra a alegada autori-
dade dos Papas, instando o seu correspondente a "examinar a his-
tória da Igreja (a respeito da qual sois tão ignorante) para ver quan-
tos erros vêm nos livros pontifícios e por que acaso, através de que
maquinações, o pontífice romano conquistou, 600 anos após o nas-
cimento de Cristo, a autoridade sobre a Igreja" (Carta LXXVI).
8. Ao contrário do quê, à primeira vista, se poderia concluir
desta passagem, são inúmeras as gramáticas do hebraico que se co-
nhecem ao tempo de Espinosa, se bem que as primeiras tentativas
nesse sentido só tivessem aparecido em finais do séc. IX da nossa
era. O problema é que, conforme o autor dirá no seu próprio Com-
pendium grammatices linguae hebreae (cap. VII e, mais ou menos
pelas mesmas palavras, cap. XVII), "muitos foram aqueles que es-
creveram a Gramática da Escritura, mas não houve nenhum que es-
crevesse a Gramática da língua hebraica". Daí, precisamente, o pro-
jeto em que Espinosa, solicitado por amigos, meteu os ombros, dei-
xando-o embora incompleto e sem chegar à sintaxe. Porém, a ma-
neira como estão elaborados os 33 capítulos publicados nas Opera
Posthuma constitui, além de um legado revolucionário do ponto de
vista filológico, uma reflexão absolutamente original sobre a filoso-
fia da linguagem e porventura um elemento dos mais importantes
para a compreensão do sistema espinosista (cf. Joel Askénazi e Jo-
celyne Askénazi-Gerson, introdução a SPINOZA, Abrigé de Gram-
maire Hébraique, Paris, Vrin, 1968, pp. 13-31).
9. A questão aqui levantada constitui o tema dos quatro pri-
meiros capítulos do Compêndio elaborado por Espinosa. Aí (cap. 1)
se explica como a letra propriamente dita é diferente da vogal, na
medida em que a primeira designa um movimento da boca variável
em função dos órgãos emissores do som que se ouve, enquanto a
segunda é um sinal que "indica um som fixo e determinado". Essa
diferença surge ainda mais vincada pelo fato de, até muito tarde, só
as consoantes serem transcritas, ao passo que as vogais eram su-
bentendidas, razão pela qual os hebreus, acrescenta Espinosa, "di-
zem que as vogais são a alma das letras e que estas sem aquelas são
corpos sem almas". A partir de certa data - discutível, como vere-
mos - as vogais passaram a vir indicadas por pontos acrescentados
346 ESPINOSA

às consoantes (cap. III), se bem que nos livros destinados ao culto


público elas continuassem ausentes (cf. Hõpfl, 1963, vol. 1, p. 232).
Quanto ao outro tipo de sinais aqui mencionados, os acentos, a sua
função não corresponde à que lhes é destinada no comum das lín-
guas. Acentos, em hebraico, são todos os sinais, com exceçào das
vogais, que acompanham as consoantes, servindo ora para indicar
a tônica em cada palavra, ora para pontuar a frase, ora para expri-
mir notas musicais que permitissem entoar o texto (cap. IV). Quer
as vogais quer os acentos foram introduzidos posteriormente na Bí-
blia, veiculando, por conseguinte, uma interpretação dela. No que
toca aos acentos, Espinosa diz, no cap. IV do Compêndio, que eles
"foram introduzidos a partir do momento em que os fariseus insti-
tuíram o hábito de ler a Bíblia, todos os sábados, em reunião públi-
ca, para que essa leitura nào fosse demasiado apressada (conforme
geralmente acontece com as orações que se repetem muitas ve-
zes)". Já quanto às vogais, a questào foi muito mais controversa na
história dos estudos bíblicos. A tese que Espinosa sustenta e que
acabou por prevalecer veio pela primeira vez na gramática de Elias
Levita (1525). Segundo este, as vogais terão sido introduzidas só na
altura em que entre os judeus surgiu uma verdadeira escola de re-
constituição do texto bíblico, ou seja, a partir do século VI e até ao
século X, escola a que se chamou de Tiberíades ou dos Masoretas,
este último nome derivado do termo hebraico Masora, equivalente
ao latim tradere.
10. Antecipando-se, uma vez mais, alguns séculos ao que a
ciência histórica dos nossos tempos viria a sistematizar, Espinosa
sublinha a necessidade de se terem em conta, por um lado, os limi-
tes impostos pelo quadro mental de cada época, por outro, os ob-
jetivos que a partir daí se poderão atribuir ao narrador. As virtuali-
dades metodológicas de tal observação avaliam-se, hoje em dia, por
trabalhos como o que Lucien Fevre dedicou a Rabelais (1952). To-
davia, mesmo no campo da exegese bíblica, onde essa questão
aparece em torno da chamada "teoria dos gêneros literários'', a tese
que Espinosa aqui desenvolve é assumida pela Igreja Católica des-
de 1943, data em que Pio XII acolhe aquela teoria na "Divino afflan-
te Spiritu". Trata-se, afinal, de aplicar às relações entre a Bíblia e a
história as mesmas considerações que Roma já aceitava, desde fi-
nais do século passado e a propósito de Galileu, para as relações
entre a Bíblia e a ciência.
11. Os livros apócrifos a que Espinosa se refere sào aqueles que
a tradição judaica toma como tal, ou seja, os considerados não-ca-
TRATADO 1EOLÓGJCO-POLÍ11CO 347
nônicos, abrangendo, portanto, quer os que a Igreja Católica chama
de "apócrifos", quer os que ela designa por "deuterocanônicos". Re-
pare-se que entre os judeus prevalece o significado que a palavra
"apócrifo" tem no étimo grego, quer dizer, "oculto", "escondido": o
livros apócrifo é, por isso, todo aquele que, por qualquer razão,
não consta da leitura em público. E a principal dessas razões era,
precisamente, o não ter sido escrito originariamente em hebraico.
Para aqueles que a Igreja Católica considera "apócrifos", isto é, que
não foram escritos pelo autor a quem são atribuídos, Espinosa utili-
za, como se verá no capítulo seguinte, a designação de "apógrafos"
ou "não-autógrafos".
12. A idéia de que a religião consiste num reduzido número de
princípios, simples e acessíveis a todos, constitui um dos temas mais
polêmicos no seio do protestantismo holandês. De fato, levada à le-
tra, como faz Espinosa, ela volta-se contra todas as religiões institu-
cionalizadas. Camphuisen exprime assim esta contradição: "o gran-
de Anticristo está abertamente em Roma; mas São João diz que virá
o tempo em que hão de aparecer muitos Anticristos; e, em verdade,
pode-se dizer, hoje em dia, que muito apareceram. Habituamo-nos
a ver o papado só em Roma, numa única seita, quando, afinal, por
toda a parte, em numerosas seitas, existe papado" (Teologische Wer-
ken, Amsterdam, 1699, p. 58, cit. in Kolakow~ki, 1969, p. 119). Mais
radicalmente ainda, a questão traduzir-se-á na polêmica sobre os li-
mites da tolerância. Porque uma coisa é sustentar que há um míni-
mo de princípios doutrinários a definir, como proclamam aqueles
que pretendem a simples reconciliação no interior do cristianismo,
outra bem diferente é recusar qualquer definição doutrinária, míni-
ma que seja, conforme sustentam os defensores da tolerância ilimi-
tada, entre os quais poderemos incluir Espinosa (cf. Kolakowski,
idem, pp. 280-8).
13. Ao referir-se novamente ao Papado, Espinosa explicita aqui
a sua original posição sobre a polêmica que opõe Hobbes aos de-
fensores da autoridade do pontífice romano para interpretar a Escri-
tura. No cap. XXXVI do Leviathan, o filósofo inglês sustentava que,
em princípio, aquela autoridade cabia a cada indivíduo, sendo, no
entanto, transferida para o soberano no momento do contrato. A
Igreja, pelo contrário, defende a tese de que, com a vinda do Mes-
sias, a autoridade que cabia ao pontífice hebreu se transfere para o
pontífice romano. Espinosa, por seu turno, distingue o âmbito polí-
tico e o âmbito religioso. A autoridade do pontífice hebreu era ne-
cessária na medida em que, confundindo-se os preceitos religiosos
348 ESPINOSA

com o direito público, o Estado soçobraria sem essa atitude. A reli-


gião universal, porém, aquela a que o autor chama "religião católi-
ca", pertence ao direito individual, é do domínio interior de cada um,
e não tem, por isso, a ver com a ordem pública, nem precisa de
um pontífice a quem se atribua autoridade superior em matéria de
interpretação da Escritura.

