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A margem de interpretação e a geração


de sentido no fotojornalismo*

Paulo César Boni


Doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP)
Professor do Departamento de Comunicação (UEL)
E-mail: pcboni@sercomtel.com.br

André Reinaldo Acorsi


Resumo: O artigo aborda os sentidos denotativos e conotati-
vos das imagens na imprensa e como pessoas comuns as in-
terpretam. Elementos de significação e recursos utilizados pelo Graduado em Jornalismo
repórter fotográfico para aproximar o leitor da mensagem que (Universidade Norte do Paraná)
ele presenciou, fotografou e quer transmitir. A geração de sen- Especialista em Fotografia (UEL)
tido – termo acadêmico para caracterizar o processo indutivo
E-mail: anjofacinora@yahoo.com.br
da leitura, utilizado pelos veículos de comunicação, notada-
mente os impressos, por meio de recursos gráficos, textuais e

N
imagéticos –, seu uso constante pelos jornais e uma discussão
ética sobre o procedimento de indução de leitura.
Palavras-chave: fotojornalismo, interpretação de imagens, geração o início, os jornais eram compostos
de sentido, ética no fotojornalismo.
quase que exclusivamente de textos.
El margen de interpretación y la generación de sentido en la Não havia tecnologia suficiente para a impres-
fotografía periodística são de imagens; nem mesmo o fotojornalismo
Resumen: El artículo aborda los sentidos denotativos y connota- existia. Assim, o cidadão comum só tinha con-
tivos de las imágenes en la prensa y como personas comunes las
interpretan. Elementos de significación y recursos utilizados por el tato visual com que estivesse ao seu redor.
fotógrafo periodístico para aproximar al lector del mensaje que él Essa realidade começou a mudar em 1826,
presenció, fotografió y quiso transmitir. La generación de sentido
– término académico para caracterizar el proceso inductivo de la com o advento da fotografia. Com o passar
lectura, utilizado por los vehículos de comunicación, notadamente do tempo – e em evolução gradual, com o
los impresos, por medio de recursos gráficos, textuales e imagéticos desenvolvimento das técnicas fotográficas
–, su uso constante por los periódicos y una discusión ética sobre el
procedimiento de inducción de lectura. e da chegada da fotografia à imprensa, em
Palabras clave: fotografía periodística, interpretación de imágenes, 1842 – os indivíduos passaram a conhecer
generación de sentido, ética en la fotografía periodística.
bem mais do que os lugares onde moravam e
The interpretation boundary and the meaning generation in as pessoas de seu convívio.
photojournalism A imprensa assimilou os novos inventos
Abstract: This article discusses denotative and conotative meanings
of images in the press and how people interpret them. Signification
de forma relativamente lenta; não bastou a
elements and resources employed by the photographic reporter to invenção da fotografia para que, no dia se-
have the message reader get closer to the message he witnessed, pic- guinte, ela estivesse estampada em todos os
tured and wished to convey. The meaning generation – expression
adopted by the academy to name the inductive process of reading jornais. A partir dos anos 40 do século XIX
used by the various communication channels, more directly the
printed, through graphic, text and image resources –, the evidence
of the constant use of this device by newspapers and an ethical dis-
cussion about the procedure of inducing reading. * Trabalho apresentado ao NP Fotografia: Comunicação e Cul-
Key words: photojournalism, image interpretation, meaning gene- tura, durante o XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Co-
ration, ethics in photojournalism. municação (Intercom). Brasília, 4 a 9 de setembro de 2006.

