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Setembro de 2021
Trabalho de projeto apresentado para cumprimento dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Mestre em Antropologia, área de especialização
em Culturas Visuais, realizado sob a orientação científica de Catarina Alves Costa.
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Para meu filho, Antonio, espero que este trabalho o ajude a criar asas e raízes.
Eu vos digo: é preciso ter ainda o caos dentro de si, para poder dar à luz uma
estrela dançante. Eu vos digo: tendes ainda o caos dentro de vós.
Friedrich Nietzsche
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AGRADECIMENTOS
Quero agradecer ao meu pai, José Alberto, que, por ser português, instigou em mim a
vontade de conhecer Portugal. Ao meu filho, Antonio, pela paciência e por ter compartilhado
comigo um pouco dessa aventura. À minha mulher e parceira de vida, Dora, que, entre tantos
imprevistos e dificuldades, procurou me ouvir e me incentivar em todos os momentos.
À minha mãe, Paula, que, mesmo de longe, esteve sempre tão perto, me apoiando e
acreditando em mim e no meu trabalho.
À minha querida amiga e sogra, Elisabetta Romano, que, com muita generosidade,
doou o seu tempo e o seu conhecimento para me orientar, minha inestimável gratidão. Quero
agradecer imensamente à Manuela Agda Pombinha Santos, minha informante e porto seguro
na Nazaré, responsável por minha hospedagem em um local fantástico no centro histórico e
por muitos contatos e conhecimentos adquiridos sobre a vila, além de uma linda camisa
tradicional de pescador que ganhei de presente. Sem ela este trabalho não teria acontecido.
Manuela, que sorte ter te encontrado. Meu muito obrigado do fundo do coração a você, ao
Rui e à sua mãe.
Meu agradecimento ao Carlos Fidalgo, responsável pelo Centro Cultural da Nazaré,
pessoa incrível e de suma importância para esta pesquisa, não só pelas reflexões e cigarros
compartilhados antes da pandemia, mas por ser um profundo estudioso da vila e por ter
dividido um pouco de seus conhecimentos comigo, tendo me arranjado diversas entrevistas e
me oferecido um espaço para realizá-las. À sua colega Ana Hilário, sempre gentil e atenciosa,
meu agradecimento também.
À minha orientadora, Professora Catarina Alves Costa, que já no primeiro semestre
me encantou com suas aulas de Antropologia e Imagem e me acompanhou ao longo dessa
jornada desde o primeiro momento, meu muito obrigado. Agradeço à minha colega Margarida
de Almeida Vaz, que, por uma coincidência do destino, também escolheu pesquisar a Nazaré,
e com quem pude tantas vezes conversar no terreno e fora dele, tendo me servido como
referência e inspiração. À Professora Ana Isabel Afonso, que, nas aulas de Laboratório de
Projecto, quando esse tema ainda nem havia sido escolhido, me acolheu, motivou e criou
caminhos para me ajudar a viabilizá-lo.
Ao visionário Dino Casimiro, um dos principais responsáveis pela descoberta e
exploração das ondas gigantes da Praia do Norte, meu muito obrigado pelo tempo e pela
entrevista. Ao Diro Sarro, músico e videógrafo nazareno que me ajudou fazendo câmera em
três entrevistas. Ao Mário, proprietário do restaurante O Varino, onde costumava comer,
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e que sempre foi simpático comigo e me contou diversas histórias sobre a vila, mas que nunca
aceitou ser entrevistado.
Ao Sr. Adriano Monteiro, primeiro windsurfista da Nazaré, e aos primeiros surfistas
da vila, João Grilo e João Henrique Eustáquio, que me receberam em suas casas e me
contaram histórias reveladoras sobre o surgimento do surf na Nazaré. Aos atuais recordistas
da maior onda já surfada no mundo, Rodrigo Koxa (surfista) e Sérgio Cosme (piloto), que, no
meio da pandemia, se dispuseram a conversar comigo com toda atenção e sinceridade. Ao
grande surfista Andrew Cotton, um dos primeiros desbravadores das ondas gigantes, que
generosamente veio até a minha casa em Lisboa para uma entrevista. Ao senhor Presidente
da Câmara Municipal da Nazaré, Walter Chicharro, que me recebeu em seu gabinete e me
concedeu uma entrevista fundamental para este trabalho. Ao meu parceiro de bilhar, Eduardo
Amaral, brasileiro e primeiro entrevistado deste estudo, que se mudou para Nazaré
praticamente na mesma época em que comecei o trabalho de campo.
Meu muito obrigado aos entrevistados Hélio António, Joana Andrade, Dona Rosa, Sr.
Galileu e Sr. José Augusto, Rita Brilhante, Francelina, Maria Adelaide, Maria Antonieta,
Maria Ângela, Isaura Fialho, Daniel Meco, Pedro e João.
No mais, quero agradecer a todas as pessoas que cruzaram meu caminho, aceitaram
conversar comigo e serem filmadas por mim, compartilhando seu tempo e sua visão sobre
esse lugar tão especial que é a Nazaré, contribuindo, assim, para a realização desta pesquisa.
A todos, meu muito obrigado.
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A Onda da Transformação – Surf, Turismo e Tradição na Nazaré
KEY-WORDS: Nazaré, surf, big waves, tourism, culture, tradition, identity, ethnography,
documentary, visual anthropology
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 07
2. ENQUADRAMENTO TEÓRICO 10
2.1. Contexto 10
2.2. Enquadramento teórico e audiovisual 12
4. A PESQUISA ETNOGRÁFICA 35
5. CONCLUSÕES 73
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 75
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1. INTRODUÇÃO
Demorei um tempo para entender os motivos pelos quais escolhi a Nazaré e a onda
como tema deste mestrado. Na verdade, acho que ainda estou vivendo esse processo.
A primeira vez que lá estive foi em 2015, com minha mulher e filho, quando ainda nem sabia
que viria a morar em Portugal, o que aconteceu em 2018. Alguns meses após a visita, escrevi
um poema sobre a sensação de ter estado na Praia do Norte:
Por diversas vezes me perguntei e fui perguntado sobre as razões que me levaram a
ter feito essa escolha. Procurava responder de forma lógica. Dizia que era por conta da
tipicidade da vila e do espetáculo incrível das ondas gigantes. Falava da forte tradição da
pesca e da religião católica, através da Lenda da Nazaré1 e de Nossa Senhora da Nazaré, e das
enormes transformações culturais, econômicas e sociais causadas pelo turismo recente em
torno da onda, que traduziam uma nova realidade que acontecia em diversos outros sítios do
país (e do mundo), evidenciando essa luta entre local e global, entre cultura e capital,
modernidade e tradição. Falava da Nazaré como símbolo da identidade portuguesa e de como
entender isso me ajudaria a criar vínculos mais profundos com o país em que escolhi viver,
que, além de ter colonizado o meu país de origem, o Brasil, é a terra de meu pai e de meus
avós, o que me traria uma compreensão melhor de quem sou.
1
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lenda_da_Nazar%C3%A9 (acedido a 24/09/21).
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Considerava também os aspectos práticos, como a proximidade com Lisboa, que me
permitiria, ao mesmo tempo, continuar levando a minha vida na capital e ter essa experiência
de mergulhar em um outro “mundo”, acessível, porém distante o suficiente do meu dia a dia
para causar uma ruptura que trouxesse frescor e curiosidade ao meu olhar. Refletia sobre o
tamanho da vila que, com aproximadamente 15.000 habitantes, não era nem muito pequena
nem muito grande, oferecendo um ótimo espaço de exploração e expansão, porém com limites
bem definidos.
Explicava sobre o surf, uma das minhas grandes paixões, e sobre os impactos que esse
esporte/estilo de vida vem causando em diversos âmbitos no mundo e na sua relação com o
turismo, com a sustentabilidade, com a saúde, com as marcas e com a cultura. E é claro,
pensava bastante na beleza do lugar, da natureza, da arquitetura e das pessoas, e de como essa
estética seria um prato cheio para os meus olhos e, especialmente para as minhas lentes, já
que o meu principal objetivo era fazer um documentário que fosse capaz de, além de contar
uma história, também emocionar e transcender um bocadinho o universo acadêmico se
possível, jogando luz para aspectos fundamentais do mundo atual e ajudando mais pessoas a
se conscientizarem e a refletirem sobre esses desafios.
No entanto, no fundo, nenhuma dessas justificativas sobre a minha escolha parecia
realmente convincente para mim. Com o passar do tempo, fui descobrindo que a Nazaré era
também de certa maneira a minha própria onda gigante. Uma travessia de fronteiras, tempos,
fases e oceanos. Algo realmente grande e inédito que eu talvez ainda não estivesse preparado
para lidar. Mas, o caminho se faz caminhando, e cá estou. Aos poucos, fui percebendo que a
minha busca não tinha sido motivada somente por aspectos racionais e exteriores a mim.
Talvez isso nunca seja assim. E aprendi a integrar esses dois mundos, o de fora e o de dentro
– essas duas “Nazarés” –, e que a minha escolha, na verdade, tinha a ver com isso.
Rodrigo Koxa, surfista brasileiro de ondas gigantes e atual recordista mundial da
maior onda já surfada na história2, com 24,38 metros, fez o seguinte depoimento durante nossa
entrevista sobre sua experiência com o mar:
“A gente tem que traçar um paralelo, aprender com a onda. O mar, ele ensina muito. A água
me ensina muito. A água, ela molda. Então até o que a gente tá vivendo hoje [pandemia de
Covid-19], que é um momento difícil de assimilar, nós temos que estar sempre prontos pra
usar a água como reflexão, porque com a água, ela vai se moldar às circunstâncias daquele
momento. A água vai estar sempre no momento presente, moldada. E você tem que levar isso
2
https://tvtecjundiai.com.br/news/2018/04/29/surfista-jundiai-guiness-onda-recorde1/ (acedido a 24/09/21).
8
como um ensinamento na vida. Você não pode ter um pensamento na sua vida, aquele
pensamento quadrado, ‘que é assim, eu penso assim e ninguém muda minha cabeça’.
No mar não vai dar certo, porque cada momento, cada circunstância vai ter que ser adaptada,
não tem um protocolo. Tem que estar ali, pronto pra conectar e pronto pra mudar e mudar,
e sempre estar aceitando e mudando devido à necessidade. Então o mar ensina, cara. O mar
é uma escola.” (Rodrigo Koxa)
Dito isso, este trabalho de pesquisa de mestrado em Antropologia tem como objetivo,
a partir do filme etnográfico, provocar reflexões sobre o cotidiano e o imaginário da Nazaré
após as transformações ocorridas na vila desde a “descoberta” das ondas gigantes da Praia do
Norte, em 2010, explorando aspectos relacionados a cultura, identidade, tradições, surf
e turismo e o modo como esses elementos se entrelaçam. Como resultado, pretendo produzir
uma reflexão que possa ajudar na elaboração de estratégias para pensar o turismo de forma
sustentável, no intuito de melhorar a vida das pessoas, alertando para a preservação da
natureza e da cultura local, aliada ao desenvolvimento econômico.
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2. ENQUADRAMENTO TEÓRICO
2.1. Contexto
10
Na Nazaré, as ondas gigantes da Praia do Norte – a Praia do Norte e a da Nazaré ficam
uma ao lado da outra, divididas pelo promontório, porém as ondas gigantes ocorrem somente
na Praia do Norte –, que sempre lá estiveram, foram o grande gatilho propulsor dessas
mudanças. As ondas, que chegam a atingir os 30 metros de altura e são consideradas as
maiores do mundo, são causadas pelo fenômeno do Canhão da Nazaré3,4, um desfiladeiro
submarino de origem tectônica com mais de 200 km de extensão, que chega a atingir os 5.000
metros de profundidade e que começa em frente ao Farol da Nazaré, a aproximadamente 400
metros da areia. Devido às suas características e à forma como está posicionado em relação à
praia, esse acidente geográfico é o grande responsável pela formação das ondas gigantes, que
acontecem apenas durantes os meses de inverno e dependem de uma série de condições, como
a força e a direção das ondulações, do vento, das correntes marítimas e das marés. O fenômeno
impacta também a natureza e o clima da região, tornando-os, de forma geral, mais abundantes
e intensos do que em outros sítios. Sua origem ainda está sendo estudada e envolve certo
mistério, já que, em geral, esse tipo de canhão forma-se na embocadura de grandes rios, o que
não é o caso da Nazaré.
3
https://observador.pt/2020/02/11/ondas-como-a-que-atingiu-alex-botelho-tem-energia-suficiente-para-carregar-30-
milhoes-de-telemoveis-a-ciencia-explica-o-canhao-da-
nazare/?fbclid=IwAR1FfJFePjlPqlnVGkwwSpJDq9w8NKxOSn_pF4VmhGOwdOFH7SwxhfX6XlQ (acedido a 24/09/21).
4
https://www.hidrografico.pt/info/3 (acedido a 24/09/21).
11
O projeto de exploração das ondas gigantes da Praia do Norte foi desenvolvido por
um grupo de surfistas locais: Dino Casimiro, Paulo Caldeira, Paulo Salvador e Pedro Pisco,
que desde meninos viam o potencial daquelas ondas, mas não tinham o conhecimento para
surfá-las. Até que, em 2005, decidiram convidar renomados surfistas internacionais de ondas
grandes, os chamados big riders, para tentar desbravar aquelas verdadeiras montanhas de
água. No entanto, o único que aceitou o desafio foi o havaiano Garrett McNamara que, após
5 anos de conversas com Dino Casimiro, finalmente foi a Nazaré, em 2010, com o objetivo
de realizar a façanha. No ano seguinte, no dia 01 de novembro de 2011, Garrett McNamara
bateu o recorde mundial do Guinness ao surfar lá a maior onda da história5, com 23,77 metros.
A partir desse acontecimento e de toda a repercussão que teve na mídia, chegando a
aparecer em 73 canais de televisão pelo mundo, a Nazaré nunca mais foi a mesma. Já nos
finais de semana seguintes à quebra do recorde, a vila pôde começar a sentir um novo fluxo
de visitantes curiosos por saber, afinal, onde e como se formavam as maiores ondas do planeta.
De lá para cá, além de ter se tornado a meca mundial do surf de ondas gigantes, a
Nazaré passou, pela primeira vez em sua história, a ter turismo durante o ano todo (não mais
apenas no verão), o que trouxe profundos impactos econômicos, sociais e culturais, além de
diversos desafios para a vila.
Este estudo pretende discutir as ondas gigantes da Praia do Norte como fenômeno
social e cultural, explorando os impactos de sua ressignificação no imaginário e no dia a dia
da Nazaré, usando como metodologia a antropologia visual e o filme etnográfico, tendo como
base autores e realizadores como David MacDougall, Bill Nichols, Jean Rouch, Eduardo
Coutinho e Heddy Honigmann que, ao longo dos anos e mais especificamente durante essa
pesquisa de mestrado, foram fundamentais para a formação do meu olhar e o desenvolvimento
de uma abordagem para estabelecer uma relação com as pessoas e com a paisagem ao filmar
o campo durante o fazer etnográfico.
Para mim, o ato fílmico da etnografia sempre foi uma espécie de ampliação das
potencialidades dos sentidos e das relações, como se, através dessa prática, fosse possível
5
https://www.surfertoday.com/surfing/guinness-world-records-confirm-garrett-mcnamaras-nazare-wave-as-the-
biggest-ever (acedido a 24/09/21).
12
abrir outras dimensões de troca e fluxo de energia, mais profundos e reveladores, que estariam
fechados sem a câmera e sem esse propósito.
Films allow us to go beyond culturally prescribed limits and glimpse the possibility of being
more than we are. They stretch the boundaries of our consciousness and create affinities with
bodies other than our own. (MacDougall, 2006, pp.16-17)
Thus we see the visual in anthropology kept in safe bounds, like a bomb with the detonator
removed. (MacDougall, 1997, p. 290)
O cineasta Jean Rouch, que não era antropólogo de formação e concentrava boa parte
de sua proposta na prática cinematográfica, a partir do início da década de 1950, foi um dos
principais responsáveis por acelerar essa discussão, revolucionando o modo de realizar filmes
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etnográficos ao trazer elementos mais complexos e sofisticados para a relação entre a imagem
e a antropologia:
Jean Rouch: o antropólogo-cineasta. Se até aqui a imagem estava sendo pensada pela
antropologia como uma janela de acesso ao mundo ou como um instrumento de registro da
realidade mais minucioso, no trabalho de Jean Rouch essa relação entre o fazer antropológico
e a produção de imagens torna-se mais complexa.
Com formação em engenharia, Jean Rouch parte a trabalho para a África no final dos anos
1940 e lá entra em contato com uma realidade bastante heterogênea e diferente da que chegava
à França pelas etnografias clássicas. Decide, então, continuar seus estudos em etnologia e
inicia pesquisa sob orientação de Marcel Griaule. Desde o início, inclui a câmera em sua
estratégia de pesquisa, mas o faz de forma questionadora. A perspectiva que vai se construindo
não é a de uma câmera de filmar que registra dados etnográficos, mas a de um instrumento de
comunicação com a realidade etnográfica. Esse é o primeiro elemento complexificador
introduzido por Jean Rouch, que torna mais densas as situações etnográficas nas quais ele se
envolve.
A câmera estimula a relação no campo com os sujeitos da pesquisa e provoca a relação, fora
do campo, com os espectadores do filme. A prática etnográfica associada ao cinema
propiciaria o estabelecimento de uma antropologia compartilhada, alvo importante do trabalho
desenvolvido por Jean Rouch, em tempos de revisão e crítica ao colonialismo, e, no caso
específico do campo de Rouch, da descolonização e emancipação das nascentes nações
africanas.
A recusa, naquela época, por parte de instituições acadêmicas como a Sorbonne na França,
em considerar o cinema etnográfico uma forma de produção antropológica legítima acabou
por alijar a produção cinematográfica de Rouch e de outros das esferas de discussão
predominantes da antropologia. Essa situação acabou por estimular a discussão que Rouch
desenvolvia quanto ao fazer antropológico. O prolífico antropólogo-cineasta produziu mais de
cem filmes em sua trajetória de mais de 50 anos de trabalho.
