Infância Sob o Prisma de Henri Bergson

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INFÂNCIA DO MOVENTE:

Memórias e reflexões pedagógicas sob o prisma da filosofia de Henri Bergson

Marlon Dantas Trevisan

Capa
Vinicius Xavier Hoste

Rondonópolis - Mato Grosso


2022
3

Ministério da Educação
Universidade Federal de Rondonópolis

Reitora
Analy Castilho Polizel de Souza

Vice- Reitora
Antonia Marilia Medeiros Nardes

Conselho Editorial
Rodolfo Cassimiro de Araujo Berber (Presidente)
André Demambre Bacchi
Débora Aparecida da Silva Santos
Evelise Andreatta
Everaldo Lima de Araújo
Francisco de Salles Almeida Mafra Filho
Helen Fernanda Barros Gomes
Luciano Carneiro Alves
Magda de Mattos
Renata Bezerra Valeriano
Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues
Nivaldo Alexandre de Freitas
João Eduardo Frederico
Viviane Cassol Marques
4

Copyright © Marlon Dantas Trevisan 2022.

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constitui violação da Lei nº 9.610/98.

A EdUFR segue o acordo ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no


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A aceitação das alterações textuais e de normalização bibliográfia sugeridas pelo revisor


é uma decisão do autor/organizador.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

T814r Trevisan, Marlon Dantas.

Infância do movente: Memórias e reflexões pedagógicas sob


o prisma da filosofia de Henri Bergson / Marlon Dantas
Trevisan - Dados eletrônicos. - (1 arquivo : 154 p., il., pdf. ). -
Rondonópolis: EdUFR, 2022.

Inclui bibliografia.

ISBN 978-65-998107-1-8.

1. Filosofia da educação. 2. Educação infantil. 3. Bergson,


Henri, 1859-1941. I. Título

CDU 37.01

Diretoria da EdUFR: Rodolfo Cassimiro de Araujo Berber


Supervisão Técnica: Rodolfo Cassimiro de Araujo Berber
Revisão Textual e Normalização: Marlon Dantas Trevisan
Diagramação: Rodolfo Cassimiro de Araujo Berber

Editora da Universidade Federal de Rondonópolis


Avenida dos Estudantes, 5055 – Cidade Universitária
Rondonópolis – MT, 78736-900
Website: https://ufr.edu.br/editora/
Fone: (66) 3410-4127
5

PREFÁCIO

A infância do movente é a ideia norteadora deste livro, que possui a virtude de


agregar a história pessoal e docente do professor pesquisador Marlon Dantas
Trevisan ao pensamento de Henri Bergson, encontrando aí conceitos filosóficos
propícios para uma nova abordagem da Filosofia da Educação. A ideia de que o
etapismo, bem como as diferentes formas teóricas de classificação do
desenvolvimento da infância, acaba por desnaturar a experiência da própria infância
encontra ressonâncias com a noção bergsoniana de que a inteligência tende a
homogeneizar, coordenar e hierarquizar qualquer objeto que passe por suas malhas,
e por conseguinte a própria teoria pedagógica, na medida em que se quer científica. A
partir disso, o autor desenvolve uma poética aproximação entre temas que parecem
distantes, como a rigidez do ensino e a tendência espacializante da consciência, que
nos arranca a liberdade, à medida que esquarteja o fluxo de duração, no contexto do
primeiro capítulo, em que analisa o livro Ensaios Imediatos da Consciência.
Em seguida, elabora a aproximação, mais difícil ainda, entre a teoria do
conhecimento esboçada em Matéria e memória e uma propensão a intelectualizar os
sujeitos infantes, a partir de uma aquisição filosófica e estética da teoria da matéria,
como conjunto de imagens. Ainda neste segundo capítulo, o autor explora em
profundidade a psicologia elaborada em Matéria e memória, que parte da relação
fundamentalmente temporal entre o passado e o presente, o espírito e o corpo, como
realidades contínuas e indivisíveis, que tornam a vida uma incessante retomada de
sua própria história.

No terceiro capítulo, faz-se uma interessante leitura sobre um dos textos mais
difíceis da obra bergsoniana: o quarto capítulo de Matéria e memória, em que trata de
uma Metafísica da matéria e sua relação com as teorias intelectualistas da percepção.
Todo o percurso tem a virtude de aproximar herméticas passagens metafísicas do
filósofo à experiência pessoal como professor, produzindo uma ponte – ao mesmo
tempo que uma síntese – entre a descentralização da teoria proposta por Bergson e
as vivências, inquietações pessoais e docentes. Ao mesmo tempo em que se propõe
denunciar as insuficiências que o ensino tradicional impõe à prática professoral, à luz
de suas próprias experiências profissionais, como professor de Música e Língua
Portuguesa, o autor revela os momentos únicos e transitórios, em que a
aprendizagem se mostrou co-criação; as rotinas pedagógicas, antes de tudo, como
6

encontros que repercutem na história e no caráter de milhares de crianças que


conviveram com o educador. A partir daí, no final do terceiro capítulo, o autor chega
à Evolução Criadora, amarrando e resumindo os pilares do pensamento de Bergson,
vendo surgir a inteligência – exigência da vida e da Biologia – e com isso a
possibilidade de sua superação por uma retomada intuitiva e portanto questionadora
da tendência utilitária que caracteriza o conhecimento humano. Submerge, assim,
desde as primeiras páginas, uma dura crítica à rigidez do ensino e que encontra, a
partir de uma experiência docente de 21 anos de duração, a indicação de outras
possibilidades de pensar o exercício educativo, desta vez menos apostilado e
enciclopédico, mais aberto à novidade, menos refém de uma lógica intelectualista e
produtivista, tornada cega por suas próprias estruturas.
O que chama a atenção na presente obra, assim, vem a ser a virtude com que o
autor aproximou, de forma despreocupada e poética, os trechos herméticos da
Filosofia de Bergson ao exercício docente que caracterizou sua história, o que traz
novas possibilidades teóricas a uma fundamentação filosófica da Pedagogia.

Heliakim Marques Trevisan


Programa de Pós-graduação em Filosofia
Universidade Federal de São Carlos
7

SUMÁRIO

UMA INTRODUÇÃO POSSÍVEL 11

RELAÇÕES ENTRE O NÚMERO/ESPAÇO E MEU PAI, TIJOLO VERDE 17


A DUPLA NATUREZA DA MULTIPLICIDADE NO HOMOGÊNEO 19
ENTRE A HOMOGENEIZAÇÃO DISCIPLINAR E PASSOS RUMO A ENCONTROS 21
SOBRE ESPAÇO E DURAÇÃO (O LABOR ARTÍSTICO... ENTRE OS GRILHÕES DA INTELIGÊNCIA E LAMPEJOS
DA DURAÇÃO INTERIOR) 25
APROFUNDANDO PERCEPÇÕES ACERCA DA DURAÇÃO... 28
GARATUJAS POTENTES SE TORNAM ESTEREÓTIPOS INERTES 28
MULTIPLICIDADE E DURAÇÃO. AS CELAS DA REPRESENTAÇÃO E O ARBÍTRIO DA HOMOGENEIDADE 31
FANTASMAS A SE PROJETAREM NO ESPAÇO...ASSERÇÕES SOBRE O ASSOCIACIONISMO 37
SOBRE A LIBERDADE... GOTAS DE CHUVA NA SUPERFÍCIE LACUSTRE 42
PODEMOS FAZER ESCOLHAS? SOBRE CUSPIRMOS EM PRATOS 44

EPISTEMOLOGIA E TEMÁTICAS PEDAGÓGICAS... NEXOS A SEREM INVESTIGADOS 48

A IMPERATRIZ NUA... E O CONHECIMENTO SOB SUSPEITA 49


UMA DANÇA INFINITA DE IMAGENS EM CONEXÕES COM NOSSO CORPO-IMAGEM... EXTERIORIDADE
INDETERMINADA E CONSCIENTE 50
O FLAGELO DE PARTIRMOS DO CENTRO DE NOSSAS REPRESENTAÇÕES RUMO À EXTERIORIDADE 54
UMA VOZ A MAIS CONTRA A FRAGMENTAÇÃO DO CONHECIMENTO NAS ROTINAS DA EDUCAÇÃO
INFANTIL 59
SOBRE O TEMPO/MEMÓRIA: CONTEXTO EM QUE SE DESFAZ A DÍADE SUJEITO/OBJETO 62
RECONHECIMENTO ATENTO 69
ASSERÇÕES SOBRE A PALAVRA 72
O PRESENTE PURO É INAPREENSÍVEL... O CONE INVERTIDO E A INFÂNCIA MOVEDIÇA 78
UMA MIRADA PARA O INCONSCIENTE 81
IMPRESSÕES INQUIETANTES SOBRE A APRENDIZAGEM... 84
NO TEMPO, OBJETOS/AFETOS SE FUNDEM 84
O ESFORÇO DE PENSAR A LUDICIDADE, A PARTIR DE UM REPOSICIONAMENTO DA INTELIGÊNCIA 89

REFLEXÕES METAFÍSICAS SOBRE A INFÂNCIA DO MOVENTE 98

CONSIDERAÇÕES SOBRE KRONOS E A CRIANÇA UNIVERSAL ABSTRATA 98


O PREÇO DOS ARRANJOS SIMBÓLICOS TECIDOS PARA A INFÂNCIA 105
NEXOS ENTRE METAFÍSICA E O DEVIR INFÂNCIA 107
SOBRE IMAGINAÇÃO, PERCEPÇÃO E AFECÇÃO... O CORPO NO MUNDO 114
REFLEXÕES SOBRE OS SISTEMAS ORGÂNICOS... VEREDAS EVOLUTIVAS 123
TORPOR, INSTINTO, INTELIGÊNCIA E INTUIÇÃO... CAMINHOS EVOLUTIVOS 129
O AMÁLGAMA INTELIGÊNCIA/INTUIÇÃO... BUSCANDO SEGREDOS DA REALIDADE 132
AS PANTANOSAS FRONTEIRAS DA INDIVIDUALIDADE 138
8

ABORDAGENS CONCLUSIVAS... A VONTADE, ENERGIA DO ESPÍRITO 144

REFERÊNCIAS 150
9

LUA NO LABIRINTO

Pouco a pouco e também muito a muito


me aconteceu a vida,
e que insignificante é este assunto:
estas veias levaram
sangue meu que poucas vezes vi,
respirei o ar de tantas regiões
sem guardar para mim uma amostra de nenhum
e afinal de contas já o sabem todos:
ninguém leva nada de seu
e a vida foi um empréstimo de ossos.
O belo foi aprender a não se saciar
da tristeza nem da alegria,
esperar o talvez de uma última gota,
pedir mais ao mel e às trevas.

Talvez tenha sido castigado:


talvez condenado a ser feliz.
Fique afirmado aqui que ninguém
passou perto de mim sem me compartir.
E que meti a colher até o cotovelo
numa adversidade que não era minha,
no padecimento dos outros.
Não se tratou de palma ou de partido
mas de pouca coisa: não poder
viver nem respirar essa sombra,
com essa sombra de outros como torres,
como árvores amargas que o enterram,
como pancadas de pedra nos joelhos.

A tua própria ferida se cura com pranto,


a tua própria ferida se cura com canto,
mas a tua porta mesmo se dessangra
a viúva, o índio, o pobre, o pescado,
e o filho do mineiro não conhece
o seu pai entre tantas queimaduras.
Muito bem, mas o meu ofício
Foi a plenitude da alma:
um ai de gozo que te corta a respiração,
um suspiro de planta derrubada
ou o quantitativo da ação.
10

Eu gostava de crescer com a manhã,


embeber-me de sol, com pleno gozo
de sol, de sal, de luz marinha e onda,
e nesse avanço da espuma
fundou meu coração seu movimento:
crescer com profundo paroxismo
e morrer se derramando na areia.
(NERUDA, 1996, p. 229-230)
11

UMA INTRODUÇÃO POSSÍVEL

Desde criança, tenho a sensação inabalável de que o tempo, tal como nos
governa, é uma criação humana. Também remonta àqueles idos a convicção de
que o que existe são as coisas a nos acontecerem. A estas deveríamos quem sabe
denominar tempo. Isto afirmado, passei a existência em bancos escolares e ali
continuarei, recolhendo e desenhando lousas, copiando fórmulas, cristalizações
sígnicas, cacos especulares do mundo; até me sentar sobre um derradeiro toco
seco, frente a um regato, em que veja minha história refletida. Cada marola a
transferir individualmente sua pulsão a outra, misturando o que vivi com o que
foi representação e não tem sido pouco.
Foi após meio século de vida e 30 anos de docência, que encontrei a
tradição bergsoniana, finalmente me acenando com percepções-conceitos que há
muito eu os levava, intuitivamente. Ratifico a pantanosa sensação dos fatos e
somente eles se constituírem temporalidade; o restante, calendário,
mensalidades, aniversários, duplicatas, sendo apenas marcações, carimbos um
tanto arbitrários a nos metrificar, quantificando o que passamos, velhas
ancoragens heliocêntricas. Jamais acreditei na liberdade, para mim outra
abstração, e qual não foi a surpresa de entender com Bergson (1859-1941) as
razões para o desalento: somos reféns da linguagem e outros expedientes
logocentrados; enquanto assim for, de modo algum praticaremos atos livres. O
eminente filósofo todavia acenou com esta via: ao nos lançar na duração real, de
modo que o eu profundo se revele em nossos atos, teremos experiências com a
liberdade. Confesso que, até o presente instante, fico impactado com tal
possibilidade, senão intrigado.
No ambiente em que me encontro (mesa, caneta, abacateiro e sol), tenho a
tarefa de meditar sobre como as contribuições bergsonianas poderão lançar luz
sobre o que vivi em 21 anos na Educação Básica. Convenço-me cada vez mais
de que os fracassos, sucessos e os infinitos matizes entre estes dois extremos
12

mantêm uma íntima relação com as reflexões do autor sobre a realidade, dentre
as quais destaco as severas críticas aos projetos da inteligência.
Assumo neste trabalho (apesar de certa pedância enunciativa), a primeira
pessoa do singular, mesclada à primeira do plural, em busca de um fluxo
narrativo que, de algum modo, permita à intuição expressar uma realidade que
sempre busquei com as crianças, e quando isto se dava, percebia que aquele
encontro tinha sido significativo, apesar de sempre estar atrelado aos conteúdos
disciplinares, fossem eles da Expressão Musical ou Língua Portuguesa (com os
jovens). A primeira pessoa do singular me permite lamber memórias, ruminar
ditos, queixumes, confessar lambanças, acertos, decrepitudes; a primeira do
plural vai aparecer, quando me sentir só, ou muito colado ao texto bergsoniano,
ou ainda quando dezenas, centenas, milhares de almas que comigo estiveram
recomendarem, quase como em um orfeão: “Tio Marlon! Conta isso...”
Eis uma tensão que marcara de modo rude os dias em que estive nas salas
de atividades:1 duas forças de dimensões continentais, dentre outras menores,
atingiam-me rotineiramente; por um lado, a exigência pedagógica de partilhar a
fixidez de símbolos universais com os alunos2– canções (letra, ritmo e melodia),
notações musicais, noções de altura, andamento, intensidade, harmonia, jogos
sensoriais, instrumentos percussivos, harmônicos e melódicos, como a flauta,
estilos musicais, etc., ou tratando a língua materna: saberes morfológicos,
sintáticos, estilísticos, semióticos, a estrutura do artigo de opinião, resenha,
conto, crônica, etc. –; em uma direção oposta, para minha tragédia, além da
sensação de me afastar do mundo vivido, ao ensinar conteúdos que, para muitos
ali, não passavam de fetos natimortos (com todo o respeito aos gramaticistas,
comunidade a que pertenço, o que fazer com o conceito de oração subordinada
substantiva completiva nominal reduzida de particípio, além de usá-la como
marca de distinção social nos vestibulares?), assaltava-me o espírito a sensação
de que uma realidade muito mais pulsante, potente, qualitativa, ria diante de
mim, em cada olhar daquelas crianças e jovens (Educação Infantil e Ensino

1 Evitarei a expressão “sala de aula”, em respeito à primeira infância (MELLO, 2015).

2 Outra expressão que buscarei não mencionar, pelo que revela de uma lógica escolarizante,
verticalizada, que tende a antecipar na Educação Infantil posturas didáticas e até conteúdos mais
apropriados ao Ensino Fundamental. Somo-me a todos os pesquisadores que defendem os direitos dos
pequenos cidadãos matriculados na Creche e Pré-escola, dentre os quais eu destacaria o de ser
considerado criança, não um projeto futuro de país e de adulto. Se fosse me ater à etimologia latina,
alumnus, que significa lactente, criança de peito, não haveria problema, mas a escolaridade básica
como um todo adotou o termo, roubando-lhe os sentidos originais. Há quem diga que a expressão
signifique sem luz; uma pena que isto seja equivocado, posto que assim são tratados comumente
nossos alunos.
13

Médio), em cada corpo luminoso, agrilhoado à carteira (engraçado este termo,


um móvel onde se recolheriam cartas?), ávidos por novidades, canções,
gargalhadas, segredos, causos. Lembro que bastava me verem os pequenos nos
corredores da instituição para começarem o coro: “Histórias de terror! Histórias
de terror!”. Crianças de 3 a 5 anos, a quem eu gritava: “Gente, eu sou professor
de música!” Ao que retrucavam: “Ah, não! História de terror que é legal!” Um
dia, exagerei... de tanto reclamarem no final da contação que aquilo não dava
medo, transformei-me em um lobisomem! Você que lê estas linhas, imagine as
crianças apavoradas, querendo fugir pela janela da sala! Claro que fui
repreendido pela diretora. Houve caganeira de alguns, reclamação de pais
(instituição privada). Na semana seguinte, após quase ser demitido, quando
imaginava ter me livrado da incumbência de contar de histórias, ao entrar no
gélido corredor de porcelanato, o que ouço: “Histórias de terror! Histórias de
terror!” Memórias assim deverei recolher neste livro, em certa medida ilustram
do que milhões de colegas do(c)entes padecem, muitas vezes sem qualquer
reflexão sobre o que lhes passa, foi assim comigo. Pretendo fazê-lo, discorrendo
sobre as contribuições de Bergson e nexos possíveis com os campos teóricos da
infância, ou o movimento contrário...
As trilhas que abrirei serão exercícios de intuição – metodologia que
assumo, com calafrios cervicais –; adestrado a produzir trabalhos científicos
com o “rigor necessário” para pleitear publicações Qualis A, não sei direito como
escrever o que quero. Para atenuar minha agonia, recorro a Deleuze:
Bergson distingue essencialmente três espécies de atos, os
quais determinam regras do método: a primeira espécie
concerne à posição e à criação de problemas; a segunda, à
descoberta de diferenças de natureza; a terceira, à apreensão
do tempo real. É mostrando como se passa de um sentido a
outro, e qual é “o sentido fundamental”, que se deve
reencontrar a simplicidade da intuição como ato vivido,
podendo-se assim responder à questão metodológica geral.
(DELEUZE, 1999, p. 8)
Desculpem-me, amiga(o)s educadora(e)s, mas preciso grudar com unhas
de tamanduá neste excerto, lendo-o estruturalmente, como farei com muitos
fragmentos de Bergson e outros autores (isto não é muito intuitivo, aceito a
reguada na mão), de sorte que me arrisque a formular problemas que nos
afligem no cotidiano com os pequenos atores, procurando enumerar aspectos
qualitativos (diferenças), até estranhos, nas andanças reflexivas, abordagens
temáticas e sobretudo buscar apreender, como prescreve Deleuze, o tempo real
14

do que me passa, ao mergulhar na experiência de escrever o livro. Peregrinando


pelo labirinto mnemônico da docência, busco os sentidos e sua questão
fundamental: a infância. Eis o desenho temático dessa aventura: Uma análise
(pontuada por memórias docentes) de como a Filosofia bergsoniana, em especial a
Metafísica, pode contribuir para fundamentos pedagógicos voltados à Educação
Infantil. Aprofundando tal delimitação, eu destacaria a busca por uma nova
compreensão da infância, desta feita como realidade pulsante, movente, qualitativa,
menos atrelada aos expedientes da razão, lançada na duração, inspirando novos
olhares para as rotinas daquele contexto educativo.
Então, permito-me narrar, tentando um registro que não sei bem onde
vai dar, confesso. Sinto que há legitimidade em tal esforço, a crença (não tão
firme) de que possa ser útil o percurso, para os profissionais da Educação,
interessados em refletir sobre isto. Eis o desafio que se me apresenta: rever os
passos, em mais de duas décadas, ancorando as análises nos escritos
bergsonianos, apostando que um registro mais libertário, intuitivo, ainda que
corra riscos de circularidade e outras incoerências linguísticas (vejo a
importância de enfrentar a persona gramaticista que também me aflige), poderá
trazer à singularidade da celulose, em que imprimo meus garranchos a se
transformarem em pixels na tela no computador, algumas percepções sobre o
que passamos, nos jardins e trincheiras da escolaridade. Ficarei apenas com a
Educação Infantil, atendendo a vozes acadêmicas, clamando por unidade
temática na produção de escritos. Tenho que tratar da pequena infância, a
juventude ficará para outra ocasião. Aproveito para afirmar que escrevo
com/para/pelas colegas professoras (não me lembro sequer de uma figura
masculina na docência com quem estive), ao recobrar toda a aprendizagem que
partilhamos... eu vinha com meus cacarecos sonoros; elas, com relatos do que
passavam com suas turmas. Misturávamos singularidades, risos, percepções.
Difícil expressar minha gratidão, então eis aqui minha homenagem. O trabalho
se insere na grande área de pesquisa denominada Filosofia da Educação e
requer esforço reflexivo, não se trata de leitura deleite, tampouco prescritiva,
haverá momentos de maior hermetismo, outros até cômicos... vivo aqui a
dificuldade de escrever para pedagogos e outros licenciados que estejam abertos
ao exercício filosófico...
Minhas incursões pelo pensamento bergsoniano contarão em especial
com a leitura de três obras notórias: Ensaio sobre os dados imediatos da
consciência, publicado em 1889, Matéria e Memória, 1896, e A Evolução Criadora,
1907, nas quais eu destacaria a perspectiva do autor sobre Epistemologia e
Metafísica. Embora não tratem de infância propriamente, sinto-me autorizado a
15

fazê-lo, não somente por alguns excertos que a mencionam, mas sobretudo
pelas abordagens de Bergson acerca da duração psicológica, do tempo, campos
de consciência e outros aspectos da relação entre o espírito e a matéria. A
heurística proposta de rompermos com a utilidade, a inteligência,
espacialização, buscando no sonho e no tempo caminhos para o encontro com o
mundo, muito me estimulou a refletir sobre o devir infância. Apresento aqui o
desafio de o pensarmos, sobretudo as relações inequívocas que apresenta com a
Filosofia de Bergson. Vejo nessa aventura potentes possibilidades de novos
entendimentos sobre o mundo dos bebês e crianças, pelo que nos habitam e
permanecem...
Reconheço que as asserções a serem obtidas tendem a parir mais um
corvo devorador do fígado de Prometeu. As bicadas lhe serão ferozes; até o lume
do Carro do Sol roubado pelo mártir poderá se empanar em pálida e assombrada
miragem, já denunciada por Nietzsche e tantos outros posteriores a ele. Pudera
sairmos daquele rochedo, em que fomos acorrentados. Este corvo filhote,
potente pelo que carrega de peçonhento, em relação ao logos, acena, roto e
esquálido, com estocadas, ferroadas, no sentido de matar o herói atemporal. Por
que, Prometeu, luto para executar-te? Quem sabe pelo que materializaste das
pretensões da inteligência, senão a própria encarnação dela... Sem maiores
intenções dramatúrgicas, quero mesmo tua morte, oh gigante... Deixe-nos em
paz! Os rapinantes que te comiam o fígado eram meros coadjuvantes da farsa,
necessários para manterem tua importância e vontade de poder. Mas o bicho
que agora corre a teus bofes tem sede... Vai-te às favas, morador do Cáucaso!
Some de nossa existência, para que outras paisagens nos surjam, quem sabe,
onde não haja juízos, tribunais da razão, imperativos categóricos, catedrais de
quartzo anteriores ao que nos passa, enformando o vivido, confinando-o em
estatutos morais, científicos, enfim, antecipando-se ao pulso, gozo, lágrima,
riso, espanto.

O fígado, todavia, regenera-se... Eis tu, Titã, restaurado no dia seguinte.


Isto não poderá impedir a escrita pretendida. Então, vamos... em busca da
infância do movente! E que Bergson e sua tradição acudam o náufrago que
escreve, perdoando, se a apropriação de conceitos soar imprópria, incestuosa.
Prometo sinceridade, atenção ao melhor entendimento, fidelidade quando
possível. Vamos juntos.
16

CAPÍTULO I

(LEMINSKI, 2002, p. 99)


17

REFLEXÕES SOBRE A INTELIGÊNCIA E A DURAÇÃO

O presente capítulo está alicerçado fundamentalmente na obra Ensaio


sobre os dados imediatos da consciência (1978). Adentrarei questões concernentes à
nossa ação no mundo, sempre orientada por faculdades inteligentes, cuja
origem se dá no afã da utilidade, urgência de manutenção da existência, dentre
as quais se destacariam a espacialização – oriunda da própria tendência da
matéria ao homogêneo e do pensamento intelectual, então divisíveis,
quantificáveis – e a linguagem, que congela pela ação simbólica traços
identitários daquilo que é externo e movente. Procurarei demonstrar o quão
falacioso tem sido o percurso da Ciência moderna e do conhecimento como um
todo, à medida que se ancora nesses expedientes logocêntricos, cujos modos de
agir nos afastam do eu interior e da duração pura – natureza íntima e profunda
da ação –, restando-nos “experiências” de uma consciência refém da
representação, deformada pelo utilitarismo da razão. Bergson nos acena,
todavia, com a possibilidade de vivenciarmos atos livres, se o eu se expressar,
não como caricatura psicológica, mas lançado na duração real do agir, que a
intuição permite, rompendo com a homogeneidade do espaço, esquematismos e
outros estratagemas inteligentes.

Relações entre o número/espaço e meu pai, tijolo verde

Henri Bergson, ao empunhar sua metralhadora contra a inteligência e


estatutos, aborda a noção do número. Dialogando com seculares legados, como
o pitagórico, cartesiano, newtoniano, comteano, o autor afirma que, quando
nomeamos, também numeramos. Ao contarmos os objetos, supomo-los
idênticos entre si, o que nos faz lembrar do conceito de símbolo de Peirce
(2005): a capacidade sígnica de um indivíduo ser representado e posicionado
dentro de uma espécie (série). Um exemplo bergsoniano para esta função
matemática da inteligência vem a ser um rebanho com 50 ovelhas (BERGSON,
1978, p.58). Somente podemos intuir tal conjunto, se estabelecermos que as
unidades que o compõem são idênticas entre si, exigência que atendemos,
quando contamos os animais. O preço disto é desconsiderarmos a realidade de
18

que cada ser é único; e o pastor conhece ovelha por ovelha, ciente das diferenças
singulares entre uma e outra. A numeração só terá importância se, além de
somar, estabelecer uma homogeneização.

Outro exemplo que considero ainda mais representativo me parece o dos


soldados e o batalhão. Como filho de militar, a imagem me impacta sobremodo.
Meu pai, a quem dediquei a dissertação de mestrado, em que pese sua
humanidade e tudo o que significa para mim, ao marchar, muitas vezes deu-me
a sensação de que era um ciborg, exatamente igual às centenas de homens que
comandava, máquinas de morte... fardas oliva em um ritmo quaternário... “Um,
dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro! Pelotão à
direita!” Gritava o homem e seu mosquetão. Impressionava aquele paradoxo: o
pai, carne de meu espírito, ali se transfigurava em uma multiplicidade... era
apenas um tijolo em um colosso marchante, conjunto típico da organização
militar. Para que tivéssemos uma tropa, um exército a nos defender do inimigo
(quem dera a aritmética nos instrumentalizasse, de modo a enfrentarmos nossos
demônios), não poderia pensar na figura paterna, porque passaria a enumerá-la
qualitativamente (aspectos individuais), impedindo-me de contá-la na série de
iguais em que se inseria.
Bergson afirmara que a noção de número supõe concomitante e
necessária uma concepção de espaço. Tal intuição coincide com a própria ideia
de multiplicidade de unidades, natureza do número. Declarou o autor:
“Involuntariamente, fixamos num ponto do espaço cada um dos momentos que
contamos, e é apenas com esta condição que as unidades abstractas formam
uma soma” (BERGSON, 1978, p. 59). Com isto, inferimos que não há como
somarmos as unidades de um todo, se não espacializarmos o raciocínio, sem o
que também não haveria como formarmos abstrações na Geometria,
exemplificando. Diferentemente do algarismo tomado em si mesmo ou a
palavra, a representação do número enquanto todo nos leva a conceber uma
extensão (BERGSON, 1978, p. 59), muito embora não façamos isto em geral,
por economia de esforço, acredito.
O autor pondera que nosso hábito ilusório de contar, em tese, deveria se
dar mais no tempo do que no espaço, uma vez que para chegarmos a um
número tal como 50, repetiríamos os numerais, a partir da unidade. Teríamos
uma sucessão, feito batidas de um tambor, de modo a obtermos a soma. Uma
sucessão genuína como tal se daria apenas na duração, advertiu o filósofo,
todavia não confundamos isto com a função de somar. Sucessão não é adição.
Temos neste pressuposto um conceito central para o pensamento bergsoniano.
A soma se obtém mediante a persistência dos termos, ainda que diferentes, na
19

passagem de um ao outro, o que necessariamente suporia o acúmulo,


característica da duração; sem o artifício inteligente da espacialização, não
haveria como cada termo persistir e “esperar” (p.59), de modo que pudesse ser
contado. Para meu pai se tornar um soldado, precisou ser, primeiramente,
homogeneizado (daí a importância da hierarquia disciplinar e do gesto de
continência, mão direita retesa e em diagonal à fronte: “sim senhor!”), uma
unidade em uma coleção, para em seguida ser contado, todavia não no tempo e
sim na intuição espacial. Ao contarmos os soldados de um pelotão, certamente o
faríamos com instantes da duração mais do que pontos no espaço, contudo
adverte nosso filósofo: [...]a questão está em saber se não foi com pontos do
espaço que se contaram os momentos da duração” (BERGSON, 1978, p. 59)
Nisto temos a inteligência agindo com a linguagem, de modo a espacializar o
que seria eminentemente qualitativo, acumulativo e temporal.

A dupla natureza da multiplicidade no homogêneo

Ao refletir sobre o número, Bergson cerca a ideia de unidade, posto que


esta formará a coleção correspondente àquele símbolo. Então teremos mais
sentidos inerentes ao termo unidade. Se pensarmos no número, enquanto um
todo uno, entenderemo-lo como indissociável, a conter em si uma
multiplicidade, uma intuição simples, afirmara o autor, “a unidade de um todo”,
por exemplo, o nº 5, o que de certo modo nos remete à duração, pelo que
concebemos como irredutível, singular. O nº 5 é a unificação de uma totalidade,
uma coleção, sintetização. Se pensarmos porém em cada uma das cinco unidades
componentes, então abandonaremos a ideia de adição, capturando-as como
irredutíveis, tendendo a pensá-las como indivisíveis (sem espacialidade) e
isoladas. Vejamos o que declarou o autor sobre isto:

No entanto, prestando mais atenção, ver-se-á que toda a


unidade é a de um acto simples do espírito e que,
consistindo este acto em unir, é necessário que alguma
multiplicidade lhe sirva de matéria. Sem dúvida, no
momento em que penso em cada uma das unidades
isoladamente, considero-a como indivisível, porque se
entende que não penso senão nela, mas logo que a deixo de
lado para passar à seguinte, objetivo-a, e por isso mesmo
faço dela uma coisa, isto é, uma multiplicidade.
(BERGSON, 1978, p. 60)
20

Raciocinando com o autor, visualizo 5 maçãs. Cada uma, a seu turno,


intuída indivisivelmente, a reter minha atenção. Ocorre, todavia, que ao pensar
em um agrupamento (quinteto), tendo a coisificá-la (conferir-lhe materialidade),
posicioná-la em uma coleção, uma série de múltiplos. Assim opera a matemática
e seu milenar formalismo: ao posicionar a maçã em um conjunto, esta unidade
adquire um caráter de provisoriedade. O mesmo mecanismo espacializante que
forma coleções, somas, opera de tal sorte que também possa fracionar a unidade
em unidades tão numerosas quanto desejarmos. A maçã tornada coisa pela
aritmética passa a ser infinitamente divisível.
Bergson pondera sobre dois tipos de unidades: uma de índole definitiva,
correspondente ao número e outra, provisória, quando pensamos na
multiplicidade (repetição) que engendrou o conjunto e o próprio número.
Somente nos é possível pensarmos em indivisibilidade da unidade (e do
número), se desconsiderarmos o espaço, raciocínio nada comum, uma vez que
sempre recorremos (ao pensarmos unidades) ao ato de unir múltiplos
(elementos formais). Na dúzia, ao passar de maçã a maçã, cada uma será um
múltiplo. Do mesmo modo, a inteligência atribuirá tal extensão à própria
unidade. Cada maçã pode ser partida em quantas frações a razão assim o
desejar, logo toda unidade supõe uma extensão, ocupação no espaço. A unidade
abriga este paradoxo: se por um lado, temos todo número como unidade
provisória a compor uma multiplicidade, por outro, podemos pensar no mesmo
enquanto unidade numérica indecomponível, de modo que represente um
conjunto.
Bergson afirma que a aritmética nos habilita a dividir as unidades
(formadoras de um número) quantas vezes determinarmos, ou seja,
infinitamente, reafirmamos, o que o senso comum em geral não faz, por intuir
aquilo que lhe parece mais simples – unidades indivisíveis e provisórias –. O
autor pondera também que isto ocorre pela tendência dos indivíduos atentarem
mais ao que fazem, do que para a matéria sobre a qual atuamos; tal asserção
deixa implícito que a doxa (opinião comum) tenderia a operar subjetivamente...
noutras palavras, com o que é conhecido, irredutível; a episteme (discurso
científico) tenderia a acrescentar infinitamente elementos ao que é conhecido,
fazendo-o pela decomposição. O autor estabelece uma distinção entre o
subjetivo e objetivo. Para tal, pondera sobre a necessidade de distinção acerca
da unidade em que pensamos (ainda irredutível) e a unidade tornada coisa, após
a termos concebido; o número se apresentaria em estado de acabamento,
portanto infinitamente divisível, caracterizando uma objetivação (BERGSON,
1978, p.62).
21

Os discursos científicos se apoiam no artifício inteligente de orientar


nossas observações na direção da matéria objetivada; o que somente se torna
possível por termos já formada uma intuição em que distribuímos números,
múltiplos que fracionam a matéria, sem a qual não seria possível a transposição.
Melhor afirmando, a matéria promove o “translado” (justaposição) das unidades
numéricas para o espaço.
Outra abordagem bergsoniana concernente ao número diz respeito ainda à
multiplicidade (espacial). Temos duas espécies: uma que se volta aos objetos
materiais, visíveis, tangíveis, portanto de fácil localização no espaço, com o que
se tornam contáveis e múltiplos em uma coleção (BERGSON, 1978, p.63);
outra concernente a estados afetivos e até sensoriais, cujos traços são difíceis de
serem representados, fixados em unidades. Ainda que confusos, tais conteúdos
tendem a ser justapostos em um espaço ideal, mesmo vivências musicais, como
sugere o autor: as badaladas de um sino, por exemplo, posso organizá-las de
modo qualitativo, sem contagens, recolhendo as impressões de duração,
sentimentos sucessivos a comporem um ambiente sonoro ou... em uma
prescrição racional, separar objetos, contá-los, eliminando qualidades,
homogeneizando sonoridades, de tal modo que se tornem múltiplos. Há mais
dificuldade em promovermos tais análises, à medida que mergulhamos na
consciência, alertou Bergson (p. 64), dimensão (se assim posso afirmar)
pantanosa de sentimentos, cuja contabilização se torna problemática, dada sua
dependência da intuição do espaço e respectivos pontos de ancoragem.
Após estas breves impressões, ratificamos a conclusão do autor, existem
duas espécies de multiplicidades: uma relativa aos objetos materiais (imediatamente
contáveis) e outra relativa aos fatos da consciência (p. 65), cuja quantificação requer
a mediação do símbolo e suas funções sígnicas, especialmente pelo que podem
atuar com relação ao espaço. Isto nos faz lembrar do plano cartesiano, dos
pontos que unidos entre si geram uma reta e assim por diante, cercando, quem
sabe, um fantasma interior.

Entre a homogeneização disciplinar e passos rumo a encontros

Evoco aqui a imagem de centenas de encontros com turmas de 25


crianças de 4 anos, às quais eu deveria iniciar na aprendizagem da flauta e
outros aspectos da linguagem musical. A ciência pedagógica, profundamente
devedora de Kant (embora poucos o saibam), não apenas com respeito aos
fundamentos gnosiológicos, epistêmicos, mas também éticos, guiava-me em um
22

projeto disciplinador. Não há como ensinar um instrumento a tantas crianças,


se não houver a prática cotidiana de estabelecermos combinados com elas e
cumpri-los. Noutras palavras, a mesma lógica de caserna (pai sargento,
subtenente do exército), a que me submeti durante toda a infância e juventude,
em grande medida reproduzi, como educador. Ressalto, porém, uma enorme
diferença: apesar do caráter disciplinar a orientar minhas ações pedagógicas (até
porque, sem isto, eu seria rapidamente banido da profissão), sempre apostei
muito na afetividade, por influência de Dewey. Hoje, distante daqueles dias na
Educação Infantil, reconheço em meus pretéritos projetos pedagógicos as
principais características: disciplinamento, repetição, afetividade, ludicidade,
protagonismo (expressividade) infantil e abertura ao inusitado.

Confesso que passei por muitas tensões naquele trajeto. Tive atitudes e
práticas contraditórias, muitas de que não me orgulho. As asserções sobre
aritmética, há pouco abordadas, colhidas dos escritos de Bergson, presentes no
Ensaio (1978), têm um eco abissal em minha memória. Como fico satisfeito, ao
perceber que este movimento interior converge, inclusive em termos
metodológicos, com a concepção central do autor em seu legado: a duração.
Mergulho com arrepios e sobressaltos no abismo das lembranças, mesclando
idos, feitos e ditos às abordagens do autor, em arranjos estranhos, prenhes de
surpresas. Reconheço a índole terapêutica de tal movimento. Analiso um
conceito como aquele da unidade e do número e tais asserções me levam ao
encontro dos pequenos músicos, que se tornavam múltiplos elementos,
desprovidos de qualidades, homogeneizados pela ciência pedagógica, inscritos
com seus nomes no espaço lógico do saber docente, tornando-se uma orquestra,
de sorte que, com a rotina pedagógica, construíssem um produto artístico de
grande expressividade, arrancando lágrimas dos pais mais rudes, nos eventos
festivos. Poucas situações sociais emocionam tanto uma plateia como crianças
tão pequenas entoando perfeitamente uma canção como A lagarta, de Paulo
Tatit e Sandra Perez (1999), ou Oito anos, de Adriana Calcanhoto (2004), ou
ainda, na flauta, Sur le pont d’Avignon, do folclore francês. Para atingirmos o
resultado, sempre a necessidade de tratar os pequenos atores como unidades
numéricas, feito soldados. As consequências disto, tenho colhido vida a fora.
Até hoje recebo cartas, presentes de cidadãos gratos por terem aprendido em
tão tenra idade o domínio de um instrumento musical, como médicos que têm
na música um escape para não enlouquecerem com as rotinas da profissão, para
ficarmos com um exemplo. Tais retornos me deixam um pouco mais tranquilo,
ciente de que houve ganhos, mais do que feridas. É verdade que sempre agi com
autoridade, mas aquela intuição estranha, levando-me a apostar na loucura
também me acompanhava e o faz até os presentes dias, inclusive lecionando no
23

Ensino Superior, há uma década. Pressionado pelas vozes mercadológicas,


patronais, da clientela pagante, de currículos técnico-produtivistas, do ensino
regular privado, eu ouvia Milton Nascimento cantando: “Sabe, eu não faço fé
mais na minha loucura...” (HORTA, 1975), versos que ainda me atravessam a
subjetividade, encerrando com “onde estará a rainha que a lucidez escondeu?”
Quem sabe ainda a encontre, se sobrepujar a instrumentalidade do lúcido,
razoável, inteligente. Estou agora atrás da rainha... a liberdade. Vou assim,
crendo mais fácil ver um disco voador, prato colorido descendo no tanquinho de
areia da creche...
Eu pressentia a necessidade de lidar com conceitos musicais, tornando-os
práticas rotineiras, ao mesmo tempo que algo insano, de outras naturezas,
sempre me lançava com as crianças em situações inusitadas. Muitas vezes as vi
como unidades em um coral, mas em outras, deixei assumirem o comando... e aí
as favas de flamboyant, que havia colhido na praça vizinha à instituição escolar,
fantásticos instrumentos de percussão, tornavam-se esquis nos pés dos
maluquinhos (ah, Ziraldo) e aquele encontro virou, como outros, uma estranha
festa de tombos e gargalhadas. A ludicidade assumiu importância maior do que
os objetivos específicos do planejamento. Retomo essas reminiscências no
sentido de ponderar sobre a necessidade de enfrentarmos as tensões cotidianas
que nos acometem, quando lecionamos. Para o professor de perfil técnico
(CONTRERAS, 2003), a tendência produtivista no agir predomina, ou seja,
tratar os estudantes como números. Assim podemos atingir melhor as metas
mercadológicas da educação tradicional, além de nos protegermos atrás dos
conteúdos e da própria instrução, esquivando-nos do envolvimento com os
problemas incontáveis que uma aproximação das crianças exige. Se, por um
lado reproduzi inúmeras vezes uma ideologia curricular voltada para
resultados, por outro, envolvi-me até às tripas com os dramas, histórias,
movimentos, de milhares de espíritos que comigo estiveram. Então recorro ao
poeta do mundo, furtando-lhe versos de A Lua no Labirinto:

Fique afirmado aqui que ninguém


passou perto de mim sem me compartir.
E que meti a colher até o cotovelo
numa adversidade que não era minha,
no padecimento dos outros. (NERUDA, 1996, p. 229)

Para exemplo deste compartir, lembro-me ainda hoje do pequeno Felipe,


que contraíra meningite meningocócica. Contou-me sua mãe no hospital,
sedada, olhos engolidos pelas olheiras, que, antes de morrer, ele cantava:
24

“Pomba, bapom!... Bomba, babom!... O bombom, bombom o!... Uá, uá, uá...”
(CHAN, 1997). Com as lágrimas a me queimarem o rosto, questionei o quanto
deveria me envolver no padecimento daqueles com quem me misturava, até
porque tive a sensação de que não suportaria tamanha entrega. Existe uma
tragédia, quando abandonamos os cânones da inteligência espacializante,
porque ao nos lançarmos nos jorros da duração, perdemos as rédeas ilusórias
com as quais fixamos os objetos no mundo. Meu pequeno flautista era uma
unidade, no meio de centenas a entoarem a Asa Branca, de Luiz Gonzaga e
Humberto Teixeira (1947), gerando uma massa sonora encantadora, nas
escadarias de um shopping center paulista. Eu poderia me manter na posição de
educador técnico, prestador de serviços, mas aquela criança, assim como outros
milhares em duas décadas, não era um número para mim, um simples soldado, e
sei que eu também não era apenas um comandante...
E aqui retomo miradas bergsonianas, ao passo que verifico a intenção
estética de Thelma Chan, ao inverter as sílabas das palavras, uma brincadeira
adorada pelas crianças, além de outras sonoridades sem sentido, como “uá, uá,
uá”... Vejo uma desconstrução da unidade vocabular, não no sentido aritmético
(fracionamento infinito), discutido em abordagens anteriores, mas quem sabe
em nome de uma emoção sonora, lúdica, e nada mais. Cantar ao contrário as
palavras parece algo bobo, descompromissado, como o brincar em geral é visto
pelos adultos, mas hoje vejo o quanto foram importantes esses pequenos
movimentos de resistência, quão significativos se tornaram para mim gestos
protagonistas, como alguém tocando flauta com o nariz! Até hoje me rendem
risos, inclusive neste instante.
Nossas crianças têm, acima de tudo direitos a serem respeitados,
prescritos por documentos oficiais, como a BNCC (BRASIL, 2018), DCNEIs
(BRASIL, 2010), RCNEI (BRASIL, 1998), Constituição Federal (BRASIL,
2012) dentre outros, mas são esmagados pela racionalidade pedagógica
cotidianamente. O logocentrismo do projeto moderno, consolidado no século
XVII, agrilhoou-os em todos os terrenos da cultura e rotinas humanas. Com
respeito à educação da infância, isto tem seculares consequências, que culminam
com a segregação, interdição, deslegitimação (FOUCAULT, 1999) de tudo o que
expresse negação de um sujeito universal adulto, masculino, heterossexual, ocidental,
cristão, branco, produtor de riqueza e conhecimento científico, que considere a
experiência intelectual como a mais importante dentre todas as realizações
humanas (JAY, 2009). Vale lembrar as bases de tal conhecimento, que há pouco
verifiquei nas abordagens de Bergson sobre o número (e pretendo enunciar
outras), inerentes ao papel pragmático da inteligência a governar nossas ações.
25

Impressiona-me verificar que tais percepções, ao endereçá-las ao que vivi na


docência com a Educação Infantil, auxiliam em uma crítica severa, que devo
empreender a minhas intervenções pedagógicas, especialmente quando via nos
pequenos estudantes unidades numéricas, abordando-os como múltiplos que
deveriam formar um conjunto musical, atendendo às mais diversas exigências
de organização espacial, geométrica, e... quando eu percebia um bocejo, entendia
semioticamente que era hora de abandonar o esquemático-quantitativo,
deixando que os sentimentos, a emoção estética de um timbre, ou a comicidade
de um gesto de algum amiguinho com aptidões humorísticas me salvasse, e até
assumisse a direção do encontro....