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os primeiros entusiastas apontaram suas câ- como modelo para os gravuristas de ma-
meras para acontecimentos, com o objetivo deira, que chegavam a assinar as imagens
de registro. Mas faltava – ainda – desenvolver nos jornais em detrimento de quem as ob-
tinha (Sousa, 1998:44).
uma técnica para transferir esses registros
para as páginas dos jornais.
O processo foi se desenvolvendo de for-
ma tímida. Só os grandes acontecimentos
mereciam a inserção de fotografias. Nos anos
1920, retratos de políticos e personalidades
Acredita-se que a da sociedade civil passaram a fazer parte das
imagem seja “natural- capas dos jornais. Era uma foto única, formal
mente legível” porque e padronizada, semelhante à atual fotografia
se faz confusão entre de documentos. Foi apenas no final daquela
os termos percepção e década que imagens congeladas de aconteci-
interpretação mentos em pleno andamento começaram a
ganhar espaço na imprensa.
O registro de movimento só se tornou
possível com a invenção das câmeras Erma-
nox e Leica e de objetivas mais luminosas e
A primeira revista ilustrada, a The Illus-
fáceis de manusear. Com isso, os fotógrafos
trated London News, chegou às bancas em
puderam fotografar sem ser notados pelos
maio de 1842, mas a publicação de uma
fotografados. Era o advento do flagrante.
fotografia original – sem a interferência de
Também surgiram filmes mais sensíveis e o
gravuristas – só ocorreu em julho de 1871,
flash de lâmpada, que possibilitaram regis-
por meio de uma técnica chamada halftone1.
tros em condições precárias de luz.
O pioneiro no uso dessa técnica foi o jornal
Em 1933, a Vogue publicou a primeira
sueco Nordisk Boktryckeri-Tidning.
fotografia em cores. Outras revistas ilustra-
A invenção do halftone num primeiro
das2 aderiram à cor, apesar dos custos e das
momento, não provocou grandes mudanças
dificuldades de impressão. No final dos anos
na forma de produção jornalística, pois o
1940, quase todas trabalhavam com imagens
custo dessa nova técnica era muito alto. Ou-
coloridas. Nos anos 1950 e 1960, com a seg-
tro entrave crucial foi o medo de desagradar
mentação de mercado e proliferação das pu-
o público, acostumado à leveza artística das
blicações dirigidas, tanto a fotografia quanto
gravuras, e que poderia estranhar a crueza
a cor ganharam novos espaços e especialida-
realística das fotografias.
des. A cor começou a se popularizar também
Assim, os desenhos continuaram a ser a nos jornais, principalmente nas primeiras
principal fonte de imagens dos jornais, páginas, a partir do anos 1980.
com exceção dos domingos, em que os Foi no final desta década que surgiu, em
suplementos passaram a incluir fotos em nível de mercado, a tecnologia digital, que
grande número. Conseqüentemente, os revolucionou a história da fotografia. Canon,
gravuristas de madeira eram mais conside- Nikon e Sony disponibilizaram seus primei-
rados do que os fotojornalistas, sendo vul-
gar que as fotografias fossem apenas usadas ros modelos digitais e os softwares necessá-
rios para a edição em 1989.

1
Técnica conhecida também por meio-tom ou autotipia. Os 2
Com as evoluções técnicas, tanto nos equipamentos fotográ-
tons de cinza da fotografia eram um gradiente de pequenos ficos quanto nos sistemas de impressão, e a popularização da
pontos quase imperceptíveis a olho nu. Depois de impressos em fotografia, importantes revistas ilustradas surgiram pelos qua-
papel, a ilusão de ótica que se tinha fazia com que esses pontos tro cantos do mundo. Nasceram e se consolidaram a Life, Vogue,
se fundissem e parecessem a cor cinza em vários tons. Quanto Picture Post, Paris-Match, Fortune, Look, Rèalitès, Der Spiegel e a
maiores os pontos, mais escuro o cinza. brasileira O Cruzeiro.

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por leitores que não estiveram no local e no


