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Editor

Eduardo Galasso Faria

Conselho Editorial
José Adriano Filho, Leontino Farias dos Santos, Pedro Lima
Vasconcellos, Shirley Maria dos Santos Proença, Reginaldo
von Zuben, Ronaldo Cardoso Alves, Waldemar Marques.
Teologia e Sociedade é editada pela Faculdade de Teologia de
São Paulo, da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
Teologia e Sociedade / Faculdade de Teologia de São Paulo / Vol. 1,
nº 10 (outubro 2013). São Paulo: Pendão Real, 2013.

Anual
ISSN 1806563-5

1. Teologia – Periódicos. 2. Teologia e Sociedade.


3. Presbiterianismo no Brasil. 4. Bíblia. 5. Pastoral.
CDD 200

Revisão: Eduardo Galasso Faria


Planejamento gráfico, capa e
editoração eletrônica: Seivadartes (www.seivadartes.com.br)
Ilustrações: internet
Impressão: Gráfica Potyguara
Tiragem: 700 exemplares
Versão eletrônica: www.teologiaesociedade.org.br

As informações e as opiniões emitidas nos artigos assinados


são de inteira responsabilidade de seus autores.

ACESSE

www.teologiaesociedade.org.br
Sumário
4 EDITORIAL

6 SEXUALIDADE E FÉ
Tentativa de diálogo sobre Homoafetividade
Adilson de Souza Filho

16 VISÃO BÍBLICO-TEOLÓGICA DA HOMOSSEXUALIDADE


Valdinei Aparecido Ferreira

26 HOMOAFETIVIDADE E CRISTIANISMO
Uma abordagem histórica
Gerson Correia de Lacerda

40 HOMOSSEXUALIDADE, PSICANÁLISE E RELIGIÃO CRISTÃ


Leontino Farias dos Santos

56 SEXUALIDADE E AFETIVIDADE
Pastoral numa área de sofrimentos e conflitos
Clayton Leal da Silva

64 ASPECTOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E


IGREJA NA QUESTÃO DA HOMOFOBIA
César Augusto Luiz Leonardo

82 HOMOAFETIVIDADE E LEGISLAÇÃO NA IPIB


João Luiz Furtado

89 IGREJA PRESBITERIANA DOS ESTADOS UNIDOS -


ANÁLISE HISTÓRICA DA QUESTÃO HOMOSSEXUAL
Chris Glaser

94
RESENHAS
A TIME TO EMBRACE: SAME-GENDER RELATIONSHIPS IN
RELIGION, LAW, AND POLITICS
Paul E. Capetz

EM NOME DE DEUS – O FUNDAMENTALISMO NO JUDAÍSMO,


NO CRISTIANISMO E NO ISLAMISMO
Edson de Souza Lima e Milton Moreira
Editorial
REFORMADOS NA LUTA PELA JUSTIÇA
PÁGINAS 6 A 27, 2009

PARA UMA TEOLOGIA REFORMADA DA LIBERTAÇÃO: UMA RECUPERAÇÃO DOS SÍMBOLOS

Atuar no campo da educação manifestando preferência por uma


teológica implica estar no âmbito outra questão: a homossexualidade

Eduardo Galasso Faria


maior da obra educacional que e seus desafios para a fé cristã.
sempre requer, além da formulação No ano seguinte, 2012, a Se-
de balizes orientadoras, a possibi- mana contemplou a preferência
lidade de se antever e avançar por dos seminaristas, expressa no ano
novas e necessárias caminhadas. anterior, mas alguma inquietação
JOHN DE GRUCHY

Teologia e Sociedade10, nossa pairou no ar. Não é novidade dizer


revista deste ano – o décimo de que o assunto é delicado e tem sido
publicação desde 2004 - teve o seu visto como tabu, especialmente na
tema escolhido em um processo Igreja. Daí, um embaraço natural,
simples, mas bastante significa- especialmente por parte dos pre-
tivo, ligado à atividade acadêmica ceptores que, temendo o ímpeto
da Faculdade de Teologia de São dos jovens, sempre pensam na
Paulo - FATIPI. A prática anual de necessidade de maior cautela e
se realizar uma Semana Teológica, espera do momento considerado
focando uma questão para ser apropriado para o tratamento de
discutida e aprofundada, é dado questões inusitadas.
importante para o maior proveito Hoje, sabendo do desafio que os
intelectual e espiritual dos estu- alunos trouxeram para a realização
dantes. da Semana Teológica de 2012 –
A escolha do tema para a Se- consolidada na publicação desta
mana é feita com antecedência, revista – fazemos uma avaliação
em uma reunião de representantes dos bons efeitos do episódio. O
do corpo docente e discente, em principal creio que resulta das
geral no primeiro semestre. No diretrizes assumidas nas últimas
ano de 2011, o tema escolhido foi décadas pela Igreja Presbiteriana
Ecologia e Espiritualidade (Teolo- Independente ao marcar com co-
gia e Sociedade 9), mas a decisão ragem, dentro do presbiterianismo
final foi tomada com alguns alunos brasileiro, um espaço próprio que

4
confirma parte de sua história no ao episódio da escolha do tema,
protestantismo nacional. É bem co- narrado acima. Depois, o Conselho

REVISTA
nhecida hoje sua abertura para ques- Editorial acatou a sugestão de editar

REVISTA
EDITORIAL
tões teológicas importantes que têm as palestras, juntando outros textos
afetado a Igreja de Cristo em todo o que completam a edição e refinam o

TEOLOGIA
mundo, como o ministério feminino, título inicial para “Homoafetividade

TEOLOGIA
a participação das crianças no culto, e Fé Cristã”.

E SOCIEDADE
a questão ecumênica. Seu conteúdo, em resumo, traz
Por outro lado, a insistência dos para os leitores um tratamento

E SOCIEDADE Vol. 1 nºVol.


seminaristas em privilegiar, sem mais diferenciado do assunto, com pers-
delongas, o tema da homoafetivida- pectivas provenientes do âmbito da
de, apesar de ser considerado proi- história, Bíblia, teologia, ética, psica-
bitivo por muitos, evidenciou como nálise, Direito, além de um pequeno
eles, provavelmente pressionados histórico de como uma igreja irmã
em suas áreas de atuação no traba- dos Estados Unidos tem lidado com
lho civil e na sociedade, se mostram a matéria e suas implicações para a

9, novembro
antenados e sensíveis a uma temática vida eclesiástica. Fica também regis-

1 nº 10,
humana premente que, a cada dia, trado que, com esta publicação, te-
se intensifica no mundo atual e que mos apenas o pontapé inicial em uma

de outubro
se tornou um dos grandes desafios discussão que precisará ser ampliada,

2012, Sãode
para a ação pastoral. Não há dúvida mas que não pode mais esperar.
de que essa acuidade para com o que Finalmente, somos conscientes
ocorre no mundo ao redor é e sempre da importância dos escritos aqui

Paulo,
2013,
será fundamental para o desempenho reunidos e de seu potencial para o
eficiente da missão em um ministério desdobramento de reflexões que,
SP
que junte solidariedade com fidelida- firmadas na obediência ao Senhor São Paulo, SP
de ao Evangelho. Jesus, recuperem as reservas de
Afinal, ficou evidente que o trato compreensão bíblica amorosa em
com uma questão que poderia ter um tempo de grandes mudanças
desdobramentos indesejáveis, como comportamentais, no qual as pessoas
já ocorreu no passado, encontrou clamam por novas e responsáveis
solução feliz com a prática do diálo- respostas, que criem pontes de en-
go, uma palavra chave cada vez mais
Eduardo Galasso Faria

tendimento e respeito.
utilizada na solução dos problemas E, acima de tudo, que esteja sobre
PÁGINAS 4 E 5

humanos e sociais hoje. nós a graça do Senhor nosso Deus,


A publicação da revista que te- confirmando as obras das nossas
mos em mãos prende-se, em parte, mãos! (EGF)

5
SEXUALIDADE E FÉ
PÁGINAS 6 A 15
SEXUALIDADE E FÉ TENTATIVA DE DIÁLOGO SOBRE HOMOAFETIVIDADE

Tentativa de diálogo sobre


Homoafetividade

É incrível como depois de quin-


reo Rodrigues de Oliveira
*

*
Adilson de Souza Filho*
Afeitos à tradição agos- ze séculos o cristianismo ainda se
tiniana-calvinista, pouco procure medir a “qualidade” ou
evoluímos na formulação
intensidade da fé cristã a partir
de uma teologia bíblica e
pastoral no que se refere à do conceito paradoxal entre sexu-
questão da homossexuali- alidade e fé. Digo quinze séculos
dade. Enquanto a cultura porque foi a partir da concepção
atual e a mídia expressam os agostiniana que o cristianismo
novos conceitos vividos pela praticamente formulou sua base
sociedade, os intérpretes confessional e dogmática da espi-
das Escrituras se dedicam ritualidade sob o eixo do dualismo
a uma hermenêutica que
helenista. De algum modo o espa-
contemple interpretações
çamento de tempo não constitui
considerando os fundamen-
tos da autoridade da Bíblia problema, pois quase todas as
em consonância com a gra- doutrinas fundamentais da fé cristã
ça e amor de Jesus Cristo. também são desta época. Mas,
em se tratando de sexualidade,
que envolve toda a dimensão da
vida humana que está em cons-
ADILSON DE SOUZA FILHO

tante evolução sócio-cultural, é


perturbador o fato de que não
conseguimos evoluir quase nada
na formulação de uma teologia
*Pastor da IPI do Jardim Guarujá. Professor da Facul-
dade de Teologia de São Paulo – FATIPI. bíblica e pastoral para a questão da

6
sexualidade. A impressão que temos tempo “soube” o que fazer com elas:
é a de que se ainda não conseguimos eliminou na fogueira até quando

REVISTA
resolver algumas questões ligadas à possível. Aliás, ainda elimina, porém,

REVISTA
SEXUALIDADE E FÉ TENTATIVA DE DIÁLOGO SOBRE HOMOAFETIVIDADE
heterossexualidade, é quase uma com armas ideologicamente mais so-
utopia pensar em diálogo sobre a fisticadas, travestidas de preconceito

TEOLOGIA
homoafetividade. Nossa tradição e impiedade, fundamentado numa

TEOLOGIA
calvinista carrega símbolos “fortes” ideia distorcida do sentido do amor

E SOCIEDADE
acerca da moral sexual de alguns Eros/ágape.
períodos referenciais da história do Nós, presbiterianos indepen-

E SOCIEDADEVol.
cristianismo. dentes, trazemos brilho aos olhos
quando mencionamos nossa perten-
Calvino ça à tradição calvinista. Do ponto de
A interpretação bíblico-teológica vista doutrinário, reconhecemos que
que vem de Agostinho perpassa toda pouquíssimos conceitos teológicos

Vol.1 nº
a Idade Média, sendo fortemente re- mereçam reparos. Mas, em se tratan-

1 nº
afirmada pelos reformadores e, sob a do de conceitos éticos, sobretudo,

10,10,
égide das épocas vitoriana e puritana, no campo da sexualidade, há uma

outubro
encontra sua consolidação. Podemos abissal necessidade de mudança. É

outubro
dizer sem temor que este longo conhecida em Calvino a influência

de 2013,
período da história do cristianismo platônica sobre sua ideia de corpo.
Tillich2 disse que, para Calvino, “ o

deSão
se encarregou de produzir “corpos

2013,
dóceis” ou, para usar um tom mais corpo não passa de prisão da alma

Paulo,São
forte ainda, produziu a domesticação sem qualquer valor. Essa atitude as-
da sexualidade1 e a sociedade vive, cética expressava-se extremamente

SP
desde o séc. XVIII, uma fase de pela limpeza externa e identificava
Paulo, SP
repressão sexual. Nessa fase, o sexo o elemento erótico com a sujeira.”
se reduz à sua função reprodutora e Essa deturpação do erótico con-
o casamento passa a ser o mecanismo trariava os princípios da Reforma,
dessa reprodução. Parafraseando especialmente o Sola gratia, mas
Peter Berger, a sociedade gerou seus era conseqüência natural da ética
delinquentes e em seguida não soube de Calvino.
PÁGINAS 6 A 15
Adilson de Souza Filho

o que fazer com eles. O dualismo O conceito de Calvino sobre


cristão gerou suas vítimas e por muito moral sexual e matrimonial fica

1 FOUCAULT, M. A História da sexualidade I: a vontade 2 TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São
de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988, p.117 Paulo, Aste, 2000.

7
muito evidente quando lemos seus mônio. Em Rm 1.26-27, Calvino5
comentários de determinados textos anuncia a vingança do Senhor contra
PÁGINAS 6 A 15
SEXUALIDADE E FÉ TENTATIVA DE DIÁLOGO SOBRE HOMOAFETIVIDADE

bíblicos. Calvino,3 ao comentar o aqueles que ele considera pratican-


texto de Hb 13. 4, diz que o Se- tes do horrendo crime de “fornica-
nhor punirá os fornicários e, para ção desnatural”. Isto prova que os
se evitar tal punição, deve-se lançar homens não só se entregaram aos
mão do antídoto que é o matrimô- desejos bestiais, mas se tornaram
nio, para nele viver honradamente. piores que as próprias bestas selva-
Para Calvino, Deus punirá não só os gens, visto que inverteram toda a
fornicários, mas também os adúl- ordem da natureza. Em 1Co 6.9-11,
teros (aqueles que violam o leito Calvino ao interpretar a expressão
matrimonial). Para o reformador, “efeminados”, diz serem aqueles
não é possível controlar os promís- que, enquanto não podem tornar-se
cuos e irrequietos sem o antídoto do prostitutos publicamente, revelam
matrimônio. Essa frase de Calvino quão impudicos são no emprego de
é praticamente um plágio extraído linguagem ignóbil e no vestuário
da obra De sancta virginitate de efeminado, bem como em outros
Agostinho que dizia: “O pecado da meios de atrair atenção. Ainda neste
luxúria não torna culpável o matri- mesmo capítulo, no verso 18, Calvi-
mônio, mas tampouco o matrimônio no explica as palavras de Paulo e diz
traz algum bem à luxúria. Deus, com que devemos olhar para a fornicação
o matrimônio, tira um bem do mal: com o mais extremo horror, tendo
da luxúria tira a reprodução”4. em mente quão desditosa e imunda
Para Calvino, aqueles que se ela é. De todos os pecados, este é
unem pelos laços do matrimô- o único que mancha o corpo com o
nio devem saber que não podem estigma da desgraça.
proceder segundo a inclinação de Calvino usa a palavra “desgraça”
sua natureza, senão pelo uso lícito para referir-se aos praticantes de
de seu leito conjugal e sempre no sexo indecoroso, e pelo tom da
ADILSON DE SOUZA FILHO

espírito de moderação, de modo a conversa, certamente não se referia


não admitir nada que seja contrário apenas à homossexualidade. Contu-
à modéstia e à castidade do matri- do, são dignas de nota as palavras de
Jesus registradas em Mt 21.31: “Em
3 CALVINO, J. Hebreus. São Bernardo do Campo,
Paracletos, 1997, p.381-384
5 CALVINO, J. Romanos. São Bernardo do Campo, Pa-
4 De Sancta virginitate. Passim racletos, 1997, p.71-77

8
verdade vos digo que publicanos e continua, fazendo uma transição
meretrizes vos precedem no reino adequada para o tema do matrimô-

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


de Deus”. Jesus fez esta afirmação nio, como antídoto para evitar-se a
contra a casta farisaica de Jerusalém fornicação. Calvino, ao comentar o
que pedia referências de sua autori- verso 1 “não é bom que o homem
dade. É evidente que as credenciais toque em mulher”, diz que isto é
de Jesus foram mostradas a partir contrário ao dito em Gn 2.18 “não
de sua piedade, compaixão e fun- é bom que o homem esteja só”. Para
damentalmente o amor/ágape - este ele, o que Paulo quis dizer é que
amor é incondicional pelo próximo. para se devotar tempo à meditação
Podemos dizer que a práxis teoló- celestial, deveria esquivar-se do ma-
gica de Jesus é fundamentada no trimônio e isto para quem conseguis-
amor pelo próximo. Por exemplo, se. Calvino acrescenta, quanto a Gn
de cinco casos famosos de pecado 2.18, que o pecado atingiu e poluiu a

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


erótico mencionados nos evange- instituição divina (matrimônio) e em
lhos - Mt 5.27-28, olhar para uma lugar de tão incomensurável bênção,
mulher com intenção impura; Lc nela se penetrou dolorosa aflição.
7.47, mulher pecadora; 15.29-30, o Por isso, todo mal ou sofrimento
filho dissoluto que gastou o dinheiro que há no matrimônio é oriundo da
com meretrizes; Jo 4.18, 8.1-11, corrupção da instituição divina. No
mulher adúltera - em nenhum verso 2, alguém poderá perguntar:
deles Jesus acrescentou castigo ou a cura da incontinência é a única
condenação. Ao passo que em Mt razão para se contrair o matrimônio?
5.22 Jesus profere uma possível Calvino responde a esta pergunta
sujeição ao inferno de fogo a todo dizendo que Paulo não pretendia
aquele que chamar de imbecil (idio- ensinar isto, mas sim a liberdade,
ta) a seu irmão. Certamente Jesus apesar de supervalorizar o celibato.
discordaria da opinião de Calvino Calvino acrescenta: o que está
sobre sexualidade. em jogo aqui não são as razões pelas
quais o matrimônio foi instituído,
Paulo e sim, as pessoas para quem ele é
Nos textos citados anteriormente indispensável6. Diz ainda que o an-
em que Calvino interpreta Paulo, tídoto contra a fornicação foi criado
agora em todo o capítulo 7 de 1 6 Para Calvino, o matrimônio é apenas um antídoto
Coríntios, o tema sobre fornicação contra a fornicação, ou, um mal necessário. Passim.

9
por causa da queda, pois que antes usar o recurso da conhecida “lei
dela, não havia outra intenção a não natural” para estabelecer as regras
PÁGINAS 6 A 15
SEXUALIDADE E FÉ TENTATIVA DE DIÁLOGO SOBRE HOMOAFETIVIDADE

ser a procriação. Calvino afirma da sexualidade, evidentemente à


que os casados devem ter disciplina heterossexualidade. O que se en-
e critério para gozar dos benefícios tende por natural é o coito entre
do matrimônio, caso contrário, o macho e a fêmea. Desta forma,
poderão estar em pecado. Ele cita qualquer ato sexual que fuja deste
a obra de Agostinho Das Vantagens “padrão” é tido como antinatural.
do Matrimônio; diz-se que a paixão Fundamentalmente clássico é o
incontrolável com que os homens texto da narrativa de Gênesis que
são inflamados é um vício oriundo da apresenta tanto a ordem quanto a
corrupção da natureza humana; mas, definição divina dirigida a Adão e
para os crentes, o matrimônio é um Eva, tornando-os “uma só carne”; e
véu que cobre essas falhas, de modo nesta relação, tanto a procriação da
que Deus não as vê. Infelizmente, raça quanto a satisfação sexual são
Calvino não conseguiu se libertar das encontradas naturalmente.
ideias patológicas - como diria Freud A bem da verdade, esse recurso
- de Agostinho quanto à questão da da “lei natural” denuncia a nossa
sexualidade. limitação quanto ao entendimento
É evidente - e graças ao Espírito e consequentemente à prática do
Santo que nos ilumina - que nenhu- “Eros”. Não é comum encontrar com
ma pastora ou pastor se recusaria facilidade alguém que pense o Eros
a impetrar a bênção matrimonial além do “erótico”. Aliás, é comum
sobre um casal de noivos que, mes- encontrar alguém que saiba o que é
mo diante da impossibilidade de “erótico” e desconheça o Eros como
gerar filhos, desejasse se unir em própria raiz da expressão. Para Faros
matrimônio. Este é um sinal de que ( 1998, p.23) o Eros não pode viver
já superamos essa visão negativa no matrimônio precisamente por-
sobre a sexualidade matrimonial. que, mais uma vez, é considerado o
ADILSON DE SOUZA FILHO

Neste ponto diferimos em muito da desafogo da tensão sexual e porque


tradição católico-romana que ainda o matrimônio é identificado com alí-
prega a doutrina do sacramento do vio sexual ao expelir secreções. Esta
matrimônio tão somente dentro visão está impregnada na cultura
dos limites da procriação. Contudo, cristã, sobretudo, com base bíblica.
ainda na atualidade, é muito comum Em 1Co 7 há uma nítida exaltação

10
do celibato frente à “fraqueza” da poderia ter conotação mais bela e
sexualidade. O ascetismo dualista menos negativa se ele tivesse usado

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


do apóstolo denuncia a sua frágil o conceito de amor/ágape, que é o
interpretação do conceito de Eros, amor incondicional, desinteressado
ao reduzi-lo ao corpo e consequen- e anti-sacrificial; assim como o fez,
temente ao coito heterossexual. No por exemplo, em 1Co 13. Este
verso três desta referência diz: O conjunto de conselhos do apósto-
marido conceda à esposa o que lhe lo apresenta em sua base o ranço
é devido, e também, semelhante- platônico da impureza do corpo e
mente, a esposa, ao seu marido. Há pureza da alma. O apóstolo usa a
neste verso uma nítida perversão do palavra porneia para recomendar
conceito de Eros, pois, nesta lógica, aos fracos o casamento heterosse-
conceder ao “outro” nada mais é xual. Contudo, essa expressão é
senão conceder o corpo/objetifica- demasiadamente inapropriada para

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


do. E ainda o verso nove conclui a fazer menção à sexualidade huma-
relação direta do conceito restrito na, principalmente quando sabemos
sobre Eros ao corpo, quando diz que que uma relação de amor deve ser
os jovens devem se casar por causa postulada a partir da trilogia: Eros-
da brasa ardente. Esta figura da brasa filos-ágape.
é identificada diretamente a partir
do falo, já que o apóstolo apresenta O Corpo Feminino
em sua teologia patriarcalista, a sub- A cultura masculina dominante
missão feminina. Outro dado desta em nosso tempo ainda considera a
referência é a ligação entre a “impu- mulher como instrumento sexual:
reza” da sexualidade e a “pureza” do seja para procriação, seja para de-
celibato. leite sexual masculino. Nas palavras
Há uma inversão a partir de um de Honoré de Balzac: quando uma
esforço lógico e racional para con- mulher se entrega eroticamente
trariar algo inato no ser humano que a um homem é como se fosse um
é a sexualidade. O natural aqui deve violino nas mãos de um gorila7. Pior
ser identificado com a sexualidade do que esta realidade brutal é a sua
e não com o celibato que é antina- confirmação vinda de determinados
tural, ou seja, é fruto de esforço e grupos feministas, que defendem
disciplina. Creio que esta visão do
apóstolo Paulo sobre o matrimônio 7 Citado por FAROS, F. A Natureza do Eros. São Paulo,
Paulus, 1998, p. 27

11
a tese de que estes gorilas devem bém manipulados e explorados10. A
aprender a desempenhar melhor justiça numa relação “erótica” leva-nos
PÁGINAS 6 A 15
SEXUALIDADE E FÉ TENTATIVA DE DIÁLOGO SOBRE HOMOAFETIVIDADE

suas funções orgásticas. Uma visão ao reconhecimento do “outro” como


muito mais consciente sobre Eros é pessoa e não como objeto ou instru-
apresentada pela teóloga feminista mento de “prazer”; este é o critério
Audre Lorde, que diz: Eros é uma de distinção entre o eros essencial e o
fonte de conhecimento vinculada às eros pervertido.
“paixões do amor”: é um “conheci- No Brasil há uma despudorada ex-
mento pelo coração8”. Outra teóloga ploração midiática do corpo - “outro”
feminista, Carter9, diz que a experi- - feminino. Quase todo comercial
ência erótica nos impulsiona a uma de TV exibe uma mulher seminua.
busca infinita pela reciprocidade, Isto é sinal de cultura dominada, é a
na relação de alteridade Eu - Tu, e perversão do Eros essencial. Quan-
nos ensina o caminho possível para do há quase consenso feminino de
efetivar relações justas, livres de es- que é “normal” exibir os traços do
truturas hierárquicas entre os seres corpo, verifica-se aí a rede de poder
humanos. dominante, ou seja, é o Eu “mascu-
Semelhante a estas percepções lino” que explora e “objetifica” o Tu
feministas, Tillich entendia o ele- “feminino”. Diz-se “normal” de tudo
mento erótico como uma energia aquilo que é cultural; se é cultural,
criadora de relações cognitivas, geralmente é entendido como natural
morais e religiosas não marcadas e se é natural, convencionalmente
pelo distanciamento, dominação, não se questiona. Em nossos próprios
separação e controle. Para Tillich, templos temos convivido com um
conhecer o outro a partir do “mito” “culto” ao corpo feminino, com uma
do conhecimento objetivo, leva-nos liturgia bem à brasileira: decotes,
diretamente a uma percepção anta- calças coladas, saias curtas, perfu-
gônica e exploradora da natureza, e, mes, jóias, cosméticos etc. Isso tudo
afinal, a uma visão dos outros seres é muito “normal” em nossas igrejas.
ADILSON DE SOUZA FILHO

humanos como objetos a serem tam- Para Faros (1998, p.71) enquanto
na era vitoriana ninguém queria que
fosse revelado o desejo carnal, sob o
8 AUDRE, Lorde. Lo erótico como poder. In: Del cielo
a la tierra, uma antologia de teologia feminista. Santiago, impacto da vergonha, de vinte anos
Sello Azul, 1994, p.441

9 CARTER, Heyward. Touching Our Strength: The Erotic


as Power and the Love of God. San Francisco: Harper & 10 TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo,
Row, 1989 Sinodal, 1987, p.408-466

12
para cá, acontece o contrário. Antes
de 1910, se um homem dissesse a
Antigo e Novo
Testamentos

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


uma mulher “você é muito sexy”, ela
receberia isto como ofensa; hoje em É importante verificar também a
dia, ela recebe como elogio11. Este é extensão da sexualidade no Antigo
o problema de nosso tempo, isto é, Testamento. De início, um dado
relegou a sexualidade estritamente ao curioso é digno de nota: o cristianis-
jogo e a sedução do corpo. A mídia mo conseguiu ser mais “antigo” que
espalha abertamente a mensagem o próprio Antigo Testamento. Digo
de que o símbolo do homem feliz isto porque em nenhum lugar do
é a ereção e da mulher feliz é o or- Antigo Testamento é recomendado
gasmo. Isso é extremamente danoso o celibato ou exaltada a virgindade
numa sociedade falocêntrica como a como pureza e santidade. A única
nossa, pois, o homem com proble- alusão ao ascetismo no A.T é o cha-

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


mas de ereção não só é “impotente”, mamento aos narizeus que não passa
mas também é “impedido” de dar e de um protesto profético contra o
receber eros. luxo e a corrupção da vida em Canaã.
De igual forma, a mulher que Há no decálogo uma severa proi-
não chega ao orgasmo é frígida e bição do adultério, que brota, no
desse modo é também relegada à entanto de um interesse preciso: de-
incapacidade de dar e receber eros. fender a pureza dos descendentes da
Talvez aqui seja oportuno parodiar o família12. Aliás, para a fé israelita este
dito de Jesus: “... da leveza e ternura é o principal conjunto da esperança
das crianças é que suscitamos a mais escatológica, isto é, posteridade lon-
bela expressão do eros”. Lembrando ga. Deste modo, o varão primogênito
de que para Filoteo Faros, o eros e legítimo é sinal de perpetuação da
necessariamente não desemboca no tribo. A vida era vista como dom
sexo, ou pior ainda no coito. Antes, precioso, e a bênção máxima era
dentro do próprio eros estão também morrer, como Abraão, com idade
presentes o filos e o ágape. É a partir madura, ou como Jacó, cercado por
desta trilogia que devemos entender e seus filhos13. Deste modo, a fidelida-
viver toda a dimensão da experiência de a Javé mediante o cumprimento
humana, inclusive a religiosa.
12 Idem, p. 177

11 FAROS, F. A Natureza do Eros. São Paulo, Paulus, 13 SCHWARZ, Hans. In: Dogmática Cristã. São Leopol-
1998, p.71. do, Sinodal, 1995, volume 2, Locus: Escatologia, p.485.

