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"As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós e suas relações com as


USINAS hidrelétricas"

Chapter · January 2016

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3 authors, including:

Ronaldo Borges Barthem Efrem Jorge Gondim Ferreira


Museu Paraense Emilio Goeldi - MPEG Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
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As migrações do jaraqui e do tambaqui
no rio Tapajós e suas relações com
as USINAS hidrelétricas
Ronaldo Barthem, Efrem Ferreira e Michael Goulding

A
região entre Aveiro e Jacarea- tambaqui (Colossoma macropomum),
canga, no rio Tapajós, apre- e sobre as consequências do barra-
senta pesca tradicional, com mento do rio, com a construção da
características de subsistência, e usina hidrelétrica (UHE) de São Luiz
pesca profissional; ambas abaste- do Tapajós.
cem os núcleos urbanos. As prin- Os peixes migradores represen-
cipais cidades e sedes de distritos tam mais da metade do pescado
contam com infraestrutura bem desembarcado pela pesca comercial
estabelecida de apoio à atividade na bacia amazônica e chegam a ul-
pesqueira, como mercados e fábri- trapassar 90% do total desembarca-
cas de gelo, mas o volume do de- do em alguns dos principais centros
sembarque é pequeno, bem inferior urbanos da região (Ruffino, 2004;
ao dos centros urbanos que mar- Barthem & Goulding, 2007). As es-
geiam o rio Amazonas-Solimões. Os pécies migradoras capturadas pela
pescadores que ali atuam possuem pesca comercial e de subsistência
conhecimentos sobre a biologia dos apresentam comportamentos mi-
peixes que podem ser usados para gratórios distintos por extensa área
inferir sobre abundância e compor- da bacia amazônica. As migrações
tamento migratórios dos mesmos. podem ocorrer ao longo do canal
Esses conhecimentos foram utili- principal do rio Solimões-Amazo-
zados neste trabalho para inferir nas, como é o caso dos bagres que
sobre os modelos de migração do realizam migrações entre o estuário
jaraqui (Semaprochilodus spp.) e do e os Andes (Barthem & Goulding,

479
início da fase de enchente do rio,
de modo que o pulso anual de ala-
gação auxilia na rápida dispersão
das larvas nas áreas recém-inunda-
das a jusante, que funcionam como
berçários (Araújo-Lima & Oliveira,
1998; Araújo-Lima & Ruffino, 2004).
A distância percorrida por ovos e
larvas à deriva no rio Amazonas,
Imagem 1. Tambaqui 1997; Barthem et al., 2003); entre o até o momento em que necessitam
(Colossoma
macropomum) pescado
canal principal e seus tributários, se alimentar, pode variar de 500
no Tapajós. Por Efrem caso do tambaqui, jaraqui e matrin- a 1.300 quilômetros (Araújo-Lima
Ferreira, fev. 2009.
chã (Goulding, 1980; Goulding & & Oliveira, 1998), o que garante o
Carvalho, 1982; Ribeiro, 1983; Bor- povoamento de extensas áreas a
ges, 1986; Ribeiro & Petrere, 1990; jusante.
Araújo-Lima & Goulding, 1997); ou, As UHEs exercem um papel ne-
por último, podem ser restritas a gativo na manutenção dos estoques
somente um tributário, como ocor- migradores, tendo em vista que elas
re com o mapará no rio Tocantins alteram o ambiente e o ciclo de en-
(Carvalho & Merona, 1986). chentes do rio, e interrompem a
Os pescadores são profundos conectividade dos trechos a mon-
conhecedores dos hábitos migrató- tante e a jusante, afetando a deriva
rios das espécies comerciais, e seu de ovos e o acesso dos reprodutores
conhecimento tem sido usado para às áreas de desova (Godinho & Godi-
inferir sobre abundância e migra- nho, 1994; Araújo-Lima, 1984; Leite
ção dos peixes (Silvano et al., 2006; et al., 2006; Oliveira & Araújo-Lima,
Silvano & Begossi, 2010; Hallwass et 1998). No entanto, o barramento
al., 2013). Na Amazônia central, os dos rios nem sempre inviabiliza as
pescadores possuem redes próprias populações de peixes, pois essas po-
para capturar os peixes quando dem se manter mesmo com o iso-
esses estão migrando, em especial lamento dos trechos de montante e
aqueles da ordem Characiformes jusante, caso eles apresentem carac-
que migram entre o canal principal terísticas favoráveis para a repro-
e seus tributários (Barthem & Goul- dução e crescimento da população
ding, 2007). Esses peixes procuram (Pompeu et al., 2012).
desovar no encontro das águas dos A Amazônia possui um grande
tributários com o rio principal, no potencial para geração hidrelétrica,