Análise e leitura crítica de imagens momento da fotografia e que possuem re-
pertórios sígnicos diferentes do repórter. Ao
O estudo e a análise de imagens propi- final desse processo, torna-se difícil a leitura
ciam eficácia em sua leitura crítica; aumen- do leitor “coincidir” com a que o fotojorna-
tam o conhecimento e aguçam os sentidos. lista fez do acontecimento.
Com eles, cresce o prazer e a informação no
contato com a fotografia. Nas duas últimas
décadas, mais acentuadamente, alguns estu- Os sentidos da mensagem
dos procuraram explicar como as fotos são
lidas, ou seja, analisadas. Segundo Lima (1988:22), a leitura de
Joly (1996:41) aponta a primeira dúvida imagens acontece em três fases consecutivas.
que pode vir à mente quando o assunto é a A primeira delas é a percepção. Nesse mo-
análise de imagens: “Para que analisar uma mento os olhos percebem as formas e tona-
fotografia que, reproduzindo o real, parece lidades de uma forma muito rápida. É uma
naturalmente legível?” Segundo ela, as pesso- fase puramente ótica.
as acreditam que a imagem é “naturalmente A leitura de identificação, segunda fase,
legível” porque há uma confusão entre os acontece intercalando ações óticas e mentais.
termos percepção e interpretação. Quando se É o nível de leitura em que se reconhece os
reconhece um ou outro motivo na imagem, componentes da fotografia. Até aqui, a lei-
percebe-se seu conteúdo. O passo seguinte é tura de todas as pessoas coincide quase to-
a interpretação, quando se decifra o que esse talmente. A fase seguinte, no entanto, varia
conteúdo representa para cada um. muito de indivíduo para indivíduo devido à
Reconhecer motivos nas fotografias e inter- diferença de repertórios.
pretá-los são dois raciocínios distintos, embo- A terceira fase é a de interpretação, total-
ra a maioria tenha a impressão de que sejam a mente mental. É nesse momento que as pes-
mesma coisa. Decifrar os significados por trás de soas buscam interpretar a mensagem. É um
sua aparente naturalidade é o objeto da análise. exercício pessoal, alicerçado pelo repertório
Depois de perceber que a fotografia não é de cada protagonista.
naturalmente legível e que oculta uma série A teoria proposta por Lima apresenta
de conteúdos interpretativos, a autora lança uma estreita relação com a de Barthes apre-
a segunda dúvida: “Será que a minha inter- sentada no livro O óbvio e o obtuso (Figura
pretação é condizente com a interpretação 1). Este separou as mensagens fotográficas
do autor?” Ela própria alerta que essa é uma em literal e simbólica e utilizou uma pu-
questão quase insolúvel. blicidade de massas para exemplificá-las.
Tome-se o exemplo de um repórter foto- Ao olhar o tomate representado na foto,
gráfico num dia de trabalho. Ele vive num de- pode-se pensar no legume tomate, que seria
terminado lugar e tempo histórico e passou a mensagem literal (percepção e reconheci-
por experiências que formaram seu repertó- mento, segundo Lima) ou em uma macar-
rio pessoal. A soma de tudo isso influencia ronada italiana, que seria a mensagem sim-
na sua forma de fotografar e no sentido que bólica (interpretação).
atribui às fotografias produzidas. Um signo tem apenas um significante (for-
Ao voltar para a redação, o material que ma), mas vários significados (conteúdos). Por
traz já está fora do contexto, ou seja, não está isso a fotografia jornalística, assim como qual-
mais no ambiente e nas condições em que foi quer outra mensagem, pode ser polissêmica, isto
produzido. Nas páginas do jornal, o material é, apresentar vários sentidos e interpretações.
se afasta ainda mais do seu contexto original. Publicidade das Massas Panzani, estuda-
A leitura dessas imagens, por sua vez, é feita da por Barthes

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lise de imagens, a descoberta do sentido


conceitual ou denotativo pode ser apenas
o reconhecimento dos motivos presentes
na fotografia.

Sentido conotativo

O sentido conotativo é derivado do


denotativo por uma associação de idéias
(Pereira, 2003:110-112). São os signifi-
cados que os signos adquirem de forma
metafórica, figurada. Popularizados, tam-
Figura 1
bém acabam entrando para o dicionário
Fonte: Barthes (1990) e todos passam a entendê-lo daquela for-
ma. É, por exemplo, o caso da gíria mar-
Para entender-se a polissemia e o senti- melada. Além de seu sentido denotativo
do das imagens, pode-se tomar um exemplo ou original – uma espécie de doce – traz
simples: a foto de um pepino. Em seu signi- agora, absorvida e consolidada pela so-
ficado original, ele é apenas uma hortaliça. ciedade, um novo significado conotativo:
Mas, no sentido metafórico, essa hortaliça desonestidade.
tem sido usada para representar problema e
serve como analogia ao órgão sexual mascu-
lino. Pereira (2003:112) explica que a maio- Sentido subjetivo
ria das palavras adquire outros significados
por causa da inesgotável criatividade e capa- Ao visualizar um signo, cada indiví-
cidade do homem de associar idéias. duo o sente de forma diferente porque
Essa multiplicidade de sentidos pode já vivenciou experiências e tem sensibili-
causar dificuldade na hora de apreender os dades diferentes. O sentido subjetivo é o
sentidos de uma mensagem. Para evitar – ou sentido individual, psicológico (Pereira,
amenizar – esse problema, a semântica suge- 2003:109). Um homem que vê a foto de
re que as mensagens podem ter três níveis de um pepino pode se lembrar de sua in-
interpretação, que chamou de sentidos. Com fância, quando a mãe o obrigava a comer
esses níveis de sentido, fica mais fácil com- salada. Um agricultor que já cultivou a
preender a polissemia. hortaliça pode se lembrar da experiência
amarga que passou com a quebra da safra
em determinado ano. Um amante dos pi-
Sentido conceitual ou denotativo cles não vai deixar de salivar. Um humo-
rista certamente lembrará de uma piada
O sentido conceitual é o sentido raiz na qual o pepino teria alguma conotação
de um signo. Mesmo que todos tenham sexual. Como o sentido subjetivo é idios-
uma representação mental diferente de sincrático, o que uma pessoa interpreta
pepino, existe algo em comum em todos de determinada imagem pode não fazer o
os sentidos particulares, algo compar- menor sentido para outra pessoa.
tilhado por todos que conhecem aquele Resumindo, observa-se que todos os
signo. Seria algo como o conceito descrito signos têm um sentido denotado e, além
no dicionário. O sentido conceitual é fun- desse, podem apresentar sentidos conota-
damental para a comunicação entre pes- dos e subjetivos. Cada qual com suas mui-
soas (Pereira, 2003:110). Durante a aná- tas particularidades:

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No plano denotativo o receptor apenas fia, luxúria, pecado, decadência dos valores
toma a mensagem ao pé da letra. No pla- morais e familiares.
no conotativo ele mergulha no mundo das Todos tiveram acesso a uma mesma ima-
associações de idéias, das alusões, das in-
sinuações, das ironias, dos sarcasmos, dos gem, reconheceram os mesmos componentes
simbolismos, das metáforas, das alegorias, na fotografia, mas fizeram leituras diferentes,
da ideologia, da poesia (Pereira, 2003:117). conforme seus repertórios e ideologias. Te-
ria sido intenção da editora tornar o mundo
Os três sentidos se articulam e todos se mais permissivo, promovendo a decadência
juntam para a formação de uma mensagem dos valores morais ou será que isso foi ape-
completa que é única para cada leitor. O sen- nas uma leitura individualizada da religiosa?
tido denotado corresponde às duas primei- Seria intenção dos acionistas da revista per-
ras fases propostas por Lima, enquanto os petuar a ditadura da beleza e incitar ao sexo
sentidos conotado e subjetivo fazem parte da ou isso tudo não passou da leitura individual
terceira fase. do adolescente?

Margem de interpretação
Interpretações
Pessoas distintas fazem leituras dife- diferentes – e mais
renciadas de uma mesma imagem porque
possuem repertórios diferentes, viveram
profundas – dependem
experiências diferentes, tiveram educação do grau de interesse,
diferente e desenvolveram gostos diferen- envolvimento
tes. E quanto maior for sua bagagem cultu- e proximidade com
ral, mais rica será sua interpretação e mais o assunto retratado
preparado estará para avaliar fotografias.
Mesmo assim, algumas perguntas ainda
permanecem sem respostas: a imprensa
usa a fotografia para gerar sentido? As fo- Esse raciocínio vale também para os ou-
tografias correspondem à realidade ou são tros personagens: o fotógrafo e a modelo. A
instrumentos ideológicos para influenciar revista tinha por objetivo promover o tra-
a opinião pública? balho do fotógrafo ou a carreira da moça?
Uma revista masculina traz na capa a Provavelmente não. Essas leituras eram ape-
fotografia sensual de uma modelo. Ao to- nas as análises individuais do fotógrafo e da
mar contato com a revista, ela lerá naque- modelo. Interpretações diferentes – e mais
le material a decolagem de sua carreira. profundas – dependem também do grau de
O fotógrafo que produziu o ensaio cer- interesse, envolvimento e proximidade com
tamente verá a o lado artístico em todas o assunto retratado.
suas nuances: fotos de muito bom gosto
com requintado toque de sensibilidade e [...] os diferentes receptores [...] reagem
de formas totalmente diversas – emo-
nenhuma vulgaridade. cionalmente ou indiferentemente – na
A revista chega às bancas e diversas pes- medida em que tenham ou não alguma
soas a vêem. Um adolescente verá excitação, espécie de vínculo com o assunto regis-
libido, tudo relacionado à sexualidade. A trado, na medida em que reconheçam
leitura da fotografia, por uma senhora re- ou não aquilo que vêem (em função dos
ligiosa que passasse em frente a uma ban- repertórios culturais individuais), na
medida em que encararem com ou sem
ca em que a revista estivesse exposta, por preconceitos o que vêem (em função das
exemplo, ganharia novas conotações. Para posturas ideológicas de cada um) (Kos-
ela, os sentidos se resumiriam à pornogra- soy, 2001:106).