Rouch foi um incansável defensor da expressão da subjetividade no filme etnográfico e ainda
do fazer fílmico como espaço privilegiado que possibilitava a associação da linguagem
cinematográfica em sua plenitude com os métodos de construção do conhecimento da pesquisa
antropológica. Sua questão era como construir reflexões antropológicas com e a partir do
filme. Seu foco foi a utilização do filme como uma forma de contar e expressar coisas que não
poderiam ser expressas de outra forma, principalmente o imaginário que povoa a vida dos
indivíduos em seu contexto de vida. A câmera e seu operador-antropólogo tornavam-se nesse
percurso agentes e sujeitos na realidade etnográfica. Não havia nenhuma intenção de
confundir o espectador quanto ao processo de construção que envolvia esse tipo de elaboração
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do conhecimento: pelo contrário, era imprescindível que ficasse claro o ponto de vista que
alinhavava o filme.
Rouch elege a reflexibilidade e a subjetividade como pilares de sua produção intelectual. A
verdade do filme estava justamente em tornar clara esta perspectiva: a realidade filmada era a
realidade presente nas relações estabelecidas entre o antropólogo e os sujeitos com os quais
filmava. Herdeiro por um lado de Flaherty, no que tange a uma câmera participativa, integrada
no cotidiano dos sujeitos, e, por outro, do russo Dziga Vertov, que defendia a presença do
autor como construtor da realidade ou da verdade fílmica, Rouch construiu um método de
trabalho calcado na provocação, na negociação e na criação.
Sua discussão antropológica não se dá na esfera das grandes teorias, mas da prática.
A antropologia rouchiana, como aponta Renato Sztutman, é definida pela prática
cinematográfica e com ela pretende compor um programa ético. Para Rouch a questão era
menos realizar a descrição de uma dada realidade do que estabelecer com o grupo estudado
um diálogo sempre potencializado pelo cinema que, como linguagem, poderia ajudar a pensar
a prática etnográfica e, por conseguinte, a própria antropologia.
A câmera subjetiva, as improvisações, atuações dos sujeitos filmados e a narração marcando
ou sugerindo um olhar específico para o que foi filmado fazem parte de um projeto ético e
estético, no qual discurso etnográfico e experiência etnográfica são indissociáveis.
Rouch, mesmo tendo colaborado para o aperfeiçoamento do projeto do Nagra, gravador de
som inventado por Stefan Kudelski nos anos 1950, que permitia a sincronização do som com
a imagem, não utilizou esse recurso na chave realista. A verdade, para Rouch, que gostava de
parafrasear Vertov, está no filme. É a verdade do filme. É, portanto, considerando o filme uma
forma de acesso a essa outra realidade que leva em conta o imaginário individual e cultural,
que Rouch realiza seus filmes. Moi, un noir (1957) e Chronique d'un été (1961) são bons
exemplos da maneira questionadora com a qual Rouch considerava a realização fílmica parte
da sua prática antropológica. (Barbosa e Da Cunha, 2006, pp.35-39)
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A utilização intensiva de entrevistas poderia levar a uma reificação de identidades, mas isso
não acontece pela própria forma de trabalhar de Coutinho: talvez por não se utilizar de
perguntas pré-estabelecidas para aquele tipo de personagem/tema, ele faz das entrevistas
diálogos em que as perguntas parecem surgir do próprio contato, lembrando mais as nossas
relações cotidianas que o interrogatório jornalístico. As perguntas que faz, aparentemente
ingênuas, são na verdade incentivos para que se traga à tona um mundo interior do
entrevistado, uma experiência de vida, uma sabedoria que, de forma alguma, é colocada como
hierarquicamente inferior à do cineasta. (Da Silva, 2010, p.167)
Como artesão da “imagem real”, Coutinho parece se utilizar de um material não ficcional – o
que não significa menos “produzido” ou “maquiado” e, sim, não escrito previamente por um
roteirista e não interpretado por um ator – para construir uma narrativa algo compartilhada
entre filmador e filmado. (Da Silva, 2010, p.163)
[...] os filmes de Coutinho se marcam por uma busca incessante por narrativas nunca prontas,
mas que são construídas no decorrer da história. Além do cineasta não se utilizar
frequentemente do recurso da voz off, as entrevistas não são feitas no sentido de confirmar
alguma teoria prévia ou de conformar os entrevistados dentro de estereótipos pré-
estabelecidos. São antes narrativas múltiplas que apontam o tema para diferentes direções e
apostam numa certa perturbação e não na coerência. (Da Silva, 2010, p.162)
Por mais que a palavra final seja do diretor, aquele “território fílmico”, ou o espaço da imagem
que ele pode até mesmo ter recortado na edição, traz a os rastros de quem nele habita.
(Da Silva, 2010, p.163)
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Ao questionarem a ideia de verdade e representação no cinema documental e
assumirem-se como sujeitos, personagens de seus filmes, tanto Rouch quanto Coutinho
suscitam outro aspecto intrínseco ao ato de realizar documentários, presente nos debates sobre
a antropologia visual, que diz respeito às questões éticas e à responsabilidade dos realizadores
em relação às pessoas que filmam. O teórico e crítico de cinema especializado em
documentários, Bill Nichols, em seu livro Introdução ao Documentário (2005), discorre sobre
o tema explicando a diferença entre os atores de ficção e o que chama de “atores sociais” nos
filmes de não ficção.
O conceito de representação é aquilo que nos leva a formular a pergunta “por que as questões
éticas são fundamentais para o cinema documentário?”, que também poderia ser expressa
como “o que fazemos com as pessoas quando filmamos um documentário?”. Nos filmes de
ficção, a resposta é simples: pedimos que façam o que queremos. As “pessoas” são tratadas
como atrizes. Seu papel social no processo de filmagem é definido pelo papel tradicional do
ator. Indivíduos estabelecem relações contratuais para atuar no filme; o diretor tem o direito,
e a obrigação, de obter uma performance adequada. O ator é valorizado pela qualidade de sua
atuação, não pela fidelidade a seu comportamento ou personalidade habitual. Tanto o ator
quanto o cineasta detêm certos direitos, recebem determinada remuneração e trabalham para
atender a certas expectativas. (O uso de não atores começa a complicar a questão. Histórias
que se baseiam no trabalho de não atores, como muitos dos filmes neorrealistas italianos ou
alguns do novo cinema iraniano, frequentemente ocupam parte do terreno indistinto entre
ficção e não ficção, entre histórias de satisfação de desejos e histórias de representação social.)
No caso da não ficção, a resposta não é assim tão simples. As “pessoas” são tratadas como
atores sociais: continuam a levar a vida mais ou menos como fariam sem a presença da
câmera. Continuam a ser atores culturais e não artistas teatrais. Seu valor para o cineasta
consiste não no que promete uma relação contratual, mas no que a própria vida dessas pessoas
incorpora. Seu valor reside não nas formas pelas quais disfarçam ou transformam
comportamento e personalidade habituais, mas nas formas pelas quais comportamento e
personalidade habituais servem às necessidades do cineasta. (Um paralelo entre personagens
de documentários e atores tradicionais é que os cineastas geralmente são a favor de indivíduos
cujo comportamento espontâneo diante da câmera permite que transmitam uma ideia de
complexidade e profundidade semelhante à que valorizamos na atuação de um ator treinado.)
O direito do diretor a uma performance é um “direito” que, se exercido, ameaça a atmosfera
de autenticidade que cerca o ator social. O grau de mudança de comportamento e
personalidade nas pessoas, durante a filmagem, pode introduzir um elemento de ficção no
processo do documentário (a raiz do significado de ficção é fazer ou fabricar). Inibição e
modificações de comportamento podem se tornar uma forma de deturpação, ou distorção, em
17
um sentido, mas também documentam como o ato de filmar altera a realidade que pretende
representar. (Nichols, 2005, p. 31)
A reflexividade expressa-se como estilo ou proposta porque não há como separar a realização
do filme das preocupações epistemológicas que acompanham esse processo: como o filme
representa o conhecimento? que tipo de conhecimento está disponível para os
antropólogos/cineastas? como lembrar aos espectadores que os filmes sempre marcam um
ponto de vista que é construído numa situação de pesquisa que é também a própria situação
fílmica? (Barbosa e Da Cunha, 2006, pp. 22-23)
A reflexão não ocorre após o trabalho de campo, mas durante todo o processo em que vivemos
a situação do campo e o grande desafio é como construir essa experiência fílmicamente.
(Barbosa e Da Cunha, 2006, pp. 43-44)
Interessante, também, é perceber que o ato de realizar um filme parte de uma preocupação
etnográfica em compreender os contextos com os quais se está envolvido, o que não implica
necessariamente a realização de uma etnografia escrita sobre essa mesma experiência. Embora
David MacDougall escreva bastante sobre suas reflexões, o momento-chave para que essa
etnografia aconteça é o momento da realização do filme, pois é nessa situação que podemos
compreender aspectos culturais que não surgiriam de outra forma.
(Barbosa e Da Cunha, 2006, p. 46)
18
Por último, os seguintes autores também contribuíram para ajudar a embasar esta
pesquisa nas áreas relacionadas à cultura e à sociedade nazarena, ao turismo, ao surf e ao
desenvolvimento sustentável: Jan Brogger, em Pre-bureaucratic Europeans: a study of a
portuguese fishing community; Eugene Mendonsa, em Turismo e estratificação na Nazaré;
Diogo Antunes Baeta, em Plano Estratégico de Ação para o Crescimento Sustentável do Surf
Around Portugal; Ana Catarina Gomes de Moura, em O valor económico do turismo de surf
na Ericeira; e Michael Redclift, em seu artigo Sustainable development: the concept, in
Sustainable Development: Exploring the Contradictions.
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3. O CAMPO E O ESTAR EM CAMPO
20
senhoras a assar peixes e castanhas e outras situações do dia a dia da vila. Os principais
acontecimentos dessa etapa foram gravados em vídeo. Os secundários foram registrados por
meio de fotografias e de anotações em um caderno de campo.
21
Quadro 1 - Calendário de visitas
AGO SET OUT NOV DEZ JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO
2019 2019 2019 2019 2019 2020 2020 2020 2020 2020 2020 2020 2020
06 11
06 14 11
24 07 12
07 07 15 12 03
08
- 29 13
10 28 22 04
- - 15 - 13
30 20 14
11 29 23
21 15
3.2.2. Entrevistados
Apesar de ter, desde o começo, um mapa predefinido de interesses locais e tipos de
pessoas que gostaria de entrevistar – premissa fundamental para não perder de vista os
objetivos do projeto –, durante o trabalho de campo, fui adaptando minhas expectativas
iniciais de acordo com as conexões e os desdobramentos que se apresentavam ao longo do
caminho. Ao deixar-me levar por este fio condutor invisível, percebi que o trabalho fluía de
forma mais orgânica e natural. Dessa forma, ao mesmo tempo em que cumpria as etapas
previamente programadas, procurei também me manter sempre atento para colher sugestões
e registrar momentos que surgiam no decorrer do processo. Assim, se, ao conversar com
alguém, me contassem sobre um local ou sobre uma pessoa que talvez pudesse me ajudar, lá
ia eu, conectando os pontos, tecendo a trama de relações entre pessoas, locais e fatos que,
pouco a pouco, permitiam me situar e desbravar o terreno.
Com esse objetivo em mente, fiz um mapa dos personagens que compunham a teia que
envolve a Nazaré, assim como dos temas nos quais me interessava aprofundar. A partir disso,
compilei um elenco com os nomes dos entrevistados que não poderiam faltar, por serem eles
as peças-chave deste emaranhado.
Minha pauta inicial incluía pescadores e peixeiras, novos e antigos moradores,
imigrantes, donos e funcionários de comércios locais envolvidos com o turismo, guias
turísticos, nadadores-salvadores, agentes imobiliários, pioneiros do surf na Nazaré, surfistas
de ondas grandes, fotógrafos de surf e autoridades locais. Essa lista ideal, contudo, teve de ser
constantemente revisada e atualizada em função do retorno ou não dos convites que ia
fazendo, como o caso de Garrett McNamara, que inicialmente se interessou e depois desistiu
da entrevista, ou o de Maya Gabeira, que nunca retornou meu contato.
Assim, foi-se configurando o conjunto dos participantes, alguns deles entrevistados em
profundidade, por meio de questionários semiestruturados e de vídeos gravados em suas casas
ou locais de trabalho, e outros, cujos depoimentos foram registados em entrevistas de rua,
baseadas em conversas informais. A seguir, é reportada a lista das 24 pessoas entrevistadas,
subdivididas de acordo com o tipo de abordagem utilizada.
22
Entrevistas em profundidade:
Entrevistas de rua:
23
3.3. Nazaré e eu
Ao longo dos nove meses em que estive em campo, tive a oportunidade de vivenciar
diferentes situações: desde a vila repleta de visitantes durante o verão até a vila absolutamente
vazia durante o isolamento. Da arquibancada abarrotada de gente da Praça de Toiros do Sítio
da Nazaré, assisti aos cartéis da temporada taurina e, em meio aos aplausos e à vibração das
pessoas, percebi o valor que aquele espetáculo representava para eles – para mim, estranho e
sofrido. Debaixo de chuva e neblina, testemunhei com timidez a limpeza dos túmulos no
cemitério da Pederneira, realizada com dedicação e bom humor pelas mulheres para o feriado
do Dia de Finados. Acompanhei a expectativa e os preparativos para o Natal e o Ano Novo,
além dos desfiles e as festas de carnaval na Avenida Marginal.
Do alto do promontório, ao lado da Capela de Nossa Senhora da Nazaré, registrei os
turistas praticamente pendurados na beira do precipício para procurar o ângulo mais
espetacular para registrar suas selfies. De dentro, por trás, dos lados, por baixo e de cima do
Farol de São Miguel Arcanjo, acompanhei dois campeonatos de surf de ondas grandes, com
ondas de mais de 20 metros, a movimentação da água e o vai e vem dos turistas. Foi um
alternar-se de dias repletos de pessoas com outros em que a vila permanecia completamente
vazia; ora dias de sol escaldante, ora dias com muita chuva e forte vento. Do Porto de Abrigo,
vi pescadores a costurar suas redes ou entrando e saindo do mar em seus barcos, com as
gaivotas a persegui-los, dançando no ar. Vi e filmei diversos pores do sol, fiz amizades e me
diverti com as senhoras de sete saias a anunciar quartos, a declamar cantigas para mim, a
vender peixe seco e a assar castanhas e sardinhas nos pequenos fogareiros a carvão.
No fundo, pude sentir mais de perto a força e a história daquele lugar e daquele povo
digno e honrado e entender um pouco melhor o que significa ser nazareno e ter a maior onda
do mundo ao pé de casa como herança e identidade. Para mim, foi um trabalho incrível que,
a cada conversa e a cada local observado, foi, pouco a pouco, se desdobrando à minha frente,
propondo novas conexões, me alimentando com descobertas inesperadas e me obrigando a
reformular as perguntas.
Como as ondas gigantes ocorrem somente no inverno, especialmente entre os meses de
outubro e janeiro, decidi alugar uma casinha típica no centro histórico da vila, de outubro até
o final de dezembro, para poder estar presente quando houvesse ondas grandes e sentir na pele
o que era viver próximo àquele mar, onde os pescadores e suas famílias costumavam viver
(alguns ainda vivem). Após uma busca na internet, não encontrei nada parecido com o que
procurava. Havia poucas opções de aluguéis por períodos mais longos, em geral caras e em
construções mais novas, que pouco tinham de típicas. Decidi, então, começar meu trabalho
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de campo indo até a Nazaré procurar casa, conversar com as pessoas à moda antiga e ver o
que conseguiria encontrar.
Chegando lá, sem saber aonde ir, resolvi passar numa acomodação local onde tinha me
hospedado no ano anterior com a família. A região ficava na Nova Nazaré, um bairro recente,
distante do centro e com imóveis grandes. No entanto, errei de casa, pois eram todas iguais,
e toquei na vivenda ao lado. A senhora que me atendeu foi muito simpática e me informou
que o alojamento que eu procurava havia fechado, mas que me ajudaria a encontrar algo.
Imediatamente pegou suas coisas e me levou a duas moradas típicas, na área central da vila
e que pertenciam a duas amigas suas.
Assim, em menos de uma hora, eu já tinha duas excelentes opções de casas com as
características que estava procurando e localizadas na área de minha preferência. Além disso,
as duas senhoras, entendendo a minha condição de estudante, ofereceram-me valores abaixo
do que costumavam praticar. Uma dessas senhoras era a Manuela, pessoa espetacular e que
logo percebi que teria um papel essencial na minha pesquisa, tornando-se uma espécie de
informante e meu porto seguro na Nazaré. Foi ela que me concedeu uma das melhores
entrevistas que já fiz na vida – e não foram poucas. O imóvel que acabei escolhendo era de
sua mãe e ficava localizado a cerca de 200 metros de distância da praia, na rua da Graça, 12,
e devia ter em torno de 20m2 de área. De sua única porta ou janela, eu podia ver e ouvir o mar
com clareza e, nos dias de “mar à pedra” ou “mar à pinoca”, podia também sentir todo o seu
poder. Era o cenário perfeito para mergulhar nessa experiência inédita.
Durante os meses em que frequentei a Nazaré, um sentimento contraditório de
pertencimento e solidão, de acolhimento e abandono, me acompanhou o tempo todo.
Sentimento este que não se aplicava apenas às pessoas, mas também à paisagem, que sempre
exerceu sobre mim uma espécie de fascínio, devido principalmente à sua beleza
surpreendente, à força intrínseca de sua natureza improvável, pano de fundo que temperou e
influenciou toda a minha experiência em campo.
Minha jornada na Nazaré foi, assim, um constante embate entre essas duas “Nazarés”,
a que me acolhia e a que me repelia, fazendo com que minha busca se concentrasse na
compreensão e no entendimento desses limites e dos motivos que levavam a essas oscilações
tão intensas e rápidas. Será que essa dualidade era fruto da minha imaginação? Será que essas
“Nazarés” eram simplesmente o espelho dos meus sentimentos e dos meus conflitos
existenciais? Ou será que essa dualidade era algo que realmente acontecia e que estava de fato
presente nas pessoas e no local? Percebi então que a variação climática seria uma ótima pista
para começar essa reflexão, pois era o que de mais concreto eu tinha para analisar e, sem
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sombra de dúvidas, se sobrepunha e influenciava todos os demais aspectos, especialmente no
inverno. Se, por um lado, havia dias sem vento algum, sem ondas e com o céu azul, no dia
seguinte poderia estar nublado, chovendo, com neblina intensa, vento forte e ondas grandes.
Na Nazaré, a sensação é de que é a natureza quem manda.
