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Documentário e jornalismo:
produções antigas podem ser inovadoras*
Dulcília Helena Schroeder Buitoni - Documentário e jornalismo: produções antigas podem ser inovadoras
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Dulcília Helena Schroeder Buitoni - Documentário e jornalismo: produções antigas podem ser inovadoras
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sível. O movimento sem tempo, ainda que Os exemplos que apontaremos utilizam a
não necessariamente sem duração, supõe a imagem fotográfica extensivamente. Os dois
possibilidade de revitalizar a condição fixa primeiros documentários foram analisados e
da imagem, de revitalizar a atuação de suas
potencialidades sincrônicas que haviam mostrados como procedimentos expressivos
sido obliteradas pela potência temporal valiosos em nossa tese de livre-docência já re-
das imagens cinéticas (Català, 2005:47). ferida. Chapeleiros (1983), de Adrian Cooper,
é um documentário que fez parte de pesqui-
sa sobre industrialização no Brasil na área de
3. Imagem e verbo: sincronias, silêncio, História da UNICAMP. Trata-se, portanto, de
expressão uma obra inserida num prévio universo de in-
vestigação. Chapeleiros acompanha em longos
Desde os anos 1980, ao refletir sobre ex- planos-seqüência a rotina de operários dentro
perimentações de linguagem visual que po- de uma fábrica de chapéus – de característi-
deriam ser utilizadas com as finalidades jor- cas industriais muito arcaicas, remontando ao
nalísticas e/ou documentais, deparamo-nos início do século XX – que permanecia prati-
com algumas produções fílmicas que até camente intocada até o ano da filmagem. Há
agora conservam a chama da expressivida- esse primeiro choque: a sobrevivência de an-
de. Em todas, o trabalho com a presença ou tigos processos industriais, não condizentes
não do verbal é elemento fundante. Todas com a realidade trabalhista da época. Outra
podiam e podem contribuir para que se ul- grande surpresa é a ausência de texto falado,
trapassem os limites da convenção jornalís- algo quase obrigatório em documentários e
tica. John Berger, que pesquisou junto com principalmente em reportagens jornalísticas.
Jean Mohr outras formas de narrativas com O documentário exibe som direto – das má-
fotografia, considera que a fotografia cita quinas – e apenas num momento há um tre-
as aparências (Berger e Mohr, 2007:111). cho de música clássica, logo depois da parte
E continua: “Todo fotógrafo sabe que uma inicial. Durante alguns minutos, o espectador
fotografia simplifica. A simplificação tem a espera por uma voz que venha explicar que fá-
ver com o foco, a tonalidade, a profundida- brica é essa, as condições de trabalho etc.
de de campo, o enquadramento (...) Uma A voz do documentarista ou do locu-
fotografia cita as aparências; mas, ao fazê- tor em off – detentores do poder de enun-
lo, as simplifica. Essa simplificação pode ciação – não aparece nos quase 30 minutos
aumentar a legibilidade. Tudo depende da do documentário. Também não há letreiros
qualidade da citação escolhida” (Berger e identificadores: apenas o título no início e os
Mohr, 2007:119). créditos finais trazem texto verbal. Palavras
A tendência predominante nas fotogra- impressas são focalizadas pela câmera em
fias jornalísticas é a simplificação. Em nos- dois momentos: o nome da fábrica, inscrito
sos dias, a multiplicidade e a facilidade de num vidro, e um quadro de normas de con-
se utilizar imagens aumenta ainda mais a duta de operários, com grafia muito antiga.
simplificação: as fotos são meramente iden- Os planos-seqüência por vezes se demo-
tificatórias, servem para reconhecimento e, ram em um ou outro personagem, com um
mesmo quando foram feitas especialmente, enquadramento quase de retrato fotográfico.
parecem retiradas de catálogo ou de bancos As cenas inaugurais, de operário dormindo
de imagem. No entanto, Berger aponta que em cima de mesa de metal, remetem a con-
há fotografias que citam brevemente, mas há cepções de pintura clássica – quadros de
outras que citam extensamente. Explica que Cristo morto. Não é uma fotografia simplifi-
a extensão não tem nada a ver com o tempo cadora. Vemos uma série de imagens abertas
de exposição; não é uma extensão temporal: – na conceituação de Català –; há movimen-
“O que se prolonga não é o tempo, é o signi- tos internos e externos das imagens, movi-
ficado” (Berger e Mohr, 2007:120). mento do olhar dentro das imagens.
