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O cinema, o público, a televisão

(do livro Desafios dos Novos Media, de F. Rui Cádima, Editorial Notícias,
Lisboa, 1999.

«A televisão é inimiga dos valores cinematográficos clássicos,


mas não do cinema»
Orson Welles

Uma arqueologia do cinema e dos seus públicos, entre outros aspectos,


faz reemergir a questão do cinema de massas nos EUA, nos 'thirties' e 'forties'.
O cinema era então o grande espectáculo popular.
A maioria dos seus espectadores habituais passaram a telespectadores
fiéis a partir dos anos 50. O próprio cinema passava então por uma espécie de
dupla reificação electrónica: primeiro, por uma progressiva habituação do
público ao novo formato; depois, por uma reconfiguração do próprio cinema,
através de novos processos de produção, novos processos narrativos, de um
novo discurso que acabava por entrecruzar-se com as práticas enunciativas do
próprio dispositivo televisivo.
No âmbito da televisão emergia entretanto um sistema híbrido no campo
da ficção, onde predominavam as séries televisivas e as soap operas, surgindo
depois os telefilmes.
Neste texto pretende dar-se fundamentalmente uma contribuição para a
reflexão sobre esse modelo de ficção televisiva: até que ponto é que uma
ontologia da série televisiva e do telefilme - o específico da televisão, para além
do directo - expõe (ou não) a ferida de uma diferença originária - uma poética
face a uma prosa do mundo, ou talvez mesmo, uma vampirização do cinema
pela televisão e pelas novas tecnologias a ela associadas?
No plano estrito do dispositivo logotécnico da televisão importa
relembrar a especificidade da linguagem televisiva e, designadamente, o seu
dispositivo tecnodiscursivo, o qual releva, desde logo, da proximidade originária
aos modelos discursivos e narrativos do cinema. Essa especificidade tem
vindo, de facto, desde há muito a ser analisada em termos comparativos com a
própria linguagem cinematográfica. Há naturalmente uma longa arqueologia de
toda essa cesura, que ora incide no discursivo, ora atende ao económico,
sobretudo, neste último caso, em virtude do progressivo poder que a televisão
comercial foi ganhando na Europa. 1
Christian Metz 2 havia referido a questão considerando que televisão e
cinema compartilhavam, por assim dizer, alguns dos mesmos recursos
expressivos, na medida em que havia a partilha de uma única e mesma
linguagem. Questão nada pacífica, aliás. Já em 1959, Renato May 3 se refere à
questão, tratando a televisão como um «cinema menor» e procurando separar
a construção de uma imagem da instantaneidade das imagens e do fluxo
televisivo.
O dispositivo do directo, a informação, mas também a sitcom, ou o
docudrama são os géneros que trabalham de forma mais específica os códigos
diferenciais existentes entre cinema e televisão. Inicialmente, foi no directo que
surgiu um modo de narrar os factos e de legitimar os acontecimentos
totalmente diverso do que se vinha a fazer até então 4.
No directo, como então observámos, a televisão encontra a forma de
mostrar o tempo na sua durée, criando um novo espaço-tempo efémero e sem
memória. Mais tarde, o dispositivo técnico e as possibilidades de montagem e
gravação em video, e o regresso a práticas cinematográficas de edição, por
exemplo, agora ao serviço da recomposição do real (televisivo) e das práticas
jornalísticas, permitem uma outra apropriação dos materiais pré-registados e
da evolução do próprio dispositivo técnico e discursivo da televisão.
Surge depois o conceito de rede códica 8 que se refere à pluralidade de
discursos e ao fluxo contínuo televisivo que integra finalmente um novo código,

1 Veja-se por exemplo o texto de François Niney «Cinéma-Télévision - Les liaisons dangereuses»,
Cahiers du Cinéma, nº 419-420, Mai 1989.
2 Ver designadamente a sua obra Langage et cinéma, Paris, Larousse, 1971.
3 Renato May, Civiltà delle Immagini - La TV e il Cinema, Edizione 5 Lune, Roma, 1957, util. tradução
castelhana, Cine y Television, Madrid, Rialp, 1959.
4 Veja-se sobre este tema o capítulo «O dispositivo televisivo» de O Fenómeno Televisivo, de F. Rui
Cádima, Círculo de Leitores, Lisboa, 1995.