Sobre espaço e duração (o labor artístico... entre os grilhões da


inteligência e lampejos da duração interior)

Quando miro a envergadura do pensamento de Bergson, impressiona-me


o embate do mesmo com a Física clássica. Neste regime conceitual, um pilar me
parece profundamente abalado, a máxima: dois corpos não podem ocupar o mesmo
lugar, ao mesmo tempo. Bergson afirmara que, se fosse realmente impenetrável a
matéria (não confundamos com o caráter infinitamente divisível da unidade,
proporcionado pela ilusão do espaço), não haveria por que verificarmos objetos
cujas superfícies ofereçam maior ou menor resistência à fusão com outros, ou
ainda a ação dos fluidos imponderáveis. É bem verdade que a química explica o
encontro de gases de modo também espacializante, muito embora relativizando
tal imperativo científico. Bergson afirma que a matéria é qualitativamente
penetrável. Afirmarmos o contrário significará atender mais a um preceito
lógico, do que a uma necessidade física (BERGSON, 1978, p. 65). A
impenetrabilidade da matéria não se pode conhecer pelos sentidos, afirmara o
autor; já nos acostumamos a isto, em que pese experimentações de mistura
poderem nos levar ao questionamento de tais convicções. A impenetrabilidade
dos objetos, tal como concebemos, apresenta íntima relação com o pressuposto
de que importa mais a intuição do número absoluto e do espaço, solidários entre si, do
que a natureza qualitativa da realidade material.

Ocorre porém que, com elementos da consciência, conforme afirmou o


autor, torna-se mais pantanoso dimensioná-los, se não dispusermos da função
simbólica, de modo que esta modificará os mesmos. As percepções internas
serão filtradas pela mesma e o que teremos serão conteúdos doravante
quantificáveis, justapostos. O próprio tempo assim será representado pelo
símbolo, o que lhe conferirá índole espacial, de modo que pensemos o que nos
26

passou, como dentro de um campo ideal, o que nos remete ao calendário e


outros objetos culturais; para além disso, nossos estados psíquicos passam a ser
(ilusoriamente, vale-nos lembrar) representados por uma consciência reflexiva,
com que eu possa afirmar que aquela dor é maior do que esta última que vivi,
meu medo de assombração, menor do que de adoecer. Tais exemplos em nada
coincidem com o que seria uma experiência de percepção pura, imediata,
qualitativa. Ao buscar esta realidade, não tenho pretensões de encontrar
Aruanda, terra espiritual afrobrasileira, ou Macondo, de Garcia Marquez, ou
alguma suprarrealidade, mas simplesmente entender como possível o acesso à
sucessão de nossos estados conscientes (BERGSON, 1978, p. 72), vivendo
nosso próprio eu, sem separarmos estados presentes de anteriores. Lembremo-
los sim, mas sem a intervenção racional que os espacializa, justapõe, quantifica,
confere-lhes extensão, datas, grandezas. Vivermos experiências com a duração
supõe organizá-las tal como somos afetados por uma composição musical,
exemplifica Bergson. O que importa, se quisermos viver qualitativamente
emoções desta arte, é percebermos as notas de uma melodia em seu conjunto,
pelo que se penetram umas nas outras, solidárias. Cada nota contém o todo, do
qual não se separa, a não ser por um exercício abstrativo (p. 73). Vejamos que
não há por que espacializarmos os elementos sonoros, muito mais marcantes
vêm a ser os impactos de duração, de pura sucessão. Infelizmente os aparatos da
inteligência, mesmo na experiência musical, tendem a representar a sucessão
(nota após nota, pulso após pulso) instalada no espaço, de maneira que até
mesmo para apreciarmos uma canção, tendemos a transformar o que era
orgânico e qualitativo em um conjunto formado por elementos ladeados,
simultâneos, homogeneizados (impressos na partitura musical). Servindo-me de
um termo de Gordon (2000), para audiarmos (escuta atenta e crítica) uma peça,
procedemos aos mais diversos expedientes lógico-matemáticos, como deduzir o
compasso (para o obtermos, devemos contar os pulsos, verificando quando são
acentuados), a tonalidade a engendrar um encadeamento harmônico, a
dinâmica, concernente aos diferentes momentos de intensidade sonora, o
andamento, as texturas que reverberam, a tessitura de cada instrumento, e
assim por diante. A estrutura sonora de um quarteto de cordas, para ficarmos
com mais um exemplo, remete-nos a uma arquitetura de catedral – os timbres
graves do contrabaixo e violoncelo corresponderiam à fundação, os alicerces do
edifício; a viola, às paredes (sons médios); os violinos, ao telhado e torres
(agudos). O que seriam qualidades em um contexto de heterogeneidade assume
uma sólida concepção de altura, atributo eminentemente espacial. As escalas se
constituem exemplo da mesma heurística: escadas que podem ser ascendentes ou
descendentes, com intervalos maiores, menores, diminutos, com arpejos,
27

contrapontos, enfim toda a linguagem musical apresentando profundos nexos


com a matemática, tudo isto mediado pelas funções do símbolo.
Aqui apresento uma questão: não estaria a criação artística agrilhoada à
inteligência? Se assim for, não se impediria também o artista de acessar a
natureza profunda do espírito? Um objeto artístico, embora possa causar
emoções estéticas variadas, teria em sua gênese o labor utilitarista da
racionalidade. Concertos de Bach, como os de Brandenburgo, BWV 1046/1051,
compostos entre 1718 e 1721, diamantes de um gênio barroco, não teriam
evidentemente como nascer, sem o árduo trabalho da inteligência, operando
concepções pitagóricas, metrificações espaço-temporais, enfim, tudo o que exige
a linguagem da música erudita. O problema que tento cercar tem a ver com a
relação entre a função simbólica, inerente às linguagens, e a duração.
Procurando responder a tal questão, recorro ao livro O Riso (BERGSON,
1983), em que o filósofo discorre sobre o objeto artístico, alinhando-o à
realidade que nossa consciência possa encontrar, entendendo-o como produto
de uma direta comunicação com as coisas, nossos estados de alma mais íntimos,
o que vivemos. O artista, quando efetivamente cria, percebe a vida (natureza)
sem as distorções que a subjetividade simbólica, utilitária, opera, o que não
ocorre com a maioria das pessoas. O olhar artístico percebe uma cor nela
mesma, não voltada a algum interesse pragmático, o mesmo podemos pensar
sobre as notas musicais, a textura de uma rocha a ser esculpida, e assim por
diante. Segundo Bergson, mesmo quando volta a si próprio, o compositor
(poeta, escultor, pintor, etc.) busca uma percepção espiritual, na contramão de
todas as forças externas a nós, induzindo-nos a fazer o mesmo: vermos,
sentirmos o que sentiu, manuseando arranjos vocabulares, capturando
sensações “que a linguagem não foi feita para exprimir” (BERGSON, 1983, p.
74). Por analogia, vejo na escrita de Bach este esforço de operar com símbolos
musicais, levando-nos, apesar dos grilhões da estética barroca, a desligar de
tudo o que nos impede o acesso a uma realidade potente, pulsante, qualitativa,
ordinariamente rotulada, estereotipada pela ação sobretudo da palavra. A
inteligência nada cria, mas apesar dela, há momentos em que podemos vislumbrar
percepções novas sobre as coisas nelas mesmas. O autor ressaltou que não apenas os
objetos exteriores são desfigurados, mas nossos estados de alma, embaçados,
furtados naquilo de mais original que poderíamos apreender. Sentimentos de
ódio, tristeza, alegria, chegam à consciência filtrados, esquematizados; do
contrário, todos seríamos artistas, livres de impressões simbólicas impessoais,
uniformizantes, a nos retirarem a própria individualidade. Vivemos, segundo o
autor, em um campo em que nosso interior se debate com forças concernentes à
utilidade, que deve nos conservar, mantendo-nos exteriores a nós mesmos.
28

Aprofundando percepções acerca da duração...


Garatujas potentes se tornam estereótipos inertes

Quando concebo uma impressão presente que contenha outra lembrada,


ou irei as justapor ou... terei uma penetração de uma na outra, como em um
acorde musical e então me depararei com uma multiplicidade de natureza muito
diferente daquela da aritmética, desta feita totalmente qualitativa, bruta
expressividade, em nada homogeneizante.

Não me parece tranquilo conceber a duração em sua “pureza original”


(BERGSON, 1978, p. 76), aliás, torna-se penoso tal exercício, dentre outros
aspectos, pelo fato de não estarmos sozinhos na duração; as coisas externas a
nós participam disto. O autor ainda acrescenta o fato de que tendemos a
homogeneizar o tempo, de modo que os momentos duracionais (permitam-me
este adjetivo) nos pareçam exteriores entre si, tais como corpos, o que faz com
que uniformizemos as impressões de duração, podendo aplicar a elas
mensurações, localizações, enfim, de modo ilusório estabelecer quantidades,
alicerces para todas as ciências, consoante já afirmamos. Ao explanar sobre a
duração, o filósofo endereça contundentes críticas à Mecânica, Astronomia,
Psicologia, enfim a todas as epistemologias, sobretudo por conceberem o tempo
como uma grandeza. Temos para tal o exemplo do pêndulo do relógio: quando
o observamos, vem-nos a sensação muito convicta de que o tempo existe como
quantidade, portanto mensurável como são as laranjas em uma mesa. Kronos
assume o status de instância equalizadora, espacializada pela inteligência,
condição que permite a um instrumento formado por engrenagens internas,
números, ponteiros, dividir em partes idênticas uma ilusão a que denominamos
tempo, criação pragmática. Não se trata, adverte Bergson, de obtermos medidas
da duração e sim de abstrações simultâneas. Apesar da convicção contrária, ao
acompanharmos os ponteiros de um relógio, o que contamos são
simultaneidades, desenhadas pela função simbólica. O que se configura dentro
de nós, algo pantanoso, sobretudo nas camadas menos atingidas pela
linguagem, são movimentos de consciência, estados que se transmutam. Para
compreendê-los, tendemos a fixá-los e exteriorizá-los.
Uma inferência que me surge aqui e agora vai na direção do objeto
externo a nós, concebido em geral pelas linguagens (sempre capitaneadas pelo
símbolo): parece-me indiferente se estamos diante de um paredão da Chapada
dos Guimarães ou de uma escultura de Auguste Rodin, com relação ao modo
como nos relacionamos com tais elementos; ambos poderão ser acolhidos de
modo racional, então poderei os medir, analisar, estabelecer categorias de
29

observação, tal como fariam os estetas e geólogos. Em direção oposta, temos a


possibilidade de exorcizar todos os mecanismos inteligentes e linguageiros
(permitam-me este termo), de modo que a percepção possa capturar as coisas
em sua crua nudez, contexto de imediata comunicação, contato profundo,
segundo nosso filósofo:
[...]seríamos todos artistas, porque nossa alma vibraria
então continuamente em uníssono com a natureza. Nossos
olhos, ajudados pela memória, recortariam no espaço e
fixariam no tempo quadros inimitáveis. Nosso olhar
captaria de passagem, esculpidos no mármore vivo do corpo
humano, fragmentos de estátua tão belos como os da
estatuária antiga. Ouviríamos cantar no fundo de nossas
almas, como música por vezes alegre, o mais das vezes
lamentosa, sempre original, a melodia ininterrupta de nossa
vida interior. Tudo isso está em torno de nós, tudo isso está
em nós, e no entanto nada de tudo isso é percebido por nós
distintamente. (BERGSON, 1983, p. 72)
Neste precioso excerto, tenho uma ideia mais nítida do que seria o bem-
vindo fim da instituição artística, ao vivermos um cotidiano em que fosse
rasgado o grosso véu que se interpõe, segundo o autor, entre a vida interior
(bem como o que nos rodeia e quase não percebemos) e nossa consciência. Para
os artistas, o véu é mais leve e translúcido, posto que lhes permite vivências
interditadas pela necessidade que orienta nossa relação com as coisas, de modo
a nos mantermos vivos, agindo pragmaticamente. Assim, toda realidade a nos
escapar de tal lógica será intuída de modo confuso. Quando for desenhar um
rosto em grafite, o que terei no comum das vezes serão as formas que acredito
ver, que a inteligência determina; ainda que a pessoa (modelo) esteja diante de
mim, ou tenha dela uma sólida memória, se eu não for um artista, certamente
reproduzirei o que aprendi, sobretudo nos anos de Educação Básica:
estereótipos de rosto, espacializados, homogeneizados, conforme já
descrevemos neste livro, recorrendo às abordagens bergsonianas acerca da
unidade numérica. Tivesse eu a oportunidade de arrancar o véu, poderia entrar
em contato com linhas, volumes, esquisitas pulsões da forma, ritmos da
duração. Ainda recorrendo ao fragmento há pouco apresentado, com o auxílio
da memória, encontraria “quadros inimitáveis” (p. 72). E o desenho sairia
estranho... prenhe de vibrações, gestos tateando a mobilidade...
Não me agrada a sensação instantânea de redigir uma exortação, espécie
de profissão de fé, erigindo mais um altar na ágora acadêmica. Sei contudo que
30

a realidade movente revelada pelo autor nos envolve mesmo a todo instante,
razão inclusive de muito sofrimento a todas as criaturas, cujas subjetividades se
produziram com um véu mais transparente, e creio não serem apenas os
artistas.
Olho neste exato instante o fundo da íris de uma cadela vira-lata
chamada Nininha. Olho e vejo pela primeira vez... Por segundos, abandono o
que sei do mundo, das coisas, de cachorro, cor, mamíferos, luz, costela, cimento,
jornal, monografia, carrapato, tudo mais... e encontro algo inominável! ... !! ... ?!
... !?... Nisto creio residir a Metafísica de Bergson. Dizer algo sobre tal sensação
é perdê-la, mas vamos lá... Olho azul claro (o outro é castanho), em torno de
cuja pupila gravitam pontinhos pretos. Jamais olhei Nininha assim... Está
surpresa, interrogativa, aguardando um passa!... Eis o encontro, naquilo de mais
simples, potente, qualitativo, de que trata o autor... Comunicação sem
linguagem! Sim, um contexto de estranheza movente...
Retomando minha história com a criançada bem-pequena, afirmo que
testemunhei diariamente seu sofrimento com o logocentrismo, regime de poder
que subjuga toda a potencialidade que um cidadão de três anos apresenta, com
suas garatujas arbóreas. Quando o encontrarmos aos dez, teremos a triste
constatação de que a árvore que desenhava na Creche, expressando criação e
autoria, tornou-se idêntica às desenhadas pelos colegas. Pensando com nosso
autor, a conclusão não poderia ser outra: a instituição escolar (e não apenas ela)
cuidou para que as linguagens e seu respectivo compromisso utilitário,
uniformizante, fossem transmitidas às crianças, num longo processo de
adestramento. As propostas pedagógicas em geral perdem de vista a
importância da singularidade com que nossos atores infantis observam o
mundo. Tenho para mim que olham, tocam, cheiram, ouvem as coisas, tal como
faço com Nininha no presente instante, sobretudo porque em tenra idade, ainda
não passaram pelo longo processo de sujeição, de aquisição dos múltiplos
códigos com os quais deverão se inserir na cultura a que pertencem. A educação
deve tornar humanos os seres humanos (DÜRKHEIM,1952).
Preciso também afirmar que a reflexão aqui empreendida não tem a intenção
de deflagrar uma cruzada contra a linguagem (destaque à palavra), o que seria, no
mínimo, ingênuo. Bergson declarou que a inteligência tem sua gênese na
animalidade, que opera no sentido de nos manter vivos na cadeia biológica,
atuando sobre o ambiente, buscando maneiras de fixar identidades no grande
fluxo do real, da diferença. Eis a base sobre a qual se desenvolve a razão. Nosso
grande dilema é que esta assumira funções que não lhe cabiam, sobretudo com
respeito ao contato e compreensão da realidade, engendrando o símbolo. O
31

instinto pragmático sobrepõe-se à intuição, dificultando sobremodo


entendermos o aspecto temporal da consciência e da duração psicológica. A
duração constitui-se o fundamento da experiência, memória e natureza do real.

Multiplicidade e duração. As celas da representação e o arbítrio da


homogeneidade

Para a multiplicidade, após termos anteriormente refletido sobre sua


dúbia natureza, com relação ao número – situação em que a formação de
múltiplos tanto poderá conceber os objetos materiais, quanto os fatos de
consciência (desde que haja a operatividade do símbolo), espacializando-os,
distinguindo-os na homogeneização da temporalidade – devemos tratar da
outra (e grandiosa) multiplicidade: aquela inerente aos estados de consciência
em sua “pureza original” (BERGSON, 1978, p. 85). Deparo-me então com um
contexto qualitativo, heterogêneo, em que os elementos não correspondem a
números, que formavam distinções e justaposições (após serem recortados da
realidade), donde posso crer em uma multiplicidade que abandona o raciocínio
lógico-matemático. A faculdade de contar, segundo o filósofo, dar-se-ia apenas
em estado de potência, uma multiplicidade liberta da quantificação, em que
podemos com esforço acessar paisagens interiores, com o que têm de potentes,
para nosso deleite e horror (impressões do náufrago que redige).

Havemos de ponderar que a ideia de distinção também muda. Na


homogeneidade do quantitativo, a distinção entre os objetos/fatos se fazia por
justaposição dos mesmos no espaço, numerando-os; na heterogeneidade da
duração, existe discriminação, mas não se apresenta abstrata (fruto de operações
simbólicas) e sim intuída pela consciência, cujos elementos se organizam de tal sorte que
o espaço não é concebido, então se enriquecem, fundindo-se uns aos outros, distintos
qualitativamente.
A inteligência, responsável por nossa manutenção na existência, de tal
modo cristalizou as concepções espaciais (também atingem a intuição de tempo,
metrificando-o), que se tornou impossível para o senso comum raciocinar sobre
a multiplicidade sem nexos com o número e o próprio espaço (BERGSON,
1978, p. 86). Reconheço a contundência de tal espinho. Somente mediante um
exercício árduo é que consigo pensar o tempo sem o espacializar, adentrando a
multiplicidade das sensações, emoções, fatos da alma, plano movente em que o
tempo se desligou da representação simbólica.
32

Madrugada passada, de tanto meditar nas questões concernentes à


duração, tive um sonho... “Puxa, sou seu professor de novo?” Sala imensa, branca,
gélida. Respondeu a plateia: “Sim, Tio Marlon!” (faixa etária: 10 anos – Ensino
Fundamental II)... Surge bruscamente a coordenadora, Dona Tereza... os mesmos
olhos azuis, cabelos castanhos grisalhos, aristocrática postura, disparando: “Recebemos
reclamação dos pais pelo seu jeito de se vestir, professor! Não é a primeira vez!”
Afirmou dois tons acima de sua carola impostação. “O quê? Qual o problema com a
minha roupa, Dona Tereza? Minha calça xadrez? A tatuagem? Diga para virem
falar comigo! (pensei em contar que fazia pós-doutorado, ciente de que esta credencial
funcionaria como um título de conde para aquela gente, mas detesto parecer pedante,
sou muito humilde). Repentinamente, na mesma sala, eu era estudante, estava sem
camisa, assim como os amiguinhos, que chegavam do recreio suados. A professora iria
aplicar prova, desesperei-me... não sabia que estava agendada. Fui implorar para não
fazer. Ela me disse: “Mocinho, você já é doutor, vai tirar de letra!” Ao que retruquei,
quase chorando: “Eu só tenho dez anos, Tia Lucia”. “Olha, menino, você quer que eu
chame a Tereza?”

A consciência em seu interior, pântano em que me debato, presenteou-me


(ou me pregou uma peça) com essa narrativa, acúmulo de reminiscências,
feridas purulentas, pingentes em porta-joias, a Lua que reluz no Labirinto
(NERUDA, 1996, p. 229), por onde ando... Com pavor e manquejante coragem,
vou... Vem-me então uma clareza sobre o que enxergou Bergson: paisagens
qualitativas em que duramos, desde remotas eras, fraldas cheias, chupeta no
lixo... apesar de, no mais das vezes, acessarmo-las pelas celas da representação e
seus signos-grandezas. Miro assombrado as palavras do mentor:
[...]o eu interior, o que sente e se apaixona, o que delibera e
se decide, é uma força cujos estados e modificações se
penetram intimamente, e sofrem uma alteração profunda
quando os separamos uns dos outros para os desenrolar no
espaço. Mas como este eu mais profundo não faz senão uma
única e mesma pessoa com o eu superficial, parecem
necessariamente durar da mesma maneira. E como a
representação constante de um fenômeno objetivo idêntico
que se repete divide a nossa vida psíquica superficial em
partes exteriores umas das outras, os momentos assim
determinados originam, por sua vez, distintos segmentos
no progresso dinâmico e indiviso dos nossos estados de
consciência mais pessoais. (BERGSON, 1978, p. 88)
33

Sinto um pesar, quando fica evidente que o eu superficial se revela refém


da racionalidade, que age fracionando nosso psiquismo em segmentos
exteriorizados, separados entre si, para serem conhecidos e controlados,
recolhidos do abissal poço do eu interior. Do mesmo modo que discrimina
objetos materiais, a inteligência justapõe nossos estados mais íntimos, na
homogeneidade do espaço abstrato. Prova do alcance de tais mecanismos
pragmáticos vem a ser o fato de que até mesmo nossa compreensão do que seria
a duração se constitui reflexo da penetração da espacialidade no domínio da
consciência pura, segundo Bergson (1978, p. 88). Assim, o eu superficial parece
regular-se pelos ponteiros do relógio; nossos sentimentos, ideias, pulsões,
instintos, podem, dessa maneira, ser enquadrados. Então assumimos logopoderes,
de modo que conduzamos nossa vida arrazoadamente. Quem seria insano de
montar no corcel selvagem, sem sela, sem rédeas, do eu desconectado da
linguagem? Meu sonho, levando-me de volta à cela de aula, expressa de modo
didático aquilo que o filósofo caracteriza como experiência de duração. Quando
sonhamos, segundo ele, há um afrouxamento das funções orgânicas
logocêntricas, de sorte que não mensuramos o que dura, apenas sentimos;
aquilo antes quantificável tornou-se qualitativo. Sem o comando da linguagem
ordinária, temos estados confusos, desinterditados, móveis, praticamente
inexprimíveis (sobretudo porque o símbolo precisa fixá-los para os representar).
Ali lançado nos labirínticos corredores do sonho, o menino recém-alfabetizado
era também o docente de Ensino Superior, o mesmo que oprimia universitários
nas licenciaturas e pós-graduação sentia a chibata de uma avaliação, a ameaça
da instituição disciplinar; moleque sem camisa, vulnerável a toda sujeição.
Quando acordei, recobradas as faculdades inteligentes, pude organizar no
espaço homogêneo aquelas impressões, então fiquei mais tranquilo, com a
análise do eu, sua refração e consequente subdivisão, categorização; pude me
dissecar, de maneira a sofrer menos, posto que me “subloquei”... fracionando-me
em uma linha espaço/temporal, consigo discorrer melhor sobre o que vivi,
ainda que quanto mais o faça, mais me afaste do “eu fundamental” (BERGSON,
1978, p. 90). Ao me reafirmar náufrago, não estou atrás de efeitos retóricos,
mas expressando o que vem a ser uma travessia tragicômica, heroica, trôpega.
No instante em que rabisco esta frase, sou a síntese de dezenas de milhares de
horas na docência com as crianças...
um poema
que não se entende
é digno de nota
a dignidade suprema
de um navio
34

perdendo a rota (LEMINSKI, 2013, p. 71)

Como timoneiro dos encontros, não entendia muita vez a inquietação


que jamais me abandonara. Hoje, vejo que há dignidade em não buscar
compreensão. Melhor sentir o que me passa, durando, ouvindo as canções
entoadas por vozes tão doces quanto as flautas... “Tio Marlon, ele me bateu!”...
“Ah, moleque! Não faz isso! Pede desculpa, agora!” E eu gostava de ouvir os
tambores. Tum, tum, pá! Tum, tum, pá!... Tamborins respondiam: Tá, tá, táá! Tá,
tá, táá!... O prato também (a cada fim de compasso): Tchhhh... Tchhhh...
Coraçõezinhos vibravam juntos...
Uma inferência intuitiva (desculpe este paradoxo3) sempre me
acompanhou: a aposta no ritmo. Havia crianças com Síndrome de Down,
autismo, dentre outras “deficiências”, que revelavam às vezes aptidão maior do
que a de muitos adultos “normais”. Aquilo me mostrava que a expressão
musical independe de habilidades intelectuais, o que me intrigava, sobretudo
por revelar veredas desconhecidas da consciência, em que se via, em um
lampejo, o ser pleno; olhinhos fulgurantes de três, quatro anos, absolutamente
entregues à sucessão de gestos percussivos, que se fundiam uns aos outros,
iluminando, compactando um coração tribal, coletivo... e batiam com força, a
mãozinha chegava a inchar, sobre a pele do tambor... Tum, tum, pá!

Vêm-me ao presente esses fatos idos, almas infantes, não raro indóceis,
sempre pedindo presença, novidade, mobilidade. Vejo o quanto escapavam das
representações de toda a estatuária psicopedagógica, e que procurarei neste
livro mencionar.
Ao mergulhar nos moventes caleidoscópios da memória, tal como fiz há
pouco, tenho ciência de que duram, apesar do quanto mudam a todo instante,
pelo que dançam qualitativamente e se interpenetram. A pequena flautista Ana
Clara continua se movendo; a cada sorriso anil, algo dela enquanto qualidade
ontológica se mistura a outro traço, de modo que a fadinha loura vem até mim,
nebulosa, fazendo coraçõezinhos no papel para o “Tio Marlon”. Tenho essa
percepção interior, ao passo que, se for visitá-la, encontrarei uma universitária,
talvez mãe, ou quem sabe tenha fugido para o Xingu, unindo-se aos Xavantes.
Fato é que aquilo que vem do exterior também se movimenta. Nisto mais uma

3 A inferência se constitui núcleo da racionalidade, para a maioria dos autores ligados à Teoria do
Conhecimento, como Dewey (1959). Sendo racional, como poderia ser intuitiva? Apelo para o seguinte
argumento: até para falarmos de desrazão, precisamos da razão...
35

dificuldade em livrar-me da razão espaço-temporal. Como não pensar em uma


linha cronológica, ao juntar as duas Anas Claras? Declarou Bergson:

[...]na alma humana há somente progressos. O que se deve


dizer é que toda sensação se modifica ao repetir-se e que, se
não me parece mudar de um dia para o outro, é porque dela
me apercebo agora através do objeto que lhe serve de causa,
através da palavra que a traduz. A influência da linguagem
sobre a sensação é mais profunda do que normalmente se
pode pensar. Não só a linguagem nos leva a acreditar na
invariabilidade das nossas sensações, mas induzir-nos-á em
erro, por vezes, quanto ao caráter da sensação
experimentada” (BERGSON, 1978, p. 91)
Por mais que se repita uma sensação, embora possa não parecer, ela
sempre se modifica. A convicção contrária que temos comumente se dá em
virtude do poder da linguagem (especialmente a palavra) em congelar os
objetos do vivido. Bergson assegura que não se trata apenas de tornar fixos os
mesmos, mas até de nos enganar com respeito à sensação vivenciada, como
verificamos neste fragmento do autor. A prerrogativa que as palavras têm de
congelar identidades se interpõe entre as sensações e nossa consciência. O autor
vai além, afirmando que a palavra bem-acabada cristaliza o que há de estável,
comum e impessoal em nós, esmagando, senão encobrindo “as impressões
delicadas e fugitivas da nossa consciência individual” (p. 92). Para que houvesse
um modo menos incoerente de a inteligência capturar cada impressão, teria
para tal que engendrar palavra por palavra, e mesmo assim seria algo inglório,
pois estas tendem a impor sua estabilidade ao instável, movediço. Nada porém
se compara ao esmagamento da consciência, em relação aos sentimentos:
Um amor violento, uma melancolia profunda invadindo a
nossa alma: são infindos elementos diversos que se fundem,
se penetram, sem contornos precisos, sem a menor
tendência a exteriorizarem-se uns relativamente aos outros;
a sua originalidade tem este preço. (BERGSON, 1978, p.
92)
Eis o abismo de que trato. Como exteriorizá-lo, conforme querem as
Ciências Educativas, sem o deformar? Raciocinando com o filósofo, fazemos isto
de pronto, quando inserimos em uma multiplicidade sentimentos como a
melancolia, discriminando e isolando aspectos. Para tanto, buscamos
materialidade, ou seja, objetos-causa. Quantos pequeninos tristinhos me vêm à
36

mente. Não foram poucas as vezes que os sentei em meu colo, naqueles minutos
em que estavam comigo. O cachorro que morreu, o dente que caiu, a mãe no hospital.
Os sentimentos em duração se sucedem, acontecem, interpenetram-se. Ao
separá-los, criamos representações para tais, de modo que, instalados no tempo
espacializado, possamos compreendê-los. Adverte Bergson que, com isto,
ficamos à sombra de nós mesmos. Podemos até nos certificar de que analisamos
o contexto, mas o que verdadeiramente fazemos é substituir aqueles
sentimentos por estados inertes, justapostos (como em uma coleção),
comunicados pelas palavras; estas antigas moedas, portadoras de resíduos
impessoais, pactuadas pela coletividade (1978, p. 93).
Não por acaso temos o antiedipianismo dos autores da Diferença, como
aparece nos escritos de Deleuze, Guatarri, Foucault. Poucas vezes me deparei
com tamanha solidez de uma representação para nosso desejo, quanto foi o
encontro com a catedral triádica de Freud. Prova do alcance de tal engenho
vem a ser o fato de a concepção edipiana figurar entre as célebres e históricas
representações da infância (SARMENTO, 2007), conforme veremos na seção
Considerações sobre Kronos e a criança universal abstrata. Quantas vezes
vi pareceres psicopedagógicos sobre crianças agressivas, atestando que assim
agiam porque a mãe as abandonava, ou o pai não lhes dava atenção. Claro que
se ancoravam em uma notória teoria psicanalítica, que por sua vez, alicerçava-se
em um projeto epistêmico, arquitetura inteligente. Às vezes, tenho a sensação
de que não vale a pena atirar mamonas com meu estilingue nesses paredões.
Sou um velho garoto travesso, quem sabe não esteja apenas querendo acertar
uma vidraça, pelo prazer da traquinagem...
Dói bastante a sensação de ficar à sombra de mim mesmo. Parece haver
outra vida, coisa de bicho, de duende, passando pelas margens do que me tornei.
Lançado na existência, aos cinco anos, lembro-me do Cristo crucificado no mais
alto altar, suas chagas vivas refletindo os vitrais violeta-ultramarinos que
circundavam o templo; chegava à casa do vizinho (a mãe era artista plástica,
hiper-realista, produzia afrescos de três metros por dois de altura) e me
deparava com índias nuas, imensas, naquele padrão televisivo, no meio da
floresta, fartos peitos de bronze, cabeleiras negras deslizando sobre o regato
cristalino... Naquele subúrbio da bela Sete Lagoas, MG, configuravam-se forças
que me atravessariam pelo resto da existência, dentre outras. Devo interditar
esses sentimentos, nunca foram coisa de criança, muito menos a paixão; a
devoção religiosa, tudo bem, os adultos admiram... “tão pequenininho e já se
ajoelha no quarto!” Eis a realidade: caminhamos sempre à margem de nós
mesmos. Questões me assaltam: Quando e como fui criança? Nos tijolos de
37

argila quente que buscava na olaria próxima a minha casa, esculpia sudários
elogiados... Negociações de linguagem? Os rabiscos de mulheres nuas, tinha
que rasgar imediatamente...
Sei que perdi muito do viver, sempre mais interessado na aprendizagem
do que qualquer outra experiência nas interações com as crianças. A obsessão
em ensinar um instrumento, ritmo, canção, atropelava rotineiramente contatos
(das consciências ali confinadas) com o eu interior, e todos os sentimentos,
impressões, sustos, que pudessem expressar. Uma vez fiz os pequenos chorarem
com a canção O Caderno, de Toquinho e Mutinho (1983). Houve reclamação das
mães. Nunca mais voltei àqueles versos e melodia tão melancólicos. A razão
pedagógica interdita sentimentos, devemos proteger as crianças da tristeza,
raiva, alegria, prazer, morte... O eu que vibra incondicionalmente, dura, pulsa,
apaixona-se, não é coisa de criança, você me entendeu? Pega esse livro, agora! E
para de chorar, menino! Quero ver seu caderno! Quietinho!

Fantasmas a se projetarem no espaço...Asserções sobre o associacionismo

Para entendermos mais acuradamente as razões que nos afastam a


consciência da duração pura, além do que procurei demonstrar com nosso
autor, destacando-se a espacialização, a unidade numérica, metrificação do
tempo, o papel da linguagem, há um aspecto de grande relevância com relação a
esta última, merecedor de atenção: o associacionismo. Para Bergson, o mesmo
teria relação com a lei de conservação de energia, um imperativo universal da
Mecânica, que alicerça de modo integral o pensamento científico. Segundo tal
lei, toda a materialidade – formas exteriores, corpos, átomos – se move por uma
força que jamais desaparece, transferida sem perdas entre os tais, conceito
relativo à necessidade, a um determinismo físico, que concebe átomos inertes e
deslizantes, não existindo novidade. Trata-se de um preceito que até nossos
dias governa as Ciências Naturais, assim como ainda impacta a percepção sobre
nós mesmos. De que modo isto se daria? Pela tendência racional de nos
projetarmos em formas do exterior, o que faz com que pensemos que a duração
da consciência seja aquela composta por átomos em sua inércia e necessidade.
Há uma forçosa, ilusória aproximação entre a duração verdadeira e a duração
aparente (BERGSON, 1978, p. 109). O filósofo assevera o quão falacioso vem a
ser tal procedimento. A conservação da força se estenderia a todos os fatos da
existência; tal parecer viria reforçado pelo preconceito cientificista à Metafísica
(saber até então considerado descolado do universo material).
38

A perspectiva determinista, característica do pensamento físico, migrará


para um determinismo psicológico; isto supõe uma perspectiva associacionista
do espírito. Eis aqui um entendimento deficiente acerca do eu e respectivos
estados de consciência. Haveria naquele determinismo a rotina de se conceber o
eu como um “agregado de estados psíquicos, em que o mais forte exerce uma
influência preponderante e arrasta os outros consigo” (p. 112). Identificamos
nessa perspectiva teórica a tendência de situar os estados internos em um
campo homogêneo, tal como se daria com o objeto externo, de sorte que
geometricamente possamos os distinguir. Bergson recorre a exemplos tais
como a vontade de se cometer um crime, aludindo a contribuições de Stuart
Mill e Alexandre Bain, que abordaram pulsões desta natureza, destacando a
facilidade em discriminar e nomear, com grande rigor, elementos como desejo,
medo, aversão, promovendo demarcações espaciais, como a delimitação de que
um conflito como tal (desejo de matar) se daria em um lugar em que o eu se
debate entre a sede por realizar um prazer e o temor pelo remorso. Bergson
pondera que, mesmo aqueles aversos ao determinismo, têm afeição às
associações que fazemos entre prazeres e sofrimentos a terminologias
(abstrações) com identidade própria, revelando a velha arbitrariedade dos
símbolos (SAUSSURE, 2000) que engendra códigos a produzirem linguagem.
Outra deformidade: uma vez consolidada a visão determinista, que
promove (vale-nos reafirmar) a associação de fatos conscientes internos a
objetos, ou mesmo ao deslizar de átomos sustentados pela conservação de
energia (logo pela condição necessária de inércia, que pouco coincide com as
pantanosas condições do eu interior), revela-se a tendência de atribuir
causalidade e finalidade a nossos estados de consciência. Uma vez
geometrizados, assumem as formas que o entendimento assim determinar,
conforme o fim a que se prestam. Aqui temos o flagelo associacionista de se
amputarem os aspectos qualitativos e estranhos à razão instrumental, que tanto
caracterizam o que verdadeiramente nos acontece. Operando-se tais mutilações,
em nome de associarmos símbolos a fatos conscientes, temos garantida uma zona de
(des)conforto, de sorte que as Ciências possam redigir seus tratados, uma vez que nossa
duração psicológica passa a ser também atomística, estados interiores recebem nomes,
identidades fixas, impessoais e universais.

Fico com a sensação de que tal maneira de pensar a existência se torna


inatacável, autoblindante. Quem nunca sentiu o medo? Conforme abordei há
pouco, até mesmo os adversários do determinismo concordam em uníssono com
isto: os sentimentos precisam de nome. Tenho medo. Você, leitor(a), também o
tem, ainda que seja do espelho, do fisco, feitiço, da sogra... Apresento aqui mais
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uma questão: Sendo a inteligência (em busca de controle e sossego) uma


maquinaria operadora de identificação, fixação, congelamento,
despersonalização de nossos estados interiores (movediços, interpenetrantes,
qualitativos), não estaríamos fadados à previsibilidade das descrições científicas,
com relação a nos compreendermos? Bergson, conforme já relatei neste livro,
afirmara que o senso comum não teria condições de romper com os grilhões da
inteligência (destaque à faculdade espacializante), mas então indago: e nós, que
nos proclamamos educadores, epistemólogos, estetas, metafísicos, ou o que seja
(cada um com seu cajado roto...), conseguiríamos remar na direção das
proposituras bergsonianas (e então destaco a liberdade) se, até para tecer tal
reflexão, preciso destas palavras – entes que, de certo modo, satanizamos com o
filósofo, pelo que nos afastam de nós mesmos – contíguas ao hábito logogênico
de acreditarmos que o pensamento se constitui também de átomos, portanto se
insere na inércia necessária dos objetos externos a nós, teríamos como abdicar
de uma postura associacionista? Não se trata de pouca coisa. Peirce (2005), o
mais profícuo autor de lógica, afirmara que não existe pensamento sem signos.
Se atentarmos a tal proposição, que coincide hegemonicamente com
perspectivas de outros autores como Dewey (1959) e Vygotsky (1991), veremos
que a hipertrofia da linguagem torna quase inimaginável pensarmos a realidade
de uma duração interior pura, que supõe uma experiência alheia aos símbolos
(signos mais complexos, consolidados, pactuados coletivamente).
Eis a grande falácia associacionista: a concretude do que nos passa no
espírito é substituída pelo correlato simbólico da mesma; e quanto mais
mergulhamos naquilo que acontece no eu interior, mais clara se torna a
percepção do artifício. Este se viabiliza também pelo tangenciar das fronteiras
do eu com a exterioridade, intuindo-se impressões simplórias, impessoais, dados
de superfície que se revelam, diríamos, universalizáveis. Voltando ao
sentimento de medo, ou a outros, como a inveja, o amor, ódio, melancolia,
veremos que, apanhados pelas palavras, ou outros procedimentos
associacionistas, deixam-nos a sensação de uma existência objetiva, comum a
todas as almas. Bergson (1978, p. 115) todavia pondera que, se escavarmos
abaixo daquela superfície, reconheceremos que cada indivíduo tem seu modo
próprio e intransferível de amar, temer e assim por diante. A linguagem
apresenta, tal como na aritmética, a prerrogativa/pretensão de, uma vez
associadas entre si as ideias e justapostas (quando deveriam se interpenetrar,
para haver um mínimo de correlação com o que representam), produzirmos
inabaláveis descrições de nossa vida interior. O que iremos mirar, com tais
expedientes, será:
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[...]uma psicologia grosseira, vítima da linguagem, a que


nos mostra a alma determinada por uma simpatia, aversão
ou ódio, como tantas outras forças que pesam sobre ela.
Estes sentimentos, contanto que tenham atingido uma
profundidade suficiente, representam cada um a alma
inteira, no sentido de que todo o conteúdo da alma se
reflecte em cada um deles. Dizer que a alma se determina
sob a influência de qualquer um destes sentimentos é
reconhecer que se determina a si mesma. O associacionista
reduz o eu a um agregado de factos de consciência,
sensações, sentimentos e ideias. Mas se nestes diversos
estados nada mais vir do que o nome que os exprime, se
retém apenas o aspecto impessoal, poderá justapô-los
indefinidamente sem obter outra coisa a não ser um eu
fantasma, a sombra do que se projeta no espaço.
(BERGSON, 1978, p. 116)

O excerto acima me lembra o quanto nós, educadores, muita vez


amparados apenas pelo senso comum ou até por alguma perspectiva teórica,
tendemos a reduzir caricatamente nossa percepção sobre as crianças, afirmação
já apresentada no presente trabalho, com relação à unidade numérica. Também
o fazemos, a partir de algum traço psicológico estereotipado (isto a linguagem
faz com maestria). Quantas vezes verifiquei colegas alertando-me: “Aquele
menino ali é de matar! Vingativo!” ou “Essa chora o dia inteiro... depressiva” Eu
também cometi delitos assim e muitas vezes me surpreendi, após interagir um
pouco mais com a criançada. Eis um espinhoso exercício docente: descartar as
leituras rasteiras, aligeiradas, utilitaristas, que em geral fazemos dos miúdos.
Como afirmara Deleuze (2007), o clichê nos protege do caos, da tragédia. Isto
declarou com relação à produção artística, mas vejo o quanto tal percepção ecoa
também na relação entre educador e criança. Mais econômico (no sentido de
pouparmos toda sorte de esforços) se revela o procedimento linguageiro de
carimbar todos os conteúdos interiores possíveis, de modo que a expressão de
um deles no rosto de um pequeno cidadão sob nossos cuidados seja suficiente
para descrevermos sua alma, tal como fazemos nos portfólios (sínteses
avaliativas) apresentados aos pais nas reuniões pedagógicas. Se não cuidarmos,
entregaremos dossiês de pequenas assombrações, que só habitam o imaginário
docente (e dos pais), a anos-luz da realidade pulsante que pretendem
representar. É árduo o trabalho do artista e também do educador a querer
driblar clichês, que tanto ajudam (ah, o planejamento... ah, os relatórios...),
41

como impedem o surgimento da novidade. Protegem-nos do caos – encontro


com subjetividades discentes – e nos mantêm no comando, em rotinas
previsíveis, estéreis. Recorro ao fazer artístico por reafirmar uma proposição
bergsoniana e de toda a Filosofia francesa contemporânea: devemos viver de tal
modo que nosso cotidiano se configure uma obra de arte.
Há um velho chavão de pedagogas que se lançam na carreira da docência
que determina: “Agora que você é professora, esqueça tudo o que aprendeu na
faculdade”. Quem esteve por mais de duas décadas entre as paredes de
instituições de Educação Infantil sabe o quanto isto se fossilizou (e continua
vivo), não somente enquanto lugar comum na profissão, mas como rotina
orientadora de práticas arcaicas, conservadoras, que paralisam espíritos novos,
recém-formados, tentando agir diferente. Lembro-me de duas ex-alunas da
Pedagogia que, há cerca de três anos, foram aprovadas em concurso público em
uma prefeitura de Mato Grosso. Assim que assumiram suas turmas
(denominadas agrupamentos – faixa etária: 3 anos), tiveram a ideia de
construírem nos jardins da Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) um
parque sonoro. O que seria motivo de engajamento de todo o corpo docente
tornou-se razão para ciúme, intrigas várias e retaliações. As moças não
desistiram, para alegria dos pequenos músicos; reuniram tampas de panelas,
guizos, clavas, favas de flamboyant, ganzás e outros objetos tímbricos,
montando a instalação. Você, que lê este trabalho, custará a crer, mas até
panelas foram furtadas, itens subtraídos por colegas docentes, nas semanas que
seguiram. Apesar dos infortúnios, a intervenção sonora permaneceu por dois
anos, inspirando outras unidades escolares a também criarem parques
sensoriais. Trago tal relato no sentido de ilustrar a tendência humana de não se
arriscar, inclusive às vezes sabotando iniciativas que quebrem a previsibilidade
do cotidiano. Conforme já afirmei, recorrendo a Bergson, a inteligência nada cria;
quando verificamos processos criativos nas realizações das linguagens, isto ocorre
porque de algum modo a realidade movente, heterogênea da duração psicológica ecoa
nos trilhos da razão, sempre pelas vias intuitivas.

