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CINEMA AUDIOVISUAL
APOSTILA
Uma arqueologia do cinema e dos seus públicos, entre outros aspectos, faz reemergir
a questão do cinema de massas nos EUA, nos 'thirties' e 'forties'. O cinema era então o
grande espetáculo popular.
Neste texto pretende dar-se fundamentalmente uma contribuição para a reflexão sobre
esse modelo de ficção televisiva: até que ponto é que uma ontologia da série televisiva
e do telefilme - o específico da televisão, para além do direto - expõe (ou não) a ferida
de uma diferença originária - uma poética face a uma prosa do mundo, ou talvez
mesmo, uma vampirização do cinema pela televisão e pelas novas tecnologias a ela
associadas?
Ainda no que concerne aos aspectos técnicos, poder-se-ia dizer que o modo de
iluminar é muito diverso, que o modelo de découpage é também muito diferente. “Veja-
se que se a progressão da narrativa cinematográfica é de certo modo, e em termos
clássicos, teleológica" na televisão há um constante diferir do desenvolvimento da
ação, recorrendo a cenas e situações pontuais e/ou marginais, de forma a encontrar
soluções que sejam outros tantos fechos de episódios, e assim sucessivamente até ao
episódio final.
Em síntese, na ficção televisiva não há uma estética específica, nunca se veio a definir
enquanto tal, como «arte» autônoma. É, no fundo, a dificuldade essencial de uma
lógica tecnodiscursiva que tem no seu modelo performativo e no seu registro imaterial a
sua própria definição - materializa acontecimentos, ações, etc., para depois os obliterar
na sua lógica de fluxo: a contínua sucessão de imagens determina a obsolescência e o
esquecimento das precedentes.
Outra questão complementar nesta análise tem a ver não propriamente com as
modalidades de enunciação e de estrutura discursiva de ambos - cinema e televisão -,
mas com o campo de recepção no cinema e na televisão.
Uma breve arqueologia da evolução do modo de recepção do cinema nas salas pode
dar-nos algumas pistas para entender as mutações neste domínio após a progressiva
integração da televisão nos lares europeus e norte-americanos.
Vejamos o que se passou ao longo dos anos 80 no maior mercado mundial. Dizer, por
exemplo, que a afluência de público às salas de cinema dos EUA se manteve estável
ao longo da última década é esquecer o fundamental do que se passou antes. Na
verdade, os anos 80 (tal como já havia acontecido nos anos 70) nos Estados Unidos,
apresentam uma quebra extraordinária na frequência de cinema face às décadas
anteriores. Note-se, por exemplo, que em 1929, no ano record na história do cinema
americano, iam em média ao cinema, semanalmente, 95 milhões de americanos. Cerca
de 10 anos depois (em 1940) a média semanal era de 80 milhões. E em 1950, essa
média já havia baixado para os 60 milhões de espectadores/ano.
É nos anos 50/60 que a televisão tem um grande desenvolvimento nos EUA. Apesar de
não ser determinante, este fenômeno não haveria de ser completamente estranho ao
progressivo abandono das salas por parte do público que habitualmente as
frequentava. Basta considerar que de 1950 para 1960 o número de espectadores de
cinema baixa à razão de 20 milhões por semana. Nesse período (1950-60) o parque de
televisores cresce de 3,9 milhões para 55,6 milhões. Pelo contrário, o número de salas
decresce: das 19 mil salas de cinema que existiam nos Estados Unidos em 1946
apenas subsistiam 9.330 em 1967 - uma redução para metade nesses 20 decisivos
anos, que correspondem de fato ao grande crescimento da televisão nos Estados
Unidos.
Essa aversão terminaria em 1954, quando a ABC anuncia um acordo com a própria
Warner para a temporada 1955/56: nada mais nada menos do que 41 horas de
programas, que incluíam já séries históricas: Cheyenne, Sunset Trip e Marewick.
Ningúem previa então que aquele western iria conservar-se ao longo de cerca de oito
anos no horário nobre da ABC (20h30).