480 Barthem, Ferreira e Goulding


em especial nos trechos dos rios cau-
dalosos que atravessam os escudos
brasileiros e das Guianas, e os Andes.
Além das barragens já existentes, o
Plano Decenal de Expansão de Ener-
gia (PDE) 2011-2020 prevê a constru-
ção de 30 barragens com potencial
maior que 30 gigawatts na Amazônia
Legal brasileira (Fearnside, no prelo). menta para obter em pouco tempo Imagem 2. Jaraqui
escama fina
Desse total, prevê-se que 16 serão informações a respeito dos proces- (Semaprochilodus
construídas na bacia do rio Tapajós, sos migratórios na bacia para auxi- taeniurus) pescado
para gerarem 22,7 GW (ver mapa-en- no Tapajós. Por Efrem
liar na tomada de decisões sobre a
Ferreira, set. 2009.
carte). A maior delas seria construí- instalação dos empreendimentos
da sobre a cachoeira mais a jusante, hidrelétricos.
a de São Luiz do Tapajós, com capa-
cidade para 6.133 megawatts. Metodologia
A cachoeira de São Luiz é a pri- As informações a respeito de peixes
meira queda d’água do rio Tapajós migradores foram obtidas ao lon-
em direção à montante e a primeira go do trecho do rio Tapajós entre
barreira parcial dos peixes migra- Aveiro e Jacareacanga, entre 30 de
dores que têm origem na planície outubro e 5 de novembro de 2012,
amazônica. As cidades de Itaituba e observações e coletas feitas desde
e Jacareacanga, situadas respectiva- a década de 1980. A área percorrida
mente a jusante e a montante dessa inclui os principais municípios da
cachoeira, são abastecidas regular- área de influência dos empreendi-
mente por pescados capturados ao mentos: Aveiro (16 mil habitantes,
longo desse trecho do rio. No entan- sendo 3 mil residentes em zona ur-
to, pouco se conhece a respeito da bana), Itaituba (97 mil habitantes,
pesca e da migração dos peixes na sendo 71 mil residentes em zona
área a ser impactada pela UHE São urbana) e Jacareacanga (14 mil ha-
Luiz do Tapajós. bitantes, sendo 5 mil residentes em
Considerando essa ausência de zona urbana)1. Além das sedes des- 1. Todos os dados são do
informações, foi realizado um le- Instituto Brasileiro de
ses municípios, foram feitas visitas Geografia e Estatística
vantamento rápido sobre os peixes às sedes dos distritos de Brasília (IBGE), disponíveis em:
migradores e sua pesca ao longo do <htttp://www.cidades.
Legal e Fordlândia, ambos no mu-
ibge.gov.br> (acesso: 11
trecho entre Aveiro e Jacareacanga. nicípio de Aveiro. As informações jun. 2014).
O levantamento rápido é uma ferra- foram obtidas durante as visitas aos