Com o tempo, acabei constatando que esse comportamento imprevisível e inconstante
também se refletia nas pessoas. Algumas delas, muito simpáticas e receptivas no primeiro
contato, numa abordagem mais profunda, ao perceber que talvez tivessem de se comprometer,
mudavam de atitude e tratavam-me como se não me conhecessem. Acabei interpretando esse
comportamento como uma espécie de receio, por parte das pessoas, em evoluir a relação para
um segundo estágio de aprofundamento.
Passei então a me perguntar: será que isso tem relação com a influência que esse mar e
essa topografia, berço da maior onda do planeta, exercem sobre as pessoas? Ou será que é
fruto do costume que o turismo impõe de se mostrar sempre prestativo para quem vem de
fora, já que é dos visitantes que vem o sustento? Ou ainda, será que esse comportamento tem
relação com o fato de os habitantes da vila estarem historicamente acostumados a interagir
com as câmeras? São estas algumas das questões que eu ia formulando conforme o trabalho
de campo evoluía e que acabaram se tornando determinantes para a leitura e a compreensão
dessa realidade. Também percebi que não necessariamente estas perguntas possuem uma
resposta objetiva, mas que, mesmo assim, constituem considerações imprescindíveis por
permearem o trabalho inteiro, entrelaçando-se às imagens e influenciando as relações entre as
pessoas.
Comecei então o trabalho de campo com muito respeito e um toque de timidez,
procurando não invadir o espaço alheio. Mas, com o tempo, após conseguir criar uma relação
de maior intimidade com a pessoa, mesmo sem ter certeza, percebi que talvez fosse mais
interessante para o trabalho, ao invés de ir direto ao ponto, observar primeiro, conversar
despretensiosamente e, aos poucos, me aproximar. Tratava-se de um trabalho bastante
complexo, pois eram muitas as pessoas e pertencentes a universos tão distintos uns dos outros
que, às vezes, entravam até em conflito.
A partir dessas premissas – influenciado pelos filmes de Jean Rouch, em que tudo
parece acontecer com naturalidade, sem direcionamentos, e onde as pessoas acabam tornando-
se realmente íntimas –, tentei estabelecer com meus entrevistados esta relação ideal entre
antropólogos e seus estudados. Por outro lado, também me sentia fascinado pela aparente
neutralidade e certa ingenuidade de Eduardo Coutinho que, embora deixasse as pessoas à
vontade, acabava delineando uma distância precisa entre entrevistador e entrevistado, sem
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criar falsas expectativas. Essas duas atitudes, um tanto contrastantes entre si – apesar de
ambos assumirem-se como sujeitos de seus filmes (o que eu também intencionava) –, me
deixavam perdido em algumas ocasiões. Qual dos dois caminhos eu deveria escolher? Como
me tornar íntimo e, ao mesmo tempo, manter a distância?
Coloquei então minha mochila nas costas com todos os equipamentos que precisava e,
com estas ideias na cabeça, resolvi sair a campo pelas ruas da Nazaré e caminhar a esmo pela
Avenida Marginal, a principal da vila. Nessas andanças, uma das minhas reflexões mais
frequentes era tentar entender como esse povo, conhecendo o ímpeto e a força do mar que
tinham, decidiu encará-lo e fazer dele sua vida? Que marcas isso acabava deixando em suas
vidas? Se fosse eu o habitante deste local, ao olhar para este mar, o que diria? Faria como eles
ou viraria as costas para ele e iria construir minha vida do lado oposto?
Assim, ao perambular pelas ruas repletas de turistas, embaixo de um céu azul e com o
sol quente a brilhar, ou, por outro lado, ao caminhar pelas vielas desertas numa noite gélida,
com a neblina embaçando os contornos e abafando o eco de meus passos, me perguntava:
afinal, qual delas é a Nazaré? Talvez seja justamente nessa dicotomia que reside a essência
da Nazaré. Uma disputa constante entre a vida e a morte, entre o homem e a natureza, entre o
cheio e o vazio, entre o individual e o coletivo, entre a fartura e a escassez, entre o aberto e o
fechado, entre a simpatia e a rispidez, entre a suavidade e a agressividade. Existe na Nazaré
uma espécie de limite tênue entre esses dois mundos opostos que se complementam, energias
contraditórias que, nesse constante adaptar-se, movimentam a vida.
Passei boa parte do tempo tentando encontrar respostas lógicas para essas reflexões, até
que, pouco a pouco, desisti de racionalizar e fui descobrindo que a Nazaré é tudo isso ao
mesmo tempo: essa constante oscilação e movimento, como a água. Para compreender, é
preciso sentir e simplesmente entrar no fluxo.
Foi justamente quando parei de me fazer perguntas e parti para a prática que as coisas
começaram a fluir mais facilmente. Isso também me ajudou a encontrar uma nova
metodologia de trabalho: ao invés de planejar com antecedência cada etapa, eu simplesmente
saía a campo e deixava que as coisas acontecessem espontaneamente.
Com a câmera em punho, gravando diferentes situações, percebia bem menos
resistência das pessoas do que quando chegava com ela na mochila procurando não invadir o
espaço alheio e explicava que estava a fazer um documentário para um mestrado.
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Quando abordava as pessoas dessa forma, sentia certo receio e constrangimento, como se eu
estivesse parando a vida delas e lhes pedindo para entrar na minha. Enquanto,
se já estivesse a filmar, a sensação era oposta. Eu é que entrava na vida deles, e isso parecia
muito mais confortável e familiar para eles. Os habitantes da Nazaré estão muito acostumados
a lidar com as câmeras, aspecto esse que, de certa forma, está relacionado à vaidade e a uma
espécie de publicidade e marketing pessoal que o turismo acaba exigindo.
Demorei para perceber, na prática, que a câmera fotográfica fazia parte da cultura
nazarena. Lá, ela funciona como uma espécie de credencial que lhe permite circular com
liberdade. Nas ruas e nos comércios, principalmente localizados nas áreas mais centrais, é
muito comum ver as pessoas a fazer selfies, além de fotografar e filmar a praia, as senhoras
nazarenas com trajes típicos, os barcos e a paisagem de forma geral.
Hoje, com a “descoberta” da onda gigante e a explosão dos smartphones, esse fenômeno
se intensificou e deixou de ser tão focado na tipicidade dos hábitos nazarenos para voltar-se
para o exotismo e à exuberância da onda, do promontório, do farol e dos surfistas, que
adicionaram a cereja do bolo a essa experiência, tornando-se uma espécie de gladiadores do
Coliseu da Nazaré, em uma batalha sem sangue, porém não menos épica, violenta e
imprevisível entre o homem e a natureza, amplificando um espetáculo que já seria belo por si
só, sem a presença deles.
Todo esse acesso à tecnologia, aliado ao desejo de registrar e vivenciar experiências
únicas e marcantes, criou uma profusão de imagens acerca da vila, principalmente das ondas
gigantes, que constitui hoje uma verdadeira enciclopédia online de situações ocorridas na
Praia do Norte nas mais diversas datas, colaborando para a propagação de lendas e de mitos
criados a partir de fatos reais, incluindo acidentes e resgates espetaculares gravados a partir
de ângulos variados, com câmeras GoPro, drones, além dos milhões de imagens feitas por
amadores. Centenas de videógrafos e fotógrafos profissionais do mundo inteiro, munidos
até os dentes com equipamentos de última geração, passaram a frequentar a Nazaré,
principalmente no inverno, e outros passaram a lá viver.
O impacto dessa espetacularização, como não podia ser diferente, atingiu em cheio os
habitantes locais, causando neles orgulho e um certo exibicionismo obrigatório, já que eles
sabem que a vila depende dessa fama que os turistas ajudam a divulgar. Por outro lado, essa
profusão de imagens acaba gerando um tipo de banalização, já que são tantas as imagens
produzidas que se tornam, de certa forma, todas parecidas entre si e, por isso mesmo, comuns.
Para a minha experiência como etnógrafo a registrar os acontecimentos em campo, a
câmera em punho acabou sendo um elemento facilitador no momento de gravar, já que ela
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não representava uma novidade ou um elemento perturbador, nem para os turistas nem para
os habitantes locais, especialmente no que se refere aos espaços mais turísticos da vila.
Contudo, quando saía desse entorno, as coisas já não aconteciam exatamente da mesma
forma, e certo constrangimento ao filmar e ser filmado voltava a surgir na relação. Ou seja,
dependendo da minha intenção e do meu foco de observação, isso poderia cruzar uma
fronteira de intimidade e tornar-se mais invasivo e passível de justificativas.
Por exemplo, se estivesse a filmar no promontório ou na Avenida Marginal,
especialmente em um dia de ondas grandes ou durante o Carnaval, podia desfrutar de uma
liberdade quase total, podendo apontar a câmera para diferentes direções, praticamente sem a
necessidade de uma explicação, já que esses são momentos culturais e turísticos coletivos.
É claro que, conforme escolhia uma situação e me aproximava de alguém, como um
músico de rua ou uma senhora vendendo artesanato, eticamente me sentia na obrigação de dar
uma satisfação. Muitas vezes, depois de já ter iniciado a filmagem, usava essa aproximação
para criar um ambiente de intimidade, gravar melhor os detalhes do que as pessoas estavam
fazendo ou vendendo e, enquanto fazia isso, aproveitava para explorar alguns assuntos, como
perguntar sua opinião sobre o turismo e sobre as ondas. Isso, contudo, nem sempre acontecia,
tratando-se na maioria das vezes de uma escolha minha.
Por outro lado, se estivesse no Porto de Abrigo a observar um pescador trabalhando ou
em uma ruela sem movimento a ver uma senhora a estender roupas, não tinha essa mesma
facilidade, já que estávamos a sós, e o limite do espaço pessoal e privado fica, nessas ocasiões,
bem mais tênue. Nesses casos, antes de começar a gravá-los, costumava filmar objetos ao
redor e depois perguntava-lhes se poderia filmá-los, explicando algumas vezes que estava a
fazer um mestrado sobre a Nazaré, o que era um conforto e uma segurança para os dois lados.
Quanto mais próximo o interesse da minha lente estivesse da cultura tradicional
nazarena, mais fácil e fluída ficava essa relação ao filmar, com destaque para as mulheres,
que desempenham um papel central na manutenção desse imaginário social local e são muito
mais acostumadas e espontâneas do que os homens ao serem filmadas e fotografadas.
De qualquer forma, na grande maioria das ocasiões, não tive dificuldades em ser aceito
e filmar as pessoas e acontecimentos em campo na Nazaré. Bastava para isso, é claro, ter essa
disposição de me expor ao desconhecido e interagir com as pessoas e com aquele ambiente,
o que nem sempre era tão simples, mesmo para uma pessoa como eu, considerada
comunicativa e espontânea. Tive dúvidas, medo, receio e preguiça em diversas situações.
Mas, todas as vezes que enfrentei o desafio, decidi pegar a câmera e o tripé e ir a campo,
sempre valeu a pena, e eu acabava voltando com uma sensação boa de dever cumprido, de ter
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conhecido pessoas e aprendido um pouco mais sobre a Nazaré, sobre mim mesmo e sobre o
papel do etnógrafo, esse constante embate entre você e o outro, tão presente nos trabalhos de
Jean Rouch e Eduardo Coutinho.
Agora, refletindo um pouco mais sobre a minha personalidade, minha aparência e pelo
fato de ser estrangeiro, percebo com mais clareza os impactos que isso deve ter causado na
minha relação com as pessoas durante minha estadia na Nazaré.
Acredito que o fato de ser brasileiro tenha me ajudado em campo. Além da fama de
simpáticos e da proximidade cultural causada pelas telenovelas do Brasil (artistas, músicas,
expressões, histórias), o turismo brasileiro cresceu muito na Nazaré na última década, e boa
parte dos visitantes brasileiros atualmente possui um poder aquisitivo mais alto do que os
pertencentes à primeira onda de imigração brasileira em Portugal, nos anos 90. Hoje, na
Nazaré, há muitos brasileiros que frequentam hotéis e restaurantes caros e que, inclusive,
investem em imóveis na vila.
Além disso, há de se levar em conta que os surfistas brasileiros de ondas grandes têm
um papel de destaque nas histórias e no desenvolvimento da vila atualmente, sendo Rodrigo
Koxa e Maya Gabeira os atuais detentores dos recordes de maiores ondas já surfadas na
história nas categorias masculina e feminina. Maya, inclusive, mora lá. O bom humor dos
brasileiros, o carinho e o apreço público que possuem pela Nazaré e os diversos sarilhos
passados no mar da Praia do Norte também contribuem para compor esse quadro de “boa
gente”, de um povo que, de certa forma, já faz parte da história local. Não foram poucas as
situações em que as pessoas me contaram histórias do Brasil ou de brasileiros logo que
percebiam de onde eu era, o que, diga-se de passagem, era algo muito simples de detectar e
que eu não fazia questão nenhuma de esconder.
Seu Mário, por exemplo, proprietário do Restaurante O Varino, onde eu costumava
almoçar, sempre me recebia dizendo: “Vamo nessa!”, uma expressão brasileira. Dona
Franceline, do peixe seco, cantou para mim espontaneamente o samba “Saco de Feijão”,
clássico brasileiro de 1977, composto por Francisco Santana e interpretado por Beth Carvalho.
Dona Maria Adelaide lembrou de como os brasileiros gostam de falar alto e declamou
cantigas nazarenas dizendo que gostaria de aparecer na televisão brasileira. Outros, como o
senhor Galileu e o senhor Adriano Monteiro, me contaram sobre o épico acidente da Maya
Gabeira na Praia do Norte, em 2013, e de outros surfistas brasileiros que quase “iam por lá
ficando”. Ou seja, todos esses aspectos relacionados ao fato de ser brasileiro geravam
automaticamente certa empatia em relação a mim e ao meu trabalho e proporcionavam um
ambiente favorável para estabelecer uma relação de proximidade com as pessoas em campo.
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Além disso, o fato de ser um homem branco, comunicativo e de boa aparência, vestido
decentemente, tendo filho e família e uma missão como estudante, interessado em conhecer
o local e a cultura deles, me favorecia e evitava que eu caísse no outro lado do imaginário
relacionado ao Brasil e aos brasileiros: o de um povo pobre e pouco confiável, para dizer o
mínimo.
Observar e filmar o mar e as ondas da Praia do Norte durante o inverno foi, literalmente,
um capítulo à parte e uma experiência diferente de tudo o que eu já havia experimentado como
videógrafo. Não digo isso quanto ao aspecto de interação com as pessoas que, naquelas
circunstâncias, estão rodeadas de câmeras e bastante abertas para filmarem e serem filmadas.
Refiro-me à relação com o sítio, onde a natureza reina soberana e exige conhecimentos
técnicos e equipamentos específicos que eu, especialmente no início, não possuía.
Do alto do promontório, tem-se uma visão privilegiada do oceano e da vila, formando
um panorama de 360º, que oferece inúmeras opções de ângulos e posicionamentos, além de
uma escala diferente de praticamente qualquer outro local. As ondas movem-se com grande
velocidade, e a distância até elas e os surfistas é enorme, o que exige lentes poderosas e
regulagens precisas de abertura, velocidade e ISO, que fui aprendendo a ajustar ao longo do
processo. O vento é quase sempre fortíssimo no inverno, causando tontura em alguns
momentos pela força e pelo barulho. Chega-se a perder o equilíbrio, e não se pode descuidar
da câmera no tripé, se não quiser encontrá-la no chão. Houve dias em que vi os carros
estacionados ao pé do Farol balançando com a força do vento, como se alguém lá dentro
estivesse a pular. Além disso, ficar em pé no alto do Farol, de frente para o mar, onde apenas
uma linha amarela no chão o separa do precipício, é uma sensação única. A luz do sol, que
obviamente se movimenta ao longo do dia, também traz inúmeros desafios, seja por refletir
na água, causando muita luminosidade, seja porque o sol se põe no mar, criando uma luz
dourada espetacular e uma contraluz que obriga a fechar o diafragma, tornando os surfistas
invisíveis e as ondas apenas silhuetas à sua frente.
Fazer um movimento de câmera sem tremer ou sem perder o eixo, como uma
panorâmica, por exemplo, é algo praticamente impossível. A força do vento somada ao
impacto das ondas se fechando cria uma nuvem de salpicos que molham você e o seu
equipamento. Por conta disso, é essencial ter sempre à mão um kit de limpeza de lentes ou,
no mínimo, um rolo de cozinha, como fiz inicialmente quando descobri essa necessidade.
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Nos dias de ondas grandes, é preciso limpá-las a cada dez minutos. Uma câmera resistente a
salpicos também é altamente indicada, já que a água salgada enferruja as partes de metal da
máquina. Para finalizar, após um dia de gravação na Praia do Norte, é sempre importante fazer
uma limpeza mais cuidadosa do equipamento.
As câmeras fotográficas mirrorless atuais que também filmam revolucionaram o
mercado audiovisual, inaugurando um novo nicho, oferecendo preços acessíveis e imagens
de alta qualidade com a opção de lentes intercambiáveis. No entanto, são câmeras muito
sensíveis se usadas na mão, diferentemente das câmeras de vídeo do passado, inclusive por
não terem uma empunhadura apropriada para a filmagem. Dessa forma, o tripé possui um
papel crucial para a qualidade dos registros e precisa ser firme e pesado o suficiente para não
balançar com o vento, porém leve e pequeno para não prejudicar a mobilidade, principalmente
quando se está, como eu, sozinho e precisando se deslocar a todo momento. Portanto, quanto
maior for a lente, mais detalhes do mar ela será capaz de captar, porém maior deverá ser o
tripé para resistir ao peso dela sem tremer, peso este que com certeza prejudicará a mobilidade
em campo.
Por último, algumas considerações sobre o áudio. Captar o som natural da Praia do
Norte é quase impossível devido ao forte ruído causado pelo vento, difícil de ser eliminado
mesmo utilizando uma proteção wind shield no microfone externo. Resumindo, captar
imagens de qualidade das ondas gigantes e dos surfistas na Praia do Norte exige um equilíbrio
delicado, planejamento e conhecimentos técnicos específicos, além de equipamentos
extremamente caros.
