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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
ALUNO: BRUNO QUINTANILHA ARAUJO

PROJETO EXPERIMENTAL

A INFLUÊNCIA DA PINTURA E DO ONÍRICO


NOS FILMES DE NORMAN MCLAREN E
NA VÍDEO­ARTE DE BILL VIOLA

Salvador­BA
96.02
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
PROF. ORIENTADOR: JEDER JANOTTI
ALUNO: BRUNO QUINTANILHA ARAUJO

PROJETO EXPERIMENTAL
MONOGRAFIA DE CONCLUSÃO DE CURSO

A INFLUÊNCIA DA PINTURA E DO ONÍRICO


NOS FILMES DE NORMAN MCLAREN E
NA VÍDEO­ARTE DE BILL VIOLA

Salvador­BA
96.02
SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO .................................................................................. 4

2. INTRODUÇÃO ..................................................................................... 5
...................................................................................................................
2.1 Cinema Experimental de Norman Mclaren ..................................... 5
2.2 A Vídeo­Arte de Bill Viola.................................................................. 7

3 “ ARTE EM MOVIMENTO” DE NORMAN MCLAREN :


"LOVE ON THE WING" , “ HEADTEST” , “ BEGONE DULL CARE” ......... 11
...................................................................................................................
3.1 Música e Pintura nos Filmes de Norman Mclaren .......................... 13
3.2 Natureza Experimental ...................................................................... 16
3.3 Imagem Múltipla................................................................................. 18

4 A VÍDEO­POESIA DE BILL VIOLA EM “ THE PASSING” ................... 21


4.1 Fronteira da Realidade ...................................................................... 24

5 CONCLUSÃO ......................................................................................... 27

6 BIBLIOGRAFIA
1 APRESENTAÇÃO

Este projeto visa reconhecer que nas obras do cineasta experimental


1
Norman Mclaren : "Love on the Wing", “Head Test” e “Begone Dull Care”, e no
vídeo “The Passing”, do vídeomaker Bill Viola, estão presentes propostas
estéticas que lembram às dos movimentos das artes plásticas (especialmente
a pintura) que quebram com a tradição do movimento renascentista.
Para demonstrar esta interrelação foram reunidos numa fita de vídeo
(VHS), que se encontrará à disposição de professores e alunos no Laboratório
de Vídeo da Facom, os trabalhos dos dois artistas. Não pretendemos com isso
explicar toda e qualquer relação entre as artes plásticas e as mídias
audiovisuais (cinema e vídeo), e sim as relações encontradas nesses casos
específicos em que os trabalhos de Norman Mclaren e Bill Viola demonstram
uma tentativa de criar imagens oníricas, através das mídias que utilizam
(cinema e vídeo), procedendo como os artistas plásticos da vanguarda
moderna.

1
Os trabalhos de Norman Mclaren foram gravados, numa fita de vídeo VHS, do programa
Lanterna Mágica, da TV Cultura de São Paulo, retransmitido há cerca de cinco anos pela TV
Educativa da Bahia, que na época transmitia com um sinal precário e por isso a fita apresenta
limitações de reprodução. Para melhorar a visualização da mesma, aumente o brilho do
aparelho de TV no qual estiver sendo exibido. Quanto às legendas não podem ser melhoradas,
pois a falta de clareza deve­se à má qualidade da transmissão. A TV Educativa da Bahia não
dispõe do material que só se encontra à disposição na TV Cultura de São Paulo, onde não é
permitido que se façam cópias do material, sendo que, no máximo, ele poderia ser reexibido.
2. INTRODUÇÃO

2.1 Cinema Experimental de Norman Mclaren

Os artistas modernos das primeiras décadas do Século XX se

dedicaram a novas experiências estéticas, encontrando no cinema um dos

meios mais renovadores para a percepção, com a utilização dos elementos

essenciais: luz, imagem e movimento; acompanhados de som. Mesmo no que

se chamava Cinema Mudo, ou filmes sem sonorização, geralmente havia o

acompanhamento de uma orquestra de músicos que tocavam fazendo uma

espécie de trilha sonora para o filme.

O cinema, até o surgimento das vanguardas do início do século, tinha

sido marcado por convenções estéticas como o realismo, que era uma herança

da tradição artística que predominava até os primeiros anos do Século XX.

(XAVIER, 1984) No início, o cinema se mostra como uma forma de transporte

da cultura impressa (e das narrativas cronológicas lineares) para as telas do

cinema. Os romances modernos, realistas, inspiraram pioneiros do cinema a

realizarem os primeiros roteiros ou “scripts”, a exemplo de Melliés na França

(de 1900 a 1902) com “A Viagem à Lua” e “Cinderella”; e Edwin S. Poter nos
EUA com “The Great Train Robbery” (1903) que lançou os filmes de estórias

de “cowboys”.

Os artistas das vanguardas modernistas, depois da primeira década do

Século XX, passaram a desenvolver uma repulsa contra o padrão estético que

reinava na arte até quase o fim do Século XIX, impregnado do realismo na

representação pictórica e também contra a filosofia clássica e o racionalismo

burguês.

No Cinema de Norman Mclaren, por exemplo, ele inseriu no filme,

exatamente estes conceitos, através de recursos estilísticos das artes

plásticas, como a tendência abstrata, os contrastes de luz e sombra na

filmagem dos quadros, a descontinuidade de espaço e tempo, rompendo

principalmente com a tradição da narrativa linear, uniforme, e com a lógica

racionalista. O filme do movimento de artistas conhecido como Expressionismo

Alemão, “O Gabinete do Doutor Caligari” (1919) é tido como marco inicial da

vanguarda cinematográfica moderna, que rompe com a tradição no modo de

fazer cinema, influenciada pela tradição artística do Século XIX. “(...) Este filme

transporta para o âmbito cinematográfico estruturas espaciais e formas

próprias ao mundo do teatro não naturalista e ao espaço pictórico da arte

moderna”. (XAVIER, 1984, p 84)

Em nenhum outro movimento da Vanguarda do cinema, a fusão entre

esta mídia e a pintura moderna foi tão evidente como no Cinema Abstrato e em

especial no trabalho do artista plástico e cineasta experimental Norman

Mclaren. Ele aperfeiçoou como poucos a técnica do filme pintado a mão, onde

a película funciona exatamente como a tela do pintor, pois as intervenções são

feitas diretamente nela: desenhos, formas abstratas e cores materializadas

pelo cineasta­artísta plástico. Desta forma ele pôde fugir completamente da


figuração segundo o padrão renascentista, imposto também pela reprodução

fotográfica do mundo através de uma câmera, já que quase não a utiliza.

