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Versos e Versões de Exu

Sobre "Tradução-Exu [ensaio de tempestades a caminho]" e "Uma A Outra Tempestade"


de Guilherme Gontijo Flores e André Capilé

Revista Quatrocincoum, Março de 2023


Marcos Ramos

Há cem anos, Manuel Pedro dos Santos, vulgo Bahiano, gravou Sai Exu, música de Ernesto Joaquim
Maria dos Santos, o Donga. Registrada como jongo africano, a música inicia com uma saudação:
Vamos saravá, (Calunga) / vamos saravá, (quem madruga) / vamos saravá, (Omolu) / Vamos saravá,
(Pai Exu). A saudação inicial representada pela interjeição saravá, se dirige primeiro a Calunga (ou
Kalunga) - termo encontrado nas línguas do tronco banto que, no contexto da diáspora, pode ter
diferentes significados, entre eles a de uma divindade. Depois, reverencia Omolu e (Pai) Exu - duas
divindades do panteão iorubá. Na sequência, o eu-lírico se dirige a um interlocutor: “Pode fazê
despacho com cabeça de urubu / Hei de sair à rua gritando sempre sai Exu”.
Os versos finais fazem crer que está em jogo um dinâmica de ataque e defesa – de um lado, alguém
faz um despacho/oferenda para Exu a fim de que a divindade interceda por ele, contra o eu-lírico; por
outro lado, o eu-lírico, em posição defensiva, afirma que está protegido porque tem o corpo fechado.
A saudação nos versos iniciais feitas a Calunga e Omolu, divindades vinculadas à morte e, em seguida,
a Exu, particularmente ligado aos rituais de fechamento de corpo, sugerem justamente a manutenção
dessa proteção. A dinâmica pressupõe uma ação ambivalente: Exu intercede (ou poderia, se quisesse)
pelos dois lados.
Os exemplos musicais dessa condição dúbia pululam no cancioneiro brasileiro, seria possível elaborar
uma arqueologia das representações do despacho a partir de um corpus musical, mas o fundamental
aqui é como essa dinâmica de ambivalência estará sobretudo vinculada à imagem de Exu. E muito
antes de baixar por essas bandas, desfilar na comissão de frente da Sapucaí e vencer o carnaval
carioca, antes ainda de pintar no centro de mesa de um bar, cheirar, fumar, cuspir e tocar piano, como
escreveu Aldir Blanc, esse "santo estranho", "aquele um das quebradas", já tinha batido ponto, ao que
tudo indica, no calundu de Luzia Pinta nos idos de 1740, em Minas Gerais. Luiz Mott escreveu que o
calundu de Luzia Pinta, espécie de culto afro-religioso doméstico, foi tipicamente enraizado no ritual
xinguila da nação Angola. Isso significa que, se realmente Exu pintou por lá, como sugere o Processo
da Santa Inquisição guardado na Torre do Tombo, na ocasião, ele atendia por outro nome.

A verdade é que Exu (ou o que ele representa) tem muitos nomes e isso se deve às diversas diásporas
de origem africana ocorridas em quase quatro séculos de escravidão no Brasil. Sabemos hoje que
entre os séculos XVI e XIX, mais de 12 milhões de africanos foram escravizados e vendidos, e mais de
5 milhões desses africanos desembarcaram no Brasil. A diversidade cultural trazida do continente
africano foi enorme, mas se transformou em um amálgama cultural ainda mais amplo e complexo a
partir dos difusos processos de trocas, intercâmbios e sincretismos, não apenas entre as diferentes
etnias africanas, mas também entre as culturas indígenas e as europeias.

Variadas formas de religiosidades resultaram desses processos. Cada uma com seu espaço de ritual,
seu sistema de símbolos, de mitos, sua congregação de divindades e sua língua-cerimonial, que muitas
vezes combina idiomas africanos, como quicongo, quimbundo, iorubá e o fon, com línguas indígenas
e o português. Cada religiosidade exige uma culinária, um conjunto de vestimentas e adereços, uma
fauna doméstica sacrificial, uma vasta diversidade de folhas e uma música-ritual. E, apesar das
singularidades, todas elas são detentoras de uma representação, com algumas dimensões particulares
e outras compartilhadas, de Exu.

Mais do que um lugar de rituais, esses espaços cerimoniais (ou terreiros) são espaços onde os
africanos exilados e os afrodescendentes puderam/podem pensar a liberdade, falar sua língua, contar
a história dos seus ancestrais e novamente encontrar uma condição de humanidade perdida na
escravidão. E além de centrados na preservação das tradições, esses espaços se converteram em
territórios de invenção de modos de vida sustentados por cosmovisões não-brancas, e sustentáculos
de uma epistemologia decolonial.

