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John A. Fossa (Org.

FACETAS DO DIAMANTE
ENSAIOS SOBRE

EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Segunda Edição

2022

ISBN: 978-65-00-49098-5.
Copyright © John A. Fossa, 2021. Todo uso comercial da presente obra,
sem a anuência por escrito da AN CRANN GO MAITH PUBLICATIONS, é
expressamente proibido. No entanto, todo uso não comercial é
permitido sob a condição da plena identificação da fonte.
CONTEÚDO

INTRODUÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO ............................................ 7


INTRODUÇÃO À PRIMEIRA EDIÇÃO ............................................ 9
PRIMEIRA FACETA: EDUCAÇÃO MATEMÁTICA ............................ 13
ETNOMATEMÁTICA NA LUTA PELA TERRA:
“UMA EDUCAÇÃO QUE MEXE
COM AS TRIPAS DAS PESSOAS” ................................................. 15
Gelsa Knijnik
PROPOSICIONES PARA UM ESTUDIO
DINÁMICO DE LA MEDIDA ........................................................ 37
Carlos Sánchez Fernández
Concepción Valdés Castro
PESQUISA-AÇÃO PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES:
FÍSICA EXPERIMENTAL NO ENSINO MÉDIO ............................... 69
Roberto Ribeiro Baldino
Alessandra Riposati Arantes
Fernanda Letícia M. Souza
Luís Gonzaga Roversi Genovez
Antonio Sérgio Cobianchi
Miguel Tadayuki Koga
FUNÇÕES E GRÁFICOS:
ALGUNS OBSTÁCULOS COGNITIVOS ........................................ 113
John A. Fossa
Maria da Glória de Sousa e Silva Fossa
SEGUNDA FACETA: HISTÓRIA DA MATEMÁTICA ........................ 123
O LIVRO DIDÁTICO DE MATEMÁTICA NO BRASIL
NO SÉCULO XIX ..................................................................... 125
Circe Mary Silva da Silva
UM PROCESSO DE NEWTON
PARA ENCONTRAR A TANGENTE À UMA CÔNICA ...................... 185
Eduardo Sebastiani Ferreira
CONTRIBUIÇÃO DE JESUÍTAS
PARA A ESCRITA DA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA ..................... 193
Sergio Nobre
SOBRE A PROPORÇÃO ENTRE OS ELEMENTOS
MATERIAIS NO TIMEU .............................................................. 211
John A. Fossa
Glenn W. Erickson
TERCEIRA FACETA: RELAÇÕES ENTRE A EDUCAÇÃO
MATEMÁTICA E A HISTÓRIA DA MATEMÁTICA ............................ 233
HISTÓRIAS DA RELAÇÃO MATEMÁTICA/MÚSICA
E CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADOS .......................................... 235
Oscar João Abdounur
A INTERFACE ENTRE HISTÓRIA E MATEMÁTICA:
UMA VISÃO HISTÓRICO-PEDAGÔGICA .................................. 275
Ubiratan D’Ambrosio
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FACETAS DO DIAMANTE

INTRODUÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO

A primeira edição do presente livro apareceu junto com o


início do segundo milênio da era comum e, portanto, se faz jus que
a capa traz uma imagem do Millennium Star Diamond, considerado
o diamante mais bonito do mundo. Embora nosso compêndio perde
para o Millennium Star no número de facetas que expõe à luz, sua
resplandecência, medida pela importância dos artigos nele contidos,
é certamente parecida com o referente diamante. Seu brilho, no
entanto, andou um tanto abafado por certo tempo devido ao fato de
que a primeira edição se encontrava esgotada faz vinte anos. Assim,
resolvemos dar luz a uma segunda edição, um pouco mais polida,
pois corrigimos alguns erros que nos escaparam na edição anterior
e adotamos a “nova ortografia” que entrou em vigor em 2009. Há
uma outra diferença, bastante notável, entre as Facetas e o
Millennium Star. Parte da nossa crença de que o conhecimento não
é — ou, pelo menos, não deveria ser — a propriedade de um só
indivíduo, mas um bem comum de todos. Para aproximar desse ideal,
aproveitamos das claridades proporcionadas pela mídia eletrônica e
disponibilizamos o texto para os — sabemos que, infelizmente, não
são todos — que têm acesso a essa mídia. Esperamos que o leitor
não somente garimpa algo de valor da sua leitura, mas que também
seja inspirado a criar riquezas ainda mais preciosas.
John A. Fossa
Natal, julho de 2022.
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FACETAS DO DIAMANTE
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FACETAS DO DIAMANTE

INTRODUÇÃO À PRIMEIRA EDIÇÃO

Virtualmente todos os praticantes da matemática, sejam


profissionais desta ciência ou sejam usuários da mesma, aplicada
aos variados campos de saber científico, estão de acordo quanto da
beleza da própria matemática. Para alguns, esta beleza é uma
estrutura fria e austera como uma estátua grega, ou, eu diria, como
o brilho cândido e transluzente de um diamante. Para outros, a
beleza da matemática é o movimento apaixonante da interrelação de
conceitos, um panorama de luzes brilhantes refletidas das faces do
diamante. Pensada desta maneira, porém, só vemos algumas das
múltiplas facetas deste diamante que é a matemática. Para ver outras,
precisamos de refletir sobre a matemática como um produto cultural
do homem e sobre o seu lugar na nossa sociedade como uma técnica
de produção de cultura.
Nesta pequena coletânea, não tentaremos nem vislumbrar
todas as facetas que a referida reflexão implica, pois isto seria além
da nossa competência. Assim, nós nos limitaremos a considerar três
destas facetas: a Educação Matemática, a História da Matemática, e
a relação entre as duas (educação e história).
A Educação Matemática vê a matemática através da
epistemologia. O seu problema central é o seguinte: Como facilitar
a aprendizagem da matemática? Antigamente, tendia a caracterizar
a matemática como uma entidade mental que poderia ser transferida
do professor ao aluno pelo uso de técnicas didáticas apropriadas.
Consequentemente, o maior esforço foi no sentido de desenvolver
técnicas eficazes — coisas que o professor pode fazer para tornar a
sua instrução mais compreensível. Atualmente, a ênfase tem
mudado. A tendência é de considerar a matemática como um
processo e de estimular o aluno a participar neste processo por
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FACETAS DO DIAMANTE
pensar matematicamente. Desta forma, o maior esforço é no sentido
de delinear o referido processo e acompanhar o progresso do aluno
— coisas que o aluno pode fazer para tomar a sua apreensão mais
fácil. Os autores aqui reunidos compartilham estas preocupações e
abordam tais tópicos como o programa etnomatemática, matemática
dinâmica, a pesquisa-ação, e obstáculos cognitivos.
A História da Matemática, por sua vez, olha a matemática do
passado. Há aqui dois problemas centrais, embora nem sempre bem
distintos um do outro. O primeiro tenta precisar a trajetória da
matemática através do tempo, explicando — na medida que isto é
possível — a evolução da matemática contemporânea das suas
formas anteriores. O segundo visa a interpretação da matemática
passada dentro do seu próprio contexto cultural no passado. Os dois
problemas são obviamente complementares: o que é que os
matemáticos fizeram (incluindo o que eles pensaram que estavam
fazendo) e a influência deste na evolução da matemática. Todos os
quatro artigos nesta parte da coletânea evidenciam uma preocupação
com estes dois problemas e, incidentalmente, indicam o enorme
alcance da História da Matemática, pois abordam o livro texto no
Brasil, Newton, e a cosmologia platônica.
Finalmente, podemos perguntar o que a História da
Matemática pode nos dizer sobre o ensino da matemática e como a
nossa formação afeta o nosso entendimento da história. Questões
deste tipo não são abordadas frequentemente e apresentam um
grande complexo de assuntos a serem esclarecidos. Uma maneira de
investigar esta relação é olhar a história de algum conceito, ou
conjunto de conceitos, e tentar discernir as interações entre a história
e a pedagogia referente ao mesmo. Um outro modo de investigação
seria caracterizar a história e a educação para delinear relações
possíveis e até inovadoras. Aqui temos um exemplo de cada uma
destas duas opções: uma investiga a música e a matemática de um
ponto de vista histórico e pedagógico, enquanto a outra parte da
historiografia para tirar algumas conclusões sobre o ensino da
matemática.
Agora que esta coletânea está prestes a ver a luz, nós — eu,
seu organizador, bem como os vários autores que têm contribuído a
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FACETAS DO DIAMANTE
mesma — só podemos esperar que os artigos aqui reunidos ajudarão
o leitor a ver um pouco mais a beleza destas três facetas da
matemática.
John A. Fossa
Natal, setembro de 2000
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FACETAS DO DIAMANTE
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FACETAS DO DIAMANTE

PRIMEIRA FACETA:
EDUCAÇÃO MATEMÁTICA

Na Primeira Faceta reunimos quatro artigos sobre


Educação Matemática, que apresentamos logo a seguir.
Dra. Gelsa Knijnik é professora do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos), São Leopoldo, RS. Seu artigo, “Etnomatemática na Luta
pela Terra: ‘Uma Educação que Mexe com as Tripas das Pessoas’”
é baseado no seu artigo “Ethnomathematics and Political Struggles”,
publicado na revista Zentralblatt für Didaktik der Mathematik
(Jahrgang, 30 Heft 6/ Dezember 1998). A publicação aqui desta
versão do artigo da professora foi autorizada pela Zentralblatt.
Descreve o seu trabalho junto ao Movimento Sem Terra (MST) e
mostre como a matemática, longe de ser uma ciência pristina e
neutra, está envolvida na luta para uma sociedade mais justa. Assim
sendo, vai além da Educação Matemática para entrar também na
Sociologia da Matemática.
Dr. Carlos Sánchez Fernández e Dra. Concepción Valdés
Castro são da Facultad de Matemática y Computación da
Universidad de La Habana. Seu artigo, “Proposiciones para un
Estudio Dinamico de la Medida”, visa exemplificar uma concepção
dinâmica do ensino da matemática que afasta o aluno da sua
dependência do livro texto tradicional. Este tipo de texto arruma os
resultados a serem aprendidos num sistema lógico, porém estático.
Os autores proponham um ensino que leva o aluno a participar no
diálogo matemático através do método de resolução de problemas.
O método é enriquecido, porém, com informação histórica, não
somente para aumentar a motivação do aluno, mas também para
mostrar a natureza do desenvolvimento da matemática como uma
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FACETAS DO DIAMANTE
ciência dinâmica. Os conteúdos escolhidos para ilustrar o método
são o problema da quadratura de figuras planas e alguns problemas
isoperimétricos com polígonos.
Dr. Roberto Ribeiro Baldino é do Departamento de
Matemática e do Grupo de Pesquisa-Ação em Educação Matemática
(GPA) da UNESP, Rio Claro. Alessandra Riposati Arantes,
Fernanda Letícia M. Souza e Luís Gonzaga Roversi Genovez são
alunos do Curso de Física da UNESP-Rio Claro, enquanto Antonio
Sérgio Cobianchi e Miguel Tadayuki Koga são alunos do Programa
de Pós-Graduação da UNESP-Rio Claro. O seu artigo, “Para
Formação de Professores: Física Experimental no Ensino Médio”,
descreve os condicionantes e o funcionamento do GPA, uma área
sempre mais importante na pesquisa em Educação Matemática.
Ainda mais, mostra alguns aspetos da interdisciplinaridade
envolvida no ensino da matemática.
Dr. John A. Fossa é professor do Departamento de
Matemática da UFRN, Natal, RN e Maria da Glória de Sousa e Silva
Fossa é Professora do Colégio Agrícola de Jundiaí da UFRN. Seu
artigo “Funções e Gráficos: Alguns Obstáculos Cognitivos” relata
uma investigação sobre múltiplas representações do conceito de
função e de gráficos de funções. Mostra que mesmo alunos
universitários sofrem de vários obstáculos referente a esse conceito
e sugerem que uma abordagem mais histórica poderá ajudar a
superá-los.
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FACETAS DO DIAMANTE

ETNOMATEMÁTICA NA LUTA PELA TERRA:


“UMA EDUCAÇÃO QUE MEXE
COM AS TRIPAS DAS PESSOAS”

Gelsa Knijnik

INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa e discute elementos do trabalho


de pesquisa na área de Educação Matemática que venho
desenvolvendo no sul do Brasil, desde 1991, junto ao Movimento
Sem-Terra (MST). Este é um movimento organizado nacionalmente,
envolvendo aproximadamente 800 mil agricultores. Sua luta tem
como centro a realização de uma reforma agrária que contribua para
a democratização da riqueza em um país que possui a maior
concentração de terra do mundo. Uma das dimensões desta luta por
justiça social é precisamente a Educação, onde o MST tem trazido
uma contribuição original para a trajetória na qual o Brasil é
conhecido internacionalmente, graças, principalmente, ao
pensamento de Paulo Freire, a partir da década de 60.
O MST hoje representa tanto o novo no que diz respeito a
formas de organização popular como em termos educacionais. Mais
ainda, a dimensão organizativa da luta pela terra poderia dizer-se
que está de tal forma amalgamada com a Educação que é realizada
neste processo de luta que hoje ambas mutuamente se reforçam.
Foram os próprios impasses surgidos na luta pela terra que
apontaram para a necessidade de colocar a Educação como uma de
suas prioridades. Assim, estamos diante de um movimento social
que, lutando pela reforma agrária, uma luta de caráter estrutural,
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FACETAS DO DIAMANTE
passa a ter, como uma de suas prioridades, a Educação de seus
integrantes. É uma Educação que se processa na luta, para fortificar
a própria luta, envolvendo principalmente o desafio de mostrar que
a produção coletiva, nos assentamentos, é uma saída viável do ponto
de vista econômico, produtora de novas condições sociais e culturais.
Frente ao descaso com que os órgãos governamentais
brasileiros têm tratado as questões educacionais, não é de
surpreender que um movimento social envolvendo milhares de
jovens e adultos ainda não alfabetizados e crianças que estão à
margem do processo de escolarização, tome a si a tarefa da
Educação. Mais que isto: cientes de que a Educação que hoje se
realiza no país pouco atende às necessidades concretas da vida dos
acampamentos e assentamentos, o MST é pressionado a buscar
alternativas pedagógicas que busquem superar as limitações do
ensino tradicional, tanto para aqueles que ainda não tiveram acesso
à Educação como para os que, ainda na escola, ali não têm suas
necessidades intelectuais atendidas e sua cultura valorizada.
Um dos aspectos relevantes da proposta educacional do
MST (expressa como um de seus princípios pedagógicos) refere-se
especificamente à questão da valorização da cultura popular. Há,
aqui, continuidades com as posições defendidas por Freire desde
seus primeiros trabalhos: os modos que as pessoas produzem
significados, compreendem o mundo, vivem sua vida cotidiana, são
tomados como elementos importantes, até mesmo centrais do
processo educativo. Neste sentido é que as posições presentes nos
documentos oficiais do Setor de Educação do MST convergem na
direção das teorizações freirianas. Não há, no entanto, um
relativismo exacerbado, uma visão ingênua da potencialidade de tais
saberes populares no processo pedagógico. Nele, as inter-relações
entre os saberes populares e os acadêmicos são qualificadas,
possibilitando que os adultos, jovens e crianças que dele participam,
concomitantemente compreendam de modo mais aprofundado sua
própria cultura e tenham também acesso à produção científica e
tecnológica contemporânea.
Mesmo em área tão “dura” como a Matemática, tem havido
uma tentativa de fazer uma Educação que seja capaz de lidar com a
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FACETAS DO DIAMANTE
permanente tensão entre os saberes locais e os mais gerais. Neste
sentido, há uma tendência de orientar o trabalho na direção da
perspectiva da Etnomatemática1, como em outros estudos tenho
discutido (Knijnik, 1996).
Refiro-me a uma tendência, para indicar que o processo é
lento, percorrido por avanços e recuos, frente às dificuldades
encontradas quanto à formação dos professores, condições materiais
das escolas, e resistências encontradas na comunidade escolar, para
mencionar alguns dos limitantes encontrados nos processos de
Educação Formal. Quando a questão é pensada em termos da
Educação que se realiza nos acampamentos que sequer escola
possuem, tais limitantes tornam-se ainda maiores. Os projetos
pedagógicos que venho desenvolvendo na perspectiva
etnomatemática buscam contribuir para a implementação da
proposta de Educação do MST, ao mesmo tempo que se constituem
em material empírico para um aprofundamento do que venho
discutindo sobre as bases teóricas da Etnomatemática.

RAÍZES TEÓRICAS

A Etnomatemática é uma área da Educação Matemática


relativamente recente, criada a partir das contribuições do brasileiro
Ubiratan D’Ambrósio (1990, 1997). Sua constituição enquanto
campo de conhecimento abrange um amplo e heterogêneo espectro
de abordagens, entre as quais situa-se aquela com a qual venho
construindo o trabalho pedagógico junto ao MST. De modo
provisório, quando da realização de meus primeiros projetos de
pesquisa junto ao MST a enunciei (Knijnik, 1996) como:
a investigação das tradições, práticas e concepções
matemáticas de um grupo social subordinado (quanto ao
volume e composição de capital social, cultural e
econômico) e o trabalho pedagógico que se desenvolve
com o objetivo de que o grupo interprete e decodifique
seu conhecimento; adquira o conhecimento produzido
pela Matemática acadêmica, estabeleça comparações
entre o seu conhecimento e o conhecimento acadêmico,
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FACETAS DO DIAMANTE
analisando as relações de poder envolvidas no uso destes
dois saberes.
Tal conceituação, opondo-se a uma visão etnocêntrica com
que muitas vezes as culturas populares têm sido tratadas, busca
articular as perspectivas relativistas e legitimistas no exame das
práticas matemáticas dos grupos socialmente subordinados. Em
efeito, como tenho argumentado em outros textos (1997), tenho
buscado incorporar no trabalho pedagógico a interpretação e
decodificação dos conhecimentos nativos, enfatizando sua
coerência interna, buscando descrevê-los não sob um ponto de vista
externo ao contexto no qual são produzidos, de modo que seus
valores e códigos, que lhes dão sentido, e, por sua vez, dão
significado aos seus modos de matematizar possam ser descritos
dentro de sua própria lógica. Neste sentido, o que venho
desenvolvendo dentro do campo etnomatemático alinha-se com uma
perspectiva relativista das culturas populares. No entanto, tenho
estado atenta para evitar um exacerbado relativismo que acabaria
por produzir o que Grignon e Passeron (1992) com propriedade
chamou de “guetização dos grupos subordinados”. No caso do MST,
um movimento social cuja ação está em permanente relação com os
grupos dominantes, este processo de guetização seria posto em ação
se o processo pedagógico ficasse restrito à recuperação de seus
saberes nativos, levando a uma possível glorificação destes saberes,
e consequentemente, a um reforço das desigualdades sociais. É para
evitar este tipo de operação que a perspectiva legitimista é
incorporada ao trabalho pedagógico. Trata-se de examinar as
diferenças culturais não somente do ponto de vista antropológico,
mas de buscar compreendê-las sociologicamente, naquilo que as
diferenças se constituem em desigualdades. É neste sentido que o
trabalho pedagógico como proposto na conceituação acima examina
as relações de poder produzidas no confronto entre a cultura popular,
aqui entendida como os saberes matemáticos nativos, e a cultura
legitimada socialmente, aqui representada pela Matemática
acadêmica.2 Em síntese, essas foram as teorizações que estavam
presentes na conceituação de abordagem etnomatemática com a qual
vinha até recentemente realizando meus trabalhos de Educação
Matemática junto ao MST. Tal conceituação foi sendo ampliada
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FACETAS DO DIAMANTE
quando, a partir de 1996, iniciei um novo projeto de pesquisa junto
ao MST. Nele, a centralidade da discussão das relações de poder
permaneceu, mas agora são analisadas no trabalho pedagógico onde
diferentes saberes nativos interagem ao mesmo tempo que se
confrontam com os saberes técnicos, em um processo que não toma
os primeiros somente como ponto de partida para a aquisição destes
últimos. Assim, novos elementos passam a integrar o que chamo de
abordagem etnomatemática. O primeiro deles diz respeito às
relações de poder. Antes, estas eram examinadas do ponto de vista
externo, isto é, quando saberes populares interagiam com os
acadêmicos, numa operação que buscava articular as perspectivas
relativistas e legitimistas; agora, examino as relações de poder
também do ponto de vista interno, buscando problematizar aquilo
que com propriedade Skovsmose e Vithal (1997) apontavam como
uma das fragilidades da produção Etnomatemática. Diziam os
autores (p. 11):
As práticas etnomatemáticas, geradas por um particular
grupo cultural, não são somente o resultado de interações
com o meio natural e social, mas com relações de poder
que se dão entre e dentro do grupo cultural. Os estudos
etnomatemáticos têm demonstrado como se dão as
interações da Matemática acadêmica eurocêntrica e a
Matemática de grupos culturais identificáveis, mas não
têm analisado com a mesma intensidade as relações de
poder que ocorrem dentro de um grupo cultural
identificável.
São tais relações de poder que agora também passam a ser
objeto de análise em minha formulação de abordagem
etnomatemática. Esta, passa a incorporar um segundo elemento,
antes ausente enquanto objeto de estudo: a análise das relações de
poder que são instituídas na interação dos saberes nativos com o uso
de tecnologias. Mais precisamente, trata-se de examinar as
repercussões de um trabalho educativo que, ao mesmo tempo que
está atento para as produções cujas práticas não envolvem o uso de
tecnologias (como as que venho denominando Matemática Popular
(Knijnik, 1997a, b)), incorpora em suas análises aquelas que são
produzidas pela apropriação de recursos tecnológicos
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FACETAS DO DIAMANTE
contemporâneos. A introdução da dimensão da tecnocultura (como
conceituada por Skovsmose e Vithal, 1997) na perspectiva
etnomatemática teve como fontes inspiradoras duas matrizes que,
originadas em “lugares” muito distintos, acabaram por mutuamente
se reforçar.
A primeira matriz situa-se no plano do debate acadêmico
etnomatemático. Autores como Skovsmose e Vithal (1997)
argumentam sobre a operação de “guetização” que é posta em ação
pela Etnomatemática, quando esta fica restrita unicamente aos
estudos dos saberes “nativos” dos diferentes grupos culturais e que,
neste sentido, a Etnomatemática acabaria por se constituir em uma
abordagem antes de tudo reforçadora das desigualdades sociais. A
Etnomatemática, segundo esta argumentação, trata das conexões
entre cultura e Matemática, entre “práticas cotidianas” e currículo
escolar, circunscrevendo tais conexões a uma cultura
exclusivamente “local” e a um cotidiano exclusivamente entendido
enquanto experiência vivenciada na concretude material, imediata,
presente, estreitamente configurada por esta dimensão “local”.
A segunda matriz inspiradora da incorporação da dimensão
da tecnocultura no que denomino de uma abordagem
etnomatemática surgiu em 1996 com a criação do projeto “Lumiar”
— uma ação conjunta do MST e o Instituto de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA). A partir desta ocasião, novos atores
sociais passaram a participar da vida dos assentamentos, com a
implantação de assessoria técnica especializada às famílias
agricultoras, um processo cujas dimensões educativas estão
colocadas também na esfera da escolarização de seus jovens e
crianças. A presença do conhecimento técnico em comunidades que
até então vinham produzindo de modo artesanal, sem nenhuma
orientação técnica, está produzindo repercussões em diferentes
esferas da vida dos assentamentos. Que repercussões serão estas?
Quais seus efeitos em termos de relações de poder? Como se dará o
“encontro” (ou “desencontro”) deste mundo, antes marcado pelos
saberes populares, com o mundo da ciência e da tecnologia? Como
as escolas de assentamento participam deste processo? Que efeitos
tal participação terá no currículo escolar? Neste cenário — marcado
21
FACETAS DO DIAMANTE
até então exclusivamente por saberes populares, que agora passam
a se confrontar concretamente com a tecnologia e os saberes
técnicos — tais questões se configuram férteis do ponto de vista
teórico, ampliando a abordagem etnomatemática que venho
construir.
Tal abordagem tem estreita conexões com o campo dos
Estudos Culturais. Primeiramente, pelo caráter de intervenção
cultural e política do trabalho que realizo junto ao MST. Neste
sentido, a própria análise que desenvolvo tem a intenção de se
constituir em uma intervenção política. Como afirma Lawrence
Grossberg (1993, p. 90):
Os estudos culturais um conjunto de abordagens que
estão atentas para compreender e intervir nas relações
entre cultura e poder, mas a relação particular entre
teoria e contexto nos Estudos Culturais é igualmente
central para sua definição. Os Estudos Culturais não
aplicam teoria como se as respostas pudessem ser
conhecidas a priori, nem é empirismo sem teoria. (...)
Mais ainda, o campo dos Estudos Culturais está
comprometido com a contestação, tanto como um fato da
realidade (embora não necessariamente em cada
instante), como uma prática estratégica em si mesma.
A abordagem etnomatemática, assim como provisoriamente
a estou formulando, tem pontos de interseção com o campo dos
Estudos Culturais também porque tenho tomado como ponto de
partida para a análise o cotidiano escolar de uma comunidade
formada por trabalhadores rurais integrantes de um movimento
social, tomando como premissa de que este grupo não é um todo
homogêneo. Assim, “mais do que tratar grupos minoritários como
entidades homogêneas, destacamos os interesses, necessidades e
desejos contraditórios que informam seu comportamento político,
cultural e educacional” (McCarthy e Crichlow, 1993, p. xix). Por
último, a referida abordagem etnomatemática conecta-se com a área
dos Estudos Culturais na medida em que tomo como objeto de
investigação um processo no qual eu mesma estou envolvida, e,
concomitantemente, realizo um esforço para produzir um
22
FACETAS DO DIAMANTE
distanciamento que me permita analisar práticas nas quais eu própria
sou participante.
O debate sobre a Etnomatemática hoje ganha visibilidade
internacional. Há exigências cada vez de maior vulto para que a
mesma seja inquirida, problematizada. Não na busca da “verdade”
verdadeira, instância última onde será decidido, afinal, o que é “o
bem” e “o mal” no campo da Etnomatemática. O que está em jogo
é o debate acadêmico que nos aponte para suas possibilidades e
limitações. Para que isto possa ser posto em ação, é preciso que
sejam construídas experiências pedagógicas concretas — que nos
ofereçam material empírico para reflexão e novas teorizações que
possibilitem alimentar a discussão. A próxima seção deste ensaio
propõe-se a contribuir nesta direção.

CAMINHOS DA PESQUISA EMPÍRICA

Os projetos que tenho desenvolvido junto ao MST têm se


constituído em material empírico de pesquisa. A coleta deste
material tem envolvido procedimentos e método que buscam
compatibilizar técnicas etnográficas, tais como observação direta e
participante, entrevistas e diário de campo, com um processo
pedagógico específico na área da Matemática, orientado na
perspectiva da Etnomatemática. O projeto a que este artigo se refere
vem se desenvolvendo em uma escola do assentamento de Itapuí,
distante 43 km de Porto Alegre.
A escola possui aproximadamente 150 alunos, distribuídos
em 9 turmas, de pré-escola a 8a série. Após um período de
restruturação do corpo docente— consequência de uma “ocupação”
realizada pela comunidade escolar à delegacia de ensino a qual a
escola está vinculada e de uma greve da categoria, em nível estadual
— presentemente atuam na escola 11 professores. Entre estes há
integrantes do MST e professoras/es “de fora”, nomenclatura
utilizada pelo grupo para caracterizar aqueles que, não pertencendo
ao Movimento, exercem suas atividades docentes em escolas de
assentamento. Ainda que seja uma instituição estadual, portanto
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FACETAS DO DIAMANTE
diretamente vinculada, do ponto de vista curricular e administrativo,
às diretrizes da Secretaria de Educação do estado, há uma relativa
autonomia no direcionamento do trabalho pedagógico que ali se
realiza, fortemente influenciado pela proposta educacional do Setor
de Educação do MST.3
Essa proposta, sendo construída para um movimento social,
a partir deste mesmo movimento, sob muitos aspectos, tem
contribuído significativamente para a trajetória da Educação dos
grupos socialmente subordinados do país (Knijnik, 1998). Seu
processo de elaboração está apoiado em um conjunto de princípios
pedagógicos,4 dos quais três são particularmente relevantes para o
presente projeto: “A realidade como base da produção do
conhecimento”, “Vínculo orgânico entre processos educativos e
processos econômicos” e “Vínculo orgânico entre educação e
cultura”. A discussão sobre a relevância do resgate dos saberes
populares, que tem resultado muitas vezes no chavão-pedagógico:
“partir da realidade”, hoje se coloca em um outro patamar nos
documentos oficiais do MST, como o argumento que segue bem o
demonstra:
O que não podemos perder de vista é o objetivo maior de
tudo isso e que diz respeito não a um simples resgatar da
chamada cultura popular, mas principalmente ao
produzir uma nova cultura; uma “cultura de mudança”,
que tem o passado como referência, o presente como a
vivência que ao mesmo tempo que pode ser plena em si
mesma, é também antecipação do futuro, nosso projeto
utópico, nosso horizonte. (MST, 1996, p. 19.)
Aqui fica claramente explicitado o entendimento que hoje
está sendo dado ao conceito de “realidade” e de “cultura” também
no âmbito do MST. O princípio pedagógico de “Tomar como base
a realidade” traz consigo a concepção de que a tecnocultura
necessariamente deverá ser objeto de estudo no trabalho pedagógico,
ou como reflexão e aprendizagem da realidade imediata presente, ou
anunciando um futuro que está sendo construído. Há, evidentemente,
uma tensão entre este presente carregado de passado e um futuro que
precisa ser “apressado”, pois, como argumentou um agricultor, ao
24
FACETAS DO DIAMANTE
se referir à necessidade dos avanços tecnológicos: “Há uma urgência
histórica”.
Esta “urgência” tem sido atendida em um ritmo desigual no
país. Em efeito, os princípios pedagógicos do MST têm se
constituído, até hoje, em diretrizes para o trabalho que se desenvolve
em suas escolas, diretrizes estas que têm sido incorporadas de modo
bastante heterogêneo nas diferentes instâncias educativas do
Movimento, mais se configurando como uma tendência pedagógica
do que propriamente um conjunto realizado de princípios. Frente à
necessidade de que sua proposta de Educação possa ser melhor
acompanhada nas mais longínquas regiões do país, ao mesmo tempo
que se efetive sua qualificação, estão sendo implementadas ações
envolvendo Universidades e os coletivos de Educação do MST. A
realização do projeto que a seguir descrevo e analiso se constitui em
uma de tais ações.

“UM BOI FORA DA CANGA PODE MELHOR SE LAMBER”:


O PERFIL DAS DÍVIDAS E O PLANEJAMENTO DA PRODUÇÃO

Nestes últimos anos, tem havido uma crescente


preocupação dentro do MST com seus jovens, frente à constatação
de que muitos deles estão buscando alternativas culturais e laborais
na cidade, distanciando-se, assim, das lutas específicas do
Movimento. Em efeito, esta “segunda geração” de sem-terra, filhos
daqueles que estiveram anos a fio vivendo em lonas nos
acampamentos, que desde crianças aprenderam a dureza da luta,
agora, que veem suas necessidades materiais razoavelmente
satisfeitas, pressionam por novas possibilidades de trabalho e lazer.
A mídia os seduz com os encantos da cidade e os sonhos de consumo
e a escola tradicional, com suas raízes no urbano, com seu
silenciamento sobre o campo, reforça este sentimento de que a única
saída é migrar para a cidade. É neste contexto que o MST tem
buscado implementar projetos envolvendo os jovens dos
assentamentos em um processo que produz novas formas de viver e
significar o rural e a luta pela terra.
25
FACETAS DO DIAMANTE
Foram estas as inspirações que estiveram na base do projeto
que passou a se desenvolver no assentamento de Itapuí com alunos
da 7ª série do ensino fundamental, envolvendo, desde sua concepção,
uma ação conjunta de peasants, alunos, professores e técnicos
(agrônomos e veterinários) do projeto Lumiar na construção de um
trabalho pedagógico na área da Matemática, centrado nas atividades
produtivas do assentamento. Tais atividades estão organizadas por
grupos de peasants, que de forma coletiva executam todas as etapas
da produção, desde seu planejamento até sua comercialização.
Inicialmente, os estudantes (orientados pelo agrônomo e
pelas professoras) analisaram os projetos e contratos anteriores de
financiamento bancário de cada grupo de assentados, para
configurar o perfil da dívida de cada um. Isto se constituiu em uma
primeira oportunidade de estes jovens terem em mãos documentos
oficiais que, para serem analisados na sua complexidade, exigiram
a compreensão de dinâmicas da área de Matemática Financeira e
ferramentas matemáticas antes desconhecidas, como juros
compostos. O perfil da dívida, produzida a partir da análise dos
contratos foi apresentada em reuniões com cada um dos grupos de
assentados. Para os agricultores (muitos dos quais analfabetos e, em
sua grande maioria, com uma escolarização não superior a 4 anos),
esta foi a primeira vez em que tiveram acesso não só ao valor final
a ser pago ao banco, mas ao detalhamento (mesmo que simplificado)
que produziu tal resultado.
As reuniões de discussão sobre o perfil da dívida forneceram
os elementos necessários para que cada um dos grupos pudesse
planejar a produção que iria desenvolver, tendo como parâmetros
sua capacidade de pagamento. Houve situações difíceis, em que foi
constatado que não havia como saldar as dívidas passadas. Um
grupo, por exemplo, frente ao que foi apontado pelos jovens, decidiu
se desfazer do caminhão com o qual realizava o escoamento da
produção; um outro, questionou as vantagens e a viabilidade de
solicitar um novo crédito para custeio da safra (mesmo que este
fosse realizado com juros relativamente baixos), pois, como
explicou um assentado “é muito melhor se soltar, porque um boi fora
da canga pode melhor se lamber”.
26
FACETAS DO DIAMANTE
A participação dos jovens nessas reuniões teve efeitos na
vida do assentamento. O primeiro deles refere-se à participação das
mulheres, que, antes ausentes das discussões coletivas dos grupos,
passaram a integrá-las. Uma segunda repercussão diz respeito à
qualificação do planejamento da produção do assentamento. Em
efeito, o trabalho pedagógico que foi sendo construído (desde as
análises iniciais sobre os contratos até sua discussão com a
comunidade), ao mesmo tempo que propiciou o aprendizado situado
(no sentido dado por Lave, 1988) de novas ferramentas matemáticas,
favoreceu uma discussão mais qualificada sobre os aspectos
financeiros da atividade do assentamento. Esta qualificação teve
como elemento central a incorporação no trabalho pedagógico da
tecnocultura, aqui entendida como o uso de calculadoras e processos
mais sofisticados de planejamento, antes desconhecidos pelos
jovens. Tal abordagem educativa possibilitou, também, que novas
decisões sobre a produção fossem tomadas, integrando os jovens no
mundo laboral de suas famílias. Como disse uma menina, ao se
referir a seu pai: “Eu nunca conversei com ele sobre isto. Só agora
é que eu vim me interessar pelo que está se passando com a gente.”
Este interesse foi valorizado pelos adultos, que estão cientes da
importância da nova geração participar mais ativamente no processo
produtivo. Tal participação está diretamente relacionada com a
Educação que ser realiza nas escolas de assentamento, em particular,
na dimensão de sua Educação Matemática.

TRADIÇÕES E TRADUÇÕES NA PLANTAÇÃO DE ARROZ

A primeira etapa do projeto, centrada na discussão do perfil


da dívida de cada grupo do assentamento, serviu como fonte
desencadeadora de outras etapas. Cada uma delas envolveu a
problematização da produção de uma cultura específica, que foi
analisada sob múltiplas dimensões. No processo de análise foi sendo
construído um trabalho pedagógico na perspectiva da
Etnomatemática. Isto foi o que ocorreu, por exemplo, a partir de uma
reunião do agrônomo, alunos e professores realizada com os
assentados do “Grupo do arroz”. Este grupo é composto por
27
FACETAS DO DIAMANTE
peasants (oriundos de uma região distante daquela onde hoje estão
estabelecidos, na qual há a predominância do cultivo de soja, milho
e feijão) e por antigos empregados da fazenda que, após ser
desapropriada pelo estado, deu origem ao assentamento de Itapuí. A
terra, por suas características, é própria para o cultivo do arroz, que
é, de fato, sua atividade agrícola principal. Assim, há no grupo
mulheres e homens para os quais a produção de arroz faz parte de
suas trajetórias de vida e aqueles para os quais a mesma se constituiu
em um elemento estranho, com o qual ainda lidam com dificuldade.
Como explicou Seu Arnoldo: “Eu sou lá de fora, estou aqui há dez
anos mas ainda não peguei o ritmo.” A presença do agrônomo do
projeto Lumiar no assentamento e o trabalho pedagógico que está
sendo desenvolvido buscam entender este ritmo ao qual o agricultor
se refere, buscando acelerá-lo, através da qualificação técnica.
No primeiro encontro organizado com o grupo de assentados
para planejar o plantio do arroz (do qual participaram os alunos e
professores), uma das questões inicialmente levantadas pelo
agrônomo dizia respeito à extensão de terra que seria cultivada.
Efetivamente, este dado seria determinante na definição do restante
do planejamento. Um assentado sugeriu que poderia ser plantado 30
quadras, outro mostrou a possibilidade de cultivar “até uma colônia”.
Ao escutar estas expressões, um dos alunos interrompeu a discussão
para indagar sobre quantas quadras havia em uma colônia. O
assentado respondeu: “Olha, eu entendo por quadras, eles por
colônia”. O diálogo teve continuidade:
Técnico: Uma quadra é 1,7 ha, 17424 metros.
Seu Hélio (assentado): Isto é por metro, agora por braça
é 3.600 braças.
Marcio (aluno): O que que é braça seu Hélio?
Seu Helio: Uma braça é 2 metros e 20 ... é uma braça,
entendeu? Faz uma conta: cuba aí ó, cuba aí ó ... 60
braças assim ó, as quatro faixas aqui ó, 60 lá, aqui, 60,
60, 60, 60, pra ver como dá uma quadra aí, dá certinho
os 3.600.5
28
FACETAS DO DIAMANTE
Em um primeiro momento, aparentemente as respostas
dadas pelo técnico e pelo assentado foram suficientes para os jovens.
Mas, ao voltar para a sala de aula, as explicações se mostraram
insatisfatórias, exigindo um estudo mais detalhado. A discussão
iniciou com a fala do técnico, explicando que na plantação do arroz,
predominantemente, os peasants lidam com a quadra; há, ainda,
aqueles que utilizam a “colônia” ou o “lote” como medida, mas ele
“faz tudo em hectare, para não se perder”, pois os contratos de
financiamento bancário são em hectare. Algumas questões estavam
colocadas: Que tipo de tradução está sendo posta em ação quando a
quadra é expressa por hectare ou por braças? Como a colônia é
traduzida em quadra? E como ambas se conectam com o hectare?
Como se estabelecem pontes e shifts entre tais saberes? Quais os
efeitos, em termos de relações de poder, de tais processos de
tradução que ocorrem no grupo do Arroz e na comunidade?
O trabalho pedagógico buscou problematizar tais questões.
Não se tratava de realizar traduções que se restringissem a
equivalências numéricas, reduzindo o estudo à demonstração de que
se uma braça vale 2,2 metros, então 60 braças são 132 metros, e,
portanto, uma quadra vale 17424 metros quadrados, ou, 1,7424 ha.
Uma abordagem que se restringisse a este tipo de operação estaria
exatamente reduzindo todo o trabalho à Matemática acadêmica
formal, na qual, como Walkerdine (1988, p. 96) argumenta, “a
prática opera pela supressão de todos os aspectos de significados
múltiplos”. Seguindo esta autora, eu enfatizo que “a posição que
tenho adotado é que o mundo objetivo não pode ser conhecido fora
das relações de significado na qual os objetos estão inscritos.”
(Walkerdine, 1988, p. 119.)
No assentamento de Itapuí, tais relações de significado são
produzidas em um processo onde diferentes tradições culturais se
encontram e se confrontam, lembrando aquilo que Stuart Hall bem
caracterizou como um movimento de oscilação entre tradição e
tradução. Para o autor, o conceito de tradução
descreve aquelas formações de identidade que
atravessam e intersectam as fronteiras naturais,
compostas por pessoas que foram dispersas para sempre
29
FACETAS DO DIAMANTE
de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos
com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a
ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a
negociar com as novas culturas em que vivem, sem
simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder
completamente suas identidades. Elas carregam os
traços das culturas, das tradições, das linguagens e das
histórias particulares pelas quais foram marcadas.
(HALL, 1997, p. 96)
Entre esses traços, está o uso de medidas de superfície
específicas, expressas a partir de unidades também específicas,
cujos significados são culturalmente construídos. A história da
imposição de um padrão de medida de superfície não foi resultado
de um consenso produzido por sua supremacia de precisão,
tampouco pelos argumentos de universalização. Ao contrário,
exemplos de rebeliões populares como a que ficou conhecida como
“Revolta dos Quilos”, ocorrida em 1871, no Brasil (Souto Maior,
1978), quando da implantação do sistema métrico francês no país,
evidenciam a rebeldia dos grupos colonizados e algumas de suas
formas de resistência. Esta parte da História das lutas populares do
país, usualmente silenciadas no currículo escolar, estive presente no
trabalho desenvolvido em Itapuí, possibilitando a construção de
pontes entre a História (da Matemática) e a perspectiva da
Etnomatemática. O passado e o presente foram compreendidos
como cultura,
o lugar de luta para definir como a vida é vivida e
experienciada, uma luta que se realiza nas formas
discursivas disponíveis para nós. As práticas culturais
articulam os significados de práticas e eventos sociais;
elas definem os modos que nós damos sentido a eles,
como os mesmos são experienciados e vividos.
(GROSSBERG 1996, p. 158.)
As práticas culturais presentes e passadas foram examinadas
nas dimensões do conflito, da luta por imposição de significados,
em uma dinâmica em que saberes não oficiais, vocalizados pelos
peasants vindos de diferentes regiões do estado, cujas experiências
de vida são marcadas por diferentes tradições, foram recuperados e
confrontados entre si e nas suas relações com os saberes dominantes,
30
FACETAS DO DIAMANTE
vocalizados pelo agrônomo. Neste processo, as tradições (quadra,
braça, hectare e colônia) foram também traduzidas.

“UMA EDUCAÇÃO QUE MEXE COM AS TRIPAS DAS PESSOAS”

O projeto iniciado em 1996 no assentamento de Itapuí,


orientado na perspectiva da Etnomatemática, tem apontado para
algumas questões que possivelmente podem ser relevantes em
outros contextos sociais. Agricultores, alunos, professores e
técnicos estão experienciando a construção de um processo
educativo onde saberes locais e mais globais interagem, onde
conhecimentos nativos e técnicos são confrontados e incorporados,
em uma dinâmica onde a escola não está voltada para dentro de si,
dando às costas para a comunidade da qual faz parte. Ao contrário,
o trabalho pedagógico tem transbordado os limites da escola,
extrapolado suas fronteiras, produzindo o duplo movimento de fazer
penetrar a vida da comunidade na escola, e, concomitantemente,
propiciar que o conhecimento que se produza neste processo, espirre
para fora do espaço escolar.
O que esteve em jogo, na concretização deste duplo
movimento foi a construção de um trabalho etnomatemático que não
se restringisse estritamente ao âmbito escolar, e acabasse por se
constituir, antes de mais nada, em uma perspectiva que reforçasse
unicamente os modos hegemônicos de aprender e ensinar
Matemática, marcados pela cultura ocidental, branca, urbana e
masculina (Knijnik, 1997a).
Uma tal perspectiva contrapõe-se aos argumentos
apresentados por Nick Taylor (1993) em sua crítica à
Etnomatemática, elaborados a partir das teorizações de Valerie
Walkerdine. Em efeito, Taylor identifica o “dilema da
Etnomatemática” precisamente na abordagem dada pela autora na
discussão sobre contexto e transferência. Diz ele, criticando-a:
O objetivo final, em trabalhar a partir de um pedaço
específico de saber local — uma manifestação
metafórica — para o princípio metonímico subjacente, é
31
FACETAS DO DIAMANTE
a Matemática formal. É difícil enquadrar este princípio
teleológico com o ataque devastador de Walkerdine
sobre o papel da Matemática formal como um
mecanismo central da modernidade. É difícil reconciliar
a conexão que ela faz entre elementos metafóricos e
metonímicos do conhecimento com sua postulação sobre
a disjuntura entre “problemas de necessidades práticas e
materiais versus problemas de controle simbólico”.
(TAYLOR, 1993, p. 132.)
A abordagem dada ao trabalho pedagógico desenvolvido no
assentamento de Itapuí esteve centrada em problemas de
necessidades práticas e materiais. Tais problemas não foram
transmutados em problemas de controle simbólico, apontando para
outras possibilidades dentro do campo da Etnomatemática,
principalmente na Educação Matemática que se realiza junto a
movimentos sociais como o MST. Uma Educação Matemática que
faça diferença na vida das pessoas, que se integre visceralmente em
seu mundo. Como disse um veterinário do projeto Lumiar ao se
referir ao que estamos desenvolvendo em Itapuí: “uma Educação
que mexe com as tripas das pessoas”
A conexão entre a luta pela terra e a perspectiva da
Etnomatemática é mediada pela dimensão do social, do cultural e do
político. A Etnomatemática encontra sua expressão mais relevante
quando expõe seu engajamento social, quando trata questões
culturais como elementos não-exóticos, quando se vincula aos
interesses dos grupos sociais que, ao longo da história, têm sido
marginalizados e excluídos.

NOTAS
1. Ao me referir à Etnomatemática, nesta abordagem inicial ao tema, explico-a
através do que hoje já é considerada como sua “conceituação” clássica:
(...) etno se refere a grupos culturais identificáveis, como
por exemplo sociedades nacionais-tribais, grupos
sindicais e profissionais, crianças de uma certa faixa
etária, etc., e inclui memória cultural, códigos, símbolos,
mitos, e maneiras específicas de raciocinar e inferir. Do
mesmo modo a Matemática também é encarada de forma
32
FACETAS DO DIAMANTE
mais ampla que inclui contar, medir, fazer contas,
classificar, ordenar, inferir e modelar. (D'AMBROSIO,
1990, p. 17-18.)
É preciso enfatizar que o uso da expressão “conceituação” clássica não quer
se constituir em um elemento que de uma vez por todas fixe o significado de
Etnomatemática. Se assim o fizesse, estaria contrapondo-me a uma concepção
não-essencialista de conhecimento que assumo, na qual não tem significado
indagar sobre “o que é, em definitivo, a Etnomatemática”, assim como não
cabe perguntar sobre qual a “essência” da Matemática.
2. Acompanhando autores como Grignon e Passeron (1992), tenho destacado
que a articulação entre as perspectivas relativistas e legitimistas de cultura não
é uma operação simples de ser posta em ação. No entanto, deixar de fazê-la
também é problemático.
3. Os documentos publicados pelo Setor de Educação do MST, em particular
seus Cadernos de Educação, apresentam de forma detalhada a referida
proposta. Uma análise da mesma está realizada em Knijnik (1997a).
4. São os seguintes os princípios pedagógicos da proposta educacional do MST:
Relação entre prática e teoria; Combinação
metodológica entre processos de ensino e de capacitação;
A realidade como base da produção do conhecimento;
Conteúdos formativos socialmente úteis; Educação para
o trabalho e pelo trabalho; Vínculo orgânico entre os
processos educativos e processos políticos; Vínculo
orgânico entre processos educativos e processos
econômicos; Vínculo orgânico entre educação e cultura;
Gestão democrática; Auto-organização dos estudantes;
Criação de coletivos pedagógicos e formação
permanente dos educadores; Atitude e habilidades de
pesquisa; Combinação entre processos pedagógicos
coletivos e individuais. (MST,1996, p. 23.)
5. O uso de medidas como braças no meio rural brasileiro tem sido examinado
por autores como Guida Abreu (1989) e Helena Oliveira (1997). Este último
trabalho analisa também do ponto de vista histórico a introdução do sistema
métrico francês no país, tendo sido utilizado no decorrer do trabalho
pedagógico do assentamento de Itapuí.
33
FACETAS DO DIAMANTE
REFERÊNCIAS

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Mathematics Education. In: NOSS, R., BROWN, A., e DRAKE, P.
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and Critique. Department of Mathematics, Statistics and
Computing, Institute of Education, University of London, 1990.
36
FACETAS DO DIAMANTE
37
FACETAS DO DIAMANTE

No hay tema más fundamental: la medida de magnitudes


es el punto de partida de todas las aplicaciones de la
matemática.
— H. Lebesgue (1931-35)

PROPOSICIONES PARA UN ESTUDIO


DINÁMICO DE LA MEDIDA

Carlos Sánchez Fernández


Concepción Valdés Castro

DECLARACIÓN DE PRO-POSICIONES

Cuando observamos la difícil situación del profesor de la


enseñanza media, obligado a repetir año tras año contenidos
expresados dogmáticamente en libros-texto, sin tiempo para
reflexionar en los rudimentos de una disciplina que tiene más de
4000 años y de la que desconoce casi todo lo que ha sido
desarrollado en los últimos dos siglos, pensamos en un problema
todavía abierto que es ¿cómo conseguir que la vida intelectual de
ese profesor no se separe de su oficio de educador y mucho menos
se oponga a ella? ¿Cómo lograr que sienta placer y satisfacción en
el proceso de enseñanza y, a la vez, sea eficiente en el cumplimiento
de su misión? ¿Cómo mostrar que existen incentivos intelectuales
más valiosos que otros intereses materiales, para enfrentar el desafío
de educar bien?
En las últimas décadas, procurando dar respuesta a estas
interrogantes, se ha pretendido conformar un nuevo paradigma
educacional basado fundamentalmente en la idea de construir el
38
FACETAS DO DIAMANTE
conocimiento en forma activa, en diálogo o en trabajo de grupos.
Este ha sido, a nuestro entender, un paso importante. Pero
consideramos que esto no es suficiente. Cualquier medio
pedagógico deviene en freno intelectual si enmascara el papel de la
inteligencia y sugiere que hacer o aplicar matemática es usar al pie
de la letra constructivista, una suerte de reglas, algoritmos o
fórmulas.
Independientemente del valor pedagógico de un método lo
que interesa es que los profesores y alumnos de enseñanza media
sientan la riqueza intelectual de la matemática y que la sientan con
alegría, desde una posición reflexiva.
Las ideas que vamos a exponer a continuación, están
dirigidas a los profesores de enseñanza media y a alumnos en
formación de profesores, lo importante no es que estos lectores
lleguen a la conclusión de que nuestros criterios son válidos o no, lo
que nos interesa es provocar una opinión reflexiva sobre el quehacer
cotidiano en la sala de clases.
Esta fuera de nuestras posibilidades presentar propuestas
para todo el inmenso catálogo matemático, escogemos el tema de la
medida y dentro de él el cálculo de áreas planas, por su universalidad
y simpleza, que nos permite consideraciones amplias vinculando
aspectos geométricos, aritméticos y algebraicos, de todos los niveles
educacionales.

EL PORQUÉ HISTÓRICO DEL TEMA DE LA MEDIDA

Nos parece que se comprende claramente el papel del


problema de la medida de magnitudes en el origen de la geometría.
La famosa historia de Heródoto (s. V a.C.) refleja esa razón
proporcional entre impuestos y propiedades agrícolas, afectadas
aleatoriamente por las crecidas del inestable Nilo. El faraón después
de medir las tierras, las distribuyó entre sus súbditos, quienes debían
pagar proporcionalmente. El río mudaba las fronteras y los
39
FACETAS DO DIAMANTE
harpedonautas determinaban, por medida, la extensión de la pérdida
reajustando los impuestos.
Quizás sea menos difundida la necesidad de medida surgida
en los primitivos ritos, en la construcción de altares, templos y
tumbas, para mantener buenas relaciones con dioses y parientes; tal
vez, no se haya observado el deseo de medir en las correspondencias
ingenuas entre pertenencias y piedras (cálculos). Aquí y allí, en
todas las antiguas civilizaciones, encontramos la necesidad de
aprender a medir, a ponderar justamente, a determinar unidades de
comparación, a comprender cuáles son las proporciones válidas, las
que reflejan mejor las relaciones cuantitativas entre las cosas y las
que son aceptables por la administración de los hombres. Así, medir
es semilla y fruto del natural deseo humano de aprender y
comprender las formas espaciales y las relaciones cuantitativas del
mundo real, es decir, aprender y comprender la matemática. El
camino de la comprensión humana de la matemática comenzó con
la necesidad de desarrollar la inteligencia del acto de medir. ¿Por
qué aprender a medir en matemática? ¿Qué significa, esencialmente,
medir para la matemática? Paso a paso, durante más de 40 siglos, la
colección de respuestas, ordenadas en forma de fórmulas y teoremas
ha ido creciendo incesantemente y, a la vez, ha ido aumentando el
deseo de comprender mejor lo esencial matemático de medir. De los
antiguos harpedonautas egipcios, a los sofisticados especialistas en
Geometría Métrica del siglo XX, pasando por los pioneros del
Cálculo Infinitesimal en el siglo XVII, en todos, siempre ha estado
presente un cierto dinamismo, la idea de medida como
representación de relaciones, de ligaciones y correspondencias, de
mudanzas y transformaciones. Es esto lo que consideramos esencial
en la comprensión histórica y actual del tema de la medida.

EL CÓMO EN EL ESTUDIO DE LA MEDIDA

Si concordamos en que lo más importante de la matemática


no es la colección de respuestas a sus problemas claves, sino la
comprensión de la importancia y significado de esos mismos
40
FACETAS DO DIAMANTE
problemas, podemos aceptar que el estudio de la medida no sea tanto
el aprendizaje de las fórmulas y recetas para medir como la
búsqueda de razones de por qué medir y para qué medir. Tal
búsqueda nos lleva a la idea dinámica de medida. Una idea dinámica
necesita para ser comprendida de un estudio dinámico. Dinámico
por basarse en la idea de variabilidad en el tiempo, de ahí la
importancia de lo histórico, dinámico por considerar el
conocimiento en continuo crecimiento, dialécticamente.
Para enseñar a construir el conocimiento que satisfará ese
deseo de comprender dinámicamente el tema de la medida, se
precisa no sólo de conocer las razones históricas de por qué y para
qué medir, sino también desarrollar habilidades apropiadas de
cálculo, estimación y resolución de problemas. Se precisa no sólo el
desarrollo de las ideas de forma y tamaño, sino también el desarrollo
del pensamiento algébrico, de la capacidad de comunicar en diseños,
gráficos, tablas, fórmulas, teoremas, esas ideas, y la comprensión de
la esencia de los problemas, que le permita convencerse de la
verosimilitud de las respuestas.
El profesor de enseñanza media tiene en el estudio de la
medida un campo fértil y rico para el desarrollo de todas estas
habilidades básicas que conforman la personalidad de un futuro
ciudadano útil, sin distinción a quien continúe o no estudios
universitarios, un ciudadano con la cultura matemática que requiere
el siglo XXI. Pero, no basta la voluntad de hacerlo, consideramos
que si pudiera hacerlo dinámicamente, sin aferrarse a libros de texto
cuidadosamente redactados para hacer de la clase una rutina tediosa,
si consiguiera imbricar en su plan de clase la dinámica de la historia
y la dinámica de la pedagogía actual, entonces, la clase se
transformaría en una verdadera fiesta intelectual, en la que no sólo
saldrían regocijados los alumnos, sino también, y por tanto, el
mismo profesor.
41
FACETAS DO DIAMANTE
EL PARA QUÉ NUESTRAS PROPUESTAS

Nuestros objetivos están limitados. Desarrollamos una


serie de actividades relacionadas con dos asuntos: las cuadraturas de
figuras planas y los problemas isoperimétricos con polígonos. Lo
que más importa no es el contenido en sí, el contenido sirve de
pretexto para ilustrar una forma de actuar en la clase. Pero el
contenido, por su riqueza y originalidad no acostumbrada en los
libros de texto, se presta a la experimentación, discusión y análisis
de diferentes estrategias de resolución de problemas, así como al
propósito de provocar la reflexión profunda.
Las cuadraturas, origen de las penurias en el cálculo de los
antiguos helenos, representan un campo de ideas que siendo simples
en su formulación y, en tanto, de su comprensión expositiva,
presentan una amplia y variada riqueza de confrontaciones con las
estrategias más comunes del pensamiento creativo. Su presentación
y tratamiento puede atemperarse a cualquiera de los niveles
educacionales. Nuestras proposiciones se refieren más al nivel
secundario.
Los problemas isoperimétricos, tan antiguos como las
cuadraturas, presentan un mayor grado de complejidad, tanto en la
formulación como en su tratamiento, que muchas veces reclama el
uso de razonamientos indirectos. Pero, al igual que las cuadraturas,
ambos son asuntos significativos por su importancia práctica, no del
tipo sofisticado y artificial que a veces se trata de inducir en los
libros de texto, sino de una clase actual, muy valorada (nos referimos,
por ejemplo, a la productiva teoría de la Medida Geométrica de solo
3 décadas de edad, y que ha recibido tantos lauros en eventos
internacionales [ver p. e. Simon (1983)] y que merecen ser
introducidas desde tempranas etapas en la cultura matemática.
Es nuestro criterio, expuesto a vuestras valoraciones críticas,
que ambos asuntos no aparecen con la debida fuerza en los libros de
texto, ni en enseñanza secundaria, ni en enseñanza universitaria.
Estos problemas, adecuadamente presentados y desarrollados,
pueden ayudar a comprender mejor algunas de las características
42
FACETAS DO DIAMANTE
actuales del estilo de pensamiento matemático, que es significativo
en las aplicaciones, es decir, la estimación, la optimización y la
algoritmización. Sirven también para interrelacionar temas y
métodos de la matemática de las magnitudes constantes (geometría,
trigonometría, aritmética y álgebra), con temas y métodos de la
matemática de las magnitudes variables (cálculo infinitesimal,
control optimal, teoría de funciones, por ejemplo) y esto es todavía
más importante para aquellos, que son mayoría, que no tendrán
contacto con cursos superiores de Matemática. Las cuadraturas y los
problemas isoperimétricos sin duda, sirven para ilustrar nuestras
proposiciones, sobre todo el enfoque dinámico de una enseñanza,
centrada en problemas, sirviéndose eficientemente de la historia
como fuente de asuntos generadores de acción intelectual.
En el texto a continuación se presentan algunas de las fuentes
históricas, el lector puede ampliar su cultura matemática con la
bibliografía señalada, que se relaciona al final. En letras cursivas se
indican las diferentes estrategias de resolución de problemas [ver p.
e. Schoenfeld (1985)]. a medida que se utilizan. A manera de
conclusiones exponemos sucintamente algunas extensiones de
nuestras proposiciones al caso tridimensional. Esperamos provocar
una actitud crítica y reflexiva del lector.

CUADRATURAS DE FIGURAS PLANAS

En la Grecia Antigua existía una gran fascinación por la


belleza, por la harmonía, por lo simple. En la Ciencia de esa época
puede observarse una tendencia a construir lo complejo a partir de
lo simple. Esto explica el por qué tenían gran interés en resolver los
problemas de construcción geométrica, utilizando solamente regla y
compás, los dos instrumentos asociados a las figuras geométricas
más sencillas: la recta y la circunferencia. Un tipo de problema que
investigaban era la cuadratura de figuras planas.
Para los helenos cuadrar una figura era construir con regla y
compás un cuadrado que tuviera la misma superficie que la figura
plana original, de esta forma la simplicidad del cuadrado se
43
FACETAS DO DIAMANTE
impondría a la complejidad de la figura. Consideremos el siguiente
problema:
Problema I. Cuadrar un polígono.
Este problema es de carácter un poco general, para
comprenderlo mejor, para experimentar con él es necesario
considerar casos particulares más sencillos y tratar después de
utilizar el método o el resultado. ¿Qué tipo de figura podemos
intentar en primer lugar? El polígono más cercano al cuadrado en la
forma es el rectángulo, luego es natural considerar en primer lugar:
Subproblema Ia. Cuadrar un rectángulo de lados a y b.
Una técnica muy usada en la resolución de problemas
matemáticos es suponer el problema resuelto. Así, sea c el lado del
cuadrado que tiene la misma área que el rectángulo, entonces
𝑐2 = 𝑎 ∙ 𝑏 (1)
Aquí la conducción de la actividad va a depender de si el
grupo tiene alguna experiencia previa en algunas construcciones
simples que pueden hacerse con regla y compás, como por ejemplo
construir una media proporcional, ya que (1) es equivalente a
𝑎 𝑐
=𝑏 (2)
𝑐

o sea, construir una media proporcional entre dos segmentos de


longitudes a y b.
Caso que la experiencia de los alumnos sea pobre o nula, el
profesor debe ser más sugestivo para lograr la comprensión de esta
alternativa. Formando el segmento suma ̅̅̅̅ AF = a+b, trazamos el
̅̅̅̅ y se prolonga BD
semicírculo de diámetro AF ̅̅̅̅ el lado del rectángulo
hasta interceptar el semicírculo en E:
44
FACETAS DO DIAMANTE

Entonces, el segmento buscado es ̅̅̅̅ EB ya que, de la


semejanza de los triángulos rectángulos AEB, BEF y AEF se
obtiene (2). Así que el lado del cuadrado es c = ̅̅̅̅
EB.
¿Cuál puede ser el problema siguiente a ser resuelto? ¿Cómo
podríamos utilizar el resultado obtenido? Las sugerencias pueden
encaminarse por dos vías: intentar con otros cuadriláteros
particulares o analizar el caso del triángulo. En el caso que se intente
con un paralelogramo, se podrá utilizar el resultado obtenido de
forma fácil.
Analicemos el polígono de menor número de lados, el
triángulo.
Subproblema Ib. Cuadrar un triángulo de base b y altura h.
¿Podremos utilizar el resultado obtenido en el problema Ia?
En este caso debemos buscar un segmento de longitud c tal que
𝑏ℎ ℎ
𝑐 2 = 2 = 𝑏 ∙ 2 y es fácil advertir que puede ser aplicada la

construcción anterior, a un rectángulo de lados b y 2. Obtenemos así
Resultado 1. Todo triángulo es cuadrable.
El próximo paso puede, naturalmente, ser
Subproblema Ic. Cuadrar un cuadrilátero arbitrario.
¿Cómo podríamos utilizar los resultados obtenidos? Un
cuadrilátero siempre puede reducirse a triángulos mediante el
trazado de una diagonal, por ejemplo, ̅̅̅̅
AC en la figura:
45
FACETAS DO DIAMANTE

En ese caso podemos aplicar a los triángulos ADC y ABC


los resultados de Ib y encontrar cuadrados de lados c y d con áreas
respectivamente iguales a la de cada uno de estos triángulos.
Para completar la solución del problema debemos resolver el
siguiente:
Problema Auxiliar. Cuadrar la figura formada por la unión de
dos cuadrados.
¿Cómo podemos reformular este problema?
Encontrar un cuadrado con área igual a 𝑐 2 + 𝑑 2 :

Podemos suponer que el cuadrado buscado tiene lado x.


