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Documentário e jornalismo:
produções antigas podem ser inovadoras*

Dulcília Helena Schroeder Buitoni


Livre-docente e titular de Jornalismo (ECA-USP)
Professora de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero
E-mail: dbuitoni@facasper.com.br

Resumo: São ilimitadas as possibilidades expressivas no campo


audiovisual e, no entanto, a maior parte das matérias e documen- 1. A fotografia fixa se move
tários jornalísticos apresentados na televisão ou na internet segue
formatos convencionais. A proposta deste texto é buscar estratégias Voltar a filmes do passado pode ser um
construtivas inovadoras em documentários do século passado,
tais como Chapeleiros (1983) de Adrian Cooper, Ó xente, pois não
percurso produtivo quando se pensa em ex-
(1976) de Joaquim Assis e A João Guimarães Rosa (1969) de Mar- perimentações de linguagem. Mesmo que se
celo Tassara. Mesmo adotando andamento cinematográfico, esses altere a maneira convencional de representa-
três filmes apresentam alguns fotogramas com estética de fotografia
fixa, incluindo a forma retrato. ção realista, a vinculação com o real perma-
Palavras-chave: documentário, jornalismo audiovisual, fotografia, nece, às vezes, ainda mais evidente. A forma
relações verbal / visual.
documentária vem dos primórdios do cine-
Documentales y periodismo: producciones antiguas pueden ser ma e se desdobra em produções cinemato-
innovadoras gráficas, jornalísticas, para canais específicos
Resumen: Son ilimitadas la posibilidades expresivas en el campo
audiovisual y, sin embargo, la mayor parte de las materias y docu-
da TV paga, em matérias do webjornalismo...
mentales periodísticos presentados en la televisión o en la Internet Por mais que a noção de reprodução do real
sigue formatos convencionales. La propuesta de este texto es buscar seja questionada por alguns teóricos e rea-
estrategias constructivas innovadoras en documentales del siglo pa-
sado, tales como Chapeleiros (1983), de Adrian Cooper, Ó xente, pois lizadores, a presença do índice, da marca, é
não (1976), de Joaquim Assis e A João Guimarães Rosa (1969), de o apelo predominante para sua produção
Marcelo Tassara. Aun adoptando recorrido cinematográfico, esos
tres filmes presentan algunos fotogramas con estética de fotografía
e consumo. E índice é cordão umbilical da
fija, incluyendo la forma retrato. imagem fotográfica. Este texto trabalha com
Palabras clave: documental, periodismo audiovisual, fotografía, re- a idéia de que é possível fugir dos padrões
laciones verbal/visual.
jornalísticos habituais sem perder o caráter
Documentary and journalism: old productions can be in- de registro.
novative A discussão da reprodução do real não
Abstract: The expressive possibilities in the audiovisual field are un-
limited nowadays. Nevertheless, most news stories and documen-
está entre os propósitos deste texto. Nosso
taries shown on TV and the Internet follow conventional formats. foco volta-se para os produtos jornalísticos
This text examines innovative constructive strategies in documen- que, por sua própria natureza, necessitam
taries of last century, such as Chapeleiros (1983) by Adrian Cooper,
Ó xente, pois não (1976) by Joaquim Assis and A João Guimarães
Rosa (1969) by Marcelo Tassara. Even adopting cinematographical
formats, this three movies show some photograms with fixed pho- *
Este artigo foi redigido a partir de trabalho apresentado no
tography esthetics, including the portrait format. NP Fotografia: Comunicação e Cultura do XXXI Congresso
Key words: documentary, audiovisual journalism, photography, Brasileiro de Ciências da Comunicação, em Natal – RN, de 2 a
verbal/visual relations. 6 de setembro de 2008.