Capítulo VIII

1. O tema do presente capítulo, tal como dos dois seguintes, é


a exegese do Antigo Testamento, não de uma forma programada e
exaustiva, mas unicamente como um ensaio dos princípios herme-
nêuticos enunciados no cap. VII e aqui sublinhados como ponto de
partida. É de notar que muitos dos argumentos aduzidos por Espi-
nosa contra a autenticidade dos livros analisados provêm de obras
anteriores que existiam na sua biblioteca, em particular do Levia-
than (cap. XXXIII) e dos Prae-adamitae de Isaac la Peyrere, esse
estranho livro publicado em 1655 onde, além de se mostrar que o
Pentateuco era uma justaposição de textos de dh'ersa origem, o au-
tor pretende que teria existido uma outra humanidade anterior a
Adão. A própria lista dos livros da Escritura criticados nestes três ca-
pítulos do TT-P é quase coincidente com os mencionados no refe-
rido capítulo de Hobbes. O que faz, portanto, a originalidade de Es-
pinosa é o enunciado do método e não a descoberta de incongruên-
cias no texto bíblico.
2. Abraão Aben Esdra, cuja opinião já foi citada, no cap. II, a
propósito da interpretação de uma passagem do Gênesis, nasceu
em Toledo, em 1092, e teria morrido, ao que parece, em Roma, 1167.
É considerado o primeiro comentador que, na tradição judaica, le-
vanta algumas suspeitas sobre a atribuição dos livros do Pentateuco
a Moisés.
3. Não sendo, como se poderá verificar, mais do que uma sim-
ples conclusão na economia do Tratado, a recusa da autenticidade
do Pentateuco constitui um ponto nevrálgico em toda a história dos
estados bíblicos. Em 1679, Daniel Huet dedicará ainda 15 páginas
da sua Demonstratio evangelica ad Serenissimum Delphinum à de-
fesa de Moisés, considerando que a opinião de Espinosa destruía
"os fundamentos da verdadeira religião, da teologia e de todo o cris-
tianismo". A Richard Simon, que conclui também pela inautenticida-
de mosaica do Pentateuco, na sua Histoire Critique du Vieux Testa-
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍTICO 349
ment (1678), de nada lhe valerá pôr uma ressalva no prefácio a di-
zer que o nome do autor é pouco importante, desde que se esteja
certo de que foi um homem inspirado por Deus, tentando assim de-
marcar-se das "conseqüências falsas e perniciosas que Espinosa
pretendeu tirar dessas alterações e acrescentos para desacreditar a
autoridade dos livros divinos" (cit. in Auvray, 1974, p. 43): o cardeal
Bossuet encarregar-se-á de mandar queimar no prelo a primeira
edição da obra. Seria necessário esperar pelo princípio deste sécu-
lo para que a Igreja Católica reabilitasse este oratoriano, que nem
sequer ousava duvidar da inspiração divina das Escrituras, coisa que
para Espinosa, como sabemos, estava por demonstrar.
4. Espinosa atribui, portanto, o Deuteronômio ao mesmo autor
desconhecido dos outros livros do Pentateuco, contrariamente a
Hobbes que, no Leviathan, cap. XXXIII, p. 369, faz o seguinte repa-
ro: "embora Moisés não tenha compilado estes livros integralmente
e tal como hoje os possuímos, escreveu, no entanto, tudo aquilo
que aí se diz que ele tinha escrito, como, por exemplo, o volume
da lei, que está contido, ao que parece, entre os capítulos XI e
XXVII do Deuteronômio".
5. Jonathan ben Uziel é considerado pela tradição judaica como
autor de um Targum, nome por que se designam as versões do tex-
to sagrado feitas em aramaico. Essas versões tornaram-se necessá-
rias com a diáspora e o conseqüente esquecimento do hebraico por
parte da maior parte do povo. Como os textos eram lidos em públi-
co sempre na língua original, havia quem se encarregasse da sua tra-
dução, acrescentada de comentários explicativos. Trata-se, por con-
seguinte, de versões comentadas ou paráfrases, como também se
lhe chama (cf. Hõpfl, 1963, p. 300).
6. O quarto mandamento, que prescreve a observância do sá-
bado, é justificado no Êxodo por ter sido o dia em que Deus des-
cansou, depois de ter criado o mundo, e no Deuteronômio por ter
sido o dia em que Deus libertou os judeus do cativeiro egípcio.

Capítulo IX

1. Traduzimos literalmente in castra por "aos acampamentos",


e não por "ao campo", como vulgarmente é traduzida esta passa-
gem, uma vez que o capítulo mencionado do I livro de Samuel (ou
dos Reis, conforme o cânon) descreve claramente uma situação de
guerra, na qual estão os irmãos de Davi quando o pai diz a este para
correr a levar-lhes mantimentos.
350 ESPINOSA

2. Apesar do predomínio da ortodoxia, a comunidade hispano-


judaica, no interior da qual decorre a infância e a adolescência de
Espinosa, foi, quase desde o seu início, agitada por fortes disputas
doutrinais. Muito antes de ir aprender o latim com o médico ateu
Van den Ende e tomar contato com as obras de Cícero, Sêneca e
mesmo Descartes, já o jovem Baruch freqüentara a escola rabínica
Etz Aim, orientada por Manassés ben Israel e por Moisés Rafael de
Aguilar, bem como o colégio Keter Torah, dirigido por Saul Levi
Morteira, ambientes em que o pensamento oficial tentava depurar e
consolidar a fé de famílias oriundas de uma certa promiscuidade
doutrinária com o catolicismo. Os desvios, porém, eram freqüentes,
como se prova por casos como os de Uriel da Costa e Juan de Pra-
do, o que obriga a literatura ortodoxa a transformar-se numa apolo-
gética permanente, quer ante os cristianismo, quer ante os insubmis-
sos que se erguem no interior da comunidade. No centro de boa
parte das discussões está, naturalmente, a interpretação da Bíblia,
tarefa para a qual não raro se recorre a pensadores suspeitos, em
particular o já citado Aben Esdra, Aben Gabirol e Hasdai Crescas. É
para responder às críticas inspiradas nesses heterodoxos que Ma-
nassés ben Israel escreve o seu Conciliador, livro de grande êxito
em que tenta mostrar que as aparentes contradições da Bíblia não
são mais que dificuldades propositadamente inspiradas por Deus
para suscitar uma leitura sempre atenta da Escritura. Não admira,
portanto, que Espinosa esteja, desde a infância, particularmente mo-
tivado para este gênero de questões, como se comprova até pela
impressionante coleção de obras filológicas que se contam entre os
161 volumes da sua biblioteca: três gramáticas do hebraico, dois di-
cionários rabínicos, a Bíblia de Buxtorf, juntamente com uma outra
e
Bíblia em hebraico e três traduções: uma em espanhol duas em la-
tim, a de Tremelius e a de Xantes Pagnini. Sem contar, obviamente,
-com o Guia dos Peplexos, de Maimônides, e os Pre-Adamitas, de
Isaac la Peyrere, livros em que o tema também era abordado.
3. Sobre este reparo que o autor faz, veja-se o final do presen-
te capítulo.
4. O verbo redolere, que Espinosa utiliza, significa "cheirar a".
O sentido metafórico em que, por mais de uma vez, aparece no tex-
to constitui um elemento de vivacidade regra geral atenuado pelos
tradutores, sem que para tal se vislumbrem razões válidas.
5. As influências cabalísticas na obra de Espinosa, pese embo-
ra o distanciamento a que este pretende estar das suas "imposturas",
tem sido um dos temas classicamente polêmicos na história do es-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTJCO 351

pinosismo, não faltando mesmo quem, como Kant, reduza o autor


a um "cartesiano da Cabala". Houve, na realidade, um nítido e tal-
vez profundo contato de Espinosa com o neoplatonismo cabalístico
que ressurge em Amsterdam no século XVII, através de múltiplas
obras, entre elas a Esperança de Israel, de Manassés e A Casa de
Deus e a Porta do Céu, de Alonso de Herrera, além do clássico Livro
. do Esplendor. Seja, porém, qual for o contributo que daí veio para a
formação do sistema, a investigação mais recente é unânime em con-
cluir pela ruptura de Espinosa com as teses da emanação às quais
se associara equivocadamente o seu imanentismo. Isso, apesar de
um autor como A. Matheron se ter apercebido de homologias entre
os capítulos VI e VIII do Tratado Político e a árvore sefirótica (cf.
1969, p. 344).

Capítulo X

1. Já no Leviathan (cap. XXXIII, p. 372) os Salmos eram tidos


como uma compilação feita "depois que os judeus regressaram da
Babilônia", e bem assim os Provérbios, "obra de um homem qual-
quer devoto que viveu depois de todos aqueles" que terão pronun-
ciado as frases aí compendiadas. A opinião dos teólogos, hoje em
dia, não difere dessa apreciação, situando o aparecimento de qual-
quer das coleções entre os séculos IV e III a.e. (cf. Hõpfl, 1963, vol.
II, pp. 361 e 384).
2. Os doze profetas aqui referidos, a que a tradição cristã cha-
ma de "profetas menores", são Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas,
Miquéias, Nahum, Ababuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. A
designação de "menores" é-lhe atribuída, pela primeira vez, por San-
to Agostinho, em virtude da exigüidade dos seus escritos, os quais
aparecem num volume conjunto, tanto entre os judeus como entre
os cristãos (cf. Hõpfl, 1963, vol. II, pp. 580-1).
3. Conforme Espinosa observa logo a seguir, a estrutura do li-
vro remete muito mais para um plano mitológico do que para o pla-
no histórico. E não é só pelo diálogo entre Deus e Satanás a que ele
faz referência, é também por esta sucessão de tempos: uma "idade
de ouro", uma "idade de ferro" e novamente a "idade de ouro". O
próprio tema do sofrimento imposto pelos deuses é comum a todas
as literaturas antigas. Todavia, apesar de admitir este paralelismo e
de considerar que, enquanto simples hipótese, não invalida a exis-
tência histórica da personagem, a teologia católica continua, ainda
352 ESPJNOSA

hoje, a defender que o autor do livro era um judeu e que o seu con-
teúdo só é pensável no interior da doutrina bíblica (cf. Hõpfl, 1963,
vol. II, pp. 338-43).
4. Momo é a figura mitológica que personifica o espírito crítico.
Platão, por exemplo, refere-a na República, livro VI, 487 a.
5. É esta, como se sabe, a tese que o autor sustenta sobre o
conteúdo da Escritura. Quanto à importância do livro de Daniel no
contexto seiscentista, é de recordar a onda milenarista que invade,
nos princípios do século, quer certas franjas do judaísmo, quer al-
guns colégios de cristãos reformados, e que se inspira precisamen-
te naquele profeta. A pedra que se desprende da estátua no sonho
de Nabucodonosor é, um pouco por toda parte, vista como o sím-
bolo do V Império que se julga estar próximo e que se interpreta
das mais diversas maneiras. Veja-se, por exemplo, a Carta ao Futu-
ro do P. Antônio Vieira ou a Esperança de Israel de Manassés ben
Israel. P. Serrarius, o amigo de Espinosa e Oldenburg a quem nos
referimos na introdução, é um dos que crêem firmemente na proxi-
midade da nova vinda do Messias para restaurar em pessoa a sua
Igreja, uma vez que tanto Roma como as várias seitas reformistas
estão contaminadas pelo mal. Guerras e calamidades da natureza
são vistas como sinais dos tempos. E até homens como Newton se
deixarão sensibilizar pela idéia, como se vê pelas suas Obseroations
upon the Prophecies of Daniel and the Apocalipse of St. John (Lon-
dres, 1733), não obstante as reticências que, na esteira de Espinosa,
formula à autenticidade do livro.
6. Fariseus e saduceus constituíam as duas principais correntes
na nação judaica ao tempo de Cristo. A sua origem deve-se à dife-
rente atitude assumida pelos setores da população ante o helenis-
mo, quando este entrou em conflito com o judaísmo a partir do tem-·
po dos macabeus, que foram apoiados na sua revolta contra os mo-
narcas selêucidas pelas camadas populares, ao passo que as classes
abastadas, mormente os sacerdotes, se tinham mostrado favoráveis
aos estrangeiros, de quem admiravam a cultura. Num primeiro mo-
mento, o espírito nacionalista triunfa e, com ele, os apoiantes dos
macabeus. Mas, pouco depois, dada a pressão política e cultural do
helenismo sobre o Estado judaico reconstituído, os novos gover-
nantes tenderão para os compromissos. Daí conhecerem a oposição
dos seus antigos apoiantes, que passam a considerar-se "separados"
ou, como se diz em hebraico, perushim, de onde deriva a palavra
"fariseu". Em contrapartida, os adeptos de uma atitude de abertura
serão chamados de saduceus, designação que deriva de Sadoc, no-
TRATADO TEOLÓGICO-POÚ17CO 353