A WOR TV, de Nova Iorque, passa a transmitir no final de 1956 quase 90 por cento da
sua programação semanal em longas metragens (RKO). Atrás da RKO vem a
Columbia, a Fox, a MGM, a Warner e finalmente a Paramount, que passam a
disponibilizar para a TV os seus catálogos - ou apenas alguns packages - anteriores a
1948. Estamos num período em que o número de estações televisivas cresce
enormemente, e o cinema passa a ter um impacto significativo no desenvolvimento da
TV: em meados dos anos 50 existem já 500 canais de televisão nos EUA; 40 milhões
de telespectadores veem em média 5 horas de TV por dia... e 10 mil anunciantes
investem mil milhões de dólares por ano.
No início dos anos 60 são já mais de 100 filmes por semana que passam nas redes de
TV só da zona de Nova Iorque. As noites de cinema em prime time passam depois
também para a ABC (1962) e só mais tarde para a CBS (1965). No final de 1968, as
três networks oferecem diariamente uma longa-metragem aos seus telespectadores. O
filme passa a ser o programa estratégico na guerra de audiências. Ficou histórica a
noite de 25 de Setembro de 1966, com A Ponte do Rio Kwai, que bate pela primeira
vez os programas de maior audiência da altura - Bonanza e Ed Sullivan Show.
Verifica-se então que um pequeno número de filmes realiza uma boa parte das
receitas, chamando de novo o público às salas: em 1975 a média semanal de
frequência sobe para os 20 milhões, que se mantém até 1990, com pequenas
oscilações, o que quer dizer que ao longo desses últimos 15 anos o mercado
americano conseguiu estabilizar o seu público. O que não deve fazer esquecer que
estes últimos números relativos à década de 80 representam cerca de 1/4 do público
dos anos 40. Mas se o público decresce - e muito - relativamente aos anos 40, o
parque de salas cresce: 23.689 salas contabilizadas em 1990, nos EUA, ultrapassam
nalguns milhares o máximo que havia sido conseguido nas décadas de ouro (cerca de
19 mil salas). O exemplo americano permite desdramatizar de algum modo os receios
dos mais pessimistas relativamente à situação que então se depara na Europa.
Refira-se que o final dos anos 70 corresponde também ao enorme sucesso da pay TV
e da televisão por cabo, o que provoca, por parte das networks, a necessidade de
serem encontradas fórmulas alternativas. O boom da série e do telefilme está também
associado a esta questão. Voltam assim em força os formatos 26/52 minutos ao longo
de 13 semanas. No final dos anos 80 a HBO, por exemplo, difunde já cerca de duas
centenas de filmes/mês e é uma das maiores detentoras de direitos. No final dos anos
80 é outro fenômeno que emerge: o vídeo é doravante a principal fonte de receitas da
indústria cinematográfica americana.
“Na Europa, nos grandes mercados europeus - Alemanha, Espanha, França, Grã-
Bretanha e Itália, verificam-se menores quebras, ou mesmo”.
Tal como já referimos para Estados Unidos, também no caso inglês se verifica que são
os anos 60 e 70 que mais refletem a crise do cinema. É de igual modo nesse período
que se assiste a uma rápida ascensão da televisão. Mas no Reino Unido, a grande
quebra da frequência de cinema regista-se logo no final dos anos 50, descendo para
valores inimagináveis na atualidade. De fato, observando-se na década de 50 uma
média de 1.100 milhões de espectadores/ano, nos anos 60 essa mesma média passa a
ser de 337 milhões de espectadores/ano, 1/3 do valor da década anterior. Se, porém,
comparássemos a média apurada nos anos 70 - 135 milhões de espectadores/ano -
com a média dos anos 50 facilmente constatávamos que era oito vezes inferior, o que
equivale a dizer que no início da década de 50 - designadamente em 1950, 1951 e
1952 - em qualquer destes anos, o total dos espectadores de cinema, na Grã-Bretanha,
foi aproximadamente igual ao do total da década de 70 (1.357 milhões de
espectadores). Na década de 80 o total de espectadores baixaria para os 788 milhões
de espectadores... No plano das salas, os ingleses acompanham também a crise mais
geral: em 1955, tinham um total de 4581 salas de cinema, em 1990 apenas têm 1552,
muito embora este seja um valor quase igual ao de 1980 (1574 salas).
