Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Infância Sob o Prisma de Henri Bergson
Infância Sob o Prisma de Henri Bergson
Infância Sob o Prisma de Henri Bergson
INFÂNCIA DO MOVENTE:
Capa
Vinicius Xavier Hoste
Ministério da Educação
Universidade Federal de Rondonópolis
Reitora
Analy Castilho Polizel de Souza
Vice- Reitora
Antonia Marilia Medeiros Nardes
Conselho Editorial
Rodolfo Cassimiro de Araujo Berber (Presidente)
André Demambre Bacchi
Débora Aparecida da Silva Santos
Evelise Andreatta
Everaldo Lima de Araújo
Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Helen Fernanda Barros Gomes
Luciano Carneiro Alves
Magda de Mattos
Renata Bezerra Valeriano
Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues
Nivaldo Alexandre de Freitas
João Eduardo Frederico
Viviane Cassol Marques
4
A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial,
constitui violação da Lei nº 9.610/98.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-998107-1-8.
CDU 37.01
PREFÁCIO
No terceiro capítulo, faz-se uma interessante leitura sobre um dos textos mais
difíceis da obra bergsoniana: o quarto capítulo de Matéria e memória, em que trata de
uma Metafísica da matéria e sua relação com as teorias intelectualistas da percepção.
Todo o percurso tem a virtude de aproximar herméticas passagens metafísicas do
filósofo à experiência pessoal como professor, produzindo uma ponte – ao mesmo
tempo que uma síntese – entre a descentralização da teoria proposta por Bergson e
as vivências, inquietações pessoais e docentes. Ao mesmo tempo em que se propõe
denunciar as insuficiências que o ensino tradicional impõe à prática professoral, à luz
de suas próprias experiências profissionais, como professor de Música e Língua
Portuguesa, o autor revela os momentos únicos e transitórios, em que a
aprendizagem se mostrou co-criação; as rotinas pedagógicas, antes de tudo, como
6
SUMÁRIO
REFERÊNCIAS 150
9
LUA NO LABIRINTO
Desde criança, tenho a sensação inabalável de que o tempo, tal como nos
governa, é uma criação humana. Também remonta àqueles idos a convicção de
que o que existe são as coisas a nos acontecerem. A estas deveríamos quem sabe
denominar tempo. Isto afirmado, passei a existência em bancos escolares e ali
continuarei, recolhendo e desenhando lousas, copiando fórmulas, cristalizações
sígnicas, cacos especulares do mundo; até me sentar sobre um derradeiro toco
seco, frente a um regato, em que veja minha história refletida. Cada marola a
transferir individualmente sua pulsão a outra, misturando o que vivi com o que
foi representação e não tem sido pouco.
Foi após meio século de vida e 30 anos de docência, que encontrei a
tradição bergsoniana, finalmente me acenando com percepções-conceitos que há
muito eu os levava, intuitivamente. Ratifico a pantanosa sensação dos fatos e
somente eles se constituírem temporalidade; o restante, calendário,
mensalidades, aniversários, duplicatas, sendo apenas marcações, carimbos um
tanto arbitrários a nos metrificar, quantificando o que passamos, velhas
ancoragens heliocêntricas. Jamais acreditei na liberdade, para mim outra
abstração, e qual não foi a surpresa de entender com Bergson (1859-1941) as
razões para o desalento: somos reféns da linguagem e outros expedientes
logocentrados; enquanto assim for, de modo algum praticaremos atos livres. O
eminente filósofo todavia acenou com esta via: ao nos lançar na duração real, de
modo que o eu profundo se revele em nossos atos, teremos experiências com a
liberdade. Confesso que, até o presente instante, fico impactado com tal
possibilidade, senão intrigado.
No ambiente em que me encontro (mesa, caneta, abacateiro e sol), tenho a
tarefa de meditar sobre como as contribuições bergsonianas poderão lançar luz
sobre o que vivi em 21 anos na Educação Básica. Convenço-me cada vez mais
de que os fracassos, sucessos e os infinitos matizes entre estes dois extremos
12
mantêm uma íntima relação com as reflexões do autor sobre a realidade, dentre
as quais destaco as severas críticas aos projetos da inteligência.
Assumo neste trabalho (apesar de certa pedância enunciativa), a primeira
pessoa do singular, mesclada à primeira do plural, em busca de um fluxo
narrativo que, de algum modo, permita à intuição expressar uma realidade que
sempre busquei com as crianças, e quando isto se dava, percebia que aquele
encontro tinha sido significativo, apesar de sempre estar atrelado aos conteúdos
disciplinares, fossem eles da Expressão Musical ou Língua Portuguesa (com os
jovens). A primeira pessoa do singular me permite lamber memórias, ruminar
ditos, queixumes, confessar lambanças, acertos, decrepitudes; a primeira do
plural vai aparecer, quando me sentir só, ou muito colado ao texto bergsoniano,
ou ainda quando dezenas, centenas, milhares de almas que comigo estiveram
recomendarem, quase como em um orfeão: “Tio Marlon! Conta isso...”
Eis uma tensão que marcara de modo rude os dias em que estive nas salas
de atividades:1 duas forças de dimensões continentais, dentre outras menores,
atingiam-me rotineiramente; por um lado, a exigência pedagógica de partilhar a
fixidez de símbolos universais com os alunos2– canções (letra, ritmo e melodia),
notações musicais, noções de altura, andamento, intensidade, harmonia, jogos
sensoriais, instrumentos percussivos, harmônicos e melódicos, como a flauta,
estilos musicais, etc., ou tratando a língua materna: saberes morfológicos,
sintáticos, estilísticos, semióticos, a estrutura do artigo de opinião, resenha,
conto, crônica, etc. –; em uma direção oposta, para minha tragédia, além da
sensação de me afastar do mundo vivido, ao ensinar conteúdos que, para muitos
ali, não passavam de fetos natimortos (com todo o respeito aos gramaticistas,
comunidade a que pertenço, o que fazer com o conceito de oração subordinada
substantiva completiva nominal reduzida de particípio, além de usá-la como
marca de distinção social nos vestibulares?), assaltava-me o espírito a sensação
de que uma realidade muito mais pulsante, potente, qualitativa, ria diante de
mim, em cada olhar daquelas crianças e jovens (Educação Infantil e Ensino
2 Outra expressão que buscarei não mencionar, pelo que revela de uma lógica escolarizante,
verticalizada, que tende a antecipar na Educação Infantil posturas didáticas e até conteúdos mais
apropriados ao Ensino Fundamental. Somo-me a todos os pesquisadores que defendem os direitos dos
pequenos cidadãos matriculados na Creche e Pré-escola, dentre os quais eu destacaria o de ser
considerado criança, não um projeto futuro de país e de adulto. Se fosse me ater à etimologia latina,
alumnus, que significa lactente, criança de peito, não haveria problema, mas a escolaridade básica
como um todo adotou o termo, roubando-lhe os sentidos originais. Há quem diga que a expressão
signifique sem luz; uma pena que isto seja equivocado, posto que assim são tratados comumente
nossos alunos.
13
fazê-lo, não somente por alguns excertos que a mencionam, mas sobretudo
pelas abordagens de Bergson acerca da duração psicológica, do tempo, campos
de consciência e outros aspectos da relação entre o espírito e a matéria. A
heurística proposta de rompermos com a utilidade, a inteligência,
espacialização, buscando no sonho e no tempo caminhos para o encontro com o
mundo, muito me estimulou a refletir sobre o devir infância. Apresento aqui o
desafio de o pensarmos, sobretudo as relações inequívocas que apresenta com a
Filosofia de Bergson. Vejo nessa aventura potentes possibilidades de novos
entendimentos sobre o mundo dos bebês e crianças, pelo que nos habitam e
permanecem...
Reconheço que as asserções a serem obtidas tendem a parir mais um
corvo devorador do fígado de Prometeu. As bicadas lhe serão ferozes; até o lume
do Carro do Sol roubado pelo mártir poderá se empanar em pálida e assombrada
miragem, já denunciada por Nietzsche e tantos outros posteriores a ele. Pudera
sairmos daquele rochedo, em que fomos acorrentados. Este corvo filhote,
potente pelo que carrega de peçonhento, em relação ao logos, acena, roto e
esquálido, com estocadas, ferroadas, no sentido de matar o herói atemporal. Por
que, Prometeu, luto para executar-te? Quem sabe pelo que materializaste das
pretensões da inteligência, senão a própria encarnação dela... Sem maiores
intenções dramatúrgicas, quero mesmo tua morte, oh gigante... Deixe-nos em
paz! Os rapinantes que te comiam o fígado eram meros coadjuvantes da farsa,
necessários para manterem tua importância e vontade de poder. Mas o bicho
que agora corre a teus bofes tem sede... Vai-te às favas, morador do Cáucaso!
Some de nossa existência, para que outras paisagens nos surjam, quem sabe,
onde não haja juízos, tribunais da razão, imperativos categóricos, catedrais de
quartzo anteriores ao que nos passa, enformando o vivido, confinando-o em
estatutos morais, científicos, enfim, antecipando-se ao pulso, gozo, lágrima,
riso, espanto.