¿Qué relación debe satisfacer x? 𝑥 2 = 𝑐 2 + 𝑑 2 . ¿Qué teorema
fundamental de la geometría recuerda esta relación? A partir de la
utilización del Teorema de Pitágoras, es claro que solo se necesita
46
FACETAS DO DIAMANTE
construir un triángulo rectángulo con catetos c y d y tendrá como
hipotenusa un segmento de longitud x, o sea, el lado del cuadrado
buscado.
Notas.
(l) El problema Ic también puede resolverse trazando una paralela
a ̅̅̅̅
AC por el punto B y construyendo el triángulo ADE que
tiene igual área que el cuadrilátero ABCD [Ver Wagner
(1993)]:

Observemos que ambas vías utilizan la técnica de reducir el


problema del cuadrilátero al triángulo.
(2) Los dos métodos son aplicables a cuadriláteros no convexos.
Retomemos el problema I. ¿Cuál será el próximo paso? Si
consideramos un pentágono ABCDE, observamos que las
diagonales ̅̅̅̅
AD y ̅̅̅̅
AC lo dividen en 3 triángulos. Podemos entonces
aplicar a cada uno la construcción del problema Ib y mediante la
doble aplicación, de la construcción del problema auxiliar podemos
cuadrar el pentágono.
No es difícil observar que este método es aplicable a un
polígono de n lados. Es necesario, en este caso trazar n-3 diagonales
que lo dividen en n-2 triángulos, aplicar a cada uno Ib y finalmente
aplicar reiteradamente el problema auxiliar.
También el método indicado en la Nota (l) puede ser
aplicado a un polígono de n lados para encontrar un polígono de n-
47
FACETAS DO DIAMANTE
1 lados con la misma área. Nótese que en este caso la estrategia
utilizada sería reducir las “dimensiones” del problema de forma
sucesiva:
Resultado 2. Todo polígono es cuadrable, para hacerlo basta
descomponer en triángulos.
¿Será posible la cuadratura de figuras limitadas por otros
tipos de líneas, no necesariamente rectas? Este es un problema
realmente difícil y cuya respuesta completa solo puede conseguirse
utilizando técnicas del Cálculo Integral. No obstante, tomando en
consideración esta meta general, podemos tratar de lograr objetivos
parciales más modestos. Una discusión de esta índole traerá a un
primer plano la cuadratura del círculo:
Problema II. Cuadrar un círculo de radio r.
Cuando estamos en presencia de un problema complejo, una
táctica recomendada es tratar de buscar, utilizando los datos del
problema algunas propiedades o relaciones que puedan facilitar el
posterior ataque del problema. Así procedieron los helenos,
predecesores de Arquímedes y el propio Arquímedes con el
problema II. ¿Cuáles son los datos? ¿Un círculo de radio r. ¿Qué
queremos encontrar? El área. Entonces podemos investigar el
problema:
Subproblema Ila. ¿Qué relación existe entre el área de un
círculo y su radio r?
Nótese que los círculos siempre tienen la misma forma (lo
que no ocurre con los triángulos, rectángulos y polígonos en general)
y que la única variación es su tamaño, dado por el radio. En otras
palabras, para pasar de un círculo a otro solo es necesario realizar
un cambio de escala, o sea una dilatación o contracción. En un plano
podemos cambiar la escala cambiando la unidad de medida en dos
direcciones mutuamente perpendiculares. Para conservar el círculo,
estos dos cambios deben ser iguales. Así, supongamos que
efectuamos una semejanza (usaremos esta palabra para indicar
indistintamente dilatación o contracción) de r unidades en las dos
direcciones perpendiculares. Es claro geométricamente que un
48
FACETAS DO DIAMANTE
círculo de radio 1 pasará a tener radio r. ¿Por qué? ¿Qué ocurrirá
con el área del círculo? Para analizar esta última pregunta podemos
realizar otra: ¿Qué ocurre en el caso que la figura sea un rectángulo,
un triángulo u otro polígono?
Para un rectángulo y un triángulo la respuesta es obvia: la
nueva área será r2 veces la anterior. Para un polígono general
también puede obtenerse esta misma respuesta con el método de
triangulación. Es interesante observar que la posición relativa de las
figuras y las direcciones de dilatación no ejerce ninguna influencia
en el resultado. ¿Y para el círculo? Es natural esperar una respuesta
dada por analogía: también la nueva área será r2 veces la original.
Pero ¿cómo podemos demostrar eso?
Aquí, con la guía acertada del profesor pueden discutirse
diferentes ideas que pueden conducir a dos enfoques: l) “aproximar”
el círculo por polígonos regulares; 2) utilizar como figuras
aproximantes polígonos contenidos en o continentes del círculo y
constituidos por la unión de los rectángulos formados por dos
familias de rectas paralelas y mutuamente perpendiculares:

Preferimos este segundo método, pues permite un análisis


similar con figuras más generales y puede ser objeto de
experimentación mediante el uso de papel cuadriculado. Denotemos
por F la figura curvilínea que deseamos analizar su área, P el
polígono contenido en F y Q el polígono que contiene a F. P está
formado por la unión de todos los rectángulos contenidos en F y Q
por aquellos que contienen a algún punto de F. Es claro que Área(P)
 Área(F)  Área(Q).
49
FACETAS DO DIAMANTE
Denotemos por F la figura obtenida después de una
semejanza de magnitud r. Entonces es claro de los análisis anteriores
que r2 Área(P)  Área(Fr)  r2 Área(Q) Como tanto el área de P,
como la de Q se acercan cada vez más a Área(F), cuando
disminuimos sucesivamente las dimensiones del cuadriculado se ve,
intuitivamente, que de forma inevitable r2 Área(F) = Área(Fr).
Denotemos por Ar el área de un círculo de radio r: ¿Qué
relación hay entre Ar y A1? ¿Y entre Ar y As? Llegaremos, entonces,
a la relación (obtenida por medios totalmente diferentes) que
aparece en los Elementos de Euclides:
Ar 𝑟 2𝑟
= (𝑠 )2 = (2𝑠 )2 (3)
As

¿Cómo podríamos utilizar este resultado? Aquí puede


plantearse a los alumnos el análisis de áreas de algunas figuras
limitadas por arcos de círculo, comparándolas con figuras de áreas
conocidas. Dos ejemplos particularmente interesantes son las
lúnulas estudiadas por Hipócrates de Quíos, donde es posible,
usando (3) y la propiedad aditiva del área relacionar el área de la
lúnula con la de otras figuras como triángulo, trapecio, semicírculos
[ver Bunt (1988)].
De (3) sigue inmediatamente que Ar = r2 Al, o sea, permite
reducir el problema II a cuadrar el área del círculo unidad. ¿Será esto
posible? Aquí después de despertar la curiosidad de los alumnos,
podemos contar algo sobre la larga e interesante historia del
problema de la cuadratura del círculo cuya respuesta definitiva solo
fue dada en la segunda mitad del siglo pasado y que no es posible
desarrollar utilizando métodos elementales [ver Eves (1995) o Bunt
(1988)].
Aun cuando el problema es irresoluble utilizando solamente
regla y compás como únicos instrumentos, eso no significa que no
sea posible, con ayuda de otras herramientas, encontrar un método
para cuadrar el círculo. Un resultado muy importante en la
consecución de este objetivo fue encontrado por Arquímedes y
relaciona el área del círculo y la longitud de la circunferencia. El
resultado dado por (3), así como su análogo para la longitud de la
50
FACETAS DO DIAMANTE
C 𝑟
circunferencia (Cr = 𝑠 ) aparecen ya en los Elementos de Euclides,
s
no obstante, no solo no se conocían los valores de las constantes de
proporcionalidad, sino que se desconocía si existía una relación
entre ellas. ¿Podremos encontrar una relación entre estas dos
constantes?
Subproblema IIb. Relacionar Ar y Cr.
¿Qué figuras de área y perímetro conocidos relacionadas con
el círculo y la circunferencia podríamos utilizar? ¿Tal vez polígonos
inscritos? ¿O circunscritos? Si inscribimos un triángulo en un
círculo y no es equilátero, tropezamos inmediatamente con serias
dificultades al intentar relacionar el área y el perímetro que son
fácilmente resueltas si el triángulo es equilátero. Esto indica que será
más cómodo intentar utilizar polígonos regulares donde mejor
podemos relacionar sus elementos al radio del círculo. Esta
trayectoria en la resolución del subproblema IIb coincide con la
desarrollada por Arquímedes. Así que estamos ante:
Subproblema IIc. Relacionar el área y el perímetro de un
polígono regular inscrito (o circunscrito) en un círculo de radio r.
Denotemos por Qnl, Qn2 los polígonos de n lados inscritos y
circunscritos respectivamente y A(Qni) y P(Qni), i = 1, 2, sus áreas y
perímetros. Entonces podemos obtener, mediante la división en n
triángulos congruentes:
ℎ𝑛
A(𝑄𝑛1 ) = 𝑛𝑏𝑛 = P(𝑄𝑛1 )ℎ𝑛
2

y
𝑟
A(𝑄𝑛2 ) = 2 P(𝑄𝑛2 ) . (4)
51
FACETAS DO DIAMANTE

Por otra parte, A(Qni)  Ar A(Qn2).


Observemos que cuando n es muy grande los polígonos
“tienden” cada vez más a confundirse con la circunferencia y que
por tanto sus áreas estarán tan cerca como se desee del área del
círculo. Análogamente, el perímetro de los polígonos estaría
también próximo a la longitud de la circunferencia. Siempre
haciendo uso de la figura, se observa que hn se “acercara
indefinidamente” al radio del círculo, luego debe cumplirse
Resultado 3. Ar = Cr. (5)
El área del círculo es igual a la de un triángulo con base dada
por la longitud de la circunferencia y altura igual a su radio.
¿Significa esto que hemos logrado cuadrar el círculo?
La respuesta sería afirmativa si fuéramos capaces de
construir un segmento de longitud C. Esto es lo que se conoce como
“rectificación de la circunferencia”. Ciertamente no hemos cuadrado
el círculo, pero hemos encontrado una relación entre dos problemas
geométricos teórica y prácticamente importantes: la cuadratura del
círculo y la rectificación de la circunferencia:
Resultado 4. Si denotamos Al = , entonces Ar = r2 y Cr = 2r.
De donde son inmediatas las fórmulas conocidas para el área
del círculo y la longitud de la circunferencia.
Este método de aproximar el círculo por polígonos regulares
inscritos y circunscritos desarrollado por Arquímedes fue
perfeccionada por muchos otros seguidores, lográndose
estimaciones muy buenas del número  [ver Eves (1995) o Bailey
(1997)].
52
FACETAS DO DIAMANTE
Notas.
(l) Es interesante comentar que la “imposibilidad” de cuadrar el
círculo con regla y compás (lo cual ahora sabemos demostrar)
motivó a los matemáticos a desarrollar múltiples métodos para
lograrla, bien en forma aproximada, bien utilizando otros
instrumentos. Aquí se puede, por ejemplo, (en dependencia de
la preparación de los alumnos) definir la espiral de
Arquímedes y plantear el problema de cómo puede ser
utilizada para encontrar un segmento de longitud  [ver Eves
(1995) o Bunt (1988)].
(2) Los razonamientos anteriores pueden alcanzar un grado de
rigor mayor si utilizamos, como Arquímedes, el método de
exhaución. Como este método contiene una doble reducción
al absurdo no consideramos que sea un razonamiento
adecuado para utilizar en cursos de formación básica.
(3) En el subproblema IIa analizamos la relación entre las áreas
de figuras cuando se producía una dilatación de la misma
cantidad en dos direcciones mutuamente perpendiculares.
¿Qué ocurrirá con el área de una figura si dilatamos una
cantidad diferente en cada una de las direcciones elegidas?
¿En qué se transforma una circunferencia unidad cuando se
realiza una transformación de dilatación de a unidades en la
dirección horizontal y b en la vertical? ¿Cuál será el área de
esta figura? En grupos avanzados podría compararse esta idea
con el Principio de Cavalieri.

PROBLEMAS ISOPERIMÉTRICOS CON POLÍGONOS

Problema. Dado un conjunto de figuras planas con igual perímetro


encontrar aquella que encierra un área mayor.
Este problema, así enunciado, tiene un carácter muy general
y su dificultad va a depender fundamentalmente del conjunto de
figuras considerado. Como todo problema de optimización, incluye
relaciones de desigualdad, por tanto podemos comenzar
53
FACETAS DO DIAMANTE
experimentando para encontrar relaciones de desigualdad entre las
áreas y perímetros de figuras sencillas. ¿Qué tipo de figuras son las
más simples? Por ejemplo, el análisis de rectángulos conduce a
situaciones como las mostradas en la tabla siguiente donde a y b
denotan los lados del rectángulo y A y P sus área y perímetro
respectivamente:

a b A P
R1 1 4 4 10
R2 2 3 6 10
R3 3 5 15 16
R4 2 7 14 18.

Observe que los rectángulos R1 y R2 tienen el mismo


perímetro, no obstante A(R1) < A(R2). Por otra parte, R3 tiene mayor
área que R4 a pesar de tener un perímetro menor. Es decir, que con
un mismo perímetro podemos encontrar figuras del mismo género y
de áreas diferentes. Es pues natural considerar:
Problema III. Entre todos los polígonos de n lados con el mismo
perímetro encontrar aquel que tiene un área mayor.
Para atacar este problema podemos utilizar la estrategia de
disminuir la dimensión. En este caso, podríamos comenzar con
triángulos, que es el polígono con menor número de lados:
Problema IIIa. Entre todos los triángulos con perímetro P fijo,
¿cuál es el que tiene área máxima?
Podemos inducir a los estudiantes a experimentar. Puede
observarse que, fijando un lado, por ejemplo, a, como la altura
respectiva h es menor que cada uno de los otros dos lados, cuya
suma es fija, para obtener una altura lo mayor posible deberán ser
también lo mayor posible simultáneamente b y c. Esto conduce a la
idea intuitiva de que el área es mayor cuando b = c. Como este
razonamiento es independiente de cual lado sea fijado, concluimos
que el triángulo de perímetro P y con área máxima debe ser el
54
FACETAS DO DIAMANTE
equilátero. Este es un razonamiento heurístico que conduce a una
respuesta. ¿Podríamos demostrar este resultado en forma euclidiana?
¿Será siempre el triángulo de área máxima el equilátero? ¿Qué
ocurriría si no lo fuera? Veamos las consecuencias de esta
suposición.
Por comodidad y sin pérdida de generalidad, tracemos el
triángulo ABC con el lado ̅̅̅̅AB horizontal. Consideremos que el
triángulo ABC de perímetro P y de área máxima no sea equilátero.
Esto significa que dos lados son diferentes, por ejemplo, ̅̅̅̅
BC ≠ ̅̅̅̅
AC .
Intuitivamente se observa que el punto C puede ser “movido” de
forma que, sin alterar los puntos A y B ni la suma ̅̅̅̅AC + ̅̅̅̅
BC , se
obtenga una altura (y por tanto un área) mayor.
Podríamos enfocar el problema desde una perspectiva
diferente. ¿Cuál será la posición de C si queremos conseguir
triángulos de la misma área? Tracemos la recta  // AB por el punto
C:

Si C está sobre , el área del triángulo será siempre la misma,


mientras que AC̅̅̅̅ + BC
̅̅̅̅ aumentará con un movimiento hacia la
derecha y disminuirá con uno hacia la izquierda. O sea, la misma
área puede ser conseguida con un perímetro menor. ¿Cuál será esa
posición de C donde se logra un triángulo ABC con el área inicial
pero con perímetro lo menor posible? Estamos ante el
Problema auxiliar. Dado un triángulo ABC y fijos los puntos A
y B, hallar una posición para C tal que conserve el área del
55
FACETAS DO DIAMANTE
̅̅̅̅ + BC
triángulo y su perímetro sea lo menor posible, o sea, AC ̅̅̅̅ sea
mínimo.
¿Podría reformular este problema en otro lenguaje? Note
̅̅̅̅ + BC
que AC ̅̅̅̅ es la trayectoria recorrida si queremos ir de A a B
visitando a la recta. Luego, se quiere encontrar el punto C de “visita”
a tal que la distancia recorrida sea la menor posible. Estamos ante
un problema que pide minimizar una distancia. ¿Qué problema, con
una solicitud semejante, conocemos su solución? Es claro que la
menor distancia entre los puntos A y B es la longitud del segmento
de recta que los une, pero, en tal caso, no visitaríamos la recta. ¿Y
si colocamos B en una posición B' de modo tal que la visita a sea
obligatoria al pasar de A a B'? Es claro que B' debe estar en un
semiplano de contrario a A. ¿Dónde colocar B' de modo que su
relación con B este asegurada? La opción más sencilla es tomar a B'
simétrico a B respecto de . Entonces, la menor distancia entre A y
B' sería ̅̅̅̅̅
AB′ que cortará a  en un punto C'. De la simetría de la
figura resulta claro que AC′̅̅̅̅̅ + C′B
̅̅̅̅̅ = AC´ ̅̅̅̅̅, luego la posición
̅̅̅̅̅ + C′B′
buscada de C es precisamente C':

Así que el triángulo ABC' resuelve el problema auxiliar, es


decir, los triángulos ABC y ABC' tienen la misma área y ̅̅̅̅̅
AC′ +
̅̅̅̅̅ ̅̅̅̅ ̅̅̅̅
C′B ≤ AC + CB. Hemos obtenido el
Resultado 1. El punto de la recta  que minimiza AC
̅̅̅̅ + CB
̅̅̅̅ es el
̅̅̅̅̅ ̅̅̅̅̅
punto C' tal que AC′ = C′B.
56
FACETAS DO DIAMANTE
¿Cómo construir un triángulo que tenga el mismo perímetro
que el triángulo ABC y un área mayor? Es claro, que si movemos
continuamente el punto C' por encima de la recta y de forma
perpendicular, conseguiremos aumentar el perímetro continuamente
hasta obtener el valor prefijado P y simultáneamente estamos
aumentando la altura, y por tanto el área del triángulo original.
Hemos conseguido, entonces, construir un triángulo ABC" con el
mismo perímetro que ABC pero con un área mayor, lo que
contradice la suposición de que ABC tenía el área mayor. Esto
resuelve totalmente el problema IIIa y tenemos el
Resultado 2. Entre todos los triángulos con el mismo perímetro,
el de área máxima es el equilátero.
¿Cuál puede ser el próximo paso? Trabajar con cuadriláteros.
Aquí surge una situación nueva (que de no ser observada por los
alumnos debe ser sugerida por el profesor): todo triángulo es
convexo, pero los cuadriláteros pueden ser no convexos. ¿Qué
puede observarse si consideramos un cuadrilátero no convexo?

De la figura, es claro que si el punto C' es el simétrico de C


respecto a DB, entonces los cuadriláteros ABCD y ABC' D tienen
el mismo perímetro y ABC'D tiene un área mayor. Este
razonamiento es válido para un polígono de cualquier número de
lados que no sea convexo, o sea el polígono de mayor área que
resuelve el problema III debe buscarse entre los polígonos convexos:
Resultado 3. Entre todos los polígonos de n lados con el mismo
perímetro el de área máxima es convexo.
Retornando al caso del cuadrilátero, analicemos
detalladamente el camino seguido en la resolución del problema IIIa.
57
FACETAS DO DIAMANTE
Observamos que el mismo razonamiento puede ser repetido para un
cuadrilátero con dos lados diferentes (y en general en un polígono
cualquiera con dos lados diferentes) y llegar a la conclusión que los
lados del polígono de área máxima deben ser todos iguales. En otras
palabras, hemos demostrado el
Resultado 4. El polígono de n lados optimo, si existe, debe
encontrarse entre aquellos que tienen todos los lados iguales.
¿Resuelve este resultado totalmente al problema III?
Limitémonos al caso particular de los cuadriláteros. Un cuadrilátero
con los 4 lados iguales es un rombo, luego hasta ahora sabemos que
el cuadrilátero de mayor área con perímetro dado P debe ser un
rombo. Pero, ¿Cuál? La construcción en la figura

1
muestra que entre todos los rombos de lado a (a = 4), el área máxima
se consigue con el cuadrado. El problema para los cuadriláteros está
totalmente resuelto:
Resultado 5. De todos los cuadriláteros de perímetro P el de
mayor área es el cuadrado.
Zenodoro demostró que para polígonos de n lados con
perímetro dado se obtiene mayor área con polígonos que tengan los
ángulos iguales [ver p. e. Tikhomirov (1990)]. Luego, teniendo en
cuenta lo demostrado respecto a los lados podemos afirmar
Resultado 6. De todos los polígonos de n lados con perímetro
fijo, el polígono regular es el que tiene área máxima.
58
FACETAS DO DIAMANTE
En el problema analizado anteriormente hemos fijado el
número de lados y el perímetro y hemos encontrado que el polígono
de área máxima es el regular. Se impone, de forma casi obvia, el
problema
Problema IV. Analizar el comportamiento de las áreas de polígonos
con un perímetro fijo cuando el número n de lados varia.
Podemos dejar que los alumnos experimenten con valores de
n pequeños y simples de realizar los cálculos (n = 3,4,6). Así pueden
encontrar que, si denotamos por P el valor fijo del perímetro y An,
el del área del polígono correspondiente de n lados:
√3 P2 √3 2
A3 = , A4 = 16, A6 = P .
36 24

Fácilmente se demuestra que A3 < A4 < A6. En caso de haber


desarrollado previamente el problema IIc, podemos preguntar
¿Conocemos algún resultado que relacione el área y el perímetro de
un polígono regular? El uso de la formula (5) permite escribir
𝑎𝑛
An = Pn , (6)
2

donde An, Pn y an representan el área, el perímetro y la apotema


respectivamente del polígono regular de n lados:

Para efectuar la comparación requerida sería útil tener una


relación entre n, An y Pn. Esto puede conseguirse transformando (6),
para ello podemos calcular an. Observemos que los ángulos
𝜋
interiores del polígono valen 𝛼𝑛 = 𝑛 . Consideremos, como
59
FACETAS DO DIAMANTE
construcción auxiliar la circunferencia circunscrita al polígono (el
polígono es inscribible por ser regular) de radio Rn que va a
depender del número de lados. Los triángulos en que se ha dividido
el polígono son isósceles, luego
𝜋
𝑎𝑛 = R n cos 𝑛. (7)
Pn
Por otra parte, 𝑏𝑛 = , así que
𝑛
𝜋
Pn = 2𝑛R n sin 𝑛 (8).
Utilizando (6), (7) y (8) tenemos la relación buscada entre
área y perímetro de un polígono regular de n lados:
1 Pn2 P2
An = =
2 2𝑛 tg 𝜋 4𝑛 tg 𝜋
𝑛 𝑛
ya que el perímetro es fijo igual a P.
Para analizar la variación de A podemos recurrir nuevamente
a la experimentación (en este caso, con auxilio de, al menos, una
calculadora electrónica). Por ejemplo, sea P = 600, entonces
obtenemos los valores resumidos en la tabla:
60
FACETAS DO DIAMANTE

Pn 𝜋
n 𝑏𝑛 = 4n tg An
𝑛 𝑛

3 200 20,7846 17320,516


4 150 16,0000 22500,000
5 120 14,5308 24774,960
6 100 13,8564 25980,774
8 75 13,2548 27159,972
10 60 12,9968 27699,125
12 50 12,8615 27990,514
15 40 12,7534 28227,766
30 20 12,6125 28543,112
60 10 12,5778 28621,858
120 5 12,5692 28641,441
360 1 12,5667 28647,139
1800 0,333 12,566383 28647,86152
65537 0,009 12,56637062 28647,8897345
184320 0,003 12,566370615 28647,8897537

Estos resultados sugieren la hipótesis “cuando n crece, crece


también An.” ¿Cómo demostrar esta hipótesis? Es claro que basta
𝜋 𝜋
demostrar para m > n la desigualdad 𝑛 tg 𝑛 > 𝑚 tg 𝑚 . En el caso
general, esta desigualdad es complicada de demostrar si no se
utilizan los recursos del cálculo diferencial. Si los alumnos
poseyeran un mínimo de estos elementos (análisis de crecimiento de
una función), podría conducírseles sin mucha dificultad por esa vía
y se obtendría una aplicación, nada usual, de esta materia. En otro
caso, podemos analizar un caso particular más asequible, por
ejemplo, tomando m = 2n, demostrar que
𝜋 𝜋
A2n > An, o de forma equivalente tg𝑛 > 2tg2𝑛.
61
FACETAS DO DIAMANTE
Esta desigualdad relaciona las tangentes trigonométricas de
un ángulo y su duplo. ¿Qué otras fórmulas con resultados
relacionados conocemos?
Utilizando las fórmulas para el seno y coseno del ángulo
duplo se obtiene fácilmente
𝜋
2tgθ 𝜋 2tg 𝜋
2𝑛
tg2 = 1−tg2θ, luego tg𝑛 = 𝜋 > 2tg 2𝑛,
1−tg2
2𝑛
𝜋
ya que 0 < 1 − tg 2 2𝑛 < 1, (n  3).
Esto demuestra, por ejemplo, que A3 < A6 < A12 < …; A4 <
A8 < A16 < ...; etc. De esta forma hemos resuelto el problema IV
(total o parcialmente, en dependencia de los conocimientos previos
de los alumnos).
Reconsideremos el Problema Isoperimétrico, teniendo como
“conjunto de figuras” el conjunto de los polígonos, o sea
Problema V. Entre todos los polígonos con perímetro P, ¿cuál es el
que tiene área máxima?
Conjugando los resultados obtenidos en la solución a los
problemas III y IV podemos concluir que debe ser regular y “con el
mayor número de lados posibles”. Si consideramos al círculo (como
caso límite) un polígono regular de infinitos lados, obtenemos la
solución encontrada por Zenodoro:
Resultado 8. El círculo con perímetro P tiene mayor área que
cualquier polígono con ese mismo perímetro.
Notas.
(1) Es conveniente explicar a los alumnos que el círculo no sólo
es la solución del problema isoperimétrico entre los polígonos,
sino que también lo es cuando se consideran figuras limitadas
por “curvas cerradas arbitrarias”, pero que la demostración de
este resultado requiere de conocimientos superiores de
matemática. Una demostración rigurosa sólo pudo hallarse en
el siglo XIX con los esfuerzos de varios geómetras [ver
Tikhmirov (1990)].
62
FACETAS DO DIAMANTE
(2) Otra forma, menos formal, de presentar la propiedad de los
polígonos regulares es considerar cada polígono regular de n
lados como un polígono de n+1 lados, con uno de sus lados de
longitud nula y por tanto irregular. Entonces el polígono
regular de n+l lados sería de mayor área.
(3) También podemos contar a los alumnos como este resultado
está presente en la literatura clásica, en la que puede ser la
historia del problema isoperimétrico más antiguo, relatada por
el poeta latino Virgilio, en su famosa Eneida. Según Virgilio,
Pigmalión, rey de Tiro en el siglo IX a.C., no queriendo
compartir la herencia con su hermana, la princesa Dido, la
expulsó y persiguió por el Mediterráneo. Dido llegó a las
costas de África del Norte, donde hoy se encuentra la bahía de
Túnez. El líder de la localidad no quería dar tierras a Dido para
su asentamiento. Entonces Dido lo convenció diciendo que
sólo necesitaba la tierra que pudiera abarcar con la piel de un
toro. Dido, inteligentemente, cortó la piel en numerosas tiras
largas y estrechas. Y mostrando mayor sagacidad, dispuso
esas tiras de piel en forma de un gran semicírculo cuyo
diámetro era la orilla del mar. Dentro de esta gran área se
edificó la ciudad de Cartago, llamada originalmente Birsa, o
sea, piel de toro.
¿Podríamos aplicar los resultados obtenidos? Pappus (o tal
vez las abejas) proporciona un ejemplo que conjuga la simplicidad
con la belleza:
Problema de Aplicación. ¿Por qué la forma de las celdas de los
pañales de abejas (celdas hexagonales y sin intersticios entre ellas)
es la que permite almacenar la mayor cantidad de miel, utilizando
una cantidad de cera dada para su elaboración?
63
FACETAS DO DIAMANTE

En primer lugar, el uso de polígonos es la mejor forma de no


dejar intersticios y usar “paredes” comunes a varias celdas. Por otra
parte, el Problema III indica que estos polígonos deben ser regulares.
Entonces estamos ante
Problema Auxiliar. ¿Cuáles polígonos regulares pueden
disponerse en torno de un vértice común sin que haya intersticios?
No es difícil calcular que los ángulos interiores de un
(𝑛−2)𝜋
polígono regular de n lados valen 𝑛 . Así que debemos disponer
alrededor de un punto un número entero k de ángulos de magnitud
(𝑛−2)𝜋
. Como la suma de los ángulos alrededor de un punto es 2,
𝑛
(𝑛−2)
obtenemos que 𝑘 𝜋 = 2𝜋, o sea,
𝑛
1 1
𝑘 (2 − 𝑛) = 1 (9)
y debemos encontrar los valores enteros de k y n (n > 3) que hacen
posible la relación anterior.
Un sencillo experimento con valores de n y k puede
resumirse en la tabla siguiente:
64
FACETAS DO DIAMANTE
Puede entonces conjeturarse que los únicos posibles
polígonos son: triángulos equiláteros, cuadrados y hexágonos.
¿Cómo demostrar esto?
Por una parte, observemos que (9) puede ser escrito en la
1 1 1 1 1
forma 𝑛 = 2 − 𝑘 . Como n e k son enteros positivos, se obtiene 2 > 𝑘,
1 1 1 1 3 3 3
o sea, k  3. De (9), 1 = 𝑘 (2 − 𝑛) ≥ 3 (2 − 𝑛) = 2 − 𝑛, o sea, 𝑛 ≥
1
e, finalmente, n  6. Así que nuestra conjetura es verdadera y
2
obtenemos
Resultado 9. En torno a un vértice sólo pueden colocarse 6
triángulos o 4 cuadrados o 3 hexágonos.
La cantidad de miel será mayor si utilizamos celdas cuya
sección plana tenga mayor área, luego los resultados 7 y 9 explican
que
Resultado 10. La elección de los hexágonos por las abejas es la
óptima.

POS-POSICIONES

¿Podríamos realizar un análisis semejante (cubaturas y


problemas isoepifánicos) con sólidos en lugar de figuras planas?
Para cubaturas (cálculo de volúmenes), algunos problemas
orientadores:
(l) ¿Qué ocurre con el volumen de un paralelepípedo recto al
dilatar diferente en cada una de tres direcciones
perpendiculares?
(2) ¿Cómo podríamos calcular aproximadamente volúmenes de
cuerpos sólidos utilizando paralelepípedos? ¿Qué efecto
producirá en el volumen de estos cuerpos las transformaciones
de semejanza?
65
FACETAS DO DIAMANTE
(3) ¿Cómo podría calcularse el volumen de una pirámide de base
cuadrada y con 3 de sus caras perpendiculares a la base?
¿Puede relacionarse con un cubo?
(4) Puede postularse el principio de Cavalieri [ver p. e. Lages
(1991)] y entonces indagar sobre los asuntos siguientes: ¿Cuál
será el volumen de una pirámide regular arbitraria? ¿Cuál será
el volumen de una pirámide con base triangular? ¿Cómo
calcular el volumen de un cono con base dada por una figura
plana arbitraria? Esta forma de trabajo permite obtener para el
1
cono el resultado general V = A(B)ℎ , evitando la
3
memorización de fórmulas para volúmenes de conos y
pirámides de diferentes tipos, que usualmente en los textos,
aparecen como objetos de aprendizaje independiente.
(5) Un recorrido semejante puede realizarse con los prismas
como casos particulares de cilindros.
(6) Podemos plantear el problema de calcular el volumen de la
semiesfera considerada como cuerpo de revolución. Esto
permitiría motivar la introducción del método de Arquímedes
para calcular volúmenes de sólidos de revolución, método que
sirvió históricamente en el desarrollo, varios siglos más tarde,
del cálculo integral.
Para un desarrollo de algunas de estas cuestiones de manera
accesible a alumnos de enseñanza media ver p. e. Lang (1985).
Para problemas isoepifánicos (igual superficie), otros
problemas orientadores:
(1) La dificultad no estriba solamente en la acostumbrada
complicación de poseer un grado más de libertad (como en el
caso de las cuadraturas), sino también de que los análogos a
los polígonos regulares, los poliedros regulares, no son “tantos”
como los polígonos, a saber, sólo 5: tetraedro, hexaedro (cubo),
octaedro, dodecaedro e icosaedro. ¿Por qué no existen más?
Un razonamiento similar al del problema de las abejas, ahora
con ángulos poliédricos puede ayudar a comprender.
66
FACETAS DO DIAMANTE
(2) ¿Qué relación existe entre superficie y volumen de los
poliedros regulares? Euclides, en las proposiciones 13 y 17 del
libro XIII de los Elementos, encuentra varias relaciones que
aclaran la situación.
(3) Entre todos los poliedros regulares con igual superficie, ¿cuál
tiene el mayor volumen? El resultado del problema anterior,
permite enfrentar éste.
(4) ¿Se cumple la propiedad análoga al resultado 8 para el círculo,
es decir, la esfera tiene volumen mayor que cualquiera de los
poliedros regulares con la misma superficie? Un razonamiento
con conos adecuados lleva a una respuesta afirmativa.
(5) Cuando se inscriben dos poliedros regulares en una misma
esfera, ¿cuál tiene mayor volumen? ¿El que tiene más caras o
el que tiene menos caras? Aunque parezca asombroso el que
tiene menos caras es mayor en volumen.
Estos problemas tienen solución en la Colección Matemática
de Pappus y fueron tratados anteriormente por Euclides en su último
libro de los Elementos, así como en trabajos de los sucesores de
Arquímedes del siglo II a.C., Zenodoro e Hipsiiles. A este último se
le adjudica el llamado libro XIV de los Elementos donde se
presentan varias relaciones entre los poliedros regulares inscritos en
una misma esfera. Un bonito proyecto de iniciación científica para
alumnos aventajados de la segunda enseñanza, o para clubes de
interés matemático, sería encontrar estas analogías y diferencias con
los problemas isoperimétricos, usando fórmulas que aparecen en
tablas matemáticas y/o con la ayuda de software especializado.
Vale la pena destacar que el conocimiento de las fórmulas es
importante en la resolución de problemas con un enfoque dinámico,
ya que expresan relaciones entre diferentes variables. Pero no se
necesita memorizar muchas de ellas, es suficiente saber dónde
encontrarlas cuando se precisan. Lo más importante es saber usarlas
creativamente hallando nuevas relaciones no explícitas entre las
variables que aparecen en fórmulas conocidas.
67
FACETAS DO DIAMANTE
Deseamos terminar citando de nuevo, como al comienzo, a
quien se considera el padre de la teoría moderna de la medida, el
francés Henri Lebesgue (1931-35):
El profesor de matemáticas, aquél de la enseñanza media
en particular, no tiene que formar lógicos puros, debe
contribuir a formar hombres que razonen y para esto
debe ocuparse no solamente de los razonamientos
lógicos, sino sobre todo de la adquisición de las premisas
de estos razonamientos y de la aplicación de sus
resultados a lo concreto.

BIBLIOGRAFIA

BAILEY, D. H., et al. The Quest for Pi. The Math. Intelligencer,
v. 19, 1997.

BUNT, L. N. H., et al. The Historical Roots of Elementary


Mathematics. New York: Dover, 1988.

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1993.

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Piramide, 1995.

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Unicamp, 1995.

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Brasileira de Matemática, 1993.

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1985.

LEBESGUE, H. La Mesure des Grandeurs. Nueva Reedición.


Paris: Librairie Scientifique et Technique, Blanchard, 1975.
[Original 1931-35.]
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SÁNCHEZ FERNÁNDEZ, C. Usos y Abusos de la Historia de la
Matemática en el Proceso de Aprendizaje. In: Actas Reunión
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Enseñanza Centrada en Problemas. Rev. Iberoamericana de
Educación Matemática, v. 9, n. 3, 1997.

SERRES, M. Les Origenes de la Geométrie. Paris: Flammarion,


1993.

SCHOENFELD, A. H. Mathematical Problem Solving. Florida:


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SIMON, L. Lectures in Geometric Measure Theory. Centre for


Math. Analysis, Australian National Univ., 1983.

TIKHOMIROV, V. M. Stories about Maxima and Minima. Am.


Math. Soc.- Math. Ass. of Amer. Math. World - Volume l, 1990.
69
FACETAS DO DIAMANTE

PESQUISA-AÇÃO PARA FORMAÇÃO


DE PROFESSORES: FÍSICA
EXPERIMENTAL NO ENSINO MÉDIO

Roberto Ribeiro Baldino


Alessandra Riposati Arantes
Fernanda Letícia M, Souza
Antonio Sérgio Cobianchi
Miguel Tadayuki Koga

O leitor encontrará, aqui, o seguinte. Na primeira seção,


introdutória, mostramos que a questão das competências passa pela
produção dos discursos dos alunos professores sobre suas
experiências de sala de aula. Na segunda seção, descrevemos o
funcionamento do GPA e os procedimentos de pesquisa adotados
pelo subgrupo sobre ensino de física para o segundo grau. A terceira
seção contém um resumo dos relatos que os alunos-professores
fizeram sobre suas intervenções na sala de aula e sobre sua
participação no GPA. A quarta seção descreve o quadro teórico da
psicanálise na vertente de Lacan, usado para interpretar e discutir os
relatos e os discursos dos alunos professores acerca de suas
atividades. Na quinta seção procede-se a análise dos relatos,
denominada leitura sintomal. A sexta seção descreve o efeito
produzido pela leitura sintomal sobre os pontos de vista dos alunos-
professores. A sétima seção contém as conclusões da pesquisa-ação
e a oitava, as referências bibliográficas usadas no artigo.
70
FACETAS DO DIAMANTE
INTRODUÇÃO

Para abordar a questão das competências necessárias aos


futuros professores, recorreremos a dois artigos que constituem um
marco recente na bibliografia sobre formação de professores, não só
de matemática mas, também, de ciências: Souza et al. (1991 e 1995).
Discute-se ali a distinção entre licenciatura e bacharelado, propõe-
se uma caracterização do formando a ser obtida através da
licenciatura, fornecem-se diretrizes para integração das formações
profissional e acadêmica do professor através da pesquisa e chega-
se a caracterizar a Educação Matemática como a prática científica
de um objeto formal: as falas matemáticas. O primeiro desses artigos
enfatiza três qualidades que os alunos-professores devem
desenvolver: independência, liberdade e compromisso.
Entendemos que esse profissional deva ser formado de
tal modo que possa ser independente, tendo condições
para escolher o tema que irá trabalhar com seus alunos e
a forma pela qual irá trabalhá-lo, isto é, a
metodologia. ...A competência não se reduz ao domínio
cognitivo, mas exige também a compreensão das ideias
básicas que o sustentam. ...O compromisso é entendido
como inconformismo como o quadro geral de fracasso
do ensino da Matemática em suas múltiplas dimensões.
(SOUZA et al., 1991, p. 90.)
Desse ponto de vista, portanto, as competências necessárias
para alterar o quadro geral de fracasso do ensino de matemática
devem ser pensadas a partir de falas matemáticas, portanto de
discursos veiculados no contexto institucional dos cursos de
licenciatura e o bacharelado. Nos artigos citados, o quadro geral de
fracasso do ensino de matemática e ciências é atribuído a uma certa
hegemonia de concepções oriundas das práticas científicas sobre o
ensino das ciências:
O método tradicional vigente, no ensino da Matemática
na Universidade, tem se constituído, “grosso modo”, no
único método pelo qual a Matemática é ensinada. Isso
tem feito com que, sistematicamente, a aprendizagem da
Matemática se tenha tornado uma questão de repetição
71
FACETAS DO DIAMANTE
do processo pelo qual alguns alunos triunfam e a maioria
fracassa. (SOUZA et al., 1991, p. 91.)
A questão da hegemonia da prática científica sobre o ensino
foi retomada mais recentemente por outros autores:
a formação específica nos cursos de Licenciatura em
Matemática é realizada, de modo geral, com seu
referencial centrado na prática do matemático
profissional e não na prática do professor de ensino
fundamental e médio. (SOARES, FERREIRA e
MOREIRA, 1997, p. 25.)
De modo mais contundente, porém menos construtivo, essa
questão já tinha sido colocada anteriormente:
Na versão oficial, a prática científica é necessária para
manter o acervo cultural da humanidade e a prática
educativa para promover o “acesso das massas ao saber
sistematizado”. Nossa análise mostrou que a prática
científica é necessária para promover os modelos de
controle do saber a serem impostos às práticas de ensino
e que a prática educativa é necessária à manutenção da
meritocracia vigente... (BALDINO, 1994, p. 34.)
A hegemonia das concepções dos cientistas sobre o ensino
faz com que a escola funcione, antes de tudo, como uma
meritocracia de conteúdos: o sujeito central é a figura do “bom
aluno”, aquele que responde à semelhança do mestre e que é
guindado aos escalões superiores do ensino de terceiro grau,
tornando-se cientista e professor. A visão do cientista termina por
impor-se sobre os níveis mais elementares de ensino, indo constituir
a ideologia dominante na escola. O que talvez valha a pena enfatizar
é que, em nível das licenciaturas, essa hegemonia nos traz a questão
de considerar a reprodução das comunidades científicas através do
ensino: as licenciaturas são constituídas como apêndices dos
bacharelados. Aliás, a função da educação na reprodução dos
cientistas já foi assinalada por Kuhn:
uma comunidade científica consiste nos praticantes de
uma especialidade científica. Unidos por elementos
comuns da respectiva educação e aprendizagem, veem-
se a si mesmos e são vistos pelos outros como os
72
FACETAS DO DIAMANTE
responsáveis pela prossecução de um conjunto de
objetivos partilhados, incluindo a formação dos
sucessores. (KUHN, 1977, p. 356.)
A implicação da escola no quadro da reprodução da
ideologia dominante já tinha sido assinalada por Althusser em 1968
e desenvolvida por Bourdieu e Passeron (1982).
A reprodução da força de trabalho faz aparecer, como
sua condição sine qua non, não apenas a reprodução de
sua "qualificação ", mas também a reprodução de seu
assujeitamento à ideologia dominante, ou à “prática”
dessa ideologia. Precisemos bem que é necessário dizer
“não apenas, mas também”, porque é dentro das formas
e sob as formas do assujeitamento ideológico que é
assegurada a reprodução da qualificação da força de
trabalho. (ALTHUSSER, 1995, p.79.)
A ideologia dominante do bacharelado e da reprodução do
cientista é absorvida pelos professores em formação no curso anexo
de licenciatura. Por isso esses alunos-professores tendem a
reproduzir o discurso da meritocracia de conteúdos como
fundamento e suporte de suas ações em sala de aula. Portanto, o
desenvolvimento das competências que aqui buscamos passa pela
análise do exercício desse discurso enquanto veiculado pelos
alunos-professores. Assim, será no quadro da reprodução que
deveremos considerar o desenvolvimento das competências dos
alunos-professores durante a licenciatura. Porém, em se tratando de
apelos ideológicos que são exercidos através de discursos, estes
começam a ter aspecto fundante. Kuhn também destaca a
importância dos padrões de comunicação na caracterização das
comunidades científicas.
as comunidades científicas se devem descobrir através
do exame dos padrões de educação e de comunicação,
antes de se procurar saber em que problemas particulares
de investigação se empenha cada grupo. (KUHN, 1977,
p. 18.)
A comunicação é considerada por Souza et al. (1995) a partir
do conceito de fala. Esses autores colocam a questão das falas
73
FACETAS DO DIAMANTE
matemáticas como central na caracterização da própria Educação
Matemática.
Atribuir ao sentido das falas matemáticas o estatuto de
objeto formal da Educação Matemática, aquilo de que,
em última instância, se produz o conhecimento, implica
dar a esta o estatuto de prática científica, uma posição
cheia de riscos e conseqüências, cujo funcionamento
exercitaremos no restante desse artigo. (SOUZA et al.,
1995, p. 54.)
Essa posição teórica tem como consequência natural a
proposta de integração de ensino e pesquisa em nível das
licenciaturas:
O relato das experiências e problemas pesquisados no
estágio supervisionado da Licenciatura passa, desta
forma, a constituir-se num relato de pesquisa e não no
relato burocrático de aulas a que se assistiu e de
regências. O peso desta constatação é melhor percebido
se, ao final do curso, os licenciandos apresentarem seus
relatórios constando de pesquisas de intervenção na
realidade institucional a partir de problemas observados
e analisados, neles incluindo alternativas às práticas
docentes usuais e os discursos que as fundamentam.
Nesse momento, a contribuição das licenciaturas para
alterar as práticas pedagógicas vigentes terá horizonte
mais amplo que formar futuros professores, pois formará
grupos de pesquisa com problemáticas didáticas
específicas. (SOUZA et al., 1995, p. 58.)
A marcha na direção da centralidade do discurso leva ao
quadro teórico da psicanálise, introduzido de forma pioneira na
Educação Matemática por Cabral (1998). Abordando a formação do
educador no estágio delicado de transição de aluno para professor,
encontramos o artigo de Atkinson e Moore (1998). Dizem esses
autores:
As competências atribuídas ao professor mostram quais
as habilidades profissionais e
74
FACETAS DO DIAMANTE
compreensões que os estudantes deverão adquirir para se
tornarem professores eficientes. Competências
inevitavelmente sugerem resultados gerais: elas não se
referem a estados idiossincráticos da inexperiência dos
estudantes em treinamento, nem à variedade de
caminhos que eles tomam para se tornarem eficientes. As
próprias competências tendem a não ser questionadas:
isto é, os alunos-professores tendem a não questionar as
suposições sobre o ensino e aprendizagem que o discurso
das competências promove. ...O discurso das
competências é aceito por eles como uma espécie de lei:
o discurso não é questionado, desconstruído, desafiado.
Uma dificuldade central na tentativa de compreender a
prática de qualquer professor é revelada quando se
reconhece a diferença entre o funcionamento do
professor na sala de aula (a interação dinâmica entre
professor e alunos) e a prática de falar sobe, de avaliar,
de refletir sobre a prática do professor: isto significa dar
ao ensino uma forma simbólica no discurso. A
dificuldade de empreender o reconhecimento da
diferença entre a prática do ensino e a reflexão posterior
sobre essa prática é que o reconhecimento já está “dentro
da linguagem”. Então podemos dizer que existe um
espaço primário de ensino e um espaço secundário,
embora necessário, de reflexão: um contexto de ação que
envolve a linguagem e um contexto discursivo no qual o
professor dá a seu ensino uma forma-de-linguagem,
simbólica e estável. No espaço da reflexão a ação prévia
de ensino torna-se um texto. (ATKINSON e MOORE,
1998.)
Uma vez que se adote esse enfoque de simbolização das
práticas de sala de aula, o método para tratar a questão deve ser o da
pesquisa-ação, entendida esta como contendo alternadamente os
dois momentos ou espaços, um em que o aluno-professor intervém
na realidade escolar como professor iniciante e outro em que ele(a)
fala sobre essa intervenção, ou seja, em que a reconstrói no
simbólico. Essa simbolização inclui, de modo natural, as lembranças
da escolaridade anterior, submetida à hegemonia da pratica
científica, bem como o ingresso do aluno-professor como mais um
elemento de força de trabalho potenciada no mercado. E nesse
75
FACETAS DO DIAMANTE
momento que ele(a) enfrenta a difícil opção entre ser cientista,
aderindo aos preceitos da ideologia hegemônica, ou ser professor, e
procurar defender sua prática política de alteração dos rumos do
ensino tradicional vigente, desenvolvendo as qualidades de
liberdade, competência e compromisso. Essas são exatamente as
condições que se busca proporcionar com a organização dos grupos
de pesquisa-ação.

PROCEDIMENTOS DA PESQUISA-AÇÃO: O GPA

O Grupo de Pesquisa-Ação em Educação Matemática da


UNESP, Rio Claro reúne-se aos sábados pela manhã desde setembro
de 1993. Na primeira reunião de cada semestre, decide-se quais
subgrupos estarão em funcionamento nesse semestre. Não há ritual
de ingresso ou saída; cada participante é um membro do GPA
enquanto estiver participando. Não há bolsas nem incentivos, no
máximo conferem-se certificados de participação aos que os
solicitam. No primeiro semestre de 1998 formaram-se os seguintes
subgrupos:
Construtivismo em sala de aula
Ensino fundamental: pré-escola e 1a à 4a série
Números reais e continuidade
Cálculo diferencial e integral para o curso de Física
Física experimental no ensino médio
Educação Matemática e meio ambiente.
Os subgrupos do GPA se reúnem semanalmente, em horário
determinado por seus componentes. Ocorre a reunião plenária
(chamada grupão) aos sábados das 11:00 às 12:00 horas, com a
participação de todos os subgrupos. Nessa plenária, cada subgrupo
relata o andamento semanal de sua pesquisa e recebe sugestões dos
demais presentes. As vezes uma reunião é inteiramente dedicada ao
tratamento de um tema, proposto por algum dos participantes.
Os subgrupos esforçam-se para que seus trabalhos convirjam
para artigos a serem apresentados em encontros de Educação
76
FACETAS DO DIAMANTE
Matemática. Várias dissertações de mestrado foram elaboradas
dentro desses grupos. Há professores da rede pública e particular
cujas formações profissionais se completaram nesses subgrupos do
GPA.
Em dezembro de 1997 três alunas do Curso de Física da
UNESP participaram de uma reunião do GPA em que declararam
sua intenção de propor um subgrupo de pesquisa-ação sobre ensino
de física no segundo grau em 1998. Estavam movidas pela
expectativa de formarem-se professoras de física e pela preocupação
de ingressarem em sala de aula no fim do ano seguinte. Queriam
antecipar essa experiência para 1997. Pensavam, inicialmente, arcar
com todo o ensino de física experimental em alguma escola de Rio
Claro. Já tinham feito contato com professores de uma delas e
tinham sido recebidas muito bem. A escola dispunha de salas para
física experimental. Elas mostravam certa ansiedade de passar logo
aos alunos o que tinham aprendido na Universidade.
— Não é bem assim, aconselhou o professor Baldino. Vamos
primeiro fazer uma intervenção modesta; algumas semanas, duas ou
três salas de aula, no máximo. Temos, já, acumulada a experiência
de 1997, sobre ensino de cálculo e a de 1996, sobre ensino de
trigonometria.
Essas alunas compareceram novamente ao GPA, na reunião
inicial de 7 de março de 1998. Ficou estabelecido que, entre os
subgrupos do GPA para aquele semestre, haveria um de ensino de
física para o segundo grau, coordenado pelo professor Baldino,
reunindo-se aos sábados pela manhã. Das primeiras reuniões desse
subgrupo participaram, além dos autores desse artigo, os alunos de
física, Sílvia Cristina Dias Pinto, Luciano Salvino e Renato
Rodrigues Colombo. Nessas reuniões iniciais o subgrupo se inteirou
das expectativas de seus membros em relação ao trabalho a ser
desenvolvido. Como estavam implicados aí os desejos de cada um?
Assim, o subgrupo surgiu com o objetivo de busca de
subsídios para intervenção em sala de aula, através de experimentos.
Um dos pontos básicos do subgrupo foi construir uma intervenção
na escola. A partir da ideia inicial de intervir na escola, foram
77
FACETAS DO DIAMANTE
discutidos conceitos físicos. Isto foi feito de forma que todos os
conceitos envolvidos ficassem inter-relacionados, excluindo a
possibilidade de um sinóptico preestabelecido. Dessas reuniões
resultaram reflexões de três ordens: didática, conceitual e
pedagógica.
Quanto à questão didática, os alunos de física mostraram-se
decididos a levar para a sala de aula experimentos acompanhados de
roteiros, a partir dos quais pudessem discutir as questões teóricas,
segundo o modelo de aula experimental que tinham tido na
universidade. Alessandra e Fernanda já tinham pensado em como
construir o aparato composto por um cano transparente, fixo em uma
placa de madeira; o tubo é enchido com óleo e tem uma escala para
medição de velocidade das bolhas d’água que são introduzidas
através de uma seringa. Discutiu-se a possibilidade de iniciar por
movimentos não uniformes, usando a gravidade, para chegar ao
conceito de movimento uniforme como negação do movimento
variado.
Quanto à questão conceitual, as discussões iniciais
proporcionaram a revisão de conceitos como força de atrito, força
de coesão, tensão superficial, viscosidade, densidade, massa,
volume, empuxo e peso. Houve comparação e ajuste das concepções
espontâneas de cada um às concepções científicas consensuais a que
se chegou. Este detalhamento foi feito de maneira que não
permanecessem dúvidas a nenhum dos componentes do grupo. Foi
de importância fundamental a participação de todos, através da fala.
Alessandra e Fernanda apresentaram a certeza de que o
experimento reproduzia um movimento uniforme, certeza esta
obtida numa aula de laboratório que tiveram sobre este assunto, no
curso de graduação. Esta convicção foi abalada por um
questionamento feito pelo coordenador: Se a bolha depositada na
superfície do óleo tem velocidade nula, não terá havido aceleração?
Porque a bolha maior cai mais rápido?
Esta discussão gerou as seguintes perguntas. No início do
processo, o movimento é uniforme? Se não é, o que o faz tornar-se
uniforme no fim? Por que a bolha desce? Que é densidade? Quais as
78
FACETAS DO DIAMANTE
forças que atuam sobre a bolha? Quais os conceitos físicos (força de
atrito, massa, volume, empuxo e força gravitacional) envolvidos na
queda da bolha? A bolha desce sem precisar de um impulso inicial?
Por que as bolhas pequenas flutuam? Depende do volume? Que é
tensão superficial? Se existe impulso, de que natureza é? Finalmente,
algumas reuniões depois, chegou-se à conclusão: as forças de atrito
aumentam com área da superfície da bolha enquanto o empuxo e as
forças peso aumentam com o volume. Supondo uma bolha esférica,
como a área varia com o quadrado do raio e o volume com o cubo
do raio da esfera, é natural que a bolha maior caia mais rápido pois
a força resultante sobre ela é maior. Quando o raio é duplicado, a
área e a força de atrito ficam quatro vezes maior enquanto a
diferença entre peso e empuxo fica oito vezes maior.
A questão pedagógica foi colocada através de uma ansiedade:
qual o melhor método de levar o experimento para a sala de aula
para estimular o aluno e tomar a matéria atraente, evitar o método
de “receita de bolo”, a fim de que os alunos atinjam o objetivo
esperado?
Já o coordenador procurava relatar sua experiência com tais
intervenções nos dois últimos anos e ressaltava a importância de
manter o desafio:
— É preciso que o aluno se sinta desafiado a fazer algo que
esteja no limiar do que pode alcançar, nem além, para não frustrá-
lo, nem aquém, para que não fique entediado.
O subgrupo passou a analisar os procedimentos da
intervenção com uma preocupação maior de como seria o desafio do
experimento e como mantê-lo. Este deveria estar vinculado à
curiosidade dos alunos, por ser a intervenção um procedimento nada
trivial para os alunos de ensino médio. O desafio está diretamente
ligado à aprendizagem, porque na ausência deste, também não
existirá a didática, ficando comprometido todo o esforço de ensino.
Decidiu-se que a introdução do experimento seria feita
através de um roteiro que seria apresentado aos alunos junto com o
aparato da experiência. Foi discutido que o roteiro deveria ser
diferente do utilizado pelos alunos no curso da graduação que,
79
FACETAS DO DIAMANTE
segundo eles apresentava encaminhamentos fechados, não dando
oportunidade para discussões críticas: faça, meça, leia, conclua. ...
Após a primeira intervenção um novo roteiro foi elaborado pelo
grupo.
As primeiras reuniões do subgrupo podem ser descritas
como um encontro de certezas que terminaram abaladas. Ao final da
terceira reunião atingiu-se o limite a que se poderia chegar com as
vivências de que o subgrupo dispunha. As colocações dos membros
começaram a se repetir. Ficou decidido partir logo para a sala de
aula, cada um levando consigo aquilo que achava que deveria fazer
ali. Os dados seriam trazidos para discussão na semana seguinte.
Decidiu-se também pedir um tempo maior na plenária do
GPA daquele dia, para relatar as ansiedades do grupo quanto à
próxima entrada em sala de aula, pela primeira vez, de cinco de seus
membros. Entretanto, essa plenária ficou monopolizada pela
discussão sobre um episódio da sala de aula de um dos membros do
GPA e mostrou ao grupo de ensino de física, de modo contundente,
a dura realidade do sistema escolar que os esperava. Foi dessa
plenária de 21 de março que resultou o Manifesto sobre o cotidiano
da escolaridade brasileira (Baldino e Souza, 1998) do qual o grupo
se tornou signatário, bem com um subgrupo sobre violência na
escola, ainda em funcionamento em 1999.
Duas intervenções foram feitas, uma na EEPSG João Batista
Leme (cinco aulas para uma turma) e outra na Escola Odilon Corrêa
(três aulas em duas turmas). A cada semana essas intervenções eram
relatadas e discutidas no GPA, tanto no subgrupo quanto na
assembleia geral. Terminadas as intervenções, decidiu-se redigir os
resultados sob forma de um artigo a ser submetido ao Congresso de
Iniciação Científica da UNESP. Foi nessa época que tomou forma a
pergunta diretriz da pesquisa-ação que estava sendo feita:
Como desenvolver as competências que o aluno-
professor deve ter para enfrentar o fracasso do ensino de
física no segundo grau e mudar as rotinas de sala de aula
que o sustentam?
80
FACETAS DO DIAMANTE
Diante das diferentes disponibilidades e interesses dos
participantes, o subgrupo terminou se estabilizando em torno dos
autores deste artigo. Os três alunos de física ficaram responsáveis
pelo relato das intervenções em sala de aula, os dois alunos de pós-
graduação pelo relato das reuniões de sábado e o coordenador, pela
análise desses relatos e redação final do artigo. Trata-se, pois, de
pesquisa conjunta, não sendo de estranhar que este tenha seis autores,
embora um deles tenha atuado como coordenador. O quadro teórico
adotado, baseado na psicanálise de vertente lacaniana, não permitiu
que o coordenador assumisse a posição de observador privilegiado.
Ele se colocou como falante, junto com os demais participantes.

RESUMO DOS RELATOS DAS INTERVENÇÕES

Logo após a primeira intervenção em sala de aula, os


alunos-professores trouxeram o seguinte relato. Mostraram-se
bastante motivados pelos resultados obtidos.
Como ponto positivo destacamos a participação dos alunos,
a curiosidade sobre o material didático e discussões que se
desenvolveram nos grupos de trabalhos, deixando claro que todos
estavam empenhados em desenvolver as atividades propostas.
Como ponto negativo notamos que os alunos apresentavam uma
grande deficiência na leitura e interpretação das atividades propostas,
dificuldade de relacionar os conteúdos de sala de aula com o
experimento, relutância em manipular o material didático, etc.
Nas semanas seguintes continuaram os relatos das
intervenções, acrescentando as duas salas da Escola Supletiva
“Odilon Corrêa”.
Como a aula de Física era desenvolvida numa sexta-feira, a
quantidade de alunos era pequena, o que facilitou o trabalho inicial,
porém a cada semana o número deles se alterava. Quando a aula foi
mudada para segunda-feira, o número de alunos triplicou em relação
ao primeiro dia, quando tinha apenas 11 presentes.
81
FACETAS DO DIAMANTE
Na Escola “Batista Leme” ocorreu um fato interessante, que
foi a mudança de horário da disciplina de Física, passando de sexta-
feira às 22 horas para a segunda-feira 19h50m. Isto talvez tenha
ocorrido pela determinação do Governo do Estado, que normatizou
a lei de não reprovação. Como não há reprovação e o número de
aulas é de uma por semana, haveria alunos que no meio do ano já
estariam reprovados por faltas. Como a reprovação não ocorre mais,
os alunos do noturno não se preocupam com as faltas e não
comparecem na sexta-feira, perdendo, assim, todas as aulas da
disciplina e gerando um problema a ser resolvido depois, pela
direção da escola. Nesta alteração houve uma mudança drástica no
grupo de sala de aula, o que gerou uma dificuldade para os alunos-
professores, pois metade da sala já estava terminando os
experimentos e a outra metade, ainda, iria começar a desenvolver as
atividades. Estes, que faltavam às sextas-feiras, eram menos
interessados.
Após as discussões no subgrupo, os alunos-professores
faziam o relato na plenária de todos os subgrupos que compõe o
GPA. Neste relato apresentavam como estava o andamento das
intervenções e como planejavam os encaminhamentos seguintes.
Ao final das intervenções, concluímos que os trabalhos
foram positivos, pois um dos pontos mais importantes foi que
durante as aulas, todos os alunos, inclusive os que não participavam
das aulas tradicionais, trabalharam e completaram as atividades
propostas. Houve alguns alunos que solicitaram a sequência das
fichas de trabalho. Concluiu-se que tanto as aulas como o
rendimento melhoraram bastante. Um dos pontos importantes para
que os trabalhos fossem bem desenvolvidos, foi a participação dos
professores das salas em que foram efetuadas as intervenções.
Com o trabalho de intervenção concluído, os alunos-
professores passaram a analisar seus próprios pontos de vista sobre
o ensino, alguns dos quais tinham sido contestados nas reuniões
plenárias do GPA. Mostraram alegria com os resultados obtidos e
ficaram meio assustados com o estado de calamidade em que se
encontra o ensino público, incluindo o terceiro grau. Verificaram o
82
FACETAS DO DIAMANTE
alto índice de dificuldade apresentado pelos alunos, como erros de
Português.
Não sabiam calcular áreas, não sabiam marcar pontos nos
eixos, não punham escalas. Alguns alunos ficaram tristes porque
havia terminado. Os alunos do Batista Leme parecem cegos e os do
Odilon Corrêa parecem arrependidos de estarem na escola. Aliás,
muitos alunos da Universidade não escapam dessa consideração de
arrependidos.
Estas falas retratam como os alunos-professores viram a
situação dessas duas escolas. A vontade de todos era de externar
esses sentimentos, denunciar a situação em que se encontra o ensino
público através de algum trabalho de divulgação. Surgiu então, a
oportunidade de participarem do X Congresso de Iniciação
Científica da UNESP (Arantes et al., 1998a). Deveriam realizar a
inscrição até o dia 13 de junho, com a apresentação de um resumo à
Comissão Organizadora. Com este objetivo traçado, o subgrupo
passou a escrever um artigo contendo os relatos e as conclusões das
intervenções (Arantes et al., 1998b). As atividades de redação do
artigo foram divididas entre os membros do subgrupo. Após
terminados, os relatos foram unidos, e o coordenador encaminhou a
leitura sintomal que pretendia fazer.
Ele apresentou ao grupo o artigo de Atkinson e Moore (1998)
que foi lido parcialmente. No início da leitura deste artigo, fixamo-
nos nas questões dos registros real e simbólico e no termo “discutir”,
analisando o preconceito que recebe esta palavra, pois na nossa
linguagem popular “discutir” tem o significado de “brigar”.
Todas as discussões de nosso subgrupo foram relatadas nos
informes que o fizemos na assembleia geral das 11 horas. Muitas
vezes essas reuniões, a plenária não se fixava somente nos relatos.
Em algumas reuniões discutiram-se outros pontos. Na reunião do
dia 23 de maio recebemos a visita do professor da UNESP, Marcelo
Borba, que solicitava ao grupo um espaço para discutir sobre o
Manifesto de Baldino e Souza (1998), onde denunciávamos a
violência dentro das escolas do município. Em seu posicionamento,
este professor apresentava o Manifesto como “reacionário”,
83
FACETAS DO DIAMANTE
sugerindo que fosse feita uma pesquisa com um número
determinado de professores, para verificar se a impressão era
pessoal ou não. Além deste, outro ponto criticado pelo professor foi
o fato de o Manifesto denunciar uma situação, mas não oferecer
qualquer proposta para melhorar esta situação. Foi-lhe dito que o
primeiro objetivo do Manifesto seria mostrar a atual situação de
violência que se passa nas escolas, fato que aparentemente vem
surtindo algum efeito nos meios de comunicação do município. O
segundo objetivo seria, posteriormente, com discussões como esta,
levantar algumas propostas.
Os dois foros, o pequeno e o grande grupo,
complementaram-se como espaços de reflexão sobre a ação de
intervenção na escola, integrantes essenciais da metodologia da
pesquisa-ação com a qual se consegue resolver o problema do um e
do múltiplo.