Norman Mclaren foi um mestre do filme pintado a mão, mas trabalhou e

aperfeiçoou várias técnicas cinematográficas, trabalhando também com o

registro fotográfico, na filmagem quadro­a­quadro, e manipulando­os depois na

montagem, utilizando­se da relação câmera­objeto de várias formas. Mesmo

quando trabalhou com o registro cinematográfico, com uma câmera, ele

consegue um alto grau de abstração, através da montagem.

2.2 A Vídeo­Arte de Bill Viola

No final dos anos 40, quando a televisão se tornou um veículo de

comunicação de massa, ela tinha como objetivo exclusivo transmitir imagens e

som, segundo o modelo de representação renascentista, que predominou até

fins do Século XIX. As câmeras de TV devem reproduzir as imagens que

chegarão aos telespectadores com a máxima fidelidade possível. “As câmeras

fotográficas e cinematográficas (e, em menor grau, também as de vídeo) não

fazem senão automatizar e perpetuar esse modelo pictórico (renascentista)

que, aos nossos olhos viciados por cinco séculos de império da figura, aparece

simplesmente como uma técnica de duplicação do mundo visível pela

máquina”. (MACHADO, 1988, p 119)

Quando os artistas experimentais contemporâneos descobrem o vídeo,

ou a imagem eletrônica da televisão, como mídia apta a novas possibilidades

estéticas de manifestação artística, eles também partiram dos mesmos

elementos conceituais que inspiraram as vanguardas do início do século. A

televisão só conseguiu estatuto de arte quando exposta como “instalação”

pelos artistas experimentais (as “vídeo­instalações” começaram a surgir a


partir da década de 60) em galerias de arte. Até este momento, a TV era

utilizada seguindo o mesmo padrão de reprodução da realidade, que imperou

como modelo renascentista durante todo Século XIX, assim como serviu ao

cinema o romance realista, logo nos seus primórdios e até o surgimento das

vanguardas.

Considerado o pioneiro da vídeo­arte, o coreano Nan June Paik, por

volta de 1963, quando estudava música eletrônica em Colônia, na Alemanha,

experimentou inverter os circuitos de um aparelho receptor de TV para

perturbar a constituição da imagem. Quando Paik subverteu a imagem da TV

alterando a ordem na figuração das imagens (invertendo os circuitos do

aparelho, ou aproximando um imã circular da tela, algumas de suas primeiras

técnicas) ele criou imagens inéditas em vídeo. Ele descobriu também que se

aproximasse o imã de uma câmera de vídeo poderia gravar as imagens

deformadas em fita magnética. Com isso sua intenção era, “distorcer e

desintegrar a velha imagem do sistema figurativo, como aliás já vinha

acontecendo desde muito antes no terreno das artes plásticas”. (Machado,

1988, p117)

Em 1969, Nan June Paik e o engenheiro eletrônico Suya Abe

inventaram um dos primeiros sintetizadores de vídeo capazes não só de

distorcer a imagem figurativa captada pela câmera, mas também capaz de

gerar imagens inéditas de pura videografia, modulando os sinais de luz, cor e

saturação, possibilitando criar no monitor de vídeo imagens abstratas em

mutação constante, equivalentes aos efeitos sonoros obtidos através de um

sintetizador de música eletrônica.

“Essa peculiaridade da tecnologia vídeo permitiu aos artistas, num certo

sentido, voltarem à pintura, ou seja libertarem­se do constrangimento da figura

e tratarem a sua matéria significante como formas e cores em evolução,


infinitamente manipuláveis na grade mosaicada, como já se vinha fazendo nas

artes plásticas desde Kandinsky, Malevitch e Mondrian”. (MACHADO, 1988, p

125­126)

No início dos anos 70, artistas experimentais começam a introduzir

recursos da informática para processar imagens no monitor de vídeo, fazendo

o que se denominou “infografia”. A partir daí a imagem eletrônica do vídeo

(formada pelos milhões de pontos luminosos, “pixels”, que a constituem) é

traduzida em informação digital para o computador segundo um modelo

numérico binário, que quantifica cada um dos pixels existentes na tela (de

acordo com suas variações de luminosidade cor e saturação), permitindo

muitas possibilidades de manipulação da imagem.

“Com a codificação digital, o vídeo se distancia cada vez mais do

padrão fotográfico e se aproxima cada vez mais do desenho ou das artes

gráficas em geral. Ele se converte, portanto num meio de extrema sofisticação

imagética, capaz de produzir uma gama de formas e de cores que antes era

privilégio exclusivo das artes plásticas”. (MACHADO, 1988, p 162) Paralela a

esta tendência infográfica/abstrata, alguns vídeomakers experimentais

retomam a relação câmera­objeto, como nos trabalhos de Bill Viola, a partir de

meados da década de 70. Assim como as vanguardas modernas do Cinema

Poético, dos anos 20 e 40 (Bazin e Epstein), Viola faz com a câmera de vídeo

o que os cineastas faziam com a câmera cinematográfica: revelar as virtudes

plásticas de cada imagem captada.

A câmera­objeto de Bill Viola utiliza recursos somente disponíveis pela

tecnologia da imagem eletrônica (como uma câmera com “ïntensificador de

imagem” capaz de captar imagens com o mínimo de luz) e consegue registrar

imagens incomuns tiradas do mundo natural. Com a elaboração de recursos

como o jogo de luz e sombra, o primeiro plano e a descontinuidade espaço


temporal na montagem, essas imagens adquirem características oníricas e

“surrealistas”.

O avanço do trabalho dos vídeos de Bill Viola em relação ao Cinema

Poético Francês, está na utilização dos recursos eletrônicos, que tornam os

efeitos já utilizados, como os citados anteriormente: primeiro plano, relação

câmera­objeto, descontinuidade espaço temporal, cada vez mais sofisticados,

a nível da imagem ser mostrada, por vezes, quase que como um mosaico. A

câmera cinematográfica, baseada no princípio da fotografia, não consegue,

como a câmera de vídeo e sua imagem eletrônica (mosaicada), pulverizar,

tornar quase amorfa, onírica, estas novas imagens videográficas.