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de elementos utilizados pelo documentário multiplicação de mídias e de suportes, com


cinematográfico. Além disso, a utilização de alterações cada vez mais rápidas de nossas
fotogramas como se fossem fotografia fixa formas de comunicação e de disseminação
em dois documentários ou a animação de de conhecimento.
fotos em outro propicia reflexões sobre uma Sobreposição de técnicas e de linguagens,
perspectiva “fotográfica” dentro de uma nar- substituição de canais de transmissão, con-
rativa audiovisual. vergência de mídias, aceleração, multimídia,
alteração de práticas de arquivo: produção,
transmissão, armazenamento, recepção, to-
Català desenvolveu das as fases comunicacionais sofrem trans-
formações, às vezes ao mesmo tempo. Mes-
uma metodologia
mo assim, percebemos que, nos seus mais de
própria de analisar as 160 anos, a antiga fotografia química ainda
visualidades. Sua obra não explorou muitas de suas potencialidades
La imagen compleja expressivas e também o cinema-documentá-
(2005) é um verdadeiro rio, o cinema de ficção, o vídeo, o telejorna-
tratado sobre a imagem lismo. Vivemos atualmente uma aceleração
tecnológica na comunicação, com efetivas e
múltiplas opções de criação e uma produção
audiovisual bastante acomodada aos forma-
O documentário jornalístico, tão exigen- tos hegemônicos. Com toda a diminuição de
te do imediatismo, das imagens tomadas custo da captação de imagem e som, as faci-
diretamente, da indicialidade, acaba por se lidades de edição e transmissão e de inserção
limitar às visualidades óbvias, burocráticas, na web, as matérias em vídeo ainda são mui-
corriqueiras. O que se vê na televisão ou na to convencionais.
internet são formatos padronizados ou pe- Partindo da idéia de que antigas formas
quenas matérias telejornalísticas elaboradas não foram totalmente exploradas, a propos-
rapidamente, quase sem nenhum trabalho ta deste texto é buscar no passado algumas
imagístico e de relação verbal/visual. Este tra- produções visuais e audiovisuais filiadas a
balho se move em torno de duas questões: a intenções documentais que trouxeram ino-
primeira parte da observação de que a repre- vações de linguagem e que poderiam ser re-
sentação visual com finalidades documentais apropriadas hoje por produções jornalísticas
geralmente segue formatos estabelecidos ou e documentárias. E, mais ainda, buscar filmes
por uma divisão ficção/não ficção originada que trabalharam particularmente a imagem
e constituída na produção cinematográfica fotográfica. A recuperação de obras passadas
ocidental ou por uma rotina de produção te- pode ser um percurso metodológico mui-
levisiva que se pauta por economia, rapidez, to produtivo neste tempo de proliferação de
lógica de mercado, obediência a manuais de imagens descartáveis e banalizadas. Não se
redação e de apresentação. trata aqui da reutilização de planos de outros
Por outro lado, as representações visuais e filmes ou de material de arquivo. Tal procedi-
respectivas linguagens – fotografia, cinema e mento foi utilizado por Jean-Claude Bernadet
vídeo e seus elementos de áudio – vêm sendo em trabalhos como São Paulo, sinfonia e ca-
modificados a cada nova transformação tec- cofonia (1995), montado a partir de cenas de
nológica, sem que as antigas formas tivessem outros filmes em que a cidade de São Paulo
sido esgotadas ao máximo de suas possibili- se fazia presente. Já o filme Sobre os anos 60
dades de significação e expressão. Passa-se a (1999) está construído quase que totalmen-
novos suportes quando ainda muitas poten- te com material de arquivo. Bernadet discu-
cialidades nem sequer foram experimenta- te esses procedimentos no texto “A migração
das: essa é uma característica de nossa era de das imagens” (2004). Aliás, vivenciamos uma

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época de migração exacerbada de imagens. O de Barcelona. Ao mesmo tempo em que do-