O QUADRO TEÓRICO DE LACAN

As intervenções realizadas foram relatadas, primeiro


oralmente, depois por escrito pelos alunos-professores. Os relatos
foram lidos no subgrupo de ensino de física para a escola secundária.
Nesta seção procuramos descrever o quadro teórico da psicanálise
de vertente lacaniana a partir do qual o coordenador empreendeu a
leitura sintomal dos relatos.
O aluno-professor, como todo sujeito falante, inserido na
ordem simbólica, necessariamente comenta, expõe, simboliza sua
experiência inicial de sala de aula através de um discurso dirigido a
amigos, colegas e professores que denominaremos discurso
reflexionante. Como todo sujeito falante, o aluno-professor também
espera ouvir daqueles a quem fala alguma confirmação do que fez,
segundo comunica em seu discurso. Se esse discurso é bem acolhido
pelos ouvintes, o aluno-professor tenderá a crer que o que fez está
certo, e que por aí se integrará ao grupo social do ouvinte. Se seu
discurso sofre contra-argumentações e fica impedido de circular, o
aluno-professor terá de negociar sua integração ao grupo, mudando
84
FACETAS DO DIAMANTE
o discurso, mudando a prática, mudando o grupo ou afastando-se
dele e procurando integrar-se a outros grupos, com afinidade a seu
discurso. Nossa aposta é que a prática, justificada pelo discurso
reflexionante bem acolhido, estabiliza-se e incorpora-se à maneira
de agir do futuro professor.
Normalmente o aluno-professor que ingressa como
professor numa universidade dirige o discurso reflexionante sobre
sua sala de aula a seus colegas mais antigos, professores, que, como
ele, também dirigiram seus discursos a seus colegas quando ali
ingressaram. É esse grupo de colegas que determina a acolhida do
discurso reflexionante do novo professor. É nesse grupo que ele
precisa ingressar, ser aceito; não pode afastar-se dele. Então o aluno-
professor tende a adaptar o discurso e, com ele, a prática de sala de
aula em função do grupo. A inexistência de espaço de discurso
próprio para essa discussão confere estabilidade ao grupo falante. O
recém chegado é que tem de se adaptar. Perpetuam-se, por aí, as
visões dos cientistas sobre o ensino e várias rotinas de sala de aula
que terminam realimentando o fracasso do ensino da matemática. É
daí que vem a rejeição da escola a mudanças.
Já os alunos-professores que vão lecionar matemática ou
ciências em primeiro ou segundo graus passam, em geral, por
licenciaturas do tipo “três mais um”: três anos de disciplinas
científicas seguidos por um ano de disciplinas ditas pedagógicas.
Em alguns casos certas disciplinas pedagógicas são antecipadas para
os primeiros anos, o que já é um avanço. Porém, mesmo nesses casos,
as disciplinas de conteúdo são atribuídas a cientistas da área
específica e ministradas por metodologias tradicionais. Em qualquer
caso, o licenciando fica desprovido da experiência de ter cursado
disciplinas de conteúdo específico por metodologias alternativas ao
ensino tradicional vigente.
Os professores das disciplinas de didática e prática de ensino
são oficialmente encarregados de acolher o discurso reflexionante
acerca dos estágios que os alunos-professores fazem em sala de aula,
quando estágios existem e são relatados. A acolhida ou rejeição
desse discurso pelos ouvintes oficiais não significa, para os alunos-
professores, integrar-se ou afastar-se de um grupo de falantes.
85
FACETAS DO DIAMANTE
Quando essas disciplinas não promovem espaços de discurso como
o GPA, o que predomina é o poder que o ouvinte oficial tem de
permitir ou barrar o acesso do aluno-professor à aprovação e à nota.
Surgem discursos como estes: “Não vamos pôr isso em nosso
relatório para não abaixar nossa nota”. O discurso escamoteia a
prática. O discurso reflexionante do aluno-professor será então
acolhido ou rejeitado por seus colegas e por seus professores
anteriores, das disciplinas científicas ou pela própria escola, quando
ali voltar como professor. Serão a esses dois grupos de falantes que
o aluno-professor procurará integrar-se. Novamente, a visão dos
cientistas sobre o ensino incorpora-se ao discurso e a práxis do
futuro professor e é transportada para a escola.
A disciplina de Prática de Ensino da Licenciatura em
matemática da UNESP, Rio Claro, funciona vinculada ao GPA. Este
tem identidade que está se constituindo há mais de quatro anos a
partir de um projeto inicial e de uma questão diretriz acerca do
fracasso do ensino de matemática e das rotinas de sala de aula que o
sustentam. Os alunos-professores cujos relatos agora analisamos,
vieram e permanecem nesse grupo voluntariamente, sem qualquer
vínculo institucional. O discurso reflexionante de sua intervenção
em sala de aula foi feito por escrito e verbalmente. Os relatórios e as
narrativas foram lidos nos subgrupos Ensino de Física para o
Ensino Médio e Violência na Escola e submetidos, resumidamente
às assembleias gerais.
A interpretação desses relatórios e narrativas tiveram por
objetivo informar aos alunos-professores, o grau de acolhimento de
seus discursos reflexionantes enquanto interpretados por um dos
coordenadores do GPA. Porém, como os alunos-professores
integram o GPA, eles participam da acolhida de seus próprios
discursos. Com isso, por um lado, têm oportunidade de rever,
modificar, aprofundar esses discursos e, consequentemente, rever
suas práticas e seus valores, por outro, participar da constituição da
identidade do próprio GPA enquanto grupo de falantes.
Tratando-se de intervir sobre discursos que simbolizam
práticas de sala de aula, optamos pelo quadro teórico da dialética do
Sujeito e do Outro segundo Lacan. Os conceitos em jogo são:
86
FACETAS DO DIAMANTE
Sujeito falante, pequeno outro, grande Outro, punção, significante,
ponto de basta, identificação simbólica, e pertença. Discorreremos
sobre eles para poupar o leitor de consultar a vasta bibliografia
existente.

O SUJEITO E O OUTRO

O sujeito falante se dirige a alguém em uma língua comum.


Não só suas palavras e frases são significantes. Também a maneira
que as pronuncia, os gestos, a maneira de vestir, o sotaque, tudo é
passível de receber um significado por parte do ouvinte. Para
atribuir um significado ao que o falante lhe diz, o ouvinte dispõe de
recursos: o dicionário, as regras de gramática, as leis, a moda, o
hábito, enfim, numa palavra, a cultura. É à cultura que o falante se
dirige através do ouvinte. A vicissitude do falante é não poder
garantir de antemão o significado que o ouvinte vai atribuir ao que
está dizendo. O falante sempre corre o risco de não ser entendido
como gostaria por parte do ouvinte. O falante não é dono do
significado do que diz. Tem que se submeter ao campo do Outro.
Por isso Lacan denota o sujeito falante por S (leia “esse barrado”).
Por outro lado, o sujeito nunca consegue dizer tudo o que
quer; sempre fica faltando um pedaço que o ouvinte, por mais que
se esforce, não consegue alcançar. Nenhum ouvinte dispõe do
significante da verdade íntima do sujeito. Por isso, é a própria
cultura que se apresenta falhada para o sujeito. Na cultura, falta seu
retrato fiel. Ele é apenas um nome, uma cédula de identidade, é só
aquele que mora ali, que é amigo do fulano, que é filho de beltrano,
aquele que ... O ouvinte, a pessoa ou grupo a quem o falante se dirige,
Lacan denomina pequeno outro e denota a (pequeno-a). À cultura,
entendida como o conjunto de recursos de que o ouvinte dispõe para
atribuir significado ao que ouve, Lacan denomina o grande Outro e
denota por A (do Latim, alter). Como a cultura não dispõe do que
seria o significante da verdade total deste particular sujeito falante,
ou seja, do significante de tudo o que ele ainda não disse e jamais
conseguirá dizer, segue que aquilo que o ouvinte devolve ao falante
87
FACETAS DO DIAMANTE
como resposta, nunca é o que o falante gostaria de ouvir. O Outro
tem, pois, uma falha constitutiva. Lacan denota o Outro por A (leia
“a barrado”).
Há um ponto que o conceito lacaniano de fala contraria
frontalmente a noção corrente de fala. Segundo o senso comum, o
sujeito fala quando lhe passa uma corrente de ar pela garganta de
modo que sons são emitidos, articulados em sílabas e palavras de
uma certa língua. O surdo-mudo fala por gestos ou tenta imitar a
emissão de sons. Diz-se que fala mal. Para Lacan essas condições
não bastam para caracterizar a fala. Além delas, é preciso que o
sujeito fale para alguém que lhe devolva a significação do que disse.
Falar é arriscar-se ao desentendimento. Não é necessário que o
sujeito mova os lábios. Sempre em função do que foi dito antes, um
gesto pode significar um convite ou uma ofensa, um sorriso pode
significar anuência ou ironia, um olhar pode significar simpatia ou
desprezo. Quando o sujeito ocasionalmente fala para alguém que se
ausentou sem lhe avisar ou para um boneco que ele tomara por uma
pessoa viva, essas são falas dirigidas ao grande Outro que recebem
um vazio como resposta. O sujeito arriscou-se, submeteu-se ao
desencontro e este lhe assomou sob forma de uma surpresa peculiar.
Para Lacan, nesse caso, o sujeito falou; o senso comum diz que ele
estava “falando sozinho”. Lacan não incluiria sob o conceito de fala
outras situações em que o senso comum diria que o sujeito está
“falando sozinho”. Por exemplo, o senso comum diz que o sujeito
fala quando está monologando, como na “fala egocêntrica” de
Piaget, ou mesmo quando “fala” para agradar o cachorro ou dar-lhe
uma instrução. No quadro lacaniano, a fala egocêntrica é
pensamento verbal, está no registro imaginário; a fala ao cachorro
depende só da musicalidade da língua, é da ordem do real, isto é, do
gozo.
Portanto, quando S se dirige a A através de a, há sempre um
desencontro. Não se trata, então de comunicação. Estamos já bem
longe das ideias de emissor, receptor, código, ruído que constituem
as teorias da comunicação. No máximo, quando o sujeito e o ouvinte
gostam de seu desencontro, podemos dizer que eles se comunicaram.
Nesse quadro teórico também se torna impossível falar em
88
FACETAS DO DIAMANTE
“interlocutores internos”. Dizer que o sujeito fala consigo mesmo é
um contrassenso, a menos que se trate da alucinação psicótica:
diálogo do sujeito com sua própria verdade. Em uma palavra, para
o senso comum, a fala é um texto, um enunciado. Para Lacan é uma
enunciação, um risco que o sujeito corre e que o constitui como
sujeito humano. A fala é sempre um desencontro e foi esse
desencontro que fez do macaco um homem. O desencontro, Lacan
denota por um losango à (leia “punção”). Então, a fórmula que
condensa toda a dialética do Sujeito e do Outro é S à A.
O discurso reflexionante dos alunos-professores foi dirigido
ao A através de ouvintes pequeno-a que já estavam rotulados por
significantes. Esses rótulos são principalmente o GPA, a academia,
e a escola. A significação do que disseram em seus relatos lhes foi
devolvida pela análise de suas falas e relatórios. Através dessa
análise um coordenador assumiu a posição de falante e os alunos-
professores lhe devolveram a significação do que disse, tudo em um
espaço de discurso próprio, o GPA. É isso que constitui a pesquisa-
ação.

O SIGNIFICANTE

O senso comum diria que o significante é aquilo que


representa o sujeito falante perante outro sujeito. Na conceituação
lacaniana não é assim. Por exemplo, quando os alunos-professores
redigem seus relatórios, eles estão se dirigindo ao GPA. É daí que
esperam obter acolhida de seus discursos. Se eles escrevem
“intervenção em sala de aula” ou “explicação ao aluno”, eles estão
se fazendo representar por esses significantes perante ouvintes a-
pequeno que já têm um rótulo: “GPA”. É da plenária do GPA que
virá a acolhida do que escrevem. Então, “intervenção” e “explicação”
representam o sujeito falante perante o significante “GPA”. É a
partir deste espaço de discurso que “intervenção” recebe uma
acolhida favorável e “explicação” uma acolhida desfavorável.
Porém, no momento da apresentação da pesquisa, por exemplo no
Simpósio de Iniciação Científica, os alunos-professores estarão se
89
FACETAS DO DIAMANTE
fazendo representar por esses mesmos significantes perante este
outro significante: “academia”. A partir do significante “academia”
a situação se inverte: “explicação” será acolhido com naturalidade e
simpatia, “intervenção” com estranheza e desconfiança. Por isso, o
significante é aquilo que representa o sujeito perante outro
significante, não perante outro sujeito.

PONTO DE BASTA E SIGNIFICANTE MESTRE

Quando o falante começa seu discurso, o ouvinte ainda não


sabe que significado atribuir a suas primeiras palavras. E preciso que
o falante continue, até que, em um certo momento o ouvinte diga
(ou pense) — Ah! Agora entendi. Só então as primeiras palavras do
falante tomam sentido.
Por exemplo, nesta frase: “Ai, amor, assim não podemos
continuar vivendo”, o “ai” inicial só toma seu significado diante de
“vivendo”, pronunciado mais tarde. Para ver isso, leia a frase várias
vezes e, de cada vez, suprima uma palavra, a começar pela última,
depois a penúltima, e assim até que sobre só sobre o “ai”. Veja
quantos significados esse “ai” poderia ter logo que foi pronunciado.
Em suma, é preciso que o falante fale pelo menos dois
significantes para que o segundo dê sentido ao primeiro. Um
significante sozinho não tem significado algum, é apenas um
significante ligado a outros por usos recentes. Por aqui nos
separamos da problemática da linguística clássica que fica fissurada
em descobrir a conexão entre significante e significado. Este
segundo significante, capaz de dar significado ao primeiro, é
denominado significante mestre. Ele determina o ponto de basta. É
o ponto do discurso a partir do qual os significantes anteriores
grudam-se a significados. A expressão ponto de basta é usada em
colchoaria: segundo Aurélio, basta é “cada um dos pontos grossos
com que se atravessa o colchão, coxim ou almofada para prender o
enchimento”. Em francês, é point de capiton.
90
FACETAS DO DIAMANTE
IDENTIFICAÇÃO SIMBÓLICA E PERTENÇA

A acolhida do discurso do falante pelo ouvinte e pelo grupo


social de onde parte essa acolhida, a integração/rejeição,
aproximação/ afastamento do sujeito em relação a este grupo, tudo
isso é a pertença. Pertença é, pois, o sujeito diante do grupo de
falantes identificados por um significante mestre, como “GPA”,
“escola”, “academia”. A identidade do sujeito enquanto pertencente
a um grupo de falantes, a ideologia, isso é a identificação simbólica
denotada I(A).

OS REGISTROS SIMBÓLICO, REAL E IMAGINÁRIO: A DEMANDA

Os registros são os polos a partir dos quais o falante se


apresenta. Sempre que fala, os três registros estão em jogo.
Não é por acaso que o falante fala. Há sempre algo a obter,
um objeto a apreender, algo que sempre escapa, por causa do
desencontro fundamental da linguagem, algo que está no ouvinte e
que este pode lhe dar, se escolher adequadamente o que lhe vai dizer.
Isso que o sujeito imagina que o outro tem e que o sujeito poderá
obter denomina-se demanda. Ao falar, o falante busca atender à
demanda do outro. Toda fala já é uma resposta. O objeto
inapreensível que está escondido no outro se apresenta ao sujeito
como uma miragem. Esta se desfaz cada vez que ele fala e se
reconstrui logo adiante, com aspectos diferentes. Ele precisa falar de
novo. Tem gente que fala desesperadamente, sem parar. A imagem
que o sujeito tem daquilo que quer e a imagem que ele quer que os
outros tenham dele, isso é o registro imaginário.
O falante nunca consegue dizer tudo, há sempre algo que
escapa e fica na sombra. Aquilo que ele diz, o verbo e os gestos pelos
quais se anuncia, constituem o registro simbólico. Aquilo que fica
escondido, aludido, não dito, esse é o registro real. O grande barato
do falante não está no que diz, mas no que esconde ao dizer. É
91
FACETAS DO DIAMANTE
através do que fica escondido, ou seja, é através do registro real que
se estabelece a pertença.

LEITURA SINTOMAL DOS RELATOS1

O método de leitura sintomal consiste no seguinte. Lê-se a


pergunta diretriz da pesquisa que gerou o texto e por causa da qual
se empreende a leitura. Faz-se uma primeira leitura do texto a partir
do real. Isso significa destacar, sublinhando com cores diferentes,
tudo aquilo que agrada ou que desagrada ao leitor naquilo que está
lendo, no caso, os relatórios que os alunos professores fizeram sobre
suas intervenções pedagógicas. Releem-se as frases sublinhadas
buscando as que mais agradam e as que mais desagradam ao leitor.
Estabelecem-se assim dois polos, um positivo P e um negativo N.
Marcam-se (negrito) os significantes mestres de cada passagem
sublinhada durante a leitura real. Sublinham-se (negrito) as
ocorrências dos significantes mestres no texto. Empreende-se uma
segunda leitura do texto, prestando atenção às passagens em que
ocorrem os significantes mestres marcados (negrito), destacando as
que mais claramente favorecem a P ou a N. Faz-se a interpretação
do porque desse favorecimento e de qual o interlocutor (pequeno-a)
a quem a passagem se dirige.
A leitura real dos relatórios dos alunos-professores levou aos
seguintes destaques e significantes mestres: aplicar, aula, conseguir,
deficiente, discutir, encaminhar, entender, erro, exigir, explicar,
expor, falar, grupo, intervir, mostrar, mudar, participar, perceber,
preparar, propor, saber, tempo, trabalhar.
Significante Linha Texto Valor
aplicar 108 O experimento aplicado demonstrou ser N
questionante para os alunos acerca do método
de ensino
aplicar 1009 ... decidiram aplicar na sala de aula, o que N
estavam aprendendo no momento
92
FACETAS DO DIAMANTE
aula 1071 Para uma aula de sexta-feira, no último P
horário, considerei isso como uma vitória.
aplicar 2004 ... consigam entender o que lhes foi N
passado ...
conseguir 1149 Considerei essa aula uma vitória, pois eu a P
Fernanda conseguimos fazer toda a sala
trabalhar durante os 40 minutos.
conseguir 1168 Considerei nosso trabalho um sucesso, pois P
mesmo com toda a inexperiência e medo,
conseguimos que os alunos trabalhassem
durante todo o tempo, em todas as
intervenções.
deficiente 80 Os alunos se mostraram deficientes em N
matemática ...
discuti 1018 Antes de começar com as intervenções em P
sala P de aula, discutimos no GPA o que
faríamos.
encaminhar 102 ... pois o estagiário não conseguia detectar P
onde estava a falha de seu encaminhamento.
entender 110 ... sacrificou seu recreio e ficou com o P
estagiário na tentativa de entender a noção
de escala.
erro 88 ...alguns grupos estavam sistematicamente N
cometendo o mesmo erro.
erro 91 ... teriam detectado o erro. N
exigir 2014 ... não tem muito “pique” para exigir mais N
atenção e esforço do aluno.
exigir 2245 Este deve estar preparado para responder as N
perguntas que possam surgir e para poder
exigir mais do aluno.
explicar 2083 Após a explicação elas caminharam N
normalmente.
explicar 2103 ... explicando como funcionava o N
experimento e o que deveriam observar.
93
FACETAS DO DIAMANTE
explicar 2125 ... percebi que isso precisava ser explicado N
com mais profundidade.
explicar 2169 ... tive um pouco de dificuldade para explicar N
a notação da equação V = S/t.
expor 115 Na verdade o método expositivo dera-lhes a P
falsa impressão de conhecimento
falar 1125 ... depois de muito falar, soltaram que era N
espaço dividido por tempo.
grupo 1004 ... partindo de aulas práticas ... usando, como P
método de ensino, o trabalho em grupo.
intervir 1018 Antes de começar com as intervenções em P
sala de aula, discutimos no GPA o que
faríamos.
intervir 1168 Considerei nosso trabalho um sucesso, pois P
mesmo com toda a inexperiência e medo,
conseguimos que os alunos trabalhassem
durante todo o tempo, em todas as
intervenções.
intervir 2263 ... nem sabíamos o que iríamos encontrar pela P
frente quando iniciamos a intervenção ...
mostrar 3 ... motivar e mudar a concepção sobre a N
física, e também mudar o comportamento do
aluno mostrando-lhe uma realidade
diferente ...
mudar 3 ... motivar e mudar a concepção sobre a N
física, e também mudar o comportamento do
aluno mostrando-lhe uma realidade
diferente ...
participar 39 A atitude da professora foi de grande P
participação no encaminhamento de
soluções para os problemas que surgiram.
perceber 1052 ... demoraram muito para perceber que o N
ponteiro do relógio tinha a mesma
velocidade ...
94
FACETAS DO DIAMANTE
preparar 1037 ... (o professor) deverá ir para cada aula pre- N
parado para todos os tipos de perguntas dos
alunos e respostas destes a suas perguntas.
preparar 2245 Este deve estar preparado para responder as N
perguntas que possam surgir e para poder
exigir mais do aluno.
propor 2009 ... propusemos ... o uso de laboratório de P
física sem que antes houvesse sido dada a
matéria de forma teórica.
saber 95 ... não sabiam colocar as grandezas e suas N
unidades nos eixos ... não sabiam calcular a
área de um retângulo;
tempo 1168 Considerei nosso trabalho um sucesso, pois P
mesmo com toda a inexperiência e medo,
conseguimos que os alunos trabalhassem
durante todo o tempo, em todas as
intervenções.
trabalhar 2269 ... alguns grupos grandes trabalharam muito N
bem.
trabalhar 1004 ... partindo de aulas práticas ... usando, como P
método de ensino, o trabalho em grupo.
trabalhar 1149 Considerei essa aula uma vitória, pois eu e a P
Fernanda conseguimos fazer toda a sala
trabalhar durante os 40 minutos.
trabalhar 1168 Considerei nosso trabalho um sucesso, pois P
mesmo com toda a inexperiência e medo,
conseguimos que os alunos trabalhassem
durante todo o tempo, em todas as
intervenções.

A releitura desses destaques levou à seguinte polaridade:


Polo positivo: Considerei nosso trabalho um sucesso,
pois mesmo com toda a inexperiência e medo,
conseguimos que os alunos trabalhassem durante todo o
tempo, em todas as intervenções [linha 1168].
95
FACETAS DO DIAMANTE
Polo negativo: ... motivar e mudar a concepção sobre a
física, e também mudar o comportamento do aluno
mostrando-lhe uma realidade diferente [linha 3].
Uma vez estabelecida a polaridade, passa-se a examinar em
relação a ela as demais ocorrências dos significantes mestres no
texto. O significante aplicar ocorre cinco vezes nos relatos:

Linha Texto
108 O experimento aplicado demonstrou ser questionante ...
1009 ... decidiram aplicar na sala de aula, o que estavam
aprendendo no momento ...
1022 Este trabalho consiste na aplicação de aulas práticas ...
2038 Para aplicação da atividade experimental ...
2256 20% pelos exercícios aplicados durante a aula;

Aplicam-se, pois, experimentos, aplica-se o que se está


aprendendo, aplicam-se aulas práticas, atividades e exercícios. O
termo “aplicar” filia-se à tradição do ensino tradicional vigente em
que o professor prepara e aplica algo que leva pronto para a aula.
Segundo o Aurélio “aplicar” significa “justapor; sobrepor; apor:
aplicar um emplastro”. É interessante essa ideia do emplastro:
aplicar sobre o aluno um emplastro formado por aparelhos de física
experimental. Será que foi isso que os alunos-professores sentiram
que estavam fazendo com eles na aula de física experimental [1008]
em que tomaram essa decisão?
É interessante notar que a quarta acepção que o Aurélio dá
para “aplicar” é “ministrar”, expressão usada na linha 19. O
significante “aplicar” fica atravessado quando entendido do ponto e
vista do GPA. “Aplicar” e “ministrar” são significantes clássicos do
ensino tradicional vigente. As passagens acima têm de ser tomadas
no sentido N.
O significante intervir ocorre 38 vezes, trinta das quais
como sinônimo de aula. Há uma ocorrência significando a
96
FACETAS DO DIAMANTE
metodologia da pesquisa que está sendo desenvolvida [8]. Há três
ocorrências significando o conjunto de aulas que ficaram sob
responsabilidade dos alunos-professores [18, 2021, 2264]. Esse
significado é usualmente atribuído à palavra minicurso, que também
não está no dicionário. Há uma ocorrência significando a
metodologia de ensino adotada [113], significado usualmente
atribuído à pedagogia. Há duas ocorrências significando alteração
ou mudança das rotinas de sala de aula [1018, 2067] e uma
ocorrência significando o conjunto dos episódios de uma aula
[1042].

Linha Texto Significado


8 ... o trabalho seria regido pela intervenção direta em metodologia
sala de aula ... da pesquisa
18 A intervenção começou no dia 30/03/98 ... minicurso
2021 ... época em que iniciamos a intervenção. minicurso
2264 ... encontrar pela frente quando iniciamos a minicurso
intervenção ...
113 ... que este modelo de intervenção não lhes tinha pedagogia
ensinado nada.
1018 Antes de começar com as intervenções em mudança mudança de
de sala de aula ... pedagogia
2067 Intervenções em sala de aula. mudança de
pedagogia
1042 Relatos das intervenções realizadas conjunto de
eventos da
sala de aula
1048 Nessa intervenção havia 11 alunos. aula

Como explicar essa polissemia? É oportuno comparar as


ocorrências dos significantes aplicar e intervir, como por exemplo:
... intervenções em sala de aula ... [1018].
97
FACETAS DO DIAMANTE
Este trabalho consiste na aplicação de aulas práticas
[1022]
Intervir em uma sala de aula é uma expressão
incompreensível do ponto de vista do ensino tradicional vigente,
para o qual o professor dá ou ministra aulas. Intervir significa,
segundo o Aurélio, tomar parte voluntariamente não por obrigação
contratual, meter-se de permeio, vir ou colocar-se entre, por
iniciativa própria; ingerir-se. “Intervir” foi o que o GPA colocou
aos alunos-professores como necessidade política, a partir da
discussão do Manifesto Sobre o Quotidiano da Escolaridade
Brasileira.
A expressão “aplicar” colocada duas linhas abaixo de
“intervir” mostra dramaticamente as vicissitudes da aluna-
professora vendo-se diante de demandas distintas, da escola que lhe
pede que “aplique” e do GPA que lhe pede que “intervenha”. Ela
costura os dois significantes em um discurso que lhe servirá de ponte
para passar de um a outro enquanto valor. Conjectura-se que
acontecerá o mesmo com as concepções espontâneas em sua
passagem para as concepções científicas através da mudança
conceitual. Haverá um discurso em que compareçam os
significantes antigos e os novos, como aqui, com intervir e aplicar?
E se isso é verdade será que também ocorre com os significantes das
concepções científicas, durante o período de ajuste das concepções
provisórias, também tem um período de uso polissêmico como
ocorreu aqui?
O significante aula aparece 55 vezes. Dessas, em 15
ocorrências pode-se substituir o significante “aula” por “encontro”,
como em “(folhas) entregues aos alunos, corrigidas, na aula seguinte”
[1029], “Ele (o professor) deverá ir para cada aula preparado para
todos os tipos de perguntas” [1037]. Em 6 ocorrências, “aula” é
sinônimo de “intervalo de tempo”: “... que os alunos trabalhem
durante todo período de aula ...” [1030]. Em 12 ocorrências, “aula”
tem o sentido de “ritual” como em “os alunos têm apenas uma aula
de física de 50 minutos por semana” [1016]. Em 3 ocorrências, “aula”
significa “sala”: “... cansados e com sono na aula” [2013]. Nas 19
ocorrências restantes, “aula” têm significado de “atividade” (2),
98
FACETAS DO DIAMANTE
“conjuntura” (2), “explanação” (3), “intervenção” (3), “lição” (8)
“mosaico” (l). Vejamos algumas dessas ocorrências.
“As aulas foram ministradas no horário de 19 às 21 horas”
[18].
Enquanto “aula” está empregado, aqui, no sentido de “lição”,
o termo “ministrar” está empregado no sentido de “dar”: as “lições”
foram “dadas”. No Aurélio encontramos as acepções figuradas do
verbete “lição”: Ensinamento, conselho ou exemplo que serve de
orientação à conduta, ao procedimento: Quem é você para me dar
lições? Experiência que serve de exemplo ou de aviso,
especialmente em caso de falta ou erro: Que isto lhe sirva de lição.
Repreensão. Ora, na concepção GPA, faz-se uma intervenção na
escola e as aulas são uma atividade conjunta de professor e aluno
em diálogo para produção de significados. Nesse sentido, o aluno
também “ministra” a aula, e o professor recebe uma lição. É isso que
expressa a frase: “Considerei essa aula uma vitória” [1149].
A professora ... participar ativamente das aulas [23].
A ocorrência é relevante porque no ensino tradicional
vigente não se espera que a professora se envolva. Ela poderia
assumir o papel de fiscal da instituição, avaliando se a turma está
sendo “dominada”, etc. Ter conseguido a colaboração de várias
pessoas em sala na posição de professor é certamente uma quebra
de rotina saudável, em que uns podem comentar o trabalho dos
outros. Do ponto de vista do ensino tradicional vigente isso é muito
estranho.
Essa pesquisa teve início em uma aula de instrumentação
para o ensino de Física [1008]. ...desmitificar a física,
para o aluno do 2º grau, partindo de aulas práticas
[1004]. ... alunos que não prestavam atenção em sua aula
[1074].
Nesses fragmentos “aula” pode ser lida como explanação.
Foi durante uma aula supostamente do ensino tradicional vigente
que os alunos-professores tiveram a ideia que estariam professores
dentro de um ano. Esse foi um claro ponto de basta, a partir do qual
toda a escolaridade anterior tomou sentido. Teriam se maravilhado
99
FACETAS DO DIAMANTE
com o experimento que estavam realizando e teria despertado neles
o desejo de correr com esse sentimento para as salas de aula para
desmitificar a física, para que outros alunos pudessem chegar à
mesma compreensão a que tinham chegado. Nesse momento os
alunos-professores estão diante do mundo, de suas vidas futuras,
diante de uma demanda em sentido amplo. Porém, as tentativas de
acudir o mundo não são um estímulo confiável ao início da profissão
e, na maior das vezes, levam à frustração.
A aula deverá ser composta por grupos [1025].
É interessante o verbo “compor” para descrever a aula.
Segundo o Aurélio “compor” significa, em primeira acepção
“formar ou construir de diferentes partes, ou de várias coisas: Com
móveis velhos comprados aqui e ali, conseguiu compor uma bela
sala”. Parece que a aluna-professora se esforça, aqui, para “compor”
um discurso diante das duas demandas: a aula ainda tem “final”,
ainda existe a “aula seguinte” e tem um “período”, como no ensino
tradicional vigente, entretanto, é composta por grupos, o que o
ensino tradicional vigente não pode entender. No contexto, os
fragmentos denotam um encaminhamento da aula muito próximo ao
da Assimilação Solidária que os alunos-professores experimentaram.
... grande risco de sua aula se tornar um caos [1032].
Do ponto de vista do ensino tradicional vigente uma aula
caótica é negativa; do ponto de vista do GPA, nem tanto, porque os
grupos em sua dialética atravessam estados de caos. O “grande risco”
mostra a aluna-professora diante da demanda escola. A intervenção,
compondo a aula com grupos, é um risco. Tanto que, há um subtítulo:
“Dificuldades que o professor encontrará com esse tipo de aula”
[1033].
O professor deverá encher todos os tubos com óleo antes
de começar a aula [1036]. Ele deverá ir para cada aula
preparado para todos os tipos de perguntas [1037].
No texto, a preparação se refere à possibilidade de encontrar
perguntas e respostas inesperadas dos alunos. Entretanto, como seria
possível a alguém preparar-se para o inesperado? Há aqui alusão a
um “preparo” do professor a ser feito antes da aula, um pouco
100
FACETAS DO DIAMANTE
semelhante ao que reza a doutrina do ensino tradicional vigente sobe
as licenciaturas: primeiro os conteúdos, depois os métodos. O
professor prepararia a aula em vez de preparar-se para a aula.
Procuraria prever de antemão tudo que pudesse ocorrer e quando
algo escapasse a essa previsão, só teria a alternativa de reprimir a
demanda ou afligir-se com o emergente.
Não deixar alunos que faltam trabalharem com alunos
que assistem a todas as aulas [1040].
“Assistir”, segundo o Aurélio, significa “estar presente,
comparecer, ver, testemunhar; notar”. É um significante clássico do
ensino tradicional vigente com o qual a aluna-professora se refere
ao aluno diante da escola. O uso desse verbo fica atravessado no
discurso do GPA, que usaria, de preferência, algo como “participar”.
O significante discutir ocorre em 14 passagens dos relatos.

Linha Texto Significado


7 A forma de trabalho foi discutida no GPA ... 4
14 O experimento possibilitaria discutir temas ... 1
1018 ... discutimos no GPA o que faríamos. 4
1060 Pense melhor e discuta com o grupo ... 5
1094 Pense melhor, discutam entre si ... 5
1104 ... discutiram sobre densidade e variação ... 2
1105 ... discutiram o sobre o que é velocidade. 2
1106 ... discutiram bastante sobre velocidade ... 2
1161 Discutimos bastante 2
37 ... os grupos ... se mantiveram atentos às discussões 2
das situações ...
49 deu margem para a discussão da estrutura 1
molecular ...
1068 ... que colocassem todas essas discussões em suas 3
folhas.
101
FACETAS DO DIAMANTE
1115 Depois de muita discussão, chegaram a que ... 2
1141 ... depois de algumas discussões, chegou ... 2

No Aurélio, discutir significa “debater, examinar, investigar,


questionando, pôr em debate, em discussão; contestar, defender ou
impugnar, questionar” e discussão significa, além da ação de
discutir, debate, controvérsia, polêmica, altercação, contenda,
disputa. Talvez por causa dessa última acepção, discutir é
claramente um valor negativo para o ensino tradicional vigente. Não
se discute com a professora! ensinavam os pais, antigamente. Não
se discute o saber instituído, não se discute com o sujeito suposto
saber. No início da lei há um certo fora da lei que não se pode,
porque não se deve, discutir, diz Zizek.
Entretanto, os significados que se podem inferir do uso deste
termo nas quatorze ocorrências dos relatos é outro: discutir é usado
ali no sentido de:
l. Introduzir um tópico de conteúdo: deu margem para a
discussão da estrutura molecular... [49]. O experimento
possibilitaria discutir temas ... [14].
2. Negociar um significado consensual: Depois de muita
discussão, chegaram a que ... [1115]. discutiram o
sobre o que é velocidade [1105].
3. Resultado da negociação: que colocassem todas essas
discussões em suas folhas [1068].
4. Negociar uma ação ou empreendimento: A forma de
trabalho foi discutida no GPA ... [7]. discutimos no
GPA o que faríamos [1018].
5. Correção de um enunciado diferente do veiculado,
que é rejeitado pelo aluno-professor: Pense melhor
(porque não pensou bem), discutam entre si (para
chegarem a um resultado consensual, diferente deste que
você me apresentou) [1060, 1094].
Desses significados, pode-se atribuir valor positivo aos três
primeiros, que são sintomas da tentativa de introduzir tópicos sem
impô-los como obrigatórios pela instituição, a partir do que os
102
FACETAS DO DIAMANTE
alunos sabem. O que se pede que coloquem nas folhas não é a
“resposta certa” ou o resultado do experimento, mas pede-se que
coloquem a própria discussão, o que, certamente não seria possível.
O que o aluno-professor, indiretamente, lhes pede para colocar ali,
são suas próprias opiniões, formadas após a discussão. Ao quinto
significado, deve-se atribuir o valor N, uma vez que é apenas uma
maneira mais sutil de a aluna-professora dizer que o aluno não
atingiu o que ela esperava.
Ê interessante contrapor a ocorrência do quarto significado
às demais ocorrências. Os alunos-professores usam o mesmo
significante discutir para se fazerem representar frente a estes dois
outros significantes, o GPA e os alunos. Além disso, através do
discutam entre si e discuta com o grupo, estimulam cada aluno a se
fazer representar, também, através desse significante.

EFEITOS DA LEITURA SINTOMAL

Essa análise poderá prosseguir com os demais significantes


mestres, porém, o que foi feito cá é suficiente para mostrar a
aplicação do método de leitura sintomal no quadro lacaniano e
mostrou-se, também, suficiente para provocar a reflexão dos alunos-
professores sobre seus discursos reflexionantes. O leitor poderá
prosseguir, com interpretações das ocorrências dos demais
significantes destacados no início, ou recomeçá-la a partir de outras
polaridades iniciais. Poderá, mesmo, se esse for seu interesse,
quantificar esse método, contando as ocorrências de passagens
positivas e negativas nos relatos de cada aluno-professor, de modo
a obter um índice que quanto o relato se aproxima da polaridade
positiva ou da negativa. Para relatos no âmbito do ensino tradicional
vigente, esse método levaria a uma “nota”.
A leitura que os alunos-professores fizeram desta análise até
o ponto em que encontra parece ter sido suficiente para colocar o
leitor na posição de falante e produzir uma ressignificação de seus
discursos reflexionantes. Isso se depreende dos relatos finais que
103
FACETAS DO DIAMANTE
cada um fez da experiência pessoal que viveu durante este semestre
bem como dos dois episódios relatados a seguir.

EPISÓDIO 1

Quando os alunos-professores leram a análise feita acima,


um deles ficou preocupado com os valores negativos atribuídos às
primeiras passagens de seu relatório. Argumentou que isso não era
bem assim, que sob este negativo poder-se-ia descobrir um valor
positivo.
— Certamente, você pode empreender uma leitura
sintomal que chegue a conclusões opostas, disse-lhe o
coordenador. Você pode argumentar que isso a que eu
atribuí valor negativo, é, na verdade, positivo. Logo
adiante, quando aparecerem os valores positivos, você
poderá argumentar, com igual ênfase, que também
podem ser considerados como negativos. Porém, se você
só argumentar contra o que aí está como negativo, vai
ficar estranho.
Os outros riram. O aluno-professor ficou pensativo. A leitura
sintomal pôde ser sustentada.

Episódio 2

Quando esta pesquisa estava por encerrar-se, já no mês de


junho, um aluno-professor relatou a experiência que teve na
disciplina Prática de Ensino de Física, cujas aulas um professor,
recém contratado, começara a dar.
Ele nos atribuiu a tarefa de observar aulas, fazer um
projeto, ministrar e relatar uma aula dada por nós. Eu
escolhi uma sala de aula e conversei com a professora.
Ela ficou muito contente ao saber que eu daria uma aula.
Assim posso descansar um dia, me disse ela.
104
FACETAS DO DIAMANTE
— Eu observei duas aulas dela, mas vou dizer ao
professor que não está adiantando fazer esse estágio
porque tudo o que eu estou vendo acontecer lá foi o que
eu sempre vi acontecer nas aulas que tive aqui, na
UNESP. Só que aqui a gente respeita o professor, lá não.
Por quê?
— A aula era a maior bagunça. A professora entrou
gritando, mas eles nem ligaram. Os de trás ficavam
conversando; conversavam, mas copiavam. Os da frente,
nem isso faziam, ficavam olhando pela janela. ... Uma
menina estava dormindo. Quando tentaram acordá-la ela
se irritou, ficou nervosa. Um menino estava lendo um
livro. Acho que era Machado de Assis. A professora
mandou que ele fechasse o livro e prestasse atenção à
aula. Ela começou a jogar a matéria na lousa. Passou
cinco exercícios e disse que era para recuperar as faltas.
Só que ela mesma foi resolvendo todos no quadro e os
alunos copiando: (Dt1, Dt2, Dt3, ...). Eu tinha que ficar só
observando, não podia interferir, mas não me contive.
Perguntei a um aluno que triângulo era aquele. Eles
arregalaram os olhos, confabularam e responderam: —
É delta. Eu perguntei o que isso significava. Ih,
professora, essas coisas a gente não sabe não.
Você conversou com a professora?
Isso não adiantaria. Ela se formou no ano passado
aqui, na UNESP. Foi minha colega. Se ela já está assim,
imagina daqui a dez ou vinte anos!
Finalmente o aluno-professor revelou:
— Foi mesma professora em cujas aulas nós fizemos a
intervenção. Ela participou e viu tudo. Parece que não
adiantou nada ...
— É, comentou o coordenador, você poderia vir a fazer
a mesma coisa no ano que vem se não tivesse passado
pela reelaboração de seu discurso reflexionante.
Esperemos que, com você, tenha dado certo.
O relato desse episódio até esse ponto foi lido pelos alunos-
professores.
105
FACETAS DO DIAMANTE
— Qual será a reação da colega de vocês? perguntou o
coordenador. Ela poderá ficar magoada.
O assunto foi discutido em duas reuniões. Os três alunos-
professores decidiram manter o relato do episódio porque “foi isso
mesmo que aconteceu”
Pediu-se que os alunos-professores escrevessem um
comentário final de caráter pessoal sobre como viam as mudanças
de seus pontos de vista durante o trabalho no GPA. Argumentou-se
que a simbolização da mudança seria um fator importante para
estabilizar a nova prática, instituindo o compromisso político.
Alessandra foi quem mais teve dificuldade. Ela escreveu um
primeiro comentário absolutamente neutro, sem qualquer conotação
pessoal. Entretanto, durante as reuniões, ela tinha sido autora de
frases como: — “Saí daqui pensando que estou em crise de
identidade. Que tipo de professora vou ser?” Sobre a discussão feita
do uso do significante “discutir” em seu relato: — “Agora é que eu
estou percebendo o que eu falei. Falei tanto isso que nem notei”. No
final da intervenção: — “Ficaram tristes porque terminou. Fiquei
triste, vou ser professora.” “Estou cheia de dúvidas a respeito de que
professora vou ser. Hoje, se eu pegar uma aula para dar, não sei,
juro”.

DEPOIMENTO DE ALESSANDRA

A princípio eu e Fernanda pensávamos em desenvolver um


projeto de extensão, mas não tivemos apoio no nosso Departamento,
então fomos conhecer o GPA. Era diferente de tudo que eu conhecia,
fiquei deslumbrada. Decidimos que iríamos desenvolver nosso
projeto ali. Eu não pensava que essa decisão iria abalar todas as
certezas que foram concretizadas durante meu período de
escolaridade, no qual fui submetida ao método tradicional de ensino.
Hoje não sou a mesma pessoa comparada com a que entrou no
começo do semestre no GPA, pois esse abriu meus olhos e agora sou
capaz de questionar o ensino vigente.
106
FACETAS DO DIAMANTE
Até então eu sabia que estava errada mas não tinha uma
solução para este ensino. Agora tenho, e isso foi confirmado com as
intervenções que fizemos na Escola Estadual Baptista Leme e que
deram certo.
Tudo isso foi possível graças ao grupão e ao subgrupo, pois
com eles fui informada da atual situação do ensino público. A partir
das discussões realizadas no grupão surgiu o Manifesto do
Cotidiano da Escolaridade Brasileira. Eu só tenho a agradecer aos
componentes do Subgrupo do qual participei por serem pessoas
maravilhosas que me ouviram e apontaram todas as minhas falhas
quando necessário.
Antes eu achava muito fácil dar aulas para alguém, era só
colocar o conteúdo. Aqui, depois que tive contato com Lacan, dar
aulas ficou tão complicado. Mas é por aí. Pena que ninguém faz isso,
ninguém procura seguir uma linha.

DEPOIMENTO DE FERNANDA

Quando resolvemos procurar o GPA para tentar pôr em


prática o projeto que tínhamos, senti-me um pouco insegura, até
amedrontada, talvez por ser uma nova experiência; normalmente o
novo causa medo. Não sabia o que viria pela frente, nem mesmo
como nossa proposta seria recebida, pois estávamos fora de nosso
“habitat” natural.
Mas logo na primeira reunião essas sensações desfizeram-se.
Nossa proposta foi aceita e um subgrupo sobre ensino de Física foi
formado. Ele foi composto por pessoas extremamente interessadas
e amigas, motivo pelo qual, talvez, o trabalho tenha caminhado tão
bem.
Em nossas reuniões, que eram aos sábados, das 9:00 às
11:00h, o ritmo do trabalho foi sempre bom e dinâmico.
Discutíamos como as intervenções poderiam ser feitas, expondo
ideias e opiniões sobre fatos ocorridos após as intervenções terem
107
FACETAS DO DIAMANTE
sido iniciadas. Compartilhávamos com o grupo as dúvidas e
problemas, para que, com a ajuda de todos tentássemos resolvê-los.
Após o encontro do subgrupo de ensino de Física, nos
juntávamos aos outros subgrupos do GPA formando uma grande
plenária na qual cada grupo relatava resumidamente sua atividade
da semana. Muitas vezes algum fato ocorrido era discutido com
mais profundidade.
Um destes fatos descrevia cenas de violência ocorridas em
escolas públicas. Deste relato e de sua discussão surgiu um
documento intitulado Manifesto sobre o Cotidiano da Escolaridade
Brasileira que foi enviado a jornais e colocado na Internet, com o
intuito de divulgar cenas tristes que já estão tornando-se cotidianas
nas escolas brasileiras e de alertar a população para um problema
que dia a dia agrava-se mais.
Uma das coisas que mais me impressionou no GPA foi a
harmonia com que o grupo trabalha, mesmo sendo tão heterogêneo,
pois nele estão professores de primeiro, segundo e terceiro graus,
alunos de graduação e pós-graduação de vários cursos, enfim
pessoas bem diferentes mas todas com um propósito em comum, a
melhora do ensino.

DEPOIMENTO DE LUIZ GONZAGA

Do Luiz Gonzaga que começou o ano de 1998, lembro-me


de várias características, podendo, com clareza, colocá-las:
apaixonado pela vida, brincalhão, honesto, esquecido, trabalhador,
idealista, ativo. Tem fervorosa paixão pela Física e pela Educação.
Daí vem toda sua rebeldia e revolta. Por muitas vezes fica
desorientado, reflexo de falta de metodologia do conhecimento,
tanto científica como humana.
Tendo tido a oportunidade de ingressar no GPA para
executar um trabalho que envolve o ensino de Física para escolas
estaduais de ensino médio, não hesitei e aceitei prontamente, pois é
um tema no qual já venho trabalhando.
108
FACETAS DO DIAMANTE
Logo de início percebi que as pessoas com quem estava
trabalhando são pessoas que realmente trabalham sério, dentro de
um espírito questionante que valoriza o trabalho em grupo e o
respeito entre as pessoas e se preocupam, não só com o ensino e a
compreensão, mas também com as implicações sociais e políticas
desse trabalho. Nesse grupo, vários temas são abordados e
discutidos, como ensino na pré-escola, números reais, jogos no
aprendizado da matemática sobre o tema “meio ambiente”. Fornece-
se assim uma perspectiva diferente ao futuro professor, dando-lhe
uma visão geral para a compreensão dos fatos que regem a sociedade
e, ainda, a oportunidade de tomar contato com pessoas de diferentes
cursos e discursos, gerando um ambiente que estimula a busca do
saber; tanto através da leitura como de filmes e discussões.
Fundamentado em pensadores que fogem da atual ordem
social (Lacan e Marx, Manifesto Comunista) o trabalho influencia
as pessoas a se perguntarem e atuarem de maneira diferente,
questionando até professores e colegas. Valoriza-se o que o ser
humano tem de mais eficaz e igualitário, o trabalho (ação), sendo
este a fonte de todo o nosso estudo, mantendo os homens unidos em
uma única corrente de mudanças que visam o bem comum, através
do que denominamos ensino.
A partir destas considerações e ao final de seis meses de
trabalho junto ao GPA, o Luiz Gonzaga está com o mesmo
entusiasmo pela vida, pela Educação e pela física e, ainda, com a
mesma revolta e rebeldia, só que agora, com uma bússola como
orientação, com uma metodologia, tanto acadêmica como para a
vida. Essa bússola não é do discurso em si (do sistema vigente), mas
o TRABALHO de GRUPO. Este ambiente novo me proporcionou
retomar as leituras, afim de buscar e me envolver com o sentimento
de mudança que se apoderou de meus atos.
Tento dar ou dou às pessoas as mesmas oportunidades de
participarem do desfile da vida, trazer de volta indivíduos que
ficaram vendo o mundo rodar sem interagir e não compreendendo o
porque das palmas dadas àqueles que desfilam.
109
FACETAS DO DIAMANTE
Por fim, agradeço a oportunidade de trabalhar com o
professor e a pessoa Baldino, pela qual tenho grande admiração e
com as pessoas que compõem este grupo de trabalho, Sérgio, Miguel,
Alessandra e Fernanda, bem como as demais pessoas que compõem
o GPA.

PALAVRAS FINAIS

Esperamos ter, se não mostrado, pelo menos argumentado


sobre a importância de um foro regular para ouvir o discurso
reflexionante dos alunos-professores sobre suas práticas de sala de
aula. É a partir dessa escuta que se devolve ao aluno-professor o
significado daquilo que disse. Essa escuta não é incondicional, nem
neutra. É através dela que se submete o aluno professor aos riscos
que todo falante corre. Seu discurso pode ser acolhido ou rechaçado,
porque o foro está constituído há muito tempo e tem valores bem
definidos quanto a atuação de professores em sala de aula. O foro é
favorável a certas práticas e rejeita outras. O recobrimento das
práticas dos alunos-professores pelo discurso reflexionante acolhido
é que confere estabilidade a formação do professor educador.
O ensino tradicional vigente tem seus foros informais onde
termina sendo corroborada e reproduzida a ideologia da prática
científica que assegura as rotinas e os fracassos do ensino da
matemática e das ciências. A pesquisa-ação é o instrumento que
permite introduzir um foro formal, com outros valores, onde tais
rotinas e fracassos sejam analisados e alternativas sejam
desenvolvidas. Entretanto, a pesquisa-ação é um mero instrumento.
É preciso que o foro que se cria através dela se paute por valores de
independência, competência e compromisso, conforme
esclarecemos no início. A construção de grupos de pesquisa-ação
em Educação Matemática, os GPA’s, insere-se assim na prática
política como elementos necessários à formação de professores.
110
FACETAS DO DIAMANTE
NOTA
1. Por falta de espaço, os relatos dos alunos-professores sobre suas experiências
de sala de aula não foram transcritos aqui. Para precisar as referências as linhas
foram numeradas: Luiz Gonzaga, de 0 a 1000, Alessandra de 1000 a 2000 e
Fernanda, de 2000 a 3000.

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BOURDIEU, P., e PASSERON, J. C. A Reprodução. Elementos


para uma Teoria do Sistema de Ensino. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1982.
111
FACETAS DO DIAMANTE
CABRAL, T. C. B. Contribuições da Psicanálise à Educação
Matemática. Tese de Doutorado, FE-USP. 1998.

KUHN, T. (1977). The Essential Tension: Selected Studies in


Scientific Tradition and Change. Chicago: U. of Chicago Press,
1977. [Tradução de Rui Pacheco, A Tensão Essencial. Lisboa:
Edições 70.]

SOUZA, A. C. C, TEIXEIRA, M. V., BALDINO, R. R., e


CABRAL, T. C. B. Novas Diretrizes para a Licenciatura. Temas e
Debates, ano 8, n. 7, 1995.

SOARES, E. F., FERREIRA, M. C. C., e MOREIRA, P. C. Da


Prática do Matemático para a Prática do Professor: Mudando o
Referencial da Formação Matemática do Licenciando. Zetetiké, v.
5, n. 7, 1997.

SOUZA, A. C. C., CABRAL, T. C. B., BICUDO, I., TEIXEIRA, M.


V., BICUDO, M. A. V, e BALDINO, R. R. Diretrizes para a
Licenciatura em Matemática. BOLEMA, ano 6, n. 7, 1991.
112
FACETAS DO DIAMANTE
113
FACETAS DO DIAMANTE

FUNÇÕES E GRÁFICOS:
ALGUNS OBSTÁCULOS COGNITIVOS

John A. Fossa
Maria da Glória de Sousa e Silva Fossa

O presente trabalho tenta desvendar os mais importantes


obstáculos cognitivos que levam o aluno a não desenvolvimento do
conceito geral de função. Faz parte de um projeto mais amplo,
parcialmente reportado noutro lugar.1 Por obstáculo cognitivo,
entendemos o que é às vezes denominado de obstáculo
epistemológico, isto é, em termos de esquemas conceituais,
esquemas que são de alguma forma inapropriados ao
desenvolvimento do novo conceito. Um exemplo simples seria o de
um aluno que pensa que é necessário que um número seja ímpar para
que seja primo; assim, ele teria grandes problemas em reconhecer 2
como um número primo.
A metodologia usada na presente parte da pesquisa consiste
em apresentar vários gráficos aos entrevistados e perguntar se os
gráficos representam ou não gráficos de funções; no caso negativo,
os entrevistados tiveram de indicar porque não as representam.
Participaram no estudo 39 alunos de várias turmas de Cálculo I da
UFRN, englobando alunos de tais Cursos como Matemática, Física,
Química, várias Engenharias, Economia e Administração. As
respostas dos alunos não apresentaram grandes diferenças por Curso,
o que era de esperar uma vez de que todos eles estavam ainda no
primeiro semestre dos seus respectivos Cursos.
Notamos ainda que a pesquisa era uma replicação com
extensões de uma pesquisa feita na Inglaterra por Tall e Bakar.2
114
FACETAS DO DIAMANTE
Enquanto a interpretação deles estava centrada sobre o conceito de
protótipos e nossa sobre o conceito de obstáculos — o que achamos
mais propício para a interpretação — não terá maiores dificuldades
na comparação dos resultados das duas pesquisas nos quesitos que
tenham em comum.

OS GRÁFICOS

Figura 1 representa uma parábola e foi corretamente


reconhecida como um gráfico de uma função por todos os
participantes. No estudo inglês3, o resultado foi muito parecido, 97%
respondendo Sim e apenas 3% Não. A grande familiaridade dos
alunos com esta figura é, sem dúvida, a razão do acerto.

Figura 1. Sim 100% Figura 2. Sim 36%


Não 0% Não 59%

Somente 59% dos participantes responderam corretamente


que a Figura 2 não representa uma função.4 Este resultado difere
bastante do resultado do estudo inglês em que 80% dos entrevistados
indicou que a figura é um gráfico de uma função. Tall e Bakar
argumenta que a grande familiaridade dos alunos com estas duas
figuras levou-os a incorporar todas as duas no seu protótipo de
função. Nossos alunos desenharam retas verticais sobre os gráficos
e notaram que a interseção aconteceu em dois pontos. De fato, esta
técnica foi usada com muito sucesso nas primeiras seis figuras.
Além disto, a técnica parece ter sido utilizada com consciência do
115
FACETAS DO DIAMANTE
que se tratava, pois quase sempre adicionaram a explicação de que
“há elementos do domínio que correspondem a duas imagens”.
Quando a mesma pergunta era feita usando
semicircunferências em vez de parábolas, Figura 3 e Figura 4,
resultados semelhantes foram obtidos:

Figura 3. Sim 77% Figura 4. Sim 18%


Não 15% Não 69%

No estudo inglês 91% responderam Sim para Figura 3 e 70%


disseram Sim para Figura 4. A grande preocupação dos alunos
ingleses era o fato de que há pontos “sem valores”. Somente um dos
participantes do nosso estudo alegou que as duas figuras não
poderiam ser gráficos de funções porque “não é definida para todos
os valores de x”. Esta preocupação, porém, se tornou mais marcante
nas Figuras 11 e 12. Segundo Tall e Bakar, os alunos incorporaram
a continuidade — no sentido de que o gráfico não tenha nenhuma
quebra — no seu protótipo de função. Em termos geométricos, sua
interpretação é provavelmente correta. Em termos algébricos, porém,
há uma razão que nos parece mais importante, a saber, o aluno não
parece ciente do papel do domínio na definição de função. De fato,
quando os participantes foram perguntados sobre a definição de
função, nenhum deles sequer mencionou o domínio na sua definição.
Os resultados para Figura 5 e Figura 6 tendem a corroborar estas
considerações:
116
FACETAS DO DIAMANTE

Figura 5. Sim 77% Figura 6. Sim 28%


Não 15% Não 69%

A Figura 5 não fez parte do estudo inglês. Mais do que dois


terços dos estudantes ingleses, porém, indicaram que a Figura 6
representa uma função. De novo, Tall e Bakar cita a familiaridade
da figura com a sua incorporação no protótipo de função. Como já
vimos esta interpretação não é aplicável aos nossos alunos, pois
estes eram bastante consistentes na aplicação do critério de
“imagens múltiplas”. Como veremos, porém, em casos menos
conhecidos e em que o referido critério não é aplicável houve mais
confusão.
De fato, o nível de acertos se mantém mais ou menos
constante para os próximos quatro gráficos. É até provável que
muitos dos participantes simplesmente usaram o critério citado no
parágrafo anterior e, desde que as imagens são únicas nestes quatro
casos, assinalaram as figuras como gráficos de funções. Mesmo
assim, vários alunos começaram a ter dúvidas, pois, como uma
resposta à Figura 9 frisou, “desconheço uma função com estas
características”. Logo, começaram a surgir outros critérios para
complementar o critério de “imagens múltiplas”. As respostas aos
itens 7 e 8 foram as seguintes:
117
FACETAS DO DIAMANTE

Figura 7. Sim 74% Figura 8. Sim 62%


Não 21% Não 26%

Os universitários ingleses responderam Sim em um nível de


91 % para Figura 7 e 72% para Figura 8. Os que responderam Não
alegaram que os gráficos são irregulares demais ou demasiadamente
complicados para ser funções. Os nossos alunos que responderam
Não para estes dois itens explicaram que “a reta que passa pela
origem não pode mudar de direção” ou “não pode ser crescente e
constante ao mesmo tempo”. Nos parece que a interpretação de Tall
e Bakar para estes itens está correta: a falta de um padrão
reconhecível leva os alunos a pensar que o gráfico não pode
representar uma função. Assim, pelo menos implicitamente, os
alunos que responderam Não a estas questões exigem que o gráfico
de uma função exibe uma periodicidade simples e reconhecível.

Figura 9. Sim 69%


Não 23%

As respostas à Figura 9 simplesmente confirmam o que era


posto referente às duas figuras anteriores.
118
FACETAS DO DIAMANTE

Figura 10. Sim 87%


Não 8%

A Figura 10 representa uma função constante e, como era de


esperar, a grande maioria dos nossos alunos acertaram esta pergunta.
Surpreendentemente, porém, 44% dos alunos do estudo inglês
responderam Não para a função constante. A sua preocupação,
como foi reportada por Tall e Bakar, era a mesma dos poucos alunos
nossos que responderam no negativo: não há dependência entre os
valores de x e y, pois quando x muda y não muda concomitantemente!
Desde que não há variação, segundo eles, no valor de y quando x
varia, não há função.
As Figuras 11 e 12 não fizeram parte do estudo inglês, mas
nos forneceram algumas respostas muito interessantes. A Figura 11
foi assinalada por 41% dos participantes como Não sendo o gráfico
de uma função:

Figura 11. Sim 56%


Não 41%
119
FACETAS DO DIAMANTE
Nesta figura, muitos alunos alegaram que o gráfico não
poderia representar uma função porque para alguns x não há um
valor para f(x). Isto é, estes alunos esperam que para ser uma função
o gráfico tem de ser contínuo. De fato, um aluno confirmou esta
interpretação no item seguinte em afirmar que o gráfico não era uma
função porque “não há continuidade”. Um aluno respondeu Não à
Figura 11 usando uma forma criativa do critério da reta vertical: em
vez da vertical, usou uma reta horizontal (!), embora não tenha usado
este recurso em qualquer outro item do questionário. O aluno
provavelmente não queria aceitar a Figura como uma função, mas
não dispunha de uma razão para não a classificar como tal; assim,
ele encontrou a saída exposta.

Figura 12. Sim 26%


Não 56%

A Figura 12 foi a mais difícil para os nossos alunos, pois


somente 26% assinalou corretamente que o gráfico de fato
representa uma função. Mais do que a metade, ou seja 56%,
respondeu Não e 18% deixou o item em branco. Os que
responderam que não poderia ser uma função deram uma das duas
seguintes razões para justificar a sua resposta: l.) “não há
continuidade”; 2.) “não há relação” entre os valores de x e y.

CONCLUSÕES

Dos resultados do presente estudo, podemos concluir que


uma parcela considerável dos alunos que chegam à universidade
120
FACETAS DO DIAMANTE
chega portando alguns obstáculos cognitivos referentes ao conceito
de função. Sabe-se que já tenham estudado a definição Bourbaki-
Dirichlet de função de uma forma ou outra e deste retêm a condição
de que a função não pode ter mais do que um único valor para
qualquer dado argumento. Aplicam o critério da reta vertical com
consciência para constatar a referida condição. Porém, a definição
Bourbaki-Dirichlet não é apreciada na sua plena generalidade, pois
imponham outras condições nos gráficos para estes serem aceitos
como funções.
Em primeiro lugar, tomando a coordenação do plano no
sentido tradicional, os alunos exigem que cada x seja associado a
algum y. Parece que há dois tipos de raciocínio relacionado a essa
exigência. O primeiro é que o gráfico deve, para eles, ser contínuo,
onde por “contínuo” é entendido “sem buracos”. O raciocínio é
bastante geométrico e/ou pictural. Há outros alunos, porém, que
parecem ter um tipo de raciocínio mais algébrico quando fazem a
referida exigência, pois a objeção é que nem todo elemento do
domínio tem uma imagem. Nenhum aluno, porém, foi capaz de
formular a objeção nestes termos. Da verdade, o fato de que eles
julgaram (pelo menos implicitamente) que o domínio é sempre
todos os reais enfatiza que uma das maiores falhas no seu
entendimento de funções é que não compreendem os conceitos de
domínio, contradomínio e imagem.
A segunda exigência que os alunos fazem com frequência é
que o gráfico de uma função deve apresentar um desenho simples
ou, na pior das hipóteses, uma periodicidade reconhecível. É
provável que os alunos estão relacionando função com expressão
algébrica;5 o problema então é que não consigam imaginar uma
expressão algébrica que poderia gerar o gráfico. Isto é, vejam o
gráfico como complicado demais para ser descrito por uma
expressão algébrica.
Finalmente, há uma forte exigência de que sem variação
concomitante de natureza simples e reconhecível entre as variáveis,
não há dependência funcional. É até provável que este obstáculo seja
por trás de tais observações como “uma função não pode ser
crescente e constante ao mesmo tempo”. Sem dúvida, o obstáculo
121
FACETAS DO DIAMANTE
origina da (pouca) experiência dos alunos com funções usadas nas
ciências para modelar situações simples, como a lei de movimento
regido por aceleração gravitacional modelada pela parábola.
É interessante notar que todas estas exigências realmente
formam um sistema aparentemente consistente em que cada
obstáculo reforça os outros na mente dos alunos. Assim, o gráfico
de uma função deve ter um desenho simples, resultando de uma
equação simples, ser contínuo e mostrar como a variável dependente
varia com a variação na variável independente. As aplicações
“práticas”, sejam elas vistas na aula de matemática ou na aula das
várias ciências, tendem a reforçar ainda mais estas percepções.
O que deveríamos fazer para combater estes obstáculos e
assegurar uma compreensão mais profunda da definição Bourbaki-
Dirichlet do conceito de função? Há, de fato, várias possibilidades,
porém, gostaríamos de fazer uma outra sugestão. A grande maioria
dos alunos nunca necessitará a referida definição. Então, porque não
aproveitar da base cognitiva destes alunos e tratar funções no sentido
de variação concomitante de variáveis? Neste contexto, será fácil
manter a condição do valor único para cada argumento. Também
será fácil trabalhar com aplicações significantes de funções
descontínuas e com domínios limitados. Para os que necessitam de
um ponto de vista mais abstrata, será muito aproveitável fazer a
generalização, no lugar apropriado, dentro de um contexto instruído
pela história da matemática.