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 481


pontos de desembarque de pescado A pesca
e às áreas de pesca (imagens 3 a 5). A pesca comercial no rio Tapajós é
Dois métodos foram utilizados realizada principalmente nos tre-
para a obtenção de informações. O chos próximos à sua foz, onde atua
primeiro foi baseado em entrevis- a frota comercial de Santarém e
tas semidirecionadas aplicadas a onde há registros de desembarque
pescadores, comerciantes de pesca- pesqueiro (Ruffino, 2004). Os qua-
do e fornecedores de gelo (Hunting- tro centros urbanos visitados apre-
ton, 2000). Essas entrevistas consis- sentam atividade pesqueira, mas
tiam em conversas informais feitas somente as sedes dos municípios
individualmente ou em grupos, em de Itaituba e Jacareacanga apresen-
que se procurou abordar uma lista tam mercados formais, privados ou
de temas previamente definidos públicos, e fábricas de gelo comer-
como: (i) volume e tipos de pesca- ciais, apesar de haver produção do-
dos desembarcados; (ii) apetrechos méstica de gelo nas outras cidades
utilizados; (iii) preços e rede de co- e sedes de distritos. Fordlândia foi
mercialização; e (iv) acesso a gelo o único centro que não apresentou
e outros produtos para a conser- atividades relacionadas à comer-
vação do pescado. Perguntas espe- cialização de pescado. Itaituba é o
cíficas foram feitas aos pescadores principal mercado, comercializan-
a respeito da biologia das espécies, do cerca de quatro vezes o volume
épocas e área de reprodução, locais de Jacareacanga, e é o único núcleo
onde se encontravam os peixes jo- urbano que apresenta um mercado
vens e comportamento migratório. público (tabela 1).
O segundo método foi o de obser- As embarcações pesqueiras são
vação participante, que consistiu em geral voadeiras, com motor de
em visitar as áreas de pesca para popa, ou pequenos barcos com con-
conhecer os ambientes e acompa- vés coberto, que armazenam o pes-
nhar os pescadores para conhecer cado em caixas de isopor. Essas em-
os apetrechos de pesca, as técni- barcações encostam junto às praias
cas de pescaria e as embarcações ou beiras de rio defronte ao núcleo
pesqueiras (McGoodwin, 2002). A urbano para desembarcar o pescado
estimativa da produção anual foi em qualquer época do ano (imagens 3
feita com base na comercialização e 4). O pescado desembarcado é ven-
diária de pescado relatada pelos dido por atacado aos comerciantes
comerciantes. das cidades de Itaituba e Jacareacan-
ga, que por sua vez vendem a varejo

482 Barthem, Ferreira e Goulding


em diversos pontos da cidade. Em de isopor com gelo em Itaituba e re-
Aveiro e Brasília Legal, a população tornam para suas casas com as com-
pesca no rio em áreas próximas aos pras da semana. Nos dias seguintes,
centros urbanos, com canoas, redes saem para os pesqueiros próximos
de emalhar (malhadeiras) e linha de às suas casas ou no caminho para
mão, capturando o pescado para a Itaituba e armazenam o pescado
refeição diária. Diversas espécies fo- nas caixas de isopor com gelo. Após
ram encontradas nas caixas de gelo a semana de pescaria, retornam a
do mercado municipal, sendo que Itaituba para a venda do pescado e
a maioria delas é comumente en- para as compras semanais, e nova-
contrada nos mercados das cidades mente abastecem de gelo suas cai-
e sedes de distritos ao longo do rio xas de isopor para a pescaria da pró-
Amazonas e conhecida por realizar xima semana. Os pescadores que
migrações (tabela 1). possuem canoa motorizada ou bar-
Pescadores residentes às mar- co com motor de centro vão para
gens do rio Tapajós a jusante de Itaituba por seus próprios meios. Os
Itaituba têm uma rotina semanal de que moram mais distantes ou não
pesca. Eles abastecem suas caixas têm embarcação motorizada che-

Tabela 1. Infraestrutura e volume estimado de pescado comercializado


em cada cidade

Cidade/ sede de Jacareacanga Itaituba Brasília Legal Fordlândia Aveiro


distrito
Mercado de peixe
Público Não há 1 (5 boxes) Não há Não há Não há
Privado 6 4 Doméstico Sem Doméstico
informação
Fabricação de gelo
Industrial (número 3 4 0 0 0
de fábricas)
Doméstica Sim Sem Sim Sem Sim
informação informação

Porto Variável Fixo Disperso Sem Disperso


informação
Volume de pescado 80-105 ± 400 Sem Sem Sem
comercializado informação informação informação
(toneladas/ano)

Elaboração dos autores.