Para mim, filmar na Praia do Norte foi uma experiência fascinante e surpreendente, que
me obrigou a me envolver ainda mais com o universo audiovisual e que me trouxe inúmeros
novos aprendizados. Estar ali, mergulhado naquela beleza, com um vasto leque de opções
para explorar, fortaleceu em mim a paixão pela imagem. A princípio, eu sentia que não estava
totalmente preparado, nem em termos de conhecimentos nem em termos de equipamentos,
para captar imagens realmente de qualidade naquele ambiente, como as que tinha em mente
como parâmetro. Por outro lado, sabia que isso seria impossível sem possuir, no mínimo, uma
excelente câmera e uma lente zoom de qualidade com pelo menos 300mm, o que não era um
investimento viável para mim naquele momento.
A partir dessas premissas, tive de me conscientizar de que não estava ali a fazer um
filme de surf e que, portanto, precisava adaptar minhas referências dos vídeos de ação sobre
a Nazaré à minha realidade. Assim, partindo do princípio de que o meu objetivo era realizar
um documentário etnográfico e que, para isso, não seria necessário captar cenas espetaculares
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e detalhes das ondas e dos surfistas em slow motion, por exemplo, fui ajustando meu
equipamento e ampliando, pouco a pouco, meus conhecimentos.
Como sempre gostei de aventuras, tinha a certeza de que ali, ao me deparar com as
potencialidades daquele local, encontraria uma linguagem própria, uma distância condizente
com a minha intenção, um ponto de vista interessante que estivesse à altura do que o lugar
oferecia, capaz de revelar aspectos inéditos daquele ambiente, sem deixar de registrar toda a
potência e beleza daquele espetáculo.
Passei então a pensar como etnógrafo e a identificar o que realmente me interessava: a
onda como objeto de estudo antropológico. Ser capaz de observar seu comportamento, seu
movimento, registrar como ela surgia e como desaparecia, me colocar no lugar dela e enxergar
o que ela veria caso tivesse olhos, e também me focar em todas aquelas pessoas reunidas para
observá-la e fotografá-la, analisar os detalhes daquela falésia com suas pedras e vegetação,
apontar minhas lentes para o Farol, para os moinhos de vento e para a areia, registrando a vida
que pulsa naquele local, com seu interminável ir e vir.
Com o passar do tempo, fui percebendo que o que mais me interessava era o que estava
além do momento em que os surfistas apanhavam uma onda. Assim, fui pouco a pouco
encontrando meu espaço e criando uma linguagem própria, desenvolvida a partir de um ponto
de observação nem tão próximo nem tão distante, que me permitia fixar nas imagens uma
dimensão real e ao mesmo tempo nova daquele universo.
3.6. Equipamentos
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4. A PESQUISA ETNOGRÁFICA
“Ser nazareno é como eu digo, isto vem de raiz. É uma paixão. Eu andava a estudar em
Lisboa e, quando me diziam, ‘aí vem a nazarena’, eu sentia-me orgulhosa. Eu costumava
dizer que era da terra mais bonita plantada em Portugal.” (Manuela)
“Ser nazareno é uma... é uma coisa que nasce conosco mesmo, conosco. Isto é uma palavra
que... não há palavras para poderem descrever bem o que é ser nazareno. Mas ser nazareno
é bonito, é bom, temos orgulho. Gostamos muito da nossa terra, a nossa terra é bairrista!
Tem muito de dizer e tem muita recordação. É uma coisa espetacular. Basta-se dizer que cada
vez que nós íamos, por exemplo, para Lisboa e depois estávamos lá meia dúzia de dias, ou
então quando saíamos para fora, para a nossa vida, e depois passávamos a Ponte da Barca
e começávamos a ver o promontório, dava sempre aquele aperto no coração, de alegria.”
(José Augusto)
“Eu tenho muita honra de ser nazareno. Não troco a minha terra por nenhuma. Eu conheço
meio mundo, mas não troco a minha terra por nenhuma.” (Galileu)
“A Nazaré é um sítio ímpar. Acho que é uma vila muito característica. Nós viajamos pelo
resto do país e pelo mundo e existe na Nazaré uma forma diferente de estar. É muito
característico. E é normal que quem venha se interesse e se apaixone por um povo diferente.”
(Hélio António)
Honra, paixão e beleza são conceitos incorporados pela retórica nazarena, e que
trabalhei no documentário. Existem, no entanto, as memórias construídas de quem lá vive.
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Talvez estejam nessas vivências algumas respostas importantes para esse orgulho escancarado
de ser nazareno. Como passar incólume por tantas emoções? Não apenas as alegrias, mas as
tristezas e as dificuldades. A Nazaré é épica por natureza, tanto visualmente quanto
subjetivamente. Além de possuir a maior onda do mundo, a topografia local cria uma
atmosfera particular, que gera desdobramentos em diversas camadas. Os dramas, a pobreza,
a fome, as mortes no mar, o certo isolamento geográfico da vila, o linguajar próprio, a dureza
do dia a dia. A incerteza e a imprevisibilidade. A necessidade de adaptar-se constantemente
ao clima e ao mar. E também a beleza da paisagem, tão valorizada e presente no discurso das
pessoas. A onipresença da natureza que, de certa forma, democratiza as relações, colocando
todos na mesma condição, subjugados a ela. O respeito e a solidariedade que surgiram a partir
dessas experiências.
Fica evidente que essa trajetória comum compartilhada em torno do mar deixou uma
marca indelével nos nazarenos, especialmente entre os mais velhos (que viveram antes da
construção do Porto de Abrigo), criando vínculos, afetos e um forte senso de comunidade e
pertencimento, além de um conhecimento consistente de sua própria identidade e valores
enquanto povo. A construção dessa memória é fundamental para a manutenção dessa cultura,
e a população procura contribuir para isso.
José Maria Trindade, nazareno e grande estudioso da Nazaré, já informa logo no início
de seu livro A Nazaré dos Pescadores, Identidade e Transformação de uma Comunidade
Marítima (2009): “José Maria Trindade é um homem da sua terra. Faz parte dela. Pertence-
lhe.” A seguir, ainda na introdução, oferece um excelente panorama do que ocorreu na vila
nas últimas décadas e dos principais desafios para o futuro, considerando que seu trabalho foi
publicado um ano antes da “descoberta” da onda gigante. Ou seja, suas palavras estariam
ainda mais urgentes e verdadeiras atualmente:
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fornecendo os elementos para a elaboração de discursos com que pretendem afirmar uma
singularidade, contra as forças uniformizadoras da modernidade. (Trindade, 2009, p.19)
“Houve gerações de filhos de pescadores, não é... eu sou neto, né, que passaram a ter outras
profissões e, às vezes, recusam que tiveram alguma coisa a ver com a pesca. Por isso é que
aparece: quem não rema já remou. Não foi ele, foi o bisavô, foi o avô, foi o trisavô que... ou
o pai, ou o tio, alguém da família ‘teve’ ligado ao mar. Porque isto era uma terra de mar, não
tinha outra solução, era uma terra de mar. Com muita crença religiosa e muita crença pagã.
O barco era benzido, o barco quando era novo, quando era o bota-abaixo – o bota-abaixo é
a primeira vez que ele vai ‘pa’ o mar, chama-se o bota-abaixo –, o barco era benzido pelo
padre, mas também lá ia a bruxa. Não na mesma altura. Isto é: bem com Deus e com o diabo.”
(João Grilo)
A relação com o mar e com a pesca era tão estrutural que inclusive a divisão de classes
na sociedade nazarena era pautada por isso, como refere Manuela:
“Eu queria estudar, mas filha de pescador não estudava. Eu era considerada uma menina de
‘pé descalço’. Era considerada ‘pé descalço’ porque era filha de pescador e de peixeira. Os
meninos ‘pés calçados’ era o que eram os meninos que os pais andavam no embarque, os
meninos que os pais já tinham outra formação acadêmica que nós não tínhamos. E então eu
fui estudar, e a minha mãe não me deixava estudar, queria que eu fosse costureira. Mas o
meu objetivo sempre era ser enfermeira. Estudei três anos em Lisboa, e quem me pagou o
estudo todo foi o Estado português. E hoje sou a enfermeira que sou.” (Manuela)
“Os pescadores da Nazaré eram analfabetos na grande maioria, mas não eram mal-
educados, tinham um orgulho próprio, tinham uma linguagem própria.” (João Grilo)
Antes da construção do Porto de Abrigo, em 1983, com grande parte da vida na vila a
acontecer no areal, a Nazaré era uma terra muito típica que atraía turistas e artistas em busca
de inspiração, como refere Dino Casimiro:
37
“A Nazaré já era muito conhecida a nível internacional. Estamos a falar de artistas tipo
Stanley Kubrick, que ‘tiveram’ cá a tirar fotos. Temos alguns dos maiores artistas, escritores,
por aí a fora, que vinham a Nazaré para ganhar inspiração. Porque a Nazaré, antes da
construção do Porto de Abrigo, era uma terra muito típica. Era uma terra onde a praia ‘tava’
cheia de barcos e de redes de pesca e mulheres de sete saias. Era uma coisa lindíssima.
Eu adorava ter nascido naquela altura para ter conhecido a Nazaré nessa altura.”
(Dino Casimiro)
38
Nessa altura, a pesca já vinha perdendo relevância para o turismo na economia local.
Mesmo assim, os pescadores finalmente puderam entrar e sair do mar em segurança e pescar
durante todo o ano.
“Antigamente os nazarenos passavam muita dificuldade porque não havia o Porto de Abrigo.
Os pescadores deixavam de ir ao mar novembro, dezembro e só iam ao mar março, abril.
Basta que nós dizíamos muitas vezes, trabalhávamos sete meses e tínhamos que poupar para
os doze.” (Manuela)
“Eu, quando andava na beira-mar mais o meu pai, havia meses e meses que os homens do
mar não iam ao mar, com o mar mau e o mau tempo.” (Dona Rosa)
“Em 1978, ainda não havia o Porto de Abrigo, os pescadores tiveram seis meses sem sair
para o mar.” (João Grilo)
“Era... é pá, muita solidariedade. Muita fome, mas muita solidariedade.” (João Grilo)
“Antigamente com os barcos aqui assim na praia pelo areal afora, desde a Capitania até aqui
assim, era mais bonito antigamente. Mas enfim... mas a gente agora ‘temos’ que escolher pelo
bem-estar do povo.” (Galileu)
Ao mesmo tempo em que tirou de cena dois dos piores fantasmas da vila – os
naufrágios e a impossibilidade de pescar durante o inverno –, o Porto de Abrigo acabou
também por retirar do areal toda a intensidade do trabalho em torno da pesca e o convívio da
sociedade nazarena que, no fundo, eram o centro da vida (e da morte) da própria Nazaré.
É difícil mensurar os impactos práticos e subjetivos desse evento aparentemente inofensivo,
que, atualmente, representa uma parte crucial para o desenvolvimento do surf e para a
exploração das ondas gigantes.
“Muito turista francês vinha a Nazaré mais por causa de ver os pescadores, os barcos a
entrarem no mar, os bois a puxar... não puxavam redes, puxavam barcos aqui. Redes é lá
para cima. Os bois a puxar os barcos pra baixo e pra cima. Toda a vida da pesca, à exceção
da pesca em si, era feita na praia. O areal ‘tava’ cheio de gente. Uns a meter aparelho, outros
a arranjar peixes, outros a arranjar redes, outros a pôr pra baixo, outros a pôr pra cima...
tinha uma vida enorme. E eles vinham ver sobretudo os trajes, porque o pescador da Nazaré
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era raro usar calças, usava umas ceroulas em xadrez, umas camisas em xadrez, barrete,
descalço e passeava-se. Eu ainda hoje gosto muito de andar descalço.” (João Grilo)
“Isto aqui, esta praia, vinha gente de todo o lado do país comprar cá peixe. E bonito. Se você
visse uma pescada como ela vem do mar, a beleza que aquilo tem, os gorazes como é que eles
vinham. E o gosto e o brilho que tinha o pescador que estava a apanhar esse peixe de o meter
enquanto ele estava vivo de uma maneira que era o gingar, o gingado, que era meter o peixe
curvado, e ele quando vinha para o mercado, para o mercado não, para a lota, vinha todo
derrabalçado. Aquilo era, é pá, aquilo era digno de ser visto.” (José Augusto)
Tão fácil de entender e, por vezes, tão difícil de explicar. Basta observar o mar e as
ondas da Nazaré por alguns minutos para sentir a energia desse lugar e perceber a força dessa
herança e a origem dessa narrativa que mistura tantos elementos que caracterizam o povo
nazareno.
Na Nazaré, o mar é quem manda. Tanto na pesca e nas ondas gigantes do inverno,
quanto no turismo balnear e até mesmo nas emoções das pessoas. Entre as ladeiras, escadarias,
ruas e vielas, há sempre uma saída, uma vista para o mar. A vila foi construída em torno dele,
e é possível sentir sua presença em diferentes momentos, mesmo hoje em dia sem a atividade
da pesca no areal e estando mais distante do passeio – várias pessoas contam que a faixa de
areia da praia ficou muito mais larga com o passar do tempo, fazendo com que a água ficasse
mais afastada da rua.
“O mar para a Nazaré representa tudo. Desde os tempos mais antigos. O mar representava
a economia toda da Nazaré. Portanto, o mar sempre foi uma riqueza. E ainda hoje. E agora
com isto da onda ainda mais.” (Manuela)
O mar era – e ainda é – o seio da sociedade nazarena, o tecido por onde a vida se
desenvolvia. Era no mar ou diante dele que as pessoas cresciam, trabalhavam, aprendiam e
incorporavam valores, faziam amizades, divertiam-se, sofriam, inspiravam-se, casavam-se e
até mesmo nasciam, como refere Manuela a seguir:
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“Eu ‘tô’ chateada, eu sento na beira-mar. Eu preciso resolver qualquer problema, eu vou ao
mar. Eu ‘tô’ alegre, eu vou ao mar. Portanto o mar, pra mim, é tudo. Basta eu dizer-te que eu
nasci com a cara na areia. A minha mãe estava a ver o meu pai varar ao mar e a minha mãe
teve as dores, e eu nasci na areia! Por isso, o mar pra mim é tudo.” (Manuela)
No entanto, ao mesmo tempo em que provia, o mar também era o local onde muitos
pescadores nazarenos perdiam suas vidas. E isso acontecia geralmente de uma maneira muito
específica e dramática – por conta da morfologia da praia, da força das ondas, porque não
havia Porto de Abrigo e porque muitos pescadores não sabiam nadar –, a 100, 200 metros da
areia, em frente às próprias famílias que nada podiam fazer.
Um dia, conversando com seu Mário, dono do restaurante O Varino, ouvi uma frase
que me intrigou. Ele me disse: “Não há um nazareno que não tenha perdido um parente no
mar”. Fiquei paralisado. Eu já sabia que os naufrágios haviam sido terríveis e numerosos na
Nazaré, mas aquilo era uma afirmação de outro nível. Uma vila onde todos perderam um ente
no mar era algo realmente inquestionável, imenso e transversal. Achei que ele estivesse
exagerando, mas fiquei com aquela frase na cabeça.
Um tempo depois, durante a entrevista com o senhor José Augusto, decidi fazer uma
pergunta direta sobre esse assunto. Ele não apenas confirmou que era verdade, mas o fez com
uma naturalidade que me deixou ainda mais surpreso, como se fosse algo banal, corriqueiro.
Procurava imaginar como seria crescer dentro dessa realidade, conviver com essa sensação
fazendo parte de você e de sua história e dimensionar o impacto disso em uma sociedade
inteira. Confesso que não cheguei longe nesse raciocínio, já que era uma experiência muito
distante do que conhecia. Mas, ao observar o mar da Nazaré e ouvi-los falar a respeito, pude
entender um pouco melhor o tamanho e o significado desses acontecimentos.
“No grupo dos camaradas – os camaradas era o grupo que encorpava o barco –, havia um
chamador, que era o que ia chamar... era muito engraçado, Francisco. Iam chamar os
pescadores todos, e ‘comé’ que eles diziam? Chamavam pelo nome e diziam assim: ‘vamos
pra baixo com Deus, tá mar raso’. Mas era assim, esse chamador primeiro ia ver o mar, ia
avaliar o mar. E depois vinha à casa do dono do barco, neste caso vinha à casa do meu pai.
E depois dizia: ‘Ricardo, tá mar raso’. E o meu pai dava ordens: ‘Vai chamar’. E então,
depois eles juntavam-se todos e iam pra o mar. Eles sabiam quando podiam ir e quando não
podiam. Só que o nosso mar é muito traiçoeiro, e o que acontecia? Muitas vezes eles iam com
o mar raso e depois ficava um ‘mar cão’, como a gente costumava dizer. Depois queriam
regressar e já não conseguiam.” (Manuela)
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“Houve cá muito naufrágio, faleceram muitas pessoas. Cada vez que iam pra o mar, era com
o coração nas mãos, porque aquilo... iam com o mar raso, o mar estava raso – aqui não se
diz raso, se diz mar bom ou mau, ou ‘tá’ leva de mar –, como eu estava a dizer, iam com o
mar raso e, quando chegavam, passadas aquelas 8, 9, 10, 12 horas, era o caos na terra. Havia
sempre uma falta e uma ansiedade para saber quem é que faltava.” (José Augusto)
“Mas os naufrágios maiores era quando vinham do mar para a terra, quando vinham a
encalhar, que nós chamamos a encalhar. O encalhar é quando vem do mar pra terra. O varar
é quando vai da terra pra o mar. O acidente dava-se mais quando vinham a encalhar. Por
quê? O barco vinha carregado com peixe, eles aproveitavam as ondas. Ainda hoje eu, quando
estou no mar, conto as sete. Se tu ‘tiveres’ no mar e vier as ondas, tem sete ondas seguidas e
depois vem o raso. Isso foi uma coisa que o meu pai me ensinou. E então é assim, eles
aproveitavam o raso só que, muitas das vezes, no raso formava-se uma onda e, quando se
formava a onda, o que é que acontecia? O barco vinha, né, vinha pra terra, e a onda batia a
meio do barco, o barco virava. Os pescadores muitos ficavam enrolados ou nas redes, ou no
aparelho ou levavam alguma pancada do barco e ficavam inanimados e já não se levantavam.