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cial e mesmo assim não perdem a função de construções nos padrões convencionais, mas
registrar o real. Pelo contrário, as funções o ficcional não dá a tonalidade mais forte,
documentais da imagem e do som foram re- embora faça pequenas aparições. Ambos são
alçadas: as séries sonoras e visuais ganharam discursos construídos com o real. E ambos
mais significação. O uso da imagem fixa, ao instigam reflexões sobre o documentário.
invés de fragmentar o movimento, também Mais dois exemplos de documentários
acrescentou sentidos. construídos a partir de fotos, um com movi-
mento e outro apresentado em formato im-
presso, merecem ser apontados. Eles propõem
significados através de novas conexões bem
A busca de uma ar- na linha da conceituação de “imagem aberta”
queologia documentá- de Josep Català. Marcelo Tassara, professor
ria pode trazer muitos de cinema da ECA-USP, realizou em 1969 o
sentidos às imagens documentário A João Guimarães Rosa, com
contemporâneas, ao animação de fotos de Maureen Bisilliat com
jornalismo impresso, temas sertanejos referentes a Grande sertão:
veredas. Coordenado por Roberto Santos,
na televisão e na web foi produzido pela ECA em 35mm e lançado
ainda antes de ser formada a primeira tur-
ma.5 A inglesa Maureen Bisilliat havia feito
Nos dois documentários, houve altera- importantes reportagens fotográficas para a
ções no movimento. A condição fixa da ima- revista Realidade, registrando trabalhadores
gem fotográfica foi revitalizada ao ser inse- rurais, catadores de caranguejo e culturas
rida entre planos-seqüência, criando uma indígenas, temas que continuaram a ser de-
temporalidade diferida. Tempo e duração senvolvidos em sua carreira. As fotos foram
articulam um olhar reflexivo, potencializan- filmadas com animação, de maneira tal que,
do cognição e consciência. em algumas seqüências, principalmente com
bois e cavalos, tinha-se a impressão de que
4. Movimento a partir do estático eram imagens em movimento. Textos de
Grande sertão: veredas lidos por Humberto
Francisco Elivaldo Teixeira aponta4 três Marçal e música de Chico Morais caminha-
referências teóricas na bibliografia sobre vam com as imagens.
gênero documentário: Arthur Omar prega Classificado como documentário, essa
uma desconstrução da linguagem documen- obra traz indagações a respeito do movimen-
tal dominante, resultando então num “mo- to. A filmagem de cenas de movimento não
delo ficcional”; Jean-Claude Bernadet sus- é imprescindível para o efeito do real: pode-
tenta que há possibilidade de atingir um real mos apontar para o referente mesmo através
em documentários concebidos como “dis- da simulação. Ainda assim, A João Guimarães
cursos” construídos no real – um “modelo Rosa talvez seja o menos “jornalístico” dos
sociológico”; e Silvio-Da-Rin, com heranças exemplos aqui reunidos.
de Grierson e tendências reflexivas: “modelo O outro exemplo é Si cada vez..., seqüên-
ilusionista”. Entendemos que propostas em- cia de fotos do suíço Jean Mohr (umas pou-
butidas nesses três “modelos” possam trazer cas de autoria de John Berger) organizada por
inovações a documentários jornalísticos. ele e pelo crítico de arte, escritor e roteirista
Chapeleiros e Ó xente, pois não operam des- John Berger, autor de livros inovadores so-
4
No ensaio “Eu é outro: documentário e narrativa indireta li-
vre” e na introdução ao livro Documentário no Brasil: tradição 5
A Escola de Comunicações e Artes da USP, fundada como Es-
e transformação, por ele organizado, Francisco E. Teixeira traça cola de Comunicações Culturais, iniciou seus cursos em 1967;
linhas histórico-teóricas sobre o fazer documentário. a primeira turma formou-se em 1970.
bre visualidades artísticas e midiáticas. Essa livro, Berger diferencia fotografia e pelícu-
seqüência faz parte do livro Otra manera de la. Para ele, as fotografias são retrospectivas
contar6, que reúne reflexões sobre fotografia – busca-se o que estava ali: os filmes são
e algumas “narrativas” fotográficas. Mohr antecipatórios; esperamos ver o que vai vir
e Berger escrevem em nota que precede as em continuação. Nesse sentido, o cinema é
fotos – muitas cenas do campo (muitas da uma aventura que avança. E continua: “Ao
França, algumas de paises europeus), traba- contrário, se existe uma forma narrativa in-
lhos manuais, algumas fotos de cidades (Pa- trínseca à fotografia fixa, esta buscará o que
lermo, Paris, Genebra, Túnis...), fotos antigas aconteceu, como ocorre com as lembranças e
– que é impossível dar uma chave verbal ou reflexões (...) A memória é um campo onde
uma linha argumentativa para as imagens. coexistem diferentes tempos”.