me de um antigo tronco de uma família sacerdotal. Do ponto de


vista doutrinário, os primeiros apóiam-se, quer na lei escrita, que na
"lei de boca" formada pelos inumeráveis preceitos da tradição; os
segundos baseiam-se apenas na lei escrita ou Torá e consideram
tudo o mais (o Ta/mude) acrescentos espúrios. Como a lei escrita
não é explícita quanto à providência divina, à imortalidade da alma,
aos anjos e aos espíritos, os saduceus negavam também, conse-
qüentemente, estes pontos admitidos pelos fariseus e daí serem
com freqüência associados a epicuristas. No fundo, portanto, há uma
atitude conservadora por parte destes últimos, que recusa qualquer
acrescento à lei de Moisés mas que, por isso mesmo, vai permitir
uma maior abertura para o exterior. Pelo contrário, os fariseus, na
tentativa de manter o nacionalismo a salvo de interferências, vão sen-
do obrigados a multiplicar os preceitos da lei com o intuito de não
deixar nada ao acaso (cf. Ricciotti, 1963, pp. 43-56).
7. R. Selomo ben Isaac (Rashi), que viveu entre 1040-1105, foi
o fundador de uma escola de estudos bíblicos e talmúdicos, em Tro-
yes, que teve larga influência no Sul da França, tanto entre judeus
como entre cristãos.

Capítulo XI

1. Ao contrário dos profetas, pregadores de uma religião na-


cional que impõem, por conseguinte, a sua doutrina como uma or-
dem, os apóstolos, pregadores de uma religião universal e desvin-
culada de qualquer lei positiva, dirigem-se ao intelecto humano.
Donde, serem considerados por Espinosa como alguém que preten-
de ensinar (docere).
2. Esta mesma idéia sobre a natureza da pregação dos apósto-
los é desenvolvida por Hobbes ao longo de todo o capítulo XI.II do
Leviatban. Considerando que "em qualquer parte do mundo, quem
pretende provar faz juiz da prova aquele a quem dirige o seu dis-
curso", Hobbes distingue na pregação dos apóstolos os argumentos
retirados da razão, quando eram destinados aos gentios, e os argu-
mentos retirados da Escritura, caso se dirigissem aos judeus. A dife-
rença das fontes não altera, todavia, a natureza do ensino. Entre os
judeus de Tessalônica, onde São Paulo foi pregar, uns acreditaram
nele, outros não. Isso porque, explica Hobbes, o apóstolo se com-
portou "como alguém que não quer impor mas persuadir, coisa que
teria necessariamente de fazer, ou por milagres, como fez Moisés
354 ESPINOSA

(. .. ), ou por um raciocínio baseado na Escritura (. .. ) Mas quem per-


suade por raciocínios baseados em princípios escritos converte os
seus interlocutores em juízes, quer do significado desses princí-
pios, quer do peso das suas deduções a partir deles". A interpreta-
ção do Leviathan é, pois, igual à do TT-P, salvo nas conclusões
que ambos os autores daí extraem: Espinosa pretende que a razão
de cada um é o único intérprete autorizado em matéria de religião;
Hobbes, pelo contrário, sustenta que, num Estado cristão, só o so-
berano civil tem "o poder de ensinar e levar a cabo todas as outras
missões pastorais".
3. Sem este esclarecimento, dir-se-ia que a interpretaçào de Es-
pinosa se associava à de Louis Meyer e de outros colegiantes, que
querem promover a razão ao papel de supremo intérprete em ma-
téria religiosa, conciliando assim aquilo que o TT-P separa. Na ver-
dade, o fato de os ensinamentos dos apóstolos poderem ser segui-
dos por qualquer um sem necessidade de uma luz sobrenatural não
implica que a religião, na sua essência, se torne um conhecimento
do segundo gênero. Por este mesmo motivo, não parecem muito
fiéis ao texto as leituras que tomam o espinosismo como uma "reli-
gião da razão".
4. A chamada de atenção que o autor faz para dois conceitos
que, na teologia cristã, não são passíveis da distinção que ele quer
sublinhar constitui uma flagrante adaptação da doutrina de São
Paulo ao espinosismo, em particular no que toca ao problema dos
gêneros de conhecimento.
5. A secular questão da justificação pela fé ou pelas obras, que
dividiu os doutores da Igreja e divide católicos e protestantes é aqui,
pura e simplesmente, desvirtuada por Espinosa. Como, de resto, po-
deria ela ter algum significado do ponto de vista de uma filosofia .
que nega radicalmente a idéia desse Deus transcendente perante o
qual os homens, pela fé ou pelas obras, teriam de se justificar?

Capítulo XII

1. Alusão ao já mencionado apego dos saduceus à lei escrita


como a única verdadeira, recusando todos os preceitos derivados
da tradição - a lei oral ou "lei de boca". Um bom exemplo da dis-
cussão em torno dessas duas fontes de lei pode ser visto no Exem-
plar humanae vitae, Uriel da Costa.
2. Embora, hoje em dia, que o termo tábua perdeu o seu sig-
nificado de suporte da escrita, a frase possa soar algo insólita, opta-
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍT1CO 355
mos, no entanto, por traduzir literalmente, preservando assim a ori-
ginal variação no interior do campo semântico das "tábuas da lei".
3. Como assinala Appuhn, em comentário a esta mesma passa-
gem, a expressão "religião católica" aparece já no mesmo sentido
em autores ingleses como Herbert de Cherbury. É todavia, de subli-
nhar que o fato de ser "universal" não lhe retira o caráter de reli-
gião, o que a toma, por conseguinte, diferente do "amor intelectual
de Deus" teorizado na Ética.
4. Contrariamente às teses que tomam os concílios ou as Igre-
jas como fonte da canonicidade dos livros, Espinosa insiste na exis-
tência de um critério que necessariamente terá assistido a qualquer
decisão nesse domínio. A conclusão é óbvia: não é a autoridade
(do Sumo-Sacerdote, do Papa ou ainda, como pretende Hobbes, do
soberano cristão) a base da verdadeira religião, mas sim a doutrina
universal da caridade e da justiça, pedra de toque de toda a "pala-
vra de Deus".

Capítulo XIII

1. A oposição aqui explicitada entre a Escritura e a ciência as-


senta na distinção de cunho nominalista entre "conhecimento dos
fatos" e "conhecimento por conseqüência'', como lhes chama Hob-
bes (Leviathan, cap. IX), não devendo, por conseguinte, tomar-se
por equivalente da oposição verdade-erro. Conforme Platão já sus-
tentava no Mênon, a opinião não deixa de ser opinião por ser ver-
dadeira, uma vez que não está "acorrentada" a um princípio (causa)
e, por isso mesmo, é "fugidia" e não pode ser ensinada. O mesmo
estatuto da opinião, fruto da experiência sensorial ou de conheci-
mento por ouvir dizer é atribuído por Espinosa à imaginação, para
a qual é remetida a Escritura.
2. A palavra "igreja" é tomada, de acordo com o seu étimo gre-
go, por "assembléia", "reunião".
3. O principal alvo deste parágrafo é toda a teologia, entendi-
da como especulação a partir da Escritura e, como tal, fonte de con-
trovérsias. Em verdade, entre a fé e a filosofia não há, para Espino-
sa, meio-termo. Este é o cerne da sua atitude sobre o problema da
tolerância, isto é, do fim das lutas religiosas, que a partir de Erasmo
se transformara em preocupação maior de muitos autores, tais
como Fausto Socino ou, mais tarde, John Locke. A idéia que já pre-
side ao "cristianismo não confessional" é precisamente a de que a
356 ESPINOSA