Para ilustrar este pensamento, imaginemos uma tomada de cena de

uma mão destacada do corpo, por duas câmeras, uma de cinema e outra de

vídeo (como no Cinema Poético e na video­arte de Bill Viola), ambas em

primeiro plano. No Cinema Poético francês a imagem reproduzida

fotograficamente revela a estética da mão, mas não consegue inovar além

disso. No vídeo de Bill Viola, a imagem da mão reproduzida pela câmera de

vídeo pode ser captada mesmo que ela esteja imersa numa escuridão quase

absoluta, e revela uma nova dimensão, um mosaico, um novo contorno

antropomórfico, enfim, uma imagem susceptível de várias interpretações de

cada espectador,
3 “ ARTE EM MOVIMENTO” DE NORMAN MCLAREN :
" LOVE ON THE WING", “ HEADTEST” , “ BEGONE DULL
CARE”

Norman McLaren, nascido em Sterlling, Escócia, em 1914, 19 anos

depois do nascimento do cinema, foi um dos principais cineastas da

Vanguarda do Cinema Abstrato ou Cinema Puro. Ele não só pintava com tintas

e uma “pena” incríveis formas que deixava fluir de seu subconsciente, como

também trabalhava com o registro fotográfico, com a câmera e depois

manipulando os fotogramas na montagem; sempre influenciado pelo ritmo

musical. Norman Mclaren definia o cinema pintado à mão como: “Arte em

Movimento desenhada através do tempo”. Ele também pensava o cinema em

termos de: “Movimento e mudança, pintado pela luz”. (*OBS: todas as

declarações de Norman Mclaren contidas neste projeto foram tiradas do


documentário “The Creative Process”, produzido pela National Film Board of

Canada)

“Quando uma nova tecnologia é inventada, uma pessoa, com uma

natureza artística, é capaz de pegar esta tecnologia e utiliza­la à sua maneira”,

afirmava o cineasta que começou a desenvolver o interesse pelas artes ainda

no início da adolescência. Impressionado por um desenho publicado na revista

inglesa Punch, que satirizava a Arte Moderna, Norman Mclaren começou a

“abstrair” nos projetos de desenho e pintura no ginásio. Com 18 anos ele

ingressa na Escola de Arte de Glasgow, e ainda no terceiro ano começa a

trabalhar de forma amadora e experimental com o cinema, por acreditar ser

aquela uma nova mídia, descoberta há pouco tempo e com infinitas

possibilidades artísticas.

“Tanto tinha sido feito no campo do desenho e da pintura que naquela

idade eu pensei aquilo, a pintura e o desenho, como artes ‘mortas’, e a nova

arte do futuro seriam os filmes. Então pensei, vou fazer filmes”, conta Norman

Mclaren que a partir daí começa a fazer filmes com uma câmera bem simples.

Ainda na Escola de Artes ele consegue uma câmera melhor, que permitia

utilizar recursos como “fades­in”, “fades­out”, dupla exposição, “frames

divididos”, e um único frame por vez. Foi a primeira oportunidade que Mclaren

teve de fazer animação, geralmente de objetos. Em um de seus filmes

experimentais deste período, “Camera goes Whoopie”, “ no final, a câmera

por si só vai para a cama dormir”, e ele consegue este efeito filmando “frame a

frame”, as diferentes posições da câmera, vindo do chão, subindo na cama, e

movendo­se pelo colchão até se enfiar debaixo das cobertas e encostar a

objetiva no travesseiro; depois o filme é passado numa velocidade acelerada,

dando a idéia de movimento. Para Mclaren esta técnica surgiu de maneira


totalmente expontânea, e foi ainda na Escola de Artes também que ele

começou a fazer filmes pintados à mão.

Ao sair da faculdade, Norman Mclaren é convidado a trabalhar

na Film Society de Glasgow, por um produtor de cinema que reconheceu suas

potencialidades artísticas ao ver um de seus trabalhos, “Camera goes

Whoopie”, apresentado num festival de filme amador, mas percebe que ele

precisa de maior disciplina, ou seja dominar a técnica de fazer cinema. Depois

de dirigir e escrever documentários para a Film Society em Glasgow, onde

Mclaren adquiriu a disciplina e o domínio sobre como trabalhar com filmes, ele

imigra para os EUA em 1939 a fim de dar continuidade ao seu trabalho com

cinema experimental. Em 1941 ele vai para o Canadá a convite de um produtor

da National Film Board of Canada, para fazer filmes de natureza experimental,

o que fez até se aposentar em 1984.

3.1 Música e Pintura nos Filmes de Norman Mclaren

A música sempre foi a grande inspiração para o trabalho artístico de

Norman Mclaren. Ele afirmava que, com 18 anos, antes de entrar para a

Escola de Artes, costumava ligar o rádio antes de ir dormir e ficava ouvindo as

músicas transmitidas pelas rádios da Europa, deitado com os olhos fechados,

imaginando as formas em sua mente, movendo­se e dançando inspiradas pelo

som. “Eu queria fazer o som ser visualizado”, afirmava Mclaren. “Músicas em

vários ‘tempos’, ou ritmos, que pode ser mais devagar ou mais rápido,

acelerando ou desacelerando, ‘pianíssimo’ ou ‘fortíssimo’. E eu podia

visualizar em minha mente o equivalente disso num filme. As formas podiam

pipocar alegremente e escorregar rapidamente, ou se arrastar tragicamente ao

redor. E todos os adjetivos, ou sensações que nós podemos aplicar à música,


nós podemos aplicar aos movimentos das formas no filme abstrato, então eu

tinha várias músicas que gostaria de representar visualmente”, afirmava o

cineasta/artista plástico que certa vez declarou que quase metade de sua

produção para exibição foi expressão deste espírito da música.