5 Stuart Hall, «Le message télévisuel. codage et décodage», Éducation et Culture, Conseil de l'Europe,
1974.
síntese dos códigos componentes, espécie de código hegemónico onde se
esbatem géneros narrativos e não-narrativos, como os telejornais, as
mesas-redondas, os talk-shows, os tempos de antena, etc., são, portanto,
fundamentalmente televisivos.
Simultâneamente emerge o telefilme. Centrado numa outra forma de ver
e de enquadrar, que delimita o espaço-tempo cinematográfico, e que o recorta
no fechamento do close, ou do grande plano, chegamos a um sistema não
tanto da ordem do visível e do inteligível, mas do seu recalcamento, das
tactilidades do olhar, que é, como se sabe, um plano de sonoridades, um plano
audio-táctil, um retorno do não-ver. Olhar é tomar uma certa distância do que é
visto,
O telefilme é, à partida, um outro dispositivo de produção e de difusão, e
é habitualmente pensado sob o espectro dos resultados das audiências
televisiva, de uma forma imediata. Tanto nas séries como nos telefilmes do que
se trata ainda, num plano narrativo e estético, é da supressão da noção de
enquadramento. Em geral, esta captura frontal é acompanhada de uma perca
de impressão de relevo. No campo da representação é comum identificar a
perca de dimensão psicológica dos personagens como mais um dos
específicos da ficção televisiva. Deste ponto de vista é notória a recorrência a
uma esquematização de arquétipos, de estereótipos (veja-se designadamente
o modelo de soap opera). Repare-se ainda na transposição de convenções que
se diriam teatrais: a reduzida escala de planos das séries (nomeadamente das
sit-com) e das telenovelas, tem genericamente a ver com o facto de as
rodagens decorrerem em estúdios pequenos, transpondo-se assim o modelo.
Um dos exemplos que se poderão dar é exactamente o da
captura/enquadramento frontal, que reduz o leque de efeitos e leituras,
reduzindo assim também a densidade da cena e da representação.
Ainda no que concerne aos aspectos técnicos, poder-se-ia dizer que o
modo de iluminar é muito diverso, que o modelo de découpage é também muito
diferente. Veja-se que se a progressão da narrativa cinematográfica é de certo
modo, e em termos clássicos, teleológica" na televisão há um constante diferir
do desenvolvimento da acção, recorrendo a cenas e situações pontuais e/ou
marginais, de forma a encontrar soluções que sejam outrs tantos fechos de
episódios, e assim sucessivamente até ao episódio final.
Em síntese, na ficção televisiva não há uma estética específica, nunca
se veio a definir enquanto tal, como «arte» autónoma. É, no fundo, a
dificuldade essencial de uma lógica tecnodiscursiva que tem no seu modelo
performativo e no seu registo imaterial a sua própria definição - materializa
acontecimentos, acções, etc., para depois os obliterar na sua lógica de fluxo: a
contínua sucessão de imagens determina a obsolescência e o esquecimento
das precedentes.
A televisão, de certo modo, remodela a relação do telespectador com a
ficção cinematográfica. Em última instância poder-se-ia dizer que o efeito de
grelha acaba por reflectir-se na montagem do telefilme - e mesmo dos filmes -
isto é, por vezes as sequências tendem a tornar-se autonómas e com uma
unidade específica. Daí dizer-se que do que se trata em televisão é de fazer
«séries», repetir modelos, respeitar códigos, de forma a manter e assegurar o
contrato de visibilidade com as audiências.
Isto porque, finalmente, se o plano americano - o plano cinematográfico
por excelência - era um plano à altura do homem, o plano do écran televisivo
não é mais do que um plano à altura da curiosidade do olhar, de um olhar
naturalista e imediato do homem. Um olhar contratual, um falso olhar.
Uma outra questão complementar nesta análise, tem a ver não
propriamente com as modalidades de enunciação e de estrutura discursiva de
ambos - cinema e televisão -, mas com o campo de recepção no cinema e na
televisão.
Uma breve arqueologia da evolução do modo de recepção do cinema
nas salas pode dar-nos algumas pistas para entender as mutações neste
domínio após a progressiva integração da televisão nos lares europeus e norte-
americanos.