CAPÍTULO I
que cada ser é único; e o pastor conhece ovelha por ovelha, ciente das diferenças
singulares entre uma e outra. A numeração só terá importância se, além de
somar, estabelecer uma homogeneização.
Confesso que passei por muitas tensões naquele trajeto. Tive atitudes e
práticas contraditórias, muitas de que não me orgulho. As asserções sobre
aritmética, há pouco abordadas, colhidas dos escritos de Bergson, presentes no
Ensaio (1978), têm um eco abissal em minha memória. Como fico satisfeito, ao
perceber que este movimento interior converge, inclusive em termos
metodológicos, com a concepção central do autor em seu legado: a duração.
Mergulho com arrepios e sobressaltos no abismo das lembranças, mesclando
idos, feitos e ditos às abordagens do autor, em arranjos estranhos, prenhes de
surpresas. Reconheço a índole terapêutica de tal movimento. Analiso um
conceito como aquele da unidade e do número e tais asserções me levam ao
encontro dos pequenos músicos, que se tornavam múltiplos elementos,
desprovidos de qualidades, homogeneizados pela ciência pedagógica, inscritos
com seus nomes no espaço lógico do saber docente, tornando-se uma orquestra,
de sorte que, com a rotina pedagógica, construíssem um produto artístico de
grande expressividade, arrancando lágrimas dos pais mais rudes, nos eventos
festivos. Poucas situações sociais emocionam tanto uma plateia como crianças
tão pequenas entoando perfeitamente uma canção como A lagarta, de Paulo
Tatit e Sandra Perez (1999), ou Oito anos, de Adriana Calcanhoto (2004), ou
ainda, na flauta, Sur le pont d’Avignon, do folclore francês. Para atingirmos o
resultado, sempre a necessidade de tratar os pequenos atores como unidades
numéricas, feito soldados. As consequências disto, tenho colhido vida a fora.
Até hoje recebo cartas, presentes de cidadãos gratos por terem aprendido em
tão tenra idade o domínio de um instrumento musical, como médicos que têm
na música um escape para não enlouquecerem com as rotinas da profissão, para
ficarmos com um exemplo. Tais retornos me deixam um pouco mais tranquilo,
ciente de que houve ganhos, mais do que feridas. É verdade que sempre agi com
autoridade, mas aquela intuição estranha, levando-me a apostar na loucura
também me acompanhava e o faz até os presentes dias, inclusive lecionando no
23
“Pomba, bapom!... Bomba, babom!... O bombom, bombom o!... Uá, uá, uá...”
(CHAN, 1997). Com as lágrimas a me queimarem o rosto, questionei o quanto
deveria me envolver no padecimento daqueles com quem me misturava, até
porque tive a sensação de que não suportaria tamanha entrega. Existe uma
tragédia, quando abandonamos os cânones da inteligência espacializante,
porque ao nos lançarmos nos jorros da duração, perdemos as rédeas ilusórias
com as quais fixamos os objetos no mundo. Meu pequeno flautista era uma
unidade, no meio de centenas a entoarem a Asa Branca, de Luiz Gonzaga e
Humberto Teixeira (1947), gerando uma massa sonora encantadora, nas
escadarias de um shopping center paulista. Eu poderia me manter na posição de
educador técnico, prestador de serviços, mas aquela criança, assim como outros
milhares em duas décadas, não era um número para mim, um simples soldado, e
sei que eu também não era apenas um comandante...
E aqui retomo miradas bergsonianas, ao passo que verifico a intenção
estética de Thelma Chan, ao inverter as sílabas das palavras, uma brincadeira
adorada pelas crianças, além de outras sonoridades sem sentido, como “uá, uá,
uá”... Vejo uma desconstrução da unidade vocabular, não no sentido aritmético
(fracionamento infinito), discutido em abordagens anteriores, mas quem sabe
em nome de uma emoção sonora, lúdica, e nada mais. Cantar ao contrário as
palavras parece algo bobo, descompromissado, como o brincar em geral é visto
pelos adultos, mas hoje vejo o quanto foram importantes esses pequenos
movimentos de resistência, quão significativos se tornaram para mim gestos
protagonistas, como alguém tocando flauta com o nariz! Até hoje me rendem
risos, inclusive neste instante.
Nossas crianças têm, acima de tudo direitos a serem respeitados,
prescritos por documentos oficiais, como a BNCC (BRASIL, 2018), DCNEIs
(BRASIL, 2010), RCNEI (BRASIL, 1998), Constituição Federal (BRASIL,
2012) dentre outros, mas são esmagados pela racionalidade pedagógica
cotidianamente. O logocentrismo do projeto moderno, consolidado no século
XVII, agrilhoou-os em todos os terrenos da cultura e rotinas humanas. Com
respeito à educação da infância, isto tem seculares consequências, que culminam
com a segregação, interdição, deslegitimação (FOUCAULT, 1999) de tudo o que
expresse negação de um sujeito universal adulto, masculino, heterossexual, ocidental,
cristão, branco, produtor de riqueza e conhecimento científico, que considere a
experiência intelectual como a mais importante dentre todas as realizações
humanas (JAY, 2009). Vale lembrar as bases de tal conhecimento, que há pouco
verifiquei nas abordagens de Bergson sobre o número (e pretendo enunciar
outras), inerentes ao papel pragmático da inteligência a governar nossas ações.
25
a realidade movente revelada pelo autor nos envolve mesmo a todo instante,
razão inclusive de muito sofrimento a todas as criaturas, cujas subjetividades se
produziram com um véu mais transparente, e creio não serem apenas os
artistas.
Olho neste exato instante o fundo da íris de uma cadela vira-lata
chamada Nininha. Olho e vejo pela primeira vez... Por segundos, abandono o
que sei do mundo, das coisas, de cachorro, cor, mamíferos, luz, costela, cimento,
jornal, monografia, carrapato, tudo mais... e encontro algo inominável! ... !! ... ?!
... !?... Nisto creio residir a Metafísica de Bergson. Dizer algo sobre tal sensação
é perdê-la, mas vamos lá... Olho azul claro (o outro é castanho), em torno de
cuja pupila gravitam pontinhos pretos. Jamais olhei Nininha assim... Está
surpresa, interrogativa, aguardando um passa!... Eis o encontro, naquilo de mais
simples, potente, qualitativo, de que trata o autor... Comunicação sem
linguagem! Sim, um contexto de estranheza movente...
Retomando minha história com a criançada bem-pequena, afirmo que
testemunhei diariamente seu sofrimento com o logocentrismo, regime de poder
que subjuga toda a potencialidade que um cidadão de três anos apresenta, com
suas garatujas arbóreas. Quando o encontrarmos aos dez, teremos a triste
constatação de que a árvore que desenhava na Creche, expressando criação e
autoria, tornou-se idêntica às desenhadas pelos colegas. Pensando com nosso
autor, a conclusão não poderia ser outra: a instituição escolar (e não apenas ela)
cuidou para que as linguagens e seu respectivo compromisso utilitário,
uniformizante, fossem transmitidas às crianças, num longo processo de
adestramento. As propostas pedagógicas em geral perdem de vista a
importância da singularidade com que nossos atores infantis observam o
mundo. Tenho para mim que olham, tocam, cheiram, ouvem as coisas, tal como
faço com Nininha no presente instante, sobretudo porque em tenra idade, ainda
não passaram pelo longo processo de sujeição, de aquisição dos múltiplos
códigos com os quais deverão se inserir na cultura a que pertencem. A educação
deve tornar humanos os seres humanos (DÜRKHEIM,1952).
Preciso também afirmar que a reflexão aqui empreendida não tem a intenção
de deflagrar uma cruzada contra a linguagem (destaque à palavra), o que seria, no
mínimo, ingênuo. Bergson declarou que a inteligência tem sua gênese na
animalidade, que opera no sentido de nos manter vivos na cadeia biológica,
atuando sobre o ambiente, buscando maneiras de fixar identidades no grande
fluxo do real, da diferença. Eis a base sobre a qual se desenvolve a razão. Nosso
grande dilema é que esta assumira funções que não lhe cabiam, sobretudo com
respeito ao contato e compreensão da realidade, engendrando o símbolo. O
31
Vêm-me ao presente esses fatos idos, almas infantes, não raro indóceis,
sempre pedindo presença, novidade, mobilidade. Vejo o quanto escapavam das
representações de toda a estatuária psicopedagógica, e que procurarei neste
livro mencionar.
Ao mergulhar nos moventes caleidoscópios da memória, tal como fiz há
pouco, tenho ciência de que duram, apesar do quanto mudam a todo instante,
pelo que dançam qualitativamente e se interpenetram. A pequena flautista Ana
Clara continua se movendo; a cada sorriso anil, algo dela enquanto qualidade
ontológica se mistura a outro traço, de modo que a fadinha loura vem até mim,
nebulosa, fazendo coraçõezinhos no papel para o “Tio Marlon”. Tenho essa
percepção interior, ao passo que, se for visitá-la, encontrarei uma universitária,
talvez mãe, ou quem sabe tenha fugido para o Xingu, unindo-se aos Xavantes.
