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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO


ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

CECILIA TOSELI

O ÊXODO COMO TRADIÇÃO FUNDANTE DE


ISRAEL NORTE
A PARTIR DE 1REIS 12,26-32

SÃO BERNARDO DO CAMPO


2016

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CECILIA TOSELI

O ÊXODO COMO TRADIÇÃO FUNDANTE DE


ISRAEL NORTE
A PARTIR DE 1REIS 12,26-32

Dissertação apresentada em cumprimento às


exigências do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião da
Universidade Metodista de São Paulo,
para obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. José Ademar Kaefer

SÃO BERNARDO DO CAMPO


2016
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A dissertação de mestrado intitulada: O ÊXODO COMO TRADIÇÃO FUNDANTE DE


ISRAEL NORTE A PARTIR DE 1REIS 12,26-32, elaborada por CECILIA TOSELI, foi
apresentada e aprovada no dia 19 de setembro de 2016, perante banca examinadora composta
pelo Prof. Dr. José Ademar Kaefer (Presidente/UMESP), pela Profa. Dra. Suely Xavier dos
Santos (Titular/UMESP) e pelo Prof. Dr. Valmor da Silva (Titular/PUC-Goiás).

___________________________________________
Prof. Dr. José Ademar Kaefer
Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________
Prof. Dr. Helmut Renders
Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião


Área de Concentração: Linguagens da Religião
Linha de Pesquisa: Literatura e Religião no Mundo Bíblico

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Esta pesquisa foi produzida com apoio da CAPES.

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AGRADECIMENTOS

À minha querida família,


Aos queridos amigos, colegas, professores e funcionários,
Muito obrigada!

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RESUMO

Esta pesquisa apresenta a tradição do Êxodo-Deserto como tradição fundante de Israel


Norte, consolidada no séc. VIII a.EC, a partir da leitura de 1Rs 12,26-32. O texto de 1Rs
12,26-32 apresenta as medidas religiosas de Jeroboão para consolidar a independência do
recém-fundado Reino do Norte, em relação à “casa de Davi” e à “casa de Javé em Jerusalém”
(v. 26-27). A perspectiva da redação é nitidamente judaíta. Consideramos, porém, que, por
trás da narrativa de 1Rs 12,26-32, encontram-se ecos do Êxodo como tradição fundante de
Israel Norte, consolidada durante o reino de Jeroboão II (788-747). Situamos o núcleo
histórico da memória cultural do Êxodo em Israel Norte no contexto da campanha militar de
Sheshonq I (945-925) em Canaã, na segunda metade do séc. X a.EC. Apesar da derrota da
entidade político-territorial da “casa de Saul”, situada no planalto de Gabaon-Betel, a retirada
forçada do Egito (por motivos desconhecidos), em pouco tempo, reacendeu nos
remanescentes grupos das montanhas o sentimento de vitória e de libertação, após séculos de
dominação egípcia em Canaã. Neste contexto, o Êxodo nasce como memória de luta contra o
Egito, e não de migração do Egito. O deus do Êxodo é, então, concebido como uma divindade
guerreira, que vai à frente de seu povo, garantindo-lhe a vitória. A saída do Egito das terras de
Canaã abriu caminho para a consolidação do reino de Israel, sob o governo dos Omridas, no
início do séc. IX a.EC. Assim, é possível compreender que a memória da libertação do Egito
tenha-se tornado propaganda emblemática da vitória do estado nacional contra o seu grande
inimigo, após séculos de sofrimento e humilhação. Por outro lado, a tradição do Êxodo
mantém-se como força de resistência contra a exploração e opressão monárquica, conforme
atesta a profecia de Oseias e Amós, no séc. VIII a.EC. A tradição do Deserto constituía uma
memória independente. Foi unida à tradição do Êxodo, provavelmente, durante o reinado de
Jeroboão II (788-747), conforme atestam inscrições e desenhos do sìtio de Kuntillet „Ajrud. A
partir da profecia de Oseias e Amós e dos registros de Kuntillet „Ajrud, consideramos que o
culto nacional em Israel Norte, no séc. VIII a.EC, era dedicado a Javé, representado na forma
do “touro jovem” e associado ao Êxodo, em santuários como Betel, Dã e Samaria. Antes,
porém, de Javé tornar-se a divindade tutelar de Israel, a memória da libertação do Egito teria
sido atribuída, inicialmente, ao deus El, divindade-suprema do panteão de Ugarit,
tradicionalmente representado na forma do touro e ligado à deusa Asherá. Concorre com a
tradição do Êxodo, à época de Jeroboão II, outra narrativa de fundação de Israel Norte, a
tradição de Jacó, ligada a memórias de família. Contudo, após a queda de Samaria, as antigas
memórias de Jacó são relidas em Judá, submetidas à tradição de Abraão e suplantadas pela
tradição do Êxodo, que se torna, então, a partir do final do séc. VII a.EC, a narrativa fundante
de um Israel unificado, considerado um só povo desde as origens.

Palavras-chave: Êxodo, Javé/El, “touro jovem”, Betel, Israel Norte.

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ABSTRACT

This paper presents the Exodus-Desert tradition as Northern Israel foundational


tradition, consolidated in the 8th century BCE, based on Bible reading 1 Kings 12.26 to 32.
The passage 1 Kings 12.26-32 presents Jeroboam's religious measures to consolidate
the independence of the newly founded Northern Kingdom, in relation to the "house of
David" and the "house of Yahweh in Jerusalem" (v. 26-27). The passage perspective is clearly
Judahite. However, we believe that, behind the 1 Kings 12.26-32 narrative, there are Exodus
echoes as Northern Israel foundational tradition, consolidated during Jeroboam II reign (788-
747). We have placed the historical core of the Exodus cultural memory in Northern Israel
into the context of Sheshonq I military campaign (945-925) in Canaan, in the second half of
the 10th century BCE. Although the "house of Saul" political-territorial defeat, located on the
Gibeon-Bethel Plateau, the forced withdrawal of Egypt (for unknown reasons), in a short
time, reignited the victory and freedom feeling in the remaining groups of the mountains, after
centuries of Egyptian domination in Canaan. Therefore, the Exodus is born as a memory of
fight against Egypt, and not as migration from Egypt. Thus, the Exodus God is conceived as a
warrior divinity who leads his people, ensuring them victory. The Egypt withdrawal from
Canaan lands shaped the path for Israel kingdom consolidation, under the Omrides govern, in
the beginning of the 9th century BCE. Thus, it is possible to understand that the memory of
freedom from Egypt has become an emblematic propaganda of the national state victory
against his great enemy, after centuries of suffering and humiliation. On the other hand, the
Exodus tradition remains as the resistance force against monarchical exploitation and
oppression, as evidenced by Hosea and Amos' prophecy, in the 8 th century BCE. The Desert
tradition was an independent memory. It was attached to the Exodus tradition, probably
during Jeroboam II reign (788-747), as evidenced by inscriptions and drawings located at
Kuntillet 'Ajrud site. Based on Hosea and Amos' prophecy and according to Kuntillet 'Ajrud
records, we consider that the national cult in Northern Israel, in the 8 th century BCE, was
dedicated to the Yahweh, represented as the "young bull" and associated with the Exodus, in
shrines as Bethel, Dan, and Samaria. However, before Yahweh became Israel tutelary
divinity, Egypt liberation memory had been assigned initially to the god El, an Ugarit
pantheon supreme divinity, traditionally represented as a bull and associated with Asherah
goddess. Another Northern Israel foundational narrative competes with the Exodus tradition
during Jeroboam II reign, the Jacob tradition, associated with family memories. However,
after Samaria fall, Jacob's old memories are once again read in Judah, submitted to Abraham
tradition and supplanted by the Exodus tradition, which then becomes, from the end of the 7th
century BCE, the foundational narrative of a unified Israel, considered one people from the
beginning.

Keywords: Exodus, Yahweh/El, “young bull”, Bethel, Northern Israel.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 11
2 CAPÍTULO 1: ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1Rs 12,26-32 15
2.1 TRADUÇÃO INTERLINEAR LITERAL 17
2.2 TRADUÇÃO LITERAL 20
2.3 CRÍTICA TEXTUAL 21
2.4 DELIMITAÇÃO 23
2.5 ESTRUTURA 26
2.6 ANÁLISE DE COESÃO 29
2.6.1 A Coesão Interna de 1Rs 12,26-32 29
2.6.2 O Bloco de 1Rs 11 -14 e o Livro de Reis 31
2.7 GÊNERO LITERÁRIO E VISÃO DE MUNDO 34
2.7.1 Gênero Literário 34
2.7.2 Gênero Literário e Visão de Mundo 35
2.8 ANÁLISE SEMÂNTICA 37
2.8.1 Os Santuários de Betel e Dã (v. 26-30) 37
2.8.1.1 O medo de Jeroboão (v. 26-27) 37
2.8.1.1.1 “Voltar” 39
2.8.1.1.2 “Subir” 39
2.8.1.1.3 “Casa de Davi” e “casa de Javé em Jerusalém” 40
2.8.1.1.4 “Sacrifìcios” 41
2.8.1.1.5 “Matar” 42
2.8.1.1.6 “Jeroboão” e “Roboão” 43
2.8.1.2 As Ações de Jeroboão (v. 28-29) 45
2.8.1.2.1 O aconselhamento do rei 45
2.8.1.2.2 Os “touros jovens” 47
2.8.1.2.3 “Eis teus deuses, Israel” 49
2.8.1.2.4 Os santuários de “Betel” e “Dã” 53
2.8.1.3 A consequência das ações de Jeroboão (v. 30) 55
2.8.2 Os Lugares Altos (v. 31-32) 57
2.8.2.1 “Lugares altos” 58
2.8.2.2 “Casa de lugares altos” 60
2.8.2.3 Os sacerdotes 60
2.8.2.3.1 Sacerdotes das “extremidades do povo” 61

8
9

2.8.2.3.2 Sacerdotes “que não eram dentre os filhos de Levi” 62


2.8.2.3.3 “Sacerdotes dos lugares altos” 64
2.8.2.4 A festa 66
2.8.2.5 O altar de Betel 67
2.8.2.6 “Para sacrificar” 68
2.9 RELEITURAS 70
2.9.1 A Redação Josiânica 71
2.9.2 A Redação Pós-Exílica 72
2.10 CONCLUSÃO PARCIAL 75
3 CAPÍTULO 2: AS RAÍZES HISTÓRICAS DO ÊXODO NO SÉC. X 78
3.1 A CAMPANHA DE SHESHONQ I 79
3.1.1 A Datação 79
3.1.2 O Registro de Karnak 80
3.1.3 Os Objetivos da Campanha de Sheshonq I 81
3.1.3.1 Jerusalém 82
3.1.3.2 A região Sul 84
3.1.3.3 O vale de Jezrael 85
3.1.3.4 A área de Gabaon-Betel e do rio Jaboque 87
3.2 O REGISTRO DE KARNAK E O TEXTO BÍBLICO 91
3.3 A TRANSIÇÃO DE SAUL PARA JEROBOÃO I 94
3.4 AS RAÍZES HISTÓRICAS DO ÊXODO NO SÉC. X 97
3.5 CONCLUSÃO PARCIAL 99
4 CAPÍTULO 3: A TRADIÇÃO DO ÊXODO EM ISRAEL NORTE 101
4.1 O ÊXODO E A TRADIÇÃO DAS MONTANHAS EM ISRAEL NORTE 103
4.1.1 Elementos da Tradição Norte-Israelita do Êxodo 104
4.1.2 A Fórmula Tradicional do Êxodo: “Subir do Egito” 105
4.2 O ÊXODO E A MONARQUIA EM ISRAEL NORTE 109
4.2.1 O Contexto Político-Religioso da Monarquia 110
4.2.2 O Êxodo e a Tradição Profética 111
4.2.3 O Êxodo e a Propaganda do Rei 112
4.2.4 Kuntillet „Ajrud 113
4.2.5 O Êxodo e a Tradição do Deserto 118
4.2.6 O Êxodo e a Tradição de Jacó 120
4.3 O ÊXODO E A TRADIÇÃO DO CULTO A EL/JAVÉ EM ISRAEL NORTE 122
4.3.1 O Deus El na Tradição de Israel 123

9
10

4.3.2 O Sìmbolo do “Touro” 124


4.3.2.1 Os textos bíblicos 125
4.3.2.2 A iconografia taurina 126
4.3.3 El, Javé, o Touro e o Êxodo 127
4.3.4 Betel e as Tradições de Israel Norte 129
4.4 CONCLUSÃO PARCIAL 131
5 CONCLUSÃO FINAL 133
REFERÊNCIAS 136

10
11

1) INTRODUÇÃO

O texto de 1Rs 12,26-32, em sua forma final, apresenta as medidas religiosas de


Jeroboão I (931-9191) para consolidar a independência do Reino do Norte em relação ao
domínio da casa de Davi e à primazia do culto a Javé no santuário de Jerusalém, a partir da
perspectiva da divisão dos reinos.
Uma primeira leitura de 1Rs 12,26-32 nos dá a entender que a fabricação dos “touros
jovens”2, os santuários de Betel e Dã, os lugares altos, os sacerdotes locais, os sacrifícios, as
procissões e as festas cultuais teriam sido “inovações” de Jeroboão I, a fim de evitar que o
povo continuasse a subir à casa de Javé em Jerusalém (v. 27). E que a “recém-fundada”
dinastia norte-israelita teria surgido a partir da ruptura com a casa de Davi, que governaria o
chamado Reino Unido.
As medidas religiosas atribuídas a Jeroboão I pelo narrador são avaliadas
negativamente (1Rs 12,30), e o chamado “pecado de Jeroboão” passa a constituir o paradigma
da avaliação (teológica) negativa de todos os reis de Israel Norte, sendo considerado, por fim,
a razão da queda do reino (e motivo de advertência também para Judá, cf. 2Rs 17,19).
Contudo, pesquisas recentes da Arqueologia e estudos exegéticos literários sugerem
caminhos diferentes, fazendo-nos rever a interpretação de 1Rs 12,26-32.
Nos últimos trinta anos, os resultados das pesquisas no campo da Arqueologia têm
intensificado o debate nos estudos bíblicos acerca do Primeiro Testamento. Uma das questões
mais discutidas se refere às narrativas sobre o Reino Unido, sob a primazia de Davi e
Salomão, e a centralidade do culto a Javé no templo de Jerusalém. Ao contrário do que até
então se afirmava, a grandiosidade territorial e a suntuosidade das construções arquitetônicas
do reino de Israel, até então atribuìdas ao “império” de Davi e Salomão, correspondem, na
verdade, às configurações territoriais do Reino do Norte durante o governo da dinastia

1
A datação dos reis segue a cronologia proposta por Kaefer em: KAEFER, J.A. A Bíblia, a Arqueologia e a
História de Israel e Judá. São Paulo: Paulus, 2015, p. 68-69.
2
Sobre o substantivo hebraico ‘egel (na forma plural construto em 1Rs 12,28), comumente traduzido por
“bezerro”, optamos pela tradução “touro jovem”, conforme a nota de Amihai Mazar, citando W. F. Albright: “As
for the relation between “calf” (egel) and “bull” (shor or par), W. F. Albright suggested that the biblical term
„egel may relate to a young bull (up to three years old)” (MAZAR, 1982, p. 41). A tradução de „egel por “touro
jovem” também é adotada por José Ademar Kaefer, com a seguinte justificativa: “„egel é um touro de cerca de
um ano de idade (Lv 9,3; Mq 6,6), por isso, optamos pela tradução „touro jovem‟, que nos parece mais
aproximada que „bezerro‟, como normalmente é traduzido nas versões portuguesas.” (KAEFER, 2015a, p. 881).
11
12

Omrida, em Samaria, no séc. IX3. Na época de Davi, provavelmente, no séc. X, Jerusalém é


apenas uma vila pequena e marginal, esparsamente ocupada. É a casa de Saul que governa a
primeira entidade territorial norte-israelita no séc. X, a partir do planalto de Gabaon-Betel,
reunindo praticamente todas as condições necessárias à formação de um estado. Essas e outras
pesquisas resultaram na percepção de que o surgimento do Reino do Norte é anterior e
independente do Reino do Sul (embora interligado), e que Israel Norte deteve a hegemonia
geopolítica sobre Judá até a queda de Samaria em 721 (FINKELSTEIN; SILBERMAN,
2003).
Tal perspectiva abre novos caminhos para a leitura da história (bíblica) dos dois
reinos, não apenas a partir da visão do Sul, como geralmente é feita, mas também a partir da
visão do Reino do Norte, tanto na dimensão geopolítica quanto religiosa.
Consequentemente, a ideia de unicidade que subjaz na compreensão do Êxodo em
relação às origens de Israel como um todo, norte e sul, também suscita uma revisão a partir da
hegemonia do Reino do Norte. Em outras palavras, o que significa compreender o Êxodo
como tradição fundante do Reino do Norte, antes de se tornar memória de fundação de
“Israel” compreendido como um só povo, unificado desde as origens? Em que consiste a
memória de libertação do Egito em Israel Norte? Como compreender a expressão “subir do
Egito” quando o surgimento de Israel Norte está ligado ao processo de fortalecimento dos
grupos das montanhas da região centro-norte de Canaã em seus confrontos com o Egito? Ou
como as narrativas do deserto já estão incluídas no núcleo antigo da profecia de Amós e
Oseias no séc. VIII, e não aparecem, por exemplo, em Isaías e Miqueias, profetas do sul, no
mesmo período? Ou ainda, se o Êxodo é tradição fundante do Reino do Norte, como é aceita
por Judá e se torna tradição unificadora de “todo Israel” no séc. VII?
Do ponto de vista literário, a história de Jeroboão I, ligada ao surgimento de Israel
Norte, suscitou diversas versões, com diferenças notórias, principalmente entre a
Historiografia Deuteronomista, Cronista e da Septuaginta (LXX). Por exemplo, a divisão do
reino e a ascensão de Jeroboão I ocorrem por determinação de Javé nas três versões 4. Porém,
enquanto a ascensão de Jeroboão está associada à punição de Javé ao “pecado” de Salomão
(1Rs 11,1-25) na visão dos redatores deuteronomistas, as referências negativas a Salomão são
omitidas pelo Cronista. A versão da LXX, por sua vez, acrescenta 3Rs 12,24a-z, texto que

3
Todas as datas neste trabalho deverão ser entendidas como anteriores à era comum, se não houver outra
especificação.
4
1Rs 11,11-13. 29-39 e 1Rs 12,1-20.21-24; 2Cr 10-13; 3Rs 12,n.y (LXX).
12
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acentua a relação de proximidade entre Jeroboão I e o faraó “Sesac” 5 (1Rs 11,40; 14,25)6.
Detivemo-nos na Historiografia Deuteronomista, texto que traduz as tradições político-
religiosas norte-israelitas a partir de uma visão nitidamente sulista, à época de Josias (640-
609) e, mais tarde, no período do Segundo Templo.
A partir da análise exegética de 1Rs 12,26-32, buscamos compreender o contexto
político-religioso de Israel Norte, particularmente a tradição do Êxodo, sem as lentes
corretoras dos redatores judaítas.
Por exemplo, a associação de Jeroboão I e Roboão ao faraó “Sesac” em 1Rs 11,40 e
14,25, que é identificado como Sheshonq I (945-925), rei da 22ª dinastia do Egito, situa-nos
no séc. X. No entanto, a extensão territorial desde Betel até Dã (1Rs 12,29) corresponde à
configuração geopolítica de Israel no período de Jeroboão II (788-747), no séc. VIII.
A polêmica em torno dos “touros jovens” de Betel e Samaria, do culto nos lugares
altos e das festas populares é maior durante o governo de Jeroboão II (783-743), conforme
atesta a crítica profética de Oseias e Amós. E a mudança da iconografia do touro para imagens
com asas em selos da época ocorre somente no final do séc. VIII. Portanto, não parece que o
conflito apresentado em 1Rs 12,26-32 reflita uma realidade do séc. X.
Antes, o culto oficial a Javé, representado na forma dos touros jovens e associado ao
Êxodo como tradição fundante, nos santuários do rei, conforme o texto de 1Rs 12,26-32,
reflete a tradição de culto a Javé própria de Israel Norte, consolidada à época do reinado de
Jeroboão II, porém retroprojetada para o tempo de Jeroboão I (RÖMER, 2015a; BERJUNG,
2009). Mas o que dizer, então, sobre o culto e a memória do Êxodo em Israel no séc. X?
A correspondência extra bìblica entre “Sesac” e o faraó Sheshonq (945-925) nos
remete ao contexto da campanha militar egípcia em Canaã no final do séc. X. Neste sentido, o
núcleo da memória do Êxodo, consolidada como tradição fundante de Israel Norte à época de
Jeroboão II (788-747), estaria ligado ao processo de fortalecimento dos grupos das montanhas
da região centro-norte de Canaã: primeiro no planalto de Gabaon-Betel, depois em Siquém-
Tersa e, finalmente, em Samaria. Apesar da vitória de Sheshonq sobre a “casa de Saul” (como
veremos), a retirada do Egito de Canaã em curto período deve ter reacendido o sentimento de
vitória e libertação, após tantos séculos de opressão. Este nos parece o cenário mais próximo

5
O substantivo próprio “Sesac”, conforme a tradução da Bíblia de Jerusalém em língua portuguesa (2006),
corresponde à transliteração da forma Shishaq no Texto Massorético. A forma “Sheshonq” corresponde à
transliteração em língua inglesa. O original é egípcio.
6
Em 2Cr 10,1-19, apaga-se a expressão de aprovação “todo Israel”, que aparece em 1Rs 12,20; em 3Rs 12,24a-
z, aumenta-se a crítica pessoal a Jeroboão ao se omitir todos os versículos que lhe são favoráveis, conforme 1Rs
11-12; e em 2Rs 17,21, embora se apague totalmente a base profética da divisão do reino, a responsabilidade
pela queda do reino é atribuìda a Jeroboão e aos “israelitas”, que o imitaram.
13
14

da tradição do Êxodo no Reino do Norte, conforme a profecia de Oseias e Amós, alguns


salmos antigos originários do norte e as inscrições e desenhos de Kuntillet „Ajrud
(FINKELSTEIN, 2002; 2015b).
As características do culto a Javé em Israel Norte no séc. VIII, em comparação com o
culto a Javé no santuário de Jerusalém, representado pela arca, sustentada pelos querubins,
leva-nos a buscar compreender o contexto religioso do Antigo Oriente Próximo. Neste
sentido, parece-nos que, antes de Javé se tornar o deus nacional de Israel Norte (o que
situamos aproximadamente no séc. IX, no governo dos Omridas), a libertação do Egito pode
ter sido atribuída ao deus El, chefe do panteão de Ugarit, representado tradicionalmente na
forma do touro e cultuado em suas diversas manifestações locais, por vezes relacionado ao
Êxodo, em textos bíblicos como Nm 23,22; 24,8-9, e ligado à deusa Asherá (MAZAR, 1982;
NA‟AMAN, 2011b; KAEFER, 2015a).
Assim, organizamos esta pesquisa em três capítulos. No primeiro capítulo,
apresentamos a análise exegética de 1Rs 12,26-32. Entendemos que, por trás de uma redação
nitidamente judaíta, encontram-se ecos da tradição do Êxodo como memória fundante de
Israel Norte, consolidada no séc. VIII. No culto nacional, Javé era a divindade tutelar,
representado na forma do “touro jovem” e associado ao Êxodo, em diferentes santuários
norte-israelitas, como os de Betel, Dã e Samaria.
No segundo capítulo, situamos o núcleo histórico da memória cultural do Êxodo em
Israel Norte no séc. X, a partir do contexto da intervenção militar do faraó Sheshonq I em
Canaã, sobretudo no planalto de Gabaon-Betel, sede da primeira entidade político-territorial
norte-israelita, ligada à “casa de Saul”.
No terceiro capítulo, apresentamos a tradição do Êxodo em Israel Norte: o Êxodo e a
tradição de luta dos “homens fortes” das montanhas centrais do norte contra o Egito, no séc.
X; o Êxodo no contexto político-religioso da monarquia norte-israelita, sobretudo durante o
reinado de Jeroboão II (788-747); o Êxodo e a tradição do Deserto; o Êxodo e a tradição de
Jacó; e, por fim, o Êxodo e a tradição do culto a El/Javé, representado na forma do “touro
jovem”, em Israel Norte.
Nesta pesquisa, procuramos relacionar Bíblia, História e Arqueologia. A ideia do
Êxodo como tradição de Israel Norte baseia-se, sobretudo, na pesquisa de Israel Finkelstein,
em diálogo com José Ademar Kaefer, Thomas Römer, Rainer Albertz, Mario Liverani, Nadav
Na‟aman e Burke Long, entre outros.

14
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2) CAPÍTULO 1: ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1Rs 12,26-32

Na forma final do texto de 1Rs 12,26-32, as medidas religiosas atribuídas a Jeroboão


para consolidar a autonomia de Israel são apresentadas a partir da perspectiva da primazia da
casa de Davi e da centralidade do culto a Javé em Jerusalém. De acordo com a narrativa, o
temor de Jeroboão é que, se continuar a subir à “casa de Javé em Jerusalém” para oferecer
sacrifìcios, o “coração” do povo se voltará para “Roboão, rei de Judá”, e decidirão matá-lo (v.
26-27). Esta é uma narrativa claramente pautada pela teologia da Aliança, tão importante aos
redatores deuteronomistas de Judá. E a relação entre a “casa de Javé” e a “casa de Davi” bem
reflete a concepção da monarquia no Antigo Oriente Próximo.
Assim, a fim de evitar o risco de perder o reino, segundo o narrador, Jeroboão teria
fabricado dois “touros jovens” de ouro e os teria entronizado um em Betel e o outro em Dã,
em meio a aclamações, procissões e festa (v. 28-30.32). E continua a enumeração das ações
atribuídas a Jeroboão pelo narrador: ele teria disseminado o culto nos “lugares altos”,
designado sacerdotes locais (não levitas), oferecido (pessoalmente) sacrifício sobre o altar de
Betel e instituìdo uma festa “como o festival em Judá” (v. 31-32). Tais ações, que fazem parte
da tradição religiosa de Israel Norte, são vistas como se fossem “inovações” de Jeroboão I em
relação ao culto a Javé em Jerusalém, considerado mais antigo e o único legítimo; por isso,
são explicitamente condenadas pelo narrador (1Rs 12,30), tornando-se o chamado “pecado de
Jeroboão” um refrão paradigmático na avaliação dos reis de Israel Norte e, finalmente, razão
da queda de Samaria (e motivo de advertência a Judá em 2Rs 17,19).
Desta leitura geral, somos levados a concluir, no nível da redação, que o culto a Javé
nos santuários norte-israelitas, seus objetos cultuais, sacerdotes, sacrifícios, rituais e festas
seriam um desvio em relação à forma de culto a Javé estabelecida no santuário de Jerusalém,
sendo, por isso, considerados ilegítimos. E que a ascensão de Jeroboão constituiria uma
ruptura do Reino Unido, governado pela casa de Davi.
Ao estabelecer o “pecado de Jeroboão” nas origens, a narrativa deuteronomista
construiu um imaginário segundo o qual o Reino do Norte foi concebido negativamente desde
a sua fundação, seja por causa do local impróprio para o sacrifício (fora de Jerusalém), seja
por causa da representação material da divindade (os touros jovens), ou ainda por causa da
acusação de adoração a “outros deuses”. O sentido polìtico do Êxodo (v. 28), ligado à

15
16

libertação do jugo imposto por Salomão e Roboão às “tribos” do norte (1Rs 12,1-20), quase
desaparece no plano narrativo, prevalecendo o enfoque essencialmente cultual.
A análise exegética nos revela que as tradições político-religiosas do Reino do Norte,
conforme apresentadas no texto de 1Rs 12,26-32, refletem a visão de Judá, à época de Josias
(640-609) e, mais tarde, no período do Segundo Templo. A tradição do Êxodo é considerada a
tradição de fundação de todo Israel, norte e sul, visto como um só povo desde as origens. E
sua referência no v. 28 soa como uma ironia se considerarmos que, à época da redação do
texto, o Reino do Norte já não existia. Interessa-nos, contudo, rever as tradições político-
religiosas do Reino do Norte, particularmente a tradição do Êxodo-Deserto, sem as lentes
corretoras dos redatores judaítas.
Neste sentido, buscamos reconhecer o Êxodo como tradição fundante de Israel Norte,
consolidada no séc. VIII, provavelmente durante o reinado de Jeroboão II. Para tal, a análise
exegética visa responder questões como: Em que consistiria a memória da libertação do Egito,
ou qual o significado da expressão “subir do Egito” (v. 28) em Israel Norte? Em que contexto
histórico poderíamos situar as raízes do Êxodo na tradição norte-israelita? É possível
depreender uma “geografia” do Êxodo? Qual a origem ou o sentido de uma tradição do
deserto do sul para um reino cujas terras são férteis e os vales possuem inúmeras fontes de
água? Por que ou como a memória de “libertação do Egito” se torna tradição fundante de
Israel Norte no séc. VIII? E como é aceita, mais tarde, como tradição de fundação de “todo
Israel” por Judá, no séc. VII e em releituras posteriores?
Por outro lado, o referencial do culto norte-israelita apresenta uma tradição do Êxodo
ligada a Javé, representado na forma do touro e celebrado em diferentes santuários do rei. No
entanto, por que não se usa o nome “Javé” em 1Rs 12,28? Qual o significado do “touro
jovem” ligado a Javé e à tradição do Êxodo? Qual o sentido do Êxodo nas liturgias do rei? Por
que a condenação do culto nos “lugares altos”, do sacerdócio local e das festas religiosas do
Reino do Norte?
A seguir, buscamos responder a essas questões a partir da análise exegética do texto de
1Rs 12,26-32. Optamos por desenvolver o tema específico da tradição norte-israelita do
Êxodo nas duas etapas seguintes: no capítulo 2, apresentaremos o contexto histórico da
tradição do Êxodo no séc. X; e, no capítulo 3, apresentaremos o Êxodo como tradição
fundante do Reino do Norte.

16
17

2.1 TRADUÇÃO INTERLINEAR LITERAL7

`dwI)D" tybeîl. hk'Þlm' .M;h; bWvïT' hT'²[; AB+liB. ~['Þbr. "y" m,aYOðw: 26

Davi. para casa de o reino voltará agora em coração dele: Jeroboão E disse

~Øil;êv'WråyBi ‘hw"hy>-tybeB. ~yxiÛb'z> tAf’[]l; hZ<©h; ~['äh' hl,ä[]y:-~ai(27

em Jerusalém, em casa de Yhwh sacrifícios para fazer o este o povo subir Se

hd"_Why> %l,m,ä ~['bÞ x. r; >-la, ~h,êynEdæao ]-la, ‘hZ<h; ~['Ûh' bleä bv'w>û

Judá; rei de para Roboão, para senhores deles, o este o povo coração de voltará e

`hd"(Why>-%l,m(, ~['bî x. ;r>-la, Wbv'Þw> ynIgU¨r"h]w:

rei de Judá. para Roboão, e voltarão a mim matarão e,

‘~k,l'-br: ~h,ªlea] rm,aYOæw: bh'z_ " yleäg>[, ynEßv. f[;Y:¨w: %l,M,êh; #[;äW"YIw: 28

para vós muito para eles: e disse ouro; touros jovens de dois de e fez o rei, E se deixou
aconselhar

^Wlß[/h, rv<ïa] laeêr"f.yI ‘^yh,’l{a/ hNEÜhi ~Øil;êv'Wry> tAlå[]me

te fizeram subir que Israel, deuses de vós, eis Jerusalém, de subir

`~yIr")c.m #r<am,î e
7
Apresentamos uma versão própria tanto na “Tradução interlinear literal” quanto na “Tradução literal” (p. 20
desta dissertação). Procuramos mater a ordem frasal e o sentido literal dos vocábulos, introduzindo poucas
alterações, apenas para facilitar a leitura em língua portuguesa. Nestes casos, assinalamos entre colchetes os
artigos ou verbos que foram inseridos (por exemplo, nos v. 26, 27, 28, 31 e 32) e em itálico as adaptações (por
exemplo, nos v. 26, 29, 30 e 32).
17
18

Egito. de terra de

i`!d")B. !t:ïn" dx'Þa,h'-ta,w> lae_-tybe(B. dx'aÞ ,h'-ta, ~f,Y"ïw: 29

em Dã. deu e o um em Betel; o um E pôs

ynEïp.li ~['²h' Wkïl.YEw: taJ'_x;l. hZ<ßh; rb"ïD"h; yhi²y>w: 30

para as faces de o povo e caminharam para transgressão; o este a coisa E se tornou

`!D")-d[; dx'aÞ ,h'

até Dã. o um

rv<ïa] ~['hê ' tAcåq.mi ‘~ynIh]Ko) f[;Y:Üw: tAm+B' tyBeä-ta, f[;Y:ßw: 31

que o povo, de extremidades de sacerdotes e fez lugares altos; a casa de E fez

`ywI)le ynEïB.mi Wyàh'-al{)

Levi. de os filhos de não eram

vd<xølo ; ~Ay‚ •rf'[-' hV'(mixB] ; ynIåymiV.h; vd<xåBo ; gx'‡ ~['bä r. "y" f[;Y:åw: 32

do mês, dia dez no cinco o oitavo, no mês festa Jeroboão E fez

laeê-tybe(B. ‘hf'[' !KEÜ x:Bêze >Mih;-l[; ‘l[;Y:’w: hd"ªWhyBi rv<åa] gx'äK,

em Betel, fez assim sobre o altar, e subiu em Judá, que como festa

18
19

ynEïh]Ko-ta, laeê tybeäB. ‘dymi[/h,w> hf'[_ '-rv,a] ~yliäg"[]l' x;BÞze :l.

os sacerdotes de em Betel, e ergueu que fez; para os touros jovens para sacrificar

`hf'[( ' rv<ïa] tAmßBh' ;


fez. que os lugares altos

19
20

2.2 TRADUÇÃO LITERAL

26
E disse Jeroboão no coração dele: „Agora voltará o reino para casa de Davi.
27
Se subir este povo para fazer sacrifícios n[a] casa de Javé em Jerusalém, então, voltará [o]
coração deste povo para [os] senhores deles, para Roboão, rei de Judá; e matarão a mim, e
voltarão para Roboão, rei de Judá‟.
28
E se deixou aconselhar o rei, e fez dois touros jovens de ouro; e disse para eles: „Basta para
vós subir a Jerusalém! Eis teus deuses, Israel, que te fizeram subir d[a] terra do Egito‟.
29
E pôs um em Betel; e o outro colocou em Dã.
30
E isto se tornou transgressão; e caminharam o povo diante de um até Dã.
31
E fez a casa de lugares altos; e fez sacerdotes d[as] extremidades do povo, que não eram
dentre os filhos de Levi.
32
E fez Jeroboão festa no oitavo mês, aos quinze dias do mês, como [a] festa que [se fazia]
em Judá, e subiu ao altar, assim fez em Betel, para sacrificar aos touros jovens que fez; e
estabeleceu em Betel os sacerdotes dos lugares altos que fez.

20
21

2.3 CRÍTICA TEXTUAL

O v. 26 não apresenta variantes.