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 483


Imagem 3 (esq.):
Canoas e barcos de
diferentes tipos e porto
de desembarque de
pescado no rio Tapajós.
Por Ronaldo Barthem,
2011.

Imagem 4 (dir.): Canoa


motorizada com caixas
de gelo desembarcando
pescado. Por Ronaldo
Barthem, 2011.
Os pescadores de Jacareacanga
saem para pescar nas proximidades
Imagem 5 - Pesca de
tambaqui com rede
da cidade, especialmente nos lagos
de emalhar “escorada” Muiuçu e São Luiz, situados a mon-
abaixo da cachoeira de
tante. Utilizam redes de emalhar
São Luiz, no rio Tapajós.
Por Ronaldo Barthem, e anzol, e capturam diversas espé-
2011. cies (tabela 2). A melhor época para
pescar é de novembro a dezembro,
justamente no período do defeso,
quando as espécies estão migran-
gam ao centro urbano por meio de do. As espécies capturadas de maior
barco recreio. Como o recreio passa valor são as migradoras, como tam-
em direção a Itaituba três dias por baqui, filhote, piau e aracu. O tam-
semana (domingo, segunda-feira e baqui capturado na região alcança
quinta-feira), esses são os dias em de dez a 15 quilogramas, tendo sido
que há maior oferta de pescado nes- observada uma fêmea ovada de 15
sa cidade, sendo os dias tradicionais quilogramas no frigorífico de um
em que o mercado municipal vende ponto de venda.
pescado. Pescadores de uma embar-
cação de pesca de motor de centro A migração
relataram que consideram uma boa As considerações sobre migrações
pescaria quando o barco retorna de peixes no rio Tapajós foram ba-
com pelo menos 100 quilogramas de seadas nas espécies de tambaqui e
peixe por viagem. O pescado comu- jaraqui, tendo em vista que o com-
mente desembarcado em Itaituba é portamento migratório dessas es-
o piau, que é conhecido por realizar pécies é conhecido na Amazônia
migrações e é composto por várias Central (Goulding, 1980; Goulding;
espécies da família Anostomidae. & Carvalho, 1982; Ribeiro, 1983; Ri-

484 Barthem, Ferreira e Goulding


beiro & Petrere, 1990; Araújo-Lima pescadores como a migração do pei-
& Goulding, 1997) e que elas apre- xe gordo, pois os peixes estão saindo
sentam alto interesse comercial, o do igapó após um período de farta
que obriga os pescadores a se es- alimentação (seta verde tracejada da
merarem para conhecer um pou- imagem 6). Os cardumes sobem o tri-
co mais sobre elas para poderem butário até um trecho e esperam o
capturá-las. começo da enchente. Quando o rio
começa a encher, tem início a mi-
Modelo de migração do jaraqui na gração de reprodução; os cardumes
Amazônia Central descem novamente até o encontro
O modelo das migrações de jaraqui das águas para desovarem e, em se-
foi elaborado por estudos realiza- guida, sobem pelo mesmo tributá-
dos na zona de confluência do rio rio, buscando o igapó que começa
Negro com o rio Amazonas. Essa é a se alagar (seta vermelha contínua da
uma das migrações mais conheci- imagem 6). Os ovos e larvas descem
das e seu padrão é referência para a até alcançarem a várzea a jusante,
compreensão da migração de outras onde crescem durante um período
espécies de Characiformes. O jara- de enchente (seta vermelha pontilha-
qui realiza duas migrações por ano da da imagem 6). Na próxima seca,
entre os rios de água branca e seu os cardumes de jaraquis pequenos
tributário de água preta ou clara. A deixam a várzea em busca de iga-
migração de dispersão ocorre nos pós nos tributários de água preta
trechos inferiores dos tributários, ou clara a montante de sua área de
onde o rio principal represa o tri- criação, realizando sua primeira
butário e reduz a velocidade de sua migração dispersiva (Ribeiro, 1983;
vazão; realiza-se logo após a cheia, Ribeiro & Petrere, 1990).
quando o rio começa a baixar, e se
estende até a seca. Nessa migração, Comparação da migração do
os cardumes de jaraqui saem das jaraqui no rio Tapajós
florestas alagadas, ou igapós, dos A proposta de modelo de migração
tributários de água preta ou clara de jaraquis no rio Tapajós, entre
e descem esse rio até alcançarem Aveiro e Jacareacanga, foi baseada
o rio principal de água branca, ini- nas informações dos pescadores,
ciando a partir daí a migração as- tendo como referência o padrão
cendente no rio principal até outro de migração conhecido para a con-
tributário de água clara ou preta. fluência do rio Negro com o rio
Essa migração é conhecida pelos Amazonas. Cardumes de jaraquis