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para dirigir a interpretação dos leitores.


Geração de sentido Em tese, a geração de sentido se dá pri-
meiro pela pauta e ação do repórter fo-
Até o momento, tratou-se apenas da tográfico. Ao receber a pauta e chegar ao
margem de interpretação que os leitores têm local do evento, ele formula mentalmen-
quanto à análise de fotografias. A teoria de te uma idéia sobre o assunto destinado a
que a interpretação das imagens depende da cobrir. Seu trabalho consiste em “traduzir
bagagem que cada indivíduo acumula pode para o leitor o significado que construiu da
criar um sofisma. Essa falsa lógica sustenta realidade” (Boni, 2000:265). Para tanto, se
que um jornal jamais poderia induzir seu utiliza, dentre outros meios, dos elemen-
público por meio das fotografias, posto que tos de significação. Se a pauta for sobre
os leitores seriam os únicos responsáveis consumismo, irá para um movimentado
por sua interpretação. Seria uma leve analo- shopping center, flagrar pessoas transitan-
gia com o dito popular “a maldade está nos do com sacolas em frente às vitrines. Nesse
olhos de quem vê”, e isso isentaria o jornal de caso, utilizará elementos de significação
qualquer culpa sobre as imagens publicadas. conhecidos do público para passar a idéia
da pauta: sacolas, vitrines e consumidores
incluídos numa mesma imagem são facil-
mente associados ao consumo, que era a
Os estudos de idéia que deveria ser traduzida.
geração de sentido O processo de indução da leitura, con-
colocam em xeque tudo, não se consuma no momento da ob-
a idéia de que o leitor tenção da imagem. Ao chegar à redação,
é o único responsável ela passa ainda pelo crivo, critérios ou in-
teresses da edição. O tamanho, o formato,
pela interpretação
a diagramação, a página em que é publi-
das imagens cada e a própria legenda podem ampliar
seu leque de conotações. Se grande, na
primeira página, a imagem conota im-
Isso pode induzir a uma falsa lógica, pois portância. Pequenina, no canto inferior
nada impede a mídia de saber a provável in- de uma página interna, pode ganhar ares
terpretação de seus leitores e se utilizar desse de simples “tapa buraco”.
conhecimento para publicar fotografias in- Outra forma de dirigir a leitura é fazer
terpretáveis de acordo com seus interesses. com que imagens de matérias diferentes
Esse processo, caracterizado na mídia e na interajam. Este procedimento pode pro-
academia por geração de sentido, consiste vocar uma leitura adversa daquela que se-
em orientar a leitura que o público faz de de- ria feita se as matérias fossem visualizadas
terminada imagem. O processo está intima- individualmente. Um exemplo interes-
mente ligado com o conceito de elementos sante é a primeira página do jornal O Dia
de significação. de 13 de dezembro de 1994 (Figura 2). A
Segundo Boni (2000:24), elementos de fotografia de cima mostra o ex-presiden-
significação são “atributos que, atrelados de te Fernando Collor fumando um charuto,
alguma forma ao significante, auxiliam – ou comemorando sua absolvição perante o
mesmo induzem – o leitor a se aproximar do Supremo Tribunal Federal ante as acusa-
significado pretendido por quem produz a ções de corrupção passiva que o depuse-
imagem”. Esse expediente pode ser usado tanto ram do poder em 1992.
pelo repórter fotográfico quanto pelos profis- Na fotografia de baixo há um homem
sionais da redação (redator, editor, supervisor) atrás das grades com a seguinte manche-

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te: “Ladrão de galinha na cadeia”. Um leitor Uma simples passada de olhos pelas pági-
perspicaz perceberá a relação entre as maté- nas de qualquer diário nos leva a perceber
rias e poderá pensar: “Um rouba milhões e como os jornais jogam com texto e fotos,
como planejam a diagramação de modo a
está livre; o outro rouba uma galinha para induzir o público a uma determinada lei-
matar a fome e está preso!” tura (Moretzsohn, 2002:83).

