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BERNARD MAUPOIL

NAS TRILHAS DO CONHECIMENTO DO


UNIVERSO CÓSMICO DAOMEANO

MAUPOIL, Bernard. A adivinhação na antiga Costa dos Escravos. Tradução de


Carlos Eugênio Marcondes de Moura. 2ª ed. São Paulo: EDUSP, 2020. 792 p.

A tradução de uma obra pioneira metas desta resenha. Cabe destacar o


de etno-história africana implica trabalho sério e paciente de tradução
também em fazer um trabalho de feito por Carlos Eugênio Marcondes
confronto com a versão original. No de Moura, uma das autoridades mais
presente caso, a segunda edição em dedicadas ao legado multifacetado da
português do livro, originalmente África no Brasil.
publicado em francês, é uma tradução O livro traduzido está na sua
da obra La Géomancie à l´ancienne segunda edição pela EDUSP, e ainda
Côte des Esclaves, do etnólogo tem a colaboração do sociólogo
francês Bernard Maupoil. A primeira Reginaldo Prandi (USP) e do saudoso
edição foi publicada pelo Instituto antropólogo Sérgio Ferretti (UFMA).
de Etnologia de Paris, em 1943. Não é a minha intenção comentar essas
A segunda, muito provavelmente, em colaborações.
1961. A terceira, segundo informa o O autor da obra, Bernard Maupoil,
tradutor Carlos Eugênio Marcondes nasceu em 17 de novembro de 1906, em
de Moura (p. 12), é de 1981, com um Paris, e morreu em 15 de dezembro de
posfácio de Claude Rivière. Algumas 1944 num campo de concentração na
fontes falam de um total de 24 edições Alemanha. Foi administrador colonial
entre 1943 e 1988. O cotejo entre a na África francófona, etnólogo e
obra original e sua tradução é uma das escritor. Teve influências da escola de

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Etnologia de Marcel Mauss, orientador que eram representantes do conhe-
de sua tese, instigador e conselheiro cimento tradicional e ignoravam “os
(p. 729); Lucien Lévy-Bruhl foi outra modos de pensar europeus”; e, por
influência; também dialogou com outro lado, o informante letrado,
membros do Instituto de Etnologia, “funcionário ou não, mais ou menos
como Marcel Griaule, Paul Rivet, André a par de nossos costumes e gostos”
Leroi-Gourhan. Residiu em países (p. 15). A pertinência metodológica
da África Ocidental como o Senegal, preocupou tanto o pesquisador que ele
a Guiné Francesa (Guiné Conakry) e duvidou das informações proporcio-
o antigo Daomé, atual República do nadas por estes últimos, já que havia,
Benim, onde produziu a presente obra. apesar de serem letrados, uma espécie
Neste último país, ele teve uma estada de “vaidosa insuficiência”, “excesso
administrativa entre janeiro de 1934 e de imprecisões”, e uma espécie de
janeiro de 1936, e percorreu as cidades desarraigo dos costumes por parte
meridionais e centrais de Porto Novo, deles. No caso dos “informantes em
Allada, Uidá e Abomé. pano”, algumas questões técnicas foram
O livro de Maupoil contém duas resolvidas, de modo geral, no quesito
partes, precedidas por uma apresen- colaboração. Uma terceira alternativa,
tação e uma introdução. É ilustrado complementar, se impõe, segundo o
com desenhos, gráficos e fotos para dar autor: contar com intérpretes pessoais
conta do seu caráter prático, enquanto e ocasionais, falantes do francês.
manual de adivinhação. A primeira Digno de nota, outrossim,
parte compreende nove capítulos; a é frisar que, após a ocupação colonial
segunda, três. A “Conclusão” encerra do Daomé, o conjunto de crenças e
em poucas página o livro. de sentimentos em Fá (sistema de
Na introdução, o pesquisador adivinhação entre os grupos fon e
adverte sobre várias dificuldades associados) passou por considerável
encontradas no terreno, dificuldades evolução, alguns diriam decadência,
atinentes à distinção entre os infor- caracterizada pelo desapreço,
mantes “em panos” (isto é, vestidos a o desrespeito e de controle dos cultos
caráter, com “panos”), traduzido por por parte dos reis.
Moura como “informantes rústicos”,