13
da lei auferia o prolongamento dos verdade escrita.
dias. Daí resulta a necessidade de se Toda heresia tem base bíblica,
PÁGINAS 6 A 15
SEXUALIDADE E FÉ TENTATIVA DE DIÁLOGO SOBRE HOMOAFETIVIDADE

evitar o adultério. pois, a rigor, nasce da interpretação


O Antigo Testamento em sua da própria Bíblia. Mas, há quem diga
quase totalidade apresenta uma que a heresia é a “verdade” dita pelo
sexualidade poligâmica, contudo, mais fraco. Por exemplo, se alguém
sem a conotação “pecaminosa” do nos dissesse que é pecado usar mé-
cristianismo. A poligamia não era todos contraceptivos no matrimônio,
adultério, ao contrário, era vista provavelmente faríamos coro dizendo
como garantia de perpetuação do que isto é um absurdo. Contudo, uma
nome do pai. A língua do Antigo hermenêutica literal, ou “popular” de
Testamento é o hebraico! Apesar de Gn 1.28: “sede fecundos multiplicai-
óbvia esta informação, a meu ver, é vos, enchei a terra”, concluiria que
exatamente aí que reside toda fonte a “vontade de Deus” não pode ser
de dificuldades. Quem lê está inter- descumprida. Nesta busca incansável
pretando e quem traduz interpreta ao longo dos séculos para descobrir
mais ainda. Esta afirmação levanta a quem se dirige a autoridade de
as mais variadas e polêmicas ques- interpretação da Bíblia, os cristia-
tões, por exemplo: como se deu a nismos escreveram uma história de
revelação divina na Bíblia? O que é “vitoriosos” e “derrotados”.
canônico e o que é apócrifo? Existe A nossa tradição reformada usa
texto original? E ainda uma última a Bíblia como autoridade definiti-
e talvez a mais intrigante: a quem va - única regra de fé e prática. A
pertence à autoridade de interpretar tradição, a razão e a experiência são
a Bíblia? Basicamente, a “resposta frequentemente incluídas nas dis-
oficial” para todas estas questões cussões “hermenêuticas”, mas estes
vem de duas fontes. Do lado católico três elementos são frequentemente
romano, a própria Bíblia é fonte de interpretados à luz da autoridade
interpretação a partir do Espírito da própria Bíblia. A interpretação
ADILSON DE SOUZA FILHO

Santo, considerando também a da Bíblia varia do literal até o uso


tradição oral dos bispos apostólicos. da alta crítica bíblica. A expressão
Na tradição protestante prevalece “alta crítica bíblica” significa que
a marca da autoridade da própria tais recursos podem ser usados para
Bíblia e o Espírito Santo é fonte de melhor entender os textos bíblicos,
iluminação e entendimento de toda mas há debate intenso quando con-

14
tradizem, fundamentalmente, a “in- exemplo, qual a justificação de dar
terpretação tradicional” de um texto autoridade moral a Lv 18.22: (com

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


bíblico14. É justamente neste ponto homem não te deitarás, como se
que reside a disputa pela “verdade” fosse mulher; é abominação, e não a
bíblica. E se o assunto é homossexua- Lv 18.19: não te chegarás à mulher,
lidade, de um lado há uma variedade para lhe descobrir a nudez, durante a
de estudiosos que usa a alta crítica sua menstruação,)? É válido ler e in-
bíblica para “fundamentar” uma terpretar Gn 18.20,21; 19.1-2 4-13
perspectiva conservadora; de outro e 24-25 como condenação da ho-
lado, há também uma variedade moafetividade, ou a sua mensagem
de estudiosos que usa a alta crítica fundamental é o imperativo moral
bíblica, contudo, quase sempre são da hospedagem aos estrangeiros?
estigmatizados e caricaturados de A nossa conduta de intérpretes da
“liberais”. Nesta luta de titãs, obvia- Bíblia não pode ser fundamentada

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


mente, o “vencedor” levará o sím- numa autoridade moral que nos leve
bolo de detentor da “inspiração” do a escolha de alguns textos bíblicos e a
Espírito Santo. Desta forma, a inter- exclusão de outros para justificarmos
pretação bíblica é altamente influen- nossas necessidades pessoais, sociais,
ciada pela identidade individual e econômicas, políticas, religiosas e
social e pelas experiências pessoais15 espirituais. O que é inspiração do
Espírito Santo? Certamente não é
Bíblia e a escolha seletiva de textos bíblicos
que sirvam aos nossos princípios, fins
Interpretação e valores ideologicamente institucio-
Os textos bíblicos que “suposta-
nalizados. Contudo, reconhecemos
mente” tratam da homossexualidade
que essa discussão não tem fim e
devem ser estudados com respeito,
nem promove ganhadores ou perde-
seriedade e, sobretudo sem a pre-
dores. Já que somos todos cristãos,
missa da condenação sumária. Por
precisamos fundamentar nossas
14 FARRIS, James. In: Estudos de Religião, nº 24. São ideias, decisões e ações no princípio
Bernardo do Campo, UMESP – Pós-Graduação em Ciên- da graça e amor de Jesus Cristo.
cias da Religião, 2003, Artigo: Homossexualidade, duas
perspectivas cristãs, p.167 Apesar de parecer jargão, contudo,
15 FARRIS, James. In: Estudos de Religião, nº32. São Ber- considero necessário postular sobre
nardo do Campo, UMESP – Pós-Graduação em Ciências
da Religião, junho de 2007, Artigo: Fontes de autoridade nós mesmos a questão: O que faria
na avaliação moral do comportamento sexual humano:
implicações para a religião e a psicologia, p.170
Jesus Cristo nessa situação?

15
VISÃO BÍBLICO-TEOLÓGICA
PÁGINAS 16 A 25, 2013
VISÃO BÍBLICO-TEOLÓGICA DA HOMOSSEXUALIDADE

DA HOMOSSEXUALIDADE

Em quase 20 anos de minis-

Valdinei Aparecido Ferreira*


No Brasil é cada vez maior a tério pastoral ocupei o púlpito
preocupação com o tema da ho-
somente uma vez para tratar
mossexualidade e o direito das
especificamente da questão da
minorias. O acompanhamento
das pessoas que vivenciam homossexualidade. Isto se deu em
mais intensamente a proble- maio de 2010 logo após o Supre-
mática mostra a existência de mo Tribunal Federal ter se pro-
muito sofrimento. Qualquer nunciado favoravelmente à união
pronunciamento pastoral deve civil entre pessoas do mesmo sexo.
evidenciar respeito e amor pe- Voltarei ao tema no final deste
los homossexuais. Mas, sobre artigo. Embora tenha dedicado um
isso, o que nos diz a Bíblia? E
sermão inteiro ao assunto somente
a Igreja? E o Estado?
uma vez, devo dizer que, ao longo
de minha atividade pastoral, tenho
acompanhado com atenção o de-
senvolvimento do tema.
No campo da literatura teoló-
VALDINEI APARECIDO FERREIRA

gica há intenso debate a respeito


das passagens bíblicas que se pro-
nunciam com clareza sobre o tema
da homossexualidade. No campo
social, tendo minha formação
*Pastor titular da Primeira Igreja Presbiteriana Indepen-
em Sociologia, sempre dediquei
dente de São Paulo e professor da Faculdade de Teologia atenção aos movimentos sociais e
de São Paulo - FATIPI. Palestra proferida na Semana
Teológica (15-19.10.2012). às suas reivindicações por direitos

16
e, ao longo dessas quase duas déca- professam que todos foram criados
das, tenho visto o Brasil tornar-se à imagem e semelhança de Deus

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


cada vez mais um país preocupado repudiamos toda e qualquer violên-

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADEVol.


VISÃO BÍBLICO-TEOLÓGICA DA HOMOSSEXUALIDADE
em assegurar direitos às minorias. cia contra homossexuais ou contra
A decisão favorável, do Supremo qualquer outra criatura de Deus.
Tribunal, à concessão do status Tendo em conta as duas razões
e dos direitos da união estável a mencionadas anteriormente, a
pessoas do mesmo sexo não pode saber: a homossexualidade é uma
ser compreendida fora do contexto condição crivada de sofrimento,
dos movimentos sociais que buscam seja psicológico e espiritual – pro-
reconhecimento e direitos. veniente da busca de organização
Entretanto, ao longo dessas de uma área tão sensível como é a
quase duas décadas, tenho acompa- esfera da intimidade sexual –, seja
nhado não apenas o debate travado de sofrimento diante de possíveis

Vol.1 nº
na literatura e na sociedade, mas constrangimentos sociais, tendo em

1 nº
tenho tido a oportunidade de lidar, vista essas duas razões, penso que

10, outubro de 2013, São Paulo, SP


na condição de pastor, com pessoas qualquer pronunciamento pastoral

10, outubro de 2013, São Paulo, SP


reais que vivenciam a homossexu- sobre o assunto deva ser revestido
alidade e posso assegurar-lhes: há de respeito e amor pelas pessoas
muito sofrimento na vida dessas homossexuais.
pessoas. Sofrimento interno prove- É muito difícil tratar do tema da
niente de culpa, de traumas sofri- homossexualidade de um modo lú-
dos, de vergonha diante da família cido e respeitoso, pois é sabido que
e dos amigos. Posso garantir-lhes: a há grupos extremistas de ambos os
homossexualidade não é uma vida lados. Grupos cristãos que impri-
leve, solta e “descolada” como a mem ao assunto um tom apoca-
propaganda atual procura mostrar líptico, alarmista e conspiratório, e
em todos os meios de comunicação. grupos do movimento homossexual
Por outro lado, se há o sofrimen- que vêem em qualquer manifes-
to interno, não podemos deixar de tação de pensamento discordante
Valdinei Aparecido Ferreira

reconhecer que há muito sofrimen- uma ameaça homofóbica a ser silen-


to proveniente da discriminação, ciada por meio de processos. Num
PÁGINAS 16 A 25

do preconceito, das chacotas e até ambiente tenso como este é difícil


mesmo da violência física contra manter o equilíbrio e a sensatez.
homossexuais. Como cristãos que Por isso, suspeito que análise que

17
segue desagradará tanto um grupo Pelo que lemos nessas passa-
como outro. gens, a homossexualidade, quer no
PÁGINAS 16 A 25, 2013
VISÃO BÍBLICO-TEOLÓGICA DA HOMOSSEXUALIDADE

contexto da legislação sobre ma-


O que a Bíblia trimônio ou no contexto de cultos,
não era desconhecida. Entretanto,
diz sobre a houve da parte de Deus a intenção
Homossexualidade? de oferecer ao povo de Israel padrão
Vejamos algumas passagens: heterossexual para os relaciona-
“Com homem não te deitarás, mentos afetivos. O Dr. William G.
como se f osse mulher; é abomi- Cole, em seu livro “Amor e Sexo na
nação” (Levítico 18.22). Bíblia” escreve:
“Se também um homem se dei- Contudo, por forte que fosse o
tar com outro homem, como se antagonismo hebraico à homos-
fosse mulher, ambos praticaram sexualidade por motivos religio-
coisa abominável; serão mortos; sos, isto é, por sua associação
o seu sangue cairá sobre eles” com a idolatria pagã, e embora
(Levítico 20.13). provavelmente estivesse envol-
vido também o fator econômico
O Antigo Testamento, além ou demográfico, havia ainda um
da proibição ao homossexualismo terceiro elemento: psicológico
acompanhada de pena capital, regis- ou étnico. Temos um indício
tra também a presença em Judá de disto em Deuteronômio 22.5:
cultos pagãos que associavam o ho- ‘A mulher não usará roupa de
mossexualismo ao serviço religioso: homem, nem o homem veste
“Porque também os de Judá edi- peculiar à mulher, porque qual-
ficaram altos, estátuas, colunas quer que faz tais coisas é abomi-
e postes-ídolos no alto de todos nável ao Senhor teu Deus’. Isto
VALDINEI APARECIDO FERREIRA

os elevados outeiros e debaixo não é simplesmente comentário


de todas as árvores verdes. pejorativo de passagem sobre
Havia também na terra prosti- o transtorno que os psicólogos
tutos-cultuais; fizeram segundo chamam de travestismo – o
todas as cousas abomináveis das desejo de vestir-se como pessoa
nações que o Senhor expulsara do sexo oposto. Pelo contrário,
de diante dos filhos de Israel” indica algo profundamente ar-
(1 Reis 14.23-24). raigado na consciência judaica:

18
a convicção de que homem é em si; não se enxerga no ministério
homem e mulher é mulher; e de Jesus nada que revogue a visão

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


que deve ser evitada toda con- judaica a respeito da sexualidade
fusão entre os dois. ‘Homem humana.
mulher os criou’. Não há zona No entanto, poderia haver uma
de penumbra de bissexualidade. brecha no momento em que a Igreja
(1967, p. 212) deixou de ser composta apenas
por judeus e recebeu o ingresso de
O que se conclui então é que gentios vindos das populações greco
Israel, sob a ordenação de Deus, -romanas. Deveriam os pagãos, que
plasmou uma cultura de rejeição às estavam acostumados com a cultura
práticas homossexuais. Uma cultu- tolerante de gregos e romanos a
ra construída em torno das figuras respeito da homossexualidade, se
masculina e feminina. Israel repre- submeter ao padrão da cultura ju-

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


sentou uma força contracultural, daica? O Novo Testamento foi mui-
pois os povos vizinhos praticavam a to claro nessa resposta: os cristãos
homossexualidade, em suas versões vindos do mundo greco-romano
feminina e masculina, tanto no que estavam liberados da circuncisão
chamaríamos vida privada quanto e outros costumes judaicos, mas
nos cultos públicos. deveriam abster-se das relações
E no Novo Testamento? Será sexuais ilícitas. Quem ensinou
que essa visão foi preservada? isto? O Concílio de Jerusalém. É a
Vejamos: Jesus não tratou explici- partir desse consenso que o Novo
tamente da questão da homossexu- Testamento se pronuncia a respeito
alidade. Entretanto, considerando da homossexualidade como erro
que ele reafirmou a legitimidade moral. Ouçamos:
do casamento dizendo que desde “... pois eles mudaram a verdade
o princípio da criação Deus os fez de Deus em mentira, adorando
homem e mulher, por isso o homem e servindo a criatura em lugar
deixa pai e mãe e daí em diante do Criador, o qual é bendito
já não são dois, mas uma só carne eternamente. Amém! Por cau-
(Marcos 10.6-8); considerando sa disso, os entregou Deus a
que não revogou o adultério, mas paixões infames; porque até
estendeu a pureza ao coração e não as mulheres mudaram o modo
apenas a abstenção da prática do ato natural de suas relações íntimas

19
por outro, contrário à natureza; veu intensamente com um mundo
semelhantemente, os homens no qual a homossexualidade era
PÁGINAS 16 A 25, 2013
VISÃO BÍBLICO-TEOLÓGICA DA HOMOSSEXUALIDADE

também, deixando o contato na- aceita e até louvada, talvez mais


tural da mulher, se inflamaram do que em nossos dias. Eles pode-
mutuamente em sua sensualida- riam, se quisessem, simplesmente
de, cometendo torpeza, homens ter dito e ensinado que a pessoa
com homens, e recebendo, em si homossexual deveria escolher um
mesmos, a merecida punição do parceiro fixo e manter com ele uma
seu erro.” (Romanos 1.25-27) relação de fidelidade e assim estaria
agradando a Deus. Entretanto, não
“Ou não sabeis que os injus- fizeram isso. Não deve ter sido fácil
tos não herdarão o reino de para Paulo ensinar na liberal cidade
Deus? Não vos enganeis: nem de Corinto e na carnal Igreja que
impuros, nem idólatras, nem estava instalada na cidade que a
adúlteros, nem efeminados, homossexualidade não era aceita
nem sodomitas...” (1 Corín- pela Igreja, mas ele o fez.
tios 6.9).

Algumas traduções da Bíblia,


Homossexuais
como a Nova Versão Internacional, podem mudar a
optaram por traduzir efeminados sua condição?
e sodomitas simplesmente por A nossa sensibilidade humana e
“homossexuais”, uma vez que na moderna levanta a seguinte ques-
língua grega as duas palavras esta- tão: o homossexual nasceu assim?
riam fazendo alusão a homossexuais Se ele nasceu assim não é justo que
passivos e ativos. homossexualidade seja reprovada
A pergunta que surge inevita- biblicamente! Alguns homossexuais
VALDINEI APARECIDO FERREIRA

velmente é a seguinte: tudo isso perguntam: se a prática homosse-


continua válido em nossos dias para xual é pecaminosa, então, por que
os cristãos? Afinal de contas, não há Deus me fez assim?
muita coisa na Bíblia que caiu em Aqui precisamos de um pou-
desuso? É verdade que costumes co de paciência e prudência. Em
mudam de povo para povo e de primeiro lugar isto que estamos
época para época. Entretanto, a chamando de homossexualidade
Igreja do Novo Testamento convi- envolve ampla gama de comporta-

20
mentos, indo desde uma tendência pessoas do mesmo sexo.
leve e passageira por parte de pes- Emterceiro lugar,lembrariaque-

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


soas de orientação heterossexual nãoháevidênciacientífica convin-
até transtornos mais profundos de cente e definitiva de que a homos-
identidade sexual como no caso sexualidade seja algo genético. Das
daqueles indivíduos que, tendo pesquisas as mais conhecidas são
nascido com determinado sexo, se aquelas em que gêmeos idênticos
sentem mentalmente pertencendo revelam orientação sexual diferen-
ao outro sexo. Quando colocamos ciada, sendo um deles heterossexu-
todos no mesmo cesto, tanto sim- al e outro, homossexual. Se fosse
plificamos problemas que represen- determinada biologicamente, não
tam uma desorganização profunda poderia haver divergência na orien-
da identidade, quanto rotulamos tação sexual dos gêmeos idênticos.

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


definitivamente como homossexu- Assim, o médico psiquiatra Dr.
ais pessoas que possuem condições Uriel Heckert, afirma:
e liberdade de reorganizar sua con-
duta sexual em conformidade com Conclusões precipitadas no
seu gênero. campo da sexualidade humana
Em segundo lugar lembraria o podem levar a equívocos e con-
que os autores Judith Balswick e tradições. Na verdade, quando
Jack Balswick afirmam no livro “Au- se apega a uma causalidade inata
thentic Humam Sexuality”, no que e física da homossexualidade,
diz respeito ao abandono da prática incorre-se num reducionismo,
homossexual, que alguns serão mais atribuindo papel definitivo aos
livres do que outros para fazê-lo, aspectos biológicos. De uma
isto dependerá da gradação, da opção comportamental, a ho-
intensidade da identidade e orien- mossexualidade passa a ser vista
tação da homossexualidade. Talvez como uma imposição biológica,
alguns tenham liberdade suficiente ignorando-se uma característica
para reconstruir uma intimidade humana fundamental, que é a
afetiva nos moldes da heterossexu- capacidade de fazer escolhas,
alidade, enquanto outros assumirão mesmo que dentro de limita-
a castidade como o melhor para a ções; e o direito de revê-las,
vida e, outros ainda lutarão por toda quando for o caso”. (Revista
a vida com a pulsão orientada para Ultimato, n. 284, set-out 2003)

21
Diante disso, caberia concluir al, tal como é hoje em dia, se encon-
que a missão da Igreja nunca foi tra deturpado. É claro que, sendo
PÁGINAS 16 A 25, 2013
VISÃO BÍBLICO-TEOLÓGICA DA HOMOSSEXUALIDADE

e nunca será combater a homos- cristão, penso que foi o instinto que
sexualidade. A missão da Igreja se deturpou (2005, p. 36). Vivemos
é proclamar o amor de Deus por de tal modo sob a tirania do prazer
todos e, como comunidade e fa- sexual que qualquer afirmação de
mília da fé, ela não pode se negar castidade em nossos dias soa como
a ajudar aqueles que, compelidos um absurdo e como se Deus fosse
pela própria consciência e no pleno culpado. Julgamos que somente
exercício de sua liberdade, pedem seremos felizes se todos os nossos
apoio espiritual para que possam desejos forem imediatamente satis-
reorganizar a esfera da intimidade feitos, principalmente os desejos de
sexual em conformidade com seus natureza sexual. A cegueira chegou
valores religiosos. Nesses casos, a a tal ponto que se perdeu toda e
Igreja deve proceder com discrição qualquer distinção entre formas
e respeito pela intimidade daqueles legítimas e ilegítimas de se obter
que a procuram. É preciso reprovar gratificação sexual. Vivemos sob a
a espetacularização da conversão tirania do desejo e nos esquecemos
de homossexuais feita em alguns que o desejo precisa ser desejado.
segmentos do mundo evangélico. É
preciso crer no que diz Paulo: “Tais
fostes alguns de vós” (1 Co 6.11) e Estado e Igreja
afirmar que a mudança é possível Por fim, será preciso tecer algu-
com o poder e a graça de Deus, mas mas considerações sobre a relação
é preciso respeitar a história de cada entre Igreja e Estado. Decisões
pessoa e evitar a exposição pública como a do Supremo Tribunal Fe-
de tais histórias com finalidade deral sobre a união de pessoas do
VALDINEI APARECIDO FERREIRA

apologética. mesmo sexo e o Projeto de Lei 122,


Para finalizar este tópico, lembro que criminaliza toda e qualquer fala
que C.S. Lewis observou a respeito que se oponha ao comportamento
das lutas que cada pessoa mantém homossexual e prevê ainda pena
com a sua sexualidade, especialmen- que vai de um a três anos de prisão
te para orientá-la de acordo com a mais multa, levantam a questão so-
doutrina cristã:“ou o cristianismo bre a relação entre Igreja e Estado.
está errado ou o nosso instinto sexu- Levantam-na em duas direções.

22

A missão da Igreja nunca foi e nunca será
combater a homossexualidade. A missão da Igreja

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


é proclamar o amor de Deus por todos e, como
comunidade e família da fé, ela não pode se negar
a ajudar aqueles que, compelidos pela própria
consciência e no pleno exercício de sua liberdade,
peçam apoio espiritual para que possam lutar
contra a prática homossexual.

Primeira: até onde princípios reli- tado é a seguinte: o Estado retirou o


giosos podem influenciar o gover- adultério do Código Penal, mas nós
no? Segunda: até onde o governo não o retiramos da Bíblia e de nossas
pode tomar decisões que afetem convicções. Agora, o Estado dá si-

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


as religiões? nais de que caminhará na direção de
A Igreja cristã não precisa de modificar seu conceito de casamen-
um Estado cristão, muito menos de to e de família, nós continuaremos
uma teocracia, ou seja, o cristão não crendo e confessando que “desde
deveria buscar impor os princípios o princípio da criação, Deus os fez
cristãos por força de lei. Histori- homem e mulher” e nisto reside a
camente, o protestantismo – num base essencial da família. Acaso terá
longo aprendizado histórico - colo- o Estado o direito de punir aqueles
cou-se ao lado da defesa do Estado que em obediência à sua consciên-
democrático laico. Isto implica cia confessam que o ideal divino
tomar a sério o que está escrito na é a família constituída a partir do
Constituição do Brasil: casamento entre homem e mulher
“... é livre a manifestação do num pacto de fidelidade e cuidado
pensamento e é inviolável a mútuo? Se isso ocorrer, e espero
liberdade de consciência e de que não ocorra, terão se cumprido
crença, sendo assegurado o livre as palavras do profeta Isaías que
exercício dos cultos religiosos disse: “Ai dos que ao mal chamam
e garantida, na forma da lei, a bem e ao bem, mal; que fazem da
proteção aos locais de culto e a escuridade luz e da luz, escuridade;
suas liturgias;” (Art 5). põem o amargo por doce e o doce,
A consequência de um país de- por amargo!” (Isaías 5.20).
mocrático que separa religião e Es- O Supremo Tribunal Federal –

23
ao conceder o direito de união civil Considerações finais
entre pessoas do mesmo sexo - en-
PÁGINAS 16 A 25, 2013
VISÃO BÍBLICO-TEOLÓGICA DA HOMOSSEXUALIDADE

Para finalizar, quero retomar


carregou-se de começar a remover uma afirmação que já fiz neste
o pouco que restava da cosmovisão texto: a missão da Igreja nunca foi
cristã em nosso arcabouço jurídico e nunca será combater a homos-
e o fez a partir da lógica de que as sexualidade. A missão da Igreja
leis devem ser feitas para atender é proclamar o amor de Deus por
os acordos que os indivíduos es- todos e, como comunidade e fa-
tabeleçam entre si. A lógica que mília da fé, ela não pode se negar
permeia esse tipo de direito é a a ajudar aqueles que, compelidos
mesma que perpassa toda a nossa pela própria consciência e no pleno
sociedade: todos os desejos devem exercício de sua liberdade, peçam
ser satisfeitos desde que as partes apoio espiritual para que possam
concordem entre si. lutar contra a prática homossexual.
O cristianismo ofereceu o mais Ao proclamar o amor de Deus
elevado ideal para a sociedade para homossexuais e também aos
e para o Estado. Se o Estado heterossexuais, como igreja deve-
abandonar sua inspiração cristã, o mos sempre recordar:
cristianismo não desaparecerá. Ele • Cristo deu sua vida por você e por
tem sobrevivido com a indiferença mim. Ele tomou sobre si os nos-
e até mesmo com a hostilidade do sos pecados. Consequentemente,
Estado em diferentes épocas e re- ele pode perdoar toda a sua culpa
giões do planeta. Por isso afirmo: e livrá-lo da angústia da culpa;
se o Estado brasileiro abandonar o • Cristo deu sua vida por você e
pouco que lhe resta de influência por mim para libertar-nos do
cristã, o cristianismo não morrerá, poder do pecado. Paulo diz:
mas a sociedade perderá na me-
VALDINEI APARECIDO FERREIRA

“Porque o pecado não terá


dida em que as noções de amor domínio sobre vós; pois não
desinteressado que têm marcado estais debaixo da lei e sim da
o cristianismo e influenciado a graça”. (Romanos 6.14). À luz
sociedade nos seus mais elevados da Escritura, portanto, a orien-
ideais ceda lugar ao atendimento tação que se pode oferecer é no
do mero interesse individual. sentido que cada pessoa que
Oremos e trabalhemos para que esteja lutando com questões
isso não aconteça. em torno da homossexualidade

24
fale abertamente do assunto
com Deus e busque orientação

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


nele para suas decisões.

Concluo com as palavras de C.S.


Lewis extraídas do livro Cristianis-
mo Puro e Simples no capítulo em
que ele fala da moral cristã:
Para encerrar, apesar de eu ter fala-
do bastante a respeito de sexo, que-
ro deixar tão claro quanto possível
que o centro da moralidade cristã
não está aí. Se alguém pensa que os
cristãos consideram a falta de casti-

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


dade o vício supremo, essa pessoa
está redondamente enganada. Os C.S. Lewis
pecados da carne são maus, mas,
dos pecados, são os menos graves. humano em que devo tentar me
Todos os prazeres mais terríveis são tornar. São elas o ser animal e o ser
de natureza puramente espiritual: o diabólico. O diabólico é o pior dos
prazer de provar que o próximo está dois. É por isso que um moralista
errado, de tiranizar, de tratar os ou- frio e pretensamente virtuoso que
tros com desdém e superioridade, vai regularmente à igreja pode estar
de estragar o prazer, de difamar. São bem mais perto do inferno que uma
os prazeres do poder e do ódio. Isso prostituta. É claro, porém, que é
porque existem duas coisas dentro melhor não ser nenhum dos dois
de mim que competem com o ser (2005, p. 38)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COLE, William Graham. Sexo e amor na Bíblia.São Paulo: IBRASA, 1967.