Entre televisão e cinema, como noutro qualquer análise comparativa entre meios
aparentemente tão próximos, as relações são deveras complexas e dificilmente se
poderão colocar em termos de estrita causalidade. Isso mesmo era observado num
dossier da Unesco 9 , onde se dizia que só por si a densidade de aparelhos de
televisão não podia explicar a frequência com que as pessoas iam ao cinema : «Nos
EUA, haviam mais televisores per capita em 1965 do que na Europa dez anos mais
tarde. No entanto, em 1965, os americanos iam em média quatro vezes mais ao
cinema do que os europeus em 1975. Outras variáveis e outros indicadores haverá a
considerar. Não se pode negar, no entanto, uma relativa responsabilidade - lateral, é
certo -, da televisão na crise do cinema. Essa é também a opinião de François Garçon:
A frequência [de salas] após os anos 50 não tinha, com efeito, tendência a decair
justamente na sequência do crescimento nos lares americanos que suprimia nos
telespectadores o desejo de se deslocarem às salas escuras?. Da mesma forma é
inegável, hoje, que é a própria televisão que está a contribuir de forma clara para certo
crescimento da produção cinematográfica. Por exemplo, já em meados dos anos 80,
nos EUA, a estrutura de amortização de um longa-metragem americana era a seguinte:
networks - 7 por cento; syndication - 5 por cento; vendas a canais de pay TV - 23 por
cento.
No que diz respeito à forma como o cinema passa na televisão poder-se-ia seguir a
própria experiência portuguesa, sobretudo no plano quantitativo, com base nos estudos
de audiências. Numa análise que fizemos durantes os meses de Outubro e Novembro
de 1994, era visível que entre dois filmes como As Asas do Desejo, de Wim Wenders, e
Crocodile Dundee II, as diferenças eram substantivas: 0,4 por cento de audiência
média face aos 15,7 por cento do filme australiano. O filme de Wenders, que tem sido
considerado um dos grandes filmes dos anos 80 era positivamente marginalizado pelo
grande público da televisão, tendo sido um dos filmes com audiência mais baixa ao
longo dos dois meses em análise. O perfil do telespectador típico das rubricas de
cinema deixaria prever outra resposta à programação de cinema dos quatro canais
portugueses: tem entre 25 e 34 anos, é homem, vive na região da Grande Lisboa e
pertence à classe alta/média alta (A/B). É natural, portanto, que um dos filmes mais
seguidos dos últimos anos na televisão portuguesa seja uma obra de Spielberg -
Indiana Jones e a Grande Cruzada, emitido na SIC em Janeiro de 1995, tendo obtido
uma audiência média ao nível da telenovela brasileira (19,4 por cento) e share de 52,6
por cento ao longo dos seus 126 minutos de duração. É claramente a adesão
inquestionável do público ao modelo do cinema americano de grande espetáculo.
Quando Godard filma, nos final dos anos 70, as séries Six Fois Deux e France, Tour
Détour Deux Enfants, é claro que o que está em jogo é já a pós-televisão. As
preocupações e perplexidades do cineasta procuravam aqui uma resposta falsamente
inocente. A palavra decomposição servia de pano de fundo a toda uma plástica
televisiva que fazia apontar a câmara à instituição escola, como à fábrica, como ao
quartel. Decompor a violência da instituição com um simples processo (anti) narrativo.
Com o vídeo. Com a televisão. Práticas e efeitos de síntese da televisão, formas de
curto-circuitar o próprio efeito televisivo.
Recorde-se Le Rayon Vert, de Rohmer, que passava nas salas após a emissão no
Canal Plus, o que acabaria por lhe ser benéfico. Recordem-se ainda as múltiplas
versões cinema/TV, com longas-metragens e conjuntos de episódios para TV.
É outra questão fundamental a relação entre série e televisão. De fato, a série não diz
apenas respeito a um determinado tipo de programas, a um gênero televisivo, ela é,
sobretudo um modo de funcionamento do media - e também, sem dúvida, um dos
parâmetros essenciais não só para uma caracterização da estética televisiva, mas
fundamentalmente para a definição do seu dispositivo tecno-discursivo. E ao efeito-
série, como veremos no capítulo seguinte, não é estranho o fenômeno modelizador por
excelência do objeto televisivo que transcorre, exatamente, não da violência simbólica,
mas antes da violência técnica do dispositivo da audimetria.
Produção, Edição, Elaboração e Revisão de Texto:
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