Vejamos o que se passou ao longo dos anos 80 no maior mercado
mundial 6 . Dizer, por exemplo, que a afluência de público às salas de cinema
dos EUA se manteve estável ao longo da última década é esquecer o
fundamental do que se passou antes. Na verdade, os anos 80 (tal como já
havia acontecido nos anos 70) nos Estados Unidos, apresentam uma quebra
extraordinária na frequência de cinema face às décadas anteriores. Note-se,
por exemplo, que em 1929, no ano record na história do cinema americano,
iam em média ao cinema, semanalmente, 95 milhões de americanos. Cerca de
10 anos depois (em 1940) a média semanal era de 80 milhões. E em 1950,
essa média já havia baixado para os 60 milhões de espectadores/ano.
É nos anos 50/60 que a televisão tem um grande desenvolvimento nos
EUA. Apesar de não ser determinante, este fenómeno não haveria de ser
completamente estranho ao progressivo abandono das salas por parte do
público que habitualmente as frequentava. Basta considerar que de 1950 para
1960 o número de espectadores de cinema baixa à razão de 20 milhões por
semana. Nesse período (1950-60) o parque de televisores cresce de 3,9
milhões para 55,6 milhões. Pelo contrário, o número de salas decresce: das 19
mil salas de cinema que existiam nos Estados Unidos em 1946 apenas
subsistiam 9.330 em 1967 - uma redução para metade nesses 20 decisivos
anos, que correspondem de facto ao grande crescimento da televisão nos
Estados Unidos.
O pior momento do cinema americano no que respeita à crise de salas e
de público é, de facto, o final dos anos 60 e princípios dos anos 70. 1971 é o
pior ano em termos de público: apenas 15,8 milhões de espectadores de média
semanal. A partir de então dá-se uma recuperação do mercado, que é também
uma recuperação da indústria e da produção - é a aposta das majors no filme
de «grande público», por exemplo. É o tempo da chegada ao campo do cinema
de uma série de realizadores que vinham da televisão: Sidney Pollack, Arthur
Penn, John Frankenheimer, Robert Mulligan, etc. É ainda o tempo das
transmutações no plano das narrativas de ficção televisiva e cinematográfica.
Um dos nomes míticos no cinema americano, Orson Welles, confessava
a André Bazin, um tanto paradoxalmente, que «na televisão o cinema adquire
um valor real, encontra a sua real função». Outro nome mítico do cinema
americano era Jack Warner. É conhecida a sua aversão à televisão. Estava-se
em plenos «forties», nos anos 40, e o presidente da Warner recusava a
existência de qualquer aparelho de televisão nas instalações dos estúdios.
Essa aversão terminaria em 1954, quando a ABC anuncia um acordo
com a própria Warner para a temporada 1955/56: nada mais nada menos do
que 41 horas de programas, que incluíam já séries históricas: Cheyenne,
Sunset Trip e Marewick. Ningúem previa então que aquele western iria
conservar-se ao longo de cerca de oito anos no horário nobre da ABC (20h30).
Hollywood não havia entretanto ainda percebido o interesse da televisão
para a indústria. Assim, são as companhias inglesas as primeiras a entrar no
mercado da TV norte-americana. Paradoxo! Logo em 1955, 95 longas
metragens inglesas são vendidas para a televisão americana. Era a vingança
de Alexander Korda e de outros realizadores e produtores, que haviam sido
marginalizados pelas majors, nos anos 20/30 . Em 1955 a Rank vende 100
filmes à NBC. A primeira resposta aos britânicos vem dos pequenos estúdios
norte-americanos (Monogram e Republic).
Entretanto a RKO começa a rentabilizar o seu catálogo de quase um
milhar de filmes. Entre eles vai estar King Kong (de 1933). Emitido no início de
1956 na televisão, o filme vai ser um grande sucesso. A partir de meados dos
anos 50, e pela primeira vez na história do cinema americano, largas camadas
de público vão voltar a ver os seus clássicos preferidos... mas agora na
televisão.
A WOR TV, de Nova Iorque, passa a transmitir no final de 1956 quase
90 por cento da sua programação semanal em longas metragens (RKO). Atrás
da RKO vem a Columbia, a Fox, a MGM, a Warner e finalmente a Paramount,
que passam a disponibilizar para a TV os seus catálogos - ou apenas alguns
packages - anteriores a 1948. Estamos num período em que o número de
estações televisivas cresce enormemente, e o cinema passa a ter um impacto
significativo no desenvolvimento da TV: em meados dos anos 50 existem já
500 canais de televisão nos EUA; 40 milhões de telespectadores vêem em
média 5 horas de TV por dia... e 10 mil anunciantes investem mil milhões de
dólares por ano.