Com o uso de elementos de significação,


A autora oferece como exemplo a históri-
não raro na imprensa, pode-se “maquiar”
a forma do significante para induzir a lei- ca fotografia do ex-presidente João Figueire-
tura a um significado desejado. E, prin- do que, vestido como civil, tinha um militar
cipalmente em razão do baixo nível de atrás de si batendo continência (Figura 3). Do
educação imagética do leitor, essa indução ângulo em que foi tomada, tem-se a impres-
quase sempre atinge seus objetivos (Boni, são de que quem usa o quepe e está batendo
2000:28).
continência é o próprio presidente. Segundo
a autora, o Jornal do Brasil estaria sugerindo
sutilmente que o general-presidente, mesmo
tentando, não conseguia se livrar da imagem
de representante da ditadura.

Figura 2
Fonte: O Dia (13 de dezembro de 1994, primeira página)

Vale lembrar que os elementos de signifi-


cação são apenas indicativos que aumentam Figura 3

a probabilidade de determinada leitura, o Foto: Jair Cardoso


que não significa, necessariamente, que o re- Fonte: Jornal do Brasil (28 de agosto de 1981)
ceptor fará exatamente a mesma leitura que
o produtor da imagem fez da realidade. Moretzsohn (2002:89) condena esse ex-
Estudos em torno da geração de sentido pediente. Diz que ele é muito difundido en-
põem em xeque a premissa de que o leitor tre os jornais e que vários se utilizam desse
é o único responsável pela interpretação das recurso “para produzir efeitos como a iro-
imagens. Sua leitura, quase sempre, é o re- nia, o duplo sentido ou a sedimentação de
sultado da junção da capacidade de inter- consensos, com conseqüências éticas rele-
pretação do leitor com a intencionalidade de vantes (sic)”. Em outras palavras, classifica
comunicação dos veículos que as publicam. como reprovável qualquer atitude de um
Moretzsohn, em seu livro Jornalismo em tem- veículo na tentativa de direcionar a leitura
po real, vê com maus olhos a possibilidade de de suas imagens.
o jornal direcionar leituras. Reprovável, mas constantemente utilizado.

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No dia 1º de abril de 2006, o Jornal de Lon- A fotografia, estilo retrato 3x4, mostra
drina, um dos dois jornais diários da cidade a ex-reitora Lygia Pupatto num momento
de Londrina (PR), publicou, em sua primeira desfavorável. Os cortes na altura do queixo
página, uma fotografia pequena, tipo retra- e logo acima da testa ressaltam a expressivi-
to, da ex-reitora da Universidade Estadual de dade de seu rosto, acentuada pelos olhos ar-
Londrina, Lygia Pupatto (Figura 4). Ela havia regalados e pela boca aberta, num provável
deixado o cargo no dia anterior para assumir momento de tensão durante a entrevista. A
a Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e personagem da fotografia ganha ares de “ca-
Ensino Superior (Seti), em Curitiba. ricata”: parece uma vampira pronta a cravar
A entrevista foi realizada no dia anterior os caninos na jugular da vítima.
(31 de março, quando Lygia estava deixando
o cargo). Nela, a ex-reitora declarou que sua
administração havia sido importante para
“resgatar a credibilidade e a auto-estima da
comunidade universitária”. O JL usou par-
tes de suas falas e as reproduziu entre aspas
tanto na chamada de capa quanto na página
interna, onde o material produzido a partir
da entrevista rendeu meia página.
O uso “aspeado” de frases da entrevista
(na capa, na manchete da página interna e
nas janelas da matéria), nas quais a ex-reito-
ra ressalta suas conquistas, deixa claro que o
jornal estava se eximindo de assumir a res-
ponsabilidade tanto pelas afirmações quanto Figura 5
pela veracidade das conquistas. E a fotografia
Primeira página do JL
da entrevistada usada na chamada de capa Fonte: Jornal de Londrina (1º de abril de 2006)
deixa dúvidas se o próprio jornal não discor-
dava de suas afirmações. Em tese, a escolha de uma fotografia tão
negativa à imagem e ao cargo da protago-
nista, no momento e espaço em que, textu-
almente, ela ressalta os aspectos positivos de
sua administração, pode representar geração
de sentido para o leitor. Ou seja, ele pode en-
tender que, pelas circunstâncias e pelo com-
promisso social que tem com a notícia e com
a veracidade dos fatos, o jornal esteja repro-
duzindo literalmente, em trechos “aspeados”,
a fala da entrevistada, mas, por meio da men-
sagem fotográfica, esteja alertando o público
de que não é exatamente isso que pensa.
Ainda em tese, para ressaltar um pouco mais
a provável reprovação do veículo à administra-
ção, ele publicou na mesma primeira página – e
logo acima da imagem da ex-reitora – uma fo-
Figura 4
tografia bem mais aberta, que mostra estudantes
Foto: Gilberto Abelha da Universidade Estadual de Londrina acampa-
Fonte: Jornal de Londrina (1º de abril de 2006, primeira página) dos diante de um órgão de apoio da instituição