BALSWICK, Judith K.; BALSWICK, Jack O. Authentic Human Sexuality: an integrated Christian
Approach. 2a. ed. Illinois: IVP Academic, 2008.
HECKERT, Uriel. Homossexualidade: Aceitação e mudança. Disponível em: http://www.ultimato.com.br/
revista/artigos/284/homossexualidade-aceitacao-e-mudanca (18.09.2013)
LEWIS, C.S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

25
HOMOAFETIVIDADE
PÁGINAS 26 A 39, 2013
HOMOAFETIVIDADE E CRISTIANISMO - UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

E CRISTIANISMO
Uma abordagem histórica

Introdução
Gerson Correia de Lacerda*
A relação entre homoafetivida- O tema escolhido para esta
de e cristianismo parte de uma Semana Teológica, promovida
narrativa simbólica contem-
pela Faculdade de Teologia de São
porânea para a descrição de
posicionamentos vários desde
Paulo da IPIB (FATIPI) e pelo seu
as civilizações antigas. A ques- Diretório Acadêmico em outubro
tão premente para uma igreja de 2012, é, sem sombra de dúvida,
em crise, que sempre condenou polêmico.
grande parte das manifestações Acompanhei, a meia distância,
de homoafetividade, é: teria ela algumas das reuniões do Prof.
condições de se curvar para re- Eduardo Galasso Faria com os
ver posicionamentos históricos
alunos e alunas do Diretório.
em relação à homoafetividade?
Senti que havia dois sentimentos
em relação ao tema: atração e
preocupação; sedução e medo.
É compreensível! O tema atrai
porque está aí, diante de nós, em
GERSON CORREIA DE LACERDA

nossa realidade de todos os dias.


Mas, ao mesmo tempo, preocupa
e causa medo porque parece de-
safiar vinte séculos da história da
igreja. E, sem dúvida, as igrejas
*Professor na Faculdade de Teologia de São Paulo da IPIB
– FATIPI e pastor da 1ª. IPI de Osasco. Palestra proferida
que resolveram estudar o assunto
na Semana Teológica (15-19.10.2012). e tomar alguma posição enfrentam
sérios problemas. O mais cômodo

26
é fingir que nada tem a ver conosco zombaria na escola...
ou que não afeta a nossa comuni- O nome dele era Gulliver, ca-

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


dade de fé. Diante dessa realidade, rinhosamente, Gullinho. Seus pais

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADEVol.


HOMOAFETIVIDADE E CRISTIANISMO - UMA ABORDAGEM HISTÓRICA
a decisão pela abordagem do tema não sabiam do seu gosto pelas ce-
revela-se corajosa e, até mesmo, nouras. Comer cenouras era um ato
atrevida. secreto, escondido. Seus pais só se
Para descontrair, mas também preocupavam com o fato de que ele
para provocar, começo com uma não comia os deliciosos ratinhos re-
fábula. Descobri-a num livro publi- cém-nascidos, os pardais saborosos,
cado no ano da graça de 2012. Na os peixes cheirosos que lhe traziam
verdade, o que me atraiu no livro para abrir o apetite. Gullinho era
foi a ilustração da capa e o título. diferente dos demais gatos. E isso
Estavam lá, na ilustração da capa, fazia seus pais sofrer muito porque
duas belas pimentas dedo-de-mo- o que os pais mais desejam é que

Vol.1 nº
ça. Fui atraído imediatamente por seus filhos sejam iguais aos outros.

1 nº
elas. Depois de ver a ilustração, li O fato era que os pais de Gulli-

10, outubro de 2013, São Paulo, SP


o título da obra: Pimentas – Para nho ignoravam que ele, escondido,

10, outubro de 2013, São Paulo, SP


provocar um incêndio, não é preciso comia a comida proibida, cenoura...
fogo. Vendo as pimentas e lendo A mãe acabou por desconfiar das
o título, senti imediatamente um incursões secretas do Gullinho e dis-
impulso para adquirir o livro. Foi aí se ao pai que seria melhor segui-lo
que vi o nome do seu autor: Rubem para ver onde ele estava se metendo.
Alves. Não teve jeito! Comprei! E, Foi o que o pai ‘sogateiramente’ fez.
naquele mesmo dia, depois das au- Gullinho caminhava com cuidado,
las, antes de dormir, comecei a ler. olhando para todos os lados, para
Foi nesse livro que descobri a fábula ver se estava sendo seguido.
intitulada “O gato que gostava de Andou até chegar ao sítio do se-
cenouras”. Rubem Alves a conta nhor Joaquim. Havia canteiros com
com as seguintes palavras: todos os tipos de hortaliça. Gullinho
“Gato gosta de peixe, de rato e foi até o canteiro de cenouras e – oh!
Gerson Correia de Lacerda

de passarinho. Gato não gosta de Coisa horrenda para um pai gato –


PÁGINAS 26 A 39

cenoura. Numa terra de gatos, um começou a comer cenouras.


gato que gostasse de cenoura seria O pai do Gullinho morreu de
uma aberração, uma vergonha susto. Seu filho, que ele sonhara
para os pais, motivo de chacota e tigre, não passava de um coelho. E

27
chorou amargamente...
Resolveu procurar auxílio. Pro-
PÁGINAS 26 A 39, 2013
HOMOAFETIVIDADE E CRISTIANISMO - UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

curou um padre, que ameaçou


Gullinho com o Inferno. ‘Deus é
gato. Deus ordenou que nós comês-
semos peixes, ratos e passarinhos.
Comer cenoura é pecado mortal!’
Mas não adiantou... Gullinho
continuou a vomitar peixes, ratos e
passarinhos...
Aí eles o levaram ao psicana-
lista. A análise durou vários anos.
Mas o que o doutor Gatan lhe dizia Rubens Alves
com linguagem complicada não al-
terava o seu gosto: ele continuava a pode ser curado, como se fosse uma
gostar de cenouras... doença, porque é o DNA que o fez
Foi então que um professor da es- assim... Igual ao daltonismo’.
cola entendeu o drama que Gullinho Gullinho olhou em silêncio para
estava vivendo. Ele então o chamou o professor e, pela primeira vez,
para uma conversa e lhe disse: ‘O entendeu tudo. E ele sentiu que um
nosso destino está escrito nas células enorme peso fora tirado de cima
do nosso corpo, num chip bem peque- dele. Entendeu então que ele podia
no chamado DNA. Esse chip DNA gostar de cenoura porque fora o
já está no feto, determinando a cor DNA que o fizera assim – e ninguém
do seu pelo, a cor dos seus olhos, tinha nada com isso.”
se você vai ser menino ou menina, Disse que iria contar a fábula
daltônico ou não, canhoto ou destro. para descontrair e para provocar.
GERSON CORREIA DE LACERDA

Você nada pode fazer para mudar Acrescento mais um item: na minha
as ordens que estão no seu chip. E modesta opinião, esta fábula resu-
acontece o mesmo com o nosso gosto me a história do relacionamento
por ratos ou por cenouras... Não é entre homoafetividade e cristia-
pecado como o padre disse, porque nismo. O que a fábula conta é, na
foi o DNA que o fez assim... Não é verdade, um resumo de vinte sécu-
resultado da educação, porque foi los de embates entre a questão da
o DNA que o fez assim... E nem homoafetividade e o cristianismo.

28
1) A situação da homossexualidade onde pre-
valece o espírito biblicista, isto
prevalecente nos

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


é, uma interpretação literal dos
dias de hoje e a textos que os isola do seu contexto
Bíblia histórico, postula uma isocronia
Para tratar dessa história, vamos da pregação do evangelho ontem
começar falando sobre o que pre- e hoje, e que se recusa a distinguir
valece nos dias de hoje. Acredito entre o evangelho em seu todo e
que, em nossas igrejas, a situação as suas concretizações situacionais”
prevalecente é aquela que aparece (CALVANI, p. 335).
na fábula no trecho que diz assim: Além desses textos, muitos
O pai de Gullinho resolveu procurar também recorrem à história de
auxílio. Procurou um padre, que Gênesis 19 e de Juízes 19. Quanto

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


ameaçou Gullinho com o Inferno. ao primeiro texto, de Gênesis 19,
‘Deus é gato. Deus ordenou que Boswell observa, porém, que “uma
nós comêssemos peixes, ratos e pas- interpretação puramente homos-
sarinhos. Comer cenoura é pecado sexual desta história, contudo, é
mortal!’ relativamente recente. Nenhuma
Não haveria muita diferença se, das muitas passagens do Antigo Tes-
no lugar do padre, fosse colocada tamento referentes à condenação
a figura de um pastor protestante. de Sodoma sugere qualquer tipo de
De fato, o que prevalece em termos ofensa sexual”. E conclui dizendo:
religiosos entre nós é a consideração “A cidade foi destruída por causa
de que a homoafetividade é um pe- da falta de hospitalidade para com
cado que leva, necessariamente, ao os visitantes enviados pelo Senhor”
inferno. Essa posição é justificada (BOSWELL, p. 93).
com a utilização de textos bíblicos. A respeito do segundo texto, de
Na verdade, existem cinco Juízes 19, o mesmo autor observa
textos bíblicos empregados para que ela foi fortemente influencia-
respaldar essa interpretação, a sa- da, senão modelada, pelo texto de
ber: Levítico 18.22; Levítico 1.13; Gênesis 19. E comenta: “Tanto
Romanos 1.26,27; 1 Coríntios 6.9- judeus como cristãos falharam cla-
11 e 1 Timóteo 1.10. Gottfried morosamente ao interpretar esta
Brakemeir afirma: “É mais do que história como sendo a respeito da
flagrante ser maior a condenação homossexualidade, a qual é corre-

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tamente interpretada como uma questões complexas de dias atuais”
história moral a respeito da falta (CALVANI, p. 67).
PÁGINAS 26 A 39, 2013
HOMOAFETIVIDADE E CRISTIANISMO - UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

de hospitalidade” (BOSWELL, p. Quanto aos textos do Novo Tes-


95, 96). tamento, há que se comentar que
Restam, porém, os outros cinco Jesus não se manifestou a respeito
textos. Sobre eles, devem ser leva- do assunto. Ele tratou muito mais
das em consideração as seguintes do relacionamento com as riquezas
observações: e da possessão demoníaca do que do
Existe uma extrema seletividade relacionamento sexual. No entanto,
na utilização dos textos de Levítico. seu ensino sobre tais temas não é
É mais do que evidente que o livro levado em consideração pela maior
canônico contém várias outras de- parte dos cristãos de hoje.
terminações legais, referentes, por Mesmos os três textos restantes
exemplo, aos hábitos alimentares. do Novo Testamento (Romanos
No entanto, tais determinações le- 1.26,27; 1 Coríntios 6.9-11 e 1
gais não são consideradas relevantes Timóteo 1.10) são complexos e os
pelos cristãos nos dias de hoje. especialistas discutem suas possí-
Ao que tudo indica, também veis interpretações. Qualquer que
ocorre má interpretação dos textos. seja o caso, deve-se observar que
É, por exemplo, o que afirma Dal- são textos que também condenam,
mer Palmeira Rodrigues de Assis: no mesmo nível, a perversidade, a
“Levítico 18.22 e 20.13 estão na maldade, a ganância, os vícios, os
lista dos textos mais citados contra ciúmes, as brigas, as mentiras, a
homossexuais e também dos mais malícia, a glutonaria, etc.
mal interpretados textos da Bíblia”. Diante disso, Boswell chega a
E conclui: “Levítico nada sabia so- uma conclusão radical: “O Novo
bre gays modernos, não sabia nada Testamento não toma uma posição
GERSON CORREIA DE LACERDA

sobre relacionamentos que mos- demonstrável a respeito da ho-


trassem afetividade e amor, e que mossexualidade. O máximo que
pudessem envolver masturbação se pode afirmar sobre o efeito da
mútua, carícias unissexuais e ainda Escritura nas atitudes a respeito
sexo anal com camisinha. Usar os da homossexualidade é que seria
versos para condenar homossexuais discutível” (BOSWELL, p. 117).
hoje é violentá-los, forçando-os Ao que tudo indica, não foram
a apresentar respostas simples a os textos bíblicos que geraram o

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posicionamento prevalecente nos atenção para uma descoberta ar-
dias atuais em nossas igrejas. Ao queológica: “Uma das descobertas

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


que tudo indica, foi o contrário mais relevantes para a pesquisa da
o que ocorreu. O antagonismo à sexualidade e homossexualidade
homoafetividade é que fez com na história aconteceu em 1964.
que algumas poucas passagens se Naquele ano, foi descoberta, no
tornassem tão importantes. Valeria, Egito, uma tumba um tanto dife-
pois, para a utilização da Bíblia no rente das demais. Nela, uma cena
posicionamento prevalecente o que singular: dois homens num abraço
Boswell afirmou sobre a utilização eterno” (CALVANI, p. 28). O mes-
de Levítico ao escrever as seguintes mo autor destaca também o “Épico
palavras: “A extrema seletividade no de Gilgamesh”, texto encontrado
emprego do vasto conteúdo das leis no século XIX na cidade assíria de

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


levíticas é uma clara evidência que Nínive. Nele, há uma passagem la-
não foi o respeito pela lei que criou vrada nos seguintes termos: “A mãe
a hostilidade à homossexualidade, de Gilgamesh, o sábio, conhecedor
mas foi a hostilidade que levou à de todas as coisas, disse a seu filho:
retenção de algumas poucas passa- O machado que você viu em sonho
gens de um código legal amplamente é um homem que você amará e
descartado” (BOSWELL, p. 105). abraçará como esposa. Depois de
Se esta conclusão está correta, Gilgamesh contar a Enkidu o sonho,
então o exame histórico será de os dois tiveram relações sexuais”
fundamental importância para uma (CALVANI, org. p. 29).
compreensão melhor desse tema. Não foi diferente a situação na
Grécia. Afirma Dallmer Assis: “A
2) Relações homossexualidade na Grécia era
homoafetivas praticada em ampla escala e aceita
como expressão sexual comum
no contexto do na vida cotidiana” (CALVANI, p.
nascimento da Igreja 3). Boswell vai além ao afirmar:
Wanda Deifelt afirma que “du- “Muitos gregos consideravam o
rante todos os períodos da história amor gay como a única forma de
constata-se a existência de práti- erotismo que podia ser durável,
cas homossexuais” (CALVANI, pura e verdadeiramente espiritu-
p. 27). Dallmer Assis chama a al”. E acrescenta: “O conceito de

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amor platônico (que surge depois a retirar-se em paz, ao invés de
de muitos séculos após Platão) não sucumbir assassinado ou morto em
PÁGINAS 26 A 39, 2013
HOMOAFETIVIDADE E CRISTIANISMO - UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

tem nada a ver com a ausência de batalha” (BOSWELL, p. 84).


relacionamento sexual, mas com Todas essas anotações nos levam
a sua convicção de que somente a concluir juntamente com Boswell
o amor entre pessoas do mesmo que: “A sociedade romana era ad-
gênero pode transcender a relação miravelmente diferente das nações
sexual” (BOSWELL, p. 27). que eventualmente dela surgiram,
A mesma situação podia ser pois nenhuma das suas leis, estru-
observada na Roma Antiga. Edward turas ou tabus a respeito do amor
Gibbon, famoso por sua História do ou da sexualidade tinha a finalidade
Declínio e Queda do Império Roma- de penalizar as pessoas gays ou sua
no, observou que, “dos primeiros sexualidade; e a intolerância sobre
quinze imperadores, Cláudio foi essa questão era tão rara a ponto
o único cujo gosto no amor era de ser insignificante nos grandes
totalmente correto”, isto é, hete- centros urbanos. Os gays eram
rossexual (BOSWELL, p. 61). O uma minoria, mas nenhum de seus
imperador Nero chegou a casar-se, contemporâneos os consideravam
sucessivamente, com dois homens, como perniciosos, bizarros, imo-
em cerimônias públicas reconhe- rais ou ameaçadores. Eles estavam
cidas legalmente (BOSWELL, p. totalmente integrados na vida e na
82). “Um desses homens, Sporus, cultura romana em todos os níveis”
acompanhava Nero nas atividades (BOSWELL, p. 87).
públicas, nas quais o imperador o Todo esse contexto histórico
abraçava com afeição. Ele permane- nos leva a perguntar: será que foi o
ceu com Nero durante o seu gover- advento do cristianismo que mudou
no e na sua morte” (BOSWELL, p. a situação? É o que vamos examinar
GERSON CORREIA DE LACERDA

82). “Provavelmente o mais famoso a seguir.


par de amantes no mundo romano
foram Adriano e Antinous. Adriano,
que governou de 117 a 138, foi um 3) Homoafetividade
dos mais notáveis dentre os cinco na Idade Medieval
melhores imperadores. Seu governo As primeiras mudanças do go-
foi pacífico e produtivo. Ele foi o verno romano em relação à homo-
primeiro imperador desde Tibério afetividade aparecem no século IV,

32
coincidentemente no período em mossexuais por procederem de
que a igreja cristã torna-se, primei- um excesso de desejo, e Agostinho

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ramente, favorecida pelo governo e, (354-430). Agostinho escreveu con-
posteriormente, reconhecida como tra o uso do corpo de um homem
religião oficial do império. como se fosse o corpo de mulher
No ano de 342, um estatuto porque “o corpo de um homem é
do imperador romano tornou ile- superior ao corpo de mulher assim
gais os casamentos gays (que, até como a alma é superior ao corpo”
então, eram considerados legais, (BOSWELL, p. 157).
obviamente). Não estabelecia pe- Todavia, o aumento da oposição
nalidade para quem o desobede- à homoafetividade só ocorre bem
cesse. Mas abriu caminho para um mais tarde. Peter Cantor (morto em
decreto imperial baixado em 390, 1197) desenvolveu a interpretação

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


por Teodósio, que também tornou de que Romanos 1.26-27 refere-
o cristianismo a religião oficial do se exclusivamente aos gays, além
império. Tal decreto estabelecia a de aplicar várias outras passagens
pena de morte na fogueira para os bíblicas contra o pecado da homo-
praticantes da homoafetividade. afetividade.
Certamente, pesaram sobre O resultado de sua atuação foi
o cristianismo algumas grandes que o 3º Concílio de Latrão, em
influências para a oposição à ho- 1179, foi o primeiro concílio ecu-
moafetividade. Em primeiro lugar, mênico a estabelecer sanções contra
o dualismo platônico, que leva à agiotas, hereges, judeus, muçulma-
aversão ao corpo bem como aos nos, mercenários e homossexuais.
seus prazeres. Em segundo lugar, Seus termos foram os seguintes:
o estoicismo e seus conceitos de “Qualquer pessoa descoberta co-
sexualidade natural. metendo incontinência contra a
No caso do desprezo e repressão natureza... se for um clérigo, será
ao corpo e seus prazeres, temos o deposto de seu ofício e confinado a
exemplo extremo de Orígenes (182- um monastério para se penitenciar;
250), que se castrou a si mesmo a se for um leigo, será excomungado e
fim de evitar a tentação sexual. posto fora do convívio com os fiéis”
No caso da influência do estoi- (BOSWELL, p. 277).
cismo, temos Crisóstomo (348- A partir daí, cresceu a oposição à
407), que condenou os atos ho- homoafetividade. Passou a ocorrer a

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conjugação da heresia com a homo- Durante toda a Idade
afetividade. Assim, hereges, como Média, as mulheres
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HOMOAFETIVIDADE E CRISTIANISMO - UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

os albigenses, também eram acu- foram consideradas


sados de serem homoafetivos. De- perigosas devido à sua
senvolveu-se também a utilização volúpia sexual.
do termo “sodomia” para se referir
ao relacionamento homossexual.
Paralelamente, os teólogos da Nessa linha de pensamento,
Baixa Idade Média desenvolveram Tomás de Aquino condenou os pe-
também sua reflexão a respeito da cados sexuais antinaturais, a saber,
homoafetividade. O primeiro a a masturbação (“vício solitário”)
fazê-lo de uma forma mais siste- e as relações homossexuais, visto
mática foi Alberto Magno (1200 a que não se destinam à procriação,
1280). “Na sua Summa Theologiae, mas também somente ao prazer.
Alberto condenou os atos homos- Calvani comenta: “Pecados contra
sexuais como o mais grave tipo de a natureza (masturbação e homos-
pecado sexual por ofender a graça, sexualismo) eram considerados
a razão e a natureza” (BOSWELL, (por Tomás de Aquino) muito mais
p. 316). Chegou ele ao ponto de graves que um estupro que resulta
afirmar que a homoafetividade era em gravidez” (CALVANI, p. 154).
uma doença contagiosa. E acrescenta: “Ainda hoje a Igreja
Um de seus discípulos mais famo- Católica considera a masturbação
sos, Tomás de Aquino (1224-1274) e todo ato homossexual como con-
seguiu suas ideias. “Sua Summa Theo- trários às leis naturais” (CALVANI,
logiae tornou-se o modelo da posição p. 155). Aliás, é exatamente por
ortodoxa a respeito dos dogmas ca- considerar as chamadas leis naturais
tólicos..., estabelecendo permanente como critério para avaliar o que é
GERSON CORREIA DE LACERDA

e irrevogavelmente o ‘natural’ como moral ou imoral que a Igreja Ro-


a pedra fundamental da ética sexual mana ainda condena a utilização de
Católico Romana” (BOSWELL, p. anticoncepcionais e de camisinha,
318). A ideia é a de que o relaciona- pois, nesses casos, mesmo o relacio-
mento sexual natural é aquele des- namento heterossexual representa
tinado à procriação. Não tendo por um “pecado contra a natureza”,
finalidade a procriação, qualquer ato visto que o objetivo deixa de ser a
sexual torna-se pecaminoso. procriação para ser o prazer.

34
4) Homoafetividade O desenvolvimento histórico do
movimento reformado acabou por
na Igreja Reformada

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


gerar especialmente o puritanismo,
Será que, porventura, os refor- com a Teologia do Pacto e a valoriza-
madores do século XVI, quanto a ção da santificação. E o puritanismo
isso foram inovadores? intensificou a valorização da santi-
Nesse ponto, os reformadores dade nos relacionamento sexuais.
continuaram a seguir as linhas gerais Sobre o puritanismo, temos dois
desse desenvolvimento teológico. elementos a levar em consideração.
Na verdade, o que ocorreu no Em primeiro lugar, ocorreu a
ramo reformado da Igreja Cristã “grande inversão puritana”, expres-
foi a manutenção do respeito e da são utilizada por Edmund Leites
valorização do “peccatum contra no livro “A consciência puritana e

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


naturam”. a sexualidade moderna”. Calvani a
A respeito desse assunto, é in- comenta com as seguintes palavras:
teressante examinar o comentário “Durante toda a Idade Média, as
de Calvino ao sétimo mandamento mulheres foram consideradas peri-
(Não cometerás adultério) nas gosas devido à sua volúpia sexual.
Institutas. Diz o reformador de Servindo-se do texto de Gênesis,
Genebra: “Como o homem foi em que Eva desobedece a Deus
criado de tal maneira que não viva antes de Adão e o induz a comer do
sozinho, mas em companhia da fruto proibido, era comum atribuir
ajuda semelhante que lhe conce- às mulheres o peso maior de culpa
deu – ainda mais porque, por causa no episódio da queda. A ética cristã
do pecado, o homem se encontra medieval sempre considerou as mu-
mais submetido a tal necessidade lheres naturalmente maliciosas, vo-
– o Senhor colocou um remédio luptuosas e mais propensas ao sexo
para ele, instituindo o matrimônio do que os homens. Afinal, eram elas
e santificando-o com sua bênção. que induziam os padres à tentação e
Daí se deduz que qualquer outra ao vício solitário. Porém, no século
companhia fora do matrimônio é XVII, por força e obra do movimen-
maldita na presença de Deus. A to puritano, surgiu na Inglaterra a
companhia de marido e mulher foi ideia de que os homens eram mais
ordenada como remédio para a nossa fortes em seus desejos sensuais do
necessidade” (CALVINO, p. 293). que as mulheres. Foi construído

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um padrão de virtude feminina – a todos os outros pecados...
mulher confinada ao lar, cuidando As incursões punitivas nas ta-
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HOMOAFETIVIDADE E CRISTIANISMO - UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

do marido e da família burguesa. As bernas e bordéis, onde se reuniam


mulheres se tornaram o sustentáculo os homossexuais, permitiam, além
da civilização e da cultura moral; e disso, recolher exatamente o tipo
os homens, o sustentáculo da ener- de material sensacional que garan-
gia, da vitalidade e da sexualidade” tia o sucesso dessa propaganda. Os
(CALVANI, p. 158). sodomitas que frequentavam as
Graças a tal inversão, apesar dos tabernas ou Molly Houses manifes-
rigores puritanos quanto à sexuali- tavam uma afetação efeminada no
dade, as mulheres passaram a ser modo de vestir-se e no discurso...
consideradas seres que não podem Doravante, o sodomita era visto
ter prazeres ou fantasias sexuais, como fazendo parte de um grupo
ao passo que aos homens passou- específico, um terceiro sexo que
se a conceder mais indulgência e não pertencia ao sexo masculino
compreensão quanto ao adultério. nem ao feminino, mas se situava
Em segundo lugar, o movi- de preferência fora da cultura he-
mento puritano passou a atuar terossexual normal” (CORBIN, vol.
vigorosamente pela santificação no 1, p. 290,291).
comportamento sexual. “No co- Correndo o risco de toda e
meço dos anos 1690, organizações qualquer generalização, podemos
reformadoras como a Society for dizer que, até meados do século
the Reform of Manners, seculares, XX, foi essa a compreensão das
guiadas pelo fanatismo religioso e igrejas cristãs diante da questão
por um certo milenarismo provi- da homoafetividade. Por um lado,
dencial, tentaram eliminar todos os representava um pecado contra a
vícios e pecados do país, reprimindo natureza. Por outro lado, represen-
GERSON CORREIA DE LACERDA

qualquer tipo de transgressão ima- tava uma cultura sexual anormal.


ginável: o desrespeito do Sabbat, a
embriaguez, o jogo, os juramentos
e blasfêmias, os comportamentos 5) Situação atual
obscenos e desregrados, e – o que Por volta da metade do século
é mais importante para a história da XX, a situação começou a mudar.
prostituição e da homossexualidade Musskopf comenta: “Depois de
– os bordéis, acusados de fomentar período de intensa perseguição dos

36

grupos que advogavam a inclusão A principal consequência
de homossexuais na Europa, nas das mudanças, tanto

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


décadas de 1950 e 60, já no século no campo da pesquisa
XX, houve uma proliferação destes científica quanto do
grupos nos Estados Unidos. Sua movimento de libertação
preocupação, num primeiro mo- homossexual foi a
mento, foi com a descriminalização afirmação de que a
da homossexualidade, procurando homossexualidade não é
assimilar as práticas sexuais destes uma doença.
sujeitos dentro do marco conceitual
da cultura dominante. Trata-se de
um incipiente movimento homosse-
xual, então denominado Movimento era considerada uma doença nos

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


Homófilo” (CALVANI, p. 252). meios científicos e um pecado
Posteriormente surgiram as Pa- gravíssimo nos meios religiosos.
radas do Orgulho LGBT. Musskopf Musskopf também comenta:
também comenta: “Tendo como “A principal consequência das
evento fundador e unificador a Re- mudanças, tanto no campo da
volta de Stonewall, ocorrida em 28 pesquisa científica quanto do
de junho de 1969, evento que deu movimento de libertação homos-
origem às Paradas do Orgulho LGBT sexual foi a afirmação de que
no mundo inteiro, passou-se a falar a homossexualidade não é uma
em um Movimento de Libertação doença” (CALVANI, p. 254). De
Gay, articulando inúmeros grupos fato, na década de 70, a Academia
e organizações espalhadas pelo Americana de Psiquiatria deixou
mundo. A ideia de libertação... re- de considerar a homoafetividade
presentava a luta contra um sistema como uma doença. A Organização
social que oprimia um determinado Mundial de Saúde e o Conselho
grupo de pessoas por conta de suas Federal de Psicologia do Brasil
construções identitárias de gênero e adotaram a mesma atitude.
sexualidade” (CALVANI, p. 252). Tudo isso tem colocado a igreja
Lenta, mas seguramente, co- cristã numa situação crítica. Sua
meçou a haver mudança na forma tradição de 2.000 anos tem sido a
de se compreender a homoafeti- de condenar a homoafetividade. E,
vidade. Antes, a homoafetividade agora, o que fazer?