NOTAS
1. FOSSA, John A., e FOSSA, Maria da Glória de Sousa e Silva. Funções,
Equações e Regras. In: FOSSA, John A. Ensaios sobre a Educação
Matemática. Belém: Editora da UEPA, 2001
2. TALL, David, e BAKAR, MdNor. Students’ Mental Prototypes for Functions
and Graphs. In: J. Math. Educ. Sci. Technol., v. 23 (l), 1992.
3. O referido estudo dividiu os resultados em duas categorias: respostas de alunos
universitários e respostas de alunos de escolas secundárias. A nossa
comparação sempre será com os alunos universitárias.
4. A soma das porcentagens das respostas Sim e Não nem sempre é 100% porque
alguns alunos deixaram vários itens em branco.
122
FACETAS DO DIAMANTE
5. Veja FOSSA e FOSSA, op. cit.
123
FACETAS DO DIAMANTE

SEGUNDA FACETA:
HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

A Segunda Faceta consiste de quatro artigos sobre a


História da Matemática, apresentados a seguir.
Dra Circe Mary Silva da Silva é professora do Departamento
de Didática e Prática de Ensino e do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Seu artigo,
“O Livro Didático de Matemática no Brasil no Século XIX”,
investiga o papel do livro didático usado no Brasil no século passado
para esclarecer a História da Matemática no Brasil deste século. São
considerados livros escritos no exterior e traduzidos para o
português bem como livros escritos por brasileiros. Adjunta alguns
dados biográficos dos tradutores e autores brasileiros e “listas
preliminares” dos livros usados no Século XIX, grupados por
assunto.
Dr. Eduardo Sebastiani Ferreira é professor da UNICAMP. Seu
artigo, “Um Processo de Newton para Encontrar a Tangente à uma
Cônica”, explica um procedimento usado por Newton para
determinar a tangente à uma cônica sem conhecimento do seu
diâmetro. Em seguida, o mesmo problema é abordado usando a
geometria projetiva — em particular, o Teorema de Pascal.
Finalmente, mostra que o método projetivo justifica o processo de
Newton.
Dr. Sergio Roberto Nobre é professor do Departamento de
Matemática da UNESP em Rio Claro. O seu artigo, “Contribuição
de Jesuítas para a Escrita da História da Matemática”, foi elaborado
no Institut für Geschichte der Naterwissenschaften der Universität
München, com apoio financeiro da UNESP e do CNPq. Relata o
papel dos Jesuítas na historiografia da matemática. O trabalho foi
124
FACETAS DO DIAMANTE
apresentado no III Encontro Luso-Brasileiro de História da
Matemática, realizado em Coimbra em fevereiro de 2000. A
publicação brasileira do mesmo é feita aqui com a gentil permissão
do organizador do referido evento.
Dr. John A. Fossa, do Departamento de Matemática, e Dr.
Glenn W. Erickson, do Departamento de Filosofia, são ambos da
UFRN. O artigo deles, “Sobre a Proporção Entre os Elementos
Materiais no Timeu”, é uma tentativa de resolver um problema
notável na interpretação da cosmologia platônica: a determinação da
proporção entre os elementos materiais. Uma vez que esta proporção
é especificada como um quarto musical, as formas dos elementos,
bem como o número e a natureza das suas variedades, são
determinados. Mostra-se ainda como as variedades podem ser
colocadas em uma tabela periódica, parecida com a interpretação
dado pelos autores para o Número do Tirano, o que explica como os
elementos transformam-se uns noutros. Finalmente, a referida
ligação desta com a interpretação anterior esclarece o significado
astrológico do Número Nupcial.
125
FACETAS DO DIAMANTE

O LIVRO DIDÁTICO DE MATEMÁTICA


NO BRASIL NO SÉCULO XIX1

Circe Mary Silva da Silva

INTRODUÇÃO

O papel desempenhado pelo livro didático ou livro-texto


ou manual de ensino na Educação Matemática é merecedor de uma
análise cuidadosa. Por isso, faz-se necessário um estudo abrangente
que focalize a problemática do livro didático sobre diferentes óticas:
a histórica, a política, a econômica, a psicopedagógica, a ideológica,
a do usuário, dentre outras.
No Brasil, há poucos estudos sistemáticos sobre a história do
livro didático. Raros são aqueles sobre a Matemática. Segundo
Bittencourt (1993, p. 4):
No Brasil existem poucos estudos sobre a história do
livro didático. Em alguns casos aparecem como
introduções para outros temas ou surgem como fonte de
estudos da evolução de conceitos em trabalhos sobre a
história de uma determinada disciplina.
Há alguns anos, em nível internacional, tem surgido uma
série de trabalhos sobre a análise e história dos livros-texto em
Matemática. Destacam-se os estudos de R. Taton, J. Dhombres e G.
Schubring.
Uma tentativa de esclarecer o que se entende por livro-texto
ou livro-didático ou manual de ensino apareceu, no Brasil, em 1938
num decreto-lei e diz o seguinte:
126
FACETAS DO DIAMANTE
1º - Compêndios são livros que exponham total ou
parcialmente a matéria das disciplinas constantes dos
programas escolares; 2 0 - Livros de leitura de classe são
os livros usados para leitura dos alunos em aula; tais
livros também são chamados de livros de texto, livro-
texto, compêndio escolar, livro escolar, livro de classe,
manual, livro didático. (Ver Freitag, 1993, p. 12.)
Dentre as várias tentativas de definição de um livro-texto,
encontra-se a de Carter Good que diz (in Oliveira, 1984):
É um livro sobre um definido assunto de estudo,
sistematicamente organizado, destinado ao uso em um
nível específico de ensino e usado como uma fonte
principal de estudo em um determinado curso.
O que seria o livro-texto? João Baptista Araújo Oliveira
(1984) responde:
É o livro que se usa na escola e que serve essencialmente
para informar, para apresentar o material básico, o corpo
central de conhecimentos de uma dada disciplina ou
técnica.
Segundo Schubring (1986, p. 2), pesquisador alemão sobre
a história do ensino da Matemática, cada livro-texto pode ser
entendido como uma “materialização” da Matemática Escolar que
pode ser entendida como uma área de conhecimento muito bem
sistematizada e ordenada. Podem-se resumir as ideias acima e
afirmar que uma das características dos livros-texto é fornecer um
conjunto de conhecimentos sistematizados de uma determinada
época bem precisa, numa linguagem simples, sem um rigor
excessivo e de fácil compreensão ao estudante.
A análise histórica do livro didático não é uma empresa
simples. Não se pode compreender o papel desempenhado por ele,
se partirmos de uma perspectiva que o vê como uma imagem
congelada, como se fosse uma peça de museu. É, sim, necessário um
olhar mais atento a seu autor, à contextualização do livro e,
principalmente, um olhar despido de preconceitos. Os olhos que o
examinam devem, a princípio, vencer algumas dificuldades básicas,
como o confronto com uma linguagem fora de uso, a escassa
127
FACETAS DO DIAMANTE
referência ao número de edições e a falta de informações sobre os
seus autores, em geral, professores de Matemática e não
matemáticos. Sobre os grandes nomes de matemáticos, há
bibliografia suficiente e às vezes farta nas enciclopédias, dicionários
biográficos e outras fontes especializadas, mas e sobre a vida desses
autores de livros-texto? Quem são esses ilustres desconhecidos?
Que informações podemos encontrar sobre eles? A resposta a essas
perguntas é — dispomos de pouquíssimas informações ou, na
melhor das hipóteses, informações parciais e algumas pouco
fidedignas. Afinal, o autor de um livro-texto, em geral, não está
incluído na elite dita produtora do conhecimento. Poderíamos lançar
a pergunta — afinal, que tipo de conhecimento é esse disponível no
livro-texto? Trata-se de mera compilação? Serve apenas para a
difusão do conhecimento já produzido? Qual a importância ou
extensão social desse trabalho? Em que ele contribui para a geração
de novo conhecimento? Essas indagações são relevantes e
merecedoras de reflexão cuidadosa. Pretende-se, no decorrer do
texto, encaminhar o leitor para a resposta de algumas dessas
questões.
A ótica em que abordaremos o livro-texto é a histórica.
Utilizaremos os termos livro-texto e livro didático como sinônimos.
Interessa-nos conhecer tanto o autor do livro-texto quanto o livro-
texto em si. Por isso, sempre que possível, iremos apresentar dados
biográficos dos autores que analisarmos.

SURGIMENTO DO LIVRO-TEXTO DE MATEMÁTICA NO BRASIL

Enquanto em países como a França, por exemplo,


aconteciam reformas significativas no ensino, como a de Condorcet,
que inspirou um sistema de ensino organizado na França, no final
do século XVIII, e a de Humbold, na Alemanha, no início do século
XIX, que previu um modelo uniforme e gradativo, no qual os alunos
frequentariam, obrigatoriamente, a escola elementar e depois o
ginásio e, consequentemente, seguiria a universidade, no Brasil,
ainda nos primeiros anos do século XIX, nem sequer existia uma
128
FACETAS DO DIAMANTE
editora. Segundo Schubring, foi na primeira metade do século XIX
que em geral se estabeleceram os sistemas escolares controlados
pelo Estado.
Depois de três séculos sem imprensa no Brasil, porque o
governo português afirmava que o País não precisava de imprensa,
tardiamente, em 1808, surgiu a primeira editora em terras brasileiras
e estabeleceram-se, a partir de 1810, as primeiras instituições para o
ensino superior. A escola secundária demorou ainda alguns anos
para surgir. Embora a resolução de 1831 da Assembleia Legislativa
determinasse a criação de escolas nas vilas e cidades, o ensino
continuava sendo ministrado por aulas avulsas e a falta de recursos
destinados à educação impedia a organização de um sistema de
ensino bem estruturado. Somente em 1837, surgiu a primeira
instituição de ensino secundário sistemática — o Colégio Pedro II.
Por isso, os primeiros livros-texto de Matemática foram destinados
à formação dos alunos da Academia Militar do Rio de Janeiro. A
maior parte são traduções de livros estrangeiros.
A problemática do livro-texto ganhou destaque pela primeira
vez na Carta de Lei de 1810, que criou a Academia Militar do Rio
de Janeiro. Nela, lê-se a recomendação explícita dos nomes de
autores que deveriam ser utilizados para o Curso Matemático, entre
eles, Legendre, Euler, Lacroix e Francouer. O documento destacava
ainda que os lentes deveriam redigir seus próprios manuais e que o
governo os incentivaria para isso. Na prática, o que aconteceu foi
um grande esforço inicial na tradução dos autores recomendados.
Isso durou aproximadamente duas décadas. Foi somente a partir da
década de trinta que os brasileiros tomaram a iniciativa de escrever
livros próprios, afastando-se das meras traduções.
O primeiro livro-texto a ser publicado na Impressão Régia
do Rio de Janeiro foi sobre Matemática. Trata-se de Elementos de
Geometria, de Legendre. Seu tradutor foi Manoel Ferreira de Araujo
Guimarães (1777-1838), que, na época, desempenhou um papel
significativo para a divulgação de novas ideias no Brasil. No mesmo
ano, foi publicado o segundo livro, também de Legendre, sobre a
Trigonometria.
129
FACETAS DO DIAMANTE
É conveniente, neste momento, apresentarmos alguns dados
biográficos desse autor, que é pouco conhecido, mas importante por
suas contribuições. Manuel Ferreira de Araujo Guimarães
nasceu na Bahia, foi estudar em Portugal, mas, por motivos
financeiros, não pôde cursar a Faculdade de Matemática da
Universidade de Coimbra. Em Portugal, permaneceu de 1791 a 1805.
Teve ocasião de realizar seus estudos superiores na Academia Real
de Marinha, onde estudou de 1798 a 1801 e, segundo Abrão de
Morais, diplomou-se com brilhantismo. Após a conclusão do seu
curso, ingressou como docente na referida Academia. Em Coimbra,
iniciou o trabalho de tradução de livros-texto, principalmente os
franceses. Em 1800, traduziu o livro intitulado O curso elementar e
completo de matemáticas puras, de Lacaille; em 1802, O tratado
elementar de análise matemática, de Cousin. Em 1805, retornou ao
seu país de nascimento. Em 1809, foi nomeado lente da Academia
dos Guardas da Marinha e, em 1811, tornou-se um dos primeiros
docentes do Curso de Matemática da Academia Militar do Rio de
Janeiro, permanecendo como professor do quarto ano até 1821 e, em
1823, tornou-se membro da junta diretora da mesma Academia.
Além disso, foi membro da junta diretora da Impressão Régia,
primeira editora brasileira. No Brasil, além dos livros já citados,
traduziu: Elementos de Álgebra - postos em linguagem para uso dos
alunos da Academia Militar do Rio de Janeiro, de Euler; e Álgebra
para a Geometria de Lacroix, em 1821.
Na opinião de Wilson Martins (1977-78, v. II, p. 55), no
início do século XIX, ocorreu a divisão entre dois mundos — “uma
fratura entre o velho mundo mental que se desfazia e as novas
tendências que se firmavam”. Entre os membros dessas novas
tendências, encontrava-se certamente Manuel Guimarães. Possuidor
de uma visão ampla, não se limitou à docência da Matemática.
Muito precocemente adquiriu conhecimentos de latim e grego, o que
talvez explique o seu pendor para a literatura. Sobressaiu-se nessa
área escrevendo obras poéticas, como o Epitalâmio no casamento
de D. Fernando Antonio de Almeida (1805), Ode pela restauração
do Porto (1809), Epicédio ao Senhor Rodrigo de Sousa Coutinho
oferecido a Condessa de Linhares (1812), etc. Recebeu durante sua
130
FACETAS DO DIAMANTE
vida vários títulos e condecorações: comendador da Ordem de São
Bento de Assis, Cavaleiro da Ordem do Cruzeiro, Brigadeiro do
Corpo de Engenheiros e deputado da Assembleia Constituinte em
1823.
Guimarães esteve sempre preocupado em divulgar os
resultados matemáticos, considerando o número expressivo de obras
de matemáticos de prestígio que traduziu. Além disso, foi inovador
em sua época, sendo o editor de um periódico para divulgar a ciência,
literatura, política, comércio, etc. No Patriota, que começou a
circular em 1813, publicou, em junho de 1813, o artigo “Reflexões
sobre as derrotas de estima e suas correlações”
Além da tradução de obras estrangeiras, Guimarães escreveu
o primeiro livro-texto de Geodésia e Astronomia no Brasil, de que
se tem conhecimento. Os Elementos de Astronomia, pulicados em
1814, foram escritos para uso dos alunos da Academia Real Militar.
Segundo Abraão de Morais, que analisou a obra, esta não tem nada
de original, a não ser a ordenação da matéria. Todavia, evidencia
que seu autor estava perfeitamente familiarizado com os progressos
de Astronomia até sua época. Em 1815, foi editada a obra Elementos
de Geodésia.
Além de ter escrito o primeiro livro-texto de Astronomia,
Manuel Guimarães escreveu, também, depois do surgimento da
imprensa no Brasil, o primeiro opúsculo, em 1812, sobre um tema
de Matemática, ainda no Brasil-Colônia.2 O texto foi escrito para
uso dos alunos da Academia Militar, recentemente fundada. Em
1824, traduziu o Tratado Elementar de Trigonometria Rectilínea e
Esférica, de S. F. Lacroix, que foi publicado na Typografia Nacional.
Em 1827, foi criado o Observatório Astrômico do Rio de Janeiro.
Nessa ocasião, Guimarães era membro da Junta da Academia
Militar e mostrava-se muito satisfeito com a criação de um novo
estabelecimento científico que, por muitos anos, esteve intimamente
ligado à Academia Militar do Rio de Janeiro.
As iniciativas de Manuel Guimarães, no sentido de divulgar
a produção brasileira e também a ciência europeia, ambas atividades
que desenvolveu com sucesso, evidenciam uma liderança marcante
131
FACETAS DO DIAMANTE
no meio intelectual brasileiro da época, que, muito distanciado ainda
dos centros europeus e sob uma política de afastamento do
estrangeiro, não apresentava condições favoráveis para que se
desenvolvesse um espírito de pesquisa autônoma. Sua personalidade
era bastante curiosa. Ele parecia não perceber contradições em atuar
numa comissão de censura da única editora que o Brasil possuía, no
início do século, e, ao mesmo tempo, sugerir e criar um periódico de
cunho político, cultural, literário e científico, no qual as pessoas
poderiam dar livre expressão às suas ideias. A análise de seu
prospecto deixa entrever um intelectual com espírito nacionalista e
possuidor de um instinto inovador e criativo. Por todas as atividades
que realizou, Guimarães é um nome de destaque na vida intelectual
brasileira nas primeiras décadas do século passado.
O quadro a seguir ilustra a produção em livros-textos de
Matemática no período de 1809 a 1815.

QUADRO 1 - PRODUÇÃO EM LIVROS-TEXTO DE MATEMÁTICA


NO PERÍODO DE 1809 A 1815

Ano Título Autor Tradutor


1809 Elementos de Geometria Legendre Guimarães
Tratado de Trigonometria Legendre Guimarães
1810 Tratado Elementar d'Arithmetica Lacroix Alvim
1811 Elementos de Algebra Euler Guimarães
1811 Elementos de Algebra Lacroix Alvim
1812 Tratado Elementar de Aplicação da Lacroix Souza
Álgebra à Geometria
1812 Elementos de Geometria Lacroix Souza
1812 Tratado Elementar de Calculo Lacroix Alvim
Diferencial e Integral
1812 Tratado Elementar de Mecanica Francouer Pereira
1813 Complementos dos Elementos de Lacroix Desconhecido
Algebra
132
FACETAS DO DIAMANTE
1813 Tratado de Optica Lacaille Guimarães
1814 Elementos de Astronomia Guimarães
1815 Elementos de Geodesia Guimarães
Guimarães = Manoel Ferreira de Araujo Guimarães
Alvim = Francisco Cordeiro da Silva Torres Alvim
Souza = José Victorino dos Santos e Souza
Pereira = José Saturnino da Costa Pereira

O QUE SE PUBLICAVA NO BRASIL?

Para enfatizar um pouco mais a importância do trabalho


desses primeiros autores de livros-texto, no Brasil, é preciso chamar
a atenção para o fato de que o surgimento da imprensa oficial e o
fim da proibição de publicar-se, no País, não foram acompanhados
de uma liberdade de expressão. Muito pelo contrário, ao fundar-se a
editora “Impressão Régia”, criou-se também uma junta diretora com
a função de censurar as obras produzidas. Assim, a produção
intelectual brasileira precisou superar, no início do século XIX, uma
grande barreira — a censura. Assuntos polêmicos, como os
problemas sociais, a escravidão, a religião, passavam por uma
severa peneira fina, antes da liberação para a edição. O que se
publicava na época? Segundo Wilson Martins, eram poesias de
cortesanice, epicédios, epitalâmios e elegias, cujo valor é medido
em termos de significação e importância para a História da Cultura.
Em 1813, surgiu o primeiro Jornal Literário, intitulado O Patriota,
cujo editor foi o já citado Manoel Ferreira Guimarães. Entre 1813 e
1829, foi publicado em fascículos a importante obra As Preleções
Filosóficas de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), talvez
adiantada demais para a atmosfera da época. Assim se refere a ele
Hipólito José da Costa (in Martins, 1977, p. 45):
Estas reflexões prometem, e necessitam continuação [... ]
se fossem continuadas [...] apresentarão ao mundo
científico o mais elaborado sistema de princípios
filosóficos, que possuem os modernos [...l Ele trabalha
já sobre os passos de Bacon, Locke, Leibniz, Condillac
133
FACETAS DO DIAMANTE
[...] Os sábios darão sem ao Autor [...] um mui distinto
lugar nos anais da Filosofia.
Esse foi o primeiro livro de Filosofia escrito por um autor
brasileiro e publicado no Brasil. Para os cursos de Medicina e
Direito, que surgiram na mesma época que a Academia Militar do
Rio de Janeiro, os livros-texto publicados, em geral, tratavam-se de
traduções. A maior produção, na época, foi na literatura. Para o
teatro foram escritas várias peças, entre elas, o drama de Gastão
Fausto da Câmera Coutinho, intitulado “O Juramento dos Nomes”,
que causou grande polêmica em 1818. Além disso, surgiram várias
novelas e folhetos de cordel. Entre as obras-primas identificadas por
Rubens Borba de Moraes, encontram-se: Ensaio sobre a Crítica...,
os Ensaios Morais de Alexandre Pope e os volumes da Memória da
vida pública do Lord Wellington de José da Silva Lisboa, publicados
em 1815. Foi a Impressão Régia, editora oficial do governo, no Rio
de Janeiro, que lançou o romance e a novela no Brasil, além de
cumprir sua valiosa colaboração na impressão dos livros didáticos.

O LIVRO DE GEOMETRIA DE LEGENDRE

Adrien-Marie Legendre (1752-1833) foi um dos mais


importantes matemáticos da Revolução Francesa. Para Napoleão I,
o progresso e o aperfeiçoamento da Matemática estavam
intimamente ligados à prosperidade do Estado.
Legendre havia participado com muito êxito na triangulação
da França e foi membro da comissão encarregada da reforma do
sistema de pesos e medidas. Em 1799, o trabalho da comissão estava
pronto e o sistema decimal métrico estava concluído. Segundo
Boyer (1974), este é um dos resultados matemáticos mais tangíveis
da Revolução Francesa.
Legendre era um analista, mas, por meio da obra que
publicou, em 1794, Éléments de géométrie, reviveu a qualidade
intelectual e o sucesso dos Elementos de Euclides. Durante o século
XVIII, a Geometria euclidiana foi relegada a segundo plano e não
surgiu nenhuma obra a altura dos Elementos de Euclides. Durante
134
FACETAS DO DIAMANTE
todo o século XIX, a obra de Legendre teve enorme repercussão,
não só na Europa como também em vários países não-europeus.
Durante a vida do autor, o livro teve vinte edições. A versão em
língua portuguesa dos Elementos de Geometria, de Legendre,
aconteceu em 1809.
Somente após dez anos do aparecimento da versão em língua
portuguesa, surgiu a tradução inglesa por John Farrar da
Universidade de Harvard. Nos Estados Unidos, os Elementos de
Legendre se transformaram quase que em sinônimo de Geometria.
Em 1885, ainda se lia na introdução da versão de Davies que a obra
de Legendre era superior a qualquer outra devido à clareza e
precisão de definição, simplicidade geral e rigor de demonstração.
O resultado dos esforços de Legendre foi um texto rigoroso
e claro. Os Elementos de Geometria começam com vinte e seis
definições. Entre elas, lê-se (Legendre, 1809, p. 1):
I. Todo o corpo ocupa no espaço indefinido um lugar
determinado que se chama volume.
II. A superfície de um corpo é o limite que o separa do
espaço adjacente.
III. O lugar em que as superfícies de dois corpos se
encontram é denominada linha.
IV. Um ponto é o lugar em que duas linhas se cortam.
A sequência das definições se inicia, pois, com o volume, a
superfície, a linha e o ponto. A noção de distância, como é usual
nessa época, é introduzida como algo evidente. Daí, para ele, “a
linha reta é uma linha indefinida que assinala a mais curta distância
entre dois quaisquer dos seus pontos” (Legendre, 1809, p. 1).
Ele não dá destaque aos axiomas. Eles parecem surgir meio
camuflados, como verdades evidentes (Legendre, 1809, p. l):
Deve ter por evidente que de um ponto a outro somente
é possível traçar uma linha reta; e que se duas porções de
linhas retas coincidem, estas linhas coincidem em toda a
sua extensão.
135
FACETAS DO DIAMANTE
Depois de enunciar e demonstrar vinte proposições sobre
ângulos, perpendicularismo e triângulos, o autor apresenta a teoria
das paralelas (Legendre, 1809, p. 21 e 22):
Proposição 21: Duas retas AC e BD perpendiculares a
uma mesma reta CD são paralelas.
Proposição 22: Por um ponto é sempre possível traçar
uma paralela a uma reta e somente uma.
Ele enuncia como proposição evidente (Legendre, 1809, p.
22):
Admitir-se-á, em segundo lugar, como proposição
evidente, que por um ponto somente é possível traçar
uma paralela a uma reta.
Essa é a versão do axioma das paralelas que começa a
aparecer nos livros-texto, substituindo a formulação de Euclides.
Apesar do enorme sucesso desse livro, muitas foram as
críticas feitas a Legendre. Lobachevsky (in Bonola, 1955, p. II)
inicia seu texto sobre a teoria das paralelas criticando fortemente a
obra desse autor:
In geometry I find certain imperfections which I hold to
be the reason why this science, apart from transition into
analytics, can as yet make no advance from that state in
which it has come to us from Euclid. As belonging to
these imperfections, I consider the obscurity in the
fundamental concepts of the geometrical magnitudes and
in the manner and method of representing the measuring
of these magnitudes, and finally the momentous gap in
the theory of parallels, to fill which all efforts of
mathematicians have been so far in vain. For this theory
Legendre 's endeavors have done nothing, since he was
forced to leave the only rigid way to turn into a side path
and take refuge in auxiliary theorems which he
illogically strove to exhibit as necessary axioms.
É claro que as críticas de Lobachevsky eram procedentes.
Legendre tentou demonstrar várias vezes o axioma das paralelas,
enquanto matemáticos, como Lobachevsky, Bolya e Gauss,
seguiram outro caminho. Em lugar de tentar demonstrar o axioma,
136
FACETAS DO DIAMANTE
eles criaram novas Geometrias, nas quais não vale o axioma das
paralelas de Euclides.
Foram necessárias várias décadas para que a Geometria de
Euclides alcançasse sua axiomatização definitiva e isso foi feito
por Hilbert em 1898, no seu famoso livro Grundlagen der
Geometrie.
O livro de Legendre inspirou vários autores na elaboração de
seus manuais de ensino, como veremos adiante.

LIVROS-TEXTO DESTINADOS AO ENSINO SUPERIOR


NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX

No início do século XIX, não havia liberdade de escolha


de livro-texto na Academia Militar do Rio de Janeiro; o docente
deveria obedecer à Carta de Lei de 1810, que regulamentava sobre
os livros didáticos que deveriam ser utilizados no Curso Matemático.
Qualquer alteração precisava ser submetida à junta militar
responsável pela organização e administração do ensino na
Academia e encaminhada para o Imperador para apreciação e
aprovação. Esse fato talvez justifique o sucesso dos livros de
Lacroix, no Brasil, uma vez que faziam parte da lista de autores
recomendados.
Para a divulgação das obras indicadas na Carta de Lei de
1810, além de Manuel Guimarães, trabalharam nas traduções José
Victorino dos Santos e Souza, José Saturnino da Costa Pereira e
Francisco Cordeiro da Silva Torres e Alvim. Devido à importância
que tiveram nesse período de implantação do ensino superior da
Matemática no Brasil, apresentamos uma breve biografia de cada
um deles.
Os dados biográficos de José Victorino dos Santos e Souza
não são facilmente encontráveis. Sabe-se que faleceu em 1852, no
Rio de Janeiro, e que fez estudos de Matemática. Foi docente na
Real Academia Militar do Rio de Janeiro, desde a sua fundação.
137
FACETAS DO DIAMANTE
Traduziu livros franceses que começaram a ser publicados em 1812
para uso dos alunos da Academia. As obras que publicou não são
meras traduções, há contribuições do autor: Elementos de geometria
descriptiva com aplicação às artes, extraídos das obras de Monge
para uso da real academia militar, Rio de Janeiro, 1812; Tratado
elementar de aplicação da álgebra à geometria por Lacroix,
traduzido do francês, acrescentado e oferecido ao Conde de
Galveas, etc., 1812; Geometria e mecânicas das artes, dos ofícios e
das belas-artes por C. Dupin, traduzido do francês, 1832; Memória
sobre as causas físicas dos movimentos de rotação da terra e dos
planetas; causas e influências da lua, etc.(Sciencia, 1847, p. 84).
José Saturnino da Costa Pereira (1773-1852), nascido em
Sacramento, atualmente cidade localizada no Uruguai, bacharelou-
se em Matemática pela Universidade de Coimbra. Retornando ao
Brasil, exerceu, além da docência na Academia Militar, várias
funções públicas: foi oficial do corpo de engenheiros, pertenceu ao
Conselho do Imperador, foi senador do império pela província de
Mato Grosso, ocupou a pasta da guerra, etc. Traduziu o Tratado
Elementar de Mecânica, de Francouer e, como contribuição pessoal,
anexou nele doutrinas extraídas de diversas obras de outros autores
como Poncy, Bossut, Marie, etc. Traduziu também muitas obras de
Lacroix. Publicou dezoito livros. Entre eles, uma obra dedicada ao
imperador Pedro II, intitulada Recreação moral e científica ou
biblioteca da juventude (1834-1839). Foi um escritor muito ativo, e
suas obras abrangem diversas áreas: Lógica, Geografia, Astronomia,
Ótica, História e Literatura, além da Matemática.
Francisco Cordeiro da Silva Torres e Alvim nasceu na
quinta de Olaia, termo de Ouvrem, em Portugal, em 24 de fevereiro
de 1775. Cursou a Academia da Marinha e foi promovido a guarda-
marinha em 1798. Emigrou de Portugal para a Inglaterra, no ano de
1807, e, dois anos depois, para o Brasil. Com a independência do
Brasil, em 1822, tornou-se cidadão brasileiro. Em 1811, tornou-se
lente da Real Academia Militar do Rio de Janeiro e nela atuou como
docente por 25 anos. Recebeu os seguintes títulos: Visconde de
Jerumarim, Conselheiro de Estado, Grande Dignatário da Ordem da
Rosa, Oficial do Cruzeiro, Cavaleiro de São Bento de Avis,
138
FACETAS DO DIAMANTE
Marechal de Campo, membro do Instituto Geográfico do Brasil. Em
1828, foi nomeado Ministro da Guerra, mas esteve no cargo por
apenas oito dias. Segundo o Dicionário de Inocêncio, ele teria dito
que “um cordeiro não servia para guerra” (p. 429). Morreu em 8 de
março de 1856. Entre as suas obras, encontramos: as traduções de
livros-texto de Lacroix sobre a Aritmética3 em 1810, de Álgebra4 em
1811, de Cálculo Diferencial e Integral em 1812; Apontamentos
extraídos de Mr. John Adams sobre pesos e medidas dos EU, em
1833; Memória sobre o crédito em geral, operações de crédito,
caixas de amortização e suas funções: com uma exposição exacta
das operações e expediente de caixa de amortização do I. B. (s.d.).
Além dessas, segundo o Dicionário Bibliográfico de Inocencio
Francisco da Silva, Francisco Torres deixou obras inéditas.
Após esse primeiro esforço, que durou aproximadamente
seis anos, para prover o “Curso Matemático” da Academia Militar
do Rio de Janeiro com livros-texto em língua portuguesa, houve um
longo período de recesso na edição de livros de Matemática.

LIVROS-TEXTO DE MATEMÁTICA ELEMENTAR

No século XIX, tanto no nível primário quanto no


secundário não havia a disciplina intitulada Matemática. Eram
ensinadas as disciplinas estanques de Aritmética, Álgebra,
Geometria e Trigonometria. Da mesma forma, eram elaborados os
livros-texto de Aritmética, Álgebra, Geometria e Trigonometria, que
apresentavam no título pequenas variações: Elementos de Álgebra,
Tratado de Aritmética, Lições de Aritmética. Em 1929, as diferentes
subáreas foram unificadas numa única disciplina que levou o nome
de Matemática e passou a ser ensinada em todos os anos da escola
primária e secundária.
Apresentaremos, a seguir, algumas características das obras
de Arithmética, Álgebra, Geometria e Trigonometria que foram
utilizadas no ensino da Matemática no século XIX, bem como uma
lista com os títulos para cada subárea de que dispomos, até o
momento.
139
FACETAS DO DIAMANTE

ARITHMÉTICA

Acompanhando os desenvolvimentos que a Matemática


experimentava, havia a necessidade de introduzir no ensino os novos
resultados produzidos pelos matemáticos. Os livros-texto de
Aritmética, Álgebra, Geometria e Cálculo Diferencial e Integral,
destinados principalmente às escolas militares, começaram a surgir
no século XVIII. Um autor popular foi Etiênne Bézout (1730-1783),
cujo primeiro manual, Cours de mathématiques à l’usage des gardes
du pavillion et de la marine, surgiu em Paris, em seis volumes, de
1764 a 1769. Ele escreveu também para os alunos de artilharia a
obra em quatro volumes intitulada Cours de Mathématiques à
l’usage du corps royal de l’Artillerie, que foi publicada nos anos de
1770 a 1772. Essas obras tinham status oficial e obtiveram a
aprovação da Academia de Ciências de Paris para serem utilizadas
nas escolas.
Bézout reflete em seus textos a educação dada na França, no
século XVIII. Ele tornou-se muito popular e sua obra foi adotada
também em outros países, como Portugal.
Os conteúdos do livro de Aritmética eram os seguintes:
• Os números e as quatro operações fundamentais
• Frações
• Números complexos5
• Raiz quadrada e raiz cúbica
• Razões, proporções e regra de três
• Progressões: aritmética e geométrica
• Logaritmos
Essa estrutura de apresentação dos conteúdos de Aritmética
foi copiada por muitos autores, entre eles, os autores brasileiros.
Uma interessante característica que se observa no estilo de
Bézout é que ele procura adequar os exemplos das aplicações ao
público-alvo a quem se destina. Assim, vê-se, na edição de 1781, do
140
FACETAS DO DIAMANTE
segundo volume do Cours de Mathématiques à l’usage du corps
royal de l’Artillerie, quando ele introduz a resolução de equações
algébricas, o seguinte problema: “Dois morteiros atiram 100
bombas; o primeiro atira 40 a mais que o outro: quantas atiram cada
um?” (Bézout, 1801, p. 38). A resolução que ele apresenta é
extremamente didática. Por isso, a título de exemplo, optamos por
reproduzi-la integralmente (Bézout, 1781, p. 38-39):
Com uma atenção mediocre, vê-se que a questão se
reduz a seguinte: Achar duas quantidades que reunidas
sejam 100 e tal que uma supere a outra de 40. Ora, é fácil
de ver que uma das duas quantidades será desconhecida,
a segunda o será, porque se a maior, por exemplo for
conhecida, trata-se de operar para suprimir 40 e para ter
a menor. Nós representamos a maior por x. Agora, se
conhecemos o valor de x, eu quero verificar, se eu
diminuir 40 para ter o número menor; eu reunirei em
seguida a maior e a menor para ter 100. Imitemos, então,
esse procedimento:
O número maior é x
O número menor será então 2x-40
Esses dois números reunidos serão 2x-40 Ou, pelas
condições da questão, eles devem fazer
100
Então 2x-40 = 100
Trata-se para obter x, que aplicar as regras dadas (53) e
(56). A primeira dará 2x = 100 + 40 onde 2x = 140 e a
segunda x = 140/2 = 70. Tendo achado o número maior
x, eu subtraiu 40 para ter o número menor, e eu acho 30
para ele. Assim os dois números desejados são 70 e 30.
Os demais problemas apresentados seguiam a mesma
sistemática, ou seja, eram problemas relacionados com o dia-a-dia
dos artilheiros, utilizando uma linguagem familiar à prática de suas
atividades.
A obra de Bézout foi recomendada para a disciplina de
Cálculo Diferencial na Faculdade de Matemática (1772) da
Universidade de Coimbra. Segundo relatório do reitor, Francisco de
Lemos, de 1777, o livro adotado para a disciplina do segundo ano
do Curso de Matemática era o compêndio de Bézout. Essas
141
FACETAS DO DIAMANTE
informações acham-se detalhadas em nosso artigo sobre a Primeira
Faculdade de Matemática (Silva, 1994). De acordo com Francisco
Gomes Teixeira (1851-1933), Monteiro da Rocha, um dos primeiros
docentes da Faculdade de Matemática, traduziu os Elements
d’Analyse Mathématique de Bézout, e essa obra foi publicada em
edições de 1775, 1785 e 1812 (ver Teixeira, 1934, p. 229). Assim, o
livro de Bézout começou a ser conhecido em Portugal.
Embora os primeiros docentes do Curso Matemático da
Academia Militar do Rio de Janeiro, fundada em 1810, tenham
obtido a sua formação acadêmica quase que exclusivamente em
Portugal e, portanto, tenham estudado pelos livros de Bézout, não
trouxeram essa tendência para o Brasil. No nosso país, esse autor
não teve, curiosamente, influência no ensino do Cálculo.

PRIMEIRO LIVRO-TEXTO
PARA O ENSINO NAS ESCOLAS PRIMÁRIAS

Todas as referências de que dispomos indicam que o


primeiro livro-texto6 escrito para o ensino elementar da Matemática
foi o Compêndio de Aritmética, de Cândido Baptista de Oliveira, em
1832.
Cândido de Oliveira (1801-1865), nascido no Rio Grande
do Sul, estudou em Coimbra, na Faculdade de Matemática, e lá
obteve com distinção o grau de doutor em Matemática. Regressando
ao Brasil, foi professor da Academia Militar e tornou-se um
personagem importante na vida pública do País. Foi ministro e
secretário de Estado dos negócios da fazenda, estrangeiro e da
marinha. Em 1790, o matemático Lagrange presidiu a comissão
encarregada, na França, de padronizar os sistemas de medida
existentes, a fim de acabar com a disparidade de sistemas que
atrapalhava as negociações entre regiões, cidades e países. Criou-se,
então, o sistema métrico decimal para uso em todos os países. No
Brasil, Cândido de Oliveira escreveu um artigo na Revista Brazileira,
no 7, intitulado “Sobre a adopção do systema metrico no Brazil”. Em
142
FACETAS DO DIAMANTE
1832, o Compêndio de Aritmética, composto para o uso das Escolas
Primárias do Brasil, trouxe um apêndice sobre metrologia, onde ele
introduziu o sistema métrico decimal.
Cândido, como lente da Academia Militar, foi nomeado em
1828 membro da comissão organizadora do Observatório
Astronômico do Rio de Janeiro. Recebeu a tarefa de fazer um
levantamento topográfico da fronteira sul do Brasil que em 1850, foi
publicado, na Typographia Nacional, com o título Reconhecimento
topográfico da fronteira do império na província de São Pedro, em
que é relatada toda a atividade topográfica lá desenvolvida e faz
algumas propostas importantes para o desenvolvimento do ensino
no Sul do País. Propõe a fundação de uma Escola Militar em Porto
Alegre e a criação de uma Escola Normal de Agronomia. Parece que
a sugestão de Cândido foi ouvida no Império, pois, em 1851, foi
determinada a criação da escola militar (o início das aulas só
aconteceu em 1853). Em 1865, era conselheiro do Observatório e
participou da comissão que observou o fenômeno de um eclipse do
sol em 25 de maio de 1865, que foi notável por sua duração (4
minutos). Esse foi um dos primeiros trabalhos científicos do
Instituto, segundo Morize (1987).
Os conteúdos do livro de Cândido incluíam: números
inteiros e operações, fracionários, decimais, complexos, proporções
e fórmulas (equações do primeiro grau), quadrado e raiz quadrada,
regra de três. Seguiu-se uma segunda edição em 1842 e uma terceira
em 1863, mas, nesta última, o autor incluiu outros conteúdos, tais
como: resolução de equações do primeiro e segundo graus, teoria
dos logaritmos, progressões e suas propriedades, fórmulas de juros
simples e composto. Nessa edição, o autor parece desejar atingir um
público mais amplo, pois os conteúdos não são apenas aquelas
destinados à escola primária.
Surgiu, em 1834, o Compêndio de Matemática Elementar de
Pedro d’Alcantara Bellegarde. A segunda edição do texto de
Bellegarde, de 1842, possuía 27 páginas e limitava-se a tratar sobre
os números, operações com os números, frações e números decimais.
143
FACETAS DO DIAMANTE
OTTONI: UM AUTOR MUITO POPULAR

Um importante autor de livro-texto dessa época foi


Cristiano Beneditto Ottoni (1811-1896). Entre 1849 e 1854,
escreveu uma coleção de três livros dedicados à Matemática
Elementar: Elementos de Geometria, Elementos de Arithmetica e
Elementos de Álgebra. A primeira edição do manual de Aritmética
surgiu em 1852. Três anos depois, foi lançada sua segunda edição.
Essa obra foi adotada no Colégio Pedro II, a partir de 1855. Para
Ottoni, a Aritmética tinha por objetivo “estabelecer regras fixas e as
mais commodas para effetcuar sobre os numeros todas as operações
possíveis” (Ottoni, 1886, p. 21). As 257 páginas do livro estão
divididas em duas partes: 50% dedicadas à numeração, frações e
decimais e 50% dedicadas às propriedades gerais dos números.
Além disso, inclui um apêndice com o sistema de medidas adotado
no Brasil.
Os conteúdos do livro estão assim distribuídos: primeira
parte: numeração dos inteiros, operações sobre os números inteiros,
frações, pesos e medidas números complexos, números decimais;
segunda parte: sinais algébricos, divisibilidade dos números, prova
dos nove, dízimas periódicas, frações contínuas, potências e raízes,
razões e proporções, regra de três, regra de juros, regras de
sociedade, progressões e logaritmos (aplicações: juros compostos).
O livro não traz exercícios propostos, nem resolvidos. A
ênfase está nas regras, nos enunciados e em alguns exemplos.
Uma das características dos livros desse período é que não
há clara separação do público-alvo a quem a obra se destina. Por
exemplo, um livro-texto de Arithmetica poderia servir tanto para o
ensino primário e secundário quanto para o ensino secundário e
superior. O livro de Ottoni, intitulado Elementos de Arithmetica,
sétima edição de 1886, traz na folha de rosto a seguinte afirmação:
“Compêndio adotado pelos estabelecimentos de instrução superior
e secundária do Rio de Janeiro”. Segundo o autor, o livro-texto de
Aritmética era destinado originalmente para o uso na Academia de
Marinha, mas foi adotado por outros estabelecimentos de instrução
144
FACETAS DO DIAMANTE
secundária, como o Colégio Pedro II, que, a partir de 1856, começou
a recomendá-lo para o ensino. Essa obra foi adotada por um período
de mais de trinta anos. Outro exemplo é o livro de Castro O
Explicador de Arithmetica — obra apropriada aos alunos das
Academias Militar e de Marinha, do Instituto Comercial, aspirantes
a empregos públicos, negociantes, artistas, etc. Já o Tratado de
Arithmetica, de Coqueiro, traz no subtítulo “para uso dos colegios,
liceos e estabelecimentos de instrução secundária”, deixando pouco
claro o significado do termo colégio.

ANTONIO TRAJANO E O MANUAL DO PROFESSOR

Uma mudança dessa situação ocorre com Trajano, que, a


partir da década de 70, começa a preparar livros para atingir
diferentes níveis de alunos; é o que se percebe analisando os títulos
e subtítulos de seus livros: Arithmetica primária para os meninos e
meninas que começam o estudo da Arithmetica nas escolas
primarias; contendo as quatro operações sobre numeros inteiros e
frações, expostas do modo mais simples, por meio de lições
graduadas, e acompanhadas de exercícios e problemas próprios
para o primeiro tirocínio do calculo; Arithmética Elementar
Ilustrada para as classes mais adiantadas das escolas, contendo
toda a matéria da Arithmética, que deve ser ensinada nas suas
primárias, exposto por um methodo atractivo e deleitável, e ornada
de muitas gravuras adequadas ao texto. Essa obra foi premiada pelo
júri da Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro e adotada pela
instrução pública em quase todos os estados do Brasil. Já a
Arithmetica Progressiva destinava-se ao ensino secundário ou
superior. Curso completo, teórico e prático de aritmética para o
ensino secundário e superior, contendo todos os esclarecimentos
úteis sobre este importante ramo da ciência.
Trajano era uma exceção entre os autores, pois procurava
esclarecer sempre o público-alvo a quem o livro se destinava, o seu
nível, suas principais características. Todavia, a inexistência de um
145
FACETAS DO DIAMANTE
plano geral de ensino, no País, não permitia que os autores
delimitassem muito bem os conteúdos a apresentar nos livros-texto.
É por isso que muitos eram verdadeiros tratados de Aritmética,
contendo assuntos que ultrapassavam as exigências de ensino de
muitas escolas.
Aqui, cabe ressaltar que Antonio Trajano foi o primeiro autor
de livros-texto a dedicar um livro com a chave de respostas para o
professor. Assim, surgiu a Chave da Arithmetica Progressiva:
Esta obra contém a solução completa de todos os
problemas difícies da Arithmetica Progressiva; contém
também a resposta de todos os exercícios e problemas
que nesta arithmetica não levam resposta; contém ainda
alguns exercícios interessantes para serem propostos aos
discípulos. Com esta chave qualquer professor poderá
vantajosamente e sem dificuldade alguma lecionar pela
Arithmetica Progressiva, certo de que não encontrará
embaraço algum em todo o curso deste compêndio.
Possivelmente, no Brasil, ocorreu o mesmo que na
Alemanha, ou seja, na Universidade, ensinavam-se conceitos
elementares de Matemática, os quais, mais tarde, ficaram ao encargo
das escolas secundárias. Essa informação foi dada por Felix Klein,
na sua obra Matemática Elementar sob um ponto de vista superior:
“até a década de trinta do século XIX, ensinava-se nas universidades
alemãs assuntos elementares de matemática que passaram para a
escola secundária após essa data”. Isso provavelmente aconteceu
também no Brasil, o que explica a dificuldade de os autores de
livros-texto atenderem a público tão diversificado.
Nos livros de Aritmética, os temas tradicionais eram: sistema
de numeração, operações com números, propriedades dos números,
divisibilidade, frações, números decimais, potências e raízes.
Acresciam-se a esses temas: razões e proporções que levavam a
questões de regra de três, juros simples e compostos, regra de
sociedade, regra de desconto, problemas de mistura e ligas, câmbios,
como também os problemas de medições. Havia uma preocupação
em todos os livros-texto com as aplicações da teoria a problemas do
cotidiano.
146
FACETAS DO DIAMANTE

Os Pareceres nos Livros-Texto

Muitos livros-texto do século XIX contêm pareceres sobre


a obra. Provavelmente esses pareceres davam-lhe mais legitimidade.
Por essa razão, eles eram anexados logo após a folha de rosto. As
apreciações eram extraídas de jornais, revistas ou redigidas por
inspetores credenciados ou professores reconhecidos por sua
competência.
Com o titulo Arithmetica Progressiva publicou o Sr.
Antonio Trajano, em São Paulo, um curso theorico e
pratico de Arithmetica, que nos parece dever apresentar
ao ensino vantajosos resultados. A doutrina exposta com
simplicidade em termos claros; os exemplos são bem
escolhidos, e os exercicios graduados de modo que o
leitor vai caminhando sempre do mais facil para o mais
dificil. Além da theoria da Arithmetica, trata o Sr.
Trajano de numerosas questões praticas e frequentes no
commercio, taes como calculo de juros simples e
compostos, descontos, commissões, cambios, etc.
(Jornal do Commercio, 20 de fevereiro de 1880).
Nem sempre os pareceres eram totalmente favoráveis aos
autores, contendo também críticas sobre o livro. Esse é o caso da
obra de Aarão Reis e Lucano Reis. O crítico é Eugênio Raja
Gabaglia, professor do Ginásio Nacional (outra denominação do
Colégio Pedro II) e Escola Naval, e que foi o primeiro docente a se
interessar pela História da Matemática no Brasil, escrevendo uma
obra sobre o Papiro Rhind, no final do século XIX, poucos anos após
a sua descoberta e divulgação na Europa. O parecer é bastante longo,
são quase sete páginas, das quais transcrevemos apenas alguns
trechos ilustrativos:
Com atenção e prazer li todo o volume, cujo assunto
tantas relações tem com a cadeira que professo no
Ginasio Nacional; a convicção que formei de sua
utilidade e valor, fez-me pegar de uma pena afim de
aconselhar a sua leitura, quer aos moços que se preparam
nos cursos secundarios, quer mesmo aos meus colegas,
147
FACETAS DO DIAMANTE
professores e lentes de matematica, que nele encontrarão
ótima recordação das teorias aritméticas. [...] Entre os
aperfeiçoamentos comuns às diversas partes deste
trabalho, há um que convém especificar: é um pequeno
e simples esboço biográfico, espalhado em notas por
todo o livro, sobre os matemáticos cujas descobertas
auxiliaram o progresso da aritmetica; é de sentir, porém,
o que demonstraremos com exemplos, que idéias
preconcebidas e fontes pouco seguras tenham
infelizmente induzido a enganos e injustiças que estão
em desacordo com a imparcialidade, que é talvez a
virtude principal do historiador. [. . . ] Em relação à
origem atribuída aos diversos sinais de operações,
cumpre-me dizer: 1o) que os sinais + e - antes de usados,
em 1522, por Cristovão Rudolff se encontram em 1489
na Aritmética Mercantil de Widman; 2o) que o sinal x foi
empregado no mesmo ano (1631) por Harnot e por
Outghtred; 3º) que Hoefer não tem razão - o que aliás
não é raro - quando diz que usou-se expoente pela
primeira vez em 1585 em Simão Stevin, pois em 1572
Bombelli já usou sinal para expoente (Eugenio Raja
Gabaglia, Jornal do Commercio, 21 de maio de 1983).
Uma dimensão social do livro-texto é outro aspecto a ser
considerado. Os livros-texto eram normalmente reeditados. O
número de edições que uma dada obra atinge demonstra o grau de
aceitabilidade daquele conhecimento matemático por uma certa
comunidade. Um bom exemplo disso é dado por Antonio Trajano,
com sua Arithmetica Progressiva, que, no ano de 1927, chegou à
62a edição e a sua Arithmética Elementar Ilustrada, que, em 1958,
alcançou a espetacular 136a edição. Em nível de província do Brasil,
na cidade de Porto Alegre, a Primeira Arithmetica para meninos de
José Theodoro de Souza Lobo (1846-1913) foi outro exemplo de
aceitação e sucesso, já que atingiu, em 1954, a 51a edição. Não
conseguimos informações sobre a data da primeira edição dessa
obra, mas supomos que tenha ocorrido na década de 60 do século
XIX, uma vez que na 29ª edição da Segunda Arithmetica de Souza
Lobo, de 1931, há alguns pareceres de 1870 e 1871 referentes à
segunda edição da obra. Isso nos leva a supor que a Primeira
148
FACETAS DO DIAMANTE
Arithmetica tenha sido escrita antes da Segunda e, portanto, anterior
a 1870.
Pede-me V.S. para eu dar o meu parecer sobre a 2 0
edição de sua Arithmetica, destinada ao ensino primario.
Li o seu compendio com o cuidado e interesse que me
merecem os seus trabalhos pelo justo apreço e elevada
consideração que tributo á sua esclarecida intelligencia.
Um compendio util é aquelle que, pela simplicidade do
methodo, pela clareza da exposição e correcção do estilo,
procura tornar accessiveis a qualquer intelligencia as sãs
doutrinas que o constituem, despertando ao mesmo
tempo no espirito da mocidade o gosto ao estudo. O amor
ou aversão ao cultivo de uma sciencia não poucas vezes
depende do attractivo ou da repulsão que produzem no
animo juvenil do estudante as primeiras lições do
professor. Quem escreve para creanças, necessita, pois,
fazel-o de modo que, instruindo, tambem saiba agradar.
O livro que nos apresenta V.S., satisfaz de unta maneira
completa a todas as exigencias do ensino. Não conheço
nenhum outro compendio elementar, destinado ao curso
primario, que melhor preencha o fim que teve em vista
V.S.[...] Talvez que alguem, alheio ás dificuldades das
sciencias exactas, julgue o seu compendio muito extenso
para meninos de escola; assina, porém, não pensarão
aquelles que conhecem os graves incovenintes desses
obscuros resumos, que apenas servem para desafiar aos
professores ignorantes a fazerem decoral-os pelos seus
alunnos, habituando-os por tal forma, a confiar mais na
memoria do que na razão. É esse um pessimo systema de
ensino, que convém abandonar. O professor deve
trabalhar para fazer o estudante compreender a materia,
mas nunca força-lo a decorar o que não entende.
Acostumar o discipulo ao raciocinio é um dever do
mestre. O uso da memoria é util e mesmo necessario até
certo ponto; querer exceder esse limite é um prejuízo.
[. . . ] Em um livro elementar escripto para creanças, não
basta que se diga a verdade; é necessario revestil-a de
forma que a torne clara e comprehensivel; e nisto
consiste o principal merecessimento do trabalho. ...
(Antonio Carlos Ennes Bandeira, parecer de 1870, p. v-
vi.)
149
FACETAS DO DIAMANTE
José Theodoro de Souza Lobo foi professor de Matemática da
Escola Normal de Porto Alegre por vários anos e também alcançou
um posto de diretor geral da instrução pública no Rio Grande do Sul
em 1883, além de acumular o cargo de diretor da Escola Normal.
A liberdade de escolha de manuais que, no século XIX, já
estava praticamente consolidada na Prússia, não acontecia em outros
países, como a França. No Brasil, não sabemos ao certo se havia
casos em que o professor podia escolher os seus manuais. Todavia,
muitos livros-texto mostram claramente que a escolha dos livros
didáticos era feita, muitas vezes, por algum Conselho de Instrução
Pública. Um exemplo pode ser visto nos pareceres do livro de Souza
Lobo:
Tendo sido por V.S. nomeados para que dessentos o
nosso parecer acerca de qual Arithmetica devia ser
approvada e doptada acerca da instrução publica da
provincia, cumpre-nos declarar conscienciosamente que,
a não ser a arithmetica de Theodoro Lobo nenhuma ha
que se preste, como obra didactica, para o caso em
questão, como a que dica referida, não só porque declara
em termos precisso e claros o objecto de cada operação,
dispondo logo as analogias segundo os principios
theoricos a que se refere, como pela sua clareza, exacção
e facilidade de execção. [...] Certifico ainda que á vista
do parecer acima, foi a dita Arithmerica approvada pelo
Conselho Director e mandada adoptar nas aulas publicas
do 20 grau por PORTARIA DA PRESIDENCIA DA
PROVINCIA de dezeseis de Dezembro do anno passado.
(Parecer do Conselho da Instrucção Publica da Provincia,
1871, p. ix.)
A presença de exercícios nos livros-texto, quer sejam estes
resolvidos ou apenas propostos, não é uma característica comum aos
livros dessa época. Até metade do século, não era comum a
existência de exercícios propostos nos livros. Alguns textos, como
o de Aragão, de 1858, não contêm exercícios de forma explícita, mas
exemplos resolvidos. Todavia, o Tratado, de Coqueiro, de 1860
apresenta problemas propostos muito interessantes. A partir de
Antonio Trajano, os exercícios resolvidos e propostos começaram a
ser comuns nos livros-texto.
150
FACETAS DO DIAMANTE
Não havia grandes preocupações didáticas com a
apresentação dos conteúdos. Raras são as ilustrações nos livros de
Aritmética. A apresentação dos conteúdos segue uma ordem
tradicional: definição, regra ou teorema, sendo que este podia
apresentar uma demonstração formal ou, na maior parte dos casos,
apenas uma verificação numérica do resultado. Seguem-se alguns
exemplos resolvidos e o índice finaliza o trabalho.
Não era comum a apresentação de referências bibliográficas.
Quando estas apareciam, muitas vezes eram incompletas.
A título de ilustração, apresentamos a análise de algumas
obras selecionadas. Escolhemos a obra de Coqueiro por causa de
algumas particularidades que a distingue de outras contemporâneas.

TRATADO DE ARITMÉTICA DE J. A. COQUEIRO

Coqueiro nasceu no Maranhão. Formou-se em 1859, na


École Polytechnique de Paris. O Tratado de Arithmetica foi
publicado em Paris e os senhores P. Reunoux e L. Tarbouriech,
professores de ciências nessa cidade, leram os manuscritos do livro,
recomendando-o para publicação. O livro destinava-se ao ensino
secundário. Ele passou a ser adotado, parcialmente, a partir de 1870,
no Colégio Pedro II. Nessa época, ainda era adotado o livro de
Ottoni para algumas séries. A partir de 1879, o livro de Coqueiro foi
indicado para a primeira e segunda séries do secundário.7 O autor
procura apresentar os conteúdos de maneira rigorosa, inclusive
incluindo uma parte axiomática. Segundo ele, um teorema é uma
verdade que se torna evidente por meio de um raciocínio que se
chama demonstração, enquanto um axioma é uma verdade evidente,
apenas.
Para a adição e subtração, são enunciados os seguintes
axiomas:
Axioma I. Não se pode reunir senão quantidades da
mesma espécie, e a soma é da mesma espécie que as
quantidades componentes.
151
FACETAS DO DIAMANTE
Axioma II. A soma não depende da ordem em que os
números se acham escritos.
Axioma (sem numeração). A diferença de dois números
não muda de valor quando se ajuntam ou diminuem os
dois termos da subtração de uma mesma quantidade.
Para as demais operações, não são enunciados outros
axiomas. Segue-se um capítulo com teoremas relativos as quatro
operações.
O livro de Coqueiro divide-se em oito capítulos: I)
Numeração e operações fundamentais; II) Propriedades elementares
dos números inteiros, divisibilidade, números primos; III) Teoria
das frações ordinárias, teoria dos números decimais; IV) Medidas:
sistema métrico, sistema brasileiro de pesos e medidas; V) Potências
e raízes; VI) Aproximações numéricas; VII) Razões, progressões e
logaritmos; VIII) Aplicações.
A apresentação de Coqueiro caracteriza-se pela ênfase ao
enunciado de teoremas, à formulação de alguns axiomas, aos
exercícios resolvidos e aos exercícios propostos.

Enunciamos alguns dos exercícios propostos pelo autor:


De cunho teórico:
• Em que caso o resto de uma divisão fica o mesmo quando se
divide o dividendo pelo divisor?
• Demonstrar que o quadrado da soma dos n primeiros números
inteiros é igual a soma dos cubos desses mesmos números.
• Demonstrar que uma grandeza proporcional a muitas outras é
também proporcional a seu produto.
• Demonstrar que o produto de n números inteiros consecutivos é
sempre divisível pelo produto dos n primeiros números.
De cunho prático:
• Pergunta-se o comprimento de uma ilha, sabendo-se que um
observador, colocado em uma de suas extremidades, deu um tiro
152
FACETAS DO DIAMANTE
de peça [sic], e outro observador, colocado na extremidade
oposta, só ouviu o tiro 36 segundos depois de ter visto a
inflamação da pólvora.
• A circunferência da terra contém 360 graus, a distância do Sol à
Terra é igual a 2400 raios terrestres. Qual é a distância em léguas
do sol a Terra?
• Dois correios vão ao encontro um do outro: a distância que os
separa é de 120 léguas; um anda 3 léguas por hora, e o outro, 2.
Quando e a que distância dos dois pontos de partida terá lugar o
encontro?
• Duas bicas correm no mesmo tanque: a primeira correndo
sozinha, enche-o em 5 horas, a segunda em 4 horas, e a água do
tanque corre por uma torneira que o esvazia em 2 horas. O tanque
estando cheio e as três torneiras correndo simultaneamente, em
que tempo o tanque se esvaziará?
• No fim de quanto tempo um capital empregado a juro composto
a 5 % virá a ser o dobro?
• Durante certo tempo, 40 obreiros fizeram 268 toesas de obra.
Quantas toesas farão no mesmo tempo 60 obreiros de mesma
força?
Outra característica do livro de Coqueiro é a utilização da
Álgebra na Aritmética. No primeiro capítulo, quando apresenta a
divisão, o autor (Coqueiro, 1860, p. 52) propõe:
Achar um número tal que a soma dos seus algarismos,
tomados como seus valores absolutos seja 12, e que a
diferença entre o número inverso e o número dado seja
54.
Solução: Suponhamos que a represente o algarismo das
dezenas e b o das unidades, de maneira que o número
proposto será ax10 + b, e o inverso bx10 + a. A primeira
condição do problema é: b + a = 12 e a segunda: bx10 +
a - ax10 - b = 54, igualdade que podemos escrever:
10xb - b + a - 10xa = 54, ou
9b - 9a = 54
153
FACETAS DO DIAMANTE
9 (b - a) = 54 donde b - a = 54/9 = 6.
Temos enfim a soma e a diferença de duas quantidades:
b + a = 12
b - a = 6;
donde se tira: b = (12 + 6)/2 = 18/2 = 9
a = (12 - 6)/2 = 6/2 =3
Assim o número buscado é 39. Com efeito 3 + 9 = 12 e
93 - 39 = 54.
Cabe ressaltar que esse é o segundo exercício resolvido sobre
a divisão. O primeiro era de cunho teórico, e em ambos ele utiliza o
simbolismo algébrico que não foi explicado anteriormente.

O EXPLICADOR DE ARITHMETICA

O Explicador de Arithmetica — obra apropriada aos


alunos das Academias Militar e de Marinha, do Instituto Comercial,
aspirantes a empregos públicos, negociantes, artistas, etc. — de
autoria de Eduardo de Sá Pereira de Castro, como o próprio autor
afirma, pretendia atingir um público amplo. A quinta edição de 1880
foi corrigida e aumentada por João Chrockatt de Sá Pereira de Castro,
também bacharel em Matemática e Ciências Naturais.
No apêndice, o autor incluiu os “pontos”8 de Aritmética do
programa de exames preparatórios, organizado pelo Conselho
Diretor de Instrução Primária e Secundária, em 1877. Os assuntos
eram: quatro operações sobre números inteiros; frações ordinárias,
sua redução ao mesmo denominador e à expressão mais simples;
operações sobre as frações ordinárias; operações sobre as frações
decimais; sistema métrico; operações com números complexos;
divisibilidade dos números; dízimas periódicas; quadrado e raiz
quadrada; cubo e raiz cúbica; equidiferenças e proporções; regra de
três simples e composta; regra conjunta; regra de juros e descontos;
progressões por diferença; progressões por quociente; logaritmos,
teoria elementar e uso de tábuas; juros compostos.
154
FACETAS DO DIAMANTE
Baseando-se nos “pontos” do programa, o autor escrevia o
seu livro, procurando contemplar todos aqueles conteúdos previstos
para os exames. Além disso, Castro apresentou três capítulos que
incluem: noção histórica da Aritmética, noção filosófica e noções
gerais. Um tema que não fazia parte do elenco de conteúdos dos
exames preparatórios era a regra de falsa posição, mas,
curiosamente, essa regra aparecia em muitos dos livros-texto por nós
analisados. A regra da falsa posição é um método para resolver
equações do 1o grau a uma ou mais incógnitas, que consiste em
substituir o número que se busca por um outro qualquer e efetuar as
operações sobre esse suposto número. Caso ele não seja o valor da
incógnita, repete-se o processo e, utilizando-se as hipóteses feitas e
as diferenças obtidas, procura-se chegar ao valor verdadeiro. O autor
apresenta vários exemplos resolvidos e também uma explicação da
regra, que ele denomina uma “demonstração da regra”.