multiplicação dos dogmas foi a causa da divisão da Igreja. O que


nem todos aceitam, muito pelo contrário, é que a solução do pro-
blema não passa pela procura de uma plataforma mínima para a re-
conciliação, mas sim pela destruição do próprio mecanismo eclesial
que, ao afirmar-se, minimamente que seja, traz já consigo os gérme-
nes do comportamento sectário.
4. A palavra ciência, neste contexto, só poderá ser entendida
como equivalente de simples conhecimento ou saber, uma vez que
a verdadeira ciência, para Espinosa, conduz à liberdade e não à obe-
diência. A ambigüidade deste parágrafo nào é, porém, unicamente
terminológica, como se poderá ver pelo seu desenvolvimento no ca-
pítulo seguinte. Na verdade, o problema que nele está implicado é
aquele a que já aludimos na introdução e tem a ver com o preciso
lugar da religião num sistema que a identifica com a obediência e
que faz depender a "salvação" do seu oposto, ou seja, do conheci-
mento adequado. Como se salvam os ignorantes? E em que medida
estarão todos os homens sujeitos a determinados dogmas, mesmo
os que os reconhecem como fruto de uma ilusão ou idéia inadequa-
da? A resposta a este tipo de questão terá de passar, tanto pela expli-
citação dos vários graus de beatitude ou salvação, como pela teoria
do modo finito, isto é, pela impossibilidade de o homem atingir o
conhecimento absoluto de Deus. É, no entanto, manifesto que Espi-
nosa, dirigindo-se a leitores filósofos mas não a "espinosistas", tenta
habitualmente adequar a sua linguagem.
5. Rompendo com o pensamento de boa parte dos autores seus
contemporâneos, que reivindicam a liberdade de filosofar sobre a
natureza argumentando que a Bíblia é fonte só de conhecimentos
teológicos, e não científicos, Espinosa deixa a teologia sem objeto
ao pretender que "o conhecimento de Deus, como o das coisas na-
turais, não dizem respeito à Escritura". A diferença em relação, por
exemplo, a um Galileu não é, por conseguinte, meramente estratégi-
ca, uma vez que, por detrás dela, está toda a doutrina do Deus sive
natura.
6. Sobre a problemática dos atributos de Deus, cf. Aurélio, 1985.
7. Verae vitae exemplar. a expressão utilizada por Espinosa faz
lembrar o título do livro atribuído a Uriel da Costa, Exemplar huma-
nae vitae, supostamente escrito em 1640 mas só editado em 1687
por Philippe von Limborch, quase duas décadas, portanto, após a
1ª edição do Tratado. Comentando esse título, J.-P. Osier (1983, pp.
62-4) recorda uma frase de ]. Reuchin no seu De arte cabalística
(1517): "Desçamos agora ao nosso mundo corporal e sensível, cujo
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 357

modelo (exemplar) está no mundo incomparável da divindade, a


cópia (exemplum) no mundo inteligível das formas, e o exemplar
(exemplarium), que subsiste por si, em si mesmo". Como nota Osier,
estamos perante modulações no interior do pensamento neoplatô-
nico e gnóstico que remontam ao Timeu, onde o demiurgo fabrica
o cosmos a partir de um paradigma inteligível. Mais claramente ain-
da do que no caso de Uriel, que levanta algumas dúvidas de tradu-
ção, o exemplarem Espinosa, se considerarmos o contexto em que
sempre nos surge e a metafísica para que remete, corresponde a
um "modelo", embora pese a sua distância em relação ao "modelo"
neoplatônico.
8. O "movimento local", no sentido de mudança de lugar, cons-
titui, na economia da frase, um nítido contraponto às mudanças de
atitude ou de "estado de alma" exemplificadas pelo ciúme e pela
misericórdia. O objetivo explícito é denunciar o antropomorfismo
freqüente nas narrativas bíblicas, deixando em suspenso a rede me-
tafísica em que se prendem alguns conceitos e onde a questão teria
de ser enunciada de forma completamente diferente. Em verdade, o
que se critica é a confusão do infinito com o finito sem, no entanto,
se adiantar que a mente ou o movimento local são modos do pen-
samento ou da extensão, isto é, expressões de atributos divinos.
Acrescente-se, de resto, que a designação aparece aqui num con-
texto absolutamente pacífico e à margem de problemas de natureza
científica que ela pode levantar. Basta recordar que enquanto Hob-
bes, no Tractatus Opticus, considerava que "toda a ação é movimen-
to local no agente, assim como toda a paixão é movimento local no
paciente" (Op. Latina, V, p. 217), Descartes contrapunha, na DióJr
trica, uma distinção entre o movimento atual propriamente dito e "a
ação ou inclinação para se mover" (A. T., Vl, p. 88).
9. Será este o tema do capítulo XIV e, além disso, uma das
conclusões fundamentais de todo o Tratado. Para já, o importante é
verificar como aqui se produz uma inflexão na tradicional proble-
mática que consiste em saber se é a fé ou as obras que salvam. Sob
a aparência de um apoio à tese segundo a qual "a fé sem obras é
morta", o que na realidade se defende é a redução da fé à obediên-
cia, isto é, ao desejo de praticar a justiça e a caridade, subtraindo-a
assim a qualquer conteúdo doutrinário dogmaticamente estabeleci-
do e, por conseguinte, abrindo a possibilidade da livre opinião.
358 ESPINOSA

Capítulo XIV

1. "A cada herege o seu texto." Para se ter uma idéia de quan-
to este provérbio traduz a realidade religiosa holandesa da época,
veja-se o livro de Kolakowski (1969).
2. A. Tose! (1984, p. 26) define bem esta situação quando es-
creve: "Se, para cada Igreja, a superstição é o outro, tem de concluir-
se que, para o filósofo, que objetiva tal campo de identificação por
acusações recíprocas, esta propriedade que tem cada elemento do
campo de se identificar como religião pela sua diferença com o ou-
tro, apontado como superstição, é precisamente o que define a su-
perstição".
3. A insistência de Espinosa sobre esta tese deverá atribuir-se ã
amplitude da secular polêmica que ã sua volta se travou, com par-
ticular acuidade após a Reforma. É de notar que, se num primeiro
momento o autor parecia estar com os luteranos, ao advogar que a
verdadeira religião não reside nos atos exteriores do culto mas na
autenticidade interior, aqui, parece aproxima-se dos católicos ao fri-
sar a importância das obras. Todavia, e como já referimos anterior-
mente, não há nenhuma incoerência entre uma e outra dessas pos-
tulações. O que há é uma diferente noção de fé, noção essa que já
Fausto Socino sustentava contra Lutero: "crer em Cristo é obedecer
a Cristo" (cf. Boscherini-Droetto, 1982, p. 355).
4. É esta a citação que Espinosa coloca em exergo do Tratado
e que, na altura, preferimos manter em latim, tendo em vista a sua
repetição neste capítulo.
5. Na impossibilidade de identificar a "besta" que aparece no
cap. XIII do Apocalipse, tanto a Igreja romana como, mais tarde, os
protestantes, utilizaram sempre o termo "anticristo" como um nome
pejorativo para designar o principal adversário de momento, fosse
no plano doutrinal ou no plano político. Desse modo, conforme a
doutrina, assim o "anticristo" aparece, ora como inimigo do Papa-
do, ora como o próprio Papa. Grócio, na sua tentativa de reconci-
liação das Igrejas, escreve mesmo, em 1640, uma Comentatio ad loca
quaedam Novi Testamenti de Antichristo, para demonstrar aos pro-
testantes que o Pontífice romano não pode ser a besta do Apocali[r
se, visto os seus ensinamentos não contrariarem os de Cristo. Espi-
nosa, por seu turno, coerente com a identificação já feita entre fé e
obediência, ou seja, entre a fé e a prática da justiça e da caridade,
remete a designação para aqueles que perseguem os "homens ho-
nestos", seja qual for a sua doutrina.
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍT1CO 359
6. O plano de Grócio para a unificação das Igrejas, que ele re-
pete em várias obras, era, conforme se lê no De jure Belli ac Pacis
(Prol. 42), veritatem sparsam per singulos, per sectas dif.fusam, in
cotpus colligere. Tratava-se, por conseguinte, tanto no domínio reli-
gioso como da política internacional, de estabelecer, a partir da sua
concepção do direito de integração, uma plataforma jurídica que
subsumisse as várias ordens estatais e doutrinárias sem colocar ne-
nhuma em posição subordinada (cf. Gurvitch, 1932, p. 186). Espi-
nosa, por sua vez, ignorando ou recusando o appetitus societatis que
Grócio coloca na base dos agregados sociais e da desejada organi-
zação supra-Estados, equaciona o problema a partir do princípio da
preservação individual, que pode igualmente aplicar-se a cada Esta-
do ou a cada Igreja. Conseqüentemente, não cuida de recolher a
doutrina "dispersa pelas várias seitas'', mas de estabelecer um prin-
cípio universal de onde se deduzam as normas que levam à prática
da justiça. O único problema que poderá levantar-se a essa formu-
lação é, como já dissemos, o de saber em que medida alguém abra-
ça dogmas de fé conhecendo a sua origem ilusória. É esta, afinal, a
questão autenticamente "espinosista" que subsiste no presente capí-
tulo e sobre a qual nos demoramos na introdução.

Capítulo XV

1. À luz do que já fora dito nos capítulos anteriores, a questão


assim enunciada está resolvida: se o objetivo da ciência é a verdade
e o da fé é a obediência, se aquela se faz por idéias adequadas en-
quanto esta só contém enunciados da imaginação, a milenar tenta-
tiva de conjugar uma coisa e outra, seja por que via for, não faz ne-
nhum sentido. Trata-se aqui, portanto, de uma recapitulação das
conclusões a que já se chegou, em matéria "teológica", nos capítu-
los anteriores. Os próprios termos em que o problema é enunciado
(filosofia versus teologia) já foram ultrapassados pela crítica feita às
pretensões dos teólogos e pela conseqüente redução da religião à
fé. De notar, ainda, que a solução apresentada por Espinosa rejeita,
não só as posições que ele classifica como "cépticas" e "dogmáticas",
mas também a que poderíamos classificar de fides quaerens intel-
lectum, intellectus quaerens fidem.
2. O rabino Alpakhar, de Barcelona, falecido em 1235, era mé-
dico e autor de um conjunto de cartas dirigidas a David Kimchi (cé-
lebre pelo comentário que acompanhará, dois séculos mais tarde,
360 ESPINOSA