O v. 27 contém três notas:
a) O aparato crítico8 diz que o pronome demonstrativo hZ<©h; hazzeh (“o este”) está ausente na
LXX original, alterando a frase para “voltará o coração do povo para senhor e senhor deles”,
deixando-a sem a especificação explícita sobre a qual povo se refere;
b) O aparato crítico diz que o termo ynIgU¨r"h]w: vaharaguni (“e matarão a mim”) está ausente em

poucos manuscritos hebraicos e na LXX segundo a recensão de Luciano (séc. III), omitindo-
se uma das razões que levou Jeroboão a fazer os touros jovens (o medo de ser morto);
c) a oração hd"(Why>-%l,m(, ~['bî x. r; >-la, Wbv'Þw> “e voltarão para Roboão, rei de Judá”

apresenta duas notas: uma indicando a ausência em poucos manuscritos hebraicos e na LXX
original; outra perguntando se é um acréscimo. No Texto Massorético, a frase reforça a ideia
expressa no v. 27a, onde se diz que Jeroboão temia ser morto se o povo continuasse a subir a
Jerusalém.
O v. 28 apresenta duas notas:
a) a expressão #[;äW"YIw: aparece no Códice Alexandrino (séc. V) como “e foi” ou “e procedeu”,

deixando a frase assim “e foi (e não “e se deixou aconselhar”) o rei e fez dois touros jovens de
ouro...”. Apesar de deixar a frase mais clara e ser confirmada por um manuscrito da LXX, a
expressão lida como vayelek é uma questão ou informação incerta. Mantemos a opção do
Texto Massorético em função da importante associação com as circunstâncias do
aconselhamento de Roboão.
b) a LXX lê ’el-ha’am e não ~h,ªlea] ’ale-hem. Desta forma, a frase “e disse para eles” ficaria
“e disse para o povo”. Mantemos o TM em consonância com a escolha do uso do pronome
dêitico no v. 27 (“este povo”).
O v. 29 não apresenta variantes.
No v. 30, há duas notas:

8
Utilizamos o aparato crítico da Bíblia Hebraica Stuttgartensia.
21
22

a) a expressão taJ'_x;l., na LXX segundo a recensão de Luciano, recebe o acréscimo da

expressão “a Israel”. Esse acréscimo deixa a frase alterada para “e isto se tornou transgressão
a Israel”, o que é possìvel e correto;
b) inserido possivelmente beit-’el velphny h’hd após dx'Þa,h' , transformando a frase para “e

caminhou o povo diante de um em Betel e diante de um até Dã”, clareia-se a compreensão da


frase.
No v. 31, há somente uma nota: a expressão tAm+B' tyBeä está no plural na LXX e na
Vulgata, assim como em 13,2.
No v. 32, há duas notas:
a) a frase “e subiu ao altar, assim fez em Betel” é uma retroversão do v. 33 aalfa; acrescenta
que é uma questão ou informação incerta que deve ser apagada;
b) em manuscritos hebraicos medievais e na LXX, ken está como ou igual ao v. 33, ’aser-
‘asah, alterando a frase “como fez em Betel”(v. 32c) para “que fez em Betel” (v. 33b).
Optamos por manter o Texto Massorético de 1Rs 12,26-32, conforme a versão da
Bíblia Hebraica Stuttgartensia.

22
23

2.4 DELIMITAÇÃO

Dentre as fontes sobre Jeroboão I (Deuteronomista, Cronista e da Septuaginta),


detivemo-nos na Historiografia Deuteronomista. Na Historiografia Deuteronomista, o texto de
1Rs 12,26-32 está inserido no bloco de 1Rs 11-14, que narra a ascensão e queda de Jeroboão
I, considerado rei fundador de Israel Norte.
Podemos notar que, em 1Rs 11, não há uma introdução clara ao reinado de Jeroboão I,
como se faz com outros reis (por exemplo, Roboão, em 1Rs 14,21-24; e Acab, em 1Rs 16,29-
33). De fato, os antecedentes do reinado de Jeroboão I encontram-se no final da narrativa
sobre Salomão (1Rs 11,11-40). Neste contexto, tem-se a notícia sobre a futura eleição de
Jeroboão através da fala de Javé (1Rs 11,11-13) e da profecia de Aías de Silo (1Rs 11,26-40).
A seguir, Jeroboão sofre perseguição de Salomão e foge para o Egito (1Rs 11,26-40). O
padrão narrativo apresenta paralelos com a história de Davi e de Moisés. A ascensão de
Jeroboão é vista positivamente e representa uma punição aos pecados de Salomão.
Em 1Rs 12,1-24, narra-se a eleição de Jeroboão como rei de Israel. Após a morte de
Salomão, Jeroboão retorna do Egito e participa da assembleia de Siquém (1Rs 12,3)9, durante
a qual se deflagra o conflito com Roboão. O resultado é a divisão do reino (1Rs 12,16) e a
aclamação popular do novo rei (1Rs 12,20). Apesar da ênfase em Roboão, o foco principal
nesses versículos é a ascensão de Jeroboão e, mais amplamente, a emergência de dois reinos
distintos, por causa da infidelidade de Judá (Salomão/Roboão). Além do apoio popular de
“todo o Israel” em 1Rs 12,20, indiretamente, Jeroboão recebe a defesa também de Semeías,
“homem de Deus”, em Judá, que condena a represália de Roboão a “seus irmãos, os filhos de
Israel” (1Rs 12,24). A partir de então, o livro de Reis narra as histórias dos dois reinos
paralelamente.
Em 1Rs 12,25-32, apresenta-se o relato das atividades de Jeroboão: no v. 25, ele
constrói cidades, Siquém e Penuel; nos v. 26-32, ele toma uma série de medidas relativas ao
culto. Nestes versículos (v. 26-32), porém, dá-se a condenação de Jeroboão em função de suas
práticas cultuais. Diferentemente da promessa de Javé a Davi, a de Jeroboão havia sido
condicionada ao cumprimento dos “mandamentos e estatutos”, conforme lhe advertira Aìas de
Silo em 1Rs 11,38.

9
De acordo com 1Rs 12,18.20, porém, Jeroboão só aparece em cena depois da morte de Aduram.
23
24

Portanto, seguem dois julgamentos proféticos em relação às ditas inovações cultuais


de Jeroboão: um contra o altar de Betel (1Rs 12,33-13,34) e outro contra a casa de Jeroboão
(1Rs 14,1-18).
Em 1Rs 14,19-20, encerra-se a narrativa do reinado de Jeroboão I com a fórmula
tradicional de conclusão do livro de Reis: “O resto da história de Jeroboão (...)”.
A delimitação da unidade em 1Rs 12,26-32 justifica-se pelo tema das práticas de culto
atribuídas a Jeroboão. Em relação ao versículo anterior (1Rs 12,25), a delimitação deve-se à
mudança de local – a referência não é mais Siquém e Penuel, mas Betel e Dã; à mudança de
tema – não se trata da fortificação de cidades através da construção de muralhas, com
intenção de defesa (v. 25, “edificar, fortificar” (banah); HARRIS; ARCHER; WALTKE,
1998), mas de questões diretamente ligadas ao culto; e à mudança de estilo e gênero literário:
da objetividade da informação acerca da construção de cidades (tipo relatório ou registro
palaciano), passa-se ao monólogo interior de Jeroboão, marcado pela subjetividade da
personagem e pela intervenção direta do narrador, próprias de conto popular, e não de
relatórios baseados em “anais de reis”.
Contudo, é difícil estabelecer o limite posterior da unidade. A diversidade de propostas
de estruturas evidencia a natureza compósita do texto. Montgomery sugere como unidade 1Rs
12,26-31, seguida por duas histórias proféticas, 1Rs 12,32 – 13,34 e 14,1-18. Seu argumento
baseia-se na repetição da referência a “sacerdotes dos lugares altos em Betel” em 1Rs 12,32 e
em 1Rs 13,32-33, sugerindo que os versículos fazem parte de uma mesma camada redacional
(MONTGOMERY, 1960).
Walsh e Begg também consideram 1Rs 12,26-31 uma unidade que trata das inovações
cúlticas de Jeroboão. Outra unidade é 1Rs 12,32-13,10, que se refere a juízo de condenação
por um profeta judaíta (WALSH e BEGG, 2013).
Para Heaton, a unidade seria 1Rs 12,26-29.33; os v. 30-31 seriam uma inserção
deuteronomista (HEATON, 1968).
Burke Long considera 1Rs 12,25-32 um relato sobre as atividades de construção de
Jeroboão e 12,33-13,34, o julgamento contra Betel (LONG, 1984, p. 141). O autor argumenta
que o núcleo de sentido da unidade estaria nos v. 26 a 30, enquanto os v. 31-33 seriam apenas
repetição, quebrando o ritmo da narrativa com a volta ao estilo repertorial, conforme o uso do
verbo “fazer” (‘asah).

24
25

Oliveira, baseada no método da análise da narrativa, opta pela unidade 1Rs 12,26-33,
identificando uma sequência cênica bem definida, com introdução, desenvolvimento e
conclusão (OLIVEIRA, 2010).
De fato, por um lado, o v. 33 parece pertencer à unidade de 1Rs 12,26-33. Nele, há
várias repetições de termos e expressões de versículos anteriores, por exemplo: o substantivo
“coração”, conforme o v. 26, reforçando a ideia de que as medidas religiosas de Jeroboão (v.
27-32) devem-se à sua iniciativa pessoal, e não à vontade de Deus; e quase todas as
expressões do v. 32: “e subiu ao altar, assim fez em Betel”, “no oitavo mês, aos quinze dias
do mês”, “e fez festa”. A conjunção coordenativa aditiva “e” (vav) mantém o estilo
enumerativo/repertorial da sequência de ações de Jeroboão (“E disse” (v. 26); “E se deixou
aconselhar”, “e fez”, “e disse” (v. 28); “e pôs”, “e deu” (v. 29), “e se tornou”, “e caminharam”
(v. 30); “e fez” (duas vezes no v. 31); “e fez”, “e subiu”, “e ergueu” (v. 32); “e subiu”, “e fez”
e “e subiu” (v. 33)). E especificamente se dá a repetição do verbo “fazer” (“E fez”): v. 31, 32
e 33.
Por outro, as repetições das expressões dos v. 32 no v. 33 sugerem uma retomada da
narrativa anterior a fim de introduzir a unidade seguinte; neste caso, as unidades seriam: 1Rs
12,26-32 e 12,33-13,34. A cena descrita no v. 33 funciona muito bem como introdução de
1Rs 13,1, afinal, no momento em que Jeroboão “subiu ao altar que fez em Betel para
incensar” (v. 33), “eis que o homem de Deus chegou” e “Jeroboão estava de pé junto ao altar
para incensar” (13,1). Note-se que, no v. 33 e em 13,1, o verbo hebraico empregado para a
ação de sacrificar é qatar (“incensar”), enquanto no v. 32 é zabhah (que tem o significado
básico de abate de animal). A referência não é àqueles que “sacrificam aos touros jovens”,
conforme os v. 28 e 32, mas aos que incensam sobre o altar de Betel (13,2). Assim, a
sequência de 1Rs 12,33 a 13,34 poderia formar uma unidade sobre o julgamento contra Betel
(LONG, 1984).
O v. 33, portanto, funciona como um versículo de transição. Então, nós o
consideramos parte da unidade seguinte, introduzindo outro tema e gênero literário: uma
“lenda profética” sobre o “homem de Deus” (introdução de nova personagem), que chegou de
Judá a Betel, por ordem de Javé, e anuncia a condenação do altar de Betel e o nascimento de
Josias (LONG, 1984, p. 150).
Assim, delimitamos nossa unidade de estudo em 1Rs 12,26-32.

25
26

2.5 ESTRUTURA

A diversidade de propostas de delimitação dos versículos que tratam das medidas


religiosas de Jeroboão, conforme vimos acima, evidencia a possibilidade de estabelecermos
diversas propostas de estrutura para a unidade de 1Rs 12,26-32. Tomamos por base a estrutura
proposta por Long (1984), com pequenas modificações.

1ª PARTE: OS SANTUÁRIOS DE BETEL E DÃ: V. 26-30

1) O medo de Jeroboão: v. 26-27


- introdução: v. 26a
- o medo de Jeroboão: v. 26b-27

2) As ações de Jeroboão: v. 28-29


- aconselhamento: v. 28a
- fabricação de touros jovens: v. 28b
- aclamação aos touros jovens: v. 28c
- entronização dos touros jovens em Betel e Dã: v. 29

3) A consequência das ações de Jeroboão: v. 30


- comentário do narrador: v. 30a
- peregrinação a Dã: v. 30b

2ª PARTE: OS LUGARES ALTOS: V. 31-32

1) os lugares altos: v. 31
- construção de casa de lugares altos: v. 31a
- designação de sacerdotes: v. 31b

2) a festa: v. 32
- data da festa: v. 32a-b
- altar: v. 32c

26
27

- resumo: v. 32d-g
- sacrifício aos touros jovens: v. 32d-e
- sacerdotes: v. 32f-g

Entendemos a organização interna de 1Rs 12,26-32 a partir da avaliação (negativa)


do narrador a propósito da questão dos lugares de culto no Reino do Norte. Assim,
identificamos duas partes principais na unidade: uma (v. 26-30) na qual sobressaem os
santuários de “Betel e Dã”, onde os “deuses” de Israel são associados ao Êxodo e aclamados
na forma dos “touros jovens”; e outra (v. 31-32) na qual sobressai a descrição do culto nos
“lugares altos”: a construção de “casa de lugares altos”, “lugares altos” (v. 31.32), a
designação de “sacerdotes das extremidades do povo”, “que não eram dentre os filhos de
Levi”, “sacerdotes dos lugares altos” (v. 31.32), a data da festa (v. 32) e o sacrifìcio aos touros
jovens (v. 32).
A primeira parte compõe um breve relato, no qual se apresenta: a) o medo de
Jeroboão se o povo continuar a subir à casa de Javé em Jerusalém para fazer sacrifícios (v. 26-
27); b) as ações de Jeroboão: o rei fabrica dois touros jovens de ouro, aclama-os solenemente
diante da assembleia e os entroniza em Betel e Dã (v. 28-29); c) a consequência das ações de
Jeroboão: “E isto se tornou transgressão” (v. 30).
O foco inicial nesta parte da unidade é o lugar de culto, precisamente a oposição
entre a “casa de Javé em Jerusalém” (v. 27) e o culto a Javé em “Betel e Dã” (v. 29). A ênfase
interpretativa se voltará para o símbolo dos touros jovens numa fase tardia (como veremos).
Na segunda parte, segue a enumeração das ações (religiosas) de Jeroboão, em estilo
repertorial: ele fez casa de lugares altos, instituiu sacerdotes do meio do povo (v. 31.32), fez
festa e subiu ao altar para sacrificar aos touros jovens que fez (v. 32). Destacam-se as
expressões “casa de lugares altos”, “que não eram dentre os filhos de Levi” e a data da festa.
Concluiu-se com um breve resumo: “assim fez em Betel (...)”.
Deste modo, parece-nos que a unidade de 1Rs 12,26-32 apresenta-se como uma
estrutura concêntrica do tipo A, B, C, D, C‟, B‟, A‟:

A) v. 26a: introdução
B) v. 26b-27: medo de Jeroboão
C) v. 28-29: ações de Jeroboão
D) v. 30: comentário condenatório do narrador

27
28

C‟) v. 31: ações de Jeroboão


B‟) v. 32 a-c: superação do medo
A‟) v. 32 d-g: conclusão

O núcleo da unidade é o comentário condenatório do narrador (D), que diz respeito


tanto às ações de Jeroboão relativas aos santuários de Betel e Dã (C), quanto às ações de
Jeroboão relativas aos lugares altos (C‟). O lugar de culto estabelece, pois, o paralelismo
(sintético) entre C e C‟. Ao medo inicial de Jeroboão quanto à subida do povo à casa de Javé
em Jerusalém para fazer sacrifícios (B) corresponde a superação do medo ao estabelecer
Jeroboão festa em seus santuários assim como se fazia em Judá (B‟). Assim, a apresentação
de sacrifìcios cria o paralelismo (neste caso, antitético) entre B e B‟. À introdução, que
apresentava os pensamentos íntimos de Jeroboão (monólogo interior) (A), corresponde
(também antiteticamente) a conclusão (A‟), que resume as iniciativas empreendedoras do rei.
A seguir, apresentaremos a coesão interna do texto de 1Rs 12,26-32 e a relação desta
unidade com o bloco de 1Rs 11 – 14 e o conjunto do livro de Reis.

28
29

2.6 ANÁLISE DE COESÃO

O texto de 1Rs 12,26-32 apresenta-se como uma narrativa coesa, em torno do tema do
culto em Israel Norte. O tema do culto se articula a partir de dois campos semânticos
principais: o político e o religioso propriamente dito. Ambos estão entrelaçados, como é
próprio da concepção da monarquia no Antigo Oriente Próximo. Em cada um desses campos,
porém, sobressai a tensão interna, decorrente da teologia (deuteronomista) da aliança, que
estabelece a hegemonia da casa davídica e a centralidade do culto a Javé no santuário de
Jerusalém.
Apresentaremos, primeiro, a coesão interna de 1Rs 12,26-32 e, depois, o lugar literário
de 1Rs 12,26-32 no bloco de 1Rs 11 – 14 e no livro de Reis.

2.6.1 A Coesão Interna de 1Rs 12,26-32

A narrativa de 1Rs 12,26-32 como um todo é costurada pela conjunção vav (“e”), que
introduz os v. 26, 28, 29, 30, 31 e 32. Embora não introduza o v. 27, ela inicia dois segmentos
dentro deste versìculo (“e matarão a mim”; “e voltarão para Roboão, rei de Judá”).
A trama se apresenta como uma unidade narrativa, com início, meio e fim. Nos v. 26-
27, a introdução: Jeroboão é apresentado em seus pensamentos íntimos. Nos v. 28-29, o
desenvolvimento e clímax: Jeroboão fala e age. Nos v. 30 e 31, há desdobramentos e outras
ações de Jeroboão. No v. 32, a conclusão: com a “festa”, retomam-se os elementos anteriores
(sacrifício em Betel em honra aos touros jovens que fez (v. 28-29), para evitar que o povo
subisse à casa de Javé em Jerusalém (v. 26-27), e a designação de sacerdotes locais (v. 31)).
A personagem “Jeroboão”, cujo nome é citado nos v. 26 e 32, é elemento de coesão da
narrativa, uma vez que é o sujeito de todas as ações verbais (exceto no v. 28, quando “teus
deuses” é o sujeito do verbo “subir” do Egito).
As formas verbais também desempenham uma importante função na coesão, por
exemplo: “e fez”, “e disse”, nos v. 26 e 28; “e pôs”, “e colocou”, no v. 29; “e caminharam”,
no v. 30; “e fez (festa)”, “e subiu (ao altar)”, no v. 32. Essas formas verbais, ligadas entre si,
descrevem um tipo de ação ritual, que perpassa a narrativa do começo ao fim: após a

29
30

fabricação (“e fez”) dos touros jovens, eles foram aclamados (“eis teus deuses (...)”) (v. 28),
entronizados nos santuários em procissões rituais (v. 29-30) e celebrados com festa (v. 32) e
oferta de sacrifìcios (v. 32). E a repetição do verbo “dizer” (v. 26 e 28) marca a alternância
entre a esfera particular e o discurso público de Jeroboão, que constitui o ponto literário de
virada do seu reinado.
O verbo “fazer” ocorre oito vezes: “e fez” touros jovens (v. 28 e 32); “e fez” casa de
lugares altos (v. 31.32); “e fez” sacerdotes (v. 31.32); “e fez” festa (v. 32); assim “fez” em
Betel (v. 32). Esse é o verbo que tem maior ocorrência, o que sugere a sua importância como
elemento de coesão da unidade, e na caracterização de Jeroboão como rei empreendedor. O
verbo “subir” ocorre quatro vezes: no v. 27, 28 (duas vezes) e 32. O verbo “voltar” ocorre
uma vez no v. 26 e duas vezes no v. 27.
Os substantivos relacionados ao campo semântico do “polìtico” subdividem-se em
dois grupos que, opondo-se entre si, asseguram a unidade do todo. Por um lado, “casa de
Davi” (v. 26), “Jerusalém” (v. 26), “Roboão, rei de Judá” (duas vezes no v. 27), “senhores
deles” (v. 27). Por outro, “o reino” (v. 26), “povo” (v. 27, duas vezes), “o rei” (v. 28), “Israel”
(v. 28), “Jeroboão” (v. 26.32), “Betel” (v. 29.32), “Dã” (v. 29.30). Tal oposição aponta a
primazia da casa da Davi em relação à casa de Jeroboão.
Podemos notar a mesma tensão interna entre os substantivos ligados ao campo
semântico do “religioso”. O substantivo “coração” é citado nos v. 26 e 27, e, juntamente com
o verbo “voltar” (v. 26 e 27) e com o substantivo “transgressão” (v. 30), é um termo caro à
teologia da Aliança, que perpassa todo o texto. Para facilitar a exposição, agrupamos os
substantivos ligados ao campo do “religioso” da seguinte maneira:

a) Quanto ao local de culto: “Betel”, nos v. 29 e 32; “Dã”, nos v. 29 e 30; “lugares altos”,
nos v. 31 e 32; “casa de lugares altos”, no v. 31, estão ligados entre si e estabelecem
oposição a “Jerusalém”, nos v. 27 e 28, e “casa de Javé”, no v. 27 (no v. 26, também
ocorre o substantivo “casa”, porém refere-se à dinastia de Davi, e não a local de culto).
Neste grupo, incluìmos a oposição entre o nome “Javé” (v. 27) e a designação
genérica “teus deuses” (v. 28);
b) Quanto aos sacrifìcios: no v. 27, o substantivo “sacrifìcios” está ligado à “casa de Javé
em Jerusalém”; no v. 32, o verbo “subir” (com sentido de ofertar sacrifìcio) e a forma
verbal “para sacrificar” referem-se ao altar de Betel;

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c) Quanto ao agente de culto: “sacerdotes”, nos v. 31 e 32; “das extremidades do povo”


(v. 31), “dos lugares altos que fez” (v. 32) e de certo modo “Jeroboão” (no exercìcio
de subir ao altar para sacrificar ao touros jovens, v. 32) estão em oposição aos
sacerdotes levitas (visto que estes “não eram dentre os filhos de Levi”, v. 31).
d) Quanto ao objeto cultual: “touros jovens”, nos v. 28 e 32, opõem-se, por alusão, à arca
ou aos querubins, representações cultuais no templo de Jerusalém, embora não sejam
citados no texto.

Assim, podemos notar que o uso da conjunção vav, dos substantivos e dos verbos
estabelece relações internas de proximidade ou oposição, que conferem coesão à narrativa. A
repetição dos vocábulos e sua organização intratextual nos permitem depreender ainda que o
tema do culto estabelece a centralidade do santuário de Jerusalém (associado à primazia da
casa de Davi), em relação à tradição cultual nos santuários norte-israelitas, condenada pelo
narrador.
A seguir, apresentamos a localização literária do texto de 1Rs 12,26-32 no bloco de
1Rs 11 – 14 e sua função no conjunto do livro de Reis.

2.6.2 O Bloco de 1Rs 11 – 14 e o Livro de Reis

A localização literária de 1Rs 12,26-32 dentro do bloco de 1Rs 11 – 14 e em relação


ao conjunto do livro de Reis revela a importância da narrativa de Jeroboão I na estruturação
da história da monarquia de Israel e Judá, segundo a perspectiva dos redatores
deuteronomistas.
O livro de Reis organiza-se em três grandes partes: o reino de Salomão (1Rs 1 – 11);
a história sincrônica dos dois reinos (1Rs 12 – 2Rs 17); e os últimos reis de Judá (2Rs 18 –
25). O bloco literário da história de Jeroboão (1Rs 11 – 14) compreende o fim do relato sobre
o reinado de Salomão e inicia a narrativa sincronizada dos dois reinos, Israel e Judá.
A história do reinado de Jeroboão tem sido vista a partir de uma narrativa
concentricamente organizada, que tem na política religiosa o ponto de virada da trama
(WALSH e BEGG, 2013). Graficamente, podemos visualizar da seguinte maneira:

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a) Aías de Silo: 1Rs 11,26-40;


b) Divisão política e rejeição de Roboão: 1Rs 12,1-20;
c) Profeta Semeías de Judá – aprovação: 1Rs 12,21-25;
d) Inovações cultuais de Jeroboão: 1Rs 12,26-32
c‟) Profeta anônimo de Judá – reprovação do culto em Betel: 1Rs 12,33-13,10
b‟) Unidade religiosa dos reinos é vista como severamente rompida: 1Rs 13,11-34
a‟) Aìas de Silo condena a casa de Jeroboão e o reino de Israel: 14,1-20

No plano narrativo, inicialmente, Jeroboão é avaliado de modo positivo. Sua eleição


representa uma punição de Javé a Salomão; sendo assim, é apoiada diretamente pela palavra
de Javé a Salomão (1Rs 11,11-13), pela palavra do profeta Aías de Silo, em nome de Javé
(1Rs 11,29-39; 12,15), por “todo Israel” após a assembleia de Siquém (1Rs 12,20) e,
indiretamente, pela advertência de Semeías, profeta de Judá, a Roboão, para que não lutasse
contra “seus irmãos, os filhos de Israel” (1Rs 12,24).
Porém, a partir de 1Rs 12,26, muda-se o curso dos acontecimentos, e a avaliação
sobre Jeroboão torna-se negativa, segundo critérios essencialmente cultuais. Situar a sentença
condenatória das medidas religiosas de Jeroboão logo no início da história do Reino do Norte
permitiu aos redatores estabelecer o chamado “o pecado de Jeroboão, filho de Nabat” como
um refrão paradigmático para a avaliação de todos os reis do norte (1Rs 15,26 (Nadab); 15,33
e 16,2 (Baasa); 1Rs 16,26 (Omri); 16,31 (Acab); 22,53 (Ocozias); 2Rs 3,3 (Jorão); 10,29
(Jeú); 13,2 (Joacaz); 13,11 (Joás); 14,24 (Jeroboão II); 15,9 (Zacarias); 15,18 (Manaém);
16,24 (Faceias); 16,28 (Faceia)), e, por fim, causa da queda do reino de Israel (2Rs 17,21-23).
Deste modo, torna-se um elemento de coesão em todo o livro de Reis.
De certo modo, o relato da “transgressão” de Jeroboão nos recorda os antecedentes
da ascensão de Saul, conforme a narrativa de 1Sm 8,1-5.6-20: de acordo com o texto, a
alegação de corrupção dos juízes, filhos de Samuel, justificou o pedido de um rei – Saul.
Porém Saul (tal como Jeroboão) teria violado os princípios da aliança, sendo, por isso,
destituído em favor de Davi. Ou seja, os dois reis do norte são depreciados por suas ações
cultuais e, assim, os redatores legitimam, no plano da narrativa, a hegemonia da casa de Davi
e a centralidade do culto a Javé em Jerusalém.
Jeroboão, único a receber uma promessa divina semelhante à de Davi (1Rs 11,37),
torna-se seu contra-tipo: Jeroboão é o modelo de rejeição, enquanto Davi permanece o
modelo do servo fiel, por excelência.

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No conjunto da narrativa deuteronomista, a avaliação inicial positiva acerca da


ascensão de Jeroboão I funciona como um elemento de retórica que enfatiza, por um lado, o
poder e a liberdade de Javé para estabelecer e destituir seus eleitos, conforme o critério de
cumprimento, ou não, de seus “mandamentos e estatutos”; por outro, acentua a obstinação de
Jeroboão em seu mau comportamento (1Rs 13,33-34), apesar das advertências dos profetas.
Assim, a história de Jeroboão, na narrativa deuteronomista, é um texto-chave para a
compreensão da queda das monarquias de Israel e Judá, após o exílio babilônico.

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2.7 GÊNERO LITERÁRIO E VISÃO DE MUNDO

2.7.1 Gênero Literário

Seguindo a proposta de Burke Long, o texto de 1Rs 12,26-32 é uma composição com
diferentes gêneros literários, relacionados a diferentes contextos e tradições. O autor destaca
dois gêneros principais na unidade em estudo: a “narrativa” (story) e o “relatório” (report).
Como vimos, não há uma introdução típica ao reinado de Jeroboão (como em 1Rs 14,21-24 e
16,29-33), mas há uma conclusão em 1Rs 14,19-20, chamada por Long de “Resumo
Conclusivo do Reinado” (Concluding Regnal Resumé) (LONG, 1984, p. 140-142).
O gênero “narrativa” tem seu lugar original na oralidade ou em contos populares.
Neste sentido, propõe-se que 1Rs 12,26-30 constitui, em sua origem, um fragmento de relato
popular sobre santuários rivais, ou sobre locais de culto estabelecidos pelo rei. O uso do
monólogo interior (v. 26-27) confere subjetividade e tensão à trama. O mesmo podemos dizer
em relação à intercalação de comentário do narrador (1Rs 12,30.33; 13,33-34; 14,16), neste
caso, estabelecendo um juízo (teológico) sobre os lugares de culto fundados por Jeroboão; e
sobre o estilo de repetições e reiterações, que facilitam a memorização e conferem
dinamicidade ao enredo.
O gênero do “relatório”, ao contrário, caracteriza-se por seu tom repertorial,
enumerativo e impessoal. Normalmente, baseia-se em anais ou arquivos da monarquia sobre
atividades militares e construtoras de reis (eventos aleatoriamente selecionados). Não há
interesse no desenvolvimento propriamente de uma trama. Long considera 1Rs 12,31-32 um
tipo de relatório da fundação de santuários ou lugares altos por Jeroboão, apesar de fortemente
submetido à edição judaíta. Outros exemplos deste gênero são 1Rs 12,25, que informa sobre a
construção de cidades por Jeroboão; ou 1Rs 6,2-36 e 7,1-12, que descrevem as construções do
templo e do palácio, atribuídas a Salomão. Tal gênero encontra similaridades em inscrições
régias egípcias e mesopotâmicas.
Embora não conste na classificação dos gêneros literários feita por Long, a fórmula do
Êxodo em 1Rs 12,28, “Eis, teus deuses, Israel, que te fizeram subir da terra do Egito”, pode
ser um tipo de aclamação litúrgica, durante a qual apresentava-se a imagem/estátua do “touro
jovem” à assembleia.

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2.7.2 Gênero Literário e Visão de Mundo

É difícil estabelecer, historicamente, se o nome do rei Jeroboão I fez parte de uma lista
de reis de Israel Norte ou se suas atividades foram registradas em arquivo palaciano. Mas,
enquanto personagem ficcional, Jeroboão faz parte da complexa narrativa do livro de Reis.
A narrativa do livro de Reis é classificada por Robert Alter como uma “prosa narrativa
historicizada” (ALTER, 2007, p. 47), o que corresponde, de certo modo, em termos de gênero
literário, ao que Long identifica simplesmente como “narrativa”.
Segundo Alter, as narrativas bíblicas são prosa de ficção historicizada, em oposição às
lendas e mitos dos povos antigos, em que prevalece o tempo cíclico. Apesar de muitos
estudiosos considerarem a Bìblia uma “epopeia nacional israelita, baseada em poemas épicos
da Criação e do Êxodo, transmitidos pela tradição oral, a prosa narrativa hebraica foge à
circularidade do gênero épico”, conclui o autor (ALTER, 2007, p. 47).
Alter considera que a escolha pelos escritores bíblicos da prosa narrativa para contar
as tradições nacionais traduz uma visão de mundo que revela a tensão do processo de
realização dos propósitos divinos nos acontecimentos da história. Ou seja, de certo modo, há
uma percepção da assimetria entre a “vontade de Deus” e a realidade efetiva, ou das escolhas
humanas (ALTER, 2007).
De fato, no livro de Reis, percebe-se este esforço de conjugar o que se compreende
como promessa divina e a realidade efetiva, que resultou na queda dos dois reinos, Israel e
Judá.
Neste sentido, compreendemos o relato da divisão do Reino Unido e da eleição de
Jeroboão como parte de um discurso de retórica que tenta explicar as reviravoltas da história,
tanto a queda de Israel quanto a de Judá, porém sempre na perspectiva do Sul.
A queda de Israel Norte, um reino tão grande e próspero, suscitou em Judá a crença de
que à casa de Davi e à casa de Javé em Jerusalém estava destinado o futuro de “todo Israel”,
norte e sul. Mas, ao mesmo tempo, como explicar tantos anos à sombra do Reino do Norte? E,
por fim, como explicar a queda também do Reino de Judá?
A prosa narrativa historicizada do livro de Reis é um gênero literário que possibilita a
recriação do passado em função do presente (e/ou futuro), deixando-se pouca margem para a
interpretação; o narrador sabe tudo sobre a vontade de Javé. Assim, os desastres de Israel e
Judá são avaliados pelo narrador como fruto da justiça de Javé (não de sua fraqueza), em

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36

virtude da quebra da Aliança pelo rei e pelo povo, apesar dos contínuos chamados à
conversão. Só na narrativa de Jeroboão, por exemplo, há quatro advertências divinas ao rei
por meio dos profetas: 1Rs 11,4-13; 11,29-39; 13,1-2 e 14,1-10 (FINKELSTEIN;
SILBERMAN, 2003).
Na inviabilidade de reconstrução da monarquia histórica, a releitura do passado de
Israel e Judá na obra de Reis se faz a partir de um viés exclusivamente teológico, desde a
perspectiva do Sul. E, por fim, também os profetas serão submetidos a uma autoridade maior
– a Lei de Moisés, até o ponto em que a Lei passa a constituir a única mediação realmente
necessária na relação com Javé. Assim, os escribas se tornam mais importantes do que
profetas (RÖMER, 2014b).
Deste modo, compreendemos que a identificação dos gêneros literários que compõem
1Rs 12,26-32 (“narrativa” e “relatório”) não apenas estabelece um tipo de relação entre os
versículos da unidade, como também revela um modo próprio de interpretar e atribuir sentido
à realidade.

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2.8 ANÁLISE SEMÂNTICA

2.8.1 Os Santuários em Betel e Dã (v. 26-30)

2.8.1.1 O medo de Jeroboão (v. 26-27)

26
E disse Jeroboão no coração dele: „Agora voltará o reino para a casa de
Davi. 27 Se subir este povo para fazer sacrifícios na casa de Javé em
Jerusalém, então, voltará o coração deste povo para os senhores deles, para
Roboão, rei de Judá; e matarão a mim, e voltarão para Roboão, rei de Judá‟.