A dicotomia teoria / prática tem sido exaustivamente analisada por


estudiosos da Educação. Dentre tantos, destaco as abordagens de Dewey
(1959), segundo o qual a díade teria nascido na Atenas de Aristóteles: destinado
aos cidadãos (menos de 10% da população), o direito ao conhecimento
verdadeiro (episteme – teoria); para o restante (mulheres, escravos, soldados,
artesãos, etc.), a incumbência de realizações práticas. Em Bergson, vejo que a
inteligência intelectualista opera, de modo a engendrar, perpetuar, legitimar a
cisão. Na cultura dita ocidental, este raciocínio artificial e ilusório consolida-se
42

na modernidade (TREVISAN, 2019). Fosse outro o caminho tomado, teríamos


quem sabe melhor sorte. Existem nações como os Yanomâmis, em cuja cultura
não faz o menor sentido aquela separação. Não afirmo porém que não tenham
seus símbolos, valores, ritos; o que observo é não terem criado abstrações a
ponto de defenderem uma ruptura entre o prático e o teórico, desfigurando o
que nos atinge e transforma. Com relação ainda ao lugar comum pedagógico,
defendendo que esqueçamos o que vimos na licenciatura, quando assumimos
funções na instituição escolar, vejo uma inequívoca atualização do paradigma
greco-latino. Noto quanto é nociva tal concepção e como a mesma tem
consequências diretas em relação ao desinteresse discente pelas rotinas
escolares. As crianças se ressentem por estarem confinadas em gradeamentos
curriculares logocentrados, cujas concepções passam longe de valorizar
expressões intuitivas, mesmo nas disciplinas artísticas, como Literatura, Artes
Plásticas e outras. Os fatos da consciência que se fundem uns aos outros, alheios
ao símbolo, constituintes da duração, não têm vez nem voz na escolaridade.
Certamente encontram na aprendizagem algum modo de expressão, mas que
em geral são rechaçados, conforme já afirmei. A maçã azul certamente vai ser
corrigida, apagada no caminho, para que surja aquela da bruxa, bem-vermelha.

Sobre a liberdade... gotas de chuva na superfície lacustre

Posturas associacionistas, pelo que vimos expondo, com O ensaio embaixo


do braço, remam na direção contrária de ações livres. Destaco nesta seção a
relevância de buscarmos uma análise das relações da inteligência com a
liberdade. Seria aligeirado colocá-las em rota de colisão, apesar de tudo o que
abonaria tal proposição. Bergson declarou que, quanto mais manifestarmos
externamente nossos estados interiores, maior liberdade teremos nas ações.
Trata-se de expressarmos o eu fundamental; sua totalidade revelada e
vivenciada será sinônimo de um ato livre. Vejamos o excerto a seguir:

Nesse sentido, a liberdade não apresenta o caráter absoluto


que o espiritualismo lhe empresta, por vezes; admite graus.
_Pois, é preciso que todos os estados de consciência se
misturem com os seus congêneres, como gotas de chuva à
água de um lago. (BERGSON, 1978, p. 116)
Pela dificuldade em abdicar da espacialidade homogeneizante, abordagem
já feita neste trabalho, o eu a concebe, engendrando superfícies em que
conteúdos possam se coligar, feito gotas a se juntarem no lago, segundo a
43

imagem do autor. Quanto mais misturadas as tais, de sorte que o lago se forme,
mais liberdade teremos; isto nos permite afirmar que há infinitos graus da
mesma na experiência de viver. Conforme verificamos no fragmento, a
liberdade bergsoniana não coincide com a natureza absoluta que o
espiritualismo e suas incontáveis instituições professam e prometem. Estados
conscientes, que misturam paisagens, debatem-se com as armaduras da razão,
negociando emoções espirituais, diferentemente daquilo que se almeja em um
rito religioso... no mais das vezes, o esvaziamento do eu, entrega total à
divindade antropomorfizada.
Manifestações psicológicas de grande força, como uma súbita cólera, ou
um vício incontrolável, oriundo das profundezas da alma, são elementos
independentes que, assim como outros, podem se fundir, todavia não se
constituem exemplos de atos livres. Tendo a consciência em certa medida
criado uma superfície, o que percepcionamos, inserido no centro do eu
fundamental, será um “eu parasita que invadirá continuamente o outro”
(BERGSON, 1978, p. 117). Confesso que tal asserção reverbera grandemente
sobre a percepção que tenho de mim mesmo: aquela sensação de ser guiado por
certas maneiras de agir, sugerindo traços relevantes de personalidade, em geral
deixam pistas de uma realidade interior que transcende essas marcas de um eu
parasita, contaminado, acuado pelas forças da inteligência.
Eis uma ilustração inspirada nos escritos bergsonianos: a vontade de
matar um inimigo, que faz termos a terceira maior população carcerária do
planeta, exemplifica, salvo melhor entendimento, o que seria uma expressão
daquele parasitismo. Assim o entendemos por não promover ações que revelem
a duração profunda, em que se insere o contexto do eu primordial. Quando se
comete um crime, sob forte emoção, não existe liberdade, posto que esta sempre
reflete a realidade interior, em maior ou menor medida, a orientar a ação.
Destarte, inferimos que uma existência pautada por rotinas de liberdade se
constitui um ideal a ser seguido. Bergson afirmou que atos livres são raros,
mesmo quando praticados por quem se dispõe a meditar sobre o que faz. Não
seria diferente, tendo em vista o papel dos mecanismos da inteligência, a
mediarem utilitariamente os contextos entre a consciência interior e sua
expressão externa (não estou aqui retomando aquela conhecida dicotomia
cartesiana). Nosso eu pleno, concreto, conforme já procurei enunciar, é refém de
toda uma cristalizada rede de símbolos de caráter psicológico, fixos e
justapostos, verdadeiros diagramas que têm a função lógica de portar, cada uma
a seu turno, os sentidos decodificáveis e partilháveis socialmente. Esse cenário
há muito me persegue, os estudos semióticos aprofundaram em mim a sensação
44

de que a liberdade é uma mentira inventada pela própria linguagem e seus


mecanismos reguladores. Para nos conservarmos na existência, apegamo-nos
aos determinismos, à previsibilidade, à certeza de que, ao findar a madrugada, o
Sol irá nascer (os crocodilos e as maritacas também se apegam); do mesmo jeito,
se atendermos às estruturas de tudo o que construímos, enquanto pertencentes
à espécie homo sapiens sapiens / zoon politikón, produzindo cultura, valores,
metas, viveremos melhor, a salvo de nós mesmos. Não por acaso, seguimos
tentando perpetuar o sonho funcionalista de que a instituição escolar pode
promover a ascensão social, desde que os envolvidos façam sua parte
(DÜRKHEIM, 1952). Eis um projeto difícil de tocar em nossos dias, não
somente pelo que nega da experiência da infância, mas pelo que Bourdieu e
Passeron (1992) e a tradição que inauguraram denunciou: a escola reproduz,
legitima, documenta, perpetua as diferenças e privilégios sociais. Vale-nos
lembrar que também receberam a pecha de deterministas. Tornou-se essencial
repensarmos o lugar da liberdade no contexto educativo, a considerar que
exista ou seja tangível.
Se nos parece quase impossível termos vivências individuais com a
mesma, pelo que expus até o presente instante: o árduo esforço filosófico,
existencial, político, de rompermos com as funções inteligentes, remando na
direção de nossos pântanos interiores, que dirá levarmos isto adiante, em uma
proposta educativa? Eis a pretensão que confesso ter com este livro: Enunciar
como fundamento gnosiológico para a Educação Infantil a necessidade de apostarmos
na intuição, assim como o fazemos com a ludicidade. Não estou inventando a roda,
sabe-se da influência de Bergson no escolanovismo francês, culminando com
uma defesa incisiva da liberdade, a matizar as rotinas educativas.
Quanto mais nossas ações revelarem em uma síntese o conjunto de nossa
história, mais livres serão (BERGSON, 1978, p. 129). Isto, em tese, deveria nos
bastar com relação a um entendimento do que venha a ser a liberdade. Até
podemos, ao percebermos a possibilidade de fazer escolhas, ter uma sensação de
que somos livres, todavia, se tivermos que discorrer sobre “a rainha que a
lucidez escondeu” (HORTA, 1975), iremos nos apoiar em símbolos
espacializadores, tendendo ao utilitário, reafirmo com o filósofo francês, o que
se torna impróprio tanto para explicar o livre arbítrio, com para refutá-lo.

Podemos fazer escolhas? Sobre cuspirmos em pratos


Amiga(o) docente, vem-me agora à mente um arcaico ditame, dos mais
proferidos por nós, em sala, aos estudantes: “Vocês podem escolher entre
estudar ou não fazer nada. O futuro depende de suas escolhas”. Tal máxima,
45

dentre outras do mesmo campo semântico, fundamentam a meritocracia. Além


de tudo o que sabemos sobre esta falácia educativa (especialmente as injustas e
desiguais condições de aprendizagem), a asserção bergsoniana sobre o livre
arbítrio vem endossar o coro que rejeita a doutrina do merecimento. Quando
optamos por fazer isto e não aquilo, em geral agimos mecanicamente e não
conforme uma resultante qualitativa e movente de nossa existência – sensação
síntese, como ouvirmos uma sinfonia de Dvorak: o último compasso a carregar
consigo uma decisão, fruto acabado e atualizado, pura memória que dura –. Não
somente nossas crianças e jovens passam longe de uma condição assim, como
nós, educadores. Ali estamos todos acorrentados às rotinas pedagógicas, por
seu turno estéreis, pelo que comprometidas com preceitos iluministas,
instrumentais, enaltecendo o desenvolvimento das funções psicológicas ditas
superiores (Vygotsky, 1991). Então, ouço uma voz: “Pois é, professor, o Sr.
passou a vida inteira dentro da escola e agora vem cuspir no prato? Não seria
farisaísmo?” Preciso me defender, amiga(o) que lê. Uma vez mais afirmo que
um dos intentos deste livro é apontar, recorrendo aos escritos bergsonianos, as
mazelas que a hipertrofia do entendimento nos legou, e como impactam a vida
escolar. Trata-se de um mea culpa também. Cuspo no prato, mas continuo
comendo seu conteúdo (perdoe a imagem meio nauseante). Precisamos fazer a
crítica. Vejo como fundamental cuspirmos muitas vezes e seguirmos, mesmo
enjoados, de modo a erguermos barricadas contra a hegemonia do intelecto,
característica central da subjetividade moderna. Nossas crianças, jovens,
artistas, deficientes, velhos, transgêneros, indígenas, não cristãos, enfim todos
os que não se encaixam, por alguma razão, nas feições daquele projeto universal
de sujeito, pagam (e ainda o fazem) um preço alto demais. As apostas da
modernidade (destaque ao conhecimento científico e produção de riqueza)
levaram à presença humana na Lua, à engenharia genética, mas também aos
campos de Auschwitz e Treblinka, consoante nos mostraram os frankfurtianos,
ou ao Hospital Colônia de Barbacena, MG. Escolhas que, assim como a liturgia
meritocrática, passam longe do que seriam exercícios de liberdade. Esta poderá
quem sabe se configurar em outros campos da consciência; no limite, devemos
abdicar da obsessiva, instintiva inclinação de nos preservar, resgatando o que
perdemos (intuição), quando permitimos que a inteligência assumisse papeis
que não lhe cabiam.

A conclusão a que chegamos, colega docente e quem mais leia o trabalho,


é que a história da instituição escolar, pelo comprometimento desta com a
manutenção das diferenças sociais, ou com a transmissão de capitais simbólicos,
ou, no melhor dos mundos, a inserção da criança na realidade de seu tempo,
46

jamais se alinhou com intenções que não fossem logocêntricas, portanto, em


tempo algum, assumira compromissos com a liberdade.
Tenho às vezes apostado no que há de singular, quando estou com os
estudantes, mesmo atravessado por tantas forças e vozes. Meu pessimismo com
respeito a atos livres encontra alento no inusitado, ainda que tal manifestação
ocorra em fraturas da linguagem, subversões do script didático, muitas vezes
levando as interações a lugares (perdoe a espacialização) estranhos, aporias,
clownices. Disto não abro mão: o lúdico, lampejos de desrazão, a comunicação
legítima entre eus, a garantia de que estamos ali presentes com as crianças... e
se uma barata aparecer e esculhambar o plano do encontro (quase afirmei
“plano de aula”), os gritos de pavor, risos, saltos em cima de mesas, choro, serão
bem-vindos! Antídotos contra a doença da normalidade.
47

CAPÍTULO II

NOMES A MENOS

Nome mais nome igual a nome,


uns nomes menos, uns nomes mais.
Menos é mais ou menos,
nem todos os nomes são iguais.

Uma coisa é a coisa, par ou ímpar,


outra coisa é o nome, par e par,
retrato da coisa quando límpida,
coisa que as coisas deixam ao passar.

Nome de bicho, nome de mês,


nome de estrela,
nome dos meus amores, nomes animais,
a soma de todos os nomes,
nunca vai dar uma coisa, nunca mais.

Cidades passam. Só os nomes vão ficar.


Que coisa dói dentro do nome
que não tem nome que conte
nem coisa pra se contar?

(LEMINSKI, 2002, p. 118)


48

EPISTEMOLOGIA E TEMÁTICAS PEDAGÓGICAS... NEXOS A SEREM INVESTIGADOS

O capítulo que ora inicio discutirá centralmente Epistemologia, temática


filosófica a me consumir unhas, desde os idos da graduação em Letras,
concluída no ano de 2000. Naqueles dias em que olhava para as palavras, com as
lentes da morfologia, sintaxe, fonética, estilística, sentia a arbitrariedade que
Saussure (2000) proclamara, ao entronizar a díade significado/significante,
engendrando outras séries dicotômicas, praticamente fundando o
estruturalismo no século XX. Eis uma indagação emblemática do mestre suíço
em seu Curso de Linguística Geral (2000): que relação haverá entre o vocábulo
(imagem acústica) “mar” e os sentidos pertencentes a este signo linguístico?
Apenas nexos assentados na mais absoluta arbitrariedade. Existiria, desde eras
longínquas, uma inteligência que batiza os objetos do mundo; para Platão (427-
347 A.C.), o signo se formava pelo nome (ónoma, nómos), pela ideia (eîdos, lógos,
dianóema) e coisa (prágma, ousía) – aquilo a que o termo se refere (NÖTH, 1995)
–. O modus operandi de atribuir nomes ao mobiliário da existência se constitui
um mecanismo de adaptação do corpo ao ambiente, reafirmo bergsonianamente.
O problema foi a hipertrofia de tal marcha... passamos a crer que a palavra
pudesse abrigar a realidade. Isto apresenta implicações lógicas (como o
princípio da identidade), estéticas, éticas, políticas, etc, e para o presente
instante, epistemológicas, cujas bases respaldariam o arbítrio, mais ainda:
gestariam os princípios modernos do conhecimento.
Procurarei descrever a originalidade com que nosso autor resolve tal
questão, bem como sinalizar conexões desta perspectiva teórica com temáticas
inerentes aos estudos sobre Educação, tais quais a pesquisa com crianças bem-
pequenas, a história das concepções pedagógicas hegemônicas, a necessidade de
lutarmos contra a fragmentação dos saberes, o conteudismo nas rotinas pré-
escolares, dentre outros objetos de análise, de modo a ilustrar quanto os
escritos de Bergson (destaque à teoria da matéria) podem lançar luz sobre
nossas reflexões.
49

A imperatriz nua... e o conhecimento sob suspeita

A História da Filosofia tem seus habitantes do Olimpo epistêmico, pelo


que perpetuam no primado da subjetividade sobre os móveis do mundo,
contexto que definiria inclusive o destino das Ciências, devedoras daquele
arranjo transcendental sobre o entendimento da realidade. Um legado que
garantiu a convicção de que, sedimentados os baldrames, toda produção
intelectual se revestiria de cientificidade.

O que a seguir farei não se constitui novidade: denunciar com Bergson


(poderia chamar toda a tradição francesa da Diferença – Deleuze, Guattari,
Derrida, Foucault –, tributários diretos de Nietzsche, com seu martelo trágico,
Wittgenstein, Heidegger, Dewey, dentre outros hereges) que aquela miragem
se esvaiu. Mesmo tendo fundado o debate idealismo X realismo – ancoragens
de incontáveis filhotes epistemológicos, como os sistemas positivistas –,
descobrimos o segredo da mágica... a verdade científica, com pretensões universais
de assertividade e poder, finalmente denunciada: a imperatriz está despida! suas
pelancas senis seriam atestados de dignidade, não fosse o fato de
corresponderem ao acúmulo de certezas da interioridade, pretensões escusas de
poder, demasiado humanas (como afirmara Nietzsche), de proclamar doutrinas
e mandamentos.
Bergson, no primeiro capítulo de Matéria e Memória: ensaio sobre a relação
do corpo com o espírito (2010), livro publicado primeiramente em 1896,
empreende um esforço para destronar a epistemologia moderna, apontando-lhe
a ilusão da relação sujeito/objeto, sobretudo pelo fato de ser esta um exercício
de espacialidade, artimanha inteligente. O filósofo apresentaria um novo
paradigma, ao propor: o que temos são imagens, tanto externas, quanto do
próprio corpo. Não há mais um eu cognoscente, uma consciência interior que as
produz, separada do externo, como queria Descartes (1983). Estão fora de nós,
misturadas ao nosso corpo, também imagem. Deita-se por terra a pretensão da
Psicofísica de atestar que dentro do cérebro se produziriam estados conscientes,
imagens, sensações. Se cortarmos um nervo aferente, não serão elas a
desaparecerem e sim a função do corpo (feixes neuronais), de modo a se reduzir
a adaptação do mesmo ao ambiente. O cérebro promove movimentos, posto que
figura como um centro de indeterminação e contingência. Neste cenário
qualitativo (imagens), movente, nasce a consciência, em nada parecida com a
interioridade kantiana. Teríamos nos neurônios mecanismos de distribuição de
ações que não replicam os estímulos externos, ordenados pelas leis naturais,
mas agindo com novidade.
50

Afirmou nosso autor:


Para que essa imagem que chamo de estímulo cerebral
engendrasse as imagens exteriores, seria preciso que ela as
contivesse de uma maneira ou outra, e que a representação do
universo material inteiro estivesse implicada na deste
movimento molecular. Ora, bastaria enunciar semelhante
proposição para perceber seu absurdo. É o cérebro que faz parte
do mundo material, e não o mundo material que faz parte do
cérebro. (BERGSON, 2010, p. 12)
Veja-se a contundência das proposições bergsonianas com relação à
Epistemologia tradicional, uma inversão que inaugura novo entendimento
sobre o conhecer, duro golpe sobretudo no idealismo: a crença de que o tecido
cerebral fosse capaz de conter em suas sinapses espelhos do mundo externo é
refutada. As figuras externas não dependem do cérebro, cujas estruturas apenas
promovem recortes adaptativos nos dados exteriores, reduzindo-os
utilitariamente. Nosso corpo atua sobre as mesmos, selecionando-os,
devolvendo com escolhas o movimento que as imagens transmitem, sendo
externo inclusive à nossa consciência. Aqui temos a destituição do papel do
sujeito cognoscente: aquela revolução neocopernicana, que o colocava no centro
da realidade, em cujo entorno os móveis orbitariam, perde o sentido (KANT,
1983). A consciência não é duplicada na interioridade; reside fora de nós, no
mundo das imagens. A representação da realidade seria concebida como uma
ação do corpo, servindo-se do ambiente infinitamente reduzido pela linguagem.

Uma dança infinita de imagens em conexões com nosso corpo-imagem...


exterioridade indeterminada e consciente

Corpo e ambiente se misturam, enquanto matéria. Todo ser vivo de


algum modo se constitui um centro de indeterminação (entenda-se esta como a
faculdade de responder de modo não previsível ao estímulo externo, movida por
consciência). Do protozoário ao humano, teríamos uma escala de consciência e
percepção. Quanto maior a indeterminação, mais complexa a forma de vida. O
universo inorgânico se compõe de infinita materialidade imagética, que escoa,
vibra continuamente, em perene novidade.

Na relação do corpo com o entorno, o autor afirma que este, no conjunto


infinito das imagens, sugere, estimula, movimenta-se no sentido de oferecer a
nós vantagens adaptativas, facilitando a manutenção da vida. Elementos como
51

dimensão, forma, cor, cheiro, alteram-se, conforme o corpo se aproxima ou


distancia das formas exteriores, podendo ser alterados. Quanto mais nos
afastamos, mais uniforme e indiferente se torna a natureza. Ao agirmos,
contraímo-la, de sorte que ocorre uma seleção e escalonamento de objetos dela,
segundo a capacidade do corpo de tocá-los, movê-los. Nossos poderes atuam
sobre o que fora selecionado. Se nos lobotomizarem, amputando redes neurais,
o que desaparecem são os mecanismos de atuação sobre a matéria (percepção) e
não a mesma. A seguir, um excerto que resume as presentes abordagens:
“Chamo de matéria o conjunto das imagens, e de percepção da matéria essas mesmas
imagens relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada, meu corpo.”
(BERGSON, 2010, p. 17, itálicos do autor)
O universo é imagem. Vale a pena reafirmar epistêmico e
metafisicamente: sua existência independe de nós, apesar da ação de nosso corpo sobre
aquele. A percepção se move a todo instante, segundo alterações do próprio
corpo-imagem que se encaminha ao centro, de modo que as imagens do entorno
se regulam, como se dançassem conforme a indeterminação daquele centro
assim ordene: “Como se girássemos um caleidoscópio” (BERGSON, 2010, p.
20). As imagens cósmicas vibram, alterando-se a si mesmas e aquelas que se
avizinham. Ocorre todavia que este infinito ritmo encontra nos objetos vivos
imagens que orientam variações não previstas, conforme já afirmamos,
ocorrendo modificações no ambiente em torno do corpo – centro de
indeterminação.
Bergson repele terminantemente a concepção tradicional de que o
cérebro teria a faculdade de reproduzir representações; compara-o a uma
central telefônica (lembremos como funcionava a antiga telefonia), de modo a
acrescentar nada àquilo que recebe, apenas comunicar os estímulos do entorno;
ocorre contudo que os mesmos podem ser colhidos por uma vasta gama de vias
motoras, concomitantemente (fico me imaginando diante de uma paisagem
andina, pela primeira vez), o que supõe infinita distribuição de reações, pelo
menos iniciais (BERGSON, 2010, p. 26-27). O cérebro teria uma dupla função:
acolher um movimento externo de modo integral, com abertura de todas as vias
e também selecionar dentre elas a que mais reagiria ao estímulo do ambiente.
Aquele órgão atuaria como centro de análise dos estímulos recebidos,
imprimindo reações nervosas ao movimento, ora transmitindo-o, ora
refratando. Nossas redes neuronais assim se limitam a desenhar ações plurais,
tendendo a organizá-las. Vale-nos reafirmar com o autor: não cabe ao cérebro
(córtex, terminais cervicais) produzir conhecimento. Outra asserção notória
vem a ser o fato de que a indeterminação inerente à resposta de um ser vivo ao
52

movimento do entorno supõe algum grau de consciência. Quanto maior a


incerteza (amplitude de escolha), mais complexa a natureza do “indivíduo” e sua
indeterminação. Desculpe-me a brincadeira: sempre fui muito hesitante (dado
pouco excitante), o que me autoriza a afirmar: sou muito desenvolvido! Quanto
maior a incerteza, maior a variedade de estímulos-objetos que envolvem o
corpo-imagem, oferecendo a este vantagens, perigos e possibilidades
promissoras. Quanto mais ampla a percepção, mais indeterminada se torna a
resposta ao externo.
Ao refletir sobre o papel da consciência, o autor lança mão do argumento
de que, atrelada à percepção, sempre temos alguma lembrança. Declarou o
filósofo:
Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos
misturamos milhares de detalhes de nossa experiência
passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam
nossas percepções reais, das quais não retemos então mais
que algumas indicações, simples “signos” destinados a nos
trazerem à memória antigas imagens. A comodidade e a
rapidez da percepção têm esse preço; mas daí nascem
também ilusões de toda espécie. Nada impede que se
substitua essa percepção, inteiramente penetrada de nosso
passado, pela percepção que teria uma consciência adulta e
formada, mas encerrada no presente, e absorvida, à
exclusão de qualquer outra atividade, na tarefa de se
amoldar ao objeto exterior. (BERGSON, 2010, p. 30)
O excerto acima propõe, salvo melhor entendimento, um primado do
instante perceptivo exterior – nossa consciência não permitiria que a linguagem
e seus signos apenas recobrassem percepções pretéritas, distorcendo o que nos
passa efetivamente –, um estado de abertura um tanto acidental e até impessoal
para as coisas. Bergson alega que, se tivéssemos reconhecido nisto a base do
conhecimento sobre a realidade, jamais conceberíamos a percepção como algo
subjetivo, de natureza interior. Abandonaríamos a ligeireza dos signos
restauradores de um passado congelado, em detrimento de uma percepção que
coaduna dados fornecidos no presente ao imenso manancial da memória, enfim
entregue ao encontro com os objetos externos, naquilo que bergsonianamente
poderíamos denominar experiência de duração.4 Isto tem profundos ecos nas

4 Expresso aqui minha satisfação ao reconhecer também no fragmento analisado o quanto este trabalho em
termos metodológicos busca a realização daquelas proposições, articulando a surpresa prazenteira de coletar
53

reflexões sobre Teoria do Conhecimento, trata-se de uma condição consciente


que coincide com a percepção ampla, completa, poucas vezes entendida como
tal. Os seculares debates sobre a natureza do conhecer e da realidade perdem a
finalidade; os fundamentos do idealismo, realismo, empirismo, entram em
corrosão, pelo que se assentavam ora na crença em uma subjetividade capaz de
abrigar o mundo, espelhando-o, ora na convicção de que, pelos trilhos da
intelecção, fosse possível acessar as coisas nelas mesmas, ou ainda a profissão de
fé de que o que temos é apenas linguagem e representação. Trata-se de um
novo estatuto (perdoem-me os bergsonianos, pelo ranço burocrático deste
termo) para a Epistemologia. Precisamos olhar para os objetos do mundo como
o faz o cidadão comum (BERGSON, 2010, p. 2) e, por que não, um bebê diante
de um móbile colorido e sonoro... As imagens são aquilo que vemos, tocamos,
cheiramos, sem intermediações, o que é difícil sustentar, após séculos de
especulação gnosiológica e doutrinas filosóficas consagradas, como o tomismo,
reclamando para si certidões da verdade sobre o existente, erigindo altares e
regimes de governo.
Agir assim, diante do universo em movimento necessário, supõe uma
contração do mesmo, efetuada pela memória; a percepção totalizante é exercício
de duração, de sorte que os infinitos momentos pretéritos reverberam uns sobre
os outros, em uma pluralidade qualitativa e movediça. A consciência contrai... e
o faz perceptivamente, manejando lembranças imediatas, coadunadas a uma
abissal multiplicidade de movimentos e imagens passadas...
Nossa percepção, resultante de arranjos nervosos os mais diversos, que se
encaminham da periferia ao centro e vice-versa, enumera no real objetos a
seduzirem a vontade. Há que se ponderar que a percepção, para além dos
aparatos sensoriais, expressa a tendência do corpo ao movimento e às
complexas relações com o ambiente (BERGSON, 1978, p. 44). Nosso autor
afirmou que a compreensão sobre tal contexto é embaçada pela indiferença de
nossos movimentos em relação àquilo que os ocasiona, fatores de excitação. Por
mais mecânicos, autômatos que sejam os gestos motores, interiormente
sofremos modificações. Aqui encontramos advertências quanto aos erros de
crermos que a percepção tenha origem no estímulo sensorial, quando na
verdade nossa tendência ao movimento indeterminado é que coordena inclusive

escritos bergsonianos, analisando-os no encontro com memórias de minha vida e carreira na docência. Faz anos
que venho nutrindo o desejo de produzir textos nessa heurística, sempre receoso de uma má recepção no
contexto acadêmico, destaque aos pareceristas dos periódicos, cuja rabugice não raro matiza as borrachadas que
nós, pesquisadores, levamos no lombo e na alma (quase sempre, merecidamente...).
54

nossos sentidos. A percepção estaria tanto nos órgãos sensoriais, quanto nos
centros motores.
Na contramão dos arranjos subjetivos modernos, solipsistas, a velha
dicotomia interior / exterior (no registro bergsoniano, conforme já declaramos)
diria respeito à distinção entre nossa imagem e as outras do entorno, havendo
destarte a necessidade de que o corpo marche da “periferia da representação ao
centro, como faz a criança” (1978, p. 47). Não é assim que atuam os teóricos,
admoesta o filósofo, em geral rumam seu agir do centro para a periferia. Torna-
se um contrassenso partirmos de um eu consciente, caminhando para a periferia
corpórea e a superfície de outras imagens. Em verdade, estamos lançados na
materialidade, da qual constituímos um centro de ação, a nos diferenciar de
outros corpos. As crianças têm muito a nos ensinar epistemologicamente; não
por acaso, Bacon defendera deixarmo-las virem, porque delas seria o reino da
ciência (DEWEY, 1959), parafraseando o texto bíblico. Em milhares de
situações em que estive no meio dos pequenos estetas, uma motivação
permanente me guiava: vinham como esponjinhas, desarmados (e não vou aqui
cair na armadilha de idealizá-los, embora me encantem), sempre explorando o
que tinham à mão, sem pré-julgamentos, entregues à pura novidade, atuando
sobre as cores, texturas, formas do mundo, potentes investigadores. Quantas
vezes nos jogamos juntos na exterioridade do existente, fuçando as coisas, atrás
de sons, texturas, esquisitices naturais, como o canto das cigarras...

O flagelo de partirmos do centro de nossas representações rumo à


exterioridade

Um exemplo que rotineiramente aparece em minha atuação no Ensino


Superior (licenciaturas, em especial a Pedagogia) daquele movimento criticado
por Bergson, com relação aos teóricos, parece-me ocorrer com a(o)s
pedagoga(o)s. Em geral, carregam concepções de infância idealizada (sobretudo
nos moldes evangélicos). Quando vão realizar estágios curriculares, entram em
pânico na creche: aquele anjo ilibado, que não mente, é dono de um corpo,
portanto sente prazer, fome, frio, cansaço, etc. Na hora do banho coletivo, ficam
às vezes desesperadas, ao se depararem com pintinhos eretos e outras
manifestações de sexualidade. Por mais que nós, docentes supervisores,
trabalhemos exaustivas abordagens, buscando desconstruir aquelas visões que
há muito desrespeitam a criança, em sua realidade singular, não temos
conseguido muitos progressos. Contra o discurso acadêmico, temos o senso
comum e as orientações dos líderes religiosos, que negam o corpo aos
55

pequeninos, assim como a voz, o protagonismo, entre outros direitos. No


Capítulo III, irei pinçar a temática das representações modernas e
contemporâneas da infância, mas faço questão de mencioná-las brevemente,
pelo que concernem à crítica bergsoniana aos teóricos (e, por que não,
pesquisadores em geral?), tendo em vista o costume de serem muita vez o
centro de onde partem as investigações sobre as crianças. Isto apresenta, salvo
melhor entendimento, repercussões também na pesquisa em Educação. Nossos
referenciais de leitura contribuem inegavelmente para buscarmos no mundo das
formas recortes bastante limitantes, sem o que não teremos um tema de
pesquisa. Um risco obvio é criarmos representações de representações, obtendo
um produto artificial, formalista, autorreferente.

Indago então: como pesquisarmos os cenários da Educação Infantil, sem


que o centro de nossas representações, aqueles arcabouços conceituais
esculpidos em mármore Carrara, os quais lustramos a cada mirada interior,
conduza categórica e definitivamente nosso olhar para um bebê, brincando no
parquinho? Creio com sinceridade na possibilidade de mergulharmos, conforme
já defendi com o autor, na consciência e no devir, de tal sorte que o centro das
inferências possa se fundir a outros idos, afetos, imagens imemoriais; proponho
um mergulho no tempo real (não aquele que espacializamos, metrificamos), o
que nos passa, acumulando existência, reverberações... quem sabe, nesse
pen(s)ar, possamos lograr êxito, pelo menos no sentido de vivermos
experiências de um eu, a lançar-se às imagens exteriores, posto que assim se
constitui: corpo que as captura e muda, conforme os aparatos que possui.
Nossos conceitos devem ir junto à percepção, na ocasião de pesquisarmos com as
crianças. Não vejo uma tarefa fácil. Os próprios sentidos devem, segundo
Bergson, ser educados, entrarem em acordo:
Meu corpo se conduz portanto como uma imagem que
refletiria outras imagens, analisando-as do ponto de vista
das diversas ações a exercer sobre elas. E, por
consequência, cada uma das qualidades percebidas por meus
diferentes sentidos no mesmo objeto simboliza uma certa
direção de minha atividade, uma certa necessidade.
(BERGSON, 1978, p. 48)
Este fragmento me faz lembrar do poder instrumental da linguagem, o
quanto esta, ao congelar traços do mundo, em grotescas simplificações, atua
sobre o mesmo, podendo transformá-lo brutalmente. E como as Ciências
celebram tal prerrogativa! O que uma usina hidroelétrica promove de
transformações nas imagens circundantes é algo notório. Quantos conceitos,
56

códigos, símbolos se articulam, enquanto discurso tecnológico, com vistas a um


empreendimento como Itaipu. Os corpos-imagens de Bororos, Caiapós e outras
nações da floresta também interagem com o entorno; contudo, por não terem
desenvolvido como o branco os saberes em questão – modos imagéticos de
refletir as imagens do universo –, apresentam outras relações de
indeterminação, com aquilo que os envolve. Há um perigo aqui de incorrermos
naquela visão do século XIX, de que haveria civilizações mais desenvolvidas
(sobretudo socioeconomicamente) do que outras, um descalabro que concerne
ao darwinismo social, eugenia e outras aberrações. Se analisarmos o que houve
em Chernobyl, Mariana, Brumadinho e tantos cenários de tragédias
tecnológicas, inferiremos uma vez mais que a linguagem e sua hipertrofia não
promove necessariamente (como expediente adaptativo ao meio) experiências
de liberdade. Se não atentarmos a tal aspecto, podemos sub-repticiamente
aliciar as contribuições bergsonianas para esse tipo de visão de mundo, tendo
em vista já termos afirmado com o autor haver infinitos graus de consciência
entre os seres vivos, expressos pela menor ou maior capacidade de agenciarem
ações sobre o que os envolve, de modo a se manterem na existência. Acredito
que as contundentes críticas de Bergson à inteligência aqui enunciadas deixam
claro que a espécie humana (especialmente os “ocidentais”) teria mais a
comemorar, se não apostasse todas as moedas na razão.
Uma asserção bastante propalada nos estudos sobre Educação é o quanto
esta reflete padrões da inteligência epistêmica, perpetuadora de uma consciência
solipsista, carregando a pretensão de, ao desenvolver inimaginavelmente a
linguagem e seus incontáveis códigos, compreender os mistérios do mundo,
contando com a fiadora Teoria do Conhecimento. Para Rorty, tal tradição se
ancoraria em três notórios sistemas: Locke e a abordagem dos processos
mentais, Descartes, com a suserania do espírito subjetivo no século XVII e
Kant, com seu tribunal da razão pura (e prática)... associando os pressupostos
lockeanos aos cartesianos, em busca de verdades claras e distintas,
imperativamente categóricas, assentadas nas apriorísticas intuições da
sensibilidade e do entendimento (RORTY, 1994).
Indaga-me, leitor(a), o que têm a ver abordagens epistemológicas com o
contexto reflexivo da Educação Infantil? Afirmo que muito, sobretudo pelos
fundamentos que orientam propostas pedagógicas para aquela e qualquer outra
modalidade educativa (isto quando há propostas). Para tanto, narrarei
resumidamente a escrita de duas dissertações de mestrandas docentes que,
salvo melhor entendimento, ilustram como um sistema filosófico pode inspirar
a produção científica (esta que, juntamente com a prática em classe e a atitude
57

de continuar estudando, deveriam fazer parte da identidade pedagógica).


Ambos os trabalhos tratavam de observar crianças de 4 anos, brincando em
uma ludoteca universitária mato-grossense. O primeiro, de orientação
skinneriana, procurou, após a exposição metodológica e um capítulo teórico
bastante conciso (discorrendo sobre conceitos caros à Psicologia, como a
Análise Experimental do Comportamento), apresentar dados coletados segundo
a observação de padrões que as crianças revelavam, quantitativamente
catalogados, durante meses brincando: por exemplo, quantas meninas e
meninos entraram no castelo, por quantas vezes; as brincadeiras eram
registradas em categorias como brincadeiras violentas, semiviolentas, brandas...
ou individuais, em pares, coletivas... sensório-motoras, afetivas, de construção,
sociodramáticas... e assim por diante... eram questionários que orientavam as
anotações das observadoras convidadas pela mestranda, cujas respostas
geravam gráficos de pizza, barras, além de tabelas e outros expedientes
quantitativos. O que se buscavam eram percepções de hábitos trazidos pelos
pequenos brincantes, bem como aqueles a serem adquiridos, de modo a se poder
analisar o desenvolvimento intelectual promovido pelas atividades lúdicas. O
segundo trabalho, de orientação fenomenológica e narrativa, propunha uma
observação participante, a pesquisadora brincava junto, quando convidada;
conversava, divertia-se, assumia papeis nas dramatizações. Com o
consentimento das crianças e responsáveis, filmava discretamente os encontros.
O foco daquela pesquisa era entender a experiência da infância, de modo
sistêmico, capitaneado pelas análises dos encontros, naquilo que produziam de
símbolos relevantes para as crianças e, em menor medida, o desenvolvimento
delas.
A breve menção feita a duas monografias de docentes da Educação
Infantil seria para ilustrar o fato de não podermos desprezar o papel de uma
perspectiva epistemológica a orientar visões de mundo e mesmo sobre
Educação, isto sempre ocorrerá. A primeira dissertação ancorava-se grosso modo
na tradição empirista de Mach, além do behaviorismo de Watson (BATISTA,
2007); a segunda, alicerçada na fenomenologia de Dewey, expressão norte-
americana de uma Filosofia da experiência, inserida no pragmatismo clássico.
Ambas com seus méritos e limites revelam maneiras de lidar com o
conhecimento científico, e mesmo crenças em como o mesmo se legitima. Não
irei destrinçar tais aspectos, embora sejam motivos para outro livro, a tratar
daquele trajeto do centro de nossas representações para a exterioridade. Mais
trágico do que encontrarmos visões educativas alicerçadas na Epistemologia
vem a ser o fato de haver muitas propostas assentadas em coisa alguma,
orientadas pelos ventos mercadológicos, trabalhos sobre Educação cujos
58

referenciais teóricos sequer dão conta da metodologia ou de uma


fundamentação mínima que seja.
Com relação à Didática, ocorre algo semelhante com os sistemas
apostilados (que outrora cuidavam do ingresso das elites no Ensino Superior e
agora atingem a Creche e a Pré-escola, esmagando direitos), aparatos
sobremaneira sedutores, ocupando espaços inclusive na formação docente. As
licenciaturas, especialmente a Pedagogia, não conseguem formar um
profissional capaz de escrever uma proposta pedagógica para uma modalidade
educativa, não há tempo hábil para isto na formação inicial. As apostilas surgem
para ocupar este vazio, inclusive fornecendo o livro do professor, com o passo a
passo de cada encontro com as crianças, eximindo aqueles atores da Educação
Infantil de maiores responsabilidades com o planejamento, roubando-lhes
mesmo a identidade profissional, a autoria enquanto sujeitos de seu quefazer.
Se percorrermos a História da Educação brasileira, destacando as
concepções pedagógicas norteadoras5 de cada período, iniciando-se no século
XVI, verificaremos quanto explicitam sua filiação epistemológica (CUNHA,
1991; ROMANELLI, 1991; SAVIANI, 2008). Exemplificando: os primórdios
jesuíticos, com a ratio studiorum, bebiam em mananciais tomistas, escolásticos,
sendo, ao cabo de dois séculos, perfilados por perspectivas subjetivas modernas
e iluministas (Descartes, Rousseau, dentre outros). Em fins do século XIX e
primeira metade do XX, assistiríamos à ascensão da Escola Nova, alinhada com
pressupostos de uma Filosofia da experiência, tal como a deweyana. Na segunda
metade deste último, os ideais escolanovistas entrariam em declínio, de modo
que uma perspectiva técnico-produtivista, voltada ao máximo acúmulo de
informação, com os menores custos e dispêndio de tempo, consolidar-se-ia na
ditadura militar (SAVIANI, 2008). Tal paradigma me parece revelar, apesar de
delineamentos positivistas, um distanciamento das perspectivas curriculares
com relação a um referencial epistêmico, tal como podíamos verificar em
tempos pretéritos, este lugar fora ocupado pelo mercado e suas lógicas
excludentes, meritocráticas, ultraliberais.

5 Já meditei sobre o termo nortear, provocado que fui por autores decolonialistas e reconheço-lhe o
caráter ideológico. Fica difícil pensar em outras expressões como “sulear”, ou “lestear”... Preciso me desapegar,
enterrando de vez a palavra, não será fácil.
59

Uma voz a mais contra a fragmentação do conhecimento nas rotinas da


Educação Infantil

Todas essas impressões sobre os nexos epistêmicos com temáticas


inerentes às Ciências Educativas – didática para a Infância, pesquisa sobre
Educação, historicidade das Ideias Pedagógicas, etc. – revelam, guardadas as
proporções, aquilo que Bergson denunciara sobre os teóricos: a heurística que
vai do centro para a periferia das representações. Mais uma vez, o que verifico
vem a ser a titânica, monolítica presença de uma subjetividade, que
contrariamente a tal hipertrofia, deveria se lançar ao mundo das imagens, até
porque também as somos, refletindo outras que nos envolvem e seduzem. Esta asserção,
na Educação Infantil, ecoa para mim como diretriz orientadora, pelo que propõe
de implosão da epistemologia tradicional. Reparo na entrega a si mesma de uma
garotinha caçando formigas, folhas em um jardim. Ali temos um corpo-imagem
que se mistura a outros, colecionando pedrinhas, imprimindo movimento à
exterioridade, recebendo-o. Quanto há para refletirmos sobre tal pintura! Um
close singular me vem ao espírito, dos tanques de areia: “Quer um bolinho, tio
Marlon?”... “Bolo de quê? Chocolate?! Oba! Quero sim! Aiii, esse é de pimenta!”... “Ah,
ah, ah! Então come esse aqui... de morango!” Não foram poucas as vezes que
interagi com os pequenos protagonistas, recolhendo estares e ficares, imagens
que devolvia modificadas. Como é desalentador perceber a invisibilidade desses
encontros lúdicos, esmagados pela inteligência adulta e instrucional,
capitaneada pela sempre urgente necessidade de transmitir saberes. Precisamos,
enquanto docentes (e pesquisadores), nos abrir à experiência multissensorial,
em busca do contínuo, da novidade, tentando impedir que as cristalizações da
linguagem e da razão nos tirem a emoção de receber um sorriso e retribuí-lo.
Como já confessei, minha carreira sempre se matizou pela tensão entre a
imperiosa necessidade de ensinar Música e a vontade de viver experiências
significativas, inusitadas, com as crianças, predominando o primeiro aspecto.

Corpos lançados ao imponderável a ser codificado, capturado por signos...