Começam também a ser programados filmes posteriores a 1948, e
também filmes a cores, o que vem dar novo impulso ao cinema na TV:
acontece na NBC, a partir de 1961, com a abertura às produções mais
recentes de Hollywood. A estratégia de contraprogramação da NBC é assim
um êxito.
No início dos anos 60 são já mais de 100 filmes por semana que passam
nas redes de TV só da zona de Nova Iorque. As noites de cinema em prime
time passam depois também para a ABC (1962) e só mais tarde para a CBS
(1965). No final de 1968, as três networks oferecem diariamente uma longa-
metragem aos seus telespectadores. O filme passa a ser o programa
estratégico na guerra de audiências. Ficou histórica a noite de 25 de Setembro
de 1966, com A Ponte do Rio Kwai, que bate pela primeira vez os programas
de maior audiência da altura - Bonanza e Ed Sullivan Show.
Entretanto, o primeiro telefilme aparece também em 1966, cerca de 10
anos depois da primeira longa metragem na NBC. A ABC faz também uma
aposta forte no género, e no período de 1971/72 difunde treze dos melhores
telefilmes do ano na TV americana. E a partir daí não mais pararam.
Verifica-se então que um pequeno número de filmes 7 realiza uma boa
parte das receitas, chamando de novo o público às salas: em 1975 a média
semanal de frequência sobe para os 20 milhões, que se mantém até 1990, com
pequenas oscilações, o que quer dizer que ao longo desses últimos 15 anos o
mercado americano conseguiu estabilizar o seu público. O que não deve fazer
esquecer que estes últimos números relativos à década de 80 representam
cerca de 1/4 do público dos anos 40. Mas se o público decresce - e muito -
relativamente aos anos 40, o parque de salas cresce: 23.689 salas
contabilizadas em 1990, nos EUA, ultrapassam nalguns milhares o máximo que
havia sido conseguido nas décadas de ouro (cerca de 19 mil salas). O exemplo
americano permite desdramatizar de algum modo os receios dos mais
pessimistas relativamente à situação que então se depara na Europa.
Refira-se que o final dos anos 70 corresponde também ao enorme
sucesso da pay TV e da televisão por cabo, o que provoca, por parte das
network, a necessidade de serem encontradas fórmulas alternativas. O boom
da série e do telefilme está também associado a esta questão. Voltam assim
em força os formatos 26/52 minutos ao longo de 13 semanas. No final dos
anos 80 a HBO, por exemplo, difunde já cerca de duas centenas de filmes/mês
e é uma das maiores detentoras de direitos. No final dos anos 80 é um outro
fenómeno que emerge: o video é doravante a principal fonte de receitas da
indústria cinematográfica americana 8 .
Na Europa, nos grandes mercados europeus - Alemanha, Espanha,
França, Grã-Bretanha e Itália, verificam-se menores quebras, ou mesmo

".
7 1974 é um dos piores anos no que respeita ao número de filmes produzidos - apenas 156 - o que
representa cerca de metade da média dos anos 40 e 50.
8 As salas apresentavam então, em 1990, receitas de 2260 milhões de dólares, menos que o vídeo
(2900), depois vinham a pay TV (725) e as networks (425).
estabilização do público e de salas, designadamente na Alemanha e na Grã-
Bretanha, e uma situação mais crítica nos países do sul da Europa que tiveram
uma forte oferta televisiva designadamente na segunda metade dos anos 80.
Ainda assim, a França tem mantido com pequenas oscilações o seu parque de
salas, ao contrário da Espanha e da Itália, com quebras muito acentuadas de
público e de salas, tal como aliás tem vindo a acontecer em Portugal.
Tal como já referimos para Estados Unidos, também no caso inglês se
verifica que são os anos 60 e 70 que mais refletem a crise do cinema. É de
igual modo nesse período que se assiste a uma rápida ascensão da televisão.