Fato é que aquilo que vem do exterior também se movimenta. Nisto mais uma
3 A inferência se constitui núcleo da racionalidade, para a maioria dos autores ligados à Teoria do
Conhecimento, como Dewey (1959). Sendo racional, como poderia ser intuitiva? Apelo para o seguinte
argumento: até para falarmos de desrazão, precisamos da razão...
35
mente. Não foram poucas as vezes que os sentei em meu colo, naqueles minutos
em que estavam comigo. O cachorro que morreu, o dente que caiu, a mãe no hospital.
Os sentimentos em duração se sucedem, acontecem, interpenetram-se. Ao
separá-los, criamos representações para tais, de modo que, instalados no tempo
espacializado, possamos compreendê-los. Adverte Bergson que, com isto,
ficamos à sombra de nós mesmos. Podemos até nos certificar de que analisamos
o contexto, mas o que verdadeiramente fazemos é substituir aqueles
sentimentos por estados inertes, justapostos (como em uma coleção),
comunicados pelas palavras; estas antigas moedas, portadoras de resíduos
impessoais, pactuadas pela coletividade (1978, p. 93).
Não por acaso temos o antiedipianismo dos autores da Diferença, como
aparece nos escritos de Deleuze, Guatarri, Foucault. Poucas vezes me deparei
com tamanha solidez de uma representação para nosso desejo, quanto foi o
encontro com a catedral triádica de Freud. Prova do alcance de tal engenho
vem a ser o fato de a concepção edipiana figurar entre as célebres e históricas
representações da infância (SARMENTO, 2007), conforme veremos na seção
Considerações sobre Kronos e a criança universal abstrata. Quantas vezes
vi pareceres psicopedagógicos sobre crianças agressivas, atestando que assim
agiam porque a mãe as abandonava, ou o pai não lhes dava atenção. Claro que
se ancoravam em uma notória teoria psicanalítica, que por sua vez, alicerçava-se
em um projeto epistêmico, arquitetura inteligente. Às vezes, tenho a sensação
de que não vale a pena atirar mamonas com meu estilingue nesses paredões.
Sou um velho garoto travesso, quem sabe não esteja apenas querendo acertar
uma vidraça, pelo prazer da traquinagem...
Dói bastante a sensação de ficar à sombra de mim mesmo. Parece haver
outra vida, coisa de bicho, de duende, passando pelas margens do que me tornei.
Lançado na existência, aos cinco anos, lembro-me do Cristo crucificado no mais
alto altar, suas chagas vivas refletindo os vitrais violeta-ultramarinos que
circundavam o templo; chegava à casa do vizinho (a mãe era artista plástica,
hiper-realista, produzia afrescos de três metros por dois de altura) e me
deparava com índias nuas, imensas, naquele padrão televisivo, no meio da
floresta, fartos peitos de bronze, cabeleiras negras deslizando sobre o regato
cristalino... Naquele subúrbio da bela Sete Lagoas, MG, configuravam-se forças
que me atravessariam pelo resto da existência, dentre outras. Devo interditar
esses sentimentos, nunca foram coisa de criança, muito menos a paixão; a
devoção religiosa, tudo bem, os adultos admiram... “tão pequenininho e já se
ajoelha no quarto!” Eis a realidade: caminhamos sempre à margem de nós
mesmos. Questões me assaltam: Quando e como fui criança? Nos tijolos de
37
argila quente que buscava na olaria próxima a minha casa, esculpia sudários
elogiados... Negociações de linguagem? Os rabiscos de mulheres nuas, tinha
que rasgar imediatamente...
Sei que perdi muito do viver, sempre mais interessado na aprendizagem
do que qualquer outra experiência nas interações com as crianças. A obsessão
em ensinar um instrumento, ritmo, canção, atropelava rotineiramente contatos
(das consciências ali confinadas) com o eu interior, e todos os sentimentos,
impressões, sustos, que pudessem expressar. Uma vez fiz os pequenos chorarem
com a canção O Caderno, de Toquinho e Mutinho (1983). Houve reclamação das
mães. Nunca mais voltei àqueles versos e melodia tão melancólicos. A razão
pedagógica interdita sentimentos, devemos proteger as crianças da tristeza,
raiva, alegria, prazer, morte... O eu que vibra incondicionalmente, dura, pulsa,
apaixona-se, não é coisa de criança, você me entendeu? Pega esse livro, agora! E
para de chorar, menino! Quero ver seu caderno! Quietinho!
imagem do autor. Quanto mais misturadas as tais, de sorte que o lago se forme,
mais liberdade teremos; isto nos permite afirmar que há infinitos graus da
mesma na experiência de viver. Conforme verificamos no fragmento, a
liberdade bergsoniana não coincide com a natureza absoluta que o
espiritualismo e suas incontáveis instituições professam e prometem. Estados
conscientes, que misturam paisagens, debatem-se com as armaduras da razão,
negociando emoções espirituais, diferentemente daquilo que se almeja em um
rito religioso... no mais das vezes, o esvaziamento do eu, entrega total à
divindade antropomorfizada.
Manifestações psicológicas de grande força, como uma súbita cólera, ou
um vício incontrolável, oriundo das profundezas da alma, são elementos
independentes que, assim como outros, podem se fundir, todavia não se
constituem exemplos de atos livres. Tendo a consciência em certa medida
criado uma superfície, o que percepcionamos, inserido no centro do eu
fundamental, será um “eu parasita que invadirá continuamente o outro”
(BERGSON, 1978, p. 117). Confesso que tal asserção reverbera grandemente
sobre a percepção que tenho de mim mesmo: aquela sensação de ser guiado por
certas maneiras de agir, sugerindo traços relevantes de personalidade, em geral
deixam pistas de uma realidade interior que transcende essas marcas de um eu
parasita, contaminado, acuado pelas forças da inteligência.
Eis uma ilustração inspirada nos escritos bergsonianos: a vontade de
matar um inimigo, que faz termos a terceira maior população carcerária do
planeta, exemplifica, salvo melhor entendimento, o que seria uma expressão
daquele parasitismo. Assim o entendemos por não promover ações que revelem
a duração profunda, em que se insere o contexto do eu primordial. Quando se
comete um crime, sob forte emoção, não existe liberdade, posto que esta sempre
reflete a realidade interior, em maior ou menor medida, a orientar a ação.
Destarte, inferimos que uma existência pautada por rotinas de liberdade se
constitui um ideal a ser seguido. Bergson afirmou que atos livres são raros,
mesmo quando praticados por quem se dispõe a meditar sobre o que faz. Não
seria diferente, tendo em vista o papel dos mecanismos da inteligência, a
mediarem utilitariamente os contextos entre a consciência interior e sua
expressão externa (não estou aqui retomando aquela conhecida dicotomia
cartesiana). Nosso eu pleno, concreto, conforme já procurei enunciar, é refém de
toda uma cristalizada rede de símbolos de caráter psicológico, fixos e
justapostos, verdadeiros diagramas que têm a função lógica de portar, cada uma
a seu turno, os sentidos decodificáveis e partilháveis socialmente. Esse cenário
há muito me persegue, os estudos semióticos aprofundaram em mim a sensação
44
CAPÍTULO II
NOMES A MENOS
4 Expresso aqui minha satisfação ao reconhecer também no fragmento analisado o quanto este trabalho em
termos metodológicos busca a realização daquelas proposições, articulando a surpresa prazenteira de coletar
53
escritos bergsonianos, analisando-os no encontro com memórias de minha vida e carreira na docência. Faz anos
que venho nutrindo o desejo de produzir textos nessa heurística, sempre receoso de uma má recepção no
contexto acadêmico, destaque aos pareceristas dos periódicos, cuja rabugice não raro matiza as borrachadas que
nós, pesquisadores, levamos no lombo e na alma (quase sempre, merecidamente...).
54
nossos sentidos. A percepção estaria tanto nos órgãos sensoriais, quanto nos
centros motores.
Na contramão dos arranjos subjetivos modernos, solipsistas, a velha
dicotomia interior / exterior (no registro bergsoniano, conforme já declaramos)
diria respeito à distinção entre nossa imagem e as outras do entorno, havendo
destarte a necessidade de que o corpo marche da “periferia da representação ao
centro, como faz a criança” (1978, p. 47). Não é assim que atuam os teóricos,
admoesta o filósofo, em geral rumam seu agir do centro para a periferia. Torna-
se um contrassenso partirmos de um eu consciente, caminhando para a periferia
corpórea e a superfície de outras imagens. Em verdade, estamos lançados na
materialidade, da qual constituímos um centro de ação, a nos diferenciar de
outros corpos. As crianças têm muito a nos ensinar epistemologicamente; não
por acaso, Bacon defendera deixarmo-las virem, porque delas seria o reino da
ciência (DEWEY, 1959), parafraseando o texto bíblico. Em milhares de
situações em que estive no meio dos pequenos estetas, uma motivação
permanente me guiava: vinham como esponjinhas, desarmados (e não vou aqui
cair na armadilha de idealizá-los, embora me encantem), sempre explorando o
que tinham à mão, sem pré-julgamentos, entregues à pura novidade, atuando
sobre as cores, texturas, formas do mundo, potentes investigadores. Quantas
vezes nos jogamos juntos na exterioridade do existente, fuçando as coisas, atrás
de sons, texturas, esquisitices naturais, como o canto das cigarras...