Cada imagem é percebida por diferentes sentidos nossos que, reunidos, não
forneceriam de modo algum a imagem completa. Sobre percepções sensoriais,
afirmou o filósofo:
[...]permanecerão separadas umas das outras por intervalos
que medem, de certo modo, muitos vazios em minhas
necessidades: é para preencher tais intervalos que uma
educação dos sentidos é necessária. Essa educação tem por
finalidade harmonizar meus sentidos entre si, restabelecer
60

entre seus dados uma continuidade que foi rompida pela


própria descontinuidade das necessidades de meu corpo[...]
(BERGSON, 2010, p. 49)

Tal harmonização, salvo engano, converge para o que o autor declara no


Ensaio: ao nos livramos da espacialização, da função simbólica, que tende a fixar
identitariamente os objetos na homogeneidade, temos as possibilidades de
vivências com a duração pura. Os sentidos, uma vez coadunados, não
expressarão suas rupturas adaptativas, podendo intuir em movimento aquilo
que era contínuo. Se não nos é possível a experiência com o objeto total, pelo
menos teremos uma relação mais profunda com a matéria, aproximando,
fundindo qualidades, de sorte que a continuidade seja reestabelecida, uma vez
que as necessidades do corpo a romperam.
O excerto anterior nos permite uma ilação, dentre muitas: a
fragmentação dos saberes na vida escolar seria um reflexo indireto da própria
necessidade do corpo, do afã utilitarista por nos conservar vivos. A inteligência
pedagógica desse modo (e aqui temos uma herança inequívoca do pensamento
cartesiano, lógico-matemático) fraciona os conteúdos instrucionais. A legislação
que orienta as rotinas na Educação Infantil tem feito progressos, contudo segue
sem romper essencialmente com a secular modalização. Se compararmos o
RCNEI – Referencial Curricular Nacional para A Educação Infantil (BRASIL,
1998) com a BNCC – Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018),
verificaremos ganhos. O primeiro separava em seis eixos os objetos de
conhecimento – Movimento; Música; Artes Visuais; Linguagem Oral e Escrita;
Natureza e Sociedade; Matemática –; a segunda apresenta a concepção de
campos de experiência – O eu, o outro e o nós; Corpo, gestos e movimentos;
Traços, sons, cores e imagens; Escuta, fala, linguagem e pensamento; Espaços,
tempos, quantidades, relações e transformações –. Mais uma vez me assalta a
agonia de não poder destrinçar a contento uma temática que vem à superfície
do livro: o impacto da fragmentação dos saberes (inerente ao velho
conteudismo), característica curricular da Educação Básica em geral, nas
propostas pedagógicas oficiais para a Educação Infantil. Ficarei apenas com
uma reflexão: o Movimento. Note, colega docente, o descalabro de tratá-lo
como objeto de conhecimento! Isto ocorrera na escrita do mais importante
documento daquela modalidade educativa, o RCNEI. Entender o movimentar-
se (que levou muitas instituições a contratar professores de Dança, Educação
Física, dentre outras categorias voltadas a atividades corporais) como
pertencente ao mesmo campo semântico da Matemática fora uma aberração
atenuada anos depois, inclusive com as DCNEIs – Diretrizes Curriculares
61

Nacionais para A Educação Infantil (BRASIL, 2010). Ao pensarmos com


Bergson o que vem a ser o movimento, aprofunda-se abissalmente a percepção
do que é capaz a inteligência, com seus procedimentos logocêntricos, em
especial, ao recortá-lo como conteúdo, como faz com as Artes Visuais. Na
BNCC, pelo menos, verificamos uma realocação: o movimento (corpo e gestual)
passaria a pertencer a um campo de experiência... Não sabemos ao certo o
sentido desta última (pudera fosse pertencente a alguma concepção
fenomenológica...), mas inferimos algum avanço. Qualquer coisa será melhor do
que imaginarmos uma “aula” de Movimento, depois da Matemática... e a
turminha da fralda fazendo polichinelo...
O brincar institucionalizando-se: quantas vezes me deparei com aulas de
balé, judô, natação, etc, como parte da rotina de bebês e crianças bem-pequenas
matriculadas em instituições abastadas... Obviamente que havia aspectos
positivos em tudo isso, mas comprometiam o tempo de brincar, direito
inalienável dos pequenos (BRASIL, 1998; BRASIL, 2010; BRASIL, 2018).
Essas recordações me remetem aos lugares em que pude atestar a dura diretriz
escolarizante de tratá-los como alunos, miniadultos, seccionando as matérias
que deveriam aprender, na contramão do encontro com o mundo... com o
caleidoscópio das imagens/sons, natureza polimorfa, deslizante... Uma
continuidade que precisa ser intuída, posto que nos surge fracionada até mesmo
pelos sentidos, segundo nosso autor. Estes precisam ser educados,
harmonizados, dado que agem pragmaticamente, entre si, reproduzindo
intervalos entre as formas da exterioridade, quando a deveriam configurar
como um todo que se funde e nos atinge, sendo por nós também transformado
(BERGSON, 1978, p. 49). Ao refletir sobre tal contexto, ouço mais uma voz
contrária ao conteudismo, desta feita, pertencente ao filósofo francês. A
realidade movente, pulsante, heterogênea, a cujo acesso teriam direito os
pequenos atores não deve ser fragmentada pela inteligência pedagógica,
sobretudo aquela herdeira das concepções curriculares concernentes ao Ensino
Fundamental. Então aqui reafirmo a necessidade de promovermos ações de
aprendizagem integralizantes, tal como defendem em uníssono os autores que
se dedicam à Creche e Pré-Escola, no mínimo buscando uma poética nas
narrativas infantis (OSTETTO, LEITE, 2004) liberta dos gradeamentos
curriculares adultocentrados... E me vem mais uma reminiscência: certa
turminha de três anos, ilustrando um painel coletivo; após dramatizarem a
canção-conto Festa da Jararaca, de minha autoria, lançavam-se a uma
experiência estética multissígnica, cantando, brincando, conversando sobre o
roteiro, experimentando materiais pictóricos, catando folhas no jardim pra
colarem, enfim um contexto de emoções, percepções, gestos, que muitas vezes
62

presenciei, encontros prenhes de sentidos, sem interdições, nada disciplinares


ou interdisciplinares6... ali não havia separação do que era Educação
Matemática, Linguagem, ou Artes Plásticas (embora a educadora
prazenteiramente percebesse tais nuanças). Os conteúdos precisam ser
pensados em contextos sem quebras, conforme nos inspira a concepção epistêmica
de Bergson, ao mirar as relações entre os corpos e a realidade.

Sobre o tempo/memória: contexto em que se desfaz a díade


sujeito/objeto

Vale-nos muito reafirmar o impacto da perspectiva bergsoniana sobre as


concepções gnosiológicas tradicionais: a velha cisão espacial entre sujeito e
objeto e tudo o que engendrou secularmente cairia por terra, mirando-se um
novo registro: seriam correlatos pertencentes doravante ao tempo e não ao espaço. Desta
propositura, teríamos muitos corolários, dentre os quais a compreensão de que
entre a percepção consciente e a própria matéria existiriam apenas diferenças de
grau; noutras palavras, pertencem à mesma natureza, em uma relação de parte
com o todo (BERGSON, 2010, p. 76). E as características de objeto-imagem de
ambas se realizam no tempo. Eis um desafio que o senso comum tem resolvido
melhor, segundo o autor: olhar para a matéria nela mesma, crendo ser o que é,
tal como se revela, sem ocultismos e miragens, acreditando no espírito. A este
modo de pensar, nosso filósofo acrescenta:

A memória, praticamente inseparável da percepção, intercala o


passado no presente, condensa também, numa intuição única,
momentos múltiplos da duração, e assim, por sua dupla
operação, faz com que de fato percebamos a matéria em nós,
enquanto de direito a percebamos nela. (BERGSON, 2010, p. 77)

Veja-se o destaque inequívoco da memória na apreensão da matéria, da


qual fazemos parte. Ao concebermos assim a intuição, como possibilidade de
existirmos na duração, em que ecos passados e presentes, pulsos de tambores
longínquos alcançam as cortinas do instante, teremos a humilde sensação de

6 É comum ouvirmos o descalabro de que na Educação Infantil as práticas precisam ser interdisciplinares. Vale
ressaltar que, para o serem, deverá haver disciplinas, conforme ocorre no Ensino Fundamental, e um tema
comum a todas, por exemplo: a importância da água. Um projeto pedagógico interdisciplinar, concluindo, em
nada coincide com o contexto da Creche e Pré-escola. Infelizmente existem instituições que atuam nessa
perspectiva, sobretudo com as faixas de 4 e 5 anos, verdadeiros anexos propedêuticos dos Anos Iniciais do
Ensino fundamental.
63

pertencermos ao que existe. Abraçar um ipê centenário por alguns segundos...


quem sabe uma chance de nos misturamos aos troncos, nossa percepção a se
confundir com o rosa de sua florada. Chega de acreditarmos que são projeções
de nossa subjetividade, por mais materialistas que as entendamos. Bergson
reafirma quão ilusório vem a ser atribuirmos ao cérebro e suas operações a
derivação de uma lembrança. Para pensarmos com o autor, devemos crer que a
matéria e a percepção coincidem, enquanto figurações. O passado se mantém
por mecanismos motores destinados à ação e pelas funções do espírito, que
evoca as lembranças pretéritas, endereçando-as ao presente.
Há uma orgânica relação entre o corpo e o espírito, no concernente a
como guardam as memórias. O primeiro o faz pelo hábito, repetição; o segundo,
pela representação. Entendamos esta última como a faculdade de intuir, cuja
duração podemos alterar, conforme assim o desejemos. Com relação à memória
corporal, o filósofo afirma tratar-se de um presente sensório-motor, tal como o
ato de caminhar, carregado de automatismo, em que agimos mais do que
representamos. Existem destarte dois tipos de memória: uma inerente ao corpo
e todos os aparatos de que se serve para registrar o que nos passa e outra,
contígua aos trabalhos do espírito. É possível inferirmos que o corpo se
apresentaria como um “limite movente entre o futuro e o passado, como de uma
extremidade móvel que nosso passado estenderia a todo momento em nosso
futuro” (2010, p. 84). Com isto, entendemos que ao corpo não caberia apenas o
papel de agir mecanicamente sobre o entorno, como o faz com os reflexos, ou ao
aprendermos uma letra de canção. Investigar em que medida a materialidade de
nossos membros-imagens nos conecta aos pretéritos, remotos feitos, bem como
nos projeta ao futuro, noutras palavras, com se relaciona aos compêndios do
espírito, constitui-se um desafio; as respostas certamente residem na memória e
duração.
Lembro-me dos pequenos aprendizes de flauta. No primeiro encontro, era
impossível conter a euforia, queriam soprar o instrumento (faixa etária: 4 anos),
arrancando-lhe brutalmente respostas físicas, sons, sabores. Batia-me um
desânimo... eu permitia que explorassem à vontade o novo brinquedo. Após uns
dez minutos de tortura, eu começava um longo percurso de vivências motoras,
mnemônicas, lúdicas sempre, firmando combinados... a mão esquerda tinha que
assumir o comando; eis um grande obstáculo: a maioria das crianças tentava o
dedilhado com a direita. Passando os anos, comecei a tatuar nas mãozinhas
iniciantes o picapau, a aranha, serpente, o fantasminha camarada, a estrela
cadente... à medida que o corpo aceitava a intromissão da mão esquerda, os
dedos iam articulando as notas si, lá, sol (indicador, médio e anular, com o
64

polegar por trás, fechando o único orifício daquela região do tubo). Refiro-me a
uma caminhada de dez meses. Ao final de cada ano, tinha a satisfação de
verificar que o que era memória mecânica passaria ao domínio do eu; da ação
motora para a apreciação espiritual. Quantas brincadeiras inventei, naquelas
rotinas adestrantes, para que, um ano depois, tivesse e emoção de ver os
pequenos, muitos de olhinhos fechados entoarem uma melodia como “Na
floresta”, do folclore russo. Há alguns meses, recebi de presente uma flauta de
madeira; o remetente era uma daquelas crianças, hoje médico anestesista em
São Paulo. Ele ainda escreveu todas as partituras que tocávamos. Fiquei tão
impactado que compus para o mesmo um chorinho intitulado Dr. Rafa.

Bergson, ao enunciar que o passado permanece, guardado em


mecanismos motores (corpo) e lembranças independentes (espírito), apresenta
uma consequência relevante: “O reconhecimento de um objeto presente se faz por
movimentos quando procede do objeto, por representações quando emana do sujeito”
(2010, pag. 84, itálicos do autor). Vale a pena pontuarmos não se tratar daquela
cisão entre corpo e espírito formulada por Descartes (2004). Para este, os
sentidos eram enganosos; a verdade, clara e distinta, seria uma prerrogativa do
espírito. Em Bergson, o corpo, como imagem em movimento, age sobre o
mundo, podendo sinalizar uma delimitação do que passou (lembrança que não
se altera), finalizando situações idas; a ligação entre o passado e o real
atualizado (presente) é efetuada pelos mecanismos cerebrais. Entre memória e a
ação do corpo, temos diferenças de graus, o mesmo com relação ao corpo e
espírito. Em destaque, temos a atualização do virtual, projetando-se planos de
consciência mais próximos ou distantes da ação.
Volto então aos pequenos flautistas. Quando se lembravam, feito o Dr.
Rafa, de cada encontro, em que repetiam o mesmo esforço, evocavam um saber
motor (além obviamente da experimentação estética), até que tivessem
condições técnicas de executar uma obra inteira para flauta doce. Bergson diria
que, pelas rotinas do hábito corporal, os gestos se armazenam em um “sistema
fechado de movimentos automáticos que se sucedem na mesma ordem e ocupam
o mesmo tempo” (2010, p. 86). Fico impressionado com a facilidade de
verificarmos empiricamente tal asserção: Quando resolvo solar um samba-
choro no violão, reconheço a memória do corpo. Não devo pensar na obra, como
objeto estético que desliza nas malhas do espírito; se quiser executar com
mínima competência, sequer devo pensar nas notas encadeadas... precisam soar
sempre à revelia de meus juízos, despejadas mecanicamente, como ao baixar um
download. Vejo a ação do corpo recobrando priscas eras, paisagens virtuais que
se atualizam. Ao resgatar os passos das lições para executar a peça, requeiro de
65

minha consciência um tempo, de modo que cada movimento seja recuperado;


isto, para o filósofo, constitui-se uma ação, posto que materializada no presente,
no hábito restaurador da lembrança; assim, toda a heurística para a aquisição
daquele objeto estético fará com que meus dedos, postura torácica, respiração,
etc, configurem uma nova disposição do corpo para agir. Afirmara o autor:
Assim se forma uma experiência de uma ordem bem
diferente e que se deposita no corpo, uma série de
mecanismos inteiramente montados, com reações cada vez
mais numerosas e variadas às excitações exteriores, com
réplicas prontas a um número incessantemente maior de
interpelações possíveis. (BERGSON, 2010, p. 89)

Percepções também são lembranças, podendo se prolongar, de modo a


alcançarem o presente, gestando novas ações, evocando saberes passados,
motricidades, calos, manquejamentos performáticos, arquivos de esforços;
embora sejam memória atualizada, não mais coincidem com o original, posto
que se instalam no presente e este se modifica a todo instante. Haveria um
banco de movimentos que são reeditados, segundo Bergson, e encenam o
passado: mais do que conservarem imagens pretéritas, prolongam as funções
utilitárias do corpo.
Eis-me aqui, entoando na flauta transversal o tema Nature Boy, de Eden
Ahbez (1948), imortalizado em prodigiosas vozes, como de Nat King Cole,
Frank Sinatra, Marvin Gaye, David Bowie, em Moulin Rouge (2001). Nesse
instante, mergulho em uma melancolia que, como uma rede à beira-mar, vai
recolhendo e fundindo entulhos a me circundarem, becos da infância, caçambas
de lixo, repletas de jornais, feixes de rubro neon nas marquises noturnas, vou
caminhando só... atravessando pontes... metrópoles longínquas se redesenham,
coalhadas de estrelas... Verifico a assertividade bergsoniana, ao enunciar que,
uma vez lançada no agora, a lembrança se atualiza; aquela original permanece
intocável, datada, durando, até alcançar perceptivamente o chão sob meus pés...
“There was a boy... A very estrange enchanted boy” (COLE, 1971, f.1)...
pinceladas acrílicas, coágulos de poente a me fugir...
Existem para Bergson lembranças espontâneas, de sorte que o tempo não
as modifica, sem perdas severas, são fixadas na memória de modo consolidado e
único, não se repetindo; há outras adquiridas pelo hábito, articulação utilitária
de movimentos do corpo. O filósofo, ao refletir sobre o caráter destas, lança um
questionamento sobre aquelas evocadas puramente pela imaginação, sem
66

qualquer compromisso com a utilidade e a manutenção da vida: que finalidade


teriam? A que vêm essas imagens? Do ponto de vista pragmático, seriam
inúteis. Aqui, afirmo a dádiva de vivermos experiências de desimportância,
absoluta inutilidade, como cantou o poeta das miudezas, Manoel de Barros:
As coisas que não pretendem, como por exemplo, pedras
que cheiram água, homens que atravessam períodos de
árvore, se prestam para poesia. Tudo aquilo que nos leva a
coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde dos pássaros, serve
para poesia (BARROS, 1974, p.17)

Ao afrouxar todas as cintas logocêntricas, buscando aquela “franja menos


iluminada que irá se perder numa imensa zona obscura” (BERGSON, 2010, p.
92), miro contextos oníricos, possibilidades de paisagens cruas, desinterditadas.
Dimensões pictogênicas que a Linguística costuma endereçar à poesia. É bem-
verdadeiro que os mecanismos mantenedores da ordem consciente operam no
sentido de regular as imagens do sonho, de modo a organizá-las sempre que
possível em hábito, para sobrevivermos com menos riscos. Então voltamos
àquela tradicional afirmação de que as subjetividades de artistas tendem a
promover menos interdições das lembranças-imagens do que as lembranças-
hábitos. Há uma rigorosa diferença entre ambas. As primeiras, em sua
espontaneidade, teriam expressão maior em uma perturbação do sistema
nervoso, com relação ao equilíbrio sensório-motor (p. 93); as segundas seriam
imagens retidas pela consciência, protegendo-nos do acaso, da tragédia e caos.
Haveria portanto um modus operandi consciente no sentido de se capturarem
conteúdos fugidios, fugazes, e com os mesmos construirmos mecanismos
estáveis para os substituir. Eis a covardia da inteligência a nos proteger do
insólito devir.
Bergson, ao refletir sobre a evocação do passado, também pondera acerca
da necessidade de valorizarmos o inútil, de maneira que desarticulemos os
mecanismos utilitaristas das ações presentes, declarando: “[...]é preciso querer
sonhar” (2010, p. 90). O que temos com isto são resultantes de forças
mnemônicas opostas: a lembrança deslizante, regressiva, em oposição à
memória presente que nos impõe a ação e estratagemas vitais. Haverá
certamente uma atenção maior às imagens e fatos aprendidos (pela repetição),
em especial pela utilidade relativa à manutenção da vida, como os saberes para
dirigirmos um automóvel. O autor contudo ressalta a diferença entre o que se
67

constitui hábito e aquilo que jamais retorna. Há um caráter de impessoalidade


na aquisição psicomotora; tais memórias tendem a se tornar estranhas ao
passado que nos constitui, atreladas ao automatismo que busca nos colar na
existência. Na contramão das mesmas, a lembrança pessoal, espontânea, revela-
se “tanto volúvel em reproduzir quanto fiel em conservar” (p. 97).
Vale-nos ponderar... tais explanações acerca da memória soam um tanto
polarizantes, posto que são aqui abordadas, segundo nosso filósofo, em estado
puro. Existem obviamente diversas operações que associam, fundem a imagem-
lembrança e o movimento, engendrando contextos mais complexos. Haveria
um equívoco dos psicólogos, ao crer que o hábito motor seria o responsável
pela produção de imagens e o cérebro, como tal, responsável por gerar
representações, reafirmamos; aqueles profissionais teriam tal entendimento por
não separarem a memória do movimento. No sentido de aprofundar a análise
sobre tais aspectos, o autor mira a natureza do reconhecimento. Assim ele
menciona a ação cotidiana de encontrarmos, pela primeira vez, uma pessoa,
exercício de percepção. Quando a virmos novamente, reconhecê-la-emos. Nisto
haverá um resgate do espírito, que contribuirá com os dados mnemônicos
primitivos, de maneira que interfiram na imagem que se nos apresenta, em uma
resultante que difere do que seria atualmente percebido (p. 99). A evocação
ocorre nesses termos: o que nos passa em atualidade apresenta semelhanças
com o que percebemos preteritamente. Não serão idênticos os conteúdos
primitivos aos atualizados. Uma vez mais o autor insiste no fato de que a
vivência pretérita é apenas lembrança, muito embora possa se fundir, posto que
dura, às percepções presentes, resgatada pelo movimento consciente.
Bergson alerta ao fato de que, para compreendermos o reconhecer, não
basta associarmos uma percepção à respectiva lembrança. Se assim fosse, não
haveria reconhecimento por ocasião da perda de imagens passadas, ou, em via
oposta, o mesmo ocorreria sempre que as tivéssemos impressas na memória. Há
casos em que podemos ter cenas, por exemplo, de um cortiço ribeirinho
flutuando em nosso espírito, com grande detalhismo pictórico, mas nada
garante que encontremos e reconheçamos aquele lugar; assim como o contrário:
um paciente psiquiátrico (quem estaria isento de uma internação?) poderá ser
incapaz de reconhecer o município de origem, ainda que continue recobrando
praças, casas, capelas.
O autor se debruça sobre a natureza do fenômeno motor, no concernente
ao que venha a ser o instantâneo, primazia do corpo. Temos nisto puramente a
ação. O exemplo bergsoniano para tal é a imagem do próprio filósofo,
caminhando primeira vez pelas ruas de uma cidade que não conhece. Hesitante
68

a cada esquina, considera ali as mais diversas opções, cujos movimentos não
antecipam nada que venha adiante. Após um tempo naqueles espaços, circularia
de modo mais automatizado, sem uma percepção muito atenta dos objetos
observados. O autor pondera que, entre os extremos perceptivos de não haver
nenhuma organização de movimentos (que rua devo seguir?) e outra que os
ordenou, a ponto de se poder confiar em certo hábito ali engendrado (já vi que as
quadras tem cerca de 100 passos), existiria uma perceptibilidade mista, que intui
objetos em movimentos contínuos, intercomunicantes. Retomando, teríamos
uma percepção bruta, crua, cuja situação não iria além de olhar para si mesma
(preciso caminhar, estou perdido), remando para uma condição em que, no limite,
apropriamo-nos do automatismo. Nesse interlúdio psicomotor, haveria uma
crescente automatização (p. 104). Com isto, o autor afirma que o fenômeno
motor estaria na base do reconhecimento. Ao acolhermos o objeto, teremos nisto
a finalidade de nos servirmos do mesmo, adaptando-nos mecanicamente a seus
traços, orquestrando-se uma gama de movimentações, reflexos, enfim de
operações do hábito que fundamentariam o reconhecer. Vejo nessas ilações
grande valor para as reflexões sobre o bebê e a criança bem-pequena, sem com
isto aludir às fases do desenvolvimento infantil, como as Ciências Educativas
tendem a fazê-lo.
Seria aligeirado, senão indecoroso, definirmos o reconhecer apenas nos
termos motores, condição de uma consciência utilitária, atualizante, assentada
nos mecanismos de ação sensorial. Existe um pântano interditado, sobre o que
já lançamos neste livro muitas impressões, memórias que irrompem pelas
fraturas naquela sólida maquinaria do presente, dando passagem ao que nos
constituiu... “luz marinha e onda / E nesse avanço da espuma / Fundou meu
coração seu movimento” (NERUDA, 1996, p. 229). Havemos de nos esforçar
para, dentro do possível, contermos o afã do agir presente, que faz com que
nossa percepção nos empurre ao que vem adiante. Indago: com que forças
devemos remar? A compleição corpórea imprime coices prospectivos, nesse
devir movente, festivo e trágico. Imperiosas tensões nos atravessam, urgentes;
demandas ordinárias nos devoram as libélulas azuis que fagulham ao espelho
dos regatos interiores, as que escapam conseguem ainda passar por essas frestas
no granito em que nos algemamos, herdeiros do parvo Prometeu. Ocorre
conosco que temos dia e hora para abandonarmos este corpo-imagem,
recompondo-nos em outras figurações. Então, vamos...!
69

Reconhecimento atento

Há um notável paradoxo no movimento: por um lado, afasta as


lembranças, para lançar-se na materialidade; por outro, busca as preparar,
escolher, ordenar. Temos então uma via de mão dupla; apesar de inibidas por
ações presentes, memórias relevantes terão maior facilidade em se
apresentarem do que outras, abandonadas ao breu da inconsciência. Para que
superem os obstáculos do objeto atual, aquelas imagens precisam manter
semelhança com aspectos do mesmo, finalmente superando-o.

Aprofundando a análise do reconhecimento, Bergson propõe duas formas


para o mesmo: da primeira já tratamos, aquela feita por distração /
automatismo, em que os imperativos mecanicistas predominam sobre as
imagens passadas; a segunda diria respeito à atenção. Trata-se de um reconhecer
que não mais despreza os objetos (primazia do hábito) e sua novidade
figurativa, mas se volta a estes, de modo a capturar-lhes os traços, evocando
sistematicamente imagens pretéritas (p. 11) com os quais apresentam
similitude. A atenção, prerrogativa da consciência (habilidade também
intelectual), intensifica a percepção; o que, de certo modo, revela o papel
adaptativo do corpo, contudo o espírito consciente aqui opera intuindo um sem
número de coisas, mistérios imagéticos, ontológicos, passos rumo ao passado,
abrindo-se mão da utilidade presente, cujos mecanismos são contidos. Uma vez
operando com a atenção, a intuição perceptiva se dispõe de movimentos mais
sutis a delinearem o observado, de modo que ao mesmo se agregam imagens
semelhantes guardadas, em uma recriação presente. Para além disto, o espírito
pode evocar conteúdos de eras obscuras, distantes, insondáveis, quem sabe
rostos insones, zumbis ou carrapatos, mordidas que alcancem a percepção atenta,
cujo caráter reflexivo, Bergson nos chama à atenção: “[...]projeção exterior de
uma imagem ativamente criada, idêntica ou semelhante ao objeto, e que vem
moldar-se em seus contornos” (BERGSON, 2010, p. 116). Haveria para tanto o
papel inteligente do estabelecer similitudes. Isto nos impele uma vez mais a
acusar o amálgama que se opera em uma conjunção entre a ação e a memória,
aspectos utilitários em sinergia, as imagens externas espelhadas pelo que delas
retivemos. Diz Bergson:

Assim, criamos ou reconstruímos a todo instante. Nossa


percepção distinta é verdadeiramente comparável a um
círculo fechado, onde a imagem-percepção dirigida ao
70

espírito e a imagem-lembrança lançada no espaço correriam


uma atrás da outra. (BERGSON, 2010, p. 117)

Notemos o formidável dinamismo com que atuam as funções perceptivas,


levando-nos inclusive a refletir sobre a questão ontológica (e metafísica) central
bergsoniana: somos imagens, centros de indeterminação, portanto criativos, em
interações circulares, retroalimentantes, com a exterioridade do mundo.
Imagens que se procuram... eventos que foram se fundem ao insólito
devir. Há uma tensão, segundo o filósofo, operando qual um circuito elétrico. A
percepção refletida, concernente à captura do objeto-estímulo, promove um
percurso que parte do mesmo, encaminhando-o inexoravelmente aos domínios
do espírito, que devolve a imagem, gerando-se novos circuitos (p. 119). Trata-
se de um estado de atenção que estabelece entre o eu interior e a matéria uma
tal solidariedade, que condições intuitivas superiores desenham outras
composições, embora ainda mantenham o objeto percebido. A memória, nessa
dinâmica circular, tende a expandir-se nos circuitos, cada vez maiores, a partir
da percepção imediata dos dados. Nesse movimento infinito de expansão, existe
uma atuação sobre os mesmos, acrescendo-lhes elementos ora oriundos daquela
imagem, ora de percepções que os elucidem. Há, com isto, uma crescente
reconstituição, recriação em condições gradativamente mais profundas, naquilo
que o autor considerou um sistema independente (p. 119). Nesse sentido,
elementos virtuais inerentes ao externo são editados em novas miradas de
acesso mnemônico, cada vez mais amplo: quanto mais se expande a memória,
gerando-se círculos intuitivos, mais profundas são as camadas da realidade
percebidas. Eis uma asserção de eminentes ecos metafísicos. O que capturamos
do real em grande medida concerne aos graus de tensão estabelecidos pelo
espírito com relação à percepção do presente, “conforme a altura onde se
coloca” (BERGSON, p. 120), de sorte que a lembrança recolhe dados imersos
em dimensões quase insondáveis da virtualidade.
Vale-nos ponderar uma vez mais sobre a elasticidade da memória,
concebendo idos, molduras de eventos que nos constituíram e que também vêm
à superfície da materialidade corporal mais ordenada, ou de maneira
espontânea, indeterminada. Diz Bergson:
Mas esse invólucro extremo se comprime e se repete em
círculos interiores e concêntricos, os quais, mais restritos,
contêm as mesmas lembranças diminuídas, cada vez mais
afastadas de sua forma pessoal e original, cada vez mais
71

capazes, em sua banalidade, de se aplicar à percepção


presente que não se saberia dizer onde a percepção acaba,
onde a lembrança começa. (BERGSON, 2010, p. 121)

Vejamos nisto o papel do corpo, fronteira metafísica, pura imagem que


funde outras pretéritas a essas presentes, percepção exterior e lembrança
compõem uma sístole-diástole, respiração e indeterminação. A memória
também apresenta um caráter de ação, pelo fato de contrair-se, aguçar-se,
evocando uma notória riqueza de nuanças, afetos, enfim, um mobiliário das mais
vastas texturas, volumes, cores, fibras do fantástico e até inominável. Em que
pesem tais contextos do espírito, a atingirem o instante exterior perceptivo,
este, consoante já declaramos, ordinariamente perfaz movimentos de imitação: a
realidade nos oferece imagens que a todo instante sofrem a projeção de
evocações, segundo o alcance do círculo mnemônico que projetamos no
exterior; assim acessamos o em si das coisas.

Confesso meu apreço pela metáfora bergsoniana dos círculos


concêntricos. Penso no moleque que fui... quantas vezes atirei pedras em
superfícies lacustres, como na Lagoa Paulino, em Sete Lagoas, MG, ou no Lago
Paranoá, em Brasília, DF, ou ainda na Lagoa do Abaeté, BA... quanto me
intrigava observar aquelas figuras esféricas que surgiam e se multiplicavam, a
partir do objeto lançado ao centro. Pensava comigo: “Será que esses círculos
não têm fim? Então existe o infinito?” Eis a índole do espírito, em sua condição
de estabelecer conjuntos (não estou espacializando) circulares cada vez mais
amplos, em que a experiência de viver poderá alçar voos inimagináveis,
sobretudo estéticos, posto que se abrem possibilidades metafísicas, sem a
ingenuidade e arbítrio dos velhos sistemas, como o aristotélico. Aqui temos,
rasgados os ordenamentos litúrgicos platônico-cristãos, condições de
vivenciarmos uma realidade que sempre esteve a nossos olhos e em grande
medida acessamo-la, como o faz às vezes o senso comum, sem saber contudo
desses encontros. O cidadão cotidiano, burguês-níquel (ANDRADE, 1955),
poderá ter vivido lampejos que talvez o hermeneuta mais enclausurado jamais
tenha experimentado, refém nas masmorras do discurso da razão e
cientificidade.
Desde que comecei a meditar sobre a duração, na perspectiva
bergsoniana, versos de uma icônica canção brasileira composta por Cazuza e
Frejat (2000), eternizada na voz de Ney Matogrosso, ecoam em meu espírito. A
obra-prima se intitula “Poema”; a seguir transcrevo um trecho, que me parece
72

ilustrar de maneira ímpar o que seriam todos esses aspectos perceptivos,


mnemônicos, metafísicos, aqui discutidos...

Do escuro, eu via o infinito


Sem presente, passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim
E que não tem fim
De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu há minutos ou anos atrás
(CAZUZA; FREJAT, 2000, f. 6)

Não farei aqui uma resenha, discutindo aspectos estilísticos, literários,


também concernentes à linguagem musical; peço a quem lê que se disponha a
ouvir a canção. Cazuza a compôs para a avó. Impressiona-me como o poeta nos
fornece impressões do devir e o próprio tempo, as relações entre o que nos
passa e o que se perpetua... a criança, em busca de aconchego...e nada afirmarei
mais, evitando quem sabe aquele papel burocrático do crítico, patrulhamento
enfadante, a matar no ninho emoções possíveis.

Asserções sobre a palavra

As faculdades linguísticas têm em sua base estruturas motoras,


adaptativas, concernentes ao hábito. Diria Bergson que existe uma simbiótica
relação entre ações mecânicas e a memória voluntária; o ser falante goza da
prerrogativa de orientar impressões verbais sonoras que se prolongam em
articulações; um sistema coordenado pela vontade: “um discernimento
rudimentar, e que se traduz, no estado normal, por uma repetição interior
daquilo que sobressai na fala ouvida” (BERGSON, 2010, p. 131). Haveria
destarte uma mimetização interna vocabular na apreensão das imagens
acústicas externas. Quando escutamos frases de nossa língua materna, isto
ocorre tão rapidamente, pela cristalização dos hábitos de aquisição simbólica,
que sequer notamos aquele espelhamento. Podemos verificar melhor tal
73

aspecto, quando ouvimos outra língua em que não somos fluentes. Repare-se
que ao nos depararmos com um enunciado como: Good to see you again!7,
repetiremos a frase interiormente capturada pela percepção... nossos arquivos
auditivos serão evocados, cujas impressões emergem à consciência. A percepção
crua dos sons apresenta uma continuidade assentada em conexões sensório-
motoras adestradas pela repetição. A consciência, nesse sentido, promove uma
decomposição dos dados sonoros. Há uma visceral ligação entre os sons e as
respostas motoras, que maneja o fluxo de lembranças que vão ao encontro das
percepções. Sempre nos vale ponderar sobre a capacidade das palavras que
ouvimos travestirem-se de matizes semânticos os mais diversos, conforme são
entoados – altura, timbre, volume, enfim traços musicais, fonéticos... tudo isto,
não nos esquecendo da dimensão gestual e aspectos suprassegmentais da língua
(LEBEN, 1973), dados qualitativos em que até o silêncio, como nas pausas
entre as frases, vem prenhe de significados –. A comunicação oral conta, além
de aspectos motores, com o trabalho intelectual, de modo que todos esses
elementos semânticos possam ser identificados. Bergson afirma que os
“movimentos interiores de repetição e reconhecimento são como um prelúdio à
atenção voluntária. Assinalam o limite entre a vontade e o automatismo”
(BERGSON, 2010, p. 133).

Vejo a relevância de refletirmos sobre este fragmento, em especial, pelo


que expressa da linguagem verbal, em que pese assentar-se sobre mecanismos
predominantemente motores, fruto da inteligência pragmática e loteadora de
campos de experiência que deveriam pertencer a atribuições do espírito. A
atenção voluntária encaminha a existência de modo a tomarmos as rédeas rotas
(roídas) de nossa vida, na medida do possível, gerenciando as relações do corpo
no mundo, delineando com o fluxo da memória o entorno recortado e sendo,
enquanto imagem, também impactado pela exterioridade que nos lança
imagens.
Este livro tem erguido barricadas contra a linguagem, mas fique aqui
registrada uma vez mais a relevância dela, não somente como modus operandi de
nos pregarmos à vida, mas também, em certa medida (pelas fendas
estilomorfossintáticas, quem sabe), como possibilidade de manifestação de um
eu menos agrilhoado aos regimes da razão. Então a poesia se revela como um
percurso, descaminho, reafirmamos...
O exercício linguístico requer que o ouvinte promova uma
correspondência entre ideias a se desenvolverem e representações auditivas, de

7 Tradução: Que bom ver você de novo!


74

sorte que estas se alinhem e suplantem os dados brutos sonoros que a


percepção recolhe. Eis o arbítrio já posto nos primeiros meses de vida: um dado
sonoro oriundo do ambiente precisa ter um (ou mais) correspondente lógico. O
choro pelo peito materno me parece um contexto comunicativo em que as
premissas são anteriores a tais relações, o instinto voz... mal sabe o calvário a
percorrer até se humanizar... “Morrer deve ser tão frio quanto na hora do
parto” (GIL, 1977).
Voltando ao enunciado em inglês dirigido a um falante de língua
portuguesa, que tenha noções daquele idioma, inferimos que existiria ali a
premente necessidade de a subjetividade partir de ideias sobre sons. Nosso
ouvido percebe uma continuidade sonora e, pelos mecanismos inteligentes, o
espírito promove uma reconstituição dos dados auditivos (p. 134) e vai além:
concentra-se, reconhece, seleciona, interpreta, relaciona as percepções cruas, de
maneira que as suplantará com as lembranças, então atualizadas, em um fluxo
que escoa pela exterioridade fônica. Existe um continuum que as Ciências tentam
separar entre percepção bruta, imagem auditiva e ideia. Na experiência pura, a
ideia inicia o movimento, de modo que esta promove a fusão entre as
lembranças auditivas; não fosse assim, os sons brutos percebidos somente se
tornariam inteligíveis pelo papel das faculdades mnemônicas.
Sobre o desafio de nos comunicarmos linguisticamente, afirmou o autor:
[...]refinada ou grosseira, uma língua subentende muito mais
coisas do que é capaz de exprimir. Essencialmente descontínua, já
que procede por palavras justapostas, a fala limita-se a assinalar, a
intervalos regulares, as principais etapas do movimento do
pensamento. Por isso compreenderei sua fala se eu partir de um
pensamento análogo ao seu para acompanhar-lhe as sinuosidades
com o auxílio de imagens verbais destinadas, à maneira de
letreiros, a mostrar-me de tempos em tempos o caminho. Mas não
a compreenderei jamais se partir das próprias imagens verbais,
porque entre duas imagens verbais consecutivas há um intervalo
que nenhuma representação concreta conseguiria preencher. As
imagens, com efeito, serão sempre coisas, e o pensamento é um
movimento. (BERGSON, 2010, p. 145)
Ao ler repetidas vezes este notório excerto, reparo diversas nuanças
merecedoras de análise, dentre as quais eu destacaria a contingência,
precariedade do ente sígnico, o arbítrio sintático / morfológico / semântico que
subjaz às frases de um idioma, mesmo os ideogrâmicos, condição de negociações
75

intersubjetivas, algo um tanto mais imperfeito do que imaginara a linguística


estrutural e funcionalista, como a de Roman Jakobson (2001) e sua teoria
comunicativa. Veja, leitor(a), o paradoxo inerente ao contexto das palavras e o
pensar: estas, sempre perfiladas, portanto descontínuas (na acepção
bergsoniana), tais como cartas de baralho sobre a mesa, buscando alinhamento
ao fluxo ininterrupto do pensar, tentando registrá-lo. Que distância há nesta
concepção com relação ao que entendia Vygotsky (1991), convicto de que, após
o encontro da linguagem com o pensamento, nos dois primeiros anos do bebê,
ao que se seguiria um tempo de fala egocêntrica, o pensamento se interiorizaria
em linguagem, realizando-se pelos signos linguísticos. Em Bergson, o que
temos é uma compreensão de que o discurso verbal tenta, com seus intervalos
vocabulares, justapondo peças, assinalar, registrar o pensamento, suas etapas e
regiões. Existe a premente necessidade, se quisermos nos comunicar
verbalmente, de cada interlocutor esticar cadeias fonêmicas que, embora únicas
(arrastando lembranças, ideias, percepções...), apresente certa similitude com
relação ao que o outro enuncia. Nas concepções linguísticas tradicionais,
associacionistas, o processo parece algo simples. Nunca é demais lembrar que
são signatárias de posturas científicas ancoradas em epistemologias como a
cartesiana, humeana ou kantiana, mananciais teóricos que primavam pela
identidade fixa dos signos (instaurada pela relação entre sujeito e objeto,
madrinha da representação), com o que se engendravam discursos sobre as
coisas.
Com relação à incompreensão que aponta o autor no fragmento há pouco
transcrito, cremos que o que ali está posto, salvo melhor entendimento, seria a
situação dos falantes abandonando-se ao próprio fluxo imagético-
grafofonêmico, noutras palavras, à duração psicológica interior, em toda sua
potencialidade; os intervalos coesivos entre tais entes expressam o movimento
do pensar, incapazes de serem representados. Uma vez mais, temos o escoar da
experiência consciente, que não cabe nas gavetas da linguagem verbal. Temos
comunicação linguística, obviamente, mas se produz nas complexas negociações
entre seres-imagens, atores da indeterminação, por mais que as Ciências
Humanas creiam no rigor daqueles processos. As palavras são objetos
justapostos e o pensamento, um jorro movente que funde, acopla, derrete
figuras em outras, faz reminiscências ecoarem nos gradeamentos do presente.
Percamos então a inocência, estamos à deriva, pelo que sabemos da corrosão
fácil dos simulacros que construímos em nossa proteção.
Os bebês têm muito a nos comunicar, desde que possamos ampliar os
campos de existência, planos de sentido noviços, escoantes, registros
76

sobremaneira estéticos, hipersensoriais (olhemos bem nos olhos). Uma


gargalhada deles, naquela brincadeira de some / aparece (quando a mãe, seu
primeiro brinquedo, esconde o rosto e bruscamente mostra, fazendo careta),
torna-se uma frase interjetiva, em que não existe ainda aquele alinhamento,
pura expressividade aquém (e além) do símbolo linguístico.
Uma vez que refletimos sobre o ato de fala, convém acompanharmos as
ponderações bergsonianas acerca do presente, ocasião de produção de discurso,
de modo que nos afastemos da concepção tradicional atrelada ao raciocínio
matemático que, de mãos dadas com a espacialização, metrifica o tempo,
consoante já demonstramos. Bergson afirmara o quanto esta visão é ideal,
formalista, posto que estabelece duros limites entre o passado, presente e o
futuro (lembrei-me dos tempos verbais simples; somente no modo indicativo,
temos o pretérito mais que perfeito, perfeito, imperfeito, futuro do pretérito,
presente, futuro do presente). Olho neste instante para a caneta espichando
garranchos azuis sobre o sulfite branco, tenho rugas, como curvas de nível da
lavoura, entre a mão e a extremidade do antebraço (pulso); a pele não tem mais
o viço, a elasticidade e hidratação de 30 anos atrás. Concluo, mirando estes
poros epiteliais, que realmente não me é possível defender uma ideia de
presente que não contemple aspectos inerentes à duração. Bergson indagará:
Onde portanto se situa essa duração? Estará aquém, estará
além do ponto matemático que determino idealmente quando
penso no instante presente? Evidentemente está aquém e além
ao mesmo tempo, e o que chamo “meu presente” estende-se ao
mesmo tempo sobre meu passado e sobre meu futuro. Sobre
meu passado em primeiro lugar, pois “o momento em que falo
já está distante de mim”; sobre meu futuro a seguir, pois é
sobre esse futuro que esse momento está inclinado, é para o
futuro que eu tendo, e se eu pudesse fixar esse indivisível
presente, esse elemento infinitesimal da curva do tempo, é a
direção do futuro que ele mostraria. (BERGSON, 2010, p. 161)
Note, leitor(a), como o presente destas linhas não se captura, a não ser
pela abstração simbólica. Deslizamos sobre o que nos passa, o que foi e aquilo
que será. Há uma arbitrariedade em recortarmos o presente, uma ilusão de que
o espírito se confinaria em tal arranjo cronotópico. O que dura traz em suas
redes o passado primeiramente; pois, ao falar, o que enuncio já passou... torna-
se memória, embora articulada ao corpo, que encaminha ações... por sua vez,
prospectivas, mirando o que será. O presente se constitui duracional: o passado
alcança as percepções do agora, remando em direção ao desconhecido. Nesse
77

sentido, nosso autor reafirma a necessidade de entendermos o instante,


enquanto estado psicológico, como uma “percepção do passado imediato e uma
determinação do futuro imediato” (p. 161). Temos aqui o que seria uma
delimitação nos termos bergsonianos. O presente se reveste de uma índole
sobremodo sensório-motora, pelo que se articulam as sensações e movimentos.
A duração psicológica alcança bem mais do que as imediações pretéritas ou
instantes futuros. Minhas rugas nas mãos atestam, assim como a cicatriz de
uma queimadura que adquiri aos sete anos de idade (gostava de queimar
saquinhos de leite e contar gotas anis incandescentes na escuridão), que meu
instante tange a infância (lembrança pura que se atualiza e deixa de sê-lo), como
me projeta para além do túmulo... até já redigi o epitáfio: Enfim, brando!
Homenagem ao meu homônimo e maior ator da história do Cinema. A mãe
considerou-me, com razão, tão belo quanto o protagonista de Sindicato dos
ladrões (1954)8. Então, ao redigir o enunciado de minha lápide, vou além do
futuro breve (isto supondo que vá durar mais 30 anos e não 30 minutos). Quem
sabe o livro que ora escrevo se torne um best-seller da Filosofia da Educação e
daqui a 80 anos, passe a ser leitura obrigatória para educadores em geral...
Parvoíces à parte, tenho em grande conta a asserção bergsoniana de que
nosso presente consiste na consciência que temos do corpo (p. 162), centro de
deliberações direcionadas ao mundo material, atingido permanentemente por
estímulos dentre os quais recorta impressões, encaminha movimentos. O devir,
desse modo, constitui-se um substantivo contíguo ao durar e quando penso no
instante corpóreo, o que tenho vem a ser uma atualização deviriana (permita-
me esta excrecência), então vivemos uma realidade presentificada em que nos
debatemos, enquanto corpo-imagem; tudo o que sentimos, percebemos,
recortamos, selecionamos, enquanto centralidade indeterminada, figura-se
como atualização do presente.
A exterioridade consiste em uma massa imponderável (metáfora do
autor) que escoa indefinida e infinitamente: o mundo material é capturado pelos
movimentos seccionadores que nossa consciência opera naquele grande fluxo.
Bergson insiste na importância de demarcarmos diferenças de natureza entre a
lembrança pura e as percepções atuais. Assim raciocina por ver no corpo o limite
que torna radical a distinção. Aquilo que nos passa no presente, sensações
atualizadas, ao marcarem nossos órgãos, tomam-nos; isto não ocorre com a
lembrança pura, que não mais pertence a qualquer parte corporal (minha

8 Título original: On the waterfront (1954), direção de Elia Kazan; elenco: Marlon Brando, Eva Marie-
Saint, Karl Malden, Lee J. Cobb, Rod Steiger, dentre outros; o filme levou oito prêmios Oscar em 1955.
78

cicatriz sobre a mão, assim, não é lembrança pura). Ainda que possa despertar
manifestações orgânicas, materializando-se, não podemos afirmar que ela seja
da mesma natureza da sensação atualizada, sobretudo porque deixará de ser
lembrança, constituindo-se objeto presente. A lembrança pura pertence aos
domínios do espírito e não mais do corpo. A palavra, uma vez proferida, também o
será, enquanto imagem acústica, elemento inteligente e espelho do mundo.