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(Sebec – Serviço de Bem-Estar à Comunidade), tra delegacias, bancos e ônibus, e instigado


que fica no campus e atende a comunidade uni- rebeliões em presídios dos estados de São
versitária. Eles protestavam contra o encerra- Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul.
mento das inscrições para a seleção de futuros A manchete, como de costume, repassa
moradores da Casa do Estudante que, segundo a responsabilidade da informação para um
informações do jornal, está sendo construída no interlocutor, no caso a Polícia Militar: “PM
campus universitário (Figura 5). diz que não matou inocentes”, mas, den-
Uma fotografia (aberta) de protesto na ins- tre incontáveis fotografias disponíveis para
tituição que administrava e outra (pequena) ilustrar a reportagem, a Folha escolheu uma
caricata da ex-reitora, contrapõem as falas – re- em que um policial aparece apontando uma
produzidas em trechos entre aspas – nas quais arma na direção da cabeça de uma criança
ela destaca os méritos de sua administração. que, do colo de um homem (provavelmente
Uma leitura mais atenta da capa induz o leitor seja seu pai) e chupeta na boca, olha inocen-
a pensar que o Jornal de Londrina é contrário temente para o cano da arma.
à pessoa ou à administração de Lygia Pupatto. O clima é de aparente tranqüilidade, de
Como jornal, cumpre seu dever de reproduzir “situação sob controle”. Outras pessoas fi-
falas obtidas durante uma entrevista, mas usa guram no cenário e não parecem assustadas
as fotografias para gerar sentido, ou seja, para ou amedrontadas com a presença do policial
manifestar seu pensar e, inclusive, induzir seus empunhando a arma, nem se protegendo de
leitores a partilharem de seu pensar. um possível tiroteio. Talvez ele até esteja pro-
A Folha de S.Paulo do dia 19 de maio de tegendo a família da criança e demais tran-
2006 também faz esse joguete em sua pri- seuntes. Mas a abertura de uma fotografia (a
meira página. A manchete diz uma coisa e única na capa do jornal este dia, aliás) que
a fotografia parece dizer o contrário (Figu- mostra um policial apontando uma arma
ra 6). A manchete “PM diz que não matou para uma criança (praticamente um bebê),
inocentes”, referindo-se às pessoas mortas com o dedo no gatilho e seriedade na feição,
pela Polícia Militar durante os confrontos talvez esteja questionando ou tentando des-
com suspeitos e possíveis membros do PCC mentir a afirmação da polícia.
– Primeiro Comando da Capital, facção cri- Em tese, talvez a Folha de S.Paulo não
minosa que, dos presídios paulistas, havia concorde com a afirmação da PM, discorde
ordenado ataques a policiais, atentados con- de seus métodos e condene o procedimen-

Figura 6
Foto: Diego Padgurschi
Fonte: Folha de S.Paulo (19 de maio de 2006, primeira página)