trânsito em muitas direções, as importações e mina as particularidades técnicas da criação
exportações múltiplas com usos em diferentes cinematográfica, ele tem grande cultura fíl-
contextos contribuem para o apagamento dos mica e profunda erudição sobre a imagem.
vínculos indiciais, salientando apenas funções Desenvolveu uma metodologia própria de
identificatórias. Toda essa movimentação re- analisar as visualidades, que culminou na
dunda em usos simplistas da imagem, bem ao obra La imagen compleja (2005), verdadeiro
contrário dos resultados alcançados por Ber- tratado sobre a imagem. Seu livro desdobra-
nadet e outros criadores. se em camadas cognitivas que confluem para
o conceito de imagem complexa, indo da
2. Imagem simplista, imagem complexa cultura da imagem para a cultura visual. As-
sim, a imagem complexa seria um projeto de
No intuito de ampliar e aprofundar os conhecimento, vital para a evolução huma-
sentidos das imagens utilizadas para fins jor- na: “uma imagem que não seja simplesmente
nalísticos ou documentais, há muito tempo ilustração de um conhecimento expressado
pesquisamos as relações entre os discursos mediante a linguagem, mas que se converta
informativos e o real. Assim, na tese de li- com esta em co-gestora do conhecimento”
vre docência “Texto-documentário: espaço (Català, 2005:85).
e sentidos” (1986), apresentada ao Departa- Català considera que o trânsito da cultura
mento de Jornalismo e Editoração da Escola do texto para a cultura da imagem foi muito
de Comunicações e Artes da USP, refletimos mais lento que a passagem da cultura da ima-
sobre influências recíprocas entre jornalismo gem para a cultura visual. E a maré das tecno-
e documentários cinematográficos, histórias logias incidiu visceralmente nessa passagem,
de vida, pesquisas antropológicas e textos alterando características de captação, produ-
literários. Desde essa época, orientandos de ção transmissão e consumo. Nessa linha,
mestrado e de trabalhos de conclusão de cur-
As imagens contemporâneas dificilmen-
so aventuraram-se em experimentações de
te são percebidas de maneira isolada, seja
linguagens verbais, visuais e audiovisuais.1 A porque elas mesmas se apresentam conjun-
pesquisa sobre imagens e sobre as conexões tamente, ainda que pertençam a territórios
verbal/visual vem ocupando grande parte de diversos, organizando constelações visuais
minha vida acadêmica. como ocorre na televisão, ou porque nossa
Essas inquietações encontraram eco, en- mirada, que entrou em um regime percep-
tivo peculiar, se encarrega de agrupar umas
tre outros, nos estudos do Josep M. Català,
imagens com outras (Català, 2005:46).
pesquisador de cinema e de fotografia2 e
professor do Departamento de Comunica- O movimento desempenha papel impor-
ção Audiovisual na Universidad Autonoma tante nesse não-isolamento. Català discorre
sobre o que chama de “imagem aberta”:
1
Entre esses trabalhos, os mestrados de Helouise Lima Costa,
“Aprenda a ver as coisas: fotojornalismo e modernidade na re- A imagem aberta está constantemente pro-
vista O Cruzeiro” (ECA-USP, 1992); Vera Simonetti, “Além das pondo significados através de novas cone-
recordações: fotografia e velhice explícita” (ECA-USP, 1989); xões: significados todos eles válidos, estáveis
Letícia Rauen Viana, “Assim na terra como no sol: uma leitura em seu particular momento. Encontramo-
em diagrama” (ECA-USP, 1989) e Cristine M. Albuquerque de
Bem e Canto, “Realidades construídas: estudo da imagem fo-
nos, portanto, ante uma eclosão do mo-
tográfica: documento do real e representação de ficção” (ECA- vimento: movimento das imagens, tanto
USP, 2003). Atualmente, a autora coordena o Grupo de Pesqui- interna como externamente, movimento
sa Comunicação e Cultura Visual, vinculado ao mestrado da do olhar dentro da imagem e entre as ima-
faculdade Cásper Líbero. gens, movimento da cognição através de
2
Català é Doutor em Ciências da Comunicação pela UAB, fez
pós-graduação em cinema na Califórnia e é autor, entre outros,
cadeias de significados. Poderíamos dizer
de La puesta em imágenes: conceptos de dirección cinematográfi- que o movimento se liberou do tempo; em
ca, Barcelona: Paidós, 2001 e Elogio de la paranóia, San Sebas- conseqüência, tampouco tem porque estar
tian: Fundación Kutxa, 1997. ligado ao movimento para ser compreen-