37

Conclusão Homossexualidade,
isto era um tema
PÁGINAS 26 A 39, 2013
HOMOAFETIVIDADE E CRISTIANISMO - UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

Gottfried Brakemeier escreveu


um excelente texto que utilizo ago- marginal, se é que
ra como conclusão. Sua reflexão é era considerado
a respeito da Igreja Luterana, mas,
digno de registro.
Casos específicos
acredito, vale para todos nós.
eram considerados
Em primeiro lugar, estabelece
da competência da
ele que a homoafetividade é ma-
medicina, não da
téria de conflitos. Por um lado, é
teologia.
considerado como grave pecado,
que contraria o ensino bíblico e a
natureza. Por outro lado, há a con-
sideração de que a homoafetividade digno de registro. Casos específicos
sempre existiu e sempre vai existir, eram considerados da competên-
sendo um comportamento perfei- cia da medicina, não da teologia”
tamente normal. (CALVANI, p. 328).
É claro que as duas posições são Graças a isso, por um lado, está
inconciliáveis. Por isso, dentro das cada vez mais difícil “sustentar uma
igrejas cristãs, está em andamento inflexível atitude de rejeição”. Por
um grande debate. Muita paixão outro lado, porém, está também
está envolvendo o atual debate. muito difícil a abertura e o acolhi-
Brakemeier escreve assim: “É mento à homoafetividade.
notável, porém, ter havido nas úl- Algumas igrejas têm se disposto
timas décadas um despertamento a discutir o problema. Algumas
para a problemática e um conside- igrejas têm sido mais abertas e
rável processo de aprendizagem. tolerantes em reação à homoafeti-
Ainda nos anos 80, o luterano Hel- vidade. Brakemeier assim resume
GERSON CORREIA DE LACERDA

mut Thielicke, em sua volumosa as posições atuais:


ética teológica, diagnosticou alto “1) É compartilhada por todas
grau de perplexidades dos teólogos as igrejas a oposição à violência
perante o fenômeno, para o que contra pessoas homófilas...; 2) Há
lhe é exemplo um personagem amplo consenso também no que
tão ilustre como Karl Barth. Ho- diz respeito aos direitos civis dos
mossexualidade, isto era um tema homófilos...; 3) Cresce nas igrejas
marginal, se é que era considerado a ênfase na dignidade das pessoas

38
com orientação homófila” (CAL- co para que Gullinho passasse a se
VANI, p. 333, 334). aceitar como ser humano normal.

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


Termino voltando à fábula do Será que a igreja cristã não vai
Rubem Alves. Quem resolveu o ser, mais uma vez, obrigada a aceitar
problema do gato Gullinho não e a se curvar diante do desenvolvi-
foi o seu pai, não foram os seus mento do conhecimento científico
familiares, não foi a igreja. Quem o para rever seus posicionamentos
ajudou realmente foi um professor, históricos em relação á homoafe-
que utilizou um raciocínio científi- tividade?

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Rubem. Pimentas – para provocar um incêndio, não é preciso fogo. São Paulo: Editora Planeta
do Brasil, 2012.
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from the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth Century. Chicago and London: The
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39
HOMOSSEXUALIDADE,
PÁGINAS 40 A 55, 2013
HOMOSSEXUALIDADE, PSICANÁLISE E RELIGIÃO CRISTÃ

PSICANÁLISE E
RELIGIÃO CRISTÃ
A princípio, embora pareça

Leontino Farias dos Santos*


A homossexualidade, abor- elementar a definição de termos
dada a partir da psicaná- aparentemente bem conhecidos,
lise e da religião, evidencia por uma questão didática, enten-
diversos questionamentos. demos não ser demais esclarecer
Uma visão científica mais o significado de alguns, embora
específica também não é
sempre recorrentes, relacionados
capaz de proporcionar de-
às práticas sexuais de homens e
nominador comum para
explicar suas origens. No mulheres. Há termos que na atua-
campo religioso as dificulda- lidade não podem ser confundidos
des persistem em relação ao para facilitar o entendimento dos
homossexual, quase sempre relacionamentos humanos sob o
considerado um pecador tema da sexualidade. Quando se
contumaz que age fora dos usa palavras como “homoafetivi-
padrões bíblicos. dade” e “homossexualidade”, vale
esclarecer.
A “homoafetividade”, em par-
ticular, refere-se à preferência e à
LEONTINO FARIAS DOS SANTOS

cumplicidade afetiva entre duas


pessoas do mesmo sexo (dois
homens ou duas mulheres), que
se unem, que se amam, que se
desejam, que trocam carinhos,
* Pastor e professor na Faculdade de Teologia de São
Paulo, da Igreja Presbiteriana Independente do Bra-
de forma sensual, erótica, enfim,
sil - FATIPI. Palestra proferida na Semana Teológica afetiva, podendo dessa maneira
(15-19.10.2012).

40
até se relacionarem sexualmente. por pessoas de ambos os sexos.
É, portanto, um termo amplo ge- De modo geral, tudo que se

REVISTA
ralmente usado para caracterizar o refere à sexualidade, em particu-

REVISTA
HOMOSSEXUALIDADE, PSICANÁLISE E RELIGIÃO CRISTÃ
amor entre duas pessoas do mesmo lar, no contexto da religião cristã,
sexo, podendo, inclusive, chegar a sempre foi motivo de polêmicas,

TEOLOGIA
uma união conjugal. desencontros, contradições. De

TEOLOGIA
Por outro lado, a “homossexu- várias formas o sexo e tudo que lhe

E SOCIEDADE
alidade”, de maneira mais restrita, diz respeito é sempre considerado
pode referir-se apenas à preferência um tabu, coisa suja, tema que não

E SOCIEDADEVol.
sexual entre pessoas do mesmo se discute no ambiente religioso
sexo, sem que necessariamente cristão, tido como sagrado. To-
envolva compromissos afetivos e davia, como afirmou Gardner 1
mesmo conjugais. Em síntese, toda “o sexo não pode ser simples fato
relação homoafetiva pode incluir ‘acidental’, sem significação, pois é

Vol.1 nº
relações homossexuais, mas nem parte do plano do Criador.”

1 nº
toda relação homossexual inclui, A rigor, desde os primórdios

10,10,
necessariamente relações homoa- da história da humanidade, o ser

outubro
fetivas. As mulheres homossexuais humano tem tido dificuldades

outubro
são também conhecidas como para referir-se à sua sexualidade.

de 2013,
“lésbicas”, assim denominadas por E tudo começa quando se procura

de São
influência do nome da ilha grega de equacionar a relação do indivíduo

2013,
Lesbos, terra da poetisa Safo, que com o seu próprio corpo. Enver-

Paulo,
viveu no século VII a. C. Safo teria gonhados diante da nudez de seus

São
endereçado às mulheres jovens corpos, após o pecado, a tradição

SP Paulo,
de seu tempo, poemas de amor, bíblica diz que Adão e Eva ima-
típicos da época clássica, conforme ginaram uma maneira de superar
fragmentos de sua obra. o problema da relação com o seu
SP

Ainda sobre os termos relacio- corpo “ao coserem para si” uma
nados à sexualidade humana, vale vestimenta de “folhas de figueiras”
esclarecer que a “heterossexualida- que, apesar de frágeis, serviriam
Leontino Farias dos Santos
PÁGINAS 40 A 55

de”, porém, refere-se à preferência provisoriamente para esconder a


de um indivíduo, por pessoas do nudez. Em se tratando de assunto
sexo oposto, enquanto que a “bis- tão complexo quanto a homosse-
sexualidade” está relacionada a
1 Ver E. C. Gardner em Fé bíblica e ética social, São
preferência de certos indivíduos Paulo: ASTE, 1965, p. 255.

41
xualidade, aqui em destaque, den- em diversos campos da ciência,
tro ou fora do universo religioso, no sentido de se descobrir suas
PÁGINAS 40 A 55, 2013
HOMOSSEXUALIDADE, PSICANÁLISE E RELIGIÃO CRISTÃ

certamente que as divergências são origens. A escolha homossexual


mais comuns esteve em discussão entre os limi-
Queiramos ou não, o corpo e as tes da normalidade e do patológico
relações que o indivíduo tem com pela medicina psiquiatra, e tam-
ele tem sido, para uns, a “prisão da bém sob a influência dos sistemas
alma” (Platão); para outros, “pedra eclesiástico e político durante
de tropeço” que pode comprome- décadas, no século XIX. Nessa
ter a santificação da vida (Orígenes, época, considerou-se a homosse-
um pensador judeu-cristão) e, para xualidade como uma experiência
Sartre (filósofo existencialista do própria do campo das perversões
século XX), que ironicamente sexuais. Por isso, pesquisadores
considerou que nossa relação com o imaginaram a homossexualida-
corpo tem sido motivo de vergonha de como uma questão básica do
e nojo, entre muitos outros. É nesse comportamento humano e muitos
contexto que a sexualidade humana psicólogos, chegaram a diagnos-
se desenvolveu e, em particular, a ticar a homossexualidade como
homossexualidade, historicamente uma patologia caracterizada por
admitida e praticada por uns, como um desvio da norma.
na Grécia Antiga, onde era social- Também discutiu-se a possi-
mente aceita, dentro de certos bilidade da existência de fatores
limites, ou banida e rejeitada por genéticos como determinantes
outros povos. Por muito tempo, para a prática homossexual; ou
as sociedades ocidentais desapro- mesmo houve quem considerasse
varam práticas homossexuais e e preferisse afirmar que fatores
chegaram a punir legalmente os que ligados à socialização, isto é, que
LEONTINO FARIAS DOS SANTOS

se decidiam por elas. experiências de contato entre


pessoas do mesmo sexo poderiam
Controvérsias ser determinantes para esse tipo
de prática sexual. Contribuiria
generalizadas sobre para isso a grande variabilidade do
a homossexualidade comportamento homossexual e do
A princípio, o tema homossexu- grau de aceitação ou reprovação que
alidade foi motivo de especulação este recebe.

42
casais homossexuais, com os mes-
Da origem do termo mos direitos assegurados aos casais
Tendo em vista a maneira como a

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


heterossexuais.
homossexualidade era praticada, os
que a aceitavam eram de várias for-
mas considerados. Os termos mais A propósito de uma
comuns, utilizados eram sodomitas,
invertidos, doentes mentais ou
abordagem mais
perversos, entre outros. Em 1860, científica
o termo “homossexualidade” foi De acordo com Luciana Ribei-
criado pelo médico austro-húngaro ro Marques, ao discutir sobre “As
Karoly Maria Benkert. Explicando, homossexualidades na Psicanáli-
o seu sentido, Benkert afirmava: se”, referindo-se ao enfoque que
“Além do impulso sexual dos ho- era dado ao problema no século

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


mens e das mulheres, a Natureza, XIX, temos: “De forma geral, a
do seu modo soberano, dotou à nas- maioria dos sexólogos desta época
cença certos indivíduos masculinos abordava o comportamento sexual
e femininos do impulso homosse- misturando estreitamente a bisse-
xual. (...) Esse impulso criaria, de xualidade, a homossexualidade, o
antemão, uma aversão direta ao hermafroditismo e os fenômenos
sexo oposto.” (BENKERT, 1860, do travestismo. Na realidade, o
citado por MARQUES, Luciana, discurso da ciência, atrelado com a
2010, p. 468). religião e a política, inventava seu
Nas últimas décadas do século vocabulário, a fim de adotar uma
XX, após vários movimentos de definição “científica” para certas
contestação, muitos homossexuais práticas sexuais ditas patológicas.”
criaram coragem e começaram a (MARQUES, 2010, p. 468)
manifestar publicamente sua se- Com o tempo tornaram-se
xualidade, declarando tratar-se de conhecidas as controvérsias sobre
uma opção sexual, agora assumida, a origem e natureza do homosse-
e a si mesmo se declararam “gays” xualismo pelos geneticistas, que
(termo de origem inglesa - “ale- identificam esse fenômeno como
gres”). Com esse posicionamento, decorrente da genética de cada
começaram a reivindicar o fim da indivíduo; como decorrente do
discriminação e o reconhecimento meio ambiente familiar; ou mesmo
legal de seu status, das uniões de como reflexo da educação recebida

43
durante o período de formação de exemplo, há os que entendem ser
cada pessoa. O geneticista Dean muito elementar e simplista cien-
PÁGINAS 40 A 55, 2013
HOMOSSEXUALIDADE, PSICANÁLISE E RELIGIÃO CRISTÃ

Hamer, do Instituto Nacional de tificamente a explicação da base


Saúde dos Estados Unidos, por genética para se justificar o homos-
exemplo, sustenta a tese de que sexualismo como “quase-doença”,
a prática homossexual tem deter- determinada em relação a certos in-
minação genética. Ele diz ter des- divíduos. Há os que preferem acre-
coberto genes numa determinada ditar que a formação intra-familiar
região, à qual chamou de GAY-1, do homossexual (tipo de relação
associados ao homossexualismo. da criança com o pai, com a mãe,
Essa hipótese, contudo, não foi bem com os irmãos ou tipos de roupa,
acolhida no meio científico norte brincadeiras, entre outros) seriam
americano, embora seus seguidores mais influentes na determinação da
vejam nessa teoria uma certa lógica: homossexualidade do que os fatores
“se os genes transmitem as carac- genéticos. É o que pesquisa Daryl
terísticas hereditárias e contêm Bem, da Universidade de Cornell,
‘instruções’ para a fabricação das nos Estados Unidos.
substâncias que fazem os organis-
mos funcionarem, também poderia
lançar a probabilidade de homos- Sigmund Freud
sexuais (assumidos ou não) terem (1856-1939) e a
filhos também homossexuais”. Essa homossexualidade
tese é considerada determinista,
uma vez que o indivíduo não teria do ponto de vista da
no homossexualismo uma opção Psicanálise
de escolha ou estilo de vida, mas, As primeiras discussões sobre a
desta forma, seria resultado de uma homossexualidade na Psicanálise,
LEONTINO FARIAS DOS SANTOS

variação genética. datam de 1908, quando Sigmund


Essa tendência bio-geneticista Freud levantou a questão com dois
não foi apoiada por psicanalistas de seus seguidores, Ferenczi e Jung,
nem por psicólogos. Embora se diga ao tentar mostrar a relação íntima
que há base genética em relação a que invariavelmente sentia existir
certas características humanas e entre paranóia e homossexualidade
suas tendências para o desenvol- latente. A partir daí, muitos artigos
vimento de algumas doenças, por sobre paranóia foram publicados

44
REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE
Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP

Freud opõe-se à ideia de separar os
homossexuais dos outros seres humanos como
um “grupo de índole singular”, pois “todos
os seres humanos são capazes de fazer uma
escolha de objeto homossexual e que de fato
a consumaram no inconsciente.” Citando o
complexo de Édipo, Freud faz referência à
ligação libidinal do filho para com o pai e
da filha para com a mãe, além das ligações
do filho com a mãe e da filha com o pai.
Assim, diz ele, o número de homossexuais
que se proclamam como tais, “não é nada em
comparação com os homossexuais latentes”

45
no contexto da Psicanálise. Nesses presidiários que, na falta de um
artigos, escritos por Freud e, prin- objeto sexual convencionalmente
PÁGINAS 40 A 55, 2013
HOMOSSEXUALIDADE, PSICANÁLISE E RELIGIÃO CRISTÃ

cipalmente no texto anteriormente considerado normal (termo utiliza-


escrito, em Três ensaios sobre a do por Freud) ou sua imitação, são
sexualidade (1905)2, o homosse- capazes de adotar, e obter prazer
xualismo assume o caráter de um com o objeto do mesmo sexo. E
“comportamento invertido” e que acrescenta Freud, “Os invertidos
pode ser visto sob três aspectos: também diferem quanto à ideia
O “invertido absoluto” – no que fazem da peculiaridade de seu
qual se estabelece a escolha do instinto sexual. Alguns conside-
objeto sexual exclusivamente a ram sua inversão algo tão natural
partir do seu próprio sexo (essa quanto uma pessoa normal aceita a
escolha é decorrente de uma ori- orientação de sua libido e afirmam,
gem narcísica); “pessoas do sexo energicamente, que sua inversão é
oposto nunca são objeto de seu tão legítima quanto a atitude dita
desejo sexual, deixando-os frios e, normal; outros se revoltam contra
às vezes, provocando-lhes mesmo a própria inversão, que consideram
aversão sexual. Em conseqüência uma compulsão patológica.
disso, caso sejam homens, tornam- Quando Freud se refere à “esco-
se incapazes de praticar o ato sexual lha de objeto”, o faz para designar
ou pelo menos não encontram nele uma escolha homo ou heterossexu-
nenhum prazer.” al, e propõe o conceito de bissexu-
O “invertido anfigênico” – que alidade estrutural para todo o ser
inclui os hermafroditas psicosse- humano. Para ilustrar, referimo-nos
xuais, quando seus objetos sexuais a Luciana Ribeiro Marques, em
tanto podem ser do mesmo sexo seu trabalho sobre “As homosse-
como do sexo oposto, não possuin- xualidades na Psicanálise”, página
LEONTINO FARIAS DOS SANTOS

do a característica da exclusividade; 478, apresentado à Universidade


E o “invertido ocasional”, isto Veiga Filho, no Rio de Janeiro, em
é, quando o indivíduo está exposto outubro de 2010, ao referir-se à
às influências de certas condições “escolha de objeto” quando diz: “...
exteriores, como ocorre com os verificamos que a escolha de objeto
não tem nenhuma relação com a
2 FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da anatomia do sujeito e muito menos
sexualidade. In S. Freud, Obras Completas de Sigmund
Freud, Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1905. com a escolha de posição sexuada

46
na partilha dos sexos. Ou seja, um características especiais. Em sua
homem biológico (posse do pênis) teoria, “a liberdade de dispor igual-

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


que se situa ou se reconhece como mente de objetos masculinos e fe-
homem enquanto sua posição se- mininos... é a base original da qual,
xuada, tem como possibilidade de mediante a restrição num sentido
escolha um homem biológico ou ou no outro, desenvolvem-se tanto
uma mulher biológica para ocupar o tipo normal como o invertido.”
o lugar de seu desejo de satisfação (FREUD, 1905/1996, p. 137-138).
enquanto objeto de amor.” Ainda referindo-se aos “inverti-
Por conta do que acima temos dos”, Freud diz que seu comporta-
assinalado, Freud opõe-se à ideia de mento tanto pode datar do princí-
separar os homossexuais dos outros pio da existência da pessoa, de uma
seres humanos como um “grupo época tão remota quanto possa a

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


de índole singular”, pois “todos os sua memória alcançar, como tam-
seres humanos são capazes de fazer bém pode manifestar-se um pouco
uma escolha de objeto homossexual antes ou depois da puberdade. Pode
e que de fato a consumaram no ser algo que persista durante toda
inconsciente.” Citando o complexo a vida ou desaparecer temporaria-
de Édipo, Freud faz referência à mente, podendo ainda constituir-se
ligação libidinal do filho para com em um episódio isolado no processo
o pai e da filha para com a mãe, de um desenvolvimento normal.
além das ligações do filho com a Pode ainda ser decorrente de uma
mãe e da filha com o pai. Assim, experiência penosa com o objeto do
diz ele, o número de homossexu- sexo oposto.
ais que se proclamam como tais, Ao referir-se à natureza da inver-
“não é nada em comparação com são, Freud diz que ela nunca deverá
os homossexuais latentes”. Desta ser explicada como algo congênito
forma, pode-se concluir que a quan- ou resultante da degenerescência,
tidade de homossexuais latentes é mas, deve-se levar em consideração
muito superior à de homossexuais o fato de poder estar associada com
declarados! uma disposição bissexual e que se
Nos “Três ensaios sobre a sexu- constitui, portanto, num distúrbio
alidade”, Freud afirma ainda que que afeta o instinto sexual no curso
a Psicanálise se recusa considerar de seu desenvolvimento.
os homossexuais possuidores de Freud insistiu em afirmar que

47

o problema da homossexualidade Freud também
deve ser investigado a partir da teve dificuldades
PÁGINAS 40 A 55, 2013
HOMOSSEXUALIDADE, PSICANÁLISE E RELIGIÃO CRISTÃ

infância do indivíduo e destacou em sua época,


como conceitos básicos para que para ser aceito,
se entenda melhor essa situação, a em relação à sua
pulsão (que não reconhece a ana- posição quanto a
tomia do corpo e que o desejo se homossexualidade.
dá independentemente desta) e o Foram muitas as
objeto. Ele diz que “a pulsão existe polêmicas, desde
primeiro, independentemente de o surgimento
seu objeto.” O problema está em da Psicanálise
compreender por que a evolução e a partir da
conduzirá o indivíduo a uma es- transmissão
colha de objeto homossexual ou
dela pelo seus
heterossexual, apresentando o
discípulos.
segundo caso tantos problemas
quanto o primeiro. Pode-se, assim,
optar por um dos dois caminhos,
em consequência da bissexualidade, um rapaz que se pareça com eles
anatomofisiológica e psíquica, que próprios e a quem possam amar
caracteriza o ser humano. como amaram e foram amados por
Ângela Louzada Santos, em seu sua mãe.” (SANTOS).
artigo “Homossexualismo e Psica-
nálise”, sintetizando as condições Freud e os fatores
em que os invertidos se manifestam
diz: “...os invertidos, nos primeiros determinantes da
anos de sua infância, atravessaram homossexualidade
LEONTINO FARIAS DOS SANTOS

uma fase de fixação muito intensa, São apontados três fatores que
porém muito curta, em uma mulher parecem determinar o homossexua-
(geralmente sua mãe); e, depois lismo. O primeiro, a forte ligação do
de ultrapassada esta fase, eles se indivíduo com a mãe; uma forte e
identificam com uma mulher e incomum fixação com a mãe, pode
se consideram, a si próprios, seu impedir que um indivíduo venha a
objeto sexual. Isto é, partem de se interessar por outra mulher. O
uma escolha narcísica, procuram segundo, o narcisismo, que faz com

48
que a pessoa tenha menos trabalho, ser humano.
ao se ligar ao seu igual, preferindo, • e) Reagiu contra atitudes dis-

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


assim, alguém do mesmo sexo. criminatórias em relação aos
De acordo com Ferenczi, um dos homossexuais do seu tempo,
seguidores de Freud, a estagnação bem como, contra qualquer
na fase narcísica faria com que forma de opressão direcionada
“...o amor fosse para eles sempre aos mesmos.
condicionado por um órgão genital • f) Posicionou-se contrário aos
semelhante ao deles.” Finalmente, teóricos que atribuem à ho-
Freud aponta problemas relativos mossexualidade um caráter
à “ travessia da castração”, isto é, de degenerescência, mas con-
sofrimentos relativos às perdas e siderou que é da competência
à ideia de morte que deixariam a do analista, somente buscar

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


pessoa acomodada, acovardada na elucidar o trilhamento da libido
sua psicossexualidade. do indivíduo, que culminou na
Síntese do pensamento de escolha de objeto e pesquisar
Freud sobre a homossexualidade: seus mecanismos.
• a) Em nenhum momento • g) O psicanalista não deve
Freud considerou a homosse- procurar “curar” um sujeito
xualidade uma anomalia ou o homossexual de sua orientação.
homossexual um possuidor de • h) Em resposta a uma mãe
comportamento perverso. aflita pela escolha homossexual
• b) Não considerou que os do filho, Freud escreveu: “A ho-
homossexuais cometem, por mossexualidade, evidentemen-
sua orientação sexual, atitudes te, não é uma vantagem, mas
contra a “natureza humana”. não há por que ter vergonha
• c) Considerou que os homos- disso, não é um vício, nem um
sexuais não devem ser diferen- aviltamento e não poderia ser
ciados em relação aos demais qualificada como doença (...) é
indivíduos; uma grande injustiça perseguir
• d) Afirmou que qualquer pes- a homossexualidade como um
soa pode escolher um objeto crime e também uma cruelda-
amoroso do mesmo sexo, uma de.” (FREUD, 1935, citado
vez que existe uma bissexuali- por Roudinesco, In: Dicionário
dade psíquica constituinte do de Psicanálise, p. 353)

49
A homossexualidade relação a homossexualidade, como
é possível constatar:
do passado ao atual
PÁGINAS 40 A 55, 2013
HOMOSSEXUALIDADE, PSICANÁLISE E RELIGIÃO CRISTÃ

Em 1921, a Associação Psica-


contexto social nalítica Internacional (IPA), baniu,
Obviamente, Freud também através de decisão do “Comitê
teve dificuldades em sua época, Secreto”, o exercício da Psicanálise
para ser aceito, em relação à sua por homossexuais, sob a alegação
posição quanto a homossexualida- de que a análise não seria capaz
de. Foram muitas as polêmicas, de “curar” os homossexuais de sua
desde o surgimento da Psicanálise “inversão”. Vale lembrar que essa
e a partir da transmissão dela para Associação foi dirigida por Ernest
os discípulos de Freud. Apesar das Jones que, em carta a Freud, che-
influências e persistência de Freud, gou a consultá-lo se deveria aceitar
houve uma “puritanização” da Psi- um homossexual na Associação.
canálise, principalmente por parte Em sua resposta, Freud disse que
de analistas norte-americanos, que não concordava com ele, pois “não
tinham dificuldades para aceitar se pode excluir essas pessoas sem
homossexuais para a formação outras razões suficientes...” Apesar
como psicanalistas. Ernest Jones, de tudo, da posição contrária de
principal biógrafo de Freud, foi Freud, nessa época, a Associação
contra ele, pois achava que a “ho- Psicanalítica Internacional passou
mossexualidade é um crime repug- a proibir homossexuais em sua
nante; se um dos nossos membros sociedade.
o cometesse, seríamos objeto de Por outro lado, em 1973, a
grande descrédito”, afirmou Jones Associação Psiquiátrica America-
(JONES, citado por Roudinesco, na (APA), deixou de considerar a
In: Dicionário de Psicanálise, p. homossexualidade como doença,
LEONTINO FARIAS DOS SANTOS

353). Ana Freud, filha de Sigmund graças a ações de ativistas gays (em
Freud, também foi contra o pai, a 1970 e 1971), que invadiram o
ponto de deturpar sua teoria. encontro anual da APA.
Apesar desses opositores, contu- Em 1993, a Associação Inter-
do, as Associações Internacionais de nacional de Psicanálise (IPA), can-
Psiquiatria, Psicanálise e Psicologia celou sua decisão de 1921, e, após
alteraram suas posições anteriores, a realização de um manifesto com
ou aderiram a novos conceitos em duzentas assinaturas, a Organização

50

Quando se fala em anfimixia como metáfora para
“ajuda pastoral”, não referir-se á combinação dos erotis-

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


significa a legalização mos com vistas a uma biologia do
ou a extensão da prazer). Isto que dizer que a criança
bênção eclesiástica pode transferir sua libido ao mesmo
às uniões entre tempo para o homem (o pai) e para
homossexuais. a mulher (a mãe). Ao que parece,
de uma forma ou de outra, as atra-
ções entre homens e mulheres, a
Mundial de Saúde retirou a prática geração de antipatias e simpatias,
homossexual de sua classificação nossos desejos ou repulsas sexuais
internacional de doenças. Como em relação ao outro, ainda precisam
reflexo dessa mudança, depois do ser melhor explicados e entendidos.

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


Congresso do IPA, em Barcelona,
vários analistas didatas se declara- Homossexualidade
ram homossexuais. e religião cristã
Em 2009, uma psicóloga, que se Diante do que foi visto até
propunha a “curar” a homossexu- aqui, percebe-se que a questão
alidade, considerando-a como um da homossexualidade, apesar dos
transtorno psíquico e a heteros- avanços nessa discussão, continua
sexualidade como a única possibi- sendo um tema complexo, de difícil
lidade aceita, foi processada pelo entendimento, e não será diferente,
Conselho Federal de Psicologia, no contexto da religião cristã.
conforme a Resolução 01/1999 Apesar das dificuldades para
que proíbe o julgamento, pelos aceitação dos homossexuais no
psicólogos, da homossexualidade ambiente sagrado da religião cristã,
como doença. textos de teologia moral3, publica-
Em síntese, pelo que se pode dos no final do século XX, sobre
concluir, dessa leitura sobre a o homossexualismo, tanto de ca-
homossexualidade no âmbito da tólicos como de protestantes, já
cultura científica e da Psicanálise, demonstram uma certa abertura
em particular, é que todos seríamos ao considerarem que já não se
ambissexuais e anfieróticos (refere-
se à fusão de dois ou mais erotismos
3 Johannes Grundel, Temas atuais da teologia moral,
numa mesma pessoa; Ferenczi usa Petrópolis:Vozes, 1973.