aquele que será o primeiro texto bíblico impresso em hebraico, os


Salmos, Narbona, 1477), onde criticava asperamente o método de
Maimônides. Como ficou dito na introdução, e como se demonstra
pela citação em rodapé do livro de Meyer, tanto Maimônides como
Alpakhar constituem aqui exemplos remotos de uma polêmica rea-
tivada no seio do cristianismo após a Reforma e que, entre outros,
oporá o referido L. Meyer a P. Serrarius. O próprio Espinosa, nos Pen-
samentos metafísicos, sustentava ainda uma posição algo diferente
da que vem no TT-P. Como ele então escrevia, "a verdade não con-
tradiz a verdade e a Escritura não pode ensinar tolices como aquelas
que o vulgo imagina. Porque, se nela encontrássemos alguma coisa
que fosse contrária ã luz natural, poderíamos refutá-la com a mes-
ma liberdade com que refutamos o Corão ou o Ta/mude' (P. M., II
Parte, cap. VII).
3. Toda essa argumentação pressupõe, no fundo, a identifica-
ção feita por Espinosa entre a vontade e o entendimento, contra Des-
cartes e a filosofia cristã no seu conjunto. Veja-se, a esse respeito, a
Ética, II Parte, prop. 49, corolário e, sobretudo, o escólio: "mesmo
que um homem seja suposto aderir a idéias falsas, não diremos, no
entanto, que ele tem uma certeza. Com efeito, por certeza entende-
mos qualquer coisa de positivo e não a ausência de dúvidas. E por
ausência de certeza entendemos a falsidade".
4. A citação, que no original é referenciada como pertencendo
ao cap. IV, foi corrigida por Ch. Appuhn.
5. Alegação que vai diretamente contra L. Meyer, mas que evi-
dencia bem a contradição implícita na exegese bíblica moderna ao
pretender utilizar, em defesa da verdade dos Livros Sagrados, os
métodos de que a crítica se serve para atacar a teologia.
6. Também Hobbes (Leviathan, cap. XXXII, p. 364) sustenta
que a autoridade dos profetas se averigua pelos sinais e pela dou-
trina. Diferentemente, porém, de Espinosa, que entende o segundo
desses critérios como o da adequação entre a palavra profética e os
princípios da justiça e da caridade, o filósofo inglês toma-o por uma
consonância com a tradição, reservando assim para o soberano a au-
toridade para aquilatar dela.
7. Por "palavra de Deus que está nos profetas" entende-se aqui,
não o conjunto dos seus ensinamentos tomados ã letra, como pre-
tende a tradição farisaica, mas o verdadeiro ensinamento contido
na Bíblia e que Espinosa identificou, anteriormente, com a justiça e
a caridade.
8. Todo o paradoxo da "salvação dos ignorantes" no sistema
espinosista está resumido nesta passagem: se, por um lado, há ra-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 361

zões para considerar a expressão contraditória nos seus próprios ter-


mos, por outro, o fato de Espinosa falar a este respeito de uma "cer-
teza moral" impede que a rotulemos de absurda ou de simples com-
promisso com os leitores. Sobre o assunto, que está longe de uma
solução a salvo de quaisquer reticências, vejam-se as páginas de A.
Matheron 0969, pp. 149-248), que são, por certo, a análise mais pe-
netrante e exaustiva que até hoje se lhe dedicou.

Capítulo XVI

1. A. Droetto, no artigo "Genesi e storia dei Tratado Teologico-


Político" (Studi Urbinati, 1969, pp. 135-79), cuja tese retoma nas suas
anotações ã tradução italiana do TT-P (Boscherini-Droetto, 1982, p.
392), sustenta que a intenção inicial do autor seria, presumivelmen-
te, dar a obra por terminada com o fim do problema teológico, isto
é, com o cap. XV, vendo-se depois tentado a esclarecer alguns pon-
tos de natureza política a que entretanto fora obrigado a aludir e a
expor, em traços gerais, a sua filosofia civil. Se foi assim ou não, é
difícil sabê-lo a partir apenas do fato de a parte política do tratado
constituir uma repetição e um desenvolvimento de pontos já foca-
dos na parte teológica. A verdade, como o próprio Droetto nota, é
que esse mesmo fato denota igualmente a existência de um nexo
sistemático muito mais íntimo e estreito entre as duas partes do que
deixaria supor a sua simples justaposição no livro. Ora, acrescenta-
ríamos nós, esse nexo não provém só da articulação formal estabe-
lecida entre a questão religiosa e a questão política: pelo contrário,
ele é inevitável e essencial se não quisermos que o TT-P seja lido
como um vulgar libelo contra os teólogos. A distinção entre ciência
e fé, conclusão da primeira parte, não pode ser deixada como um
mero enunciado racional, sem se evidenciarem as suas conseqüên-
cias na ordem prática. Daí a necessidade de uma reflexão política
que explicite, do ponto de vista da experiência, ou seja, do possível
enquadramento das paixões, quais os limites em que deve conter-
se a potência individual a que se reconhece ilimitada liberdade de
opinião e expressão.
2. A expressão "optima Respublica" não pode, a nosso ver, en-
tender-se como "Estado ideal" e, por isso, a traduzimos por "Estado
bem ordenado'', tentando retirar-lhe a conotação de um modelo de
Estado construído ã margem da experiência, o qual seria estranho ã
concepção espinosista. Até certo ponto, é a mesma idéia que ressur-
362 ESPINOSA

ge atualmente num]. Rawls, ao dizer que "uma sociedade é bem or-


denada quando está, não apenas destinada a aumentar o bem dos
seus membros, mas também regulada por uma concepção pública
da justiça, quer dizer, quando é uma sociedade em que, primeira-
mente, cada um aceita os mesmos princípios de justiça e sabe que
os outros fazem o mesmo, e em que, em segundo lugar, as institui-
ções sociais de base satisfazem, de uma maneira geral, esses princí-
pios e são reconhecidos como tal" (A Theory o/justice, § 1). Aqui,
porém, como observa F. Gil (Enciclopaedia Universalis, Sympo-
sium, p. 1090) "o problema é saber se e em que condições se reve-
la praticável um acordo sobre os princípios da justiça", problema
este que Espinosa contorna ao considerar tal acordo como resultan-
te de uma progressiva emenda passional que permite chegar a equi-
líbrios políticos razoáveis.
3. Tese contrária à de Grócio, que fundamenta o Estado naqui-
lo a que chama o "direito natural individual". G. Gurvitch enuncia
com clareza essa diferença quando escreve que, "segundo, Grócio,
o indivíduo, mesmo no estado natural, está sempre ligado a um 'todo
social'. A sua posição é, decididamente, a de um antiindividualista.
Não parte dos elementos componentes mas do todo; não parte do
indivíduo mas do 'cosmos' social, da natura societatis ( ... ). Como
Aristóteles, afirma que o homem é por essência um 'animal político'
e que a sua qualidade predominante é o appetitus societatis, não se
podendo imaginar o indivíduo fora do liame que o liga ao todo"
(Gurvitch, 1932, pp. 176-7).
4. O jus et institutum naturae corresponde ao direito natural
objetivo, ou seja, ao conjunto de leis da natureza pelas quais os se-
res existem e agem. Uma vez mais, é de salientar que, para Grócio,
havendo embora lugar para se falar de uma lei natural individual
(que se fundamenta no instinto de conservação, mas é apenas uma
regra moral e não jurídica), o verdadeiro direito objetivo dá-se no
plano das relações inter-humanas e define-se, em última instância,
como obrigação de respeitar os direitos subjetivos dos outros. Hob-
bes, rejeitando o "apetite de sociedade" e, por conseguinte, qual-
quer obrigação natural de respeitar os direitos alheios, concluía já
que os únicos limites ao direito subjetivo de cada um, isto é, o di-
reito objetivo, ou lei natural, como ele prefere chamar-lhe, consiste
num conjunto de regras racionalmente deduzidas que nos impõem
a autoconservação. Espinosa vai mais longe e faz, no presente capí-
tulo, coincidir o direito subjetivo com o direito objetivo, sendo que
um e outro coincidem com a potência do indivíduo: na medida em
1RA TADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 363

que Deus tem direito a tudo e a potência da natureza é idêntica à


potência de Deus, o indivíduo - parte da natureza - tem tanto direi-
to quanta potência tiver (cf. para uma análise desenvolvida da de-
dução espinosista, 1984, pp. 69-94).
5. A definição do conatus aqui explicitada como in suo statu
perseverare será alvo, na Ética (III Parte, prop. 7 e 8), de uma refor-
mulação bastante mais consentânea com a substantia actuosa e que
se traduz por um in suo esse perseverare.
6. Todo este parágrafo constitui uma crítica cerrada ao jusnatu-
ralismo, o qual contrapõe ao "instinto" os "ditames da razão" e fun-
da assim o direito de natureza numa suposta ordem moral eterna e
universal. Espinosa, como vemos, reduz essa ordem moral ao plano
da razão humana, que julga em função do seu próprio interesse, so-
brepondo-lhe a ordem do todo ou leis da natureza. O erro aqui evi-
denciado é, no fundo, aquele que Kant, na Crítica da Razão Pura,
atribui ao dogmatismo, que encara a totalidade da experiência de
um ângulo que convém apenas a um dos seus aspectos particula-
res. O próprio Hobbes, no cap. XIV do Leviathan, cuja estrutura é
semelhante à deste capítulo do Tratado, apresentava o direito natu-
ral objetivo, a que chama lei da natureza, em confronto com o di-
reito subjetivo, para em seguida fundar racionalmente a obrigatorie-
dade dos contratos. Espinosa, inversamente, identifica o direito na-
tural e a lei natural: sem atentarmos neste pormenor, não percebe-
remos a diferença essencial que separa as duas filosofias políticas e
a razão por que, no Tratado Político, será logicamente abandonada
a noção de contrato.
7. Ao longo do parágrafo, foi feita a demonstração de que o
pacto é conforme ao que a razão determina, demonstração que se-
gue muito de perto a de Hobbes. Porém, a interrogação final faz in-
flectir o sentido da reflexão e marca precisamente a diferença entre
os dois autores. Porque em termos políticos, de pouco adianta tal
conformidade quando se sabe que a maior parte dos homens não
chega a conhecer o que lhe é verdadeiramente útil. E depois, como
se disse mais atrás, para além das regras racionalmente deduzidas,
há a lei geral da natureza, que rege a existência de todos os seres,
inclusive dos seres humanos. Ora, o pacto, ou está fundado nesta
lei ou não tem aplicabilidade. Daí que a sua verdadeira condição
seja um equilíbrio surgido da própria dialética passional.
8. Partindo de Hobbes, Espinosa acaba por se encontrar com
Maquiavel, que já havia sustentado doutrina semelhante: "Um prín-
cipe prudente não pode nem deve guardar fidelidade à sua palavra
364 ESPINOSA