Muitos conseguiam chegar à terra a nado, outros já não conseguiam.” (Manuela)
Essa dualidade – o mar como vida e morte, fonte de alegria e sofrimento, ganhos e
perdas – está no cerne do imaginário nazareno e possui uma ligação intrínseca com suas
tradições. Todos esses eventos acabaram por moldar a cultura nazarena, crenças, uma ética,
um jeito de ser, de falar, vestir-se e comportar-se, sempre tendo relação com o mar. Os trajes,
como as sete saias, por exemplo, ou aspectos da religiosidade, como a Capela de Nossa
Senhora dos Aflitos, localizada estrategicamente ao lado do bote salva-vidas, em frente à
praia, onde principalmente as senhoras iam nos momentos de aflição orar e pedir para seus
parentes encalharem em segurança.
“Era banal existirem mortes. Imaginemos que o mar estava calmo quando os pescadores
saíam, e eles passavam uma noite fora ou vários dias e, quando chegavam, podia estar
completamente diferente, não havia previsões. E existia uma relação, digamos, de amor e
ódio com o mar, das famílias, que era: o mar é o sustento, é aquilo que nos dá a comida, mas
simultaneamente tira-nos os nossos pais, os nossos filhos, os nossos maridos. E é natural que
as pessoas acabassem por desenvolver alguma ansiedade e algum medo, algum pavor até
pela onda, pelas ondas da Praia do Norte, pela onda grande.” (Hélio António)
“Ainda me lembro dos jovens rapazes aqui da Nazaré que partiam ‘pa’ o mar e já não
voltavam.” (Dona Rosa)
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“Sabes como é que se dizia, como é que os pescadores dizem quando uma pessoa morre no
mar? Não morreu, já lá vai. Já lá vai.” (João Grilo)
“Tu vias a parte toda do promontório do sítio, as pessoas do sítio todas a ver, nazarenos. E
depois era uma marginal, um areal. Tu só vias capas negras, tu só vias cabelos tirados, tu só
vias mulheres a desmaiar, tu vias próprios homens a cair, quando viam seus filhos ali, os seus
maridos, tudo ali a morrer e não se podia fazer nada. Porque quando o mar ‘tava’ ‘levadio’,
como nós chamamos o ‘mar levadio’, o ‘mar à pedra’, quer dizer, não havia hipótese. Eu
conto ao meu marido porque o meu marido não é de cá, né. E meu marido às vezes diz-me
assim: ‘Ó, Manuela, tu ainda vives isso.’ E eu digo: ‘Vivo’. Eu ainda vivo isto porque eu ainda
me lembro de ver as mulheres todas a gritar, inclusivamente eu.” (Manuela)
O fato de ainda hoje viver essas lembranças demonstra não apenas o horror e a
intensidade desses momentos, mas a importância de pessoas como Manuela, porta-vozes e
guardiãs da cultura nazarena.
Por outro lado, mesmo entre os surfistas, existe o conhecimento sobre os naufrágios
dos pescadores na Nazaré, como atesta o depoimento da surfista portuguesa de ondas grandes,
Joana Andrade. Ela nos revela, inclusive, um ritual de respeito praticado antes de entrarem no
mar, com bases católicas, agradecendo a Nossa Senhora da Nazaré.
“Claro que nós temos muito respeito quando vamos ‘pa’ Nazaré, principalmente porque
quando vemos aquelas senhoras de saias que ficaram viúvas dos maridos que foram ‘pa’ o
mar e não voltaram e... a tradição da Nazaré, muita gente morreu naquele mar, muitos
pescadores. Portanto, há que haver muito respeito, e nós fazemos sempre uma cerimônia cada
vez que vamos pra dentro d’água. Antes de irmos, fazemos uma reza, a agradecer a Nossa
Senhora da Nazaré, por ‘tarmos’ aqui, pra nos proteger. E isso tem que ser assim.”
(Joana Andrade)
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Além de Joana, os surfistas Andrew Cotton e Rodrigo Koxa também disseram saber
sobre os naufrágios e se interessar pela cultura nazarena. Ou seja, esse vínculo com o passado
é um elo de transmissão e manutenção importante tanto para nazarenos como para os surfistas,
antigos e novos porta-vozes da cultura local. Assim como os pescadores foram os primeiros
desbravadores daquele mar, hoje são os surfistas a enfrentar aquelas águas e, apesar de serem
ofícios muito distintos, os dois dependem do mar e sabem perfeitamente a importância de
conhecê-lo e respeitá-lo, pois, hoje como então, o que está em causa é a vida deles,
especialmente na Nazaré.
De certa forma, talvez o surf viva um momento semelhante à Nazaré, de descoberta e
grande expansão na última década e, ao mesmo tempo, de dúvidas em relação ao futuro e à
preservação de sua essência e tradições. Será que irão resistir à sede do capitalismo sem perder
sua identidade? De qualquer maneira, não resta dúvidas de que a preservação dessa identidade
depende de sua presença no cotidiano e no imaginário da vila e do tipo de espaço/papel
destinado a ela e seus porta-vozes. Esse vínculo entre o surf e a cultura nazarena é uma
importante ferramenta de valorização e manutenção dessa(s) cultura(s) para as futuras
gerações.
A prática do surf data de cerca de 3.000 anos atrás, e sua origem é disputada por
peruanos e polinésios6. Seu surgimento tem forte relação com a pesca, já que, ao retornar do
mar, os pescadores acabavam “surfando” as ondas em suas embarcações para chegar mais
rápido à areia. No Peru, essas embarcações chamavam-se caballitos de totora e eram feitas
de junco. Segundo alguns especialistas, são as pranchas de surf mais antigas do mundo.
Sua divulgação deve-se em parte ao famoso explorador inglês James Cook que, após
uma expedição ao Havaí, em 1798, tornou pela primeira vez a modalidade conhecida para o
mundo ocidental, ao narrar em seu diário o exótico passatempo dos locais. Mais adiante, já
no início do século XX, foi o nadador e medalhista olímpico havaiano Duke Kahanamoku7
que deu início à popularização do surf para o mundo nos moldes que conhecemos atualmente.
6
https://marsemfim.com.br/surpreendente-historia-do-surf/ (acedido a 24/09/21).
7
https://pt.wikipedia.org/wiki/Duke_Kahanamoku (acedido a 24/09/21).
44
O primeiro campeonato mundial da modalidade foi realizado em 1964, em Manly
Beach, na Austrália8, a partir do qual o esporte começou a ganhar fama. Por outro lado, foi
nessa mesma época que o surf passou a ser estigmatizado como um movimento de
contracultura, praticado por pessoas de pouca inteligência, que não gostavam de trabalhar e
que costumavam usar drogas.
Na última década, no entanto, o esporte tornou-se um dos mais almejados territórios a
serem explorados pelas grandes marcas e corporações, já que permitia uma associação direta
a inúmeros atributos altamente valorizados pelo mercado, como saúde, beleza, bem-estar,
inspiração, sucesso, superação e contato com a natureza. Ao se associar a essas experiências
únicas, potencializava a possibilidade de vender diversas categorias de produtos, como:
tecnologia, alimentos e bebidas, automóveis, vestuário, telefonia, fitness, bancos, viagens e
turismo, entre outras.
Mas, apesar da forte ligação com o mar, o surf demorou bastante para chegar à Nazaré.
Como várias outras novidades, foi trazido por turistas no início dos anos 1970. Pesquisando
sobre o tema, encontrei um vídeo9 sobre três surfistas americanos surfando na Praia da Nazaré
no ano de 1968, que talvez tenham sido os primeiros a deslizar naquelas ondas com uma
prancha embaixo dos pés.
Entrevistei os dois primeiros surfistas da Nazaré, João Grilo e João Henrique
Eustáquio, conhecido como Pássaro da Névoa, e o primeiro windsurfista, Adriano Monteiro,
que começaram alguns anos mais tarde, por volta de 1974, sem nunca antes terem visto um
surfista a surfar ou ouvido a palavra surf, como refere João Eustáquio:
“Naquele tempo vinha por aí na altura do verão um sujeito que tinha um iate, um iate, um
barco, que ficava ali fundeado ao lado da praia, pelo menos no verão. E... e ele tinha uma
prancha, uma longboard na altura, uma ‘Barland’, uma prancha francesa, e ele não fazia uso
disso. E nós éramos conhecidos dele, porque nós estávamos sempre na praia, nos dávamos
com ele, conversávamos porque ele também gostava muito do mar, nadava muito e era um
sujeito acessível, altamente acessível, e então um dia resolveu oferecer-nos aquilo. Ofereceu,
‘ó pá, vocês querem brincar com isso?’ e nós... olhamos ‘pa’quilo’, um bocado quase de
madeira ‘pa’ vir nas ondas... e foi aí. A partir daí que o vir em cima de um bocado, quase de
um bocado de fibra, né, e com uma quilha... Vínhamos aos dois e aos três e brincávamos com
aquilo sem saber se era surf, se era o que era, aquilo não tinha nome.” (João Eustáquio)
8
https://www.surftotal.com/noticias/internacionais/item/17745-o-primeiro-campeonato-de-surf-em-manly-beach-
australia (acedido a 24/09/21).
9
https://vimeo.com/101734594 (acedido a 24/09/21).
45
“Não era como desporto, não se via aquilo como desporto, não se sabia, não tínhamos
conhecimento. ‘Tamos’ a falar em 75, né. 74, 75. Portanto, um ano depois, vá, da revolução.
E foi aí, começamos aí.” (João Eustáquio)
Fiquei surpreso diante de suas revelações sobre a origem da prática na Nazaré e quis
confirmar se eles já tinham conhecimento de que aquilo que estavam a fazer era chamado de
surf, ao que Pássaro me respondeu:
“Não, não. Não sabíamos. Não tínhamos conhecimento que era surf. Depois é que apareceu
‘paí’ um estrangeiro qualquer com uma prancha pequenina e ‘ehh pá, isso é assim... então
isso é pra isso’. Não havia filmes, não havia revistas, não havia informação, não havia nada.
Portanto, começamos do zero mesmo, do zero mesmo.” (João Eustáquio)
“Não havia material. O material eu tinha que comprar em Lisboa, e a minha prancha de surf
nós compramos a um francês. Não havia em Portugal prancha à venda ainda, não havia
material. E os surfistas compravam aos turistas, compravam-lhes as pranchas, normalmente
rebentadas. E então eu, digamos, como tinha alguma habilidade, comprava a lã e a resina e
reparava as pranchas a eles. Eu era, digamos, o serralheiro dos surfistas da Nazaré.”
(Adriano Monteiro)
“Eu às vezes caía, e a minha prancha... porque eu às vezes surfava as ondas e a onda trazia-
me a prancha, não é? E eu ficava lá dentro, não é? E duas ou três vezes a população da
Nazaré ficou assustada porque a Nazaré tinha uma memória recente de mortes no mar, não
é? Então quando viam uma pessoa a fazer windsurf, eles não chamavam windsurf, chamavam
o senhor do barquinho. Portanto, windsurf era uma palavra para eles desconhecida, inédita,
não é? ‘O senhor do barquinho, ó o senhor do barquinho que anda no mar’. E um dia, vi o
paredão cheio de gente, tudo ‘pá’. Eu fiquei preocupado porque aquela gente ‘tava’
preocupada comigo, e eu ‘tava’ satisfeito lá dentro, não é?” (Adriano Monteiro)
Conforme referem João Eustáquio e João Grilo em seus depoimentos, essa relação dos
surfistas com a comunidade foi bastante complicada inicialmente, já que eram abordagens
distintas no modo de lidar com o mar. Enquanto os surfistas divertiam-se, os pescadores
tinham uma ética forte relacionada ao trabalho, ao sustento, à disciplina, ao perigo e à morte.
E isso não se muda do dia para a noite:
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“Inicialmente foi complicado, inicialmente foi muito complicado. Não éramos bem aceitos,
porque na altura não havia o Porto de Abrigo, portanto o Porto de Abrigo só apareceu em
82, 83, por aí, se não estou em erro. E nós começamos a brincar com as ondas, vá, enquanto
os pescadores entravam ao mar tentando sempre passar a arrebentação, que era coisa que
era perigosíssima, né. E nós, por outro lado, andávamos a brincar. E eles tentavam ganhar a
vida enfrentando o mar, e nós andávamos a brincar. Portanto, essa relação inicialmente não
foi bem aceita. Aqueles opostos terríveis, né. É evidente que depois, com o tempo, mais um,
mais outro, mais outro, mais três, mais quatro, foram aparecendo alguns, e a coisa já foi bem
aceita, mas só muito mais tarde, porque éramos adjetivados com muito nome.”
(João Eustáquio)
“Quem era próximo do meu avô, ia lhe dizendo que eu não tinha respeito pelo mar, que
qualquer dia me acontecia alguma coisa porque eu tava a gozar ‘co’ mar, tava a brincar ‘co’
mar, e quem brinca às vezes trama-se, não é. Era o respeito porque eles entravam ao mar e
benziam-se. Eles entram ao mar e viram-se ‘pa’ Senhora da Nazaré, ‘pa’ Capela e benzem-
se. Por isso, o que eu ia fazer era brincar, eles iam em trabalho. E eu penso que houve um
período em que mudou... que um velhote da xávega queria ir pôr a rede na água. O arrais
queria pôr a rede na água, e a campanha não quis, recusou-se porque ‘tava’ muito mar. E o
velho veio ter comigo e com o Pássaro e perguntou-nos se nós íamos com ele pôr a rede
n’água. E fomos a remar, em frente à bola Nívea, pela corrente de fora, pôr a rede n’água
com o homem e depois encalhamos. E o homem depois teve sorte nesse lance apanhou muito
peixe. E... pronto. O pessoal ligado à pesca começou a perceber que a gente também percebia
de mar, que não era só andar a brincar com as ondas.” (João Grilo)
“Mais tarde é que sim, quando ficava lá fora e olhava ‘pa’ praia e dizia assim: ‘aquela gente
‘tá’ toda a olhar ‘pa’ aqui, mas o que é que se passa, né’.” (João Eustáquio)
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“Eu fui multado de verão pela Capitania, pelos cabos de mar, porque fazia surf com bandeira
vermelha. Eles proibiam o banho, e eu ia ‘pa’ dentro d’água, e eles mandavam-me prender.”
(João Grilo)
“Um dia levantei-me, eu morava lá na parte velha da Nazaré. Levantei-me e, quando passei
pela esquina da igreja, que é uma coisita pequenina, entre a taberna e a igreja vi gente dentro
d’água, nunca tinha visto gente a surfar. Fui buscar o material à casa, a prancha, e ‘bum pa’
dentro d’água. As ondas ‘tavam’ grandes, e eles começaram aos gritos a dizer ‘you are crazy’,
e eu disse ‘aqui quem manda sou eu, esta é a minha terra’. E eles, ‘não, não se fazem ondas
dessas com essa tábua’. E foi quando eu vi tábuas pequenas. Pronto, eu vi que era um surf
diferente, que dava pra fazer mais manobras, com uma prancha pequena, pronto.”
(João Grilo)
“Não. A única vez que eu ouvi falar da Praia do Norte com ondas foram esses australianos.
E depois, eu, cada vez que vinha alguém, ‘vamos surfar à tarde a Praia do Norte ou amanhã’
e levava-os lá. E a Praia do Norte era uma praia que eu dizia sempre: não é ‘pa’ todos.”
(João Grilo)
Para mim foi muito significativo encontrar e poder conversar com esses verdadeiros
pioneiros do surf na Nazaré, desbravadores valentes que fazem parte da história do surf e que
entravam naquele mar sem fato, sem chop (cordinha), sem colete e sem nadador-salvador,
com pranchas pesadíssimas, pelo simples prazer de subir em cima de uma tábua e deslizar
sobre as ondas. Além disso, ver o amor que nutrem pelo mar e pelo surf e o orgulho que
sentiram ao me contar sobre aquilo e, de certa maneira, serem reconhecidos, causou em mim
uma impressão muito forte. Sem eles, nada disso teria acontecido ou, pelo menos, não dessa
maneira. Segundo Pássaro, a praia e o mar eram onde costumavam brincar quando crianças:
“O mar é o jardim daqui da malta, é o jardim. Portanto, o nosso passatempo era passado na
praia, a praia era o nosso parque de diversões, vá. Brincávamos todos na praia, na praia-
mar, a relação praia-mar vem desde criança. Toda a minha gente aqui na altura vivia
diretamente com o mar.” (João Eustáquio)
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Perguntei-lhe se essa relação havia mudado com o tempo e ele respondeu-me:
“Mudou, mudou, mudou... hoje especialmente faz-se muita relação com a tecnologia,
portanto não há muita relação com a natureza, é muito mais com a tecno, com os
computadores, os telemóveis. A relação terra-mar não é muito... não é muito real, não é muito
sentida.” (João Eustáquio)
Achei bonita e significativa a sua resposta: a relação terra-mar não é mais muito
sentida atualmente. Os jovens de hoje estão em busca de resultados, performance, velocidade.
E, para perceber a natureza, é preciso de tempo, presença, sentimento.
“Eu, desde que me conheço, e tenho 73 anos feitos, nós aqui sempre tivemos aquele tipo de
onda. Só que nunca tinha sido aproveitada. Não era aproveitada. Até que a malta começou a
falar no surf.” (José Augusto)
“A Praia do Norte sempre foi pra nós, surfistas locais, sempre foi algo místico, também pela
tradição. As nossas famílias e os nossos conhecidos sempre nos diziam: ‘Não vão surfar pra
Praia do Norte’. Porque é uma praia muito perigosa. Muito turista morria na Praia do Norte
durante o verão, porque iam tomar banho e devido à estrutura da praia, à morfologia da
praia, não é uma praia própria pra banhos, mesmo quando o mar está relativamente calmo,
é uma praia onde podem acontecer os acidentes muito facilmente. E então sempre houve
aquela mística das pessoas que vivem na Nazaré que a Praia do Norte era um lugar proibido,
perigoso, ‘não vão pra lá’. E os pais dos surfistas, não há nenhum surfista que se sentisse à
vontade, da parte dos pais, de poder ir lá surfar. Por isso nós sempre crescemos com aquela
mística da Nazaré onda perigosa. Mas obviamente, como crianças e como jovens, queremos
desafios e começamos a surfar a Praia do Norte independentemente daquilo que nos diziam.
Mas surfávamos a Praia do Norte pequena. Pequena é 1 metro, 2 metros, 3 metros no máximo
dos máximos. E, quando o mar crescia muito, nós não vínhamos à Praia do Norte. Isso pra
dizer o quê? Que as ondas grandes da Nazaré sempre passaram muito sozinhas, mesmo pra
nós. Nós íamos lá esporadicamente ver as ondas grandes e ficar maravilhados com aquele
espetáculo, mas nós nem sabíamos qual era o tamanho daquelas ondas porque não havia um
ponto de referência na água pra ter noção sequer. Portanto, pra mim foi um privilégio e uma
grande satisfação ver aquelas ondas serem conquistadas no surf.”