Os v. 26-27 apresentam a razão que motiva Jeroboão a tomar as medidas religiosas


que serão relatadas nos versículos seguintes (v. 28-32): o medo de o reino voltar para Roboão,
rei de Judá, e de ser morto (Jeroboão).
O narrador utiliza o recurso literário do monólogo interior logo no início da unidade:
“E disse no coração dele”. Assim, somos introduzidos na intimidade dos pensamentos de
Jeroboão. Tal recurso quebra a objetividade que caracterizava o versículo anterior, no qual
simplesmente se informava sobre a construção de cidades (“Jeroboão fortificou Siquém na
montanha de Efraim e ali se estabeleceu. Depois saiu de lá e fortificou Fanuel”, v. 25 10). Além
disso, o uso desse recurso literário revela que se trata de um narrador onisciente, que tudo
sabe a propósito da trama, inclusive sobre os pensamentos íntimos das personagens.
A expressão “e disse” ocorre em dois versìculos: no v. 26, introduz o “discurso
interior”, durante o qual Jeroboão aparece inerte, aprisionado pelo medo; no v. 28, abre o
“discurso público”, por meio do qual se apresenta o elemento fundamental da trama: a decisão
de Jeroboão de evitar que o povo suba a Jerusalém.
A personagem “Jeroboão” é chamada simplesmente pelo nome, não possui atributo
ou designativo nos v. 26-27. Deste modo, fica estabelecida sua oposição com a “casa de
Davi” e com “Roboão”, duas vezes chamado de “rei de Judá” e uma vez referido,
indiretamente, por meio da expressão “senhores deles” (provavelmente o rei e seus
conselheiros). No v. 28, quando Jeroboão supera o medo e toma uma atitude (age e fala), ele é
chamado pela primeira vez de “rei”. O nome “Jeroboão” ocorre também no v. 32, que relata

10
À parte a tradução que fizemos de 1Rs 12,26-32, os demais textos bíblicos seguem a tradução da Bíblia de
Jerusalém, nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2006.
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38

outras ações atribuídas a Jeroboão (a escolha da data da festa e a apresentação de sacrifício no


altar de Betel).
O substantivo “coração” (leb) refere-se à natureza interior, sede de emoções,
pensamentos/intelecto e vontade/decisão (HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998). O narrador
nos oferece uma oportunidade única para conhecer as intenções de Jeroboão de um lugar
privilegiado: o de sua interioridade. Deste modo, sugere-se certa premeditação nas ações de
Jeroboão.
O substantivo “coração” aparece no v. 26 e 27. No v. 26, o coração de Jeroboão teme
ser morto se o reino voltar para a casa de Davi; no v. 27, o coração do povo, segundo
Jeroboão, voltará “para Roboão, rei de Judá”, se continuar a subir à casa de Javé em
Jerusalém. Na concepção da monarquia do Antigo Oriente Próximo, especialmente no período
da dominação assíria (no qual se situa o núcleo antigo de nosso texto, como veremos), os
tratados de vassalagem ou juramentos de lealdade ressaltavam termos como “coração” e
“amor/amar” como expressão da fidelidade/obediência/submissão na relação entre reis, entre
o rei e o povo ou entre o rei e sua divindade protetora (RÖMER, 2008). A expressão “voltar o
coração”, nos v. 26-27, reflete a relação de fidelidade/submissão ao rei Roboão/Jeroboão.
Assim, é importante o significado do coração na teologia da Aliança. Segundo o livro
do Deuteronômio: “Amarás a Javé teu deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e
com toda a tua força” (Dt 6,4). No contexto da transgressão da Aliança, assim diz Javé em Os
2,16: “Por isso, eis que vou, eu mesmo, seduzi-la, conduzi-la ao deserto e falar-lhe ao
coração”. O uso do termo “coração” em 1Rs 12,26 coloca as ações de Jeroboão no âmbito da
fidelidade/infidelidade à Aliança. Jeroboão age de modo calculado (premeditado) em seu
coração e não deposita sua confiança em Javé (1Rs 11,29-39), ao contrário de Davi (1Rs
14,8).
Este breve versículo introdutório sugere, portanto, que a unidade de 1Rs 12,26-32 é
uma redação tipicamente deuteronomista. Por um lado, é estabelecida a primazia da casa de
Davi, da casa de Javé em Jerusalém, pois o coração do povo está voltado para os “senhores
deles, para Roboão, rei de Judá” (duas vezes). Por outro, apresenta-se a inclinação de
Jeroboão a um comportamento infiel, o que é insinuado pelo uso do substantivo “coração”,
termo importante na teologia da Aliança. No v. 30, será declarada, então, a transgressão de
Jeroboão.

38
39

2.8.1.1.1 “Voltar”

A relação entre coração e fidelidade à aliança é corroborada pelo uso do verbo “voltar”
(shub). O verbo parece cerca de 1500 vezes na Bíblia Hebraica, sendo o décimo segundo
verbo mais usado. O verbo “voltar” indica movimento fìsico (mais de 270 vezes),
deslocamento espacial, no sentido de retornar de ou a algum lugar, e pode indicar ideia de
repetição de uma ação. Seu principal uso, contudo, é teológico e denota arrependimento,
desejo de voltar atrás ou retomar a aliança com Javé. Há um total de 164 usos do verbo shub
no contexto da Aliança, dentre os quais 113 vezes nos profetas clássicos (48 vezes em
Jeremias, mas somente 6 vezes no Primeiro Isaías). Em vários lugares significa “voltar do
exìlio” (Esd 2,1 e Ne 7,6), mas também é usado no sentido de restaurar o pecado (HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998). O verbo “voltar”, no sentido metafórico, ligado ao tema do
Êxodo, significa “submeter-se”, por exemplo, em Os 8,13 (“eles voltarão ao Egito”); 9,3
(“Efraim voltará ao Egito”); 11,5 (“ele não voltará à terra do Egito”).
Em 1Rs 12,26-27, o verbo “voltar” (citado três vezes) enfatiza a possibilidade de
arrependimento do povo por ter rompido com a casa de Davi. O uso do substantivo “coração”
e do verbo “voltar” nesses versìculos indica o contexto da Aliança, e mais precisamente o da
quebra da Aliança. Pois, impedir que o povo “volte à casa de Davi” significava impedir que o
povo subisse à casa de Javé em Jerusalém.

2.8.1.1.2. “Subir”

O verbo “subir” (‘alah) ocorre cerca de 900 vezes no AT. Os significados mais
comuns são “ir para cima” (300 vezes), “vir para cima” (160 vezes) ou “ascender” (17 vezes).
Nos graus causativos, “trazer para cima” (mais de 100) e “oferecer” (77 vezes) (HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998). Neste sentido, traduz a ideia de deslocamento geográfico ou de
apresentação de sacrifìcios. Mas o verbo “subir” também contém a ideia de mudança polìtica:
“levantar-se contra”, “insurgir-se”.

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No v. 27, o verbo “subir” significa ir para a “casa de Javé em Jerusalém”, para ali
apresentar os “sacrifìcios”. No v. 32, “subir ao altar” significa apresentar sacrifìcios rituais em
Betel.
No v. 28, porém, ao se estabelecer a relação entre a memória do Êxodo (“subir da terra
do Egito”) e o contexto da insurreição de Jeroboão contra a opressão de Salomão/Roboão,
podemos depreender um novo sentido do verbo “subir”: o de soberania polìtica. Subir ou não
subir à casa de Javé em Jerusalém implica a consolidação da autonomia político-religiosa do
reino de Jeroboão. De acordo com a narrativa, Jeroboão afirma a presença do deus do Êxodo
entre as tribos do norte e, por conseguinte, a aprovação “divina” do movimento de
independência em relação à exploração (interna) exercida por Judá – tal como no passado
esteve ao lado de seu povo contra a dominação do Egito. Voltaremos à discussão sobre o
sentido do verbo “subir” e a temática do Êxodo no capìtulo 3 desta dissertação.
No nìvel da narrativa, não “subir” à casa de Javé em Jerusalém para oferecer
sacrifícios implica oferecer sacrifício em santuários norte-israelitas, o que constitui a razão da
condenação e queda de Jeroboão.

2.8.1.1.3. “Casa de Davi” e “casa de Javé em Jerusalém”

O entrelaçamento político-religioso entre a apresentação de sacrifìcios na “casa de


Javé em Jerusalém” e a fidelidade à “casa de Davi” (a “Roboão, rei de Judá”, e aos “senhores
deles”) faz emergir um aspecto próprio da concepção comum da monarquia no Antigo Oriente
Próximo: a relação estrutural entre política nacional e liturgia nos santuários do rei. Ou seja, a
ação cultual no santuário de Jerusalém está intrinsecamente relacionada à fidelidade ao rei de
Judá.
O comissionamento do rei (Jeroboão versus Roboão) está vinculado à teologia da
presença da divindade, através da casa dinástica (casa de Jeroboão versus casa de Davi) e da
imagem cultual (touros jovens versus arca). Portanto, a consolidação de Jeroboão como rei de
Israel está associada à fundação de uma “casa de Javé” no território de seu reino. Assim, do
ponto de vista da cultura da época, entende-se que a ascensão de um novo rei implicava a
construção de santuários, dedicados à divindade protetora, no território do seu reino. E, do
ponto de vista histórico, o Reino do Norte deteve a hegemonia sobre o Reino do Sul em todo

40
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o período da história dos dois reinos. Portanto, neste sentido, a fundação dos santuários
nacionais de Javé em “Betel” e “Dã” seria anterior ao de Jerusalém. No nìvel da narrativa,
porém, de acordo com a visão dos redatores deuteronomistas, é o contrário.
Por isso, as ações de Jeroboão para impedir que o povo continuasse a subir à casa de
Javé em Jerusalém e voltasse o coração para “Roboão, rei de Judá”, são consideradas
infidelidade à Aliança de Javé com seu povo. Afinal, de acordo com a Lei, o “lugar
escolhido” por Javé para a oferta dos sacrifìcios é Jerusalém (Dt 12).

2.8.1.1.4. “Sacrifìcios”

A raiz do substantivo “sacrifìcio” (zebhah), no v. 27, está ligada à esfera das ofertas e
sacrifícios, geralmente com abate de animais, não necessariamente feito por sacerdote, e
precedido por convite à festa. O verbo correlato, “sacrificar” (zabhah), geralmente é usado no
qal. Em 1Rs 12,32, porém, está na forma piel do infinitivo (lzabeha la‘agalim, “para sacrificar
aos touros jovens”), que ocorre 19 vezes em relação aos sacrifìcios condenados nos lugares
altos (Os 11,2; 2Rs 12,3); deste modo, o próprio sentido “intensivo” da forma piel já insinua a
rejeição dos sacrifícios que serão apresentados por Jeroboão em Betel e Dã (HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998).
De acordo com Dt 12,13-18, considerada a parte mais antiga da lei de centralização
do culto em Jerusalém (RÖMER, 2008), atribuída ao período do reinado de Josias (640-609),
assim está escrito em relação ao abate de animais:

Fica atento a ti mesmo! Não oferecerás teus holocaustos em qualquer lugar


que vejas, pois é só no lugar que Javé houver escolhido, numa das tuas
tribos, que deverás oferecer teus holocaustos; é lá que deverás pôr em prática
tudo o que eu te ordeno” (Dt 12,13-14). E “poderás imolar e comer da carne
em cada uma das tuas cidades” (observando a restrição do sangue), mas
“Não poderás comer em tuas cidades o dízimo do teu trigo, do teu vinho
novo e do teu óleo, nem os primogênitos das tuas vacas e ovelhas, nem algo
dos sacrifícios votivos que hajas prometido, ou dos teus sacrifícios
espontâneos, ou ainda dos dons da tua mão. Tu os comerás diante de Javé
teu Deus, somente no lugar que Javé teu Deus houver escolhido (...)” (Dt
12,17-18).

Portanto, não subir à “casa de Javé em Jerusalém” (v. 27) significa transgredir a lei
de centralidade de culto, conforme o livro do Deuteronômio. E mais: evidencia a fraqueza de
41
42

Jeroboão, pois ele não confiou na palavra de Javé que lhe foi dirigida por meio do profeta
Aìas de Silo: “Quanto a ti, eu te tomarei para reinares sobre tudo o que desejares e serás rei de
Israel (...) estarei contigo e construirei para ti uma casa estável, como o fiz para Davi” (1Rs
11,37.38; cf. 2Sm 7,13).
Na narrativa deuteronomista, Jeroboão é o único rei que recebe uma promessa igual
àquela que foi feita a Davi. Porém, com uma condição: “Se obedeceres a tudo que eu te
mandar, se seguires meus caminhos e fizeres o que é reto a meus olhos, observando meus
estatutos e meus mandamentos” (1Rs 11,38). No contexto narrativo, “obedecer aos estatutos e
mandamentos” significa ser fiel à lei de centralidade do culto na “casa de Javé em Jerusalém”.
Portanto, ao tentar evitar que o povo subisse a Jerusalém, Jeroboão estaria desviando o seu
“coração” do núcleo da Aliança, segundo os redatores deuteronomistas.

2.8.1.1.5. “Matar”

A consequência da volta do reino recém-fundado para a casa de Davi seria a morte


de Jeroboão. O verbo “matar” (hagan) ocorre somente uma vez na unidade dos v. 26-32, e
representa o limite para que Jeroboão tome uma atitude que assegure sua permanência no
trono.
A raiz hebraica harag, “matar, destruir, assassinar, ferir, golpear” (HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998), geralmente traduz o sentido de uma morte violenta, por intriga
ou guerra, mas também é usado em contextos de oposição política, para expressar o desejo de
matar um rei que tomou o trono de outro: Jeroboão teme ser morto por Roboão (v. 21-24) ou
pelo povo (v. 27). O mesmo verbo é usado, por exemplo, no relato do crime de Caim (Gn
4,8); na ordem de Jezabel para matar os profetas de Javé (1Rs 18,13); na ação de Levi e
Simeão contra os siquemitas (Gn 34,26) e no episódio do assassinato de Abner por Joabe
(2Sm 3,30).
O uso do verbo “matar” (harag) no v. 27 ressalta a dimensão política das medidas
religiosas de Jeroboão e a necessidade de defender o trono e consolidar a sua dinastia.
Mas o verbo “matar” também ocorre no contexto estritamente religioso e diz respeito à
condenação e morte de pessoas devido ao culto a “outros deuses”. Por exemplo, após a lei de
centralização do culto em Dt 12,13-18, como vimos acima, segue, em Dt 13,1-5.8-10, a ordem

42
43

para “matar” todo profeta ou intérprete de sonhos que queira seduzir o povo a seguir “outros
deuses”, pois foi “Javé teu Deus quem vos fez sair da terra do Egito” (Dt 13,6):

Se teu irmão (...) quiser te seduzir secretamente, dizendo: „Vamos servir a


outros deuses‟ (...), não lhe darás consentimento, não o ouvirás, e que teu
olho não tenha piedade dele; não uses de misericórdia e não escondas o seu
erro. Pelo contrário: deverás matá-lo! Tua mão será a primeira a matá-lo e, a
seguir, a mão de todo o povo (Dt 13,7-10).

Vale lembrar também o texto de Ex 32,27, no qual os levitas teriam recebido a ordem
de Javé, por meio de Moisés, para “matar” (mesma raiz hebraica do verbo harag) todos
aqueles que cultuaram Javé na forma do touro jovem de ouro.
A ocorrência de termos com a raiz do verbo “matar” (harag) e dos substantivos “teus
deuses” (’eloheykha), levitas (mibbney levyi, “dentre os filhos de Levi”) e “touro jovem” (‘gl)
em 1Rs 12,28-32 e em textos tardios como Dt 13 e Ex 32 (citados acima) sugere, como
veremos, a releitura de nossa narrativa no pós-exílio. Neste caso, Jeroboão estaria sendo
comparado, ironicamente, a um lunático, como o intérprete de sonhos de Dt 13, por isso
merecedor de sentença de morte?

2.8.1.1.6. “Jeroboão” e “Roboão”

Os reinados de Jeroboão e Roboão são apresentados no livro de Reis paralelamente.


Ambos estão associados ao “faraó Sesac”, conforme 1Rs 11,40 e 14,25. “Sesac” é
identificado com o primeiro rei da 22 a dinastia do Egito, Sheshonq I, que reinou entre os anos
945 e 925 e empreendeu uma campanha militar em Canaã (FINKELSTEIN; SILBERMAN,
2003).
O registro da campanha do faraó está em uma das paredes do templo de Amon, em
Karnak, no Egito. Essa é uma importante referência extra bíblica, relativa ao período
formativo de Israel e Judá, que nos situa no séc. X. A contextualização da campanha de
Sheshonq em Canaã nos levará a redimensionar a condição de Jerusalém nessa época e a
reconsiderar o processo de surgimento do Reino do Norte. Apresentaremos a relação entre a
campanha de Sheshonq I e a tradição do Êxodo em Israel Norte no capítulo 2 desta
dissertação.

43
44

Por enquanto, destacamos apenas duas referências importantes. A primeira é que


Jerusalém não é mencionada na lista de cidades conquistas por Sheshonq no séc. X. Isto
sugere que devia ser muito pequena e não representava ameaça, ou que se aliou ao Egito. Esta
informação contrasta com a afirmação do texto bìblico de que “Sesac” se apropriou das
riquezas do templo e do palácio de Jerusalém em 1Rs 14,25-26. Este texto, por sua vez, é
semelhante a 2Rs 24,13, que diz que Nabucodonosor levou os tesouros do templo de
Jerusalém para a Babilônia. Tudo indica que 1Rs 14,25-26 seja uma redação posterior.
A segunda é que os territórios conquistados por Sheshonq na região centro-norte das
montanhas de Canaã correspondem aos territórios atribuídos, no livro de Samuel, à casa de
Saul (1Sm 9,4; 11,1; 2Sm 2,4-7). Este dado provoca uma alteração de cerca de cem anos em
relação à datação do reinado de Saul, do séc. XI para o séc. X. Neste sentido, propomos que
as raízes históricas do Êxodo na tradição de Israel Norte estariam ligadas ao contexto da
campanha de Sheshonq I, particularmente à queda da unidade político-territorial da casa de
Saul e à ascensão do governo de Jeroboão I, no final do séc. X.
Resumindo, os v. 26-27 revelam a linguagem deuteronomista típica da monarquia
tardia, após a queda do Reino do Norte, ou seja: o pressuposto da primazia da casa de Davi e a
lei da centralidade do culto a Javé em Jerusalém (conforme as expressões “casa de Javé em
Jerusalém”, “casa de Davi”, “Roboão, rei de Judá” (duas vezes), “senhores deles” e o lugar
escolhido para a oferta dos “sacrifìcios”). Assim, perpassa nesses versìculos o tema da
fidelidade/infidelidade à Aliança, conforme atesta o uso do substantivo “coração” e do verbo
“voltar” (com conotação de arrependimento).
Do ponto de vista histórico, a ideia de que a casa de Davi governava sobre todo o
território do Reino do Norte, que teria constituìdo, em suas origens, um só “Reino Unido”,
cuja capital seria Jerusalém, não se sustenta mais (LIVERANI, 2008; FINKELSTEIN;
SILBERMAN, 2003). Trata-se de uma redação nitidamente judaíta do séc. VII, possivelmente
do período do reinado de Josias (640-609), que visa não somente atribuir sentido à queda de
Samaria, como também justificar o pretenso direito de Judá às terras do (extinto) Reino do
Norte, alegando-se que, no princípio, havia um só povo, sob o governo da casa de Davi.
Por sua vez, a relação estreita entre a fidelidade à casa de Javé em Jerusalém e a
fidelidade à casa de Davi/Roboão nos v. 26-27, reflete, no plano da cultura, a concepção
comum da monarquia no Antigo Oriente Próximo: a divindade protetora de um reino se fazia
presente por meio de seu vice-regente (o rei) e do símbolo cultual que a representava no
templo. Deste modo, seriam compreensíveis as medidas religiosas tomadas por Jeroboão para

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45

consolidar a autonomia de seu reino. Porém, mais uma vez, no nível da narrativa, somos
levados a interpretar as iniciativas de Jeroboão como “transgressão” da Aliança (v. 30).
A seguir, nos v. 28 e 29, Jeroboão deixa a esfera da interioridade de seus pensamentos
e decide agir, a fim de evitar o risco de o reino “voltar para Roboão, rei de Judá”.

2.8.1.2. As Ações de Jeroboão (v. 28-29)

28
E foi aconselhado o rei, e fez dois touros jovens de ouro; e disse para eles:
„Basta para vós subir a Jerusalém! Eis teus deuses, Israel, que te fizeram
subir da terra do Egito. 29 Pôs um em Betel e o outro colocou em Dã.

2.8.1.2.1. O aconselhamento do rei

Nestes versículos, Jeroboão fala e age pela primeira vez. A forma verbal hebraica
ya‘ats significa “sugerir, aconselhar, decidir, inventar (um plano), planejar” (HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998). Nos textos bíblicos, alternam-se bons e maus conselhos,
conforme ressaltam Harris, Archer e Waltke: Absalão rejeitou bons conselhos (2Sm 17,14);
Moisés, ao contrário, aceitou o conselho de Jetro (Ex 18,19); o Sl 33,10 fala dos conselhos e
planos de nações e povos, que são contrários aos desígnios de Deus (cf. Is 8,10; 30,1; 2Rs 6,8;
18,10; 1Cr 13,1). No Sl 1,1, adverte-se que uma pessoa bem aventurada não anda no
“conselho dos ìmpios”. Nos profetas, Deus tem o poder de desfazer soberanamente os planos
humanos, e os desígnios de seu coração são eternos (Is 48,3; Jr 33,3). Em outros textos, a
inconstância do povo deve-se à “falta de conselho” (Dt 32,28; Jó 42,3; Pr 1,25.30; 12,15;
19,20-21) (HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998).
O verbo ya‘ats no nifal significa “consultar alguém ou um conselho”; o seu cognato
aramaico ye‘at, no hitpael, cujo único emprego na Bìblia é Dn 6,7[8], significa “conspirar”
(HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 1698). Em 1Rs 12,28, a forma verbal está no nifal,

45
46

mas o narrador não apresenta os conselheiros de Jeroboão, que poderia ser o próprio
Jeroboão11, os conselheiros da corte ou o povo (JENNI; WESTERMANN, 1985).
A referência ao “aconselhamento” de Jeroboão logo nos remete ao desastroso
conselho tomado por Roboão por ocasião da assembleia em Siquém, que resultou na divisão
do Reino, de acordo com 1Rs 12,8.13 (//2Cr 10,6.8). Por meio dessa associação textual, o
redator já insinua que as ações de Jeroboão são motivadas pela ambição, tal como teria sido o
caso Roboão.
No v. 28, Jeroboão toma uma atitude: ele age (“e fez”) e fala (“e disse”). Então, ele é
chamado, pela primeira vez, de “rei”. Saìmos da esfera da interioridade (“coração”, v. 26-27)
e passamos para a esfera pública: o rei “faz” e “fala” ao povo.
Antes desses versículos, Jeroboão era apresentado de modo sempre passivo. De
acordo com 1Rs 11,11-13.26-39 e 12,1-24, Jeroboão não instiga a revolta contra a casa de
Davi; ele apenas é o beneficiário da decisão de Javé. Em 1Rs 12,15 (// 2Cr 10,15), é Javé
quem está no controle da situação: “Assim, o rei (Roboão) não ouviu o povo; era uma
disposição de Javé, para cumprir a palavra que ele dissera a Jeroboão, filho de Nabat, por
intermédio de Aìas de Silo”. Em 1Rs 12,20, Jeroboão é aclamado rei por “todo Israel”,
portanto tem o apoio popular12. Neste contexto de “passividade” é que se dá a eleição de
Jeroboão como “servo” escolhido por Javé (1Rs 11,11), e essa eleição está no contexto
narrativo da punição ao pecado de Salomão/Roboão.
Quando, porém, Jeroboão fala e age como “rei”, ele fabrica imagens de touros jovens,
aclama-as solenemente diante da assembleia e as entroniza em Betel e Dã, em meio a
procissões e festa. A alternância entre o uso e o não uso do substantivo “rei” implica a
mudança de atitude de Jeroboão, entre passividade e ação. Assim, suas ações como “rei” são
consideradas pelo narrador iniciativas “pessoais”, e não de acordo com a vontade divina.

11
GREEN, David E. Theological Dictionary of the Old Testament, vol. 5, p. 160, diz que o uso do verbo no
Nifal sugere “tomar conselho junto”, a exceção é Jeroboão I em 1Rs 12,28, que “toma conselho consigo
mesmo”, citado por OLIVEIRA, 2010, p. 100.
12
Há ambiguidade no texto bíblico: em 1Rs 12,12 é dito que Jeroboão teria participado da assembleia de
Siquém; de acordo com 1Rs 12,18.20, ele teria chegado apenas depois da morte de Aduram.
46
47

2.8.1.2.2. Os “touros jovens”

A primeira iniciativa atribuída ao rei Jeroboão pelo narrador é a fabricação de dois


touros jovens de ouro. A raiz verbal ‘asah significa basicamente “fazer, produzir algo,
executar uma tarefa ou ordem”. No sentido de fabricar, enfatiza o dar forma a objeto. Na
acepção de obrigação ética, significa cumprir o que Deus havia mandado (Ex 23,22; Dt 6,18,
etc.). Também pode ter o sentido de “oferecer sacrifìcio” (1Rs 12,27; Ex 10,25). Quando o
sujeito é Deus, ressaltam-se os sinais e prodígios de sua ação na história (Js 23,3; 24,17; Dt
29,1). No livro do Gênesis, há uma alternância entre os verbos bara’ (“criar”) e ‘asah. O
primeiro tem a ver com dar origem, chamar à vida, ação que cabe somente a Deus; o segundo
tem um alcance bem mais amplo, sem conotações especiais (HARRIS; ARCHER; WALTKE,
1998).
O verbo “fazer” (‘asah) ocorre nos v. 27, 28, 31 (duas vezes) e 32 (quatro vezes),
costurando praticamente toda a unidade. À exceção do v. 27, Jeroboão é o sujeito do verbo
“fazer” em todos os versículos, o que o caracteriza como um homem de ação, empreendedor –
rei. Vimos que este é um elemento importante na caracterização de Jeroboão: enquanto a
personagem manteve-se passiva, ela cumpria a vontade de Javé; porém, agora que se mostra
ativa, suas iniciativas são condenadas pelo narrador, sob a acusação de violação da aliança
com Javé (“transgressão”, v. 30).
Em 1Rs 12,28, é dito que Jeroboão fez dois “touros jovens” (‘egley, na forma do
construto plural) de ouro. O touro era um dos animais mais usados para o sacrifício. O touro
de um ano era aceitável para o holocausto (Lv 9,3). Como alimento, normalmente era para os
ricos (Am 6,4). Com o jumento e o camelo, estão entre as principais riquezas na Bíblia (Gn
13,2; 12,16). O touro também é empregado como tipologia dos povos gentios (Sl 68,30) e dos
soldados mercenários do Egito (Jr 46,21). Em Jr 31,18, o touro indomável representa Efraim
indômito, e em Is 27,10 reflete a desolação de Judá. A coexistência pacífica com outros
animais representa a paz vindoura em Is 11,6 (HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998).
O touro era também símbolo de virilidade (Nm 23,22; 24,8), por isso muitos deuses
levavam o epìteto “touro”: o deus-lua Sin (numa alusão aos chifres da meia-lua) e Marduk na
Babilônia, Thot e Osíris no Egito, El na Fenícia, chefe do panteão de Ugarit. Os egípcios
veneravam os touros vivos, sob os nomes de Ápis e de Mnévis, vistos como representação da
divindade. Entre os babilônios, arameus e hititas, o touro era o símbolo ou o animal sagrado

47
48

do deus da fecundidade e da tempestade, que traz a chuva; em certas tribos árabes, ele era o
símbolo do deus-lua.
A raiz hebraica para “touro jovem” (raiz ‘egel) em 1Rs 12,28 ocorre em diversos
outros textos: Ex 32,4.8.19.20.24.35; Lv 9,2.3.8; Dt 9,16.21; Js 11,6; 27,10; 1Sm 28,24; 1Rs
12,32; 14,9; 2Rs 10,29; 17,16; 2Cr 11,15; 13,8-9; Ne 9,18; Is 27,10; Jr 31,18; 34,18.19;
46,21; Ez 1,7; Am 4,4; 5,5s; 6,4; 7,9; Os 2,4-7.18; 8,4-6.9; 10,4-7.11; 13,2; Mq 6,6; Ml 3,20;
Sl 29,6; 68,31; 106,19.
Na maioria dessas citações o substantivo hebraico traduzido por “touro jovem” vem
acompanhado de termos como massekhah (“imagem de metal fundido”), ‘atsabyim (“ìdolos”)
ou ma‘aseh harashyim (“obra de artesãos”). Em 1Rs 14,9, os touros são considerados
representação de “outros deuses (’elohim ’aherym), e não de Javé. Em 2Cr 13,9, os touros
jovens são chamados de “não deuses” (lo’ ‘elohyim). Isto não ocorre em 1Rs 12,28.32, onde o
touro jovem é considerado sìmbolo de uma divindade: “Eis teus deuses (’eloheykha), Israel”
(v. 28); “para sacrificar aos touros jovens que fez”.
O texto de Ex 32,4, citação idêntica a 1Rs 12,28, retroprojeta os touros jovens de
Jeroboão I para o tempo do deserto, como se o símbolo do touro estivesse condenado desde as
origens de Israel13. Mas, curiosamente, o texto sobre a “reforma de Josias” (2Rs 22-23), que
condena violentamente o altar de Betel, não faz menção aos “touros jovens” de Jeroboão I.
Por associação a textos tardios como Ex 32; Dt 9,16; 1Rs 14; 2Rs 10 e 17; 2Cr 13; 11
e Ne 9, entre outros, somos levados a associar a “transgressão” de Jeroboão em 1Rs 12,28-30
à “fabricação” dos touros jovens (idolatria) ou ao culto a “outros deuses”. Esse sentido,
porém, representa uma fase tardia da teologia da Aliança de cunho anicônico e monoteísta (Ex
34,17) 14, no período do Segundo Templo.
Segundo Pakkala, a transgressão de Jeroboão não é o culto aos touros jovens, e sim a
desobediência da lei de centralização do culto a Javé em Jerusalém. O autor argumenta que a
intenção do texto de 1Rs 12,26-33 é impedir o crescimento da importância religiosa de Betel
no período do exílio, e incentivar a restauração do templo de Jerusalém. Uma maneira de se
fazer isso é declarar a ilegitimidade do culto em Israel, porque se dá fora da casa de Javé em
Jerusalém (2Rs 17,19-23). Para o autor, a destruição do altar e dos lugares altos em Betel por
Josias, de acordo com 2Rs 23,15, evidencia que a rejeição do culto em Betel não é por
considerá-lo não javista, ou por sua representação na forma de touro, e sim porque se trata de

13
Sobre as correspondências intertextuais entre 1Rs 12,28-32 e Ex 32,1-6, ver: OLIVEIRA, 2010.
14
Sobre o sentido do “pecado de Jeroboão”, há controvérsias se seria o lugar de culto ou a fabricação ou o culto
aos touros jovens. cf. ALTER, 2007, p. 163; RÖMER, 2008, p. 17-19; BOGAERT et al. 2013, p. 249.
48
49

culto a Javé em lugar errado. Para o narrador bíblico, Javé quer que o templo de Jerusalém
seja reconstruído (PAKKALA, 2002).
Em outro artigo, Pakkala reafirma que os touros são uma adição tardia a 1Rs 12,26-33.
Jeroboão teria sido ligado aos touros somente num estágio muito tardio do desenvolvimento
do livro de Reis. Antes da adição dos touros, o pecado de Jeroboão era somente a construção
de templos nos lugares altos. Segundo o autor, quando os touros deixam de ser o foco de
atenção na leitura de 1Rs 12,26-33, percebe-se claramente que o objetivo do texto é o lugar do
sacrifício. A ideia dos touros jovens em Betel e Dã seria uma construção tardia, a fim de
ridicularizar Jeroboão I como rei fundador, conclui o autor (PAKKALA, 2008).
Mas o símbolo do touro no campo da religião é, na verdade, muito antigo, dentro e
fora de Canaã, e perdurou por muito tempo. É provável que tenha sido durante o governo de
Jeroboão II, sobretudo a partir da crítica da profecia de Amós e Oseias, que cresceu a
polêmica em torno dos “touros jovens” de Betel e Samaria. Tais crìticas, porém, mais
parecem constituir uma denúncia contra a política do rei, representada metonimicamente no
símbolo dos touros jovens nos santuários nacionais, do que uma proibição à fabricação de
objetos cultuais. Somente no final do séc. VIII, notamos uma mudança na forma de
representação de Javé: a iconografia do touro é substituída por uma representação solar de
Javé (RÖMER, 2011). Porém, o culto aos “touros jovens” passou a constituir alvo de
acusação de idolatria ou politeísmo somente no período persa-helenista15.

2.8.1.2.3 “Eis teus deuses, Israel”

Após a fabricação dos touros jovens, Jeroboão os teria apresentado ao povo com uma
aclamação que associava os touros jovens à tradição do Êxodo: “Eis teus deuses, Israel, que te
fizeram subir da terra do Egito”.
A exortação começa com a seguinte frase: “Basta para vós subir a Jerusalém”. A raiz
verbal ‘alah indica que não é mais necessário o povo “subir” a Jerusalém para adorar o deus
que o fez “subir” da terra do Egito16 (v. 28). O paralelismo estabelecido pelo uso do mesmo
verbo, por um lado, equipara a opressão imposta pela casa de Davi à opressão egípcia no

15
A relação entre “touro jovem”, “teus deuses” e a “subida do Egito” é tema da apresentação do capìtulo 3 desta
dissertação, a propósito da tradição do culto a Javé em Israel Norte.
16
Sobre o sentido do verbo “subir” (‘alah) na fórmula do Êxodo, ver: LIVERANI, 2008, p. 339-343.
49
50

passado; por outro, sugere que Jeroboão teria se aproveitado de um sentimento generalizado
de insatisfação do povo devido à opressão dos governos de Salomão/Roboão (1Rs 12,16) para
dar inìcio a um “novo culto” em Israel, dado que a narrativa considera o culto a Javé em
Jerusalém mais antigo.
Segundo o texto, a razão para não precisar “subir” a Jerusalém é que os “deuses” de
Israel, que o fizeram subir do Egito, estão presentes no meio do povo, através da
representação dos dois touros jovens (v. 28), colocados um em Betel e o outro Dã (v. 29). O
narrador se refere à divindade do Êxodo com o substantivo hebraico na forma plural, com
sufixo pronominal de segunda pessoa, ’eloheykhem (“teus deuses”), e não com o tetragrama
do nome “Javé” (Yhwh). A raiz ’el e a forma plural sugerem ambiguidade.
“El” (’el) é o nome próprio da deidade-chefe do panteão ugarítico, geralmente
traduzido por “Deus”, no singular (a forma plural de ’el é ’elim, “deuses”). A divindade El era
comumente representada na forma de touro. O elemento teofórico –El encontra-se, por
exemplo, em “Betel”, que significa “casa de El”, e não “casa de Javé”; e em “Israel”, que é o
nome de um povo que se identifica com o deus El, mas que passou a ser conhecido como o
“povo de Javé”. Em Nm 23,22 e 24,8, por exemplo, lê-se: “El, o que o fez sair do Egito, seus
chifres são como os do touro selvagem”.
O substantivo ’elohim é a forma plural do substantivo masculino ’eloha. No singular,
’eloha é traduzido por “deus”. Mas, no plural, ’elohim pode ser traduzido tanto por “deuses”
como por “deus” (com sentido de singular) (KIRST, 2001).
O texto de 1Rs 12,28-29 se refere a dois santuários e a dois touros, mas os touros não
estariam representando deidades diferentes, conforme sugere a forma hebraica plural
’elohykhem, e sim o deus nacional de Israel Norte em suas manifestações locais: em Betel e
em Dã17. Römer considera especulativa a ideia de que o plural pudesse se referir à consorte
Asherá, visto que não há associação da deusa com a tradição do Êxodo. Outra explicação,
segundo Römer, seria entender o plural como uso polêmico: o narrador quer convencer a
audiência de que o culto nos santuários norte-israelitas de Betel e Dã é politeísta. O autor
compara 1Rs 12,28 com Ex 20,3-4, texto no qual se diz que Israel não deve ter “outros
deuses” (’elohyim ’aheryim) “perante mim” (‘al-panaya). Não deve fazer (‘asah) “ìdolo”
(phesel) nem se prostrar diante de “toda imagem” (khol-temunah). Assim, conclui Römer, a
forma plural em 1Rs 12,28 deve ser uma corrupção de uma aclamação litúrgica original no
singular (RÖMER, 2015a).