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 485


Tabela 2. Pescados encontrados nos mercados de Itaituba e Jacareacanga
Nome comum Nome científico Migrador Itaituba Jacareacanga Brasília Legal

Acará Satanoperca spp. e Geophagus spp. x x

Acaratinga Geophagus proximus x x x

Acará-açu Astronotus crassipinnis x

Acará-bararua Uaru amphiacanthoides x

Acari-bodó Liposarcus pardalis x

Aracu Schizodon sp. x x x

Aruanã Osteoglossum bicirrhosum x

Branquinha Espécies da família Curimatidae x x

Cara-de-gato Platynematichthys notatus x x

Curimatá Prochilodus nigricans x x x

Dourada Brachyplatystoma rousseauxii x x

Filhote Brachyplatystoma filamentosum x x

Flamengo Brachyplatystoma juruense x x

Jandiá Leiarius marmoratus x x

Jaraqui Semaprochilodus spp. x x x x

Mapará Hypophthalmus spp. x x x

Matrinxã Brycon sp. x x x

Orana Hemiodus spp. x x

Pacu Myleus sp., Metynnis sp. e Mylesinus sp. x x x

Peixe-cachorro Hydrolicus scomberoides x x

Pescada Plagioscion spp. e Pachypops sp. Sem informação x x

Piau Leporinus spp. x x x

Piranha Pygocentrus nattereri e Serrasalmus spp. x

Piranha preta Serrasalmus rhombeus x

Pirapitinga Piaractus brachypomus x x

Surubim Pseudoplatystoma punctifer x x x

Tambaqui Colossoma macropomum x X x

Traíra Hoplias malabaricus x

Tucunaré Cichla spp. x x

Elaboração dos autores.