5 Já meditei sobre o termo nortear, provocado que fui por autores decolonialistas e reconheço-lhe o
caráter ideológico. Fica difícil pensar em outras expressões como “sulear”, ou “lestear”... Preciso me desapegar,
enterrando de vez a palavra, não será fácil.
59
6 É comum ouvirmos o descalabro de que na Educação Infantil as práticas precisam ser interdisciplinares. Vale
ressaltar que, para o serem, deverá haver disciplinas, conforme ocorre no Ensino Fundamental, e um tema
comum a todas, por exemplo: a importância da água. Um projeto pedagógico interdisciplinar, concluindo, em
nada coincide com o contexto da Creche e Pré-escola. Infelizmente existem instituições que atuam nessa
perspectiva, sobretudo com as faixas de 4 e 5 anos, verdadeiros anexos propedêuticos dos Anos Iniciais do
Ensino fundamental.
63
polegar por trás, fechando o único orifício daquela região do tubo). Refiro-me a
uma caminhada de dez meses. Ao final de cada ano, tinha a satisfação de
verificar que o que era memória mecânica passaria ao domínio do eu; da ação
motora para a apreciação espiritual. Quantas brincadeiras inventei, naquelas
rotinas adestrantes, para que, um ano depois, tivesse e emoção de ver os
pequenos, muitos de olhinhos fechados entoarem uma melodia como “Na
floresta”, do folclore russo. Há alguns meses, recebi de presente uma flauta de
madeira; o remetente era uma daquelas crianças, hoje médico anestesista em
São Paulo. Ele ainda escreveu todas as partituras que tocávamos. Fiquei tão
impactado que compus para o mesmo um chorinho intitulado Dr. Rafa.
a cada esquina, considera ali as mais diversas opções, cujos movimentos não
antecipam nada que venha adiante. Após um tempo naqueles espaços, circularia
de modo mais automatizado, sem uma percepção muito atenta dos objetos
observados. O autor pondera que, entre os extremos perceptivos de não haver
nenhuma organização de movimentos (que rua devo seguir?) e outra que os
ordenou, a ponto de se poder confiar em certo hábito ali engendrado (já vi que as
quadras tem cerca de 100 passos), existiria uma perceptibilidade mista, que intui
objetos em movimentos contínuos, intercomunicantes. Retomando, teríamos
uma percepção bruta, crua, cuja situação não iria além de olhar para si mesma
(preciso caminhar, estou perdido), remando para uma condição em que, no limite,
apropriamo-nos do automatismo. Nesse interlúdio psicomotor, haveria uma
crescente automatização (p. 104). Com isto, o autor afirma que o fenômeno
motor estaria na base do reconhecimento. Ao acolhermos o objeto, teremos nisto
a finalidade de nos servirmos do mesmo, adaptando-nos mecanicamente a seus
traços, orquestrando-se uma gama de movimentações, reflexos, enfim de
operações do hábito que fundamentariam o reconhecer. Vejo nessas ilações
grande valor para as reflexões sobre o bebê e a criança bem-pequena, sem com
isto aludir às fases do desenvolvimento infantil, como as Ciências Educativas
tendem a fazê-lo.
Seria aligeirado, senão indecoroso, definirmos o reconhecer apenas nos
termos motores, condição de uma consciência utilitária, atualizante, assentada
nos mecanismos de ação sensorial. Existe um pântano interditado, sobre o que
já lançamos neste livro muitas impressões, memórias que irrompem pelas
fraturas naquela sólida maquinaria do presente, dando passagem ao que nos
constituiu... “luz marinha e onda / E nesse avanço da espuma / Fundou meu
coração seu movimento” (NERUDA, 1996, p. 229). Havemos de nos esforçar
para, dentro do possível, contermos o afã do agir presente, que faz com que
nossa percepção nos empurre ao que vem adiante. Indago: com que forças
devemos remar? A compleição corpórea imprime coices prospectivos, nesse
devir movente, festivo e trágico. Imperiosas tensões nos atravessam, urgentes;
demandas ordinárias nos devoram as libélulas azuis que fagulham ao espelho
dos regatos interiores, as que escapam conseguem ainda passar por essas frestas
no granito em que nos algemamos, herdeiros do parvo Prometeu. Ocorre
conosco que temos dia e hora para abandonarmos este corpo-imagem,
recompondo-nos em outras figurações. Então, vamos...!
69
Reconhecimento atento
aspecto, quando ouvimos outra língua em que não somos fluentes. Repare-se
que ao nos depararmos com um enunciado como: Good to see you again!7,
repetiremos a frase interiormente capturada pela percepção... nossos arquivos
auditivos serão evocados, cujas impressões emergem à consciência. A percepção
crua dos sons apresenta uma continuidade assentada em conexões sensório-
motoras adestradas pela repetição. A consciência, nesse sentido, promove uma
decomposição dos dados sonoros. Há uma visceral ligação entre os sons e as
respostas motoras, que maneja o fluxo de lembranças que vão ao encontro das
percepções. Sempre nos vale ponderar sobre a capacidade das palavras que
ouvimos travestirem-se de matizes semânticos os mais diversos, conforme são
entoados – altura, timbre, volume, enfim traços musicais, fonéticos... tudo isto,
não nos esquecendo da dimensão gestual e aspectos suprassegmentais da língua
(LEBEN, 1973), dados qualitativos em que até o silêncio, como nas pausas
entre as frases, vem prenhe de significados –. A comunicação oral conta, além
de aspectos motores, com o trabalho intelectual, de modo que todos esses
elementos semânticos possam ser identificados. Bergson afirma que os
“movimentos interiores de repetição e reconhecimento são como um prelúdio à
atenção voluntária. Assinalam o limite entre a vontade e o automatismo”
(BERGSON, 2010, p. 133).
8 Título original: On the waterfront (1954), direção de Elia Kazan; elenco: Marlon Brando, Eva Marie-
Saint, Karl Malden, Lee J. Cobb, Rod Steiger, dentre outros; o filme levou oito prêmios Oscar em 1955.
78
cicatriz sobre a mão, assim, não é lembrança pura). Ainda que possa despertar
manifestações orgânicas, materializando-se, não podemos afirmar que ela seja
da mesma natureza da sensação atualizada, sobretudo porque deixará de ser
lembrança, constituindo-se objeto presente. A lembrança pura pertence aos
domínios do espírito e não mais do corpo. A palavra, uma vez proferida, também o
será, enquanto imagem acústica, elemento inteligente e espelho do mundo.
Há, por parte destas, adverte o filósofo, uma atuação também no sentido
de se recobrarem lembranças perdidas, silenciadas no breu da inconsciência. A
memória, assim, apresentaria uma via de mão dupla: se, por um lado, o passado
total fundamenta a ação presente, por outro, esta o resgata, iluminando-o. Com
relação a tal dinâmica, Bergson reflete sobre as crianças, cuja memória
espontânea desenvolve-se de modo extraordinário (2010, p. 180). Com elas, não
temos ainda o arranjo de que tratamos, pelo que não há comprometimento entre o
virtual pretérito e o atual que avança. Os pequenos agem à revelia das lembranças, uma
vez que a inteligência ainda não se estabeleceu por completo, ordenando-as. Ao passo
que isto se consolida, temos a sensação de que a memória se limita, contudo o
que ocorre vem a ser o alinhamento entre a mesma e as ações presentes.
A memória infantil, por não ser ainda refém da utilidade, alinha-se ao
contexto do sonho, devaneio, fantástico. Ao passo que o sofrente avança em
anos, atingindo a adultez, vai se agrilhoando aos mecanismos de ação que têm
como fundamento primal a pragmática função de adaptação ao meio e
manutenção da vida, reafirmamos uma vez mais.
Creio de modo convicto que meu fascínio pela infância (razão deste livro
e de duas décadas lecionando na Creche e Pré-escola) se dá, dentre outros
motivos, pelas relações dela com o sonho. Aqui apresento um traço do que seria
a infância do movente. Conviver com os miúdos atores sociais tem me
proporcionado dias de novidade, graça, poesia do cotidiano, por razões
longamente expostas até aqui. Não se trata mais de uma fase da vida, como queriam
os desenvolvimentistas, mas de duração menos contaminada pela utilidade, nosso eu não
tão refém da linguagem e todas as artimanhas da razão instrumental; um corpo
brincante, lançado ao acontecimento, a coordenar sua memória pelos caminhos da
fantasia e do imponderável, apesar da instituição escolar.
reducionismo pensarmos que o real supõe apenas atualidade, ainda que resgate
o remoto passado. Na penumbra do tempo, infinitos objetos duram, sem ser
percebidos... desde a residência de desconhecidos orientais, localizada à quadra
seguinte de seu endereço, até mesmo a cor das paredes de minha primeira
escola. Ingenuidade crermos que um sabiá, cujo canto ouvimos por alguns
segundos, passaria a existir somente porque nossos sentidos o capturam. Não
será difícil encontrar um conciso sistema filosófico que nos leve a crer em
tamanha pretensão subjetiva. O senso comum pelo menos tem mais humildade,
ao reconhecer que as coisas não precisam de nós, podem ser à nossa revelia e,
assim, constituírem-se objetos inconscientes em relação a quem não as percebe.