17
Sobre as diversas alusões ao culto local a Javé, dentro e fora da Bíblia, ver: RÖMER, 2011, p. 2.
50
51

Albertz concorda que a pluralidade das imagens dos touros jovens (v. 28.32; Os 10,5;
13,2) enfatiza a reprovação do politeísmo no Reino do Norte, visto que outros registros falam
somente de um touro jovem, no singular (Os 8,5; Ex 32,4.8; Dt 19,16; Sl 106,19). Segundo o
autor, cada santuário devia contar com uma imagem cultual do touro jovem, portanto a
fórmula de aclamação litúrgica original estaria no singular (ALBERTZ, 1999).
Albertz ainda compara a aclamação “Eis teus deuses, Israel, que te fizeram subir da
terra do Egito” em três passagens, que apresentam pequenas alterações: 1Rs 12,28 (“eis”,
hinne), Ex 32,4.8 (“este”, ’elle) e Ne 9,18 (“este”, ze). Sua conclusão é a de que se trata de
uma aclamação cultual habitual com que se apresentava a imagem diante da assembleia
reunida no templo de Betel (estilo direto, partículas dêiticas e alocução na segunda pessoa).
Deste modo, a figura do touro representaria, na perspectiva do Reino do Norte, a força do
deus libertador da escravidão do Egito e do trabalho forçado imposto por Salomão e Roboão.
Note-se que, nesta memória do Êxodo, não há menção a Moisés (ALBERTZ, 1999; SMITH,
2006).
Outra questão relativa ao uso do substantivo ’eloheykhem (“teus deuses”) é se a raiz
‘el é apenas um termo genérico para “deus”; e, neste caso, o deus do Êxodo em 1Rs 12,28
seria Javé. Ou trata-se de resquício de antiga tradição do Reino do Norte segundo a qual a
libertação do Egito foi atribuída, inicialmente, ao deus El, antes de Javé tornar-se o deus
nacional de Israel.
Albertz não considera ‘egel uma designação oficial do touro jovem de Betel, uma vez
que não é usado como um epíteto referido a Yhwh. Neste sentido, ao contrário de Römer, que
traduz a inscrição do óstraco de Samaria18 com o nome ‘glyw como “Javé é um touro jovem”
(RÖMER, 2015b, p. 109), Albertz adverte que o óstraco deveria ser traduzido não como
“Javé é um touro jovem”, mas no sentido de que o portador era designado como um “touro
jovem”, “filho de Javé” (ALBERTZ, 1999; SMITH, 2006). Ou seja, para Albertz, o uso do
substantivo ’elohim é um modo de evitar a associação entre o nome “Javé” e a representação
do touro jovem.
Kaefer considera a possibilidade de que a tradição do Êxodo estivesse associada,
inicialmente, à divindade El e à sua representação na forma de touro jovem. Quando Javé se
tornou a divindade nacional de Israel Norte, ele já teria assimilado alguns atributos de El, e a

18
Conjunto de fragmentos de cerâmica do período de Jeroboão II com informações sobre quantidade de jarras de
vinho, óleo, etc.
51
52

forma de representação do touro, o que difere da tradição de Judá, onde a arca com os
querubins constituía o símbolo da presença de Javé (KAEFER, 2015a)19.
Consideramos que o texto de 1Rs 12,28 se reporta ao culto oficial em Israel Norte à
época de Jeroboão II, na primeira metade do séc. VIII. Neste contexto, no v. 28, o touro
jovem, assim como a expressão ’eloheykhem (“teus deuses”) representariam Javé, o deus do
Êxodo, em liturgias nacionais como as que eram realizadas nos chamados santuários do rei,
como Betel e Samaria. O não uso do nome Javé seria, então, uma forma de o redator (tardio)
evitar associar o nome de Javé à representação material da divindade (idolatria) ou a uma
forma de representação considerada ilegítima (em comparação com a representação da arca e
dos querubins no templo de Jerusalém). Ainda no séc. VIII, o culto oficial a Javé nos
santuários do rei não excluía o culto a Asherá, sua consorte, conforme evidenciam as
inscrições de Kuntillet „Ajrud, nem o culto a outras divindades auxiliares, masculinas e
femininas (CROATTO, 2001; NA‟AMAN; LISSOVSKY, 2008; RÖMER, 2015b).
Porém, consideramos que o uso da expressão ’eloheykhem (“teus deuses”), a
referência ao sìmbolo do touro e as manifestações locais da divindade em “Betel” e “Dã” em
1Rs 12,28-29 revelam uma tradição de culto própria de Israel Norte, segundo a qual a
libertação do Egito teria sido atribuída, inicialmente, ao deus El. O deus Javé, que teria sido,
no princìpio, uma divindade secundária, ou considerado um dos “filhos de El” (Sl 89,7.8), ao
se tornar o deus nacional de Israel Norte, já teria assimilado atributos de El, a forma de
representação do touro, a tradição do Êxodo e inclusive a consorte Asherá.
O uso da forma plural ’elohykhem (“teus deuses”) em 1Rs 12,28 nos parece uma
tentativa de acusação contra o politeísmo em Israel Norte, ou mesmo contra a fabricação de
estatuetas/imagens, tradição comum no Antigo Oriente Próximo. Tais acusações, porém, tal
como aparecem em textos tardios, como vimos (1Rs 14,9; 2Rs 17,16; Ex 32,8.31; Dt 5,7-8;
9,16.21; 13; 2Cr 13,8-9), refletem conflitos entre o santuário de Jerusalém e o santuário de
Garizim, no período persa-helenista, retroprojetados para o tempo de Jeroboão I (RÖMER,
2014).

19
Sobre a relação entre a simbologia do touro, Javé e a tradição do Êxodo, ver KAEFER, 2015a, p. 878-906.
52
53

2.8.1.2.4 Os santuários de Betel e Dã

A cena da fabricação e exortação dos touros jovens conclui-se com a entronização das
estátuas nos santuários de Betel e Dã, em meio a uma procissão festiva (v. 29.30b).
Relacionada a Betel, a raiz verbal sym tem como significado básico “por ou colocar
algo em algum lugar ou indicar que algum objeto foi colocado em determinado lugar”. Mas
também pode significar “estabelecer um novo relacionamento à medida que identifica a
colocação de algo ou alguém numa nova situação” (HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998).
O verbo hebraico natan significa “dar, por, colocar”, com amplo campo semântico (HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998). Paralelamente, os dois verbos indicam os locais onde os dois
touros jovens foram entronizados, um Betel e o outro em Dã, estabelecendo-se, assim, uma
“nova situação” para o culto a Javé no Reino do Norte, uma vez que, segundo o redator, o
santuário de Jerusalém seria mais antigo.
Betel e Dã, no v. 29, representam os limites geográficos de Israel ao sul e ao norte,
respectivamente, e, do ponto de vista simbólico, a totalidade do reino. Betel, citada uma vez
no v. 29 e duas vezes no v. 32, provavelmente é o foco principal da unidade. Além disso,
como vimos na Crítica Textual, embora não seja citada no v. 30b, há uma nota que sugere a
inclusão da expressão “a Betel” para completar o sentido do versìculo, que ficaria assim: “e
caminharam o povo diante de um em Betel e diante de um até Dã”.
Os touros jovens nos santuários de Betel e Dã marcariam, no plano narrativo, a
presença da divindade protetora de Israel, o deus do Êxodo, no “recém-fundado” Reino do
Norte, rompendo-se, assim, com a lei da centralidade do culto na “casa de Javé em Jerusalém”
e com a “casa de Davi” (v. 26-27). Entendemos que este seria o primeiro sentido atribuído ao
“pecado” de Jeroboão: o local do sacrifìcio.
Betel é a localidade mais citada na Bíblia Hebraica, depois de Jerusalém. Ela é
considerada talvez o lugar de culto mais importante do Reino do Norte. É o centro das
tradições em torno do ciclo de Jacó em Gênesis (Gn 12,8; 13,3; 28,19; 31,13; 35,1-15).
Aparece nas conquistas de Josué (Js 7; 8; 12; 16,1; 18,13) e no livro dos Juízes (Jz 1,22-26;
4,5; 20,18.26-29; 21,2). Está relacionada a Saul e Samuel, no Primeiro Livro de Samuel (1Sm
7,16; 10,3-4). É santuário oficial de culto no Reino do Norte, especialmente como o local de
um dos “touros jovens” estabelecidos por Jeroboão I (1Rs 12,29-33; 13,1), como vemos. É
depreciada no ciclo de Elias-Eliseu (2Rs 2; 10,29) e fortemente criticada em Amós (3,14; 4,4;

53
54

5,5.6; 7,10-13) e Oseias (10,5-13; 12,5). É lugar de assentamentos assírios, após a queda de
Samaria (2Rs 17,28). É o alvo principal no relato da reforma de Josias (2Rs 23,15-16). E, por
fim, Betel ainda figura na lista de cidades dos repatriados em Esd 2,28 e Ne 7,32. O termo
“Betel” em Zc 7,2 refere-se, provavelmente, a nome de pessoa e não a lugar. Assim, Betel é,
ao mesmo, local sagrado de fundação do Reino do Norte e casa da perversão de Israel
(TOSELI; KAEFER, 2015).
A referência a Dã no v. 29 segue no v. 30b, após a intercalação do comentário do
narrador (v. 30a). A caminhada diante de estátuas ou imagens pode representar rito
processional ou peregrinação festiva (v. 30b). Pouco sabemos sobre a liturgia em torno dos
touros jovens, mas Os 13,2 sugere que as estátuas eram beijadas, ou que o povo lhe mandava
beijos, e talvez até pudesse tocá-las, em sinal de adoração, quando, por exemplo, em certas
festas, a imagem era exposta ao público. Ao que tudo indica, era uma festa alegre e popular
(ALBERTZ, 1999).
De acordo com a tradição de Jz 17-18, Dã é um antigo santuário norte-israelita, que
ficava sob a responsabilidade dos levitas, para onde foi levada uma “imagem de escultura”,
“ìdolo de metal fundido” (Jz 17,3-4 e 18,14.30), provável alusão ao “touro jovem”
(HALPERN, 1976). Em Jz 18,30, é dito que os levitas permaneceram em Dã até a invasão dos
assírios em 721. Esta informação contrasta com 1Rs 12,31, que acusa os sacerdotes locais por
não serem de origem levita.
Quando comparamos as referências bíblicas a Betel e Dã com algumas pesquisas
arqueológicas recentes, há divergências. De acordo com Arie (ARIE, 2008), Dã se tornou
israelita pela primeira vez somente na época de Jeroboão II (783-743) e foi tomada pela
Assíria no final do séc. VIII. Um dos últimos registros relativos a Dã de que dispomos é uma
inscrição do séc. II: “Ao Deus que está em Dã” (KAEFER, 2016b).
A reavaliação dos resultados das escavações do sítio de Betel indica que esteve
desabitado ou fracamente ocupado no período de Jeroboão I, após a campanha militar de
Sheshonq I em Canaã no séc. X; as atividades na região seriam retomadas no período de
Jeroboão II, na primeira metade do séc. VIII; seguiu-se um período de baixa atividade no séc.
VII; durante o período babilônico e persa, o sítio de Betel esteve desabitado ou quase deserto.
Somente no séc. II retomou-se o desenvolvimento de Betel (FINKELSTEIN; SINGER-
AVITZ, 2009).
Com base nas informações da arqueologia podemos deduzir que o texto de 1Rs 12,26-
32 reflete a configuração do território israelita durante a fase de prosperidade do reinado de

54
55

Jeroboão II, retroprojetada para o tempo de Jeroboão I (BERJUNG, 2009). Thomas Römer,
apoiando-se no argumento de Arie (ARIE, 2008), também considera que a menção a Dã em
1Rs 12,29.30b é uma retroprojeção do tempo de Jeroboão II (cf. Am 9,21). E ele vai além,
perguntando se seria o caso de considerar a figura de Jeroboão I uma criação baseada na
figura do rei Jeroboão II (RÖMER, 2015a)20.
Afinal, a condenação do culto a Javé nos santuários de Betel e Dã em 1Rs 12,26-32
tem por finalidade, no livro de Reis, estabelecer a ilegitimidade de todos os santuários norte-
israelitas, à época da redação. Contudo, os redatores têm como referência a realidade político-
religiosa de Israel Norte à época de Jeroboão II, e não a de Jeroboão I, no séc. X.
Resumindo, os v. 28-29 sugerem que Jeroboão, do ponto de vista do narrador, valeu-
se de uma estratégia ambiciosa para se manter no poder, a saber: inovações cultuais. A
primazia da casa de Davi e do culto a Javé em Jerusalém, estabelecida nos v. 26-27, nos leva a
considerar a prática cultual norte-israelita, conforme descrita nos v. 28-29, como se fosse uma
mudança em relação à legítima forma de culto, previamente estabelecida em Jerusalém.
Assim, a fabricação das estátuas dos touros jovens é vista como uma inovação em relação ao
símbolo tradicional da arca (assim considerado); o culto nos santuários de Betel e Dã seria
posterior ao culto em Jerusalém; e os “deuses” cultuados em Israel Norte seriam outros
deuses, ou seria “Javé” cultuado ao lado de outras divindades – de qualquer modo, uma
maneira de menosprezar o culto norte-israelita. À parte a ideologia do texto, essas seriam
práticas cultuais autênticas do Reino do Norte.

2.8.1.3 A consequência das ações de Jeroboão (v. 30)

30
E isto se tornou transgressão; e caminharam o povo diante de um até Dã.

O v. 30 inicia com a intervenção direta do narrador: “E isto se tornou transgressão”. O


comentário do narrador é intercalado entre a entronização do touro jovem em Dã, no v. 29b, e
a procissão com o touro jovem até Dã, no v. 30b. Outros comentários do narrador a Jeroboão
ocorrem em 1Rs 12,33; 13,33-34; 2Rs 17,20-24; 23,15.
A raiz verbal hebraica hata’ significa errar (o alvo), falhar, pecar, tornar-se pecador
(KIRST, 2001). Na maioria dos casos, principalmente na literatura historiográfica e profética,

20
Thomas Römer não desenvolve a questão no artigo citado.
55
56

o substantivo correlato (hatta’t) denota um comportamento ou ação condenada por Javé ou


contra Javé, seus mandamentos ou pessoas que estão sob sua proteção (1Sm 20,1; Sl 59,3)
(HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998). No sentido sacrificial, a forma substantiva hatta’t
refere-se à “oferta pelo pecado” em Lv 4,1-13, meio de remover a culpa diante de Deus por
meio de abate de animal.
O uso do substantivo hebraico hatta’t (“transgressão”) em 1Rs 12,30a sugere que o ato
de Jeroboão foi considerado pelo narrador uma falta grave contra Javé, a ponto de se tornar o
paradigma para o julgamento de todos os reis de Israel Norte: 1Rs 15,26 (Nadab); 15,34 e
16,2 (Baasa); 1Rs 16,26 (Omri); 16,31 (Acab); 22,53 (Ocozias); 2Rs 3,3 (Jorão); 10,29 (Jeú);
13,2 (Joacaz); 13,11 (Joás); 14,24 (Jeroboão II); 15,9 (Zacarias); 15,18 (Manaém); 16,24
(Faceias); 16,28 (Faceia). Por fim, foi considerado a causa da queda de Israel (2Rs 17,22-23),
servindo de advertência também para Judá (2Rs 17,19). Mas qual teria sido a ação ou palavra
de Jeroboão que “se tornou transgressão”, segundo o narrador em 1Rs 12,30? O local de
culto, os touros jovens ou o politeìsmo (“teus deuses”)?
Antes de tudo, vale notar que, neste ponto da narrativa, o comentário do narrador gera
uma mudança de curso na história de Jeroboão. Até então, a ascensão de Jeroboão havia sido
considerada uma escolha de Javé (1Rs 11,26-40); a partir de agora, porém, Jeroboão é
rejeitado.
A condenação do rei, contudo, não se deve às suas iniciativas políticas, mas às práticas
cultuais21. Note-se que não houve nenhum comentário do narrador acerca das fortificações de
Siquém e Penuel, atribuídas a Jeroboão em 1Rs 12,25 22. E a motivação política da memória
do Êxodo, que equipara a libertação do Egito à libertação do jugo imposto pela casa de Davi
(1Rs 12,4.14), praticamente se dilui na narrativa de Jeroboão. Afinal, o chamado
“pecado/transgressão de Jeroboão”, que ecoa em todo o livro de Reis (1Rs 12,30;
15,25.30.34; 16,2.3.19.26.31; 2Rs 3,3; 10,29; 13,2.11; 14,24; 15,9.18.24.28), refere-se às
suas, assim consideradas, “inovações” cultuais.
A releitura da tradição de Jeroboão e do culto norte-israelita em 1Rs 12,26-32 é
posterior à queda de Samaria, e traduz sentidos que refletem a teologia tanto do período
josiânico, quanto do período do Segundo Templo.
Após a queda do Reino do Norte, provavelmente à época de Josias, no final do séc.
VII, teria havido uma primeira redação de 1Rs 12,26-32. A ênfase na fidelidade à casa de

21
Sobre a relação entre rei e culto nacional, ver: KEEFE, 2003, p. 93-131.
22
Consideramos mais provável que a reconstrução de Siquém e Penuel seja uma retroprojeção do período do
reinado de Jeroboão II para o tempo de Jeroboão I.
56
57

Davi e à casa de Javé em Jerusalém (v. 26-27) indica que o texto pode ter servido como
propaganda do rei e do clero urbano (sadocita) contra santuários considerados rivais a
Jerusalém, como o de Betel, ou santuários judaìtas do interior (os chamados “lugares altos”, v.
31.32). Neste contexto, a “transgressão” de Jeroboão teria sido a desobediência à lei de
centralidade do culto no “lugar escolhido” para a oferta dos sacrifìcios (Dt 12,13-18), isto é,
“a casa de Javé em Jerusalém” (v. 26).
Mais tarde, no período do Segundo Templo, teria havido uma nova releitura da
tradição do culto norte-israelita, provavelmente no contexto da reconstrução do templo de
Garizim, em Siquém. Assim, a ênfase interpretativa a propósito da “transgressão” de Jeroboão
(v. 30) passa a recair sobre a adoração aos “touros jovens” como sìmbolo da presença de Javé,
em desobediência à lei de proibição à fabricação de imagens, conforme Dt 5,7-8. E pode ser
uma alusão à prática politeìsta (“outros deuses”, v. 28), como o culto a Baal e a todo o
exército do céu, por exemplo (Ex 20,2-3; 2Rs 17,7.16.33.35-41). Essas interpretações
teológicas refletem a tendência oficial à consolidação de um javismo monoteísta e
iconoclasta, no período do Segundo Templo, a partir de Judá.
Contudo, é importante ter presente que o relato da tradição do culto a Javé em Israel
Norte, conforme atesta 1Rs 12,26-32, baseia-se em fontes mais antigas, pré-deuteronomistas,
que refletem o período de Jeroboão II (como vimos, a referência a Jeroboão I seria uma
retroprojeção), e que teriam chegado a Judá após a queda de Samaria.

2.8.2 Os Lugares Altos (v. 31-32)

31
E fez a casa de lugares altos; e fez sacerdotes d[as] extremidades do povo,
32
que não eram dentre os filhos de Levi. E fez Jeroboão festa no oitavo mês,
aos quinze dias do mês, como [a] festa que [se fazia] em Judá, e subiu ao
altar, assim fez em Betel, para sacrificar aos touros jovens que fez; e
estabeleceu em Betel os sacerdotes dos lugares altos que fez.

Nos v. 31-32, o narrador continua com a enumeração das ações atribuídas a Jeroboão
(iniciada no v. 28). O uso da forma verbal “e fez” (vaya‘as) assegura a coesão entre as duas
partes. Jeroboão teria feito “casa de lugares altos” (beyit bamot), instituìdo “sacerdotes
(kohen) das extremidades do povo, que não eram filhos de Levi”, “sacerdotes dos lugares

57
58

altos”, estabelecido a data da “festa” (hag) e oferecido “sacrifìcios” no altar de Betel aos
touros jovens que fez.

2.8.2.1 “Lugares altos” (v. 31.32)

A forma plural “lugares altos” (bamot) traduz o substantivo singular hebraico bamah.
O sentido básico de bamah é de designação topográfica: “costas”, “flanco”, “colina”, “local
elevado” ou “cume” de montanhas (Dt 32,13; Is 58,14; Am 4,13; Mq 1,3), das nuvens (Is
14,14) ou do mar (as ondas, Jó 9,8), lugar elevado para evitar ataques (2Sm 22,34; Sl 18,34;
Hab 3,19) (McKENZIE, 1983; HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998; BOGAERT et al.
2013). Mas, na maioria das vezes, “lugar alto” se refere a lugar de culto.
Nas referências bíblicas aos lugares altos, normalmente acompanham termos como
asherah, árvore ou poste de madeira, que era símbolo da deusa da fertilidade, ou pequenos
bosques sagrados, que sombreavam o altar (Dt 16,21; Jz 6,25-30); massebah ou pedras
erguidas, que simbolizavam a presença da divindade (Gn 28,18; 2Rs 3,2); altares feitos de
pedra (2Rs 21,3; 2Cr 14,3), para sacrifícios e oferta de incenso (2Rs 21,3; 2Cr 14,2; Ez 6,6);
gabbim, que era uma tenda ou aposento onde os vasos cultuais eram guardados e as porções
sacrificiais eram comidas (1Rs 12,31; 13,32; 2Rs 17,29; 23,19). As principais atividades nos
lugares altos seriam queima de incenso, sacrifícios, refeições sacrificiais, preces, prostituição
(Ez 16,23-43; Lv 21,9) e sacrifício de crianças (2Rs 17,17) (McKENZIE, 1983).
Para Mckenzie, o lugar alto era essencialmente um santuário rural, ao ar livre, em
contraste com os templos urbanos (McKENZIE, 1983). Para RÖMER, também se trata de
santuários locais, ao ar livre, debaixo de árvores ou no cume de montes, diferente de “casa
(beyt) de Javé” e do “templo (heykhol) de Javé” (RÖMER, 2015b). Gerstenberger se refere à
bamah como lugar de culto local ou regional, diferente da casa e de santuário nacional
(GERSTENBERGER, 2007). Bogaert fala de “lugares altos” como colinas artificiais criadas
para o culto, ora “construìdas” (1Rs 11,17; 14,23; 2Rs 17,9; 21,3; Jr 19,5), ora “destruìdas”
(2Rs 23,8; Ez 6,3) (BOGAERT et al. 2013; FRIED, 200223).
As bamot existem desde a época canaanita antiga (Meguido) até o final da época
monárquica em Judá (Malhah, a sudeste de Jerusalém), e certamente depois, como podemos
23
A autora comenta sobre as bamot serem construções essencialmente urbanas e sua destruição estar ligada às
campanhas Sheshonq I, Teglat-Falasar III, Salmanasar IV e Senaquerib (e não às reformas de Ezequias e Josias).
58
59

depreender das crìticas aos “lugares altos” no perìodo persa-helenista. Estão situadas em plena
cidade, ou perto de uma cidade, ou no campo, e se apresentam sob a forma de plataformas
ovais ou circulares de 6 a 25 metros de diâmetro, construídas sobre pedras grossas, munidas
de uma escada para subir e envoltas por um muro retangular ou poligonal que delimitava o
espaço sagrado (BOGAERT et al. 2013).
De uma forma ou de outra, os “lugares altos”, elevações naturais ou construìdas, com
estruturas mais ou menos complexas, dentro ou fora das cidades, geralmente são repudiados
como lugar de culto ilegítimo e imoral, seja em referência ao culto a Javé, seja em referência
ao culto a “outros deuses”.
Dentre as poucas referências positivas aos lugares altos, estão a do sacrifício de
Samuel, em Ramá (1Sm 9,12.13.14.19.25;10,5.13), e a de Salomão e o povo, em Gabaon,
antes da construção do “templo” (1Rs 3,2.4).
As citações negativas sobre o culto nos lugares altos estão no Pentateuco (Ex 20,3; Lv
26,30; Nm 22,41; 33,52), nos livros Proféticos (Os 10,8; Am 4,13; 7,9; Mq 1,3.5; 3,12; Jr
7,31;19,5; 32,35; Ez 6,3; 16.16; 20,28; Hab 3,19), em Jó 9,8, nos Sl 16,34; 78,58; em 2Cr
21,11; 28,25 e 33,17.19 e, sobretudo, no livro de Reis. Tantas referências atestam a prática
generalizada do culto nos lugares altos.
No livro de Reis, o substantivo hebraico na forma plural bamot, “lugares altos”, refere-
se a culto não só em Israel (1Rs 12,32; 1Rs 13,33; 2Rs 17,9.11; 23,15.19-20), como também
em Judá. Em 1Rs 14,23, Roboão, rei de Judá, constrói “lugares altos” e reproduz todas as
abominações das nações que Javé havia expulsado de diante dos israelitas (v. 24). Em 1Rs
15,14, Asa (911-870), rei de Judá, empreende grande reforma religiosa, mas não consegue
fazer desaparecerem os “lugares altos”. Em 2Rs 18,4, Ezequias faz uma tentativa de destruir
os lugares altos, mas não consegue. Em 2Rs 23,5.8.9, o rei Josias condena com veemência os
“lugares altos” das cidades de Judá e dos arredores de Jerusalém, inclusive aqueles edificados
por Salomão a diversas divindades estrangeiras (2Rs 23,8.13; cf. 1Rs 11,7).
Há referência a lugar alto também nos territórios vizinhos a Israel e Judá. Na inscrição
de Mesha, rei de Moab, faz-se menção a um “lugar alto” (bamah) no território moabita de
Aroer (McKENZIE, 1983).
Assim, apesar da referência aos santuários do rei em Betel e Dã (1Rs 12,29), de acordo
com os v. 31-32, não havia centralização do culto. Mantinha-se a tradição do culto nos
“lugares altos”, o que parece ter sido proibido pela tradição de Jerusalém, segundo os
redatores deuteronomistas, provavelmente a partir do período de Josias.

59
60

2.8.2.2 “Casa de lugares altos”

Além da forma simples do substantivo hebraico bamah/bamot, “lugar alto/lugares


altos”, há também uma forma composta, no singular ou no plural: beyt/batey-bamot, “casa/s
de lugares altos”. Segundo Barrick, o termo bamah/bamot é usado quando se faz referência a
santuário ao ar livre, enquanto a expressão beyt-bamot é usada quando há algum de tipo de
construção na área da bamah. O altar de sacrifício geralmente ficava fora da área construída
(BARRICK, 1996).
A expressão “casa de lugares altos” ocorre em: 1Rs 12,31 (singular); 13,32 (plural);
2Rs 17,29 (plural). 32 (singular); 23,19 (plural). Quando está na forma do singular, refere-se a
Betel; no plural, refere-se aos lugares altos das “cidades de Samaria”24.
A construção de “casa/s de lugares altos” é atribuìda a diferentes agentes: em 1Rs
12,31, a Jeroboão; em 2Rs 17,29, aos samaritanos; em 2Rs 23,19, aos reis de Israel. Quanto à
localização, todas as citações se referem ao Norte: Betel e/ou cidades da Samaria.
Em 1Rs 12,31, a expressão “casa de lugares altos” estabelece paralelismo com as
expressões “casa de Davi” (beyt david) e “casa de Javé” (beyt yhwh), no v. 26, reforçando a
ideia de que o rei desejava ter a sua “casa” (dinastia/templo) em Israel, assim como a de Judá.
O uso do termo apresenta certa conotação irônica.
Jeroboão teria feito “casa de lugares altos” (beyt bamot) e instituído sacerdotes não
vinculados ao santuário de Jerusalém.

2.8.2.3 Os sacerdotes (v. 31.32)

Os sacerdotes instituídos por Jeroboão são citados na segunda parte da unidade em


estudo (1Rs 12,31-32). No v. 31, diz-se que os sacerdotes são das “extremidades do povo” e
“não eram dentre os filhos de Levi”; no v. 32, eles são chamados sacerdotes de “lugares
altos”. Não ocorre, por exemplo, a expressão “sacerdote de Javé” (kohen yhwh).

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Sobre as cinco ocorrências da expressão “casa/s de lugares altos” em Reis, ver: BARRICK, 1996, p. 621-642.
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A ação de Jeroboão de instituir sacerdotes assemelha-se a de Davi e Salomão (2Sm


8,7.17; 20,25; 1Rs 2,26-27). E não são os sacerdotes que sobem ao altar para sacrificar em
1Rs 12,32, e sim o rei Jeroboão, assim como Davi (2Sm 6,18).
Podemos chegar a duas conclusões a partir da referência aos sacerdotes instituídos por
Jeroboão. A primeira é que a função sacerdotal, na tradição de Israel Norte, não é restrita a
um grupo familiar, nem está vinculada ao clero da capital. A segunda é que o próprio rei
oferta o sacrifício no altar de Betel. Assim, o texto reflete questões que se encaixam tanto na
realidade do final da monarquia (centralização do culto em Jerusalém, extinção dos
sacerdotes-levitas do interior e dos santuários rurais), quanto no período do Segundo Templo
(quando somente o sacerdote era autorizado a fazer a apresentação do sacrifício).

2.8.2.3.1 Sacerdotes das “extremidades” do povo (v. 31)

A palavra qatseh, isoladamente, significa “fim de um território” (como o fim de um


rio, campo, vale, mar, tribo, etc.), “extremidade norte”, “borda, margem” (de uma cidade ou
campo) ou ainda um termo para “totalidade, todo, todos os lados” (HARRIS; ARCHER;
WALTKE, 1998). Jeroboão institui sacerdotes dentre todo o povo, desde a extremidade norte
(“Dã”) até o sul de seu território (“Betel”). Tal prática é considerada negativa pelo narrador
em 1Rs 12,31 e em outros textos.
Por exemplo, em 1Rs 13,33, atribui-se a ruína da casa de Jeroboão à designação de
homens das “extremidades do povo” (miqtsot ha‘am) como “sacerdotes dos lugares altos”
(koheney bamot), mesmas expressões usadas em 1Rs 12,31.32; quem lhe “enchesse a mão”
(ymalle’ ’et-yado), continua o narrador em 1Rs 13,33, “tornava-se sacerdote dos lugares
altos”. De acordo com 1Rs 13,34, “E se tornou esta coisa como a transgressão (hatta’t) da
casa de Jeroboão”. Usa-se a mesma sentença de condenação em 1Rs 12,30 e 1Rs 13,34. Mas,
em 1Rs 13,34, a ênfase recai na rejeição dos sacerdotes das “extremidades do povo”/“os
sacerdotes dos lugares altos”. A queda da Samaria estava muito viva na mente dos
deuteronomistas.
Em 2Rs 17,32, os estrangeiros que haviam sido deportados pelos assírios para a
Samaria instituìram para eles “sacerdotes dos lugares altos das extremidades deles”. Eles (os
estrangeiros), conforme os seus costumes, diz o narrador, prestavam culto a Javé e a seus

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deuses. Por um lado, repetem-se as mesmas expressões em 1Rs 12,31 e 2Rs 17,32:
“sacerdotes das extremidades do povo” e “sacerdotes dos lugares altos”. Por outro, sobressai,
em 2Rs 17,32, a acusação de politeísmo, pois esses sacerdotes prestariam culto a Javé e a
outras divindades.
Na rede textual, a associação entre 1Rs 12,31.32 e 2Rs 17,32 tem como efeito a
retroprojeção da acusação de politeìsmo (explìcito no texto de 2Rs 17) para “o tempo de
Jeroboão I”, sugerindo-se, assim, que tal prática é contínua no Norte, desde suas origens até
“os dias de hoje” (2Rs 17,35-41[34.41]), e esta foi a razão para a queda do reino.
Tudo indica que a tradição de culto no Norte está relacionada a vários santuários,
chamados “lugares altos”, e que a função sacerdotal nestes lugares de culto é exercida por
diferentes grupos de origem local. Não devem pertencer a uma linhagem especial, nem
necessitam ser “separados” do povo.

2.8.2.3.2 Sacerdotes “que não eram dentre os filhos de Levi” (v. 31)

Em 1Rs 12,31-32, o narrador estabelece um paralelismo entre “sacerdotes dentre as


extremidades do povo”, “que não eram dentre os filhos de Levi” e “sacerdotes dos lugares
altos que fez”. Os sacerdotes levitas estão em oposição aos “sacerdotes das extremidades do
povo” e aos “sacerdotes dos lugares altos que fez”. Esse comentário, por um lado, reafirma a
ilegitimidade dos sacerdotes estabelecidos por Jeroboão e, por outro, indica que, em 1Rs
12,31, os levitas eram ligados ao clero de Jerusalém e detinham poder.
O texto de Ex 32,27-28 costuma ser considerado o texto da instituição sacerdotal dos
levitas. Após cumprirem a ordem de Moisés/Javé para matar (harag, raiz verbal hebraica)
todos aqueles que teriam participado da fabricação do touro jovem de ouro (“a seu irmão, a
seu amigo, a seu parente”), os levitas recebem a bênção e a investidura sacerdotal. A condição
dos levitas neste texto é semelhante à sua condição em 1Rs 12,31 – eles detêm o poder;
porém, ao mesmo tempo, isto sugere que houve uma época em que os levitas não eram
sacerdotes, nem detinham poder (McKENZIE, 1983; BOGAERT et al. 2013).
No antigo Israel, havia três dimensões de culto: familiar ou individual, nas casas,
desempenhado por mulheres ou homens; local, em pequenos santuários ao ar livre, os
chamados “lugares altos” (bamot), ou “debaixo de árvores verdejantes” (2Rs 17,10); e

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nacional, em templos do rei, associados às divindades protetoras da nação


(GERSTENBERGER, 2007).
Quando falamos de “levitas” no perìodo anterior ao exìlio da Babilônia, estamos
situados no âmbito local do culto e nos referimos a agentes religiosos, com função sacerdotal
ou não, ligados aos vários santuários dos lugares altos, espalhados por toda a região de
Canãa/Israel-Judá. Cada um desses santuários era servido por seus próprios levitas/sacerdotes,
de origens diversas e cuja função talvez fosse hereditária. Não havia distinção entre levitas e
sacerdotes. A designação “sacerdotes levitas” (vhakohanyim halvyim) é comum em Dt
17,9.18; 18,1; 21,5 (hakohanyim bney levyi); 24,8; 31,9 (hakohanyim bney levyi) e Js 3,3
(McKENZIE, 1983; BOGAERT et al. 2013).
Mas, em textos como Ez 44,10-14.15, já se apresenta uma distinção de grupos: certos
levitas são condenados, enquanto os sacerdotes levitas “filhos de Sadoc” recebem os
privilégios.
Em Dt 14,28, vemos o efeito social da exclusão dos levitas: eles são citados ao lado do
estrangeiro (ger), do órfão e da viúva, condição que não se coaduna com o ofício de
sacerdote. Embora a lei previsse que os “sacerdotes dos lugares altos” tinham direito de servir
no santuário e partilhar do quinhão sacerdotal em condição de igualdade com o clero urbano
(Dt 18,6-8), a condição dos “sacerdotes dos lugares altos” em 2Rs 23,9 contradiz a lei do
Deuteronômio, quando afirma que não podiam subir ao altar de Javé em Jerusalém. Pela
equivalência da condição social, parece que os “levitas” correspondem, neste contexto, aos
“sacerdotes dos lugares altos”. Em Nm 16 – 17, os levitas, liderados por Coré, reclamam
igualdade com os sacerdotes, e são punidos.
Em Jz 17,7-13 e 18,18-20, o levita é apresentado como sacerdote de Dã, persistindo
sua casa até a região cair sob a invasão dos assírios em 721 (Jz 18,30). Tal afirmação
contradiz 1Rs 12,31.
Em geral, o livro de Crônicas acentua a posição dos levitas no culto sadocita e no
domínio público, enquanto os textos do Deuteronômio distanciam os levitas do culto e do
sacerdócio (LEUCHTER, 2007). Leuchter, citando Sweeney, diz que a posição dos levitas no
livro do Deuteronômio resulta da reforma de centralização do culto de Josias, restringindo a
autoridade sacerdotal dos levitas nos santuários locais e suas funções cultuais.
A partir daí, segundo Leuchter, há uma redefinição do papel dos levitas, ligando-os à
jurisprudência regional que ocorre “nos portões” (bhsh‘ryk), local tradicionalmente ocupado
pelos anciãos do clã para propósitos jurídicos em assembleias regulares. Os anciãos teriam

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sido substituìdos pelos “juìzes e magistrados/escribas” (shphtym vshvtrym, em Dt 16,18-


18,22). Exercendo ofícios públicos, juízes e magistrados estariam sujeitos à autoridade
jurídica central de Jerusalém; deste modo, passava-se a exercer maior controle sobre a
jurisprudência local.
A função de juízes e escribas implica preservar, administrar e adaptar o corpo literário
de uma lei nacional. Isto revela sua condição social, uma vez que o trabalho exige treinamento
e especialização literária.
Se os levitas locais se tornaram juízes e escribas, uma vez ligados ao sistema central,
eles se tornam agentes oficiais nos portões das aldeias. Esse conceito de “nacionalização” da
justiça local encontra sua inspiração no modelo assírio, especialmente nos tratados de
vassalagem do rei Esarhaddon (681-669) e no regime de regionalização do governo assírio
nos territórios semitas nos séc. VIII e VII.
Leuchter conclui dizendo que, após 587, nas condições do exílio na Babilônia, a
experiência dos levitas em interpretar leis e resolver conflitos locais no “portão da cidade”
pode ter contribuído no processo de consolidação da Lei de Moisés como símbolo de
unificação de Judá, não obstante a diversidade de grupos e conflitos internos na classe levita-
sacerdotal.
Concluindo, as funções e condições de vida dos levitas mudaram de acordo com os
diferentes contextos históricos. O texto de 1Rs 12,31 mostra uma realidade na qual os levitas
se distinguem como linhagem sacerdotal, ligada ao clero de Jerusalém, que busca manter a
posição hegemônica, a partir da marginalização de grupos sacerdotais locais, populares, que
atuam nos lugares altos, à época do Segundo Templo.