AUTORES POSITIVISTAS GAÚCHOS

Já mostramos, com os exemplos de Maranhão e Bahia, que


não apenas nos dois grandes centros do País, Rio de Janeiro e São
Paulo, havia a preocupação de elaboração de livros-texto para o
ensino. O exemplo a seguir ilustra o caso do Rio Grande do Sul, com
os autores positivistas.
Dois autores de livros-texto gaúchos, propagadores da
filosofia positiva de Auguste Comte no Rio Grande do Sul, foram
Luiz Celestino de Castro e Demétrio Nunes Ribeiro. Eles foram
escolhidos porque eram pouco conhecidos do público e por causa da
influência de suas ideias no Sul do País.
Positivista da região Sul do Brasil, Luiz Celestino de
Castro baseou seu livro-texto Licções de Arithmetica, primeira
edição de 1883 e quarta edição em 1914, no método de exposição
de Comte. O livro resumia as lições que ministrava na Escola Militar
do Rio Grande do Sul, local onde existiam muitos militares de
crença positivista. O autor chama a atenção para o fato de que não
foi possível seguir didaticamente todo o plano de Comte, devido aos
155
FACETAS DO DIAMANTE
“atrasos de nossa educação”, e o parecer de Licínio Cardozo sobre
a obra, em 1884, afirma que o texto de Celestino de Castro não
satisfazia às exigências da Synthese Subjectiva de Auguste Comte,
do ponto de vista filosófico. A exigência de seguir o plano proposto
por Comte parecia, mesmo para os positivistas mais ferrenhos, uma
tarefa inexequível.
se tua arithmetica attendesse ás exigencias da
Synthese, não corresponderia ao seu destino. Só nos
estabelecimentos ou cursos onde seja seguido
orthodoxamente o ensino positivista, será possivel o
estudo da arithmetica segundo taes exigencias. Ora,
semelhante ensino, que é destinado a produzir a maior e
mais salutar das reformas sociaes, não é ainda
infelizmente seguido em nossas academias, e pecaria por
falta de methodo aquelle que pretendesse ensinar
arithmetica, como o exige o plano de estudos traçado por
Comte, a individuos insuficientemente preparados, aos
quaes não foi ministrada, como primeiro alimento
scientifico do espirito, a Philosophia Primeira.
(CASTRO, 1914, p. 17.)
A opinião do autor quanto ao ensino ministrado nas escolas
era muito pessimista, denominando de deplorável
o methodo seguido não só nas aulas primarias, como até
nos nossos cursos superiores é lastimavel [...] em vez do
methodo intuitivo, em vez de um encadeamento logico
[...] procura-se ensinar-se hoje o que só amanha deveria
o alumno aprender (a.a.O., p. 7.)
O autor recomendava que era necessário, no ensino, atender-
se à transição natural do simples para o composto, do fácil para o
difícil, do concreto para o abstrato, passar dos fatos às leis,
ilustrando bem as premissas educativas de Auguste Comte.
Reclamava também das obras didáticas adotadas nos
estabelecimentos de ensino que são em geral um amontoado informe
de definições a priori estabelecidas, de minuciosas regras e
exemplos fundados antes sobre aparentes analogias “[...] obrigando-
se o aluno ao fatigante e arido trabalho de decorar, exercicio
puramente mecânico” (a.a.O., p. 7).
156
FACETAS DO DIAMANTE
Sua obra divide-se em duas partes: uma dedicada à teoria dos
números e outra a aplicações. A primeira parte compreende as
operações com números inteiros e fracionários, a divisibilidade,
teoria das proporções e logaritmos. A segunda, que é denominada
“Sociologia prática”, compreende a metrologia, regra de três, juros,
desconto e regra de sociedade. A obra não difere substancialmente
das outras Aritméticas escritas na época, a não ser pelo prefácio,
onde algumas ideias sobre a concepção de Matemática de Comte são
discutidas quanto à apresentação da obra.
Demétrio Ribeiro (1855-1931) nasceu no Rio Grande do
Sul. Bacharelou-se em Ciências Físicas e Matemáticas na Escola
Central do Rio de Janeiro e de lá trouxe as ideias positivistas para o
Sul do País. Teve um papel destacado na vida pública do Estado,
tanto no ensino quanto na política. Foi professor de Ciências
Naturais e também diretor da Escola Normal de Porto Alegre. Em
1889, assumiu o cargo de Ministro da Agricultura e foi,
posteriormente, deputado federal pelo Rio Grande do Sul. Entre
1890 e 1893, foi diretor do jornal O Rio Grande e redator do jornal
Federação, onde publicava muitos artigos de cunho político, com o
pseudônimo “Gaúcho Velho”. Para o ensino, escreveu dois livros
didáticos: Curso Elementar de Arithmética, 1a parte publicada em
1881 e a segunda parte em 1882. A primeira parte teve duas
reedições, em 1883 e 1911, e a segunda apenas uma reedição em
1911. Após abandonar a vida pública. Demétrio Ribeiro foi residir
em Paris. Retornou em 1929, devido ao falecimento de sua esposa.
O Curso Elementar de Arithmetica obteve do júri da
Exposição Pedagógica da Corte (Rio de Janeiro), em 1883, o mais
alto prêmio. O esquema da obra é o seguinte:

QUADRO 2 — ESQUEMA DA OBRA CURSO ELEMENTAR DE ARITHMETICA


Livro Capítulo Assuntos
I 1 Preliminares. Numeração. Grandezas. Sistema de escrita.
Medidas de grandezas. Nomenclatura das frações.
2 Adição e subtração. Complementos aritméticos.
3 Multiplicação e divisão. Teoremas.
157
FACETAS DO DIAMANTE
4 Potências e raízes. Raiz quadrada e cúbica.
5 Proposições e princípios que facilitam o cálculo
(divisibilidade, números primos, MDC, MMC).
II 1 Frações.
2 Operações sobre expressões fracionárias (adição,
subtração, multiplicação, divisão, potências e raízes).
3 Frações decimais (operações). Raiz quadrada e raiz
cúbica. Conversão das expressões sob a forma de fração
ordinária e decimais.
III 1 Sistemas de medidas. Sistema métrico decimal, Medidas
de comprimento. Medidas de superfície. Medidas
agrárias.
Medidas de volume. Medidas de peso. Antigas medidas
do Brasil. Sistema monetário (a unidade real). Medidas
angulares.
Circunferência. Quadrante, grau, minuto. Unidades de
tempo.
2 Complexos: preliminares. Conversão das medidas.
Antigas medidas de comprimento convertidas em metro.
Medidas de capacidade.
IV 1 Razões e proporções. Proporcionalidade. Regra de três.
2 Juros. Desconto. Fundos Públicos (dívida pública).
3 Sociedade. Sociedade simples. Sociedade composta. Liga.
Mistura.

O livro apresenta, ainda, um capítulo adicional sobre regra


conjunta e câmbios e também uma conclusão. A referência ao nome
de Auguste Comte só aparece quando o autor explica o que é a
Matemática; “Matemática é a sciencia que tem por fim a medida
indirecta das grandezas”. E acrescenta: “Mathematica é a sciencia
que tem por fim determinar umas grandezas por meio de outras,
segundo relações precisas entre si”. A Aritmética é definida,
também, com as mesmas palavras que Comte empregou:
“Arithmetica é a sciencia que tem por fim o calculo dos valores.” Se
exclusíssimos essas citações, seria pouco visível a concepção
positivista do autor.
158
FACETAS DO DIAMANTE
LISTA PRELIMINAR DE OBRAS
SOBRE ARITMÉTICA POR AUTORES BRASILEIROS

• Cândido Baptista de Oliveira: Compêndio de Arithmética. Rio de


Janeiro, Tipografia Nacional, 1832. 2a edição em 1842 e 3a
edição em 1863.
• Francisco de Paula Leal: Elementos de Aritmética para uso da
mocidade brasileira nas escolas de primeiras letras. Rio de
Janeiro: Typografia de Silva & Irmão, 1837.
• Pedro d’Alcantara Bellegarde: Compêndio de Matemáticas para
uso da Escola de Arquitetos Medidores da província do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia de J. do N. Silva, 1838. 2a
edição em 1842 e 3a edição em 1848.
• Salvador Henrique de Albuquerque:9 Resumo de Aritmetica para
uso das escholas do 2o grau. Pernambuco: Typographia de M. F.
de Faria, 1847.
• José Joaquim de Avila:10 Elementos de Arithmetica. Rio de
Janeiro: Typographia braziliense de F.M. Ferreira, 1850. 2a
edição em 1857.
• Cristiano Ottoni:ll Elementos de Arithmetica. Rio de Janeiro:
Editora Laemmert, 1852. 2a edição em 1855, 3a edição em 1886.
• Fernando Luiz Ferreira:12 Arithmetica: compendio para
instrucção primaria. Maranhão: Typographia de J.C. de Torres,
1856.
• Antonio Ferrão Muniz Aragão: Elementos de Matematicas.
Bahia: Typografia Pedroza, 1858.
• Luiz da Silva Alves de Azambuja Susano:13 Principios de
Arithmetica mercantil. Rio de Janeiro: Typographia Universal de
Laemmert, 1860.
• •J. A. Coqueiro: Tratado de Arithmetica. Paris: Rey e Belhatte,
1860.
159
FACETAS DO DIAMANTE
• AntonioTrajano: Arithmética Elementar Ilustrada. São Paulo e
Belo Horizonte: Livraria Francisco Alves, 1879. Em 1958 a 136a
edição.
• Antonio Trajano: Arithmetica Progressiva. São Paulo e Belo
Horizonte: Livraria Francisco Alves, 1880. 62a edição em 1927.
• Eduardo de Sá Pereira e Castro:14 O Explicador de Arithmética.
Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1854. 5a edição em 1880.
• João José Luiz Vianna: Elementos de Arithmetica. Rio de Janeiro:
Francisco Alves & Cia, 1882. Recomendado para o ensino de
Arithmética no Ginásio Nacional em 1898. Vigésima edição em
1923.
• Luiz C. de Castro: Licções de Arithmetica. Porto Alegre: L.P.
Barcellos & Cia - Livraria do Globo, 1883. 4a edição em 1914.
• José Theodoro de Souza Lobo: Primeira Arithmetica para
meninos. 15a edição Porto Alegre: Editora Globo, 1893. 51a
edição em 1954.
• José Theodoro de Souza Lobo: Segunda Arithmetica para
meninos. 9a edição. Porto Alegre: Editora Globo, 1893.
• Aarão Reis e Lucano Reis: Curso elementar de Matemática —
Arithmetica. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia, 1892.
Recomendado para o ensino de Arithmética no Ginásio Nacional
em 1898. 2a edição em 1893, 3a edição em 1910.
• S.T. Arithmetica Elementar practica (IIIa Parte) Collecção de
regras, exercicios e problemas methodicamente compilados
pelas professoras do Collegio São José em São Leopoldo. 1a
edição em 1889. Porto Alegre: Livraria Selbach. 7a edição em
1929.

ÁLGEBRA

Os livros-texto de Álgebra começaram a surgir a partir da


década de 50. Foram muito influenciados pelos autores franceses:
160
FACETAS DO DIAMANTE
Bézout, Lacroix e Bourdon, entre outros. Embora não fosse usual
apresentar uma lista de referências bibliográficas nos livros,
percebe-se essa orientação em autores franceses. Muitas vezes, o
autor faz uma mera tradução de trechos de obras dos autores citados,
não alterando nem os exemplos.
A Álgebra é entendida como uma parte da Matemática que
trata com números e utiliza letras para abreviar, simplificar e
generalizar. A maioria dos autores via a Álgebra como uma
Aritmética generalizada. Ela serve para resolver problemas que
envolvem quantidades desconhecidas.
O livro Elementos de Algebra de Cristiano Ottoni, de 1852,
é possivelmente o primeiro livro-texto dedicado ao ensino da
Álgebra, escrito por autor nacional. Ele orientou-se fortemente na
obra Éléments d’Algèbre de M. Bourdon. Os assuntos abordados por
Ottoni e comuns nos livros de Álgebra da época eram: operações
algébricas, problemas do 1o grau, problemas indeterminados,
resolução dos problemas, equações do 2o grau, potências e raízes de
todos os graus, progressões e logaritmos.
No capítulo intitulado “Problemas do 1º grau”, o autor inclui
a discussão sobre as quantidades negativas, considerando esse um
tema muito delicado (Ottoni, 1852, p. 67):
A resolução dos problemas pelas regras da Álgebra
apresenta algumas vezes circunstâncias singulares, que a
primeira vista causam embaraço; mas, bem interpretadas,
dão a conhecer novas propriedades que ampliam e
generalizam a língua algébrica.
A explicação de Ottoni para as raízes negativas de uma
equação é a seguinte:
Em um problema do 1º grau todo o valor negativo da
incognita indica um vício na expressão das condições, ou
na equação que as representa. Esse valor, prescindindo
do sinal, é solução de um problema que só difere do
proposto em que certas quantidades, de aditivas que
eram, se tornaram subtrativas, ou reciprocamente.
(a.a.O., p. 70.)
161
FACETAS DO DIAMANTE
Ottoni, como muitos outros autores de livros-texto da época,
sentia-se pouco à vontade para tratar com as quantidades negativas,
Ele manifestou suas dúvidas e dificuldades neste parágrafo, onde
tentou explicar o que era uma quantidade negativa isolada:
... a significação das expressões negativas, é questão que
tem preocupado os maiores genios que ilustraram a
história das Matemáticas. Contudo, todas as teorias que
pretendem dar-lhes existência própria e distinta das
positivas parecem-nos origem de dúvidas, contradições
e obscuridade. A noção mais clara e inteligível é a que
deriva da própria origem destes símbolos, a saber: Uma
expressão negativa é a indicação de uma subtração
impossível. (a.a.O, p. 73.)
O autor dedicou aproximadamente dez páginas para a “teoria
das quantidades negativas”. Considerando que o livro tem mais ou
menos duzentas páginas, percebe-se a importância que ele atribuía
ao assunto.
No decorrer do texto, ele manifesta preocupações de ordem
didática, alertando o leitor sobre as dificuldades que surgem na
utilização da Álgebra para a resolução de problemas e também
dando sugestões para auxiliar o leitor a ter sucesso na resolução de
problemas. Essas sugestões são muito semelhantes às que Descartes
abordou em seu livro de 1647, Geometrie, e são as mesmas que
formulou Bourdon no livro já antes referido.
As vezes o enunciado do problema se traduz
imediatamente em equação; outras é necessária a
sagacidade para perceber nesse enunciado as condições
suscetíveis de serem expressas algebricamente. [...] Eis
aqui o único preceito geral apropriado para bem
encaminhar o estudantes nestas investigações:
Considerar o problema como resolvido, efectuar com o
auxílio de sinais algébricos, sobre as quantidades
conhecidas, números ou letras, e sobre a incognita,
sempre representada por uma letra, as mesmas operações
e raciocícios que seriam necessários se o valor da
incógnita já estivesse determinado e se tratasse de
verificá-lo. (a.a.O, p. 50.)
162
FACETAS DO DIAMANTE
O estilo do livro de Ottoni é o seguinte: ele parte do conceito,
apresenta a regra ou regras e, em seguida, dá uma aplicação do
conteúdo. Não há problemas resolvidos nem propostos.
A Álgebra Elementar de Antonio Trajano, obra que alcançou
muito sucesso e foi reeditada, muitas vezes, apresenta um estilo
muito diferente daquela de Ottoni, já analisada.
Segundo a própria avaliação de seu autor, o método que
utiliza na Álgebra Elementar é “facílimo, simples e muito
compreensível”. Por julgar que havia um grande abandono do
ensino da Álgebra nas instituições de ensino do País, e para ajudar
as pessoas a desenvolver o gosto pelo estudo dessa disciplina,
Trajano apresenta um livro-texto que se caracteriza por sua
simplicidade e facilidade.
A fim de tornar o texto mais atraente, o autor procurou dar
pouca ênfase ao rigor algébrico e explorou mais a resolução de
exercícios. Para ele, “a Álgebra é a parte das matemáticas que
resolve os problemas, e demonstra os teoremas quando as
quantidades são representadas por letras” (Trajano, 1905, p. 50).
Os temas abordados por Trajano são os seguintes: adição,
subtração, multiplicação e divisão algébrica, divisores e múltiplos,
máximo divisor comum, frações algébricas, equações do primeiro
grau, desigualdades, formação de potências, extração de raiz
quadrada, equações do segundo grau, equações biquadradas, razão
e proporção, progressões.
Para facilitar o aprendizado, o autor, em geral, procede da
seguinte maneira: primeiro resolve um problema particular e, em
segundo lugar, generaliza o problema.
Exemplo (Trajano, 1905, p. 108):
Problema. A soma de dois números é 68, e sua diferença
é 20; quais são os números?
Solução. Seja x o número maior, e x - 20 o número
menor. Pelas condições do problema, o número maior é
44, e o menor é 24.
x + x - 20 = 68
163
FACETAS DO DIAMANTE
2x = 88
x = 44
x - 20 = 24.
[...] Generalizemos pois esse problema:
A soma de dois números é s, e sua diferença é d; quais
são os números?
Solução. Seja x o número maior, e x - d o número menor.
Temos então a equação x + x - d = s. Resolvida a equação,
s+d
vemos que o número maior é , e 2 o número menor é
2
s−d
.
2

x+x-d=s
x + x= s + d
2x = s + d
s+d
x=
2
s−d
x–d= .
2

Trajano expõe suas reflexões sobre a resolução de problemas


em Álgebra, em notas de rodapé. Algumas são muito ilustrativas e
mostram suas preocupações com a aprendizagem dos alunos.
Há problemas de fácil intuição, e que podem ser
resolvidos sem dificuldade alguma; há outros, porém,
que só a custa de um esforço do raciocínio é que os
discípulos poderão achar um meio de os dispor em uma
equação algébrica. Isto, porém, de modo algum deve
desanimar os alunos estudiosos, porque com alguma
aplicação e perseverança, eles poderão vencer as maiores
dificuldades. Se na primeira tentativa o discípulo não
puder formar a equação do problema, empregue novo
esforço; repita as tentativas até ficar senhor do achado.
Todo o esforço e fadiga que der ao raciocínio para
resolver um problema, não será trabalho inútil ou
perdido, porque lhe resultará em dois grandes proveitos:
o primeiro é adestrar-se em resolver facilmente os
problemas da Álgebra, o que é já uma boa recompensa;
o segundo é desenvolver as faculdades intelectuais, pois
164
FACETAS DO DIAMANTE
sendo elas manejadas constantemente no raciocínio
exato e claro das soluções algébricas, poderão também
raciocinar e resolver com acerto questões de outra
natureza. (TRAJANO, 1905, p. 83-84.)
Alfredo Candido de Moraes Rego e Antonio Gabriel de
Moraes Rego, autores positivistas, escreveram uma obra para o
ensino da Álgebra, publicada em 1886. Ela difere muito dessas duas
citadas. Seu estilo é excessivamente discursivo e com muitas
discussões filosóficas, semelhante ao de Comte.
Embora os autores apresentem a definição de Comte para a
Álgebra, ou seja, é “o cálculo das formações diretas”, eles não veem
nenhuma realidade nos objetos algébricos, são meras hipóteses
construídas por nosso cérebro, não têm nada a ver com o mundo
empírico, pois
separada da aritmética e da geometria, a álgebra limita o
seu papel à resolução de equações, isto é, a tornar
explícitas as relações entre as grandezas conhecidas e
desconhecidas. (REGO, 1886, p. 178.)

LISTA PRELIMINAR DE OBRAS


SOBRE ALGEBRA POR AUTORES BRASILEIROS

• Cristiano Ottoni: Elementos de Algebra. Rio de Janeiro:


Laemmert, 1852. 4a edição em 1879.
• José Joaquim de Avila:15 Elementos de algebra para uso dos
collegios de instrucção secundaria. Rio de Janeiro: Typographia
Fluminense de D. L. dos Sanctos, 1857.
• Luiz Pedro Drago: Apostillas de Algebra - explicador de
Mathematicas. Rio de Janeiro: Typografia de Pinheiro & Cia,
1868.
• Aarão Reis: Curso elementar de Matemática - Álgebra. 2a Ed.,
Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1914.
165
FACETAS DO DIAMANTE
• Alfredo Candido de Moraes Rego e Antonio Gabriel de Moraes
Rego:16 Elementos de Álgebra ou cálculo das funcções directas.
Rio de Janeiro: Edictor J. J. de Sousa Peixoto, 1886.
• Antonio Trajano: Álgebra Elementar. 5a Ed., Rio de Janeiro:
Companhia Typografica do Brazil, 1905.

GEOMETRIA

Um dos primeiros livros-texto de Geometria utilizado


amplamente no ensino foi os Elementos de Geometria, de Ottoni.
Para o autor, a Geometria é a “ciência que se ocupa das propriedades
das figuras, da medida e da extensão”. Essa concepção não difere
muito daquela apresentada por Legendre no livro-texto a que já nos
referimos. A importância da Geometria radica na sua utilidade que,
segundo o autor, é um auxílio poderoso e indispensável à
Astronomia, Geografia e a outras ciências. Analisamos a décima
edição dessa obra, ou seja, a edição de 1904, na qual se lê “mais
correta e mais aumentada com muitas notas intercaladas no texto”.
As notas foram introduzidas pelos editores que desejavam,
conforme explicitam no prefácio, mantê-la de acordo com os
programas de ensino. O livro aborda, além da Geometria Plana e
Espacial, também a Trigonometria Retilínea.

Conteúdos abordados na Geometria Plana:


• Teoria das perpendiculares e oblíquas
• Teoria das paralelas
• Propriedades dos triângulos
• Quadriláteros
• Polígonos
• Circunferência e suas combinações com a linha reta
• Cordas, secantes e tangentes
166
FACETAS DO DIAMANTE
• Medidas dos ângulos
• Ângulos excêntricos
• Polígonos inscritos e circunscritos
• Círculos secantes e tangentes
• Linhas proporcionais
• Figuras semelhantes
• Teoremas e propriedades dos triângulos
• Avaliação e comparação de áreas
• Linhas proporcionais consideradas no círculo
• Áreas dos polígonos regulares
• Circunferência e área do círculo

O estilo do autor é ainda o euclidiano — colocando uma


ênfase forte no método dedutivo, sem qualquer apelo à intuição, nem
mostrando a relação da Geometria com o cotidiano, sem exercícios
propostos ou resolvidos, sem ilustrações. Basicamente, cada
capítulo começa por definições ou axiomas, seguindo-se os
teoremas e suas demonstrações. Esse livro-texto, que segue o estilo
de Legendre, serviu de modelo para outros autores que foram
surgindo no decorrer do século. Uma alteração significativa na
abordagem da Geometria apareceu no final do século XIX com o
livro intitulado Geometria Prática, de Olavo Freire.
Timotheo Pereira escreveu seu Curso de Geometria,
seguindo a orientação de Ottoni. A primeira edição surgiu em 1888.
Várias edições se sucederam: em 1909 a segunda e a quinta edição
em 1927. Esse livro foi adotado no Colégio Pedro II, Colégio Militar
e em vários estabelecimentos de educação secundária do País. Na
folha de rosto, lê-se que ele estava de acordo com o programa de
admissão à Escola Politécnica. Timotheo Pereira seguiu o estilo de
André, autor francês do século XIX17 que utilizava para as
167
FACETAS DO DIAMANTE
ilustrações (figuras do texto), quadro de fundo preto com a figura
em branco, como se tivéssemos o negativo do filme.
Pereira não incluiu a Trigonometria em sua obra. Limitou-se
à Geometria Plana e Espacial. Seguindo o modelo euclidiano, a obra
é também dividida no que o autor denomina “livros”. A organização
da obra é a seguinte:

QUADRO 3 — ESQUEMA DA OBRA CURSO DE GEOMETRIA


Partes Conteúdos
Introdução Noções preliminares: linha reta, linhas, curva, quebrada e
mista, plano, superfícies, métodos de demonstração,
círculo, ângulos.
Primeira Secção Teoria das perpendiculares e oblíquas. Teoria das paralelas.
Propriedades dos triângulos. Dos quadriláteros e suas
Primeiro livro:
variedades. Polígonos em geral. Circunferência. Cordas,
das figuras secantes e tangentes. Medida dos ângulos. Polígonos
planas. inscritos e circunscritos. Círculos secantes e tangentes.
Primeira Secção Linhas proporcionais. Figuras semelhantes. Semelhança de
triângulos. Semelhança de polígonos. Retas concorrentes.
Segundo livro:
Propriedades dos triângulos. Bissetriz. Linhas
da extensão em proporcionais consideradas no círculo. Secantes e
um plano. tangentes. Diagonais. Polígonos regulares. Polígonos
regulares inscritos e circunscritos na circunferência.
Retificação da circunferência. Perímetros. Áreas: de um
retângulo, paralelogramo, triângulo, trapézio, polígono
qualquer. Quadrado. Áreas dos polígonos regulares. Áreas
das figuras circulares. Exercícios numéricos.
Segunda Secção Figuras no espaço: Plano e linha reta. Retas e planos
paralelos, perpendiculares. Ângulos diedros. Planos
Terceiro Livro
perpendiculares. Angulo triedro. Soma dos ângulos de um
poliedro. Poliedros. Propriedades dos prismas e das
pirâmides. Teoria da igualdade. Poliedros regulares
convexos. Teorema de Euler. Três corpos redondos.
Cilindro. Cone. Esfera.
Segunda Secção Da extensão no espaço: Semelhança dos poliedros.
Poliedros inscritos e circunscritos. Áreas dos poliedros.
Quarto Livro
Volumes dos poliedros. Área da esfera. Área da zona.
168
FACETAS DO DIAMANTE
Volume da esfera. Volume do segmento. Volume da cunha
esférica. Simetria. Noções sobre algumas curvas: elipse,
hipérbole, parábola. Noções sobre as secções cônicas.
Concóide. Cissóide. Limaçon de Pascal. Espiral de
Arquimedes. Hélice. Ciclóide. Epiciclóide.

Toda a obra de Pereira está centrada numa ênfase dedutiva,


começando com definições e seguindo teoremas e corolários
demonstrados. Não há exemplos numéricos no texto. Nos livros 1 e
2 são demonstrados quase 300 teoremas, enquanto são incluídos
apenas 51 exercícios numéricos sem resposta. O mesmo acontece
para os livros 3 e 4, onde mais de 300 teoremas são demonstrados,
para 72 exercícios numéricos propostos.
A seguir, apresentamos alguns exemplos dos exercícios
propostos para a Geometria Plana (Pereira, 1909, p. 221):
1) Achar a área de um quadrado de lado 64.
15) Achar a área de um pentágono regular inscrito num
círculo de raio 16m.
35) Achar o perímetro de um decágono regular tendo de
área 168m2.
46) Num círculo de corda de 24m, distando do centro
18m, qual a área do círculo?
O autor incluiu no final do livro uma nota destinada ao leitor.
Ali explica que “num livro didático a concisão e a clareza são
elementos primordiais, e portanto indispensáveis”. Mas, por
acreditar que tenha produzido um livro-texto muito extenso,
justifica-se (Pereira, 1909, S.P.):
é bem possível que me tenha tornado prolixo, mas, se as
demonstrações em matemática não são para justificar as
suas proposições, porém sim para constituir exercícios
de lógica, compreende-se que da pequena fadiga cerebral,
proveniente da prolixidade (que porventura houver) só
pode resultar vantagem para quem a pratica.
Assim, ele dá a entender que toda a abordagem da Geometria
que apresentou não passa de treinamento lógico. De fato, não se
169
FACETAS DO DIAMANTE
percebe na obra nenhum apelo ao mundo real nem vinculação com
problemas de medição do cotidiano, mas é visível o
desenvolvimento de uma cadeia de proposições lógicas que
contemplem todos os assuntos cobrados nos exames e alguns outros
adicionais. Ele procurou atender ao programa exigido para a
admissão na Escola Politécnica, mas, além das matérias dos exames,
incluiu outras que julgou relevantes.
No apêndice, o autor expôs os métodos de Gregory e
Legendre para o cálculo de , notas sobre as transversais nos
triângulos, quadriláteros reverso e cálculo de área de superfície
esférica.
Pereira seguiu muito o estilo de Legendre, inclusive no que
diz respeito à teoria das paralelas. O tema era delicado e o autor se
posiciona com cautela. Inicialmente, ele demonstra o teorema “se
duas retas são perpendiculares a uma mesma reta então são paralelas”
e após enuncia que “por um ponto fora de uma reta só se pode tirar
uma paralela a esta reta”. Ele demonstra que fora da reta se pode
tirar uma paralela, mas não demonstra a unicidade, diz que vai
admitir esse fato sem demonstração. A sua cautela com relação a
tema tão delicado é visível na nota de rodapé, dizendo que se apoiou
na obra de Vincent, Précis Géométrie Elementaire, edição de 1837.
De qualquer forma, ele não esconde que Euclides tomou esse
resultado como um postulado. É curioso observar como as novas
teorias matemáticas demoraram a incorporar-se como saber escolar
e aparecer nos livros-texto. A primeira reação contrária à abordagem
euclidiana no ensino da Geometria surgiu com Clairaut em 1741,
todavia ela não teve muita repercussão e o livro de Legendre tornou-
se quase um “best-seller”. Os autores de livros-texto preferiram
continuar a orientação dada por Legendre. No Brasil, encontramos
nas obras de Olavo Freire e Francisco Cabrita, no final da década de
80, do século XIX, as primeiras tentativas de modificar essa situação.
170
FACETAS DO DIAMANTE
NOÇÕES DE GEOMETRIA PRÁTICA DE OLAVO FREIRE

A obra de Olavo Freire rompe definitivamente com o estilo


euclidiano. O autor escreveu um livro destinado ao ensino primário,
embora um olhar cuidadoso deixe entrever conteúdos que
extrapolam um nível primário, como o caso das seções cônicas.
Transcreveremos alguns trechos dos pareceres contidos na 38o
edição de 1937, que ilustram bem a acolhida que o livro teve na
imprensa e o desejo de mudança no ensino da Geometria nas escolas.
Parecer de Meneses Vieira em 1894:
Teu livrinho - Primeiras noções de Geometria - é um
bom instrumento de ensino e uma prova da conquista que
vem fazendo entre nós os sãos princípios pedagógicos.
[...] Na verdade, meu amigo, a geometria “du bon sens”,
a geometria realmente descritiva e intuitiva é a única que
deve ter o direito de entrada nas escolas primárias.
(FREIRE, 1937, p. 5-6.)
Os artigos nos jornais saúdam o livro de Freire como “uma
obra didática”, o que mostra que o tipo de ensino ministrado e os
conhecimentos apresentados nos livros eram objeto de preocupação
do público em geral, na época. Parecer do Jornal do Comércio, Rio
de Janeiro, 1895:
Primeiras noções de Geometria prática dá ao ensino
elementar a facilidade que os estudantes não encontam
em outros compêndios [...] pela clareza da sua exposição
e pela excelência do método que adotou, soube tornar o
seu livro uma obra didática de mérito verdadeiramente
excepcional. (a.a.O, p. 7.)
Parecer do Jornal O Democrata Federal, São Paulo, 1895:
O livro compilado pelo Sr. Olavo Freire, contém 318
exercícios, 71 problemas e 233 gravuras. Desenvolve
intuitivamente os elementos indispensáveis aos
primeiros conhecimentos de matemática linear,
exemplificando os problemas com boas gravuras
elucidativas. Pela sua clareza de exposição e pela
distribuição metódica das matérias, torna-se o presente
opúsculo um livro de grande utilidade para os
171
FACETAS DO DIAMANTE
principiantes, principalmente se consideramos que no
gênero, raros são os autores que se prestam pela precisão
e clareza à aprendizagem dos jovens estudantes. (a.a.O.,
p. 8.)
O que trouxe de novo o livro de Olavo Freire? Ele aboliu os
axiomas, os enunciados e demonstrações de teoremas; excluiu o
termo definição; vinculou os conceitos geométricos a problemas da
vida cotidiana; lançou mão de exercícios de atividades, como recorte,
dobradura, planificação de sólidos, entre outras. Incluiu muitas
figuras para ilustrar os conceitos e vinculá-los ao cotidiano e
vocabulário do aluno e enfatizou os problemas que utilizam a régua
e compasso. Não há nenhuma preocupação com o “rigor” euclidiano,
mas procurou tornar os conceitos claros e acessíveis para os alunos.
Exemplificando o estilo do autor:
No capítulo IV, ele apresentou as retas paralelas, linhas
convergentes e divergentes. Iniciou a discussão com ilustrações
semelhantes às apresentadas na ilustração abaixo:

A introdução do conceito e a sua vinculação à vida cotidiana


era feita da seguinte maneira:
Duas ou mais linhas situadas em uma mesma superfície
plana, seguindo igual direção e conservando entre si,
duas a duas, a mesma distância, tomam o nome de
parelelas. Os trilhos de onde correm as locomotivas [...]
as ruas do Ouvidor e do Rosário [...] os degraus da escada
[...]. (a.a.O., p. 51.)
Os problemas apresentados eram geralmente de construção,
envolvendo o uso de régua e compasso. Por exemplo: Traçar uma
reta paralela a uma reta dada por um ponto dado. Esses problemas
172
FACETAS DO DIAMANTE
eram todos resolvidos. Os exercícios propostos, sem resposta,
envolviam questões do tipo:
Raul! Mostra duas linhas paralelas. Traça duas retas
paralelas. Traça uma reta paralela a uma outra dada, de
modo que a menor distância de uma a outra seja de 40
milimetros. (a.a.O., p. 58.)
Traça sobre papel ou cartão um quadrilátero e em
seguida recorta-o com a tesoura. Uma sala retangular
mede 8 metros de comprimento por 5 metros de largura,
qual o perímetro desta sala? (a.a.O., p. 119-121.)
Para que serve uma escala? Constroe a escala 1:10 e
nessa escala faze um quadrado cujo lado meça 0,92 m.
(a.a.O., p. 197.)
Mostra as arestas desta régua; as faces; os vértices. Faze
em papel a planificação de um cubo; de una tetraedro
regular; de um octaedro regular. Faze em cartão um
prisma. Trace em cartão todas as planificações que vês
neste capítulo. (a.a.O., p.281.)
Amanda! Quais são os corpos redondos que estudamos
em geometria elementar? Que é um cilindro? Cite alguns
objetos usuais que tenham a forma cilíndrica? Com que
parte da superfície esférica se parece um anel? Que
forma tem um gomo de laranja? (a.a.O., p. 302-303.)
É muito interessante observar que o autor deixa entrever
nesses exercícios uma postura dialógica. Ele dirige-se ao aluno,
chamando-o pelo nome, como se estivesse sugerindo um diálogo
entre o professor e o aluno.

LISTA PRELIMINAR DE OBRAS


SOBRE GEOMETRIA POR AUTORES BRASILEIROS

• Francisco Villela Barbosa:18 Elementos de geometria. Rio de


Janeiro: Typographia de Laemmert, 1846. 1a edição em 1815 na
Typographia da Academia de Ciências de Lisboa, reimpresso em
1819 e 1841; em 1838, foi reimpresso pela Sociedade Literária
do Rio de Janeiro. A última edição ocorreu em 1870, em Lisboa.
173
FACETAS DO DIAMANTE
• José Victorino dos Santos e Sousa: Geometria e mechanica das
artes, dos officios e das bellas-artes. Rio de Janeiro, [s.n.], 1832.
• Pedro de Alcantara Bellegarde: Noções de geometria descriptiva.
Rio de Janeiro: Typographia de J. E. S. Cabral, 1840.
• Cristiano Ottoni: Elementos de Geometria e Trigonometria
Rectilinea - compêndio adotado por todos os estabelecimentos
de instrução secundária e superior no Rio de Janeiro. 1a edição
em 1842, 2a edição em 1857, 10a edição em 1904.
• Antonio Francisco Duarte: Geometria Pratica. Rio de Janeiro:
Livraria Popular de Cruz Coutinho, 1871.
• Timotheo Pereira: Curso de Geometria. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves, 1888. 5a edição em 1909.
• Olavo Freire: Noções de Geometria Pratica, 38 ed. São Paulo e
Rio de Janeiro. Livraria Francisco Alves, 1937. 1a edição em
1895.
• Francisco Cabrita:19 Elementos de Geometria, 2. ed. Rio de
Janeiro: Companhia Industrial de Papelaria, 1894.

OBSERVAÇÕES FINAIS

Em 1889, ocorreu a Reforma de Benjamim Constant. O


Colégio Pedro II, chamado então de Ginásio Nacional, adotou para
o ensino da Matemática os seguintes livros-texto:
Para o Curso Realista: 1o e 2o anos: Arithmética de João José
Luiz Vianna e Aarão e Lucano Reis; 3o ano: Álgebra, de
Serrasqueiro; 4o e 5o anos: Geometria de Timotheo Pereira;
Trigonometria, de Timotheo Pereira; 5o e 6o anos: Cálculo
diferencial e integral, de Sonnet; Geometria Analítica, de Sonnet e
Geometria Descritiva, de F.I.C. Para o Curso Clássico, os autores
recomendados foram Legendre, Briot e Camberouse.
Aqui cabe ressaltar que as obras de Sonnet sobre o Cálculo
Diferencial e Integral e sobre a Geometria Analítica, que foram
174
FACETAS DO DIAMANTE
escritas no século XIX, tinham características muito distintas dos
livros-texto modernos sobre esses assuntos. Esses livros
apresentavam o conteúdo de forma extremamente teórica, com
pouquíssimas aplicações. Os exemplos eram quase sempre literais,
isto é, não-numéricos e não havia lista de exercícios propostos,
muito menos exercícios resolvidos. Esses livros, que foram
indicados para o ensino secundário, do ponto de vista didático eram
totalmente inadequados.
O ensino de Cálculo diferencial e integral no curso
secundário teve vida curta, e em 1899 foi suprimido do programa,
bem como a Geometria Analítica e a Geometria Descritiva. O ensino
de Cálculo retornou ao ensino secundário na década de 30 e a
Geometria Analítica voltou à programação do ensino secundário em
1942.
Como os exames finais dos ginásios, desde a época do
império, baseavam-se nos grandes tratados franceses, como os
Bourdon e Camberouse, e na coleção F.I.C., que foi traduzida por
Eugenio Raja Gabaglia, essas obras acabaram tendo enorme
importância no ensino secundário. Outro motivo para a sua adoção
era econômico: nessa época os livros franceses eram mais atraentes
do ponto de vista econômico que os nacionais. Essa situação
modificou-se a partir da década de 30, quando os livros estrangeiros
ficaram caros e começou o incentivo à aquisição das obras nacionais.
José Veríssimo foi, no final do século XIX, diretor da
instrução pública no Pará e também diretor do Ginásio Nacional no
Rio de Janeiro. Em 1906, ele se manifestava sobre os livros
didáticos da seguinte forma (Veríssimo, 1906, p. 6):
... uma das mais necessarias reformas é a do livro de
leitura. Cumpre que ele seja brasileiro [...] brasileiro
pelos assuntos, pelo espírito [...] e pelo sentimento
nacional que o anime. Que se ele nos der lições de coisas,
não nos venha ensinar industrias, ocupações e usos que
nos são completamente alheios, postergando as
manifestações [...] de nossa pequena atividade insdustria.
Esse espírito de nacionalidade manifestado por Veríssimo,
como um preceito para os livros de leitura, é visível, também, em
175
FACETAS DO DIAMANTE
vários autores de livros-texto de Matemática, por nós analisados e
que citamos no decorrer deste trabalho.
Vamos retornar a alguns séculos atrás, na época da edição
dos primeiros livros impressos, e buscar a contribuição de um
importante autor português chamado Pedro Nunes. Em 1564, no
prefácio da sua obra Livro de Álgebra em Aritmética e Geometria,
ele chamava a atenção de que, entre os livros de Matemática que
escrevera, esse era o de maior proveito. Para uma melhor
aprendizagem, para a facilidade e para a economia de tempo do
leitor, dispensara a inclusão de uma doutrina especulativa.
Acreditava que o livro podia ser facilmente entendido “sem mais
ajuda do mestre”. Ressaltava a importância dos exercícios, dizendo
(Nunes, 1950, p. xiv):
porque em todas as artes o exercício é a principal
parte, por esta causa, para melhor se saber, escolhi
muitos e mui variados casos em Aritmética e Geometria.
As palavras de Pedro Nunes, proferidas há mais de quatro
séculos, prescreviam, na realidade, alguns preceitos para um bom
livro didático: utilidade, facilidade, economia de tempo, clareza
suficiente que dispensasse o auxílio do mestre, e como a parte mais
importante do livro — numerosos e variados exercícios para o leitor
praticar. Essa não foi a orientação de muitos autores brasileiros na
elaboração de seus livros-texto. Somente a partir da metade do
século XIX, os exercícios numéricos e as aplicações práticas
começaram a fazer parte das obras.
Quais são algumas das qualidades de um bom livro-texto
segundo os autores, cujas obras foram anteriormente referidas?
Timoteo Pereira respondeu assim: “num livro didático a concisão e
a clareza são elementos primordiais, e portanto indispensáveis”.
Retornando à questão sobre o tipo de conhecimento
disponível nos livros-texto, podemos formular uma possível
resposta: é, em geral, um saber já consagrado (ou aceito) pela
comunidade matemática, extraído da contribuição coletiva de
muitos autores, sistematizado e organizado de maneira a facilitar a
assimilação e a transmissão em sala de aula. O livro-texto visa
176
FACETAS DO DIAMANTE
simultaneamente a dois públicos bem definidos — o professor e o
aluno. Para o professor, o livro-texto seria um dos guias para a
condução das atividades em sala de aula; e para o aluno, a fonte
propriamente dita do conhecimento.
É possível pela análise dos livros-texto de uma época,
conhecermos muito sobre o ensino ministrado, sobre as concepções
de Matemática e ensino dos autores e, inclusive, as opiniões de
pessoas que se manifestaram sobre os livros-texto em forma de
pareceres públicos. O livro pode ser considerado não apenas como
um meio de transmitir conhecimentos, mas também de preservá-los.
Dessa forma, nós podemos, por meio de sua análise, saber um pouco
mais sobre o tipo de conhecimento que era transmitido aos alunos
das nossas escolas.
Finalmente, queremos ressaltar que esta é uma área de
pesquisa quase inexplorada e que qualquer estudo mais aprofundado
sobre o Livro Didático no Brasil deverá incluir a dimensão histórica.
177
FACETAS DO DIAMANTE

EXTRATOS DO LIVRO DE OLAVO FREIRE


178
FACETAS DO DIAMANTE

NOTAS
1. Pesquisa financiada pelo CNPq.
2. Segundo Castro (1992, p. 31),
Os folhetos denominados de “Variação dos triangulos esphericos” para uso da
Academia Real Militar, Rio de Janeiro, na Impressão Régia, 1812, por Manuel
Ferreira de Araújo (12 páginas) e a “Memoria de Trigonometria”, Rio de
Janeiro, 1823, na Tipografia Nacional, por João dos Santos Barreto (19
páginas), são cronologicamente, os primeiros e, ao mesmo tempo, os mais
interessantes dos que foram escritos no país antes da independencia.
Castro não cita o trabalho de Saturnino, mas, efetivamente, este tem prioridade
ao trabalho de Barreto que surgiu dez anos depois.
3. Tratado elementar de arithmetica de Lacroix, traduzido do francez por ordem
de sua alteza real, o principe regente, etc., para uso da real academia militar,
e acrescentado com taboas para a reducçao das medidas francezas, antigas e
modernas, entre si à medidas portuguezas, e reciprocamente. Rio de Janeiro,
1810, 156 páginas.
4. Elementos de algebra por Mr. Lacroix, traduzidos em portuguez por ordem de
sua alteza real o principe regente, etc, para uso dos alumnos da real academia
militar, desta corte. Rio de Janeiro, 1811, 345 páginas.
179
FACETAS DO DIAMANTE
5. A denominação “Números complexos” não tem nada a ver com o atual
significado de números complexos. Trata-se apenas de números com as
respectivas unidades de medida.
6. O primeiro livro-texto após a liberação da imprensa no Brasil em 1809.
7. Essas informações foram obtidas por Wagner Valente. Para maiores
informações, vide referências bibliográficas.
8. Pontos eram as questões que deveriam ser avaliadas nos exames.
9. Professor jubilado de intrução elementar do 2o grau.
10. Lente jubilado da Academia de Marinha do Rio de Janeiro.
11. Lente de Matemática da Academia Militar do Rio de Janeiro.
12. Tenente coronel reformado do corpo de engenheiros e professor de mecânica
nas aulas de artífices do Maranhão.
13. Oficial da ordem imperial da Rosa.
14. Bacharel em Matemática e Ciências Físicas e professor de Matemática na
Escola Militar do Rio de Janeiro.
15. Lente jubilado da Academia de Marinha do Rio de Janeiro.
16. Os autores eram irmãos gêmeos. Nasceram no Maranhão. Iniciaram a carreira
profissional na Marinha e depois foram para o exército. Atingiram o posto de
general na carreira militar. Iniciavam suas obras sempre com referências à
Filosofia Positiva de Auguste Comte.
17. Para maiores esclarecimentos, consulte Valente (1999).
18. Francisco Vilela Barbosa (1769-1846), Marquês de Paranaguá, nasceu no Rio
de Janeiro e frequentou a Academia Real de Marinha de Lisboa. No Brasil, foi
professor da Academia Real da Marinha e senador do Império.
19. Francisco Cabrita foi professor da Escola Normal e Escola Politécnica na
década de 90 do século XIX. Escreveu o seu livro baseado no livro de Clairaut,
de mesmo título, publicado pela primeira vez em 1741, na França.

REFERENCIAS

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184
FACETAS DO DIAMANTE
185
FACETAS DO DIAMANTE

UM PROCESSO DE NEWTON
PARA ENCONTRAR
A TANGENTE A UMA CÓNICA

Eduardo Sebastiani Ferreira

Antes de maio de 1666 e publicado em 1667, Newton


escreveu o Miscellaneous Researches, que no primeiro capítulo
trata de propriedades de cônicas e dá uma maneira interessante de
encontrar a tangente a uma cônica por um ponto desta, sem conhecer
o diâmetro.
A propriedade que ele usa para isto é a seguinte: sendo bg
paralelo a ad e as retas ab, dg, ag e bd traçadas, os segmentos de
cônicas bas e gdt são iguais, assim como a área gasb e bdtg. Sua
demonstração é a seguinte:

Bissectado bg em r e ad em e, a reta re vai ser o diâmetro


das ordenadas bg e ad, cujo um dos vértices é v. Qualquer outra
paralela a bg vai ser cortada ao meio pelo diâmetro re. Por Cavaliere
186
FACETAS DO DIAMANTE
a área reasb é igual a área redtg. Como re é comum, as rg = rb e ea
= ed, os arcos s e t sobre a cônica são iguais, pois também são iguais
as áreas dos trapézios reab e redg. Mais ainda, também são iguais
as áreas dos triângulos abg e dgb, por terem a mesma base bg e
mesma altura. Logo são iguais as áreas gasb e bdtg.
Como consequência desta propriedade Newton constrói a
tangente a uma cônica da seguinte maneira:

Dada a cônica e um ponto a por onde queremos traçar a


tangente, construímos duas secantes ac e ab. Paralelamente a ambas
traçamos mais duas secantes bd e cf respectivamente, secante fd será
paralela a tangente à cônica em a. A demonstração de Newton é por
absurdo, supondo que não seja, traçamos ae a secante paralela a df
e ainda as secantes de, af, ad e cb. Pela propriedade acima, os
segmentos ecd e abf são iguais. Por outro lado, abf também é igual
a bac, pois bf = ac, ab é paralelo a cf e tendo ab comum. Mas bac =
aecd, pois ab = cd e ac = aec, logo temos o absurdo de ecd = aecd.

TEOREMA DE PASCAL

Com a idade de 16 anos Pascal escreveu um extenso livro


sobre cônicas, de que infelizmente não temos conhecimento.
Leibniz escreveu que neste livro está o Teorema do Hexagramma
Mysticum, que nos interessa, mas não sabemos como Pascal o
demonstrou. Há várias demonstrações deste teorema, todas que
conheço dentro da geometria projetiva. Vou dar aqui a
187
FACETAS DO DIAMANTE
demonstração que aparece no famoso livro de Courant e Robbins
What is Mathematics? Para isto necessito de algumas definições e
propriedades projetivas.

RAZÃO DUPLA

Um dos conceitos fundamentais da geometria projetiva é o


de razão dupla. Se temos quatro pontos A, B, C e D sobre uma reta
l e projetamos sobre outra reta l' em A', B', C' e D' por um ponto O,
existe um certa medida, que chamamos de razão dupla dos quatro
pontos, que se conserva. Como isto é definido? Sendo os quatros
pontos como antes A, B, C e D sobre a reta l, a razão dupla entre
eles é definida por:
(A, B, C, D) = CA/CB : DA/DB.
Vamos mostrar que esta razão dupla é um invariante
projetivo. Tomando os pontos A', B', C' e D' como os
correspondentes dos anteriores pela projeção por um ponto O, então
(A, B, C, D) = (A', B', C', D'). De fato, se h é distância de O à reta l,
temos que:
área OCA = ½ OAOC sen COA
área OCB = ½ OBOC sen COB
área ODA = ½ OAOD sen DOA
área ODB = ½ OBOD sen DOB.
Então,
(A, B, C, D) = CA/CB : DA/DB =
= sen COA/sen COB : sen DOA/ sen DOB.
188
FACETAS DO DIAMANTE
Logo a razão dupla depende exclusivamente do ângulo
formado pelos segmentos e não dos pontos sobre a reta, por isto é
um invariante projetivo.
Podemos então definir também a razão dupla de quatro retas
coplanares e concorrentes (l1, l2, l3, l4) = sen (l1, 13) / sen (12, 13) :
sen (l1, l4) / sen (l2, 14).

RAZÃO DUPLA COM ELEMENTO NO INFINITO

Designando um ponto no infinito de uma reta I por , e se


A, B e C são três pontos distintos sobre l, podemos falar em razão
dupla (A, B, C, ). Tomando um ponto P qualquer sobre a reta l,
então (A, B, C, P) = CA/CB : PA/PB.

Quando P tende ao infinito, PA/PB tende a l como razão de


distâncias, logo (A, B, C, ) = CA/CB.
189
FACETAS DO DIAMANTE
PROPRIEDADES PROJETIVAS DAS CÓNICAS

Dado um círculo e quatro pontos sobre ele A, B, C e D,


uma das propriedades conhecidas do círculo é que quaisquer outros
pontos O e O' do círculo “olham” o arco AB do mesmo ângulo; isto
é, ângulo AOB = ângulo AO'B. Se a, b, c, d, a', b', c', d ' são as
respectivas secantes temos que as razões duplas são iguais:
(a, b, c, d) = (a', b', c', d ').

Uma cônica pode ser definida como a seção de um cone reto


de base circular, isto é, como a projeção de um círculo. Assim se
projetarmos um círculo numa cônica os pontos A, B, C, D, O, e O'
estão na cônica. Em geral não se conserva pela projeção a igualdade
de ângulos, mas a razão dupla sim, isto é, temos na cônica também
a igualdade de razões duplas (a, b, c, d) = (a', b', c' d'). Isto é válido
para qualquer outro ponto O" sobre a cônica.

c
190
FACETAS DO DIAMANTE
O TEOREMA DE PASCAL

“Os três lados opostos de um hexágono inscrito numa


cônica se encontram em três pontos colineares” é o Teorema de
Pascal. Vamos mostrar uma outra versão deste teorema, que pela
projetividade temos que são equivalentes: “Um hexágono inscrito
numa cônica que tem dois pares de lados opostos paralelos, o
terceiro par também é paralelo”

Sejam A, B, C, D, E e F os vértices de um hexágono inscrito


numa cônica. Suponhamos que AB seja paralelo a DE e FA paralelo
a CD. Para mostrar que CB é paralelo a FE, consideramos os pontos
F, A, D e B, que se projetam por raios de razão dupla constante de
quaisquer outros pontos da cônica, por exemplo os pontos C e E.
Assim projetando de C temos (f, a, d, b) que vão cortar a reta AF
nos pontos Y e , cuja razão dupla (f, a, d, b) = (F, A, Y, ) =
YF/YA. Projetando agora por E temos (f ', a', d ', b') que vão cortar
a reta BA nos pontos X, A,  e B, de razão dupla (f ', a', d ', b') = (X,
A, , B) = BX/BA. Como ambas as razões duplas são iguais pela
propriedade projetiva das cônicas, YF/YA = BX/BA.
Por outro lado, as retas concorrestes YA e BA estão cortadas
pelas transversais FE e YB, e como vale a igualdade acima temos
que CB é paralela a FE.
191
FACETAS DO DIAMANTE
O TEOREMA DE PASCAL E O PROCESSO DE NEWTON

Podemos usar o Teorema de Pascal para mostrar que a


construção de Newton para a tangente está correta.

Fazendo a mesma construção de Newton na cônica, isto é,


traçando as secantes ab e ac paralelamente a estas bd e df, podemos
considerar o hexágono aabdfc inscrito na cônica com dois dos lados
opostos paralelos, ab com cf e ac com bd, logo os outros dois lados
opostos também serão paralelos, isto é aa e df. Como aa é a reta
tangente à cônica em a, então deve ser paralela ao lado df.

REFERÊNCIAS

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192
FACETAS DO DIAMANTE
193
FACETAS DO DIAMANTE

CONTRIBUIÇÃO DE JESUÍTAS PARA A ESCRITA


DA HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

Sergio Nobre

APRESENTAÇÃO

A história da escrita da história da matemática, ou seja, a


historiografia da matemática, é assunto de pauta no ciclo de
historiadores da matemática da atualidade. Este tema foi destaque
durante o 19o Congresso Internacional de História da Ciência
realizado em Zaragoza na Espanha no ano de 1993, onde foram
apresentadas diversas conferências referentes à historiografia da
matemática em diferentes partes do mundo. Os resultados sobre os
colóquios realizados estão sendo transformados em livro, que tem
previsão de estar pronto em meados do ano 20001. Mas as pesquisas
sobre a historiografia da matemática não se esgotam com o
lançamento desta obra. Há ainda muito a ser pesquisado nesta área
e este texto é uma pequena contribuição para o movimento
historiográfico da matemática. As atividades científicas dos Jesuítas
no decorrer da história têm sido também motivo de importantes
pesquisas. Em especial na matemática e suas áreas afins (astronomia,
cartografia, etc.), a contribuição dos Jesuítas foi muito significativa
para seu desenvolvimento. Esta contribuição se estende também
para o campo historiográfico, pois como o conhecimento universal
era pertinente ao meio da Companhia, autores de livros matemáticos
preocuparam-se em oferecer aos seus leitores uma visão histórica
referente ao conteúdo apresentado. Dentre estes autores, serão
destacados neste texto alguns dos pioneiros na escrita de textos
históricos sobre a matemática, ou seja, Christoph Clavius, Giuseppe
Biancani, Giovanni Riccioli, Albert Curtz, Andreas Tacquet,
194
FACETAS DO DIAMANTE
Urbano D' Aviso e Claude F. M. Dechales. Mas a importância da
Companhia de Jesus para o movimento de historiografia da
matemática não está presente somente nas publicações de seus
membros, faz-se necessário ressaltar também a contribuição indireta
que os Jesuítas deram a este movimento através da excelente
formação de personagens famosos do mundo historiográfico e
científico em seus colégios. O destaque é dado ao, pode-se dizer,
mais famoso historiador da matemática de todos os tempos, Jean
Etienne Montucla (1725-1799), nascido em Lyon, e que, na mesma
cidade, frequentou o Colégio Jesuíta, onde adquiriu um excelente
aprendizado em matemática e ainda aprendeu os idiomas
importantes para uma boa formação acadêmica na época, como o
inglês, o alemão, o latim, o grego, etc. Montucla é conhecido como
o principal inovador no movimento da escrita da história da
matemática. Em 1758 ele publicou em Paris a primeira edição de
sua obra monumental Histoire des Mathématiques, em 2 volumes.
Este texto possui características diferentes daquelas relativas aos
textos que até então existiam. Não se assemelha com a espécie de
relatório catalográfico presente nos outros livros. É um texto
dissertativo, onde a matemática é apresentada de forma dinâmica
através de sua história que abrange desde antes do personagem
bíblico Noé até o século XVIII. Além de apresentar com detalhes a
história do que hoje é chamado de matemática pura, o livro contém
abordagens sobre a história da astronomia, da mecânica, da óptica,
da música, etc. Estimulado pelo amigo, o astrônomo francês Joseph
Jérôme le François de Lalande (1732-1807), que também estudou
no Colégio Jesuíta de Lyon, Montucla iniciou a preparação de uma
nova e atualizada edição de seu livro, cujos primeiros dois volumes
foram publicados em agosto de 1799, mas seu falecimento em
dezembro do mesmo ano impede a conclusão da obra completa, para
a qual havia sido previsto outros dois volumes. Estes foram
assumidos por de Lalande que concluiu a publicação em 1802. Um
outro personagem que também estudou no Colégio Jesuíta de Lyon,
tendo sido aluno do Padre Laurent Beraud (1702-1777), que,
inclusive, também fora professor de Montucla e Lalande, foi Charles
Bossut (1730-1814). Em 1802 Bossut publica em Paris Essai sur
l’histoire générale des mathématiques, em dois volumes. Em 1810
195
FACETAS DO DIAMANTE
esta obra tem uma nova e atualizada edição. Esta obra também teve
um grande sucesso, e foi traduzida para diversos idiomas europeus.
Além daqueles Jesuítas que, além das atividades religiosas,
dedicaram-se à matemática, importantes instrumentos históricos que
fornecem muitos elementos para a pesquisa relativa à história da
matemática são as obras catalográficas que foram realizadas pelos
Jesuítas, contendo ricas informações sobre as atividades científicas
dos membros da Companhia. Dentre estas obras, destaca-se a
Bibliotheca Scriptorum Societatis Jesu, que fora iniciada ainda no
século XVI sob responsabilidade do Padre Pedro de Ribadeneyra
(1527-1611) e continuada por Philipp Alegambe (1592-1652) e
Nathanael Bacon Sothwell (1598-1676). Nesta obra são encontradas
muitas informações acerca de Jesuítas em atividades científicas e
matemáticas, uma rica contribuição para a historiografia das
ciências e em especial da matemática.
A seguir são apresentados alguns Jesuítas que escreveram
textos sobre a história da matemática.