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Vale ressaltar, com relação às mecanismo, aos agentes do culto
convenções ortográficas, que Bernard privado da adivinhação e ao ritual de Fá”
Maupoil, na edição original, apresenta (p. 421). Uma contribuição para várias
uma quantidade de equivalências de áreas das humanidades ― História,
signos linguísticos entre o fon e o Antropologia, Sociologia, Estudos das
francês. Na tradução de Carlos Eugênio Religiões, Artes e Folclore ― precisa
Marcondes de Moura, as equivalências da interlocução com seus respectivos
são menores para facilitar a leitura por especialistas.
lusofalantes. Optarei pela adesão à No primeiro capítulo, intitulado
grafia adotada na tradução; também “Definições”, Maupoil dialoga com
acompanharei a tradução em si, que uma gama de autores, como os
tem algumas falhas, devido às falhas do missionários Joulord, Courdioux e
autor no original. Vale a pena adiantar o etnólogo Maurice Delafosse, para
que uma dessas é a falta de um glossário assentar as bases da noção de futuro
que pudesse traduzir a nomenclatura inerente ao sistema divinatório do Fá
autóctone de certos objetos, animais (p. 25) e ao incognoscível, à revelação
e fenômenos atmosféricos. Em outras do destino da existência dos humanos
palavras, há nomes de plantas e árvores (p. 35). Discute o termo Fá entre
que foram mencionados no livro, mas os Fon; Ifá, entre os Iorubá; e Afan
cujos termos latinos não foram apon- (às vezes escrito Afá) entre os Mina
tados por Maupoil. Como também, do Togo. Existem várias definições de
nomes em línguas nacionais, referentes Fá. Para Le Hérissé seria um vodum,
a postos hierárquicos ou profissões, isto é, uma divindade pessoal que
nomes iniciáticos, expressões votivas, nasce e desaparece com o indivíduo.
rezas, objetos da natureza etc., que De qualquer modo, muitos autores
serão escritos em itálicos. Os nomes das consideram Fá como um deus ou o
divindades serão escritos em grafia do gênio da adivinhação, um intermediário
alfabeto internacional. entre os homens e os deuses. Esta seria
A primeira parte do livro, nas a definição mais completa, já que as
próprias palavras do autor, diz opiniões oscilam entre considerar Fá
respeito ao “funcionamento de como divindade das florestas, como
Fá, se assim se pode dizer, ao seu sinônimo de Mawu (deus maior),

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de Obatalá e, inclusive, como um uma resposta ao problema que
vodum diferente dos demais voduns, aflige o seu espírito […]. Fá não é
metade homem, metade vodum, uma divindade, é a voz de Deus”
até negar que o termo não designa (p. 38). Termina o capítulo com a
nem um deus, nem um ser humano. questão da iconografia de Fá e sua
É comum se afirmar também que Fá é filiação, afirmando que há diversas
um sistema de adivinhação. narrativas sobre sua personalidade.
O cuidado de Maupoil em escutar No entanto admite que Fá é filho
uma variedade de interlocutores lhe biológico ou adotivo de Mawu, ou de
permite observar que a “posse de duas mulheres. Natureza milagrosa
um signo de Fá é concebida como ou afastamento da ideia do “pecado
uma aliança com uma divindade não original”?, questiona o autor.
só onisciente e tutelar, mas ligada É mister saber que, aos diferentes
pessoalmente ao aliado mortal, por signos de Fá, chamados “du”, estão
ele monopolizado” (p. 37). Permite-lhe associadas divindades importantes
também concluir que existem duas como Lègba, Kennessi, Na, Gu, Agé,
definições de Fá: a popular e a da Ali, Ayizan, Duwo, Kiti, Hókpa-Lisa.
elite dos adivinhos. O povo acredita Posso acrescentar que os Hoxo
que Fá é ao mesmo tempo um deus (gêmeos) também aparecem com
e um conjunto de deuses, que são os muita frequência. Uma grande impor-
signos. E que, “Dotado de onisciência tância é dada a Lègba (equivalente
e ubiquidade, é além do mais infalível fon de Eṣu-Elegbara), considerado
e diz somente a verdade” (p. 38). “Hundahó”, “a divindade maior”
Os demais acreditam que “Fá é a (p. 22), o nome consagrado em Cuba
própria mensagem do mais elevado entre os chamados arará, descendentes
princípio divino, de Mawu [Mavu, de daomeanos. Nesse mesmo capítulo,
na tradução, grifo meu]. É um Maupoil dialoga ― sobre correspon-
modo abstrato de interpretação dências entre as práticas nas Américas
ou de revelação do passado ou do ― com as obras de Fernando Ortiz,
futuro, modo indireto, dedutivo, por Lydia Cabrera, Alejo Carpentier, Artur
meio do qual o consulente recebe, Ramos e Nina Rodrigues.
por intermédio de um especialista,