Norman Mclaren conheceu o primeiro filme abstrato no início dos anos

30 ainda em Glasgow, uma representação de uma ‘rapsódia’ musical, feita por

Oscar Fishinger, que pintou linhas e formas na película que se moviam ao

ritmo da música. Ele disse: “É isso, o filme é a mídia para expressar meus

sentimentos em relação à música”. Pouco antes de começar a fazer filmes,

Mclaren havia descoberto a pintura surrealista. Um dos surrealistas que ele

mais admirava era Yves Tanguy, e o cineasta não negava ter sido muito

influenciado pelo modo como Tanguy lidava com as formas abstratas e a

noção de espaço em suas pinturas. A idéia surrealista do inconsciente como

fonte de inspiração artística foi durante um longo tempo a maior força

impulsionadora no processo criativo de produção de Norman Mclaren, e

permaneceu uma influência até o fim de sua carreira em 1984 quando se

aposentou.

"Surrealismo significa cortar o controle consciente do que está

acontecendo. Como eu procurava seguir o princípio da improvisação nos meus

primeiros trabalhos, isso se encaixava na idéia do surrealismo. Você deixa que

o subconsciente diga o que a imagem vai fazer em seguida. Conhecer o

surrealismo e as pinturas surrealistas me libertou para fazer filmes como "Love

on the Wing", contou o cineasta em determinada ocasião. Este trabalho, feito

em 1939, foi seu primeiro filme como cineasta profissional. Nele as formas

estão em constante metamorfose, e ele usa o mesmo procedimento surrealista

na sucessão das imagens, como num sonho, justapondo coisas totalmente

diferentes, fugindo à lógica e racionalidade, num universo sem espaço e tempo


contínuo. Uma sinfonia do compositor francês, Jacques Iber, foi a inspiração

musical para as formas que surgiam e desapareciam como flutuando através

de um céu multicolorido.

A técnica conhecida como “metamorfose do filme”, Mclaren conheceu

através dos trabalhos do cineasta experimental francês, pioneiro da animação,

Emile Colbi, que usou a técnica desde 1908, fazendo desenhos e filmando­os

“frame a frame”, como no filme “Fantasmagória”. Neste filme a técnica usada

pelo artísta­cineasta foi um traço simples para criar as formas e

representações simples de seres humanos, animais, objetos, e etc, sempre em

transformação.

Norman Mclaren fez “Love on the Wing” sem utilizar uma câmera,

fazendo os desenhos diretamente na película, com tintas em uma “pena”

(caneta para desenho). Ele também usou a técnica do traço para criar as

imagens e desenhou milhares de minúsculos fotogramas com representações

simples de objetos e seres humanos, até desenhos elaborados de prédios,

monumentos e o céu multicolorido que servem como uma paisagem onírica por

onde passam as mais loucas formas.

Esta técnica do filme pintado à mão, que ele tinha experimentado ainda

na Escola de Arte em Glasgow, o cineasta aperfeiçoou em Nova Iorque para

onde imigrou em 1939. Lá ele conta que passou tempos difíceis, no início,

morando num pequeno quarto, onde fez vários filmes para o Museu

Gugenheim. Durante sua carreira, Norman Mclaren se preocupou em fazer,

nos seus filmes, "a vida brilhar", criando universos de fantasia e esperança.

Raramente seus filmes mostram seu sofrimento e dor interior. Um de seus

filmes de animação do início dos anos 40, "The Headtest", inspirado na pintura

surrealista, é um dos poucos trabalhos do cineasta que demonstram esses

sentimentos, e foi deixado incompleto pelo artista. Nesse filme Mclaren utiliza
uma técnica que consiste em colocar uma câmera cinematográfica em frente a

uma tela de pintura e filmar "frame a frame" cada uma das alterações que ele

como artista plástico (pintor) faz em sua tela. No momento da projeção normal

do filme as imagens aparecem em constante mutação.

“Eu fiz aqueles filmes do Gugenheim enquanto eu estava quase

passando fome, num quarto na Rua 123 com a River Side Drive. Tudo que eu

tinha era alguns pigmentos (tintas), uma mesa plana, um prendedor para fixar

os filmes e um gancho para segurar o casaco”, contou Norman Mclaren.

Depois porém, reconhecido como cineasta experimental da vanguarda artística

da época, ele se mudou para uma casa com árvores e pássaros onde passou

um tempo agradável na companhia de amigos, até se mudar para a National

Film Board of Canada em 1941, onde encontraria todo o apoio para

desenvolver sua carreira de cineasta experimental e fazer filmes aclamados

mundialmente, como "Neighbours", "Pas de Deux" e muitos outros.

Uma das razões que levaram Norman Mclaren a começar a fazer

cinema foi porque ele percebeu que aquela era uma mídia descoberta há

pouco mais de 30 anos, e que oferecia grandes possibilidades artísticas; e ele

estava cansado da maneira convencional de se fazer cinema, e queria

experimentar coisas novas e diferentes com esta mídia no campo da arte.

3.2 Natureza Experimental

Em suas declarações, Norman Mclaren sempre fez questão de frisar

que seu processo de produção de filmes era inspirado na música, de todos os

tipos, e na pintura. O cineasta na verdade fundiu as artes plásticas (pintura)

com a mídia do filme, cheia de possibilidades artísticas pois lida com sons e

imagens, suas duas grandes paixões. Ainda em Nova Iorque, no final dos

anos 30, ele justificava seu trabalho com cinema da seguinte forma:
“Eu tento, o mais que possível, preservar em minha relação com o filme,

a mesma proximidade e intimidade que existe entre o pintor e sua tela.

Normalmente, ao se fazer filmes, todos sabem que existe uma elaborada série

de processos ópticos, químicos e mecânicos que estão entre o artista e o

produto final. É muito mais fácil para o artista e sua tela, então decidi

dispensar a câmera e pintar diretamente no filme”.

Quando era adolescente, Mclaren leu um livro, um conto ilustrado, sobre

um mestre da “cinestesia” que acreditava que existia uma relação direta entre

sons e cores, e ele seria capaz de gerar cores dos sons, ou o que o

adolescente Mclaren sonhava ser “música colorida”. Esta influência o cineasta

desenvolveu em seus filmes abstratos, e o trabalho que ele considera a maior

expressão disso é o filme “Begone dull Care”, feito em 1949, com a

colaboração da artista e amiga Evelyn Lambert. Neste filme eles ignoram

totalmente as linhas dos “frames” (que separam cada um dos fotogramas) e

pintam cores, formas e arranhões diretamente na película.