O PIONEIRISMO DE CHRISTOPH CLAVIUS

Christoph Clavius nasceu na cidade de Bamberg, na


Alemanha, no dia 25 de março de 15382 e faleceu no dia 6 de
fevereiro de 1612 em Roma. Em 1555 ele entrou para a Ordem da
Companhia de Jesus e em seguida realizou estudos de Grego e
Retórica no Colégio das Artes, um colégio Jesuíta em Coimbra,
onde permaneceu cerca de 10 anos. Em Coimbra, Clavius
certamente teve contato com a tradução para o português, feita por
Pedro Nunes (1502-1578), do livro O Tratado da Esfera de João
Sacrobosco (?-1256), um assunto que foi de grande interesse para
ambos3. Durante sua estada em Coimbra, Clavius realizou e
registrou dados sobre as observações do eclipse do Sol ocorrido em
21 de agosto de 1560. Em 1565, ainda quando era estudante de
teologia, Clavius iniciou atividades docentes junto ao Collegio
Romano lecionando matemática.
196
FACETAS DO DIAMANTE
Em 15714 Clavius publicou sua obra mais importante, a
tradução comentada dos Elementos de Euclides. Por conta deste
trabalho, ele passou a ser conhecido nos meios acadêmicos de sua
época como o Euclides do século XVI. Em seus Elementos, Clavius
apresenta uma vasta quantidade de notas explicativas, que foram
coletadas a partir de edições dos Elementos que haviam sido
publicadas anteriormente. Por seu estreito envolvimento com o
poder religioso romano, Clavius utilizou seus conhecimentos
científicos para defender a postura adotada pela Igreja Católica
Romana em sua época. Por exemplo, ele foi um grande opositor do
modelo heliocentrista de Nicolaus Copernicus (1473-1543) e em seu
texto In Sphaeram Joannis de Sacro Bosco commentarius,
publicado em Roma em 1570, ele acusa Copernicus de ter
apresentado uma teoria fisicamente incorreta, além de entrar em
contradição com inúmeras passagens das escrituras sagradas5.
Clavius também esteve envolvido com o projeto de mudança do
calendário6, encomendado pelo Papa Gregório XIII (1502-1585)7,
tendo inclusive, a pedido deste Papa e do Papa Clemente VIII (1536-
1605)8, escrito vários tratados em defesa do novo calendário. Seu
principal texto sobre este tema foi Novi calendarii romani
apologia ... (Roma, 1588). Posteriormente, para combater aos
ataques que foram feitos por aqueles que se colocavam contra a
implementação da mudança do calendário9, ele escreveu outros
textos como resposta, como por exemplo Romani Calendarii à
Gregorio XIII. P. M. restituti Explicatio (Roma, 1603), Responsio
ad Convicia ... J. Scaligeri in Calendarium Gregorianum (Mainz,
1609), Refutatio Cyclometriae J. Scaligeri (Mainz, 1609),
Confutatio Calendarii Georgii Germani Wartenbergens (Mainz,
1610), dentre outros. Todos estes textos são acompanhados de ricas
informações relativas à história do processo de implementação do
Calendário Gregoriano. Em sua intensa obra matemática, Clavius
introduziu algumas novidades que passaram a ser seguidas por seus
contemporâneos. Por exemplo, o conceito de fração de números
fracionários10 aparece no texto Epitome arithmeticae practicae
(Roma, 1583). No texto Algebra (Roma, 1608) ele apresentou aos
italianos os símbolos de mais (+) e menos (-) usado pelos alemães,
e também neste texto ele foi o primeiro a utilizar o parênteses em
197
FACETAS DO DIAMANTE
expressões numéricas, etc. Clavius teve sua Opera mathematica
publicada em 5 volumes nos anos de 1611/1612 na cidade alemã de
Mainzll
Além do episódio acima relatado sobre a história da
implementação do Calendário Gregoriano, a contribuição de
Clavius para a Historiografia da Matemática é marcante, pois em
seus textos contém muitas informações adicionais que evidenciam o
desenvolvimento científico do período no qual ele viveu12. Sobre
estes textos, um destaque especial deve ser dado às suas edições
comentadas. Clavius publicou 4 edições comentadas de obras
famosas: Christophorii Clavii in sphaeram Joannis de Sacrobosco
commentarius (Roma, 1570), Euclidis Elementorum libri XV (Roma,
1571), Sphaericorum Elementorum libri III (Theodosius) (Roma,
1586) e Christophorii Clavii Sinus, Lineae tangentes, et secantes,
Triangula rectilinea, Atque Sphaerica (Regiomontanus) (Roma,
1586). Como introdução ao texto Elementos de Euclides, Clavius
escreveu um texto sobre a matemática em geral, onde são abordados
temas sobre sua origem, suas subdivisões, sua utilidade, com
tendências específicas à geometria euclidiana. Em especial, um dos
capítulos desta introdução, de título Inventores mathematicarum
disciplinarum, possui grande valia para o movimento
historiográfico da matemática, pois é um dos primeiros textos
escrito especificamente sobre este tema. Este texto é composto de
apenas duas páginas, onde Clavius escreveu sobre a origem do
pensamento matemático, destacando a sequência cronológica que se
inicia no Egito e Babilônia, passa pela Grécia e continua nos países
Árabes. No texto também aparecem pequenos comentários sobre a
aritmética, a geometria, a música e a astronomia e são citados os
nomes dos principais personagens que contribuíram para o
desenvolvimento destas áreas. Para a escrita deste texto, Clavius
baseou-se principalmente na obra de Proclus (c.420-485)
Comentários sobre o primeiro livro dos Elementos de Euclides, que
havia sido traduzida para o latim poucos anos antes13
198
FACETAS DO DIAMANTE
BIANCANI E RICCIOLI.
CONTRIBUIÇÕES À CRONOLOGIA DA HISTÓRIA

Giuseppe Biancani (1566-1624), também conhecido pelo


nome latino Blancanus, nasceu em Bologna no dia 18 de março de
1566 e ingressou na Companhia de Jesus em 4 de outubro de 1592.
Biancani estudou matemática com o padre Christoph Clavius (1537-
1612) no Colégio Romano e foi professor desta matéria em Parma
por mais de 20 anos. Considerado como um bom conhecedor de
matemática e astronomia, Biancani manteve estreitos contatos com
Galileo Galilei (1564-1642), com quem discutiu vários problemas
através de correspondências. Biancani dedicou-se também a estudos
relativos à filosofia da matemática e também à sua história. Suas
obras matemáticas são: Aristotelis Loca Mathematica ex
universipisius Operibus collecta, & explicata, publicada em
Bologna em 1615; Sphæra mundi seu cosmographia demontrativa
ac facili methodo tradita, publicada em Bologna em 1620 e que teve
outras edições em anos seguintes, sendo que na edição de 1653,
publicada em Modena, foi acrescentado o tratado Novum
instrumentum ad Horologia describenda, que até então não havia
sido publicado; Adparatum ad rerum mathematicarum &
geometrimaticarum Studium (1615 e 1635). A obra Aristoteles loca
mathematica ... possui um especial interesse para a historiografia da
matemática. O apêndice desta obra De Mathematicarum Natura
Dissertatio una cum Clarorum Mathematicarum Chronologia,
conforme o título antecipa, é dividido em dois textos que, pela época
em que foram escritos, possuem grande interesse historiográfico: De
Natura Scientiarum Mathematicarum, um texto filosófico sobre a
natureza da matemática e Clarorum Mathematicorum Chronologia
eorum videlicet, qui rebus, aut scriptis claruerunt, ex certis historis
deprompta, um texto cronológico relativo à matemática. Este
segundo texto, o texto cronológico, é uma espécie de dicionário
biográfico onde são apresentadas informações sobre um número
superior a duas centenas de pessoas que contribuíram para o
desenvolvimento do pensamento matemático. Em relação à época
que alguns personagens viveram, algumas informações dadas por
199
FACETAS DO DIAMANTE
Biancani neste texto são diferentes daquelas que são conhecidas e
aceitas atualmente, por exemplo: o matemático e astrônomo
Campano de Novarra (ca. 1210-1296) é apresentado por Biancani
como um personagem do século XI, ou seja, dois séculos antes de
sua atualmente comprovada real existência; Leonardo Fibonacci de
Pisa (ca. 1170-1240), que viveu no final do século XII e início do
seguinte, aparece no texto de Biancani como tendo vivido no século
XV; o grande cidadão veneziano Marco Polo (1254-1324) que viveu
e realizou suas famosas viagens entre os séculos XIII e XIV,
também aparece no texto de Biancani como tendo vivido no século
XV. Enfim, são algumas imperfeições totalmente compreensíveis
para a época na qual este texto foi escrito. E isto não prejudica a sua
relevância para o movimento historiográfico da matemática.
Giovanni Battista Riccioli (1598-1671) nasceu em Ferrara,
Itália, no dia 17 de abril de 1598. No dia 6 de outubro de 1614, aos
16 anos de idade, entrou para a Companhia de Jesus. Foi professor
de letras e filosofia nas universidades de Parma e de Bologna, mas
sua principal ocupação científica foi nas áreas de astronomia e
geografia. Em geografia dedicou-se a estudos de hidrografia e seu
principal trabalho foi Geographiae et Hydrographiae reformatae
libri duodecim, publicado em Bologna em 1661 e 1667. Sua obra
sobre astronomia também foi de grande valia para a época de sua
publicação, apesar da insistência em recusar o modelo astronômico
de Nicolaus Copernicus (1473-1543), característica que era peculiar
dos Jesuítas. Seus principais textos em astronomia são Almagestum
novum Astronomian veterem novanque complectens
Observationibus aliorum, publicado em Bologna em 1651 e obteve
várias outras edições em anos seguintes, Astronomia reformatae,
publicada também em Bologna no ano de 1665 em 2 volumes e
Chronologiae reformatae14, uma obra de 3 volumes, publicada em
1669. Esta última obra é, como o título diz, uma obra cronológica
sobre a história universal, contendo muitas passagens relativas à
história das ciências. No terceiro volume são apresentados dados
cronológicos sobre grandes personagens da história, incluindo os
que atuaram no mundo científico.
200
FACETAS DO DIAMANTE
LUCIUS BARRETUS E O PREFÁCIO HISTÓRICO
PARA OS MANUSCRITOS DE TYCHO BRAHE

Uma pequena informação de duas linhas presente na


Grande Enciclopédia Universal15 indica que Lucius Barretus (?)
publicou no ano 1675 o livro Historiam cælestem seu observationes
Astronomicas. O referido livro, que possui como título completo
Historia cælestis, ex libris commentariis manuscriptis
observationum vicennalium viri generosi Tychonis Brahe Dani é, na
verdade, uma compilação das observações astronômicas que Tycho
Brahe (1546-1601) realizou durante os anos 1582 a 1601. Este texto
foi organizado por Albert Curtz (1600-1679) e publicado em Viena
em 1666. O prefácio desta obra foi feito pelo desconhecido Lucius
Barretus. Albert Curtz foi um jesuíta, nascido em Munique, que
atuou como professor de filosofia e matemática em diversos
colégios da ordem, inclusive no famoso colégio jesuíta de Ingolstadt.
Depois de algumas leituras sobre Curtz, foi descoberto que o nome
escrito em latim Lucii Barretti é um anagrama do nome Alberti
Curtii, ou seja, Lucius Barretus é o pseudônimo de Albert Curtz.
Dentre uma vasta obra sobre assuntos religiosos e filosóficos, além
da obra acima, a contribuição de Curtz para as ciências foi: Novum
coeli systema (1626), Amussis Ferdinandea, sive Problema
architectura militaris (1651), Beobachtung der Cometen von 1645
(Lucius Barrettus, 1681), e ainda algumas correspondências
científicas trocadas com alguns personagens importantes do mundo
científico. No prefácio da obra Historia cælestis são apresentadas
algumas referências históricas relativas à origem e desenvolvimento
da astronomia e astrologia a partir de 2000 anos antes de Cristo. São
apresentados inicialmente alguns episódios que constam nas
sagradas escrituras, com várias referências ao Livro de Gênesis. Em
seguida aparecem comentários sobre a astronomia e astrologia nos
povos egípcios, caudeus, sírios, gregos e romanos com a citação de
alguns personagens do mundo grego, como Platão, Anaximenes e
Ptolomeu. Os primeiros capítulos do texto também são de conteúdos
históricos, pois neles são apresentadas observações astronômicas
feitas por diferentes povos da antiguidade, ou seja: Observationes
201
FACETAS DO DIAMANTE
babylonicas ab Anno ante Christum 721, usque ad Ann. 432,
Observation ... graecanicas ab Anno ante Christum 432, usque ad
Initium Aerae Christianae vulgaris, Observationes Alexandrinas ab
Initio Aerae, usque ad Ann. Chi. 827, Observationes Syro-Persicas
ab Anno Christi 827, usque ad Annum 1457. Como referências são
citadas obras dos jesuítas Athanasius Kircher (1602-1680) e Johann
Baptista Riccioli (1598-1671)16.

ANDREAS TACQUET E SUA “HISTORICA NARRATIO”

Filho de Pierre de Tacquet, um mercador belga e da alemã


Agnes Wandelen, originária da cidade de Nürmberg, Andreas
Tacquet nasceu no dia 23 de Junho de 1612 na cidade de Antuérpia,
Bélgica. Com o falecimento de seu pai quando ainda era criança,
Tacquet foi enviado ao Colégio Jesuíta de sua cidade natal, onde
recebeu excelente educação. Em 1629, com 17 anos de idade,
Tacquet inicia suas atividades junto à Ordem da Companhia de Jesus.
Como estudante, ele permaneceu os primeiros dois anos na
província de Mechelen (próximo a Antuérpia) e os quatro anos
seguintes na cidade de Louvain, onde foi introduzido aos estudos de
lógica, física e matemática. Seu professor de matemática foi
Guillaume Boelmans (1603-1638), um discípulo do Jesuíta e
famoso matemático belga Gregorius Saint Vicent (1584-1667).
Entre os anos de 1637 e 1639 Tacquet ensinou matemática no
Colégio Jesuíta de Brudges e nos anos 1640 a 1645 estudou teologia
no Colégio Jesuíta de Louvain, onde também ensinou matemática.
No dia 1o de novembro de 1646 ele foi ordenado e a partir de então
passou a exercer a função de professor de matemática intercalando
entre Colégios Jesuítas de Louvain e Antuérpia. Andreas Tacquet
faleceu no dia 22 de dezembro de 1660 na cidade de Antuérpia.
A principal obra matemática)17 de Tacquet foi
Cylindricorum et annularium, publicada na cidade de Antuérpia em
1651, com segunda edição em 1659. Esta obra contém vários
teoremas originais sobre cilindros e anéis. A obra mais popular de
Tacquet foi Elementa geometriae planae et solidae, um livro
202
FACETAS DO DIAMANTE
didático publicado em Antuérpia no ano de 1654, que obteve
inúmeras outras edições durante a segunda metade do século XVII
e todo o século XVIII, tendo sido inclusive traduzido para o inglês,
o italiano e o grego. A Opera mathematica de Tacquet, publicada
postumamente em 1669, contém trabalhos de astronomia18,
trigonometria esférica, geometria prática e fortificação, até então
não publicados, além dos outros que já haviam sido publicados. Em
geral sua obra matemática destaca-se por seu caráter pedagógico.
Seus livros de matemática elementar, escritos para serem usados em
Colégios Jesuítas, foram usados por muitos jovens que se tornaram
grandes matemáticos. Por exemplo, o jovem Blaise Pascal utilizou
os livros de Tacquet em seus estudos19.
Uma importante contribuição de Tacquet para a
historiografia da matemática encontra-se como parte introdutória de
seu livro Elementa geometriae planae et solidae. Neste texto, ele
apresenta o capítulo chamado Historica narratio de ortu et
progressu matheseos, um pequeno capítulo de 18 páginas, onde é
contada uma história abreviada da matemática. Em cada um dos
parágrafos do texto, Tacquet evidencia um período ou personagem
diferente. O texto inicia-se com algumas referências às sagradas
escrituras e a forma de observação da natureza nos tempos que
antecederam ao dilúvio. Em seguida são apresentadas algumas
passagens da época do pós-dilúvio, com destaque à matemática
desenvolvida pelos povos Assírios, Caldeus e Egípcios. A
apresentação da matemática na Grécia engloba a maior parte do
texto. Tacquet desenvolveu os próximos capítulos com pequenos,
porém ricos, comentários sobre as realizações matemáticas
referentes às escolas de Pitágoras, Demócritos, Platão, Eudoxo,
Aristóteles, Arquimedes, Ptolomeus e Diophanto. Os comentários
pertinentes a estes capítulos dizem respeito ao assunto matemático
trabalhado por estes autores e seu desenvolvimento no decorrer dos
tempos. São mencionados também os principais personagens que
continuaram na mesma linha de estudos. Além de textos gregos que
haviam sido traduzidos para o latim, como os de Euclides,
Aristóteles, Diofanto, Proclos, etc. Segundo informações do autor,
Tacquet utilizou como referência para seu texto a obra Petrus Ramus
203
FACETAS DO DIAMANTE
(1515-1572), Scholae Mathematicae que havia sido publicada em
Paris em 1569.

URBANO D’AVISO E A BIOGRAFIA DE SEU MESTRE

Urbano d’Aviso é um personagem muito pouco


mencionado na história escrita sobre o desenvolvimento científico.
Nem mesmo a famosa obra de Sommervogel, Bibliothèque de la
Compagnie de Jésus, que possui importantes referências ao trabalho
acadêmico realizado pelos Jesuítas, contém um verbete sobre ele.
Em suma, sabe-se muito pouco sobre sua vida. O que se sabe é que
ele nasceu em 25 de maio de 1618, ingressou na Ordem da
Companhia de Jesus em novembro de 1636 e realizou estudos
universitários em Roma em Filosofia e Teologia. De Roma d’Aviso
transferiu-se para Bologna onde foi estudar matemática com um dos
mais destacados matemáticos italianos em sua época, o padre
Bonaventura Cavalieri (1598-1647), membro da ordem dos
Jesuatas20. D’Aviso morreu no dia 17 de setembro de 168621
A obra matemática de d’Aviso é pequena. Dentre alguns
tratados referentes a questões de hidráulica, ele escreveu um
pequeno texto sobre um trabalho de Galileo Trattato della Sfera di
Galileo Galilei (Roma, 1656) e um outro texto sobre um trabalho de
seu mestre Sfera Astronomica del Padre Bonaventura Cavalieri,
publicado em Roma em 1682. Neste texto, d’Aviso escreve como
prefácio o texto Vita del P. Buonaventura Cavalieri, a primeira
biografia de Cavalieri, escrita por quem conviveu com ele. A
relevância historiográfica deste texto biográfico de Cavalieri escrito
por Urbano d’Aviso se dá pelo fato que pouco se sabe sobre a vida
pessoal de Cavalieri a não ser o que foi relatado por ele. A única
informação que se tem sobre o ano de nascimento de Cavalieri foi
dada por d’Aviso, porém não há documentos que a comprove22 .
Outras importantes informações sobre Cavalieri, como estudos
realizados, vida religiosa, pessoas com quem obteve contatos
acadêmicos e religiosos, trabalhos publicados e repercussão destes
trabalhos no meio científico Europeu, também são relatados por
204
FACETAS DO DIAMANTE
d’Aviso. O texto Vita del P. Buonaventura Cavalieri é uma pequena
biografia (10 páginas), no entanto possui ricas informações sobre a
vida deste ilustre matemático.

CLAUDE FRANÇOIS MILLIET DECHALES


E SEU TRATACTUS PROEMIALIS DE PROGRESSU MATHESEOS

Sobre a vida de Dechales há poucas informações. Seu


nascimento foi no ano de 1621 na cidade de Chambéry, na França.
Seu ingresso na Companhia de Jesus se deu no ano de 1638. Após
isto, sabe-se que ele esteve como missionário por algum tempo na
Turquia e que trabalhou como professor de matemática em Paris,
Lyon e Chambéry. Em Marseilles ele trabalhou com cursos de
engenharia militar e de navegação, onde lecionou assuntos ligados
à matemática aplicada. De Marseilles ele foi a Turim, onde
trabalhou como professor de matemática na universidade. Dechales
morre em Turim no dia 28 de março de 1678.
Dechales publicou no ano de 1674, na cidade de Lyon, uma
monumental obra intitulada Cursus seu Mundus mathematicus, em
três volumes. Nesta obra são apresentados todos os assuntos que
eram considerados como sendo matemática na segunda metade do
século XV1123. Em 1690, após sua morte, uma nova edição desta
obra foi publicada, porém, desta vez, em quatro volumes, sendo que
no primeiro volume foi acrescentado o texto histórico Tratactus
proemialis de progressu matheseos et illustribus mathematicis
contendo 108 páginas. Este Tratactus é um texto histórico onde o
autor apresenta separadamente algumas das subdivisões da
matemática, enfocando suas origens, desenvolvimento desde a
antiguidade, principais personagens e principais textos sobre o
assunto. Os nove capítulos que compõem a obra são: 1. De mathesi
genere; 2. De progressu Geometriæ; 3. De progressu Arithmeticæ;
4. De progressus Mechanices; 5. Progressus geographiæ, nauticæ,
magneticæ; 6. Architectonices progressus; 7. De progressu Musicæ;
8. Progressus Opticæ; 9. Progressus Astronomiæ, sendo que os
maiores são os capítulos sobre geometria e sobre astronomia.
205
FACETAS DO DIAMANTE
Dechales inicia cada um destes capítulos através de uma abordagem
sobre as origens do assunto na antiguidade, retratando os principais
personagens e seus feitos. A história é contada até meados do século
XV e início do século XVI, quando, a partir de então, são
apresentadas, em ordem cronológica, as obras publicadas referentes
aos assuntos apresentados. Na apresentação destas obras contam os
anos de publicação, os nomes dos autores e das obras e pequenos
resumos sobre o conteúdo das mesmas. Dechales também comenta
sobre a repercussão alcançada por determinadas obras. As
detalhadas informações no que diz respeito à produção matemática
nas décadas imediatamente anterior à sua publicação, evidencia o
valor histórico do texto de Dechales. Embora não esteja mencionado
na obra, há fortes indícios que Dechales se baseou nas obras de
Petrus Ramus, citada anteriormente, e de Gerardus Johannis Vossius
(1577-1649), De universae matheseos natura et constitutione liber,
qui subjungitur chronologie mathematicorum (Amsterdam, 1650)24.
Assim como fora mencionada por Montucla no prefácio de seu livro,
este texto de Dechales serviu, e ainda serve, como fonte de
referência para muitos outros autores que vieram posteriormente.

COMENTÁRIOS FINAIS

Há certamente na história outros Jesuítas que se ocuparam


com a escrita da história da matemática e ainda outros tantos
historiadores que, quando estudantes tiveram fortes influências dos
Jesuítas. Porém, a partir desta pesquisa preliminar, não foi possível
detectar outros nomes. Os textos históricos apresentados neste artigo
também estão muito aquém daquilo que, após o texto de Montucla,
passou a ser considerado como sendo um bom texto de história da
matemática. Mas deve ser ressaltado aqui o pioneirismo com o qual
estes Jesuítas realizaram seus trabalhos. O que deixa a marca de uma
importante contribuição para o movimento da historiografia da
Matemática.
206
FACETAS DO DIAMANTE
NOTAS
1. Os editores responsáveis por este livro são C. Scriba (Hamburgo), M. Folkerts
(Munique), entre outros.
2. Segundo H. L. Busard, autor do verbete biográfico de Clavius em C. C.
Gillispie (1970-80, 3, 311-312), o ano de seu nascimento é 1537, no entanto,
E. Knobloch baseando-se em estudos mais precisos realizados por Umberto
Baldini, apresentou em sua obra esta data. Veja-se em E. Knobloch (1988) e
U. Baldini (1993).
3. Pedro Nunes havia publicado a tradução comentada do livro de Sacrobosco
Tratado da Esfera com a Theorica do Sol e da Lua em 1537, e Clavius
publicou In Sphaeram Joannis de Sacro Bosco commentarius, a sua versão
comentada em 1570. Veja detalhes sobre esta obra e sobre as relações entre
Clavius e Nunes em E. Knobloch (1988) e U. Baldini (1993).
4. Há duas diferentes informações sobre o ano de publicação da primeira edição
deste texto de Clavius. H. L. Busard, autor do verbete biográfico de Clavius
em C. C.Gillispie (1970-80, 3, 311-312), acompanha alguns historiadores de
destaque como Moritz Cantor, Abrahan Kãstner, Sommervogel, etc. e escreve
que a primeira edição desta obra foi publicada cm 1574. E. Knobloch, que
recentemente tem realizado pesquisas sobre a vida e atividades científicas de
Christoph Clavius, escreve que a obra teve sua primeira edição em 1571. Veja-
se em E. Knobloch (1993). Outras edições deste livro são dos anos 1589, 1591,
1603, 1607, 1627, 1654 (possivelmente há outras edições).
5. Ainda sobre este assunto, Clavius também teve muito contato com Galileo
Galilei (1564-1642) através de troca de correspondências. Em abril de 1611,
ele e seus colegas encaminharam um relatório ao Cardeal Bellarmine do Santo
Ofício, no qual eles contaram as descobertas de Galileo que haviam sido
publicadas na revista Siderus nuncius no ano anterior.
6. Para eliminar os erros contidos no então adotado Calendário Juliano, os dias 5
a 14 de outubro de 1582 foram eliminados no novo calendário, sendo que a
nova contagem teve o dia 15 de outubro como o sucessor do dia 4 de outubro
deste ano.
7. Papa de 1572 a 1585.
8. Papa de 1592 a 1605.
9. Dentre os opositores de Clavius e da proposta de mudança do calendário,
encontravam-se os franceses François Viète (1540-1603) e Joseph Scaliger
(1540-1609), bem como os seguidores das ideias reformistas de Martinho
Lutero (1483-1546). Devido à não aceitação da proposta de mudança do
calendário feita pela Igreja Católica Romana, o atraso na implementação do
novo calendário em alguns países reformistas ultrapassou séculos.
10. Este termo foi usado por ele e é uma forma de tratar multiplicação entre duas
frações.
207
FACETAS DO DIAMANTE
11. A lista completa da obra de Christoph Clavius encontra-se em C.
Sommervogel (1891, 2, 1212-1224).
12. Melhores informações sobre os aspectos históricos contidos na obra de
Clavius são encontradas em E. Knobloch (1993).
13. No ano de 1533 foi publicada uma edição grega deste livro na cidade de Basel,
e em 1560 uma edição em latim, traduzida para o latim por Francesco Barozzi
(1537-1572) e publicada na cidade de Veneza.
14. Infelizmente esta obra não foi encontrada por este autor e as informações aqui
apresentadas foram retiradas de outras fontes de referência, como Lessico
Universale Italiano di Lingua Lettere Arti Scienze e Tecnica (1968-1986, 18,
728) e C. Sommervogel (1891-1911, 6, 1796). Esta obra consta nos catálogos
da Bayerische Staats Bibliothek, porém infelizmente é considerada perdida
durante a Segunda Grande Guerra Mundial.
15. J. H. Zedler, ed., (1732-54, 3, 519).
16. Deve ser reafirmado que somente a partir das informações contidas em
verbetes da Grande Enciclopédia Universal de Zedler, é que este autor
descobriu a existência dos textos históricos de Biancani, Riccioli e Curtz. Em
nenhum dos textos historiográficos consultados, estas obras são mencionadas.
17. A lista completa da obra de Andreas Tacquet encontra-se em C. Sommervogel
(1891, 7, 1806-1811).
18. Mesmo após ter passado mais que um século da divulgação do sistema
planetário de Copérnico, no livro 8 de sua obra de astronomia, Tacquet insistiu
na rejeição desta teoria, dizendo que não havia provas físicas e nem filosóficas
que comprovasse o movimento da Terra.
19. Veja-se em C. C. Gillispie (1970-80, 13. 235-236).
20. Às vezes os Jesuatas são confundidos com os Jesuítas. A ordem dos Jesuatas
foi uma sociedade religiosa criada em 1360, por Giovanni Colobini (1304-
1367).
21. As poucas informações sobre a vida de d’Aviso foram encontradas em
Dizionario Biografico degli Italiani (1987, 33, 171).
22. Pesquisadores que se dedicaram à escrita da biografia de Cavalieri em épocas
recentes atribuem a d’Aviso a informação sobre esta data.
23. A lista completa da obra de Dechales e os capítulos de sua obra Cursus seu
Mundus Mathematicus encontram-se em C. Sommervogel (1891, 2, 1040-
1044).
24. Veja-se em M. Cantor (1880-1908, 3, 4-6).
208
FACETAS DO DIAMANTE
REFERÊNCIAS

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Mathematiker, Chronologe. Die Sterne, v. 43, p. 228-230, 1967.

BALDINI, U. (ed.) Christoph Clavius e l’attività Scientifica die


Gesuiti nell’età di Galileo. Roma: Bulzoni Editore, 1993.

CANTOR, M. Vorlesungen über Geschichte der Mathematik.


Leipzig: Teubner, 1880-1908.

CRETINEAU-JOLY, J. Histoire religieuse, politique et littéraire


de la Compagnie de Jésus. 6 vol. Paris-Lyon. 1844-1846.

DECHALES, C. F. M. Cursus seu Mundus mathematicus. Lyon.


1690.

Dizionario Biografico degli Italiani. Instituto della Enciclopedia


Italiana. Roma. 1987.

FOUQUERAY, H. 1910-1925. Histoire de la Compagnie de


Jésus en France. 5 vol. Paris: Picard, 1910-1925.

GILLISPIE, C. C. (ed.) Dictionary of Scientific Biography. New


York: Charles Scribner's Sons, 1970-1980.

GOETSTOUWERS, J. B. Synopsis historiae Societatis Iesu.


Leuven, 1950.

KNOBLOCH, E. Sur la vie et l’oeuvre de Christophore Clavius


(1538-1612). Revue d’histoire des sciences, v. XLI, p. 331-356,
1988.

KNOBLOCH, E. Sur le rôle de Clavius dans l’histoire des


mathématiques. In: BALDINI, U. (ed.) Christoph Clavius e
l'attività Scientifica die Gesuiti nell’età di Galileo. Roma:
Bulzoni Editore, 1993.
209
FACETAS DO DIAMANTE
KOCH, L. Jesuiten-Lexikon. Paderborn, 1934. Nachdr. Heverlee-
Leuven, 1962.

Lessico Universale Italiano di Lingua Lettere Arti Scienze e


Tecnica. 27 vol. Roma: Instituto della Enciclopedia Italiana, 1968-
1986.

SOMMERVOGEL, C. Bibliothèque de la Compagnie de Jésus. 8


vol. + 4 supl. Brussels-Paris, 1891-1911.

TACQUET, A. Elementa Geometriæ Planæ ac solidæ. 3a ed.


Antuérpia, 1672.
210
FACETAS DO DIAMANTE
211
FACETAS DO DIAMANTE

SOBRE A PROPORÇÃO
ENTRE OS ELEMENTOS MATERIAIS NO TIMEU1

John A. Fossa
Glenn W. Erickson

No nosso artigo “Os Sólidos Regulares na Antiguidade”


(Fossa e Erickson 1990, p. 98), tínhamos especulado que a
proporção entre os elementos materiais, ou seja
fogo:ar::ar:água::água:terra,
tomaria a forma da seguinte proporção continuada:

Assim, a proporção entre os elementos materiais seria um caso


especial do “Teorema de Platão”, a qual afirma, em parte, que entre
quaisquer dois números cúbicos inteiros há duas médias
proporcionais inteiras. Na época, a significância da proporção, que,
é óbvio, se reduz à razão x/y, não estava clara, nem tinha sido
possível determinar com verossimilitude o valor desta razão.
Pretendemos resolver estes problemas aqui.

A RAZÃO MUSICAL

Nossa primeira tarefa será tentar determinar a razão x/y. Na


sua discussão sobre esta proporção (Timeu, 32C), Platão afirma que
o corpo do universo foi construído de tal maneira a fazer uma
concordância por meio da referida proporção, desta forma fazendo
212
FACETAS DO DIAMANTE
o corpo do universo um ser único. A terminologia usada lembra a
música. Isto não é por acaso, pois a doutrina pitagórica, da qual
Platão era um herdeiro intelectual, incluía a crença de que a
proporção numérica constitui o princípio unificador do universo;
ainda mais, a harmonia musical é uma expressão de proporção
numérica. Assim, é razoável supor que o valor de x/y seria igual ao
um intervalo musical concordante. Mas, para os antigos, as
concordâncias eram a oitava, a quarta, a quinta, o tom e o semitom.
Dentre destas concordâncias, porém, a quarta (a razão de 4:3) é
ressaltada, pois a convenção da escala musical para os antigos era
de cima para baixa e uma quarta para baixa produz o dominante. De
fato, a progressão entre o inicial e o dominante era a componente
que determinava os modos musicais. Portanto, postulamos que x/y
tem o valor de uma quarta musical, ou seja, 4/3.
Quando substituímos o referido valor na proporção dada
acima, temos o seguinte resultado para a proporção entre os
elementos materiais:
43 : 42 × 3 ∷ 42 × 3: 4 × 32 ∷ 4 × 32 : 33
ou seja,

O resultado é consonante com a interpretação de Cornford


(1937, p. 47), que não chegou aos nossos valores numéricos, mas
que insistiu, seguindo Heath (Euclid 1956, v. ii., p. 294), que os
valores do fogo e da terra deveriam ser números cúbicos.

A PROPORÇÃO ENTRE OS SÓLIDOS

Veremos logo abaixo que a interpretação de Cornford e


Heath — e, portanto, os valores numéricos dados acima — não é
correta. Platão, de fato, não fala de uma proporção entre cubos, mas
sim entre sólidos (Timeu, 32A) e, ainda mais, afirma que o
Demiurgo fez a proporção perfeita na medida em que foi possível
(Timeu, 32B). Porque a qualificação? Vejamos, por exemplo, o fogo,
ou seja, o tetraedro. Este tem seis arestas e 64 ÷ 6 = 102/3. Mas, o
213
FACETAS DO DIAMANTE
Demiurgo certamente não queria que a forma do fogo tivesse arestas
com medidas não integrais.2 Ora, no “Teorema de Platão”, quando
os termos extremos são números inteiros cúbicos, a existência de
duas médias proporcionais inteiras é garantida. Não obstante, Platão
certamente sabia que há números que não são cúbicos, mas que têm
duas médias inteiras. Neste caso, o caso dos números sólidos,
perdemos a garantia e, portanto, a perfeição da proporção. É claro
que poderíamos manter a perfeição da proporção usando números
suficientemente grandes, mas há um outro princípio, característico
do pensamento matemático platônico, que tem precedência:
queremos a solução mais simples ao problema. Isto é, queremos a
maneira mais simples de colocar os elementos materiais em
proporção continuada com intervalos de quartas musicais e arestas
inteiras.
Para resolver o problema assinalado acima, será necessário
multiplicar 64 por 3 para eliminar a fração. Mas, para manter o
intervalo de uma quarta musical na proporção continuada, também
será necessário multiplicar todos os outros três valores desta
proporção por 3. O resultado, porém, ainda não resolve o problema
porque água e terra também apresentam problemas semelhantes.
Apresentamos a solução sistemática na seguinte tabela:

Elemento FOGO AR ÁGUA TERRA


Sólido tetraedro octaedro Icosaedro cubo
Proporção 64 48 36 27
original
Número de 6 12 30 12
arestas
Comprimento 2 4 1 1
10 1 2
de aresta 3 5 4
Fator de 3 --- 5 4
multiplicação
Proporção 3840 2880 2160 1620
final
214
FACETAS DO DIAMANTE
Comprimento 640 240 72 135
de aresta

Desde que não há um número primo que seja fator de todos


os quatro comprimentos de arestas, não podemos simplificar a
solução.
Logo, 3840 é a forma do fogo, 2880 a do ar, 2160 a da água,
e 1620 a da terra e
fogo:ar::ar:água::água:terra
é dado por
3840:2880::2880:2160::2160:1620,
intervalos de quartas musicais. Notamos, ainda, que 3×4×5 = 60 é
um fator de multiplicação apropriado, sendo a base do sistema de
numeração babilônica e central na astronomia antiga. Ainda mais, 3,
4 e 5 são as medidas dos lados do Triângulo Pitagórico que, por sua
vez, é a base da cosmologia platônica (ver Erickson e Fossa, 1996).
Acreditamos que os comentadores não perceberam esta
solução porque sempre pensaram nos sólidos como compostos de
triângulos, em vez de arestas, como o próprio Platão indica (Timeu
53C-D e seguinte). Porém, a passagem onde Platão menciona a
proporção vem muito mais cedo no diálogo (32B) do que a
construção dos sólidos a partir dos triângulos e, mesmo nesta
passagem (53D), Platão indica que há componentes ainda mais
básicos do que os triângulos. Estes componentes certamente seriam
segmentos lineares, pois segmentos naturalmente representam
números, os elementos pitagóricos.

AS VARIEDADES DOS ELEMENTOS MATERIAIS

Ainda resta ver como a construção dos elementos materiais


determina o número exato das variedades, ou tamanhos, diferentes
destes elementos (57D) e porque só existe um número finito de cada
215
FACETAS DO DIAMANTE
variedade. Lembramos que o Demiurgo fez tudo perfeito; assim, as
variedades devem ser múltiplos integrais das formas básicas dos
elementos. Além disto, o Demiurgo fez tudo simétrico; assim, os
fatores de multiplicação só podem conter potências de 2, 3 e 5 — os
fatores primos, não somente do Triângulo Pitagórico, mas também
do fator de multiplicação (60) usado para tornar integrais as arestas
dos elementos. Assim, por exemplo, se k×3840 é uma variedade do
fogo, 𝑘 = 2𝑝 × 3𝑞 × 5𝑟 onde p, q e r são inteiros positivos ou zero.
O resultado para todos os quatro elementos pode ser sistematizado
na seguinte tabela:

Variedade FOGO AR ÁGUA TERRA


1620 X
2160 X
2880 X
3240 X
3840 X
4320 X
4860 X
5760 X
6480 X X
7680 X
8100 X
8640 X X
9720 X
10800 X
11520 X X
12960 X X
216
FACETAS DO DIAMANTE
14400 X
14580 X
15360 X
16200 X
17280 X X
19200 X
19440 X X
21600 X
23040 X X
24300 X
25920 X X X
28800 X
29160 X
30720 X
32400 X X
34560 X X X
38400 X
38880 X X
40500 X
43200 X X
43740 X
46080 X X
48600 X
51840 X X X
54000 X
217
FACETAS DO DIAMANTE
57600 X X
58320 X X
61440 X
64800 X X
69120 X X X
72000 X
72900 X
76800 X
77760 X X X
81000 X
86400 X X
87480 X
92160 X X
96000 X
97200 X X
103680 X X X X

Como a tabela demonstra, há somente um número finito de


variedades de elementos. Certos valores da tabela acima
representam mais do que um elemento. O valor 6480, por exemplo,
é 4×1620 e 3×2160 e, assim, é tanto uma variedade do fogo quanto
uma variedade da água. O primeiro número que é uma variedade de
todos os quatro elementos é 103680.3 O referido número é, portanto,
o término lógico dos vários tipos de variedades; além deste ponto
nada poderia ser diferençado. De fato, por ser uma mescla de todos
os elementos e, portanto, de todas as propriedades básicas da matéria,
103680 não possui características próprias. Não é quente, nem frio;
não é seco, nem molhado — mas pode assumir qualquer uma destas
propriedades. Assim, o referido valor parece ser a forma da matéria
218
FACETAS DO DIAMANTE
prima. Vista desta maneira, a doutrina aristotélica da matéria prima
perderia seu aspecto paradoxal (ver Erickson e Fossa, 1998, p. 161-
2).

A TABELA PERIÓDICA PLATÓNICA

A tabela dos elementos materiais dada acima não é muito


propícia para quem quer estudar a química dos mesmos, ou seja, a
maneira em que eles se combinam e se transformam uns nos outros.
É, porém, possível dar um arranjo mais elegante à referida tabela.
Em outro contexto completamente distinto do presente argumento,
reconstruímos uma “Pirâmide Platônica” que unificou os conceitos
do Número Nupcial, do Número do Tirano, e da Linha Dividida,
todos encontrados na República (ver Erickson e Fossa, 1996). Agora
a mesma estrutura, com duas modificações inessenciais, aparece de
novo como o fundamento da discussão dos elementos materiais no
Timeu. Imaginemos um cubo, potencialmente infinito, em que um
vértice é marcado 1. Sobre um lado da sua base coloca-se as
potências de 2, enquanto de um lado adjacente coloca-se as
potências de 3; as potências de 5 são colocadas em uma aresta
vertical e os seus produtos são colocados conforme mostra o
seguinte diagrama:
219
FACETAS DO DIAMANTE

A base contém todos os valores da forma 2p3q, onde p e q


são números naturais ou zero. O plano paralelo à base e contendo o
ponto 5 contém todos os valores da base multiplicado por 5 e, em
geral, o plano paralelo à base e contendo o ponto 5r contém todos os
valores da base multiplicado por 5r. Embora o resultado pareça uma
antecipação das coordenadas cartesianas, não era usado pelos
matemáticos da Academia para relacionar pontos arbitrários no
espaço, mas para sistematizar as relações entre as potências de 2, 3,
e 5 e os seus produtos. Assim, o cubo, embora seja tridimensional,
é mais parecido com os vários tipos de tabelas que são tão ubíquas
na matemática babilônica.
Agora podemos apresentar as variedades dos elementos
segundo suas posições relativas no cubo descrito acima. O primeiro
nível de variedades é a seguinte parte do plano de 5-múltiplos da
base:
220
FACETAS DO DIAMANTE

Indo de baixo para cima, multiplicamos por 2; indo da


esquerda para a direita, multiplicamos por 3. É interessante notar
que todos os valores deste plano são relacionados por intervalos
diatônicos e que temos exatamente o mesmo número de colunas
quanto notas na escala musical natural (a oitava de qualquer nota, é
claro, se localiza diretamente acima daquela nota). O segundo nível
das variedades é paralelo ao primeiro plano, 5 para cima. As caixas
indicam claramente as relações entre as variedades: 3840, por
exemplo, é somente fogo, enquanto 11520 é fogo e ar, 34560 é fogo,
ar e água, etc. Também mostram que fogo e terra são basicamente
opostos, sendo mediados por ar e água.
Obtemos os valores do segundo nível por multiplicar os do
primeiro nível por 5, desprezando resultados maiores do que 103680,
a matéria prima. O segundo nível é, portanto, uma porção menor do
segundo plano:
221
FACETAS DO DIAMANTE

O valor 19200 é localizado diretamente acima do valor 3840


no primeiro plano. Mais uma vez, todos os valores deste nível são
relacionados por intervalos diatônicos, porém não são assim
relacionados com os valores do primeiro nível. Para obter o terceiro
e último nível de variedades, repetimos o procedimento usado acima:

O valor 96000 é situado diretamente acima do valor 19200


do segundo plano de variedades. Embora seja uma tabela
tridimensional, a presente figura parece uma antecipação genuína da
tabela periódica de Mendeleev, pois sistematiza as variedades dos
elementos materiais de uma forma que incentiva investigações sobre
as suas transformações.
222
FACETAS DO DIAMANTE
A QUÍMICA PLATÓNICA

As transformações permitidas pela tabela acima poderiam


ser chamadas de mesclagens e dependem dos princípios remotos
(Timeu 53D), ou seja, segmentos e, especialmente, dos números
inteiros realizados geometricamente como segmentos, ou seja, como
as arestas dos sólidos. Mesclagens são análogas a reações atômicas
e fazem parte do que podemos chamar da “física” dos elementos
materiais, pois dependem dos princípios remotos que correspondem
aos átomos. Platão não trata explicitamente destas mesclagens no
Timeu, mas a sua existência é uma consequência direta da nossa
reconstrução da doutrina platônica sobre as variedades dos
elementos materiais.
De fato, Platão só menciona “transformações por resolução”,
as quais podemos conceber como reações químicas porque não
utilizam os princípios remotos, mas sim os triângulos básicos, ou
seja combinações estáveis de átomos (segmentos). Assim, neste tipo
de transformação os sólidos se decompõem nos triângulos básicos e
estes se recombinam de forma diferente para formar uma nova
variedade ou até uma variedade de um outro elemento. É claro que
a terra não pode participar neste tipo de transformação porque o seu
triângulo básico é diferente do triângulo básico dos outros três
elementos.
O tetraedro, o octaedro e o icosaedro são compostos por
faces que tem a forma de triângulos equiláteros. Cada face é
decomposta em seis triângulos semelhantes ao “meio-equilátero”
ABD na figura abaixo. Seja AB = s. Então, AD = ½AB = s/2. Mas,
ADE ~ ADB; logo seu lado menor, DE = x, é a metade de sua
√3𝑠
hipotenusa AE = 2x. Pelo Teorema de Pitágoras, 𝑠 = .
6
223
FACETAS DO DIAMANTE

Assim, os seis componentes de uma face com lado s terão medidas


√3𝑠 𝑠 √3𝑠
de ( 6 , 2 , 3 ). Vejamos, por exemplo, a variedade 2160 da água.
Desde que o icosaedro tem 30 arestas (ver tabela acima), s = 2160 ÷
30 = 72 e, assim, esta variedade da água será composta de triângulos
medindo (12√3, 36, 24√3). Para determinar o tamanho relativo dos
triângulos básicos de cada variedade, será suficiente listar apenas a
medida do lado maior (s/2) na seguinte tabela (que, para facilitar
comparações, indica também o plano na figura anterior em que cada
variedade se acha):

FOGO AR ÁGUA
P1 P2 P3 P1 P2 P3 P1 P2 P3
36
72
108
120
144
180
216
240
224
FACETAS DO DIAMANTE
288
320
324
360 360
432
480
540
576
600
640
648
720 720
864
900
960 960
974
1080 1080
1152
1200
1280
1296
1440 1440
225
FACETAS DO DIAMANTE
1600
1620
1728
1800
1920 1920
2160
2400
2560
2880 2880
3000
3200
3240
3600
3840 3840
4320
4800
5120
5760
6400
7680
8000
8640
226
FACETAS DO DIAMANTE
A tabela acima, juntamente com a tabela periódica, permite-
nos discernir quais transformações são possíveis. O tipo mais
simples de transformação acontece quando os triângulos básicos do
reagente e do produto são do mesmo tamanho. Assim, por exemplo,
a variedade do fogo 11520 e a variedade do ar 23040 são compostas
de triângulos de tamanho (320√3, 960, 640√3) e, portanto, podem
transformar-se um no outro. É até possível escrever uma equação
química para a transformação. Para tanto, empregamos a seguinte
tabela de componentes:

elemento poliedro faces componentes componentes


por face totais
fogo tetraedro 4 6 24
ar octaedro 8 6 48
água icosaedro 20 6 120

Desde que o fogo é composto por 24 componentes, enquanto


o ar tem 48, duas partículas de fogo fornecem uma de ar (ou uma de
ar fornece duas de fogo). Podemos expressar este fato pela seguinte
equação:
2 fogo 11520  1 ar 23040.
Notamos que entre as variedades do primeiro nível, somente
o fogo e o ar participam deste tipo de transformação. Isto poderá ser
uma razão por que Platão usou mais dois planos, pois quando são
contemplados, o ar e a água também se transformam um no outro.
Não há transformações deste tipo, porém entre fogo e água.
Os triângulos básicos ainda podem combinar-se de outra
maneira para formar triângulos básicos de tamanhos diferentes.
Como se pode ver no seguinte diagrama, n2 triângulos formam um
novo triângulo que tem medidas laterais n vezes o triângulo original:
227
FACETAS DO DIAMANTE

Não podemos, porém, juntar dois triângulos no lado maior,


como sugere Cornford (1937, p. 238), porque os lados serão
números irracionais:

A variedade 17280 de água tem (96√3, 288, 192√3) como


triângulos básicos, enquanto a variedade 34560 de fogo tem (960√3,
2880, 1920√3) = 10(96√3, 288, 192√3). Assim, 100 triângulos de
(96\/3, 288, 92√3) podem se combinar para formar um de (960√3,
2880, 1920 √3). Destes últimos, precisamos de 24 para fazer o
tetraedro do fogo 34560, ou seja, precisamos de 2400 triângulos do
tipo (96√3, 288, 192√3) para formar esta variedade do fogo. Mas,
cada partícula de água tem 120 componentes triangulares. Portanto,
precisamos de 20 partículas de água para cada partícula de fogo a
ser formada:
1 fogo 34560  20 água 17280.
Notamos ainda que a variedade 34560 do ar tem como
componentes (480√3, 1440, 960√3) = 5(96√3, 288, 192√3). Logo,
por exemplo, temos
1 fogo 34560  5 ar 34560 + 10 água 17280.
As duas tabelas permitem um estudo sistemático das
transformações por resolução possíveis entre as variedades dos
elementos. Da formação dos tamanhos dos componentes, porém, é
evidente a seguinte Lei Fundamental da Química:
228
FACETAS DO DIAMANTE
Dois elementos são transformáveis um no
outro sse os componentes triangulares de
um é um múltiplo integral (positivo) dos
componentes do outro.

O NÚMERO NUPCIAL E A ASTROLOGIA PLATÓNICA

Em Erickson e Fossa (1996), interpretamos o Número


Nupcial e mostramos a sua relação com o número do tirano através
de uma estrutura que chamamos a “Pirâmide Platônica”. Como já
notamos acima, esta mesma estrutura, aqui apresentada como um
cubo, nos fornece as variedades dos elementos materiais. Mas, a
relação é ainda mais estreita do que indicamos, pois as formas dos
elementos materiais aparecem na figura do Número Nupcial
conforme o seguinte diagrama:

O significado deste resultado fica mais evidente quando incluímos


as alturas dos triângulos do Número Nupcial e identificamos os
catetos com as propriedades dos elementos: quente e seco (fogo);
frio e molhado (água); quente e molhado (ar); frio e seco (terra).
Lembrando que o propósito do Número Nupcial é determinar a
melhor procriação, podemos deduzir que quem é quente e seco deve
procriar com quem é frio e molhado para melhor harmonizar todas
as propriedades dos filhos. Analogamente, quem é quente e molhado
229
FACETAS DO DIAMANTE
deve procriar com quem é frio e seco. Mas, como aplicar este
esquema na prática?

Se começarmos com Touro na posição da terra, podemos


atribuir aos signos do Zodíaco, na sua ordem natural, os elementos
materiais, conforme o diagrama acima. O resultado são os quatro
“trígonos” associados com os elementos. Há algo de estranho nestes
trígonos tradicionais, pois a ordem dos elementos é sempre fogo, ar,
água, e terra — ar sendo um elemento intermediário que é concebido
como sendo mais próximo ao fogo nas suas características, enquanto
água é sempre concebida como mais próxima à terra. Além disto, o
fogo se situa naturalmente na região das estrelas, ar entre as estrelas
e a superfície do nosso planeta, água na superfície do planeta, e terra
no centro do planeta. Mesmo assim, a ordem astrológica inverte as
posições de ar e água e Tester (1989, p. 94) mostra que esta inversão
já acontecia em Ptolomeu e que ele se baseava em fontes bastante
mais antigas. Até agora, ninguém pode explicar porque estes dois
elementos têm suas posições trocadas. Na nossa interpretação,
porém, a explicação é evidente: a ordem dos trígonos segue a ordem
dos elementos materiais que é dada no Número Nupcial.
A figura acima também nos permite responder à questão
sobre a aplicação prática do esquema para a procriação. Quem
nasceu num signo de fogo deveria procriar com quem nasceu num
signo de água. Desta forma, as propriedades dos elementos serão
230
FACETAS DO DIAMANTE
bem harmonizadas nos filhos, pois estes não serão nem quentes
demais, nem excessivamente frios, nem secos demais, nem
excessivamente molhados, mas terão uma mistura apropriada destas
qualidades. Da mesma forma, quem nasceu num signo de terra,
deveria procriar com quem nasceu num signo de ar.
Tudo isto indica que o Número Nupcial, além da
interpretação em termos de idade dada em Erickson e Fossa (1996),
tinha uma significância astrológica para Platão que influenciou a
astrologia tradicional de forma profunda e duradoura. De fato, não
seria difícil discernir o mecanismo da influência planetária sobre os
seres humanos: os planetas emitem notas musicais e estas notas
imprimiriam as suas características no neonato.

CONCLUSÃO

Concluindo, vemos que a determinação da proporção


musical entre os elementos materiais nos permite reconstruir tanto a
“física” dos elementos materiais quanto a “química” dos mesmos. A
física depende dos números naturais, atualizados geometricamente
como as arrestas dos sólidos, e determina a forma de cada elemento
e as variedades dos mesmos, bem como as suas posições na tabela
periódica. A química especifica quais transformações por resolução
entre estas variedades acontecem, ou seja, determina as
transformações que acontecem quando os sólidos são resolvidos em
componentes triangulares. Vemos ainda como o Demiurgo usa o
Triângulo Pitagórico para dar uma simetria aritmética às suas
construções cosmológicas. Talvez o mais surpreendente de tudo,
porém, é que a mesma estrutura matemática que fundamentou e
unificou as passagens matemáticas da República reaparece agora no
Timeu como a base para a construção do corpo do universo e que o
Número Nupcial reaparece como uma pedra angular para a
astrologia platônica.
231
FACETAS DO DIAMANTE
NOTAS
1. Agradecemos ao Dr. Bruce W. Erickson, professor de Química da
Universidade de Carolina do Norte (Chapel Hill), para a sua colaboração na
nossa pesquisa.
2. O projeto platônico visa recuperar, na medida do possível, o pitagorismo. Os
sólidos, porém, não são compostos de superfícies, mas de segmentos (arestas).
Assim, estas partes componentes básicas deveriam ser comensuráveis e,
portanto, podem ter medidas integrais.
3. Esse número é também 10 vezes o maior número da alma do mundo, pois
como mostraremos noutro lugar todos estes números devem ser multiplicados
por 384. Assim, 103680 = 10368×10 = 27×384×10. Mas, 10 representa o
tetrakys que compreende tudo que existe.

REFERÊNCIAS

CORNFORD, F. M. Plato’s Cosmology, the Timaeus of Plato.


London: Routledge and Kegan Paul, 1937.

EUCLID. The Elements. (Trad. T. L. Heath, 3 vol.). New York:


Dover, 1956.

ERICKSON, G. W., e FOSSA, J. A. A Pirâmide Platônica. João


Pessoa: Editora da UFPb, 1996.

ERICKSON, G. W., e FOSSA, J. A. Dictionary of Paradox. New


York: University Press of America, 1998.

FOSSA, J. A., e ERICKSON, G. W. Os Sólidos Regulares na


Antiguidade. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série
2, v. 2, n. l, 1990.

TESTER, J. A History of Western Astrology. New York:


Ballantine, 1989.
232
FACETAS DO DIAMANTE
233
FACETAS DO DIAMANTE

TERCEIRA FACETA:
RELAÇÕES ENTRE
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
E A HISTÓRIA DA MATEMÁTICA

A Terceira Faceta trata de algumas interrelações entre a


Educação Matemática e a História da Matemática. Consiste de dois
artigos que apresentamos logo a seguir.
Dr. Oscar João Abdounur é da USP. Seu artigo, “Histórias
da Relação Matemática/Música e Construção de Significados”
mostra vários aspetos sobre a história da relação entra a matemática
e a música, embora o maior enfoque está sobre o experimento
pitagórico do monocórdio. A importância da referida relação para o
ensino da matemática, segundo o autor, consiste primordialmente
em dois aspectos. Primeiro, o aluno pode desenvolver atitudes de
afeto para com a matemática. Segundo, o aluno pode construir
múltiplas representações para conceitos matemáticos, implicando
numa aprendizagem melhor.
Dr. Ubiratan D’Ambrosio está aposentado da USP. Seu
artigo, “A Interface entre História e Matemática: Uma Visão
Histórico-Pedagógica” visa refletir sobre a natureza da Matemática
e a sua Historiografia, ainda relacionando estas reflexões com a
Educação Matemática. O autor investiga, das referidas óticas, três
questões amplas: O que é a História da Matemática?; Para quem é?;
e Para que serve? Ainda faz algumas sugestões práticas para o
professor de matemática.
234
FACETAS DO DIAMANTE
235
FACETAS DO DIAMANTE

A música é um exercício de aritmética secreta e aquele


que a ela se consagra ignora que manipula números.
— Leibniz (1646-1716).

HISTÓRIAS DA RELAÇÃO
MATEMÁTICA/MÚSICA
E CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADOS

Oscar João Abdounur

INTRODUÇÃO

A matemática e a música possuem laços profundos já


conhecidos desde a Antiguidade, por exemplo com o experimento
do monocórdio, no qual Pitágoras estabeleceu não apenas a
correspondência entre intervalos musicais e frações de uma corda,
mas relacionou consonâncias musicais a razões numéricas simples.
Sob uma ótica mais ampla, relações e paralelos entre a
matemática e a música manifestam-se ainda em diversas outras
situações tais como a necessidade do logaritmo na sistematização
do Temperamento, a importância dos conceitos de MMC e MDC no
estabelecimento de critérios de classificação de consonâncias
musicais; os Sons dos Planetas de Kepler; o experimento de Galileu
que relaciona sons musicais a funções periódicas e especialmente
altura musical ao conceito de frequência; a correspondência entre
Série Harmônica e Séries de Fourier, que amplia significativamente
a ótica matemática sobre diferentes fenômenos musicais; a
236
FACETAS DO DIAMANTE
emergência de afinações igualmente temperadas associada ao
surgimento dos números irracionais; etc.
Com o intuito de ancorar a interpretação estabelecida sobre
as informações concernentes à relação matemática/música,
pretende-se apresentar uma leitura do desenvolvimento histórico da
relação entre a matemática e a música à luz das concepções de Rede
de Significados e Inteligência Coletiva (Lévy, 1993), bem como
implicações didático/pedagógicas de tal abordagem no ensino de
maneira geral.
A fim de concretizar tal proposta, faz-se necessário uma
apresentação de tópicos da história de tal relação recheada com
analogias e complementada com possíveis aplicações no ensino de
conceitos concernentes outrora exclusivamente à música ou à
matemática. O estudo da relação matemática/música à luz das
concepções supracitadas leva-nos naturalmente a uma
reorganização do quadro cronológico associado a interface referida
de tal maneira que as circunstâncias ali apresentadas não se
conectam mais apenas por proximidade espaço-temporal, mas
principalmente por afinidade semântica. Convidando o leitor ao
enredamento de significados segundo as mais diversas conexões, a
organização teórica subjacente ao presente discurso não modifica o
conjunto de informações de tal quadro, mas oferece subsídios para
enxergar a estrutura organizacional silenciosa que sustenta a
dinâmica mais ampla à luz da qual os processos afetivos e de
conhecimento navegam.
Dada a incompatibilidade entre aplicações em âmbito de
ensino/aprendizagem da relação matemática/música e concepções e
cenários tradicionais de ensino, comenta-se posteriormente a
operacionalização didático/pedagógica de tais conexões através de
oficinas de matemática/música configuradas agora segundo formas
de organização de trabalhos escolares congruentes com as
concepções supramencionadas.
Buscando relações e analogias, a pesquisa como um todo
prioriza conexões entre matemática e música de caráter semântico
em distintos níveis, tais como conceitos análogos, mecanismos
237
FACETAS DO DIAMANTE
heurísticos e dinâmicas epistemológicas comuns aos processos de
desenvolvimento da música e da matemática, etc. A fim de avaliar
com maior minúcia as implicações de tal estudo no ensino, optamos,
dentre os assuntos supracitados, por aprofundar especialmente em
aplicações didáticas concernentes ao Experimento de Pitágoras com
o Monocórdio que, interligando conceitos tais como frações e suas
operações com respectivamente alturas e composição de intervalos
musicais, serve de base à primeira — pelo menos em ênfase
registrada — afinação para a escala diatônica — exemplificada
atualmente por dó, ré, mi, fá, sol, lá, si — surgida na história da
música ocidental.
Embebida de significativa carga histórica, a reconstrução
didático/pedagógica de tal experimento possibilita o entendimento
da formação de escalas musicais, da proximidade semântica entre os
conceitos de medidas e alturas, os de frações e intervalos musicais,
bem como os de produto de frações e composição de intervalos
musicais, etc. Ao explanar, sob uma ótica matemática, o porquê do
estabelecimento de tal sequência no universo musical, tal
experimento — o primeiro a desvelar a intimidade entre a
matemática e a música pode ainda significar na dinâmica de
ensino/aprendizagem uma motivação para o desenvolvimento
simultâneo de aptidões matemáticas e da percepção musical.
Possuindo significativa carga afetiva no Imaginário Coletivol, a
reprodução criteriosa de um cenário histórico em ambiente de
ensino/aprendizagem catalisa a dinamização de significados em
construção.
O experimento de Pitágoras desencadeia o interesse e
contribuição à interface matemática/música por parte de distintos
pensadores, tais como Arquitas, Aristoxeno, Boécio, Guido
d’Arezzo, Zarlino, Mersenne, Descartes, Galileu, Kepler, Wallis,
Saveur, d’Alembert, Rameau, Euler, Fourier, etc. Construindo a
matemática-música apoiados em distintas escolas, tais
pesquisadores re-significam as ideias de frações, altura musical,
batimento, timbre, harmônicos do som, progressão geométrica,
logaritmo, temperamento, Série Harmônica, Séries de Fourier, etc.
238
FACETAS DO DIAMANTE
Ao desterritorializar conceitos considerados outrora
concernentes exclusivamente ao domínio da matemática ou da
música, as conexões e analogias supra-aduzidas fornecem subsídios
para tornar visíveis esquemas e dinâmicas epistemológicas comuns
reveladores da proximidade silenciosa entre as linguagens musical
e matemática.
O discurso a respeito das reflexões anteriores no que
concerne à história da relação matemática/música e suas aplicações
didático/ pedagógicas convida-nos a refletir, sob uma ótica mais
ampla, a respeito do significado de organizações de trabalhos
escolares e cenários educacionais em geral sob os quais subjazem
não somente aptidões musicais e matemáticas, mas certa diversidade
de competências intelectuais, de representações e elementos
culturais, necessários à concretização da aproximação entre afeto2 e
cognição.

COMENTÁRIOS SOBRE A
TRAJETÓRIA DA MATEMÁTICA/MÚSICA

Provavelmente, o início da manifestação de aspectos


interativos dos campos supracitados perde-se, como dizem os
historiadores, na noite dos tempos, uma vez que em quase todos os
povos da Antiguidade encontram-se manifestações destas áreas em
separado. Por exemplo, o poder conquistador supra-humano da
música já se expressa na mitologia grega em Orfeo, cujo canto
acompanhado de lira sustava rios, amansava feras e movia pedras.
Sob uma ótica distinta, poder-se-ia conjeturar que a partir do
momento em que se conhece o arco e a flecha, o ser humano já devia
conhecer o fenômeno a partir do qual a experiência do monocórdio
decorre.
A matemática também faz-se presente desde os tempos mais
remotos, por exemplo, na contagem de objetos e coisas. A interação
entre estas áreas torna-se fortemente manifesta a partir da
necessidade de equacionar e solucionar o problema da consonância
239
FACETAS DO DIAMANTE
no sentido de buscar fundamentos científicos capazes de justificar
tal conceito. As distintas explicações possíveis para
consonância/dissonância incluem fatores socioculturais, bem como
concepções físicas e matemáticas. Neste sentido, essa última ciência
entra mais uma vez no cenário e na trajetória da música contribuindo
para sua evolução cultural através, por exemplo, do Temperamento3,
que amplia esse universo rumo a libertação de suas características
naturais, originais, físicas, para passear por distintas paisagens do
mundo musical. Uma metáfora para esse processo talvez possa ser a
do caranguejo que cresce mais que a própria casca e acaba por
rompê-la para poder continuar crescendo, num processo contínuo de
substituições sucessivas, de cascas de tamanho já insuficiente por
outras, cada vez maiores.
No sistema temperado, a matemática contribui para a
expansão cultural da música, magnetizada e induzida pelo clima
artístico/científico geral dos séculos XVII e XVIII. Poder-se-ia
comparar o avanço da música no conjunto das ciências e artes à
trajetória de um homem urbano, em meio a uma pequena multidão,
no ônibus, num estádio de futebol, numa comemoração popular ...
Situações dessa natureza revelam a individualidade como canal de
expressão do fluxo coletivo, o que ressoa analogicamente com o
conceito de Inteligência Coletiva (Lévy, 1994). No período de
emergência do Temperamento — séculos XVII e XVIII — as artes
e ciências já evidenciavam a ampliação das ecologias cognitivas
(Lévy, 1993) e afetivas4 que as circundavam, o que não apenas
ofereceu mas exigiu da linguagem musical novas possibilidades de
expressão do sentimento individual e coletivo, companheiro
espontâneo dessa evolução.
No que concerne à organização das escalas musicais, esta
ocorreu de diversas maneiras em diferentes povos e épocas, porém
com alguns aspectos em comum. Os gregos desenvolveram os
tetracordes e depois escalas com sete tons. Teóricos musicais tais
como Pitágoras, Arquitas, Aristoxeno, e Eratóstenes dedicaram-se à
construção de escalas desenvolvendo diferentes critérios de
afinidade. Por exemplo, valorizando os intervalos de quinta
perfeitos5, bem como a utilização somente de números de 1 a 4 na
240
FACETAS DO DIAMANTE
obtenção das frações da corda para gerar as notas da escala,
Pitágoras estabeleceu uma afinação utilizando percursos de quinta
para a obtenção das notas da escala. Arquitas construiu sua escala
baseada em frações da corda resultantes de médias harmônicas e
aritméticas daquelas encontradas por Pitágoras no experimento do
monocórdio. Já Eratóstenes (284-202 a.C.) elaborou a diferenciação
entre intervalos calculados aritmeticamente à maneira de
Aristoxeno, de intervalos calculados pela razão (Weber, 1995, p.72).
Com relação aos povos orientais, a China desenvolveu desde
a Antiguidade as sequências pentatônicas chinesas contendo, por
exemplo, a partir da nota dó, o ré, mi, sol e lá6, correspondentes às
cinco primeiras notas do ciclo das quintas, comparadas no livro de
Tso-kiu-ming aos cinco elementos da filosofia natural — água, fogo,
madeira, metal e terra. Já os árabes elaboraram escalas com 17 notas
e os hindus com 22 (Helmholtz, 1954, p. 514-17).
Existem diversos aspectos da relação entre a matemática e a
música que transcendem a questão cultural, manifestando-se
musicalmente em todos os povos, como por exemplo o uso da oitava,
De caráter essencialmente acústico/matemático, tais aspectos
decorrem principalmente do Teorema de Fourier, que contribui
ainda para a compreensão de diferentes dinâmicas concernentes à
interface em questão tais como o desenvolvimento de escalas e de
distintas concepções de consonância surgidas no decorrer da história.
Entretanto, o presente trabalho concentra as atenções na trajetória
da interface matemática/música sob uma ótica ocidental.

