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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB

Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (DELL)


Letras Vernáculas - 2023.2
Disciplina: Letras do Império Luso II
Docente: Cássio Roberto Borges da Silva
Discente: Isabela Viana Mendes Oliveira

Notação

O soneto camoniano de incipit “Aquela que, de pura castidade”, ainda que não cite o nome
do agente da ação relatada, subtende-se tratar-se de Lucrécia, figura romana cuja trajetória perpassa
toda a história e, assim como o soneto indica, permanece viva na memória. Lucrécia, segundo a
história contada por Tito Lívio (59 a.C - 17 d.C), teria sido filha de Espúrio Lucrécio Tricipitino e
esposa de Lúcio Tarquínio Colatino. O mito e a persistência de sua lembrança inspirou diversas
manifestações nas artes seguintes, como o “O Suicídio de Lucrécia” (Selbstmord der Lukretia,
1518, Albrecht Dürer) e “Lucretia” (Lucretia, 1666, Rembrandt), o último inspirado por
Caravaggio.
É preciso, entretanto, conceituar brevemente o que é um soneto e de que subgênero
tratamos nessa análise em específico. Para Aristóteles (384 a.C - 322 a.C), toda poesia é uma espécie
de imitação de homens e suas ações. Os poetas imitam através do ritmo, da harmonia e da
linguagem. O soneto é um poema curto com dois quartetos iniciais, finalizado por dois tercetos,
totalizado por 14 versos. Segundo Herrera (1534 - 1597), sonetos adotam estruturas similares a dos
epigramas, composição poética que também possuía grande diversidade de matérias (ou temas),
além de serem breves e sentenciosas. Assim, o soneto pode ser definido como uma composição
curta, rítmica e breve, o que implica em seu raciocínio único. O soneto que será analisado é de
natureza moral.
Seguindo aos versos de Camões, vejamos o primeiro quarteto, nos guiando pelas análises
feitas por Manuel de Faria e Sousa (1590 - 1649) em “Rimas Várias de Luís de Camões”:
Aquela que, de pura castidade
de si mesma tomou cruel vingança,
por uma breve e súbita mudança
contrária a sua honra e calidade

De acordo com o incipit, a persona poética começa por introduzir a uma mulher, sujeito de
uma ação realizada que ele classifica como “pura castidade”, ou seja, pureza. Ela, sabemos, é
Lucrécia, mulher romana que é violentada por Sexto Tarquínio. No soneto de Camões, antes
mesmo de perder sua pureza, a mulher põe fim em sua própria vida. Em “de si mesma tomou cruel
vingança”, como aponta Faria, indica que a mulher culpava-se pela violência, ainda que tivesse sido
coagida à força por Tarquínio. Continua nos dois últimos versos: “por uma breve e súbita
mudança // contrária a sua honra e calidade”, ou seja, a violência provocou uma súbita mudança
em sua pureza, sua maior qualidade, algo que ela não pôde suportar.

Venceu à fermosura a honestidade,


venceu no fim da vida a esperança
porque ficasse viva tal lembrança,
tal amor, tanta fé, tanta verdade!

O primeiro verso conta que o seu suicídio ocorreu justamente por Lucrécia ser tão honesta,
tão casta, coisa rara em quem era denominada “formosa”. Na verdade, foi por ser formosa que
Tarquino sentiu-se atraído, resultando no abuso. Por isso, passando ao segundo verso, “venceu no
fim da vida a esperança”, a esperança que Lucrécia tinha de não perder sua pureza foi o que a levou
a cometer essa ação drástica. A persona poética conclui, nos dois últimos versos, com essa
contraposição entre a brevidade da vida humana e a larga memória da pessoa que deixa um
exemplo moral para ser aprendido.

de si, da gente e do mundo esquecida,


feriu com duro ferro o brando peito,
banhando em sangue a força do tirano.

Toda essa verdade, essa fé que move a ação de Lucrécia, é esquecida do mundo, como é
indicado. É curiosa a observação de Faria quando diz que aquele mais desamparado não tem o
desejo de matar-se, mas foi o que a mulher violentada fez, pois, apesar de ser mimada e viver
rodeada de presentes e de luxo, não podia suportar viver com o desespero da corrupção de sua
qualidade. Por isso, “feriu com duro ferro o brando peito”, ou seja, pôs fim em sua vida ao enfiar um
punhal (aludido pela metáfora em “ferro”) no seu peito, banhando Tarquínio de sangue. Faria
também aponta essa contraposição entre a dureza do punhal e a brandura do peito da moça.

Oh! estranha ousadia! estranho feito!


Que, dando breve morte ao corpo humano,
tenha sua memória larga vida!

No último terceto, Camões conclui seu soneto. Inicia-o apontando o quão incomum é
aquele feito que logo em seguida relatará, mas que já ficou claro no resto dos parágrafos. Utiliza no
penúltimo verso a tópica da brevidade da vida, do corpo humano na Terra, e finaliza com a chave
de ouro: “tenha sua memória larga vida!”. Ainda que tenha morrido cedo, sua memória
permaneceu, pois seu ato foi incomum e de estranha ousadia. Se não tivesse se matado, talvez
Lucrécia não fosse tão lembrada quanto é agora.
Tratamos aqui de um soneto moral, que apesar de tocar levemente na funebriedade da
morte de Lucrécia e sua memória, é muito mais voltado para o ensinamento que sua ação deixou.
Como se o poeta se dirigisse ao público, ele mostra que aquilo é uma ação de muita honra e
honestidade, e que aquela é a maneira certa de agir. Implica que o certo é que a mulher seja pura e
casta, que não desonre seu marido, que não permita que outro possa corromper suas altas
qualidades. Esses valores eram claros de uma sociedade de corte, na qual a mulher deve subjugar-se,
especialmente ao seu marido.
Duas observações ainda podem ser pontuadas. Primeiro, notamos que não importava a
casta social de Tarquínio: fosse escravo ou príncipe, a honra dele, enquanto marido de Lucrécia,
ainda seria ferida, por isso Lucrécia não hesita em cometer o suicídio. Em segundo lugar, podemos
sugerir, ainda, que Lucrécia pudesse pensar em, antes de matar a si própria, matar Tarquínio.
Segundo Manuel de Faria, ainda que a mulher tenha sido honrosa de negar todas as investidas do
violentador, ninguém deve se matar, pois isso se trata de um pecado sem perdão.
Por fim, cabe citar a maneira como, por ser muito citada em diversos outros poemas, o
nome de Lucrécia não apenas é lembrado, como também passa a ser usado quase como um
adjetivo, como faz José F. de Castilho em seu epigrama (1862):

Como desejo as moças,


amigos, perguntais?
Nem gosto das Lucrécias,
nem também vou p’ras as Lais [...]

Dessa forma, o autor utiliza o nome de duas mulheres para representar duas personalidades
distintas. Enquanto Lucrécia representa as mulheres de honra, honestas e puras demais, Lais
(famosa sedutora da mitologia grega) representa as mulheres lascivas, cortesãs e de grande
formosura. De alguma forma, ambos os feitos dessas mulheres, assim como suas características bem
distinguíveis, foram capazes de marcá-las na história, fazendo com que sua memória persistisse.
Referências

HERRERA, F. Anotaciones a la poesía de Garcilaso. Cátedra, 1619.


ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
SOUSA, Manuel de Faria. Rimas Várias de Luís de Camões. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1972.

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