A seguir, um trecho de uma deusa literária, a quem rendo romarias...


E sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico,
fantástico e gigantesco: a vida é sobrenatural. E caminho
segurando um guarda-chuva aberto sobre corda tensa.
Caminho até o limite do meu sonho grande. Vejo a fúria dos
impulsos viscerais: vísceras torturadas me guiam. Não
gosto do que acabo de escrever – mas sou obrigada a
aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu. E respeito
muito o que eu me aconteço. Minha essência é inconsciente
de si própria e é por isso que cegamente me obedeço.
(LISPECTOR, 1998, p. 29)
Aqui o impacto em mim de um eu lírico narrador a lançar-se no mundo,
apesar das palavras, entes que nos acontecem. Sim, trata-se de moedas
simbólicas, que nos mutilam pelo que arrastam de universalidade, abrigando
tensões entre o que não somos e aquilo pelo que sangramos. Não tenho a
coragem exigida para me obedecer cegamente, pois isto anuncia a tragédia de
suportar a liberdade, abandonando as zonas de (des)conforto que a inteligência
nos tem garantido. Abdicar destas abstrações será testemunhar o “guarda-
chuva” (de que fala a personagem) ser rasgado pela tormenta, então indago:
quem se habilitaria a ir além do “sonho grande”... sem rede de proteção para a
queda?

O presente puro é inapreensível... O cone invertido e a infância movediça

Abordamos aqui um aspecto crucial acerca não somente da palavra, mas


do passado como um todo: de que maneira este se conserva? Bergson dirá que,
apesar de ter cessado, como aquilo que é, ou o que passa, sua permanência diz
respeito à utilidade, mas sobretudo entre a íntima relação entre a memória do
corpo – circunscrita a um sem número de ações adaptativas replicantes,
espelhantes do entorno, produtora e perpetuadora de hábitos – e a memória da
consciência – manejo do passado virtual, movente também, que acumula, colide
79

estados e fatos pretéritos –. Na experiência que se desenha no devir, temos uma


fusão dessas formas mnemônicas, aqui já descritas, um nexo orgânico. Para
aprofundarmos tal entendimento, é preciso reconhecer a inapreensibilidade do
presente. Vejamos o que declarou o autor:

Quando pensamos esse presente como devendo ser, ele


ainda não é; e, quando o pensamos como existindo, ele já
passou. Se, ao contrário, você considerar o presente
concreto e realmente vivido pela consciência, pode-se
afirmar que esse presente consiste em grande parte no
passado imediato. (BERGSON, 2010, p. 175)
Noutras palavras, não há como capturarmos o presente puro; em que pese
tudo o que afirmamos da relação deste com o corpo, o instante é inatingível...
escapa-nos... Temos nisto um paradoxo que concerne, salvo engano, às relações
entre a memória corporal e a memória da consciência, aquela descolada do
presente. Nosso corpo está de passagem, imagem efêmera que opera cisões no
devir (p. 177), com aparelhamentos sensório-motores, guinchos que agarram as
lembranças mais remotas.
Bergson nos apresenta a notória metáfora do cone SAB, para didatizar
suas descrições acerca das relações entre memória, devir, corpo, presente e
mundo.

Figura 1 Um cone no pensamento bergsoniano

Fonte: BERGSON (2010, p. 178)

A seguir, transcrevemos as explicações do autor sobre o diagrama:


80

Se eu representar por um cone SAB a totalidade das


lembranças acumuladas em minha memória, a base AB,
assentada no passado, permanece imóvel, enquanto o
vértice S, que figura a todo momento meu presente, avança
sem cessar, e sem cessar também toca o plano móvel P de
minha representação atual o universo. Em S concentra-se a
imagem do corpo; e, fazendo parte do plano P, essa imagem
limita-se a receber e a devolver as ações emanadas de todas
as imagens de que se compõe o plano. (BERGSON, 2010, p.
178)
Somos figuras lançadas (S) no infinito objetal, figurativo, extensivo, do
cosmos (P), reafirmamos uma vez mais. Remamos rumo ao não vivido, tal como
o bico do cone, a deslizar sobre o que planificamos do mundo. Vejo como
essencial expurgarmos a visão kantiana com que certamente olharemos para a
representação cônica, sobretudo a inescapável espacialização que tende a
deformar os sentidos da figura proposta. Tenho ciência de que os atributos da
linguagem inclusive visual apresenta limites nesse sentido; para exemplificar,
lembro que o cone parece um depósito a conter as lembranças, como um silo
graneleiro invertido, ou ampulheta, lançando o que seria a duração psicológica
em uma tridimensionalidade, suprimindo o qualitativo da experiência do vivido,
inclusive conferindo certa impressão de quantidade verticalizada. A
representação do cone padece, ao nosso ver, do perigo de cristalizar-se uma
abstração, apesar de sabermos o quão improcedente isto se torna no registro
bergsoniano. O autor fez tal concessão, cremos, dentre outras razões, para
elucidar o que seria a memória, destrinçando o papel do corpo no resgate de
lembranças mais remotas, defuntas, trazidas à materialidade, requentadas,
senão fervidas pelas ações presentes, sensório-motoras, bem como para explicar
o devir.
Não seria forçoso afirmar: o que nos passa corporalmente, ocasião em que
a singularidade da ação recolhe e projeta imagens, constitui-se uma síntese
duracional, um instante que pode abrigar mil anos.
Escrever este livro tem sido para mim uma experiência em grande
medida contígua aos enunciados propostos pela metáfora geométrica do cone. O
segmento AB, base virtual mnemônica (assim como tudo o que se fundiu e
moveu desta até as imediações do vértice S), envia-me encadeamentos de
imagens, afetos, de modo intenso e permanente, magnetizados pelas ações
sensório-motoras, por sua vez capitaneadas pela intenção útil de produzir o
trabalho.
81

Há, por parte destas, adverte o filósofo, uma atuação também no sentido
de se recobrarem lembranças perdidas, silenciadas no breu da inconsciência. A
memória, assim, apresentaria uma via de mão dupla: se, por um lado, o passado
total fundamenta a ação presente, por outro, esta o resgata, iluminando-o. Com
relação a tal dinâmica, Bergson reflete sobre as crianças, cuja memória
espontânea desenvolve-se de modo extraordinário (2010, p. 180). Com elas, não
temos ainda o arranjo de que tratamos, pelo que não há comprometimento entre o
virtual pretérito e o atual que avança. Os pequenos agem à revelia das lembranças, uma
vez que a inteligência ainda não se estabeleceu por completo, ordenando-as. Ao passo
que isto se consolida, temos a sensação de que a memória se limita, contudo o
que ocorre vem a ser o alinhamento entre a mesma e as ações presentes.
A memória infantil, por não ser ainda refém da utilidade, alinha-se ao
contexto do sonho, devaneio, fantástico. Ao passo que o sofrente avança em
anos, atingindo a adultez, vai se agrilhoando aos mecanismos de ação que têm
como fundamento primal a pragmática função de adaptação ao meio e
manutenção da vida, reafirmamos uma vez mais.
Creio de modo convicto que meu fascínio pela infância (razão deste livro
e de duas décadas lecionando na Creche e Pré-escola) se dá, dentre outros
motivos, pelas relações dela com o sonho. Aqui apresento um traço do que seria
a infância do movente. Conviver com os miúdos atores sociais tem me
proporcionado dias de novidade, graça, poesia do cotidiano, por razões
longamente expostas até aqui. Não se trata mais de uma fase da vida, como queriam
os desenvolvimentistas, mas de duração menos contaminada pela utilidade, nosso eu não
tão refém da linguagem e todas as artimanhas da razão instrumental; um corpo
brincante, lançado ao acontecimento, a coordenar sua memória pelos caminhos da
fantasia e do imponderável, apesar da instituição escolar.

Uma mirada para o inconsciente

O trabalho que escrevo pouco mencionou as regiões do espírito/tempo


inextensivas, abandonadas à penumbra do não evocado. Tal lembrança pura
traz a marca da impotência em relação à utilidade e o presente funcional.
Segundo Bergson (2010, p. 165), atribuímos tamanha importância à
consciência, com relação a nossos estados interiores, que em geral associamos
aquilo que existe ao que é consciente, no limite, o presente motriz. Fato é que
há contextos existenciais não pertencentes a estes domínios, breus de
esquecimento, sem a luz orquestral da ação psicomotora. Seria um grosseiro
82

reducionismo pensarmos que o real supõe apenas atualidade, ainda que resgate
o remoto passado. Na penumbra do tempo, infinitos objetos duram, sem ser
percebidos... desde a residência de desconhecidos orientais, localizada à quadra
seguinte de seu endereço, até mesmo a cor das paredes de minha primeira
escola. Ingenuidade crermos que um sabiá, cujo canto ouvimos por alguns
segundos, passaria a existir somente porque nossos sentidos o capturam. Não
será difícil encontrar um conciso sistema filosófico que nos leve a crer em
tamanha pretensão subjetiva. O senso comum pelo menos tem mais humildade,
ao reconhecer que as coisas não precisam de nós, podem ser à nossa revelia e,
assim, constituírem-se objetos inconscientes em relação a quem não as percebe.
Isto parece claro com respeito aos entes externos e pantanoso, se tratarmos de
lembranças abandonadas, exauridas, desimportantes.

Bergson propõe, a título de melhor elucidar as representações do


inconsciente, uma figura semelhante a um T invertido:

A I B
Fonte: Bergson (2010, p. 167)
Figura 2 Diagrama para o inconsciente

Segundo o autor, existem dois tipos de percepções: as atuais, que


ordenam os objetos na espacialidade presente, representadas por uma linha AB
horizontal; e as virtuais, que abrigam nossa lembrança lançada no tempo,
simbolizadas pela linha CI. Esta encontra AB, perpendicularmente, no ponto I.
Bergson pondera sobre o fato de que, nesta intersecção entre AB e CI, temos o
labor da consciência; ao passo que não negamos AB (os objetos atuais existem,
sem os observarmos), tendemos a desacreditar na existência de CI, com exceção
do ponto I – aquilo que é passado, mas recobrado no presente.
Bergson comenta essa figura como dimensionada por dois segmentos: um
espacial (AB), outro temporal (CI), estabelecendo uma distinção radical entre os
mesmos. Preciso, para garantir a coerência de minha escrita, argumentar que a
índole de espacialidade atribuída a AB, conforme afirmamos diversas vezes, não
é condição do conhecimento, como na concepção de Kant (1983) e nem pertence
83

às coisas. Trata-se, reafirmamos, de uma criação utilitária inteligente que


assume feições de objetividade absoluta, capaz de produzir esquemas simbólicos
em que projetamos um futuro prenhe de feitos. O espaço, embora imóvel, abriga
desenhos de horizontes amplos, inscritos em circularidades que implicam em
outras, cada vez mais extensas, a partirem do imediato. Bergson afirma que a
percepção atual, neste contexto, constitui-se parte de uma experiência ampla e
indefinida, da qual não temos consciência, pelo que aquelas ultrapassam nossas
possibilidades perceptivas.
O utilitarismo que tanto matiza as ações presentes se torna, no mais das
vezes, o grande responsável pela facilidade que temos de evocar os objetos
presentes, mesmo que não os capturemos sensorialmente, sobretudo pelos
hábitos que adquirimos de ordená-los no cotidiano. O habitante de um bairro
operário como aqueles da COHAB, ao acordar, poderá prever elementos
materiais em sua caminhada rumo ao emprego; estão posicionados no espaço.
De modo contrário à necessidade em que se ordena este cenário, o que temos
vem a ser a contingência, no que tange às lembranças, quadros interiores
mergulhados na duração psicológica.
O filósofo pondera que nossa tranquilidade com relação aos objetos
espacializados se dá pela consciência de os situarmos em uma cadeia, “da qual
minha percepção presente não seria mais que um elo: este elo comunica então
sua atualidade ao restante da cadeia” (BERGSON, 2010, p. 170) Em seguida,
vem uma afirmação um tanto perturbadora, que ressalta haver também no
tempo/memória cadeia semelhante, cuja síntese se perfaz em nosso caráter,
condensador de todas as vivências passadas. O autor vai além: o pantanoso
mundo de nossas lembranças teria uma existência sobremaneira mais efetiva do
que a realidade externa, cujas representações se constituem pálidos recortes.
Em nosso caráter, portanto, contemplamos toda uma vida, ainda que muito do
que passamos e vimos se perca na escuridão do esquecimento, podendo retornar
à superfície do atual, feito alucinações entorpecidas, cofres abarrotados de
cédulas e ratos, cristaleiras iluminadas pelo calor da consciência útil. Esta
regente, se por um lado, posiciona com rigor o que percebemos no espaço, por
outro, resgata memórias no tempo descontínuo. Não há, segundo o autor,
diferenças radicais entre os dados do espaço e do tempo, imbricados que são uns
nos outros, a contraírem móbiles da existência.
Existem nocivas consequências por pensarmos e agirmos, estabelecendo
distinções radicais entre fatos externos e estados psicológicos, sobretudo nosso
afastamento da matéria, bem como a cristalização de uma concepção inerente ao
espírito que lança o inconsciente em um contexto de obscuridade um tanto
84

artificial (p. 173). E não são poucas as vivências que atestam tal aspecto
caricato. Basta um sonho em que as cancelas e grades da interdição moral caiam
por terra, para termos uma crua e realista imagem, provando que o que nos
passou continua no tempo (movendo-se, recriando-se) para horror do instinto
utilitário. Qualquer atitude tomada espelha o caráter, o bico do cone invertido e
suas estocadas ferindo o presente, ou no encontro perpendicular entre AB e CI.
Como é difícil considerarmos a realidade do inconsciente em tal conexão! Há
um crucial embate entre a necessidade espacializante do agir e a qualidade
caótica e contingente dos aspectos interiores não percebidos; tal polaridade se
condensa naquilo que denominamos experiência.
Impressões inquietantes sobre a aprendizagem...
no tempo, objetos/afetos se fundem

Pergunto-me acerca dos nexos existenciais entre as abordagens aqui


enunciadas sobre o inconsciente e o que passamos com as crianças na Educação
Infantil. Muitas respostas aparecem, num cortejo cheio de calafrios. A certeza
de que absolutamente tudo o que os miúdos viveram comigo permanece no
tempo é de tirar o sono. Milhares de espíritos se impactaram, de algum modo,
quando o que hoje é virtual (e até esquecido) fora algum dia atualidade, ação e
presença. Não se trata de pouco, conforme tenho rememorado neste livro. O
que assusta é reconhecer que, pelo menos no registro bergsoniano, participo do
caráter de cada indivíduo com quem estive... então posso pelo menos sonhar que
uma canção Kraó, dançada na roda (como fazem nossos irmãos da floresta), aos
quatro anos de idade, possa, ainda que inconscientemente, contribuir para a
decisão de um policial, cardiologista, ator, agrônomo ou dona(o) de casa. Meio
enlouquecedor pensar naqueles que entraram em conflito com a lei e amargam
o enclausuramento. Melhor atenuar bastante o que imagino ser o impacto em
cada subjetividade, sobretudo pelo imponderável do que significo
individualmente e você, também, amiga(o) educador(a). Há dias em que
encontro algum rosto conhecido (daqueles tempos do jardim I e II), e mal me
cumprimenta; há outros, nos quais uma criança, agora adulta, faz grande festa
comigo. Então, concluo cartesianamente que haveria quem sabe uma escala de
milhões de tons para a importância de meu papel nos dias de pequena infância
dos cidadãos: da quase indiferença a uma empatia tal que alguns me fizeram
parente, como ocorre com a visita que tive ontem, uma mestranda em
ortodontia, multi-instrumentista, afirma ser filha, adotou-me e disto não abre
mão (minha pupila, desde os três anos de idade).

Eis uma obviedade no que vou afirmar, um velho clichê pedagógico: nós,
educadores, influenciamos muito as crianças e adolescentes, com quem
85

convivemos, nas rotinas escolares. Isto transcende de modo inimaginável o que


são os conteúdos instrucionais. Os domínios do inconsciente aprofundam em grande
medida nossa atuação; no frigir da experiência, participamos inexoravelmente do
caráter (nos termos bergsonianos) de cada educando, ratifico. E por que posso
pensar naquela escala há pouco mencionada? Pelo fato de toda criança ser
única, bem como tudo o que cada uma trazia para aqueles encontros...
subjetividades atravessadas pela então atualidade sensório-motora
idiossincrática, a manejar o passado, no devir infância. Para alguns, uma nota
musical entoada na flauta pouco significaria, como estímulo externo a ser
recolhido e transformado; a outros, a mesma nota poderia guindar do profundo
do tempo movente uma melodia entoada pela mãe, ao amamentá-lo. Faço aqui
projeções hipotéticas, contudo alicerçadas em coisas que vi, lágrimas, sorrisos,
bocejos de espíritos noviços, tocados pela textura de timbres aerofônicos que,
não raro, causavam até irritação. Insisto em me aproximar do que seria a
complexidade qualitativa daqueles idos, cada vez mais convencido de que para
cada participante se tratava de uma vivência estética irrepetível... de sorte que
hoje encontro pessoas que pouco se lembram de como tocar aquelas cancionetas
e outras (capazes de reescrever até as partituras) que se tornaram flautistas
profissionais, como a pequena Giulia, atualmente pesquisa flautas em todo o
mundo, doutorando-se em música étnica.
Ponho-me no lugar do aprendiz, alinhando meu raciocínio a tudo o que
discorri sobre a Filosofia de Bergson até aqui – a crítica à inteligência, natureza
da consciência, tempo/duração, presente sensório-motor e utilidade; enfim,
asserções sobre o devir me vêm à mente e compreendo em linhas gerais a
complexidade de cada interação. O mesmo encadeamento de móveis conscientes
e inconscientes promovido pelos mecanismos lógico-espaciais da ação atual vem
a ser operado no contexto contingente (virtual) do tempo, consoante já
afirmamos. Após seis meses de aprendizado, uns revelavam maior facilidade
manipulativa, concentração, respiração suave; outros suportavam menos do que
cinco minutos apreenderem as técnicas de dedilhado, depuração da projeção
sonora, etc. Fico refletindo sobre aspectos ontológicos, metafísicos,
concernentes àqueles encontros, as interações intersubjetivas, as conexões que
poderia haver entre a vivência com um tema musical partilhado no coletivo...
havia emoção, apreciação estética, evocação de lembranças... “Tio Marlon, a
flauta parece um trenzinho.”, “Essa música me lembra meu avô, que tá no céu!”,
“A minha flauta não toca!”, e eu respondia: “Toca sim! É porque você está
assoprando certinho e aí fica igual ao dos colegas! Ai, meu ouvido!! Sopra
menos, pelo amor!”, “Tio, você disse que ia trazer a flauta banana!! Cadê ela?”.
Tratava-se de uma flauta que fora cozida por uma mãe ligeiramente
86

transtornada; por medo de bactérias, resolveu higienizar daquele jeito. O tubo


se deformou, obviamente, ficou mesmo parecido com o fruto. Ganhei de
presente aquela aberração surrealista! Como era amarela, ainda pintei um
pontinhos pretos. Sempre que eu ia explicar como limpar a flauta, contava a
história da “flauta banana”, ressaltando que o procedimento tinha que ser com
água fresca, jamais fervente. Engraçado é que ela não perdeu o som, ficou meio
rouca e me divirto muito com essa lembrança. Eis aí algo pra ilustrar, a quem se
interesse por uma proposta pedagógica que conte com a desrazão e até objetos
inconscientes.

Ao me aproximar dessa reminiscência cômica, percebo a natureza de fusão


(literalmente!), continuidade, que os objetos/afetos apresentam no tempo, se
não estiverem condicionados ao utilitarismo da razão atualizante. Retomo aqui
as análises feitas na seção Aprofundando percepções acerca da duração...
Garatujas potentes se tornam estereótipos inertes, concernentes à
multiplicidade, duração propriamente, sobre a qual já explanei bastante. Aquele
aspecto, a mim muito caro, de que uma imagem mnemônica penetra outra, ou
seja, funde-se a ela, ao contrário do que supõe o raciocínio espacial (que
justapõe os objetos), vejo-o no evento da “flauta banana”. Creio que motivações
não mais inconscientes, posto que as ilumino por ora, da ordem da duração
interior tenham me levado a criar com as crianças o estranho instrumento: meio
flauta, meio fruto. No tempo real, as coisas se interpenetram, ferindo o princípio
da identidade aristotélico, da não-contradição e do terceiro excluído
(ARISTÓTELES, 1969)9; assim, também afetam os alicerces da lógica, como
um todo. E quando perpetuamos o ato de pensá-las nestes termos, perdemos
muito, sobretudo a possibilidade de termos uma experiência metafísica, nos
termos bergsonianos; noutras palavras, um acesso aos campos de consciência e
percepções do mundo puramente qualitativas, nuas, sem a interferência
grosseira e reducionista da inteligência, reafirmamos uma vez mais... contexto
em que a homogeneidade não atuará, congelando os objetos, perfilando-os,
conforme operam os mecanismos semióticos. Nossa infância movente! Fico
imaginando a potência de uma pesquisa sobre o Surrealismo e os nexos com os

9 No princípio fundamental da identidade, temos que a coisa que é coincide tautologicamente consigo mesma,
como na fórmula: A é A. Um exemplo disto seria: ornitorrinco é ornitorrinco. Intimamente coligados, temos dois
outros princípios lógicos, o da não-contradição – A não é não-A (o que é não pode não ser, ao mesmo tempo) –,
que determina: ornitorrinco não poderá ser um não-ornitorrinco; e o do terceiro excluído: uma coisa é ou não é,
exclui-se uma terceira possibilidade. Eis a fórmula: A é x ou Não-x, que prescreve: Ou aquilo é ornitorrinco ou
não é ornitorrinco (ARISTÓTELES, 1969).
87

escritos de Bergson. Fica a sugestão para os pesquisadores de Arte e também de


Arte-Educação.
Volto agora aos meus cinco anos, ocasião em que a professora cantava
conosco: “O cravo brigou com a rosa / Debaixo de uma sacada / O cravo ficou
ferido / E a rosa despedaçada” (folclore brasileiro)... letra e melodia a me
lançarem em um sofrimento atroz. As pétalas daquela figura feminina
materializavam a pele da musa retalhada, empapada em sangue; pior do que
isto: eu assumia o papel do cravo (porque queria a namorar), o agressor que caía
doente e tinha o perdão da amada. Para alguém íntimo dos flagelos de Cristo e
toda a culpa que bem cedo carregamos pelos mesmos, a configuração
psicológica trazia contornos de uma tragicidade que era preciso engolir em
silêncio, afinal, quem se interessa pelo que passa na cabeça de uma criança? E
volto às cadeias do então presente espacial – brincadeiras de roda, parlendas de
cravos e terezinhas – e o passado contingente – pregos atravessando os pulsos
do Salvador, emergindo à consciência... ou ficando encobertos nos breus do
inconsciente.
Minha primeira namorada teria sido aquela rosa. Depois transmutou-se,
fundiu-se em uma garotinha, cabeleira de seda castanho ouro, Simone... Eu
morava em Brasília, DF; viajava com a família cerca de 1.600 km para
encontrarmos os parentes no interior do Paraná, cidade de Telêmaco Borba...
Quando ela me via, dava-me uma lambada com aquele cabelo que ia abaixo da
cintura... Só não enfartava, porque saía correndo, mas logo retornava pra
brincar com a musa, uma vez me disse que eu era “seu pão”... Aos seis anos,
conhecia o pior sofrimento que já experimentei e que se reeditou inúmeras
vezes vida a dentro... ao partir, ficava semanas sem fome, doía mais que dente
inflamado, longos desertos banhados a silenciosas crises de choro... E era uma
tortura inconsciente, porque a simples ausência da menininha não poderia
causar tamanho padecer.
Neste livro tenho simpatizado bastante com juízos do senso comum, mas
com relação ao tratamento que esses registros sociais massificados destinam às
paixões de criança, expresso aqui absoluto repúdio, lembrando com que desdém
os familiares lidavam com minhas dores, isto quando ficavam sabendo a razão
da apatia. Com Bergson, compreendo a falácia: a inteligência diagramática,
etapista, adultocêntrica, nega aos pequenos atores um corpo, sacralizando seus
modos, sentimentos, dentre outras mutilações do espírito e que trataremos no
capítulo a seguir. Tenho visto postagens na internet de crianças chorando
copiosamente por amor, motivo de muitas risadas, como se a paixão fosse
atributo de subjetividades adultas. Aperta-me a garganta, pois sei que há
88

naquelas lágrimas lancinantes uma dor imensurável, que não cabe nos
diagnósticos psicopedagógicos. E podem começar lá na Educação Infantil. Por
ganhar a confiança de muitas crianças, fiquei sabendo certa vez que fizeram até
um casamento!, logicamente que a léguas de distância do olhar da professora
(jardim II, 5 anos)... Nas rotinas lúdicas, as crianças recriam o mundo dos
adultos, buscam entender o que lhes é negado, resistem. Tenho uma amiga
docente que enterrava suas bonecas. Eis a brincadeira como mecanismo do
fantástico a propiciar situações em que os pequeninos enfrentam seus medos,
dúvidas, sempre imersos nas pressões que o mundo objetivo e social lhes impõe.
Espanto-me em pensar que, já na Creche, o ser matriculado viverá ali uma
experiência que supõe tudo o que tenho discutido nessas reflexões, certamente
se lançando em um devir único, inefável. Cada massinha modelada carrega
respostas pelo que estimulou no espírito infantil; o que se passa naquele
movimento transcende ao infinito a compreensão pedagógica, muito embora
nós, educadores, tenhamos a ilusão de gerenciarmos a atividade. Este livro tem
me ensinado que ficamos com o recorte do recorte do que efetivamente
acontece. Um exemplo para tal é o costume rançoso de querermos interpretar
os desenhos dos pequenos, pedindo que nomeiem cada objeto ilustrado. Isto
revela o governo até da expressividade, em uma tentativa de estabelecer fixidez
sígnica para o que é movente, qualitativo, duracional e até inconsciente.
A ludicidade é para mim uma área de pesquisa muito cara, tenho
produzido artigos, capítulos de livro, palestras, além de ter ministrado, por
vários anos, a disciplina Brincar e Educação, no curso de Pedagogia da
Universidade Federal de Rondonópolis, Mato Grosso. Este livro não
contemplaria o espírito criança se não dedicasse uma seção pelo menos às
relações entre o ludus e a duração consciente, contextos de experiência que
podem atingir o inominado, lançados ao fluxo das coisas em seu devir.
Reconheço o quanto os estudos sobre o brincar podem ser beneficiados à luz
dos escritos bergsonianos, sobretudo ao pensarmos uma ontologia da infância,
mas vale-me ressaltar que tal interface teórica por si seria merecedora de
muitos livros. Assim mesmo as abordagens a seguir buscarão aproximações
possíveis, sempre atentas ao melhor entendimento, entre a marca subjetiva da
brincadeira e as descrições gnosiológicas bergsonianas, uma mirada epistêmica
em grande medida.
89

O esforço de pensar a ludicidade, a partir de um reposicionamento da


inteligência

Como pesquisador de temáticas voltadas para a infância, creio chegado o


momento de discutir pontualmente o lúdico, buscando aportes bergsonianos.
Na verdade, tenho feito no livro diversas abordagens sobre tal, especialmente
quando recobro alguma lembrança com os pequenos da Educação Infantil.
Reconheço a dificuldade de formular asserções neste sentido (Bergson não se
dedicou à temática), posto que toda a tradição pedagógica hegemônica trata o
brincar a partir de uma cristalizada territorialidade científica, matriz de
epistemologias dos mais diversos tons ideológicos (DEWEY, 1959; PIAGET,
1978; LEONTIEV, 1978; VYGOTSKY, 1998; WINNICOTT, 1975;
WALLON, 2007; VALSINER, 2000; BROUGÈRE, 1998; MONTESSORI,
1983; KISHIMOTO, 2002; HUIZINGA, 1980; FRÖEBEL, 2001; etc.). Em
unanimidade, a ação lúdica é descrita como mecanismo essencial ao
desenvolvimento integral da criança. Obviamente que tal imperativo conceitual
não será aqui questionado, mas o que podemos também afirmar, com os escritos
de Bergson, é que os autores das ciências educativas sempre pensaram o ludus a
partir dos loteamentos da inteligência. Busco então, quem sabe, uma
experiência de duração, ao garimpar uma novidade teórica (pesquisador é
pretensioso), abandonando caras proposições, como a descrição do brincar tal
qual um operador cognitivo, regulador de tensões entre o indivíduo e a
coletividade, maneira infante de se enfrentarem os medos, frustrações, a partir
da situação imaginária (VYGOTSKY, 1991). Abandono no sentido de pensar
que o legado de Bergson, antes de ser uma Filosofia da Intuição, revela-se uma
visceral crítica ao entendimento. Explicando melhor, todas as contribuições
acerca da ludicidade precisam ser passadas a limpo (se quisermos avançar com
Bergson), a partir do ressituar da inteligência epistemológica. Esta que opera
somente com os próprios conceitos, reproduzindo a si mesma e sua história.
Bergson procurou reposicionar o entendimento, examinando-lhe o nascedouro
das formas, dentro das veredas naturais da vida, destacando quanto é menor, se
comparado à consciência, sua geradora. Tal exercício nos permite, afirmo uma
vez mais, acessar novos campos de existir, desta feita imunes aos gradeamentos
epistemológicos (exemplo dos tais: as pantanosas, manquejantes classificações
do brincar). Se pensarmos bergsonianamente, veremos que abordar a
experiência lúdica infantil poderá apresentar novas compreensões e então...
duramos! Arrisco-me a afirmar que, a partir de uma concepção de inteligência
ressituada, grosso modo voltada à exterioridade fabril, sem tentar colonizar
90

campos que não lhe dizem respeito, sobretudo inerentes à duração psicológica,
veremos novas nuanças na ludicidade. As emoções desta (TREVISAN, 2018)
não serão mais enquadradas como modus operandi inteligente, ferramentas para
ensinarmos coisas às crianças, dentre tantos flagelos que os discursos
pedagógicos promovem. Vejo isto como possível, desde que, com aquele
reposicionar do entendimento, a intuição possa ser resgatada (no cotidiano
docente), lançando-nos com os pequeninos na natureza íntima da ação, puro
durar, acesso a experiências livres, sem as deformidades da representação
simbólica e toda sorte de utilitarismos. Intuição e inteligência amalgamadas,
fundidas no encontro com o movente, em lúdicos presentes... apresente-se...
presenteie-se!... Reconheço que uma experiência intuitiva requer reflexão e
maturidade, exercício filosófico, o que torna forçoso atribuir ao espírito criança
condições de ter vivências intuitivas; então aposto em situações psicológicas
não intelectualizadas, pré-intuitivas, posto que livres dos grilhões inteligentes...
e o brincar poderá ser duração.

Pensar o lúdico como tal encontra alicerce nos escritos bergsonianos, em


especial pelo caráter desinteressado daquele, sem que deixe de promover
relações que a inteligência estabelece. Refiro-me ao brincar livre,
sociodramático, onírico, não tentando aqui uma categorização (como fazem as
doutrinas pedagógicas), o que deporia contra a fusão de elementos que se
movem no grande real, com os quais podemos vibrar em sintonia. Refletirmos
sobre uma brincadeira nesses termos nos permitirá quem sabe identificar
acontecimentos de duração no cotidiano da criança, ocasião em que a veremos
ampliando campos de consciência, atualizando virtualidades, fatos conscientes
descolados da fixidez identitária da linguagem, e poderemos partilhar essas
estranhezas, sem o governo do entendimento.
Assim como a ludicidade mantém com este último inequívocas relações,
faz o mesmo com o instinto (e então me lembro do tatu, brincando com uma
bola; o cão, fingindo que morde o pescoço do outro) e por que não crer que
tangemos a intuição? – instinto iluminado pela consciência –, posto que,
despretensiosa, brincando, sonhando, poderá acessar os movimentos do
espírito, rumo aos segredos do mundo. Não trato aqui de qualquer ação lúdica.
Penso também no adulto brincante. Jogar queimada ou bolinha de gude
certamente se aproximam mais de uma atividade motriz, do que qualquer
incursão pelo âmago das coisas vivas.
Quando recordo meus tempos de moleque incendiário, vêm à mente as
intermináveis horas em que me transformava, não raro debaixo de uma mesa ou
sofá, no Homem de Seis Milhões de Dólares, herói de uma série norte-americana
91

produzida entre 1974 e 1978. Quantas vezes encarnei o personagem Steve


Austin (Lee Majors), homem biônico e ex-astronauta. Eu podia correr como um
automóvel, saltar prédios, segurar locomotivas, salvar garotas em perigo...
Enfim, nessas andanças fantásticas, pulava de muros altos, até de telhados. De
vez em quando, uma fratura, queimadura, prego, mas vivia um estado de
liberdade, descolamento total dos hábitos e responsabilidades. E esse garoto
chega agora a mim, atualizando-se na radiação eletromagnética do fogo,
caminho para o plasma – quarto estado da matéria... momento em que acendo o
carvão para um churrasco com amigos. Não quero me perguntar o quanto
daquelas situações imaginárias tangenciaram os íntimos ritmos da vida, porque
isto me parece uma tentativa logocêntrica de enquadramento do ludus, seja para
expulsá-lo da cientificidade ou classificá-lo em uma tabela, de modo a produzir
epistemologia. Reconheço, contudo, que aqueles idos fantásticos de algum
modo expressavam potência vital, perigo também, experiências no vivido,
movediços encontros com as coisas, criação de novidades...
Estas me levam à constatação de que o ludus se apresenta em espécies que
atingiram maior consciência e indeterminação, pelo que alcançaram de
liberdade com relação ao universo ordenado em necessidade, durando,
bagunçando instintivamente os ritmos da matéria extensiva. Não somos nós os
únicos seres brincantes, reafirmo com o senso comum, vejam os mamíferos
(felinos, canídeos, etc.), as aves, dentre outros. As danças de acasalamento são
expressões lúdicas (HUIZINGA, 1980).
Assim me parece razoável pensar a ludicidade também como atributo
instintivo, pelo que esta produz de estranhezas e desordem, fazendo girarmos
“o caleidoscópio” (BERGSON, 2010, p. 20), promovendo variações no ambiente
em que nos inserirmos, alterando-lhe as imagens e a nós mesmos, de modo
imprevisível. Se o jogo fosse apenas prerrogativa da inteligência, não
poderíamos afirmar que os animais brincam. Isto me permite inferir que o que
existe no brincar diz respeito à vida e à consciência, uma realidade (se assim
posso afirmar) que nos perfila a outros seres brincantes...
Há que se fazer neste momento uma importante ressalva: os bichos
brincam, todavia não o sabem, nós é que identificamos tais ações, feito réplicas
de realidades/percepções. Todo cuidado para não projetarmos neles nossa
miserável humanidade. Sobre o gesto de simular, dirá o autor: “Certo animal
‘fingirá de morto’ para escapar ao inimigo; mas nós é que designamos assim sua
atitude; quanto a ele, não se move porque sente que, mexendo-se, atrairia ou
despertaria atenção, que provocaria agressão, que o movimento chama o
92

movimento” (BERGSON, 1978, p. 108). As ações dos bichos são impulsos,


procedimentos de manutenção da vida.
Vejo orgânicas relações entre o desejo do eu criança de brincar e
rudimentos da função fabuladora – conceito em destaque na obra As duas fontes
da moral e da religião (BERGSON, 1978), enunciando que a natureza, ao
estabelecer aquela função, faz surgir representações fantasmáticas, ficcionais,
para de algum modo imitar a percepção –. E para quê? Dentre outras razões,
frear os excessos da inteligência, que pode nos levar até mesmo a um
esvaziamento da experiência. Uma providência natural, resquício instintivo e
virtual, produz a imaginação. Esta engendra fábulas, fundamentos da
religiosidade, de modo a obrigar a inteligência a rever seu percurso e poder
ilimitados (BERGSON, 1978).
Para minha alegria, encontro o texto abaixo, discorrendo sobre a
fabulação (atributo humano) e seu caráter instintivo:
Digamos provisoriamente que é do instinto virtual, entendendo
por isso que na extremidade de outra linha da evolução, nas
sociedades de insetos, vemos o instinto provocar
mecanicamente uma conduta comparável, por sua utilidade, à
que sugerem ao homem, inteligente e livre, imagens quase
alucinatórias. Mas evocar assim fatos divergentes e
complementares que culminariam de um lado em instintos reais
e, de outro, em instintos virtuais, não significará pronunciar-se
sobre a evolução da vida? (BERGSON, 1978, p.92)
Não tenho dúvidas sobre ser positiva a resposta. A função imaginativa
(nos animais, provocada mecanicamente, realidade instintiva) concerne aos
organismos de grande indeterminação (basta vermos uma abelha rainha
dançando, de modo a indicar o endereço da nova colmeia!), desenhando formas
de proteger a espécie. Destarte, há um inequívoco caráter pragmático no ludus
(pelo fato de ligar-se à vida), que poderá variar com relação à índole de
orientação instrumental, segundo a intromissão da inteligência, no caso dos
humanos. Um bebê, escondendo o rosto e rindo, ao mostrá-lo ao pai, me parece
um exemplo de ação lúdica menos utilitarista do que uma brincadeira de subir e
descer escadas, como fiz muito com as crianças, para ensinar escalas musicais.
Pela via da fabulação, vemos criadas condições de muitas experiências
lúdicas, assim como expressões artísticas tais quais a literatura, dramaturgia,
pintura, etc. Isto afirmo, agarrando o escrito abaixo:
93

Consideremos então, no domínio vagamente e sem dúvida


artificialmente delimitado da "imaginação", o corte natural que
chamamos de fabulação, e vejamos a que ela se pode empregar
naturalmente. Dessa função decorrem a novela, o drama, a
mitologia com tudo o que a precedeu. (BERGSON, 1978, p. 90)
O autor afirmará em seguida, que nem sempre houve romancistas e
dramaturgos; teríamos condições de viver sem os mesmos, o que não ocorre
com a religião, da qual jamais nos livramos. Podemos passar sem poetas, mas
sem pastores e padres é bem-mais difícil. A religião, ao cristalizar a figura de
um deus protetor, que também castiga, impõe limites à inteligência. Não por
acaso, o autor afirma de modo curioso que só os seres inteligentes são
naturalmente supersticiosos (BERGSON, 1978, p. 90). Vem-me à mente uma
questão, pelo que peço não me interpretem mal (herético!): Seriam a religião,
assim como as artes em geral, as instituições da cultura, criações lúdicas,
grandes brincadeiras? Ruizinga afirma que o direito, a economia, até a guerra,
com tudo o que carrega de mais perverso, vêm a ser jogos (1980), instituições
do homo ludens.
Para melhor situar o lúdico, como o que pode ser uma inclinação natural
de diversas espécies, convém-nos refletir acerca da vida, atuando sobre a
matéria bruta: instinto e inteligência buscam instrumentos para tanto; o
primeiro os encontra no próprio organismo, o segundo fabrica ferramentas
inorgânicas (BERGSON, 1978). Então indago se, no limite, haveria uma
experiência lúdica, ou se esta não seria um modo intelectual de olharmos para
os seres vivos produzindo mecanismos de se manterem na existência. Prefiro
acreditar que todo impulso vital seja uma expressão do grande ludus, que
permeia as relações entre seres vivos atuando de modo indeterminado sobre o
universo em extensão.
O excerto a seguir lança luz sobre como instinto e inteligência estão
amalgamados, de modo que toda experiência consciente tangencia esses
domínios...
Mas não se deve esquecer que resta uma franja de instinto
em torno da inteligência, e que lampejos de inteligência
subsistem no fundo do instinto. Pode-se conjecturar que
eles começaram por estar implicados um no outro, e que, se
recuássemos ao mais remoto passado, encontraríamos
instintos mais aproximados da inteligência do que os dos
94

insetos atuais, uma inteligência mais vizinha do instinto do


que a dos atuais vertebrados. (BERGSON, 1978, p. 98)
Tais asserções nos permitem inferir que fagulhas roçando instintos
poderão fazer chimpanzés fêmeas brincarem de boneca, e machos, com armas
(usando galhos), como já observaram Kahlenberg e Wrangham (2010). Então
experiências lúdicas em suas diversas naturezas poderão ser expressões
daqueles lampejos, configurações de consciência e vida.
Nosso autor teceu impressões sobre o brincar. Podemos encontrá-las
amiúde no notório escrito O riso. Ensaio sobre a significação do cômico, resultado
da junção de três artigos escritos em 1899 para a Revue de Paris. Nesse garimpo
teórico, encontro umas pepitas a nos permitirem inferências. O filósofo não
dedicou à ludicidade o mesmo interesse que autores voltados para as ciências
educativas demonstram, todavia nos deixou pistas preciosas. Nesse livro, ao
refletir sobre o cômico, delimita-o em sua natureza social e entende o riso como
um operador inteligente, portanto útil, com a função de punir os indivíduos que,
tendo adquirido hábitos, reproduzem-nos rígida e mecanicamente, de modo
estereotipado, adestrado, em vez de agirem com “maleabilidade atenta e a
flexibilidade viva de uma pessoa” (BERGSON, 1983, p. 10). Para rirmos,
precisamos estar em certa medida anestesiados. Naquela delimitação conceitual
bergsoniana, o riso se viabiliza em grupo, praticamente um acordo social; rir se
torna uma conduta da inteligência pura, desprovida de emoções, silenciando-se
a sensibilidade. Quem tropeça na rua causa riso em todos, porque deveria
contornar o obstáculo que o derrubou; tendo se enrijecido, mecanizado,
conforme o corpo aprendeu ao caminhar, o infeliz passaria a ser motivo social
de correção. Esta percepção de Bergson norteia desde sempre argumentos na
comédia, considerada por ele uma brincadeira que imita a vida. No excerto a
seguir, temos uma formidável analogia entre o brincar infantil e a arte cômica:
E se, nos brinquedos infantis, quando a criança lida com
bonecos e polichinelos, tudo se faz por cordões, não serão
esses mesmos cordões, gastos pelo uso, o que iremos
encontrar nos cordéis que articulam as situações da
comédia? Comecemos, pois, pelos brinquedos infantis.
Acompanhemos o progresso imperceptível pelo qual a
criança faz seus bonecos crescerem, lhes dá alma, e os leva a
esse estado de indecisão final em que, sem deixarem de ser
bonecos, apesar disso se tornaram homens. Teremos assim
personagens de comédia. E poderemos comprovar com base
neles a lei entrevista pelas nossas análises precedentes,
95

segundo a qual definiremos as situações do teatro bufo em


geral: É cômico todo arranjo de atos e acontecimentos que
nos dê, inseridas uma na outra, a ilusão da vida e a sensação
nítida de uma montagem mecânica. (BERGSON, 1983, p.
36)
Apesar de o autor tratar do riso, como mecanismo inteligente regulador
de ações humanas, vemos aqui a afirmação de que a ludicidade infantil
sociodramática apresenta similitude com o fazer teatral adulto. Tal percepção
coincide com aquelas amplamente descritas pela tradição psicopedagógica,
especialmente em Vygotsky e Piaget. Os personagens construídos pelas
crianças são contíguos aos da comédia e buscam a ambiência mágica, imitativa
da vida, bem como os aparatos mecânicos com os quais tocamos nossas rotinas.
Uma garotinha, ao embalar sua boneca no carrinho de bebê, tende a reproduzir
os gestos da mãe e a situação daquele diálogo. Seria hilário uma cena teatral
com os mesmos elementos, de modo que a figura materna fosse parando de
embalar o bebê pelo cansaço, assustando-se com os repentinos berros do
pequeno, obrigada ao movimento novamente. A repetição desta situação
tenderia a causar mais risos, quanto maior fosse a plateia. Os dados da cena
imitam a vida. O que seria mecânico? Em especial, o choro do bebê, adestrado
ao balanço, bem como a perda de atenção da mãe.
Uma das características psicológicas marcantes da infância é rirem muito
e de tudo, desde os primeiros meses de vida, por exemplo, com as cócegas e
caretas que adoramos fazer nos pequenos. Isto nos leva a reafirmar que há nas
reflexões de Bergson sobre o riso uma precisa delimitação: trata-se do riso
coletivo, bufão, do qual as artes se apropriam desde os idos de Aristóteles. O
bebê obviamente não se desenvolveu a ponto de rir nestes termos, mas então
indago: não seria aquela gargalhada (de quem não aprendeu sequer a falar) um
instinto lúdico? Huizinga (1980) afirmara que sim. Tendemos a brincar e a rir
antes mesmo da estruturação da linguagem.
No fragmento anterior, ao tratar de uma cena cômica, temos o destaque
de dois aspectos essenciais para obtermos humor: a imitação da vida e alusão a
mecanismos criados para tocarmos o cotidiano; tal fórmula nos garante sempre
diversão (ocorre também com certos bichos e o exemplo bergsoniano é o do
gato, deixando escapar o rato, para depois o prendê-lo novamente). Existe uma
grande brincadeira em contrairmos um sentimento, para depois ser solto,
distendido feito mola e “uma ideia que se diverte em comprimir de novo o
sentimento” (BERGSON, 1983, p. 37). Pondera nosso autor que há também
uma filiação do personagem cômico ao contexto do sonho, instância de
96

desligamento, descontração dos tensos regimes intelectuais, do bom senso,


enfim, do trabalho (p. 92). O lúdico dirá respeito ao repouso da fadiga de pensar,
do desligamento de tantas obrigações e assim mesmo reunirmos imagens e
ideias, tal como ocorre nas artes cênicas e com os seres brincantes.
Uma dolorosa pergunta me vem ao espírito: será que consegui refletir
sobre o lúdico, ressituando a inteligência, consoante propus bergsonianamente,
no primeiro parágrafo desta seção? Sensação de caroço de abacate na goela.
Confesso o esforço, mas creio que, sendo isto aqui uma experiência com
palavras, não cumpro a contento a promessa. Vejo maiores condições de fazer o
prometido (reposicionar o entendimento) somente brincando, jogado no meio
da criançada, fazendo brigadeiro de terra, soltando pipa, correndo no pique-
bandeira. Enfim, ao assumir o papel de Batman na brinquedoteca universitária,
posso lutar com o Duende Verde, que tem cinco anos de idade; ali poderei
reposicionar a inteligência, não permitindo que se meta onde não deve, e outros
campos de expressão nos atualizem, pulsões, memórias, a ira de existir...
Encerro afirmando que certas experiências ludo-conscientes podem, ao
coadunarem inteligência e instinto virtual, expressar conteúdos da duração
psicológica, ou mesmo perscrutar mistérios da exterioridade heterogênea que
nos atinge, sem os intervalos cavados pela linguagem. Brincar poderá ser
sinônimo de duração, em certas situações da infância; uma vez lançadas na
memória, de algum modo nos afetarão, até mesmo para reafirmar nossa adultez
impostora (pagadora de impostos). E poderemos não ver mais importância
alguma nas atividades lúdicas, ainda que, sem brincar, torne-se o viver um
penar sem fim.
97

CAPÍTULO III

ADMINIMISTÉRIO

Quando o mistério chegar,


já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia noite, livro aberto.


Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?

(LEMINSKI, 2002, p. 107)


98

REFLEXÕES METAFÍSICAS SOBRE A INFÂNCIA DO MOVENTE


Para este capítulo, buscarei subsídios teóricos ainda em Matéria e
Memória (2010), em especial o quarto capítulo; isto farei com o intuito de
aprofundar o que seria uma compreensão do devir criança, à luz da Metafísica
bergsoniana. Obviamente que já remei bastante em tal direção, quando trouxe à
superfície da escrita lembranças com os pequeninos, nos dias em que brincamos
juntos (sinto falta daquelas mãozinhas gordas, olhos e ouvidos famintos de cor,
manuseando, percutindo instrumentos musicais, sempre rindo das descobertas).
O que procurarei desenvolver será, daqui em diante, uma reflexão mais pontual
relativa à infância do movente, núcleo temático deste trabalho.

Considerações sobre kronos e a criança universal abstrata

Retomando aqui asserções feitas à luz do Ensaio, com relação à ideia de


sucessão, reafirmamos a intrínseca relação desta com o tempo real, contexto em
que os elementos se interpenetram, solidariamente, sem a concepção abstrata
do espaço; esta que faz com que justaponhamos nossos estados de consciência,
de modo a reconhecê-los um ao lado do outro e não mais um no outro. Para
tanto, promovemos uma espacialização do tempo, a duração torna-se uma
ágora; o filósofo acrescenta:

[...]a sucessão torna-se para nós a forma de uma linha


contínua ou de uma cadeia, cujas partes se tocam sem se
penetrar. Notemos que esta última imagem implica a
percepção, não já sucessiva, mas simultânea, do antes e do
depois e que aqui haveria contradição em supor uma
sucessão, que fosse apenas sucessão e que, apesar de tudo,
se mantivesse num só e mesmo instante. (BERGSON, 1978,
p.73)
O excerto acima permite formularmos, salvo engano, uma contundente
crítica acerca de concepções sobre a infância notabilizadas em legados como os
de Piaget e Vygostky, dentre outros titãs das Ciências da Educação. Refiro-me
99

ao etapismo e o entendimento de que a infância seja uma fase da vida, não por
acaso temos a Psicologia capitaneando tal paradigma. Parece-me inegável a
importância dessas contribuições para a Didática (e o planejamento), de modo
que os saberes pedagógicos se revelam devedores daquela tradição. Afirmo,
contudo, que a cristalização de tais doutrinas levou à representação de uma
criança universal, cuja experiência se metrificou, de tal sorte que as fases de seu
crescimento corresponderiam, a meu ver, à justaposição e alinhamento de
segmentações etárias, quase como “partes que se tocam, sem se penetrar” (p.
73), em simultaneidade. O percurso (termo espacializante) daquela consciência
será crivado por marcadores temporais, abortando-se a sucessão. Os termos da
experiência temporal são discriminados, ocupando espaços em uma ordem.
Uma vez tornada simultaneidade (perfilamento de elementos), a sucessão, que
se revela potente na vida infantil, inefável, sobremaneira criativa, passa a ser
diagramática, cartesianamente mensurável pelos processos abstrativos
psicopedagógicos. Quem contudo trabalha diariamente com os miúdos, se olhar
bem para eles, ouvi-los, tocá-los... saberá que está diante de seres singulares,
desejantes, brincantes, profundamente criativos, provocadores, investigadores,
com os quais poderá ter encontros no lugar de aulas. Para tanto, há que se ter
coragem, porque se trata de perder às vezes o famigerado e miserável “controle
da turma” e isso tem um preço com o qual nem sempre podemos arcar.
Nas linhas a seguir, apoiando-me em Sarmento (2007), buscarei enunciar
de que modo a cultura dita ocidental10 tem concebido a infância. Farei isto para
melhor situar o objeto central de reflexão deste livro, reafirmando: o
entendimento da infância como realidade móvel, qualitativa, contingencial,
indeterminada, o que, raciocinando ceticamente, poderá se tornar mais uma
construção simbólica da infância! Seja assim então, acontece também com a
produção artística. A inteligência coloniza tudo o que criamos. Importa
seguirmos, um dia de cada vez. Apresentarei brevemente as representações
modernas e contemporâneas, realçando o quanto revelam de procedimentos
como a homogeneização, espacialização, metrificação temporal (etapização),
cristalização sígnica, de modo que busquemos possibilidades de refletir sobre a
realidade da criança noutros registros, à luz dos escritos bergsonianos. Quem
sabe a criança da intuição! Um eu profundo ainda não capturado pelas algemas da
inteligência: espírito, virtualidade e vontade, pura duração...

Uma leitura obrigatória, tornada lugar comum nos estudos sobre


Educação, são os escritos de Ariès (1981) respaldados sobretudo em obras

10 Veja-se neste adjetivo (ocidental) o caráter ideológico, eurocêntrico, de tal modo naturalizado, que sequer
cogitamos questionar: ocidental para quem? Será que um taiwanês ou indiano se considera oriental?
100

pictóricas. Até o século XVII, eram raras as imagens de crianças, e quando as


tínhamos, podíamos verificar traços adultizados nos corpos infantis, ainda que
bebês (abdômens e peitorais hercúleos). Isto permite inferir que as
representações sobre a infância na Idade Média eram um tanto diferentes das
que temos em nossos dias. Até o fim do século XIII, quando apareciam, em
geral ligadas a temáticas sacras, as figuras infantis surgiam tais quais
homúnculos. Nos ambientes sociais, crianças bem-pequenas eram tratadas feito
bibelôs, “animaizinhos” (ARIÈS, 1981, p. 10); ao adquirirem certa altura,
vestiam roupas de adultos, podendo circular nos mais diversos espaços públicos,
inclusive em festas um tanto impróprias em nossos dias. Ao iniciar o Pré-
Renascimento, a pictografia passa a espelhar alguns tipos mais próximos do
sentimento moderno. Imagens de anjos adolescentes, em certa medida aludindo
a crianças maiores que ajudavam na missa, consolidar-se-iam no século XIV. O
período gótico e sua carga expressionista desenharia a criança nua, e o próprio
Menino Jesus se desnudaria no fim da Idade Média. Nos séculos XV e XVI, as
crianças apareciam nas pinturas com as famílias, com os pequenos
companheiros de jogos, na multidão, no colo da mãe e em outras situações
cotidianas. De qualquer modo, não conseguimos vê-las retratadas em suas
realidades, mas a partir do que os artistas, interessados em aspectos estéticos,
espelhavam. Uma crítica tradicional feita a Ariès se dirige ao fato de o mesmo
circunscrever suas análises a obras da aristocracia, alijando as classes
desfavorecidas e miseráveis, que sempre estiveram presentes na Idade Média e
no Antigo Regime. O trecho a seguir me parece revelador:

Ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança


que tivesse sobrevivido e se tornado adulta ou que tivesse
morrido pequena. No primeiro caso, a infância era apenas
uma fase sem importância, que não fazia sentido fixar na
lembrança; no segundo, o da criança morta, não se
considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse
digna de lembrança: havia tantas crianças, cuja
sobrevivência era tão problemática. O sentimento de que se
faziam várias crianças para conservar apenas algumas era e
durante muito tempo permaneceu muito forte. (ARIÈS
1981, p.21)
Notemos a desimportância do que se considerava o tempo de criança, um
apagamento refletido nos altos os índices de mortalidade, relacionados
sobretudo às condições socioeconômicas da época; pariam-se vários filhos na
101

tentativa de que se salvassem alguns. As crianças mortas eram enterradas em


qualquer lugar, jardins das casas, quintais.
No século XVII, consolidando-se a modernidade, os retratos se
multiplicaram; as obras ilustravam uma infância fugaz, em que as crianças
passaram a ser representadas sozinhas. As famílias, outrora enormes,
assumiram paulatinamente o modelo nuclear (pai, mãe e filhos), reunindo-se em
torno dos pequenos, buscando registrar cenas de infância, como a lição de
leitura, música, grupos brincando. No século XIX, a fotografia substituiu a
pintura, mas o sentimento permaneceu. E qual seria? As crianças, que outrora
podiam circular mais livremente por amplos ambientes, foram confinadas a dois
cenários, em nome da proteção: a residência familiar e a instituição educativa.
Saíram do anonimato, passando a ter uma importância jamais vista, sua perda
representaria dali em diante uma dor bem-maior; o número de nascimentos se
reduziu, de modo que passaram a ser melhor cuidadas (ARIÈS, 1981).
Com o colapso do Antigo Regime, assistiríamos à consolidação do senso
comum acerca do entendimento sobre infância, alinhado aos escritos de
Rousseau, Hobbes, dentre outros pensadores da modernidade, que concebiam a
criança como ser inocente, selvagem, frágil, imperfeito, enfim, um indivíduo a
ser educado.

Com a obra Emílio, ou da Educação, escrita em 1792, Rousseau influencia


até hoje o pensamento educacional, perspectiva idealizadora da criança inocente –
nasce bom selvagem (homem natural), reunindo em si os traços do homem
futuro (cidadão) –. Este ser de bondade encontra sua versão oposta em Hobbes,
posto que para ele nascemos lobos. O senso comum tanto endossa a perspectiva
rousseauniana, acrescendo-lhe o ideal bíblico de criança, que compõe o reino
celestial, como também a imagem do animal a ser docilizado pelo Leviatã,
concebido por Hobbes. A criança má aparece nas representações (elitistas)
contemporâneas pertencentes sobretudo às classes desfavorecidas, requerendo-
se para ela medidas de repressão, associando-a aos arranjos familiares
desestruturados e à própria delinquência (SARMENTO, 2007).
Como visitante de instituições de confinamento no estado do Mato
Grosso, pude verificar a trágica realidade de crianças e adolescentes, tanto nos
abrigos, ligados aos conselhos tutelares, quanto nos sistemas “correcionais”,
como os CASE – Centros de Atendimento Socioeducativo de Mato Grosso.
Trata-se de ações que levo adiante, com o programa de extensão Leitura sem
Grades, com o qual envolvemos graduandos de Licenciaturas em encontros de
leitura de obras clássicas feitas naqueles espaços pelos pequenos e jovens
102

reclusos. Ali, o estereótipo da criança má encontra materialidade, não porque o


sejam, mas pelos juízos que a sociedade enuncia sobre menores (expressão a ser
evitada) em conflito com a lei. Confesso que minhas idas ao sistema prisional
adulto têm sido mais tranquilas do que no socioeducativo. Com adolescentes
que cometeram crimes, a tensão é maior, a revolta aparece em muitos olhares
silenciados. Lembro-me bem, uma semana após visita nossa, soubemos do
enforcamento de um rapaz de quinze anos... dias antes, havia dito: “Fizeram
minha casinha”. Nos abrigos, encontro bebês, crianças bem-pequenas, todos em
situação de vulnerabilidade; algumas vítimas de violência sexual, outras de
espancamentos, abandono, todas candidatas a reafirmar a tese dos lobos. Tive o
desprazer de ouvir uma conselheira tutelar não recomendando a ninguém a
adoção, pois fazer isto, segundo ela, seria assinar uma sentença de infelicidade e
até de morte.
A coletividade, acostumada à doxa (expressão de Platão) – opinião comum
–, naquilo que tem de mais reducionista e utilitário, tem perpetuado a ideia de
que crianças normais pertencem ao tempo da inocência, sacralizando e
negando-lhes os corpos, ou, na contramão disto, demonizando-lhes a origem,
“aquele ali é filho de pais viciados”, uma percepção que encontra eco em nossos
dias, entre os muros da instituição escolar. Se é raro um indivíduo ter ações,
vivências com uma realidade qualitativa, movente, que sinalize para a liberdade,
imagine, leitor(a), a coletividade, que tem como elemento agregador o software
língua portuguesa, que arrasta “ao pé de cada signo um monstro”(BARTHES,
1987)... Difícil escapar de um imaginário coletivo eivado de caricaturas do eu,
simplificações e preconceitos.
Outras representações surgiriam, desta feita de altares epistêmicos, como a
criança imanente (para Locke, sec. XVII): “uma tábula rasa, na qual podem ser
inscritos quer o vício quer a virtude, a razão ou a desrazão, sendo missão da
sociedade promover o crescimento com vista a uma ordem social coesa.”
(SARMENTO, 2007, p. 32, itálicos do autor). Surgia a concepção
desenvolvimentista e de vir-a-ser, aprofundada séculos adiante. A imanência
corresponderia às potencialidades infantis, abertas a todo aprendizado.
No século XIX, presenciamos a expansão do escolanovismo, inspirado nas
concepções rousseaunianas em especial, com nomes tais quais Montessori,
Fröebel; no século XX, Dewey, Decroly, dentre outros autores. Não se constitui
intento do trabalho analisar os pressupostos da Escola Nova, amplamente
conhecidos, tais como a centralidade curricular na figura do estudante,
despertando-lhe a inventividade, a vontade de aprender fazendo, dentre outras
características contrárias à memorização excessiva, a repetição, o adestramento
103

da educação tradicional, inspirada na escolástica. O que nos interessa, ao mirar


estes séculos iluministas (liberais e até marxistas), vem a ser as concepções
sobre infância, a orientarem perspectivas pedagógicas que, por sua vez,
encaminham currículos e práticas escolares.
Em grande medida são devedoras, no século XX, do debate entre Piaget e
Vygosty11, teóricos de uma criança naturalmente em desenvolvimento
(SARMENTO, 2007). O primeiro, um leitor assíduo de Bergson, defendia a tese
de que os pequeninos, ao nascerem, iniciavam um percurso subjetivo de
interpretação, organização de dados sobre o meio, construindo estruturas
mentais acerca do mundo físico e psicológico, em uma progressão das
capacidades intelectivas, mapeáveis por estágios: período sensório-motor (0 a 2
anos); pré-operacional (2 a 6/7 anos); operacional concreto (6/7 a 11/12 anos);
período das operações formais hipotético-dedutivas (11 a 15/16 anos)
(PIAGET, 2012). Para Vygotsky, o desenvolvimento infantil ocorreria nas ações
coletivas, nos contatos interpsíquicos e intrapsíquicos. Freitas (2006) destaca na
psicologia vygotskyana as seguintes abordagens: há diferentes níveis de
funcionamento psicológico com características próprias e irredutíveis, inerentes
às funções mentais superiores; o pensamento e a consciência não provêm de
estruturas subjetivas internas, apriorísticas, e sim se constituem nas
experiências externas, objetivas e sociais; a atividade transformadora integra
características sóciointerativas e individuais nas condutas; a cooperação é
mediada por instrumentos (como brinquedos) e signos, dentre os quais os
verbais têm importância central. A criança, para Vygotsky, desenvolve a
consciência nessa lógica cooperativa, que irá transformar e regular outras
funções psíquicas (FREITAS, 2006, p. 89).
Para Sarmento, temos também a representação da criança inconsciente:
interpretada sob o viés psicanalítico, não se contempla uma condição de ser
humano completo, com as especificidades do protagonismo social infantil,
existiria ali uma predição adulta. Em aproximações aligeiradas, há quem associe
as pulsões de morte, violência, sexualidade, etc, à criança má, pelo que revela das

11 Peço desculpas sinceras aos leitores de Piaget, Vygotsky, Freud, e todos os que aqui menciono, a título
de ilustrar o que seriam concepções de infância. Se fosse abordá-los em profundidade, consoante sua importância
para os estudos em Educação, não haveria linhas suficientes. Reafirmo uma vez mais que o intento pretendido é
o de refletir sobre as representações sociais acerca da infância, orientadas por uma inteligência científica, quando
não pelas opiniões do senso comum. Bergson teria, a seu turno, dialogado com autores positivistas em especial,
apontando-lhes os limites de constructos teóricos alicerçados na linguagem e no símbolo, homogeneidade e
espacialização. As perspectivas aqui elencadas nos mostram em linhas muito breves os caminhos que trilhamos,
a fim de compreendermos o mundo das crianças. Isto fiz para poder inserir nesse grande campo de estudos
educacionais – as teorias sobre a infância – a perspectiva da infância do movente, segundo as inspirações
conceituais de nosso filósofo, Henri Bergson.
104

forças inconscientes reprimidas (SARMENTO, 2007, p. 32). Há que se


reconhecer o pioneirismo freudiano em romper com a imagem da criança
inocente, duro golpe na visão judaico-cristã, conservadora e raivosa, sobretudo
por ter que conceber um novo ser humano, inserido também no inquietante
contexto do inconsciente, com outras lógicas, alheias ao governo da consciência
repressora. A sexualidade infantil, no final do século XIX, revelava-se
finalmente natural, não mais aberração, prematura depravação. Imagine,
amiga(o) que lê, o escândalo científico, naqueles idos puritanistas e vitorianos,
que professavam a crença na infância assexuada, terem que admitir a fisiologia
atrelada ao prazer e a diagramas etapistas como as fases oral (0 a 2 anos), anal
(2 a 3 anos), fálica (3 a 6 anos), período de latência (6/7 a 11/13 anos) e fase
genital (meninas: 11/13 anos; meninos: 12/14 anos) (FREUD, 1976). Teríamos
dali em diante a percepção do corpo infantil erógeno, pleno de pulsões,
atravessado pela linguagem, um abalo sísmico em nossas crenças alicerçadas
nos domínios da razão, com o reconhecimento do inconsciente.
Um dos traços já assinalados neste livro sobre o sujeito universal moderno
é a adultez, o que necessariamente imputa às crianças uma condição de
inferioridade, de modo que estas passem a desejar de modo intenso crescerem
logo; este afã aparece inclusive nas brincadeiras dos pequeninos, ao subirem em
escadas, móveis... “Sou maior do que você!” Criança é sobremaneira perceptiva,
sente os impactos (inclusive entre elas) de habitar um corpo menor, carregando
toda a negatividade simbólica de uma condição biológica não adulta, de
incompletude: idade da não razão, improdutividade, tempo de não ser levada a
sério. Pela situação física, o bibelô da Idade Média (será que mudou o
tratamento?) rotineiramente vive a condição do infans, aquele que não tem voz.
Mesmo a Sociologia teria marginalizado os pequenos cidadãos, pela
subordinação dos mesmos, reféns de representações atreladas à ideia de futuro.
Isto mudaria com os estudos sociais contemporâneos, capitaneados por autores
como Corsaro (2011), Sarmento (2007), Qvortrup (2011), Jenks (2002) e
outra(o)s, inspirada(o)s por Korczak (1929). A Sociologia da Infância, apesar de
alguns conflitos entre os teóricos, entende que as crianças são atores sociais.
Aquela perspectiva tradicional de haver um processo de socialização – percurso
em que elas internalizariam a cultura adulta, moldando-se, adaptando-se a ela,
consumindo produtos e símbolos, vivendo uma fase da vida, tempo do vir-a-ser,
– fora abolida, em nome de uma nova compreensão: trata-se agora de sujeitos
de direitos, vivendo no presente, que se apropriam, reproduzem de modo
interpretativo e compartilhado as linguagens como um todo; atores sociais que
reinventam a realidade e a própria cultura adulta, membros de uma categoria
intergeracional permanente. Neste salão epistêmico (perdoe-me a
105

espacialização), transito com uma flanela, lustrando cada imagem em mármore.


No coração da criança corsariana, há uma teia global, refletindo o caminho em
espiral do indivíduo, lançando-se na existência simbólica – nasce no seio
familiar, núcleo da teia, então vai se deparando com as instituições em que
produz cultura de pares (CORSARO, 2011).
Confesso aqui meu apreço pela Sociologia da Infância, tradição
contemporânea que encontrou na brasileira Fúlvia Rosemberg (2009) um
grande farol, a quem tive o prazer de conhecer, pouco antes de seu falecimento.
Como defensor dos traquininhas, poucas vezes encontrei em leituras tanta
paixão pelo resgate do protagonismo infantil. Apesar dos ganhos indubitáveis
desses autores, ainda os vejo também agrilhoados a projetos tributários da
inteligência científica, com seus recortes, congelamentos, homogeneizações do
ser criança. Então sigo com minha canoa, tentando tirar a água que entra pelos
buracos no assoalho... cochichos de regatos longínquos a roer a madeira...

O preço dos arranjos simbólicos tecidos para a infância

Eu poderia continuar a reflexão sobre as representações e sentimentos que


a sociedade cristalizou acerca da infância, mas preciso seguir adiante, nessa
odisseia de agarrar escritos bergsonianos e com eles alicerçar meditações sobre
Educação. Antes de tornar a fazê-lo, reafirmo que tais concepções sobre o ser
criança há muito esmagam direitos, ainda que abriguem as melhores intenções,
dentre as quais destacaria a proteção. O entendimento da infância como tempo
da inocência (e angelitude) figura, salvo melhor compreensão, entre as
representações que mais agridem os pequenos cidadãos. Para exemplo desta
asserção, há um notório escrito intitulado A fantasia do pedófilo, de Contardo
Calligaris (2002), cuja tese é a de que o pedófilo clínico, ao violentar uma
criança, encontra prazer na ideia de aproveitar-se da inocência ou ignorância da
vítima, a sensação de poder sobre um corpo sacralizado, que não entende o que
lhe passa. Não por acaso temos tantas denúncias de pedofilia no contexto
clerical, apesar de a maioria dos casos ocorrer no contexto familiar. A criança
sabe que o adulto espera dela um comportamento de ingenuidade, alguém que
não mente, filha(o) exemplar e assim por diante... tudo isto se consolida como
formação discursiva, com tamanha força que a obriga ao silêncio, quando é
abusada ou violentada. Afirmar que tem relações ou mesmo alguma carícia
sexual com alguém será romper com a imagem da criança anjo e o pequeno
sabe o quanto será sofrido viver isto. Ele tem um corpo, mas qualquer
manifestação inerente à sexualidade deverá ser escondida, não é coisa de
106

criança, sentir-se-á sujo, condenado, merecedor de castigo... tanto melhor para


o abusador e o pedófilo.

Não pretendo destrinçar reflexões sobre sexualidade, posto não ser objeto
de análise do livro, mas deixo aqui pontualmente a asserção de quanto f(s)omos
reprimidos, em especial por termos que corresponder à índole do infante
cristão, puro e imaculado. Nosso eu, ao debater-se com as lâminas de tal
ordenamento da linguagem (FOUCAULT, 1999), desde os primeiros instantes
no mundo, arca com martirizantes interdições, o perigo de sermos associados a
pervertidos, crianças endemoniadas, “precoces”.
Outra consequência das construções simbólicas acerca da infância: em
nome do cuidado, “proibimos” o trabalho infantil; existe toda uma legislação
para tanto, destaque ao ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL,
1990). Curioso é que ninguém perguntou aos miúdos o que pensam sobre
trabalhar, muito embora estes o façam nas escolas, em casa (atividades
domésticas), na rua e outros ambientes (QVORTRUP, 2011). Ressalto tal
aspecto também no intuito de afirmar, juntamente com minha amiga Carmem
Sussel Mariano (2010), que um direito ainda mais aviltado vem a ser a
representação política infantil. Constituem-se categoria social permanente,
trabalhadora, intergeracional, produtores e consumidores de cultura, mas
nenhuma voz na polis. Seria surrealista (não para os defensores da infância)
termos um vereador, deputado ou senador criança; prova do quanto elas pouco
podem falar por si. De todos os segmentos segregados, constituem-se o mais
aviltado.
As imagens sociais pautadas na imperfeição, incompletude, dependência e
transitoriedade, conforme já afirmamos, consolidaram-se com as contribuições
da Psicologia do Desenvolvimento (SARMENTO, 2005). A concepção da
infância como fase da vida, futuro do país (perpetuada pela pergunta: “o que
você vai ser, quando crescer?”), entende implicitamente que ela nada é, em seu
presente e singularidade, negando-se sua cidadania, protagonismo e agência na
sociedade.
A instituição escolar é pensada pelo/para o adulto, refletindo de várias
maneiras essas construções simbólicas acerca da infância, que orientam desde
sempre currículos, propostas formativas planejadas para um ser abstrato,
pensado em etapas, produto de uma inteligência universalizante, prospectiva,
mercadológica. Claro que há ganhos e virtudes em tais projetos humanistas,
inclusive a própria resistência de meninas e meninos, manifesta nas culturas
107

que produzem, manancial inesgotável de ludicidade, artefatos, códigos, rotinas


entre pares.
Não me alongarei mais com respeito ao preço com que arcam nossos
pequenos cidadãos, pelo que a sociedade há séculos pensa sobre a infância.
Enumerei alguns aspectos que, salvo melhor entendimento, dialogam
diretamente com conceitos bergsonianos aqui apresentados sobre o caráter
utilitário da razão e tudo o que lhe diz respeito, como na seção intitulada
Fantasmas a se projetarem no espaço...Asserções sobre o associacionismo.
Minha esperança com essas explanações simbólicas (representações) é que
possamos pensar novos campos de consciência e existência para a infância,
quem sabe rompendo aqueles grilhões bem-intencionados. A Sociologia da
Infância abriu picadas nessa direção, cabe-nos seguir adiante, garimpando
novos olhares, para além do que as Ciências Educativas e suas construções
perpetuam. Aqui a Filosofia poderá iluminar outros campos de existência.

Nexos entre Metafísica e o devir infância

Retomando as asserções bergsonianas que sintetizariam os três primeiros


capítulos de Matéria e Memória (2010), verificamos o enunciado de que o
espírito ordinariamente tem no corpo um impedimento relativo à própria vida e
duração, posto que este se incumbe, conforme afirmamos diversas vezes, de
encaminhar a ação, promovendo seleções, refrações das imagens/objetos
circundantes, pelos mecanismos perceptivos que também engendram
movimentos. Com o corpo, escolhemos as lembranças que emergem aos planos
da consciência e vale a pena reafirmar: a materialidade cerebral não é capaz de
armazenar as lembranças, as quais pertencem ao tempo, não residem no córtex,
também imagem, embora nos marquem corporalmente.

Esta seção me parece a de maior relevância até então para a obra que
busco produzir. Isto afirmo, tendo em vista que as asserções a serem
(re)apresentadas tratam de Metafísica especificamente, tal como Bergson a
propõe. Vejo que o autor na verdade promove um admirável resgate da milenar
discussão, o que faz paulatinamente em Matéria e Memória (2010), dentre outras
produções, e que busquei acompanhar em linhas gerais, articulando-as a
lembranças de minha carreira na Educação Infantil. Existe no quarto capítulo
daquela instigante obra uma síntese de todas as abordagens, conceitos e não
apenas isto: o autor irá discorrer ainda mais acuradamente sobre as
possibilidades de um encontro nosso com a realidade para além da percepção
108

cotidiana. Tal terreno da Filosofia, conforme já afirmamos, fora tratado


problematicamente séculos a fio, por diversas razões que, grosso modo, teriam na
hipertrofia da subjetividade intelectualista o motivo central, sobretudo quando
a Metafisica fora descredenciada por Kant (1983).
Um notório equívoco aqui já comentado consiste em considerar o tempo
e espaço (homogêneos) propriedades, ou do entendimento, ou das próprias
coisas, o que leva ao descaminho de solidificarmos e segmentarmos aquilo que é
puro movimento e continuidade (BERGSON, 2010, p. 248); assim agimos,
abstratamente, diagramando a matéria, o que nos leva a becos sem saída, não
conseguimos atar os elementos do universo movente, a não ser por raciocínios
lógicos, dedutivos, formalistas.
Bergson, ao discorrer sobre nossas relações com a realidade, retoma a
afirmação de estarmos acostumados a pensar em corpos e isto me remete às
aulas ministradas de desenho... como era difícil mostrar que as linhas, volumes,
texturas, do entorno eram tão importantes quanto o objeto desenhado...
lembrei-me também das robustas mulheres de Pierre-Auguste Renoir (1841-
1919), qual a emblemática tela Little blue nude, pintada em 1879. Exemplos do
apego a um atomismo monolítico, pois em nosso dia a dia assim percebemos as
coisas: movem-se, contudo entendemos o movimento como acidental, mais do
que isto: uma série de posições ocupadas, tais como na formulação de Zenão de
Eleia, que negava parmenidiamente o mover-se. Viciamo-nos de tal forma no
raciocínio dos volumes objetais, que atribuímos ao átomo um destaque, pelo que
propiciaria em sua indivisibilidade o deslocamento, promovendo a ligação entre
as posições encadeadas no espaço. Um parêntese: ao brincar com a caneta que
neste instante uso, balançando-a entre o polegar e o indicador, é incrível como
parece ser possível congelá-la em cada trecho percorrido, vejo dezenas de
canetas, como a asinha do beija-flor, suspenso no ar. Faço o mesmo com o
cursor do PC e então a sensação é ainda mais real, sendo até possível contar as
pequenas setas brancas, contar os objetos de uma ilusão! Vejam os nexos disto
com a lógica cinematográfica – 24 fotos por segundo nos causam a ilusão de
movimento, perfeito mimetismo. Retomando a questão de nosso apego
utilitário aos objetos, ocorre aqui um flagelo importante: torna-se
incompreensível o “processo pelo qual apreendemos em nossa percepção, ao
mesmo tempo, um estado de nossa consciência e uma realidade independente de
nós.” (BERGSON, 2010, p. 239, itálicos do autor). Nisto vejo a questão central
metafísica e as perdas seculares que tivemos por agirmos filosoficamente à
distância de uma realidade profunda, apostando naquilo que observamos apenas
em superfície, a partir de uma abordagem intelectual e lógica, traçando o
109

trajeto, medindo-o, fracionando-o... e nunca intuindo seu movimento, ritmo...


encontrando-o efetivamente.
O idealismo, de um modo geral, translada o que capta nas sensações para
estados de alma, ignorando a multiplicidade do real, sem conseguir estabelecer
correspondências entre a extensão, inerente ao tátil, e os dados colhidos por
outros sentidos. Com o realismo atomístico, segundo o autor, haveria uma
inserção do movimento no espaço, bem como iriam para a consciência as
sensações recortadas, havendo também uma desconexão entre o que se passa na
extensão (universo material) e as sensações que buscam encontrá-la. Ficamos,
se pensarmos com os realistas, em termos sensoriais, com “fosforescências
deixadas por essas modificações” (BERGSON, 2010, p. 250). No realismo em
geral (aristotélico, tomista, pragmaticista), temos, por exemplo, a crença de
acessarmos a doçura do açúcar, o amargo do café, todavia sempre nos
contentando com uma essência universal, desenhada pela razão. O
neopragmaticismo analítico de Rorty (1994) buscou demolir os legados
tradicionais epistêmicos, metafísicos, sobretudo a noção de conhecimento como
representação; para o norte-americano, o que temos são apenas negociações de
linguagem, nosso horizonte se limitaria a redescrevermos o mundo, narrando-
o; uma Filosofia menos pretensiosa, que não mais fabrique espelhos carcomidos
para a realidade, segundo ele.
Já comentei soturnamente sobre ficarmos à margem de nós mesmos.
Bergson reafirma a existência de um mundo exterior que não se alinha aos registros
de nossa percepção, mas as teorias da realidade não aceitam isto; pelo contrário,
alicerçam-se em associações entre movimentos e sensações que mantêm
arbitrárias correspondências. Somente nos é possível um acesso ao em si das
coisas, se nos lançarmos a elas em sua própria qualidade, o que não é pouco,
porque supõe uma ação de captura, adivinhação, imaginação das qualidades
sensíveis na “própria qualidade” (BERGSON, 2010, p. 240). Eis um exercício
que, embora conte com a sensação, deverá ultrapassá-la, buscando o que ela não
é capaz de abrigar, dados não percebidos, encobertos pelo manto da função
utilitária. Se assim for, teremos possibilidades de adentrar o profundo daquilo
que é múltiplo, contingente, vibrante, movente e que imobilizamos na superfície
da linguagem. Devemos acreditar em realidades distintas do que percebemos, porque
destas dependem nossas percepções. Note-se uma vez mais o quanto isto é
subversivo em relação à Epistemologia e também à Metafísica. O que nos faz
observar não vem do eu e sim daquilo que é externo a nós, e nos engendra.
Nisto, vejo a criança agindo de modo mais integrado à natureza, ao mundo,
percebendo novidades, desconhecimentos... O animismo, a ludicidade, enfim, os
110

pégasos imaginários levam-me a crer que sobretudo a pequena infância vive


uma relação com os movimentos externos, no mínimo, mais exitosa do que a
adultez, posto que não construiu ainda a espessa casca dos hábitos e linguagens.
Almas céticas (e sectárias) podem se levantar contra este enunciado,
argumentando que as situações fantásticas que os pequenos vivenciam não
correspondem ao que vislumbrou Bergson acerca do contato com o mundo em
movimento, em sua profundidade qualitativa. Eu terei que concordar (os
pequenos não têm maturidade e reflexão para experiências metafísicas), mas
então convoco a toda(o)s que já foram crianças e prezam por isto, evocando
aqueles saudosos dias, para indagar se o que vivenciaram não eram realidades,
em algum domínio do espírito. Creio que a resposta será em geral positiva;
conforme o caráter de cada respondente (e aqui não se trata de juízo ético,
apenas síntese de toda uma duração interior, segundo Bergson), teremos uma
maior ou menor legitimação do devir infância, o que supõe em especial o
governo da inteligência produtivista e pragmática. Reafirmo a crença de que as
crianças, inclusive as que duram e vivem em nós, experimentam o espanto de
encontros com a vida, são mais capazes (por não terem sido ainda
automatizadas pelo maquinário logocêntrico e homogeneizante, lançando-se
sem interesse ao mundo do sonho, do cômico, do irracional, que vibra em
infinitos ritmos) de remar rumo ao movente do que o adulto ordinário. Este
apenas rabisca rascunhos de vultos fornecidos pela percepção e que encontram
seus limites, na ocasião em que cessa a importância utilitária, relativa aos
princípios de manutenção da existência.
Durante o esforço de produzir este trabalho, diversas vezes mencionei o
termo ‘necessidade’, associando-o ao natural, previsível, exterior. Creio chegado
o momento de transcrever um excerto do filósofo acerca de tal aspecto
metafísico:
Responder a uma ação sofrida por uma reação imediata que
se ajusta ao seu ritmo e se prolonga na mesma duração,
estar no presente, e num presente que recomeça a todo
instante, eis a lei fundamental da matéria: nisso consiste a
necessidade. (BERGSON, 2010, p. 247)
Quando nos voltamos, com tudo o que nos limita, ao presente e
sobretudo à matéria, então intuímos a necessidade e a duração exterior.
Conforme o fragmento apresentado, trata-se de um contexto natural, regido
pelo movimento, por reações a ações que se alinham no mesmo ritmo de
vibração e uma consequente similitude relativa ao tempo decorrido, a escoar no
111

presente. Em seguida, Bergson discorrerá novamente sobre a liberdade,


relacionando-a a movimentos que perturbam aquele contexto de certa maneira
monótono, inerentes aos centros de indeterminação (termo quase oposto
semanticamente à necessidade). Dirá o autor que as ações livres assim o serão,
quanto maior for a tensão de duração (o que supõe mais acontecimentos em
menor tempo) do seu movimento, libertando-se dos ritmos previsíveis do
escoamento da matéria extensiva, atributos de seres dotados de consciência,
segundo já declaramos no Capítulo 1 do presente livro.

Mantendo uma orgânica relação com a necessidade, temos a extensão


(concreta), e que de nenhum modo poderá ser confundida com o espaço
homogêneo. Afirma o filósofo que a extensão não estaria neste, embora o
coloquemos de modo ilusório nela. Miseravelmente em busca de pontos de
apoio, em um cenário abstrato, cujas imagens cristalizadas buscam atender a
imperativos menores, a imaginação, segundo o autor...

[...] não consegue deixar de ver o repouso como anterior à


mobilidade, de tomá-lo por ponto de referência, de instalar-
se nele, e de não perceber no movimento, enfim, senão uma
variação de distância, o espaço precedendo o movimento.
Então, num espaço homogêneo e indefinidamente divisível
nossa imaginação desenhará uma trajetória e fixará
posições: aplicando a seguir o movimento contra a
trajetória, o fará divisível como essa linha e, como ela,
desprovido de qualidade. (BERGSON, 2010, 256)
Eis a imaginação agrilhoada à inteligência! O que nos poderia auxiliar
nas remadas rumo à novidade acaba por servir ao projeto logocêntrico aqui
inúmeras vezes descrito. Em vez de romper com as redes utilitárias que nos
estrangulam, servirá ao deus da homogeneidade e fixidez. Ah, imaginação!
Como foste cara ao transcendentalismo kantiano... então vou correr outra vez
atrás dos pequenos de fraldas. Se não entendem o movimento tal como descreve
nosso autor – transporte de estados, distâncias concernentes às vibrações e qualidades,
reverberando em infindáveis outros estados –, pelo menos na Creche e Pré-escola,
experimentam estranhices, os objetos têm múltiplas identidades. Vivem a fuçar
as coisas, desarmados... na brinquedoteca universitária, vi um cozinheiro
morcego motorista, divertindo-se com sua espada espeto de churrasco cavalo de
prata.
Não me parece torcicoloso meditarmos sobre os elos entre o
entendimento metafísico de Bergson e a infância. Note, amiga(o), que eu não
112

teria conseguido articular tantas lembranças docentes, se não houvesse tais


relações. No limite, tentarei fazer um filho com Bergson, conforme nos ensinou
Deleuze (1992, p.14), sobre o exercício genuíno (e violento) de filosofar –
criação de conceitos – e será bastante saudável e necessário que nasça um filhote
monstro. Claro, receio acontecer comigo (este manquejante pesquisador,
rosnando queixumes) o contrário: ser engravidado pelo autor. Soa-me pedante
esta pilhéria, porque fora criada por Deleuze, quando, segundo ele, quis copular
com Nietzsche. Tenho ciência da importância do que tento fazer – refletir sobre
como a escrita bergsoniana poderá iluminar os estudos sobre a infância –, mas
isto não me credencia a habitar a ágora em que pisaram mitos como o autor da
Diferença, Gilles Deleuze. Acho que engravidei...
Uma asserção metafisica que considero relevante, dentre tantas, diz
respeito à percepção. Esta opera condensações, além de imobilizar o universo
concreto. Existiria na ocasião de o percebermos, algo que ultrapassa tal
exercício, uma vez que amplos períodos podem ser condensados de modo
distinto de outros; melhor afirmando, em que pese a matéria (configurada em
necessidade) ter existência e mobilidade, apesar da “pata humana” (CLARICE
LISPECTOR, 1979), possuímos ainda prerrogativas de escolhas. Aqui
reconheço uma clara asserção sobre os nexos entre o corpo e o espírito, quando
entendo que a percepção é um fenômeno também interior, pelo que lança na
duração psicológica o que poderiam ser incalculáveis movimentos e eventos,
condensando uns mais, outros menos. Sem aquela contração do real para os
domínios conscientes, o mesmo permanece em sua infinitude de ritmos e
momentos (qualidades que irão vibrar em duração necessária e polimorfa),
parturiente de contínuas novidades, alheio a nós. Bergson propõe um ousado
exercício – retorno às coisas... que possamos conectar os objetos seccionados em
nossa percepção cotidiana, a ponto de as qualidades fluírem, e o movimento se alinhar
ao continuum do universo material – a duração em nossa consciência recolherá
uma materialidade genuína, não viciada pelas demandas pragmáticas vitais, que
costumam orientar os recursos perceptivos (p. 245). Assim agindo,
expandiremos sobremaneira os campos de consciência, de sorte que:
[...]a longos intervalos repetidos, e transpondo a cada vez
enormes períodos da história interior das coisas, visões quase
instantâneas serão tomadas, visões desta vez pitorescas, cujas
cores mais definidas condensam uma infinidade de repetições e
de mudanças elementares. É assim que os milhares de posições
sucessivas de um corredor se contraem numa única atitude
simbólica, que nosso olho percebe, que a arte reproduz, e que se
113

torna, para todo o mundo, a imagem de um homem que corre.