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sível. O movimento sem tempo, ainda que Os exemplos que apontaremos utilizam a
não necessariamente sem duração, supõe a imagem fotográfica extensivamente. Os dois
possibilidade de revitalizar a condição fixa primeiros documentários foram analisados e
da imagem, de revitalizar a atuação de suas
potencialidades sincrônicas que haviam mostrados como procedimentos expressivos
sido obliteradas pela potência temporal valiosos em nossa tese de livre-docência já re-
das imagens cinéticas (Català, 2005:47). ferida. Chapeleiros (1983), de Adrian Cooper,
é um documentário que fez parte de pesqui-
sa sobre industrialização no Brasil na área de
3. Imagem e verbo: sincronias, silêncio, História da UNICAMP. Trata-se, portanto, de
expressão uma obra inserida num prévio universo de in-
vestigação. Chapeleiros acompanha em longos
Desde os anos 1980, ao refletir sobre ex- planos-seqüência a rotina de operários dentro
perimentações de linguagem visual que po- de uma fábrica de chapéus – de característi-
deriam ser utilizadas com as finalidades jor- cas industriais muito arcaicas, remontando ao
nalísticas e/ou documentais, deparamo-nos início do século XX – que permanecia prati-
com algumas produções fílmicas que até camente intocada até o ano da filmagem. Há
agora conservam a chama da expressivida- esse primeiro choque: a sobrevivência de an-
de. Em todas, o trabalho com a presença ou tigos processos industriais, não condizentes
não do verbal é elemento fundante. Todas com a realidade trabalhista da época. Outra
podiam e podem contribuir para que se ul- grande surpresa é a ausência de texto falado,
trapassem os limites da convenção jornalís- algo quase obrigatório em documentários e
tica. John Berger, que pesquisou junto com principalmente em reportagens jornalísticas.
Jean Mohr outras formas de narrativas com O documentário exibe som direto – das má-
fotografia, considera que a fotografia cita quinas – e apenas num momento há um tre-
as aparências (Berger e Mohr, 2007:111). cho de música clássica, logo depois da parte
E continua: “Todo fotógrafo sabe que uma inicial. Durante alguns minutos, o espectador
fotografia simplifica. A simplificação tem a espera por uma voz que venha explicar que fá-
ver com o foco, a tonalidade, a profundida- brica é essa, as condições de trabalho etc.
de de campo, o enquadramento (...) Uma A voz do documentarista ou do locu-
fotografia cita as aparências; mas, ao fazê- tor em off – detentores do poder de enun-
lo, as simplifica. Essa simplificação pode ciação – não aparece nos quase 30 minutos
aumentar a legibilidade. Tudo depende da do documentário. Também não há letreiros
qualidade da citação escolhida” (Berger e identificadores: apenas o título no início e os
Mohr, 2007:119). créditos finais trazem texto verbal. Palavras
A tendência predominante nas fotogra- impressas são focalizadas pela câmera em
fias jornalísticas é a simplificação. Em nos- dois momentos: o nome da fábrica, inscrito
sos dias, a multiplicidade e a facilidade de num vidro, e um quadro de normas de con-
se utilizar imagens aumenta ainda mais a duta de operários, com grafia muito antiga.
simplificação: as fotos são meramente iden- Os planos-seqüência por vezes se demo-
tificatórias, servem para reconhecimento e, ram em um ou outro personagem, com um
mesmo quando foram feitas especialmente, enquadramento quase de retrato fotográfico.
parecem retiradas de catálogo ou de bancos As cenas inaugurais, de operário dormindo
de imagem. No entanto, Berger aponta que em cima de mesa de metal, remetem a con-
há fotografias que citam brevemente, mas há cepções de pintura clássica – quadros de
outras que citam extensamente. Explica que Cristo morto. Não é uma fotografia simplifi-
a extensão não tem nada a ver com o tempo cadora. Vemos uma série de imagens abertas
de exposição; não é uma extensão temporal: – na conceituação de Català –; há movimen-
“O que se prolonga não é o tempo, é o signi- tos internos e externos das imagens, movi-
ficado” (Berger e Mohr, 2007:120). mento do olhar dentro das imagens.