51
pode condenar irrefletidamente o nenberg4, em artigo publicado na
homossexual como um indivíduo de Revista Christianity Today, em
PÁGINAS 40 A 55, 2013
HOMOSSEXUALIDADE, PSICANÁLISE E RELIGIÃO CRISTÃ

comportamento pecaminoso contra 1996, afirma que de acordo com a


a natureza, embora continue afir- tradição cristã, não existe o que se
mando que, de acordo com a pre- tem chamado de “amor invertido
gação cristã, também não se pode e pervertido”. De maneira radical,
ignorar que há sentido na sexualida- diz que “as afirmações bíblicas so-
de humana na relação permanente bre homossexualidade não podem
entre um homem e uma mulher. ser relativizadas como se fossem
Para esses grupos, faz-se necessário, expressões culturais que hoje
mediante o conhecimento e a per- poderiam ser negligenciadas, sem
sonalização da sexualidade, que se comprometimento da mensagem
adote ajuda pastoral e terapêutica cristã como um todo.
para os homossexuais. Pannenberg critica os que espe-
Quando se fala em “ajuda pas- ram uma mudança na visão da Igreja
toral”, não significa a legalização em relação à prática da homos-
ou a extensão da bênção eclesi- sexualidade sob a tese de que “as
ástica às uniões entre homosse- afirmações bíblicas não possuíam
xuais nem que se idealizem tais o conhecimento da importância da
comportamentos e tendências, moderna antropologia”. Defende a
embora tais praticantes não sejam ideia de que ser homossexual signi-
desqualificados socialmente. O fica distanciar-se da norma para o
que se espera é que seja propiciado comportamento sexual aos homens
aos homossexuais possibilidades e às mulheres como filhos de Deus.
e esforços para que venham a se Desta forma, pensar diferente
habilitar à participação na vida re- significa por em risco o futuro da
ligiosa e eclesiástica. O princípio, Igreja, sujeita a possíveis divisões,
LEONTINO FARIAS DOS SANTOS

para tal procedimento, é o de que enfraquecimento, pois, ao afastar-se


o homossexualismo é uma falha dos princípios bíblicos e até admitir
doentia, razão pela qual não se e reconhecer uniões homossexuais,
pode responsabilizar moralmente
4 W. Pannenberg lecionou Teologia Sistemática na
ou penalmente, como se fazia an- Universidade de Munique e dirigiu o Instituto de Teologia
tigamente, os que preferem esse Ecumênica. Escreveu “Revelação e experiência homosse-
xual”, artigo que foi publicado em novembro de 1996 na
tipo de relação sexual. Revista Christianity Today e, recentemente, no Jornal “O
Estandarte”, órgão oficial da Igreja Presbiteriana Indepen-
O t e ó l o g o Wo l f h a r t Pa n - dente do Brasil.

52

“não estaria mais fundamentada na Quando se fala em
Bíblia e, sim, contra o testemunho “ajuda pastoral”, não

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


inequívoco das Escrituras”. Embora significa a legalização
seja essa a postura de Pannenberg, ou a extensão da
ele reconhece, porém, que a Igreja bênção eclesiástica
deveria ser tolerante em relação ao às uniões entre
homossexual e procurar compre- homossexuais.
endê-lo, induzindo-o ao arrepen- O que se espera é
dimento. que seja propiciado
Em artigo recentemente publi- aos homossexuais
cado na Revista Cristianismo Hoje possibilidades e
(junho/julho 2013), o Rev. Augus- esforços para que
tus Nicodemus Lopes5, seguindo de venham a se habilitar
forma semelhante a mesma linha de à participação na vida

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


pensamento de Pannenberg, afirma religiosa e eclesiástica.
que não é possível justificar o ho-
mossexualismo a partir das Escri-
provêm da desordem moral, como
turas Sagradas. Critica a chamada
resultado dos transtornos causa-
“teologia inclusiva”, segundo a qual
dos com a queda de Adão e Eva.
Deus, sendo amor, aprovaria todas
Ainda que reconheça que não é
as relações humanas, desde que este
possível para os que lêem a Bíblia
sentimento exista. De acordo com
com seriedade justificar as práticas
o professor Nicodemus, quem re-
homossexuais, afirma que tais in-
conhece a Bíblia “como a infalível e
divíduos carecem ou são objeto de
inerrante Palavra de Deus, não pode
compaixão e ajuda da Igreja.
aceitar a prática homossexual, a não
De modo geral as opiniões
ser como uma daquelas relações se-
acima, que têm tido grande reper-
xuais consideradas como pecamino-
cussão entre fiéis católicos e pro-
sas pelo Senhor, como o adultério,
testantes no Brasil, não só negam
a prostituição e a fornicação.”
a valorização da homossexualidade
Também o professor Nicodemus
e seu estilo de vida, como também
ressalta que deve haver “compai-
qualquer esforço quanto ao reco-
xão” em relação às pessoas que
nhecimento legal dessas uniões,
por não ser considerada legítima
5 Pastor presbiteriano, mestre e doutor em Teologia, com
formação na África do Sul, Estados Unidos e Holanda.
diante de Deus. Segundo o escritor

53
Carlos Fernandes6, ao referir-se à união contínua, pública e duradoura
legalização da união homossexual, entre as pessoas do mesmo sexo
PÁGINAS 40 A 55, 2013
HOMOSSEXUALIDADE, PSICANÁLISE E RELIGIÃO CRISTÃ

“Só confirma a desordem e o espí- como “entidade familiar”, enten-


rito confuso de uma geração que dida como sinônimo de “família”.
perdeu o seu rumo.” Todavia, no Através dessa Carta Pastoral, todos
Brasil, por exemplo, tal reconhe- os pastores foram orientados a agir
cimento (da união civil de pessoas com responsabilidade na orientação
do mesmo sexo) já ocorreu. Essas dos fiéis, tendo em vista o discerni-
pessoas passaram a ter seus direitos mento ético diante da necessidade
reconhecidos para fins de herança de tomarem decisões diante de
e outros benefícios. Deus, com liberdade e responsabi-
A Igreja Evangélica de Confissão lidade. O documento espera que se
Luterana no Brasil, a partir de um leve em consideração uma “opção
novo princípio de abordagem do radical por manifestações e gestos
problema da homossexualidade, que dêem lugar à graça e ao amor
emitiu, em 24/06/11, uma Carta de Deus”. (ALC)
Pastoral sobre homoafetividade.
O texto chama a atenção para a Considerações finais
importância do reconhecimento Como vimos, as relações homo-
do amor incondicional de Deus e, afetivas ou homossexuais, sempre
de igual modo, reconhece que os foram vistas pela sociedade de
homossexuais têm sido discrimi- maneira diferenciada, mesmo em
nados. Por conta dessa situação, contextos onde foram socialmente
encoraja os seus fiéis à prática reconhecidos. Dentro ou fora do
do respeito mútuo em relação às contexto religioso, os homosse-
“posições distintas, com diálogo xuais sempre estiveram sujeitos
franco, desarmado e fraternal.” O à discriminação, à intolerância, à
LEONTINO FARIAS DOS SANTOS

documento foi assinado pelo Pastor violência, sofrimento, perseguição,


-presidente, Nestor Paulo Friedri- rejeição, julgamento e morte. As
ch, cujo teor contempla a aceitação pessoas de orientação homossexual,
da decisão do Supremo Tribunal por serem discriminadas e estigma-
Federal (STF), que reconhece a tizadas, sempre estiveram sujeitas
a sofrimento, juntamente com seus
6 Carlos Fernandes é editor da Revista Cristianismo familiares.
Hoje, em artigo sobre o “Perigo da mordaça gay”, Revista
Cristianismo Hoje, junho/julho 2013, p. 19. Independentemente do que se

54
queira dizer e pensar sobre o indi- avanços em relação ao respeito,
víduo de comportamento homos- e à dignidade do homossexual na

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


sexual, a priori, seu julgamento e sociedade, faz-se necessário ter a
condenação moral ou religiosa, é humildade suficiente, sem sober-
indevido. A homossexualidade, ba, para ouvi-lo, para compreen-
não pode ser considerada como dê-lo e ajudá-lo a, se necessário,
um problema de um indivíduo compreender-se a si mesmo numa
que, de forma indigesta, tem sociedade complexa, desumana.
sido tratado como um pecador Ninguém tem o direito de jul-
inveterado, um sem-vergonha, gar, condenar ou “matar” com sua
um doente. A princípio, ele é um ideologia política ou econômica,
ser humano, um ser pensante, um com o seu moralismo, com a sua
ser com sentimentos e alma, um cultura ou com a ortodoxia de suas

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


cidadão do mundo e da história, crenças e de sua fé, aqueles por
um ser criado à “imagem e se- quem Cristo morreu na cruz, sejam
melhança de Deus”. Apesar dos ou não homossexuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. . In: S. Freud, Obras Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1905.
FRY, Peter e MACRae, Edward. O que é homossexualidade. 2ª. Edição São Paulo: Brasiliense, 1983.
GRUNDEL, Johannes. Temas atuais da teologia moral. Petrópolis: Vozes, 1973.
LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LOPES, Augustus Nicodemus. Um engano chamado teologia gay. In Cristianismo Hoje, no. 35, junho/
julho 2013.
PANNENBERG, W. “Revelação e experiência homossexual”. In: O Estandarte. São Paulo: julho, 2013.
ROUDINESCO, Elisabeth & MICHEL, Plon, Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Edi-
tores,1998.

55
SEXUALIDADE E
PÁGINAS 40 A 55, 2013
HOMOSSEXUALIDADE, PSICANÁLISE E RELIGIÃO CRISTÃ

AFETIVIDADE
Pastoral numa área de
sofrimentos e conflitos
Atualmente é possível perceber

Clayton Leal da Silva*


A sexualidade é intrínseca um forte apelo sexual nas mídias
ao ser humano. Ela faz parte e veículos de comunicação, no
de todos nós, manifesta-se
marketing, na propaganda, nas
em nossa natureza, em nosso
músicas, mas não se vê o mesmo
jeito de ser. Todos nós somos
seres sexuados. ímpeto no diálogo cristão sobre
A sexualidade permanece a vida afetiva e sexual. E assim,
presente, de forma velada enquanto a mídia enquadra coisas
em quase tudo. A sexuali- divergentes e sem nexo à sexuali-
dade e a afetividade ainda zação, com o forte apelo sexual,
são vistos como tabu, e não muitos não se servem do sentar-se
só nas igrejas, mas na socie- à mesa e ao sofá, para o esclareci-
dade como um todo.
mento cristão da vida afetiva.
No Brasil, e em tantos outros
países, tudo se vende, desde cer-
veja, cigarro, carro, roupas, etc.,
com propaganda de cunho sexual.
E o apelo excessivo pelas mídias é
LEONTINO FARIAS DOS SANTOS

evidente. Basta questionar-se, por


exemplo, sobre o que tem a ver,
cerveja com sexualidade ou o ci-
garro com sexualidade. E a respos-
ta é simples: nada. Pelo contrário
* Pastor da IPI de Botucatu, SP. Palestra para a Semana
Teológica da Faculdade de Teologia de São Paulo - FATIPI até, pois são antagônicas e ambos,
(15-19.10.2012).
cigarro e bebida, atrapalham a

56
atividade e o desempenho sexual. momento de sexualização de mas-
Mas, nas propagandas e comerciais, sas, onde tudo fala, cheira, canta

REVISTA
em anos passados já, a sexualidade, e transmite a liberalidade sexual.

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


Clayton
SEXUALIDADE E AFETIVIDADE - PASTORAL NUMA ÁREA DE SOFRIMENTOS E CONFLITOS
a cerveja e o cigarro formavam uma Não sei se há alguma estatística
mistura perfeita. sobre isso, mas seguramente, tudo

TEOLOGIA
E não é preciso ir longe. Preste, o que envolve sexualidade é o que

Leal da
por exemplo, atenção nas letras das mais ocupa a mente e a fala do

E SOCIEDADE
músicas. Você vai rapidamente per- nosso povo.

Silva
ceber o forte teor sexual das mú- Todavia, o mais interessante é
sicas contemporâneas brasileiras. que o conceito e a ideia de “se-
Ouça, nas cantinas e corredores xualidade” que mais discutimos e
dos colégios o assunto da gurizada. falamos é sempre feita e tratada em
Não se fala de química, matemática termos e modos informais, na mo-
ou literatura renascentista. Que dalidade do desejo, da prática, do

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


nada! A gurizada está tramando, bate-papo. Isso tanto nos botecos,
pensando, falando e vivendo rea- como nas lanchonetes, nos corredo-
lidades voltadas à sexualidade, e res dos colégios, nas universidades,
geralmente de modo errôneo. nas ruas, etc.
Quando você chega em casa Na informalidade do dia-a-dia
depois do trabalho, da faculdade, falamos muito sobre a sexualidade e a
e liga a TV, qual é o tema principal afetividade, mas quando vamos tratar
das novelas assistidas por milhões de do assunto de maneira séria e formal,
brasileiros e brasileiras? Duvido que ela vira um “tabu”, assunto proibido,
seja ecologia, economia solidária, que não se toca e que não se fala.
justiça social, desemprego, religião, E se, por acaso a abordagem do
Deus, etc. Você verá um grupo de tema sexualidade for a respeito de
artistas, escolhidos a dedo, entre os uma forma diferente daquela aceita
mais bonitos e sexualmente atraen- e praticada pela maioria, o assunto se
tes, nos padrões estéticos sociais que torna mais complexo ainda. Inclusi-
PÁGINAS 56 A 63

estão, à sua maneira vivendo cenas ve, em alguns lugares fora do Brasil a
de forte indução e às vezes perversão páatica da sexualidade diferenciada
sexual, na maioria das vezes, total- não é apenas objeto de discrimina-
mente diferentes da recomendação ção, mas crime, punido com pena
moral para uma vida cristã. de morte. Em outros, é doença;
Na verdade, vivemos em um perversão de caráter; e em outros,

57
como no caso da Igreja Evangélica no Sexualidade e pecado sempre anda-
Brasil, na sua maior expressão, é um ram de mãos dadas nos corredores
PÁGINAS 56 A 63, 2013
SEXUALIDADE E AFETIVIDADE - PASTORAL NUMA ÁREA DE SOFRIMENTOS E CONFLITOS

desvio de caráter e pecado capital, eclesiásticos. As pessoas disciplina-


tendo corpo e alma corrompidos das na Igreja, e qualquer estatística
no inferno. A Igreja Presbiteriana pode mostrar isso, tiveram, em sua
Independente do Brasil, no tocante maioria, relacionamentos sexuais
à sexualidade, não foge à regra. não aprovados. E os demais peca-
Aqui cabe uma pergunta: qual é dos, cuja lista não é pequena, pouco
o assunto sobre o qual quase nada foram observados pelos tribunais
se fala na Igreja, a não ser quando eclesiásticos, certamente porque
alguém “cai em pecado”? Sexuali- no imaginário eclesiástico são de
dade. Qual foi a ultima vez que você pequena monta, e não contam
ouviu um sermão ou um estudo muito. Na comunidade dos santos,
sério sobre isso, que não seja para a sexualidade fora do padrão mono-
condenar simplesmente, na sua gâmico heterossexual, sempre foi
Igreja, no seu Presbitério ou na sua um Pecado Capital na vida do fiel.
região? Consegue contar nos dedos Talvez aqui tenhamos encontrado
de uma mão? E pode ter certeza a causa pelas quais as pessoas qua-
que com cinco dedos em uma mão, se não comentam sobre sexo nas
ainda sim vão sobrar dedos. dependências da Igreja. Visto que,
E, neste caso específico, a ques- quando entram nos espaços “consi-
tão é: quando e como tratar do derados sagrados”, parece que todas
assunto? O que dizer de um adoles- se transformam em seres assexua-
cente, que confessou à sua psicóloga dos. Penso que não se manifestam
que a sua Igreja trata tudo como se porque temem ser condenada nesta
fosse pecado? Para ele, e para mui- vida e para toda a eternidade. Então
tos de nós, a Igreja vive pois, num silenciam enquanto o corpo continua
mundo à parte, como que isolada fervendo sexualidade.
dos assuntos do dia a dia e da vida
Assembleia Geral de
CLAYTON LEAL DA SILVA

das pessoas.
A dificuldade do tema e da Poços de Caldas
abordagem não é sem razão e se É visível que a IPIB conseguiu
fundamenta no fato de que a Igreja nos últimos anos, discutir e en-
sempre olhou com desconfiança frentar muitos temas, como por
para a questão da sexualidade. exemplo, a questão da ordenação

58

feminina, da presença da mulher Sexualidade e
em todos os segmentos da Igreja. pecado sempre

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


Na questão da sexualidade, de- andaram de mãos
morou-se cinco anos, desde a no- dadas nos corredores
meação da primeira comissão até eclesiásticos. As
que uma segunda comissão fosse pessoas disciplinadas
nomeada e o tema acabasse sendo na Igreja, e qualquer
tratado na Assembleia Geral em
estatística pode
mostrar isso, tiveram,
Poços de Caldas.
em sua maioria,
O documento aprovado em
relacionamentos
forma de pastoral sobre a sexuali-
sexuais não aprovados.
dade contém apenas duas páginas
e reafirma o usual, que a “sexua-

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


lidade saudável, plena, íntegra e
responsável, só é possível apenas humanos, apenas à sexualidade.
dentro dos laços do matrimonio e Por isso, especialmente no ramo
da heterossexualidade”. Curiosida- do direito, a Jurista e Desembar-
de, a pastoral tem 3.589 caracteres, gadora aposentada do Tribunal
dos quais 1.462 são citações de de Justiça do Rio Grande do Sul,
textos bíblicos, amostra clara de Dra. Maria Berenice Dias, no livro
como ainda temos dificuldade de intitulado União Homossexual, o
tratar e discutir o assunto. Preconceito e a Justiça, cuja primei-
No Brasil temos pelo menos três ra edição é do ano de 2000, utilizou
termos, três substantivos, que fo- o termo homoafetividade. Desde
ram usados para tratar desta ques- então, o termo é usado para mostrar
tão em pauta. O primeiro termo é o que o aspecto mais relevante dos
homossexualismo, abandonado pela relacionamentos não é de ordem
inconveniência do sufixo “ismo” es- sexual. A tônica é que a afetividade
tar ligado à ideia de doença. Depois do par, o afeto, independe do sexo.
se passou a usar homossexualidade. Contudo para nossa Igreja, a mu-
Este substantivo para designar o dança do substantivo, ou qualquer
amor entre pessoas do mesmo forma etimológica mais avançada
gênero, também não foi suficiente de designar esse modelo de relacio-
para diminuir o preconceito, pois o namento, não muda em nada o seu
termo reduz a relação entre os seres teor doutrinário-pastoral, no qual se

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reconhece, única e exclusivamente, fuja deste modelo bíbico,
como legitima e bíblica apenas a será considerado estranho e
PÁGINAS 56 A 63, 2013
SEXUALIDADE E AFETIVIDADE - PASTORAL NUMA ÁREA DE SOFRIMENTOS E CONFLITOS

sexualidade dentro do matrimonio reprovável para o perfeito


heterossexual. desenvolvimento da fé e da
De fato, no meu entender, uma maturidade espiritual”.
pastoral não tem a força e a legiti-
midade de uma resolução. O enten- Pastoral para
dimento pastoral não é no sentido,
stricto senso (sentido estrito), uma
sofrimentos e
lei ordinária ou constitucional. To- conflitos
davia, uma pastoral aprovada em Dito isso, retorno ao título desta
Assembleia Geral, no mínimo deve nossa conversa SEXUALIDADE E
ser compreendida de modo claro e AFETIVIDADE - pastoral numa
indubitável, como um posiciona- área de sofrimentos e conflitos. O
mento direcional da Igreja. holandês Nouwen, (NOUWEN,
Nesse sentido, a pastoral apro- Henri. O sofrimento que cura. São
vada na Assembleia Geral de Poços Paulo: Paulinas, 2002), faz uma
de Caldas, sobre a sexualidade hu- pergunta chave para a pastoral e,
mana, obviamente é o olhar muito para tratar deste tema da homoa-
mais abrangente sobre a homoafe- fetividade, ela é mais crucial ainda.
tividade que temos, pelo menos até Como falar de Deus num mundo
que outra pastoral sobre o mesmo marcado pela dor e o sofrimento?
assunto seja aprovada, refletindo O mundo da homoafetividade,
exatamente o pensamento, a pers- na mídia, parece glamoroso, to-
pectiva e o modo, como o corpo davia, o homoafetivo “religioso”
pastoral deve abordar e tratar o sofre muito. Sofre mais do que
assunto. pensamos. Aqui falo das pessoas
Diz a assim a Pastoral: que conheço, falo daquelas que já
“A IPIB sustenta e reproduz abriram os arquivos secretos da sua
CLAYTON LEAL DA SILVA

este ensino bíblico como mo- alma comigo, no gabinete pastoral.


delo para o desenvolvimento Falo de gente que chora, que geme,
de uma sexualidade saudável, que vive agoniada, sem espaço, sem
plena, íntegra e responsá- aceitação, gente como a gente, que
vel. Sendo assim, qualquer ora, que lê a Bíblia, que jejua, que
ato, decisão ou prática que canta no coro, que faz parte da

60

liderança, cujo “pecado capital” é Por vezes, tenho
ter atração afetiva pelo igual. Este pensado sozinho,

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


mundo é marcado por intenso so- enquanto atendendo
frimento: sofrimento físico, moral a essas pessoas
e espiritual. homoafetivas, envoltas
O psicólogo Ageu Lisboa, conhe- em meio a tanta dor,
cido em nosso meio, numa entre- angústia e sofrimento.
vista para a Folha de São Paulo, afir-
Sei que para esses
seres humanos,
mou que: “... essas pessoas trazem
homens e mulheres,
uma carga de sofrimento enorme,
Jesus também morreu,
mescla de culpa, rejeição familiar,
mas devo admitir que
sujeição, abusos sexuais...”. Ageu,
a teologia da conversão
que tem longa experiência em
e da regeneração

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


atender pessoas homoafetivas, na talvez não as abarque
mesma entrevista, chega a afirmar completamente e
que “não existem homossexuais não forneça todo
felizes”. (uso as palavras dele). o instrumental
Deixo com vocês a pergunta de necessário para a
Nowen: como falar de Deus, num compreensão e o
mundo marcado por tanta dor e pastoreio delas.
sofrimento?
Por vezes, tenho pensado sozi-
nho, enquanto atendendo a essas
pessoas homoafetivas, envoltas em cisa de outros instrumentais dife-
meio a tanta dor, angústia e sofri- renciados de análise e compressão.
mento. Sei que para esses seres hu- É preciso ir um pouco mais longe,
manos, homens e mulheres, Jesus caminhar mais algumas milhas. A
também morreu, mas devo admitir conversão é apenas o passo inicial
que a teologia da conversão e da visto que, depois disso, há uma
regeneração talvez não as abarque longa caminhada na estrada da vida
completamente e não forneça todo que, talvez nunca termine nesta
o instrumental necessário para a terra, e que, mormente chamamos
compreensão e o pastoreio delas. de santificação.
A sexualidade humana é algo A realidade da vida humana não
muito profundo e sagrado, que pre- é tão clara e diáfana como propõe a

61
pastoral da Igreja. Se você for since- O conflito pastoral aumenta muito
ro e honesto para consigo mesmo e na medida em que você acompa-
PÁGINAS 56 A 63, 2013
SEXUALIDADE E AFETIVIDADE - PASTORAL NUMA ÁREA DE SOFRIMENTOS E CONFLITOS

com a pessoa que está falando com nha o sofrimento da pessoa que é
você, você vai perceber que nem homoafetiva.
sempre um homoafetivo precisa de Contudo, depois da decisão de
conversão. Muitos deles parecem Poços de Caldas, a IPI tem direcio-
ter os sinais claros de uma pessoa namento claro e definido sobre a
que se encontrou com Jesus, que sexualidade humana e a homoafeti-
participa efetivamente da Igreja, vidade. Na IPI do Brasil não há mui-
que contribui, que fez sua pública ta opção. Concordando ou não, até
e sincera profissão de fé. que outra decisão seja tomada, vale
Alguns até se casaram e ti- este direcionamento. A IPI do Brasil
veram filhos. Cumprindo assim não aceita em nenhuma hipótese
socialmente e visivelmente a vida pessoas homoafetivas declaradas
prática e comum da doutrina cristã, publicamente dentro de seu arraial.
eles não têm nada de reprovável, A única exceção de aceitação
que exija uma conversão radical. para estas pessoas é caso eles/elas
Conheço, fora de nosso arraial, queiram tomar outro direciona-
pastores homoafetivos, cujo minis- mento de sexualidade. O membro
tério é efetivo, prático, consolador da Igreja tem de ser obrigatoria-
e aprovado pela igreja frequentada mente heterossexual, mantendo
pelos mais diferentes setores da relações apenas entre um homem
sociedade. e uma mulher, ainda assim, dentro
Dói na alma condenar alguém dos sagrados muros dos laços do
que já se sente condenado e em so- matrimonio.
frimento. Ninguém abre o coração Caso alguém queira ser aceito
para o pastor/a, nesta dimensão, publicamente como um homoa-
se não estiver em profundas dú- fetivo dentro de um seguimento
vidas e sofrimentos. Nestas horas, religioso, a IPI, por enquanto, não
CLAYTON LEAL DA SILVA

lembro-me das vezes que Jesus oferece este espaço de fé e de prá-


teve de enfrentar a lei e disse que tica da espiritualidade.
vale mais o Espírito do que a Lei.

62
REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE
Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP

A IPIB sustenta e reproduz este ensino bíblico
como modelo para o desenvolvimento de
uma sexualidade saudável, plena, íntegra e
responsável. Sendo assim, qualquer ato, decisão
ou prática que fuja deste modelo bíbico, será
considerado estranho e reprovável para o perfeito
desenvolvimento da fé e da maturidade espiritual

63
ASPECTOS JURÍDICOS DA
PÁGINAS 64 A 81, 2013
ASPECTOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA NA QUESTÃO DA HOMOFOBIA

RELAÇÃO ENTRE ESTADO


E IGREJA NA QUESTÃO
DA HOMOFOBIA
1. Introdução
César Augusto Luiz Leonardo*
Dedicado a demonstrar
a relação entre Estado e
Desde o início, deve-se res-
Igreja no que se refere ao saltar que o presente trabalho
essencialmente jurídico da buscará um enfoque essencial-
questão homofobia/homoa- mente jurídico dos aspectos da
fetividade, o presente artigo relação entre Estado e Igreja no
vai além. Mostra como a tocante ao tema da homofobia e
pós-modernidade afeta o da homoafetividade. Buscar-se-á
mundo jurídico e como as
passar ao largo de questões teo-
rápidas mudanças sociais e
lógicas1 e relativas à moral cristã,
as riquezas da vida tornam
impraticável o mito do lega- sobretudo por estarem para além
lismo, pelo qual o juiz, des- do propósito do presente trabalho
de os tempos de Napoleão, e da formação acadêmica do autor.
deveria dizer apenas o que Como todos sabem, a questão
a lei diz. é polêmica e, como tal, suscita
dúvidas e divergências. Não há
lugar para certezas, nem mesmo
CÉSAR AUGUSTO LUIZ LEONARDO

1 Como se sabe, muitas vezes, as discussões sobre a


homoafetividade resvalam em discussões teológicas e de
base bíblica, tais como a citação do espinho na carne de
Paulo (2 Coríntios 12.7) como referência a uma possível
luta contra a homossexualidade (embora diversos teólo-
gos sustentem que tal espinho tem referência a problemas
na visão); também há quem sustente que a amizade entre
*O autor é defensor público do Estado de São Paulo, Davi e Jonatas na verdade constituía relação homoafe-
especialista em direito civil e direito processual civil tiva, com fundamento em 1 Samuel 18.1-3 e 2 Samuel
pelas Faculdades Integradas Antonio Eufrásio de Toledo 1.26. Tais argumentos, por óbvio, encontram resistência
em Presidente Prudente, e mestre em direito processual e contra-ponto de muitos teólogos. Entretanto, não é o
civil pela USP. que discute no presente trabalho.

64
no âmbito jurídico. de Napoleon, modelo que pregava
Aliás, a título preambular, é bom a escravidão do juiz à lei – ele era

REVISTA
destacar que algumas característi- somente “a boca da lei” (bouche de

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


CésarTEOLOGIA
ASPECTOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA NA QUESTÃO DA HOMOFOBIA
cas que alguns apontam como sinal La loi), e como tal, deveria se limi-
da pós-modernidade2, tais como a tar a dizer o que a lei dizia5.