(BERGSON, 2010, p. 245)
Veja, amiga(o) leitor(a), a possibilidade de capturarmos uma essência
temporal/extensiva dos objetos em longa marcha, que duram e portanto
movem-se, visões que vibram imensuravelmente, abrigadas pelo gesto
simbólico. Existe um espinho a ser extirpado com alicates hidráulicos: a
espacialização. Sobre tanto, exaustivamente já tratamos neste trabalho. Com
sua expulsão, podemos crer que as “milhares de posições sucessivas” daquele
corredor mencionado possam se contrair... entendo com isto que as qualidades,
inscritas na potente qualidade, poderão, como ondas, atingir a ponta do cone,
diagramação bergsoniana para o encontro da duração material e espiritual. Um
encontro menos refém das agruras da linguagem normativa, descontínua,
atrelada ao sensório-motor, que sempre nos leva a ver apenas as consequências
daquilo que se repete, cuja continuidade, segundo o autor, somente
conseguimos reestabelecer, quando o relacionamos aos objetos no espaço; por
isso nosso apego aos tais – associações forçosas, monolíticas, a pulsões externas.
Vale-me aqui o esforço de sintetizarmos a concepção metafísica
bergsoniana: Tudo o que percebemos, os próprios aparatos perceptivos, estão
fora de nós, na realidade exterior, ou seja, são objetos também (imagens), e não
pertencem ainda à duração espiritual, estão sobretudo no instantâneo
(BERGSON, 2010, p. 257). Nossa consciência todavia opera no sentido de
fundir tais domínios, pelos caminhos da intuição, gerenciadora do devir. O que é
qualitativo, oriundo das sensações presentes, vai ao encontro da memória,
formando um todo que compõe a experiência em duração. Dirá nosso autor:
Consciência e matéria, alma e corpo entravam assim em
contato na percepção, e consequentemente também nossa
consciência, pareciam então participar da diversidade que se
atribui à matéria. Se nos recusamos, naturalmente, na
hipótese dualista, a aceitar a coincidência parcial do objeto
percebido e do sujeito que percebe, é porque temos
consciência da unidade indivisa de nossa percepção, ao
passo que o objeto nos parece ser, por essência,
indefinidamente divisível. (BERGSON, 2010, p. 258)
Este excerto celebra, a meu ver, para além de uma nova perspectiva
metafisica na História da Filosofia, uma compreensão sobremaneira estética do
universo material, em seus nexos com o tempo e espírito... tudo passa a ser
imagem/extensão... a consciência, a percepção, o corpo, todos correlatos de uma
114

mesma natureza indivisível, posto que escoa e vibra em infinitos arranjos


rítmicos. Para mim, uma visão estética, acima de tudo, pelo que propõe a busca
da diferença, mobilidade, produção permanente de novidade, portanto processos
criativos. Nisto reside, a meu ver, o que mais aproxima a escrita bergsoniana de
um eminente tratado estético. Acredito também que a infância se insere em tal
contexto, sobretudo porque não edificou ainda as cadeias da utilidade; os
pequeninos protagonizam existências moventes, nos cordéis do indeterminado.
Reafirmo-o sem qualquer idealização das mesmas. Um cotidiano prenhe de
qualidades e estranhezas estéticas não garante satisfação, bem-estar; para tais
nuanças de vida se consolidarem, os direitos das crianças precisam ser
garantidos, respeitados e praticados.

Sobre imaginação, percepção e afecção... o corpo no mundo

O livro ora escrito, conforme já declarei, endereça golpes ao cientificismo


e aos próprios fundamentos do conhecimento. E você, que chegou até as
presentes linhas, poderá me indagar: Então, tudo o que a Ciência, a Educação,
enfim todas as epistemologias, nos legaram deve ser descredenciado,
deslegitimado? Minha resposta: De maneira alguma. O problema que cercamos
é que nossa ação sobre a realidade, vital para a sobrevivência, cristalizou o
símbolo, relevante com relação às transformações da matéria; esta nada tem que
ver em sua essência profunda e indivisível com aquela representação sígnica.
Mais do que ingenuidade, seria tirânico defenestrar os saberes do útil, para
enfim entronizarmos a Metafísica. O que nos mobiliza é atestarmos que o
contrário se consolidou como imperativo, dentre as escolhas da modernidade,
gerando as mais nocivas consequências socioculturais, culminando com um
inenarrável empobrecimento da experiência vida.

Se podemos, ainda que ilusório e formalmente, dividir a matéria, pelo


princípio subjetivo da espacialização, no fim das coisas, isto quem faz vem a ser
a consciência perceptiva e inteligente, reafirmamos. Uma vez tendo tal
prerrogativa, por que não intuir aquela em sua indivisibilidade?...; a própria
extensão material (não mais colonizada pelo espaço), alcançada pela percepção,
liberta dos vícios da ação atualizante. As sensações reencontrariam a extensão,
sem os diagramas espaciais simbólicos; esta, a seu turno, investir-se-ia de
continuidade, multiplicidade, sucessão. Temos nisto o encontro, tal como o
concebeu Bergson, entre corpo e alma (2010, p. 258).
115

Minha queixa maior é que, há décadas recebendo e transmitindo12 objetos


culturais considerados de valor, marcas de distinção social (BOURDIEU,
1992), passei à margem de reflexões estruturadas sobre a importância de
encontrarmos o mundo. Como já confessei, meu foco pedagógico sempre fora a
aquisição consistente por parte dos educandos de saberes formativos escolares,
ainda que atormentado por intuições que sinalizavam em direções opostas...
lampejos, choques, alucinações metafisicas, o desejo maior de abrigar com as
mãos um sapo gorducho, barriga gelada, pegajosa... “tucutucutucutucu!”... do
que saber sobre o anfíbio e sua respiração subcutânea, pecilotermia, glândulas
paratoides, etc.
A Metafisica deveria ser disciplina a começar na Creche, obviamente em
uma perspectiva adequada aos bebês e crianças bem-pequenas; em certa medida,
isto ocorre, pude observar, sem a intervenção pedagógica, por tudo sobre o que
refleti neste trabalho. O utilitarismo que governa até as amizades é inimigo da
experiência com as coisas. Devo confessar que, com as leituras do Ensaio
(BERGSON, 1978) e Matéria e Memória (2010), fiquei mais tolerante com
pessoas que se aproximam de modo interesseiro, chacais, hienas famintas,
chupins calculistas, performáticos e focados... no próprio umbigo e sucesso.
Hoje vejo que o princípio de animalidade, a fundamentar a ação sensório-
motora, conduz sem hesitações a vida desses indivíduos. Seu automatismo se
aproxima de um contexto de necessidade, chegando ao ponto de passarem a ser
percebidos como tal; as interações dali em diante contarão possivelmente com a
reciprocidade pragmática até explícita dos outros, culminando com uma
lamentável desertificação do vivido, contexto em que a amizade, as artes, as
verdadeiras novidades de existência, etc., se esgotarão, restando apenas as
rotinas fossilizadas do hábito, interações polidas, muitíssimo civilizadas,
cordiais.
Nisto expresso mais um motivo de ter me dedicado ao devir infância...
“Tio Marlon, quer brincar comigo?”... “De que, rapais?”... “Eu sou um bruxo e
vou te prender na minha casa!”... “Ai, que medo! Vai me transformar no quê?”
“Num morcego, ué!”... “Putz, esse bicho é muito feio... cara de vampiro!”... “Mas
você vai voar!”... “Aham, que legal! E o que eu faço com o violão?”... “Ah, você
pode voar nele, que nem a bruxa faz com a vassoura... Tio, quer ir morar lá em
casa?” Essa saudade de partilhar miudezas, ternurinhas, gafanhotos, conchas... e

12 Perdoem este termo, mas a educação tradicional, que a mim sustentou e à prole, toca há séculos programas
curriculares transmissivistas, adultocentrados, com os quais sempre me debati, conseguindo pequenas vitórias,
tanto na Educação Infantil, quanto no Ensino Médio, assim como várias demissões, pelo perfil pedagógico meio
anárquico, averso àqueles regimes de poder.
116

ficar olhando com as crianças figuras nas nuvens, fazem-me pensar no retorno à
Educação Infantil, compromisso que abandonei pelo Ensino Superior. Quem
sabe nos futuros projetos de extensão universitária ou mesmo após a
aposentadoria...
Se eliminarmos os equívocos milenares acerca de como acessamos o
universo material, sobretudo nos livrando de nós mesmos e da velha
prepotência solipsista, subjetividade com aspirações olímpicas, haverá caminhos
já enunciados neste livro para o resgate da Metafisica, contextualizado agora
pela extensão da alma (intelectualmente inextensa); uma vez deste modo
considerada, cujo papel verificamos na “passagem gradual da ideia à imagem e
da imagem à sensação” (p. 259), caminhando para a atualidade e portanto
indivisibilidade, torna-se crível que o espírito atue sobre a matéria, ocasião da
percepção pura, havendo assim uma união, em que pese, segundo o autor, a profunda
diferença entre matéria e a memória. Se nos ativermos ao último fragmento
transcrito, presente no parágrafo, veremos que o início do encontro se
caracteriza pela ‘ideia’, ainda que pregada ao instante sensorial; esta se constitui
inequivocamente atributo da consciência e duração.
Bergson, ao iniciar o capítulo 3 de Matéria e Memória, pontua
didaticamente movimentos na relação do objeto com o espírito. Para tanto,
reflete sobre os correlatos lembrança pura, lembrança imagem e a percepção. Sobre
o modo de agir desta, declara o autor, há a concorrência efetiva da lembrança
imagem, que interpreta o estímulo externo, recolhido e em grande medida
filtrado pela inteligência. Embora virtual e muitas vezes adormecida, a
lembrança pura abriga todas as lembranças imagens que, ao serem evocadas,
vão ganhando materialidade e tons expressivos, até alcançar a superfície do
atual (2010, p. 156). O autor lança mão de uma analogia, para explanar sobre
este aspecto: os mecanismos conscientes mergulham no passado profundo,
selecionando do mesmo certa região, tal como faríamos com o foco de uma
máquina fotográfica... ainda em estado de virtualidade, os conteúdos
mnemônicos nebulosos vão se condensando de tal modo que se atualizam,
alinhando-se à percepção mimeticamente. O autor ressalta que o que confere à
memória profunda o reconhecimento de sua natureza virtual é o fato de ter uma
relevância no presente, no devir – movimento da própria vida.
Outra demarcação teórica feita pelo autor destaca a distinção entre
imaginação e lembrança: a primeira diz respeito à faculdade de criarmos imagens.
O senso comum tende a concebê-la como a habilidade onírica, fantástica.
Podemos sim formar imagens oriundas do passado, como temos a prerrogativa
de criarmos outras, com endereços múltiplos, inclusive inéditos, desprovidas de
117

qualquer relação com o mundo figurativo, como no caso do Abstracionismo na


História da Arte; a segunda necessariamente supõe figuras virtuais, não há
lembrança sem o recurso da evocação de imagens. Note, amiga(o), o admirável
encontro da Metafísica com a Estética, na compreensão da relação da memória
com a matéria. A imaginação, prerrogativa de parirmos no tempo as figuras ou
extensões que quisermos, tanto pode encaminhar acontecimentos, vivências
com a novidade e a diferença, como também guindar eventos pretéritos que nos
constituíram enquanto sobreviventes, e prospectivos... “a parte que nos cabe
deste latifúndio”13, quem sabe algo mais do que uma cova aberta, derradeiro
encontro com o mundo... para além da campa, promete-nos chaves de segredos
acerca de como agimos (Ética), sentimos (Estética) e com o que lidamos
(Metafísica).
Nossa consciência intuitiva, articulando enquanto memória os contextos
sensório-motores, subjetivos, duracionais, promove uma condensação de todos
esses estados em uma totalidade perceptiva, consciência que está mais nas
coisas externas do que na interioridade. Desse modo, declarou o filósofo:
“Consciência e matéria, alma e corpo entravam assim em contato na percepção”
(BERGSON, 2010, p. 257) Eis, a nosso ver, um enunciado de notória
relevância, pelo que descreve do movimento perceptivo, alinhando virtualidade
e atualidade, articulando os aparatos cerebrais que, apesar dos equívocos
filosóficos do passado, não formam duplicações, tampouco produzem
representações, consoante já declaramos, mas prolongam o que é captado.
A percepção pura se aproxima de um conceito, ao considerarmos apenas
as funções de recorte, filtragem de objetos do mundo, e a não aproximação dos
corpos. Vale-nos muito reiterar a relação direta entre a percepção e o contexto
sensório-motor – dois termos (adjetivo composto) que concernem a movimentos
integrados que, dentre outras ações, lançam nosso corpo na percepção dos
outros, a nos envolverem –. O primeiro termo diz respeito às sensações; o
segundo, a todos os aspectos da motricidade orgânica, reflexos, etc.. Sobre
aquelas, há um aspecto de grande destaque, pouco discutido neste livro: a
afecção. Antes de a analisarmos, convém que não confundamos com a afetividade
pedagógica, temática tão cara aos estudos educacionais. Obviamente que entre
ambas há relações, inclusive contíguas ao encontro entre a materialidade e o
espírito, mas a reflexão aqui empreendida se endereça aos impactos da ação
corporal sobre outros corpos, bem como as marcas dos mesmos sobre o nosso.

13 Alusão à canção Funeral de um lavrador, de Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto, composta para o
álbum Morte e Vida Severina (1966).
118

Na relação entre objetos do mundo e o corpo nosso de cada dia


(extensões que interagem), há uma infinita variedade de impactos, distâncias,
desde aquelas remotas, ocasião em que a percepção “só desenha ações possíveis”
(BERGSON, 2010, p. 273), até as mais próximas, culminando com a eliminação
de qualquer distância, ocasião em que o corpo percebido se conecta ao nosso,
afetando-nos. Lembro-me, quando criança bem-pequena, a curiosidade em
sentir azia, de tanto testemunhar adultos reclamando, após as refeições.
Naqueles tenros dias, tudo o que eu tinha eram imagens sobre o transtorno
alimentar... uma fogueirinha dentro do estômago (representação a partir do que
os glutões descreviam acerca do mal-estar). Quinze anos depois, vinha-me a
afecção, o alimento engordurado, condimentado, feria o organismo. Dirá
Bergson que a imagem e a percepção são correlatos da consciência: a primeira
seria externa ao corpo; a segunda o marca, atinge-o. Deste modo, a superfície
corporal, demarcadora das fronteiras entre os corpos (bem como do presente e
passado), “nos é dada ao mesmo tempo na forma de sensação e na forma de
imagem” (2010, p. 273)
Não posso me furtar ao comentário de quanto se torna relevante para os
estudos de fundamentos curriculares da Educação Infantil a questão da afecção.
Os bebês e crianças atravessam o dia, buscando-a... tudo querem tocar, cheirar,
degustar, percutir. As imagens de seu entorno tendem a se tornar afecções,
muitas vezes significando riscos à integridade dos pequenos experimentadores.
Existe uma tensão permanente entre o direito que os pequeninos têm de
explorar as coisas e o dever docente de cuidar deles. Infelizmente, o segundo
aspecto predomina nas rotinas, agigantando o mando adulto. Em quantas
ocasiões lúdicas, presenciei educadoras castrando raivosamente ações afectivas...
“Menino, tira isso da boca!”, “Desce daí, você vai cair!”, “Essa planta tem
veneno, larga a folha já!” E eu entendo o estresse de nos anteciparmos a um
acidente. Certa vez, supervisionando o Estágio Curricular do Curso de
Pedagogia, 3º. Ano, observei na Pré-Escola uma garotinha de 4 anos... em
fração de segundo, passou a correr sobre uma mureta de cerca de 20 metros de
comprimento, por 10 cm de largura e 1 metro de altura... seria perigoso deixá-
la correr ali, certamente; para meu horror, ela o fazia encapuzada com um saco
de papel... eu estava longe, sem reação... até hoje gelo em ter presenciado uma
brincadeira que poderia ser fatal. Terminou a corrida, gargalhando e satisfeita,
mas tive que conversar com ela.
Reitero, somado à reminiscência da pequena corredora vendada sobre
muros, o inalienável direito dos miúdos de brincar (BRASIL, 1998; BRASIL,
2010) e nosso dever de cuidar, sem lhes esmagar as afecções, as emoções de
119

trazerem para seus corpos as extensões e sentidos do mundo, para que suas
vivências perceptivas sejam plenas. A seguir, um excerto do autor que lança
mais luz sobre a percepção: “Na interioridade da sensação afetiva consiste sua
subjetividade, na exterioridade das imagens em geral sua objetividade”
(BERGSON, 2010, p. 273). Veja, leitor(a) que, embora seja um atributo
corporal, a afecção se interioriza, marca a superfície, como uma tatuagem,
todavia se inserindo nos domínios subjetivos, que não são ainda memória; as
imagens externas, por sua vez, objetivam-se, pertencentes ao escoar da
mobilidade. Bergson alerta para o erro de considerarmos sensação e percepção
como independentes em existência, concebendo-se a primeira como inextensiva,
previsível, e o que é pior: a formação de imagens no espaço, a partir disto. E
como consequência:
Não se consegue assim explicar nem de onde vêm os
elementos de consciência ou sensações, tomados como
absolutos, nem de que modo essas sensações, inextensivas,
juntam-se ao espaço para nele se coordenarem, nem por que
elas adotam aí uma ordem em vez de outra, nem,
finalmente, de que maneira chegam a constituir uma
experiência estável, comum a todos os homens.
(BERGSON, 2010, p. 274)
Vemos aqui, uma vez mais, o papel da inteligência e da linguagem,
matando no nascedouro as afecções, ao lhes negar o caráter extensivo, pela
dificuldade, inclusive de localizá-las, compreendê-las. O que afeta nosso corpo
pode ter uma origem polimorfa, multissêmica... melhor reduzir o dado a algo
inextensivo, como uma impressão fugaz, estereotipada, e então procurarmos
associá-la a imagens espacializadas... Bergson defenderá o caminho inverso: a
percepção pura, imagética, deverá ser o ponto de partida, insistindo: “E as
sensações, longe de serem os materiais com que a imagem é fabricada,
aparecerão como a impureza que nela se mistura, sendo aquilo que projetamos
de nosso corpo em todos os outros” (p. 274). Uma vez mais afirmamos a
originalidade da concepção gnosiológica bergsoniana, sobretudo ao propor uma
heurística invertida, com relação ao empirismo e outros sistemas. Devemos
partir da consciência interior e suas paisagens temporais, para o encontro com o
mundo e, diferentemente do Romantismo (que o deformava pela subjetividade),
teremos na contingência das sensações externas que nos afetam, possibilidades
de transformarmos o entorno, naquilo que é acidental, novidade, e recebe
nossas marcas. O que lançamos ao exterior são imagens amalgamadas aos
dados colhidos pelas sensações... nosso corpo impacta assim outros corpos,
120

como verificamos nas rotinas de um bebê a morder um pato de borracha na


banheira, ou mais tarde, depois de crescidinho, redigindo (tornou-se promotor)
uma denúncia de desvio de verba municipal.
Quando enfocamos a afecção, tendemos a pensá-la relativa ao atual, pelo
que envolve os aspectos sensório-motores, mas Bergson alerta que há nisto um
princípio do espírito, conforme já assinalamos, em especial no trabalho de
seleção, dentre as percepções, das extensões imagéticas com que lidaremos.
Confesso que o autor me surpreende quando afirma que no universo material,
coordenado por regimes de necessidade – equilíbrio nas reações entre objetos,
atos que se compensam e neutralizam (p. 275), em contíguos ajustes rítmicos,
não havendo relevância de uma imagem sobre outra, enfim, deslizando no jorro
de uma totalidade movente – haveria uma consciência que sustenta tal harmonia.
Isto me remete a Peirce (2005), o eminente lógico norte-americano, que
afirmara que o pensamento está nas coisas, no trabalho das abelhas (e não
necessariamente conexo a um aparelho cerebral), assim como as cores, as
formas.
A necessidade, contudo, concerne ao presente, que reedita o passado, em
permanente encadeamento e tal consciência ordenadora, ao ser atingida por
nossa individualidade – espírito a regurgitar indeterminação – sofrerá
desarranjos na previsibilidade, sobretudo porque haverá uma conservação e
prolongamento do passado que modifica o presente. Nisto reside o inusitado; o
que ocorreu no pretérito transforma o atual, rompendo com as rotinas de
necessidade. Sobre tal encontro entre a consciência individual e a cosmológica
(assim o desejamos), declarou o filósofo: “Ao passar da percepção pura para a
memória, abandonávamos definitivamente a matéria pelo espírito” (p. 275). Vale
a pena, ao seguir com as leituras das conclusões de Bergson em Matéria e
Memória, reafirmarmos o papel da percepção pura, ocasião em que um objeto-
imagem afeta nosso corpo, a reagir inteligentemente com duplicações
atualizantes. O autor ratificará a asserção de que com a memória o que ocorre é
sobremodo distinto: a lembrança traz à mente algo que não se faz presente, mas
que reside no tempo e então se prolonga...
Vejamos o que declarou o autor, de modo definitivo:
A verdade é que a memória não consiste, em absoluto,
numa regressão do presente ao passado, mas, pelo
contrário, num progresso do passado ao presente, É no
passado que nos colocamos de saída. Partimos de um
“estado virtual”, que conduzimos pouco a pouco, através de
121

uma série de planos de consciência diferentes, até o termo


em que ele se materializa numa percepção atual, isto é, até o
ponto em que ele se torna um estado presente e atuante, ou
seja, enfim, até esse plano extremo de nossa consciência em
que se desenha nosso corpo. (BERGSON, 2010, p. 280)
Isto nos leva novamente ao cone SAB, sobretudo porque somos espírito e
duração... marchamos com o que nos constituiu rumo às coisas que nos
esperam... não serão tais mobílias que formarão nossas imagens, mas algo quase
oposto: o passado virtual é que nos guiará para a atualidade, culminando com
nossas condutas e escolhas. Estas que espelham uma consciência que abriga
planos, alcances infinitos. Os aparatos cerebrais contribuem para a
materialização das memórias, seu prolongamento e vigor, mas convém
reafirmarmos: elas pertencem ao tempo/espírito.
Então vimos propor a asserção de que o devir infância, domínio do virtual,
se nos apresenta como parte da base do cone. Ali nos dias de lactente, na primeira
cela (o berço), vemos se desenharem nossos primeiros campos de consciência...
outros virão, como nos círculos concêntricos, metáfora já enunciada neste livro.
Vale-me reafirmar o fascínio de refletir sobre uma ontologia da infância, à luz
da Filosofia bergsoniana, pelo aspecto de continuidade e indivisibilidade da
duração interior. Pensarmos a consciência e a existência humanas supõe uma
totalidade, ao contrário das correntes psicopedagógicas etapistas.
Isto me autoriza, reafirmo, a relacionar tudo o que fora exposto da lavra
bergsoniana, em especial os constructos teóricos concernentes ao Ensaio e
Matéria e Memória, ao ser criança. Com as devidas ressalvas, já enunciadas,
dentre as quais destaco a nuança de haver um menor papel da inteligência
semiótica e destaque do sonho na consciência infantil, tenho certeza de quanto a
empreitada deste livro tem me valido. Encerrarei o presente capítulo,
transcrevendo e comentando o excerto a seguir:
Entre o plano da ação – o plano em que nosso corpo contraiu
seu passado em hábitos motores – e o plano da memória
pura, em que nosso espírito conserva em todos os seus
detalhes o quadro de nossa vida transcorrida, acreditamos
perceber, ao contrário, milhares e milhares de planos de
consciência diferentes, milhares de repetições integrais e no
entanto diversas da totalidade de nossa experiência vivida.
Completar uma lembrança com detalhes mais pessoais não
consiste, de modo algum, em justapor mecanicamente
122

lembranças a esta lembrança, mas em transportar-se a um


plano de consciência mais extenso, em afastar-se da ação na
direção do sonho. Localizar uma lembrança não consiste
também em inseri-la mecanicamente entre outras
lembranças, mas em descrever, por uma expansão crescente
da memória em sua integralidade, um círculo
suficientemente amplo para que esse detalhe do passado aí
apareça. Esses planos não são dados, aliás, como coisas
inteiramente prontas, superpostas umas às outras. Eles
existem antes virtualmente, com essa experiência que é
própria às coisas do espírito. (BERGSON, 2010, p. 282/283)
Quando nascemos, o choro figura como um primeiro hábito motor. Veio-
me à mente um provérbio: “Se viver fosse bom, ninguém nascia chorando”. O
berreiro a plenos pulmões revela-nos lançados nos domínios da ação e do
tempo, embora consigamos lembrar o que passou em geral a partir de 3 anos.
Ocorridos anteriores ficam mergulhados nos porões da inconsciência. A
memória pura já nos primeiros passos conscientes retém, perpetua nosso trajeto
no mundo, coadunada com as ações do presente sensório-motor. Uma vez mais,
ratificamos com a leitura do fragmento, que a experiência vem a se constituir
uma totalidade que abriga infinitos campos de consciência – responsáveis pelas
complexas articulações entre o virtual e o atual. Uma mãe é capaz de
reconhecer se o choro significa fome, manha, dor de ouvido, cólica abdominal,
sono, etc. Portanto, posso afirmar, sem traições ao autor que há na enunciação
do bebê um plano de consciência, obviamente com rudimentos linguageiros,
distante ainda da performance de um falante. Pensarmos nos miúdos da
Creche/Pré-Escola e o que lhes passa, segundo a Metafísica e a descrição do
conhecer bergsoniana auxilia-nos sobremodo, pelo que já fora aqui exposto. O
espírito infantil somos nós, permanece no tempo, ainda que contribuintes, multados pelo
fisco, ao atrasarmos a declaração do imposto de renda. Como me parece saudável
entendermos que somos um todo indivisível, interioridade movente, que se
projeta na contingência, no asfalto escaldante da matéria. Do primeiro dente
que nasce no berçário ao último a cair, no asilo14, somos extensões vibrantes,
indeterminantes.
Bergson ratifica a relevância do sonho, prerrogativa que amplia os planos
da consciência, de modo que acrescentemos organicamente, sem mecanicismos,
novas lembranças à lembrança, o que me faz retornar à ideia de fusão dos

14 Evitemos o termo preconceituoso, melhor algo como clínica de idosos, ou casa de repouso.
123

objetos, vibrações que se encontram e sucedem na memória, quais as batidas da


alfaia no maracatu. Não existe justaposição, conforme discutimos na seção
Aprofundando percepções acerca da duração...

Garatujas potentes se tornam estereótipos inertes, tampouco


simultaneidade (perfilamento), artifícios de linguagem; o que há é um
movimento para campos conscientes mais amplos, infinitos, em que a memória
conservará imagens gradativamente mais contraídas no tempo, acontecimentos
que nos reeditam permanentemente.
O espírito assim se revela capaz de manejar não apenas aquilo que está no
tempo, mas também de engendrar os próprios planos de consciência, a intuírem
o que vem do exterior, cuja atualidade faz-nos evocar idos e feitos, buscando
aproximações destes conteúdos com o que se apresenta no presente, projetando
ações futuras. Tudo isto, reafirmamos, com a finalidade de manutenção da vida.
(2010, p. 283).

Reflexões sobre os sistemas orgânicos... veredas evolutivas

Este capítulo pretende aprofundar, alicerçado nas contribuições da obra A


evolução criadora (1979), escrita em 1907, a reflexão acerca de uma ontologia da
infância, em um contexto mais amplo, inerente aos processos biológicos,
guiados pelo impulso vital que engendra a marcha dos seres na evolução,
segundo a concebia Bergson. Para além de tudo o que fora abordado sobre tais
nexos, guia-me o firme desejo de aprofundar as percepções do ser criança
enquanto expressão do humano, alicerce da memória, sempre mirando a
continuidade (e integridade) da existência, por mais que as ciências o tenham
segmentado e cristalizado em categorias cronologizadas. Como profissional da
Educação (primado do logos), reconheço, conforme já afirmei, a importância
daqueles diagramas cartesianos, sem os quais se tornaria impossível planejar as
rotinas escolares, dentre o que se destacam os núcleos instrucionais. Ratificadas
tais ressalvas, defendo com o livro uma concepção (que incide sobre os estudos
curriculares) acerca da existência humana, de modo a não lhe separar de outros
seres vivos, porque até os vegetais circulam em nós. O bebê que empilhava
caixas para, em seguida, derrubá-las, divertindo-se esteticamente com a
bagunça, continua durando, muita vez encoberto pelo breu da inconsciência, no
gesto do padre ao erguer o cálice, na caneta do juiz, na lasanha de uma dona de
casa. Tempo que não significa etapa do vivido, mas duração e virtualidade.
Interessa-me bastante meditar acerca do devir infância, naquilo que venha a
124

expressar impulsos, vontade, afecção, enfim, o que constitui a vida a debater-se


na exterioridade. Como ser vivente, a criança se revela um todo espírito e
memória; sobre esta, declarou o autor:

Em realidade, o passado se conserva por si mesmo,


automaticamente. Por inteiro, sem dúvida, ele nos
acompanha a cada instante: o que sentimos, pensamos,
quisemos, desde nossa primeira infância nele está, na direção
do presente que vai a seu encontro, pressionando contra a
porta da consciência que quisesse deixá-lo do lado de fora. O
mecanismo cerebral é feito precisamente para reprimir a
quase totalidade do passado no inconsciente e para só
introduzir na consciência o que é de natureza a aclarar a
situação presente, para ajudar a ação que se prepara, para
produzir, enfim, um trabalho útil. No máximo, lembranças
de luxo chegam, pela porta entreaberta, para entrar de
contrabando. Essas lembranças, mensageiras do
inconsciente, nos advertem do que arrastamos conosco sem o
saber. Mas sentiríamos vagamente que nosso passado
continua presente conosco, mesmo não tendo a ideia distinta
dessas lembranças. (BERGSON, 1979, p. 16)
O entendimento de que o que nos passou se conserva por inteiro traduz a
importância de voltarmos os olhos para os dias de fralda e mamadeira, ainda
que a consciência e mais propriamente a inteligência tendam a empanar o
brilho, a textura, volume, fragrância e todas as impressões, afecções,
sentimentos, dúvidas, intuições do berço e tatame... tudo aquilo de algum modo
impacta a atualidade, pelo que permanece durando nos porões do inconsciente,
fundindo-se a outros objetos a escoarem no tempo. É inegável a ação
interditante dos mecanismos cerebrais ordenados pela utilidade e as demandas
do presente. Conforme nos revela o fragmento, o fato de muitas vezes não
reconhecermos ao certo os entulhos, móbiles, beliscões e tudo o mais que
carregamos no espírito não significa termos nos livrado dos mesmos; vêm roçar
camadas do instante, às vezes de maneira intrusa, fortuita e canalha. O choque
elétrico, após enfiarmos o dedinho na tomada poderá ter sido apagado da
consciência, mas certamente ecoa, pelo que se transmutou em outros
idos/feitos... na alquimia do vivido, até alcançar a superfície da ação. E o que
seriam lembranças de luxo? Creio coladas ao prazer, à emoção experimentada
por ocasião da ocorrência. O seio materno, o primeiro violão, o dia em que vi o
Rio São Francisco, ou ouvi pessoalmente o violoncelista Antonio Menezes
125

(imagens agora conscientes), ou ainda uma casa abandonada em que ateei fogo
(não me lembrava disto, seria interdição?), infância mineira... Engraçado
perceber que há luxo no terror. Recobro surpreso a imagem de dezenas de
pessoas, meu pai à frente, carregando em correria baldes d’água, para debelarem
o incêndio... Curioso é perceber que não apanhei com o malfeito, tampouco
quando queimei um colchão, ou ainda a jogar na fogueira um vidro de spray
para vê-lo explodir... desconfio que meu progenitor deveria nutrir algum
secreto desejo de fazer o mesmo, ações piromaníacas! Por muito menos,
levávamos cascudos, cintadas, ripadas, chinelos nas costas a deixarem a carne
minando. Bergson, meu farol, creio que o fogo figura como luxuosa lembrança,
ainda que também associado à tragédia, ocasião dos corpos que vi queimando
em acidentes automobilísticos, vida a fora... Há inequivocamente movimento e
transformação naquele objeto/evento, como no mito de Aquiles, ao ser
queimado vivo na pira acesa pelo amigo Filoctetes (BULFINCH, 2001).
Cansado das mazelas cotidianas, mesmices civis, ciúme de Dejanira, imolara-se
o herói, para surgir imortal no céu, corpo transfigurado, incorruptível,
desposando a deusa Hebe (anos atrás poderia ser vista no SBT). A chama nos
acompanha desde as mais priscas eras, passando por Prometeu, Nero, o
Vesúvio, o metal derretido e a guerra... poucas substâncias se transformam
tanto no plasma ígneo... memórias de luxo! Não mais inconscientes...
As próximas linhas versarão sobre o principal objeto de análise da obra A
Evolução Criadora (1979), a saber: que aspectos se organizam para constituírem
os seres vivos. Apresento desculpas aos bergsonianos pelo que não abordarei,
tendo em vista os limites de minha retina pedagógica e do livro. Procuro
refletir, na presente seção, sobre os nexos possíveis entre a descrição do filósofo
acerca do contexto orgânico e a natureza da infância; melhor afirmando,
perquirir que achados teóricos podemos amealhar, pensando com o autor tais
relações. Discutir a vida em seus caminhos, as representações que construímos
para ela, se tivermos fôlego para tal, poderá se constituir um potente veio,
manancial a sustentar novos olhares para o universo da infância. Antes de
seguir buscando essas aproximações, tecerei análises acerca de como o autor
entendia o movimento dos sistemas vivos, em uma perspectiva mais próxima da
Biologia; isto farei, por diversas motivações, das quais destaco a necessidade de
atender minimamente ao percurso que o autor fez, de modo a chegar aos temas
que mais me interessam, como o impulso vital, a memória, a vontade, o amor...
nuanças dos organismos vivos que indubitavelmente contribuem para
pensarmos ontologicamente o ser criança.
126

Na contramão de registros científicos, como os de inspiração


mecanicista15ou finalista16, Bergson dirá que a vida se revela desordenada, os
seres contendem, tensões resultam da regressão a concorrer com o progresso,
muito embora os pareceres positivistas, assentados nos trilhos de uma
inteligência comprometida com a conduta razoável, prescritiva, ancorada
também na observação dos dados, tentassem ordenar nossa ação sobre o
mundo. A mirada bergsoniana se aproximaria do que o autor denominou
transformismo, especialmente porque nisto se considera a duração. Curiosamente
o finalismo e o mecanicismo, em suas versões mais radicais, encontrar-se-iam
em diversos aspectos, dentre os quais a incapacidade de reconhecer as potências
criativas e plásticas das expressões vitais; seriam doutrinas biológicas estéreis,
reféns de uma cientificidade diagramática, prospectiva.
Para o filósofo,
[...]a vida, desde suas origens, é a continuação de um único
e mesmo impulso que se distribuiu entre linhas de evolução
divergentes. Algo cresceu, algo se desenvolveu por uma
série de acréscimos que foram outras tantas criações. Esse
mesmo desenvolvimento é que levou a se dissociarem
tendências que não podiam crescer além de certo ponto sem
se tornarem incompatíveis entre si. (BERGSON, 1979, pp.
55-56)
Aqui temos asserções que, salvo melhor entendimento, elucidam a
tendência transformista da perspectiva biológica bergsoniana... surgem de
guerras as espécies, incompatibilidades, dissensões entre os seres na longa
marcha evolutiva. Como cantara Caetano Veloso: “As coisas não têm paz.”
(1993). Milhões de seres seriados, errantes, deparando-se com desafios, dos
quais novas formas surgiram, plasticidade infinita, traços assim matizariam a
evolução da vida. Esta engendra ações crescentes, gradativas, promovendo
transições de espécies em espécies. Sobre estas, uma vez estruturadas, haveria
uma tendência de acomodação, voltando-se a si mesmas circularmente, de modo
a retirarem do meio o que precisam com o menor esforço possível. Obviamente
que teremos um paradoxo nos caminhos de criação dos sistemas orgânicos: por

15 Perspectiva biológica que se aproxima da Física e da Química, sobretudo porque temos uma base comum,
tanto para o contexto orgânico, como para o inorgânico: a matéria; buscam-se então hipóteses migradas das
Ciências duras, cujos objetos primam pelo molecular, decomponível, recortando ângulos da totalidade, para se
comporem representações.
16 Doutrina que entendia os seres cumprindo um programa traçado, eliminando o tempo (assim como o
mecanicismo) e a novidade, mas se guiando pela sucessão palpável dos eventos naturais, matematizados, a
projetarem um futuro previsível, teleologia.
127

um lado, a vida buscando novidade; por outro, as espécies contribuindo


minimamente para que tal aconteça (BERGSON, 1979, p. 118).
Vale a pena pontuar que a perspectiva evolucionista de Bergson não
coincide com a clássica lavra darwinista, embora existam pontos de contato.
Dirá nosso filósofo:
Seja como for que se explique a adaptação do organismo às
suas condições de existência, essa adaptação é,
necessariamente, suficiente a partir do momento que a espécie
subsista. Nesse sentido, cada uma das espécies que se
sucederam na história da vida, e que a zoologia e a
paleontologia descrevem, foi um êxito feliz alcançado pela
vida. Mas as coisas assumem aspecto totalmente diverso
quando comparamos cada espécie ao movimento que a
colocou em seu caminho, e não mais às condições em que
ela se inseriu. (BERGSON, 1979, p. 119, itálico meu)
O fragmento nos deixa claro que, mais importante que a influência do
meio (como professara Darwin), vêm a ser as condições que viabilizam a
estabilização da espécie; isto diz mais respeito à memória, ao tempo e à vida, do
que à imobilidade do exterior material. O êxito de cada espécie supõe o acúmulo
de experiências, as narrativas orgânicas, enfim, o infinito de dissonâncias e
consonâncias rítmicas, buscando equilíbrio. Aquela contradição se
aprofundaria... a vida urge (e ruge) por novas realizações, contudo os arranjos
estabilizados deixados no percurso – seres que buscam adaptação – seguem no
sentido circular, ensimesmando-se, de modo a melhor sobreviverem (ah,
inteligência! Como és lerda...)
Fico pensando nas crianças com alguma deficiência... em que medida se
inserem nessa descrição bergsoniana dos movimentos vitais? Uma mãozinha
que vem com seis dedos, ou qualquer alteração no organismo faz-me pensar no
afã vital, atropelando as rotinas que a espécie busca cristalizar. Somente pela
perspectiva da razão instrumental, pragmática, que busca a repetição, o
padronizável, é que temos a deficiência. Se pensássemos no sistema consciente
em movimento, autônomo, não haveria o excludente, posto que tudo seria
diferença...
Então vivemos atravessados por essas duas grandes forças, dentre tantas
aqui já discutidas (princípio de expansão da vida e a aversão ao novo, por parte
das espécies), e vamos remando... rumo ao que, mesmo? Se refletirmos
acuradamente, com o que nos matiza a realidade movente do espírito, a debater-
128

se com tais tensões, melhor evitarmos a pergunta, sobretudo pelo que carrega
das pretensões da utilidade, dentre o que destacamos o controle do que
vivemos, somos, sentimos... sobre como agimos, enfim. Bergson afirmara que os
seres, abrigados em suas espécies, ao buscarem estabilidade, imitam tão
competentemente a imobilidade (e seus regimes de necessidade) que chegamos a tratá-los
como coisas, algo que viria da Biologia aristotélica. Temos nisto a hipertrofia do
olhar epistêmico tradicional, pedante, convicto de seus apodíticos teoremas,
mas que perde o contato com aquilo que progride, transforma-se, movimenta-se
em criação.
Para Bergson, ao considerar a expansão vital:
Tudo se passa como se o organismo por sua vez não fosse
mais que uma excrescência, um rebento que faz sobressair o
germe antigo pugnando por se continuar num germe novo.
O essencial é a continuidade de progresso que prossegue
infinitamente, progresso invisível sobre o qual cada
organismo visível cavalga durante o breve intervalo de
tempo que lhe é dado viver. (BERGSON, 1979, p. 34)
Aqui temos a memória promovendo a segmentação e transmissão de um
impulso, carga de energia que migra e se multiplica. A imagem da cavalgadura
me parece um tanto sugestiva, lembra-me a metáfora do corcel selvagem,
indomável, sem celas, que exprime o pensamento acelerado, recorrente na
Literatura. Gosto muito da figura equina, tanto pelo que me parece significar
no excerto analisado – expressão do progresso infinito e invisível de cada
organismo –, como também pela própria consciência que cavalga na evolução
da vida. E quando desta tratamos, referimo-nos a produção de novidade, aquilo
que vem à existência. As Ciências, todavia, governadas por preceitos da
inteligência, buscam padrões, isolando o que se repete, o idêntico, empenhadas
em prever, controlar, registrar os fenômenos, tal como o fazem com o meio
inorgânico. Vale-me reafirmar que a inteligência também é fruto do processo
evolutivo dos sistemas orgânicos, mas se nega a pensá-los na duração, porque isto
supõe atuar sobre o movente (passando a reconhecer nela o mesmo
movimento), perdendo o que existe de “irredutível e irreversível nos momentos
sucessivos de uma história” (BERGSON, p. 36). E quão inóspito se torna o
percurso de voltarmo-nos contra tais hábitos gnosiológicos, a ponto de se
constituir isto violência ao espírito (p. 36). Parece-me bem mais confortável
pensarmos que o imprevisível novo se constitui em apenas aparências. O que
seria falaciosamente original, pondera o autor, não resiste, se submetido a uma
análise em que se decomponham os sistemas orgânicos em estados sucessivos, a
129

fatos elementares que se repetem, assumindo novos ordenamentos controláveis.


Bergson, todavia, adverte que a vida não se constitui apenas de elementos
físicos e químicos, geométricos, aritméticos, especialmente porque muito do que
lhe compõe pertence aos domínios da indeterminação, negação do necessário.

Torpor, instinto, inteligência e intuição... caminhos evolutivos

Mesmo com relação à investigação de seres rudimentares, como as


amebas, problemas surgem nas explicações físico-químicas, pelo que há de
consciência, “atividade psicológica” (p. 41) a se evidenciar e uma vez mais
coincide com a memória – acumulação de experiência –. A fisiologia mecanicista
se vê em apuros (e aporias) por não se libertar dos modos de construir suas
representações, obtendo saberes laboratoriais, que apenas reconstituem
aspectos residuais de atividades praticadas pelos seres vivos, algo como se
pudessem capturar apenas o inorgânico de um sistema orgânico, escapando-lhe
aquilo que efetivamente se constitui movimento, plasticidade, funções vitais
como a reprodução, gênese e evolução de tecidos, órgãos, expressões de uma
vontade. Não há portanto como reduzirmos a Biologia aos estatutos
epistêmicos da Física, da Química (e outras Ciências duras, acostumadas aos
objetos do universo material), tampouco concebermos um sistema orgânico
fechado como algo isolado, em condições ideais de observação, consoante
pretendem certas subjetividades científicas.
Ao refletir sobre o impulso vital, o filósofo ressalta que:
Torpor vegetativo, instinto e inteligência, eis pois, finalmente,
os elementos que coincidiam no impulso vital comum às
plantas e aos animais, e que, no curso de um desenvolvimento
em que manifestaram nas mais imprevistas formas,
dissociaram-se puramente devido ao fato de seu crescimento.
O erro capital, erro que, transmitindo-se desde Aristóteles, viciou a
maior parte das filosofias da natureza, consiste em ver na vida
vegetativa, na vida instintiva e na vida racional três graus
sucessivos de uma mesma tendência que se desenvolve, quando se
trata de três direções divergentes de uma atividade que se cindiu ao
crescer. A diferença entre elas não é de intensidade, nem, de um
modo mais geral, de grau, mas diferença de natureza.
(BERGSON, 1979, p. 124, itálico do autor)
130

Para pensarmos aquela tríade – torpor, instinto e inteligência –, convém


que neguemos a perspectiva evolucionista que afirma o percurso da vida em
graus crescentes de adaptação, aprimorando-se milênios a fio. Bergson deixou
claro que temos na verdade profundas diferenças de natureza, operadas por
desvios criativos, nos trilhos lançados pelo impulso vital.
O torpor, entendamo-lo como uma condição mais característica dos
vegetais, tende ao armazenamento de energia e à imobilidade. Toda a ação do
vegetal sobre o ar, água, terra, enfim o processo clorofílico, que também é
movimento, são apropriações de elementos inorgânicos, buscando manutenção
da vida, alimento, a reter destacadamente, segundo o autor, carbono e
nitrogênio (BERGSON, 1979, p. 100). De tais nutrientes e outros mais, o
animal não tem condições de se apropriar, portanto depende em absoluto do
vegetal.
Antes de comentar a concepção bergsoniana de instinto, convém afirmar
que tanto este quanto a inteligência são tendências dos sistemas vivos para
atuar sobre a matéria, esforços que aparecem de infinitas maneiras no sentido
de obtenção de vantagens para a odisseia da existência. Vale-me ponderar, com
o autor, que uma distinção muito rigorosa entre ambos, instinto e inteligência,
delimitação de seus contornos, constitui-se mais um esquematismo abstrativo,
do que se consideraria entendimento. Existem diferenças, todavia os mesmos
atuam de modo tão agilmente articulado, que se torna penoso assinalá-las.
Também se torna pantanoso demarcar onde termina a ação da própria vida
natural e começam os trabalhos do instinto, que consiste na “faculdade de
utilizar e mesmo de construir instrumentos organizados” (BERGSON, 1979, p. 128,
itálicos do autor). Trata-se sobretudo de um atributo praticamente invariável
da espécie. Uma infinita complexidade engendrada para atender aos
imperativos utilitaristas (voar, camuflar-se, produzir pólen, etc.) lança mão de
ferramentas que encontrou, criou, restaurou, presentes em sua corporalidade;
trata-se de funções mecânicas simples, dispondo-se de um contexto de
necessidade e extrema especialização. O instinto ordena os instrumentos
voltados aos órgãos, revelando a estrutura da espécie, que não será a mesma, se
houver uma alteração importante em algum deles.
A inteligência, irmã rica do instinto (perdoem a antropomorfização),
consiste na “faculdade de fabricar e empregar instrumentos inorganizados”
(BERGSON, 1979, p. 128, itálicos do autor). Também destinada a ações
concernentes à manutenção da vida – alimentação, proteção, etc. –, tal
prerrogativa segue no sentido de fabricar com esforço um artefato, movimento,
plástico raciocínio; a atuação inorganizada (não natural) lhe confere grande
131

agilidade, exercícios mais livres quanto maior for a distância dos regimes
necessários e circulares do instinto, distribuindo funções, ampliando
artificialmente formas de resolução de problemas. A inteligência, ao multiplicar
as ações do indivíduo sobre a matéria, dirá Bergson, satisfazendo uma
necessidade, cria outra, mais outra, e assim ad infinitum. Para facilitar nosso ir e
vir, utilizávamos há tempos um jumento... hoje, podemos dispor (com sacrifício)
de jato sobre duas rodas, a Suzuki – 1300 cilindradas, capaz de chegar a 350
km/h. Toda instrumentalidade inteligente é, por definição, imperfeita, porque
atua sobre a contingência do mundo, acoplando-se à natureza do ser que o
criou, enriquecendo-a, prolongando-a. Isto me remete a uma obra clássica dos
estudos de linguagem: Os meios de comunicação como extensões do homem
(MCLUHAN, 1969). Impressiona-me como a descrição que Marshall McLuhan
faz de nossas aquisições tecnológicas (prolongamentos de nosso corpo) se
alinha ao raciocínio bergsoniano, com uma diferença: para o autor canadense,
cada extensão criada nos amputa algo... se inventamos o automóvel, andamos
muito menos; com o telefone, perdemos a presença física do interlocutor, e
assim por diante...
Bergson afirmara que quanto maior a liberdade inteligente, mais
expansivos os manuseios com o inorganizado (artificial) e menos relação com os
círculos fechados do instinto e necessidade. Eis o Homo Faber (assim deveria se
denominar a espécie, segundo o autor, e não Homo Sapiens): não há limites para
a inteligência; em estágios superiores, ela será capaz de criar fábricas para
fabricar (BERGSON, 1979, p. 129). O instinto atua sobre instrumentos
naturais, matéria organizada; a inteligência fabrica instrumentos não-naturais e
que tendemos a naturalizá-los.
O autor pondera que, se retroagíssemos ao passado remoto, instinto e
inteligência seriam bem-mais próximos, contudo os imperativos vitais a
atuarem sobre a matéria levaram a tal distanciamento, embora jamais se
separem efetivamente. De maneira lírica, Bergson recorre ao exemplo das
abelhas (confeccionando suas habitações), para argumentar sobre quão evidente
se torna a ação inteligente, coadunada aos instintos, de cujos manejos depende
aquela, posto que estes apresentam extrema especialização e competência em
atuar sobre o mundo material.
No percurso dos sistemas orgânicos vertebrados, diferentemente dos
artrópodes, percebe-se o esforço da inteligência em sobrepujar o instinto; na
espécie humana, finalmente triunfaria. Isto teria ocorrido pela insuficiência de
nossos meios em relação à manutenção da vida... Os instintos não a
garantiriam, de modo que foram subjugados; a inteligência, apesar de
132

imperfeita, aleatória, abria-se ao infinito, assumindo dali em diante o comando


da experiência (BERGSON, 1979). Ao descrever diferenças entre as funções da
inteligência e instinto, o filósofo afirmara que a consciência é o lume interior
que clareia os campos em que se inscrevem as atividades virtuais a culminarem
com as ações concretas, reais, atualizadas. Expressão da mesma vem a ser a
dúvida e a escolha (traços de liberdade). Não havendo tais aspectos, inexistirá a
consciência e mesmo as representações. A inteligência é conduzida pela consciência,
enquanto que os instintos, conhecimentos organizados e invariáveis, voltam-se ao
inconsciente (BERGSON, 1979, p. 132).