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A documentação da jornada de trabalho res. Não há legendas identificadoras. Não exis-


é minuciosa e plena de sentidos, inclusive te sincronia entre as falas e as pessoas, isto é,
de sensações corporais – o vapor, o suor, a ninguém está sendo entrevistado, não se sabe
precariedade das condições. Ao final, o ru- quem estaria falando – embora se imagine que
ído do vapor como o respirar arquejante a voz poderia ser de um ou outro focalizado.
de um grande animal acompanha o movi- Os ouvidos do Sul e do Sudeste demoram um
mento que a câmera opera com a chaminé pouco a se acostumar com o sotaque e a músi-
da fábrica: o grande monstro vai descansar. ca da fala daqueles camponeses. E vamos per-
Tudo isso sem nenhuma palavra, o que nos cebendo como nosso vocabulário é, até certo
permite constatar que não é preciso um ponto, pobre ao nos depararmos com pesso-
texto verbal para relatar essa fábrica. Cha- as, muitas provavelmente analfabetas, citan-
peleiros se sustenta admiravelmente como do orações em latim ou usando construções
documentário e também poderia ser utili- como “desparecer” (palavra de consolo de um
zado, pelo menos em parte, como matéria amigo a outro) ou “separei-me de dizer” (um
jornalística. A muleta verbal é dispensável. homem, ao se dar conta que não devia falar
Por isso, apontamos essa solução não-ver- coisas das quais não sabia o significado).
bal como uma possibilidade para ampliar
as produções audiovisuais de cunho jorna-
lístico ou documental. Até hoje, conforme
Nas matérias jornalís-
nos conta Adrian Cooper, o documentário
é procurado por sindicatos, por jornalistas, ticas, a voz do repórter
além de pesquisadores da área.3 costura a narrativa. Em
Outro documentário paradigmático é Ó Ó xente, a enunciação
xente, pois não (1976), de Joaquim Assis, rea- pertence aos sujeitos
lizado para a Fase, uma espécie de precursora focalizados: ninguém
das futuras ONGs, que se dedicava a projetos
discorre sobre eles
sociais e educacionais. Nele, há muita presença
da palavra falada. Mas não é a voz do locutor
que discorre sobre o dia-a-dia de uma comu-
nidade de lavradores de um pequeno vilarejo O final do documentário é uma seqüên-
nordestino. Não se sabe a localização exata; cia de tomadas, como se fossem retratos – de
muito provavelmente é no interior de Pernam- homens, mulheres, crianças –, acompanha-
buco – mas esse dado não é relevante como se- das da narração de um sonho de um perso-
ria se fosse um documentário essencialmente nagem. Como em Chapeleiros, há planos–se-
jornalístico. Há cenas de preparo da terra, de qüência e tomadas que são quase fotografias
colheita, paisagens quase secas, moagem de fixas. A grande inovação em Ó xente, pois não
milho, galinhas, preparação de fibras, fabri- está na ausência de sincronia entre persona-
cação de vassouras, a dificuldade de acesso à gem visto e emissão de voz. Nas matérias
água e uma idéia de fundo: a solidariedade, o jornalísticas, é padrão a voz do repórter que
agir junto. Em alguns momentos, a câmera se costura a narrativa e a sincronia da imagem
fixa num rosto: temos retratos que lembram com voz do entrevistado, com a devida iden-
a estética de uma Life ou National Geographic. tificação por meio de legenda. Em Ó xente,
Ouvimos uma colagem de falas – voz de ho- a enunciação pertence aos sujeitos focaliza-
mem, voz de mulher – com vários enunciado- dos: ninguém discorre sobre eles. Esse filme
mostra como a sincronia voz / entrevistado
3
Chapeleiros foi editado em DVD, em 2007, junto com o O não diminui a força documental: tal proce-
chapéu do meu avô, vídeo de Júlia Zakia (2004), tendo como dimento poderia ser muito mais utilizado
título Encontro de Gerações, dentro do projeto Programadora
Brasil – Central de Acesso ao Cinema Brasileiro, para exibição em produções jornalísticas. O movimento
gratuita em circuito cultural. da cena e a fala se liberam do tempo indi-