AugustoE SOCIEDADE
adoção de noções fluidas e flexí- Atualmente, sobretudo a partir
veis em detrimento de propostas da Constituição de 1988, com
de exatidão e as transformações inúmeras normas principiológicas

Luiz Leonardo
velozes3, geram consequências no e recheada com termos abertos
mundo jurídico. Há muito já não se (tais qual a dignidade da pessoa
acredita em um sistema baseado no humana, a isonomia etc.), o mister
legalismo, com previsão taxativa de de aplicação do Direito não pode
todas as hipóteses na lei, cabendo se limitar a um método simpli-
ao juiz simplesmente amoldar à hi- ficado de correspondência dos

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


pótese fática àquela abstrata previs- fatos em hipóteses taxativas, com
ta na lei, aplicando as consequências a aplicação automática dos efeitos
previamente estatuídas no diploma previamente contemplados na lei.
legislativo4. A riqueza da vida e a O próprio legislador, antevendo
velocidade das mudanças sociais – a insuficiência de previsão de
em contraposição à demora e lenti- condutas tipificadas no diploma
dão do processo legislativo – torna legal, faz uso de termos legais inde-
impraticável o mito do legalismo, terminados (ex.: função social da
cujo maior expoente fora o Códe propriedade) e de cláusulas gerais
(ex.: boa-fé objetiva), que permi-
2 O nome não é bem visto por alguns estudiosos, por se
enquadrar em um conceito que “a um só tempo, tudo e nada tem maior liberdade hermenêutica
pode significar” (GRAU, Eros Roberto. O direito posto e
o direito pressuposto. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, aos aplicadores do Direito6.
p. 98).
Se, por um lado, esta mudança é
3 “Reconheceu-se a existência de uma sociedade plural,
estimulando-se o respeito às diferenças, apesar de reafir-
mada a necessidade de respeito a anseios individualizados.
PÁGINAS 64 A 81

Tudo é muito volátil, mutável, adaptável aos interesses em 5 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoconsti-
voga. A palavra dogma cai cada vez mais em desuso” (FI- tucionalismo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 80.
LIPPO, Thiago Baldani Gomes de. Neoconstitucionalismo
6 Isto faz com que o papel desempenhado pelo juiz
e súmulas vinculantes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
brasileiro se aproxime muito do modelo anglo-saxão, que
Editor, 2012, p. 46-47).
tem como grandes referências o direito norte-americano
4 O texto da lei, que é o seu sinal linguístico, carece e o direito inglês. Neste modelo, o ao juiz é reconhecido
de interpretação para que se torne norma. É, portanto, o poder criativo do direito. Neste sentido: MARINONI,
da interpretação que transforma disposições (textos ou Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições
enunciados) em normas (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e de civil law e de common law e a necessidade de respeito
discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2ª ed. aos precedentes no Brasil. In: Revista de Processo. Ano
São Paulo: Malheiros, 2003, p. 79). 34, n. 172, p. 175-232, jun. 2009.

65
salutar para permitir ao Magistrado Explica-se com um exemplo
uma decisão mais justa e consen- elucidativo. Por outro lado, a in-
PÁGINAS 64 A 81, 2013
ASPECTOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA NA QUESTÃO DA HOMOFOBIA

tânea com os casos concretos, por timidade também tem proteção


outro, tal mudança paradigmática constitucional. Se, por um lado,
traz a reboque situações de insegu- a imprensa é livre, tal direito não
rança. Ora, uma maior liberdade permite que abuse desta liber-
interpretativa acarreta uma maior dade, divulgando notícias com o
gama de entendimentos possíveis, intuito de ofender ou de devassar
e, com isso, muitas dúvidas surgem a intimidade de quem quer que o
no dia-a-dia forense. seja. É dizer: o direito é assegurado
O direito tem duas espécies de “para uso, e não para abuso”8. Por
normas jurídicas: os princípios e as outro lado, o direito à intimidade
regras. As regras têm uma hipótese também não significa a revogação
e uma consequência, ao passo que os da liberdade de imprensa. Em al-
princípios apenas trazem um norte a gumas situações, é possível que as-
ser seguido. Quando uma regra está pectos íntimos de pessoas públicas
em conflito com outra, a de maior possam ser revelados em nome do
hierarquia (norma constitucional direito à informação e à liberdade
contra norma infraconstitucional), a de imprensa. Os limites são tênues
mais específica e a mais nova preva- e recíprocos, e só podem ser afe-
lecem sobre a de menor hierarquia, ridos à luz das peculiaridades do
a menos específica ou a mais antiga. caso concreto.
Aqui, ocorre a revogação. O mesmo Como ensina o mestre italiano
não ocorre com os princípios. Eles MICHELE TARUFFO, não há contra-
estão em constante atrito, mas não dição inerente entre garantias e
se revogam. Não há cogitar-se em abuso de direitos processuais, pois
hierarquia, especialidade ou crono- a garantia termina quando começa
CÉSAR AUGUSTO LUIZ LEONARDO

logia entre princípios. Quando dois o abuso, e vice-versa, de maneira


princípios estão em choque, deve ser
feita uma ponderação, prevalecendo São Paulo: Malheiros, 2010, p. 271-356.

aquele mais adequado para aquele 8 ARRUDA ALVIM NETTO, José Manoel de. Sobre as
multas instituídas nos arts. 14 e 18 do Código de Processo
caso em concreto7. Civil. In: YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício
Zanoide de. Estudos em homenagem à Professora Ada
Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, p. 639-659.
7 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula O autor ainda assevera que a lealdade processual deve
de. O começo da história: a nova interpretação constitucio- ser havido como um princípio fundamental do processo,
nal e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SILVA, evidenciando a “íntima relação entre o princípio da lealdade
Virgilio Afonso da (org.). Interpretação Constitucional. processual e do abuso do direito” (idem, p. 654).

66
que a Constituição não cobre nem Embora existam discussões sobre
legitima práticas abusivas: as ga- tal passagem e se esta previsão tem

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


rantias visam a proteger direitos, e algum efeito jurídico11, a doutrina
não condutas injustas ou danosas9. assevera que tal menção reflete
Tais elucidações, elementares valores culturais inspirados pela
para os juristas e não tão óbvias religiosidade do povo brasileiro,
para aqueles que não lidam com o que não é incompatível com o
estudo do Direito, são essenciais Estado laico, pois não faz menção
para a adequada compreensão do a nenhuma religião determinada,
tema em epígrafe, pois o conflito indicando a separação entre Estado
em testilha nada mais representa e religião12.
do que um choque entre duas fa- Por seu turno, o artigo 5º, nota-
cetas da do princípio da dignidade damente o principal dispositivo da
humana: a liberdade religiosa e a Constituição Federal, que prevê

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


liberdade sexual. Invoca-se, ainda, extenso rol de direitos e garantias,
neste contexto, a proteção consti- em seu inciso VI, preconiza que:
tucional à honra, à intimidade e à “é inviolável a liberdade de cons-
isonomia. ciência e crença, sendo assegurado
Se em um passado remoto o o livre exercício dos cultos religio-
Estado brasileiro já teve profundas sos e garantida na forma da lei, a
ligações com a Igreja Católica, que proteção aos locais de culto e suas
era a religião oficial brasileira, já liturgias”.
não é de hoje que o Estado passou Ora, é evidente que o direito
a ser laico, isto é, desvinculado fundamental à liberdade abarca a
de qualquer entidade religiosa.
Ser laico, todavia, não implica em Brasil de 1988: “Nós, representantes do povo brasileiro,
assumir um Estado “ateu” ou con- reunidos em Assembeia Nacional Constituinte para instituir
um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício
trário a qualquer religião. Ao revés, dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
a Constituição Federal de 1988, valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, fundada na harmonia social e compro-
logo em seu preâmbulo invoca a metida, na ordem interna e internacional, com a solução
proteção de Deus para a elabo- pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção
de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
ração do texto constitucional10. FEDERATIVA DO BRASIL.” (grifo nosso).

11 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade.


9 TARUFFO, Michele. Abuse of procedural rights: Constituição Federal Comentada: e legislação constitu-
comparative standards of procedural fairness. The Hague/ cional. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.
London/Boston: Kluner Law International, 1999, p. 13. 142.

10 Preâmbulo da Constituição da República Federativa do 12 Idem.

67
liberdade religiosa e até mesmo o cia ao que preconiza a Carta Maior,
direito a não ter qualquer religião. em seus princípios e regras.
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ASPECTOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA NA QUESTÃO DA HOMOFOBIA

Mas a Lei Maior do ordenamento Com tais ponderações, passa-se


jurídico brasileiro cuidou de prever à análise do atual cenário legislativo
expressamente não só a liberdade brasileiro no que pertine aos atos de
de crença – que diz respeito à ínti- homofobia.
ma convicção –, mas também a livre
manifestação de culto, compreen-
dida como manifestação exterior
2. Cenário jurídico
desta liberdade. brasileiro
Contudo, tal previsão não é A legislação atual prevê inúme-
suficiente para entender tal liber- ros crimes que não fazem qualquer
dade como absoluta, ou mesmo distinção quanto ao sexo ou à
que esteja acima de qualquer outro orientação sexual da vítima. Para
valor. Diversos incisos do mesmo o ordenamento jurídico-penal, se
dispositivo trazem valores que uma pessoa é ameaçada ou agre-
eventualmente podem entrar em dida fisicamente (lesões corporais,
conflito com tal liberdade. E, neste tentativa de homicídio etc.), o
ponto, só podemos concluir qual fato criminoso deve ser punido,
deve prevalecer, com a análise do independentemente das condições
caso concreto. O raciocínio é seme- pessoais da vítima. O mesmo ocorre
lhante àquele mencionado quanto à quanto aos crimes contra a honra
liberdade de imprensa no início da (calúnia, injúria e difamação), em-
exposição sobre o atual panorama bora exista a possibilidade de injúria
do ordenamento jurídico. qualificada, quando a ofensa resulte
Todas as leis do Estado devem es- de questões de raça, cor, etnia,
tar em conformidade com os valores religião ou procedência nacional
CÉSAR AUGUSTO LUIZ LEONARDO

constitucionais. Em caso de afronta – art. 140, §3º, do Código Penal,


a tais princípios e garantias, as leis pena reclusão de um a três anos, e
são inconstitucionais e, portanto, multa. Tal disposição não se con-
não são válidas. É a Constituição funde com o crime de preconceito
a Lei Fundamental do Estado, que ou racismo, previsto no art. 20, da
dá validade a todo o ordenamento lei n. 7.716/89, pois este não visa
jurídico, razão pela qual todas as leis ofender a honra subjetiva da vítima,
devem ser elaboradas em observân- mas sim, a manifestação de um

68
sentimento em relação a uma raça13. legislação específica sobre a dis-
Este último é um crime de maior criminação por orientação sexual.

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


gravidade, e a ofensa não é irrogada Todavia, no Estado de São Paulo,
somente contra uma pessoa, mas a Lei Estadual n. 10.948/2001
contra toda uma “raça”. prevê a possibilidade de imposição
O direito penal, como é cediço, de penas administrativas àqueles
é a ultima ratio, é dizer, o último re- que pratiquem atos de discrimi-
curso para a tutela de bens jurídicos nação por orientação sexual. Não
relevantes, que somente se justifica se trata de punição criminal, mas
quando todos os outros ramos do administrativa, com a possibilidade
Direito (civil, administrativo etc.) de imposição de multa àquele que
se mostrarem insuficientes para pratique as condutas previstas neste
proteger direitos. É a face mais diploma. Por ser uma lei estadual,
severa do Estado, reservada à pro- se limita ao território do Estado de

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


teção de direitos relevantes14. São Paulo.
Não há, atualmente a previsão de Ainda quanto à previsão de regras
um crime de homofobia. Ofender a sobre o tema, não se pode deixar de
honra de alguém, independente de mencionar a Resolução n. 001/99
quem seja a vítima, pode ensejar do Conselho Federal de Psicologia
uma série de consequências jurídi- n. 001/99 – estabelece que a ho-
cas, inclusive no âmbito criminal, mossexualidade não é doença (daí
de coibição de tal conduta ofensiva. não falar-se em homossexualismo,
Aquele que ofende a honra alheia, cujo sufixo – ismo – traz correlação
além de responder criminalmente com doenças), razão pela qual não
por sua conduta, também pode ser pode ser tratada ou curada. Recen-
condenado à reparação de danos temente, apresentou-se projeto para
(materiais e morais) causados à modificação de referida resolução,
vítima, no âmbito cível. em trâmite na Secretaria de Direitos
Em âmbito nacional, não há Humanos da Câmara dos Deputa-
dos, atualmente presidida pelo Dep.
13 DELMANTO, Celso; et al. Código Penal Comentado.
Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 416. Marco Feliciano, que ativistas e a
14 São características do direito penal a fragmentariedade mídia comumente se referem como
e a subsidiariedade. É o chamado “direito penal mínimo”,
pois a sua finalidade é a proteção tão-somente de bens
“Cura Gay”. Como é cediço, tal pro-
necessários e vitais ao convívio em sociedade (GRECO, posta gerou diversas manifestações
Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minima-
lista do direito penal. 5ª ed. Niteroi: Impetus, 2010, p. 25). de repúdio e até mesmo de piadas

69
a respeito do tema. clusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.”.
De qualquer maneira, como já Por seu turno, o artigo 20, tipificava
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ASPECTOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA NA QUESTÃO DA HOMOFOBIA

se disse, não existe, na atual con- como criminosa a conduta de “Pra-


juntura legislativa brasileira, lei que ticar, induzir ou incitar a discrimi-
criminalize a prática da homofobia, nação ou preconceito de raça, cor,
embora alguns projetos estejam em etnia, religião, procedência nacional,
discussão nas Casas Legislativas. gênero, sexo, orientação sexual e
identidade de gênero”, mantendo a
3. PLC n. 122 pena de um 1 (um) a 3 (três) anos e
Neste intuito, segue em trami- multa, que pode chegar à pena de 2
tação o polêmico Projeto de Lei (dois) a 5 (cinco) anos, se o crime for
n. 122, que pretende a alteração cometido por intermédio dos meios
da Lei n. 7.716/89, o Código Pe- de comunicação social ou publicação
nal e a Consolidação das Leis do de qualquer natureza, mantendo a
Trabalho, e prevê a criminalização atual sistemática da lei de racismo.
da homofobia. O projeto, que foi Todavia, o parágrafo 5º do mesmo
chamado pejorativamente como dispositivo projetado acrescentava
“lei da mordaça gay”, prevê crimes que “O disposto neste artigo envolve
específicos com motivação homo- a prática de qualquer tipo de ação
fóbica, além de criar restrições violenta, constrangedora, intimida-
trabalhistas, escolares, bem como tória ou vexatória, de ordem moral,
em bares, hotéis etc. ética, filosófica ou psicológica”.
Diversas versões já foram apre- Diante das críticas e resistência
sentadas e discutidas. A seguir, bus- da bancada religiosa, a Dep. Marta
car-se-á uma análise dos principais Suplicy sugeriu, dentre outras mo-
dispositivos. dificações, a alteração da redação
Inicialmente, em sua redação do parágrafo supramencionado para
CÉSAR AUGUSTO LUIZ LEONARDO

originária, o art. 8º-B do Projeto, a que segue: “O disposto no caput


estabelecia constituir crime a con- deste artigo não se aplica à mani-
duta de: “Proibir a livre expressão festação pacífica de pensamento
e manifestação de afetividade do decorrente de atos de fé, fundada
cidadão homossexual, bissexual ou na liberdade de consciência e de
transgênero, sendo estas expressões crença de que trata o inciso VI do
e manifestações permitidas aos de- art. 5º da Constituição Federal.”.
mais cidadãos ou cidadãs: Pena: re- Entretanto, tal proposta também

70
recebeu críticas e não agradou a outro motivo assemelhado”, sendo
nenhum dos lados envolvidos na considerado indicativo de ódio ou

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


polêmica, razão pela qual não che- intolerância, impedir pessoa habili-
gou sequer a apreciação durante o tada a cargo ou emprego público, ou
trâmite legislativo. obstar sua promoção funcional, ne-
O atual texto que se discute, gar ou obstar emprego em empresa
segue integralmente em anexo, privada, demitir, impedir ascensão
mas, com redação mais clara, passa funcional ou dispensar ao empre-
a tipificar o “crime de ódio”, com gado tratamento diferenciado no
pena de 2 (dois) a sete (sete) anos, ambiente de trabalho; recusar ou
aquele “praticado em razão de impedir acesso a qualquer meio de
discriminação ou preconceito pela transporte público ou estabelecer
orientação sexual, identidade de condições diferenciadas para sua
gênero, idade, deficiência ou por utilização; recusar, negar, cobrar

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


outro motivo assemelhado”, sendo indevidamente, ou impedir a ins-
indicativo de ódio ou intolerância a crição, ingresso ou permanência
ofensa à integridade corporal ou a de aluno em estabelecimento de
saúde de outrem, a ofensa da honra ensino público ou privado, dentre
das coletividades previstas no caput outros. Existem outras condutas
e a intimidação, o constrangimento, previstas no mesmo dispositivo,
a ameaça, o assédio moral e sexual, mas a que mais interessa ao pre-
a ofensa, o castigo intencional, dire- sente estudo é a seguinte: “impedir
ta ou indiretamente, por qualquer ou restringir a expressão e a mani-
meio, causando sofrimento físico, festação de afetividade, identidade
psicológico ou dano patrimonial. de gênero ou orientação sexual em
Também tipifica o “crime de in- espaços públicos ou privados de
tolerância”, com pena de 1 (um) a 6 uso coletivo, exceto em templos
(seis) anos – que pode ser aumenta- de qualquer culto, quando estas
da de um sexto a metade se a ofensa expressões e manifestações sejam
também foi motivada por raça, cor, permitidas às demais pessoas”.
etnia, procedência nacional e reli- Frise-se que o dispositivo proposto
gião, a conduta praticada em razão ressalva expressamente o respeito à
de “discriminação ou preconceito liberdade religiosa, impedindo que
pela orientação sexual, identidade se entenda como legítima a mani-
de gênero, idade, deficiência ou por festação homoafetiva em templos

71
de qualquer culto que não aceitem Papa, além de manifestações envol-
tal comportamento. vendo a prática de atos obscenos em
PÁGINAS 64 A 81, 2013
ASPECTOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA NA QUESTÃO DA HOMOFOBIA

Tais proposições são projetos público, desde a quebra de imagens


de lei. Ainda não estão em vigor sacras até mesmo a encenação de
e, portanto, merecem acompanha- masturbação com crucifixo e uso
mento atento para as suas reper- de outras imagens sagradas para a
cussões. Todavia, por enquanto, religião católica17.
ainda não têm eficácia no território Quais seriam os limites da li-
brasileiro. berdade religiosa e quais as impli-
cações da laicidade do Estado são
4. Análise de casos questões que carecem de definição
As discussões sobre a laicidade legislativa. Não há respostas na lei.
do Estado estão em voga. Muitas Daí a importância de analisar casos
discussões estão postas a este res- concretos em que houve a discus-
peito, a ponto de existirem ações são a respeito da colisão entre tais
propostas para a retirada de sím- princípios.
bolos religiosos de prédios públicos A Suprema Corte concluiu o
(os crucifixos de fóruns e outros julgamento do caso envolvendo a
recintos)15 e até mesmo a expressão Igreja e Escola Evangélica Luterana
“Deus seja louvado” das cédulas de Hosanna-Tabor versus Comissão de
real16. Durante a recente visita do Igualdade de Emprego e Oportuni-
Papa ao Brasil, com a Jornada Mun- dade e outros [565 U.S. (2012)],
dial da Juventude, foram noticiados com julgamento concluído em
atos escandalosos praticados por 11 de janeiro de 2012, sendo tal
alguns participantes da “Marcha decisão considerada como mais
das Vadias”, envolvendo inúmeras importante nos últimos 20 (vinte)
frases ofensivas aos católicos e ao anos envolvendo a liberdade religio-
CÉSAR AUGUSTO LUIZ LEONARDO

sa. O caso cuidava de uma Escola


15 BÄCHTOLD, Felipe. Justiça gaúcha manda retirar
crucifixos de repartições. In: Folha de São Paulo. Dispo- 17 Foram divulgadas imagens do protesto que revelam
nível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/1058048- que: “os envolvidos utilizaram a imagem da Nossa Senhora
justica-gaucha-manda-retirar-crucifixos-de-reparticoes. como objeto sexual. A cabeça da Santa virou uma espécie
shtml. Acesso em 13 de agosto de 2013. de consolo. Em seguida, os manifestantes quebraram as
imagens e as cruzes. Por fim, uma manifestante pegou o
16 ROVER, Tadeu. Deus seja louvado: Judiciário não pode que sobrava de uma cruz, colocou camisinha em sua base
excluir frase religiosa de cédulas. In: Consultor jurídico. e a enfiou no ânus de seu parceiro de encenação”. Dis-
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-jul-25/jus- ponível em: http://www.gospelatualidades.com/2013/07/
tica-nao-excluir-expressao-religiosa-cedula-real-sentenca. marcha-das-vadias-manifestantes-quebram-santos.html#.
Acesso em 13 de agosto de 2013. UgozotJeYgc . Acesso em 09 de agosto de 2013.

72
confessional (uma associação, aliás, e de imprensa.
bem comum no Brasil) que con- Como se vê, a defesa da laici-

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


tratava seus professores para dois dade do Estado implica na não-in-
tipos diferentes de cargos: o called tervenção do Estado em questões
(literalmente, chamado, mas que se internas das entidades religiosas,
pode denominar de vocacionados) em respeito à liberdade de culto e
– que precisa de formação teológica de crença.
básica, pelo Sínodo Luterano, e o Mas é evidente que o exercício
lay (leigo), a uma professora “voca- do ministério religioso não concede
cionada” foi demitida pela Escola e imunidade absoluta, pois eventuais
recorreu à Comissão de Igualdade excessos podem ser coibidos.
de Emprego e de Oportunidade. No âmbito internacional, exis-
No caso, o Juiz de primeiro grau tem outros relatos de casos de
acolheu a “exceção de ministério líderes religiosos processados pela

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


religioso”; em grau de recurso, o prática de crimes contra homosse-
Tribunal reformou a decisão, a favor xuais. O Pastor Americano Scott
da professora. Por fim, a Suprema Lively foi processado por crime
Corte decidiu que a liberdade re- contra a humanidade, após suas
ligiosa prevalece, e o Estado laico visitas a Uganda nos anos de 2009
não pode interferir nas questões e 2010, pois, segundo a acusação,
internas das Igrejas, sobretudo no em suas manifestações, teria incen-
que diz respeito à escolha de seus tivado perseguições contra gays, o
líderes e ministros18. que teria resultado no aumento do
O fundamento de tal decisão índice de crimes violentos contra
tem amparo na Primeira Emenda homossexuais. Lively vai a julga-
à Constituição dos Estados Unidos mento19.
da América, que declara que o Por seu turno, o Pastor peruano
Congresso não legislará para fins José Linares, foi preso no estado
de estabelecer uma religião ou para do Massachussets, sob a acusação
proibir o livre exercício dos cultos, de crime de ódio, porque sua men-
e assegura a liberdade de expressão sagem em rádio teria influenciado

18 RODRIGUES JR., Otávio Luiz. Histórico precedente 19 BRYDUM, Sunnivie. Scott Lively will be tried
nos EUA sobre liberdade religiosa. In: Conjur. Disponível for fueling antigay persecution in Uganda. Advocate.
em: http://www.conjur.com.br/2012-jun-20/otavio-luiz-ro- Disponível em: http://www.advocate.com/news/world
drigues-historica-decisao-eua-liberdade-religiosa. Acesso -news/2013/08/15/scott-lively-will-be-tried-fueling-anti-
em 21 de julho de 2013. gay-persecution-uganda. Acesso em 18 de agosto de 2013.

73
em um crime de homicídio de um confirmada em segundo grau 22.
homossexual. Todavia, José Linares Houve caso semelhante na Espa-
PÁGINAS 64 A 81, 2013
ASPECTOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA NA QUESTÃO DA HOMOFOBIA

foi solto e absolvido pelo Tribunal20. nha, hipótese em que o Arcebispo


A jurisprudência brasileira tam- confirmou a decisão do padre,
bém tem enfrentado o tema e, emitindo um comunicado onde
desde o famoso julgamento do RE sustentou que o padrinho deve ter
31.179, em 1958, pelo Supremo “vida congruente”23.
Tribunal Federal, tem defendido O Tribunal de Justiça do Estado
que complete exclusivamente à de São Paulo já condenou orga-
autoridade eclesiástica decidir nização religiosa pela exclusão de
questões relativas às normas de con- seminarista do Seminário Prope-
fissão religiosa, que devem ser ob- dêutico por ser portador de soro-
servadas por uma associação cons- logia positiva para o vírus do HIV.
tituída para o culto: “A autoridade Na oportunidade, considerou que
temporal não pode decidir questão o Poder Judiciário pode apreciar
espiritual, surgida entre a autorida- atos interna corporis das entidades
de eclesiástica e uma associação re- religiosas quando violarem prin-
ligiosa. Esta impossibilidade resulta cípios constitucionais, conforme
da completa liberdade espiritual, aplicação do princípio do devido
princípio de política republicana, processo legal substancial. No caso,
que conduziu à separação entre a decidiu a supremacia do princípio
Igreja e o Estado, por memorável da dignidade da pessoa humana, por
influência positivista [...]”21. considerar que a sorologia positiva
Diversos outros casos são no- para o vírus do HIV, por si só, não
ticiados pela mídia envolvendo torna o portador da moléstia inca-
questões de liberdade religiosa. No
Pará, um Padre católico que negou 22 Apelação cível. Ação indenizatória. Homofobia. Dano
CÉSAR AUGUSTO LUIZ LEONARDO

moral configurado. Sentença. Monocrática mantida. I - Ao


batismo a uma criança porque o reputar irretocável a r. sentença monocrática, deve a mesma
padrinho era gay, foi condenado ser confirmada pelo Tribunal de Justiça, pelos seus próprios
e jurídicos fundamentos, haja vista que o magistrado a
por danos morais, com sentença quo, bem analisou exaustivamente as provas acostadas,
aplicando o direito ao caso sub-judice. II - A unanimidade
de votos recurso de apelação conhecido e improvido, nos
termos do voto do Relator. (TJPA, AC 20083007535-2, 1ª
20 LOPES, Leiliane Roberta. Disponível em: http:// C. Cív. Isol., Rel. Des. Leonardo de Noronha Tavares, j.
noticias.gospelprime.com.br/pastor-pode-ficar-45-anos 25/05/2009).
-preso-por-pregar-contra-o-homossexualismo/. Acesso em
20 de setembro de 2012. 23 INFANTE, Anelise. Padre católico espanhol impede
batizado ao descobrir que padrinho é gay. Acesso em: http://
21 STF. RE 31179, Relator Min. Hahnemann Guimaraes, www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/12/111222_bati-
Segunda Turma, julgado em 08/04/1958, DJ 26-06-1958. zado_gay_espanha_ai.shtml

74
pacitado para o ministério sacerdo- Por fim, o polêmico pastor Silas
tal, razão pela qual a sua exclusão Malafaia também, por mais de uma

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


foi discriminatória e ensejadora de vez, já foi alvo de ações judiciais,
danos morais24. por acusação incitar a violência
Outro fato com repercussão contra homossexuais. Foi criticado
midiática ocorreu em Ribeirão por ter feito comparações da prática
Preto, onde, na véspera da Parada homossexual com a de pedofilia e,
do Orgulho Gay que se realizaria em rede nacional, disse a respeito
na cidade, a Igreja Casa de Oração da Parada do Orgulho Gay: “É para
colocou outdoor com citações bíbli- a Igreja Católica entrar de pau em
cas, retiradas do livro de Levítico, cima desses caras, sabe? Baixar
dizendo que “se também um ho- o porrete em cima pra esses caras
mem se deitar com outro homem, aprender. É uma vergonha!”27, o
como se fosse mulher, ambos prati- que motivou o Ministério Público

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


caram coisa abominável”25. No caso, Federal a ajuizar ação contra o
a Defensoria Pública do Estado de Pastor, por homofobia, incitar a vio-
São Paulo ajuizou ação civil pública, lência contra homossexuais. O Juiz
pois considerou que as referências Federal julgou extinto o processo,
eram degradantes aos homosse- asseverando em sua decisão que:
xuais, e o pedido de retirada da “proscrever a censura e ao mesmo
propaganda foi acolhido pelo juiz tempo permitir que qualquer pessoa
Aleksander Coronado Braido da pudesse recorrer ao judiciário para,
Silva, sob o seguinte fundamento: em última análise, obtê-la, seria in-
“a Constituição Federal protege a sensato e paradoxal”. O magistrado
conduta do réu (a Casa de Oração sugere, como alternativa à repres-
de Ribeirão Preto) de expor suas são, a livre escolha da audiência,
opiniões pessoais, mas, ao mesmo pois bastaria “apertar o botão”, que
tempo, também protege a intimi- a queda no Ibope certamente se
dade, honra e imagem das pessoas encarregaria de coibir tais condutas.
quando violadas”26. Como se percebe, não é fácil de-
terminar uma lista de condutas que
24 TJSP, AC 4005224300, 2ª C. Dir. Priv., Rel. Des. A
Santini Teodoro, j. 09/12/2008 são aceitas e proibidas pelo ordena-
25 Levíticos 20:13. No outdoor, também constavam
citações de Romanos 1.26-27 e Atos 3.19. considerado-homof%C3%B3bico-ribeir%C3%A3o-pre-
to-164200664.html. Acesso em 20 de setembro de 2012.
26 FARAH, Tatiana. Justiça veta outdoor considerado
homofóbico em Ribeirão Preto. Yahoo. Disponível em: 27 Vídeo disponível em: www.youtube.com/watch?v=Z
http://br.noticias.yahoo.com/justi%C3%A7a-veta-outdoor- -i6nLrDnxY.