quando a fidelidade se volta contra si e quando já tiverem desapa-


recido os motivos que determinaram a sua promessa. Se os homens
fossem todos bons, este preceito não seria correto, mas visto que
eles são maus e não guardariam a sua palavra para contigo, também
não há razão para que guardes a tua. Além de quê, não faltarão ja-
mais pretextos legítimos com o que o príncipe possa disfarçar a vio-
lação das suas promessas (O Príncipe, cap. XVIII, p. 156). Com-
preende-se assim o motivo por que Espinosa retoma dois exemplos
de Hobbes - a promessa ao ladrão ou inimigo e a promessa de je-
juar 20 dias - e os resolve a ambos de forma inversa ã que surgia
no Leviathan (cap. XIV, p. 126). Aqui, o contrato feito com o ladrão
passava a ser válido e, portanto, a obrigar-me, a partir do momento
em que aquele cumpria o estipulado, ou seja, me deixava com vida.
A promessa do jejum prolongado era, por sua vez, sempre nula, vis-
to não ser possível a alguém querer uma coisa que põe a sua vida
em perigo. Em qualquer dos casos, a validade ou nulidade do con-
trato dependeria da sinceridade dos contratantes: é uma lei da ra-
zão que se respeitem os contratos, desde que não haja motivo para
suspeitar que o outro vai faltar ao prometido. Mas Espinosa assenta
a sua teoria na lei natural, que coincide com o direito natural, e, por
isso, ninguém renuncia a uma coisa a não ser por medo de outra
pior ou na esperança de outra melhor. Conseqüentemente, o con-
trato com o ladrão é nulo desde o princípio, porque tanto ele como
eu sabemos, ã partida, que não vou ter interesse em cumprir o que
prometi: não houve contrato, houve um logro em que eu fiz cair o
adversário para me ver livre dele, quer dizer, houve "dolo bom",
como Espinosa lhe chama, recorrendo ao direito romano. Pelo con-
trário, é possível eu prometer jejuar pensando que daí tiro algum be-
nefício e, nesse caso, enquanto assim pensar a promessa é válida,
cessando, todavia, a partir do momento em que eu concluir o con-
trário. Escusado será dizer a importância de que isso se reveste em
termos políticos, como acrescenta o autor.
9. É a tese fundamental do contratualismo espinosista. Mas po-
der-se-á, de fato, chamar-lhe ainda contratualismo, apesar de Espi-
nosa, no TT-P, assim a designar? Na verdade, se a analisarmos nos
seus pressupostos, concluiremos que, em rigor, a transferência de
direito que o contrato implica não é mais que um meio de que o in-
divíduo se serve para prosseguir a sua conservação, isto é, de obter
o que quer, cessando logo que ele quiser e puder fazer outra coisa.
Veja-se como esta questão é levada às suas últimas conseqüências
no Tratado Político (cap. II, § 12), onde desaparecem todas as am-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 365

bigüidades a que dá lugar aqui a utilização da terminologia jusnatu-


ralista.
10. A tão citada carta L, em que Espinosa explica a Jarig Jelles
a sua diferença em relação a Hobbes no campo político, já está con-
tida neste parágrafo. Nessa carta, escrita só em 1674, o autor limitar-
se-á, com efeito, a formular a síntese: "a diferença está em que, para
mim, o direito natural não desaparece e o soberano não tem, numa
cidade, nenhum direito sobre os súditos a não ser na medida em
que, pela sua potência, é superior a eles; é a continuação do estado
de natureza".
11. A diferença entre Hobbes e Espinosa na apreciação dos di-
versos tipos de regime tem a sua razão de ser nos pressupostos teó-
ricos de onde cada um deles parte. Separando a lei e o direito, e
deduzindo o Estado a partir daquela, Hobbes pensa que os três ti-
pos de regime não se distinguem entre si em função do poder, mas
em função da maior ou menor "aptidão para produzir a paz e a se-
gurança do povo" (Leviathan, cap. XIX, p. 173). Porque, se o poder
nasce pelo contrato, quer ele esteja nas mãos de um indivíduo, de
uma assembléia restrita ou de uma assembléia alargada, "todos os
indivíduos são autores de tudo quanto o soberano faz" (idem, cap.
XVIII, p. 163). Pelo contrário, Espinosa, fazendo coincidir a lei e o
direito, é levado a concluir uma diferença de "natureza" entre os re-
gimes. Dito de outro modo, a sua maior ou menor operacionalida-
de é uma conseqüência da sua maior ou menor consonância com o
direito natural, definido como regra do existir e agir de todos os se-
res. É nessa perspectiva que a democracia surge como "o mais na-
tural de todos", porquanto nela se assume a impossibilidade da trans-
ferência dos direitos individuais e se procura identificar a lei com a
vontade e a potência coletiva.
12. Uma vez mais, é a experiência que aconselha a conformi-
dade com os ditames da razão e não o inverso. A inspiração colhi-
da em Maquiavel é o fio condutor da superação que Espinosa faz
do contratualismo.
13. Em termos absolutos, "uma coisa é livre quando existe uni-
camente segundo a necessidade da sua própria natureza e só por si
é determinada a agir" (Ética, 1 Parte, def. 7). Em termos relativos, po-
rém, o agir às ordens de outrem, ou seja, obedecer, pode-se tradu-
zir em utilidade para a natureza de quem obedece. Daí que seja
necessário considerar a actionis ratio, o fim da ação, para a classifi-
carmos, contrariamente ao que faz Hobbes (cap. XX, p. 186), que
identifica os direitos e conseqüências do poder paterno e do poder
366 ESPINOSA

senhorial com os de um soberano. O fim da obediência ao sobera-


no é o bem-comum e, por conseguinte, o bem de cada um dos que
obedecem. Não o que lhe é "verdadeiramente útil" ou o "sumo bem",
mas, em todo o caso, os bens materiais e a segurança de que preci-
sa. Nessa medida, o homem que se guia pela razão e, portanto, é in-
teriormente livre, observa as leis do Estado, como Espinosa diz em
rodapé, demarcando-se, ainda aqui, de Hobbes, para quem o obje-
tivo da segurança seria contraditório com a liberdade dos súditos.
14. No original, contrapõe-se o jus (direito civil privado) à in-
juria, que optamos por traduzir por "violação".
15. O recurso a considerações inspiradas em Maquiavel é usa-
do aqui contra o direito internacional tal como este fora teorizado
por Grócio, a partir do appetitus societatis, que existiria também en-
tre as nações e permitiria a criação de uma ordem interestatal. So-
bre este tema, recordem-se as sempre oportunas considerações que
Kant viria a fazer no seu ensaio de 1795, À paz perpétua.
16. Mais do que "anterior à religião", o estado de natureza é,
na sua acepção autenticamente espinosista, oposto à religião. Esta,
como se sabe, consiste na obediência. A natureza, quer a entenda-
mos como o estado de antes do conhecimento da lei ou revelação,
quer a entendamos como o verdadeiro objeto do conhecimento no
qual reside o "sumo bem" do homem, é sempre conotada com a li-
berdade.
17. A argumentação desenvolvida neste parágrafo segue de
muito perto o estatuto do soberano tal como ele é definido por
Hobbes. As dificuldades que se levantam derivam, portanto, desse
duplo registro em que o texto se inscreve - o espinosismo e o con-
tratualismo - seja por atenção aos leitores, seja, mais provavelmen-
te, porque na altura o autor ainda nào se apercebera de todas as
conseqüência políticas do seu sistema metafísico. Como se poderá
verificar, as dúvidas que o próprio formula estão à margem da tese
da identificação de Deus com a natureza, na qual, por sua vez, se
baseara a teoria do direito natural. Transposta a filosofia política
para esse plano, a pertinência de uma categoria como a de "estado
de natureza" será praticamente nula, visto não se poder reconhecer
o "estado civil" como sua negação. A partir do momento em que se
recusa qualquer ordem transcendente, todas as formações políticas
se organizam em função dos equilíbrios de potência em que se ex-
prime a natureza.
18. Já antes se deixou claro em que consiste a verdadeira reli-
gião e é óbvio que essa não pode ser alvo das prescrições de um so-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO 367
berano qualquer. Por isso mesmo, nos capítulos seguintes, o autor
sublinhará a necessidade, aí implícita, de o Estado conceder plena
liberdade de crença e expressão, se quiser estar em sintonia com a
natureza das coisas, permitindo assim as controvérsias mas evitan-
do que elas degenerem em guerras. Uma vez mais, a coincidência
com Hobbes é apenas pontual e esconde a verdadeira divergência.
De fato, o filósofo inglês, que analisa primeiro a questão política e só
depois a religiosa, é levado a concluir que não pode haver contradi-
ção entre a lei de Deus e a lei de um Estado cristão: "as leis de Deus
não são senão as leis da natureza, a principal das quais é que não de-
vemos violar a palavra dada, quer dizer, o mandamento de obedecer
aos nossos soberanos civis, que por mútuo convênio de uns com os
outros constituímos como superiores a nós" (Leviathan, cap. XLIII, p.
587). Para Espinosa, que procede de modo inverso, ou seja, trata pri-
meiro a questão religiosa e só depois a política, o problema já não é
legitimar a obediência dos cristãos ao soberano: é, sim, estatuir a so-
berania em termos que suprimam o diferendo religioso.