O EXPERIMENTO DO MONOCÓRDIO
E A MÚSICA NA ESCOLA PITAGÓRICA

Pelo menos em ênfase registrada, os primeiros sinais de


casamento entre a matemática e a música surgem no século VI a.C.,
quando Pitágoras, através de experiências com sons do monocórdio,
efetua uma de suas mais belas descobertas, que dá à luz, na época,
ao quarto ramo da matemática: a música. Os pitagóricos foram os
241
FACETAS DO DIAMANTE
únicos até Aristóteles a fundamentar cientificamente a música,
começando a desenvolvê-la e tornando-se aqueles mais preocupados
por este assunto. Como principais teóricos musicais dessa escola
têm-se Pitágoras e Filolaus no período pré-clássico, bem com
Arquitas, Aristoxeno e Aristóteles no período clássico (Fallas, 1992,
p. 266). Possivelmente inventado por Pitágoras, o monocórdio é um
instrumento composto por uma única corda estendida entre dois
cavaletes fixos sobre uma prancha ou mesa possuindo, ainda, um
cavalete móvel colocado sob a corda para dividi-la em duas seções.
A princípio, seus experimentos evidenciavam relações entre
comprimento de uma corda estendida e a altura musical do som
emitido quando tocada. Concordando com princípios de sua própria
escola, Pitágoras buscava relações de comprimentos — razões de
números inteiros — que produzissem determinados intervalos
sonoros. Outra leitura ainda plausível levaria a crer reciprocamente
que o desvendar de tais razões subjacentes às consonâncias perfeitas
endossaria os fundamentos do pitagorismo. Sob uma ótica
racionalista e considerando as dificuldades históricas quando se trata
de Antiguidade, torna-se difícil desvendar o que veio antes, ao passo
que pensando o desenvolvimento científico como coletivo, poder-
se-ia interpretar tal fenômeno como sincrônico.
Pitágoras deu continuidade a seus experimentos
investigando a relação entre o comprimento de uma corda vibrante
e o tom musical produzido por ela. Caracterizando a primeira lei
descoberta empiricamente, o experimento de Pitágoras é ainda a
primeira experiência registrada na história da ciência, no sentido de
isolar algum dispositivo para observar fenômenos de forma artificial.
Há evidências sobre observações de Tales a fenômenos cotidianos
tais como trovões, porém não se tem registro de simulação ou
estabelecimento de um conjunto de meios planejados ou dispostos
com vistas a atingir determinado objetivo, tal qual o foi a
experiência do pensador de Samos.
Em seu experimento, Pitágoras observou que pressionando
um ponto situado a 3/4 do comprimento da corda em relação a sua
extremidade — o que equivale a reduzi-la a 3/4 de seu tamanho
original — e tocando-a a seguir, ouvia-se uma quarta acima do tom
242
FACETAS DO DIAMANTE
emitido pela corda inteira. Analogamente, exercida a pressão a 2/3
do tamanho original da corda, ouvia-se uma quinta acima e a 1/2
obtinha-se a oitava do som original. A partir de tal experiência, os
intervalos mencionados passam a denominar-se consonâncias
pitagóricas. Assim, se o comprimento original da corda for 12,
então quando reduzimo-lo para 9, ouve-se a quarta, para 8, a quinta
e para 6, a oitava. O princípio subjacente a esta experiência mostra-
se presente em qualquer instrumento de corda ao escutar-se o som
emitido pela corda solta, por 3/4, 2/3 e metade da corda. A
descoberta da relação entre razão de números inteiros e tons
musicais mostrou-se significativa naquela ocasião, gerando uma
dúvida fundamental para o pensador de Samos, bem como para o
desenrolar da relação matemática/música:
Por que às consonâncias musicais subjazem
razões de pequenos números inteiros? Qual
é a causa e qual o efeito?
A partir do experimento mencionado, Pitágoras estabeleceu
relações entre a matemática e a música, associando, respectivamente,
aos intervalos musicais referentes às consonâncias perfeitas —
oitava, quinta e quarta — as relações simples 1/2, 2/3 e 3/4. Esta
correspondência teve diferentes explanações em distintos períodos
da história ocidental, segundo as concepções científico/artísticas em
vigor, atingindo um ponto de grande significância com Galileu.
As frações mencionadas correspondem às frações de uma
corda que fornecem as notas mais agudas dos intervalos referidos,
quando se produz a nota mais grave pela corda inteira. Atribui-se o
descobrimento dos intervalos consonantes a Pitágoras, embora
provavelmente estes já fossem conhecidos desde muito antes em
distintas culturas antigas (Fallas, 1992, p. 270). Tais intervalos
mostram-se naturais ao ouvido humano, pois estabelecem
acusticamente configurações de onda compostas por relações de
pulsações simples — 1 contra 2, 2 contra 3 e 3 contra 4.
Em linguagem cartesiana (Descartes, 1961), tal
característica cansaria menos o ouvido, já que, na onda resultante, o
número de pulsos a serem percebidos diminui em função das
243
FACETAS DO DIAMANTE
coincidências. O pensador de Samos justificou a subjacência de
pequenos números inteiros às consonâncias pelo fato de que os
números l, 2, 3 e 4 —envolvidos nas frações mencionadas —
geravam toda a perfeição. Os pitagóricos consideravam o número
quatro — primeiro quadrado par — origem de todo o universo, todo
o mundo material, representando a matéria em seus quatro
elementos integradores: o fogo, o ar, a terra e a água. A importância
do número quatro para os pitagóricos emerge ainda no cenário
musical ao considerar o tetracorde — sistema de quatro sons, cujos
extremos encontravam-se a um intervalo de quarta justa como escala
mais elementar e unidade fundamental da música grega. Referindo-
se a tal número sagrado, Pitágoras inicia os famosos Versos
Dourados com a exaltação: Salve número famoso, gerador dos
deuses e dos homens (Tahan, s/d, p. 120).
O legado de Pitágoras, mais amplo e abstrato que a noção de
que intervalos musicais relacionam-se a comprimentos, é a ideia
geral de que intervalos musicais aproximam-se de frações na grande
rede de conhecimento. Entretanto, Galileu explicou melhor o
fenômeno da altura, descrevendo-o não mais através de
características da fonte sonora — uma função direta do tamanho da
corda —, nem por meio de frações místicas resultantes do
dogmatismo aritmético pitagórico, mas através da vibração de
frequência de pulsações de ar correspondente a onda sonora que
chega ao ouvido. Tais resultados correspondem à transcendência
matemática da ideia de fração da corda associada à altura que agora
conecta-se à frequência resultando na reconfiguração do feixe
associado a este conceito e todos aqueles anteriormente associados
a comprimentos. A partir disto, altura e intervalos libertam-se da
dependência direta, respectivamente, em comprimentos e razões de
comprimentos, para assumir respectivamente os significados de
frequência e razão de frequência.
Agora, um som associa-se a uma função periódica, o que
ilumina o campo de investigação da acústica no sentido de tratar os
fenômenos musicais à luz de propriedades de funções periódicas,
abrindo ainda um significativo universo no âmbito didático/
pedagógico da matemática/música no que concerne especialmente à
244
FACETAS DO DIAMANTE
construção multirepresentativa dos conceitos de função e
significados e parâmetros relacionados, bem como som e suas
propriedades. A descoberta de Galileu propiciará a conjectura de
diversos fenômenos musicais e acústicos, pela navegação em águas
matemáticas. Aqui, as inferências prometiam mais resultados, que
se traduziriam como possíveis verdades no campo musical.
Reativando a rede de significados no que concerne às regiões
povoadas por conceitos matemático-musicais, a descoberta de
Galileu representará o gérmen da descoberta, completada através
das Séries de Fourier, de uma explicação convincente para o
fenômeno dos harmônicos musicais, enigma pitagórico mencionado,
timbre, bem como para regras musicais até então apresentadas
desprovidas de argumentação satisfatória.
Tornando-se base para a especulação científica, a relação de
números inteiros com consonância e com harmonia, num sentido
mais amplo, tem sua origem na Antiguidade e Idade Média,
especialmente entre os povos orientais. Pitágoras realizou distintas
viagens ao Oriente, percorrendo a Síria, a Palestina, grande parte da
Arábia e da Pérsia, bem como o Egito, onde permaneceu alguns anos
iniciando seus estudos em Ciências Ocultas e aprendendo regras de
cálculo (Tahan, s/d, p. 117). Influenciada fortemente pela cultura
oriental, a doutrina pitagórica sustentava que “Tudo é número e
harmonia”. Esta afirmativa parece vincular-se a relações de
números inteiros existentes na cultura chinesa manifestada por
exemplo no livro de Tso-King-Ming — um amigo de Confúcio (500
a.C.) — em que se comparavam os cinco elementos de sua filosofia
natural — água, fogo, madeira, metal e terra — aos cinco tons da
escala (Helmholtz, 1954, p. 229). Para os chineses, o número quatro
simbolizava a criação, relacionado com os quatro elementos, os
quatro seres mitológicos do Celeste Império — o dragão, a fênix, o
unicórnio e a tartaruga — etc. Pitágoras levou às últimas
consequências a veneração dos orientais pelos números acreditando
que estes governavam o mundo e, portanto, todos os fenômenos
podiam ser interpretados e explicados por meio deles, que exerciam
terminante influência sobre cada ser (Tahan, s/d, p. 119, 120).
245
FACETAS DO DIAMANTE
Assim, os pitagóricos acreditavam que todo o conhecimento
reduzir-se-ia a relações numéricas, posicionando-as como
fundamento da ciência natural. Compreendendo e explicando a
realidade por proporções, tais pensadores acabaram por assumir os
números — racionais, na concepção de sua escola — como causa
direta das consonâncias. Relacionada à dinâmica com que
consonâncias e dissonâncias dialogam no decorrer de uma música,
a harmonia musical herda do pitagorismo a qualidade de
propriedade numérica, sendo 6, 8, 9 e 12 números harmônicos, o que
irá mais tarde justificar o nome de média harmônica atribuído por
Arquitas ou Filolaus (Boyer, 1996, p. 48) à antiga média
subcontrária. Além destes teóricos musicais, encontram-se, na
Grécia, Arquitas (séc. IV a.C.), Aristoxeno (séc. IV a.C.),
Eratóstenes (séc. III a.C.), Didymos (séc. I a.C.).
A partir do experimento de Pitágoras, o desenvolvimento de
um sistema musical ocorre nessa escola ancorado a relações simples
de números inteiros. Já que os intervalos mencionados
apresentavam- se consonantes e entoavam naturalmente, tornava-se
interessante estabelecer afinações que contivessem tais intervalos
denominados puros. Partindo do pressuposto de que a oitava
mostrava-se como intervalo fundamental7, os pitagóricos a tomam
como universo da escala. A partir desta hipótese, o problema do
estabelecimento de uma escala reduzia-se a dividir a oitava em sons
que determinassem o alfabeto através do qual a linguagem musical
pudesse se expressar, tornando-se portanto natural a partir de uma
nota — determinante da oitava-universo juntamente com sua oitava
superior — caminhar em intervalos de quintas ascendentes e
descendentes, retornando à nota equivalente — acrescida ou
diminuída de um número inteiro de oitavas — sempre que escapasse
da oitava-universo.
Partindo do pressuposto de que notas diferenciadas por
intervalos de oitava apresentam certa semelhança, poder-se-ia
formalizar o discurso anterior definindo uma espécie de classe de
equivalência8 musical da seguinte forma: duas notas são
equivalentes, se o intervalo definido por elas for um número inteiro
de oitavas. Sob essa ótica, as distintas oitavas reduziam-se apenas a
246
FACETAS DO DIAMANTE
uma, possuindo, portanto, cada nota equivalentes em todas as outras
oitavas, e particularmente naquela referencial. Para efeito da análise
em questão, quando se atinge uma nota qualquer na construção de
escalas, seu significado é a sua posição relativa à nota mais grave
(no caso, o dó) da oitava em que se encontra. Portanto, começando,
por exemplo, em um fá, após uma quinta, obtém-se um dó, que por
sua vez acrescido de uma quinta torna-se um sol, depois ré (oitava
de cima), seguido de lá, mi (oitava acima) e si. Portanto, forma-se a
sequência fá-dó-sol-ré-lá-mi-si, que remanejada à oitava inicial,
apresenta-se como dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-dó. Tal sequência
constituída por “quase” todas as quintas puras — relação de
comprimentos 2/3 — denomina-se gama pitagórica.
Cabe ressaltar que a nomenclatura aqui utilizada para as
notas musicais serve apenas de referência para melhor compreensão,
uma vez que estas possuíam diferentes nomes na época.
Denominaremos o processo anterior de percurso das quintas —
caminhar quintas ascendentes e quartas descendentes de modo a
limitar-se somente ao espaço da oitava referência sem a repetição de
notas.
Já utilizada pelos gregos e possuindo intervalos estáveis, a
gama diatônica tornou-se progressivamente a escala referência na
música ocidental, porém a precisão das frequências9 subjacentes a
tal escala — afinação — variou ao longo da história de acordo com
a evolução das teorias de consonância (Assayag e Cholleton, 1995,
p. 808). Os pitagóricos construíram as relações de frequências
apoiados em ordens místicas que os levaram a exprimi-las sob a
forma de proporções de números inteiros com potências de 2 e 3,
considerados geradores universais. Tais pressupostos permitem
reconstruir historicamente o processo de formação de escalas
segundo as concepções dessa escola.
Tomando como ponto inicial a nota dó do teclado de hoje
que, sem perda de generalidade, atribuirei hipoteticamente o
comprimento l, percorre-se a escala por quintas ascendentes
transpondo as notas obtidas à oitava referência em caso de
ultrapassagem desse intervalo. Assim, obtém-se em notação
hodierna, as notas sol, com comprimento 2/3, ré com 8/9, lá com
247
FACETAS DO DIAMANTE
16/27, mi com 64/81, si com 128/243, etc., e no percurso
descendente, as notas fá com 4/3, etc., de acordo com a configuração
seguinte, que expressa matematicamente as frações ou relações de
frequência a escala pitagórica recém-mencionada:
dó ré mi fá sol lá si dó
1 8/9 64/81 3/4 2/3 16/27 128/243 1/2
Embora o mi e o si possuam relações com o dó diferenciadas
sob uma ótica pitagórica — caracterizam-se por frações de números
relativamente grandes — a influência dessa gama percorrerá toda a
Idade Média, vindo a ser substituída gradativamente a partir do
século XVI, por motivos — dentre os quais inclui-se fortemente o
Temperamento já mencionado — sob uma ótica causal, que
concernem principalmente ao processo de desenvolvimento da
música. Da tabela acima, pode-se observar que, sequencialmente, os
graus conjuntos10 possuem aqui respectivamente as relações de
frequências 9/8, 9/8, 256/243, 9/8, 9/8, 9/8, 256/243
correspondentes aproximadamente aos intervalos de tom, tom,
semitom, tom, tom, tom, semitom temperados.
Distintos fatores orientaram e justificaram a construção
mencionada. As influências orientais a Pitágoras levaram-no a
considerar os números inteiros 1, 2, 3 e 4 como fonte de toda
perfeição. Tal influência justifica numeradores e denominadores
decompostos apenas em primos 2 e 3 nas razões subjacentes à gama
pitagórica. Estas evidências, assim como as invasões ilírias, depois
do ano 1000 a.C., a tessálios, dórios e beócios introduzindo em todas
aquelas costas e ilhas seus esquemas melódicos e rítmicos (Fallas,
1992, p. 266), corroboram a crença de que a música grega recebeu
forte influência de culturas orientais.
Partindo da nota dó e construindo a escala pelo percurso de
quintas, o ciclo fecha-se aparentemente formando a sequência dó,
sol, ré, lá, mi, si, fá#, dó#, sol#, ré#, lá#, fá, dó, porém deve-se
lembrar que estas notas correspondem, na gama temperada, a
aproximações dos sons de fato alcançados. As quintas temperadas
possuem certa impureza traduzida em frequências correspondentes
a 27/12 = 1,49830 < 3/2, enquanto que os intervalos de quinta
248
FACETAS DO DIAMANTE
pitagóricos — puros — associam-se a relações de frequência 3/2.
Portanto, após o percurso de n quintas puras, a nota alcançada
corresponderá a uma frequência multiplicada por (3/2)n, que nunca
poderá igualar-se precisamente a 2m, fator multiplicado à frequência
inicial quando percorre-se m oitavas. Isto significa que um número
inteiro de quintas puras nunca poderá equivaler exatamente a um
número inteiro de oitavas naturais. Tal desajuste encontra sua
melhor adequação após doze quintas e sete oitavas, pois 27 = 128 é
aproximadamente 129,746 = (3/2)12. Sob uma ótica algébrica, os
números 7 e 12 apresentam-se como pequenos valores inteiros de m
3
e n respectivamente que tornam a relação (2)𝑛 : 2𝑚 = 3𝑛 2𝑚−𝑛 mais
próxima da unidade. Igualando a expressão acima a 1, encontramos
m/n = (ln3 - ln2) : ln2  0.584962 - 0.583333 = 7/12. Já que 7 e 12
são primos entre si, a expressão acima corrobora tais números como
uma boa11 aproximação para o encontro dos caminhos referidos.
A partir desse ponto, poder-se-ia continuar o percurso das
quintas, gerando notas bastante próximas daquelas adquiridas no
primeiro ciclo, o que estabelece uma configuração de frequências
que se desenvolve como uma espiral infinita. Caracterizando a
afinação pitagórica, tal escola optou por considerar 11 quintas
inteiras e uma quinta um pouco menor, de modo que a composição
de todas estas resultasse em 7 oitavas. Suficiente para produzir
batimento12, a diferença entre 12 quintas e 7 oitavas puras —
matematicamente, (3/2)12 : 27 = 1,01364326...  l, chamada coma
pitagórica — contribui posteriormente, de modo significativo, para
a emergência do Temperamento. Considerando que cada ciclo de
quinta produz uma nova nota na oitava original, a opção pitagórica
resulta num universo formado por doze notas no intervalo de oitava,
o que justifica sob uma ótica matemática a atual distribuição de
notas em uma oitava.
De maneira semelhante, ao caminhar de terças em terças
pitagóricas maiores, o ciclo também não se fecha, uma vez que após
n terças a frequência multiplica-se por (9/8)2n, que nunca se iguala a
2m, fator matemático correspondente ao percurso de m oitavas. De
forma mais ampla, qualquer intervalo natural que se percorresse
249
FACETAS DO DIAMANTE
diferente da oitava corresponderia a uma frequência com algum
fator diferente de 2, seja no numerador, seja no denominador.
Generalizando os argumentos precedentes, pode-se verificar
que um número inteiro de um mesmo intervalo puro qualquer nunca
ajusta-se a um número inteiro de oitavas. Tal fenômeno
impossibilita a construção de escalas em que a todos os intervalos
subjazam razões de números naturais, correspondendo ainda cada
qual a uma única relação de frequência, ou seja, torna-se impossível
construir escalas simétricas apenas com intervalos naturais.
Traduzindo-se no fato de que a precisão em afinidade harmônica
compromete a completude em simetria, tal “princípio de
incerteza”13 justifica-se pela compressão de distâncias intervalares
à medida em que se percorre a Série Harmônica.
A construção de escalas de Pitágoras, que considera ciclos
consecutivos de quintas puras ou qualquer outro intervalo produzido
por uma fração racional, até alcançar uma oitava perfeita composta,
traz consigo a semente da imperfeição14: o percurso referido nunca
se fecha como um ciclo. De fato, uma potência de 2 — o equivalente
matemático para um ciclo de oitavas consecutivas — nunca
equivalerá a uma potência de 3/2 — a expressão correspondente a
um ciclo de quintas perfeitas. Sustentar tal incompatibilidade geraria
teoricamente uma escala infinita. Esta pequena diferença,
representada por um intervalo chamado — a partir deste “erro” —
de coma pitagórica será em grande parte responsável pelo fenômeno
do Temperamento.

UMA ANALOGIA ASTRONÓMICA

O processo subjacente à tentativa de ajustar um número


inteiro de quintas dentro de um número de oitavas mostra-se
significativamente análogo ao requerido para a construção de
calendários, onde se busca acomodar de maneira justa ciclos da Lua
em períodos da Terra em torno do Sol. A medida do tempo
apresenta-se como um dos problemas mais antigos da história.
Assim como a acústica fornece-nos intervalos naturais entre os quais
250
FACETAS DO DIAMANTE
tentamos realizar ajustes — no caso da construção pitagórica, ajustar
quintas em oitavas — a astronomia nos proporciona relógios
naturais entre os quais procuramos identificar relações. No caso, a
construção de calendários depara com a acomodação de ciclos
lunares com 29 dias e meio de período, em ciclos de 365 dias da
Terra.
O ano possui 365 dias, o que significa 11 a mais que o
correspondente a 12 meses lunares — 354 dias. Logo, cada ano
deixa um déficit de 11 dias em relação ao último ciclo completado
pela Lua, de maneira análoga ao processo de construção de escalas
apresentado, onde cada oitava ultrapassa o último ciclo de quintas
por uma quarta. Após 19 anos, tem-se 235 ciclos lunares com
precisão notável assim como após 7 oitavas, obtemos 12 ciclos de
quinta com significativa precisão. Cabe ainda ressaltar que a “coma
astronômica” exigirá uma distribuição ao longo dos 19 anos, assim
como a coma pitagórica reparte-se ao longo das escalas de distintas
formas nas tentativas de construção de escalas.
No caso da astronomia, temos 235 = 19×12+7, o que levou
Meton, ateniense do século IV a.C., a promover um grande
progresso ao repartir os 7 meses restantes ao longo dos 19 anos,
considerando portanto 12 anos normais de 12 meses e 7 anos gordos
de 13 meses (Cartier, 1995, p. 754), o que se comprova
matematicamente no fato de que19×12 + 7 = (12+7)×12 + 7 = 12×12
+ 12×7 + 7 = 12×12 + 13×7. Gerando conflito de interpretações, a
analogia construção de escalas/calendários propicia insights,
lubrifica e insemina de afeto os conceitos — a princípio distantes —
referentes a escalas, associados principalmente à aptidão musical ao
mesclá-los com propriedades astronômicas, em geral mais
“colonizadas” no espaço do saber e pertinentes essencialmente às
aptidões lógico-matemática e espaciais. Nesse sentido, tal
comparação dá subsídios para trazer à tona a manifestação de um
significado, cujo sentido encontra-se ainda encoberto através do
trilhar de um atalho analógico permitindo sentir o conhecimento, na
acepção de Ricouer (1992).
Uma possível solução para o desajuste entre os ciclos
referidos consiste em “diminuir” algumas ou todas as quintas de
251
FACETAS DO DIAMANTE
modo a adequar a superposição de tais intervalos a um número
inteiro de oitavas, resultando num tipo de temperamento16. A
compreensão do Temperamento ganha maior clareza quando
comparamo-lo com a seguinte imagem. Considere infinitos pontos
marcados sobre uma espiral que se desenvolve a partir de um círculo
para fora, de modo que tais pontos deslocam-se ligeiramente, do
ponto de vista radial, a cada ciclo. O processo do Temperamento
pode ser imaginado como a transformação de tal configuração em
doze notas — correspondentes a um ciclo — distribuídas
simetricamente sobre o círculo mencionado.

O SIGNIFICADO DA CONCEPÇÃO MUSICAL DE PITÁGORAS

Nesse ponto, caberia apresentar o significado do


experimento de Pitágoras, sob uma ótica coletiva, especialmente no
que concerne às suas contribuições no enredamento dos conceitos
de Temperamento e Séries de Fourier que, respectivamente
associados aos conceitos de logaritmo e Série Harmônica, assumem
extrema importância no desenvolvimento da matemática/música. A
luz da concepção pitagórica, fortemente sustentada pela ideia de
grandezas comensuráveis, a confirmação de que às consonâncias
perfeitas — oitava, quinta e quarta — subjaziam razões de números
simples pareceu coerentemente justificada pelo fato de que os
números 1, 2, 3 e 4 geravam toda a perfeição. Sob uma ótica de rede
de significados, pode-se interpretar que esquemas subjacentes às
concepções epistemológicas da escola pitagórica impregnaram a
estrutura/dinâmica de pensamento de teóricos/musicais da época
ressoando ainda nas concepções subjacentes aos conceitos de
consonância, significados à luz de ideias místico-numerológicas.
As Séries de Fourier reconfiguram na rede de significados, o
feixe associado à consonância, permitindo agora compreender
melhor porque a oitava, a quinta e a quarta foram consideradas
consonâncias perfeitas desde a Antiguidade: tais intervalos
correspondem respectivamente aos três primeiros das séries
referidas. Além disso, o Teorema de Fourier permite-nos perceber
252
FACETAS DO DIAMANTE
que a oitava é o intervalo no qual a diferença entre o conjunto
composto pelos harmônicos da nota inferior e aquele composto
pelos harmônicos da nota superior possui menor densidade, o que
confere uma posição especial. De fato, há equivalência entre
melodias executadas por diferença de oitavas17. As distintas
descobertas matemático-musicais re-significam não somente a ideia
de consonância, mas todos os conceitos que apresentam algum grau
de simpatia, atrelando-os a cada vez mais conexões na rede.
Os aspectos supracitados, presentes silenciosamente na
Antiguidade, não apenas associavam-se ao desejo de estabelecer-se
um sistema musical com um máximo de consonâncias mas,
inseridos em um contexto filosófico-epistemológico sustentado pela
comensurabilidade, justificavam a construção de um sistema de
escala baseado nos intervalos de oitava e quinta. Com o
estabelecimento da escala pitagórica, a música ocidental herdou da
matemática uma linguagem ocultamente apoiada por números
racionais, que sustentaria seu desenvolvimento por
aproximadamente 2000 anos. O experimento de Pitágoras
impregnou os significados vinculados à música de uma aritmética
regida somente por números racionais que somente emancipará com
o estabelecimento do temperamento igual intimado pela música na
passagem do século XVII para o XVIII.
Pode-se atribuir este longo período de tempo aos aspectos
comuns entre a concepção pitagórica e as ideias subjacentes às
Séries de Fourier, não havendo portanto necessidade de grandes
reconfigurações na rede de significados relativas às afinações
musicais subjacentes até que a música intimasse uma transformação
mais radical para poder seguir seu curso. Já presentes
silenciosamente, tais ideias sucederiam futuramente, de maneira
direta, os conceitos musicais intrínsecos à concepção pitagórica. O
dogmatismo aritmético pitagórico vigorou enquanto os fenômenos
acústico-musicais observados até então adequaram-se a ele e
enquanto as necessidades artísticas não ameaçavam a validade desta
ideologia.
O experimento de Pitágoras contribui com a ideia de
Temperamento na medida em que propicia a construção de uma
253
FACETAS DO DIAMANTE
escala que não se “fecha”, resultando na coma pitagórica. As
diversas tentativas de distribuir tal diferença culminam com a
repartição logaritmicamente equivalente, correspondente ao
temperamento igual. De maneira análoga, as tentativas de
explicações satisfatórias para a dúvida levantada a partir do
experimento do monocórdio conduzem a trajetória da relação
matemática/música à associação entre Séries de Fourier e Série
Harmônica.
Do ponto de vista epistemológico e sob uma ótica de rede de
significados, esse experimento contribui para a construção do
conceito de fração, que ganha a partir de então uma roupagem
musical. Ao mesmo tempo, a música e suas diferentes áreas, tais
como harmonia, tornam-se, na concepção do pensador grego,
propriedades numéricas e, à luz das ideias aqui defendidas, os
conceitos usualmente tidos como musicais assumem um significado
mais amplo, incluindo pontos de vista matemáticos em suas
interpretações. Sob um ponto de vista de rede, tal dinâmica
reconfigura os feixes associados aos conceitos de fração e altura
musical.
A conexão que Pitágoras realiza entre consonâncias musicais
e razões simples de comprimentos abre caminho para Arquitas,
Aristoxeno, Eratóstenes, Didymos e outros teóricos gregos a
pesquisarem a música apoiados na aritmética ao mesmo tempo que
determina certa limitação no desenvolvimento musical, análoga
aquela propiciada pelo estudo matemático sustentado por
concepções de número como racionais.
As Séries de Fourier permitem compreender, de maneira
mais satisfatória segundo a concepção atual de ciência, porque a
oitava, a quinta e a quarta eram consideradas consonâncias perfeitas
na Grécia, já que estas correspondem, respectivamente, aos
primeiros três intervalos da série referida. A luz de Fourier, pode-se
interpretar a oitava como o primeiro intervalo em que a nota superior
possui todos os seus harmônicos contidos nos harmônicos da
inferior. Por um raciocínio análogo, o intervalo de quinta apresenta-
se como aquele de maior coincidência harmônica depois da oitava.
Os aspectos anteriores, presentes silenciosamente na época, não
254
FACETAS DO DIAMANTE
apenas vinculados ao desejo de estabelecer-se um sistema musical
com o máximo de intervalos consonantes, mas inseridos num
contexto filosófico-epistemológico sustentado pelo conceito de
comensurabilidade, justificam a construção de uma escala a partir
dos dois intervalos referidos. A luz da organização teórica deste
trabalho, poder-se-ia pensar que os pitagóricos transferiram para a
música o arquétipo da comensurabilidade, que geraria, nesse novo
âmbito, problemas de natureza análoga aqueles ocorridos na
matemática pela conservação de tal concepção.
A irracionalidade no ciclo das quintas causada pela
insistência na manutenção da racionalidade na relação de
frequências manifesta-se analogicamente no processo de construção
de calendários, o que nos levaria a caracterizar o mecanismo
afetivo/cognitivo subjacente à dinâmica apresentada como
manifestação matemático/musical de um arquétipo. Esse
“temperamento temporal” apresenta diferentes estruturas no
decorrer da história como o Calendário de Meton de 12 anos com 13
meses e 7 com 12 meses e o calendário atual, assim como o
temperamento musical que passa pela escala de Pitágoras, Zarlino e
o temperamento igual.
Cabe ressaltar o fato de que o calendário anterior, a fim de
manter a pureza no mês lunar, estabelecia 12 anos com 11 dias a
menos que o ano astronômico e 7 anos com 18,5 dias a mais, o que
se apresenta como um temperamento possível. No âmbito da música,
mantinha-se 11 quintas puras e uma bem impura. Com o tempo, a
evolução da música necessitou um sistema que deixasse todas as
quintas iguais e suportavelmente desafinadas a fim de caber num
número inteiro de oitavas e o calendário caminhou no sentido de
estabelecer meses quase igualmente diferentes do mês lunar com o
intuito de ajustar-se ao ano astronômico.
No processo de “temperar musicalmente o tempo ou
temporalmente a música”, cabe ressaltar a analogia entre intervalos
de quinta e oitava, de natureza original e os períodos
correspondentes ao mês lunar e ao ano correspondente ao ciclo da
Terra, presentes espontaneamente na natureza e o processo de
irracionalização ou racionalização dependendo, do ponto de vista,
255
FACETAS DO DIAMANTE
necessário para atender necessidades culturais e de simetrização.
Antes, havia 11 quintas puras e 1 bem impura, enquanto que o
calendário possuía 12 anos um pouco impuros e 7 mais impuros e
agora, as quintas abandonam a pureza absoluta para assumir
natureza igualmente impuras e os meses deixam a pureza total em
relação ao mês lunar para assumir impureza quase igual.
No âmbito pedagógico, as analogias presentes em tais
reflexões podem servir de canal conector entre um ambiente
cognitivo que se deseja construir e cenários afetivamente
incorporados, catalisando o processo de sentir o conhecimento
(Ricoeur, 1992) na dinâmica de ensino/aprendizagem. Por exemplo,
para um aluno promissor na aptidão lógico-matemática e com
dificuldade na competência musical, a dificuldade de compreender
o significado do Temperamento na música pode dissolver-se quando
se transporta a questão para o problema algébrico de ajustar períodos
lunares ao da Terra e vice-versa. As transferências e
retroalimentações entre as áreas estabelecidas podem, ainda, dar-se
entre outros cenários, nos quais o esquema referido manifeste-se
simultaneamente.
De forma similar, outros significados acústico-musicais tais
como consonância, altura, timbre, etc., ganharam distintas
configurações ao longo da história, resultantes de sucessivas
tentativas para suas explicações, que por sua vez provinham de
significações anteriores. Tais dinâmicas envolvendo significados
associadas a configurações, seguidas de re-significações
relacionadas a reconfigurações estabelecem um comportamento
dinâmico na rede estreitamente relacionado ao Princípio da
Metamorfose (Lévy, 1993).
A dinâmica apresentada leva tais pensadores a conceber não
um sistema com várias quintas absolutamente puras e uma bem
impura, mas uma nova arquitetura musical em que todas as quintas
estivessem igualmente impuras denominado Temperamento. Os
mecanismos mentais necessários a esse tipo de pensamento
traduzem-se matematicamente no estabelecimento de um universo
fechado agora sob uma ótica logarítmica, que abdica de concepções
de frequências musicais relacionadas a números racionais,
256
FACETAS DO DIAMANTE
correspondentes aos intervalos puros, para assumir na escala
relações de frequências irracionais. A mudança para concepções
incomensuráveis reflete-se, sob uma ótica logarítmica, em certa
comensurabilidade musical pois agora quaisquer dois intervalos
constroem-se como composição de um número inteiro de um certo
intervalo básico.

AS OFICINAS INTERDISCIPLINARES DE MATEMÁTICA/MÚSICA

Pretende-se nesse ponto apresentar um panorama geral de


metodologias utilizadas nas oficinas de matemática/música para fins
de discutir-se, em um âmbito mais amplo, algumas implicações das
concepções aqui defendidas concernentes às formas de organização
dos trabalhos escolares. Embora concentramos no experimento do
monocórdio, as oficinas procuram reproduzir a trajetória da
matemática/música, fazendo uso de recursos tecnológicos, de
múltiplas representações e de toda ecologia cognitiva (Lévy, 1993)
disponível. Para fins de fornecer a vivência musical necessária à
compreensão da relação entre a matemática e a música, familiariza-
se inicialmente os participantes com conceitos tais como agudo e
grave, forte e fraco, timbre, intervalos musicais, consonância e
dissonância, fazendo uso do teclado, violão, flauta e principalmente
da voz. Além disso, os participantes ganham ainda certa prática com
leituras básicas na partitura.
Já que o experimento de Pitágoras pressupõe o
conhecimento de intervalos musicais, familiariza-se inicialmente o
público-alvo com tal conceito dedicando especial atenção às
consonâncias perfeitas oitava, quinta e quarta. Fazendo uso de
competências musicais, lógico-matemáticas e corporais, procura-se
nesse ponto construir o conceito de intervalo musical,
principalmente quando o público possui pouca familiaridade com
música, estabelecendo um campo afetivo por meio do qual os
significados apresentados posteriormente ganham sentido. O
desconhecimento de intervalos musicais requer uma construção
artificial de certa familiaridade com tal conceito, para fins de
257
FACETAS DO DIAMANTE
estabelecer pontes entre o conhecimento envolvido neste
experimento e o universo afetivo dos interlocutores.
Uma vez concluída a vivência anterior, configura-se a turma
em grupos, que recebem monocórdios para reproduzir o
experimento de Pitágoras. A atividade consiste basicamente em
encontrar as frações da corda que produzem os intervalos de oitava,
quinta e quarta, seguida de alguns exercícios envolvendo a
correspondência entre produto de frações e acréscimo/decréscimo
de intervalos. Por exemplo, após a reprodução do experimento de
Pitágoras — percepção de que se produz o intervalo de oitava ao
tomar 1/2 do comprimento da corda, quinta com 2/3 do
comprimento da corda e quarta com 3/4 do comprimento da corda
—, pode-se explorar problemas tais como os que se seguem:
- Seja um comprimento L correspondente a uma nota dada. Como
podemos obter sua oitava superpondo somente intervalos de 4a e
5a, sua quinta superpondo somente intervalos de 4a e 8a e como
podemos obter sua quarta superpondo somente intervalos de 5a e
8a?
- Partindo da nota dó, como podemos atingir o ré, superpondo
somente consonâncias pitagóricas? Ou partindo da nota mi, como
podemos atingir um sol, superpondo somente consonâncias
pitagóricas?
- Seja ré a nota emitida pela corda do monocórdio de comprimento
L. Que movimento intervalar estaremos realizando ao
multiplicarmos L por 2/3, 2/3, 2/3, e 2? Verifique a nota no
monocórdio, conferindo seu som no piano.
- Seja L o comprimento correspondente a uma nota dada. Que
intervalos são obtidos entre a nota dada e aquelas produzidas por:
4L/9, 9L/16, 8L/9.
Seja L o comprimento correspondente a uma nota dada. Qual o
comprimento necessário para produzir a nota obtida ao subir uma
oitava e uma quinta e, em seguida, descer duas quartas? Ouça a
nota resultante no monocórdio, comparando-a com aquela
atingida ao realizarmos tal procedimento no piano.
258
FACETAS DO DIAMANTE
Poderíamos ainda explorar mais didático/pedagogicamente
o experimento de Pitágoras. Envolvendo principalmente
competências lógico-matemáticas (essencialmente raciocínios
dedutivos) e musicais (percepção auditiva) tais exercícios re-
significam e desterritorializam os conceitos de frações e intervalos
musicais — usualmente associados respectivamente aos campos da
matemática e da música — ao conectá-los na rede de significados.
A atividade anterior induz naturalmente a questionamentos a
respeito da relação entre frações simples e consonâncias perfeitas.
Mostrando-se presente no decorrer de toda a oficina, a questão
referida alimenta e norteia o desenvolvimento de distintos
significados emergentes no desenrolar das atividades de forma
semelhante ao papel de tal pergunta no processo histórico. Uma vez
familiarizados com a relação entre frações e intervalos musicais por
meio de exercícios envolvendo produto de frações e percepção de
superposição de intervalos, pode-se construir a afinação pitagórica
por percursos de quintas. Neste processo, verifica-se, por exemplo,
que 2/3 de 2/3 de um comprimento resulta em um novo
comprimento, que produz o som correspondente a duas quintas
superpostas, cantado anteriormente. Distintos exercícios dessa
natureza são explorados com o intuito não somente de construir a
escala pitagórica, mas de trabalhar a correspondência entre produtos
de frações similares e a sensação de acréscimo de intervalos
equivalentes.
Tal relação re-significa possíveis associações ingênuas nesse
âmbito uma vez que à “soma” de intervalos musicais corresponde o
“produto” de frações da corda que produz os intervalos referidos. A
construção da escala pitagórica leva naturalmente ao não
fechamento do percurso de quintas com um número inteiro de
intervalos de oitavas resultando na coma pitagórica, gérmen do
temperamento igual que contribuirá juntamente com o
questionamento suprareferido — por que relações simples
associam-se à consonâncias perfeitas? — para a condução geral da
oficina culminando respectivamente com a emergência do
Temperamento e das Séries de Fourier.
259
FACETAS DO DIAMANTE
Todo o processo até agora apresentado procura ser exibido
de modo a produzir inquietações e dúvidas concernentes aos
conceitos matemático-musicais envolvidos na trajetória dessas
ciência/artes para fins de estabelecer expectativas e criar desejos de
resolução de problemas nessa interface. Cabe ressaltar aqui que
aqueles mais próximos afetivamente de algumas das duas
competências principalmente envolvidas estabelecem pontes com a
outra aptidão não inata tanto pela relação matemática/música quanto
pelas distintas circunstâncias da oficina que procuram criar
artificialmente vivências em música objetivando a produção de
novos campos afetivos àqueles não familiarizados com tal arte.
A partir de agora, a oficina ressalta alguns teóricos-musicais
gregos que trabalharam com a relação matemática-música
dedicando especial atenção à Arquitas de Tarento — associação
altura musical/frequência, utilização de médias harmônicas e
aritméticas na construção de escalas musicais e vivenciadas
auditivamente — ao conceito de onda, experimentado
analogicamente através de brincadeiras tais como o sopro divino18,
propagação de gestos19, passa-mensagem20 e outras que podem ser
criadas a partir das práticas anteriores, seguidas de discussões
concernentes a quais casos “envia-se mensagem” — propagação de
energia — e quais casos “manda-se encomenda” — propagação de
matéria21.
A partir deste ponto, a oficina procura apresentar uma síntese
do desenvolvimento da música na Idade Média, familiarizando os
participantes com o desenrolar desta arte no período referido com o
intuito de entender o processo matemático subjacente a tal dinâmica.
Em seguida, a oficina concentra as atenções em pensadores do
Renascimento, séculos XVI e XVII que contribuíram para a
construção de significados no eixo matemática/música, destacando-
se Zarlino e Galileu, cuja concepção para consonância é vivenciada
através de atividades corporais-cinestésicas envolvendo frações
simples e complexas, associadas respectivamente à ideia de
consonância e dissonância. Tal atividade revela o potencial
analógico mencionado concernente à integralização do pensamento
no sentido de pensar-se com o corpo inteiro.
260
FACETAS DO DIAMANTE
Outro resultado de Galileu reproduzido na oficina segundo
uma ecologia cognitiva atual (Lévy, 1993) concerne à relação não
somente entre altura musical e frequência, mas entre intensidade
musical e amplitude, bem como timbre e forma de uma função
periódica. Confirmam-se tais descobertas por meio de um
osciloscópio no qual o participante da oficina canta uma nota e
observando a função periódica na tela do equipamento, verifica a
variação dos parâmetros matemáticos frequência, intensidade e
forma a partir da variação respectivamente da altura musical, da
intensidade e do timbre.
A vivência mencionada mostra-se significativa, pois os
participantes sentem as modificações musicais ao mesmo tempo em
que veem os “retratos” matemáticos dessas mudanças,
estabelecendo um cenário de múltiplas representações. Em tal
atividade, os alunos vivenciam a construção de um significado
simultaneamente em âmbitos matemáticos e musicais, o que induz
à conexão dos conceitos envolvidos na rede — altura com
frequência, intensidade com amplitude, timbre com forma, etc.
Assim, como a reprodução em sala de aula do experimento do
monocórdio seguido de explorações didático/pedagógicas, essa
construção devidamente explorada consolida-se na medida em que
tais atividades reproduzem cenários históricos da relação
matemática/música e, portanto, trazem certa carga afetiva, por
povoarem o Imaginário Coletivo. Construindo significados segundo
esta tática, a oficina sugere tacitamente o hábito não somente de
conectar conceitos pertinentes à matemática e à música, mas de
associar significados pertencentes a princípio a distintas
competências da inteligência.
A oficina propicia ainda uma explicação qualitativa para a
fórmula de Mersenne, para as contribuições de Saveur concernentes
a explicações para batimentos e timbre, reproduz ainda outros
experimentos tais como a corda vibrante de Wallis, fazendo uso de
um gerador de áudio ligado a uma corda que simula a outra corda
do experimento original. Esses e outros experimentos induzem o
participante a uma melhor compreensão do contexto dentro do qual
a relação entre Série Harmônica e Séries de Fourier acontece.
261
FACETAS DO DIAMANTE
Uma vez explicitada a proximidade semântica entre Séries
de Fourier e Série Harmônica, a oficina procura reinterpretar
distintos conceitos matemático-musicais — consonância/
dissonância, timbre, batimento, etc. — agora à luz de tal relação,
elucidando argumentações místico-numerológicas, desprovidas de
respaldo matemático apresentadas em diferentes momentos
históricos ou mesmo inferências resistentes de teórico-musicais
defendidas com base na proporcionalidade pitagórica.
A oficina finaliza com a apresentação da relação entre Séries
de Fourier e Série Harmônica e suas consequências, bem como com
a comparação — escutando-se através de um programa no
computador as escalas de forma serial e paralela — entre as distintas
afinações estabelecidas no decorrer da história desde a pitagórica até
a temperada igualmente.
Destaca-se, nessa última atividade, a percepção nítida da
grande diferença entre a quinta do lobo e a quinta pura, justificando,
portanto, a necessidade do estabelecimento do Temperamento. Cabe
ressaltar a importância da utilização de distintas competências da
inteligência, bem como tecnologias intelectuais tais como
monocórdios, o computador, osciloscópio, toca-fitas, teclado, piano,
flauta, equipamentos de ressonância e acústica em geral
estabelecendo um cenário diversificado que favorece a construção e
enredamento multidirecional de significados.

IMPLICAÇÃO NA FORMA DE
ORGANIZAÇÃO DAS ATIVIDADES ESCOLARES

Embora este trabalho exiba naturalmente até o presente


momento algumas implicações concernentes à forma de
organização das atividades escolares especialmente nos comentários
referentes às oficinas, pretendemos concentrar nas próximas linhas
as principais decorrências, no âmbito referido, das concepções
teóricas aqui defendidas. Considerando que a forma tradicional de
organização dos trabalhos escolares não favorece a
262
FACETAS DO DIAMANTE
operacionalização da proposta apresentada neste trabalho, faz-se
necessário naturalmente uma nova configuração para a
estrutura/dinâmica de ensino/aprendizagem. Por exemplo, a
construção multidirecional de significados envolvendo distintas
competências intelectuais e representações torna-se impraticável
num cenário tradicional de ensino/aprendizagem.
Nesse sentido, as oficinas interdisciplinares favoreceram
significativamente a efetivação da construção referida, uma vez que
elas oferecem grande diversidade em suas atividades. Para participar
de uma oficina, deve-se praticar atividades concernentes a distintas
competências intelectuais. A oficina exige, por exemplo, que os
participantes cantem e ouçam ativamente em diversos momentos,
seja para adquirir vivência com os intervalos musicais, para
aprender as consonâncias perfeitas necessárias à reprodução do
experimento de Pitágoras, seja para diferenciar as distintas formas
musicais desenvolvidas na Idade Média, seja para exercitar a
coordenação motora ao simular analogicamente a concepção de
consonância de Galileu, etc.
Realizam-se tais atividades a serviço de uma melhor
assimilação dos conceitos abordados no decorrer da oficina, que por
sua vez contribuem com a construção das explicações teóricas para
os conceitos musicais de Temperamento, Série Harmônica,
consonância, etc. Comparando com a forma de organização de
trabalhos escolares tradicional, a diversificação referida possui
caráter um pouco parecido com a dos exercícios e problemas no que
se refere à fixação de conceitos, porém em uma dimensão mais
ampla, uma vez que tais atividades exigem naturalmente a utilização
de uma variedade de competências. Pode-se imaginar de maneira
metafórica a dinâmica de desenvolvimento e fixação de conceitos
apresentada anteriormente como respectivamente uma “exploração”
e “colonização” na rede de significados. O fato de abrir alguns
momentos da oficina para esclarecer conceitos apresentados via
diferentes competências exige naturalmente uma formação mais
ampla para o professor.
A oficina apresenta ainda diferentes atividades coletivas,
envolvendo o corpo e coordenação, tais como cantar em grupo,
263
FACETAS DO DIAMANTE
exposições em público, competições tais como as brincadeiras do
sopro divino e passa-mensagem já mencionadas, a simulação da
concepção de consonância de Galileu através de palmas, etc., que
exigem naturalmente a percepção do outro, colocar-se no lugar do
companheiro, sintonia com o outro, liderança, sentimento solidário,
consciência de grupo, etc. A luz da organização teórica deste
trabalho, tais atividades estão mais diretamente a serviço da
construção dos significados de escala, intervalos, frações, onda,
consonância, etc., de acordo com a metáfora dos seis cegos22,
fazendo uso principalmente de competências corporal-cinestésica,
intra e interpessoais. Por exemplo, as brincadeiras referidas
mostram-se como uma possível visão corporal-cinestésica da ideia
de onda. “Chaveando” as distintas competências intelectuais, as
oficinas apresentam significativa diversidade em espaços de tempo
relativamente curtos.
Nesse sentido, a efetivação da proposta apresentada nesse
trabalho exige flexibilidade por parte do coordenador da oficina para
abrir um conceito segundo diferentes visões, sempre que necessário,
com o intuito de estimular, sob uma ótica mais ampla, o hábito de
pensar em analogias. A ideia de que cada qual vê o pôr do sol da
porta de sua casa deve ser concretizada a cada momento, no sentido
de propiciar diferentes pontos de vista diante de qualquer conceito,
independente de que competência intelectual tal ponto exigir utilizar.
Na realização das oficinas ou qualquer outra atividade congruente
com a proposta teórica apresentada, o professor ou coordenador da
atividade deve desenvolver o hábito de expressar, bem como extrair
e “permitir” do grupo, dentro do possível, o máximo de
significações para cada conceito abordado, o que não possui muita
congruência com as formas tradicionais de organização das
atividades escolares. Tal estrutura apresenta-se ainda “dissonante”
com a formação dos professores em geral, bem como os processos
de avaliação tradicionais, que não respondem à flexibilidade para a
diversificação demandada pela presente proposta.
Cabe ressaltar nesse ponto que a emergência de distintas
interpretações e representações para um mesmo conceito
propiciando uma re-significação coletiva do conceito referido, de
264
FACETAS DO DIAMANTE
maneira análoga à história dos seis cegos, depende fortemente do
grau de afetividade do grupo. Tal afetividade relaciona-se à busca
por parte do professor de transformar o agrupamento em grupo, ou
seja, como coordenador da classe, ele deveria estabelecer
organicidade no grupo.
Tais reflexões concedem ao professor um papel de
articulador de índoles e de precariedades, no sentido de a partir da
percepção das tendências e dificuldades cognitivo/afetivas no aluno,
colocá-lo dinâmica, equilibrada e respectivamente em atividades nas
quais tal aluno aflore e em outras onde ele deva esforçar-se para
vencer suas dificuldades. Cabe ressaltar nesse ponto como tais
formas de organizações de trabalhos escolares permitem ao
professor oferecer solo fértil para que os alunos desenvolvam
capacidades reconhecidamente promissoras ou mesmo latentes, bem
como solos mais áridos para que eles transmutem suas condições
desvendando fertilidade ali.
Por exemplo, um aluno com boa capacidade musical ou
interpessoal e com dificuldades na competência lógico/matemática
poderia desvendar um canal de assimilação para esta última em
atividades tais como a experiência do monocórdio em contexto de
grupo, que impregnada de carga histórica intima a utilização de
competências lógico/matemáticas simultaneamente a de aptidões
musicais, nas quais o referido possui boa familiaridade. Tal
dinâmica estaria diretamente ligada à ideia de equilibrar seu
espectro intelectual bem como a tensão desenvolvimento das
competências intelectuais versus realização dos conteúdos
escolares, fazendo uso das tendências promissoras como apoio para
o desenvolvimento daquelas em que o aluno possui maior
dificuldade.
As oficinas incluem ainda discussões concernentes aos
contextos históricos dentro dos quais os significados apresentados
foram construídos, bem como resoluções de diversos problemas
matemáticos decorrentes das dúvidas levantadas a partir dos
experimentos reproduzidos, da explicação de conceitos musicais
envolvidos e atividades em geral. Assim como conceitos
matemático-musicais, diferentes circunstâncias históricas são
265
FACETAS DO DIAMANTE
reproduzidas direta ou analogicamente fazendo uso de distintas
competências intelectuais. Tal dinâmica convida o participante a
reinterpretar os conceitos envolvidos e sugerir novas atividades para
a situação em questão, utilizando outras competências intelectuais.
As analogias presentes na oficina direta ou subliminarmente,
verbal ou visualmente, associadas ao ambiente afetivo desenvolvido,
propiciam a emergência de novas analogias e, sob uma ótica mais
ampla, o hábito de criação de analogias. Essa retroalimentação
enriquece significativamente a dinâmica das atividades, que
renovando-se e incorporando novas formas a cada realização,
concede à oficina um caráter vivo e autônomo, aumentando, do
ponto de vista de rede, a “densidade” de conexões e, portanto,
interpretações, aos significados a cada momento. O uso da história
situa-se dentro da diversidade referida como mais um recurso para
contribuir com elementos na configuração de gestalts mencionada
nos comentários concernentes às oficinas.
As oficinas procuram reproduzir inquietações
científicas/artísticas da relação matemática/música na história com
o intuito de alimentar certo sentimento sobre a construção de
conceitos pertinentes, estabelecendo uma nova dimensão entre o
objeto tratado e o sujeito. Procura-se dinamizar as oficinas de tal
maneira que os participantes incorporem, por exemplo, a “persona”
de Pitágoras e a pergunta do pensador grego referente a associação
entre intervalos consonantes e razão de números simples emerja
naturalmente. Propiciando repercussões na construção da identidade,
tais estratégias favorecem ainda o desenvolvimento da afetividade
em nível intrapessoal. Atividades com essa natureza catalisam o
sentimento no sentido de Ricoeur, uma vez que aproximam o
conhecimento do interlocutor que se apropria naturalmente dele
quando percebe analogias da experiência objetiva com o âmbito
intrapessoal e subjetivo.
Nesse sentido, as oficinas ou qualquer operacionalização
desta proposta teórica procuram fazer com que seus participantes
mergulhem dentro de sua história, de maneira análoga àqueles
filmes em que nos transpomos para os personagens sentindo suas
emoções em diferentes níveis. A busca da empatia entre diferentes
266
FACETAS DO DIAMANTE
dimensões — participante/participante, participante/conceito, etc.
— torna-se um objetivo constante de atividades escolares
congruentes com a proposta teórica deste trabalho, o que se traduz
na integração sujeito/objeto ou mesmo na transferência de
experiências relativas a distintas competências intelectuais para o
âmbito intrapessoal.
À luz da concepção deste trabalho, as atividades escolares
procuram fornecer um ambiente propício à associação entre aquilo
que se constrói objetivamente e distintas situações usualmente
pertencentes a outros ambientes intelectuais, nos quais subjazam
esquemas similares. Conectadas analogicamente, tais situações
transferem, por sua vez, elementos para o ambiente intrapessoal,
promovendo integração entre sujeito e objeto e contribuindo para o
desenvolvimento da consciência a partir da ciência, bem como
construção da identidade individual e coletiva. Nesse sentido, o
conteúdo transforma-se num veículo para concretização desta
dinâmica, voltada principalmente para o desenvolvimento de um
equilíbrio dinâmico entre as distintas competências intelectuais do
aluno.
Talvez aqui encontre-se uma característica bastante
marcante da diferenciação entre trabalhos escolares tradicionais e
aqueles decorrentes da organização teórica defendida por este
trabalho, em que o conteúdo situa-se a serviço do desenvolvimento
inter e intrapessoal do aluno e o professor procura conciliar a
necessidade intelectual do aluno — em termos de desenvolver as
competências menos promissoras — na maneira de construir o
conteúdo.
As concepções teóricas apresentadas nesse trabalho
repercutem ainda no processo de avaliação. O leque de
manifestações possibilitado pela diversidade de trabalhos escolares,
bem como pela organicidade do grupo fornece um espectro mais
largo, comparado com a avaliação tradicional, das tendências e
dificuldades intelectuais do aluno. A participação em atividades de
distintas naturezas durante uma oficina faz com que revele em
algum momento uma competência intelectual pouco ou muito
desenvolvida.
267
FACETAS DO DIAMANTE
Por exemplo, na atividade das palmas concernente a relação
entre números simples na concepção de consonância de Galileu —
que traz para o âmbito corporal e mais concreto a ideia abstrata de
consonância de Galileu como coincidência de pulsações — um
participante de um grupo pode ter entendido teoricamente que deve
bater três palmas em uma unidade de tempo e depois duas, enquanto
o outro grupo realiza o contrário. No entanto, na hora de fazer a
atividade, o corpo não mente e não responde, descoordenando-se e
invertendo o número de palmas. Em outra circunstância, por
exemplo, relativa à ideia de consonância, em que um participante
deve entoar uma nota enquanto o colega canta uma quinta acima, a
pessoa pode ter entendido a ideia, mas não conseguir emitir o
intervalo, ou mesmo conseguir cantar individualmente cada nota de
forma melódica, mas não fazê-lo simultaneamente com o colega.
Tais expressões revelam distintas naturezas de dificuldades
em diferentes níveis, ou mesmo capacidade de compreender
teoricamente de maneira clara, mas dificuldade de expressar o
mesmo significado segundo uma competência mais prática. Essas
manifestações mostram-se representativas da necessidade de
diversificação, fazendo uso das múltiplas representações, no ponto
de vista sobre um mesmo significado como um hábito na construção
de significados na organização de trabalhos escolares, propiciando
uma re-significação constante sobre os conceitos abordados em sala
de aula e, portanto, um enredamento de conhecimento dinâmico.
Tal dinâmica permite ao professor aprimorar a cada
momento o desempenho coletivo ao articular índoles e dificuldades.
Uma situação semelhante ocorre no canto coral em que a mudança
de posição de uma pessoa, por questões de empatia de distintas
naturezas, pode modificar significativamente a qualidade vocal,
bem como tornar a experiência individual de cada participante muito
mais profícua. Nesse sentido, a diversidade de atividades numa
organização de trabalhos tais como os da oficina de matemática e
música mencionada possibilita a configuração de um perfil mais
abrangente dos participantes e, portanto, um aprimoramento mais
efetivo da qualidade de sentimento, na acepção de Ricouer, na
dinâmica de ensino/aprendizagem.
268
FACETAS DO DIAMANTE
Cabe ressaltar que a oficina, assim como qualquer forma
nova de organização de trabalhos escolares, gera certa resistência,
manifestada, por exemplo, pela dificuldade e falta de flexibilidade
de passar de uma atividade para outra, especialmente quando estas
possuem naturezas bem distintas. No dizer de Caetano Veloso em
sua música Sampa, À mente apavora o que ainda não é mesmo velho.
A construção de conteúdos de forma não discursiva e pouco precisa,
através de configuração de gestalts, dando margem portanto a
diferentes interpretações, também gera a princípio certa dificuldade,
assim como a dificuldade de criar em cima da interface matemática/
música por tratar-se de uma área interdisciplinar envolvendo dois
assuntos usualmente não dominados simultaneamente. Um ponto
importante do trabalho concerne à adaptação a novas formas de
organização de atividades escolares, por exemplo, através das
oficinas mencionadas, compatíveis com as concepções defendidas
no presente trabalho.
As oficinas mostram-se insistentes na postura anterior,
reproduzindo arquetipicamente a cada momento a história dos seis
cegos com o intuito de desenvolver nos participantes o hábito e
desejo de querer compreender um conceito, segundo diferentes
visões. Possível de concretizar em organizações escolares tais como
as oficinas mencionadas, tal “varredura” passa inevitavelmente por
terrenos mais afetivos, onde se sente, no sentido de Ricouer, o
conceito em questão, dando portanto sentido.
Encontramo-nos agora no ponto focal deste trabalho. As
oficinas utilizam distintos recursos tais como atividades que
induzem a pensar com o corpo inteiro, dinâmicas envolvendo
diferentes competências intelectuais, etc., com o intuito tácito de
propiciar e resgatar o hábito de pensar analogicamente a serviço de
sentir o conhecimento. Procurando fazer brilhar os olhos dos
participantes, as oficinas e, sob uma ótica mais ampla, este trabalho
objetivam ressaltar a importância do processo de sensibilização nos
trabalhos escolares, bem como na formação pessoal e coletiva,
Ao propiciar ambientes afetivos, oficinas bem como outras
formas de organização de trabalhos escolares congruentes com a
concepção teórica defendida neste trabalho deveriam aproximar as
269
FACETAS DO DIAMANTE
distintas circunstâncias apresentadas do âmbito intrapessoal
integrando ciência e consciência, sujeito e objeto, bem como
sintonizando os participantes entre si. Ao estabelecer empatia e
ressonância entre os conceitos apresentados e as realidades afetivas
dos participantes, fazendo uso criterioso do pensamento analógico
na construção e reconstrução de significados, as atividades escolares
estariam propiciando a assimilação dos significados, a
“assemelhação” aos conceitos e um trabalho de sensibilização, fator
imprescindível na construção do sentimento individual e coletivo.
Tal observação me parece fornecer a recíproca do dizer de
Fernando Pessoa (1987, p. 222)
Quando sinto, penso
ao mesmo tempo que ressoa sutilmente em Fernando Pessoa (1987,
p. 507):
O meu sentimento é cinza
Da minha imaginação
E eu deixo cair a cinza
No cinzeiro da razão
NOTAS
1. A expressão Imaginário Coletivo é utilizada no contexto da tese como uma
extensão da ideia de Inteligência Coletiva, de Lévy, no âmbito da imaginação.
2. A palavra afeto nesse contexto possui a acepção de Ricoeur (1992).
3. A princípio, o temperamento consiste em estabelecer uma sequência de
frações ou frequências que produzem uma determinada escala.
Particularmente, estaremos preocupados com a escala diatônica — por
exemplo, a clássica sequência dó-ré-mi-fá-sol-lá-si. Vamos assumir nessa
leitura a nomenclatura Temperamento com letra maiúscula equivalente a
temperamento igual que, melhor abordado posteriormente, consiste em
estabelecer uma sequência de frações ou frequências dispostas em progressão
geométrica.
4. Utiliza-se o termo ecologia afetiva com o intuito de estender o conceito de
ecologia cognitiva (Lévy, 1993).
5. Produzido pela fração da corda correspondente a 2/3.
6. Assim como nos contextos posteriores desta tese, utiliza-se aqui os nomes
atuais das notas no ocidente somente para que tenhamos uma referência de
comparação.
270
FACETAS DO DIAMANTE
7. Esta suposição justifica-se sonoramente pelo fato de que quando uma mulher
ou uma criança acompanha um homem cantando, o faz por diferença de oitava,
o que nos leva a considerar como equivalentes notas que difiram por um
número inteiro de oitavas. Mais adiante, Descartes justifica cognitivamente
este fato.
8. O termo classe de equivalência refere-se a um conceito matemático definido
a partir de uma relação de equivalência. Uma relação R desta natureza deve
ser reflexiva (aRa), simétrica (aRb se e somente se bRa) e transitiva (aRb e
bRc então aRc). Nesse contexto, dois elementos pertencem a uma mesma
classe de equivalência se estiverem entretecidos segundo a relação de
equivalência em questão. Tomando a relação de equivalência “=” sobre os
números reais, esta define classes de equivalência onde por exemplo 3/2 e 6/4
pertencem a uma mesma classe. No caso em questão, a relação de equivalência
sobre o universo das notas é a seguinte: Duas notas são equivalentes se
diferirem em intervalo por um número inteiro de oitavas. Podemos observar
que a relação estabelecida satisfaz as propriedades referidas definindo como
classes de equivalência conjuntos que possuem mesmas notas a menos de um
número inteiro de oitavas.
9. Embora na época em questão não houvesse ainda o termo frequência,
utilizamo-lo aqui com o intuito de simplificar o discurso. A relação entre
frequência e comprimento torna-se evidente pela fórmula de Mersenne. Padre,
matemático, filósofo e teórico francês, Mersenne (1588-1648) auxiliado por
Galileu, pelo cálculo de Taylor e Lagrange demonstra variar a frequência do
som emitido por ondas transversais numa corda na razão direta da raiz
quadrada da tensão da corda, e na razão inversa da raiz quadrada da
densidade linear, de acordo com a fórmula a seguir, onde f é a frequência
correspondente a cada tom:
𝑝 𝑝
𝑣=√ f = k/2L√ ,
𝜌 𝜌
onde v é a velocidade de propagação, p a tensão na corda e 𝜌 a densidade linear
da corda.
Mersenne foi o primeiro teórico a basear o estudo de harmonia no fenômeno
da ressonância, sendo ainda pioneiro na medida da velocidade do som.
Baseado em experiências práticas e observações, este teórico francês realizou
descobertas importantes a respeito da natureza e comportamento do som, que
vieram a tornar-se o fundamento da ciência acústica.
10. Graus consecutivos de uma escala.
11. A expressão boa refere-se à sensibilidade auditiva.
12. Instabilidade.
13. De maneira simplificada, O princípio da incerteza de Heisenberg afirma a
impossibilidade de determinarmos simultaneamente com precisão a posição e
instante de observação de um elétron.
271
FACETAS DO DIAMANTE
14. Este é um bom indicador daquilo que Hariki chama “um mecanismo de defesa
da Natureza contra a ordem”.
15. Em analogia com a coma pitagórica.
16. Comentado no início do capítulo como uma de suas metas, o termo
Temperamento com letra maiúscula refere-se ao temperamento em que há
simetria total, também chamado temperamento igual.
17. Consonâncias podem ser avaliadas por distintos critérios. Entretanto, um
estudo profundo desse assunto não é a proposta deste trabalho.
18. O sopro divino consiste em formar duas fileiras de pessoas cada qual com um
fio esticado entre as pontas das filas contendo um cone de papel que deve ser
assoprado pelas pessoas dispostas ao longo da fila desde uma ponta até a outra.
O grupo vencedor é aquele que primeiro alcançar a ponta.
19. Como no sopro divino, formam-se duas fileiras. Uma pessoa de fora faz um
gesto e as pessoas das fileiras devem repetir o gesto, porém somente após o
colega ao lado já tiver feito. Ganha o grupo que primeiro alcançar a ponta.
20. Com a mesma configuração anterior, a última pessoa de cada fileira recebe
uma palavra que deve ser enviada à primeira somente por via táctil e usando
das costas do companheiro subsequente. O grupo vencedor é aquele que
conseguir fazer a mensagem chegar primeiro na frente.
21. Utiliza-se as expressões “enviar mensagem” e “mandar encomenda”
especialmente em oficinas realizadas com crianças com intuito de aproximar
a linguagem da oficina daquela utilizada por elas.
22. Tal metáfora concerne à história de que seis cegos são solicitados a descrever
um elefante fazendo uso somente da sensibilidade táctil. O que apalpa as
costas diz que o elefante é como um morro, o que segura a cauda fala que o
elefante é como uma corrente, etc.

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274
FACETAS DO DIAMANTE
275
FACETAS DO DIAMANTE

A INTERFACE ENTRE
HISTÓRIA E MATEMÁTICA:
UMA VISÃO HISTÓRICO-PEDAGÓGICA

Ubiratan D'Ambrosio

O QUE É HISTÓRIA E O QUE É MATEMÁTICA?