Isto parece claro com respeito aos entes externos e pantanoso, se tratarmos de
lembranças abandonadas, exauridas, desimportantes.
A I B
Fonte: Bergson (2010, p. 167)
Figura 2 Diagrama para o inconsciente
artificial (p. 173). E não são poucas as vivências que atestam tal aspecto
caricato. Basta um sonho em que as cancelas e grades da interdição moral caiam
por terra, para termos uma crua e realista imagem, provando que o que nos
passou continua no tempo (movendo-se, recriando-se) para horror do instinto
utilitário. Qualquer atitude tomada espelha o caráter, o bico do cone invertido e
suas estocadas ferindo o presente, ou no encontro perpendicular entre AB e CI.
Como é difícil considerarmos a realidade do inconsciente em tal conexão! Há
um crucial embate entre a necessidade espacializante do agir e a qualidade
caótica e contingente dos aspectos interiores não percebidos; tal polaridade se
condensa naquilo que denominamos experiência.
Impressões inquietantes sobre a aprendizagem...
no tempo, objetos/afetos se fundem
Eis uma obviedade no que vou afirmar, um velho clichê pedagógico: nós,
educadores, influenciamos muito as crianças e adolescentes, com quem
85
9 No princípio fundamental da identidade, temos que a coisa que é coincide tautologicamente consigo mesma,
como na fórmula: A é A. Um exemplo disto seria: ornitorrinco é ornitorrinco. Intimamente coligados, temos dois
outros princípios lógicos, o da não-contradição – A não é não-A (o que é não pode não ser, ao mesmo tempo) –,
que determina: ornitorrinco não poderá ser um não-ornitorrinco; e o do terceiro excluído: uma coisa é ou não é,
exclui-se uma terceira possibilidade. Eis a fórmula: A é x ou Não-x, que prescreve: Ou aquilo é ornitorrinco ou
não é ornitorrinco (ARISTÓTELES, 1969).
87
naquelas lágrimas lancinantes uma dor imensurável, que não cabe nos
diagnósticos psicopedagógicos. E podem começar lá na Educação Infantil. Por
ganhar a confiança de muitas crianças, fiquei sabendo certa vez que fizeram até
um casamento!, logicamente que a léguas de distância do olhar da professora
(jardim II, 5 anos)... Nas rotinas lúdicas, as crianças recriam o mundo dos
adultos, buscam entender o que lhes é negado, resistem. Tenho uma amiga
docente que enterrava suas bonecas. Eis a brincadeira como mecanismo do
fantástico a propiciar situações em que os pequeninos enfrentam seus medos,
dúvidas, sempre imersos nas pressões que o mundo objetivo e social lhes impõe.
Espanto-me em pensar que, já na Creche, o ser matriculado viverá ali uma
experiência que supõe tudo o que tenho discutido nessas reflexões, certamente
se lançando em um devir único, inefável. Cada massinha modelada carrega
respostas pelo que estimulou no espírito infantil; o que se passa naquele
movimento transcende ao infinito a compreensão pedagógica, muito embora
nós, educadores, tenhamos a ilusão de gerenciarmos a atividade. Este livro tem
me ensinado que ficamos com o recorte do recorte do que efetivamente
acontece. Um exemplo para tal é o costume rançoso de querermos interpretar
os desenhos dos pequenos, pedindo que nomeiem cada objeto ilustrado. Isto
revela o governo até da expressividade, em uma tentativa de estabelecer fixidez
sígnica para o que é movente, qualitativo, duracional e até inconsciente.
A ludicidade é para mim uma área de pesquisa muito cara, tenho
produzido artigos, capítulos de livro, palestras, além de ter ministrado, por
vários anos, a disciplina Brincar e Educação, no curso de Pedagogia da
Universidade Federal de Rondonópolis, Mato Grosso. Este livro não
contemplaria o espírito criança se não dedicasse uma seção pelo menos às
relações entre o ludus e a duração consciente, contextos de experiência que
podem atingir o inominado, lançados ao fluxo das coisas em seu devir.
Reconheço o quanto os estudos sobre o brincar podem ser beneficiados à luz
dos escritos bergsonianos, sobretudo ao pensarmos uma ontologia da infância,
mas vale-me ressaltar que tal interface teórica por si seria merecedora de
muitos livros. Assim mesmo as abordagens a seguir buscarão aproximações
possíveis, sempre atentas ao melhor entendimento, entre a marca subjetiva da
brincadeira e as descrições gnosiológicas bergsonianas, uma mirada epistêmica
em grande medida.
89
campos que não lhe dizem respeito, sobretudo inerentes à duração psicológica,
veremos novas nuanças na ludicidade. As emoções desta (TREVISAN, 2018)
não serão mais enquadradas como modus operandi inteligente, ferramentas para
ensinarmos coisas às crianças, dentre tantos flagelos que os discursos
pedagógicos promovem. Vejo isto como possível, desde que, com aquele
reposicionar do entendimento, a intuição possa ser resgatada (no cotidiano
docente), lançando-nos com os pequeninos na natureza íntima da ação, puro
durar, acesso a experiências livres, sem as deformidades da representação
simbólica e toda sorte de utilitarismos. Intuição e inteligência amalgamadas,
fundidas no encontro com o movente, em lúdicos presentes... apresente-se...
presenteie-se!... Reconheço que uma experiência intuitiva requer reflexão e
maturidade, exercício filosófico, o que torna forçoso atribuir ao espírito criança
condições de ter vivências intuitivas; então aposto em situações psicológicas
não intelectualizadas, pré-intuitivas, posto que livres dos grilhões inteligentes...
e o brincar poderá ser duração.
CAPÍTULO III
ADMINIMISTÉRIO
ao etapismo e o entendimento de que a infância seja uma fase da vida, não por
acaso temos a Psicologia capitaneando tal paradigma. Parece-me inegável a
importância dessas contribuições para a Didática (e o planejamento), de modo
que os saberes pedagógicos se revelam devedores daquela tradição. Afirmo,
contudo, que a cristalização de tais doutrinas levou à representação de uma
criança universal, cuja experiência se metrificou, de tal sorte que as fases de seu
crescimento corresponderiam, a meu ver, à justaposição e alinhamento de
segmentações etárias, quase como “partes que se tocam, sem se penetrar” (p.
73), em simultaneidade. O percurso (termo espacializante) daquela consciência
será crivado por marcadores temporais, abortando-se a sucessão. Os termos da
experiência temporal são discriminados, ocupando espaços em uma ordem.
Uma vez tornada simultaneidade (perfilamento de elementos), a sucessão, que
se revela potente na vida infantil, inefável, sobremaneira criativa, passa a ser
diagramática, cartesianamente mensurável pelos processos abstrativos
psicopedagógicos. Quem contudo trabalha diariamente com os miúdos, se olhar
bem para eles, ouvi-los, tocá-los... saberá que está diante de seres singulares,
desejantes, brincantes, profundamente criativos, provocadores, investigadores,
com os quais poderá ter encontros no lugar de aulas. Para tanto, há que se ter
coragem, porque se trata de perder às vezes o famigerado e miserável “controle
da turma” e isso tem um preço com o qual nem sempre podemos arcar.
Nas linhas a seguir, apoiando-me em Sarmento (2007), buscarei enunciar
de que modo a cultura dita ocidental10 tem concebido a infância. Farei isto para
melhor situar o objeto central de reflexão deste livro, reafirmando: o
entendimento da infância como realidade móvel, qualitativa, contingencial,
indeterminada, o que, raciocinando ceticamente, poderá se tornar mais uma
construção simbólica da infância! Seja assim então, acontece também com a
produção artística. A inteligência coloniza tudo o que criamos. Importa
seguirmos, um dia de cada vez. Apresentarei brevemente as representações
modernas e contemporâneas, realçando o quanto revelam de procedimentos
como a homogeneização, espacialização, metrificação temporal (etapização),
cristalização sígnica, de modo que busquemos possibilidades de refletir sobre a
realidade da criança noutros registros, à luz dos escritos bergsonianos. Quem
sabe a criança da intuição! Um eu profundo ainda não capturado pelas algemas da
inteligência: espírito, virtualidade e vontade, pura duração...
10 Veja-se neste adjetivo (ocidental) o caráter ideológico, eurocêntrico, de tal modo naturalizado, que sequer
cogitamos questionar: ocidental para quem? Será que um taiwanês ou indiano se considera oriental?