Norman Mclaren uma vez disse que “Begone dull Care” era o seu sonho

de “música colorida” que tinha se tornado realidade. O filme foi pintado,

inspirado por um script musical, improvisado pelo músico Oscar Petersen. Mais

uma vez Mclaren usou o subconsciente como fonte de inspiração para as

formas, traços e cores que ele e sua colega Evelyn Lambert pintaram

intuitivamente, diretamente no filme.

Durante sua carreira de cineasta, Norman Mclaren fez filmes com várias

técnicas, não apenas a do filme pintado à mão, com tintas e pincel diretamente

na película. Ele sempre trabalhou, com menor ou maior intensidade em certos

períodos, com a utilização de uma câmera para registrar as cenas, que, no

entanto, sempre recebem um tratamento subjetivo, de acordo com a idéia ou

sensação que ele quer transmitir. Com a filmagem “frame a frame” (ou quadro
a quadro), por exemplo, ele podia manipular a mudança dos quadros, e assim

a sucessão das imagens através dos cortes e da montagem, com a colagem

dos fotogramas. Desta forma, ele podia fazer pessoas ou objetos inanimados

se moverem de forma impossível, dentro da realidade de nosso mundo físico e

sua respectiva reprodução através da filmagem e exibição normal do filme.

Com esta técnica, em um de seus trabalhos, “Chairy Tale”, o cineasta faz uma

cadeira “criar vida” própria e fugir da pessoa que deseja sentar nela.

Num dos filmes que Norman Mclaren considerava mais importante,

“Neighbours”, ele utilizou a filmagem quadro­a­quadro de cenas, com uma

câmera, e depois manipulou a sucessão das imagens através de cortes e da

montagem, criando movimentos rápidos e absurdos tanto nas pessoas como

nos objetos filmados. Mas o que Mclaren considerava mais importante neste

trabalho era a mensagem humana, pouco comum em seus filmes abstratos. O

filme foi feito depois de uma viagem feita pelo cineasta à China em 1949, no

ápice da guerra civil que culminaria com a implantação do regime comunista

naquele país. Lá, e também na Índia, ele desenvolveu o projeto “Healthy

Village” (Vila Saudável), ensinando as técnicas de comunicação e artes para

divulgação de informações e educação para a população. O projeto foi

reconhecido pela Unesco que o adotou posteriormente.

Norman Mclaren pegou o exato momento de transição de regimes e

pôde vivenciar de perto as mortes provocadas pela guerra entre nacionalistas

e comunistas na China. Ao voltar para o Canadá ele continuou acompanhando

pelos jornais os conflitos espalhados pelo mundo, gerados pelo que se

chamou Guerra Fria, e a disputa ideológica entre o bloco capitalista (com os

EUA à frente, como grande potência mundial) e o bloco comunista (sob

influência da antiga União Soviética), e os conflitos armados, consequência

desta nova disputa de poder. Mclaren passou este sentimento, então, para o
filme, que conta uma estória simples, como praticamente todos os seus

trabalhos, sem diálogos ou falas. Ao contrário da grande maioria de seus

trabalhos (influenciados pela música), em “Neighbours” a música não foi a

inspiração principal, ou melhor, a sonorização do filme foi feita com uma trilha

sonora que na verdade são apenas ruídos na maior parte do tempo, com

pouca musicalidade, pois o que ele quis destacar foi a mensagem humana.

“Eu não posso julgar meus filmes, mas se todos eles tivessem que ser

destruídos, com exceção de um, eu preferiria que esse fosse “Neighbours”, por

ele ter uma forte mensagem social, sobre a ganância do homem e a

irracionalidade de se usar violência para obter soluções. É uma verdade

humana que nenhum de meus outros filmes traz”, chegou a declarar Norman

Mclaren certa vez.

3.3 Imagem Múltipla

Em certo momento Norman Mclaren não quis mais fazer filmes pintados

a mão, e resolve trabalhar outras técnicas, com o registro cinematográfico com

a câmera, a manipulação do filme e a montagem. Uma das principais técnicas

aperfeiçoadas por Mclaren, é a da “múltipla imagem”, que ele materializou em

filmes como “Pas de Deux”. Nesse trabalho, dividido em duas seções (ou

atos), o cineasta aplica o conceito da múltipla imagem a uma estória simples

encenada por dois bailarinos.

Na primeira seção de “Pas de Deux”, uma garota acorda e começa a

dançar de maneira narcisista. Nessa primeira parte Norman Mclaren utiliza a


forma convencional de filmagem. Na segunda parte, um rapaz aparece e eles

percebem que a felicidade de cada um deles está no amor que um sente pelo

outro. A explosão de amor é representada pela multiplicação da imagem de

cada um dos dançarinos, que Mclaren conseguiu com a técnica da “impressão

óptica”. A inspiração que Mclaren buscou, conscientemente, para desenvolver

a técnica da “múltipla imagem”, utilizada em “Pas de Deux”, foram as antigas

técnicas de fotografia e pintura. Só assim, afirmou ele, “poderia captar todas

as fases do movimento num único instante”.

As influências e técnicas encontradas por Norman Mclaren foram as

“fotos de imagem múltipla” e “fotos diagramáticas”, feitas a partir de 1880 pelo

fisiologísta francês, Etienne­Jule Marey, um dos pioneiros do registro

fotográfico dos vários momentos do movimento humano, num único fotograma..

Outra influência foi uma pintura do artista plástico Marcel Duchamp, “Nú

descendo a Escada” (1912), que era descrita por ele mesmo como sendo “a

concepção estática de modificações de várias posições de um corpo em

movimento”. Porém, a maior influência de Mclaren na criação de “Pas de Deux”

foram as “fotos estroboscópicas” de Harold Edgerton, que conseguiu, como

ninguém, registrar num único fotograma as várias etapas do corpo em

movimento. Mclaren tinha uma foto de Edgerton na porta de sua oficina, para

inspiração.