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O segundo capítulo traz infor- (olhar fixo no cliente e nas linhas de
mações sobre a origem lendária e a suas mãos); e o Kpondan (observação
origem histórica do sistema de adivi- dos olhos do consulente por parte do
nhação. Fá tem origem certa, segundo adivinho, antes de responder); entre
todos os informantes do autor: não outras formas de adivinhação. Com
nasceu no Daomé e sim na cidade relação ao aparecimento de Fá na
de Ifé, em país iorubá. As diferentes Costa dos Escravos (litoral do Golfo
narrativas falam pouco de sua origem do Benim), estima-se que apareceu por
na adivinhação muçulmana. É algo volta de 1700, se fixou em Uidá para
a ser pesquisado. Ifé desempenhou depois chegar a Abomé, no reinado
um papel histórico importante nas de Agadja (também grafado Agajá),
instituições, nas artes e nos cultos dos levado por uma caravana de comer-
fons. Há dois tipos de Ifé: terrestre, ciantes nagôs. Há uma semelhança
antiga e a atual, e a Ifé mística, a do muito grande entre o Fá do Daomé e
sol nascente ou a do “horizonte do o Sikidy de Madagascar, sentencia o
leste”, “lugar ideal onde, no Oriente, autor (p. 72).
o céu e a terra se juntaram” (pp. 54-55). No capítulo 3, intitulado
O mais importante adivinho (bokono), “O panteão da Costa dos Escravos”
reconhecido como Araba do Daomé, Maupoil pretende “escrever, sem
espécie de “papa dos adivinhos” (p. examinar os mitos, algumas notas que
57), recorre à expressão “E yi Fé” (ele facilitarão a leitura dos capítulos que
partiu para Fé), de uma origem mítica se seguem e dos contos traduzidos
ou eufemismo que alude à morte de um na segunda parte deste livro” (p. 73).
albino (Lisa), de uma píton-real de Uidá Sobre os voduns e suas características,
(Dangbe) ou de uma personalidade aprendemos que, como resultado de
eminente (p. 55). Com relação à história sincretismo, sua origem quase sempre
da adivinhação antes de Fá, existiam o foi exterior ao Baixo Daomé: divin-
Agbazé (esteira usada como pêndulo); dades emprestadas ou tomadas do
Kentchakan (consulta por meio de inimigo; introdução por uma rainha
seixos escolhidos no leito de um rio); etc… Digno de nota é saber que existe
Tó (olhar fixo por parte do adivinho um laço de solidariedade e comple-
numa jarra contendo búzios); Mwen mentariedade entre voduns e humanos.

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O vodum é infalível e perfeito. Nesse A partir disso, vê-se claramente
aspecto, o sacrifício, sendo a comida como se estrutura o mundo entre os
do vodum, também é um ato social Fon. Mawu é invisível e onipresente.
caracterizado pela ideia de comunhão, Os mortos se agregam a esse universo
de comensalidade. A concepção do cósmico, “ocupam um domínio
universo baseia-se, segundo o bokono dificilmente determinável, acima da
Gédégbe, na junção do céu e da terra Terra” (p. 84) e os melhores dentre
como uma cabaça fechada denominada eles encontram-se em Ifé, junto aos
odu; é sinônimo de Mawu, o criador, e voduns, afirma o autor, baseado em
de Gbaadu (igba odu: “cabaça de odu” informações do grande sacerdote de
em iorubá). O termo Gbaadu também Abomé. O clero também tinha sua
designa alguém que conseguisse estrutura: no nível mais alto, situam-se
acumular em seu espírito toda a ciência, os vodunon (os donos ou guardiões
todos os conhecimentos de Fá, até o do vodum; etimologicamente, vodum,
mais elevado grau. Como ninguém o “a divindade”, e non, “mãe, dono(a)”,
consegue, não existe Gbaadu humano” muito provável tradução que influiu na
(p. 104). etimologia brasileira de mãe-de-santo).
Sobre o conceito de universo, Um sinônimo da palavra é hunbonon,
a água rodeia a Terra em toda a sua de hun, a divindade, e bo, o amuleto;
superfície convexa de sua meia também reforço da palavra hun ou
cabaça. A Terra ocupa o restante. vodum, portanto, uma reduplicação da
É no exato lugar onde o mar acaba mesma; e non, que já disse.
que o céu se confunde com ele que Os reis do Daomé tiveram
os dois “lábios” da cabaça se juntam. momentos de confronto com os sacer-
O lugar ideal, inacessível ao homem, o dotes dos voduns, principalmente os
horizonte onde se encontram o céu e o de Sakpata, a ponto de estes serem
mar, chama-se Ifé. Localiza-se em Ifé vendidos em grande número aos trafi-
a morada de todos os voduns. Sob as cantes de escravos pelo rei Agadja.
ordens de Mawu, eles se espalham pelo Os sacerdotes de Sakpata se bene-
mundo, veem o que acontece na Terra ficiaram mais tarde da intervenção
e, em seguida, prestam conta disso ao colonial francesa para perpetuar
seu senhor (p. 84). seus cultos. Entende-se por que, nas