Capítulo XVII

1. Tal como vinha definido por Hobbes, o contratualismo re-


vela-se ilusório e inútil. A experiência demonstra que os soberanos
continuam dominados pela paixão do medo, o que é contraditório
com a suposta transferência de todos os direitos dos súditos para as
suas mãos. Daí que todo o exercício do poder, como o presente ca-
pítulo evidencia, redunde em permanente reatualização do direito,
ou seja, da potência que efetivamente detêm os soberanos, através
de todos os meios ao seu alcance. Dito de outro modo, a política
não está suspensa de contratos, está, sim, suspensa de fatos.
2. Traduzimos assim o imperii jus et potestas, por se considerar
ser menos claro e exato traduzi-lo, como às vezes aparece, por "o
direito e o poder do governo, expressão que, sobretudo hoje, cono-
tando embora um "órgão de soberania", não cobre todo o alcance
e o significado da autoridade política em absoluto, a qual se aproxi-
ma muito mais da noção moderna de Estado.
3. A sutileza da distinção entre obediência externa e assenti-
mento interno, colocando uma coisa e outra como possíveis expres-
sões do poder, decorre logicamente da distinção entre o conheci-
mento filosófico e a imaginação, e da inserção da política, como da
fé, neste último campo.
368 ESPINOSA

4. Intérpretes houve que leram nesta frase um verdadeiro ape-


lo à açào política (cf. Tosei, 1984, p. 295). É, no entanto, evidente
que a expressão hoc opus hic labor est não pode traduzir-se ã letra,
fazendo-se tábua rasa do sentido banalíssimo que sempre teve em
latim, para dela se extrair qualquer coisa como uma apóstrofe!
5. A mesma alegação aparece em].-]. Rousseau (O Contrato
Social, livro II, cap. VII) e é, de resto, utilizada com freqüência pela
libertinagem de seiscentos e setecentos (cf. Tratado dos três imposto-
res), embora com um objetivo diferente do de Espinosa, qual seja o
de reduzir a religião à "impostura" com intuitos dominadores.
6. Hobbes (Leviathan, cap. XXXI, p. 345) chama a este reino o
"reino profético", reino que existiu historicamente e ao qual, é ób-
vio, nenhuma Igreja pode reivindicar a sucessão. A formulação de
Espinosa, sem deixar de implicar idêntica conclusão, é bastante me-
nos circunstancial e visa mostrar, como a seguir se pode ver, que a
transferência do direito natural para Deus equivale a uma não trans-
ferência e, por conseguinte, a teocracia em estado puro equivale a
uma democracia. É o que a análise do aparelho de Estado confirma,
mas é também o que se poderia deduzir de toda a doutrina do di-
reito natural já exposta.
7. A "suposição'', comoº lhe chama o autor, de que Deus é o
soberano de Israel, não tendo embora contrapartida no plano da
organização do Estado, é, todavia, um elemento importante na sua
fundação e defesa, visto ser essa mediação simbólica que produz a
efetiva agregação dos indivíduos.
8. A leitura da Bíblia que Espinosa faz nesta passagem consti-
tui um nítido ajustamento de textos onde será difícil, para qualquer
leitor, descortinar a clareza doutrinária que o comentário lhe atribui.
Hobbes, por exemplo, e por razões que facilmente se compreen-
dem, passa em claro o caráter democrático que o TT-P vislumbra
nesse primeiro pacto (Leviathan, cap. XL, pp. 463-4) considerando-
º uma reativação da aliança celebrada por Deus com Abraão e evi-
denciando em seguida o caráter autenticamente político que ela ad-
quire a partir do momento em que são os hebreus a transferir o po-
der de Moisés.
9. Conforme o autor explica na nota da página a seguir, esta
especificidade do regime teocrático em vigor depois de Moisés es-
capa à maioria dos intérpretes. É mesmo provável que Espinosa te-
nha em mente a leitura feita por Hobbes, que não reconhece outros
regimes além do monárquico, do aristocrático e do democrático,
confundindo a teocracia com o primeiro, no intuito de demonstrar
TRATADO TEOLÓGJCO-POLÍ11CO 369
que o poder legislativo e o poder executivo, ou seja, o poder de in-
terpretar e de fazer aplicar as leis, estavam nas mãos do mesmo in-
divíduo e que assim deveria acontecer nos Estados cristãos (Levia-
than, cap. XL, p. 465). É contra este absolutismo que Espinosa irá
demonstrar, até o final do capítulo, a separação dos poderes religio-
so e civil subjacente a um regime que continua a ter Deus no seu
vértice, como verdadeiro rei, e por isso se designa por teocracia. Cf.
infra, nota 15.
10. No original, Praepotentes Confoederati Belgarum Ordines.
Trata-se das Assembléias (ordines) de província que em finais do
século XV se tinham constituído nos Países Baixos contra a política
repressora do movimento comunal levada a cabo por Filipe de Bor-
gonha. O congresso dos seus representantes veio depois a consti-
tuir os "Estados Gerais", verdadeiro parlamento nacional das Pro-
víncias Unidas ou Estados Confederados, muito embora cada uma
das Assembléias ou Estados tenha integralmente mantido as suas
prerrogativas, o que justifica a designação de Praepotentes que se
lhes atribuía.
11. A par da simples interpretação do texto bíblico e do seu
enquadramento no plano jurídico, é uma constante no TT-P a expli-
citação do conteúdo propriamente político formalizado no direito.
Nesse caso, para além do problema da tipificação do regime e, so-
bretudo, dos critérios de legitimação dos profetas, Espinosa tenta
evidenciar as efetivas relações de poder delimitadas por esse qua-
dro, chamando assim o político, sempre na esteira de Maquiavel, ao
campo experiencial dos homens que existem e não daqueles que de-
veriam existir. Diferentemente, pois, do que julga Hobbes, o prínci-
pe não detém por natureza a legitimidade de Moisés, mas tem ao
seu dispor mecanismos que lhe dão a possibilidade de submeter
aqueles sobre quem a ideologia lhe confere tal legitimidade.
12. Toda essa passagem, que se prolonga por algumas páginas,
constitui uma notável fenomenologia do elemento nacional como fa-
tor de integração social e dinamização política.
13. Tbeologastri: neologismo com uma carga altamente pejora-
tiva e sarcástica que pretende designar aqueles que vivem da, e não
para a, teologia.
14. A associação do milagre aos períodos de crise é uma insi-
nuação de natureza meramente retórica que Espinosa inibe, como
vimos, em sede metafísica. Dado, porém, o estatuto atribuído ã cren-
ça em fatos extraordinários, não custa admitir que aquela seja uma
conseqüência social historicamente verificada, o que não é de some-
nos na filosofia política de Espinosa.
370 ESPINOSA

15. Para Hobbes (Leviathan, cap. XL, p. 470), esta mudança em


nada alterou a natureza do regime, uma vez que os poderes que os
reis passam a exercer são precisamente os mesmos que antes exer-
cia o sumo-sacerdote. Para Espinosa, pelo contrário, começa aqui a
monarquia, passando-se de um regime de separação dos poderes
para uma tirania pessoal.

Capítulo XVIII

1. Tal como outros intelectuais seus contemporâneos, Espino-


sa distancia-se do emaranhado de discussões teológicas que o cir-
cundam, considerando as várias posições em presença como idéias
inadequadas que se autopromovem a verdade absoluta. As raízes
que atribui a esse mal são, no entanto, diferentes, como diferente é
a solução que sugere. Não é a variedade de opiniões que constitui
o perigo. O perigo vem da sua degenerescência em seitas, o que
acontece quando os poderes públicos tomam partido na contenda
transformando as discussões em guerras civis. Daí que as autorida-
des devam permitir a livre expressão e, ao mesmo tempo, abster-se
de intromissões.
2. Reciprocidade da não intromissão: tal como a política não
deve interferir nas convicções religiosas, cabendo-lhe apenas a re-
gulação do culto externo, assim os responsáveis pelas religiões não
devem interferir na política. Já Hobbes tinha dedicado o capítulo XLII
do Leviathan para demonstrar o infundado do poder eclesiástico,
contra a tese oposta sustentada pelo cardeal Belarmino, em 1610,
no De potestate summi pontifici in rebus temporalibus.
3. Maquiavel interrogava-se sobre este mesmo problema, no
cap. V d' O Príncipe, que tem por título exatamente "De que modo
se devem governar as cidades ou principados que antes da conquis-
ta se regiam pelas suas próprias leis''. Tal como acontece com o ca-
pítulo anterior, onde alguns autores (Tosei, 1984, p. 74) vêem uma
"análise cifrada" da situação holandesa na década em que o TT-P é
escrito, não é difícil ver, também aqui, algumas coincidências. É no-
tória, de resto, ã medida que o livro se aproxima do fim, uma alu-
são cada vez mais freqüente ã experiência das Províncias Unidas.
4. Conforme ficou exposta no cap. XVI, a doutrina espinosista
do contrato exclui toda a velha questão do tiranicídio. Porque já não
se trata, efetivamente, de saber se é justo em determinadas circuns-
tâncias revoltar-se contra o soberano, como sustentam vários pen-
TRATADO 1EOLÓGICO-POLÍ11CO 371

sadores cristãos, de São Tomás a Suarez e de Lutero a Calvino, ou


se é lícita apenas a revolta contra o tirano, como pretende Jean Bo-
din. Contrariamente ao que diz Hobbes (Leviathan, cap. XVIII, pp.
160-1), para quem o contrato se faz entre os súditos e, por conse-
guinte, é impossível o soberano violar algo que está na sua origem
mas a que ele não está sujeito, Espinosa, ao defender que os pactos
são válidos ou não em função da sua utilidade, afasta o problema
da legitimação político-moral do assassínio do soberano, seja este
ou não um tirano.
5. Robert Dudley, o favorito da rainha Elizabeth I e por ela no-
meado conde de Leicester, foi enviado, em 1585, para a Holanda
com um exército de seis mil homens destinado a apoiar a revolta
das Províncias contra a Espanha. Fosse pelo sentido da autonomia
conservado pelos holandeses, fosse pela arrogância e inabilidade
de Leicester na condução dos negócios políticos e militares, o fato
é que a rainha o manda regressar a Inglaterra, em 1587. A tese de
que os Estados de Holanda tinham sido soberanos até ao momento
em que os Países Baixos, no final do séc. XV, foram doados por
Maria de Borgonha a Maximiliano de Áustria e ficaram feudo do
Império, era já utilizada por Grócio (De Antiquilate Reipublicae Ba-
taviae) contra as pretensões de Maurício de Orange, que se propu-
nha reunificar a Holanda e restaurar a monarquia absoluta. Grócio,
no entanto, não se manifesta tão seguro quanto o fará Espinosa so-
bre a dependência dos condes relativamente às Cortes após a recu-
peração da autonomia. Pelo contrário, refere até que, no domínio
da política externa, eles eram semelhantes aos reis, o que tinha ne-
cessariamente conseqüências no plano interno. E a melhor prova
desta sua precaução viria a ser o exílio a que, em 1618, ele próprio
foi condenado.