100
11 Peço desculpas sinceras aos leitores de Piaget, Vygotsky, Freud, e todos os que aqui menciono, a título
de ilustrar o que seriam concepções de infância. Se fosse abordá-los em profundidade, consoante sua importância
para os estudos em Educação, não haveria linhas suficientes. Reafirmo uma vez mais que o intento pretendido é
o de refletir sobre as representações sociais acerca da infância, orientadas por uma inteligência científica, quando
não pelas opiniões do senso comum. Bergson teria, a seu turno, dialogado com autores positivistas em especial,
apontando-lhes os limites de constructos teóricos alicerçados na linguagem e no símbolo, homogeneidade e
espacialização. As perspectivas aqui elencadas nos mostram em linhas muito breves os caminhos que trilhamos,
a fim de compreendermos o mundo das crianças. Isto fiz para poder inserir nesse grande campo de estudos
educacionais – as teorias sobre a infância – a perspectiva da infância do movente, segundo as inspirações
conceituais de nosso filósofo, Henri Bergson.
104
Não pretendo destrinçar reflexões sobre sexualidade, posto não ser objeto
de análise do livro, mas deixo aqui pontualmente a asserção de quanto f(s)omos
reprimidos, em especial por termos que corresponder à índole do infante
cristão, puro e imaculado. Nosso eu, ao debater-se com as lâminas de tal
ordenamento da linguagem (FOUCAULT, 1999), desde os primeiros instantes
no mundo, arca com martirizantes interdições, o perigo de sermos associados a
pervertidos, crianças endemoniadas, “precoces”.
Outra consequência das construções simbólicas acerca da infância: em
nome do cuidado, “proibimos” o trabalho infantil; existe toda uma legislação
para tanto, destaque ao ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL,
1990). Curioso é que ninguém perguntou aos miúdos o que pensam sobre
trabalhar, muito embora estes o façam nas escolas, em casa (atividades
domésticas), na rua e outros ambientes (QVORTRUP, 2011). Ressalto tal
aspecto também no intuito de afirmar, juntamente com minha amiga Carmem
Sussel Mariano (2010), que um direito ainda mais aviltado vem a ser a
representação política infantil. Constituem-se categoria social permanente,
trabalhadora, intergeracional, produtores e consumidores de cultura, mas
nenhuma voz na polis. Seria surrealista (não para os defensores da infância)
termos um vereador, deputado ou senador criança; prova do quanto elas pouco
podem falar por si. De todos os segmentos segregados, constituem-se o mais
aviltado.
As imagens sociais pautadas na imperfeição, incompletude, dependência e
transitoriedade, conforme já afirmamos, consolidaram-se com as contribuições
da Psicologia do Desenvolvimento (SARMENTO, 2005). A concepção da
infância como fase da vida, futuro do país (perpetuada pela pergunta: “o que
você vai ser, quando crescer?”), entende implicitamente que ela nada é, em seu
presente e singularidade, negando-se sua cidadania, protagonismo e agência na
sociedade.
A instituição escolar é pensada pelo/para o adulto, refletindo de várias
maneiras essas construções simbólicas acerca da infância, que orientam desde
sempre currículos, propostas formativas planejadas para um ser abstrato,
pensado em etapas, produto de uma inteligência universalizante, prospectiva,
mercadológica. Claro que há ganhos e virtudes em tais projetos humanistas,
inclusive a própria resistência de meninas e meninos, manifesta nas culturas
107
Esta seção me parece a de maior relevância até então para a obra que
busco produzir. Isto afirmo, tendo em vista que as asserções a serem
(re)apresentadas tratam de Metafísica especificamente, tal como Bergson a
propõe. Vejo que o autor na verdade promove um admirável resgate da milenar
discussão, o que faz paulatinamente em Matéria e Memória (2010), dentre outras
produções, e que busquei acompanhar em linhas gerais, articulando-as a
lembranças de minha carreira na Educação Infantil. Existe no quarto capítulo
daquela instigante obra uma síntese de todas as abordagens, conceitos e não
apenas isto: o autor irá discorrer ainda mais acuradamente sobre as
possibilidades de um encontro nosso com a realidade para além da percepção
108
12 Perdoem este termo, mas a educação tradicional, que a mim sustentou e à prole, toca há séculos programas
curriculares transmissivistas, adultocentrados, com os quais sempre me debati, conseguindo pequenas vitórias,
tanto na Educação Infantil, quanto no Ensino Médio, assim como várias demissões, pelo perfil pedagógico meio
anárquico, averso àqueles regimes de poder.
116
ficar olhando com as crianças figuras nas nuvens, fazem-me pensar no retorno à
Educação Infantil, compromisso que abandonei pelo Ensino Superior. Quem
sabe nos futuros projetos de extensão universitária ou mesmo após a
aposentadoria...
Se eliminarmos os equívocos milenares acerca de como acessamos o
universo material, sobretudo nos livrando de nós mesmos e da velha
prepotência solipsista, subjetividade com aspirações olímpicas, haverá caminhos
já enunciados neste livro para o resgate da Metafisica, contextualizado agora
pela extensão da alma (intelectualmente inextensa); uma vez deste modo
considerada, cujo papel verificamos na “passagem gradual da ideia à imagem e
da imagem à sensação” (p. 259), caminhando para a atualidade e portanto
indivisibilidade, torna-se crível que o espírito atue sobre a matéria, ocasião da
percepção pura, havendo assim uma união, em que pese, segundo o autor, a profunda
diferença entre matéria e a memória. Se nos ativermos ao último fragmento
transcrito, presente no parágrafo, veremos que o início do encontro se
caracteriza pela ‘ideia’, ainda que pregada ao instante sensorial; esta se constitui
inequivocamente atributo da consciência e duração.
Bergson, ao iniciar o capítulo 3 de Matéria e Memória, pontua
didaticamente movimentos na relação do objeto com o espírito. Para tanto,
reflete sobre os correlatos lembrança pura, lembrança imagem e a percepção. Sobre
o modo de agir desta, declara o autor, há a concorrência efetiva da lembrança
imagem, que interpreta o estímulo externo, recolhido e em grande medida
filtrado pela inteligência. Embora virtual e muitas vezes adormecida, a
lembrança pura abriga todas as lembranças imagens que, ao serem evocadas,
vão ganhando materialidade e tons expressivos, até alcançar a superfície do
atual (2010, p. 156). O autor lança mão de uma analogia, para explanar sobre
este aspecto: os mecanismos conscientes mergulham no passado profundo,
selecionando do mesmo certa região, tal como faríamos com o foco de uma
máquina fotográfica... ainda em estado de virtualidade, os conteúdos
mnemônicos nebulosos vão se condensando de tal modo que se atualizam,
alinhando-se à percepção mimeticamente. O autor ressalta que o que confere à
memória profunda o reconhecimento de sua natureza virtual é o fato de ter uma
relevância no presente, no devir – movimento da própria vida.
Outra demarcação teórica feita pelo autor destaca a distinção entre
imaginação e lembrança: a primeira diz respeito à faculdade de criarmos imagens.
O senso comum tende a concebê-la como a habilidade onírica, fantástica.
Podemos sim formar imagens oriundas do passado, como temos a prerrogativa
de criarmos outras, com endereços múltiplos, inclusive inéditos, desprovidas de
117
13 Alusão à canção Funeral de um lavrador, de Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto, composta para o
álbum Morte e Vida Severina (1966).
118
trazerem para seus corpos as extensões e sentidos do mundo, para que suas
vivências perceptivas sejam plenas. A seguir, um excerto do autor que lança
mais luz sobre a percepção: “Na interioridade da sensação afetiva consiste sua
subjetividade, na exterioridade das imagens em geral sua objetividade”
(BERGSON, 2010, p. 273). Veja, leitor(a) que, embora seja um atributo
corporal, a afecção se interioriza, marca a superfície, como uma tatuagem,
todavia se inserindo nos domínios subjetivos, que não são ainda memória; as
imagens externas, por sua vez, objetivam-se, pertencentes ao escoar da
mobilidade. Bergson alerta para o erro de considerarmos sensação e percepção
como independentes em existência, concebendo-se a primeira como inextensiva,
previsível, e o que é pior: a formação de imagens no espaço, a partir disto. E
como consequência:
Não se consegue assim explicar nem de onde vêm os
elementos de consciência ou sensações, tomados como
absolutos, nem de que modo essas sensações, inextensivas,
juntam-se ao espaço para nele se coordenarem, nem por que
elas adotam aí uma ordem em vez de outra, nem,
finalmente, de que maneira chegam a constituir uma
experiência estável, comum a todos os homens.