2.8.2.3.3 “Sacerdotes dos lugares altos” (v. 32)

Durante o período da monarquia, o processo de fortalecimento do rei estava vinculado


ao controle sobre o culto, principalmente nos santuários nacionais. Assim, há evidências
arqueológicas de reformas de centralização de culto em períodos de grande prosperidade de
um rei, por exemplo, à época de Jeroboão II, em Israel Norte, e de Josias, em Judá
(FINKELSTEIN, 2015b).

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De acordo com alguns textos, dentre as prerrogativas do rei estão a de oferecer


sacrifícios, mesmo sem assumir o título de sacerdote (2Sm 6,18); nomear sacerdotes (2Sm
8,7.17; 20,25; 1Rs 2,26-27; 1Rs 12,31) e abençoar o povo (2Sm 6,18; 1Rs 8,14.55s)
(McKENZIE, 1983; BOGAERT et al. 2013).
O crescimento da urbanização leva à consolidação do clero da capital, em oposição ao
clero do interior. No Reino do Norte, Amós se opõe aos sacerdotes do santuário do rei em
Betel (Am 7,10-17) e Oseias critica duramente os sacerdotes que se beneficiam dos sacrifícios
e não ensinam o povo (Os 4,4-10), embora não haja menção explícita a levitas.
No Reino do Sul, de acordo com a historiografia deuteronomista, a reforma josiânica
estabelece a oposição entre levitas/sacerdotes dos santuários do interior (dos “lugares altos”) e
os sacerdotes do templo de Jerusalém (2Rs 23,4; Dt 12,12.18; 14,27.29; 16,11.14; 26,11-13).
Com a destruição dos lugares altos de Judá e dos arredores de Jerusalém (2Rs
23,5.8.13), os levitas teriam sido despojados de suas funções sacerdotais e passaram a viver
de caridade (Dt 12,12.18s; 14,27.29; 16,11.14; 26,11-13) ou vieram para o templo de
Jerusalém (Dt 18,6-8), onde, porém, não podiam subir ao altar de Javé (2Rs 23,9). A oposição
do clero urbano (casa de Sadoc) teria rebaixado os levitas à posição subalterna (Ez 44,11)
(BOGAERT et al. 2013), levando-os ao empobrecimento. Neste contexto, teriam surgido
várias leis de proteção aos levitas/sacerdotes do interior.
Mas, em outros textos, nota-se a crescente influência dos levitas no Segundo Templo,
principalmente após os anos 300. Eles eram não só cantores e porteiros, mas geriam os
negócios do templo, eram escribas e juízes (1Cr 23,3-5) e, fora do culto, exerciam também as
funções de ensino (Dt 31,25; 2Cr 17,8; Ne 8,7.9; 2Cr 35,3) (HARRIS; ARCHER; WALTKE,
1998).
Em 1Rs 12,31-32, Jeroboão teria instituído sacerdotes do meio do povo para atuar nos
santuários locais, os chamados “lugares altos”. Não pertenciam a uma linhagem especial. Ou
seja, na tradição norte-israelita, permanecia a prática de culto no interior, em locais
considerados sagrados, onde a função sacerdotal era exercida por agentes carismáticos, não
ligados, necessariamente, a uma família em particular. Portanto, a condenação dos sacerdotes
norte-israelitas reflete a perspectiva do clero de Jerusalém: no período josiânico,
corresponderia à oposição entre a casa de Sadoc e os sacerdotes levitas do interior; no período
do Segundo Templo, traduziria a rivalidade entre os sacerdotes “filhos de Levi”, agora no
poder, e os sacerdotes de Garizim.

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2.8.2.4 A festa

Por fim, Jeroboão teria instituìdo uma “festa, no oitavo mês no décimo quinto dia do
mês”. A palavra hebraica para “festa” (hag) significa na origem “coro de dança” (BOGAERT
et al. 2013). O substantivo hag traduz o sentido de festa, festa religiosa, festa de peregrinos,
solenidade, dia santificado ou período de alegria ligado à religião. Este sentido combina com
1Rs 12,30b, que diz que “caminharam diante de um até Dã”, sugerindo uma procissão ritual.
De acordo com a data proposta para a festa de Jeroboão em 1Rs 12,32, o substantivo
hag sugere que seja a festa da colheita. A festa da colheita corresponde ao fim da colheita dos
frutos da terra (uvas, azeitonas, tâmaras, etc.; Ex 23,16; 34,18-22; Lv 23,33-43; Dt 16,16; 2Cr
8,13), e a preparação do vinho – é uma festa da alegria (McKENZIE, 1983; HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998).
De acordo com Dt 16,13-15, a festa da colheita prescreve a celebração por sete dias,
começando no décimo quinto dia do sétimo mês (chamado Ethanim ou Tishri), o que seria em
meados de setembro ou outubro.
Em Dt 26,1-11, determina-se a oferta de um cesto com todas as primícias dos frutos da
terra que Javé dará a seu povo “no lugar que Javé teu Deus houver escolhido para aí fazer
habitar o seu nome”.
Em 1Rs 8, no mês de Ethanim, que é o sétimo mês, durante a festa da colheita,
Salomão teria convocado todo o povo para a transladação da Arca da Aliança da Cidade de
Davi (Sião) para o Templo de Jerusalém (v. 1-2). Esta festa incluía uma procissão anual com
a arca até o templo e a apresentação de sacrifícios de ovelhas e bois diante da arca (v. 5). A
condução da arca pelos sacerdotes foi feita “sob as asas dos querubins”, “os querubins
estendiam suas asas sobre o lugar da Arca” (v. 6.7). De acordo com a cena, Javé se manifesta
na Nuvem (v.10-11), o rei abençoa a assembleia (v. 14), faz uma longa oração e, por fim,
despede o povo.
Ora, quando comparamos 1Rs 8 com 1Rs 12,26-32, percebemos a mesma dinâmica
textual nas duas festas, afinal, como diz o narrador, Jeroboão buscava realizar uma festa
“como a que [se fazia] em Judá” (1Rs 12,32), para que o povo não continuasse a subir à casa
de Javé em Jerusalém (1Rs 12,27). Assim, Jeroboão celebra com o povo a dedicação dos
santuários de Betel e Dã (1Rs 12,29), novo lugar da presença de Javé (e não Jerusalém), a
divindade se manifesta na forma do “touro jovem” (e não da arca/nuvem), em memória da

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libertação do Egito (1Rs 12,28) e da independência em relação à “escravidão” imposta por


Salomão/Roboão.
A festa aos “touros jovens” certamente tinha um tom popular e alegre, como se pode
depreender de Os 13,2, que diz que o povo atirava-lhes beijos (Os 13,2), ou de Os 10,5, que
fala da tristeza do povo quando as estátuas caíram em poder dos assírios. Mas o ponto de vista
da redação judaíta em relação à festa de Jeroboão é pejorativo (ALBERTZ, 1999).
Jeroboão teria feito festa a Javé, assim como Davi (2Sm 6) e Salomão (1Rs 8,1-2),
conforme mencionado acima, mas sua iniciativa é rejeitada. A comparação com a festa de
Judá (v. 32) sugere que esta seria anterior à de Jeroboão, porém, mais uma vez, essa visão
reflete a redação sulista tardia. O uso de números cardinais (“cinco”, “dez”) em 1Rs 12,32
sugere a adoção do sistema aramaico difundido na Babilônia no pós-exílio (cf. 2Mc 15,36:
(...) o dia treze do duodécimo mês, chamado Adar em Aramaico...) (AVRIL; DE LA
MAISONNEUVE, 1997).
A depreciação da festa instituída por Jeroboão em Betel, ou a mudança da data da
festa, como diz o texto, certamente inclui uma questão econômica, ligada à
apresentação/coleta dos frutos da terra nos santuários, uma vez que, ao que tudo indica, trata-
se da festa da colheita. Contudo, a ideia de que a festa da colheita existia primeiro em
Jerusalém e, depois, foi imitada e alterada em Betel é resultado da redação sulista, que visa
enaltecer o templo de Javé em Jerusalém.

2.8.2.5 O altar de Betel

Provavelmente durante o festival, Jeroboão subiu ao altar de Betel para sacrificar aos
touros jovens (v. 32).
Quanto à ação de sacrificar aos touros jovens, vimos que, segundo o texto bíblico, os
reis tinham a prerrogativa de apresentar sacrifícios (1Rs 3,4; 9,25; 2Rs 16,12.13). Mas, ao
contrário de Davi e Salomão, somente Jeroboão é punido por isso.
Quanto ao “altar de Betel”, ele é um alvo constante da crìtica judaìta às práticas
cultuais norte-israelitas. Na sequência narrativa do livro de Reis, segue, em 1Rs 12,33-13,10,
o anúncio profético da destruição do altar de Betel e da promessa de nascimento de um rei da
casa de Davi, Josias, que, então, realizaria esse oráculo. O texto da reforma de Josias retoma a

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figura deste profeta (“o homem de deus de Judá”) ao apresentar a cena da destruição do altar
de Betel e da morte dos sacerdotes dos lugares altos que nele ofereceram sacrifícios (2Rs
23,15-18.20).
Os relatórios das escavações afirmam ter havido fraca atividade em Betel à época de
Josias (FINKELSTEIN; SINGER-AVITZ, 2009). Mas, de acordo com 2Rs 17,15-41, teria
continuado a existir alguma forma de culto em Betel após os acontecimentos de 721. Assim, a
condenação do altar de Betel em 1Rs 12,32 bem se encaixa no contexto da chamada reforma
de Josias e traduz antigas rivalidades entre os dois santuários.
Provavelmente, a crítica de Amós e Oseias contra o culto em Betel e Samaria à época
de Jeroboão II serviu de base à condenação dos santuários norte-israelitas à época de Josias e,
mais tarde, no período persa-helenista (Am 3,14; 4,4; 9,1; Os 8,5.6; 10,5.15; 13,2).

2.8.2.6. “Para sacrificar”

Jeroboão sobe ao altar de Betel, durante os dias da festa, “para sacrificar aos touros
jovens” (lzabeha la‘agalim”), v. 32.
O verbo hebraico zabhah (“sacrificar”) se liga ao substantivo plural de mesma raiz
“sacrifìcios”, no v. 27. A expressão “aos touros jovens” estabelece a ligação com os v. 28 e
29.
O sentido básico da raiz verbal zbh é abater animal. O substantivo significa sacrifício
“comunitário” (KIRST, 2001). Geralmente, a gordura é queimada e a carne consumida
comunitariamente em refeição ritual (NAKANOSE, 2000). Em Lv 3,1-17, zbh aparece como
zebhah shelamim, que significa “sacrifìcio de comunhão” ou “sacrifìcio pacìfico”. No
“sacrifìcio de comunhão”, a gordura e partes especìficas dos órgãos internos são queimadas
sobre o altar pelo sacerdote, que tem direito “ao peito e à coxa” (Lv 7,31-32). No sacrifício de
“holocausto” (‘olah), cuja raiz é a mesma do verbo ‘alah, que significa “subir”, a carne é
totalmente queimada sobre o altar (1Rs 9,25).
Em 2Sm 15,12, é Absalão quem oferece “sacrifìcios” (zebah) durante a rebelião contra
Davi (NAKANOSE, 2000, p. 245). Absalão não é rei, nem sacerdote, o que sugere que o
ritual deste sacrifício podia ser realizado fora do templo, em santuários locais, presididos pelo
chefe de família.

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Em 1Sm 2,14-16, assegura-se o direito do sacerdote às melhores partes da vítima


ofertada (NAKANOSE, 2000). E a lei de centralização dos sacrifícios no templo de Jerusalém
distingue entre os abates profanos, que podem ser realizados nas aldeias, e os abates rituais
sagrados, permitidos somente no “lugar que Javé houver escolhido” (Dt 12,13-18).
Em 2Sm 6,17; 24,25, é Davi quem oferece “holocausto” (‘olah) e “sacrifìcios de
comunhão” (shelamyim) na presença de Javé e, em 1Rs 9,25, é Salomão quem oferece
“holocaustos” (‘olah) e “sacrifìcios de comunhão” (shelamyim). Em Am 5,22 e Os 6,6,
critica-se a usurpação do sacrifício pelos agentes do Estado, sejam os reis ou os sacerdotes
(NAKANOSE, 2000).
Jeroboão preside a oferta de sacrifícios em 1Rs 12,32, assim como Davi e Salomão o
fizeram. A concentração da oferta de sacrifícios em templos oficiais está relacionada à
política de fortalecimento da monarquia, em Israel e Judá, especialmente em relação à
distribuição da terra e à arrecadação dos produtos do campo, o que resulta no agravamento
das condições de vida das famílias camponesas.
Resumindo, nos v. 31-32, as ações de culto atribuídas a Jeroboão evidenciam a
diversidade das práticas religiosas norte-israelitas. A referência aos “lugares altos” revela a
prática antiga e disseminada do culto popular no interior, em lugares considerados sagrados,
onde a função sacerdotal era exercida por agentes carismáticos locais (os “sacerdotes dos
lugares altos”) e quando não havia fixação de data das festas agrìcolas. Tal prática demonstra
a descentralização do culto norte-israelita, mesmo com a existência de santuários nacionais.
Por outro lado, o sentido condenatório da redação evidencia tanto o contexto da política
religiosa de Josias, no séc. VII, quanto a teologia do período do Segundo Templo.

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2.9 RELEITURAS

A partir da análise exegética de 1Rs 12,26-32, percebe-se o longo processo de


recepção da história de Jeroboão I e de revisão das tradições cultuais norte-israelitas. A
realidade narrada no texto parte de uma fonte mais antiga, que reflete o período do reinado de
Jeroboão II. Assim, consideramos que o culto nacional a Javé em Israel Norte, no séc. VIII,
durante o reinado de Jeroboão II, está relacionado ao símbolo do touro jovem e ao Êxodo
como tradição fundante do Reino do Norte, em santuários nacionais como Betel, Dã e
Samaria.
Há muita semelhança entre o culto a Javé em Israel Norte e o antigo culto ao deus El,
por exemplo: a representação do touro, as manifestações locais da divindade e a ligação com a
deusa Asherá. Dadas, as inúmeras referências ao deus El na Bíblia Hebraica, concluímos que,
antes de Javé tornar-se o deus tutelar de Israel, a libertação do Egito pode ter sido atribuída ao
deus El (Nm 23,22; 24,8), de quem Javé teria herdado os atributos, inclusive a memória do
Êxodo (tema a ser desenvolvido no capítulo 3 desta dissertação). É provável que El tenha sido
associado à libertação do Egito no contexto do séc. X, quando situamos o núcleo das raízes
históricas da tradição do Êxodo em Israel Norte (tema a ser desenvolvido no capítulo 2 desta
dissertação). Neste contexto, o “deus do Êxodo” é um deus guerreiro, que vai à frente de seu
povo, assegurando-lhe a vitória. Em Samaria, ao lado dos atributos de guerreiro, cresce a
ênfase nos atributos de fertilidade, diante dos grandes vales do norte e da prosperidade do
reino.
Do ponto de vista da redação, sob o pano de fundo das tradições cultuais norte-
israelitas consolidadas durante o reinado de Jeroboão II, consideramos que a forma final do
texto de 1Rs 12,26-32 reflete nitidamente a visão do Sul, seja no período josiânico, seja no
período do Segundo Templo. Em ambos os contextos, sobressai o teor redacional
condenatório em relação às tradições político-religiosas norte-israelitas.

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2.9.1 A Redação Josiânica

Um possível núcleo josiânico na redação de 1Rs 12,26-32 estaria ligado à rivalidade


entre as monarquias de Israel e Judá e à condenação do altar de Betel, do culto nos lugares
altos e do sacerdócio local. Esse núcleo redacional teria sido baseado em conto popular sobre
rivalidades entre santuários ou em lista de atividades de construções do rei.
Após a queda de Israel Norte, e o grande desenvolvimento de Judá, sobretudo no séc.
VII, Josias se vê como o herdeiro dos dois reinos e inicia seu projeto nacionalista. Por sua
localização estratégica na fronteira norte de Jerusalém e por ser um lugar de culto ligado a
antigas tradições, Betel foi um dos principais alvos da campanha de expansão territorial de
Josias, depois da retirada da Assíria da província da Samaria (RÖMER, 2008).
Embora o sítio de Betel apresente sinais de fraca atividade no séc. VII, é possível que
tenham continuado as peregrinações ao local, dada a sua importância na história de Israel e
Judá (v. 29.32). O texto de 2Rs 17,24s sugere que o culto em Betel permaneceu por algum
tempo após as deportações assírias (2Rs 17,34.41). Mesmo enfraquecida, Betel deve ter sido
um importante centro de preservação e transmissão das tradições norte-israelitas, dentre elas o
culto a Javé, representado na forma de touros jovens e associado à memória do Êxodo em
Israel Norte (1Rs 12,28-29).
O interesse de Josias por Betel é evidenciado, por exemplo, no livro de Josué. O livro
de Josué, em sua grande parte atribuído à época de Josias, dedica especial atenção aos relatos
da conquista militar de Jericó e da região de Gabaon-Hai-Betel (Js 6-12).
Por outro lado, as leis josiânicas relativas aos sacrifícios com abate de animais
exclusivamente no “lugar escolhido por Javé” (Dt 12,13-18), isto é, em Jerusalém,
desautorizam o culto a Javé em Betel e nos demais “lugares altos” onde se cultuava a Javé em
Judá (1Rs 3,4).
A concentração dos sacrifícios no templo de Javé em Jerusalém, somada à retirada dos
objetos de culto que representavam a submissão de Judá a Assíria (2Rs 23,5), fortalece
econômica e simbolicamente o rei e o clero da capital, dando suporte à política militarista de
Josias, que, deste modo, apresenta-se como um novo Davi e um novo Salomão (RÖMER,
2008).
Provavelmente, nesta época, surgem outros relatos que enaltecem a figura de Josias,
por exemplo, as tradições negativas sobre a casa de Saul e a narrativa da ascensão de Davi

71
72

(2Sm 9 – 2Rs 2); as histórias de Salomão, considerado rei sábio e construtor de templo (1Rs 3
– 11); a vida de Moisés, líder da libertação do Egito, segundo a versão do livro do Êxodo; os
relatos da conquista da terra; a ideia de um Reino Unido, sob o governo da casa davídica, e,
certamente, o Êxodo como tradição de um Israel unificado, norte e sul.
É possível que o sofrimento decorrente das invasões e deportações assírias no Reino
do Norte e em Judá, nos séc. VIII e VII, e da subsequente queda do Império Assírio por volta
dos anos 620, durante o governo de Josias, tenham fortalecido a tradição do Êxodo como
propaganda nacionalista anti-Egito/Assíria, tornando-se memória fundante de Israel (norte e
sul) como um só povo desde as origens. E rivalizando com a tradição fundante de Jacó,
associada a Israel Norte. A aclamação de Jeroboão “aos deuses” que fizeram Israel subir do
Egito, em 1Rs 12,28, retrata, no nível da redação, essa ideia do Êxodo como tradição de um
Israel unificado desde as origens.
Assim, compreendemos que uma primeira redação de 1Rs 12,26-32 no tempo de
Josias funcionaria mais como uma propaganda do rei judaíta em sua campanha de anexação
do território de Betel e de sua reforma de centralização do culto em Jerusalém, contra os
lugares altos e os sacerdotes que aì atuavam, do que um relato “historiográfico” sobre os
reinados de Jeroboão I e Roboão (RÖMER, 2008).
Mas há elementos na narrativa de 1Rs 12,26-32 que sugerem uma releitura pós-exílica
sobre a monarquia de Israel Norte e suas tradições do culto. Em outras palavras, a crítica
josiânica a Betel e a Jeroboão, à diversidade de locais de culto, à apresentação de sacrifícios e
à instituição de sacerdotes locais foram retomadas e ganharam novo sentido à época do
Segundo Templo.

2.9.2 A Redação Pós-Exílica

Diante da crise instaurada pela queda dos dois reinos, e da inviabilidade de restauração
da monarquia em Israel e Judá, desenvolve-se, no exílio e no pós-exílio, uma releitura do
passado em perspectiva histórica. A realidade presente é entendida como o resultado de uma
sucessão de eventos, cronologicamente ordenados na sequência narrativa.
Este esforço de reconstrução do passado se dá a partir de um olhar essencialmente
teológico, com teor retributivo; e o narrador onisciente dessa história afirma que nada escapou

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73

ao controle de Javé. A mensagem, basicamente, é a de que, apesar das advertências de Javé


por meio dos profetas, Israel e Judá mantiveram-se obstinados em seus propósitos e não se
converteram de seu mau comportamento. Assim, o exílio babilônico e todas as suas
consequências são vistos como fruto da justiça divina, e não da fraqueza de Javé, que agora se
revela, então, como o único e verdadeiro “Rei de Israel”.
Neste sentido, as tradições de Jeroboão I e Roboão foram colocadas lado a lado
(sincronicamente) na historiografia bíblica, reorganizaram-se em torno da ideia da divisão do
Reino Unido e foram inseridas no bloco de 1Rs 11-14, constituindo, no conjunto do livro de
Reis, uma tentativa de explicação da queda dos dois reinos.
Assim, a ascensão de Jeroboão (ou o relato da divisão do Reino Unido) é ligada ao
contexto narrativo da punição de Javé ao pecado de Salomão (1Rs 11,9-13). A imagem
positiva de Salomão, predominante na redação josiânica (1Rs 1-8), altera-se a partir da
experiência do exílio de Judá. Afinal, a queda de Judá 25 foi associada à ideia de que Salomão
teria prestado culto a divindades estrangeiras (1Rs 9,1-9[6]; 11,7 e 2Rs 17,35s). Jeroboão,
que, por sua vez, havia sido eleito por Javé como herdeiro do reino todo, recebendo uma
promessa semelhante à de Davi (1Rs 11,37-38), também foi condenado por Javé, e ao seu
pecado, por fim, foi atribuída a queda do Reino do Norte. O pecado de Jeroboão teria sido
essencialmente cultual, segundo a visão do narrador, ligado ao local (inadequado) do
sacrifício, à fabricação das estátuas do touro jovem (idolatria) e ao culto a outros deuses
(politeísmo).
A partir do ponto de vista do narrador, somos levados a concluir que, apesar da
promessa divina à casa de Davi e à casa de Jeroboão, Javé age soberanamente e tem o direito
de corrigir o seu povo, mesmo que isto signifique a catástrofe do exílio dos dois reinos. Javé
teria advertido seu povo através do envio dos profetas, mas Israel e Judá mantiveram-se
obstinados em seu pecado.
Deste contexto geral, compreendemos, que a forma final do texto de 1Rs 12,26-32, e a
posição deste texto na sequência narrativa do livro de Reis, encaixa-se também na realidade
de conflito entre o santuário de Jerusalém e o santuário do monte Garizim, em Siquém, no
período persa-helenista.
No intuito de fortalecer o templo de Javé em Jerusalém e o clero que aí atuava, antigas
críticas josiânicas a Betel e a Jeroboão devem ter servido de base à condenação das tradições
de culto do norte.
25
A acusação contra o casamento com mulheres estrangeiras, provavelmente, reflete o segregacionismo do
período persa.
73
74

Por exemplo, a referência aos levitas em 1Rs 12,31 é uma indicação de releitura do
texto no período pós-exílico. No tempo de Josias, os levitas eram sacerdotes de segunda
categoria, submissos ao clero sadocita de Jerusalém. Neste versículo, eles ocupam uma
posição dominante. O fortalecimento dos levitas dentre os grupos sacerdotais é próprio do
período do Segundo Templo, e certamente sua hegemonia resulta em conflitos com grupos
sacerdotais, ligados ao templo de Garizim e a outros locais de culto (RÖMER, 2008).
Outra indicação de releitura é a condenação do culto nos “lugares altos” (bamot). À
época de Josias, os lugares altos estavam relacionados ao culto a Javé (e outras divindades) e
foram proibidos devido à lei da centralidade do culto no templo de Jerusalém (Dt 12,13-18).
No pós-exílio, a condenação do culto nos lugares altos é uma acusação de politeísmo, culto
dedicado a “outros deuses” (1Rs 11,5-7; 2Rs 17,1-2.24s; 2Rs 23,13; RÖMER, 2008).
Ao lado da acusação de politeísmo, normalmente se dá a acusação de idolatria,
entendida como fabricação e adoração de objetos cultuais. À época de Josias, a condenação ao
touro jovem de Betel, ecoando a crítica da profecia de Oseias e Amós, deveria ser uma
maneira de depreciar a tradição do culto norte-israelita, em favor do templo de Jerusalém.
Talvez ainda houvesse em Betel, no séc. VII, algo da tradição do culto a Javé representado na
forma de touro jovem, que rivalizava com o símbolo da arca em Jerusalém. Não era acusação
contra o uso de imagens cultuais. Mas, no pós-exílio, com o processo de fortalecimento das
estruturas do Segundo Templo, cresce a tendência (oficial) à proibição de representação da
divindade por meio de estátuas, consideradas “não deuses”, “obra de artesãos” (Ex 34,17;
32,8.19; Dt 9,12.16.21; 1Rs 14,9; 2Rs 10,29; 17,16; 2Cr 13,8-9; Ne 9,18; Os 13,2). Ao
mesmo tempo, Javé passa a ser considerado o deus único e universal.
Por fim, a disputa em relação à data da festa, especialmente da festa da colheita,
durante a qual se apresentava oferta de cereais no templo, deve estar ligada a fatores
econômicos e simbólicos. A data da festa de Jeroboão no oitavo mês talvez corresponda à
festa mais antiga, em Israel Norte; e, ao contrário do que normalmente somos levados a
imaginar, a fixação da data da festa no sétimo mês tenha sido uma estratégia para garantir o
recolhimento das oferendas no santuário de Jerusalém, no caso, um mês antes.
Em todo o processo de releitura de 1Rs 12,26-32, a redação judaíta, após a queda de
Samaria, imprimiu uma marca negativa sobre as práticas cultuais norte-israelitas, seja à época
de Josias, seja no período do Segundo Templo. Deste modo, construiu-se um imaginário
segundo o qual Israel Norte é concebido como um reino de decadência religiosa e moral, de
corrupção e violência desde sua origem.

74
75

2.10 CONCLUSÃO PARCIAL

O longo processo de recepção de 1Rs 12,26-32 revela a importância da tradição de


Jeroboão e do culto norte-israelita para Israel e Judá. Na perspectiva do sul, após a queda de
Samaria no final do séc. VIII, estabeleceu-se como premissa da Aliança com Javé a primazia
da casa de Davi e do culto a Javé no templo de Jerusalém. Deste modo, a história do Reino do
Norte e, particularmente, a tradição norte-israelita do culto a Javé é apresentada a partir das
lentes corretoras dos redatores de Jerusalém. É o que acontece com o texto de 1Rs 12,26-32.
Uma primeira observação é quanto ao tempo da narrativa. O texto de 1Rs 12,26-32
nos reporta ao reinado de Jeroboão I e de Roboão, no séc. X, porém a referência ao culto em
Betel e Dã (v. 29) corresponde à configuração territorial de Israel Norte à época de Jeroboão
II, cujo reinado é da primeira metade do séc. VIII. O mesmo talvez possa ser dito em relação à
reconstrução de Siquém e Fanuel, atribuída a Jeroboão I (v. 25), mas que, provavelmente, é
do período de Jeroboão II. A polêmica em relação à representação do touro no culto norte-
israelita, vastamente atestada na profecia de Oseias, também nos leva ao séc. VIII. Tudo
indica, portanto, que se trata de um texto cuja referência é o contexto de Israel Norte durante o
reinado de Jeroboão II, retroprojetado para o tempo de Jeroboão I.
Outra observação importante é que o narrador é onisciente, ou seja, ele tudo sabe a
respeito dos acontecimentos narrados, a ponto de nos introduzir nos pensamentos íntimos de
Jeroboão – tal como vimos no uso do monólogo interior – ou de intervir diretamente, como no
v. 30, induzindo-nos, deste modo, a assumir a sua visão.
Assim, a partir do ponto de vista do narrador, somos levados a considerar as medidas
religiosas de Jeroboão I para consolidar seu reino recém-fundado como artimanha pessoal
para se manter no poder. Isto se nota, por exemplo, a partir da oposição estabelecida entre o
“coração” de Jeroboão e o “coração” do povo, inclinado a “voltar” para “Roboão, rei de Judá”
(duas vezes), para os “senhores deles” (v. 26-27). O coração de Jeroboão, ao contrário,
desejaria impedir, a todo custo, que o povo continuasse a “subir” à casa de Javé em Jerusalém
para fazer sacrifícios (v. 27). Deste modo, o narrador sugere a ideia da inclinação de Jeroboão
“ao mal” (1Rs 13,33). Termos como “coração”, “volta”, “casa de Davi”, “casa de Javé” são
importantes para a teologia da Aliança.
Nos v. 28-29, as ações atribuìdas a Jeroboão confirmam a sua “má inclinação”: ele
teria fabricado dois touros jovens de ouro, apresentando-os ao povo e os introduzindo nos

75
76

santuários de Betel e Dã, em meio a festas, procissões e aclamações. Esses versículos chamam
à atenção, pois neles se evidencia a relação entre o touro jovem e a memória do Êxodo em
Israel Norte, celebrada nos santuários do rei: “eis teus deuses, Israel, que te fizeram subir da
terra do Egito” (v. 28). O narrador evita o uso do nome “Javé” e opta pela expressão “deuses”
(’elohim).
Do ponto de vista do narrador, “isto se tornou transgressão” (v. 30). Comentamos
sobre os diferentes sentidos atribuìdos à “transgressão” de Jeroboão ao longo da história da
recepção desse texto. À época de Josias, constituía, provavelmente, reprovação quanto ao
local do sacrifìcio (“Betel” e “Dã”), ou seja, violação da lei de centralidade do culto no
santuário de Jerusalém (Dt 12). No pós-exílio, agregou o sentido de acusação de idolatria
(fabricação de imagens) e politeísmo (culto a outros deuses), seguindo a tendência de
consolidação de um javismo anicônico e monoteísta.
Nos v. 31-32, segue a enumeração das ações atribuídas a Jeroboão: ele teria
disseminado o culto nos “lugares altos”, designado sacerdotes locais, “que não eram dentre os
filhos de Levi”, apresentado (pessoalmente) sacrifìcios no altar de Betel, “aos touros jovens
que fez”, e instituìdo uma “festa”, “como a festa que se fazia em Judá”. Essas ações de
Jeroboão também se enquadram no comentário condenatório do narrador (v. 30). E podem
refletir tanto o contexto narrativo da reforma de Josias, quanto do período do Segundo
Templo, neste caso, o conflito com o templo de Garizim, em Siquém.
Apesar de a narrativa de Jeroboão ser fortemente marcada pela teologia
deuteronomista de Judá, a análise exegética permitiu-nos encontrar indícios que nos levam a
compreender o Êxodo como uma tradição fundante de Israel Norte, já consolidada no séc.
VIII, antes, portanto, de se tornar memória de fundação de um Israel “unificado”, no séc. VII.
A associação de Jeroboão I e Roboão ao faraó “Sesac” em 1Rs 11,40 e 14,25 nos
levou a buscar o núcleo histórico do Êxodo na tradição de Israel Norte no contexto da
campanha militar de Sheshonq I (945-925) em Canaã, na segunda metade do séc. X. Neste
sentido, a expressão “subir do Egito” (v. 28) significava, originalmente, soberania polìtica, e
não deslocamento espacial de uma região para outra.
A referência ao “touro jovem” de Betel e Dã (v. 28-29), associado à memória do
Êxodo, revelou, por sua vez, que o culto nacional a Javé em Israel Norte, no séc. VIII,
apresentava características próprias do contexto religioso de Ugarit. A representação na forma
de touro, as manifestações locais da divindade e a ligação com a deusa Asherá eram
tradicionalmente relacionados ao deus El, divindade-suprema do panteão ugarítico. Assim, ao

76
77

que tudo indica, antes de Javé se tornar o deus nacional de Israel (o que situamos
aproximadamente no séc. IX, no governo dos Omridas), a libertação do Egito teria sido
atribuída ao deus El. Diversos textos bíblicos associam El, Israel/Efraim/José, touro e chifres
e libertação do Egito (Gn 49,22; Ex 32,4; Nm 23,22; 24,8; Dt 33,17; 1Rs 12,28, etc.).
No próximo capítulo, apresentaremos as raízes históricas do Êxodo em Israel Norte a
partir do contexto da campanha militar de Sheshonq I em Canaã, no séc. X. Neste sentido, a
tradição norte-israelita do Êxodo está vinculada ao processo de fortalecimento das entidades
político-territoriais das montanhas da região centro-norte de Canaã (ao norte de Jerusalém) e
às suas lutas contra o Egito.