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Américas, além dos cultos reais de bokó, nukantó, entre outras. Ele tem
Agassu e de Zomadonu, essa religião um papel público, o de manter-se à
de Estado, que se tornou popular no disposição das pessoas que as vicissi-
Daomé, manteve somente os dois heróis tudes e as inquietações da vida levam
do panteão popular, que são Sakpata à sua presença, e um papel privado
e Xèviosso. Essas divindades, comu- – assegurar o culto de seu Fá pessoal,
mente chamadas de deuses da varíola consultar para a sua família ou para si
e do trovão, respectivamente, apesar de e para as muitas pessoas que o rodeiam
serem voduns independentes, possuem (p. 133). O bom adivinho é considerado
certas atribuições que evidenciam um pai de todo mundo. Maupoil observa
parentesco mútuo. que os bokonos não estão sujeitos a
Nas Américas, algumas divindades proibições corporativas. “Exercendo
não tiveram a mesma importância mas, um sacerdócio individual, eles somente
do outro lado do Atlântico, elas conti- possuem, com exceção das proibições
nuaram o seu curso normal. Trata-se, familiares ou as de seus voduns, proi-
entre muitos outros, de Gu, Azili e bições individuais, ditadas pelo du da
Aguè. Quanto a Dan Ayidohwédo floresta. O sacerdote de Fá não participa
ou Dan-bada-Hwédo, ele veicula de funerais e só muito raramente assiste
entre o céu e a terra os projéteis de a eles” (p. 135). Da mesma forma, o
Xèviosso. É o deus da prosperidade, bokono não morre, pois diz-se que “ele
do ouro. Mantém a vida e participa está na terra do depois de amanhã”,
dos nascimentos, é um princípio “ele partiu para Ifé”, “ele foi preparar
de felicidade e de prosperidade (p. remédios, talismãs” (note-se aqui um
95). Está muito ligado a Fá, a Lègba erro de digitação (eyi bo gbe, trans-
também, como mensageiro e guardião. crito erradamente como e yo bo ge.),
As funções deste são tão diversas “ele foi pegar folhas” (eyi ama dagbé
que não se hesita em distinguir várias traduzido erroneamente como “ele foi
representações deles: Agbonuhósu, pegar a boa folha”); “ele retirou o seu
ahi-Légba, To-Lègba etc. asen do chão”, “ele deixou [‘entregou’]
No capítulo 4, “O bokono”, apren- a cabaça da reza”. Confiram, aqui
demos sobre as diversas denominações também, algum indício de que a palavra
do adivinho: babalawo, awo-non, dèka em e jo dèka, que é uma locução

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fon, mostra o total vínculo que um vidência, como foi o caso de Gèdègbe.
sacerdote tem com uma cuia mágica A metagnomia faz parte do ofício
no âmbito religioso, seja na iniciação, do bokono. Como se costuma dizer
seja na ruptura com qualquer tipo de no Benim atual, o bokono não tem
vínculo estabelecido anteriormente. piedade de ninguém, nem enrola;
Em outras palavras, da mesma forma além de revelar coisas do passado,
que nos candomblés brasileiros, o deká do presente e do futuro, ele diz o que
sanciona uma separação, libertação ou pode ser feito e o que não pode ser
despedida com a casa matriz, e no caso feito. A função pode ser exercida por
do bokono a dita despedida se expressa mulheres também, argumenta o nosso
através da metáfora da entrega, uma autor. Mãe Andressa da Casa das Minas
espécie de ruptura de todo vínculo vital, tinha um kpoli. O que reforça a tese de
pois o sacerdote se despede dos vivos. Roger Bastide de que kpoli não tinha
Um aspecto de grande impor- nada a ver com Poli Bogi, provável
tância no capítulo é que, no exame evolução de Toli Gboji, divindade
dos dois papéis evocados anterior- da Casa das Minas de São Luís do
mente, além das capacidades técnicas Maranhão.1
dos adivinhos, temos as faculdades O capítulo 5, “O Fagbasa”, discute
paranormais de alguns deles. Sempre os instrumentos e acessórios da adivi-
guiando os adivinhos, Fá exerce a nhação, e descreve o ambiente de
função de metagnomia, que se define consulta a Fá. O Fagbasa é o espaço
como conhecimento de fenômenos reservado às consultas e às cerimônias
não perceptíveis ou cognoscíveis pelos de Fá na residência do bokono;
sentidos normais. O caso do adivinho
Gèdègbe sobre vários acontecimentos
1 Edmundo Correia Lopes, “O Kpóli de
e fatos escondidos no passado ou no Mãe Andressa”, O Mundo Português,
v. 9, n. 100 (1942), pp.139-144; Pierre
futuro, ou que acontecem no presente Verger, “Le culte des voduns d’Abomey
em outros lugares, é muito conhecido. aurait-il été apporté à Saint Louis de
Maranhon par la mère du roi Ghézo”
O próprio Maupoil soube bem antes, in Verger, Les Afro-Américains (Dacar:
por boca do adivinho, a perda trágica IFAN, 1952), pp. 157-160; e Roger
Bastide, As religiões africanas no Brasil:
de um amigo. Um verdadeiro bokono contribuição a uma sociologia das inter-
penetrações de civilizações, São Paulo:
tem premonições, visões, telepatia e Pioneira/EDUSP, 1989.