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cial e mesmo assim não perdem a função de construções nos padrões convencionais, mas
registrar o real. Pelo contrário, as funções o ficcional não dá a tonalidade mais forte,
documentais da imagem e do som foram re- embora faça pequenas aparições. Ambos são
alçadas: as séries sonoras e visuais ganharam discursos construídos com o real. E ambos
mais significação. O uso da imagem fixa, ao instigam reflexões sobre o documentário.
invés de fragmentar o movimento, também Mais dois exemplos de documentários
acrescentou sentidos. construídos a partir de fotos, um com movi-
mento e outro apresentado em formato im-
presso, merecem ser apontados. Eles propõem
significados através de novas conexões bem
A busca de uma ar- na linha da conceituação de “imagem aberta”
queologia documentá- de Josep Català. Marcelo Tassara, professor
ria pode trazer muitos de cinema da ECA-USP, realizou em 1969 o
sentidos às imagens documentário A João Guimarães Rosa, com
contemporâneas, ao animação de fotos de Maureen Bisilliat com
jornalismo impresso, temas sertanejos referentes a Grande sertão:
veredas. Coordenado por Roberto Santos,
na televisão e na web foi produzido pela ECA em 35mm e lançado
ainda antes de ser formada a primeira tur-
ma.5 A inglesa Maureen Bisilliat havia feito
Nos dois documentários, houve altera- importantes reportagens fotográficas para a
ções no movimento. A condição fixa da ima- revista Realidade, registrando trabalhadores
gem fotográfica foi revitalizada ao ser inse- rurais, catadores de caranguejo e culturas
rida entre planos-seqüência, criando uma indígenas, temas que continuaram a ser de-
temporalidade diferida. Tempo e duração senvolvidos em sua carreira. As fotos foram
articulam um olhar reflexivo, potencializan- filmadas com animação, de maneira tal que,
do cognição e consciência. em algumas seqüências, principalmente com
bois e cavalos, tinha-se a impressão de que
4. Movimento a partir do estático eram imagens em movimento. Textos de
Grande sertão: veredas lidos por Humberto
Francisco Elivaldo Teixeira aponta4 três Marçal e música de Chico Morais caminha-
referências teóricas na bibliografia sobre vam com as imagens.
gênero documentário: Arthur Omar prega Classificado como documentário, essa
uma desconstrução da linguagem documen- obra traz indagações a respeito do movimen-
tal dominante, resultando então num “mo- to. A filmagem de cenas de movimento não
delo ficcional”; Jean-Claude Bernadet sus- é imprescindível para o efeito do real: pode-
tenta que há possibilidade de atingir um real mos apontar para o referente mesmo através
em documentários concebidos como “dis- da simulação. Ainda assim, A João Guimarães
cursos” construídos no real – um “modelo Rosa talvez seja o menos “jornalístico” dos
sociológico”; e Silvio-Da-Rin, com heranças exemplos aqui reunidos.
de Grierson e tendências reflexivas: “modelo O outro exemplo é Si cada vez..., seqüên-
ilusionista”. Entendemos que propostas em- cia de fotos do suíço Jean Mohr (umas pou-
butidas nesses três “modelos” possam trazer cas de autoria de John Berger) organizada por
inovações a documentários jornalísticos. ele e pelo crítico de arte, escritor e roteirista
Chapeleiros e Ó xente, pois não operam des- John Berger, autor de livros inovadores so-
4
No ensaio “Eu é outro: documentário e narrativa indireta li-
vre” e na introdução ao livro Documentário no Brasil: tradição 5
A Escola de Comunicações e Artes da USP, fundada como Es-
e transformação, por ele organizado, Francisco E. Teixeira traça cola de Comunicações Culturais, iniciou seus cursos em 1967;
linhas histórico-teóricas sobre o fazer documentário. a primeira turma formou-se em 1970.

