Você está na página 1de 4

A Tradição Documental, da ciência ao fotojornalismo:

fotografia, verdade e informação


Simone Rodrigues

“Se eu pudesse contar a história em palavras,


não precisaria carregar uma câmera”
(Lewis Hine)

No século XIX, a prática documental da fotografia estava submetida ao pragmatismo de


uma produção fundamentalmente utilitária (registros de lugares, monumentos, arquitetura,
ilustrações e acontecimentos cotidianos para publicação em periódicos ilustrados, etc). Alguns
fotógrafos viajantes chagaram a fazer registros que mais tarde se tornaram importante fonte de
referência sobre acontecimentos, formas de vida e populações de lugares e culturas distantes.
Nesse contexto, merecem destaques as fotografias de Guerra feitas por Roger Fenton na Guerra
da Críméia (1950-55) e por Mathew Brady e sua equipe na Guerra da Secessão (1863-65).
Também é importante destacar que desde a época dos daguerreótipos, a fotografia já
começou a ser instrumentalizada no campo das pesquisas científicas, revelando informações
inéditas que muito contribuíram para a ampliação dos horizontes do conhecimento através das
pesquisas microscópicas, astronômicas, médicas, etc. No âmbito da ciência, o uso das
tecnologias de imagem serviram de maneira determinante para comprovar ou derrubar teorias e
hipóteses importantes e mesmo na atualidade continuamos a assistir à sua crescente sofisticação.
Todas essas formas de utilização da fotografia estavam associadas ao que se acreditava
ser a sua vocação original para descrever os fatos, ou seja, sua prática como documentação e
registro visual que serve como testemunha e comprova uma dada realidade. Pensava-se, então,
que o fotógrafo era um observador neutro e imparcial e que suas fotos seriam tão mais fidedignas
quanto menos ele se preocupasse com questões estéticas ou preferências temáticas pessoais.
Na passagem dos séculos XIX para o XX, a expressão “fotografia documental” passou a se
associar a novas temáticas e funções sociais da fotografia, principalmente no que diz respeito à
sua entrada no campo social, ético e político. É nessa passagem que veremos também uma
possibilidade de conciliar um olhar mais pessoal com uma objetividade de conteúdo da imagem
documental. O trabalho do fotógrafo Jacob Riis (sobre as favelas de Nova York), Edward Curtis
(sobre os índios norte-americanos) e Lewis Hine (sobre o trabalho nas fábricas) são exemplos
clássicos da reviravolta que começa a ocorrer. A mesma simplicidade descritiva que até então
havia situado a fotografia no hall institucional da ciência, do comércio e da indústria, prestava-se
agora a objetivos humanistas, mais críticos e questionadores da ordem social então estabelecida.
Esta tendência recebe um impulso definitivo durante os anos da depressão econômica nos
Estados Unidos. A atividade de documentação social se difunde sob os auspícios da Farm
Security Administration. Um grupo de fotógrafos coordenados por Roy Striker foi chamado para
desenvolver um trabalho de registro do estado de penúria em que vivia a população rural
americana naquela década em que diversos distúrbios climáticos prejudicaram as atividades
econômicas já combalidas pela quebra da bolsa de Nova York em 1929. Os principais fotógrafos
da FSA foram: Dorothea Lange, Walker Evans e Russel Lee. Este projeto empreendido pela FSA
foi determinante para a divulgação e popularização de um tipo de fotografia que acaba por se
difundir e que passou a ser conhecido como fotografia de documentação social. Essa atividade
passa a privilegiar a abordagem dos grupos e populações que vivem à margem da sociedade e
acaba por revelar um novo potencial, crítico e transformador, da fotografia.
O interessante é que essa nova atividade propõe-se e de fato consegue conciliar uma
produção utilitária e de valor estético reconhecido. Para se afirmar como instrumento de
investigação e conhecimento da sociedade, a fotografia não precisava mais renegar toda ambição
artística. Apenas a plasticidade dos seus resultados ficava condicionada ao compromisso com a
transmissão de uma suposta “verdade” humana e social. A fotografia já não se relaciona com esta
realidade apenas como quem produz um simples registro desinteressado. Ela demonstra
compaixão pelo sofrimento das pessoas que retrata, comprometimento com a realidade que
pretende transformar e, para isso, exige do fotógrafo um certo tipo de engajamento, que conheça
bem o assunto que irá abordar.
De uma primeira associação com os aspectos sociais mais dramáticos de uma sociedade
em crise (em que o documento não apenas testemunha, mas também se solidariza e ajuda a
transformar), o termo “documental” passou a ser usado para identificar praticamente todas as
vertentes da produção fotográfica realista. Essa generalização deveu-se, fundamentalmente, ao
desenvolvimento do fotojornalismo, que potencializa ainda mais a rede de comunicação visual
estendida pela fotografia. Como diz Gisèle Freund:

"A introdução da foto na imprensa é um fenômeno de importância capital. Até então, o


homem comum só podia visualizar os acontecimentos que ocorriam à sua volta, na sua rua, na
sua cidade. Com a fotografia, abre-se uma janela para o mundo. Os rostos dos personagens
públicos, os acontecimentos que têm lugar em um mesmo país e além das fronteiras, tornam-
se familiares. Ao ampliar o campo de visão, o mundo encolhe-se."

A publicação de fotografias em periódicos foi possibilitada pela invenção do processo de


meio tom, pelo qual os tons contínuos da cópia fotográfica são simulados por uma retícula de
diminutos pontos pretos e brancos. Antes do processo fotomecânico, as fotos precisavam ser
redesenhadas para serem impressas como gravuras. Gradualmente, ao longo da primeira década
do séc.XX, o processo de meio-tom por retícula vai se tornando hegemônico na indústria gráfica.
Paralelamente, a tecnologia das câmeras e filmes fotográficos desenvolvia-se. As câmeras
foram ficando mais portáteis e a possibilidade da fotografia instantânea começa a congelar
momentos e gestos mais desavisados. As imagens de flagrantes logo descobrem sua vocação
jornalística e um novo padrão de comunicação visual começa então a surgir na imprensa ilustrada.
Na Alemanha de entre-guerras (propiciada pela conjuntura liberal da República de Weimar, pela
politização da vanguarda artística e intelectual e pela indústria fotográfica de ponta naquele país)
Erich Salomon entrou para a história como o fundador do fotojornalismo moderno. Operando com
o primeiro modelo de câmera profissional portátil (a Ermanox), Salomon foi capaz de capturar
momentos e situações até então inexplorados pelo olhar fotográfico. Ele realizava flagrantes
indiscretos de personalidades políticas e públicas, rompendo com a tradição da “fotografia oficial”,
posada. O fotógrafo passava a assumir o lugar de um observador ativo, oportunista e
questionador. Testemunha ocular e fidedigna, sim, mas já longe do artificialismo e do registro frio
de uma realidade precavida.
A primeira revista a divulgar este tipo de produção foi a Münchner Illustrierte Presse, cujo
redator chefe era Stefan Lorant. A participação deste editor foi muito maior do que a de
simplesmente dar vazão à produção do fotojornalismo moderno. Na verdade, ele foi seu maior
promotor. É a ele que devemos a simultânea reformulação da linguagem editorial (relação
imagem-texto e imagem-espaço da página) e do formato da reportagem fotográfica de acordo com
um perfil mais arrojado da nascente imprensa ilustrada. Porém, a expansão do movimento
nacional-socialista, o início das perseguições políticas e o fim da liberdade de imprensa levaram à
emigração de grande parte desses artistas e profissionais alemães em direção à França,
Inglaterra e Estados Unidos. A partir daí, esta técnica de reportagem fotográfica se difunde. Na
França, a recém lançada revista Vu contou com a participação dos fotógrafos Robert Capa e
Andre Kertész. Stefan Lorant tornou-se editor de dois semanários ingleses: Weekly Illustrated e
Picture Post. Em 1936 surge a revista americana Life, que adotando este estilo moderno de
reportagem, tornou-se a maior e mais influente revista ilustrada das décadas seguintes. No
volume da coleção Life Library of Photography dedicada ao fotojornalismo, encontramos inclusive
algumas instruções para a produção de uma foto-reportagem, que então já se transformava em
gênero de literatura visual popular:

"A criação de um ensaio fotográfico requer a organização de um conjunto de imagens sobre