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e parece se confundir às vezes com “sistema adivinhatório” e vi “descen-
Fagbadji, espécie de antecâmara. dente, filho”, isto é, o iniciado ao Fá),
O altar que se encontra no quarto de com quem mantém uma ligação muito
Fá chama-se kpe. Vale a pena observar forte, protege a casa inteira e expulsa
que o autor se ocupa também do as doenças (p. 190). Os fa-nu, ou seja,
ambiente do sistema transplantado para o conjunto dos objetos consagrados
as Américas. Encontra ali expressões a Fá, misturados com dendê, bebida
semelhantes e derivadas, contextualiza alcoólica, pequenas penas, penugem,
e dialoga com autores brasileiros da sangue de aves sacrificados, um pó
estirpe de Artur Ramos, Nina Rodrigues branco e diversas “comidas”, formam
e Renato Mendonça, sobre termos uma camada muito longe de ser consi-
como kpeji. derada sujeira que recebe o nome de
Todos os instrumentos e aces- tchékpé (p. 192). Os objetos que fazem
sórios têm o seu lugar predileto, seus parte do material do bokono, tais como
manipuladores e seu simbolismo. os caroços de Fá, as taças para caroços
São objetos como o Duwo, símbolo de Fá, o fagban (receptáculo de Fá),
e manifestação do culto aos falecidos o Pó yé, os Lonflen (bastões de Fá),
membros da grande família dos o Agunmaga (rosário da adivinhação),
bokonos. Símbolo também da tota- o Akpo (bolsa do bokono), o Vode
lidade dos signos de adivinhação, de (seu conteúdo), o Lókpo (prancha dos
todos os espíritos superiores que se dezesseis Du), o gugbasa (facão de
beneficiam dos sacrifícios prescritos Gu), gudaglo (iorubá, a água lustral),
por Fá (p. 187); o asen axrelele [grifo são considerados emblemáticos,
meu, grafia diferente na tradução], repletos de significados, inclusive
bastão de Fá que precede os cortejos alguns objetos, animais e atos execu-
ao bosque sagrado e representa a tados têm uma sobrecarga de simbo-
bengala cerimonial de todos os grandes lismo e sacralidade (pp. 192-234). Por
sacerdotes de Fá já falecidos (este asen exemplo, nas cerimônias do bosque
permite dar de beber, simbolicamente, com o favi, alguns caroços de dendê
aos adivinhos mortos) (p. 188); final- preparados são acrescentados a folhas
mente, Legba Agbanukwen, que é um litúrgicas, dendê, peixe defumado e
Legba que, além do Fá do favi (de fa carne defumada dos roedores glẽzῖ

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e gbeja (espécies de ratos do mato de tradução de me e wa nu kan gbe
provavelmente), os oligoryzomys e no final do primeiro parágrafo da
nigripes (ou Rattus norvegicus, “rato página 235. Trata-se do consulente e
castanho”). Quais são os sentidos não da consulta como diz a tradução.
dados a essa preparação, segundo O incognoscível é o motivo principal
alguns adivinhos? Ela “permite a Fá do consulente; ele quer entender algo,
dizer sempre a verdade. O glénzin adquirir algum meio ou princípio de
vive em buracos, sai à noite e voa. ação. Do outro lado, o adivinho, que
Presume-se que confere poder a Fá e, será o intérprete do que Fá responde:
se uma cobra o morder, quem morre pode ser um ato gerador de impureza
é o réptil. Ao que se diz, come de ao qual Fá responde inculpando Lègbá,
tudo, até elefante. Quanto ao gbeja, um vodum, um Kututó (um morto) ou
serve para preparar remédios para a um Azetó (bruxa), o que traduz o fato
fecundidade das mulheres” (p. 194). de que a pessoa é responsável pelo ato
A falta dos nomes científicos das cometido. As consultas e a execução
plantas, frutos do mar e sementes dos sacrifícios têm dias específicos
impede uma tradução o mais fiel e também condições específicas. Há
possível. outros tipos de consultas como a dos
A forma retangular curvilínea do obis (cola acuminata); e a de Lègba.
fatè (lit. ‘bandeja de Fá’, contração de O capítulo 7 trata das etapas da
fa e atè; também do fatè, com quatro iniciação ao Fá. O autor distingue
cabeças esculpidas e opostas) “evoca três etapas: a infância (Fá Kwin-we),
os quatro pontos cardeais, assim como a adolescência (Fa sin-sen), e a idade
a forma quadrangular das casas” madura (Fá tité). A última é conferida
(p. 199). No segundo caso, “as quatro no bosque sagrado (pp. 287-292).
cabeças correspondem aos quatro Algumas situações são universalmente
pontos cardeais, e representam os reconhecidas como, por exemplo,
quatro primeiros du: Gbe-Méji (leste), o interdito sexual na véspera de
Yéku-Méji (oeste), Woli-Méji (sul) e algumas cerimônias e o sentido
Di Méji (norte)” (p. 201). que tem para os envolvidos: “O ato
No capítulo 6, intitulado sexual é prejudicial à boa fortuna,
“A consulta”, já no início há um erro à feliz disposição de todas as coisas.