77
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3) CAPÍTULO 2: RAÍZES HISTÓRICAS DO ÊXODO NO SÉC. X

A memória do Êxodo em 1Rs 12,28 e a associação de Jeroboão I e Roboão a “Sesac”


em 1Rs 11,40 e 14,25-28 (2Cr 12,1-12) nos levam a buscar as raízes históricas do Êxodo na
tradição de Israel Norte no séc. X. “Sesac” é identificado como Sheshonq I (945-925), rei da
22ª dinastia do Egito, que empreendeu uma campanha militar em Canaã, na segunda metade
do séc. X. A lista de cidades conquistadas pelo faraó encontra-se num relevo da parede do
templo de Amon em Karnak, no Egito (FINKELSTEIN, 2002).
A campanha de Sheshonq é importante em nosso estudo por duas razões principais.
Primeiro, porque, em termos cronológicos, fornece uma referência extra-bíblica para o
período de formação de Israel, no séc. X. Segundo, porque nos revela o processo de
surgimento de Israel a partir da geografia do norte: inicialmente, o planalto de Gabaon-Betel,
depois a região de Siquém-Tersa e, após a retirada dos egípcios, Samaria. Logo no início do
séc. IX emerge uma nova configuração político-territorial em Canaã, distinta do sistema das
cidades-estado canaanitas, e com uma cultura material própria: o reino de Israel Norte. Neste
contexto, portanto, situamos as raízes históricas do Êxodo como tradição fundante de Israel
Norte.
Estabelecer a relação entre a campanha de Sheshonq e a entidade político-territorial do
platô de Gabaon-Betel, sob o governo da casa de Saul, também nos permite redimensionar
Jerusalém e outros sítios das montanhas de Judá, e assim obter um quadro mais completo do
processo de formação dos dois reinos no séc. X, e das tradições do Êxodo.
Apresentamos quatro seções neste capítulo: a) a campanha de Sheshonq: datação,
registro de Karnak e objetivos da campanha; b) o texto bíblico; c) a transição de Saul para
Jeroboão I; d) as raízes históricas do Êxodo no séc. X. Por fim, conclusões parciais.

78
79

3.1 A CAMPANHA DE SHESHONQ I

3.1.1 A Datação

A datação e a reconstrução da campanha de Sheshonq têm como referência, nos


estudos bíblicos, o texto de 1Rs 14,25-26:

25
No quinto ano do rei Roboão [926], o rei do Egito, Sesac, atacou
Jerusalém. 26 Apoderou-se dos tesouros do templo de Javé e dos do palácio
real, levando tudo, até mesmo todos os escudos de ouro que Salomão
mandara fazer.

Geralmente, supondo-se a riqueza e o desenvolvimento de Judá nessa época, diz-se


que o narrador bíblico teve acesso a antiga crônica do séc. X, preservada no templo ou no
palácio de Jerusalém.
No entanto, do ponto de vista literário, é improvável que 1Rs 14,25-26 seja uma
memória do séc. X. O texto é muito semelhante a 2Rs 24,13, que reflete a época de
Nabucodonosor, por ocasião da primeira invasão babilônica a Jerusalém, em 587.
Provavelmente, trata-se de uma retroprojeção para os tempos de Roboão, tendo como pano de
fundo a teologia da retribuição: Roboão pecou e foi punido por meio de um rei estrangeiro,
que lhe tomou os tesouros do templo e do palácio. E serve também como justificativa para o
desaparecimento da fabulosa riqueza que Salomão teria acumulado. Além disso, não há
evidência de escrita complexa em Judá em geral e em Jerusalém em particular antes do séc.
VIII (FINKELSTEIN, 2002).
Do ponto de vista da arqueologia, também é consenso que Jerusalém era uma vila
pequena e marginal no séc. X e que o chamado império davídico-salomônico corresponde ao
reino da casa de Omri, no séc. IX. A ideia de Reino Unido é uma construção literária posterior
(FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003; LIVERANI, 2008).
Deste modo, é improvável que houvesse tesouros no palácio e no templo de Jerusalém
ou que a informação sobre Sheshonq no livro de Reis tenha sido escrita em Judá, no séc. X.

79
80

Possivelmente, essas antigas memórias foram preservadas em santuários como Betel e


chegaram a Jerusalém com os refugiados norte-israelitas no final do séc.VIII26.
A partir dos registros egípcios da 21ª e 22ª dinastias, a datação proposta para o reinado
de Sheshonq I é a segunda metade do séc. X, embora não esteja claro se a campanha do faraó
em Canaã se deu no início ou no fim de seu governo (FINKELSTEIN, 2002, p. 110;
FANTALKING; FINKELSTEIN, 2006, p. 21).
A comparação entre a lista de cidades conquistadas por Sheshonq, conforme o registro
de Karnak, e a identificação de camadas de destruição ou fases de prosperidade de algumas
localidades de Canaã nos permite depreender um quadro geral da campanha do faraó no séc.
X.

3.1.2 O Registro de Karnak

Os nomes das localidades conquistadas por Sheshonq em Canaã estão registrados num
relevo do templo de Amon, em Karnak. Eles foram organizados em três grupos. As cinco
primeiras linhas são curtas e mencionam lugares no centro e norte do país (topônimos 11-65).
As linhas seguintes são longas e citam lugares no sul: no vale de Bersabeia, na área de Basor e
nas montanhas do Negueb (topônimos 66-150). As últimas linhas, também longas, estão
muito danificadas: os cinco nomes preservados incluem dois sítios localizados na costa sul, e
talvez outras localidades ao longo da costa e na Shefelá.
Os topônimos que foram seguramente identificados representam as seguintes regiões
do país: o vale de Jezrael, a estrada internacional na planície de Sharon, a área de Gabaon nas
montanhas, a área de Fanuel e Maanaim na Transjordânia, o vale de Bersabeia, a costa sul, a
região de Basor e as montanhas do Negueb.

26
Finkelstein sugere que o narrador deuteronomista tomou conhecimento de uma antiga tradição oral sobre a
campanha de Sheshonq, recordada no final do séc. IX, com o início da formação de um estado em Judá, ou no
séc. VIII, quando começou a difusão da literatura no Reino do Sul. Outras possibilidades elencadas pelo autor
são: a) Sheshonq pode ter erigido em Gabaon ou em outro lugar no norte de Jerusalém uma estela similar à de
Meguido, que ainda estaria visível no final do séc. VII; b) o historiador deuteronomista pode ter conhecido sobre
a campanha de Sheshonq a partir dos soldados da 26ª dinastia que estavam ativos na Palestina no final do séc.
VII e após a retirada da Assíria; c) o historiador deuteronomista pode ter conhecido sobre a campanha de
Sheshonq a partir dos judaítas que viviam em Taphanhes (Jr 43,8), no leste do Delta do Nilo no final do séc. VII,
a 30 km de Tanis (um importante centro da 22ª dinastia – por isso, os judaítas que ali viviam podiam estar
familiarizados com a história do faraó fundador de Tanis) (FINKELSTEIN, 2002, p. 113).
80
81

Do vale de Jezrael, são citadas as seguintes localidades: Taanach (n. 14), Suném (n.
15), Betsheã (n. 16), Tel Rehov (n. 17) e Meguido (n. 27) (FINKELSTEIN, 2002;
FINKELSTEIN; PIASETKY, 2006; FINKELSTEIN, 2015b).
Do norte de Jerusalém: Gabaon (n. 23), Bet-Horon (n. 24) e Zamaraim (n. 57),
próximo a Ramalá (FINKELSTEIN; PIASETKY, 2006; FINKELSTEIN, 2002;
FINKELSTEIN, 2015b).
Da região do rio Jaboque, a leste do Jordão: Adamá (n. 56), Sucot (n. 55), Fanuel (n.
53) e Maanaim (n. 22) (FINKELSTEIN, 2002).
Da região árida do sul: Arad (topônimo 108-109; 110-111, rbt: FINKELSTEIN, 2002;
FINKELSTEIN; PIASETKY, 2006) e um conjunto de sítios nas montanhas do Negueb cujos
topônimos (n. 84. 90. 92) têm o elemento ngb em seus nomes (FINKELSTEIN; PIASETKY,
2006; FANTALKIN; FINKELSTEIN, 2006, corrigem FINKELSTEIN, 2002).
Outras regiões importantes não aparecem na lista, tais como: Jerusalém e as
montanhas de Judá; Siquém, Tapuah, Dotã e outros lugares ao norte de Samaria; a Shefelá; a
Galileia e o norte do vale do Jordão; a planície costeira central e norte; o fértil e densamente
habitado platô de Galaad, Moab e Amon. O nome [ ]-rtf-stz (n. 59) é identificado por Mazar
(MAZAR, 1957 citado por FINKELSTEIN, 2002), e aceito por vários pesquisadores, como
Tersa. Na‟aman, contudo, propõe a leitura Luz (Betel), condizente com a proximidade de
Zamaraim (n. 58), porém pouco provável, segundo Finkelstein (FINKELSTEIN, 2002).
Apesar das áreas danificadas no registro de Karnak, é possível depreender o quadro
geral da campanha de Sheshonq I em Canaã, na segunda metade do séc. X. Chamam-nos à
atenção, particularmente, a ausência de Jerusalém e a destruição de um conjunto de sítios no
planalto de Gabaon-Betel, e a correlação entre esta região e a destruição de assentamentos na
área do rio Jaboque, na Transjordânia (FINKELSTEIN, 2002, p. 109-110).

3.1.3 Os Objetivos da Campanha de Sheshonq I

O envolvimento do Egito em Canaã, embora discreto no final da 21ª dinastia (1070-


27
945) , intensificou-se novamente no começo da 22ª dinastia (945-720), que, certamente,
pretendia estender seu domínio por um longo tempo. Diversos sinais sugerem que o Egito
27
Segue-se a cronologia conforme a Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus,
2006, p. 2171-2.
81
82

defendeu seus interesses no Levante, no mínimo, até meados do séc. IX. Entre outras, citamos
as seguintes evidências: a estela de Sheshonq I, encontrada em Meguido, as estelas de
Osorkon I (924-889) e II (874-834), encontradas em Biblos, a participação de tropas egípcias
na coalizão anti-assíria por ocasião da batalha de Qarqar em 853, inúmeros selos-estampas e
amuletos de aparência pós-ramsida28, além de um fragmento de vaso com o nome de Osorkon
II, encontrado em Samaria (FANTALKING; FINKELSTEIN, 2006). Considerando a intenção
de uma ocupação egípcia de longo prazo, é necessário rever os sinais de destruição e
abandono em Canaã, comumente atribuídos à campanha de Sheshonq.
Na região de Tel Masos, no sul árido, e em Meguido, no fértil vale de Jezrael, não há
sinais de destruição decorrentes de uma incursão militar egípcia. Ao contrário, nota-se uma
nova fase de prosperidade nessas áreas a partir do envolvimento do Egito (FANTALKING;
FINKELSTEIN, 2006). Porém, o mesmo não pode ser dito em relação a um conjunto de sítios
no planalto de Gabaon-Betel e na área do rio Jaboque (na Transjordânia). A destruição desses
sítios em particular revela interesses específicos.
A seguir, apresentamos as principais regiões de Canaã atingidas pela campanha de
Sheshonq, na segunda metade do séc. X, e a correlação entre esse contexto histórico e as
raízes do Êxodo na tradição de Israel Norte. Comecemos, porém, pela significativa ausência
de Jerusalém na lista de cidades conquistadas pelo faraó, conforme o registro de Karnak.

3.1.3.1 Jerusalém

Jerusalém não é mencionada na lista de Sheshonq em Karnak, e há muitas teorias que


procuram justificar esta ausência. Uma delas é que, originalmente, o nome Jerusalém estava
incluído, mas não foi preservado. Esta justificativa parece improvável, visto que as linhas
onde são citados os lugares montanhosos ao norte de Jerusalém (por exemplo, Bet-Horon,
Gabaon e Zamaraim) estão relativamente bem preservadas. Além disso, nenhuma outra cidade
judaíta é mencionada, seja das montanhas, seja da Shefelá29.

28
Ramsés II é o mais famoso rei do Egito (1279-1233). A ele é associada a construção da cidade de mesmo
nome, Ramsés, citada em Ex 1,11, e outras construções nas quais era usada mão de obra semita. Por isso, supõe-
se que, durante o seu reinado, teria havido um Êxodo em massa. Sob a inviabilidade de tal hipótese, ver:
FINKELSTEIN, 2003, p. 87ss.
29
O substantivo Shefelá traduz o termo hebraico transliterado na língua inglesa por Shephelah, que significa
“baixada” ou “terras baixas”, como em 1Rs 10,27, por exemplo. Cf. KIRST, 2001, p. 260.
82
83

Outra explicação para a ausência da citação de Jerusalém advém da interpretação da


narrativa de 1Rs 14,25-28. Neste caso, Jerusalém não teria sido destruída porque entregou
pesado tributo ao faraó em Gabaon. Há duas dificuldades com esta teoria: a primeira é
justificar por que Sheshonq receberia o tributo de Jerusalém em Gabaon, que está a apenas 10
km de Jerusalém; a segunda é por que Sheshonq não teria mencionado em sua lista a capital
de um grande reino, se a tivesse subjugado (KNAUF, 1991).
As escavações têm mostrado que Jerusalém não foi mais do que uma pequena e pobre
vila das montanhas no séc. X, sem construções monumentais, como templos, muralhas ou
palácios (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003). Àquele tempo, na verdade, toda região
montanhosa de Judá ao sul de Jerusalém era esparsamente ocupada por assentamentos
relativamente pequenos, sem grandes cidades ou fortificações. E não há evidências de escrita
no séc. X.
A expansão de Judá em direção aos territórios da Shefelá e do vale de Bersabeia não
ocorreu antes da segunda metade do séc. IX (atividades de construções em larga escala em
Laquis e Bet-Shemesh). No início do séc. IX, a Shefelá era dominada pelos filisteus,
provavelmente a partir de Gat, que era a cidade mais importante do sul. Judá pode expandir-se
para a Shefelá somente após o declínio de Gat, provavelmente como o resultado da campanha
de Hazael, rei de Aram-Damasco. Também no vale de Bersabeia, Judá controla as
fortificações de Arad e Tel es-Seba somente no séc. IX, provavelmente como vassalo de
Aram-Damasco.
Tudo isso sugere que, no tempo da campanha de Sheshonq, Judá era um reino
marginal nas montanhas do sul e era governado a partir de uma pequena vila. Esta análise nos
leva a duas opções acerca da política do Egito em relação a Jerusalém. Ou Sheshonq
simplesmente ignorou a entidade do sul por ser insignificante para seus objetivos
imperialistas. Ou, a fim de aumentar os interesses egípcios na região, Sheshonq aliou-se a
Jerusalém, contra o governo mais forte que emergiu àquela época ao norte de Jerusalém, no
planalto de Gabaon-Betel. De qualquer modo, a ausência de Jerusalém no registro de Karnak
contradiz o texto de 1Rs 14,25-26, segundo o qual o faraó “Sesac” saqueou o templo e o
palácio da cidade.

83
84

3.1.3.2 A região Sul

De acordo com as evidências arqueológicas, o único sistema que justificaria o grande


número de topônimos do sul na lista de Sheshonq é o chamado “reino do deserto”, composto
por Arad, Tel Masos, Tell es-Seba, Tell Isdar, Nahal Yatir, um conjunto de sítios a oeste de
Tell es-Seba e ao longo de Nahal Basor e outro conjunto de sítios nas montanhas do Negueb.
A discussão em torno da relação entre esses sítios e a campanha de Sheshonq diverge os
pesquisadores. Ao contrário da opinião tradicional, que atribui a destruição e o abandono
dessa região à incursão militar do faraó, Fantalking e Finkelstein defendem a posição de que o
envolvimento do Egito nessa região levou esses sítios à sua fase de maior prosperidade
(FINKELSTEIN, 2002; FANTALKING; FINKELSTEIN, 2006). Neste caso, qual seria,
então, o atrativo desta região desértica para o Egito?
Em geral, os períodos de prosperidade nas zonas áridas do Levante resultaram na
sedentarização de pastores nômades, como ocorreu nas montanhas do Negueb, na região de
Basor e no vale de Bersabeia. Condições econômicas favoráveis estão associadas à demanda
da população sedentária pelos produtos do deserto, tais como o cobre e os produtos árabes.
A ascensão do reino de Tel Masos deve estar ligada à participação de pastores
nômades na mineração, fundição e transporte do cobre da região de Arabá para a planície
costeira. Há evidências de forte atividade mineradora e de fundição em Khirbet30 en-Nahas e
Wadi Feinan, especialmente entre os sécs. XI e IX. A produção de cobre na região de Arabá
concorre com a produção de Chipre. Um emerge com a queda do outro. O declínio de Chipre
no séc. XII, decorrente da crise geral que atingiu também o leste do Mediterrâneo, favoreceu
o desenvolvimento do reino de Tel Masos. Quando Chipre se fortaleceu novamente, no séc.
IX, diminuiu a procura pelo cobre da região de Arabá.
Além disso, o Egito fez uso do ferro somente alguns séculos após o uso generalizado
no Mediterrâneo. Ora, com o declínio do comércio de cobre com Chipre e sem contar ainda
com a produção de ferro da região de Temã, o cobre de Arabá tornou-se a principal fonte
deste minério para o Egito no período de Sheshonq I (FANTALKING; FINKELSTEIN,
2006).

30
O termo “Khirbet” vem da palavra árabe para “ruìna” ou “ruìna no topo do morro”, um lugar com uma vasta
visão. Cf.: DAGAN, Yehudah. Khirbet Qeiyafa in the Judean Shephelah: Some Considerations. In: Tel Aviv,
2009, p. 68-71.
84
85

Outro fator que evidencia a importância da produção de cobre de Tel Masos nesta
época é a ausência de cidades filisteias na lista de conquistas de Sheshonq. A prosperidade da
produção de cobre da região do deserto necessita estabelecer relações comerciais com a
planície costeira sul, controlada pelos filisteus. Provavelmente, as cidades filisteias
cooperaram com o faraó e serviram como ponto de apoio ao Egito em Canaã. Talvez, por isso,
apenas Ekron31 tenha sido destruída à época de Sheshonq, sendo sua posição substituída por
Gat. Não podemos dizer se havia citação de cidades filisteias na parte danificada da lista.
Concluímos, então, que não há razão para associar o fim de Tel Masos com a
campanha de Sheshonq. Provavelmente, o faraó pretendia restabelecer seu poder político e
econômico na região do Levante no final do séc. X, e ali se manter por um longo tempo, o que
resultou na fase de maior prosperidade no sul, especialmente devido à continuação da
produção de cobre até o séc. IX, na região de Khirbet en-Nahas.
Depois do enfraquecimento do Egito, o comércio de cobre foi controlado
provavelmente por um poder local, talvez Gat, que cresceu e se tornou um centro urbano. Em
seguida, o controle sobre as rotas do sul pode ter sido exercido por uma aliança Omridas-Gat,
na primeira metade do séc. IX. Nos dias de Osorkon II (874-834), talvez essa aliança tenha
sido apoiada pelo Egito.
O declínio da região está associado ao assalto de Hazael, rei de Aram-Damasco, a Gat
(2Rs 12,18), em meados do séc. IX, ou um pouco depois, e à reativação do comércio de cobre
de Chipre no séc. IX (FANTALKING; FINKELSTEIN, 2006).

3.1.3.3 O vale de Jezrael

O vale de Jezrael sempre foi uma região cobiçada pelos grandes impérios. As
vantagens naturais do norte são evidentes em relação ao sul: clima, vegetação, água, grandes
vales férteis, declives montanhosos moderados, favoráveis ao plantio de oliveiras e videiras e
ao cultivo de grãos em terraços, planícies irrigadas e estradas de ligação entre o Egito e a
Mesopotâmia. Os sítios da região norte, com diversos tamanhos, apresentavam, nos tempos de
crise, um aumento da densidade demográfica e o predomínio da agricultura sedentária;
enquanto, no sul, os sítios eram geralmente pequenos e sugeriam uma população migratória

31
A identificação de “Gaza” tem sido substituìda por “Gezer” (FINKELSTEIN, 2002, p. 116).
85
86

de grupos de pastores. A potencialidade dos recursos humanos também constituía um atrativo


no norte, na medida em que a diversidade de povos e tecnologias de trabalho na região é fator
de aumento da produtividade (FAUST, 2000).
É difícil imaginar, portanto, que, estando interessado numa dominação de longa
duração e na exploração de recursos econômicos, Sheshonq destruiria as cidades mais
desenvolvidas do vale de Jezrael. Além disso, foi encontrado um fragmento da estela de
Sheshonq I em Meguido. Não haveria sentido um faraó erigir uma estela de vitória em um
lugar desabitado (supondo-se que Sheshonq teria destruído Meguido).
De fato, os testes com radio carbono indicam que algumas das destruições no vale de
Jezrael no séc. X são anteriores ao reinado de Sheshonq. Não decorrem de um evento único,
como uma incursão militar (egípcia) ou um terremoto (Am 1,1), mas de sucessivos ataques,
em um curto período de tempo. É provável que sejam decorrentes do movimento de expansão
de grupos sediados na região das montanhas centrais em direção às planícies férteis do norte,
antes da campanha de Sheshonq (FINKELSTEIN, 2002; 2015b). Em diversos momentos da
história, o fortalecimento de grupos das montanhas resultou em confrontos com o Egito,
dados os interesses de ambas as partes em conquistar as terras férteis do vale de Jezrael e
controlar as principais rotas internacionais de comércio da região.
É difícil saber quem eram as pessoas que ocuparam Meguido e o vale de Jezrael
depois da destruição da “Nova Canaã”32 (FINKELSTEIN, 2002; 2015b) e que lá estavam
quando Sheshonq os retomou. A cultura material da região indica diferenças em relação à fase
anterior, como vimos. Essas diferenças podem ser resultado de graduais transformações na
vida da população local, ou podem ter sido introduzidas pelos grupos das montanhas, no final
do séc. X e início do séc. IX. Ao mesmo tempo, pode ser que os egípcios tenham ocupado o
vale em coordenação com um governo local, provavelmente a partir da área de Siquém-Tersa,
porque não há sinais de destruição da parte norte das montanhas centrais (FINKELSTEIN,
2002).
Quando o Egito se retirou, forçosamente, de Canaã (por motivos desconhecidos), o
caminho estava aberto para a expansão norte-israelita para dentro do vale de Jezrael e à
consolidação do reino de Israel Norte. Foi o que aconteceu sob o governo dos Omridas, em
Samaria, no começo do séc. IX.

32
Termo atribuído por Finkelstein ao renascimento dos vales do Norte, depois da fase de destruição de várias
cidades-estado no séc. XII (FINKELSTEIN, 2015b, p. 46s).
86
87

3.1.3.4 A área de Gabaon e do rio Jaboque

Um grupo de topônimos da lista de Sheshonq em Karnak está localizado numa área


restrita das montanhas centrais ao norte de Jerusalém: Gabaon (n. 23), Bet-Horon (n. 24) e
Zamaraim (n. 57) (Zamaraim é mencionado na lista de cidades de Benjamim em Js 18,22,
juntamente com Betel e Ofra). O registro de Karnak também menciona sítios específicos na
área do rio Jaboque, na Transjordânia: Adamá (n. 56), Sucot (n. 55), Fanuel (n. 53) e
Maanaim (n. 22).
Basicamente, entre os séc. XII e XI, a rede de aldeias das montanhas centrais é
formada por assentamentos modestos, autossuficientes e não apresenta sinais de estratificação
social. Não há evidência de muros, palácios, templos, artigos de luxo, cerâmica ornamentada
ou túmulos suntuosos. São casas de igual tamanho, dispostas em forma de círculo, no interior
do qual, provavelmente, os animais ficavam protegidos durante a noite. Entre as casas havia
buracos no chão onde eram armazenados grãos, mas não há evidência de grandes depósitos.
Também não foram encontrados armamentos. Apenas foices, pedras de moer, jarras e potes
para água, vinho e azeite. Não há sinais de comércio entre as aldeias. Não foram encontrados
sinais de santuários, altares nem funerais que indicassem local de culto central ou de
cerimônias grandiosas (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003).
O êxito da vida nas montanhas e o aumento da produtividade, sobretudo na região
norte, logo favoreceu o desenvolvimento de tecnologia para a produção de vinho e azeite, a
ampliação do mercado e do sistema de trocas, dos meios de transporte e de estradas de
comunicação. O crescimento dos grupos dessa região e a expansão de sua área de influência,
aos poucos, vão adquirir a configuração semelhante a de um estado, capaz de comercializar
com as cidades das planícies e com o Egito, almejando os portos da costa fenícia. No séc. X, o
norte já dispunha praticamente de toda a estrutura necessária a um estado, enquanto, no sul, o
Estado de Judá se consolidaria, efetivamente, apenas no séc. VII.
Neste processo de desenvolvimento dos grupos das montanhas, uma região se
distingue das demais no séc. X: o platô de Gabaon-Betel (FINKELSTEIN, 2015b). Esta área,
formada por assentamentos relativamente densos, com nítida evidência de hierarquia (de
acordo com os diferentes tamanhos das cidades), destaca-se por ser a única que apresenta
fortificações de muros de defesa do tipo casamata. E se destaca também pela rapidez com que
este conjunto de sítios fortificados (e não somente um sítio, isoladamente) foi abandonado:

87
88

Betel, et-Tell (Ai), Khirbet Raddana, Tell en-Nasbeh (Masfa), Khirbet ed-Dawwara, Hirbet
Tell el-„Askar, Gabaon33 e Tell el-Ful (FINKELSTEIN, 2002; 2015b).
Ao contrário do que aconteceu em Tel Masos e no vale de Jezrael, a destruição e o
abandono dos sítios no planalto de Gabaon-Betel e dos sítios da área do rio Jaboque
possivelmente foram resultado da campanha de Sheshonq.
Em geral, os faraós evitavam penetrar em áreas de matas, esparsamente ocupadas e em
montes ásperos e hostis. Talvez por isso as localidades desta região não apareçam na
descrição de conquistas de outros reis do Egito. Além disso, a região do platô de Gabaon-
Betel, assim como a área do rio Jaboque estavam longe das rotas principais. Também vimos
que Jerusalém não era alvo da campanha de Sheshonq. Portanto, podemos concluir que a
destruição ou o abandono dos sítios de Gabaon-Betel é uma exceção. Então, o que teria
atraído a atenção do faraó para esta área relativamente remota, sem grande importância
geopolítica?
Para Finkelstein, a única explicação razoável é que, no planalto de Gabaon-Betel,
localizava-se o centro de governo de uma entidade político-territorial emergente, cujos
domínios se estendiam à margem sul do vale de Jezrael (ao norte), à região do rio Jaboque (a
leste), talvez até Khirbet Qeiyafa 34 (a oeste, na Shefelá) e até Jerusalém (ao sul), ameaçando
áreas de interesse do Egito em Canaã (FINKELSTEIN, 2015b).
Uma razão para o Egito se sentir ameaçado por uma entidade das montanhas era a
tentativa desses grupos de se expandirem para as planícies férteis e estrategicamente
localizadas perto das rotas internacionais de comércio, por exemplo, no vale de Jezrael. É
possível, portanto, que o governo da região de Gabaon-Betel o tenha feito. Este movimento
não é incomum em Canaã.
Finkelstein compara o processo de expansão da região de Gabaon-Betel no séc. X a
histórias de “homens fortes” que estabeleceram antigos domìnios territoriais a partir de
assentamentos relativamente modestos nas montanhas (FINKELSTEIN, 2006).
A expansão desses domínios nas montanhas ocorreu em várias regiões e períodos,
desde o Bronze até séculos mais recentes, por exemplo: Lab‟ayu, governador de Siquém, e
„Abdi-Ashirta e Aziru, governadores de Amurru, no período de Amarna; e Fakhr ad-Din nas

33
Gabaon é o único sítio nesta área nominalmente citado na lista de Sheshonq e que tem sido completamente
escavado. Foi destruído no final do Ferro I e manteve-se deserto (ou esparsamente habitado) no início do Ferro
II. Forte atividade é retomada no final do Ferro II (FINKELSTEIN, 2015b, p. 61). O registro de Betel parece
representar um quadro da forte atividade no Ferro I e no final do Ferro II e fraca ou nenhuma atividade no início
do Ferro II (FINKELSTEIN; SINGER-AVITZ, 2009).
34
Khirbet Qeiyafa localiza-se numa colina no vale de Elah, entre Soco e Azeca, cerca de 10km a leste da cidade
de Gat. Sobre a afiliação de Khirbet Qeiyafa a Gabaon ou a Judá, ver: FINKELSTEIN, 2015b, p. 76-82.
88
89

montanhas do Líbano e Dahir al-„Umar na Galileia durante o perìodo otomano. Os


movimentos de expansão geralmente ocorreram em períodos de declínio dos grandes
impérios, ou aproveitando-se da zona de tensão entre impérios vizinhos.
Assim, o desenvolvimento da entidade político-territorial sediada em Gabaon-Betel
levou à expansão em direção ao leste do Jordão, na região do rio Jaboque, à margem sul do
vale de Jezrael e talvez até Khirbet Qeiyafa, na Shefelá. Este movimento de expansão
provavelmente resultou na destruição dos assentamentos locais no vale de Jezrael. A análise
das camadas de destruição no vale de Jezrael sugere que não foram o resultado de uma única
incursão militar (egípcia) e sua datação é anterior à chegada de Sheshonq. Portanto, é
provável que o núcleo de governo de Gabaon-Betel tenha ocupado a região sul do vale de
Jezrael não de uma vez, mas aos poucos, em sucessivos ataques, dentro de um curto período.
De acordo com esse cenário, os assentamentos tomados por Sheshonq no vale de
Jezrael ou estavam sob o domínio de grupos das montanhas, ou já haviam se tornado
independentes, visto que o estabelecimento de sua estela em Meguido corresponde à fase de
destruição dos sítios de Gabaon-Betel e de Arad, no vale de Bersabeia, dos sítios da área do
rio Jaboque, na Transjordânia, e de Khirbet Qeiyafa, na Shefelá, durante a segunda metade do
séc. X. A população assentada no vale de Jezrael é a mesma no final do séc. X e início do séc.
IX, quando se dá a consolidação do reino de Israel.
Nos territórios da região de Gabaon-Betel, após a campanha de Sheshonq, segue um
período de abandono ou fraca atividade até o início do séc. VIII, quando apresentará nova fase
de prosperidade, sob o reinado de Jeroboão II. Durante a dinastia dos Omridas, não há sinais
de desenvolvimento nesta região.
É difícil determinar se, em cooperação com os egípcios ou depois de sua retirada no
final do séc. X, o conjunto de sítios do planalto de Gabaon-Betel ficou aos cuidados dos
governantes de Jerusalém, ou se isto ocorreu após a queda dos Omridas, na segunda metade
do séc. IX, quando Judá está sob o domínio de Aram de Damasco35. De qualquer modo,
somente nas fases de enfraquecimento do norte, a ocupação desta região por governos do sul
pode ter gerado o que, no séc. VII, será a memória de um Reino Unido, atribuído à casa de
Davi. Ainda assim, não é possível determinar se o governo de Davi foi contemporâneo ou
posterior ao governo da entidade político-territorial da região de Gabaon-Betel
(FINKELSTEIN; PIASETZKY, 2006).

35
A recuperação dos territórios do norte, perdidos para a aliança entre Hazael de Aram-Damasco e Judá, deve ter
ocorrido durante os governos de Joás e Jeroboão II, na primeira metade do séc. VIII.
89
90

Coincidentemente, as áreas de destruição no planalto central de Gabaon-Betel e nas


margens do rio Jaboque correspondem, no texto bíblico, ao território atribuído à casa de Saul,
no Primeiro Livro de Samuel.

90
91

3.2 O REGISTRO DE KARNAK E O TEXTO BÍBLICO

Chama à atenção a coincidência entre o registro da campanha de Sheshonq em


Karnak, especialmente quanto às localidades situadas na região centro-norte das montanhas
de Canaã e na área do rio Jaboque, e o território atribuído à casa de Saul nas narrativas do
livro de Samuel: 1Sm 9,4 (Salisa e Salim); 1Sm 11,1 e 2Sm 2,4-7 (Jabes-Galaad) e 2Sm 2,12
(Maanaim). Esta combinação geográfica de duas áreas relativamente remotas é única, e a
possibilidade de ser mera coincidência é improvável. Especialmente, porque as duas fontes
descrevem eventos que foram afastados cronologicamente. A campanha de Sheshonq ocorre
na segunda metade do séc. X e, no livro de Reis, está associada a Roboão e Jeroboão I; o
governo de Saul, de acordo com o livro de Samuel, situa-se um século antes.
De fato, da comparação entre o registro de Karnak e as narrativas de Saul no livro de
Samuel emergem duas questões para os estudos bíblicos. A primeira é relativa à cronologia.
De acordo com a data da campanha de Sheshonq, Saul teria governado no séc. X, e não no
séc. XI, como afirma a cronologia tradicional dos monarcas israelitas. A segunda é sobre a
historicidade das tradições (positivas) sobre Saul.
Há uma série de indícios na narrativa bíblica que sugere um núcleo histórico por trás
da tradição saulida no livro de Samuel. Por exemplo: a) a referência a Salisa e Salim em 1Sm
9,4 parece pré-deuteronomista (KAEFER, 2016a); b) a localização do núcleo da entidade
territorial governada por Saul no platô de Gabaon-Betel, fora de tradicionais centros de poder
como Siquém ou Samaria, também é um dado significativo; se o texto descrevesse a realidade
do tempo dos redatores, o centro dos acontecimentos deveria ser mais ao norte; c) a
correlação entre a área de Gabaon-Betel e Jabes-Galaad em 1Sm 11,1 e 2Sm 2,4-7; d) a
descrição do território atribuìdo a Ishbaal, chamado “filho de Saul”, em 2Sm 2,9, que não
corresponde à realidade tardia da história de Israel 36 (FINKELSTEIN, 2015b); e) a memória
da morte de Saul na batalha do Mt. Gilboa (1Sm 31), no norte, e a exposição de sua cabeça na
parede do muro de Bet-Sheã, no sul do vale de Jezrael, que faz sentido quando levamos em
conta o movimento de expansão da casa de Saul em direção ao norte; f) a presença dos
filisteus na batalha de Gilboa no séc. X, afinal, nenhuma cidade filisteia seria capaz de montar
uma força grande o bastante para marchar tão ao norte em Betsheã. O livro de Samuel guarda,

36
Em 2Sm 2,9, o uso da preposição não deixa claro se o governo era exercido diretamente (preposição‘al) ou
indiretamente (‘el) “sobre/para” “Galaad, os ashuritas, Jezrael, Efraim, Benjamim e todo Israel”
(FINKELSTEIN, 2002, p. 128; 2015b, p. 75).
91
92

possivelmente, uma antiga memória do exército egípcio, assistido por cidades-estado


filisteias. Na redação tardia, os filisteus se tornam os grandes inimigos de Saul e da monarquia
de Israel, e dilui-se a presença dos egípcios em Canaã (cf. 1Sm 13,3; 2Sm 23,14).
Vale a pena um breve comentário sobre a possível extensão do governo da casa de
Saul até Khirbet Qeiyafa, um importante sítio que tem voltado ao debate recentemente.
Os textos do livro de Samuel que citamos referem-se à área das montanhas ao norte de
Jerusalém (Ramá, Gabaon, Masfa, Gaba, etc.) e a relacionam à região de Jabes de Galaad, a
leste, na Transjordânia. Mas o texto de 1Sm 17,1-2 diz que Saul dirigiu-se também à área
fértil da Shefelá, ao sul. Diz o texto que Saul teria acampado no vale do Terebinto, para
guerrear contra os filisteus, concentrados em Soco e Azeca. O sítio de Khirbet Qeiyafa
localiza-se em uma colina no lado sul do vale do Terebinto, chamado “Elah” no texto bìblico,
distante 10km de Gat e 30 km de Jerusalém, perto de Bet-Shemesh. A cidade é uma grande
fortaleza, cercada por muro de casamata e cujo período de assentamento se dá entre os anos
1050 a 915 (FINKELSTEIN, 2015b; KAEFER, 2016a).
Dentre as dificuldades quanto à afiliação do território de Qeiyafa a Judá ou à entidade
de Gabaon-Betel no séc. X, optamos pelas considerações de Finkelstein: apesar de mais
próxima de Jerusalém, Khirbet Qeiyafa, ao contrário dos sítios das montanhas de Judá, é
densamente ocupado, apresenta fortificações semelhantes às de Gabaon e as inscrições que lá
foram encontradas podem conter referência à casa de Saul. Suspeita-se que um ôstraco
encontrado em Qeiyafa, contendo cinco linhas de escrita proto hebraica, refira-se à eleição de
Saul; e uma inscrição na borda de um jarro de cerâmica contém a expressão “Ishbaal, filho de
Beda” (Ishbaal é considerado “filho de Saul” em 2Sm 2,8-11; e é citado também em 1Cr 8,33;
9,39). Portanto, não é improvável que Khirbet Qeiyafa tenha sido uma cidade fortificada,
ligada à casa de Saul, na planície da Shefelá, para evitar os avanços dos filisteus a partir de
Gat (FINKELSTEIN, 2015b; KAEFER, 2016a).
Khirbet Qeiyafa não consta na lista de cidades conquistadas ou destruídas por
Sheshonq. No entanto, há uma hipótese de que o n. 11 da lista se refira a “Gob”, identificada
como Qeiyafa por Na‟aman (NA‟AMAN, 2008a; 2008b). Segundo Finkelstein, a sequência
de nomes da lista, formada por Rubutu (n. 13), Aialon (n. 26), Cariataim (n. 25), Bet-Horon
(n. 24) e Gabaon (n. 23), aponta uma rota lógica da Shefelá às terras altas. Neste sentido,
antes de Rubutu, na Shefelá, o n. 11 (difícil de identificar), provavelmente mais ao sul, seria o
primeiro na rota e começa com a letra g. Tradicionalmente, este sítio tem sido identificado

92
93

como Gaza ou Gezer. Mas Na‟aman sugere o nome Gob para Khirbet Qeiyafa
(FINKELSTEIN, 2015b).
Deste modo, a expansão da casa de Saul em direção à planície da Shefelá teria sido
considerada uma ameaça aos interesses egípcios na região, o que explicaria a destruição de
Qeiyafa à época da campanha de Sheshonq.
Feitas essas observações a propósito de Khirbet Qeiyafa, ao que tudo indica, há um
núcleo histórico por trás da narrativa do livro de Samuel acerca das tradições positivas de
Saul: a casa de Saul teria governado a primeira entidade político-territorial “norte-israelita”,
desde o planalto de Gabaon-Betel até a margem sul do vale de Jezrael, estendendo-se, a leste,
às áreas de Galaad, na região do rio Jaboque e, talvez, até Kh. Qeiyafa, na planície da Shefelá,
a oeste, e Jerusalém, ao sul. Tal como na tradição dos “homens fortes” das montanhas do
período de Amarna, seu movimento de expansão em direção às terras férteis da planície do
norte (e do sul?) chocou-se com os interesses egípcios na região.
No processo sucessório, à derrota da casa de Saul diante do exército de Sheshonq em
Canaã, dá-se a transferência do governo local do platô de Gabaon-Betel para a região de
Siquém-Tersa, que, de acordo com o texto bíblico, foi a sede de governo de seis ou sete reis
de Israel Norte, até a mudança da capital para Samaria.