um único tema de modo que se dê uma visão mais profunda, mais completa, mais ampla, e
mais intensa do assunto do que qualquer imagem isolada poderia dar. O assunto pode ser
qualquer coisa - uma idéia, uma pessoa, um evento, um lugar. A organização pode ser tanto
cronológica quanto temática; não importa, já que a forma em si é flexível. O que importa é que
as imagens trabalhem juntas para enriquecer o tema. Elas não podem mais ser consideradas
entidades únicas, obras de arte individuais, mas, sim, como parte de um conjunto. Para que um
ensaio fotográfico seja bem sucedido, o todo deve ser mais do que a soma das partes.”
Neste modelo de reportagem, a relação da fotografia com o texto é subvertida: suas
imagens deixam de ser apenas adjacentes, ou ilustrativas, para tornarem-se o próprio eixo
condutor das matérias. Se a disposição em sequência já era usada há mais tempo, explora-se
cada vez melhor o potencial narrativo da edição, com recursos de diagramação que ordenam e
hierarquizam a "leitura" das imagens.
Foi dessa maneira que a inserção da fotografia na imprensa acompanhou o
reconhecimento de sua força política. Podemos dizer que uma das gerações mais brilhantes do
fotojornalismo mundial formou-se na dramática escola das guerras. Eugene Smith, Cartier-
Bresson, Robert Capa, Werner Bishof, entre outros, foram levados a testar, de maneira quase
literal, a potência da arma que a fotografia encerra. Arma ideológica, arma simbólica, com imensa
força de impacto e persuasão sobre a opinião pública. A fotografia usada como documento
jornalístico alia a qualidade da prova herdada da tradição documental mais antiga ao sentido de
participação ativa conquistada pelo fotojornalismo moderno. Mesmo quando erigida ao posto de
“testemunha ocular da história”, a fotografia não consegue disfarçar sua irrecorrível ambiguidade.
Ainda mais do que outros tipos de fotografia, a fotojornalística está sujeita às determinações de
suas formas de utilização, visto que sua função de informar está colocada logo em primeiro plano.
Para toda uma geração de fotógrafos, talvez a lição mais perversa tenha sido a descoberta
de que as mesmas imagens do flagelo que eles consideravam manifestos humanistas foram
transformadas em um novo tipo de arsenal: a mensagem visual de impacto, estrategicamente
manipulada em campanhas de propaganda que vendiam a ideologia da guerra como objeto de
consumo estratégico. Já em 1948, Eugene Smith, que encarnaria mais do que nenhum outro o
ideal do fotógrafo engajado (haja vista o seu ensaio sobre a contaminação por mercúrio da
população de uma cidade inteira em torno do lago de Minamata, no Japão), constatava:

"A fotografia é um meio de expressão poderoso. Devidamente empregada, ela é uma enorme
força no sentido de nosso melhoramento e inteligência; mal empregada, pode acender muitos
fogos inoportunos. O fotojornalismo, em decorrência do público amplo ao alcance de suas
publicações, influi mais sobre o pensamento e a opinião pública que nenhum outro ramo da
fotografia.”

A fotografia documental também se desenvolveu além do fotoperiodismo, através de


publicações de livros de ensaios, tais como o “Paris by Night”, de Brassai (1932). Revelando
detalhes da vida de minorias marginalizadas (boêmios, prostitutas, gays), esse livro do fotógrafo
húngaro que vivia na França causou muita polêmica quando foi editado.
Sabemos que a Segunda Grande Guerra representou a maior demonstração do potencial
destrutivo jamais experimentado pela humanidade. Os conflitos nunca haviam sido retratados tão
de perto e divulgados tão amplamente (o que acabou criando o mito do repórter-herói). Mas,
durante a guerra, a veiculação das imagens pela imprensa passava pela censura dos órgãos
oficiais de informação. Este trabalho de seleção e edição transformava a guerra num espetáculo
dramático, porém vital, testemunho da própria superioridade moral e da crueldade do inimigo. Foi
só no pós-guerra que se começou a tomar consciência das imagens mais sangrentas. Basta
lembrar os dois símbolos das catástrofes maiores, Auschwitz e Hiroshima.
Durante a Guerra do Vietnam, podemos afirmar que a opinião pública já estava
plenamente consciente do poder da fotografia, tanto é que ela participou ativamente do
movimento popular contrário à guerra.
Atualmente, não podemos deixar de reconhecer o efeito paradoxal provocado pela
disseminação da fotografia documental de flagelos como as guerras, a fome e outras
supostamente de denúncia de injustiças sociais e políticas. A multiplicação desse tipo de imagens
causou uma certa saturação e é essa a razão que levou Susan Sontag a afirmar que

“a fotografia comprometida tanto contribuiu para despertar a consciência quanto para obscurece-la”.

De tanto ver imagens de pessoas sofrendo, o ser humano já não se choca mais, aprendeu
a se defender, anestesiou sua sensibilidade, pensando: é apenas mais uma fotografia... Essa
constatação inquietante é apenas uma entre outras tantas reflexões que faz a autora em seu já
clássico livro, Ensaios sobre Fotografia.

Você também pode gostar