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Quando se toca numa mulher, a boa muito a atenção a declaração de um
sorte se retira”, assevera Maupoil bokono: “Fá pede sangue para preser-
(p. 332). A recíproca também existe: var-se da morte”, o que nos autoriza
tanto o homem quanto a mulher a dizer que uma “comparação com a
devem observar esse tabu sexual. Outra transfusão de sangue é admitida…”, já
situação é a dos laços entre o mestre e que há transmissão. Em outras palavras,
o iniciado. Como no caso das religiões o sacrifício é uma espécie de transfe-
de presença africana nas Américas, rência da energia vital, principio caro à
o sacerdote iniciador é considerado o existência dos seres vivos. Acrescenta:
pai do iniciado. “O sangue de um cabrito sacrificado
O capítulo 8, referente aos a fim de se recuperar a saúde de um
sacrifícios, trata estes como mais humano é recebido sob a forma de yé
situados no campo dos signos do que [a sombra, o espírito] e é como trans-
no do vodum Fá, assumindo que Fá fundido para o doente, que recupera as
é vodum, conforme Maupoil. Duas suas forças” (p. 349). Destaque é dado
operações distintas se enquadram também à participação dos mortos. São
na prática do ritual: o vó ou vósísa os asen (objetos metálicos representa-
(o ebó iorubá) “tende à expulsão do mal tivos dos mortos, onde são servidas
e constitui um rito de envio” (p. 347). bebidas e comidas) dos bokonos
E o nu wi-wa (ação de fazer a coisa) ou falecidos, dos familiares, mas também
déhuho (ação de ritmar a oração), que as divindades instaladas na casa, que
“permite estabelecer, por intermédio da representam, no seu sentido mais lato,
vítima, relações recíprocas entre aquele os mortos.
que oferece o sacrifício e o seu deus No capítulo 9, a questão das
e constitui um rito de troca” (p. 347). almas e sua relação com Fá é tratada.
Aí opera-se uma espécie de translado No pensamento daomeano, revelado
de poder sobrenatural, de força vital por vários colaboradores de Maupoil,
da vítima a Fá e deste a quem oferece com comentários do filósofo Gèdègbé,
o sacrifício. Essa lógica opera também “Cada ser vivo, cada animal, cada
com o sangue sacrificial, que possui um planta, cada coisa criada por Mawu
princípio imaterial, uma força mágica possui quatro almas: yé, wensagun,
liberada pelo ato de degolar. Chama lindon e sé”. A diferença entre as

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almas dos homens e dos animais é A segunda parte do livro é dedicada
qualitativa: são mais potentes entre aos signos. O autor faz uma série de
os homens. Neste mundo tenebroso, considerações gerais e distingue os
invisível e misterioso, acrescenta-se o signos principais e os secundários, suas
jòtó, espécie de antepassado epônimo. características e correspondências, suas
“É a propósito do jòtó que se juntam ordens e as mensagens ligadas a eles.
o culto de Fá e o culto aos mortos”, Trata-se de um precioso trecho do livro:
sentencia Maupoil (p. 397). Trata-se de
Denomina-se signo-mãe (du
uma relação exclusiva aos homens; toda nõ), signo-cabeça (du tá) ou Fá
pessoa falecida deve ser substituída na duplo (Fa Mèji), todo signo cujas
duas colunas são iguais. Como
terra por um recém-nascido que não
cada coluna é dividida em quatro
tenha feito mal a ninguém. O falecido conjuntos, o número de combi-
tem um status divino, portanto objeto nações possíveis de signos-mães
de culto. Os eguns são exemplo disso. limita-se a dezesseis.
Os dezesseis primeiros signos são
Fá é consultado para saber quem foi “mães” não por serem todos femi-
que ele enviou ao mundo. Esse sentido ninos, mas pela propriedade que
poderia ser transposto à realidade apresentam de gerar 240 combi-
nações, chamadas du-vi [signos
deste lado do Atlântico quando alguns derivados, signos matriz, grifo
adeptos do candomblé falam em ajuntó meu] ou du-vi-kan-do (signo-fi-
ou juntó, se referindo aos voduns ou lho-levantar-pousar), isto é, signos
derivados formados pela justapo-
orixás secundários: orixá da cabeça,
sição de dois semi-dunõ diferentes.
como o principal; e o e orixá do corpo O termo “mãe” não implica a ideia
como o secundário (ajuntó). No caso da de feminilidade do signo gerador
(pp. 421-422).
umbanda brasileira, se distingue até um
terceiro orixá, que é o ancestral, e que
parece denominação cujo significado O número de signos-mães é
se aproxima mais daquele do jòtó. dezesseis. Os signos derivados resultam
É o pai criador invisível que, junto em 16 x 15 = 240. O conjunto de signos
com o Kpóli, formam duas entidades totaliza 256. Eles são lidos da direita
aparentadas, esta última mais forte que para a esquerda.
a primeira, embora de data posterior (p. Uma das constatações do autor
401). é que existem signos inomináveis,

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uma espécie de tabu de designação. esse gênero textual, afirmando que nem
Pronunciar o nome desse tipo de signo sempre o é), muitas vezes cantado, que
pode levar à infelicidade, se não se resume a lenda associada ao signo.
fizer um ritual de “desculpa”. A mesma É um universo muito amplo o dos
coisa se aplica aos bokono, caso os lemas e lendas. Na maioria dos casos,
signos fossem descobertos no fazun a lenda diz respeito a um animal, um
(de Fá “o sistema de adivinhação”, homem, uma divindade ou uma planta.
e zun “a selva”), local de iniciação de Pode ser que o adivinho queira dar mais
Fá, por exemplo. O sacerdote, uma duração à sessão, entoando cânticos,
vez que encontra o signo durante uma e fornecer, a depender da importância
consulta, fornece uma explicação ao da consulta, muitas explicações.
consulente, ou interpreta a resposta de O capítulo seguinte, que aborda
Fá (p. 431). Trata-se de respostas em os dezesseis grandes signos e suas
parábola. Costuma-se dizer que, mesmo mensagens, ampliará o capítulo
que a resposta de Fá não corresponda anterior a partir de um inventário de
estritamente à consulta feita, em dez, signos, suas características, lemas,
vinte ou trinta anos ela será confirmada. lendas, sacrifícios e cantigas, preces,
Posso dizer que se trata de uma ambi- interditos etc. Em linhas gerais,
guidade necessária, porque as respostas trata-se de signos ligados aos quatro
de Fá são ambíguas, que oferecem pontos cardeais, com representação
caminhos diversos, variados. Quase gráfica e representação esotérica
nunca são verdades absolutas: podem respectivas. A gráfica faz-se a partir
ser, inclusive, adiantadas, porque de figuras geométricas, na sua maioria
nem sempre lidam com o passado e o (às vezes preenchidas ou modificadas)
presente, mas também com o futuro. de representações de animais, fenô-
O du comporta uma série de lendas que menos naturais, astros e espécimes da
poderão ser consideradas como espécies natureza.
de lemas ad hoc, porque cada caso é Retomando a questão dos pontos
um caso; trata-se de uma adaptação a cardeais, Gbe Mèji, o primogênito
cada caso. É como se fosse um nó a ser de sexo masculino, é o pai e chefe
desatado. O lema, na realidade, é um dos dunõ, e é o oriente; a sua função
provérbio (embora Maupoil relativize principal é manter a vida, comandar