Por que é importante a História da Matemática para o


professor de Matemática?
Ninguém contestará que o professor de matemática deve ter
conhecimento de sua disciplina. Mas a transmissão desse
conhecimento através do ensino depende de sua compreensão de
como esse conhecimento se originou, de quais as principais
motivações para o seu desenvolvimento e quais as razões de sua
presença nos currículos escolares. Destacar esses fatos é um dos
principais objetivos da História da Matemática.
Vou começar com uma tentativa de resposta às duas questões
acima. Elas conduzem a inúmeras reflexões, mas embora não
possam ser respondidas com uma simples definição, vamos ver o
que se diz de História e de Matemática.
O importante Novo Aurélio — que deveria ser um livro de
cabeceira de todo professor — dá 17 acepções para o verbete
história. As 2. 9. e 10. se prestam melhor a este trabalho. Sintetizo
dizendo que história é a narrativa de fatos, datas e nomes associados
à geração, à organização intelectual e social e à difusão do
conhecimento — no nosso caso conhecimento matemático —
através das várias culturas ao longo da evolução da humanidade.
276
FACETAS DO DIAMANTE
O próprio Aurélio nos dá 3 acepções para matemática. A
mais interessante diz “1. Ciência que investiga relações entre
entidades definidas abstrata e logicamente”. Curioso que pouco
abaixo o Aurélio define matematismo como “Doutrina segundo a
qual tudo acontece conforme às leis matemáticas.” Eu não conhecia
essa palavra. Sem comentários!
Nas conceituações acima, os estudos de História dependem
fundamentalmente do reconhecimento de fatos, de datas e de nomes
e de interpretação ligados ao objeto de nosso interesse, isto é, do
corpo de conhecimentos em questão. Esse reconhecimento depende
de uma definição do objeto de nosso interesse. No nosso caso
específico, a História da Matemática depende do que se entende por
Matemática.
Uma vez identificados os objetos do estudo, a relação de
fatos, datas e nomes depende de registros, que podem ser de natureza
muito diversa: memórias, práticas, monumentos e artefatos, escritos
e documentos. Essas são as chamadas fontes históricas.
A interpretação das chamadas fontes históricas depende
muito de uma ideologia e de uma metodologia de análise dessas
fontes. O conjunto dessas metodologias, não só na análise, mas
também na identificação das fontes, é o que se chama historiografia.
Obviamente, a historiografia reflete uma ideologia e depende de
uma filosofia de suporte, no caso da filosofia da matemática.l

PARA QUEM E PARA QUE SERVE A HISTÓRIA?

O historiador Bernard Lewis escreveu um livro muito


interessante com o título História. Relembrada, Recuperada,
Inventada.2 O título em si sugere uma resposta à primeira pergunta.
A história tem servido a grupos sociais, desde família, tribos,
comunidades até nações e civilizações, das mais diversas maneiras,
mas sobretudo como afirmação de identidade. Não vou me deter
nisso, mas bastaria atentar para o tratamento dado às rebeliões de
escravos no período colonial. Há poucos anos lembrávamos os 300
277
FACETAS DO DIAMANTE
anos da destruição do Quilombo dos Palmares e ainda estamos
“comemorando” 100 anos da destruição do Arraial de Canudos.
Ambos são episódios que mostram a vitalidade de povos procurando
um outro modelo de sociedade e que foram destruídos pela ordem
dominante. O silêncio sobre esses episódios nos currículos escolares
e as distorções nas comemorações evidenciam as manipulações
desses fatos nos estudos e pesquisas da história colonial do Brasil.
Em particular, a História da Matemática tem sido muito
afetada por isso. É interessante notar o que o historiador soviético
Konstantín Ribnikov diz no capítulo introdutório de seu livro3:
No estrangeiro [está focalizado na então União Soviética]
se dedica grande atenção à história das matemáticas. A
ela está dedicado um conjunto de livros e artigos. Nem
tudo neles é, porém, fidedigno. As vezes os autores de
obras sobre história da ciência subordinam seu trabalho
a fins distantes da objetividade e do caráter científico.
E depois de vários parágrafos de crítica à orientação idealista e
reacionária desses livros e artigos, Ribnikov conclui
A luta entre as forças progressistas e reacionárias na
ciência matemática, que é uma das formas da luta de
classes, se revela de forma mais intensa nas questões
históricas e filosóficas das matemáticas. ... Ela [a história
da ciência] deve estar bem organizada como parte da
educação ideológica do estudantado e dos trabalhadores
científicos.
A última frase da citação reforça minha afirmação de não
haver como escapar do caráter ideológico da História da Matemática,
assim como de reconhecer que a ação educativa é uma ação política.

E SOBRE A MATEMÁTICA?

A Matemática tem, como qualquer outra forma de


conhecimento, a sua dimensão política e não se pode negar que seu
progresso tem tudo a ver com o contexto social, econômico, político
278
FACETAS DO DIAMANTE
e ideológico. Isso é muitas vezes ignorado e mesmo negado. É muito
interessante ilustrar essa tendência com referência a Isaac Newton,
sem dúvida a figura maior na modernização da matemática a partir
do século XVIII.
J. F. Montucla, autor da primeira grande história da
matemática, se refere a Newton como alienado. Órfão desde criança,
Newton foi mandado para a escola em Grantham. Quando tinha 14
anos a mãe o chamou para cuidar dos assuntos da família, mas ele
se mostra “tão distante deste tipo de ocupação e tão dedicado ao
estudo que ele foi reenviado a Grantham, de onde ele passou ao
Trinity College em Cambridge”4. Essencialmente, a mesma história
é repetida em 1893, por W. W. Rouse Ball, ao dizer que Newton
“tinha um mínimo interesse pela sociedade ou por qualquer
empreendimento que não fosse ciência e matemática”5. Interessante
que mesmo Florian Cajori, o principal tradutor dos Principia, não
faz qualquer referência ao momento político e econômica do época
de Newton no seu excelente livro de História da Matemática6.
No Segundo Congresso Internacional de História da Ciência
e da Tecnologia, realizado em Londres em 1931, compareceu uma
delegação soviética de oito membros. Dentre esses estava o diretor
do Instituto de Física de Moscou, Boris Hessen, que apresentou um
trabalho sobre “As Raízes Socioeconômicas da Mecânica de
Newton”. Esse trabalho é considerado um marco na historiografia
da ciência. Já na introdução Hessen abre novas perspectivas para a
pesquisa em História da Ciência7:
O que colocou Newton como uma figura de
redirecionamento do desenvolvimento e permitiu a ele
indicar novas direções para seu avanço? Onde estão as
fontes da sua criatividade? Que fatores determinaram o
conteúdo e a direção de seus trabalhos? ... A aparição de
Newton se considera, [de acordo com a historiografia
corrente], como um dom da divina providência, e o
poderoso impulso que suas obras deram ao
desenvolvimento da ciência e da técnica se interpreta
como uma consequência de seus geniais dotes
pessoais. ... Neste trabalho opomos a essas opiniões um
ponto de vista radicalmente diferente quanto a Newton e
279
FACETAS DO DIAMANTE
sua obra. Nossa tarefa consistirá em utilizar o método do
materialismo dialético e a concepção de processo
histórico criada por Marx para analisar a gênese e o
desenvolvimento da obra de Newton, em relação com a
época na qual ele viveu e trabalhou.
A simples referência a Marx fez com que essa historiografia,
por muitos chamada de externalista, fosse rejeitada em muitos
círculos acadêmicos. A História da Matemática foi particularmente
afetada por isso.8
Os reflexos dessa reação na Educação Matemática são
evidentes e dificultam a contextualização. Com isso, muitos
orientam o ensino destacando o fazer matemático como um ato de
gênio, reservado a poucos, que como Newton, são vistos como
privilegiados pelo toque divino. O resultado disso é uma educação
de reprodução, formando indivíduos subordinados, passivos e
acríticos.
A alternativa que proponho é orientar o currículo
matemático para a criatividade, para a curiosidade e para crítica e
questionamento permanentes, contribuindo para a formação de um
cidadão na sua plenitude e não para ser um instrumento da interesse,
da vontade e das necessidades das classes dominantes. A invenção
matemática é acessível a todo indivíduo e a importância dessa
invenção depende do contexto social, político, econômico e
ideológico.
É ilusório pensar, como proclamam os teóricos conteúdistas,
se é que ainda os há, que Matemática é o instrumento de acesso
social e econômico. Dificilmente um pobre sai de sua condição
porque foi bom aluno de Matemática. Os fatores de iniquidade e
injustiça social são tantos que se sair bem em Matemática pouco tem
a ver com a luta social de cada indivíduo. Não negamos que
Matemática tem a sua importância, mas desde que devidamente
contextualizada. E pode ser instrumental para o acesso social. Por
outro lado, ela também pode ser apassivante e levar indivíduos a
perderam sua capacidade de crítica, algumas vezes tornando-os
alienados. Por exemplo, o método Kumon e mesmo o modelo
tradicional da escola brasileira, que consiste em ensinar uma
280
FACETAS DO DIAMANTE
quantidade de práticas e regras que depois são cobradas em exames
e testes, tem esse resultado perverso.
Mas um mito em torno da Matemática e de seu ensino faz
com que isso seja deixado de lado nas críticas aos modelos
educacionais. É interessante notar — e o porque desse fato merece
estudos — que a abertura educacional tão fundamental proposta por
Paulo Freire, e posteriormente por Michael Apple, Henry Giroux e
outros, até recentemente não encontrou eco na Educação
Matemática. Marilyn Frankenstein foi uma das primeiras
educadoras matemáticas a destacar a importância das ideias de
Paulo Freire para a Educação Matemática.9 E ao convidar Paulo
Freire para dar uma conferência plenária no 8o Congresso
Internacional de Educação Matemática/ICME 8, com título
“Aspectos sócio-filosóficos da Educação Matemática”, os
educadores matemáticos revelaram uma mudança radical de atitude.
Bom sinal.10
Na década de setenta iniciou-se, a partir do estudo do
conhecimento matemática de populações indígenas, uma área de
pesquisa denominada Etnomatemática.11 O Programa
Etnomatemática, cujo objetivo maior é analisar as raízes
socioculturais do conhecimento matemático, revela uma grande
preocupação com a dimensão política ao estudar história, filosofia e
suas implicações pedagógicas. As pesquisas consistem
essencialmente numa investigação holística da geração [cognição],
organização intelectual [epistemologia] e social [história] e difusão
[educação] do conhecimento matemático, particularmente em
culturas consideradas marginais.12
De certo modo, esse programa vem de encontro às propostas
de Hans Freudenthal para um programa de História da Matemática
voltado à educação. Ele propõe essencialmente cinco questões
norteadoras:
− Por que isso não foi descoberto antes?
− A partir de que problemas esse tema se desenvolveu?
− Quais eram as forças que o impulsionavam?
− Por que foi essa descoberta tão importante?
281
FACETAS DO DIAMANTE
− Por que foi ela praticamente não notada pelos seus
contemporâneos (não matemáticas) e continua assim até hoje?
É claro que ao responder a essas perguntas estaremos
entendendo a essência dos tópicos que estão no currículo. Estaremos
examinando as razões da geração desse conhecimento, o que na
sociedade motivou seu aparecimento e sua inclusão nos sistemas
escolares.
É muito importante destacar que Hans Freudenthal foi um
dos mais importantes do século. Tem resultados fundamentais sobre
Topologia. Num certo momento de sua vida, já passados seus
sessenta anos, dedicou-se intensamente à Educação Matemática,
tendo criado o Instituto de Pesquisas em Didática da Matemática na
Universidade de Utrecht, na Holanda, hoje chamado “Instituto
Freudenthal”.
Na opinião de Freudenthal, o programa formulado nas cinco
questões acima, reconhece que “a história da matemática deveria ser
conhecimento integrado, mais guiado pela história que pela
matemática, analisando mais os processos que os produtos”. Um
fato isolado, descontextualizado, geralmente dá uma impressão falsa.
Freudenthal também alerta para o perigo de se fazer uma
história anedotária, quando diz que “notas históricas em livros
escolares muitas vezes são pequenas histórias, isoladas, muitas
vezes enganadoras e mais entretenimentos que verdades”13. Porém
é possível fazer uma história da matemática interessante e atrativa,
evitando todas essas distorções. Claro, contextualizar não quer dizer
fazer um texto menos rigoroso, impreciso e “aliviado” de uma
matemática correta.14
Estamos passando na Etnomatemática por uma situação
semelhante à apontada por Freudenthal. Muitas vezes a matemática
de outras culturas são apresentadas como curiosidades, jogos,
folclore, e completamente descontextualizadas de sua inserção
cultural.
Naturalmente isso tem tudo a ver com o momento social e
político.15 Particularmente importante sob este aspecto é a posição
282
FACETAS DO DIAMANTE
de Gelsa Knijnik ao estudar a educação matemática no contexto do
Movimento dos Sem-Terra.16
Essencialmente, Gelsa Knijnik trabalhou num programa
destinado a ajudar os assentados a construir seu sistema escolar. Os
professores dos assentamentos em geral não têm formação
específica e devem passar por um programa de capacitação.
Naturalmente, o professor que vai fazer essa capacitação deve ter
sensibilidade para avaliar o nível de conhecimento desses
professores e criar um programa adequado, que aproveite o que
esses professores já conhecem e reconheça suas experiências. Gelsa
descreve sua estratégia para essa ação.

PARA QUEM E PARA QUE SERVE


A HISTÓRIA DA MATEMÁTICA?

Para quem? Para alunos, professores, pais e público em


geral. Para que? Algumas das finalidades principais parecem-me:
1. para situar a Matemática como uma manifestação cultural de
todos os povos em todos os tempos, como a linguagem, os
costumes, os valores, as crenças e os hábitos, e como tal
diversificada nas suas origens e na sua evolução;
2. para mostrar que a Matemática que se estuda nas escolas é uma
das muitas formas de Matemática desenvolvidas pela
humanidade;
3. para destacar que essa Matemática teve sua origem nas culturas
da antiguidade mediterrânea e se desenvolveu ao longo da Idade
Média e somente a partir do século XVII se organizou como um
corpo de conhecimentos, com um estilo próprio;
4. para saber que desde então a Matemática foi incorporada aos
sistemas escolares das nações colonizadas, se tornou
indispensável em todo o mundo em consequência do
desenvolvimento científico, tecnológico e econômico, e avaliar
as consequências socioculturais dessa incorporação.
283
FACETAS DO DIAMANTE
Os pontos 1, 2, 3, e 4 constituem a essência de um programa
de estudos, poderíamos mesmo dizer de um currículo, de História
da Matemática.
Vou dar alguma indicação de como proponho abordar esses
temas.

MATEMÁTICA COMO UMA MANIFESTAÇÃO CULTURAL

Esse é essencialmente o grande motivador da


Etnomatemática e há inúmeros estudos sobre manifestações
matemáticas nas culturas mais diversas.17
Que quer dizer manifestações matemáticas? É muito mais
que apenas manipular notações e operações aritméticas, ou lidar
com a álgebra e calcular áreas e volumes, mas principalmente lidar
em geral com relações e comparações quantitativas e com as formas
espaciais do mundo real, e fazer classificações e inferências. Assim,
encontramos matemática nos trabalhos artesanais, nas
manifestações artísticas e nas práticas comerciais e industriais.
Recuperar e incorporar isso à nossa ação pedagógica é um dos
principais objetivos do Programa Etnomatemática.18
Como fazer isso? As técnicas etnográficas devem ser
conhecidas e praticadas pelos professores de matemática. Procurar
aprender dos alunos a sua matemática — entendida principalmente
como maneiras de lidar com relações e comparações quantitativas e
com as formas espaciais do mundo real e de fazer classificações e
inferências. Infelizmente os professores passam demasiado tempo
tentando ensinar o que sabem, que é muitas vezes desinteressante e
obsoleto, para não dizer chato e inútil, e pouco tempo ouvindo e
aprendendo dos alunos.
284
FACETAS DO DIAMANTE
A MATEMÁTICA DA ESCOLA É APENAS
UMA DAS MUITAS MATEMÁTICAS

QUE SE ENCONTRAM PELAS DIVERSAS CULTURAS

É importante mostrar a aritmética não apenas como a


manipulação de números e de operações e a geometria não feita
apenas de figuras e de formas perfeitas, sem cores. Pode-se dar como
exemplo as decorações dos índios brasileiros, as diversas formas de
se construir papagaios, comparar as dimensões das bandeiras de
vários países, e conhecer e comparar medidas como as que se dão
nas feiras: litro de arroz, bacia de legumes, maço de cebolinha.19
Tudo isso representa medidas usuais, praticadas e comuns no dia a
dia do povo, e que respondem a uma estrutura matemática rigorosa,
entendido um rigor adequado para aquelas práticas.
Isto requer que o professor se apoie em uma literatura,
considerada de curiosidades ou paradidáticas, contendo exemplos de
matemáticas de outras culturas.20
A incorporação disto tudo na história é um reflexo da
conceituação de Etnomatemática. Representa uma linha
historiográfica por muitos denominada “história que vem de baixo”
ou “história feita pelo povo”. Se esta postura teórica vem sendo
adotada na História Geral, porque deve a matemática ser excluída?
Todos hão de concordar que Matemática também é praticada
e feita pelo povo. Mas o que se vê é que o povo está, em geral,
amedrontado com a Matemática, julgando-a algo reservada aos
deuses ou aos gênios, que são homens próximos a deuses.21 Será que
a Matemática é inacessível ao homem comum e deve, portanto, estar
reservada a uns poucos?
Sugestão ao leitor: medite sobre essa pergunta. Se
responder sim, ache uma justificativa para a inclusão da
Matemática que constitui os atuais currículos em uma
educação para toda a população. Se responder não,
justifique como pode a população ser funcional com
cerca de 80% dos alunos sendo reprovados ou passando
285
FACETAS DO DIAMANTE
raspando (porque professores são tolerantes e os deixam
passar).
A conclusão costuma ser que a culpa é desses 80%
“incapazes” ou dos professores que tem má formação. Essa
conclusão é injusta e perversa. A partir dessa conclusão, falsa,
propõem-se provas modernizadas e aperfeiçoadas, dadas mês a mês
ou, mais cruelmente, no fim dos graus, os chamados “provões”. E
como os alunos vão mal — é inevitável, sempre irão mal — sugere-
se reciclagem para os professores. Não seria tempo de se perceber
que o problema está na matemática que constitui os currículos
escolares e não nos alunos e professores? Não ocorrerá a ninguém
“desconfiar” que essa Matemática talvez esteja excluindo cidadãos
de muito sucesso na vida e nas suas carreiras profissionais porque
ela é obsoleta, desinteressante e inútil?

QUESTÕES FILOSÓFICAS SOBRE O FAZER MATEMÁTICO

Embora muitos historiadores da matemática protestem


quando se fala em história “internalista” e história “externalista”,
não há como negar que essas continuam sendo as duas grandes
vertentes que identificamos em todas as discussões sobre a História
da Matemática. Os críticos dessa análise chamam-na de simplista.
Sintetizando, uma vertente vê o desenvolvimento da
Matemática Ocidental como a culminância de um racionalismo que
se originou nas civilizações da antiguidade mediterrânea e cujo
produto mais nobre é fruto da genialidade de certos indivíduos
privilegiados. Outra vertente vê a matemática com resultado da
busca de explicações e de maneiras de lidar com uma realidade
natural, planetária e cósmica, e com os mitos e as estruturas
socioeconômicas e culturais que daí resultam. Essas duas vertentes
têm como consequência posições que muitas vezes se radicalizam
na explicação do fazer matemático. Mais uma vez, não há como
negar duas grandes correntes, a formalista e a empirista, assim como
na teoria do conhecimento não há como escapar das duas grandes
correntes, o idealismo e o materialismo.
286
FACETAS DO DIAMANTE
História e a filosofia da matemática não se separam e somos
assim levados a refletir sobre a natureza do conhecimento
matemático. Comentando sobre as duas grandes vertentes
filosóficas sobre a natureza da Matemática, o platonismo/idealismo
e o realismo/ materialismo, o sociólogo Jim Holt comenta22
Enquanto a discórdia no sacerdócio matemático não é
novo — na década de 1920 os proponentes de várias
alternativas de platonismo estavam se perseguindo
mutuamente com toda a fúria dos primitivos líderes
heréticos Cristãos — o debate sobre o que é realmente a
matemática nunca foi tão confuso [como nos dias de
hoje].
Se quisermos usar um artifício gráfico, podemos propor as
seguintes relações entre conhecimento, história e matemática:
idealismo:materialismo :: internalismo : externalismo
:: formalismo : empirismo.
Esses são os grandes impasses epistemológicos que
dominam a filosofia moderna. E que não se resolvem com o modelo
de rigor conjuntista, com questões binárias, isto é, que admitem
somente duas respostas possíveis (sim ou não).
Uma variante do paradoxo do mentiroso: Todos os
habitantes de uma certa cidade são de um dos três tipos:
A: {sempre falam a verdade}, B: {tudo que dizem é
mentira}, C: {respondem aleatoriamente}. Além disso,
eles sempre caminham em três, um de cada tipo. Você
visita essa cidade e logo encontra três cidadãos
caminhando juntos. Será possível descobrir o tipo de
cada um fazendo apenas três perguntas binárias?
Uma proposta para se acabar com a atitude maniqueísta no
mundo moderno, tão típica de defensores ardorosos de uma corrente
filosófica — os fundamentalistas! — seria partir para um estilo fuzzy.
Mas isso não é aceito como uma proposta válida para a Matemática
acadêmico. São ideais conflitantes.
287
FACETAS DO DIAMANTE
A questão básica “o que é matemática?” nos conduz
naturalmente a uma outra equivalente, “o que significa criar em
matemática?”
Um projeto, intitulado “How Mathematicians Work” [Como
os matemáticos trabalham] foi conduzido, há cerca de cinco anos,
pelo IMA: Institute of Mathematics and its Applications, da
Inglaterra. A pesquisa foi baseada em algumas questões que são,
basicamente, as seguintes:
1. Somos capazes de medir criatividade matemática?
2. São os criativos matemáticos diferentes de outros criativos?
3. Que papéis tem verdade e erro nas práticas matemáticas?
4. A matemática é vista pelos que a praticam como uma técnica, uma
arte, ou algo sui generis?
5. Podem aspectos cognitivos e afetivos da matemática serem
ensinados ou são simplesmente aprendidos? E que são esses
aspectos?
6. Que assistência pode-se esperar na criação, aprendizado e
aplicações da matemática?
7. Por que alguém decide ser matemático?
8. A matemática é produzida individualmente ou socialmente?
9. As medidas dessa produção diferem de outras medidas de
produção? Como?
10. É possível aquilatar a qualidade dessa produção? Como?
Essas dez perguntas constituem, em si, um importante
projeto de pesquisa, que pode ser conduzido em diversos ambientes.
A análise dos resultados nos dá importante indicadores da percepção
de Matemática que tem os que a praticam.
Sobretudo a criatividade matemática é algo um tanto
misterioso quando comparado, por exemplo, com a música. Desde
a antiguidade, matemática e música tem andado juntas. Podemos
mencionar, por exemplo, os trabalhos dos Pitagóricos, de Boécio, de
Kepler, como representativos da ponte que liga matemática e música.
288
FACETAS DO DIAMANTE
Uma das melhores conceituações que conheço sobre o que é
Matemática e sobre criatividade está na entrevista que Ennio De
Giorgi, um dos grandes matemáticos do século, concedeu a Michelle
Emmer poucos meses antes de sua morte, em 1996. Nessa
entrevista23 De Giorgi diz “Matemática é a única ciência com a
capacidade de passar da observação de coisas visíveis à imaginação
de coisas não visíveis. Este é talvez o segredo da força da
matemática.” E mais adiante diz:
Eu penso que a origem da criatividade em todos os
campos é aquilo que eu chamo a capacidade ou
disposição de sonhar: imaginar mundos diferentes,
coisas diferentes, e procurar combiná-los na sua de
várias maneiras. A essa habilidade — muito semelhante
em todas as disciplinas — você deve acrescentar a
habilidade de comunicar esses sonhos sem ambiguidade,
o que requer conhecimento da linguagem e das regras
internas a cada disciplina.
Isso me traz à lembrança uma entrevista recente de Dorival
Caymmi. Ao comentar sobre um convite que lhe foi feito para
escrever um manual sobre a arte de compor, ele disse que sua
resposta havia sido
Não sei música, não aprendi música e, terceiro, não me
deixaram aprender música. E talvez um quarto. Fui
proibido de aprender música. Aí achei graça e achei que
estava certo. Fui proibido porque diziam “Se você
aprender música perde esse espontâneo do que você
cria”.
Eu vejo uma grande convergência entre o dizer de De Giorgi
e o de Caymmi? Como terá sido a criatividade matemática de
Ramanujan? Esse tema da criatividade matemática merece mais
estudos.
289
FACETAS DO DIAMANTE
O QUE SE PODE FAZER DE HISTÓRIA
NAS AULAS DE MATEMÁTICA?

Uma vertente pouco cultivada é a da História Ora.


Essencialmente, retratar, pelos seus próprios depoimentos, a vida e
obra de matemáticos brasileiros. Além da valorização e do
reconhecimento da contribuição de nossos conterrâneos à
Matemática e à sua difusão aqui no Brasil, esse trabalho servirá para
preservar a memória nacional, extremamente importante para os
historiadores do futuro. Um exemplo desse tipo de pesquisa é o
número de mais!, da Folha de São Paulo, quase inteiramente
dedicado à vida e à obra de Newton Carneiro Affonso da Costa.24
Nos países que foram berço de desenvolvimento matemático,
uma prática interessante tem sido “Excursões Matemáticas” de
cunho histórico. Por exemplo, visitas à casa onde nasceu Isaac
Newton, à universidade onde estudou. Outra atividade é o
levantamento de monumentos dedicados a um matemático célebre e
também a iconografia. No Brasil esse material é paupérrimo. Mas
há possibilidades. Por exemplo, uma excursão a Queluz, onde há um
pequeno museu de Malba Tahan, é muito interessante. Ou mesmo
visita para reconhecimento de obras a bibliotecas públicas e
privadas.
Mas há muita matemática feita por não matemáticos. Por
exemplo, Fermat muitas vezes é chamado “o Príncipe dos
Matemáticos amadores”.25 Mas também é claro que há muita
matemática implícita em obras não matemáticas, do dia-a-dia. Essa
é uma das grandes lições que tiramos da História da Matemática.
Muitas das grandes teorias matemáticas têm sua origem em práticas
cotidianas.
Sugestões para professores: Qualquer indivíduo,
durante todo o seu dia, calcula, mesmo sem se aperceber
disso, tempo e espaço, e traça planos de ação.26
Identificar essa Matemática do cotidiano é algo que
pode ser muito bem explorado pelos professores. É atual,
interessante e útil.
290
FACETAS DO DIAMANTE
Um outro exercício interessante, de natureza histórica, é
o levantamento de fatos matemáticos numa comunidade.
Desde o traçado da cidade (em alguns casos, as cidades
brasileiras foram planejadas) até a construção e
localização de monumentos. Os urbanistas, os arquitetos,
os políticos e empresários, todos fizeram um estudo
preliminar e um projeto para suas ações. Fizeram um
modelo ou um planejamento, sempre repousando sobre
uma análise matemática. Isto pode ser objeto de
interessantes pesquisas.
Uma outra sugestão também de caráter histórico:
escrever sobre professores secundários de matemática
que marcaram uma escola ou mesmo uma comunidade.
Se ainda vivos, entrevistá-los. Se já falecidos,
entrevistar parentes, amigos, ex-alunos. Tenho
orientado alunos fazendo monografias e dissertações
nessa direção. A memória de matemáticos, de
professores de matemática e de atividades matemáticas
brasileiras é muito importante e deveria ter prioridade
em cursos de História da Matemática. Dão excelentes e
importantes temas para monografias, dissertações e
teses, e mesmo temas para projetos de pesquisa para
docentes e pesquisadores.
Mas voltemos às reflexões sobre o ensino da História da
Matemática como ele é mais comumente entendida no mundo
acadêmico. Está claro que não será possível a um professor de
matemática explicar a origem histórica da matemática, mesmo que
se restrinja a alguma subárea específica. Essa é uma questão das
mais desafiadoras. Muitas vezes se apresenta a História da
Matemática no ensino como algo definitivo, insinuando “isso foi
assim”, o que pode ser falsificador. A História da Matemática no
ensino deve ser encarada sobretudo pelo seu valor de motivação para
a Matemática. Deve-se dar curiosidades, coisas interessantes e que
poderão motivar alguns alunos. Outros alunos não se interessarão.
Mas isso é natural. Alguns gostam de esporte, outros não gostam.
291
FACETAS DO DIAMANTE
Alguns gostam de música, outros não gostam. Alguns gostam de
camarão, outros não gostam. Com Matemática não é diferente.
Jamais deve-se dar a impressão, através de um desfilar de
nomes, datas, resultados, casos, fatos, que se está ensinando a
origem de resultados e teorias matemáticas. Sabe-se que as
necessidades e as ideias vão se organizando ao longo da história, em
tempos e lugares difíceis de serem localizados. Numa certa época,
as ideias começam a se organizar, a tomar corpo, e a serem
identificadas como isso ou aquilo. A partir daí entram para a
“história”. Mas não nasceram assim.
Outra maneira de se praticar história no ensino é fazer
acompanhar cada ponto do currículo tradicional por uma explanação
do contexto socioeconômico e cultural no qual aquela teoria ou
prática se criou, como e porque se desenvolveu. Isso é muito
frequente nos cursos de história da matemática.
Para se adotar essa prática, a formação do professor é
essencial. Nas boas licenciaturas há uma ou duas disciplinas de
História da Matemática. Mas nem todo professor teve um curso de
História da Matemática ou tem acesso a livros especializados. A
preparação que permite ao professor fazer uma abordagem
histórico-crítica exige um aprendizado permanente. Geralmente
vem como resultado de ele ter feito as disciplinas tradicionais dos
programas e de ter refletido sobre esses cursos, feito leituras e lido
curiosidade sobre os conteúdos tradicionais. Insisto na palavra sobre.
Não é necessário que ele conheça profundamente o tema para poder
falar sobre o tema. Mas é importante que ele esteja preparado para
dizer “Isso não sei” ou “Isso eu não consegui entender”. Um
professor que não for capaz de dizer isso para seus alunos será
extremamente limitado, amedrontado e as suas aulas serão muito
pobres e enganadoras.
O que seria uma preparação histórica básica, essencial, para
todos os professores de Matemática? Eu acho que o que se encontra
no Almanaque Abril 1995, pp.688-695 responde a essa pergunta. Ali
há uma listagem cronológica de fatos e indivíduos que é o essencial
na evolução da Matemática. O ideal, que é muito fácil de se
292
FACETAS DO DIAMANTE
conseguir, é acompanhar essa leitura com uma listagem cronológica
dos grandes eventos internacionais, sempre acompanhando o exame
dos fatos com a consulta a um Atlas — que o próprio almanaque
traz. Assim será possível localizar os lugares dos quais se está
falando e o contexto internacional quando se deu o fato
matemático.É interessante notar a forte concentração geográfica da
produção matemática em certos períodos da história e como essa
concentração se desloca.
Chamo a atenção para o fato que poucos professores
conhecerão tudo o que é mencionado nessa história sintética e
cronológica. Aparecerão nomes de indivíduos e referências a teorias
sobre as quais o professor nunca ouviu falar antes. Isso pode ser uma
motivação para que o professor tenha curiosidade de ver do que se
trata. Caso ele não tenho acesso a livros mais especializados, ele
pode consultar uma enciclopédia, que é uma excelente fonte de
informação. Ou pode, através da Internet, frequentar algumas das
inúmeras listas de discussão sobre a História da Matemática.
Também é muito interessante gastar um tempinho falando
sobre as pessoas que estamos estudando. Por exemplo, sempre
dando lugar e data de nascimento e de morte — se é que já morreu!
Há muito material acessível sobre isso. Uma enciclopédia
geralmente traz essas informações sobre os nomes mais importantes.
Também os livros correntes de história da matemática têm essas
informações. Em particular destaco os livros de Carl B. Boyer e de
Dirk Struik.27 O primeiro é longo, com muitos detalhes. O segundo
é, como diz o nome, conciso e tem uma visão social mais aguda que
o livro de Boyer.
Uma observação. Dirk Struik comemorou cem anos de
idade em setembro de 1994. Na sua festa de aniversário
havia três bolos, com velas “1”, “0” e “0”. O
aniversariante, com uma enorme dose de humor, disse
que o Corpo de Bombeiros não deu autorização para
acender 100 velas de uma vez! Mas o ponto culminante
foi uma conferência de uma hora pronunciada pelo
próprio homenageado. Incrível! Sem ler qualquer texto,
ele discorreu sobre “Matemáticos que conheci na minha
293
FACETAS DO DIAMANTE
vida”. O homem é a própria história! Dirk Struik visitou
ó Brasil em 1988 e pronunciou conferências na
UNICAMP e na USP. Aqui demonstrou interesse pelo
desenvolvimento científico do Brasil durante a
ocupação holandesa do Nordeste (1624-1664) e
publicou um trabalho sobre isso.28 Este é um bom
exemplo de prioridades de temas de estudos sobre
História. Há pouquíssimos estudos sobre a passagem
dos holandeses pelo Brasil e muito pouco sobre a
contribuição dessa passagem para as Ciências no Brasil.
Algumas importantes referências holandesas sobre a
História do Brasil são citadas por Struik, mas temos
poucos estudos brasileiros sobre o tema.
Mas voltemos a considerações sobre qual a medida adequada
para uma incorporação da História da Matemática na prática
pedagógica. Claro que o ideal é um estudo mais aprofundado do que
a simples enumeração de nomes, datas e lugares. Sobre cada tópico,
deve-se elaborar um pouco. É muito importante destacar aspectos
socioeconômicos e políticos na criação matemática, procurando
relacionar com o espírito da época, o qual se manifesta nas ciências
em geral, na filosofia, nas religiões, nas artes, nos costumes, na
sociedade como um todo. O livro de Dirk Struik, mencionado acima,
é bem equilibrado nesse aspecto.
Naturalmente, isso tudo, em especial o quanto pode se
aprofundar e o quão abrangente pode ser o professor, vai depender
de sua formação. Por isso recomenda-se que todos os cursos de
Licenciatura de Matemática ofereçam História da Matemática.
Lamentavelmente, essa recomendação é pouco seguida.
O importante dizer que não é necessário que o professor seja
um especialista para introduzir História da Matemática em seus
cursos. Se em algum tema o professor tem uma informação ou sabe
de uma curiosidade histórica, deve compartilhar com os alunos. Se
sobre outro tema ele não tem o que falar, não importa. Não é
necessário desenvolver um currículo, linear e organizado, de
História da Matemática. Basta colocar aqui e ali algumas reflexões.
Isto pode gerar muito interesse nas aulas de Matemática. E isso pode
294
FACETAS DO DIAMANTE
ser feito sem que o professor tenha se especializado em História da
Matemática.
Claro, o bom será o professor ter alguma formação em
História da Matemática e poder fazer uma apresentação mais
sistemática. Para isso ele deve procurar uma formação mais
especializada. Temos agora vários cursos de aperfeiçoamento e
especialização e mesmo pós-graduação strictu sensu em História da
Matemática.
Na dificuldade de se matricular em algum curso de pós-
graduação, essa formação pode ser obtida assistindo a congressos,
encontros, seminários e palestras e alguns vídeos que já são
disponíveis no Brasil. E naturalmente lendo os livros e revistas que
começam a ser publicados no Brasil.
É interessante notar que no Brasil, e o mesmo se dá em todo
o mundo, os cursos de História da Matemática vêm sendo
crescentemente procurados por jovens licenciandos e por
professores e outros profissionais na ativa.

IMPLICAÇÕES SOCIAIS E POLÍTICAS DA MATEMÁTICA

Uma ideia falsa que se desenvolveu e se romantizou é que


a Matemática é neutra, é pura ciência do espírito. Muitos até ficam
extasiados com frases como “A Matemática possui não apenas
verdade, mas suprema beleza — uma beleza fria e austera, como a
de uma escultura.” (Bertrand Russell, 1872-1970) e “o único fim da
ciência [matemática] é a honra do espírito humano” (Carl G.J.
Jacobi, 1804-51)29.
As artes, as ciências e a tecnologia, bem como as religiões, a
ética e o comportamento individual e social, se desenvolveram
desde a antiguidade na bacia do Mediterrâneo e se impuseram, a
partir do século XV, a todo o planeta, tornando-se um instrumento
fundamental do colonialismo e do imperialismo. Curioso que nem
língua, nem religião, nem costumes, nem música, nem culinária,
conseguiram se impor em todo o planeta. O que se vê em todas essas
295
FACETAS DO DIAMANTE
manifestações culturais é um sincretismo. Mas com relação à
Matemática desenvolveu-se uma ideia falsa e falsificadora que a
Matemática deve ser uma só, nas escolas e academias de todo o
mundo. Convido-os a pelo menos notar isso e a se perguntarem
“porque?”30
Matemática é uma técnica de explicar, de conhecer, de
representar, de lidar com os fatos da natureza e sociais.
Naturalmente tem sua beleza, tem sua pureza, tem seus valores; seus
critérios de verdade e de rigor. Mas isso também é uma verdade para
todas as demais manifestações culturais, bem como para todos os
artefatos e mentefatos [= constructos mentais]. Tudo obedece a
critérios de beleza, de rigor, de verdade. Porque privilegiar a
Matemática a esse respeito? A razão é que no modelo cultural que
vem da bacia mediterrânea, a Matemática se tornou fundamental.
Porque e quais as consequências disso tem sido o problema maior
da História e da Filosofia da Matemática ocidental.
Inegavelmente, hoje não se pode ser operacional no mundo
sem dominar Matemática, mesmo que não se reconheça no fazer os
componentes matemáticos. Por exemplo, a capacidade de se
encontrar um endereço, de se fazer uma chamada telefônica, de se
lidar com dinheiro, de se operar um aparelho de televisão e um
automóvel, e assim por diante, tem fortes componentes matemáticos.
Ninguém pode negar que o modelo de mundo que temos hoje
segue o modelo europeu, que se impôs a todo o planeta durante o
período colonial. Esse modelo é impregnado de matemática. A
urbanização, a comunicação, a produção, a tecnologia, a economia
e assim por diante, tudo tem matemática embutida.
A estreiteza dos sistemas educacionais, que são controlados
pela classe dominante, não permite reconhecer matemática nessas
manifestações e insiste em uma Matemática formalizada, bitoladora
e castradora, puro manejo de técnicas obsoletas e inúteis, e que está
a serviço dessas classes. Dizem que falar em classes dominantes é
jargão ultrapassado de esquerda ... mas o fato inegável é que elas
estão vivas e lutam para se manter e sobreviver. Essas classes
dominantes parecem ser insensíveis às iniquidades intoleráveis, ao
296
FACETAS DO DIAMANTE
aumento da pobreza e das violações da dignidade humana, e à
exploração do homem pelo homem, evidenciada pelo fato de alguns
continuarem a ter muito à custa de outros que quase nada têm, nem
mesmo o essencial para sua sobrevivência.
Apesar do discurso aprimorado dos dirigentes, não
avançamos muito na eliminação desses elementos de iniquidade. É
possível pensar que houve até retrocesso na responsabilidade dos
dirigentes. Gosto muito de citar um dito peruano, reportado em
1594:31
Deixe qualquer pessoa que furta comida ou roupa, prata
ou ouro, ser examinada se ele furtou por necessidade ou
pobreza, e caso se perceba que foi isso, não deixe que ele
seja punido, mas faça com que seja punido aquele que
governa, removendo-o de sua posição, pois ele não foi
capaz de prover as necessidades daquele que furtou nem
levou em consideração as prioridades dos necessitados,
e procure satisfazer as necessidades de roupa, comida,
terra e uma casa para o ladrão.
Como se sairiam muitos dos nossos governantes?
A problemática social e política que levou o mundo a tantas
convulsões sociais, revoluções e guerras, sobretudo neste milênio
que se encerra, tem sido a mesma. É curioso que ao olharmos para a
História da Humanidade, a cada instante histórico podemos
identificar a elaboração de um instrumental matemático para se lidar
com essas situações.
Não há como negar isso e basta um estudo mais cuidadoso
para se reconhecer, na maneira como se ensina e no próprio
conteúdo do que se ensina, o interesse das classes dominantes, que
continuam mesquinhas e com poder crescente! O discurso agora é
mais preciso, tem havido um aperfeiçoamento de argumentos e até
a racionalização de práticas que continuam opressivas e desumanas.
Alguns sugerem que é normal haver excluídos numa sociedade.
A Economia se tornou a ciência por excelência da sociedade
moderna, à qual tudo se subordina. Pode-se afirmar que os sistemas
de produção e a economia moderna se desenvolveram paralelamente,
297
FACETAS DO DIAMANTE
quase em simbiose, com o desenvolvimento da Matemática
ocidental, ainda mais que a física, a química, a biologia e a
tecnologia modernas.32 É curioso notar que ao criar o fundo que
outorga o Prêmio Nobel, o grande empresário e inventor Alfred
Nobel (1833-96) não instituiu um Prêmio Nobel de Matemática e
vetou a possibilidade de se criar tal prêmio no futuro.33 Mas a
comunidade científica internacional não poderia deixar de
reconhecer a importância da Matemática no mundo moderno. E para
premiar matemáticos foi necessário contornar a restrição de Alfred
Nobel. E criaram o Prêmio Nobel de Economia — que tem sido
atribuído a matemáticos. Eu vejo nisso o reconhecimento que a
matemática é a espinha dorsal que suporta o capitalismo moderno.
Não é sem razão que o pioneiro do monetarismo foi Nicolau
Copérnico (1473-1543), que Isaac Newton (1642-1726) foi por
muitos anos o equivalente a um Ministro da Fazenda da Inglaterra e
que John Maynard Keynes (1883-1946), por muitos apontado como
o fundador da economia moderna, era matemático.34
Numa importante obra publicada em 1974, o filósofo Robert
Jaulin, referindo-se à Matemática, diz que “o Ocidente deve assumir
o dissabor de se enxergar, e não mais se enganar com os mitos com
os quais ele tem se mascarado.”35

SOBRE O CONCEITO DE CURRÍCULO

Utilizo uma definição muito abrangente de currículo: a


estratégia da ação educativa. Ao longo da história o currículo reflete
uma concepção de matemática e de sua importância na sociedade, o
que é muito diferente da importância acadêmica da disciplina.
Estamos falando da Matemática nos sistemas educacionais e no
currículo.
Os romanos nos legaram um modelo institucional que até
hoje prevalece, em particular na educação. O que corresponderia a
um 1o grau, a Educação Fundamental, era organizado no mundo
romano como o trivium (Gramática, Retórica e Dialética), e o grande
motivador desse curriculum era a consolidação do Império Romano.
298
FACETAS DO DIAMANTE
Com a expansão do Cristianismo na Idade Média, criaram-se outras
necessidades educacionais, que se refletem no que seria um 2o grau,
de estudos superiores, organizados como o quadrivium (Aritmética,
Música, Geometria, Astronomia). Em ambos os casos é evidente que
a organização curricular encontra sua razão de ser no momento
sociocultural e econômico de cada época.
Os grandes avanços nos estilos de explicação dos fatos
naturais e na economia, que caracterizaram o pensamento europeu a
partir do século XVI, criaram a demanda de novas metas para a
educação.36 A principal meta era criar uma escola acessível a todos
e respondendo a uma nova ordem social e econômica. Como diz
Comenius37
Se, portanto, queremos Igrejas e Estados bem ordenados
eflorescentes e boas administrações, primeiro que tudo
ordenemos as escolas e façamo-las florescer, a fim de
que sejam verdadeiras e vivas oficinas de homens e
viveiros eclesiásticos, políticos e econômicos.
Pode-se dizer que essa é a origem da Didática Moderna que
está sempre associada às transformações da sociedade.
As grandes transformações políticas e econômicas que
resultaram das revoluções americana e francesa causaram profundas
mudanças nos sistemas educacionais. Como em outros tempos, os
interesses dos impérios foram determinantes. Particularmente
notáveis são as mudanças na França de Napoleão e na Alemanha de
Bismarck. Mas sem dúvida o modelo que se impôs foi aquele
adotada pelos Estados Unidos para fazer face à uma situação nova,
que é a fixação de uma população de imigrantes nos territórios
conquistados dos indígenas durante a grande expansão para o Oeste.
O modelo americano visa uma escola igual para todos e o currículo
básico ficou conhecido como os “three R’s: Reading, wRiting and
aRithmetics”), que logo se impôs a todo o mundo. No Brasil é o ler,
escrever e contar.
Embora adequado para o período de transição de uma
tecnologia incipiente para uma tecnologia muito avançada, que é a
grande característica dos séculos XIX e XX, ler, escrever e contar
299
FACETAS DO DIAMANTE
são obviamente insuficientes para a cidadania plena no século
entrante.
Proponho um currículo baseado em literacia, materacia e
tecnoracia, que é uma resposta educacional às expectativas de se
eliminar iniquidade e violações da dignidade humana, o primeiro
passo para a justiça social.
As palavras literacia, materacia e tecnoracia não estão no
Aurélio. Vi a palavra literacia pela primeira vez num relatório
recentemente publicado pelo Conselho Nacional de Educação de
Portugal, que a define como a capacidade de processamento de
informação escrita na vida quotidiana, o que inclui escrita, leitura e
cálculo. O neologismo literacia dos portugueses inspirou-se em
literacy, que também é um neologismo, muito comum nos meios
educacionais americanos e que se refere à qualidade de dominar a
leitura e a escritura, Numeracy também já se encontra na literatura
sobre educação elementar.
O neologismo matheracy foi introduzido, na década de
oitenta, pelo Professor Tadasu Kawaguchi, um dos mais destacados
educadores matemáticos japoneses. Aprendi a palavra com o
Professor Kawaguchi e em meados daquela década utilizei
matheracy num sentido mais amplo e discuti a relação entre literacy
e matheracy.38 Também tenho visto e usado a expressão
technological literacy e, em português, alfabetização tecnológica.
Mas não me ocorreu propor neologismos na nossa língua. Hoje,
estimulado pelos colegas portugueses, entro nessa ciranda de
neologismos e fico mais à vontade para falar em literacia, materacia
e tecnoracia. Como é comum no ambiente acadêmico brasileiro,
esses neologismos muito provavelmente serão criticados como
sendo produto de modismos copiados de outros países e inspirados
por outras línguas. Vale o risco dessa crítica.
Acho adequado propor algumas definições, que ampliam o
modo como esses neologismos vem sendo utilizados tanto em
português, no caso da literacia, quanto na língua inglesa, nos casos
de matheracy (ao que me consta, só utilizado pelo Professor
Kawaguchi) e technological literacy (nunca vi technoracy).
300
FACETAS DO DIAMANTE
LITERACIA é a capacidade de processar informação escrita o que
inclui escrita, leitura e cálculo, na vida quotidiana.
MATERACIA é a capacidade de interpretar e manejar sinais e
códigos e de propor e utilizar modelos na vida
quotidiana.
TECNORACIA é a capacidade de usar e combinar instrumentos,
simples ou complexos, avaliando suas
possibilidades, limitações e adequação a
necessidades e situações.
Poucos discordam do fato de alfabetização e contagem serem
insuficientes para o cidadão de uma sociedade moderna. Necessárias,
até certo ponto, mas insuficientes. Neste trabalho procurarei
justificar essa afirmação, introduzir os conceitos de literacia,
materacia e tecnoracia e propor uma nova conceituação de currículo
que acredito responder às demandas do mundo moderno.39

A GUISA DE CONCLUSÃO

Alguns leitores dirão que as reflexões acima são mais bem


uma arenga que nada tem a ver com Educação Matemática. Outros
dirão que minha fala é um libelo contra a Matemática! Para ambos
tenho pouco mais a dizer. Mas estou seguro que muitos outros não
se assustarão em reconhecer consistência na minha argumentação e
assumirão sua responsabilidade maior de educadores, que é a de
incorporar suas inquietações à sua prática. Esses professores estarão
se perguntando: mas como lidar com isso na minha prática como
professor de matemática? Para eles são importantes mais alguns
comentários e sugestões.
Naturalmente não se pretende incorporar essas discussões,
de forma sistemática, nos currículos de Matemática no 1o e 2o graus.
Elas devem permear o currículo. As oportunidades abundam ao se
comentar uma notícia de jornal ou literatura ou fatos do dia a dia.
Para isso é fundamental que o professor tenha refletido sobre essas
coisas. Por isso é que, além de História da Matemática, se
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FACETAS DO DIAMANTE
recomenda muito a inclusão de uma disciplina “Sociologia da
Matemática” nos currículos de Licenciatura.
Sei que muitos estão pensando que não vai sobrar tempo para
darmos conteúdo de matemática se gastarmos tanto tempo falando
sobre matemática. Pois eu digo que a solução é cortar conteúdos,
retirando coisas desinteressantes, obsoletas e inúteis, tais como os
cálculos aritméticos e algébricos e inúmeras técnicas de derivação e
de integração. Tudo isso se faz trivialmente com uma calculadora de
bolso — nem é necessário usar computador — quando e se for
necessário.
Certamente alguém estará com vontade de perguntar: mas
não se pode pensar só no valor utilitário. E o valor formativo? Eu
desafio a que me digam qual o valor formativo de se achar uma
primitiva de 1/(4-x2) ou de se calcular a raiz quadrada de 127.856.
Ou mesmo de se efetuar 11/15 + 7/12.
No entanto, em cada um desses três exemplos pode-se
mostrar como se fazia numa certa época, o porque desses métodos e
o porque de ter havido uma preocupação com esse tipo de questões,
como esses métodos foram desenvolvidos e como serviram de
estímulo para outras propriedades, e sei lá, mil outras questões. ...
Como a maior parte dos conteúdos dos nossos currículos, essas
questões e técnicas só valem como história. E assim deverão ser
tratadas.
A formação do indivíduo se faz com estímulos de outra
natureza. Podem inclusive ser estímulos matemáticos. Mas uma
matemática interessante, exploratória, divertida e desafiadora. Não
mera manipulação de técnicas, mas sim exercícios de criatividade.
Pode ser até que alguém se divirta manipulando técnicas — algumas
podem ser muito interessantes. Por exemplo, acho lindo brincar com
fatoriais, sobretudo tendo uma calculadora. E achar o mínimo
múltiplo comum também pode ser muito divertido. Mas não sei
como dizer que essas coisas servem para algo relevante na educação
do cidadão comum. E tampouco dizer que o que é lindo ou divertido
para um deverá ser lindo e divertido para todos. Portanto, como se
justifica ensinar fatoriais ou mínimo múltiplo para todos? Convido
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FACETAS DO DIAMANTE
os professores a darem uma boa razão para que isso esteja no
programa para todos.
Muitos vão dizer: mas isso já não é mais do programa. De
fato, tem havido remoção de alguns “pontos” nos programas.
Muito do que ainda restou e que se ensina no modo
tradicional, descontextualizado, está lá por mesmice. Ninguém tem
coragem de tirar dos programas. A única razão é de natureza
histórica — há tempo se ensina isso. E o professor infere: “se me
ensinaram é porque era importante, portanto, ensino o que me
ensinaram”.
Ninguém ilustrou melhor essa reflexão que René Thom, um
dos mais importantes matemáticos do século, ao divulgar um poema
de um sábio chinês, que diz:
Havia um homem que aprendeu a matar dragões
e deu tudo que possuía para se aperfeiçoar na arte.
Depois de três anos ele se achava perfeitamente preparado
mas, que frustração,
não encontrou oportunidades de praticar sua habilidade.
Dschuang Dsi
Como resultado ele resolveu ensinar como matar dragões.
— René Thom
Proponho um desafio para os professores: procure,
para cada tema do que sobrou nos programas atuais, uma
justificativa autêntica de por que o tal tema deve ser
ensinado e exigido de todos.
Ao professor foram ensinadas muitas técnicas e teorias que
ele jamais teve, e nem terá, oportunidade de praticar. E o professor
parte para ensiná-las, sem nenhum momento de reflexão, de crítica.
A última vez que viram aquele “ponto” do programa foi quando lhes
ensinaram isso. E agora está vendo de novo esse ponto ao ensina-lo.
Desafio o professor a negar que só viu certos temas quando
era aluno, e só viu esse tema novamente quando foi ensinar.
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FACETAS DO DIAMANTE
Quanto à aprendizagem, o problema é muito mais complexo
e o aprendizado da matemática é um grande desafio para os teóricos
das ciências cognitivas.40 O estudo da história cultural da
humanidade tem sido um instrumento importante nessas teorizações.
Esse é mais um fator da crescente importância que vem sendo dada
à Etnomatemática.
Alguns defendem o caráter propedêutico da matemática.
Ensina-se isso porque é importante para aquilo, e aquilo porque é
importante para e assim por diante. Justifica-se os programas como
um elenco de conteúdos organizados linearmente. Nenhuma teoria
hoje aceita de aprendizagem corrobora essa justificativa. Muito pelo
contrário, o que sabemos dos processos cognitivas indicam que a
aprendizagem deve consistir em oferecer ao aluno uma variedade de
experiências ricas, apresentadas de forma não-linear, poderíamos
mesmo dizer caótica. A riqueza de experiências vai possibilitar ao
aluno que eventualmente — não no dia e hora marcados pelo
professor faça a organização dos fatos que experienciou para a
construção de mentefatos que poderão servir para experiências
novas.41
Em vista disso, vejo dois aspectos que deveriam ser
destacados no ensino da matemática:
O aspecto crítico, que resulta de assumir que a
Matemática que está nos currículos é um estudo de
matemática histórica. E partir para um estudo crítico do
seu contexto histórico, fazendo uma interpretação das
implicações sociais dessa matemática. Sem dúvida isso
pode ser mais atrativo para a formação do cidadão.
O aspecto lúdico associado ao exercício intelectual, que
é tão característico da matemática, e que tem sido
totalmente desprezado. Por que não introduzir no
currículo uma matemática construtiva, lúdica,
desafiadora, interessante, nova e útil para o mundo
moderno.
O enfoque histórico favorece destacar esses aspectos, que
considero fundamentais na educação matemática.
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FACETAS DO DIAMANTE

NOTAS
1. Ver o interessante estudo de Angel Ruiz: Las Posibilidades de la Historia en
la Educación Matemática. Una Visión Filosófica. Boletin Informativo del
Comité Interamericano de Educación Matemática, año 5, no 2, Noviembre
1997, p. 1-7.
2. Bernard Lewis. History. Remembered, Recovered, Invented. Princeton:
Princeton University Press, 1975.
3. Konstantín Ribnikov. História de las Matemáticas. Moscou: Editorial Mir,
1987, p. 19.
4. J. F. Montucla. Histoire des Mathématiques, Tome Second. Paris: Chez
Henri Agasse Libraire, An VII, p. 360.
5. W. W. Rouse Ball. A Short Account of the History of Mathematics. New
York: Dover Publications, 1960 (reimpressão da ed. de 1908), p. 320.
6. Florian Cajori. A History of Mathematics. New York: Chelsea Publishing
Company, 1985 (1a ed. 1893).
7. Boris Hessen. Las Raíces Socioeconómicas de la Mecánica de Newton.
(Trad., prólogo y notas de P. M. Pruna.) La Habana: Editorial Academia, 1985,
p. 13-14.
8. Ao notar o insucesso do modelo soviético não podemos jogar fora tudo que de
bom se fez e se pensou desde Karl Marx até Mikhail Gorbatchov, e o muito
que se continua fazendo e pensando, de bom e de ruim, nessa importante linha
filosófica.
9. Ver: Marilyn Frankenstein, “Educação matemática crítica: uma aplicação da
epistemologia de Paulo Freire”, publicado em Educação Matemática, Maria
Aparecida V. Bicudo (org.). São Paulo: Editora Moraes, s/d, p. 101-137.
10. Uma transcrição integral da conferência de Paulo Freire foi publicada como
“A conversation with Paulo Freire”, For the Learning of Mathematics, v.
17, n. 3, November, 1997, p. 7-10.
11. Em 1985 foi criado o International Study Group on Ethnomathematics/ISGEm,
que publica regularmente um NEWSLETTER, em inglês e em espanhol. Pode
ser obtido com o Editor, Professor Patrick Scott, Box 3001 MSC 3CUR, Las
Cruces, NM 88003, USA. O Primeiro Congresso Internacional de
Etnomatemática (ICEM l) realizou-se em Granada, Espanha, de 2 a 5 de
setembro de 1998.
12. Para um resumo dessas ideias veja meu artigo “Reflexões sobre História,
Filosofia e Matemática” no BOLEMA (Boletim de Educação Matemática),
Especial, n. 2, 1992, p.42-60.
13. Ver: Hans Freudenthal. Should a mathematics teacher know something about
the history of mathematics? For the Learning of Mathematics, v. 2, n. 1,
July, 1981.
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FACETAS DO DIAMANTE
14. Um livro recente, muito acessível e que não incorre nesse erro é de Gilberto
G. Garbi: O Romance das Equações Algébricas. Genialidade, Trama,
Glória e Tragédia no fascinante mundo da Álgebra. São Paulo: Makron
Books, 1997.
15. Um grupo internacional muito ativo e intimamente relacionado com
Etnomatemática é o Political Dimensions of Mathematical Education, que já
realizou três conferências internacionais (Londres 1989, Cidade do Cabo 1992
e Bergren 1995). A dimensão política da Educação Matemática está inserida
nas discussões amplas sobre Ciência e Sociedade, em particular sobre
Matemática e Sociedade. De 7 a 11 de setembro de 1998 realizou-se a Primeira
Conferência sobre Educação Matemática e Sociedade (MEAS 1) em
Nottingham, Inglaterra.
16. Ver: Gelsa Knijnik. Exclusão e Resistência - Educação Matemática e
Legitimidade Cultural. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul Ltda, 1995.
17. Ver minha entrevista “Tantos Povos, Tantas Matemáticas” que concedi à
revista EDUCAÇÃO (Editora Segmento), ano 23, n. 199, novembro de 1997,
p. 3-5.
18. Uma discussão sobre esse tema encontra-se no meu artigo “Ação pedagógica
e Etnomatemática como marcos conceituais para o ensino da Matemática” em
Educação Matemática, Maria Aparecida V. Bicudo (organizadora). São
Paulo: Editora Moraes, s/d, p. 73-100.
19. Ver Eduardo Sebastiani Ferreira. Etnomatemática. Uma Proposta
Metodológica. Série Reflexão em Educação Matemática v. 3, Mestrado em
Educação Matemática Universidade Santa Úrsula, Rio de Janeiro, 1997. A
importante dissertação de Pedro Paulo Scandiuzzi: A dinâmica da contagem
de Lahatua Otomo e suas implicações educacionais: uma pesquisa em
etnomatemática. Faculdade de Educação, Universidade Estadual de
Campinas, 1997; é um exemplo do tipo de trabalho que é necessário se
desenvolver nessa área. Também o pequeno livro de Mariana K. Leal Ferreira:
Com Quantos Paus se Faz uma Canoa! A matemática na vida cotidiana e
na experiência escolar indígena. MEC/Assessoria de Educação Escolar
Indígena, Brasília, 1994; traz reflexões muito importantes e exemplos
interessantes. A Etnomatemática das culturas africanas é também muito
importante. Recomendo a excelente publicação, que fala das matemáticas
africanas, de Paulus Gerdes: Sobre o despertar do pensamento geométrico.
Curitiba: Editora da UFPR, 1992.
20. A coleção paradidática Vivendo a matemática. Luiz Márcio Imenes, Nilson
José Machado et al. São Paulo: Editora Scipione, 1989. Tem volumes muito
interessantes e elementares sobre a história da matemática, e pode ser usada
como uma introdução à História da Matemática nas séries iniciais. Um
clássico é o excelente livro de Malba Tahan: O Homem que Calculava. Rio
de Janeiro: Editora Record.
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FACETAS DO DIAMANTE
21. Essa imagem é de Paulo Freire, na entrevista gravada para o ICME 8/8º
Congresso Internacional de Educação Matemática, realizado em Sevilha,
Espanha, em 1996. Ver nota 11.
22. Jim Holt. Hypothesis: The Monster and other mathematical beasts. Lingua
Franca, v. 7, n. 9, November, 1997, p. 76.
23. Michele Emmer. Interview with Ennio De Giorgi. Notices of the MAS, v. 44,
n. 9, October, 1997,pp. 1097-1101.
24. mais! 5º Caderno da Folha de São Paulo, 30 de novembro de 1997. A coleção
de artigos e entrevista foram publicados por ocasião do lançamento do
importante livro de Newton C.A. da Costa: O Conhecimento Científico. São
Paulo: Discurso Editorial/FAPESP, 1997.
25. Ver o interessante artigo de Simon Singh and Kenneth A. Ribet: “Fermat's
Last Stand”. Scientific American, November, 1997, p. 36-41.
26. Essa observação também é feita por Paulo Freire na entrevista mencionada na
Nota 11 acima.
27. Carl B. Boyer. História da Matemática. Trad. Elza Furtado Gomide. São
Paulo: Editora Blücher, 1974. Dirk Struik. História Concisa das
Matemáticas. Lisboa: Gradiva, 1989.
28. Dirk J. Struik. Maurício de Nassau, Scientific Maecenas in Brazil. Revista da
Sociedade Brasileira de História da Ciência, n. 2, julho-dezembro, 1985, p.
21-26.
29. Claro, no devido contexto essas frases são muito significativas e seus autores
tem uma visão ampla do que é a matemática. Mas isoladas,
descontextualizadas, essas fases são enganadoras.
30. Ver a entrevista mencionada na Nota 18.
31. Jeanne Hersch (ed.). Birthright of man. New York: UNESCO/UNIPUB,
1969, p. 106.
32. O estudo de A. Sohn-Rethel, Intellectual and Manual Labor, (London:
Macmillan Press, 1978) é excelente.
33. Isso por razões pessoais que não interessa discutir. Mas vale mencionar uma
fofoca internacional. Se o Prêmio para Matemática fosse instituído, o
ganhador seria inevitavelmente Mittag-Lefler — que alguns anos antes havia
“roubado” a mulher do Alfred Nobel. Com isso Nobel vetou para sempre a
concessão de prêmios com seu dinheiro para esses “dons juans” que são os
matemáticos!
34. Recomendo a leitura do livro de A. A. Upinsky. A Perversão Matemática.
São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1992.
35. Robert Jaulin (ed.). Pourquoi la mathématique? Collection 10/18. Paris:
Union générale d’éditions, 1974, 4a capa.
36. Ver o livro de Mario Alighiero Manacorda. História da Educação. Da
Antiguidade aos nossos dias. Trad. Gaetano Lo Monaco. São Paulo: Cortez
Editora, 1996.
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37. J. A. Coménio. Didáctica Magna. Tratado da Arte Universal de Ensinar
Tudo a Todos. [orig. edn. 1656], Introdução, Tradução e Notas de Joaquim
Ferreira Gomes. Fundação Calouste Gulbenkian, 1966, p. 71.
38. Ubiratan D’Ambrosio. Socio-cultural bases for Mathematics Education.
Campinas: UNICAMP, 1985, p. 42-48.
39. Para uma discussão sobre essa proposta de um novo trivium, ver Ubiratan
D’Ambrosio. Educação: Nas Lições do Passado, as Perspectivas para o Futuro.
Estudos Leopoldenses-Série Educação, v. 2, n. 2, janeiro/junho, 1998, p.7-
16.
40. Ver o excelente livro de Steven Pinker. How the Mind Works. New York:
W. W. Norton & Company, Inc., 1997. A discussão sobre Matemática é
particularmente interessante.
41. Esses temas são discutidos nos meus livros Da Realidade à Ação. Reflexões
sobre Educação (e) Matemática. São Paulo: Summus Editorial, 1986, e
Educação Matemática. Da Teoria à Prática. Campinas: Papirus Editora,
1996. Aí se encontram sugestões para a literatura relevante sobre essas novas
teorias.
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