(BERGSON, 2010, p. 274)
Vemos aqui, uma vez mais, o papel da inteligência e da linguagem,
matando no nascedouro as afecções, ao lhes negar o caráter extensivo, pela
dificuldade, inclusive de localizá-las, compreendê-las. O que afeta nosso corpo
pode ter uma origem polimorfa, multissêmica... melhor reduzir o dado a algo
inextensivo, como uma impressão fugaz, estereotipada, e então procurarmos
associá-la a imagens espacializadas... Bergson defenderá o caminho inverso: a
percepção pura, imagética, deverá ser o ponto de partida, insistindo: “E as
sensações, longe de serem os materiais com que a imagem é fabricada,
aparecerão como a impureza que nela se mistura, sendo aquilo que projetamos
de nosso corpo em todos os outros” (p. 274). Uma vez mais afirmamos a
originalidade da concepção gnosiológica bergsoniana, sobretudo ao propor uma
heurística invertida, com relação ao empirismo e outros sistemas. Devemos
partir da consciência interior e suas paisagens temporais, para o encontro com o
mundo e, diferentemente do Romantismo (que o deformava pela subjetividade),
teremos na contingência das sensações externas que nos afetam, possibilidades
de transformarmos o entorno, naquilo que é acidental, novidade, e recebe
nossas marcas. O que lançamos ao exterior são imagens amalgamadas aos
dados colhidos pelas sensações... nosso corpo impacta assim outros corpos,
120
14 Evitemos o termo preconceituoso, melhor algo como clínica de idosos, ou casa de repouso.
123
(imagens agora conscientes), ou ainda uma casa abandonada em que ateei fogo
(não me lembrava disto, seria interdição?), infância mineira... Engraçado
perceber que há luxo no terror. Recobro surpreso a imagem de dezenas de
pessoas, meu pai à frente, carregando em correria baldes d’água, para debelarem
o incêndio... Curioso é perceber que não apanhei com o malfeito, tampouco
quando queimei um colchão, ou ainda a jogar na fogueira um vidro de spray
para vê-lo explodir... desconfio que meu progenitor deveria nutrir algum
secreto desejo de fazer o mesmo, ações piromaníacas! Por muito menos,
levávamos cascudos, cintadas, ripadas, chinelos nas costas a deixarem a carne
minando. Bergson, meu farol, creio que o fogo figura como luxuosa lembrança,
ainda que também associado à tragédia, ocasião dos corpos que vi queimando
em acidentes automobilísticos, vida a fora... Há inequivocamente movimento e
transformação naquele objeto/evento, como no mito de Aquiles, ao ser
queimado vivo na pira acesa pelo amigo Filoctetes (BULFINCH, 2001).
Cansado das mazelas cotidianas, mesmices civis, ciúme de Dejanira, imolara-se
o herói, para surgir imortal no céu, corpo transfigurado, incorruptível,
desposando a deusa Hebe (anos atrás poderia ser vista no SBT). A chama nos
acompanha desde as mais priscas eras, passando por Prometeu, Nero, o
Vesúvio, o metal derretido e a guerra... poucas substâncias se transformam
tanto no plasma ígneo... memórias de luxo! Não mais inconscientes...
As próximas linhas versarão sobre o principal objeto de análise da obra A
Evolução Criadora (1979), a saber: que aspectos se organizam para constituírem
os seres vivos. Apresento desculpas aos bergsonianos pelo que não abordarei,
tendo em vista os limites de minha retina pedagógica e do livro. Procuro
refletir, na presente seção, sobre os nexos possíveis entre a descrição do filósofo
acerca do contexto orgânico e a natureza da infância; melhor afirmando,
perquirir que achados teóricos podemos amealhar, pensando com o autor tais
relações. Discutir a vida em seus caminhos, as representações que construímos
para ela, se tivermos fôlego para tal, poderá se constituir um potente veio,
manancial a sustentar novos olhares para o universo da infância. Antes de
seguir buscando essas aproximações, tecerei análises acerca de como o autor
entendia o movimento dos sistemas vivos, em uma perspectiva mais próxima da
Biologia; isto farei, por diversas motivações, das quais destaco a necessidade de
atender minimamente ao percurso que o autor fez, de modo a chegar aos temas
que mais me interessam, como o impulso vital, a memória, a vontade, o amor...
nuanças dos organismos vivos que indubitavelmente contribuem para
pensarmos ontologicamente o ser criança.
126
15 Perspectiva biológica que se aproxima da Física e da Química, sobretudo porque temos uma base comum,
tanto para o contexto orgânico, como para o inorgânico: a matéria; buscam-se então hipóteses migradas das
Ciências duras, cujos objetos primam pelo molecular, decomponível, recortando ângulos da totalidade, para se
comporem representações.
16 Doutrina que entendia os seres cumprindo um programa traçado, eliminando o tempo (assim como o
mecanicismo) e a novidade, mas se guiando pela sucessão palpável dos eventos naturais, matematizados, a
projetarem um futuro previsível, teleologia.
127
se com tais tensões, melhor evitarmos a pergunta, sobretudo pelo que carrega
das pretensões da utilidade, dentre o que destacamos o controle do que
vivemos, somos, sentimos... sobre como agimos, enfim. Bergson afirmara que os
seres, abrigados em suas espécies, ao buscarem estabilidade, imitam tão
competentemente a imobilidade (e seus regimes de necessidade) que chegamos a tratá-los
como coisas, algo que viria da Biologia aristotélica. Temos nisto a hipertrofia do
olhar epistêmico tradicional, pedante, convicto de seus apodíticos teoremas,
mas que perde o contato com aquilo que progride, transforma-se, movimenta-se
em criação.
Para Bergson, ao considerar a expansão vital:
Tudo se passa como se o organismo por sua vez não fosse
mais que uma excrescência, um rebento que faz sobressair o
germe antigo pugnando por se continuar num germe novo.
O essencial é a continuidade de progresso que prossegue
infinitamente, progresso invisível sobre o qual cada
organismo visível cavalga durante o breve intervalo de
tempo que lhe é dado viver. (BERGSON, 1979, p. 34)
Aqui temos a memória promovendo a segmentação e transmissão de um
impulso, carga de energia que migra e se multiplica. A imagem da cavalgadura
me parece um tanto sugestiva, lembra-me a metáfora do corcel selvagem,
indomável, sem celas, que exprime o pensamento acelerado, recorrente na
Literatura. Gosto muito da figura equina, tanto pelo que me parece significar
no excerto analisado – expressão do progresso infinito e invisível de cada
organismo –, como também pela própria consciência que cavalga na evolução
da vida. E quando desta tratamos, referimo-nos a produção de novidade, aquilo
que vem à existência. As Ciências, todavia, governadas por preceitos da
inteligência, buscam padrões, isolando o que se repete, o idêntico, empenhadas
em prever, controlar, registrar os fenômenos, tal como o fazem com o meio
inorgânico. Vale-me reafirmar que a inteligência também é fruto do processo
evolutivo dos sistemas orgânicos, mas se nega a pensá-los na duração, porque isto
supõe atuar sobre o movente (passando a reconhecer nela o mesmo
movimento), perdendo o que existe de “irredutível e irreversível nos momentos
sucessivos de uma história” (BERGSON, p. 36). E quão inóspito se torna o
percurso de voltarmo-nos contra tais hábitos gnosiológicos, a ponto de se
constituir isto violência ao espírito (p. 36). Parece-me bem mais confortável
pensarmos que o imprevisível novo se constitui em apenas aparências. O que
seria falaciosamente original, pondera o autor, não resiste, se submetido a uma
análise em que se decomponham os sistemas orgânicos em estados sucessivos, a
129
agilidade, exercícios mais livres quanto maior for a distância dos regimes
necessários e circulares do instinto, distribuindo funções, ampliando
artificialmente formas de resolução de problemas. A inteligência, ao multiplicar
as ações do indivíduo sobre a matéria, dirá Bergson, satisfazendo uma
necessidade, cria outra, mais outra, e assim ad infinitum. Para facilitar nosso ir e
vir, utilizávamos há tempos um jumento... hoje, podemos dispor (com sacrifício)
de jato sobre duas rodas, a Suzuki – 1300 cilindradas, capaz de chegar a 350
km/h. Toda instrumentalidade inteligente é, por definição, imperfeita, porque
atua sobre a contingência do mundo, acoplando-se à natureza do ser que o
criou, enriquecendo-a, prolongando-a. Isto me remete a uma obra clássica dos
estudos de linguagem: Os meios de comunicação como extensões do homem
(MCLUHAN, 1969). Impressiona-me como a descrição que Marshall McLuhan
faz de nossas aquisições tecnológicas (prolongamentos de nosso corpo) se
alinha ao raciocínio bergsoniano, com uma diferença: para o autor canadense,
cada extensão criada nos amputa algo... se inventamos o automóvel, andamos
muito menos; com o telefone, perdemos a presença física do interlocutor, e
assim por diante...
Bergson afirmara que quanto maior a liberdade inteligente, mais
expansivos os manuseios com o inorganizado (artificial) e menos relação com os
círculos fechados do instinto e necessidade. Eis o Homo Faber (assim deveria se
denominar a espécie, segundo o autor, e não Homo Sapiens): não há limites para
a inteligência; em estágios superiores, ela será capaz de criar fábricas para
fabricar (BERGSON, 1979, p. 129). O instinto atua sobre instrumentos
naturais, matéria organizada; a inteligência fabrica instrumentos não-naturais e
que tendemos a naturalizá-los.