Essa compreensão dos mitos e ritos afro-brasileiros como possibilidades de (re)fundação de uma
filosofia não-europeia ganhou força a partir das mobilizações dos movimentos sociais e dos estudos -
especialmente tributários, em um primeiro momento, a Pierre Verger, Edison Carneiro, Roger Bastide,
Juana Elbein do Santos, Monique Augras e Ruth Landes. Foram, sobretudo, seus estudos, divulgações
e traduções que subsidiaram um avanço na direção de uma formulação filosófica que, ao não se limitar
a um território de conceituação acadêmica tantas vezes infértil, é política. Autores como Leda Maria
Martins e Muniz Sodré - ela sobretudo escrevendo a partir da cosmovisão banto e ele de uma
cosmovisão ioruba - são dois exemplos de intelectuais que atuam nesse sentido.

Nessa gira epistemológica, a figura de Exu, desde o início, teve predominância como metáfora
conceitual. E se inicialmente essa presença de Exu foi notória como epicentro da formulação de uma
epistemologia decolonial afro-brasileira, recentemente Guilherme Gontijo Flores e André Capilé
ampliaram os territórios de encruzilhadas tomando (ou sendo tomados por) Exu como metáfora de
uma proposição também tradutória. No recém-publicado "Tradução-Exu [ensaio de tempestades a
caminho]" os autores mencionam justamente como um incipiente esforço de formulação conceitual
o exemplo da tradução de The Raven (Edgar Alan Poe): um raven-corvo que foi traduzido como um
"urubu brasileiríssimo". Belchior, antes, traduziu por Assum Preto. Mas os tradutores Rodrigo
Gonçalves e Guilherme Flores optarão pelo urubu-despacho porque, quando se fala em Exu, assim
deve ser.

Segundo Flores e Capilé, a tradução-exu é uma proposição que tanto se distancia das concepções
tradutórias norteadas por supostas equivalências que desprezam corpos e territoriedades (ilustradas
pela metáfora do caminhão de mudança) quanto das proposições de transcriação haroldianas, que,
em alguma medida, almejam o parricídio a fim de ocuparem o lugar do original: "a tradução-exu é um
parricídio muito peculiar — não considera o sentido absolutamente inessencial, porque deseja num
só gesto bater cabeça ao texto original e jogá-lo por terra, como Exu, que a um só tempo venera, serve
e engana".

E apesar de, em grande medida, ser tributária às experiências tradutórias de textos africanos ou afro-
brasileiros situados nos territórios religiosos e, particularmente às traduções dos Orikis realizadas por
um certo Antônio Risério, a proposição de uma tradução-exu não é uma tradução negra. Como
explicam os autores: "Exu, traduzido numa espécie de conceito, não pode ser contido numa ideia
essencializante de negritude, nem pode ser retido na figuração de um fenótipo, por mais que tenha
suas origens nos cultos africanos. Entendo Exu, portanto, como organização relacional da contradição,
movência do paradoxo como gesto e assunção do corpo como jogo."

Esse modo-exu de traduzir, ao longo do ensaio, é ilustrado com diversos exemplos. E se por um lado
são exemplos extremamente díspares, porque em última instância a proposição tradutória pressupõe
a singularidade da experimentação, por outro lado, há algo de comum em todos eles, a "mobilização
crítica de um fazer poético e crítico afeito a Exu". Isto é, uma dimensão ambivalente, como é próprio
de Exu, que propõe uma transgressão radical e o risco de "uma péssima piada deliberada que, por
revisão crítica do original, pode se tornar maravilhosa".

Além de um experimento de conceituação fractal de um modo-exu de traduzir, o livro de Capilé e


Flores tem a grandeza de se dobrar sobre o próprio eixo vertendo ao português uma série de textos
nem sempre contemplados por esforços tradutórios do passado – e a tradução das Mambu, cantigas
cantadas no Candomblés Angola-Kongo, talvez sejam o melhor exemplo. Como sugere o título da obra,
depois do ensaio, há uma tempestade a caminho. A tempestade anunciada é um segundo livro que
acompanha o livro-ensaio: "Uma A Outra Tempestade". Nele, Capilé e Flores, Flores e Capilé, avançam
sobre The Tempest, de William Shakespeare, e Une tempête, de Aimé Césaire, propondo uma tradução
em consonância com as proposições teóricas-conceituais expostas. Pode-se dizer, por fim, que se o
livro-ensaio, Tradução-Exu, é o ipadê (ou o mavile) - quer dizer, a cerimônia inicial que pressupõe um
pedido de licença a Exu – a festa propriamente dita começa no livro seguinte.

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