Mas no Reino Unido, a grande quebra da frequência de cinema regista-se logo
no final dos anos 50, descendo para valores inimagináveis na actualidade. De
facto, observando-se na década de 50 uma média de 1.100 milhões de
espectadores/ano, nos anos 60 essa mesma média passa a ser de 337 milhões
de espectadores/ano, 1/3 do valor da década anterior. Se, porém,
comparássemos a média apurada nos anos 70 - 135 milhões de
espectadores/ano - com a média dos anos 50 facilmente constatávamos que
era oito vezes inferior, o que equivale a dizer que no início da década de 50 -
designadamente em 1950, 1951 e 1952 - em qualquer destes anos, o total dos
espectadores de cinema, na Grã-Bretanha, foi aproximadamente igual ao do
total da década de 70 (1.357 milhões de espectadores). Na década de 80 o
total de espectadores baixaria para os 788 milhões de espectadores... No plano
das salas, os ingleses acompanham também a crise mais geral: em 1955,
tinham um total de 4581 salas de cinema, em 1990 apenas têm 1552, muito
embora este seja um valor quase igual ao de 1980 (1574 salas).
Pergunta-se, naturalmente, qual a «culpa» da televisão nesta crise do
ciinema. É certo que tanto nos Estados Unidos como na Grã-Bretanha, aos
períodos de maior declíneo do número de salas corresponde um maior valor na
progressão do parque de televisores. Este facto, só por si, não nos permite
extrair conclusões precipitadas sobre a influência da televisão no afastamento
do público das salas de cinema. Podíamos encontrar valores idênticos por
exemplo nas vendas da indústria automóvel, ou de máquinas de lavar roupa,
ou na taxa de natalidade. Mesmo assim, houve quem sugerisse - foi o caso de
Virilio - que a crise do cinema está directamente relacionada com a importância
do automóvel - a viagem como travelling, evasão, uma visão de um écran
múltiplo e dinâmico - a cidade-cinema como écran, as imagens, a luz o
movimento...
Entre televisão e cinema, como noutro qualquer análise comparativa
entre meios aparentemente tão próximos, as relações são deveras complexas
e dificilmente se poderão colocar em termos de estrita causalidade. Isso
mesmo era observado num dossier da Unesco 9 , onde se dizia que só por si a
densidade de aparelhos de televisão não podia explicar a frequência com que
as pessoas iam ao cinema : «Nos EUA, haviam mais televisores per capita em
1965 do que na Europa dez anos mais tarde. No entanto, em 1965, os
americanos iam em média quatro vezes mais ao cinema do que os europeus
em 1975». Outras variáveis e outros indicadores haverá a considerar. Não se
pode negar, no entanto, uma relativa responsabilidade - lateral, é certo -, da
televisão na crise do cinema. Essa é também a opinião de François Garçon: «A
frequência [de salas] após os anos 50 não tinha, com efeito, tendência a decair
justamente na sequência do crescimento nos lares americanos que suprimia
nos telespectadores o desejo de se deslocarem às salas escuras?» 10 . Da
mesma forma é inegável, hoje, que é a própria televisão que está a contribuir
de forma clara para um certo crescimento da produção cinematográfica. Por
exemplo, já em meados dos anos 80, nos EUA, a estrutura de amortização de
uma longa-metragem americana era a seguinte: networks - 7 por cento;
syndication - 5 por cento; vendas a canais de pay TV - 23 por cento.
No que diz respeito à forma como o cinema passa na televisão poder-se-
ia seguir a própria experiência portuguesa, sobretudo no plano quantitativo,
com base nos estudos de audiências. Numa análise que fizemos durantes os
meses de Outubro e Novembro de 1994 11 , era visível que entre dois filmes
como As Asas do Desejo, de Wim Wenders, e Crocodile Dundee II, as
diferenças eram substantivas: 0,4 por cento de audiência média face aos 15,7
por cento do filme australiano. O filme de Wenders, que tem sido considerado
um dos grandes filmes dos anos 80 era positivamente marginalizado pelo
grande público da televisão, tendo sido um dos filmes com audiência mais
baixa ao longo dos dois meses em análise. O perfil do telespectador típico das

8.