EM 1961 Norman Mclaren e outro cineasta experimental que trabalhava

com ele, Grand Munho, adicionaram o princípio da “múltipla imagem” às ações

vivas. Uma ação era filmada em câmera lenta (um homem andando, por

exemplo), e esta imagem do filme era superposta a ela mesma várias vezes,

mas sempre com o atraso de alguns “frames”, para que se pudesse visualizar

todos os estágios do movimento em um único instante, como na “fotografia

estroboscópica” de Edgerton. Esta técnica da “imagem múltipla” ele explorou


com extrema perfeição, subjetividade e poesia em “Pas de Deux” (1965), e

posteriormente em “Narcisus” (1974).

No início da década de 70, durante uma entrevista a um repórter de tv, o

mestre do Cinema Abstrato, Norman Mclaren, foi questionado sobre o que ele

achava do computador como nova mídia que estava começando a ser utilizada

com finalidades artísticas. “Nós vemos jovens artistas usando computadores

para fazer um novo tipo de animação, um novo tipo de filme, e, é a maneira

apropriada, é assim que se deve fazer”, declarou Norman Mclaren

respondendo ao repórter.

Ele mesmo confessou que se estivesse crescendo naquela época, iria,

com certeza, procurar um computador para começar a fazer coisas com ele.

“Mas somos crianças de nosso próprio tempo, e se nascemos em uma

determinada época, usamos certas coisas”, dizia ele que durante toda sua

carreira, sempre se dedicou ao cinema experimental, e não chegou a trabalhar

com a mídia eletrônica. Norman Mclaren, no entanto, sempre frisou que uma

pessoa com natureza artística é capaz de pegar uma nova tecnologia e usa­la

à sua maneira.

4 A VÍDEO­POESIA DE BILL VIOLA EM “ THE PASSING”

Em seu vídeo, considerado o mais meticulosamente elaborado, “The

Passing” (1991), o vídeomaker norte americano Bill Viola faz a crônica de uma

noite negra da alma, através de uma série de reflexões pessoais altamente


evocativas. O vídeo, preto e branco, se presta à visualização do imaginário

noturno, passando­se na penumbra de suas meditações mais sombrias.

O vídeo se ambienta durante uma noite do videomaker, que busca

mostrar na forma de imagens, como que surgidas de seu inconsciente (dos

sonhos), as experiências mais importantes de sua vida. O artista nos

transporta para um mundo onde acontece uma “ruptura no próprio nível da

estruturação das imagens, quebrando a tranquilidade do olhar submisso às

regras”, assim como faziam os cineastas das vanguardas (XAVIER, 1984, p

95). As imagens do inconsciente, oníricas, são interrompidas por momentos

em que Viola desperta de seu sono, mas mesmo nestes momentos o

enquadramento que coloca seu olho em primeiro plano não traz tranquilidade

ao olhar do espectador.

Bill Viola tem uma preocupação com a possibilidade de explorar a

relação câmera­objeto, e para isso ele utiliza recursos simples como o puro

registro, agora não mais cinematográfico mas videográfico, das imagens.

Semelhante à teoria do esteta francês dos anos 40, Jean Epstein, cada objeto

ou figura filmada ganha uma nova vida, uma personalidade própria: “ O

primeiro plano fere também de outro modo a ordem familiar das aparências. A

imagem de um olho, de uma mão, de uma boca, que ocupa toda a tela ­ não

só porque aumentada em trezentas vezes, mas também porque vista fora da

continuidade orgânica ­assume um caráter de autonomia animal. Este olho,

estes dedos, estes lábios, já são seres que possuem, cada um, seus próprios

limites, seus movimentos, sua vida , seu próprio fim. Eles existem por si

mesmos”. (EPSTEIN, 1946, p 284)

Em “The Passing”, Viola não utiliza referências de espaço e tempo

claras. Acontecimentos e imagens de objetos e pessoas se sucedem sem

nenhuma lógica, que não seja a do sonho, algo que pode ser comparado ao
“modelo onírico”, como usado pelos surrealistas nas artes plásticas (e nos

filmes de Buñuel e Dalí), influenciados pelos conceitos de Freud sobre a

estrutura psíquica, a partir de meados dos anos 20. Este vídeo é considerado

autobiográfico e envolve cenas com sua família, paisagens do Oeste

americano, filmagens que relembram memórias de sua infância, como um

quase afogamento quando ele tinha 10 anos de idade, a morte de sua mãe e o

nascimento de seu primeiro filho, intercaladas pelos momentos em que o

videomaker desperta de seu estado de inconsciência.

“A torrente das reflexões sugerem um ‘despertar’ em muitos sentidos: a

lembrança de velar um morto pela manhã, as ondas que traçam o curso de

algo passando, e o despertar da consciência para a mudança”. (NASH, 1992)

Neste sentido, uma sequência marcante é aquela em que o videomaker mostra

a imagem da mãe doente, nos últimos momentos de vida, no hospital; e logo

em seguida a imagem é .fundida com outra imagem, a do seu primeiro filho no

momento do nascimento. “O trabalho sempre preencheu uma necessidade

muito pessoal para mim, a partir de certo momento de minha vida, e ao ficar

mais velho isso foi ficando cada vez mais profundo, de uma maneira que eu

sinto que não tenho escolha. Minha mãe morreu em 1991 e isso entrou no meu

trabalho, tem que ser assim, não há outro jeito”, conta Bill Viola. (VIOLA, 1994)

Bill Viola apresenta, em “The Passing”, através de imagens captadas

pela câmera, experiências profundas passadas em sua vida. Este trabalho foi

feito de forma tão intuitiva que por vezes parece não ter sido produzido (o

oposto do que acontece usualmente na produção de filmes do cinema). Com o

puro registro videográfico e alguns recursos oferecidos por esta mídia, ele é

capaz de experimentar estes momentos (captados de sua própria vida) de uma

nova forma, lidando com seus traumas, suas dores, sensações realmente
vivenciadas, e agora expressos, de acordo com seu sentimento e suas

memórias, e, revivenciadas, de forma artística em seu trabalho.

“Vivendo dentro do frame” é uma frase que Bill Viola tem usado para

descrever como ele localiza a si próprio no interior de seu trabalho, mas ela

também pode ser interpretada como sendo um tipo de filosofia ética. “Vivendo

dentro do frame significa vivendo dentro da experiência. Arte tem que ser parte

da vida diária ou não é honesta”, ele explica. Esta integridade de sua visão

pessoal está fundamentalmente definida em “The Passing”, como em nenhum

outro de seus trabalhos.