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bre visualidades artísticas e midiáticas. Essa livro, Berger diferencia fotografia e pelícu-
seqüência faz parte do livro Otra manera de la. Para ele, as fotografias são retrospectivas
contar6, que reúne reflexões sobre fotografia – busca-se o que estava ali: os filmes são
e algumas “narrativas” fotográficas. Mohr antecipatórios; esperamos ver o que vai vir
e Berger escrevem em nota que precede as em continuação. Nesse sentido, o cinema é
fotos – muitas cenas do campo (muitas da uma aventura que avança. E continua: “Ao
França, algumas de paises europeus), traba- contrário, se existe uma forma narrativa in-
lhos manuais, algumas fotos de cidades (Pa- trínseca à fotografia fixa, esta buscará o que
lermo, Paris, Genebra, Túnis...), fotos antigas aconteceu, como ocorre com as lembranças e
– que é impossível dar uma chave verbal ou reflexões (...) A memória é um campo onde
uma linha argumentativa para as imagens. coexistem diferentes tempos”.
Assim, vamos seguindo essa narrativa visual Marcelo Tassara usou fotos fixas para
sem que haja legenda com identificação. Eles criar um filme: evidentemente, seus procedi-
apenas mencionam, na nota ao leitor, que mentos se distinguem dos de Berger e Mohr.
imaginaram uma protagonista, inventada: No entanto, nos dois trabalhos há o vínculo
uma camponesa nascida nos Alpes, que teria do registro do real. Mais que tudo, o que nos
ido à cidade trabalhar em serviços domésti- interessa aqui é rastrear algumas possibilida-
cos e depois voltado ao campo. As fotografias des discursivas que foram utilizadas sob for-
seriam como o pensamento de uma anciã ma de documentário cinematográfico e que
que repassa sua vida: o nascer, a infância, o hoje poderiam enriquecer produções audio-
trabalho, a emigração, a morte, a solidão... visuais jornalísticas.
As fotos não são acompanhadas de qualquer A versão na internet do jornal argentino
texto; ao final do livro, temos os créditos re- Clarín tem apresentado experimentações no
lativos a cada página, com indicação de obje- uso da imagem fotográfica, incorporando
to e local ou somente o local. animações e fazendo conexões inovadoras
Os autores têm consciência de que as fo- com falas de entrevistados. Muitas vezes, a
tos não pretendem ser documentais: fotografia funciona como elemento que di-
reciona a um link. Pequenas entrevistas de
Isto é, não documentam a vida de uma
editorias de cidades ou cultura costumam
mulher – nem sequer sua vida subjetiva.
Foram incluídas fotografias de momen- apresentar movimento por meio de zoom
tos e de cenas que ela nunca havia podido numa única fotografia fixa, enquanto ouvi-
presenciar. Por exemplo, na longa seqüên- mos o áudio com a fala da pessoa em foco.
cia relativa ao impacto de uma metrópole Na seção “Multimedia”, o www.clarin veicula
em um emigrante nascido num povoa- fotorreportagens de vários autores e audio-
do, utilizamos não só fotos de Paris, mas
visuais especiais sobre temas políticos e cul-
também de Istambul. Todas as fotografias
empregam a linguagem das aparências. turais, com montagens que utilizam recursos
Neste caso, tratamos de usar tal linguagem tecnológicos sofisticados. O documentário
não só para ilustrar, mas também articu- Borges en Clarín é um excelente exemplo de
lar uma experiência vivida” (Berger, Mohr, trânsito entre linguagens verbais e visuais.
2007:133-134). Ausência de discurso verbal; uma certa
dissociação entre imagem e fala, uso de fotos
Nesse trabalho há deslocamentos tempo-
para montar uma narrativa cinematográfica;
rais, deslocamentos espaciais e a criação de
incorporação de gravuras e desenhos, fotos
uma espécie de personagem. Ainda assim,
documentais sem legendas são “perturba-
não hesitamos em situá-lo dentro do para-
ções” de formas estabelecidas de documen-
digma documentário. No texto “Histórias”
tar e contar. Essa busca de uma arqueologia
(Berger, Mohr, 2007:279-280) do mesmo
documentária é uma metodologia que pode
6
O livro Another way of telling foi publicado em 1982. A primeira trazer muitos sentidos às imagens contem-
edição espanhola é de 1997 e a atual, por nós consultada, de 2007. porâneas, ao jornalismo impresso, ao jorna-

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lismo na televisão e ao jornalismo na web. tos, rupturas: estratégias de representação


A revolução tecnológica vem introduzin- que podem ser experimentadas, que podem
do novos modos de relação entre os proces- injetar significação nas milhares de imagens
sos simbólicos. Saímos da cultura da imagem que vemos distraidamente a cada dia.
e estamos imersos na cultura visual. Ainda Uma volta ao passado que não é recupera-
assim, compensa muito buscar antigas for- ção histórica, nem somente memória: é a bus-
mas – que continuam inovadoras – para re- ca da marca. No fundo, estamos atrás de mar-
escrever narrativas visuais e audiovisuais. cas do real, mas não desejamos imagens que
Imagens extensivas, imagens abertas, dis- sejam apenas marcas. Imagens com força de
sociações, associações, seqüências, confron- expressão, imagens para corações e mentes.

Referências

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Líbero - Ano XI - nº 22 - Dez 2008

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