10 François Garçon, «Un jeu du chat et de la souris: Hollywood», CinémAction, Cerf, Paris, 1987.
11 F. Rui Cádima, «O que a TV faz ao Cinema», Expresso, Cartaz, 24 de Dezembro de 199
rubricas de cinema deixaria prever uma outra resposta à programação de
cinema dos quatro canais portugueses: tem entre 25 e 34 anos, é homem, vive
na região da Grande Lisboa e pertence à classe alta/média alta (A/B). É
natural, portanto, que um dos filmes mais seguidos dos últimos anos na
televisão portuguesa seja uma obra de Spielberg - Indiana Jones e a Grande
Cruzada, emitido na SIC em Janeiro de 1995, tendo obtido uma audiência
média ao nível da telenovela brasileira (19,4 por cento) e share de 52,6 por
cento ao longo dos seus 126 minutos de duração. É claramente a adesão
inquestionável do público ao modelo do cinema americano de grande
espectáculo.
Um dos maiores realizadores da história do cinema - Jean Renoir -
concretizou uma outra aproximação à televisão: quando em 1959 realiza para a
RTF O Testamento do Dr. Cordelier, o cinema fica de certa maneira credor de
uma experiência laboratorial inédita. Tratava-se já de uma continuidade
dramática real, privilegiando mais a imagem do que a profundidade ou a
expressividade, privilegiando mais a sequência do que o plano. O filme
estreava depois, simultaneamente, no cinema e na televisão (16/11/1961). E de
certa maneira anunciava uma nova era no cinema: um dos seus elementos
essenciais - a profundidade de campo -, entrava em crise, uma crise originada
no novo modelo de produção e nas novas condições tecnológicas, o que
determinaria algumas aproximações estéticas entre cinema e televisão.
A televisão, designadamente o directo, mostra o trabalho, como dizia
Godard, o espectáculo, a representação, na sua durée. E foi aprendendo a
mostrá-los em grandes planos e planos médios - como Dreyer outrora o fizera
em Joana d'Arc, ou como Bergman faria em Persona ou, mais tarde, nas
Cenas da Vida Conjugal -, que os seus processos de enunciação se foram
sedimentando. Com uma diferença: teatralizando, dramatizando aquilo que no
cinema não era mais do que um olhar despojado, distanciado.
Quando Godard filma, nos final dos anos 70, as séries Six Fois Deux e
France, Tour Détour Deux Enfants, é claro que o que está em jogo é já a pós-
televisão. As preocupações e perplexidades do cineasta procuravam aqui uma
resposta falsamente inocente. A palavra decomposição servia de pano de
fundo a toda uma plástica televisiva que fazia apontar a câmara à instituição
escola, como à fábrica, como ao quartel. Decompor a violência da instituição
com um simples processo (anti-)narrativo. Com o video. Com a televisão.
Práticas e efeitos de síntese da televisão, formas de curto-circuitar o próprio
efeito televisivo.
Os anos 70 são sobretudo uma época de complexos cruzamentos entre
cinema e televisão. Os investimentos que um pouco por todo o lado, na
Europa, são feitos pelos operadores de televisão directamente na produção de
longas-metragens, acabam por gerar a emergência de híbridos. Era a época
em que os índices de audiência começam a ser levados em consideração na
economia das redes de TV. Daí que se diga que a televisão passa a ser cada
vez mais um media e cada vez menos uma linguagem. Era também o tempo da
troca dos travellings pelas zooms. O exemplo francês é paradigmático. No final
dos anos 80, a televisão francesa corpoduzia praticamente um terço dos filmes
franceses (um pouco menos do que provinha dos avanços sobre as receitas).
Recorde-se Le Rayon Vert, de Rohmer, que passava nas salas após a
emissão no Canal Plus, o que acabaria por lhe ser benéfico. Recordem-se
ainda as múltiplas versões cinema/TV, com longas-metragens e conjuntos de
episódios para TV.
É uma outra questão fundamental a relação entre série e televisão. De
facto, a série não diz apenas respeito a um determinado tipo de programas, a
um género televisivo, ela é sobretudo um modo de funcionamento do media - e
também, sem dúvida, um dos parâmetros essenciais não só para uma
caracterização da estética televisiva, mas fundamentalmente para a definição
do seu dispositivo tecno-discursivo. E ao efeito-série, como veremos no
capítulo seguinte, não é estranho o fenómeno modelizador por excelência do
objecto televisivo que transcorre, exactamente, não da violência simbólica, mas
antes da violência técnica do dispositivo da audimetria.

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