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a terra, garantir as colheitas. Senhor Gbe seria o pai. Há ainda adivinhos
do dia e do que acontece na terra que acham que Fu é mãe de Gbe, daí
durante o dia, rege também a abóbada asseverar que Fu seria hermafrodita.
celeste nas horas de claridade (p. 444). Fu representa a mãe, o princípio
O signo ligado ao oeste é Yéku Méji; material; mãe de toda a criação
é o contrário do símbolo de Gbe. (p. 597). Com relação ao significado de
Provavelmente de sexo feminino. cada uma das expressões antes de Méji,
A razão? Como Gbe e Yèku são consi- não se trata de nomes de divindades
derados pais de todos os outros signos, mas, sim, de situações emanadas de
há probabilidade de que Yèku seja do combinações de posições da própria
sexo feminino. Aliás, Yéku é o inverso cadeia de Fá que se repetem nos
do dia, o inverso da vida. Portanto, dezesseis primeiros signos. Além destes
representa o ocidente, a noite e a morte. signos, existe o mensageiro Tché-Tula,
A sua cor é o negro. O quarto signo, que serve de transição entre eles e os
Di Méji (“as duas nádegas”), é do sexo signos menores. Não possui represen-
feminino, corresponde ao norte. tação esotérica. Segundo o autor, “com
Fora a representação dos quatro a designação, Tula apresenta afinidades
pontos cardeais, outros doze signos com Legbá” (p. 602).
aparecem. É de notar que todos Ainda vale a pena sugerir outra
terminam com a palavra “Méji”, que em análise, justamente a que trata da
iorubá significa dois. Os signos têm uma relação dos signos com cores, animais,
representação gráfica dupla, isto é, cada elementos da natureza e divindades do
metade se reproduz de maneira idêntica. panteão vodum. Existem também tabus
Assim, temos: Loso Méji, Wenlé-Méji, ou proibições com relação ao consumo
Abla Méji, Aklã-Méji, Guda-Méji, de alguns animais. Não cabe estudar
Sa-Méji, Ka-Méji, Turukpen-Méji, Tula tudo nesta resenha; daremos alguns
Méji, Lété Méji, Tché Méji e Fu-Méji exemplos sobre quão complexa é a
(pp. 488-604). Um destaque importante hagiografia vodum.
referente a este último é que, contraria- As aves, como a chamada
mente à primeira versão que une Gbe lekeleke, o urubu (aklasu), o elefante,
Méji a Yéku Méji como casal, Fu-Méji o cachorro, a árvore roko (Chlorophora
é a mãe dos quatorze dunõ dos quais excelsa), as montanhas, a terra o mar;

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rios, chuva e mar, por exemplo, têm Irosun Mèji, é o vermelho. É um
o signo de Gbe Méji. A sua união signo muito forte e muito temido,
é com grandes divindades como sua cor favorita simboliza sangue,
Mawu, Lisa, Gbaadu, Xèviosso, doença, acidente, cólera, fogo, raio,
Sakpata, Gu, Dan etc. Como proi- perigo sob todas as suas formas
bição, por exemplo, há iniciados no (p. 490). A cor azul, com tons
bosque que não podem beber vinho variados, é associada a Abla Méji e
de palma, comer acaçá embrulhado Aklan Méji. Outras cores são o preto
na folha zamã, nem comer carne de e o branco (Guda Méji e Sa Méji,
leopardo, de cachorro, de elefante, de por exemplo).
beija-flor, do pequeno roedor agidi- Há um destaque importante:
gbahun, de hipopótamo, de aves de o vodum Lègba aparece em todo o
rapinha e, sobretudo, do galo (p. 459). corpus literário de Fá. A título de
O quarto signo, Di Mèji, representa ilustração, o décimo terceiro signo,
a mulher e diz-se que foi esse signo Tula Mèji, está unido a Lègba, mas
que incentivou os humanos a copular, também a Duduwa ou Ajaguna, Hohovi
mas ao mesmo tempo há uma estreita (os gêmeos), Dan, Gu, Ayiyan e Tóhósu.
correspondência entre Di-Mèji e as Lègba aparece como um obstáculo para
kennesis, isto é, as mulheres feiti- a resolução de problemas, atrapalha; e
ceiras; mas também às princesas recebe oferendas para desatar a corda.
(Nã), aos gêmeos e a Gbaadu e os É astuta, brincalhona, como demonstra
tòhósus (anões reais divinizados) uma lenda protagonizada por um
(pp. 479 e 481-488). Tem pontos esquilo (pp. 580-581).
comuns com o sexto signo, que é O domínio do incognoscível
Wenlé-Méji, e outras divindades como ou o céu é também evocado com
Turukpen Méji, Ka Méji, na medida mais insistência nos últimos signos.
em que estes se encontram associados Em Lètè Méji, por exemplo, na
a Sakpata, aos kennesis, aos tohósus, representação esotérica, o quadrado
a Gu, a Dan, a Lisa e aos gêmeos, simboliza o domínio dos nossos
o que lhes confere um poder maléfico conhecimentos, que é a terra (Sakpata).
considerável. No que tange à cor, No entanto, o círculo que se equipara
no caso de Loso-Mèji, do iorubá com o reino do incognoscível,