(Hélio António)
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“Eu, quando era pequenino, Francisco, para teres a noção, eu e os meus colegas, era
normal nós lá embaixo na Nazaré, pra perceberes, a praia era a metade do tamanho.
Portanto, a quantidade de vezes que o mar entrava pelas ruas e pela estrada era muito maior
do que é hoje. Hoje acontece uma vez, duas vezes por ano, em dias anormais. Antigamente
era uma vez se calhar por mês. E uma das brincadeiras que nós fazíamos era fugir das ondas
que entravam pelas ruas e chegavam à estrada. Portanto, nós convivíamos com as ondas da
Nazaré e, no horizonte, víamos as ondas a entrarem ‘pa’ Praia do Norte. Aquelas ondas
gigantes que toda a gente surfa hoje em dia, nós víamos aquilo desde pequeninos. O problema
é que nós, a nível cultural, eu quando dizia a minha avó que ia surfar ‘pa’ Praia do Norte,
ela arranhava-se toda, ela dizia: ‘Tu não vais, não podes, tu vais morrer afogado’. Por quê?
Porque havia muito o estigma do pescador que tinha morrido no mar, e a Nazaré antes do
Porto de Abrigo era uma praia, uma vila que tinha muito sofrimento associado a mortes de
pescadores em frente à família, porque os barcos entravam na praia e saíam da praia pra
fora. E vinha uma ondulação maior, o barco tombava, a maior parte dos pescadores não
sabiam nadar e morriam a cem metros da família, com a família a presenciar aquilo. E isto
era muito dramático, era uma situação que ‘tava’ enraizada na cultura nazarena, e na minha
família, obviamente, também estava. E eu, quando dizia que ia ‘pa’ Praia do Norte, era: ‘nem
pensar’. A minha avó nem dormia, era mesmo assim. E era difícil para nós, miúdos, termos a
família a dizer ‘não vás’, ‘é perigoso’, ‘podes morrer’. Quando chegávamos à Praia do Norte
aquilo era... mentalmente era muito difícil nós ultrapassarmos determinadas barreiras porque
tínhamos sempre aquela vozinha atrás: ‘olha, atenção, podes morrer afogado’... pronto. E
fomos ultrapassando as barreiras, mas havia limites. E os limites ‘tamos’ a falar até três
metros. Três metros surfávamos já a muita custo. Mais do que isso, ficávamos sentadinhos na
areia a ver ondas perfeitas, que só víamos nas revistas, e que agora essas ondas aparecem
nas revistas.” (Dino Casimiro)
“Sim, e muitas vezes falamos: ‘Olha, desde que vieram os surfistas, felizmente a coisa tem
andado bem’. E já tem sido os surfistas, não só aqui, mas noutros lados, que têm salvo
determinados pescadores ou determinadas pessoas que o mar as leva e eles vão buscá-las.
Por isso mesmo, a palavra surfista é uma bendita palavra.” (José Augusto)
“Quando vem este doido, que não tem outro nome, surfar uma onda na Praia do Norte...
porque a Praia do Norte, pra nós, era sagrada. Todo nazareno temia aquela praia. Eu lembro-
me, eu era das primeiras nazarenas do meu tempo a saber nadar, e o meu pai dizia-me
sempre: ‘Praia do Norte não se toma banho’. Por quê? Precisamente pelas ondas que são
formadas pelo Canhão. Pronto, aquele senhor veio surfar e fez isso tão bem, e veio dar, além
da Nazaré ser conhecida tipicamente pelas suas saias, pelos pescadores, pela sua caldeirada,
pela sua sardinha assada, hoje é conhecida pela onda. Eu ‘tive’ com um velhote que ele dizia
assim pra mim, ‘filha’, que era mesmo a moda da Nazaré, ‘filha, este gajo não sabe onde é
que se veio meter, isto só acaba quando um deles lá morrer. Eles não sabem o que é o mar da
Praia do Norte’. Pronto. Nós, nazarenos, descobrimos o mar de uma maneira, pra ganharmos
o pão, e eles descobriram de outra.” (Manuela)
10
https://www.worldpressphoto.org/collection/photo/2008/30742/1/2008-Miguel-Barreira-SP3 (acedido a 24/09/21).
51
entrasse naquele mar a não ser a morte, demonstra uma aceitação tão natural do novo
fenômeno que o alça instantaneamente à categoria de tradição, incorporando-o aos maiores
patrimônios culturais da vila, que ela própria elenca. Quer dizer, para ela, não há disputa – a
cultura está viva e em movimento.
“Foi o senhor McNamara que deu alma a esta terra, a este povo, a esta beleza que há, que
toda a gente quer ver, onde é que era, onde é que a onda se forma, como é que a onda se
forma, onde é que é o Canhão.” (José Augusto)
“A verdade é que a Nazaré cresceu muito com o boom do Garrett há cerca de 8 anos, 9 anos.
Porque o Garrett meteu a Nazaré no mundo inteiro. Antigamente ninguém sabia o que era a
Nazaré, mesmo os próprios turistas. Os portugueses, é claro que conhecem, porque é a
Nazaré, mas muitos deles nunca tinham ido lá. Era uma vila piscatória um bocadinho morta.
E eu acho que agora com as ondas grandes que aquilo deu uma explosão, ‘tá’ na meca do
surf.” (Joana Andrade)
“A Nazaré ‘teve’ no pico da Europa nos anos 60 em relação aos trajes e à cultura nazarena.
Perdeu. Hoje voltou a ‘tar’ no pico do mundo com a onda.” (João Grilo)
“Minha segunda casa, cara. A galera lá é sensacional. Os portugueses são especiais demais,
eles são acolhedores. Eles são muito gratos, né cara, principalmente o pessoal do comércio.
Eles agradecem muito nós todos, todos os surfistas de ondas gigantes. Eles entendem que a
gente mudou a economia da cidade.” (Rodrigo Koxa)
52
“Nós costumamos dizer que os havaianos andam lixados conosco porque tiramos a meca do
surf do Havaí. É pá, hoje em dia basta abrir uma notícia, basta pôr no Google ‘big wave’, é
‘pá’ e é Nazaré, Nazaré, Nazaré. Tens as ondas a rebentarem por baixo dos seus pés, do
público. Tens o público em cima do estádio, digamos, não é? Podes surfar a maior onda do
mundo como podes surfar a onda de 20cm ou 30cm. Ondas desafiantes, ondas gordas, ondas
tubulares, ondas de todos os tipos. E depois tens outra. É ‘pá’, Mavericks, tens uma hora de
barco ou de mota d’água; Jaws já fica longe pra o pessoal ver, é perto, mas as pessoas já têm
que ver de binóculos, ‘tás’ a ver? E a Nazaré é um sítio que tu vês a onda por baixo de ti, tens
o Porto de Abrigo a dois minutos, ‘tás’ a perceber? Tens tudo ali, tens uma envolvência que
não tens em nenhuma parte do big wave do mundo.” (Sérgio Cosme)
“Pô, pro Big Wave Surf é tudo né, cara. Eu acho que é tudo já. Passou, passou... eu acho que
transcendeu, né. Não tem o que questionar isso. Ali você pode pegar a maior onda do mundo
de tow-in, ali você pode pegar a maior onda do mundo na remada, você pode pegar o maior
tubo do mundo, da tua vida. Você pode tomar o pior ‘caldo’ da tua vida, você pode aprender
com uma equipe como você não vai aprender em nenhum lugar do mundo, você pode aprender
a respeitar o mar como em nenhum lugar você vai respeitar, você vai poder assistir o mar,
uma onda gigante, como em nenhum outro lugar você vai poder assistir. Tudo que se posta
de Nazaré, que se faz um vídeo de Nazaré, é muito bem aceito pela internet, as pessoas querem
ver, querem ver mais. Então, cara, o futuro é ali. Ali ‘cê’ pode ‘tá’ sempre dando um passo a
mais. Você quer dar um passo a mais no Big Surf, acho que não tem lugar melhor do que
Nazaré.” (Rodrigo Koxa)
“É a meca do surf atualmente, não é. Qualquer religioso quer ir a Jerusalém. É pá, isto é um
bocadinho igual. Quando tens a meca do surf na Nazaré, mesmo que não seja... eu como
surfista nunca fui ao Havaí e quero ir, mesmo que não seja para surfar. Gostava de ir ao
Havaí ver a cultura deles e conhecer. E eu acho que vai passar um bocadinho o mesmo pela
Nazaré.” (Sérgio Cosme)
“O dia da onda gigante, quando dá a onda gigante, é absurdo, é absurdo. Fecha a rua, não
dá pra descer, tem que fechar o Farol, carro não desce. Parece o Maracanã, cara. É um
estádio lotado de gente. A gente da água surfando, a gente ouve, sente a energia da galera.
Tem dia que o mar não ‘tá’ nem tão bom, ‘tá’ ventando, a gente se sente na obrigação de
pegar uma onda, brother. De fazer alguma coisa pelo carinho das pessoas ‘tarem’ ali.”
(Rodrigo Koxa)
53
“Eu, pra mim, é o maior privilégio. Eu já era uma vaidosa em ser nazarena. Agora, que a
minha onda corre o mundo, e que tá considerada a melhor onda do mundo... sou uma vaidosa
mesmo. Sou mesmo, mesmo, mesmo vaidosa com a onda da Nazaré. Não sou vaidosa no
aspecto do meu pai tantas vezes ir ficando sem a vida. Mas agora, com essa onda, que é uma
onda totalmente diferente... nós tínhamos uma onda da vida, uma onda da sobrevivência. Eles
não, hoje não. Eles têm hoje é a onda do prestígio. Eles hoje têm uma onda pra divulgar, nós
tínhamos uma onda pra comer, né, e pra sobreviver.” (Manuela)
54
“The size it gets and the amount of water moving, you know, and the energy. I think it’s very
unique, cause it gets so… You know, like a big wave surfer, it doesn’t get that big that often,
you know. Even in Hawaii in the season it can get 20 feet a few times in the season. And I
think the unique thing with Nazaré is like… it’s 20 feet a lot, you know. So enables you to train
a lot.” (Andrew Cotton)
“Eu via, com a formação que tinha, via sempre a possibilidade desportiva que a Praia do
Norte tinha e, depois, do desenvolvimento turístico e económico que poderia vir associado à
Praia do Norte. Foi um caminho, desde 2002 até 2010, muito longo, muitos campeonatos,
muitos contras, muitos nãos e que em 2010 culminou com a criação de um projeto que se
chamava North Canyon, que era a evolução do trabalho todo que nós tínhamos vindo a fazer
e que foi idealizado por mim, pelo Paulo Caldeira, o Paulo Salvador e pelo Pedro Pisco.
E nós decidimos convidar um surfista de ondas grandes para explorar as ondas na Praia do
Norte, e a escolha natural era o Garrett porque eu já vinha a falar com o Garrett há 5 anos,
e ele sempre se demonstrou disponível a vir para cá, porque eu tinha tirado uma fotografia
num dia especial e percebi claramente que aquilo era uma fotografia que não era normal.
Que as ondas da Praia do Norte eram especiais e que tinha que haver alguma forma de as
surfar e tirar partido disso e de as mostrar para o mundo e fazer com que houvesse pessoas
que quisessem visitar a Nazaré para sentir o mesmo que eu sinto e que tu já sentiste.”
(Dino Casimiro)
Figura 2. Fotografia que Dino Casimiro tirou da Praia do Norte em 2005 e enviou a Garrett McNamara por e-mail
55
Esse tema, inclusive, está sendo discutido neste momento por conta da série produzida
pela HBO sobre a onda gigante da Nazaré, 100 Foot Wave.
McNamara é conhecido por ser egocêntrico, e, em uma entrevista recente publicada
pelo site NiT11, por conta da série, Dino Casimiro revelou que a relação com o surfista ficou
com um gosto amargo após a conquista da onda, já que Garrett não se preocupou em dar os
devidos créditos a toda a equipe envolvida no projeto, que não apenas desenvolveu a estrutura
antes da sua chegada e o convidou para executar a façanha, mas também deu todo o suporte
durante o processo de exploração da onda.
E parece que, pela primeira vez, McNamara resolveu falar publicamente sobre os
bastidores dessa história, talvez até mesmo porque a série o tenha obrigado a isso. Fiquei com
pena de não o ter entrevistado. Chegamos a trocar mensagens para combinar a entrevista, mas
ele não me retornou. Recentemente, li um post dele no Instagram12 que achei significativo
acerca desse tema e também sobre a velocidade das transformações e a importância da onda
para a Nazaré e para Portugal:
“Crazy to think how quickly things can change when everyone works together for a common
goal, vision and passion. Photo 1 is from winter 2012 with just our team and the other two
from the following winter seasons with thousands of people!! It’s INCREDIBLE to think what
a wave can do for a town… for a country. Portugal is an amazing place without this wave.
Nazaré is a mystical fishing village without the wave. BUT with the wave our small team with
all HEART was able to share this hidden gem of a country with the entire world. Through the
wave we were able to reach people who now can also fall in love with Portugal. So grateful
for that original group of men that had a vision and for @mamaunearthed supporting all our
visions and for the motto “everything is possible” because guess what???… it’s true
EVERYTHING IS POSSIBLE. (Garrett McNamara)
Se tivesse de escolher apenas um entre todos os atrativos da Nazaré, seria com certeza
a onda gigante. Aquilo, para mim, é mágico, de sonho. É claro que ela sozinha não seria tão
interessante sem toda a mística, beleza natural e a cultura nazarena que a envolve.
Quando comecei o trabalho de campo, tinha dois grandes focos em relação à onda,
como expectativas ou pré-conceitos sobre os quais imaginava que construiria meu trabalho.
Primeiro, gostaria de saber o que achavam os nazarenos da onda gigante e como era ter
11
https://www.nit.pt/cultura/televisao/a-historia-dos-portugueses-que-levaram-ao-mundo-as-ondas-gigantes-da-nazare
(acedido a 24/09/21).
12
https://www.instagram.com/p/CTwxIPRrZfW/?utm_source=ig_web_copy_link (acedido a 24/09/21).
56
nascido com a maior onda do mundo ao pé de casa, como se a onda fosse uma entidade, um
objeto único, “a onda”. E, em segundo lugar, queria saber se a “descoberta” da onda tinha
sido boa para a Nazaré e quais problemas tinha trazido.
No meu raciocínio “de estrangeiro”, minha expectativa era a de que as pessoas, por
um lado, me contassem maravilhas sobre a onda gigante, respondendo à primeira pergunta e,
por outro, listassem para mim uma série de problemas que, obviamente, a exploração da onda
deveria ter trazido. Confesso que estava mais interessado na segunda questão.
Contudo, o que aconteceu foi praticamente o oposto. A grande maioria dos nazarenos
com quem conversei, diferentemente de mim, não achava a onda algo propriamente
excepcional e nem a enxergava como “a onda”, como uma coisa única e estática. Era uma
visão muito mais integrada da natureza, “o mar da Nazaré” ou “as ondas da Praia do Norte”.
Não havia essa visão estereotipada que eu tinha inicialmente. Uma senhora da pastelaria onde
tomava o pequeno almoço disse-me que não gostava muito de ver as pessoas a surfarem
aquelas ondas, que sentia uma aflição. Perguntei-lhe o motivo e ela disse-me que era por conta
das mortes que já haviam ocorrido lá. E disse-me que muitos nazarenos sentiam o mesmo.
Quanto à segunda pergunta, acreditava que reuniria diversos depoimentos
interessantes sobre os problemas causados pela exploração da onda e que teria um material
rico para trabalhar e apontar caminhos com base nisso. No entanto, fiquei surpreso, porque
quase ninguém os mencionou de imediato. Praticamente ninguém via problemas na
exploração das ondas gigantes e seus impactos. Muitos, inclusive, me olhavam com uma
expressão de estranheza, como se eu estivesse a perguntar algo sem sentido. Finalmente, à luz
dos depoimentos colhidos, é possível resumir que as transformações decorrentes da
exploração da onda se deram em três âmbitos diferentes, apesar de interligados:
Econômico: o aumento do volume de capital financeiro na vila é nítido, bem como a
regularidade com que a vila passou a operar, garantindo movimento durante o inverno.
Cultural: o mar deixou de ser sinônimo de mortes, perdas e traumas e foi
ressignificado /reincorporado à cultura nazarena de novas formas. A admiração e o interesse
pela onda por parte do mundo tornaram a vila um destino muito desejado.
Emocional: o orgulho de ser nazareno e de ser português aumentou, juntamente com
o prestígio associado à onda. A estabilidade e a possibilidade de fazer planos para o futuro
também. Esses aspectos, somados, fizeram as pessoas sentirem-se mais orgulhosas, confiantes
e com a autoestima mais elevada, por se sentirem parte desse sucesso.
Decorrente da inter-relação desses três aspectos, está a formação de uma nova
identidade nazarena, processo este que se encontra ainda em contínuo movimento.
57
Por enquanto, é possível dizer que, de forma geral, a população local tem reagido bem,
mantendo-se presente no cotidiano da vila. No entanto, essa transformação é muito recente, e
ainda é cedo para avaliar seus impactos e desdobramentos mais profundos, embora já seja
possível perceber o início de problemas nesse sentido.
Um deles se refere ao incipiente processo de gentrificação13, que consiste na gradual
mudança de uso do espaço urbano, que passa a ser utilizado predominantemente pelos
visitantes (pousadas, restaurantes e comércios), gerando a perda de espaço por parte da
população local. Esta, por sua vez, acaba sendo empurrada para bairros mais afastados do
centro da vila.
Além disso, hábitos símbolos de tradições importantes acabam sofrendo um processo
simultâneo de espetacularização e perda de sentido, como a tradição do peixe seco,
transformada em um polêmico museu vivo na Avenida Marginal. Ou, ainda, as próprias
senhoras de sete saias, ícones da cultura nazarena, sentadas em cadeiras de plástico em
diferentes locais da vila a segurar placas de aluguel de quartos.