486 Barthem, Ferreira e Goulding


são encontrados migrando no rio gração depende da conectividade
Tapajós desde Aveiro até acima de dos diferentes trechos do rio, ou
Jacareacanga, sendo que as cachoei- seja, se é possível manter popula-
ras de São Luiz e as demais até Ja- ções viáveis se forem isoladas pela
careacanga não são barreiras para barragem.
essas espécies. Pescadores de Jaca-
reacanga informam que os jaraquis Modelo de migração do tambaqui
desovam em novembro e seus filhos na Amazônia Central
criam-se nos diversos lagos a mon- O tambaqui faz uma migração se-
tante e a jusante da cidade. Esse pa- melhante, mas um pouco mais
drão é semelhante às migrações das complexa. Os adultos reprodutores
mesmas espécies estudadas no rio se alimentam nas extensas áreas
Ji-Paraná (também conhecido como de floresta alagadas que margeiam
Machado), em Rondônia, um rio os tributários ou os lagos no rio de
de água clara do escudo brasileiro, água branca durante o período de
excetuando-se o fato de que lá os jo- enchente. Quando o rio começa a
vens não são encontrados nos lagos baixar, cardumes de tambaqui dei-
do tributário, e sim na várzea do rio xam as áreas alagadas e migram
Madeira (Goulding, 1980). De forma pelo canal principal do rio de água
comparativa com a migração descri- branca em direção à montante até
ta por Ribeiro (1983) para o rio Ne- alcançarem remansos do rio com
gro, a migração dispersiva (seta verde troncos e raízes, onde o cardume
tracejada na imagem 6) é observada se abriga durante a seca e suas gô-
no rio Tapajós pelos pescadores de nadas amadurecem. Quando o rio
Aveiro a Jacareacanga, assim como começa a encher, os cardumes mi-
a sua desova e a criação dos juvenis gram rio acima, com suas gônadas
nos lagos marginais. Os pescadores maduras, até o local de desova, que
não mencionaram se os igapós dos parece não depender dos trechos
tributários teriam o mesmo papel de confluência dos rios principal e
de área de alimentação encontrado tributário, ocorrendo em diferentes
nos tributários do rio Amazonas-So- trechos dos rios de água branca (seta
limões e nem a que distância eles vermelha contínua da imagem 7). Após
sobem o rio. As principais lacunas a desova, os ovos e larvas são carrea-
desse modelo seriam a distância a dos para os lagos de várzea a jusan-
montante que eles migram, tanto te (seta vermelha pontilhada da imagem
no Tapajós como em seus tributá- 7) e os cardumes reprodutores bus-
rios, e se a sobrevivência dessa mi- cam novas áreas de alimentação na

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 487


Imagem 6: Modelo de floresta alagada a montante (seta de Jacareacanga afirmam que eles
migração do jaraqui: o
esquema à esquerda
verde tracejada da imagem 7). Os jo- começam a descer entre agosto e se-
representa o modelo vens demoram cinco anos nos lagos tembro; os pescadores da cachoeira
encontrado por Ribeiro
de várzea antes de realizarem mi- de São Luiz acreditam que a desova
(1983) na Amazônia
Central e o da direita, grações dispersivas ou reprodutivas ocorra em novembro (seta vermelha
o modelo hipotético (Goulding, 1980; Goulding & Carva- contínua da imagem 7). Pescadores
para o rio Tapajós. A
migração dispersiva lho, 1982; Araújo-Lima & Goulding, de jusante encontram tambaquis
ocorre quando o rio 1997). jovens nos lagos marginais do Ta-
está secando ou seco e
pajós, como os lagos Urussagi e
a migração reprodutiva,
a desova e a deriva de Comparação da migração do Recreio, próximos a Brasília Legal.
ovos e larvas, quando o tambaqui no rio Tapajós Já os pescadores de Jacareacanga
rio está enchendo.
Aparentemente, a migração do desconhecem ou consideram rara a
tambaqui no rio Tapajós parece ocorrência de tambaquis jovens aci-
ser bem mais simples que no eixo ma da cachoeira. Tambaquis adultos
Amazonas-Solimões. Os pescadores migram a montante da cachoeira
de diversas regiões afirmaram que para se alimentar de frutos no iga-
a área de desova do tambaqui é a pó (seta verde tracejada da imagem 7),
cachoeira de São Luiz. Pescadores como ocorre na Amazônia Central.