O vídeo foi produzido originalmente em preto e branco, e, nele Bill Viola

explora ao máximo o recurso do jogo de luz e sombra sobre a superfície dos

objetos e figuras filmadas, e o contraste é acentuado ainda mais pela ausência

de cor. Este recurso foi amplamente utilizado pelos cineastas da vanguarda

do início do século, desde o Expressionismo Alemão, como no filme “O

Gabinete do Dr. Caligari” (1919) que é considerado o marco inicial das

vanguardas (Xavier, 1984, p 83), e também no Cinema Poético dos anos 20.

Bill Viola trabalha como ninguém esta tendência no vídeo, para dar

subjetividade e poesia às imagens registradas por ele. Estes momentos

sempre estão num intervalo entre uma imagem enevoada, escondida nas

sombras, e que aos poucos vai sendo revelada, como se estivesse ganhando

vida própria, na sequência de tempo da sucessão das imagens. Ele acentua

ainda mais esta tendência com recursos de “slow motion” (câmera lenta),

quando se pode perceber lentamente a revelação de imagens da vida interior.

4.1 Fronteira da Realidade


Para levar este estilo (o jogo de luz e sombra) ao extremo, Bill Viola

contou com recursos que somente são possíveis com a tecnologia do vídeo.

Ele usou uma “low­light vídeo­camera” (uma câmera de vídeo especial para

filmar com o mínimo de luz) com intensificador de imagem, desenvolvido para

uso militar de vigilância. O videomaker, assim, consegue registrar o movimento

das imagens, a partir de um momento, além das possibilidades do registro

fílmico, uma fronteira da realidade e um fenômeno eletronicamente

viabilizado, que por vezes amplia os limites de percepção do olho humano.

Desta forma ele coloca suas visões, quase espectrais, situando­as dentro e

fora do campo da visibilidade. Em suas paisagens imaginárias, conseguidas

através deste efeito, Bill Viola consegue criar uma atmosfera de “noite­para­

dia” que inverte as noções convencionais de realidade e tempo. Para acentuar

o caráter onírico do vídeo, como se ele quisesse revelar as imagens do seu

inconsciente, o videomaker utilizou também uma câmera para filmagem

subaquática tornando, por vezes, praticamente amorfas, como manchas, as

imagens.

“Uma das marcas registradas de Bill Viola é sua habilidade de tornar

poético o intervalo entre um embaçado sugestivo e um foco reconhecivel ­ele é

um mestre do Teste de Rorschach como estratégia estética”. (NASH, 1992)

Assim, ele consegue criar ilusões nas quais formas brancas tornam­se lençóis

e depois nuvens; sopros de fumaça transformam­se em um fantasma e depois

em uma mulher.

Em uma outra espécie de inversão, perto do final do vídeo, aparece

uma mesa, posta de forma bem arrumada para uma pessoa, cena tipicamente

renascentista, que aos poucos vai sendo tomada por uma força não vista que

surge acima da mesa, e que não identificamos como sendo um fenômeno do

mundo real. Subitamente a cena renascentista inicial vai sendo pulverizada,


até tornar­se uma imagem totalmente abstrata. Esta armadilha do olhar nos

leva a uma total desintegração de nossa noção convencional de espaço e

realidade.

“Se nós voltarmos aos antigos gregos e a muitos outros filósofos do

oriente descobriremos que existe um outro modelo de visão, que é um modelo

criativo de visão e de acordo com o modelo criativo de visão, o olho emite

raios de alguma substância que era desconhecida e não­material, e esses

raios atingem os objetos, fazendo­os visíveis. Então nesse modelo de visão o

espectador é parte criativa do processo de percepção, o espectador olhando

os objetos literalmente os evoca, os cria e, apesar desse modelo de visão ter

se provado cientificamente inadequado, penso que psicologica e

espiritualmente, num sentido maior do ser humano, ele é muito adequado

porque eu acho que nós criamos o mundo ao nosso redor, (....) e literalmente

criamos as percepções do que estamos vendo”, declarou certa vez Bill Viola. (

VIOLA, 1994)

Bill Viola conseguiu criar efeitos visuais em “The Passing”, como nunca

realizados por outros cineasta ou videomakers, para representar a cena

onírica o mais distante possível da mente consciente. O cinema surrealista

jamais conseguiu criar esta atmosfera da lógica inconsciente, pois não tinha

como ultrapassar os limites impostos pelo padrão de reprodução fidedigna do

mundo visível pela fotografia. A tecnologia eletrônica, com sua produção de

imagens videográficas, mosaicadas, permite ultrapassar o limite da realidade

da percepção visual humana, criando a ilusão de uma nova realidade

perceptível.

"A consciência desperta, que é a parte de nossas mentes em que

passamos a maior parte de nossas vidas, é a parte de nós que pega o ônibus

na hora certa, que vai ao banco tirar dinheiro quando precisamos, que marca
encontros e vai ao trabalho e volta para casa, é de fato uma pequena parte de

quem nós somos na totalidade de nossos seres", afirma Bill Viola. Em seu

trabalho, "The Passing", ele parece querer nos revelar como seria o seu

próprio ser interior, infinitamente maior que sua consciência desperta.

"Um fato real é simplesmente um estreito foco de luz num grande quarto

escuro do qual não tomamos consciência, e este quarto escuro está presente

enquanto estamos acordados assim como no sonho. A única diferença é que

durante o sono a mente consciente, o foco de luz, é desligado, e durante o dia

está ligado e tende a pensar em grandes termos, tende a pensar que é o mais

importante e que sabe o que está acontecendo, e desconfia ou ignora os

níveis mais profundos. Então, eu acho que nós estamos sonhando

constantemente, tendo visões constantes, que nós estamos conectados a

níveis mais profundos, e que nós apenas não estamos conscientes disso, e

que essa mente mais profunda, aquele 'eu maior', é a parte de nós que pode

voar através de paredes, sobre montanhas, deixar nossos corpos, pode voltar

no tempo ou ir à frente no futuro", afirma Bill Viola que transporta essa filosofia

para seu trabalho com o vídeo.