Capítulo XIX

1. Por "jus sacrum" ou "jus circa sacra" entende-se o tào discu-


tido poder dos órgãos de soberania em matéria religiosa, constituin-
do aquilo que mais tarde virá a constituir-se em disciplina como "di-
reito canônico". Também aqui, o ponto de partida para a reflexão
de Espinosa é Grócio, que, no De imperio summarum potestatum
crica sacra (1614), teorizava a questão dos efeitos políticos da reli-
gião, já sublinhados por Maquiavel e Bodin, em termos que tenta-
vam reduzir ao mínimo aquilo que de especificamente teológico fi-
372 ESPINOSA

caria sob a alçada do poder civil. Espinosa possuía o livro, mas a


doutrina que sustenta é, em grande parte, subsidiária daquela que
Hobbes apresenta no Leviathan. Fazendo seus os argumentos que
o filósofo inglês aduzira contra as pretensões do pontífice romano a
uma supremacia sobre o poder temporal, o TT-P não irá, porém, a
ponto de defender a transferência para os soberanos de todos os di-
reitos que nega ao Papado. O seu objetivo é concluir pela liberda-
de de pensamento. Por isso, considera os soberanos como intérpre-
tes da "lei de Deus", isto é, concede-lhes o "jus circa sacra", mas só
depois de ter reduzido a "lei de Deus" ao mandamento da justiça e
da caridade, base de toda a legislação civil, e de a ter furtado ao
plano das discussões teológicas.
2. Hobbes, no capítulo XLII (p. 583) do Leviathan, é ainda mais
severo que Espinosa: "a ação de Santo Ambrósio, se é verdade que
excomungou o imperador Teodósio, constitui um delito capital".
3. O "jus imperii" corresponde ao conceito de soberania teori-
zado por]. Bodin nos Seis Livros da República. Diz este: "a primei-
ra característica do príncipe soberano é a potência de dar a lei a to-
dos em geral e a cada um em particular; mas isto não é tudo, pois
é preciso acrescentar que. ele o faz sem o consentimento de nin-
guém, seja superior, igual ou inferior a si" (op. cit., livro 1, cap. XI).
4. Esta formulação, com vestígios nítidos do Leviathan, que
por mais de uma vez aparece no Tratado não deve iludir o verda-
deiro caráter da democracia, como dos outros regimes, na concep-
ção política de Espinosa. Como já referimos, o fato de um sistema
político, enquanto estrutura organizada que possibilita a regular aqui-
sição de bens pelos indivíduos que o integram, ser algo que está de
acordo com o que dita a razão, não quer dizer que seja nela que re-
side a sua gênese, a qual está sempre no plano da imaginação e das
paixões que mútua e naturalmente se equilibram. Nem de outra for-
ma poderia pensar-se, quando se observa, como Espinosa repetida-
mente faz e como já Maquiavel referira, que a maioria dos homens
não atua em função da razão mas sim dos instintos e que a política
diz respeito aos homens tal qual eles são. A diferença, neste capítu-
lo, em relação quer ao jusnaturalismo, quer a Hobbes, não poderia
ser maior.
5. O poder temporal do Papa havia sido sancionado pelo IV
Concílio de Latrão, convocado por Inocêncio III, em 1215. Já no sé-
culo anterior, porém, Gregório VII defendia a doutrina da plenitudo
potestatis de Roma, fazendo notar que "o Papa é o único homem a
quem os príncipes beijam os pés".
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 373
6. A conclusão reflete exatamente o mesmo ponto de partida
de todas as reflexões jurídicas anteriores sobre a questão (Bodin,
Grócio, Hobbes, etc.). No caso específico da Holanda, sobre o qual
trabalham Grócio e Espinosa, o problema ganha uma pertinência
muito maior do que aquela que apresenta em países onde se limita
a um confronto entre o rei ou imperador e o Papa. Ali, de fato, a li-
berdade religiosa e o conseqüente acolhimento de pessoas profes-
sando as mais diversas crenças vão gerar toda uma problemática
nova no domínio da jurisprudência, a partir do momento em que' o
direito civil se vê contraposto à legislação religiosa de confissões,
como o judaísmo, que têm vastas implicações no quotidiano dos
seus membros.
7. É esta a principal crítica que Erasmo faz à Igreja: "os artigos
de fé aumentaram, mas a caridade foi diminuindo; as discussões
aqueceram, mas a caridade arrefeceu" (cit. in]. Lecler, 1955, p. 145).

Capítulo XX

1. A ruptura com Hobbes é flagrante neste capítulo. No Levia-


than, cap. XL, p. 462), afirma-se que do "pensamento íntimo e da
crença dos homens" os soberanos não podem ter notícia, pois "só
Deus conhece o coração". Mas isso significava apenas a impossibi-
lidade prática de abranger pela legislação tal domínio e não que o
direito do soberano, por natureza absoluto, cessasse perante ele.
Espinosa, pelo contrário, opõe um resíduo de direito natural indivi-
dual, absolutamente intransferível, ao direito das autoridades, o que
implicará, de imediato, a possibilidade de o soberano cometer in-
justiças, coisa que Hobbes não admitia.
2. O que o autor critica em Hobbes é, afinal, a dedução dos di-
reitos do soberano a partir de uma lei da razão que, tomada abstra-
tamente, leva a situações que contradizem a mesma razão. A anti-
nomia pode enunciar-se assim: o desejo de segurança, para ser ple-
namente satisfeito, postula a concentração de todo o poder nas
mãos do soberano; mas se este exercesse todas as prerrogativas
contidas no contrato, a violência do soberano incitaria a violência
dos súbditos, o que seria desvantajoso para todos; em conclusão, o
soberano não pode querer exceder-se para além de certos limites, o
que significa que não tem nas suas mãos um poder absoluto.
3. A paixão que Espinosa coloca na origem última do Estado
é, como faz Hobbes, o medo. Simplesmente, enquanto este consi-
374 ESPINOSA

dera que para afastar o medo recíproco que os homens têm uns dos
outros é necessário que todos temam o Estado, o autor do TT-P sus-
tenta que a melhor forma de superar essa paixão é contrapor-lhe
outra, a esperança, criando as condições para que todos possam, na
medida do possível, ou melhor, do "com possível", exercer em se-
gurança a sua atividade. É a doutrina da Ética (IV Parte, prop. 7):
"uma paixão não pode ser reprimida ou contida a não ser median-
te uma outra que lhe seja contrária e mais forte". O verdadeiro fim
do Estado não é, pois, como tantas vezes tem sido interpretado, fa-
zer com que os homens usem da razão, mas sim que eles "possam
usar livremente da razão". Trata-se aqui de liberdade política e não
da verdadeira liberdade, que nasce do viver segundo a razão e não
segundo as paixões, a liberdade que será teorizada na V Parte da
Ética. Porque esta diz respeito ao verdadeiro fim de cada indivíduo;
aquela diz respeito ao verdadeiro fim do Estado, que é dar a todos
os mesmos direitos, sejam eles doutos sejam ignorantes. Ao contrá-
rio do que pretende, por exemplo, Leo Strauss, que considera que
o Estado livre é aquele em que todos saíram da superstição, a ver-
dadeira função da política é garantir a segurança, isto é, salvaguardar
o direito de natureza, e, ao mesmo tempo, garantir a autonomia de
cada um. Como diz M. Corsi 0978, p. 51), "a política tem a função
de preservar e não de constituir o humano".
4. Sui juris non esse-. a expressão remete para o direito tal como
Grócio o entendia. Ser sui juris (que traduzimos por "ter autono-
mia") é ser senhor do seu corpo - o que implica o direito de exigir
que os outros lho respeitem e a reparação dos danos que lhe cau-
sarem - e ser, ao mesmo tempo, senhor dos seus atos - o que im-
plica que ninguém tenha o direito de lhe mandar seja o que for. Em
contrapartida, ser alterius juris (expressão que Espinosa utiliza em
vez de alieni juris e que traduzimos por "estar sujeito ao direito
alheio") significa ter perdido, ou porque se foi dominado por outrem
ou porque com ele se pactuou, as prerrogativas inerentes a ser sui
juris (cf. Matheron, 1984, p. 86).
5. A perspectiva de Espinosa sobre a relação entre a ciência e
a política está, não só muito afastada ainda da perspectiva iluminis-
ta, como até, de certo modo, no pólo oposto. Não é, efetivamente,
a ciência que é pensada como condição para o desenvolvimento da
sociedade e para a felicidade dos homens: é, pelo contrário, o pro-
blema político que é prioritário, estando o progresso científico de-
pendente dele.
6. Rousseau irá também considerar o contrato social como des-
tinado a aproximar o homem, tanto quanto possível, da sua condi-
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍ11CO 375

ção natural, neutralizando os perigos inerentes ao viver em socieda-


de. Mas é manifesto que, enquanto Rousseau pensa a natureza do in-
divíduo e a liberdade a partir da idéia dos "direitos do homem", ins-
crevendo-se ainda no mesmo paradigma dos jusnaturalistas a quem
tanto critica (cf. O Contrato Social, livro II, cap. IV e VI), Espinosa,
mesmo quando trabalha com a noção de contrato, situa-o no plano
da opinião, sempre revogável porque não assistida por uma raciona-
lidade como a que aparece hipostasiada na "vontade geral".
7. Alusão ã polêmica entre os partidários de Armínio e os de
Francisco Gomar. Aqueles combatiam as teses de Calvino sobre a
predestinação e, no plano político, manifestavam-se a favor da liber-
dade das Províncias ou Estados autônomos holandeses, ao passo
que os gamaristas eram pela unificação e contra as Cortes. Armíiüo
morre em 1609 e, no ano seguinte, os seus adeptos apresentam ao
Conselho provincial um texto em defesa das suas teses a que foi dado
o nome de Remonstraçâo e que foi condenado pelo sínodo de Dor-
drecht. Daí a designação de remonstrantes por que ficaram conhe-
cidos e a de contra-remonstrantes atribuída aos seus adversários.
8. Trata-se, obviamente, de uma defesa em causa própria, ain-
da que em perfeita consonância com os pressupostos teóricos apre-
sentados e com o tipo de regime preconizado.

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