Paulo César Boni / André Reinaldo Acorsi - A margem de interpretação e a geração de sentido no fotojornalismo
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to por ela adotado de não divulgar os nomes pórter fotográfico faz da realidade e a traduz
das pessoas mortas para “não atrapalhar o em imagens também o é.
andamento das investigações” e esteja, tanto
quanto o Jornal de Londrina, no caso da ex- Ao estar fotografando e produzindo um
reitora da UEL, cumprindo seu papel social significado para traduzi-lo a seus leitores,
de informar e não distorcer as falas dos en- o fotógrafo estará sendo fiel ao seu modo
de ver a realidade. Estará obedecendo ins-
trevistados, mas manifestando por imagens
tintivamente, mesmo sem se dar conta, às
sua contrariedade ou seu modo diferente de vezes, a seu estilo, tendências e repertórios.
pensar. Isso é gerar sentido. E como acredita que sua visão daquela re-
Nem sempre – ou, pelo menos, não com alidade seja o real, intenciona traduzi-la
todos os leitores – a tentativa de gerar sen- para os leitores (Boni, 2000:51).
tido é bem sucedida. No caso da Folha de
S.Paulo, já no domingo, 21 de maio, o om- Num segundo momento, suas imagens
budsman Marcelo Beraba reproduziu a foto- passam pelo filtro de uma editoria. Além da
grafia em sua coluna e disse haver recebido opinião do repórter fotográfico, também en-
um número recorde de mensagens sobre o tra em cena os interesses do veículo para o
mesmo tema em seus dois anos de manda- qual trabalha que, pode – ou não – concor-
to. “A maior parte dos e-mails que recebi foi dar com ele. Às vezes, fotografias são utiliza-
de pessoas que consideraram que o jornal das na imprensa para gerar sentido, ou seja,
estava tratando mal da polícia”, escreveu. A para induzir a leitura. Quando isso ocorre,
indignação e reação do leitor, por meio de e- normalmente, o veículo, para cumprir sua
mails, cartas ou telefonemas, é derivada de função social de noticiar os fatos e não dis-
sua capacidade de interpretação do sentido torcer ou colocar palavras na boca das fon-
subjetivo da fotografia. tes, escreve uma coisa e tenta induzir o leitor
a ler o contrário por meio de mensagens fo-
tográficas dissonantes do conteúdo verbal.
Considerações finais Na outra ponta do processo está o leitor que,
ancorado por seu repertório pessoal, faz sua
A fotografia de imprensa – assim como leitura (análise) das imagens, mas dificilmente
todas as demais – é o produto de um processo terá a certeza das reais intenções do veículo em
gerativo. Nesse processo, o produtor, no caso produzir e publicar determinada fotografia.
o repórter fotográfico, lança mão dos recur- Alguns condenam a geração de sentido,
sos técnicos, da linguagem fotográfica e dos alegando ferir a ética. Porém, o discernimen-
elementos de significação para tentar “tradu- to do que é e do que não é ético no jorna-
zir” para o leitor o significado que construiu lismo – e mais ainda no fotojornalismo – é
quando fez um recorte espaço-temporal da muito frágil, pouco legislado e juridicamen-
realidade, ou seja, quando fotografou. te pouco palpável. Existe o Código de Ética
Claro que a “tradução” da realidade que do Jornalismo, com preceitos generalistas
ele propõe ao leitor é subjetiva, pois manifes- sobre fotojornalismo. Um exemplo claro é
ta sua formação. Trata-se de uma tradução o contraditório artigo 9º que interessa so-
opinativa; representa o seu modo de ver a bremaneira quando o assunto é obtenção de
realidade. Não raro, à manifestação espon- imagens. Cita como obrigação da imprensa
tânea de aspectos de sua formação pessoal, divulgar todos os fatos que sejam de interes-
soma-se a intencionalidade de comunicação, se público, mas, ao mesmo tempo, lembra
ou seja, a premeditação da mensagem que que o jornalista deve respeitar o direito à pri-
pode ser sua ou sugerida na pauta. vacidade do cidadão.
Se a interpretação feita pelo leitor é ba- Talvez a criação de um Código de Ética
lizada por seu repertório, a leitura que o re- específico possa disciplinar o uso de imagens

LÍBERO - Ano IX - nº 18 - Dez 2006


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na imprensa. Alguns países europeus estão academia. De qualquer forma, é preciso res-
empenhados nessa tentativa e, com certeza, saltar que um código próprio balizaria, mas
esse “código de ética” – com estudos de seu não resolveria todos os problemas, uma vez
conteúdo, aplicação, resultados e repercus- que a análise de imagens não é uma ciência
sões – será motivo de futuros artigos pela exata, pois envolve muitas subjetividades.

Referências
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BERABA, Marcelo. “A guerra em São Paulo”. Folha de S.Paulo, paço e Tempo, 1988.
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nas: Papirus, 1996. __________. Uma história crítica do fotojornalismo ocidental.
KOSSOY, Boris. Fotografia e história. 2ªed., São Paulo: Ateliê Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2000.

Paulo César Boni / André Reinaldo Acorsi - A margem de interpretação e a geração de sentido no fotojornalismo

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