A seguir, o presidente da Câmara da Nazaré, Sr. Walter Chicharro, responde à primeira
pergunta de nossa entrevista: “Qual a importância da onda gigante da Praia do Norte para a
Nazaré hoje?”:
“A onda gigante da Praia do Norte e tudo aquilo que está associado à onda gigante é hoje
em dia a base da estratégia de desenvolvimento de um território chamado Nazaré e o seu
Concelho, porque ela tem naturalmente impactos transversais a todos os setores de atuação
da Câmara Municipal. Dou um exemplo muito simples: é comum hoje em dia termos projetos
imobiliários a serem desenvolvidos por estrangeiros, também por nacionais e locais, mas
muitos estrangeiros hoje em dia veem a possibilidade de desenvolver projetos imobiliários de
sucesso na Nazaré, por força de uma nomeada global que a onda gigante da Praia do Norte
nos trouxe. Isso é verdade para o comum dos agentes imobiliários ou dos construtores ou dos
homens de negócios internacionais, mas é também verdade para aquilo que são e, passo a
publicidade, e ela só aparece porque está provado que a nossa nomeada global nos garante
àqueles que aqui queiram intervir e que aqui queiram desenvolver os seus projetos a
possibilidade de terem rentabilidade ou rentabilização desses projetos durante o ano inteiro.
Um exemplo muito simples disso, passo a publicidade volto a dizer, são duas marcas globais,
muito fortes, enfim, que não vêm alterar aquilo que é gastronomia tradicional da Nazaré, mas
quando temos um McDonald's e um Burger King a quererem desenvolver os seus projetos de
lojas, já agora geridos pelos representantes, não por franchisados, pelas próprias marcas,
13
https://ea.fflch.usp.br/conceito/gentrificacao (acedido a 24/09/21).
58
passar a ter, provavelmente em 2021, lojas na Nazaré, é sinal de que realmente somos uma
marca global e garantimos rentabilização de negócio o ano inteiro.” (Walter Chicharro)
Apesar de Walter Chicharro ter detectado a importância das ondas e explorado o seu
potencial comercial em sua gestão à frente da Câmara, o que trouxe diversos benefícios para
a vila, essa mentalidade de enxergar o turista como cliente e a cidade como marca, presente
em seu depoimento, é muito delicada, especialmente por se tratar de pessoas, políticas
públicas, bem-estar da população e preservação da cultura e das tradições.
A vida melhorou na Nazaré – ninguém nega isso –, e a população tem uma presença
marcante no cotidiano da sociedade, nos cafés, nas pastelarias e na Avenida Marginal. No
entanto, é preciso criar uma estratégia para o futuro, pois uma abordagem corporativa que faz
concessões ao capital pode muito rapidamente objetificar a cultura e o local, transformando-
os em uma espécie de cenário para turistas, como o que já ocorreu em outros sítios.
É claro que, nesse primeiro momento, a exploração em torno das ondas trouxe e tem
trazido vantagens para a Nazaré. Contudo, acredito que seja a hora de desenvolver um
planejamento a médio e longo prazo, levando em conta que tipo de legado essa “descoberta”
deixará para a vila e para o povo da Nazaré daqui a 10, 20, 40 anos.
4.5. O turismo
Nos últimos anos, o turismo tornou-se o mercado mais promissor de Portugal e ganhou
um papel de grande protagonismo, não apenas pelo expressivo crescimento econômico que
tem apresentado, mas também pelo prestígio e reconhecimento que trouxe ao país, que, após
décadas solapado pelo longo regime ditatorial, foi finalmente “descoberto”, coincidentemente
ou não, no mesmo período da onda gigante, e pôde revelar ao mundo todas as suas qualidades.
Tendo conquistado diversos prêmios internacionais na área14, entre eles o World
Travel Awards 2018 como Melhor Destino Turístico do Mundo e Melhor Destino Europeu,
este último por três anos consecutivos (2017-2019), o setor registrou nos últimos 9 anos uma
taxa de crescimento médio anual de 7,2% nas dormidas, passando de 37 milhões de dormidas
em 2010, para 70 milhões em 2019, segundo dados do Turismo de Portugal15. Além disso, as
receitas turísticas no país aumentaram em média 10,3% ao ano nos últimos 9 anos, muito
14
http://www.turismodeportugal.pt/pt/quem_somos/Organizacao/Premios_Distincoes/Paginas/default.aspx
(acedido a 24/09/21).
15
http://www.turismodeportugal.pt/pt/Turismo_Portugal/visao_geral/Paginas/default.aspx (acedido a 24/09/21).
59
superior à média europeia, passando de 7,6 mil milhões de euros em 2010, para 18,4 mil
milhões em 2019. Nesse mesmo ano, de acordo com a “Conta Satélite do Turismo”, a
atividade turística no país foi equivalente a 15,3% do PIB nacional16, tornando Portugal o 5º
país com maior contributo do turismo para o PIB em 2018, segundo dados do WTTC (World
Travel & Tourism Council)17. Para termos uma outra dimensão desse crescimento na última
década, de acordo com o INE (Instituto Nacional de Estatística), em 2010 o país recebeu
13.537.040 turistas entre nacionais e estrangeiros18, passando para cerca de 27.000.000 no
ano de 201919.
Além das inúmeras oportunidades de trabalho e negócios, esse boom turístico tem
trazido desafios para o país em diversos níveis, relacionados a questões como: urbanismo e
habitação, custo de vida, gentrificação, infraestruturas, desenvolvimento sustentável,
manutenção da identidade e das tradições, entre outros.
Na Nazaré, esse cenário não foi muito diferente. Na verdade, impulsionado pela
descoberta da onda gigante, em 2010, o crescimento turístico na vila talvez até tenha ocorrido
de maneira mais acentuada do que na maior parte do país. Como referi inicialmente, a Nazaré
tem sido, em diferentes momentos da história, uma espécie de laboratório de tendências
português, apresentando em primeiro lugar, e/ou de forma mais intensa, novas possibilidades,
demandas e desafios vividos pelo país, como o que ocorreu com a atividade da pesca, com a
relação com o mar e a cultura de praia e com o próprio turismo, por exemplo.
Não encontrei dados disponíveis referentes ao PIB e ao número de dormidas por
município em Portugal, o que torna mais difícil a comparação do crescimento turístico da vila
com o do país nos últimos anos. Na Nazaré, o controle do número de visitantes se dá a partir
das visitas aos dois postos de turismo da vila e ao Forte de São Miguel Arcanjo, o Farol da
Nazaré. Segundo o INE, o número de dormidas na região Centro foi o maior de sempre em
2019, com 7.102.061 de dormidas20, o que representa um crescimento de 43,2% em relação
aos cinco anos anteriores na região. De acordo com dados divulgados pela Câmara Municipal
da Nazaré e publicados pelo Jornal Econômico21, em 2018 visitaram os dois postos de turismo
16
https://www.tsf.pt/portugal/economia/peso-do-turismo-no-pib-portugues-desce-para-metade-13720357.html
(acedido a 24/09/21).
17
https://www.sgeconomia.gov.pt/noticias/portugal-e-o-5-pais-com-mais-forte-contributo-do-turismo-para-o-pib.aspx
(acedido a 24/09/21).
18
https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/turismo---lazer/detalhe/portugal-bate-novo-recorde-com-1276-milhoes-
de-turistas-em-2018 (acedido a 24/09/21).
19
https://www.dinheirovivo.pt/economia/portugal-com-recorde-de-27-milhoes-de-turistas-em-2019-12779518.html
(acedido a 24/09/21).
20
https://www.regiaodeleiria.pt/2020/02/regiao-centro-ultrapassou-sete-milhoes-de-dormidas-de-turistas-em-2019/
(acedido a 24/09/21).
21
https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/nazare-recebeu-turistas-de-102-paises-em-2018-incluindo-tahiti-zimbabwe-
e-madagascar-398990 (acedido a 24/09/21).
60
43.559 cidadãos de 102 nacionalidades dos cinco continentes, um crescimento de 21,2% em
relação ao ano anterior.
Na Nazaré, o turismo apresentou-se desde o final do século XIX como um mercado
importante e um complemento financeiro essencial para as famílias, porém apenas durante os
meses de verão, como refere José Maria Trindade:
Durante praticamente todo o século XX, a partir de Junho, os pescadores eram obrigados a
deslocar os seus barcos para a parte sul da praia, para deixar aos turistas a parte norte, abrigada
pelo promontório. Cada família, e cada empresa, passa a organizar a sua vida em função dos
rendimentos do Verão, quer obtidos na pesca, quer obtidos na actividade turística, com o
aluguer das casas, das tendas de praia, ou qualquer negócio. As famílias dos pescadores
alugam as suas casas de forma a compensarem os fracos ganhos da pesca, e vão durante os
meses de Verão viver em pequenas cabanas. (Trindade, 2009, pp. 53-54)
“Bem, pra isso é preciso contar um bocadinho da história das coisas. Há que ter a percepção
de que a Nazaré é uma marca turística do país muito centrada a nível de Europa há 120 anos,
hoje em dia é uma marca global e já apresentarei dados que demonstram isso. Mas há de
perceber o que é que acontecia antes. A Nazaré anteriormente, enfim até três, quatro anos
atrás, já com o fenómeno da onda a acontecer e a ter alguma repercussão, a Nazaré era uma
terra que vivia muito do turismo, particularmente três meses de verão, da passagem de ano,
da Páscoa e pouco mais. A principal mudança que hoje em dia existe na Nazaré é que a
Nazaré passou a trabalhar, do ponto de vista turístico e não só, o ano todo. A Nazaré hoje em
dia é uma marca que tem 10, 11 meses de turismo vibrante, o nosso core business continua a
ser o verão, continua a ser no verão que estamos mais cheios, mas passamos a ter um inverno
também mais cheio. No fundo, como eu resumo habitualmente nesse ponto de vista, a onda
gigante da Praia do Norte encheu-nos os invernos e encheu-nos ainda mais os verões.”
(Walter Chicharro)
61
Manuela nos oferece a seguir um panorama mais detalhado sobre essas
transformações, explicando as maiores mudanças que percebeu na vila de quando era criança
para os dias atuais:
“As maiores mudanças? É pá, totalmente. Já não vejo os meus barquinhos na praia, já não
vejo as minhas redes a ser aladas, já não vejo os meus barcos fundeados nas boias, que antes
do nosso Porto de Abrigo, os barcos eram todos fundeados ao comprimento do promontório.
Já não vejo as sardinhas que vinham nas barcas e nos cabazes, já não vejo a tradição do
peixe seco como era. O peixe seco era arranjado na areia, era todo feito em... nós
chamávamos as dornas, que eram bacias em madeira. Já não vejo as mulheres irem ‘pa’ o
rio com suas trouxas. Vejo uma Nazaré totalmente diferente e tão arrumada. E muita parte
da Nazaré mesmo, a nossa parte lá embaixo, que é a parte turística, é a parte da Nazaré
antiga, ‘tá’ a ficar muito modificada.” (Manuela)
- Você acha bom, ruim e por quê?
“É assim, as mudanças tinham que acontecer, não é? Nós não podíamos estar a viver como
há 50 anos atrás. Nós tínhamos que evoluir, mas podíamos manter as nossas tradições. O que
eu noto é que foi uma mudança brusca.” (Manuela)
- E por que houve essa mudança?
“Houve essa mudança brusca pelo turismo da Nazaré. A Nazaré começou a ter... sempre teve
turismo. E os primeiros turistas aqui eram as pessoas de Santarém, portanto toda aqui a baixa
de Santarém vinha, do Norte também vinha, e os estrangeiros eram os franceses. Mas nós
tínhamos as casas pra eles, por quê? Porque a mulher da Nazaré vivia numa casa durante o
inverno e durante os três meses de verão ia ‘pa’ uma cabana, viver com os cinco ou seis filhos,
que era uma cabana que era um quarto e uma cozinha e tinham que lá caber todos, pra quê?
Porque elas alugavam as casas delas a esses turistas. Hoje o turismo aumentou e muito, e
então a mulher da Nazaré teve que se expandir. E tivemos que arranjar maneira de albergar
esses turistas. Porque apesar de nós termos hotéis, residenciais, não chega. Os nossos hotéis
não chegam para albergar o turismo todo que vem, principalmente no mês de agosto. E agora,
aqui é todo o ano. Desde que foi a onda, então agora vai todo o ano. Hoje em dia temos uma
Nazaré rica como eu costumo a dizer. ‘Tá’ espetacular. A nível de turismo, temos um turismo,
e ainda bem, que dá pra todos, tanto ‘pa’ os hoteleiros quanto ‘pa’ os alojamentos locais, e
temos uma vida totalmente diferente. Hoje em dia na Nazaré não há dificuldades financeiras.”
(Manuela)
Se, por um lado, o turismo contribuiu para a perda de diversos hábitos e tradições que
fazem parte de sua identidade e sobre as quais fala com carinho – e que acredita que poderiam
ter sido mantidas –, Manuela, por outro lado, evidencia a grande importância do setor para a
62
vila, enaltecendo o desenvolvimento econômico e a melhoria das condições financeiras
proporcionadas por ele para a população.
“O turismo é sempre bem-vindo, meu amigo. Sem o turismo, muita gente da Nazaré não
sobrevivia. Para alugar as casinhas, os quartinhos e tal. O turismo é sempre bem-vindo.
Gosto muito do turismo. Agora temos tudo, antigamente não tínhamos nada, agora temos
tudo. Antigamente era difícil, agora ‘tá’ muito modificado, pra melhor, pra melhor.” (Galileu)
O depoimento de Seu Galileu reflete uma opinião praticamente unânime entre todos
com os quais tive a oportunidade de conversar: a de que o turismo é essencial, melhorou a
vida da população e é muito positivo para a Nazaré. No terreno, ao perguntar sobre isso para
as pessoas, sentia sempre certa tensão no ar, compreensível, é claro. Como se estivesse
cruzando uma barreira que não se costuma cruzar e existisse um código ou cuidado de não
criticar o turismo, especialmente para um “turista” com uma câmera na mão como eu. Em
algumas situações, tinha a sensação de que os cidadãos se sentiam como uma espécie de porta-
vozes, ou até mesmo “funcionários”, responsáveis por zelar pela imagem dessa “empresa”
chamada Nazaré.
Houve, inclusive, uma situação reveladora nesse aspecto. Duas, na verdade. Primeiro,
uma das únicas pessoas com quem conversei que tinha críticas contundentes em relação ao
turismo na vila preferiu não se aprofundar no assunto e não me conceder uma entrevista, para
evitar problemas. E segundo, fui ao Posto de Turismo para tentar conversar com a responsável
pelo Gabinete de Turismo e saber se podíamos marcar uma entrevista, e ela, ao saber que eu
estava a fazer um mestrado sobre o assunto, ficou nervosa e disse-me que deveria procurar o
Presidente da Câmara, que era o responsável pela área e a pessoa mais habilitada a falar sobre
o tema. Ou seja, a partir desses pequenos acontecimentos, podemos supor que não exista na
vila um espaço aberto para debates e uma visão crítica acerca do turismo.
Um dos poucos entrevistados que fizeram críticas aos impactos que o “boom”
turístico tem gerado, o surfista português de ondas grandes e piloto de resgate recordista
mundial, Sérgio Cosme, que não é da Nazaré, se refere à falta de respeito aos locais dentro
d’água por parte dos estrangeiros e à falta de regras para os que desejam desafiar o mar da
Praia do Norte nas ondas gigantes. Seu discurso revela um aspecto importante que está
presente como pano de fundo no jogo do turismo, sobre o respeito e a disputa muitas vezes
existente nas relações entre quem é da terra e quem é de fora, que pode ser mais ou menos
estimulada de acordo com a situação, a cultura e as políticas locais para ajudar a evitar o
chamado turismo predatório (e, é claro, com a educação e consciência de cada um também).
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Em diversos sítios, dependendo de como a cultura do turismo nasce e é gerida, cria-se
uma ideia de falta de compromisso em relação ao local por parte dos visitantes, que desejam
apenas se divertir e extrair o máximo possível daquele lugar, para depois partirem, sem
responsabilidade, interesse ou preocupação em estabelecer vínculos com o lugar e com as
pessoas que lá vivem.
“É como digo, quando vivemos numa economia, não é, tudo que seja bom pra vila é tudo que
traga dinheiro pra vila. É sempre um pau de dois bicos, logicamente. É claro que, se traz
economia, também traz mais pessoas; se traz mais pessoas, também traz mais pessoas no pico,
traz menos lugares pra estacionar nos cafés. De uma forma geral, claro que foi positivo, não
tenho como dizer que não. É positivo, claro que sim. É positivo ‘pa’ todas as pessoas da
Nazaré. Atualmente tens milhares de pessoas na Nazaré verão e inverno, quando antigamente
era verão, a época balnear era verão, e as pessoas vinham só verão. Atualmente tens verão e
inverno. Claro que a mim, a mim como surfista e como português, não é, não como local da
Nazaré, mas como local português, a mim custa-me a ver algumas situações. É pá, pessoas
que vêm pra cá só no intuito de ganhar fama. E quando tu trazes um intuito desse na tua
cabeça, quando trazes um objetivo desse estilo na tua cabeça, tu muitas das vezes, há muitas
situações que vais pôr de lado, que vais pôr de parte. E uma dessas situações é, como eu já
referi, é a segurança da pessoa que ‘tá’ contigo, dos locais. Claro que eu tenho que dizer que
isto é uma coisa muito positiva, mas como isto está tão difícil de arranjar regras na Nazaré e
que as pessoas tenham consciência, eu acho que qualquer dia isto pode se tornar uma coisa
negativa. Francisco, tu, se quiseres comprar um jet ski hoje, amanhã vais ‘pa’ água, quer
‘teja’ um metro, quer ‘tejam’ vinte metros. Isso é a parte má que o turismo trouxe ‘pa’ Nazaré.
‘Tás’ a ver? Enquanto não houver essas regras, pá, e um respeito, porque não há respeito
pelos locais, não há. Eu já fui ameaçado no pico. Enquanto não houver respeito pelos locais,
como há no Havai, no Havai não desrespeitas ninguém. E as pessoas aqui confundem a
amabilidade dos portugueses com eles serem fracos de espírito ou serem pessoas mais
fracas... são coisas diferentes. O português gosta de dar o abraço, estende a mão. Pedem-lhe
a mão, o português dá o braço, é pá, mas não somos estúpidos.” (Sérgio Cosme)
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“O mercado imobiliário nesse momento está em alta. Entre ali o 2015 e o 2019 houve sempre
um aumento gradual. O mesmo imóvel, de um ano ‘pa’ o outro, valorizava 15% a 20%. E nós,
hoje em dia, temos clientes de várias nacionalidades, pessoas que investem cá ou só mesmo
por investimento ou porque realmente passaram a viver para cá, por vários motivos, e temos
clientes de várias nacionalidades, que não era muito usual. O nosso principal cliente é o
cliente francês, de origem francesa, não o emigrante, o de origem francesa porque, devido
aos benefícios fiscais que têm investindo em Portugal, passaram a procurar muito a Nazaré.