75

mento jurídico no tema. Por outro O que se espera, é
lato, há quem chegue a afirmar que, que nossos líderes
PÁGINAS 64 A 81, 2013
ASPECTOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA NA QUESTÃO DA HOMOFOBIA

em resposta à homofobia, estar-se religiosos também


-ia desenvolvendo verdadeira “Cris- sejam coerentes com o
tofobia”, pois não seria lícito sequer que pregam. O Amor,
propagar ensinamentos bíblicos que a Graça e o Perdão,
possam ofender aqueles que vivem maiores símbolos do
em desacordo com os princípios ali Cristianismo, não
preconizados. convivem com o ódio,
a discriminação e a
intolerância.
5. Conclusão
Dentre as garantias fundamen-
tais reconhecidas pelo nosso Orde-
namento, está assegurado o direito mento das imposições eclesiásticas,
à liberdade, que inclui a liberdade desde que não sejam aviltantes a
religiosa. Assim, a Constituição bens jurídicos mais relevantes (o
Federal garante a todos a liberdade que só pode ser analisado casuisti-
de crença e de culto. É certo, ou- camente).
trossim, que tais direitos não são A homofobia ocorreria em even-
absolutos, encontrando limite em tuais excessos deste ‘poder nor-
outras garantias fundamentais. mativo’ do comportamento, que
Ao estabelecer normas e dog- constitua agressão física, moral
mas da Igreja e, com isso, nortear ou psicológica a outras pessoas,
a conduta dos seus fieis (inclusive no caso, os homossexuais. É dizer,
em aspectos sexuais – orientação abusa do seu direito de liberdade
contrária ao sexo fora do casamen- religiosa aquele que incita o ódio
to, ao sexo homossexual etc.), a a homossexuais ou os ridiculariza,
CÉSAR AUGUSTO LUIZ LEONARDO

princípio, não há cogitar-se de mediante agressão física, moral ou


ilícito, se trata do exercício regular psíquica.
da liberdade religiosa. Evidente que Como se pode perceber, a ques-
esta garantia fundamental permite tão é muito mais relacionada à
que qualquer pessoa possa abando- forma do que ao conteúdo.
nar a prática de uma determinada Por outro lado, a vedação à or-
religião, mas a sua permanência denação de pastores que tenham
pode ser condicionada ao atendi- práticas homossexuais não parece

76
abusiva, desde que se as normas e pode ser considerada justa a busca
estatutos da Igreja contem com pre- pelo reconhecimento de direitos e

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


visão expressa. É cediço que os lí- pelo reconhecimento da dignidade
deres religiosos devem se submeter humana, não se pode ignorar que
ao código de normas da Igreja que muitas vezes se busca este fim
eles voluntariamente escolheram. pelo cometimento de verdadeiros
Tampouco há a obrigatorieda- ataques de “ódio” e “intolerância”
de de realizar o casamento entre religiosa! Nada mais contraditório.
pessoas do mesmo sexo. Embora Exigir respeito é legítimo, mas não
a jurisprudência brasileira venha se pode fazê-lo desrespeitando ou-
reconhecendo a possibilidade do tras garantias fundamentais, como
casamento civil entre pessoas do a liberdade de crença e de culto.
mesmo sexo, não se pode confun- O que se espera, é que nossos

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


dir o casamento como instituto líderes religiosos também sejam
de Direito Civil com a instituição coerentes com o que pregam. O
religiosa, a qual deve se submeter Amor, a Graça e o Perdão, maiores
às regras eclesiásticas, e não se- símbolos do Cristianismo, não con-
culares. vivem com o ódio, a discriminação
Por fim, não se pode deixar e a intolerância. A propagação do
de apontar que diversos casos re- Evangelho de Cristo não parece
centemente noticiados na mídia compatível com a disseminação
demonstram verdadeiros casos de de mensagens carregadas de hipo-
intolerância religiosa praticado por crisia, julgamento e preconceitos.
aqueles que defendem a punição à A Igreja deve fazer o seu papel e
intolerância de natureza sexual. É o levar a mensagem da Cruz, sem
que se vê com os diversos ataques com isso fazer acepção de pessoas
a líderes religiosos e outras figuras e de pecados.
públicas que desagradam alguns A homofobia, se bem compreen-
setores dos movimentos LGBTT dida, sem superdimensionamentos,
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Tran- certamente deve ser combatida pe-
sexuais e Travestis). Se é certo que los cristãos que, verdadeiramente,
existe discriminação e preconceito seguem os mandamentos do Nosso
em razão da orientação sexual, e se Senhor.

77
PÁGINAS 64 A 81, 2013
ASPECTOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA NA QUESTÃO DA HOMOFOBIA

ANEXO
SUBSTITUTIVO (PLC 122/2006) – Paulo Paim

A PRESIDENTA DA REPÚBLICA.

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a


seguinte Lei:
Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes de
ódio e de intolerância, sendo estes os praticados por motivo
de discriminação ou preconceito de identidade de gênero,
orientação sexual, idade, deficiência ou por outro motivo
assemelhado, indicativo de ódio ou intolerância.

Art. 2º Constitui crime de ódio quando praticado em razão


de discriminação ou preconceito pela orientação sexual,
identidade de gênero, idade, deficiência ou por outro motivo
assemelhado, indicativo de ódio ou intolerância:
I – ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem;
II – ofender a honra das coletividades previstas no caput;e
III – intimidar, constranger, ameaçar, assediar moral e se-
xualmente, ofender, castigar, de forma intencional,
direta ou indiretamente, por qualquer meio, causando
sofrimento físico, psicológico ou dano patrimonial.
CÉSAR AUGUSTO LUIZ LEONARDO

Pena – prisão de dois a sete anos, se o fato não se constitui


crime mais grave.

Art. 3º Constituem crimes de intolerância, quando praticado


em razão de discriminação ou preconceito pela orientação
sexual, identidade de gênero, idade, deficiência ou por outro
motivo assemelhado, indicativo de ódio ou intolerância:

78
REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE
I – impedir ou obstar o acesso de pessoa, devidamente habilitada,
a cargo ou emprego público, ou obstar sua promoção funcional;
II – negar ou obstar emprego em empresa privada, demitir,
impedir ascensão funcional ou dispensar ao empregado
tratamento diferenciado no ambiente de trabalho;
III – recusar ou impedir acesso a qualquer meio de transporte
público ou estabelecer condições diferenciadas para sua
utilização;
IV – recusar, negar, cobrar indevidamente, ou impedir a
inscrição, ingresso ou permanência de aluno em esta-
belecimento de ensino público ou privado;
V – impedir ou restringir a expressão e a manifestação de

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


afetividade, identidade de gênero ou orientação sexual
em espaços públicos ou privados de uso coletivo, exceto
em templos de qualquer culto, quando estas expressões
e manifestações sejam permitidas às demais pessoas;
VI – impedir ou limitar o acesso, cobrar indevidamente ou
recusar:
• a) hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou
estabelecimento similar;
• b) atendimento em estabelecimento comercial de
qualquer natureza, negando-se a servir, atender ou
receber cliente;
• c) atendimento em estabelecimentos esportivos,
casas de diversões, clubes sociais abertos ao público
e similares; e
• d) entrada em espaços públicos ou privados de uso
coletivo;
• e) serviços públicos ou privados.
VII – praticar, induzir ou incitar a discriminação ou pre-
conceito, pela fabricação, comercialização, veiculação e
distribuição de símbolos, emblemas, ornamentos, dis-
tintivos ou propaganda, ou por qualquer outro meio que

79
PÁGINAS 64 A 81, 2013
ASPECTOS JURÍDICOS DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA NA QUESTÃO DA HOMOFOBIA

indiquem, inclusive pelo uso de meios de comunicação


e internet, a prática de crime de ódio ou intolerância,
conforme definido nos artigos 1º e 2º.
VIII – impedir alguém de fazer o que a lei não proíbe ou
aquilo que se permite que outras pessoas façam.
Pena – prisão de um a seis anos.

Art. 4º Aumenta-se a pena dos crimes previstos nesta lei de


um sexto a metade se a ofensa foi também motivada por
raça, cor, etnia, procedência nacional e religião, indicativos
de ódio ou intolerância.

Art. 5º Em nenhuma hipótese as penas previstas nesta lei


serão substituídas por prestações pecuniárias.

Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.


CÉSAR AUGUSTO LUIZ LEONARDO

80
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REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


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81
HOMOAFETIVIDADE E
PÁGINAS 82 A 87, 2013
HOMOAFETIVIDADE E LEGISLAÇÃO NA IPIB

LEGISLAÇÃO NA IPIB

Introdução
João Luiz Furtado*
Por mais boa vontade que O tema homoafetividade/
se possa ter sobre a ques-
homossexualidade ronda a vida
tão da prática homosse-
da Igreja há séculos, porém, o
xual, não há brechas para
o entendimento de que tal assunto sempre foi tratado de
fato não seja punível à luz forma velada, com muito cuidado
do sistema doutrinário da e melindre.
IPI do Brasil. Logo que concluí o curso de
Todavia, o Código Disci- teologia no Seminário Teológico
plinar, revelando o bom de São Paulo, atual Faculdade de
senso do legislador esta- Teologia de São Paulo, da Igreja
beleceu que os Concílios,
Presbiteriana Independente do
deverão tratar pastoral-
Brasil, em 1982, fui ordenado
mente quaisquer questões
de ordem disciplinar. ministro da Palavra e dos Sacra-
mentos pelo Presbitério de Bo-
tucatu e designado para a IPI de
Chavantes, São Paulo.
Um dos primeiros atendi-
mentos pastorais que ministrei
foi a um jovem que me procurou
JOÃO LUIZ FURTADO

manifestando o desejo de se casar,


indagando se eu poderia realizar
*Pastor da IPI de São Manuel, SP, e advogado. Pales-
tra proferida na Semana Teológica da IPIB – FATIPI
seu casamento. Minha resposta
(15-19.10.2012). evidentemente foi positiva, afinal
seria o primeiro casamento que

82
iria celebrar. No entanto, um deta- A IPIB e suas leis
lhe inusitado chamou a atenção: o No tocante a homoafetividade

REVISTA
casamento seria entre dois homens. no âmbito da legislação da IPIB o

REVISTA
HOMOAFETIVIDADE E LEGISLAÇÃO NA IPIB
Diante deste fato, comecei a assunto não dá margem para muitas
pensar nas aulas que tive no Semi-

TEOLOGIA
interpretações.
nário com os queridos mestres: Rev. O sistema legislativo da IPI do

TEOLOGIA
Gerson Correia de Lacerda, Rev. Brasil repousa sobre:

E SOCIEDADE
Leontino Farias dos Santos, Rev. • CONSTITUIÇÃO
Eduardo Galasso Faria, Rev. An- • REGIMENTO INTERNO

E SOCIEDADEVol.
tonio Gouveia Mendonça e outros • ESTATUTOS
mais, procurando respostas para a • CÓDIGO DISCIPLINAR
questão que me era colocada por • ORDENAÇÕES LITÚR-
aquele jovem. GICAS
À época, a IPI do Brasil não tinha

Vol.1 nº
• LEIS ORDINÁRIAS
nenhum posicionamento sobre o

1 nº
assunto homossexualidade e, basi-

10,10,
Importante destacar que a base
camente, tive que recorrer à Bíblia

outubro
legal da Igreja é precedida pelos
e à Confissão de fé de Westmins-

outubro
Fundamentos Doutrinários alicer-
ter para justificar perante o jovem

de 2013,
çados nas Sagradas Escrituras do
porque não celebraria o casamento Antigo e do Novo Restamento e

de São
dele com outro homem. na Confissão de fé de Westminster.

2013,
Trinta anos se passaram e o

Paulo,
assunto homoafetividade/homos- O artigo 2º da Constituição da

São
sexualidade está em ebulição em

SP Paulo,
IPIB dispõe que:
nossa sociedade, refletindo dire- “ A Igreja tem como regra
tamente nas Igrejas que precisam única e infalível de fé e prá-
dar alguma resposta aos anseios das
SP

tica as Sagradas Escrituras do


pessoas que optaram pelo homos- Antigo e do Novo Testamen-
sexualismo. tos, adota a forma presbite-
Nesse sentido, a iniciativa da riana de governo e o sistema
FATIPI de promover em sua tradi- doutrinário da Confissão de
cional Semana Teológica o debate Fé de Westminster, regendo-
PÁGINAS 82 A 87

sobre o posicionamento da IPIB


João Luiz Furtado

se por esta Constituição.”


frente à questão da homoafetivida-
de é bastante salutar. Nessa direção é importante

83
ressaltar que para uma pessoa ser
admitida ao rol de membros da
Homoafetivade/
homossexualidade
PÁGINAS 82 A 87, 2013
HOMOAFETIVIDADE E LEGISLAÇÃO NA IPIB

Igreja ela precisa observar o dis-


posto no artigo 9º da Constituição frente ao sistema
que dispõe:
“Uma igreja local é consti-
legal da IPIB
Feitas estas considerações preli-
tuída de cristãos professos
minares sobre nosso sistema legis-
admitidos regularmente,
lativo, como tratar da questão da
juntamente com seus filhos
homoafetividade/homossexualida-
e dependentes legais bati-
de frente ao sistema legal da IPIB?
zados, menores ou mental-
Logo de início a Confissão de Fé
mente incapazes, em número
de Westminster sepulta qualquer
ilimitado, de ambos os sexos,
discussão sobre a possibilidade da
de qualquer nacionalidade
IPIB acolher em seu sistema dou-
ou condição social, que acei-
trinário e legal a prática da homos-
tam voluntariamente as suas
sexualidade.
doutrinas, seu sistema de
No capítulo XXIV da Confissão
governo e sua disciplina, para
de fé, ao tratar do matrimônio e do
os fins definidos no Art. 3º”.
divórcio é taxativo ao afirmar que:
(grifo meu)
“I. O casamento deve ser
entre um homem e uma mu-
Além disso, o candidato à mem-
lher.... Gn 2.24; Mt 19.4-6;
brezia precisa observar o Artigo 7º
Rm 7.3.”
do padrão de Estatuto das Igrejas
Locais que dispõe:
Nessa direção, a IPI do Brasil em
“São deveres dos membros
sua 7ª Assembleia Geral Ordinária
da Igreja:
realizada em Poços de Caldas/MG,
I - viver de acordo com a
decidiu disponibilizar para o arraial
doutrina e prática das Sagra-
Presbiteriano Independente uma pas-
das Escrituras do Antigo e do
JOÃO LUIZ FURTADO

toral sobre o tema onde afirma que:


Novo Testamento”
“Considerando o matrimô-
nio uma dádiva de Deus,
estabelecido desde as pri-
meiras páginas sagradas
da Bíblia e sedimentado

84
por toda a tradição cristã, e dependentes legais bati-
reiteramos o ensino bíblico zados, menores ou mental-

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


conforme Gn 2.24: “Por mente incapazes, em número
isso, deixa o homem pai e ilimitado, de ambos os sexos,
mãe e se une à sua mulher, de qualquer nacionalidade
tornando-se os dois uma só ou condição social, que acei-
carne”; cremos, portanto, tam voluntariamente as suas
que o casamento heteros- doutrinas, seu sistema de
sexual entre um homem e governo e sua disciplina, para
uma mulher representa a os fins definidos no Art. 3º”.
perfeita expressão da união (grifo meu)
conjugal proposta por Deus
ao seu povo eleito e santi- Observando o disposto acima,
ficado”. entendo que as igrejas locais não

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


correrão riscos de sofrerem sanções
Evidentemente que a posição do Poder Judiciário pela adoção do
da IPI do Brasil alicerçada em seu entendimento doutrinário sobre a
sistema doutrinário, que por sua homossexualidade, uma vez que a
vez reflete o padrão bíblico sobre liberdade religiosa está inserida no
o tema sexualidade, não deve ser rol das cláusulas pétreas da Cons-
usado para excluir as pessoas e sim tituição Federal, tema que melhor
caminhar para o acolhimento e será analisado pelo Dr. César Au-
discipulado. gusto Luiz Leonardo.
Contudo, o discipulando, to- Isto não significa que os excessos
mando conhecimento das bases na defesa de seu posicionamento
bíblicas e doutrinárias da IPI do doutrinário sobre o tema não são
Brasil sobre a questão em pauta passíveis das sanções previstas na
terá condições de decidir se reúne legislação pátria.
ou não condições para ser admitido Por excessos, entendo qual-
à membrezia de uma Igreja local, quer manifestação pejorativa,
lembrando que: intolerante e agressiva sobre o
“Uma igreja local é consti- assunto, conduta esta que não se
tuída de cristãos professos coaduna com o princípio cristão
admitidos regularmente, do amor e solidariedade para com
juntamente com seus filhos o próximo.

85
Como tratar Art. 10 – “É dever dos con-
cílios envidar esforços para
disciplinarmente
PÁGINAS 82 A 87, 2013
HOMOAFETIVIDADE E LEGISLAÇÃO NA IPIB

corrigir as falhas por meios


com um membro suasórios(persuasivos), evi-
professo que tando recorrer a processo.”

assume a prática da
homossexualidade Conclusão
Não há como negar que as nossas
Em relação a quaisquer desvios
Igrejas enfrentam as pressões da
de conduta no âmbito da Igreja a
sociedade para uma ampla acei-
primeira indagação a ser feita é se
tação das relações homoafetivas,
o fato é punível.
haja vista que nossos Tribunais têm
O Art. 5º do Código Disciplinar
reconhecido direitos de pessoas do
da IPI do Brasil dispõe que:
mesmo sexo na adoção de filhos, no
“Constituem fatos puníveis
reconhecimento de união estável e
todas as ações e omissões
mais recentemente, numa resolu-
que, na fé ou na prática,
ção do Conselho Nacional de Jus-
firam doutrinas da Palavra de
tiça, o registro civil do casamento
Deus ou prejudiquem a paz,
homossexual, além de projetos de
a unidade, a pureza e o
Leis que tramitam no Congresso
progresso da Igreja.”
Nacional.
No entanto, em nome do prin-
Por mais boa vontade que se
cípio constitucional da liberdade
possa ter sobre a questão da prática
religiosa e da não interferência
homossexual, não há brechas para
do Estado nos assuntos restritos
o entendimento de que tal fato
à vivência da fé, a Igreja deve se
não seja punível à luz do sistema
posicionar coerentemente sobre
doutrinário da IPI do Brasil.
o referido tema considerando as
Todavia, o Código Disciplinar,
suas bases bíblicas e doutrinárias,
revelando o bom senso do legislador
JOÃO LUIZ FURTADO

sem se esquecer de que acima de


estabeleceu que os Concílios, antes
doutrinas e leis estão as pessoas que
da instauração de um processo
merecem ser tratadas com respeito
disciplinar, deverão tratar pasto-
e dignidade.
ralmente quaisquer questões de
ordem disciplinar.

86
Anexo 1
Pronunciamento do Colégio Episcopal da Igreja Metodista do

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


Brasil sobre o projeto de lei acerca da homofobia:
“Afirma o ensino Bíblico de que Deus criou homem e mulher,
e esta é a orientação sexual reconhecida pela Igreja. E este mesmo
ensino Bíblico classifica como um pecado a prática do homossexu-
alismo. Deste modo, é inalienável o direito da Igreja de pregar e
ensinar no privado e no público contra a prática homossexual como
um pecado e desobediência aos ensinos de Deus. O fato da Igreja
compreender o homossexualismo desta maneira não a impede de
receber, acolher e dialogar com os homossexuais.A Igreja quer, no
entanto, preservar o seu direito de questionar a conduta humana,
qualquer que seja ela, inclusive a conduta homossexual, de modo

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


a poder desempenhar sua missão de pregar a reconciliação do ser
humano com Deus, com o seu próximo e consigo mesmo”.

Anexo 2
Manifesto Presbiteriano sobre a Lei da Homofobia:
A Igreja Presbiteriana do Brasil MANIFESTA-SE contra a aprova-
ção da chamada lei da homofobia, por entender que ensinar e pregar
contra a prática do homossexualismo não é homofobia, por entender
que uma lei dessa natureza maximiza direitos a um determinado grupo
de cidadãos, ao mesmo tempo em que minimiza, atrofia e falece direi-
tos e princípios já determinados principalmente pela Carta Magna e
pela Declaração Universal de Direitos Humanos; e por entender que
tal lei interfere diretamente na liberdade e na missão das igrejas de
todas orientações de falarem, pregarem e ensinarem sobre a conduta e
o comportamento ético de todos, inclusive dos homossexuais. Portan-
to, a Igreja Presbiteriana do Brasil reafirma seu direito de expressar-
se, em público e em privado, sobre todo e qualquer comportamento
humano, no cumprimento de sua missão de anunciar o Evangelho,
conclamando a todos ao arrependimento e à fé em Jesus Cristo”.

Rev. Dr. Augustus Nicodemus Gomes Lopes


Universidade Presbiteriana Mackenzie

87
IGREJA PRESBITERIANA
PÁGINAS 88 A 93, 2013
IGREJA PRESBITERIANA DOS ESTADOS UNIDOS - ANÁLISE HISTÓRICA DA QUESTÃO HOMOSSEXUAL

DOS ESTADOS UNIDOS


Análise histórica da questão
homossexual
A Igreja Presbiteriana Unida

Chris Glaser*
Atualmente cada “ordai- nos Estados Unidos o fez em
ning body” presbiterial é resposta a um documento chama-
responsável para fazer a do: “Sexualidade e comunidade
sua própria interpreta- humana” o qual trazia um olhar
ção do que a Escritura
compadecido com pessoas ho-
e as confissões exigem
dos oficiais ordenados.
mossexuais. A Assembleia Geral
que recebeu o documento acima
mencionado acrescentou uma
emenda condenando a homosse-
xualidade por uma diferença de
votos bastante apertada.
A Igreja Presbiteriana dos Esta-
dos Unidos também se posicionou
negativamente com uma resolução
em 1972 na Assembleia Geral.
Essa resolução e outra petição do
Presbitério Fayetteville, também
negativa, cristalizaram a necessi-
dade do “Conselho de Teologia
e Cultura” apresentar “A Igreja
e Homossexualidade: um estudo
CHRIS GLASER

preliminar” na Assembleia Geral


*Pastor da Metropolitan Community Church, PCUSA.
de 1977.
Tradução: Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis.

88
A importância estratégica desse Palisades, que tinham candidatos ao
estudo foi a constatação de três ministério declaradamente homos-

REVISTA
posicionamentos entre os cristãos sexuais. Esses mesmos presbitérios

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


ChrisTEOLOGIA
IGREJA PRESBITERIANA DOS ESTADOS UNIDOS - ANÁLISE HISTÓRICA DA QUESTÃO HOMOSSEXUAL
nas igrejas: já se pronunciavam dizendo que tais
1. Alguns cristãos acreditavam ordenações, se ocorressem, seriam

Glaser E SOCIEDADE
que a homossexualidade era “imprudentes e inapropriadas”.
uma doença ou um desenvol- Essa concepção poderia mudar se
vimento psicossocial alterado; uma força-tarefa para estudar a
2. Alguns cristãos acreditavam homossexualidade pudesse levar
que a homossexualidade é a igreja a refletir profundamente
pecado; sobre a questão. Um representante
3. Alguns cristãos acreditavam na Assembleia Geral chamado Rev.
que a homossexualidade é John Robinson alertou para a saída
uma variedade legítima da de fiéis em busca de liberdade re-

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


sexualidade humana. ligiosa: “Deus tem ainda mais luz
para revelar em sua Palavra.”
O grupo Presbyterians for Les- A Comissão do Desenvolvimen-
bian & Gay Concerns foi organi- to Missionário da Igreja Presbite-
zado pelo Rev. David Bailey Sindt riana Unida nos Estados Unidos,
da Igreja Presbiteriana Unida nos o Sínodo do Sul da Califórnia e do
Estados Unidos, em Chicago no Havaí, o Presbitério do Pacífico,
ano de 1974, com seu primeiro e a Igreja Presbiteriana de West
nome: Presbiterianos Gay Caucus. Hollywood aprovaram e financia-
O grupo Presbyterians for Alterna- ram o projeto Lazarus, um primeiro
tive Lifestyles foi organizado mais ministério desse tipo para reconci-
tarde de maneira secreta e nunca liação entre a igreja e a comunidade
se tornou uma organização pública. LGBT, em 1977. Um membro
Em 1976, a Igreja Presbiteriana da força-tarefa, Chris Glaser, foi
Unida nos Estados Unidos res- contratado como diretor-fundador.
pondeu a um questionamento por A força-tarefa se reuniu por
“orientação definitiva” da igreja dois anos, para consultar especia-
acerca da ordenação dos homos- listas, que incluiu, por exemplo,
PÁGINAS 88 A 93

sexuais praticantes confessos. o especialista em ética situacional


Questionamento este encaminhado Joseph Fletcher, o sexólogo William
pelos Presbitérios de Nova York e Mestres (Masters & Johnson), e o

89
historiador John Boswell, e realizou preferência apenas para definiti-
quatro audiências regionais. Essas vamente aconselhar presbitérios
PÁGINAS 88 A 93, 2013
IGREJA PRESBITERIANA DOS ESTADOS UNIDOS - ANÁLISE HISTÓRICA DA QUESTÃO HOMOSSEXUAL

audiências forneceram dois con- e congregações (declarações da


juntos de documentos de estudo Assembleia Geral são consideradas
para toda a Igreja e membros da consultivas), o Presidente William
força-tarefa e para todo o país. O P. Thompson, posteriormente,
documento final foi aprovado por decidiu que o conselho foi juri-
unanimidade pela força-tarefa e dicamente vinculativo, porque a
recebido pela Assembleia Geral Assembleia tinha interpretado uma
para estudo em 1978. frase no Livro de Ordem, tanto
A maioria concluiu que a homos- quanto o Supremo Tribunal dos
sexualidade não era pecado per se, EUA pode interpretar uma frase na
portanto, nenhuma barreira para Constituição dos EUA de modo a
ordenação. A maioria relatou uma ser juridicamente vinculativo.
experiência similar à dos primeiros Algumas congregações recu-
cristãos quando testemunharam saram a decisão e começaram a
a ação do Espírito Santo entre os declarar que não iriam acatar a
gentios não judaizados, declarando orientação da Assembleia Geral e
que tinham igualmente visto a ação desafiaram a capacidade do Presi-
do Espírito de Deus na vida dos dente de declarar que a orientação
cristãos gays e lésbicas. A minoria era juridicamente vinculativa.
concluiu que a homossexualidade Essas igrejas se tornaram conhe-
era pecado, portanto, uma barreira cidas como More Light Churches.
à ordenação. Depois disso, a Assembleia Geral
A opinião minoritária (embora confirmou a decisão do Presidente.
não o seu relatório), foi aprovada Em 1979 A Igreja Presbiteriana
pela Assembleia Geral em 1978, e dos Estados Unidos aprovou o rela-
a ordenação do que era agora cha- tório e as recomendações da Igreja
mado de “auto-afirmação, homos- Presbiteriana Unida nos Estados
sexuais praticantes” foi negada. A Unidos. Em 1983 essas duas igrejas
assembleia afirmou que o Espírito se fundiram em Igreja Presbiteriana
experimentalmente não iria con-
CHRIS GLASER

dos Estados Unidos (PCUSA).


tradizer o Espírito nas Escrituras. Em 1991 a Assembleia Geral
Apesar de comissários enviados da PCUSA rejeitou as recomenda-
pela Assembleia declararem sua ções da Comissão Especial sobre a

90

sexualidade humana, que sugeriu Em julho de 2010,
o critério de “justiça e amor” a ser por uma votação de

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


aplicado a todas as relações huma- 373 a 323 - favorável
nas, incluindo casamento heterosse- , a Assembleia Geral
xual e as uniões do mesmo gênero. voltou a propor
A Assembleia Geral de 1993 aos presbitérios a
recomendou um diálogo de três ratificação de uma
anos sobre a homossexualidade. emenda constitucional
Naquele mesmo ano, a Comissão que retirava do Livro
Judicial Permanente (nossa maior de Ordem a seção G-
Corte na igreja) determinou a cláu- 6.0106.b, que incluiu
sula do “avô” de 1978/1979, que esta exigência explícita
deveria proteger os direitos dos gays para a ordenação:
e lésbicas ordenados antes de maio “Entre esses padrões

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


1978 e não se aplicava a quem “pra- exige-se que se viva
ticava” a homossexualidade depois tanto na fidelidade
desta data, e negou à Reverenda dentro do matrimônio
Jane Adams Spahr seu chamado entre um homem
para servir em Downtown United e uma mulher ou a
Presbyterian Church of Rochester,
castidade no celibato”
Nova York. Pouco tempo depois,
a congregação havia contratado homossexuais não conseguiu ser
Janie como uma “evangelista lés- aprovada pelos presbitérios. Uma
bica” em um ministério, agora em medida semelhante falhou nova-
todo o país: “Para que todos sirvam mente em 2000.
livremente.” Também em 1995, Martha Juil-
Em 1994, a Comissão Perma- lerat e Tammy Lindahl iniciaram o
nente Judicial julgou a ordenação Projeto Shower of Stoles (Chuveiro
de um gay diácono e uma lésbica de Estolas) para celebrar os minis-
diaconisa, da Igreja Presbiteriana térios negados e/ou enrustidos de
Central em Eugene, Oregon, irre- gays, lésbicas, bissexuais e transgê-
gular, mas não reversível. neros líderes da igreja. Começou
Em 1995, uma emenda para como um projeto presbiteriano e
o Livro de Ordem que proíbe é agora uma coleção inter-religiosa
ministros de participar de uniões de centenas de estolas.