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o vasto, o infinito, é chamado wéké ou ponto de vista do cliente, como um
wéké-non, nome honorífico de Lisa e culto ocasional. O que nos faz entender
Danbada Hwedo (pp. 583-591). também que existe uma espécie de
A mesma ambiguidade atribuída dualidade bokonos/voduns x áugures/
a Lègba (atrapalha e brinca, mas dignitários religiosos (p. 726).
recompensa) encontra-se em Tché Se, então, temos uma espécie de
Méji, termo que evoca a ideia de estudo dos mecanismos, teremos, na
arrebentar, de quebrar, de romper em segunda parte da obra, o estudo da
dois, na língua nagô (p. 591). É signo ideologia, isto é, o sentido de Fá. Uma
perigoso, de péssimo augúrio, mas mitologia completa substitui outra
ao mesmo tempo Tché Méji promete mitologia completa; uma busca ideo-
riqueza e longevidade. lógica desvenda um sincretismo; um
Na conclusão Maupoil adverte sistema religioso especial cede lugar
sobre o caráter transcultural da a um sistema autóctone. Papel funda-
geomancia na antiga Costa dos mental desempenhado pelo bokono é a
Escravos, a psicologia do adivinho sua intervenção diante das inquietações
diante de sua clientela, o que pode da vida familiar e social, com espírito
levar esperança a esta última já que a de equilíbrio. Como grande psicólogo,
consulta é sobre o destino. A prove- intérprete e conselheiro, esse homem
niência de Fá é determinada por um sabe explicar as nuanças entre o bem
segmento histórico, mas um segmento e o mal.
descritivo revelou-se necessário para Paulatinamente, o culto vai
situá-lo em “suas relações com os entrando em decadência, palavra
grandes cultos públicos, familiarizando certa que expressa uma ameaça
o leitor com os mecanismos da consulta constante, mas resiste ainda; apesar
e da adivinhação, com os agentes de disso, os próprios convertidos ao
seu funcionamento e com o ritual de cristianismo continuam a respei-
Fá, tal como se impõe ao profano e tá-lo, o que situa Fá como um
ao iniciado, ao leigo e ao sacerdote” costume religioso mais resistente
(p. 726). No âmbito dos reinos, Fá do que qualquer outra crença.
seria considerado, do ponto de vista A consulta ao Fá implica não
do bokono, como culto especial, e do se apressar para qualquer

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empreendimento, porque sempre a A colonização francesa, à qual
reflexão vai ganhar sobre a ação e o autor esteve associado como seu
os impulsos serão subordinados aos representante, contribuiu muito para
conselhos. A própria cerimônia do o desligamento consciente das práticas
fazun garante segurança, dignidade, morais e religiosas, isto é, uma sorte de
respeito e responsabilidade diante laicização ou humanização da moral,
do seu destino. Dessa forma, o que é deplorável, segundo o etnólogo
Fá traduz um esforço inteligente no francês, que assumiu como missão
sentido de emancipar o pensamento “fazer com que a pesquisa avance na
(p. 727). Contradições não excluem África, na medida dos nossos recursos,
resistência; vitalidade não exclui e que nos dedicamos ao estudo de civi-
múltiplas proliferações, nem reação lizações que são tão dignas de serem
face “ao conjunto das crenças ante- conhecidas como quaisquer outras”
riores e sobre o culto aos voduns e aos (p. 729). Sem dúvida, trata-se de um
mortos” (p. 728). Maupoil sugere que autor que procurou se distanciar de
um novo estudo nas regiões iorubá e roteiros preestabelecidos, de entre-
haussá possa discernir a origem e as vistas à moda jornalística, isto é, de
causas de tantas formações adven- camisa-de-força, e de interpretações
tícias (p. 728). errôneas, especulativas.

Hippolyte Brice Sogbossi


Universidade Federal de Sergipe

doi: 10.9771/aa.v0i64.46509

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