488 Barthem, Ferreira e Goulding


Vários exemplares com mais de dez vas siga mais a jusante desse trecho.
quilogramas foram coletados no rio Também se desconhece qual a inte-
Teles Pires no trecho logo a jusante gração desse ciclo migratório com
da cachoeira de Sete Quedas, a mais os realizados no baixo Amazonas, o
de 600 quilômetros da cachoeira de que poderia envolver um constante
São Luiz, o que indica que a espécie recrutamento de adultos ou suba-
pode utilizar um longo trecho do dultos provenientes dos trechos a
Imagem 7. Modelo de
rio Tapajós ou de seus tributários jusante de Aveiro.
migração do tambaqui:
para se alimentar, embora não haja o esquema à esquerda
informações se há outras áreas de Relações entre as migrações e as representa o modelo
encontrado por
desova além da já mencionada (seta UHEs Goulding (1980) na
vermelha pontilhada da imagem 7). Os modelos de migração de tamba- Amazônia Central e o
da direita, o modelo
Também não se sabe até que distân- qui e jaraqui foram elaborados com hipotético para o rio
cia os ovos e larvas dos tambaquis base no comportamento dessas es- Tapajós. A migração
dispersiva ocorre
nascidos na desova da cachoeira de pécies na Amazônia Central e nos
quando o rio está
São Luiz são carreados para jusan- relatos dos pescadores entrevista- secando ou seco e a
te. A correnteza do rio Tapajós é tão dos no trecho do rio Tapajós entre migração reprodutiva,
a desova e a deriva de
branda abaixo de Aveiro, que é difí- Aveiro e Jacarecanga. O principal ovos e larvas, quando o
cil aceitar que a deriva de ovos e lar- desafio científico é testar a vali- rio está enchendo.

As migrações do jaraqui e do tambaqui no rio Tapajós 489


dade desse modelo hipotético de migratório das principais espécies
migração e conhecer o seu limite migradoras do rio Tapajós.
à montante, tanto no rio Tapajós
quanto nos seus tributários, além [artigo concluído em julho de 2014]
de sua dependência em relação à
conectividade com o sistema do rio Referências bibliográficas
Amazonas. Araújo-Lima, Carlos A.R.M. 1984.
Aparentemente, o tambaqui Distribuição espacial e temporal de
apresenta uma forte dependência larvas de Characiformes em um setor
em relação à conexão entre os tre- do rio Solimões/Amazonas próximo a
chos de montante e jusante da ca- Manaus, AM. Dissertação de mes-
choeira de São Luiz, tendo em vista trado (Biologia de água doce e
que a área de alimentação dos adul- pesca interior). Manaus, Institu-
tos está a montante da cachoeira, to Nacional de Pesquisas da Ama-
o berçário está a jusante e a área zônia/Fundação Universidade do
de reprodução, exatamente na ca- Amazonas.
choeira. Por outro lado, os jaraquis Araújo-Lima, Carlos A.R.M.; Gould-
parecem poder manter os ciclos mi- ing, Michael. 1997. So fruitful a
gratórios independentes nos dois fish: ecology, conservation, and
trechos. No entanto, não é possível aquaculture of the Amazon’s
avaliar se a estreita área de floresta Tambaqui. Nova York, Columbia
alagada a montante das cachoeiras University Press.
de São Luiz poderia alimentar as Araújo-Lima, Carlos A.R.M.; Olivei-
populações que se manteriam aci- ra, Edinbergh C. 1998. “Trans-
ma da barragem caso esse trecho port of larval fish in the Ama-
seja entrecortado por outras UHEs, zon”. In: Journal of Fish Biology,
como as de Jatobá e Chacorão. v.53 (Supplement A). Dumfries,
A sequência de UHEs a serem The Fisheries Society of the Brit-
construídas na bacia do rio Tapajós ish Isles, pp. 297-306.
irá afetar profundamente a conexão Araújo-Lima, Carlos A. R.M.; Ru-
dos movimentos migratórios nos ffino, Mauro L. 2004. “Migratory
diferentes trechos e poderá causar fishes of the Brazilian Amazon”.
o desaparecimento de espécies mi- In: Carolsfeld, Joachim; Har-
gradoras nos trechos isolados. Pla- vey, Brian; Ross, Carmen; Baer,
nos para a mitigação desses impac- Anton. (org.). Migratory fishes of
tos devem considerar estudos mais South America: biology, fisheries
detalhados sobre o comportamento and conservation status. Victo-

490 Barthem, Ferreira e Goulding


ria, World Fisheries Trust/World dois peixes migratórios do baixo
Bank/IDRC, pp. 233-306. Tocantins, antes do fechamen-
Barthem, Ronaldo; Goulding, Mi- to da barragem de Tucuruí”. In:
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