91
Em 1997, o Livro de Ordem foi pela Assembleia Geral de 2001,
alterado para incluir G-6.0106b, por uma votação de 60-39% dos
PÁGINAS 88 A 93, 2013
IGREJA PRESBITERIANA DOS ESTADOS UNIDOS - ANÁLISE HISTÓRICA DA QUESTÃO HOMOSSEXUAL

onde se lê: representantes. A maioria simples


Aqueles que são chamados dos presbitérios é necessária para a
para o ministério na igreja ratificação dessa mudança.
devem levar uma vida em De 173 presbitérios na PCUSA,
obediência às Escrituras e 29 propuseram esta mudança. Seu
em conformidade com os pa- efeito seria permitir congregações e
drões confessionais históricos presbitérios locais para determinar
da igreja. Entre essas normas seu próprio curso na ordenação
está a exigência de viver tan- dos presbiterianos gays e lésbicas
to na fidelidade dentro do individualmente.
convênio do casamento entre
um homem e uma mulher ***
(W-4,9001), ou a castidade
no celibato. Pessoas que se Em julho de 2010, por uma
recusam a arrepender-se de votação de 373 a 323 - favorável, a
qualquer prática de auto-afir- Assembleia Geral voltou a propor
mação, chamada pecado, não aos presbitérios a ratificação de
devem ser ordenadas e/ou uma emenda constitucional que
empossadas como diáconos, retirava do Livro de Ordem a seção
presbíteros e ministros da G- 6.0106.b, que incluiu esta exi-
Palavra e dos Sacramentos. gência explícita para a ordenação:
“Entre esses padrões exige-se que
A rede “Aliança de presbiteria- se viva tanto na fidelidade dentro
nos” foi fundada em 1997 para re- do matrimônio entre um homem
mover esta proibição, composta em e uma mulher ou a castidade no
grande parte de aliados GBLT, tanto celibato”. Esta proposta de ratifi-
indivíduos como congregações. cação requeria a maioria dos 173
Uma alteração substitutiva fa- presbitérios dentro dos 12 meses
lhou no ano seguinte, mas um mo- que antecediam a próxima Assem-
CHRIS GLASER

vimento para apagar G-6.0106b e bleia Geral. A maioria dos votos


remover todas as anteriores “orien- dos presbitérios foi alcançada em
tação definitiva” sobre a ordenação maio de 2011.
de homossexuais foi aprovado A emenda constitucional entrou

92
em vigor 10 de julho de 2011.
Esta alteração trouxe de volta para

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


o “ordaining body” (comissão de
ordenação de cada presbitério) a
responsabilidade de tomar decisões
sobre quem deve ordenar e o que
se deve exigir de seus candidatos à
ordenação. A emenda não impede
nem impõe o uso da terminologia
“fidelidade e castidade”.
Atualmente cada “ordaining
body” presbiterial é responsável
para fazer a sua própria interpreta-

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


ção do que a Escritura e as confis-
sões exigem dos oficiais ordenados,
o que já acontecia antes da inserção
da expressão “fidelidade e castida-
de” em 1997.

93
Resenhas:
PÁGINAS 94 A 99, 2013
RESENHA - TEMPO DE ABRAÇAR – AS RELAÇÕES HOMOGENÉRICAS NA RELIGIÃO, NA LEI E NA POLÍTICA

Tempo de Abraçar –
As Relações Homogenéricas
na Religião, na Lei e na Política
William Stacy Johnson escre-

Paul E. Capetz*
veu um grande livro abordando
a controvérsia sobre as relações
homogenéricas e o seu possível
reconhecimento pela igreja e
pela sociedade.
Os subtítulos claramente
indicam seus três focos: “Reli-
gião” (parte 1), “Lei e Política”
(parte 2). Além de prover uma
JOHNSON, William Stacy.
A Time to Embrace: Same- análise lúcida das questões in-
Gender Relationships in terrrelacionadas em religião, lei
Religion, Law, and Politics. e política, na medida em que têm
Grand Rapids: Eerdmans,
a ver com o tema das parcerias
2006, 440 p. US $ 25.00
encadernado. homossexuais, Johnson coloca
sua proposta construtiva para
uma solução do debate nos seus
múltiplos níveis.
Logo no início coloca sucin-
tamente a sua tese:

“Sustento que as uniões


homogenéricas devem ser
consagradas em nossas co-
PAUL E. CAPETZ

* United Theological Seminary of the Twin Cities


New Brighton, Minnesota. USA. munidades religiosas, valida-
(Resenha bibliográfica na revista Interpretation, Outu- das em nossos sistemas legais
bro de 2007, vl. 61, no. 4, p. 438 a 440. Tradução: José
Cássio Martins). e acolhidas na estrutura de

94
nossa democracia política. parte do livro é sobre religião, co-
Uma atitude acolhedora e afir- brindo o terreno já extensamente

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


mativa, eu creio, é vital para a trilhado por outros autores de

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE Vol.


RESENHA - Tempo de Abraçar – As Relações Homogenéricas na Religião, na Lei e na Política
integridade das nossas comuni- vários pontos de vista teológicos e
dades religiosas; é imperativa morais.
para a consistência intrínseca de O que é novo no tratamento
nosso sistema legal; e é neces- dado por Johnson, entretanto, é sua
sária para o bem-estar de nossa tipologia sistemática de posições,
cultura democrática a longo visando iluminar as bases teológicas
prazo” (p. 3). dos múltiplos ângulos escolhidos
pelas comunidades religiosas quan-
Johnson tem cacife único e con- to a pessoas “gays” ou lésbicas em
vincente, sendo, assim, muito bem seu meio.
indicado para empreender uma Sua tipologia delineia 7 maneiras

Vol.1 1nºnº
abordagem integrada do conjunto de se encarar as relações homoge-
destas questões tão complicadas: néricas: 1) Proibição; 2) Tolerância;

10, outubro de 2013, São Paulo, SP


ele é advogado, pastor presbiteriano

10, outubro de 2013, São Paulo, SP


3) Acomodação; 4) Legitimação;
ordenado e professor de teologia no 5) Celebração; 6) Liberação e 7)
Seminário Teológico de Princeton. Consagração.
Ele já serviu sua denominação como Johnson considera cada uma
membro da “Theological Task Force destas 7 posições neste espectro
on Peace, Unity and Purity of the sob a perspectiva de três doutrinas:
Church” (Força-Tarefa de Teologia
sobre Paz, Unidade e Pureza da • criação (nossa relação com
Igreja), composta para ajudar a igre- Deus, considerada à parte
ja a lidar mais fiel e adequadamente do pecado humano),
com conflitos, em face da grave fal- • reconciliação (como nossa
ta de consenso sobre a consideração relação rompida com Deus
moral da homossexualidade. é restaurada) e
Um livro deste alcance e ampli- • redenção (pondo em prática
PÁGINAS 94 A 99

tude não poderia ter sido escrito a totalidade de nossa relação


por ninguém que não tivesse a com- restaurada com Deus).
binação especial das qualificações
de Johnson, sem grave perda de Cada posição, ele argumenta,
Paul E. Capetz

profundidade e perícia. A primeira tende a dar prioridade a uma pers-

95
pectiva doutrinária sobre as outras. de que ela seja boa, meramente
Johnson crê que cada uma das 7 porque é natural.
PÁGINAS 94 A 99, 2013
RESENHA - TEMPO DE ABRAÇAR – AS RELAÇÕES HOMOGENÉRICAS NA RELIGIÃO, NA LEI E NA POLÍTICA

posições traz uma valiosa argumen- Os consagracionistas rejeitam


tação sobre a fé e a vida cristãs, que a pressuposição proibicionista de
precisa ser apreciada por todas as que a criação forneça um padrão
outras. Mas isto não significa que estático e, portanto inequívoco
todas sejam igualmente válidas. para a organização apropriada da
Consagração é a posição defen- vida sexual e familiar (casamento).
dida por Johnson. Este conceito “faz Em contraste com os celebra-
uma colocação bíblica e teológica cionistas, os consagracionistas sus-
não apenas afirmando as uniões tentam que “nada é bom em e por
homogenéricas, mas propondo si próprio, exceto o próprio Deus”
também a consagração de tais uni- (p. 101).
ões, desde que sejam exclusivas, Os consagracionistas também
dedicadas e assumidas para toda a diferem dos toleracionistas que
vida” (p. 95 – 96; este é também o exaltam a doutrina da reconciliação
ponto de vista de Rowan Williams, como primária, pois para isso seria
Arcebispo da Cantuária). exigido um “duplo arrependimen-
A posição “consagracionista” to”: os heterossexuais precisariam
coloca sua ênfase na redenção, ao arrepender-se de sua homofobia,
invés da criação (natureza), uma enquanto os “gays” precisariam
vez que esta é ambígua e que seu arrepender-se de suas práticas ho-
significado só se torna claro à luz mossexuais.
da redenção (alvo, ou telos da na- Esta posição, oriunda da ética
tureza). de Karl Barth, é inerentemente
Assim sendo, esta posição difere instável. Semelhantemente, os
tanto da “proibicionista”, como da acomodacionistas, para quem a
“celebracionista”, cujas posições redenção é básica, apresentam uma
paradoxais são baseadas nos seus posição igualmente instável, pois
respectivos modos de entender a recusam-se a afirmar as relações ho-
doutrina da criação: os consagra- mogenéricas, ao mesmo tempo em
cionistas rejeitam tanto a alegação que admitem exceções individuais
PAUL E. CAPETZ

proibicionista de que a homossexu- como concessões programáticas a


alidade seja uma violação da nature- uma humanidade decaída.
za, como a alegação celebracionsita (Por uma questão de brevidade

96
omito a discussão das posições delas e atacar aqueles cujos concei-
legitimacionistas e liberacionistas). tos que ele considera equivocados

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


Os consagracionistas afirmam é uma grande parte da mensagem
que o pecado não é residente nem na do livro, algo que se torna ainda
orientação, nem no comportamento mais explícito quando ele começa
sexual em si, mas perguntam se a discutir o que significa viver numa
nossas vidas estão corretamente democracia.
organizadas para com Deus. As A discussão da lei e da política é
pessoas, não a sexualidade, são os tão iluminadora quanto a discussão
verdadeiros objetos da celebração estritamente teológica, embora
e as nossas relações dedicadas e possivelmente mais instrutiva para
assumidas são os meios de graça aqueles menos informados em
(p. 103). questões legais.
Embora muito disto tudo seja Johnson esclarece que está em

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


território familiar para aqueles de jogo para a nossa sociedade algo
nós já há muito envolvidos nos de- infinitamente mais importante do
bates eclesiásticos, ainda estou para que a chamada “guerra de cultu-
ver uma análise sistemática mais ras”, uma vez que o próprio sentido
hábil dos meandros das várias posi- da democracia está sendo testado
ções intra-cristãs quanto às relações neste desafio. Ele explica por que
homogenéricas. Além do mais, uma um tratamento igualitário para as
vez que a controvérsia religiosa pessoas sob a lei é um imperativo
alimenta enormemente o debate em uma política verdadeiramente
secular, é indispensável, mesmo democrática. E porque, mesmo
aos que não têm crença alguma grupos contrários às relações ho-
explícita, tentar compreender o que mogenéricas em bases morais e
está em jogo existencialmente para religiosas devem tomar posição
os partidários das várias posições. no sentido de que seja assegurada
Dada a franqueza de suas po- justiça igual para todos.
sições sobre o assunto, os leitores A ironia nas nossas atuais cir-
poderão se surpreender com o tom cunstâncias, entretanto, é que
pacífico com que Johnson delineia “um grupo, ao exercer seu direito
as posições abordadas, com as quais democrático de expressar oposição
ele próprio não concorda. Contudo, ao comportamento do outro grupo,
esta recusa em descartar qualquer está solapando o direito democrático

97
dele a igual cidadania” (p. 104). A confusão aqui resulta da meia
Mas, como o próprio Johnson verdade que democracia é o reino
PÁGINAS 94 A 99, 2013
RESENHA - TEMPO DE ABRAÇAR – AS RELAÇÕES HOMOGENÉRICAS NA RELIGIÃO, NA LEI E NA POLÍTICA

esclarece, dois tipos bem diferentes da maioria. Mas isto nunca foi as-
de direitos, ambos essenciais a uma sim, sem que seja mais qualificado.
democracia, têm sido falsamente Johnson cita a afirmação do juiz
atirados um contra o outro. Robert Jackson, da Suprema Corte
Todas as pessoas têm o direito de de Justiça dos Estados Unidos (ele
expressar vigorosamente seus pon- que serviu como principal conse-
tos de vista em praça pública. Ao lheiro para os E.U. no julgamento
mesmo tempo, contudo, todas as de Nuremberg), onde disse que “o
pessoas, inclusive os homossexuais, princípio democrático fundante
têm o direito de se beneficiar desta de que ‘direitos fundamentais não
justiça que opera sob a lei. Um é o podem ser sujeitos a votação; eles
direito da livre expressão; o outro é não dependem do resultado de
o direito da plena inclusão. nenhuma eleição’” (p. 195).

“ Uma vez que o casamento é um contrato civil


regulado pelo Estado, a maneira como grupos
religiosos definem o casamento não tem
nenhuma relevância direta em relação à sua
definição pelo Estado. Toda esta seção do livro
de Johnson é uma lição básica de direitos civis
e, a partir daí, também sobre o que significa
ser um participante ativo da nobre tradição da
democracia norte americana.
Johnson argumenta coerente e persuasivamente
sobre suas teses conectadas entre si. Além do
mais, fica bem aparente que ele é motivado por
uma paixão pela justiça e pela compaixão por
aquelas pessoas e grupos aos quais a justiça é
PAUL E. CAPETZ

negada.

98
Uma vez que o casamento é um pela compaixão por aquelas pes-
contrato civil regulado pelo Estado, soas e grupos aos quais a justiça

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


a maneira como grupos religiosos é negada.
definem o casamento não tem ne- Uma vez que o livro consegue
nhuma relevância direta em relação brilhantemente apresentar todas
à sua definição pelo Estado. Toda as facetas da controvérsia, ele é
esta seção do livro de Johnson é uma realização que merece ser lida
uma lição básica de direitos civis e, e ponderada por todos os que se
a partir daí, também sobre o que preocupam com a integridade da
significa ser um participante ativo vida religiosa e política do país hoje.
da nobre tradição da democracia Com efeito, se é que existe um
norte americana. livro que deve ser lido em todas as
Johnson argumenta coerente e igrejas, seminários e faculdades de

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


persuasivamente sobre suas teses direito, este livro é o de Johnson;
conectadas entre si. Além do mais, não há outra obra mais excelente
fica bem aparente que ele é moti- até esta data sobre este debate tão
vado por uma paixão pela justiça e carregado e tão crucial.

99
Em nome de Deus –
EDSON DE SOUZA LIMA E MILTON MOREIRA
RESENHA - EM NOME DE DEUS – O FUNDAMENTALISMO NO JUDAÍSMO, NO CRISTIANISMO E NO ISLAMISMO

O Fundamentalismo no Judaísmo, no
Cristianismo e no Islamismo

Karen Armstrong, conside-

Edson de Souza Lima* e Milton Moreira**


rada pela crítica uma das mais
importantes historiadoras das
religiões na atualidade, tem
contribuído com diversos livros
a partir de pesquisas dentro da
área. Recentemente concedeu
uma entrevista à Revista Época
(25/05/2013), onde discorreu
sobre questões como intolerân-
cia religiosa, fundamentalismo
ARMSTRONG, Karen.
Em nome de Deus – o e ateísmo.
fundamentalismo no Em nome de Deus – O Fun-
Judaísmo, no Cristianismo damentalismo, no Judaísmo, no
e no Islamismo. S. Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
Cristianismo e no Islamismo
trata de um tema de extrema
relevância nos dias atuais e dá
importante contribuição para
ajudar no esclarecimento de
conceitos para a discussão in-
ter-religiosa.
PÁGINAS 100 A 104, 2013

Em suas páginas encontramos


um amplo estudo sobre os fun-
damentalismos: protestante nos
Estados Unidos, sunita no Egito,
* Bacharel em Teologia. xiita no Irã e judaico em Israel.
** Acadêmico de Teologia. Trata da expulsão dos judeus e

100
muçulmanos da Europa em 1492, um vai-e-vem que muitas vezes leva
passa pela Inquisição na Espanha e a conclusões precipitadas de secu-

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


permite uma profunda compreen- laristas orgulhosos que, por vezes,

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP PÁGINAS 100 A 104
Edson de Souza Lima e Milton Moreira
RESENHA - Em nome de Deus – o fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo
são de sua natureza até os dias de acreditam em uma vitória sobre o
hoje. Mostra, como a descoberta da mundo do mythos.
América, as descobertas científicas Dwight Moody, no final do
no campo da astronomia, matemá- século XIX, nos Estados Unidos,
tica etc., colocaram a sociedade Moody foi considerado o pai do
europeia na era moderna, rompen- fundamentalismo. Institutos foram
do com a época medieval e trans- criados, como o Bible Institute of
formando a sociedade ocidental Los Angeles e o próprio Moody Bib-
em termos políticos, econômicos, le Institute em Chicago. Combater
culturais e até religiosos. os ensinamentos da Alta Crítica
Tais acontecimentos afetaram tornou-se o principal motivo para

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


profundamente a vida de judeus, a criação destes institutos apoiados
mulçumanos e cristãos, o que leva por magnatas do capitalismo.
a autora a discorrer acerca do em- A visão crítica fundamentalista
bate entre mythos e logos dando enxergava no âmbito da própria
origem ao fundamentalismo, que instituição religiosa liberal um
caracterizou a vida desses grupos re- problema visceral que destruiria
ligiosos. Devido às crises políticas, a fé cristã. A forma de defesa era
econômicas, sociais e religiosas e o ataque e de forma agressiva e
ao sofrimento que cada uma destas furiosa, uma expressão de medo
três grandes religiões monoteístas acima de tudo. A necessidade do
houve uma busca intensa por uma mythos de utilizar argumentos de
fé que atendesse às verdadeiras infalibilidade demonstrava uma téc-
necessidades dos fiéis através do nica de defesa. Os pré- milenaristas
retorno às fontes, o que permitiu americanos cultivavam uma visão
a construção de sua identificação de vingança em relação àqueles que
com uma fé racionalizada. viviam em oposição aos princípios
Karen mostra como o cenário fundamentalistas. Diz Karen que “a
entre o mundo secular e o religioso linguagem mítica não pode tradu-
assume proporções de uma guerra, zir-se em linguagem racional sem
e demonstra com ricos detalhes perder sua razão de ser”.
históricos como isto acontece em O liberalismo humanista in-

101
fundiu um espírito de medo que Na década de 60 e meados da
produziu no meio fundamentalista década de 70 existia um clima de
EDSON DE SOUZA LIMA E MILTON MOREIRA
RESENHA - EM NOME DE DEUS – O FUNDAMENTALISMO NO JUDAÍSMO, NO CRISTIANISMO E NO ISLAMISMO

um sentimento de aniquilamento. revolução tanto no ocidente como


E este sentimento foi uma semen- no oriente, apresentado como um
te plantada no coração de uma protesto contra a dominação ile-
sociedade jovem, que começava a gítima da linguagem racional e a
perder as esperanças naquilo que substituição do mythos pelo logos.
se acreditava ser o novo “establish- Os fundamentalistas começaram
ment” da sociedade moderna.Tan- a mobilizar-se contra aquilo que
to fundamentalistas judeus, como representava um ataque às suas
islâmicos e protestantes america- convicções.
nos se viram na necessidade de se A modernidade também afeta o
defender e lutar para sobreviver. mundo mulçumano dos egípcios e
Na década de 1960, a revo- iranianos. Há uma incompatibilida-
lução estava no ar, tanto no oci- de entre o Islã e o Ocidente, pois
dente como no Oriente Médio. possuem ideais diametralmente
A juventude começa a criar uma opostos. Contudo, muitos intelec-
contracultura em relação aos va- tuais influenciados por uma cultura
lores vigentes. Quando o mythos ocidental, viam oportunidades de
se converte em ideologia, nascem casar as experiências e conhecimen-
os movimentos radicais. tos do mundo moderno com os an-
No final da década de 70 os seios e necessidades do Irã e Egito.
tradicionalistas judeus, cristãos Nasce também neste sentido, os
e mulçumanos estavam prontos que acreditavam que a religião era
para revidar. Para o establishment a causa da desordem na sociedade.
secularista esta repentina erupção Nesta etapa, a revolução ira-
religiosa causou estranhamento. niana foi o acontecimento que
Acreditavam que a modernidade pela primeira vez alertou o mundo
PÁGINAS 100 A 104, 2013

já havia enterrado os conceitos para o potencial fundamentalista.


tradicionalistas com seus prin- Outros movimentos surgiram para
cípios arcaicos e estranhos. No consolidar um acontecimento sem
entanto, foram surpreendidos ao volta. Tivemos o exemplo da guer-
ver que milhões de judeus, cristãos ra do Yom Kippur mostrando o
e mulçumanos devotos odiavam a engajamento judeu em uma guerra
cultura secular. contra as forças do mal. Israelenses

102
formaram também o Gush Emu- fatos tiveram como pano de fundo
nim “Bloco dos Fiéis”, que viam o a Revolução Iraniana que chocou

REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE


judaísmo e a cultura ocidental como muitos ocidentais. Americanos ti-
antíteses. Ao adotar o estilo de veram sua nação qualificada como
vida proposto pelos integrantes do satânica. A barbárie aparentemente
Gush formou-se uma contracultura venceu o iluminismo.
que levou seus fiéis a afastarem-se A revivescência fundamentalista
inclusive do Israel Secular. que ocorreu nos Estados Unidos em
O ressurgimento do fundamen- fins da década de 1970 foi bem me-
talismo não foi repentino e nem nos dramática, se comparada com
surpreendente. Tirou do conforto a vivida no Islamismo. Os america-
os secularistas que acreditavam que nos não precisavam trabalhar com
o homem era a medida de todas as lembranças de um holocausto, nem

Vol. 1 nº 10, outubro de 2013, São Paulo, SP


coisas. Os secularistas ocidentali- lidar com pressões políticas e eco-
zados subestimaram a contracul- nômicas. Viviam um dilema, pois
tura religiosa que se desenvolveu ao mesmo tempo que repudiavam
durante anos nos três segmentos os conceitos provenientes da se-
monoteístas. cularização, seus lideres se valiam
Esse contexto propiciou o sur- das benesses do novo mundo e se
gimento de uma seita muçulmana enriqueciam.
radical em que o sentimento de Karen Armstrong mostra os fun-
desprezo, ódio e marginalização damentalismos como uma resposta
entre jovens com acesso a uma à castração da religiosidade durante
estrutura de ensino praticamente a modernização e o cientificismo.
falida despertou o desejo de um Porém, este processo em nada foi
rompimento com as ideologias simples e claro. O medo de ani-
ocidentais. Criou-se a sensação de quilação e da falta de um diálogo
abandono dentro da própria socie- impossível de ser travado entre o
dade em que se vivia. inchaço do logos e o mythos de-
A imposição de regras de con- monstram exageros de ambos os
duta, que afirmavam um modo lados.
de ser muçulmano na tentativa de Desta maneira a autora compara
marcar seu espaço dentro de uma os movimentos fundamentalistas
sociedade ocidental em expansão, sem condená-los, apesar de se mos-
levou a movimentos violentos. Tais trar apreensiva com a agressividade

103

EDSON DE SOUZA LIMA E MILTON MOREIRA
RESENHA - EM NOME DE DEUS – O FUNDAMENTALISMO NO JUDAÍSMO, NO CRISTIANISMO E NO ISLAMISMO

Karen Armstrong mostra os fundamentalismos como


uma resposta à castração da religiosidade durante a
modernização e o cientificismo. Porém, este processo
em nada foi simples e claro. O medo de aniquilação
e da falta de um diálogo impossível de ser travado
entre o inchaço do logos e o mythos demonstram
exageros de ambos os lados.
Desta maneira a autora compara os movimentos
fundamentalistas sem condená-los, apesar de se
mostrar apreensiva com a agressividade com que
as relações destes radicais e a sociedade secular
vêm se apresentando. Armstrong insiste que
ambos simplesmente não falam a mesma língua e
apela novamente para a compreensão dos Estados
Seculares para com os fundamentalistas.

com que as relações destes radicais e aponta para o que ela considera
a sociedade secular vêm se apresen- talvez a natureza humana: há agres-
tando. Armstrong insiste que ambos sividade, massacres e preconceitos
simplesmente não falam a mesma em todos nós numa disputa entre
língua e apela novamente para a o secularismo e a religião.
compreensão dos Estados Seculares Fica a sugestão para uma leitura
para com os fundamentalistas. com o um rico conteúdo histórico,
Ao mostrar as semelhanças entre capaz de despertar o interesse por
os movimentos, tanto nas ideologias uma avaliação mais intensa e com
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quanto nas doutrinas e planos de vários outros pontos de vista. Con-


ação e os genocídios e limpezas ét- tudo, para quem procura uma visão
nicas causados por uma moderniza- com profundidade teológica pode
ção que se apresenta na maioria das não encontrar na autora material
vezes de forma agressiva, a autora suficiente.

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