Vejamos o notório fragmento a seguir: “Há coisas que só a inteligência é


capaz de procurar, mas que, por si mesma, jamais encontrará. Essas coisas, só o instinto
as encontraria; mas ele jamais irá procurá-las” (1979, p. 138, itálicos do autor).
Notemos a aproximação entre instinto e inteligência, em especial porque ambos
são expressões de conhecimento, mas o primeiro passa longe da obrigação de
unificar, classificar objetos, pensar artifícios não naturais de modo a facilitar
adaptações, de maneira que certas emoções espirituais são mais factíveis em
registros instintivos do que inteligentes.

O amálgama inteligência/intuição... buscando segredos da realidade

Para a Metafísica bergsoniana, a inteligência passa a ser, conforme


demonstramos ao longo deste livro, um grande obstáculo. Se, por um lado,
engendra conhecimentos que, ao se multiplicarem, facilitam nossa condição de
existência, lançando-nos para além de nós mesmos, por outro, ficamos reféns do
ranço formalista (afastamento das coisas) que aquela carrega em sua ação
autorreferente, trazendo seus gavetões pesados onde aprisiona resíduos dos
objetos; o instinto carrega os objetos in natura, mas não os engaveta de modo
algum. Ambos lidam com saberes, ora formais (e caricatos), ora inconscientes.

Vale a pena ressaltar com Bergson as vantagens do formalismo, para que


não se aprofunde aqui a impressão de se redigir um tratado contra a
inteligência:
Uma forma, precisamente pelo fato de ser vazia, pode ser
preenchida alternadamente, à vontade, por um número
infinito de coisas, inclusive por coisas que para nada
servem. Assim é que um conhecimento formal não se limita
ao que é útil na prática, não obstante seja em vista da
utilidade prática que ele surge no mundo. Um ser
133

inteligente traz em si aquilo com que ultrapassar a si


mesmo. (BERGSON, 1979, p. 137)
Vejamos que, por mais atrelada ao pragmático que possa estar a
inteligência, ela o ultrapassa, suas retinas miram o infinito. E vejo nisto mais
um paradoxo: o formalismo se afasta da matéria porque se antecipa a ela (com
símbolos), ao passo que, fazendo-o, pode desenhar qualquer coisa... e por isso a
humanidade criou a tetraciclina, pode visitar Marte, clonar seres, dentre outras
façanhas. A capacidade de fabricar soluções para nossos problemas é infinita,
todavia manqueja, quando se trata de especular sobre o que está para além de
nós, ainda que nesse afã fabril tenhamos a ilusória sensação de conseguir. O
instinto, por sua vez, tem posse da matéria, maneja-a, mistura-se à própria, mas
é um conhecimento atrelado à necessidade. Seus signos aderem, colam-se aos
objetos, de modo orgânico e invariável, como a linguagem das formigas; os
signos da inteligência, embora reféns da espacialização, formas preconcebidas
que retiram a singularidade dos objetos, querendo lhes reter apenas a
materialidade, apresentam mobilidade. Trata-se de uma sinalização ao infinito,
mas que verdadeiramente não coincide com a realidade movente que
poderíamos desvendar, pois a linguagem tende a homogeneizar, buscando
estados invariáveis (, conforme já enunciamos neste trabalho, causalidades,
dados e padrões observáveis, decomponíveis. Não nos admiram os percalços
dessa racionalidade, ao lidar com os seres vivos e o próprio espírito, se somente
nos confortamos, segundo o filósofo, com aquilo que é imóvel e cabe em nossas
formas inteligentes. O instinto, por agir organicamente (enquanto que a
inteligência é mecanicista), poderia nos revelar os mais íntimos segredos naturais e
da própria vida, desde que a consciência o iluminasse e o mesmo não se ativesse
apenas a ações exteriores (BERGSON, 1979, p. 149)
O autor pondera que, pela índole formalista (e artificial) da inteligência,
esta jamais encontrará certos objetos...
Será que passei sem sentir para o outro lado? O outro lado
é uma vida latejantemente infernal. Mas há a transfiguração
do meu terror: então entrego-me a uma pesada vida toda
em símbolos pesados como frutas maduras. Escolho
parecenças erradas mas que me arrastam pelo enovelado.
Uma parte mínima de lembrança do bom-senso de meu
passado me mantém roçando ainda o lado de cá. Ajude-me
porque alguma coisa se aproxima e ri de mim. Depressa,
salva-me. (LISPECTOR, 1979, p. 20)
134

Diria a musa literária, ou ainda o eu lírico narrativo, que o mistério da


vida lhe sondava risonhamente? Tenho uma irrefreável sensação neste sentido,
nada todavia categórico e propositivo. O artista, conforme já afirmei,
parafraseando Bergson, encontra coisas que o indivíduo comum, contribuinte e
disciplinado, dificilmente encontrará. O lado de cá nos enche os olhos de poeira,
com suas naturezas mortas, relógios de mogno, crianças no semáforo, vendendo
balas. Essas “parecenças erradas”!... melhor ficarmos mesmo com esboços, ainda
que grotescos; quem poderá afiançar que suportaríamos o inferno de uma
desrazão dando passagem ao que não temos?... desobjetos queimando em um
não-espaço, entranhas violadas da consciência...

A principal obra da inteligência, declarou nosso autor, terá sido a Ciência,


que professa incontáveis sistemas descritivos acerca do universo material e
correspondentes operações físicas, contudo quando se dispõe a destrinçar o que
caracteriza a vida, fornece-nos apenas leituras inerciais, o que haveria de morto
no vivo, incapaz de penetrar neste, posto que busca imobilizar o movente. Eis a
relevância portanto da intuição, faculdade subjetiva que consiste no instinto que
se desprendeu da obscuridade, iluminado pela consciência, dotando-se de
prerrogativas apenas imaginadas pela razão: encaminhar-se aos mistérios da
vida (p. 159). A intuição aparece ao longo de toda a aventura de escrever este
livro, sempre enaltecida, acenando-me com a esperança que se materializa em
um tatu multicor, a cavar na dureza do deserto, entregando aqui fora migalhas
de ossos, minhocas, veios d’água doce. Desculpem a imagem, vem desenhada
pela pata inteligente, grotesca, como sempre... creio chegada a hora de
entendermos melhor: se a inteligência tem como objeto a matéria, a intuição
(instinto liberto) o faz com a vida e para além... acessa os movimentos do
espírito. O exercício intuitivo supõe íntima comunhão, em contraste com o
isolacionismo da inteligência. Bergson dirá que aquele secreto encontro com as
coisas é possibilitado pela abdicação da faculdade espacializante; esta que
sempre nos impede de agarrar aquilo que é vivo, os impulsos, movimentos que
delineiam os objetos... então penetramos por veredas nebulosas, sem os
ilusórios controles logocentrados, rumo ao íntimo das coisas, ajustando nossos
ritmos aos delas, encontrando esquisitices, quem sabe acontecimentos (conforme
já defendi nessa caminhada escrita), como afirmaram Deleuze e Guatarri (1992,
p. 202): atualizações do vivido, imateriais, indetermináveis, sem começo nem
término, abrigando também regiões sombrias e secretas que se subtraem e
somam, virtualidades a alcançarem noviças a textura do real. Pelo menos
teremos revelações das sabotagens e falácias da inteligência, desnudaremos seus
estratagemas fajutos, fraudes, tais quais a causalidade, arrogando-se presidir
expedientes como o nascimento das plaquetas sanguíneas. Podemos sonhar
135

mais: quebrando os velhos grilhões do entendimento, vamos ao encontro


insólito de nossos semelhantes vivos (p. 160), porque campos de consciência se
ampliarão de tal sorte que adentraremos os domínios da vida, sem pré-
julgamentos, categorias de análises, assim como fazem os bebês no meio dos
bichos, cena de pura novidade e criação, vibrações que se interpenetram.
Mesmo nessa condição de plenitude comunicativa, pulsante, Bergson
pondera sobre a presença da inteligência; tendo abdicado das arbitrariedades
com que ordinariamente administra o vivido, ela agora lança luz sobre o instinto,
tornando-o intuição. Haveria, destarte, um imbricamento de uma na outra
(inteligência/intuição), condição para que possamos transfigurar a miserável e
programática existência, mirando a experiência metafísica. A consciência se
desdobra na matéria, manejada pelos expedientes inteligentes; no contexto
vida, a intuição é que atua (p. 160). Nesses termos, concebe-se uma Teoria do
Conhecimento bergsoniana, dependente da Metafísica, tal como a temos
apresentado aqui. Afirmará nosso autor que ambas as buscas (matéria e vida)
configuram uma circularidade, cujo centro se constitui a evolução criadora,
título da emblemática obra em que alicerço a presente reflexão. A consciência se
debate com essas polaridades, reciprocamente atraentes e por vezes repulsivas...
há que se transformar a matéria, fabricando-se modos de nos servir da mesma,
ao passo que precisamos respirar junto aos que respiram, olhar naquilo que tem
olhos e nos devolve o olhar, vendo-nos! E não se trata mais de espelhos
carcomidos (RORTY, 1994), e sim de conjunções lacrimares, pupilas de
vertebrados com pupilas de invertebrados, peles e escamas... o espanto de nos
reconhecermos no vivo.
A evolução da vida será melhor entendida tanto mais, se equilibrarmos o
arranjo inteligência/intuição, o que está longe de ser algo fácil. Em tal
heurística, veremos que a consciência, ao organizar a matéria, atravessá-la, fê-lo
em infinitos andamentos, desde o adormecimento em seres torporíficos até o
moleque que não para quieto na carteira...
Declarou Bergson que o despertar dos sistemas vivos se daria de duas
maneiras distintas: a consciência se voltaria para a matéria (e teríamos o
destaque da inteligência) ou para si mesma e os próprios movimentos (ocasião
de uma primazia da intuição). Ocorreu, para tristeza dos artistas (inferência
minha), que evoluir passou a coincidir com o domínio inteligente, posto que a
consciência em evolução rebaixou a intuição ao status de instinto, tirando do centro a
vida e entronizando a matéria. Com isso, assistiríamos a uma aproximação cada
vez maior entre consciência e inteligência, de sorte que praticamente se
tornaram sinônimos. Isto teria ocorrido por várias motivações, sobretudo pelo
136

fato de que, agindo inteligentemente, focada no universo material, a consciência


poderia se despregar dela mesma (algo impossível com o instinto) e assim
transitar livremente pela exterioridade, contornando os objetos, adaptando-se,
retornando, enfim expandindo ao infinito suas ações (p.164). Então concluímos
de tudo isto que o processo evolutivo da vida se governa pelos movimentos da
consciência, produzindo novidade e criação.
Vejamos este notório escrito:
Por vezes, no entanto, materializa-se diante de nossos
olhos, numa fugidia aparição, o alento invisível que os
anima. Temos essa iluminação súbita diante de certas
formas do amor materno, tão flagrante, tão comovente
também na maior parte dos animais, observável até mesmo
na solicitude da planta para com sua semente. Esse amor,
no qual alguns viram o grande mistério da vida, talvez nos
revelasse o segredo dela. Ele nos mostra cada geração
voltada para aquela que a seguirá. Ele nos deixa entrever
que o ser vivo é sobretudo um lugar de passagem, e que o
essencial da vida reside no movimento que a transmite.
(BERGSON, 1979, p. 118)
Não há como passarmos incólumes a estas palavras. O lampejo fugidio de
que trata o filósofo diz respeito a uma asserção central em sua obra:
impulsionando a vida, temos o amor, em infinitas realizações, movimentos,
imponderável energia do reino orgânico. Confesso emocionado o impacto da
primeira leitura feita deste excerto. Aqui temos uma noção de quão rupturante
(permitam este adjetivo) se apresentavam as proposições bergsonianas no
debate com os físicos, químicos, biólogos, paleontólogos, psicólogos e demais
cientistas, irmanados nas perspectivas logocêntricas do século XIX e que, após
duas grandes guerras, no século seguinte, recrudesceriam mais amargas e senis,
com o Estruturalismo. Apesar das tragédias, seguiu o projeto moderno com as
fichas todas apostadas na razão epistêmica, certa de que o conhecimento
intelectual nos forneceria senhas de acesso às coisas, a ponto de ficarmos
satisfeitos muito mais com as representações espetacularmente rigorosas delas,
do que o contato nojento, viscoso, fedido, com as mesmas. Não podemos negar
os bruxos que tentaram nos exorcizar, implodir aqueles púlpitos, como
Nietzsche, Wittgenstein, Dewey, Heidegger (RORTY, 1994), ou ainda Rorty,
Deleuze e a tradição francesa da Diferença. Infelizmente (mesmo), esses
heréticos esforços para destronarem a epistemologia clássica, denunciando-lhe
o piso arruinado, apodrecido, não foram suficientes. A modernidade liquefeita
137

de nossos dias (BAUMAN, 2000) perpetua raivosa as velhas instituições e um


texto de Metafisica que defenda o amor como princípio a orientar consciências
viventes (perdoem o pleonasmo), tremendo em gelatinas no fundo do mar... não
seria bem-recebido, especialmente pelas comunidades acadêmicas, sobretudo em
um século genocida, como o último, ainda enterrando mortos, como ocorre com
minas que de vez em quando explodem em solo africano. Agarro-me a esse
escrito bergsoniano, como às canções de Geraldo Azevedo, aos abraços dos
filhos e amigos, ao pôr do sol de Cuiabá, MT, ao pão com ovo frito, à ducha
gelada da cachoeira de Santa Bárbara, SP, aos tambores da Umbanda, ao beijo
quente da mulher amada, enfim àquilo que me constitui, dentre outras
experiências de grande luxo, porque o restante poderão ser apenas palavras... Se
me faltam forças para crer na liberdade, tal como a tenho concebido, nessa vida
severina (MELO NETO, 1966), mesmo considerando a perspectiva
bergsoniana, com o amor é diferente... nisto jogo todas as minhas cartas. Claro que
não comemoro muito, pois o próprio Bergson afirmara que a vida é produção
crescente de novidade, ainda que precise, nos antagonismos que vai parindo,
muita vez desviar-se do que criou (1979, p. 119). Uma forma noviça surge de
uma ação que primeiramente se constitui um prolongamento a originá-la e
depois um desvio... uma vez a espécie constituída, resistirá inclusive aos
impulsos vitais que lhe obrigarem a novos saltos. Quanto me vem ao espírito,
refletindo sobre tal contradição! A vida cria e se desvia... O amor materno
reluz... no vegetal... mistério que abriga o movente... princípio vital abandonado
pelo olhar cauterizado na necessidade, lâmina do laboratório que recorta a
célula. Aqui temo pela pieguice que está assolando meu texto!... tomei-me de
um irrefreável sentimentalismo e, nos registros da Filosofia da Educação, isto é
abjeto... baixei a guarda! Fiquei fácil, molinho... Ainda bem que o intuicionismo
bergsoniano no-lo permite (desculpem o exibicionismo com esta formação
pronominal erudita, eclesiástica, preciso me convencer de que sou útil).
Voltemos ao pinçamento temático da presente seção: como se desenham
as formas vivas, o mover-se dos sistemas... e os nexos com a infância. Recorro
novamente ao último fragmento, ainda comovido. Não me desapego da imagem
materna... Posso incorrer em erro, mas não consigo imaginar algo mais intenso,
totalizante, rítmico, visceral, concernente aos sistemas vivos e o que lhe diz
respeito. Nada que eu puder aqui enunciar, amparado pelos escritos
bergsonianos, poderá dar conta dos sentidos daquela imagem... experiência
inominável, inefável... avisei que fiquei sensível... e me lembrei da Pietà, de
Michelangelo, esculpida em 1499.
138

Remeto-me agora, outra vez, ao chão da Creche e às centenas de


pequenos escândalos entre algumas mamães e rebentos que ingressavam na
instituição educativa (começava a famigerada adaptação). Até hoje me
impressiono com o berreiro eventual de ambos... Aqueles momentos de pranto
me fazem pensar no paradoxo aqui já discutido: a vida cria e depois precisa
seguir atuando em novidade sobre a espécie... mas esta quer conforto, menor
esforço, acima de tudo. Calma, mãe! Ele vai ficar bem! Passa rápido... daqui a
pouco, ele vai parar de chorar...Então, recomendamos: quanto mais cedo o cidadão
ingressar na Creche, melhor para todos. Meu filho tinha quase quatro anos,
quando finalmente o matriculei... a consequência da procrastinação foi que ele
atacou a professora com dentadas e pontapés... A espécie quer a circularidade,
abrigar-se em si mesma, consolidar as ferramentas inventadas pela inteligência
ou herdadas do instinto. E o impulso vital engendra caminhos no devir, de
modo que a memória e o que nela se contrai atuam, cavando diferenças, pulsões
qualitativas.

As pantanosas fronteiras da individualidade

Em A Evolução Criadora, Bergson mira muitas nuanças que caracterizam


em sua concepção o que é vida, dentre as quais a individualidade, ponderando
sobre quão difícil pode ser afirmarmos “o que é indivíduo e o que não é”
(BERGSON, 1979, p. 24); mas insiste que aquilo que é vivo busca reunir,
constituir sistemas de algum modo fechados, dotados de configurações
fronteiriças. Nesse sentido, uma vez mais acusa as Ciências de artificialismos, ao
promoverem delimitações, isolamentos objetificantes. Erramos, segundo o
autor, quando buscamos entender o ser vivo na mesma lógica do universo
inorgânico, em que se pode recortar um objeto; melhor será o raciocínio voltado
para a duração, eminente marca do que vive, portanto tem no presente o
prolongamento do passado, atualizando-se. Torna-se forçoso metafisicamente
atribuir ao corpo fases como infância, juventude e velhice. Uma vez mais
ressalto a relevância dessa proposição para o livro que escrevo. Seguro com as
mãos trêmulas o mastro da bandeira de um humano total, porque quando o
espermatozoide fecunda o óvulo, começamos a envelhecer, sobretudo porque
duramos, fundimos no tempo idos e vindos, substantivos que coalham a superfície
do agora. O fragmento a seguir esclarece por que insisto no combate ao
etapismo, já abordado na seção Considerações sobre kronos e a criança
universal abstrata, chaga das Ciências Educativas. Sobre tal, afirmará o
filósofo:
139

Como o universo em seu conjunto, como cada ser


consciente tomado à parte, o organismo que vive é algo que
dura. Seu passado se prolonga integralmente em seu
presente, e nele permanece atual e atuante. De outro modo,
compreender-se-ia que ele atravessasse fases bem-
reguladas, que mudasse de idade, enfim, que tivesse uma
história? Se considero meu corpo em particular, verifico
que, semelhante à minha consciência, ele amadurece
paulatinamente da infância até a velhice; como eu, ele
envelhece. Inclusive, maturidade e velhice, a rigor, não
passam de atributos de meu corpo; por metáfora é que dou
o mesmo nome às mudanças correspondentes de minha
pessoa consciente. (BERGSON, 1979, pp. 24-25)
Este excerto nos revela, salvo melhor entendimento, a falácia de
diagramarmos a vida em fases; no máximo, isto caberia ao corpo, mas
metaforicamente (e aqui se entenda pelo sentido de analogia mequetrefe)
atribuímos à consciência os mesmos frames, objetividade manca, caricata e,
convenhamos, pedante. Pergunto: em que uma paixão adulta difere daquela
vivida na infância? Teríamos elementos seguros para afirmar distinções? Veio-
me à mente súbito o jogo de xadrez. Impressiona como pode ser praticado em
alto nível por crianças (não necessariamente portadoras de altas habilidades).
Quantas vi vencendo campeonatos, em que adultos se engalfinhavam pelo
caneco. Eis um exemplo de que a duração coincide com a
memória/envelhecimento, a emoldurar a individualidade... a consciência se
move no tempo, índole do que é único e vivente. No xadrez, apesar de toda a
dimensão lógica, simbólica, etc., idade pouco importa, porque ali o espírito se
move, dura e luta; para além da inteligência, atua a vontade.
Bergson declarou que, mesmo que estabeleçamos uma escala de
complexidade que abrigaria, desde o organismo unicelular até nossa mísera
espécie, o que temos vem a ser um todo que envelhece, não havendo uma lei
universal que dê conta de versar sobre qualquer indivíduo. As espécies se
lançam no tempo, percorrendo caminhos, segundo o filósofo, afirmando aquilo
que lhes constitui a independência. Temos aqui, salvo engano, um formidável
paradoxo: se, por um lado, o ser vivo se revela individual, por outro, não nos é
possível objetivá-lo (como fazemos com elementos do universo material),
porque sua identidade orgânica se aproxima mais de uma sociedade, posto que
cada célula nasce, cresce e morre, portanto evolui de maneira diferenciada, em
distintos arranjos temporais; vamos além: como sistemas fechados, o que
140

exatamente demarcaria nossas fronteiras? Em que medida os outros seres com


os quais duramos não nos constituem, atravessam, agenciam rotinas? Confesso
meu apreço pelo pronome espanhol nosotros... de modo adorável, expressa uma
fusão de eus, quase que espelhando as rugas acumuladas da espécie homo sapiens
sapiens. Então não convém que sigamos com abstrações mecânico-objetivistas,
negando a duração, concebendo o elemento vida como fazem com o inorgânico,
pois “onde quer que alguma coisa viva, haverá, aberto em alguma parte, um registro
onde o tempo se inscreve” (BERGSON, 1979, p. 25, itálico do autor). E mais uma
vez o filósofo dirá do desdém que o mecanicismo trataria tal afirmação,
atribuindo-lhe feições de metáfora, inclusive sobrepujando a observação
imediata, o raciocínio que poderia nos pôr em contato com a duração... algo
como olharmos para uma violeta e de alguma maneira vibrarmos em
frequências contíguas às suas, de sorte que um encontro se configurasse...
memórias que se cruzam. O epistemólogo positivista rirá de algo assim,
afirmando quem sabe ser uma asserção poética, dimensão da fantasia, em que
não existe rigor, tampouco cientificidade. Ele, porém, é quem descreve as fases
do bebê, da criança bem-pequena e assim por diante, inserindo estas figurações
em um presente autorrenovante, a considerar apenas o imediato pretérito, tal
como se concebem os objetos necessários, mas de modo algum o ser na duração
real, a carregar um passado que pode atravessar milênios.
Durante 21 anos, sentei-me com cidadãos de fraldas. Semanalmente, por
40 minutos, cantava com eles, sempre acompanhado do violão, teclado e até do
acordeon. Muitas eram as brincadeiras, os ritmos, estímulos sonoros. Quando
reflito sobre a fenda que se abre entre os domínios da necessidade, enunciando
indeterminação, inscrevendo memória e portanto vida, recobro aqueles
encontros de novidades ascendentes, acumulação e concatenação de imagens,
risos, caretas, timbres, bagunças... Lembro que quando recebia uma turma nova,
era uma choradeira geral. Minha figura masculina lhes surgia ameaçadora,
ogra, barulhenta, tudo ali era novo... ao cabo de três encontros, os pequeninos
ganhavam confiança e passavam a vivenciar emoções sonoras e plásticas. Ao
ouvirem o violão, balançavam seus corpinhos de oito meses, impactados pela
vibração das cordas e dos pulsos básicos que a timba propagava, percutida pelo
meu pé direito. Com as turmas de três anos, ao me imitarem, com suas
guitarrinhas de brinquedo, sempre traziam algo de novo, singular, naquele
devir que atualizava o passado. De vez em quando, uma briga, tapa, cabelo
puxado, dentada, disputa por algum instrumento, ou por sentarem mais perto
de mim... ficavam em círculo, nas cadeiras miúdas...
141

Reflito aqui sobre a identidade... Chama-me à atenção o fato de que em


cada movimento individual, uma memória se acrescia a outra, o choro ficara
para trás... onde há vida, o tempo se inscreve... Expressão da liberdade na
contramão da necessidade. Reconheço a dor de tal paradoxo: a novidade em
colisão com o previsível. Cada bebê ou criança envelhecia, ao percutir um
pandeiro, consciência que se expandia em campos imponderáveis... As vibrações
sonoras se cruzavam com os batimentos cardíacos. Ao durarmos juntos,
sentíamos o passado se atualizando na canção aprendida, no gesto já conhecido
de tocar o xilofone, improvisando melodias. Gatos, leões, galos, serpentes,
frequentavam as narrativas dramatizadas por nós... Ritos canibais... “Que que
tem na sopa do neném?” (PERES, 1996) ... Parodiávamos: Será que tem o
Pedrinho? (a cada nome proferido, o pequeno tinha que pular no caldeirão) Vejo
que a experiência estética multissígnica ali reafirmava identidades moventes,
consciências que irrompiam no tempo. Conforme Bergson, o fundo da existência e
por conseguinte daquilo que é consciente se constitui memória. Eis uma asserção de
notória centralidade no pensamento do autor. E nesta madrugada de 23 de
março de 2020, um sonho exaustivo, pelo que se repete em meu cotidiano (culpa
por ter deixado a Educação Infantil), ocorreu mais uma vez: Estou com o macacão
bege e botinas de operário pesadas, imundas, dos dias de indústria; assim trajado, recebo
na instituição de ensino, onde atuei por duas décadas uma aristocrática família: a mãe,
com um casaco de pele marrom, senhora alourada, mira desconfiada o peão de fábrica
que se apresenta como professor. Não tive dúvida, olhei para a garotinha de feições
felinas e imitei um gato: “gruunnheelll!!” Ela reagiu, quase furiosamente:
“grrraaaauuuuu!!!” E me arranhou... A memória me parece mais que o fundo da
existência; creio que o inverso seja verdadeiro também. O fundo da memória
como existência: a garotinha se atualiza em milhares de almas brincantes,
sempre me chamando de volta para os encontros. E agora se apresenta de novo
a situação em que ainda sou o moleque incendiário, que adorava assoviar em
grandes salas, igrejas fechadas, apreciando a propagação das ondas, entoando
um vocalize glissante em ‘uuuuu’, pra descobrir a nota do ambiente. Tente isso,
leitor(a), vai encontrar um ‘uuu’ que fará tudo vibrar junto... Difícil, meu amigo
Bergson, saber onde se materializam as fronteiras do que nos constitui a
consciência, o eu e aquilo que é tecido do mundo, o que nos veste e do que se
reveste o material... Por que mesmo enuncio estas impressões? Ah, sim, discuto
a individualidade e os nexos com o ser vivo. Afirmou o mentor:

Há tão somente direções nas quais a vida lança as espécies


em geral. Cada espécie particular, no próprio ato pelo qual
se constitui, afirma sua independência, segue sua fantasia,
desvia-se mais ou menos da linha, às vezes até sobe o aclive
142

e parece voltar as costas à direção original. (BERGSON,


1979, p. 25)
Expresso aqui meu encanto pela menção do excerto à fantasia. Vejo nisto
caminhos imponderáveis para todas as espécies, gesto de criação no
indeterminado, como a coruja que veio branca, ou o jaboti de casco lilás (poderá
nascer, por que não?). A novidade rompendo com a necessidade. O olhar de
reprovação da ríspida senhora que pagaria centenas de vezes meu salário não
impediu jamais que eu rugisse com a pequena felina... “grrrauuuu!!!” Importam-
me muito os leões que nos habitam; as convenções do hábito certamente me
enquadraram também. Como vai? Sua filha é muito musical! Venha assistir a nossa
apresentação, Mãe! Subir e descer aclives... o que a vida quer de nós é coragem
(ROSA, 1994), conforme afirmou o mago-dragão Guimarães Rosa, com a
monumental obra Grande sertão: veredas, lançada em 1956. Sem o pezinho no
insano, resta-nos o mover previsível dos automatismos, diferentemente de
afirmarmos nossa independência. E qual seria a direção original de cada
individualidade? Creio ser esta uma indagação improcedente, pois não há um
regimento, estatuto, que verse sobre qualquer ser vivente, manual que, lançado
à duração, capture o indivíduo dentro da espécie, tenho percebido nessas
andanças reflexivas... isto cabe ao cientista caçador de fixidezes, padrões,
determinismos a tornarem-se teoremas, equações.
143

Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.

Vívida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.

Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento.
Como te chamas?
Tempo.

Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.

(HILST, 2003, p. 71)


144

ABORDAGENS CONCLUSIVAS... A VONTADE, ENERGIA DO ESPÍRITO


Bergson retoma a abordagem do caráter feita em Matéria e Memória
(2010), ratificando o que tenho afirmado aqui tantas vezes: a infância se insere
nas bases de nossa lembrança; desta feita o autor vai além: até nossas
disposições pré-natais, pelo que duram, atingem, no frigir da existência, aquilo
que nos tornamos ao agir. Confesso minha surpresa com tal afirmação... antes
de virmos ao mundo, já duramos! Afirmara o filósofo:

De fato, que somos e que vem a ser nosso caráter, a não ser
a condensação da história que vivemos desde nosso
nascimento, antes mesmo de nosso nascimento, dado que
trazemos conosco disposições pré-natais? Sem dúvida só
pensamos com pequena parcela de nosso passado; mas é
com nosso passado integral, inclusive nosso perfil de alma
original, que desejamos, queremos, agimos. Nosso passado
manifesta-se pois integralmente a nós por seu impulso e sob
sua forma de tendência, embora fraca parte apenas torne-se
representação dele. (BERGSON, 1979, pp. 16-17)
Destacaria aqui, leitor(a), a abordagem do que venha a ser a alma
original, certa matriz infante (inferência minha) dispondo do passado em
totalidade, a engendrar os caminhos do presente e da própria ação. Sempre tive
máximo interesse em perquirir a volição infantil; noutras palavras, perguntava:
o que está em jogo, quando os pequenos se envolvem com algo, no cotidiano
pedagógico?... testemunhei sempre a afetividade, a inventividade, o perquirir
ávido pelo novo... Aqui uma resposta: nosso desejo, querer e agir se forjaram no
passado que emerge nas malhas do presente. A memória delineia aquilo pelo que nos
seduzimos. Isto tem ecos profundos na reflexão que empreendo. Então, os
miúdos atores, assim como os adultos, ou os anciãos (desculpem tantos
substantivos masculinos na frase), todos vamos empurrados pelo que se contrai
145

no bico do cone, segundo demonstramos na seção O presente puro é


inapreensível... O cone invertido e a infância movediça. Tenho defendido no
percurso deste trabalho, na contramão da representação de uma criança
universal característica das doutrinas pedagógicas hegemônicas, a infância se
fundindo ao todo da consciência individual (juventude, adultez, velhice...),
inseparável, diagramável apenas pelos registros ancorados em justaposições
simbólicas associacionistas, mecanicistas e todas as vertentes oriundas do
empirismo, racionalismo, e outras escolas epistemológicas tradicionais; noutras
palavras, fundamentos de representação. Minha insistente proposição reafirma
a influência da infância no que nos tornamos, enquanto adultos. Parece-me
sobremaneira redundante afirmar isto, mas o faço para dirimir qualquer
impressão equivocada que possa ter ficado. A aversão aos frames
cronologizantes da existência é oriunda de minhas práticas pedagógicas e de
quanto vi educadores mais atentos ao que prescreviam os materiais didáticos e
aportes psicopedagógicos (sobre o que cada pequeno cidadão é capaz de
realizar, conforme a faixa etária), do que à realidade movente dos encontros
espirituais na aprendizagem. A tautológica postura aqui assumida, embora
combata a visão de fase da vida, não nega o peso da infância; muito ao contrário,
afirmo, alicerçado nos escritos bergsonianos exaustivamente discutidos, que ela
participa de modo essencial, decisivo, na constituição de nossa personalidade,
maneira de conduzir o viver. “O amontoamento do passado segue sem trégua”,
declarou Bergson (1979, p. 16). Tal asserção não deixa dúvidas de que aquilo
que vivemos nos dias de criança nos impacta a todo instante... o que se amontoa
permanentemente na experiência, desde os idos mais remotos, funde-se e
comprime-se na atualização. Então a infância não passou... a memória pura sim,
permanecerá no tempo, irremediável, mas as estocadas pretéritas nos alcançam
e, por mais utilitaristas que possamos nos tornar, adestrados, pregados à
existência, nossa consciência mnemônica dura... e eu tenho pânico de rios
turvos e volumosos, piscinas de grandes profundidades, porque fui vítima de
afogamento, aos 8 anos. O passado sobrevive e temos nisto um conflito: o que
foi está lá, intocável; se voltarmos àquilo, não seremos os mesmos da ocasião do
ocorrido, sobretudo por que muitos campos de consciência se engendraram nas
trilhas que percorremos no devir. O autor nos remete a Heráclito de Éfeso,
quando afirmara ser impossível pisarmos no mesmo rio (ou na lembrança pura)
duas vezes.
A personalidade segue assim em seu caminhar, rumo ao imprevisível,
fundindo novidades e em permanente envelhecimento. O autor repudia a
abstração que procura determinar, antecipar o que seremos, porque a
consciência, tal como a vida, move-se pela criação. Esta proposição
146

absolutamente aversa ao determinismo se soma a tudo o que aqui expus sobre


uma compreensão da infância, como contexto movente, produção de diferença,
na contramão do senso comum, sempre a papagaiar que as crianças são o futuro
do país. Se pensarmos com Bergson, “mesmo uma inteligência sobre-humana
não teria podido prever a forma simples, indivisível, que dá a esses elementos
inteiramente abstratos sua organização concreta” (1979, p. 17), o que nos leva a
inferir a falácia pedagógica de entender e lidar com os pequenos
prospectivamente, negando-lhes a atualidade, natureza pulsante, que busca a
novidade. Em artigo publicado por mim em 201917 sobre o desinteresse
discente pelas rotinas escolares, defendo que uma das razões da secular apatia
de crianças e adolescentes concerne a essa cristalizada e estereotipada maneira
de justificar a aprendizagem, oprimindo os estudantes com o argumento de que
eles constroem seu futuro. Nada pode ser mais enfadonho e desestimulante,
sobretudo pelo que já expusemos nesta investigação, do que tratá-los como um
vir a ser. Infelizmente, tal perspectiva dialoga com diversas epistemologias
educativas; visões preconceituosas, inclusive, porque carregam um
entendimento de que o estudante é ser incompleto, inferiorizando-o,
desprezando o imponderável universo de sua consciência, centro de
indeterminação, imprevisibilidade, a contrair um passado que atua sobre sua
individualidade.
No capítulo III, intitulado Sobre a significação da vida. A ordem da natureza
e a forma da inteligência, da obra A evolução criadora (1979), Bergson continua
tecendo análises sobre as relações entre a consciência, a vida e a matéria
universal, tendo o impulso vital como pano de fundo, eminente agenciador do
devir. Busco, como garimpeiro da Educação, impressões sobre o desejo – aspecto
psicológico que se constitui temática sobremodo cara à aprendizagem. Vejo-o
presente nos aportes teóricos bergsonianos, percorrendo as três obras a nos
alicerçarem, abordagens indiretas, discretas, até porque há um compromisso
maior do autor em explicar sua Filosofia como todo, sobretudo a Metafísica,
teoria da realidade. Apesar disto, vejamos este notório fragmento:
Quando situamos nosso ser em nosso querer, e nosso
querer por sua vez na impulsão que o prolonga,
compreendemos, sentimos que a realidade é um
crescimento perpétuo, uma criação que prossegue
interminavelmente. Nossa vontade já operou esse milagre.
Toda obra humana que encerra uma parcela de invenção,

17TREVISAN, M. D. Relações entre o esvaziamento da função simbólica e o desinteresse discente pelas rotinas
escolares. EDUCAÇÃO EM FOCO (BELO HORIZONTE. 1996), v. 22, p. 113-131, 2019.
147

todo ato voluntário que encerra uma porção de liberdade,


todo movimento de certo organismo que manifesta
espontaneidade contribui com algo de novo no mundo.
(BERGSON, 1979, pp. 210-211)
Vale-me afirmar primeiramente que o querer e o impulso vital não são
sinônimos. Seria aligeirado estabelecer tal aproximação semântica. Motivo de
alento, verificando este escrito do autor, é perceber que a vontade não fora
descartada, como nos sistemas cartesiano e kantiano – descrições ascéticas de
realidade, arquiteturas de um sujeito cognoscente sobremodo logocêntrico,
muito embora o primeiro tenha tratado do espírito –. Pelo contrário, Bergson
abordaria noutras e posteriores ocasiões a vontade, como em conferências e
cursos (MELO, 2019). Com respeito ao trecho transcrito, vejo a possibilidade
de alinharmos nossa consciência – instinto, inteligência, intuição e nuanças
oriundas de interpenetrações destes correlatos – ao querer, orientados pelos
impulsos vitais, de modo a nos empoderarmos, como poucas vezes acontece.
Diante de nós, desenha-se uma realidade sobre o que nossa ação se torna algo
ainda mais transformadora, infinitamente plástica e lançada no movente, feito a
tela de um gênio pintor, a partitura de um Mozart, o sulfite em branco para
uma Cecília Meireles. Eis as potencialidades da vontade, milagrosas veredas
sulcadas no reino hostil da utilidade e do entendimento. Trata-se de criação,
trazer o inexistente ao vivido.
Eu poderia enumerar (e você também) algumas vezes em que conquistei
objetivos praticamente inatingíveis, governado por um querer desmedido,
delirante, febril, fazendo vibrar todo o ser naquele propósito; como quando
resolvi abandonar duas décadas de carreira docente em instituições privadas,
migrando para a universidade pública. Posso afiançar que poucos colegas
conseguem isto, sobretudo porque a precarização das condições de trabalho (em
especial, o baixo valor hora/aula, obrigando-nos a ministrar em média
cinquenta aulas semanais) não permitem um sonho de tal envergadura.
Naquelas condições, cursar um mestrado passaria a ser um suplício para
Hércules; imagine-se após isto o doutorado e finalmente o capítulo mais
dramático: ser aprovado em um concurso público. Lembro-me de como as
pessoas giravam, num thriller de horror, quando me envolvi em acidente
automobilístico, no dia anterior à prova didática de um processo seletivo.
Enfim, quando alinhamos o querer genuíno ao impulso vital, tornamo-nos
gladiadores... e somente a morte nos impedirá de continuar tentando.
Este livro que encerro, apesar de tudo o que não pude tratar, somente se
materializa pelo desejo de entregar ao contribuinte, que paga meus proventos, algo de
148

valor e principalmente àqueles com quem estive (um presente) no piso das Creches e
continuam durando, visitando-me em sonhos, chamando-me de volta. E que possa ser
inventivo (assim espero!), filhote da vontade, visceral afã de celebrar meus dias
com bebês e crianças bem-pequenas.
As proposições bergsonianas feitas posteriormente às três obras aqui
enunciadas, retocando a concepção de ação (longamente tratada aqui)
apresentam inestimável valor para mim e todos os envolvidos com o contexto
pedagógico. Haveria uma atuação da vontade sobre a energia espiritual,
memória, inteligência, enfim sobre os domínios da consciência, agindo no
mundo (MELO, 2019). Trata-se de uma força capaz de não somente nos
estimular à busca por novidade, como também de desenvolver-se a si mesma,
manancial energético do espírito. Bergson afirmara que a vontade, mesmo em
pouca quantia é capaz de multiplicar-se em muita; o querer poderá ser tamanho a
ponto de aprendermos a querer (BERGSON, 1972).
Refletindo sobre as contribuições de Bergson para a Educação, Melo
(2019) ressalta que o autor, mais do que apresentar o conceito de élan criador
(impulso), defendeu a necessidade de desobstrução de tudo que impeça esta
manifestação: os adestramentos, automatismos, a preguiça, enfim, o que sufoca
a criação (e a novidade), processo que deveria presidir as rotinas pedagógicas.
Urge uma varredura de todos os entulhos que se amontoam, sufocando o desejo
– ímpeto espiritual pelo novo.
Vale-me retomar aqui algumas mazelas da racionalidade educativa,
discutida no percurso deste livro e que grosso modo resumem-se às
consequências dos atos da natureza biológica utilitária, base de nossos esforços
pela sobrevivência no mundo. Declarou nosso autor que a Educação precisa se
orientar no sentido de livrar o pensamento desses grilhões, para que a vida
possa circular livremente. Negociações nessa direção envolvem todos os atores
sociais envolvidos com a instituição escolar. As reminiscências que narrei no
trabalho que concluo expressam em certa medida tal esforço: não foram poucas
as vezes em que troquei o plano didático pela lagartixa que apareceu no teto, ou
uma brincadeira inventada pelas crianças (para fugir da previsível atividade
proposta), e quando isto ocorreu, sentia a vida circulando pelo pensamento, nos
sorrisos de bolhas de sabão que fazíamos, bambolês para o coelho nota musical.
Faço coro ao que propõe Melo (2019): uma Pedagogia do Movente,
sobretudo pelo que professa em demover nossas heranças didáticas e
curriculares, e com elas os notórios programas de ações pontuais. O que ele
defende vai ao encontro do que tentei viver na Creche e Pré-escola, mas vai
149

além: centra-se no resgate da vontade, de sorte que retomemos a posse de nós


mesmos, à medida que o pensamento restaure o élan criador.

Bergson nos inspira a seguir adiante, mirando um novo ethos para a


aprendizagem, desde que estejamos dispostos a enfrentar os desafios exigidos,
sobretudo os que concernem à redefinição do papel da inteligência, cujo
fundamento, conforme verificamos, vem a ser a utilidade. Sonho grandioso, pelo
que aposta na intuição e todas as moventes paisagens por ela a serem
desveladas, devir do espírito em duração.
150

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