5 CONCLUSÃO

Encontrar uma nova visão é acrescentar à nossa mente as percepções

a que não estamos acostumados a ter do ambiente. Uma nova forma de ver

seria como anular a escrita que viciou a mente com uma forma específica de

percepção. Apesar de reconhecermos a impossibilidade disso, depois de

séculos de império da cultura ocidental, tipográfica, uma nova forma de ver

seria como voltar ao mundo oral, da palavra falada das sociedades tribais.

Estas, se reuniam em rituais em que os cânticos e instrumentos musicais

evocavam os “espíritos” . Nas sociedades primitivas esses “espíritos” eram

representados através de máscaras e em muitas delas a figuração não

obedecia a uma representação objetiva da realidade. O Homem absorvia as

imagens, dos elementos da natureza (dos animais, das plantas, do próprio ser

humano, até dos astros como o sol), transformando­os pela sua percepção e

pelos processos mentais interiores, como a intuição, sem reprimir as

transfigurações que pudessem surgir no ato criativo. Por isso a pintura (assim

como a escultura, ou a música, a dança e outras manifestações que

chamamos artísticas, mas que para eles eram totalmente expontâneas,

naturais) tinha uma importância tão grande para os povos primitivos. As artes

tinham várias funções, podiam servir como ornamentação até importantes

representações simbólicas, significando qualidades como fertilidade, força,

coragem e bravura, ou de forma ritualística evocando os “espíritos”, mas acima

de tudo revelavam a magia do imenso universo (pictórico, abstrato ou não)

desses povos.

A escrita alfabética (e depois a imprensa) criou uma forma de ver linear,

intensificando a visão a um ponto que só aqueles que pudessem traduzir


aqueles pictogramas específicos (as letras) alcançariam os significados ali

contidos, criando um nível de percepção orientado para uma forma de “ver”

especializada. Exemplos gramaticais como a narrativa linear do texto e a

ordem direta da frase (sujeito+predicado+objeto) são típicas ilustrações da

forma homogênea de “ver”. Essa forma de percepção, baseada na escrita e

Imprensa, é a marca da sociedade da Revolução Industrial (Século XIX). A

revolução tipográfica e industrial são os fundamentos de toda percepção

ocidental.

O cinema experimental de Norman Mclaren, assim como as vanguardas

artísticas do início do Século XX, quebraram com esta tradição clássica como

se buscassem uma nova forma de “ver” o mundo. Esta inquietação surge no

campo das artes plásticas e entre aqueles artistas que exploravam as novas

mídias, principalmente o cinema, por ser uma tecnologia audiovisual

descoberta há pouco tempo e cheia de possibilidades estéticas. Na era

eletrônica, os novos artistas que trabalham com o vídeo ou o computador

estão expandindo nossa percepção audiovisual e nossa forma de “ver” o

mundo, assim como fizeram as vanguardas modernistas. Muitas das propostas

estéticas destas vanguardas podem ser identificadas até hoje, pois são

manifestações, através da mídia, de formas de percepção que são

fundamentais (primais) para o homem, são maneiras de vivenciar experiências

estimuladas pelo audiovisual. Não se restringindo à uma forma específica,

usual ou comum, de utilização da mídia em questão.

Em muitos dos filmes de Norman McLaren, o artista utilizou a película

da mesma forma que o pintor/artista plástico utiliza sua tela/quadro. Nestes

filmes Mclaren usou a técnica do filme pintado à mão, ou seja: ele pintou cada

um dos fotogramas (unidades do filme cinematográfico, e cada segundo no

cinema corresponde a 24 quadros). Então, se um filme tivesse oito minutos ele


teria pintado pelo menos 12 mil fotogramas, diretamente na película, com um

pincel e pigmentos, fazendo exatamente fundir as duas mídias, artes plásticas

e cinema.

No vídeo do americano Bill Viola, “The Passing”, algumas imagens

remetem ao Cinema Poético dos anos 20 e 40. Estas vanguardas do cinema

utilizavam o puro registro da imagem (objeto) diante da câmera e acreditavam

que o cinema (o filme) era uma nova forma de se perceber e vivenciar o mundo

a nossa volta, uma maneira de experimentar o mundo através dos sentidos,

mas sem se limitar aos padrões lógicos ou racionais da mente, nem à

percepção de espaço e tempo contínuo a que estamos acostumados. Bill Viola

eleva este conceito ao máximo com seu vídeo, pois, acima de tudo, toda mídia

representa uma extensão de nossos sentidos (como nos ensinou o teórico

canadense Marshall Mcluhan) e o que realmente importa é o que elas nos

propiciam perceber. A máquina não está dissociada do homem, e quando este

a utiliza, produz projeções de si mesmo, não menos humanas.

0 material onírico lida primordialmente com imagens percebidas do

mundo exterior, porém passando por uma série de codificações que

transformam estas imagens em condensações (duas pessoas em uma só),

deslocamentos (uma paisagem submarina dentro da sala de casa), para que a

consciência não tenha acesso aos processos inconscientes. Os artistas são

aqueles que vão revelar, através de suas respectivas mídias, este material dos

sonhos e torna­los compreensíveis à consciência.

O onírico é uma realidade da vida subjetiva interior onde são

retrabalhados os elementos do mundo racional da percepção consciente, mas

não como os percebemos dentro do princípio da realidade. Portanto, esse

princípio da realidade é capturado pela nossa percepção consciente,

interiorizado em nossa psique, que o processa segundo princípios que não são
os mesmos da mente consciente. Nossos processos mentais inconscientes de

percepção da experiência não se dão em apenas uma dimensão. Eles são

atemporais, espacialmente descontínuos e revelam um outro mundo, o mundo

interior subjetivo.

Quando estamos dormindo, sonhamos e temos a sensação de estarmos

vivendo dentro de uma outra realidade. A arte, como afirma Bill Viola, deve

fazer parte da vida diária, ou seja, da experiência de cada indivíduo. A

expressão desta experiência, já interiorizada por cada indivíduo, é traduzida,

transposta, transcodificada, pelo artista através de uma mídia. Esta mídia

funciona como técnica, transformando a experiência interior, subjetiva, do

artista em novas imagens na tela do cinema e do vídeo.

Este papel revelador é fundamental para ampliar a percepção de nós

mesmos e representa a arte em novas dimensões.


6 BIBLIOGRAFIA

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