93
94

3.3 A TRANSIÇÃO DE SAUL PARA JEROBOÃO I

Na sequência narrativa do texto bìblico, Saul é o primeiro “monarca” do Reino Unido,


seguido por Davi e Salomão. E Jeroboão I é o primeiro monarca após a divisão do Reino
Unido da casa de Davi. No entanto, se há historicidade na referência bíblica ao reinado de
Jeroboão I, na perspectiva deste estudo, ele seria o “sucessor” de Saul, marcando a
transferência do governo da região de Gabaon-Betel para a área de Siquém-Tersa.
De acordo com 1Rs 12,25, Jeroboão fortificou Siquém e Fanuel, mas, em 1Rs 14,17, é
dito que ele se mudou para Tersa.
Siquém foi um importante centro político e econômico na época do Bronze. De acordo
com a estela de Khu-Sobek, constituiu uma importante força de resistência contra as
campanhas militares egípcias em Canaã no séc. XIX. Nas cartas de Amarna, do séc. XIV,
também é citada como centro de uma coalização de cidades-estado contrárias à presença do
Egito em Canaã. No final do séc. XIII ou no séc. XII, há sinais de destruição de Siquém
(FINKELSTEIN, 2015b)37. Nos séc. XI e X, provavelmente é uma região controlada a partir
do governo estabelecido em Gabaon-Betel (FINKELSTEIN, 2012).
O nome de Siquém não consta no registro de Karnak como cidade conquistada por
Sheshonq. Não sabemos se Siquém foi capital do reino de Jeroboão ou se foi mencionada pelo
redator bíblico por causa de sua importância na história da região ou à época da redação do
texto, no período de reconstrução do templo do monte de Garizim. Contudo, logo aparece
Tersa como local de residência dos primeiros reis do Norte.
De acordo com o livro de Reis, Tersa é a capital dos reis do Norte desde Jeroboão I até
Omri, antes de construir Samaria (Jeroboão I, 1Rs 14,17; Nadab, 1Rs 15,1; Baasa, 1Rs
15,21.33; 16,6; Ela, 1Rs 16,8-9; Zamri, 1Rs 16,15; e Omri, 1Rs 16,23), portanto, por um
período de cerca de cinquenta anos, entre o final do séc. X e o início do séc. IX.
Tersa situa-se numa região de terras férteis e fontes d‟água, próxima a importantes
estradas de ligação entre o norte, o sul e a costa, e constitui um assentamento rural, não
fortificado e sem evidência de arquitetura pública, pelo menos na parte escavada do monte 38.

37
A única evidência textual de que dispomos sobre a Siquém dos sécs. XIII-XII é o texto de Jz 9, que descreve
“Abimelec” como um “homem forte” que controla uma grande entidade territorial no “tempo dos Juìzes” (que
compreende o período bíblico entre cerca de 1200 e 1000); cf. FINKELSTEIN, 2006, p 179.
38
A parte escavada de Tersa corresponde a 15% do sítio, o que, por sua vez, na avaliação de Finkelstein, é
proporcionalmente maior do que as escavações realizadas na maioria dos sítios das terras altas (FINKELSTEIN,
2012, p. 333).
94
95

No entanto, a preservação de seu nome no texto bíblico, sugere que Tersa foi capital antes de
Samaria, uma vez que não ganhou destaque em outras fases da história da região. Tersa é
citada também em Js 12,24; 17,3 e Nm 26,33. Assim, a memória de Tersa teria chegado a
Jerusalém, provavelmente, com os refugiados do sul de Samaria, no final do séc. VIII
(FINKELSTEIN, 2015b).
As escavações arqueológicas indicam que, no final do Bronze (1550 a 1150), Tersa
pertencia ao território de Siquém e foi destruída por fogo. Não há evidência de intensa
ocupação no período do Ferro I (especialmente na segunda metade do séc. X até início do séc.
IX), ao contrário do fenômeno que se deu nas demais regiões das montanhas centrais, o que é
ainda mais estranho por ser uma área fértil e, estrategicamente, bem localizada. Esta fase do
Ferro I em Tersa corresponde às primeiras décadas da monarquia em Israel Norte, com
assentamento relativamente pequeno, esparsamente ocupado e sem sinais de fortificação. Não
se pode dizer se, na parte não escavada, havia palácio e templo. E também não dá para saber
se Jeroboão I reconstruiu Tersa depois de um longo período de vazio ocupacional, ou se ela
havia sido reocupada um pouco antes dele. Na opinião de Finkelstein, Tersa pode ter sido
tomada como capital para evitar os antigos e tradicionais grupos de poder em Siquém, além
da vantagem de seus recursos naturais (FINKELSTEIN, 2015b).
Com os dados disponíveis sobre Tersa, tem-se que a capital dos primeiros reis de
Israel Norte reproduz, mais uma vez, o fenômeno comum em Canaã acerca da capacidade de
expansão territorial a partir de governos rurais, relativamente modestos e não fortificados,
situados na região das montanhas centrais, como vimos em relação a Labayu de Siquém e à
casa de Saul de Gabaon-Betel (FINKELSTEIN, 2006; 2012; 2015b).
Concluímos, então, que Siquém e Tersa estiveram sob a dominação direta ou indireta
do governo da casa de Saul, sediado em Gabaon-Betel, no início do séc. X. A campanha de
Sheshonq, na segunda metade do séc. X, provocou novos arranjos nas montanhas e na
planície fértil do norte. A destruição da região de Gabaon-Betel e da área do rio Jaboque abriu
caminho para a ascensão de Jeroboão I, tìpico “homem forte” das montanhas, resultando na
transferência do governo local para o território de Siquém-Tersa. Não é possível dizer se o
vale de Jezrael já era governado pela unidade política de Tersa, em substituição à entidade
territorial de Gabaon-Betel, ou se Sheshonq entregou-lhe a administração a partir de algum
tipo de acordo (FINKELSTEIN, 2002; 2015b).

95
96

O texto bíblico reforça a ideia de acordo entre Jeroboão I e o Egito. Em 1Rs 11,40 e
mais ainda na Septuaginta em 3Rs 12,24c-f, evidenciam-se as relações entre Jeroboão e o
faraó, sugerindo que sua ascensão é resultado ou iniciativa egípcia.
No período seguinte, isto é, no início do séc. IX, quando Omri transfere a capital para
Samaria, Tersa perde sua importância política, especialmente porque Omri se volta para o
porto de Dor, na planície costeira. Porém, paradoxalmente, neste período, Tersa apresenta
nova fase de desenvolvimento, em consonância com a prosperidade de todo o reino do Norte.
Esta fase termina em destruição e abandono, após a ascensão de Hazael de Aram-Damasco.
Consideramos que o contexto da queda da entidade de Gabaon-Betel/casa de Saul e a
ascensão da unidade política de Siquém-Tersa/Jeroboão I no séc. X constitui o núcleo
histórico do Êxodo como tradição fundante de Israel Norte.

96
97

3.4 AS RAÍZES HISTÓRICAS DO ÊXODO NO SÉC. X

Em geral, a tradição do Êxodo tem sido ligada à memória da expulsão dos hicsos do
delta do Nilo, no séc. XVI-XV (FINKELSTEIN, 2015b), e, sobretudo, à memória da opressão
egípcia sobre o povo de Canaã nos sécs. XIII-XII (NA‟AMAN, 2011a; HOFFMEIER, 2014;
MAEIR, 2015).
Este contexto reflete, principalmente, a realidade da opressão egípcia sobre a região
sul de Canaã e a partir da perspectiva de redatores judaítas, seja à época de Josias, seja em
releituras do exílio e do pós-exílio (LIVERANI, 2008). Portanto, faz sentido que tenha sido
preservada na região de Basor ou da planície do sul, onde a opressão egípcia no séc. XII, de
fato, foi uma das mais severas. O fortalecimento da memória do Êxodo nessas regiões servia
também para preservar a identidade de Judá frente ao Egito, que era muito superior
economicamente e que despertava um grande fascínio na população judaíta (cf. livro da
Sabedoria).
No entanto, a memória da opressão/libertação do Egito nas planícies do sul ou mesmo
no vale de Jezrael, no norte de Canaã, pouco traduz a experiência dos grupos das montanhas
da região centro-norte. Tradicionalmente, o Egito não tinha interesse nas terras altas. Por isso,
a destruição dos assentamentos no planalto de Gabaon-Betel e na região do rio Jaboque,
atribuída à campanha de Sheshonq, tem chamado à atenção (FINKELSTEIN, 2015b). Além
disso, pouco tempo depois da campanha de Sheshonq, dá-se a retirada forçada do Egito de
Canaã (embora não sejam claros os motivos). Assim, consideramos que esta (inesperada)
retirada do Egito, aliada à memória recente da luta dos grupos das terras altas contra
Sheshonq, foi vista como uma vitória, abrindo caminho para a consolidação do reino de Israel.
Neste contexto, a tradição do Êxodo nasce como memória de luta contra o Egito (e não de
“saìda” da terra do Egito) e está ligada ao surgimento do Reino do Norte, anterior ao
surgimento de Judá, daí considerá-la uma tradição originária de Israel Norte.
Neste contexto, do ponto de vista teológico, o deus do Êxodo, El/Javé, é concebido
como um deus que vai à frente de seu povo, garantindo-lhe a vitória, como um deus guerreiro.
A compreensão do Êxodo a partir do contexto do fortalecimento dos grupos das
montanhas centrais de Canaã, sobretudo no séc. X, fornece-nos um cenário mais próximo da
realidade por trás, por exemplo, da tradição do Êxodo-Deserto na profecia de Oseias e Amós,

97
98

em antigos salmos originários do norte e em inscrições de Kuntillet „Ajrud, no séc. VIII, em


Israel Norte (NA‟AMAN, 2011b; FINKELSTEIN, 2015b).
As memórias dos grupos das montanhas centrais de confrontação com o Egito podem
ter sido guardadas nas regiões de Betel e Siquém, por exemplo, e foram unidas à longa
história de lutas dos grupos das planícies pela libertação da opressão egípcia nas terras baixas
de Canaã, do norte e do sul (FINKELSTEIN, 2015b). Certamente, séculos de presença egípcia
em toda Canaã fazem parte da memória cultural39 da região, e isto constituiu um dos fatores
para que a tradição norte-israelita do Êxodo fosse aceita em Judá, no séc. VII, tornando-se,
então, memória de fundação de todo Israel, como um povo único, desde as origens.

39
Sobre a relação entre a tradição do Êxodo e o conceito de “memória cultural”, ver: ASSMAN, J. Exodus and
Memory. In: LEVY, T. E. et. al. (Orgs.). Israel’s Exodus in Transdisciplinary Perspective, Quantitative Methods
in the Humanities and Social Sciences. Springer International Publishing Switzerland, 2015, p. 3-16; MAEIR, A.
M. Exodus as a Mnemo-Narrative: an archaeological perspective. In: LEVY, T. E. et. al. (Orgs.). Israel’s Exodus
in Transdisciplinary Perspective, Quantitative Methods in the Humanities and Social Sciences. Springer
International Publishing Switzerland, 2015, p. 409-418; HENDEL, R. The Exodus in Biblical Memory. In:
Journal of Biblical Literature, 120, n. 4, 2001, p. 601-622; HENDEL, R. The Exodus as Cultural Memory:
Egyptian Bondage and the Song of the Sea. In: LEVY, T. E. et. al. (Orgs.). Israel’s Exodus in Transdisciplinary
Perspective, Quantitative Methods in the Humanities and Social Sciences. Springer International Publishing
Switzerland, 2015, p. 65-77; NA‟AMAN, Nadav. The Exodus Story: Between Historical Memory and
Historiographical Composition. In: Journal of Ancient Near Eastern Religions 11, 2011, p. 39-49. Koninklike
Brill NV, Leiden.

98
99

3.5 CONCLUSÃO PARCIAL

A associação de Jeroboão I a Sheshonq forneceu-nos dois importantes referenciais


extra bíblicos para a contextualização da tradição do Êxodo em Israel Norte, um cronológico e
outro geográfico: o séc. X e a região do planalto central de Canaã.
A campanha de Sheshonq em Canaã, na segunda metade do séc. X, levou-nos a situar
neste período o núcleo histórico mais próximo do surgimento do Reino do Norte. Neste
contexto, chama à atenção a destruição e o abandono de um conjunto de sítios específicos,
fortificados, no planalto de Gabaon-Betel e na área do rio Jaboque. Afinal, tanto na região
árida do sul, quanto no vale de Jezrael, não há sinais de destruição nos sítios mencionados na
lista de Sheshonq em Karnak.
O conjunto de sítios da área de Gabaon-Betel e do rio Jaboque citados na lista de
Sheshonq coincide com o território atribuído à casa de Saul, no livro de Samuel. A
justificativa mais provável para a incursão do faraó na região montanhosa de Gabaon-Betel,
sem grande importância geopolítica e distante das principais rotas comerciais, é que
constituísse a sede de um governo que representava uma ameaça aos interesses do faraó em
Canaã. Isto nos levou a considerá-la a primeira entidade-político territorial norte-israelita,
cujos domínios estendiam-se: ao norte, até a margem sul do vale de Jezrael; a leste, até o rio
Jaboque, na Transjordânia; a oeste, até Khirbet Qeiyafa, na região da Shefelá; e ao sul, até
Jerusalém.
O confronto com o Egito resultou na queda da casa de Saul e na ascensão de Jeroboão
I, a partir de Siquém-Tersa. Porém, ao contrário do que seria esperado, em pouco tempo, dá-
se a retirada forçada do Egito de Canaã, o que, provavelmente, fez surgir entre os grupos
remanescentes das montanhas um sentimento de vitória. Assim, o núcleo histórico do Êxodo
em Israel Norte no séc. X estaria ligado à retirada forçada do Egito, em meio à memória
recente da luta dos Saulidas contra Sheshonq I, após séculos de dominação egípcia em Canaã.
A tradição do Êxodo nasce no norte porque aí surgiu a primeira entidade político-
territorial (a “casa de Saul”) de Canaã capaz de ameaçar os interesses egìpcios na região. O
Êxodo nasce como memória de luta contra o Egito, e não de migração do Egito. A saída do
Egito das terras de Canaã abriu caminho para a consolidação do reino de Israel, sob o governo
dos Omridas, no início do séc. IX. Neste contexto, o deus do Êxodo, El/Javé, é concebido
como uma divindade guerreira.

99
100

No próximo capítulo, apresentaremos a tradição do Êxodo a partir da memória de luta


dos “homens fortes” das montanhas de Canaã contra o Egito, no séc. X; a tradição do Êxodo
na monarquia de Israel Norte; a tradição do Deserto e a tradição de Jacó. Por fim, o Êxodo e o
culto a El/Javé em Israel Norte.

100
101

4) CAPÍTULO 3: A TRADIÇÃO DO ÊXODO EM ISRAEL NORTE

A relação entre a história de Jeroboão I e Sheshonq I no livro de Reis (chamado


“Sesac” em 1Rs 11,40; 14,25) permitiu-nos considerar o contexto da campanha do faraó em
Canaã no final do séc. X e situar aí as raízes históricas do Êxodo como tradição fundante de
Israel Norte. A retirada forçada do Egito (por motivos desconhecidos), a memória recente da
luta da “casa de Saul” pela libertação, a ascensão de Jeroboão I e a consolidação do reino de
Israel com os Omridas, em curto período, reacenderam, provavelmente, o sentimento de
vitória dos remanescentes “grupos saulidas”, após uma longa história de submissão,
exploração e sofrimento, decorrente da presença egípcia em Canaã. Este nos parece um
núcleo significativo dentro da memória cultural do Êxodo em Israel Norte.
Neste sentido, vinculamos a memória do Êxodo em Israel Norte à tradição de luta dos
“homens fortes” das montanhas centrais do norte de Canaã contra o Egito, a exemplo,
sobretudo, de Saul em Gabaon-Betel e de Jeroboão em Siquém-Tersa, no séc. X.
Assim, entendemos que o significado da expressão “subir do Egito”, conforme a
fórmula tradicional do Êxodo (e suas variantes), por exemplo, em 1Rs 12,28, é, inicialmente,
metafórico, no sentido de soberania política; somente a partir das deportações assírias no final
do séc. VIII, tal expressão passou a implicar também deslocamento espacial. Este sentido foi
reforçado pela experiência do exílio babilônico e pela expectativa do retorno para Judá, no
pós-exílio.
No processo de transmissão oral, a memória das lutas dos grupos das terras altas
contra o Egito certamente uniu-se à memória de resistência dos grupos das planícies. Essas
memórias foram postas por escrito provavelmente durante o reinado de Jeroboão II, na
primeira metade do séc. VIII. Nessa época, o Êxodo consolidou-se como tradição fundante de
Israel Norte, conforme atestam a profecia de Oseias e Amós, alguns salmos originários do
Norte e as inscrições de Kuntillet „Ajrud (FINKELSTEIN, 2015b).
É provável que também neste período tradições independentes do Deserto tenham sido
ligadas ao Êxodo, uma vez que o governo de Jeroboão II atuou intensamente no comércio
árabe da região do Sinai. De fato, desde o tempo da dinastia Omrida, há evidência das
relações entre Israel Norte e a região de Moab, conforme atesta a estela de Mesha.
Ao lado da tradição do Êxodo-Deserto, o ciclo de Jacó constitui outra narrativa sobre
as origens de Israel Norte, originária do séc. X e ligada aos santuários de Fanuel e Betel

101
102

(talvez Siquém). Enquanto a tradição do Êxodo está relacionada à formação do reino de


Israel, a tradição de Jacó está ligada a histórias de famílias, e a genealogia constitui o
principal elemento de identidade.
Juntamente com o referencial político, o Êxodo constitui um referencial teológico.
Consideramos que, no séc. VIII, o culto nacional em Israel Norte é dedicado a Javé,
representado na forma de touro jovem e associado ao Êxodo, principalmente nos santuários
do rei, como Betel e Samaria. Tal expressão de culto a Javé integra elementos ligados ao culto
a El, considerado o deus criador no panteão de Ugarit, e a Baal, um dos filhos de El,
considerado o deus da tempestade e da guerra, ambos representados pelo símbolo do touro.
Neste capítulo, apresentamos, primeiro, a tradição do Êxodo em Israel Norte a partir
da memória de luta dos grupos da região centro-norte das montanhas de Canaã, liderados
pelos chamados “homens fortes”. Neste sentido, fazemos uma releitura da tradicional fórmula
do Êxodo (“subir do Egito”).
Em seguida, apresentamos a tradição do Êxodo no contexto da monarquia em Israel
Norte, especialmente no período do reinado de Jeroboão II, no séc. VIII: a) o contexto
político-religioso da monarquia; b) o Êxodo e a tradição profética; c) o Êxodo e a propaganda
do rei; d) Kuntillet „Ajrud; e) a tradição do Deserto; f) a tradição de Jacó.
Na terceira parte deste capítulo, apresentamos a tradição do Êxodo e o culto a El/Javé
em Israel Norte: a) o deus El na tradição de Israel; b) o símbolo do touro; c) El, Javé, o touro e
o êxodo; d) Betel e as tradições norte-israelitas.
Por fim, encerramos o capítulo com uma breve conclusão.

102
103

4.1 O ÊXODO E A TRADIÇÃO DAS MONTANHAS EM ISRAEL NORTE

As diferenças climáticas, topográficas e de padrões de assentamento, além de


evidências textuais do Egito40, sempre apontaram para uma divisão geopolítica em Canaã em
torno de duas regiões principais: uma no norte, ligada a Siquém, e outra no sul, ligada a
Jerusalém. Temos aí indícios de que Israel e Judá constituiriam reinos distintos (embora
interligados), com características próprias, desde suas origens. Vale notar que as vantagens
decorrentes da abundância dos recursos naturais e humanos no norte conferiram a Israel a
hegemonia na região durante a maior parte da história dos dois reinos. Isto sugere, por sua
vez, peculiaridades entre as memórias do Êxodo nessas duas regiões, norte e sul. E implica
também características próprias entre as memórias das terras baixas e as memórias das terras
altas de Canaã.
No processo de ocupação e desenvolvimento dos assentamentos nas montanhas da
região centro-norte de Canaã, destacamos a tradição dos chamados “homens fortes”. O
processo de ascensão e queda de Labayu de Siquém, à época de Amarna, foi comparado à
ascensão e queda de Saul em Gabaon-Betel e de Jeroboão I em Siquém-Tersa
(FINKELSTEIN, 2006). Esses “homens fortes” eram lìderes locais, carismáticos, originários
da região das montanhas de Canaã, com capacidade de organização, enfrentamento e
conquista de vastos territórios, a partir de assentamentos relativamente modestos, sem grandes
construções públicas ou aparato administrativo. A estrutura interna desses grupos não
apresentava grande desigualdade social. O relativo equilíbrio de forças, por sua vez, permitia
uma maior alternância de poder entre os grupos locais. Mas o fortalecimento desses grupos
das montanhas levava, por sua vez, a um movimento de expansão em direção aos vales férteis
do norte e às rotas de comércio inter-regional, onde se deparavam com a presença do Egito,
que mantinha bases militares e administrativas especialmente em Meguido e Betsheã.
Consideramos que a memória de luta contra o Egito de grupos como os de Labayu,
sobretudo o de Saul/Jeroboão I no séc. X, integra a memória cultural do Êxodo na tradição
das montanhas da região centro-norte de Canaã. A seguir, apresentamos alguns elementos que
estariam na base da tradição do Êxodo norte-israelita e, depois, revemos o significado da
expressão “subir do Egito”, conforme a fórmula tradicional do Êxodo.
40
“Textos de execração, inscrições ofensivas gravadas em fragmentos de cerâmica e em estatuetas de
prisioneiros de guerra, que deveriam ser quebrados e enterrados numa cerimônia a fim de causar infortúnio aos
inimigos do Egito”, e a inscrição do general egípcio Khu-Sebek em campanha militar em Canaã no séc. XIX
(FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003, p. 215).
103
104

4.1.1 Elementos da Tradição Norte-Israelita do Êxodo

Dentre os principais elementos da tradição norte-israelita do Êxodo destacamos os


seguintes:
a) os núcleos político-territoriais situados na região centro-norte de Canaã estão nas
terras altas, ao norte de Jerusalém: primeiro em Siquém (no tempo de Amarna), depois no
planalto de Gabaon-Betel à época de “Saul”, em seguida em Tersa, no período de Jeroboão I e
dos sucessivos reis, e, finalmente, em Samaria, a partir dos Omridas;
b) o fortalecimento desses núcleos ocorreu a partir de assentamentos relativamente
modestos, mais ou menos fortificados, mas com grande capacidade de articulação e domínio
de áreas extensas, e caracteriza o governo dos chamados “homens fortes” das montanhas;
c) esses grupos das montanhas têm em comum uma história de luta contra o Egito,
especialmente pela disputa do vale de Jezrael e pelo controle das rotas comerciais do norte.
Internamente, porém, esses grupos representam movimentos de conquista das terras baixas e
da população aí residente. O enfrentamento da casa de Saul contra o Egito, e o governo de
Jeroboão I, no séc. X, constituem a fase final de sucessivas lutas contra a presença egípcia em
Canaã;
d) a libertação do Egito – memória do Êxodo – está implicitamente ligada à
constituição do reino de Israel Norte. Pouco tempo após a campanha de Sheshonq I, o Egito
se retira de Canaã (por motivo desconhecido), abrindo espaço para a consolidação do reino de
Israel Norte, no início do séc. IX, quando os Omridas conquistam o vale de Jezrael.
Certamente, a retirada forçada do Egito foi celebrada como vitória pelos grupos
remanescentes de Saul e tantos outros, dando origem à memória da tão sonhada libertação do
faraó.
Assim, compreendemos o processo de fortalecimento dos grupos das montanhas
centrais de Canaã, especialmente o da casa de Saul (mas desde antes), a partir do planalto de
Gabaon-Betel, no final do séc. X, e seus confrontos com o Egito, como o contexto histórico
mais próximo da realidade por trás da tradição do Êxodo em Israel Norte, consolidada no séc.
VIII. Este nos parece o cenário por trás da memória do Êxodo no núcleo antigo da profecia de
Oseias e Amós, em alguns salmos originários do norte (RÖMER, 2015b) e inscrições
encontradas no sìtio de Kuntillet „Ajrud, que parecem fazer referência ao Êxodo (NA‟AMAN,
2011b; FINKELSTEIN, 2015b).

104
105

Não é possível dizer se já havia uma tradição nacional do Êxodo durante a dinastia
Omrida, embora não seja difícil imaginar algum tipo de celebração que exaltasse a autonomia
do estado nacional em relação ao Egito e a prosperidade do reino. Porém, só dispomos de
evidências consolidadas do Êxodo como tradição fundante de Israel Norte no séc. VIII.
Da compreensão do Êxodo como um processo de libertação do Egito em Canaã, surge
a necessidade de reler a expressão “subir do Egito” na fórmula tradicional do Êxodo, por
exemplo, em 1Rs 12,28. Na perspectiva deste estudo, essa expressão significava,
originalmente, na tradição de Israel Norte, luta contra a opressão egípcia, isto é, soberania
polìtica, e não deslocamento espacial de “saìda” da terra do Egito e “entrada” na terra de
Canaã.

4.1.2 A Fórmula Tradicional do Êxodo: “Subir do Egito”

De acordo com a versão do livro do Êxodo, os hebreus constituem um povo submetido


ao trabalho forçado na terra do Egito. Este povo, em determinado momento da história
(geralmente associado ao contexto do séc. XIII ou à época da expulsão dos hicsos do Egito),
liderado por Moisés, enfrentou o faraó e fugiu da “casa da servidão”. Durante a caminhada no
deserto, Moisés (e depois todo o povo), na montanha do Sinai/Horeb, sela um pacto com o
deus Javé, através de um ritual de aspersão de sangue de animal, recebe as tábuas de pedra
contendo os termos desta aliança e, finalmente, este grupo se torna o “povo de Javé”. Ao
longo da travessia do deserto, há uma série de desafios antes de entrar na “terra prometida”.
Nesta perspectiva, a memória do Êxodo implica, sim, o deslocamento espacial do povo de
Israel do Egito para Canaã e, provavelmente, reflete a época da redação josiânica, no séc. VII,
e releituras posteriores. No entanto, esta não é a única interpretação possível para a ideia de
“subir do Egito”.
Na perspectiva dos grupos das terras altas da região centro-norte de Canaã, como
vimos, o tema do Êxodo estava relacionado à ideia de uma mudança política, ou seja, de uma
condição de submissão para a de autonomia, o que não é acompanhada, necessariamente, por
movimento migratório. Tal mudança reflete, de certo modo, “um fenômeno político maior que
marcou a transição do estado de submissão ao Egito durante o período do Bronze Tardio
(1550-1150) para a fase de autonomia no Ferro I (1150-900)” (LIVERANI, 2008, p. 340).

105
106

Liverani apresenta textos hititas e citações de Amarna onde verbos de movimento, como
“entrar” e “sair”, descrevem mudança no status político.
Por exemplo, o rei hitita Shuppiluliuma faz referência à conquista da Síria central:

A cidade de Qatna com todos os seus bens, eu os fiz entrar na terra de


Khatti... Num só ano eu tomei e fiz entrar todas essas terras nas terras de
Khatti (ANET, p. 31841).

Outro exemplo, agora tirado das cartas de Amarna:

Todas as cidades (rebeldes) de que falei a meu senhor, sabe-o o meu senhor
se voltaram! Desde o dia da partida das tropas do rei meu senhor, tornaram-
se todas hostis (LA 169, de Biblos42).

Neste e em outros textos egípcios que descrevem a captura de populações inteiras ou


de conquistas territoriais, sem deportações, o uso de verbos que traduzem o chamado “código
motor” (entrar/sair), diz Liverani, designa mudanças de dependência polìtica (LIVERANI,
2008, p. 340).
Verbos hebraicos com sentido semelhante, como ‘lh (“subir”), shub (“voltar”) e yts’
(“sair”), que acompanham o tema do Êxodo em textos israelitas antigos, inicialmente, também
possuíam conotações metafóricas, e não implicavam deslocamento espacial da população.
Por exemplo, em Os 8,13; 9,3; 11,5.11; 12,2, a “volta” de Efraim/Israel para o “Egito”
ou para a “Assìria” é metafórica, no sentido de ser submetido novamente ao poder
estrangeiro, apesar de ser um povo livre: “Eles não habitarão na terra de Javé, Efraim voltará
(shub) ao Egito, na Assíria comerão coisas impuras.” (Os 9,3).
Kaefer também concorda que, na temática do Êxodo, o verbo ‘lh (“subir” ou “fazer
subir”, no hifil) era empregado na sua origem com o sentido de luta contra os egípcios, por
exemplo em 1Rs 12,28c e Ex 32,4b. O autor cita Zenger, que assim se expressa a respeito do
significado do verbo ‘lh (KAEFER, 2015a, p. 892):

A fórmula primitiva (‘lh) provavelmente não se contentou com a ideia de


uma simples caminhada sob o comando de Javé. Mas visava muito mais uma
ação de Javé ligada ao combate e à guerra, tanto em relação ao ponto de
partida (o Egito), quanto em relação ao ponto de chegada (Canaã). Foi só

41
ANET: abreviatura de Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. Cf.: PRITCHARD, J. B.
(org.). The Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. Nova Jersey: Princeton University
Press, 1969.
42
LA: abreviatura de Le Lettere die l-Amarna. Cf.: LIVERANI, M. Le Lettere di el-Amarna I-II. Brescia, 1998-
9, citado por LIVERANI, 2008, p. 340.
106
107

num estágio secundário que o significado, de origem tão concreta, da


fórmula (‘lh) foi estendido aos múltiplos eventos que demarcam o caminho
do Egito para Israel (ZENGER, 1996, p. 241).

Este também nos parece o melhor sentido da expressão “subir do Egito” (e suas
variantes) na tradição do Êxodo em Israel Norte, ou seja, uma expressão que traduz,
inicialmente, a memória de luta contra a dominação/presença do Egito em Canaã, e não
processo migratório de fora para dentro.
A mudança de sentido dos verbos ocorreu, ao que parece, após a conquista assíria da
Síria, de Israel Norte e Judá e com o começo das deportações em larga escala. As imagens de
tantos grupos de refugiados do norte que se deslocaram para o reino de Judá no final do séc.
VIII, assim como das deportações de Senaquerib no sul, que reduziram o território de Judá
praticamente a Jerusalém, no início do séc. VII, contribuíram decisivamente para a mudança
do significado dos verbos hebraicos. Neste sentido, a promessa divina do tipo “eu vos farei
subir para uma terra boa e vasta” também está de acordo com as garantias do governo assìrio
de dar a quem se submete a possibilidade de ir habitar numa terra fértil e produtiva
(LIVERANI, 2008, p. 205).
Assim, no contexto do final do séc. VIII e início do séc. VII, os verbos hebraicos
traduzidos por “subir” (’alah), “sair” (yatsa’), “voltar” (shub) adquiriram o sentido “real” de
movimento migratório de pessoas e povos, embora conservassem o valor ético-político. Como
resultado da mudança de conotação dos verbos, a tradição do Êxodo passou a ser interpretada
como descrição de uma migração de dentro para fora do Egito.
A associação da fórmula de “saìda do Egito” com o sentido de deslocamento espacial
de grandes populações foi reforçada nos períodos do exílio da Babilônia e no início do pós-
exílio, fazendo com que a ideia antiga de “saída” (metafórica) do Egito se tornasse
antecedente para o retorno (deslocamento espacial) dos deportados para Judá no tempo dos
autores tardios (Jr 23,7-8; 16,14-15). A fórmula do Êxodo foi também aplicada à saída de
Abraão de Ur dos caldeus (“Sou eu o Senhor que te fez sair de Ur dos Caldeus para dar-te esta
terra em posse”, Gn 15,7).
Assim, o Êxodo passa a constituir um mito étnico, que legitima, ideologicamente, a
posse da terra de Canaã, na medida em que fala da chegada de fora e da conquista armada, em
cumprimento da promessa divina (LIVERANI, 2008).
Nadav Na‟aman acrescenta que a “transferência de memória” para o Egito explica, nas
narrativas bíblicas, a omissão da memória da longa ocupação egípcia em Canaã. Argumenta o
autor que as memórias de sofrimento e escravidão sob a presença egípcia em Canaã foram
107
108

substituídas pela “memória de conquista”, o que reflete o caminho por meio do qual a antiga
sociedade israelita procurou apresentar seu passado (NA‟AMAN, 2011a).
Essas imagens de entrada e saída do Egito, no séc. VII, ligam-se também a histórias
antigas de migrações de pastores da região árida do sul, entre o Sinai e o delta do Nilo, a
histórias de trabalho forçado de grupos de semitas nas construções do faraó Ramsés II e a
movimentos mais recentes de refugiados entre Judá e Egito, no processo de formação da
memória da cultural do Êxodo no Reino do Sul. A opressão egípcia é uma história comum em
toda Canaã, por séculos, e isso fará do Êxodo um tradição unificadora, com a qual todos os
grupos se identificam, do norte e do sul, em diferentes períodos.
Pouco a pouco, a expressão “subir do Egito” deixa de ser entendida como metáfora de
submissão/libertação ao/do poder estrangeiro, passa a representar a imagem de deportações
antigas e recentes, até se tornar memória fundante de todo Israel, norte e sul, a partir do séc.
VII, provavelmente durante o governo de Josias (640-609), rei de Judá (cf. RÖMER, 2015b).
As memórias de resistência dos grupos das montanhas centrais contra o Egito podem
ter sido guardadas nas regiões de Betel e Siquém, por exemplo, e foram unidas às histórias
das lutas dos grupos das planícies contra a opressão egípcia nas terras baixas do norte
(FINKELSTEIN, 2015b), sobretudo a partir de quando os Omridas tomaram o vale de Jezrael.
Note-se que, na tradição do Êxodo em Israel Norte não aparece a figura de Moisés 43, porém,
ao longo do processo de recepção, e de acordo com a forma final do livro de Reis, a história
de Jeroboão I muito se assemelha à de Moisés (ALBERTZ, 1999).
A memória da luta contra o Egito, preservada e transmitida pela tradição oral, teria
sido posta por escrito já no séc. VIII, tornando-se o Êxodo tradição fundante de Israel Norte,
provavelmente durante o reinado de Jeroboão II.