Assim, vamos seguindo essa narrativa visual Marcelo Tassara usou fotos fixas para
sem que haja legenda com identificação. Eles criar um filme: evidentemente, seus procedi-
apenas mencionam, na nota ao leitor, que mentos se distinguem dos de Berger e Mohr.
imaginaram uma protagonista, inventada: No entanto, nos dois trabalhos há o vínculo
uma camponesa nascida nos Alpes, que teria do registro do real. Mais que tudo, o que nos
ido à cidade trabalhar em serviços domésti- interessa aqui é rastrear algumas possibilida-
cos e depois voltado ao campo. As fotografias des discursivas que foram utilizadas sob for-
seriam como o pensamento de uma anciã ma de documentário cinematográfico e que
que repassa sua vida: o nascer, a infância, o hoje poderiam enriquecer produções audio-
trabalho, a emigração, a morte, a solidão... visuais jornalísticas.
As fotos não são acompanhadas de qualquer A versão na internet do jornal argentino
texto; ao final do livro, temos os créditos re- Clarín tem apresentado experimentações no
lativos a cada página, com indicação de obje- uso da imagem fotográfica, incorporando
to e local ou somente o local. animações e fazendo conexões inovadoras
Os autores têm consciência de que as fo- com falas de entrevistados. Muitas vezes, a
tos não pretendem ser documentais: fotografia funciona como elemento que di-
reciona a um link. Pequenas entrevistas de
Isto é, não documentam a vida de uma
editorias de cidades ou cultura costumam
mulher – nem sequer sua vida subjetiva.
Foram incluídas fotografias de momen- apresentar movimento por meio de zoom
tos e de cenas que ela nunca havia podido numa única fotografia fixa, enquanto ouvi-
presenciar. Por exemplo, na longa seqüên- mos o áudio com a fala da pessoa em foco.
cia relativa ao impacto de uma metrópole Na seção “Multimedia”, o www.clarin veicula
em um emigrante nascido num povoa- fotorreportagens de vários autores e audio-
do, utilizamos não só fotos de Paris, mas
visuais especiais sobre temas políticos e cul-
também de Istambul. Todas as fotografias
empregam a linguagem das aparências. turais, com montagens que utilizam recursos
Neste caso, tratamos de usar tal linguagem tecnológicos sofisticados. O documentário
não só para ilustrar, mas também articu- Borges en Clarín é um excelente exemplo de
lar uma experiência vivida” (Berger, Mohr, trânsito entre linguagens verbais e visuais.
2007:133-134). Ausência de discurso verbal; uma certa
dissociação entre imagem e fala, uso de fotos
Nesse trabalho há deslocamentos tempo-
para montar uma narrativa cinematográfica;
rais, deslocamentos espaciais e a criação de
incorporação de gravuras e desenhos, fotos
uma espécie de personagem. Ainda assim,
documentais sem legendas são “perturba-
não hesitamos em situá-lo dentro do para-
ções” de formas estabelecidas de documen-
digma documentário. No texto “Histórias”
tar e contar. Essa busca de uma arqueologia
(Berger, Mohr, 2007:279-280) do mesmo
documentária é uma metodologia que pode
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O livro Another way of telling foi publicado em 1982. A primeira trazer muitos sentidos às imagens contem-
edição espanhola é de 1997 e a atual, por nós consultada, de 2007. porâneas, ao jornalismo impresso, ao jorna-
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Referências
BERGER, J.; MOHR, J. Otra manera de contar. Barcelona: Gus- CATALÀ, Josep M. La imagen compleja: la fenomenologia
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E. (org.) Documentário no Brasil: tradição e transformação. São ón cinematopográfica. Barcelona: Paidós, 2001
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São Paulo: Tese de livre docência apresentada ao Departamen- TEIXEIRA, Francisco E. (org.) Documentário no Brasil: tradi-
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