O autor pondera que, se retroagíssemos ao passado remoto, instinto e
inteligência seriam bem-mais próximos, contudo os imperativos vitais a
atuarem sobre a matéria levaram a tal distanciamento, embora jamais se
separem efetivamente. De maneira lírica, Bergson recorre ao exemplo das
abelhas (confeccionando suas habitações), para argumentar sobre quão evidente
se torna a ação inteligente, coadunada aos instintos, de cujos manejos depende
aquela, posto que estes apresentam extrema especialização e competência em
atuar sobre o mundo material.
No percurso dos sistemas orgânicos vertebrados, diferentemente dos
artrópodes, percebe-se o esforço da inteligência em sobrepujar o instinto; na
espécie humana, finalmente triunfaria. Isto teria ocorrido pela insuficiência de
nossos meios em relação à manutenção da vida... Os instintos não a
garantiriam, de modo que foram subjugados; a inteligência, apesar de
132
Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.
Vívida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.
Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento.
Como te chamas?
Tempo.
Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.
De fato, que somos e que vem a ser nosso caráter, a não ser
a condensação da história que vivemos desde nosso
nascimento, antes mesmo de nosso nascimento, dado que
trazemos conosco disposições pré-natais? Sem dúvida só
pensamos com pequena parcela de nosso passado; mas é
com nosso passado integral, inclusive nosso perfil de alma
original, que desejamos, queremos, agimos. Nosso passado
manifesta-se pois integralmente a nós por seu impulso e sob
sua forma de tendência, embora fraca parte apenas torne-se
representação dele. (BERGSON, 1979, pp. 16-17)
Destacaria aqui, leitor(a), a abordagem do que venha a ser a alma
original, certa matriz infante (inferência minha) dispondo do passado em
totalidade, a engendrar os caminhos do presente e da própria ação. Sempre tive
máximo interesse em perquirir a volição infantil; noutras palavras, perguntava:
o que está em jogo, quando os pequenos se envolvem com algo, no cotidiano
pedagógico?... testemunhei sempre a afetividade, a inventividade, o perquirir
ávido pelo novo... Aqui uma resposta: nosso desejo, querer e agir se forjaram no
passado que emerge nas malhas do presente. A memória delineia aquilo pelo que nos
seduzimos. Isto tem ecos profundos na reflexão que empreendo. Então, os
miúdos atores, assim como os adultos, ou os anciãos (desculpem tantos
substantivos masculinos na frase), todos vamos empurrados pelo que se contrai
145
17TREVISAN, M. D. Relações entre o esvaziamento da função simbólica e o desinteresse discente pelas rotinas
escolares. EDUCAÇÃO EM FOCO (BELO HORIZONTE. 1996), v. 22, p. 113-131, 2019.
147
valor e principalmente àqueles com quem estive (um presente) no piso das Creches e
continuam durando, visitando-me em sonhos, chamando-me de volta. E que possa ser
inventivo (assim espero!), filhote da vontade, visceral afã de celebrar meus dias
com bebês e crianças bem-pequenas.
As proposições bergsonianas feitas posteriormente às três obras aqui
enunciadas, retocando a concepção de ação (longamente tratada aqui)
apresentam inestimável valor para mim e todos os envolvidos com o contexto
pedagógico. Haveria uma atuação da vontade sobre a energia espiritual,
memória, inteligência, enfim sobre os domínios da consciência, agindo no
mundo (MELO, 2019). Trata-se de uma força capaz de não somente nos
estimular à busca por novidade, como também de desenvolver-se a si mesma,
manancial energético do espírito. Bergson afirmara que a vontade, mesmo em
pouca quantia é capaz de multiplicar-se em muita; o querer poderá ser tamanho a
ponto de aprendermos a querer (BERGSON, 1972).
Refletindo sobre as contribuições de Bergson para a Educação, Melo
(2019) ressalta que o autor, mais do que apresentar o conceito de élan criador
(impulso), defendeu a necessidade de desobstrução de tudo que impeça esta
manifestação: os adestramentos, automatismos, a preguiça, enfim, o que sufoca
a criação (e a novidade), processo que deveria presidir as rotinas pedagógicas.
Urge uma varredura de todos os entulhos que se amontoam, sufocando o desejo
– ímpeto espiritual pelo novo.
Vale-me retomar aqui algumas mazelas da racionalidade educativa,
discutida no percurso deste livro e que grosso modo resumem-se às
consequências dos atos da natureza biológica utilitária, base de nossos esforços
pela sobrevivência no mundo. Declarou nosso autor que a Educação precisa se
orientar no sentido de livrar o pensamento desses grilhões, para que a vida
possa circular livremente. Negociações nessa direção envolvem todos os atores
sociais envolvidos com a instituição escolar. As reminiscências que narrei no
trabalho que concluo expressam em certa medida tal esforço: não foram poucas
as vezes em que troquei o plano didático pela lagartixa que apareceu no teto, ou
uma brincadeira inventada pelas crianças (para fugir da previsível atividade
proposta), e quando isto ocorreu, sentia a vida circulando pelo pensamento, nos
sorrisos de bolhas de sabão que fazíamos, bambolês para o coelho nota musical.
Faço coro ao que propõe Melo (2019): uma Pedagogia do Movente,
sobretudo pelo que professa em demover nossas heranças didáticas e
curriculares, e com elas os notórios programas de ações pontuais. O que ele
defende vai ao encontro do que tentei viver na Creche e Pré-escola, mas vai
149
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. São Paulo: Martins Editora, 1955. p. 44-
45.
ARIÈS, Philippe. A descoberta da infância. In: História social da criança e da
família. 2.ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981. P.17-31.
ARISTÓTELES. Metafísica. Porto Alegre: Globo, 1969.
BARROS, Manoel de. Matéria de poesia. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1974
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1987.
BATISTA, Thiagus Mateus. O legado filosófico de B. F. Skinner: as influências
filosóficas iniciais e a epistemologia da análise experimental do comportamento. 2007.
Dissertação (Mestrado em Filosofia). Programa de Pós-Graduação em Filosofia,
Curso de Mestrado, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal
de Santa Catarina.
BAUMAN, Zygmut. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
BERGSON, Henri. As duas fontes da moral e da religião. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1978.
BERGSON, Henri. Conférence de Madrid sur L’Ame Humaine. In: BERGSON,
Henri. Mélanges. Paris: Presses Universitaires de France, 1972. P. 1200-1215.
BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa:
Edições 70, 1978.
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o
espírito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
BERGSON, Henri. O riso. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
BOURDIEU, Pierre; Passeron, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma
teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Base nacional
comum curricular. Brasília: MEC/SEB, 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes
curriculares nacionais para a educação infantil / Secretaria de Educação Básica.
Brasília: MEC/SEB, 2010.
BRASIL. Presidência da República. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil. Brasília, DF: Planalto, 2012.
BRASIL. Presidência da República. ECA. Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de
1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Senado Federal, 1990.
151
GIL, Gilberto. Aqui e agora. In: GIL, Gilberto. Refavela. Rio de Janeiro: Warner
Music, 1977. Faixa: 3.
GONZAGA, Luiz; TEIXEIRA, Humberto. Asa Branca. Single 78 rpm. São Paulo:
RCA Victor, 1947
GORDON, Edwin E. Teoria da aprendizagem musical: competências, conteúdos e
padrões. Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.
HORTA, Toninho. Beijo partido. In: Minas. São Paulo: Odeon, 1975. Faixa 3.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo:
Perspectiva, 1980.
FRÖEBEL, Friedrich Wilhelm, August. A educação do homem. Passo Fundo: UPF
Editora, 2001.
JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2001.
JAY, Martin. Cantos de experiencia. Variaciones modernas sobre un tema
universal. Buenos Aires: Paidós, 2009.
JENKS, Chris. Constituindo a infância. Educação, Sociedade e Culturas, Portugal:
Associação de Sociologia e Antropologia da Educação, n. 17, 2002.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os
Pensadores)
KORCZAK, J. Como amar uma criança. Lisboa: Edições 70, 1929.
LEBEN, W. Suprasegmental fonology. Bloomington: Indiana University.
Linguistics Club, 1973.
LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
LEMINSKI, Paulo. Melhores poemas de Paulo Leminski. São Paulo: Global, 2002.
LEONTIEV, Alexis, Nikolaevich. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa:
Horizonte Universitário, 1978.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,
1979.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MARIANO, Carmem Lucia Sussel. Direitos da criança e do adolescente: marcos
legais e mídia. 2010. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Programa de Estudos
Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), São Paulo.
MCLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do
homem. São Paulo: CULTRIX, 1969.
MELO, Danilo. Notas para uma Pedagogia do Movente: sobre vontade e educação
em Henri Bergson. In: Revista Educação e Realidade, vol. 44, nº 1, Porto Alegre,
fevereiro, 2019.
MELO NETO, João Cabral; BUARQUE, Chico. Funeral de um lavrador. In: MELO
NETO, João Cabral; BARBOSA, Airton; BUARQUE, Chico. Morte e vida severina.
São Paulo: Philips, 1966.
153