Temos muito o cliente nórdico, que não era usual vir para cá, muito da zona da Escandinávia,
Holanda, muito. E depois também esporadicamente temos clientes americanos, canadianos,
brasileiros, que é um mercado novo. E depois é assim, nós temos dois tipos de imóveis que se
vendem bem: ou é no centro histórico, aquelas casas típicas, pronto, muito bem localizadas
junto à praia – que essas funcionam muito bem mais pra esse tipo de investimento, para a
rentabilização – ou então temos o cliente que procura algo já com áreas maiores, boas
varandas, alguma vista para o mar se for possível, para habitar. No meu ponto de vista, ‘tá’
a começar a estagnar. Ainda não ‘tá’ em decréscimo, e penso que não irá entrar em
decréscimo tão próximo, mas eu acho que está a estagnar, porque também atingimos valores,
muito sinceramente, valores de mercado altos.” (Rita Brilhante)
“É bonito de ver, é bonito de ver os nossos amigos a terem projetos e a terem sucesso nos
projetos que fizeram lá na terra, pra terra deles. A realidade é que realmente o progresso
trouxe ali a Nazaré não só ‘pa’ os projetos, ‘pas’ pessoas, ‘pa’ vila, a economia que trouxe
ao país. É como te digo, não é só uma questão de dinheiro. É pá, vou te dar um exemplo: eu
no Panamá, e as pessoas não sabem praticamente o que que é Portugal, o que que é a Espanha
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e conhecem a Nazaré. Pá e isso é uma coisa que a Nazaré trouxe a Portugal, ‘tás’ a ver? Era
isso que eu queria dizer. Não só a nível econômico, nós tivemos proporções ‘pa’ Portugal,
como a nível do conhecimento, havia pessoas que nem sabiam onde é que era Portugal, havia
pessoas que nem sabiam que existia Portugal. ‘Tás’ a entender? E eu acho que a Nazaré
trouxe um bocadinho isso a Portugal, pessoas que não conheciam Portugal, mesmo sem cá
vir, hoje em dia já conhecem Portugal, ‘tás’ a perceber? É muito bonito chegar ao Panamá e
perguntarem-te, ‘então mas tu é que é o Sérgio Cosme da Nazaré?’, e eu: ‘sim, mas por quê?’
‘Ah pá, eu sigo-te há muitos anos, sigo o teu trabalho, da Nazaré’. E isto é realmente também
o bom que trouxe a Nazaré para Portugal, é chegares aos outros sítios e as pessoas conhecem,
conhecem o teu país ou conhecem a onda e falam-te com carinho.” (Sérgio Cosme)
4.6. Desafios
Além de observar a vila ao longo de vários meses e tirar minhas próprias conclusões,
achei que seria importante ouvir das pessoas quais são as questões relevantes, na opinião
delas, a serem encaminhadas na Nazaré, e incluí algumas perguntas no roteiro sobre os
problemas e desafios da Nazaré para o futuro próximo. De acordo com os entrevistados, foi
possível detectar cinco principais áreas de atenção que estão interligadas:
• Infraestrutura;
• Valor das rendas e dos imóveis;
• Preservação da natureza;
• Respeito aos surfistas locais e regras para surfar as ondas gigantes;
• Preservação da identidade nazarena.
“Certas coisas, olhe, pelo menos aqui na Nazaré, não tem umas casas de banho em
condições.” (Galileu)
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“Se eu trago um papel ou o que quer que seja, ou uma garrafa de plástico ou o que quer que
seja, na mão, e fizer todo o caminho sem um lixo, eu não vou jogar o lixo no chão e dizer que
a culpa era da Câmara. ‘Tás’ a entender? Agora, a Câmara também não pode ficar à espera
que todas as pessoas sejam sensatas ao ponto de não mandar o lixo ‘pa’ o chão ou de não
passar a linha amarela.” (Sérgio Cosme)
“Eu acho que o que falta melhorar cá em Portugal e mesmo na Nazaré são as infraestruturas
e ter mais atenção a proteger a natureza.” (Joana Andrade)
No percurso todo que leva do sítio ao Farol, uma descida íngreme com
aproximadamente 700 metros, não há uma única casa de banho ou lixeira pública. Também
não há limites de proteção, inclusive no Farol. Além disso, o trânsito de veículos e pedestres
é confuso e ocorre na mesma via, causando um cruzamento constante entre pessoas,
automóveis, motas, tuk tuks e bicicletas. Pessoalmente, considero até uma proposta
interessante e mais livre de interação com o ambiente. Mas, considerando o volume de pessoas
que visita o local, a altura do promontório (há diversos precipícios em diferentes trechos do
caminho) e a potência daquele mar e daquele vento, deixar a critério de cada um os limites
que devem ser respeitados é bastante arriscado, na minha opinião.
Assisti diversas vezes a pessoas sentadas na areia da Praia do Norte, por exemplo,
considerando que estavam a uma distância segura do mar, serem pegas de surpresa por uma
onda e ficarem completamente molhadas e terem os seus pertences arrastados pela água.
Felizmente não presenciei nenhum acidente, mas o fato é que é um lugar que oferece riscos
que as pessoas não estão habituadas e, por não terem a noção da força do mar, fazem
julgamentos equivocados considerando suas experiências em outras praias. Ou seja, é preciso
regras mais claras e informações sobre as características e os perigos do local.
Outro ponto mencionado pelos entrevistados diz respeito ao aumento do valor das
rendas e dos imóveis de forma geral. Como podemos ver a seguir, é um aspecto que tem dois
lados e que não é percebido propriamente como negativo, já que possibilitou, para alguns,
usufruir dessa valorização:
“Eu acho que o lado negativo é o preço que ‘tão’ as imobiliárias. E para uma pessoa
portuguesa viver ou alugar uma casa lá não é tão fácil como um estrangeiro alugar uma casa
lá. Mas depois também houve muitas casas que estavam abandonadas e criaram hostels,
criaram hotéis, criaram pontos turísticos para os turistas. Portanto, eu acho que há mais prós
do que contras nisso tudo.” (Joana Andrade)
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“Para um casal jovem da Nazaré que quer comprar uma casa, ‘tá’ muito difícil. Mas para
um casal da Nazaré que já tinha uma casa e que pode rentabilizá-la, ‘tá’ mais fácil.”
(Dino Casimiro)
“You know, with that amount of people coming to visit one place, there’s bound to be
disadvantages, like erosions of the cliff, you know, walking up around the cliff it’s going to be
erosions to that. And also, you know, hoping that everyone who comes and happens to bring
a picnic or brings whatever and takes the rubbish away. You know, so there’s a flip side, isn’t
it? I think although the people coming is great, it has to be managed.” (Andrew Cotton)
Como refere Andrew Cotton, o fato de as pessoas visitarem o local é bom, mas é
preciso geri-las. Regras e limites são essenciais não apenas para a preservação da natureza,
mas também para a segurança dos visitantes e para a garantia de uma boa experiência.
Outra questão fundamental levantada por vários surfistas se refere à cultura do surf
e à forma como os visitantes se comportam no mar, apontando para a crescente falta de
respeito aos surfistas locais dentro d’água e a inexistência de regras para entrar na Praia do
Norte e surfar uma onda gigante, colocando em risco a vida das pessoas, como referem Joana
Andrade e Hélio António:
“Eu também acredito que já começa a haver muita gente a querer desafiar aquela onda, e eu
sinto, não quero ser pessimista, mas alguma coisa pode acontecer. Cada vez há mais gente a
ir que não tem a noção do mar, que não sabem surfar. São surfistas que agora de repente ‘ai
eu quero experimentar a onda da Nazaré’ e vão. E eu acho que há muita gente que está a
querer testar os seus limites e não tem a noção. E é como tudo, isso está muito giro, muito
giro, mas, se por acaso acontece alguma coisa, vai ser muito mau para a comunidade das
ondas grandes, muito mau para a Nazaré. Acho que se devia pôr um bocadinho mais de
travões às pessoas que vão para lá tentar surfar”. (Joana Andrade)
“O aspecto que eu me estou a referir em concreto tem a ver com a base do respeito que existe
dentro d’água. O surf é um desporto muito particular, diferente de todos os outros, não há
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um juiz, não há um árbitro dentro d’água a dizer o que é que está certo, o que é que não está.
Então parte do bom senso e do respeito das pessoas umas pelas outras, sempre foi assim e
sempre será assim. É uma subcultura muito própria, que às vezes as pessoas não
compreendem a questão do localismo, porque é que alguém que é local tem direito a apanhar
as ondas, tem mais direito a apanhar as ondas do que outras pessoas, e isso, para quem não
está dentro da cultura do surf, pode parecer chocante e não faz sentido, mas para quem vive
o surf é algo muito importante. Tem que ser assim porque há pessoas, infelizmente há pessoas
que não sabem estar na água. Há pessoas que visitam outro país no mundo, outra terra e não
sabem respeitar quem lá vive, e isso é muito importante. São valores que as pessoas têm que
ter e infelizmente há pessoas que não têm. E o problema da Nazaré começa a surgir um pouco,
esse problema aqui na Nazaré. Porque está a começar a vir muita gente, e isso precisa ser
corrigido, porque o que está aqui em causa pode ser a vida das pessoas que lá estão.”
(Hélio António)
A atenção e o suporte oferecidos aos surfistas por parte das câmaras de localidades
que possuem uma relação direta com o surf, como a Ericeira e a Nazaré, foram aspectos
positivos mencionados, como explica Joana Andrade:
“Eu acho que agora as câmaras e mesmo os presidentes, até o Senhor Presidente Walter
Chicharro e o Senhor Presidente Hélder Sousa Silva aqui na Ericeira, cada vez estão mais a
ajudar a comunidade surfista porque sabem que realmente nós, que foi o surf que deu vida ao
turismo.” (Joana Andrade)
Por último e não menos importante, os desafios para o futuro relacionados à questão
da preservação da identidade nazarena, talvez o mais delicado e complexo entre todos os
pontos discutidos:
“Eu imagino e gostaria que fosse também, assim, não muito diferente do que está hoje. Porque
eu acho que tudo que vai crescendo, vai crescendo, se você não controla esse crescimento,
você perde aquele ‘feeling’, né, aquela coisa básica da cidade, e isso eu acho que aqui não
pode perder isso.” (Eduardo)
“Eu acho que é equilíbrio, em tudo. É tentar que a modernidade não supere a parte
tradicional e cultural, é tentar que o nazareno saiba receber quem nos visita, é tentar que
quem nos visita respeite o nazareno, ou seja, isto é uma balança. Mas vamos ter frações a
puxar todas pra um lado, vamos ter os empreiteiros a querer fazer prédios e apartamentos e
tudo e mais alguma coisa. Vamos ter depois a parte das pessoas que defendem mais a
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tipicidade da Nazaré a dizerem não, não se pode construir mais. Ou a gente percebe que
temos que nos unir e encontrar esse equilíbrio e falar abertamente e perceber o ponto de vista
um do outro, ou se isto descamba pra um lado, a Nazaré perde mais do que ganha.”
(Dino Casimiro)
A partir dos depoimentos, fica evidente que existe uma preocupação com o equilíbrio
do desenvolvimento, com um crescimento controlado e com a preservação da identidade
nazarena, e que isso é fundamental para o futuro do turismo na vila. No entanto, é possível
perceber também uma objetificação/espetacularização na maneira de pensar ações para a
preservação dessa cultura, presente na fala de Walter Chicharro ao descrever a estratégia
adotada pela Câmara Municipal de levar o casal composto pelo pescador e pela peixeira às
feiras de negócios e turismo e de outras iniciativas semelhantes, como o Museu (Vivo) do
Peixe Seco.
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Já a busca por equilíbrio tão necessária a que Dino se refere coloca em disputa forças
bastante desproporcionais. Ou seja, a tradição não tem recursos para lutar de igual para igual
com a modernidade e, se não houver projetos e políticas de proteção que considerem essa
diferença de intenções e de condições, ela irá perder essa luta inevitavelmente.
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5. CONCLUSÕES
“I think if you told me, like, ten years ago, how it would be now, I wouldn’t believe you, you
know, like, I just wouldn’t believe.” (Andrew Cotton)
Se, como diz Andrew Cotton, há apenas dez anos ninguém poderia imaginar o
tamanho e a velocidade das mudanças que ocorreram na Nazaré, o que podemos esperar para
os próximos dez ou vinte anos? Manuela, que considera muito positivos os avanços
econômicos e as melhorias recentes na vila após a exploração da onda, faz uma projeção
espontânea para daqui a vinte anos de uma Nazaré gentrificada e sem identidade (ou a
caminho de perdê-la).
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“Mas não estou a imaginar a Nazaré daqui a... em dez anos devemos estar na mesma, agora
daqui a vinte anos, isto deve ‘tar’ tudo mudado. Os grandes empresários compram isto tudo,
os ALs acabam, as mulheres da Nazaré deixam de estar vestidas à moda da Nazaré. Se tu
quiseres ver uma nazarena vestida, tens que ir ao museu ou então tens que vir cá no
carnaval.” (Manuela)
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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LIVROS E TEXTOS
BAETA, Diogo Antunes. Plano Estratégico de Ação para o Crescimento Sustentável do Surf
Around Portugal. Lisboa: ISCTE Business School, 2015.
CUNHA, Pedro Proença e GOUVEIA, Margarida Porto. The Nazaré coast, the submarine
canyon and the giant waves. Coimbra: MARE - Marine and Environmental Sciences Centre
University of Coimbra, Faculty os Sciences and Technology, Universidade de Coimbra, 2015.
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MAFRA, Vanessa Margarida da Silva. Gestão dos ecossistemas marinhos e costeiros:
conhecimentos e percepções das populações locais: estudo de caso da população da Nazaré.
Lisboa: Universidade Aberta, 2013.
MENDONSA, Eugene L. Turismo e estratificação na Nazaré. Análise Social, vol. XVIII pp.
311-329, 1982.
MOURA, Ana Catarina Gomes. O valor económico do turismo de surf na Ericeira. Aveiro:
Universidade de Aveiro, 2018.
THEROUX, Paul. The epic quest to ride the world’s biggest wave. Smithsonian, Jul/Aug,
Vol. 49, Issue 4, 2018.
FILMES E VÍDEOS
Red Bull Surfing. Sérgio Cosme – The Guardian Angel of Nazaré. 2019 – disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=d1S1_jVkH0g
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APÊNDICE A – Roteiro entrevistas moradores
5. Quais são as coisas que você mais gosta na Nazaré? E do que não gosta?
6. Quais foram as maiores mudanças da Vila da Nazaré de quando você era criança
para os dias de hoje?
12. Qual a importância da pesca hoje em dia para a vila? Isso mudou nos últimos anos?
Por quê? A que atribui isso?
15. O turismo é bom para você e para a sua família? Como e por quê?
17. Que tipos de turistas frequentam a Nazaré? Do que eles mais gostam?
18. Você tem ideia de quantos turistas visitam a Nazaré por mês ou ano?
21. Do que você sente falta na vila? O que é preciso para melhorar?
22. Como imagina que será a vila no futuro, daqui a 10, 20 anos?
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VOCÊ
23. Qual é o seu trabalho, como se sustenta? Desde quando faz isso?
A ONDA
28. Como é sua relação com o mar? Costuma tomar banho, pescar, etc.?
29. O que o mar representa para você? Qual a importância do mar para a vila?
31. Como é sua história com a onda? Que lembranças tem da onda?
32. Você já viu a onda? Como foi a primeira vez que viu? Sabe que é a maior onda do
mundo?
34. O que acha do fato de ter a maior onda do mundo na cidade onde vive? A onda é
algo especial na sua opinião?
35. O que pensa dos surfistas que surfam essa onda? Conhece algum?
37. O que isso trouxe de bom e de ruim para a vila e para os moradores?
38. De que formas a onda foi sendo vista pela comunidade ao longo da história? Isso foi
se transformando com o tempo? Como?
39. É verdade que muitos pescadores morreram no mar da Nazaré? Como vocês lidam
com isso? A onda gigante tem relação com isso?
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APÊNDICE B – Roteiro entrevistas surfistas
5. É uma onda especial na sua opinião? Por quê? O que tem de especial nela, de
diferente?
10. O fato de os nazarenos serem grandes pescadores e de muitas pessoas terem morrido
no mar impacta sua relação com a onda e o surf aqui? Como?
11. O que mudou na vila desde que veio pela primeira vez? Como você enxerga isso?
12. Acredita que a exploração turística e comercial da onda tem trazido benefícios para a
vila? Quais?
13. Acredita que exista uma preocupação com preservação da natureza e da cultura
local? Como?
15. Quais são seus planos em relação à Nazaré? Pretende continuar vindo todo os anos?
16. Qual a importância da Nazaré para o surf e o surf de ondas grandes na sua opinião?
17. Conte alguma experiência marcante que tenha vivido no mar da Nazaré.
20. Você já sentiu medo de morrer lá dentro? Qual é a sensação de estar lá?
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APÊNDICE C – Roteiro entrevista Walter Chicharro
4. Como era a relação dos moradores com a onda antes da fama, no passado?
12. Como o senhor encara a inflação dos aluguéis? Existe risco de perda da identidade
cultural?
13. Que tipo de ação a Câmara toma para diminuir esses efeitos para os moradores?
(Profissões relacionadas à pesca que os jovens não querem mais, por exemplo).
14. Como é ter o turismo como principal fonte de renda? (Forças e fraquezas)
15. A pandemia trouxe aprendizados nesse sentido? Existe um plano para mitigar isso?
17. Quem são e o que desejam os turistas que vêm ver a onda? Eles têm um perfil
diferente do turista balnear e do turista religioso?
20. O senhor tem informações sobre o número de turistas que frequentam a Nazaré?
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22. Como o senhor vislumbra o futuro da Nazaré daqui a 10, 20 anos?
25. Quais são os maiores embates e conflitos de interesses atuais na vila, na sua opinião?
27. Eu li que foi vetada a criação de uma tirolesa que ligaria o sítio ao centro da vila.
O que o senhor achou disso?
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