43
Geralmente, a configuração da personagem Moisés na narrativa do livro do Êxodo é associada a Sargon II
(721-705), rei da Assíria, durante o período de dominação de Judá.
108
109

4.2 O ÊXODO E A MONARQUIA EM ISRAEL NORTE

Vinculamos a tradição do Êxodo ao processo de fortalecimento dos núcleos político-


territoriais governados pelos homens fortes das montanhas da região centro-norte de Canaã,
no séc. X: primeiro no planalto de Gabaon-Betel, depois em Siquém-Tersa e, finalmente, em
Samaria. Destacamos o crescimento da entidade Saulida, a ponto de ser considerada uma
ameaça aos interesses do faraó Sheshonq I em Canaã. Neste sentido, foi a formação de uma
unidade político-territorial forte que fez com que o Egito se sentisse ameaçado a ponto de
empreender uma campanha militar a esta região em particular, na segunda metade do séc. X.
De fato, após a retirada forçada do Egito de Canaã, em pouco tempo, consolidou-se o reino de
Israel Norte, sob o governo dos Omridas, no início do séc. IX. Assim, é possível compreender
que a memória da libertação do Egito (o Êxodo) tenha servido à propaganda emblemática da
vitória do estado nacional contra o seu arqui-inimigo, após séculos de sofrimento e
humilhação.
Os dois períodos de maior desenvolvimento do reino de Israel Norte correspondem um
ao governo dos Omridas, na primeira metade do séc. IX, e o outro ao governo de Jeroboão II,
na primeira metade do séc. VIII. O período intermediário corresponde ao domínio de Aram-
Damasco (com a ascensão de Hazael em 842), que durou cerca de sessenta anos. Note-se que,
paradigmaticamente, assim como o governo dos Omridas seguiu à retirada do Egito, o
fortalecimento do reinado de Jeroboão II está ligado à vitória sobre Damasco.
É provável que, no séc. IX, houvesse algum tipo de celebração da memória da tão
sonhada libertação do Egito, sobretudo em virtude do crescimento de Israel Norte à época dos
Omridas. Porém, não dispomos de evidências textuais da memória do Êxodo nesse período.
No séc. VIII, durante o reinado de Jeroboão II (783-743), a profecia de Oseias e
Amós, alguns salmos originários do norte e inscrições do sìtio de Kuntillet „Ajrud atestam a
tradição do Êxodo-Deserto como memória consolidada, tradição fundante de Israel Norte.
Assim, a partir do contexto político-religioso da monarquia em Israel Norte, sobretudo
à época do reinado de Jeroboão II, mas com algumas referências ao reinado dos Omridas,
apresentamos o Êxodo na tradição profética e o Êxodo como instrumento de propaganda do
rei (Jeroboão II).

109
110

4.2.1 O Contexto Político-Religioso da Monarquia

Os reinados dos Omridas e de Jeroboão II representam os períodos de maior expansão


militar, territorial e comercial de Israel Norte 44. Uma das principais fontes de recursos do
Reino do Norte é a força de trabalho numa região densamente povoada (FAUST, 2000).
Vastos vales férteis para o plantio de cereais, encostas propícias ao cultivo de videiras e
oliveiras e diversas fontes d‟água favoreceram o assentamento de uma população
heterogênea, formada por grupos cananeus locais, grupos que vieram das montanhas para a
planície, arameus, fenícios e moabitas, entre outros. O desenvolvimento da região norte
também se beneficiou do entroncamento de estradas cujo controle abria oportunidades de
lucro no comércio inter-regional.
A participação de Israel no comércio inter-regional exigia cada vez mais uma
quantidade maior de produtos do campo, especialmente vinho, trigo e azeite, em troca de
artigos de luxo e equipamento militar. Para garantir a produção necessária ao abastecimento
do mercado exterior, o rei e a elite urbana começam um processo crescente de acumulação de
terras, reservadas exclusivamente para o plantio de um ou dois produtos de comercialização.
Esse processo de “latifundização” e o enriquecimento da elite urbana, por sua vez, custavam a
desapropriação e o empobrecimento das famílias camponesas, cujas terras eram consideradas
inalienáveis (KEEFE, 2003).
Outro fator típico dos períodos de grande desenvolvimento das nações é a política de
alianças internacionais. Durante o reinado dos Omridas, Israel aliou-se a Tiro-Fenícia e, no
governo de Jeroboão II, à Assíria e ao Egito.
Israel também foi o principal fornecedor de cavalos egípcios para carros de guerra para
as nações do norte, tanto no tempo dos Omridas, quanto na época de Jeroboão II
(FINKELSTEIN, 2015b).
Ao sul, o Reino do Norte estendeu seus domínios para além do rio Jordão. No tempo
da dinastia Omrida (primeira metade do séc. IX), lucrou com o controle de Khirbet en-Nahas,
o maior e mais importante centro de produção de cobre no Levante entre os sécs. XI e IX,

44
O Selo de Meguido, descoberto em 1904 por Gottlieb Schumacher, onde se lê “Sema servo de Jeroboão”,
provavelmente pertenceu a um ministro do rei Jeroboão II, cuja história se encontra em 2 Rs 14,23-29 (Aharoni,
1998, p. 103). Cf. HUBNER, M. M. Êxodo: História ou Conto de Fadas? Em: Revista Vértices, n. 10. 2011,
FFLCH-USP. Disponível em: http://revistas.fflch.usp.br/vertices/view/26. Acesso em 08/10/2015.

110
111

localizado na região árida ao sul do Mar Morto. À época de Jeroboão II, embora Israel não
contasse mais com a produção do cobre, ele se beneficiou com o lucrativo comércio árabe na
região do deserto, como evidencia o sítio de Kuntillet „Ajrud, na região de Kadesh Barnea, no
Sinai (FINKELSTEIN, 2015b).
O desenvolvimento econômico, por sua vez, repercute no sistema religioso de
compreensão e representação do mundo. A dimensão religiosa da vida israelita estava
profundamente enraizada na estrutura da “casa”, na relação entre famìlia e terra e num sistema
de intercâmbio, troca e solidariedade, baseado nos vínculos de parentesco e de proximidade.
Essa era a matriz essencial do pensamento religioso no antigo Israel das montanhas (KEEFE,
2003).
Assim, à medida que a economia de subsistência de Israel, baseada no clã e na aldeia,
é transformada progressivamente em uma economia comercial, impulsionada pelo mercado
inter-regional, a estrutura da casa é ameaçada e se rompe. A transformação dos processos de
produção e de troca, e a ruptura das relações entre casa/família e terra, devido à
desapropriação e latifundização, significou, sobretudo no séc. VIII, além da crise social, a
perda dos referenciais (simbólicos) de auto compreensão da comunidade (KEEFE, 2003).
Neste contexto de exploração e opressão da monarquia, a memória profética da
libertação do Egito tornou-se um importante elemento para a reconstrução da identidade e do
tecido social, sobretudo no séc. VIII, durante o reinado de Jeroboão II.

4.2.2 O Êxodo e a Tradição Profética

A memória do Êxodo-Deserto emerge na profecia de Oseias e Amós contra a


exploração e opressão interna da monarquia no séc. VIII, decorrentes, principalmente, das
alianças comerciais internacionais: “Mas ela não reconheceu que era eu quem lhe dava o
trigo, o mosto e o óleo (...)” (Os 2,10); “Efraim é como uma pomba ingênua, sem inteligência,
pedem auxìlio ao Egito, vão à Assìria” (Os 7,11); “(...) Efraim voltará ao Egito, na Assìria
comerão coisas impuras” (Os 9,3); “Quando Israel era um menino, eu o amei e do Egito
chamei meu filho” (Os 11,1); “Mas Javé fez Israel subir do Egito por intermédio de um
profeta (...)” (Os 12,14); “Mas eu sou Javé teu deus, desde a terra do Egito (...) Eu te conheci
no deserto (...)” (Os 13,4.5).

111
112

Assim, na profecia de Oseias, a memória da libertação do Egito constituía uma crítica


à política do rei de desapropriação das terras das famílias camponesas, o que representava
uma forma de opressão e escravização interna, uma “volta” ao Egito, sobretudo durante o
reinado de Jeroboão II.
Neste sentido, a condenação do “touro jovem” dos santuários de Betel e Samaria, era
uma crítica às estruturas da monarquia, representadas (metonimicamente) pelo símbolo
cultual nacional (o “touro jovem”), nas liturgias do rei (Os 8,4-6; 10,7-8.15).
Porém, por outro lado, a tradição do Êxodo foi apropriada pela monarquia, servindo
como propaganda de vitória do estado contra seus inimigos, ou de incentivo a conquistas
militares, em tempos de prosperidade.

4.2.3 O Êxodo e a Propaganda do Rei

A tradição do Êxodo-Deserto encaixava-se muito bem como propaganda da


monarquia, sobretudo, no séc. VIII. O reinado de Jeroboão II certamente podia se “beneficiar”
de uma memória que afirmava a soberania política e apontava para tempos de paz e
prosperidade.
Em santuários nacionais como os de Betel, Dã e Samaria, o culto oficial a Javé estava
associado ao Êxodo em celebrações, durante as quais deviam acontecer aclamações do tipo:
“Eis teus deuses, Israel, que te fizeram subir da terra do Egito!” (1Rs 12,28). Provavelmente,
eram festas suntuosas, que serviam como demonstração de grandeza do governo de Jeroboão
II45.
Neste sentido, uma fonte importante sobre a tradição do Êxodo-Deserto em Israel
Norte, na primeira metade do séc. VIII, são as inscrições e desenhos do sítio de Kuntillet
„Ajrud.

45
Sobre a relação entre o símbolo do touro jovem, os rituais de fertilidade e a política agrária do governo de
Jeroboão II, ver KEEFE, 2003, p. 100.
112
113

4.2.4 Kuntillet „Ajrud

Kuntillet „Ajrud é um sìtio fundamental para entender a tradição do Êxodo em Israel


Norte no séc. VIII, as memórias do Deserto em Oseias e Amós, o culto a Javé no Reino do
Norte e o desenvolvimento da escrita. As inúmeras inscrições que ali foram encontradas
atestam um estágio avançado da escrita, o que leva a considerar a possibilidade de compilação
dos textos bíblicos norte-israelita neste período (KAEFER, 2016b).
De acordo com os testes de radio carbono, o sítio foi construído entre 820 e 795 e
abandonado depois de 745, portanto seu período de atividade situa-se durante o reinado de
Jeroboão II (783-743) (FINKELSTEIN; PIASETZKY, 2008).
Localizado no deserto do Sinai, perto de Kadesh Barnea, as circunstâncias geopolíticas
em torno de Kuntillet „Ajrud estão ligadas à prosperidade e ao declìnio de Dharb el-Ghazza,
uma importante estrada para o lucrativo comércio árabe no sul. A construção do sítio deve ter
ocorrido no tempo de Joás, rei de Israel, provavelmente em conjunção com Judá (que era
dominada por Israel, 2Rs 14,8-14), sob os auspìcios da Assìria (NA‟AMAN, 2011b), e se
expandido nos dias de Jeroboão II (2Rs 14,25).
Há uma grande variedade de desenhos e inscrições descobertas em Kuntillet „Ajrud,
que demonstram o alto grau de envolvimento da monarquia israelita no deserto do Sul.
Por exemplo, entre os desenhos, há uma pintura de gesso na parede de entrada que
mostra um homem sentado sobre o trono, segurando uma flor de lótus. A interpretação usual
tem sido a de que se trata de “o rei de Israel ou de Judá”, fundador do sìtio.
Há também o desenho de duas divindades, uma das quais com o pé direito tocando na
imagem de uma vaca amamentando seu filhote (KAEFER, 2016b).
Apresentamos, abaixo, algumas das inscrições de Kuntillet „Ajrud, seguindo a
tradução e o comentário de Nadav Na‟aman (NA‟AMAN, 2011b).
As inscrições na pedra e na argila incluem vários nomes, alguns com o elemento
teofórico yw, sugerindo que eles eram originários do reino de Israel, não de Judá.
Três inscrições em jarras com as letras lsr‘r são interpretadas como “para/de o
governador da cidade”. Não sabemos, porém, a que cidade se refere ou a relação do dito
“governador da cidade” com o sìtio de Kuntillet „Ajrud.
Além dessas, há outras inscrições:

113
114

Inscrição da Pithos46 A:

Mensagem de ‟[xx], „o amigo do rei‟. Fala para Yahel[yo], e para Yo„asa, e


para [...]. Eu abençoei você por Yhwh da Samaria e Asherata. (NA‟AMAN,
2011b, p. 302)

A expressão “o amigo do rei” ocorre em textos bìblicos, como 2Sm 15,37; 16,16; 1Rs
4,5; 1Cr 27,33, e é mencionada em vários documentos do antigo Oriente Próximo. „O amigo
do rei‟ era provavelmente um conselheiro e assistente confiável do rei.

Inscrição na Pithos B:

Mensagem de ‟Amaryo: Diga ao meu senhor. Você está bem? Eu abençoei


você por Yhwh de Teman e Asherata. Ele pode abençoar você e pode
guardar você, e Ele pode ser/estar com o senhor de sua casa (d’n bytk).
(NA‟AMAN, 2011b, p. 303).

“Amaryo”, em nome de Javé, abençoa seu superior e o senhor da casa dos altos
oficiais – provavelmente o rei de Israel.
A referência a Yhwh de Samaria na Pithos A, assim como os nomes pessoais baseados
na forma teofórica Yo, indicam que os visitantes eram do reino de Israel. A Pithos B e outras
inscrições mencionam “Javé de Temã”, o deus da região sul de Judá.
Nota-se que Javé era associado a territórios particulares, o que sugere que era visto
como um deus local no séc. VIII. Ou seja, no séc. VIII, Javé ainda não era percebido como
um deus universal, senhor de toda a terra, mas um deus ligado a uma região especìfica: “Javé
de Samaria” era o deus da região de Samaria, “Javé de Temã” era o deus das regiões ao sul de
Judá e o “Deus de Jerusalém” era o deus das montanhas de Judá.

Abaixo da primeira inscrição da Pithos B:

Linha 1: msh‘? . moshia„. (NA‟AMAN, 2011b, p. 306).

Uma vez que as duas linhas acima incluem um pedido de bênção dirigido a Javé, em
favor do “senhor da sua casa”, possivelmente o rei de Israel, o termo em destaque tem sido
identificado como o “libertador”. Em 2Rs 13,3-5, por exemplo, é dito que “Yhwh deu um

46
Vaso ou pote grande de cerâmica, usado geralmente para armazenamento de grãos.
114
115

ungido, um meshiah (messias), que libertou Israel do rei de Aram”. O verbo ysh‘ (“libertar”)
aparece na referência a Joás e Jeroboão: para Joás, “um arco de vitória” sobre Aram (2Rs
13,17); e para Jeroboão, “e ele libertou-os através de Jeroboão, filho de Joás” (2Rs 14,27b).

Outra inscrição da Pithos B:

Ele abençoe você por Yhwh de Teman e Asherata. Tudo o que o „favorecido
do pai e de sua aljava‟ perguntou de um homem – YHW(H) dará a ele de
acordo com sua vontade. (NA‟AMAN, 2011b, p. 306).

Na interpretação de Na‟aman, o “pai” é Joás, pai de Jeroboão II, que é o rei atual de
Israel. A bênção é, provavelmente, para o rei Jeroboão II, que participou nas guerras do pai
contra os arameus. O escritor deseja a Jeroboão que tudo o que ele pediu sobre esse assunto
seja garantido por Javé.
O termo “aljava” é mencionado diversas vezes na Bíblia, sempre em contexto militar,
como na narrativa do ciclo de Eliseu sobre a vitória de Joás (2Rs 13,14-19; Is 22,6; 49,2; Jr
5,16; Sl 127,5; Jó 39,3; Lm 3,13). Este também parece ser o contexto da citação da “aljava”
na inscrição de Kuntillet „Ajrud.

Primeiro fragmento da inscrição de gesso:

Ele (deus) pode abençoar seus dias para que eles possam ter [abundância]
para comer [e...] recontem [elogios] para Yhwh de Teman e Asherata. Yhwh
de Te[man] fez bom [...], definiu o vinho e o figo árvore”. Yh[wh] de
Te[man] tem [...].(NA‟AMAN, 2011b, p. 308).

O texto apresenta “Javé de Temã” como o provedor de bênçãos para seus fiéis: comida
e pomares. A referência às vinhas e figueiras indica que os fiéis chegaram de regiões
cultivadas, mas, enquanto estão no sul, atribuem o sucesso ao deus patrono local.

Segundo fragmento da inscrição de gesso:

[...] no terremoto. E quando Deus resplandeceu na cimeira da [...] e as


montanhas derreteram e as corcundas esmagadas [...] [...] ele pisou a terra
sobre as pedras, afastou-se e pisoteou ... [...] ele preparou para abençoar o
Senhor do dia da batalha [...] [...] em nome de Deus no dia da batalha
[...].(NA‟AMAN, 2011b, p. 309).

115
116

A linguagem da revelação de Javé é semelhante a textos bíblicos, como Dt 33,2; Jz


5,4-5; Mq 1,3-4; Hab 3,3-6; Sl 97,2-5.
Nas linhas de abertura, deus socorre “O abençoado/bendito do Senhor” em uma guerra
travada “em nome de deus”, como no Cântico de Débora (Jz 5), que abre com uma teofania
(v. 4-5) e segue com Javé no papel de liderança na vitória sobre os canaanitas (v. 19-21.31).

Terceiro fragmento da inscrição de gesso:

[...t]endas de Is[rael] Seu nascimento, e ele [...] Um pobre e oprimido filho


de uma carente, uma pobre pessoa... as roupas deles são sujas, a roupa dele
contaminada com sangue... Montão de água passou e o mar secou até [...]
Um anjo em chamas em um ano de peste, fome e desolação, a lança
destruída, falsidade e engano [...].(NA‟AMAN, 2011b, p. 310).

A cena nos faz lembrar a travessia do Mar de Juncos ou a travessia do Jordão para
entrar em Canaã.
Na opinião de Na‟aman, trata-se de uma versão norte-israelita antiga da narrativa do
Êxodo, no séc. VIII, que foi, posteriormente, desenvolvida e teologizada no Reino de Judá, no
séc. VII e em releituras posteriores (NA‟AMAN, 2011b).
Resumindo, os desenhos e inscrições de Kuntillet „Ajrud apresentam os seguintes
elementos: a) a figura de um governante, provavelmente o rei de Israel, sentado no trono e
segurando uma flor de lótus, pintada na parede de entrada do edifício; b) a figura de uma vaca
amamentando um bezerro; c) um hino em escrita (prestigiosa) fenícia que descreve a teofania
de um deus, aparentemente Javé, invocado para socorrer o rei na guerra; d) um fragmento de
narrativa de uma possível versão antiga do Êxodo; e) a presença de alto funcionário da realeza
(“o amigo do rei”) no sìtio; f) uma bênção para “o senhor da tua casa”, provavelmente o rei de
Israel; g) possìvel alusão a Joás e Jeroboão como reis “ungidos” ou “libertadores”; h) uma
possível referência a Jeroboão II, na inscrição “o favorecido do pai e sua aljava”; i) culto local
a Javé, conforme as inscrições “Javé de Samaria”, “Javé de Temã”; j) e culto a casal de
divindades (Javé e Asherá).
Sobre a causa do declìnio de Kuntillet „Ajrud é possìvel conjecturar a seguinte
hipótese: havia duas rotas para o comércio árabe com a costa do Mediterrâneo: uma pela
estrada Edom-vale de Bersabeia, mais curta e mais árida; e outra por Dharb-el Ghazza. No
final do séc. VIII, especialmente nos dias de Sargon II (722-705), a Assíria optou pela rota
edomita, e construiu fortalezas em Tell el-Kheleifeh e „Em Hazeva e um complexo

116
117

administrativo em Buseirah, para assegurar maior controle sobre a região. Paralelamente, os


assírios subjugaram algumas tribos árabes do deserto do sul e provavelmente fizeram acordos
com outras. O abandono da rota de Dharb el-Ghazza parece ter sido a razão para o declínio e
abandono de Kuntillet „Ajrud (FINKELSTEIN, 2008).
As inscrições e desenhos nos levam a concluir que Kuntillet „Ajrud é um lugar
estabelecido e mantido pelo rei de Israel, provavelmente Jeroboão II 47, onde foram
encontrados vários indícios de uma tradição norte-israelita do Êxodo já consolidada no séc.
VIII. Por exemplo, há várias expressões que sugerem o contexto de luta e vitória na guerra,
por exemplo: “ungido” ou “libertador”; “aljava”, “dia da batalha” (duas vezes); “a lança
destruìda”; roupas sujas e manchadas de sangue (?); “peste, fome e desolação” (?). Chama à
atenção que, segundo as interpretações já aludidas, o rei (Jeroboão II) seria o “ungido” por
Deus, o “libertador” de Israel, uma vez que foi ele quem assegurou a vitória a Israel na guerra
contra o rei de Aram-Damasco, após décadas de submissão.
Várias inscrições também atestam que o deus tutelar do Reino do Norte no séc. VIII é
Javé, por exemplo: a citação “Javé de Samaria e Asherá”; as diversas ocorrências do elemento
teofórico yw; e as atribuições tìpicas de uma divindade nacional, que é “ir à frente”, abençoar
“no dia da batalha” e prover o sustento (“vinho e o figo árvore”). Nos desenhos, Javé é
associado a imagens taurinas, como naquela cena de um casal de divindades, próximo à
imagem da vaca amamentando seu filhote.
Ou seja, temos em Kuntillet „Ajrud várias alusões ao Êxodo, ao culto a Javé e ao
símbolo do touro.
A representação do touro relativa ao Javé de Samaria expressa a força de um reino
poderoso e a fertilidade de suas prósperas terras. Essas características e o símbolo do touro
são tradicionalmente associados aos deuses El e Baal, na tradição de Ugarit, no norte (a
fertilidade é um atributo mais ligado a Baal).
Por outro lado, as formas de manifestação da divindade (teofanias) mostram Javé
como um deus que faz tremer (“terremoto”), um deus das montanhas (“montanhas derretidas
e as corcundas esmagadas”); um deus que tem poder sobre o “montão de água e o mar secou”;
um deus solar, “resplandecente”, como um “anjo em chamas”. Tais caracterìsticas, comuns
em textos como Dt 33,2; Jz 5,4-5; Hab 3,3.7, são próprias de um “deus da montanha, em
movimento, similar ao sol, de leste a oeste” (KAEFER, 2015a, p. 897). Essas características

47
Sobre as hipóteses acerca da natureza do sìtio de Kuntillet „Ajrud, ver: NA‟AMAN; LISSOVSKY, 2008,
p.186-208.
117
118

são semelhantes às de um deus do deserto do Sinai ou do sul da Transjordânia, na região de


Temã/Edom48.
Kuntillet „Ajrud, além de ser um referencial extra bìblico da memória do Êxodo, é um
sítio importante para compreender a origem da tradição do Deserto na profecia norte-israelita
do séc. VIII. Muitas narrativas sobre o deserto devem ter sido conhecidas em Kuntillet „Ajrud
nessa fase de forte envolvimento nas rotas comerciais árabes da região do Sinai. É possível
que a tradição do Êxodo, que já estava bem sedimentada em Israel Norte nesse tempo,
particularmente na Samaria, tenha-se misturado às narrativas do deserto e tenha sido ampliada
por elas.

4.2.5 O Êxodo e a Tradição do Deserto

Há uma longa história de enfrentamentos violentos entre o Egito e a população de


Canaã, desde o séc. XVI até o séc. X. Essas memórias se acumularam gradualmente e se
desenvolveram em forte tradição de “libertação do governo do Egito” entre os povos da
região. As raízes dessas tradições foram localizadas provavelmente nas terras baixas. No séc.
X, elas foram importadas para a parte norte das montanhas centrais, onde se tornaram um dos
mitos de fundação do Reino de Israel, como temos visto ao longo desta dissertação. Mas,
como explicar as tradições do Deserto do Sinai e do sul da Transjordânia em Israel Norte e
sua ligação com o Êxodo, conforme a profecia de Oseias e Amós, no séc. VIII, em uma terra
fértil e com abundantes fontes de água?
É verdade que, desde o séc. IX, há indicações do envolvimento de Israel Norte na
produção de cobre da região de Arabá. O núcleo antigo das narrativas de Elias e Eliseu pode
conter memórias do Deserto. A estela de Mesha, rei de Moab, datada por volta dos anos 840
a.EC, menciona a retomada de Atarot e de outros territórios transjordanianos que foram
ocupados por Israel Norte durante o reinado dos Omridas. Porém, não temos evidência de
uma tradição de “caminhada no deserto” no séc. IX.

48
Essa diversidade de características relativas a Javé gera uma dificuldade ainda maior a propósito da origem do
culto a Javé em Israel Norte. A tendência atual tem sido a de que Javé é uma divindade proveniente da região
árida do sul, Madiã/Temã/Edom (RÖMER, 2015b). Um dos argumentos dos defensores dessa posição é que o
nome de Javé não aparece na lista do panteão de Ugarit. Por outro lado, a forte influência de El e Baal na
tradição norte-israelita do culto a Javé nos instiga a levantar a hipótese sobre a existência de um culto periférico
a um Javé proveniente do Norte, talvez originário de Ebla, Ugarit ou Mari (?). Tal investigação, porém, extrapola
o limite desta dissertação.
118
119

Contudo, o sìtio de Kuntillet „Ajrud e a rota de comércio árabe de Dharb el-Ghazza,


como vimos, podem ser uma importante referência sobre a origem da tradição do Deserto no
séc. VIII.
Funcionários e oficiais de Samaria, prestando serviço em Kuntillet „Ajrud, devem ter
tomado conhecimento de itinerários e histórias do deserto, como o que aparece na lista de Nm
33.
Os lugares mencionados em Nm 33 não aparecem nas narrativas dos livros de Êxodo-
Números, nem nos itinerários do livro do Deuteronômio, por exemplo: Dophkah e Alush, v.
12-14; os 12 lugares de Rithmat a Hashmonah, v. 18-30; Abronah, v. 34-35; Zalmonah e
Punon, v. 41-43. Exceto Punon, nenhum desses lugares pode ser identificado. Esses nomes
provavelmente advêm de uma fonte diferente e independente do séc. VIII, acessível a Israel
Norte, que não chegou ao conhecimento dos redatores judaítas ou esses lugares não foram
considerados relevantes para Judá, no séc. VII (FINKELSTEIN, 2015a).
Provavelmente, essas memórias independentes do Deserto chegaram ao conhecimento
de Samaria, no séc. VIII, e lá foram ligadas à tradição do Êxodo, a fim de fortalecer a unidade
do reino.
Após a invasão assíria em 722, muitos refugiados do sul de Samaria fugiram para
Jerusalém, trazendo suas tradições. As memórias do Deserto foram relidas por Judá, quando,
sob a dominação da Assíria (730 a 630), o Reino do Sul intensificou suas atividades no
deserto.
Com a queda da Assíria, mudou novamente a situação geopolítica. Judá perdeu as
fortificações através das quais controlava a rota do deserto (por exemplo, Kadesh Barnea, En
Hazeva, Khelleifeh e Buseirah. Muitas regiões governadas pela Assíria ficaram sob o controle
da 26ª dinastia do Egito. Nesse período, os interesses expansionistas de Josias, rei de Judá, e
de Necao, rei do Egito, entraram em colisão. Elementos da tradição do Êxodo-Deserto de
Israel Norte são, então, relidos a partir da perspectiva de Judá, no séc. VII (e em contextos
posteriores).
A partir de Kuntillet „Ajrud, podemos supor que memórias independentes da tradição
do deserto do Sinai e do sul da Transjordânia chegaram à Samaria, onde foram ligadas à
tradição do Êxodo, já consolidada em Israel Norte, fortalecendo a unidade do reino de
Jeroboão II, e servindo de base à profecia de Oseias e Amós. Ou seja, a tradição do Deserto
não estava ligada às origens da tradição do Êxodo no séc. X.

119
120

Por fim, resta mencionar, ao lado da tradição do Êxodo-Deserto, outra tradição


fundante de Israel Norte, a tradição de Jacó.

4.2.6 O Êxodo e a Tradição de Jacó

De acordo com Os 12, podemos depreender a coexistência de duas narrativas sobre as


origens de Israel Norte no séc. VIII, a tradição do Êxodo-Deserto e a tradição de Jacó. O texto
de Oseias, contudo, reivindica a primazia do Êxodo, e da memória profética, como tradição
fundante de Israel, em oposição à tradição de Jacó: “Mas Javé fez Israel subir do Egito por
intermédio de um profeta e por intermédio de um profeta ele foi guardado” (Os 12,14) (DE
PURY, 2006).
O ciclo antigo da tradição de Jacó, no livro do Gênesis, trata da delimitação de
fronteiras “saulidas/israelitas” em Galaad (Gn 31,44-49), próximo aos territórios arameus. E
está ligado à fundação de Fanuel (Gn 32,23-32), na Transjordânia, e de santuários no território
do futuro reino de Israel Norte, como Betel (Gn 28,11-22) e talvez Siquém (Gn 33,20). Em
Gn 35,1-15, Jacó passa a ser chamado “Israel”, e Betel é citado como lugar de manifestação
de El, o deus de Jacó. De acordo com a tradição de Jacó, podemos depreender que o culto a El
em Betel é anterior ao culto a Javé. E também que, na tradição dos “filhos de Jacó”,
cultuavam-se uma ou várias manifestações do deus El.
A tradição de Jacó dizia respeito, inicialmente, a memórias de família, a dos chamados
Bene Ya‘aqob (“filhos de Jacó”); “Jacó” ainda não era considerado ancestral de Israel (DE
PURY, 2006, p. 54). Provavelmente, o grupo de Jacó cultuava o deus El, e suas origens
reportam-se ao séc. X, na fase de expansão da área do rio Jaboque (como vimos, vários sítios
dessa região são mencionados no relevo de Karnak, por ocasião da campanha militar de
Sheshonq I).
A datação do núcleo antigo da tradição de Jacó no séc. X é defendida por Finkelstein,
uma vez que o ciclo de Jacó não cita as regiões que foram incorporadas a Israel à época do
reinado dos Omridas ou de Jeroboão II, como os vales do norte ou os territórios aramaicos a
leste, além de Masfa de Galaad. E também não menciona Silo, que foi destruído por volta de
1050 (FINKELSTEIN, 2015b; FINKELSTEIN; RÖMER, 2014; RÖMER, 2010).

120
121

As relações entre Israel Norte e os territórios transjordanianos são atestadas desde as


origens do reino de Israel, como vimos a propósito da entidade político-territorial governada
pela “casa de Saul”, no séc. X. Assim, é compreensìvel que a tradição de Jacó fosse conhecida
e assumida em Israel. Talvez até tenha sido difundida no santuário de Betel por Jeroboão II,
no intuito de favorecer a unidade entre as diferentes tradições de seu vasto reino, tal como
vimos em relação às memórias do deserto do Sinai49. Neste sentido, a referência à fortificação
de Fanuel em 1Rs 12,25, por exemplo, poderia ser uma iniciativa de Jeroboão II
(retroprojetada para o tempo de Jeroboão I), para exercer maior controle sobre a região 50
(FINKELSTEIN; KOCH; LIPSCHITS, 2011). Portanto, tudo indica que o núcleo antigo do
ciclo de Jacó já teria sido compilado no Reino do Norte na primeira metade do séc. VIII
(FINKELSTEIN, 2015b).
Porém, tal como podemos depreender da leitura de Os 12, há uma reivindicação de
certo grupo de que Javé teria feito Israel subir do Egito por intermédio de um profeta e por
intermédio de um profeta ele seria guardado (Os 12,14). Essa reinvindicação, ligada à tradição
Êxodo neste texto de Oseias, representaria uma oposição a Jacó, afinal não seria o patriarca
Jacó quem libertou Israel do Egito. Jacó é claramente depreciado nos demais versículos do
referido capítulo.
Após a queda de Samaria, refugiados norte-israelitas levam suas tradições para
Jerusalém, onde as antigas histórias de Jacó são relidas, submetidas à tradição de Abraão e
suplantadas pela tradição do Êxodo, que se torna, então, o mito fundante de todo Israel, no
séc. VII. Isso pode ser atribuído ao fato de que a tradição de Jacó estaria mais ligada ao culto
a El e a tradição do Êxodo já estaria associada a Javé. Outra justificativa seria a de que a
retomada da tradição norte-israelita do Êxodo-Deserto seria mais adequada aos propósitos
expansionistas do reinado de Josias (640-609), especialmente no contexto de luta contra o
Egito da 26ª dinastia.
O Êxodo, além de constituir um referencial político-social na tradição de Israel,
também constitui um referencial teológico. A seguir, concluímos este capítulo com a
apresentação do Êxodo-Deserto na tradição do culto a El/Javé em Israel Norte.

49
Compreendemos, contudo, que o processo cultural de transmissão e assimilação de memórias não se restringe
à intencionalidade política de um governo.
50
Visto que os sítios em torno da área do rio Jaboque foram citados na campanha de Sheshonq I no final do séc.
X, assim como vários sítios do planalto de Gabaon-Betel, todos ligados à casa de Saul, é possível que a narrativa
do livro de Reis seja uma retroprojeção do período de Jeroboão II, tal como vimos em relação à referência a
Betel e Dã (1Rs 12,29), que também fazem parte da atividade construtora de Jeroboão I, de acordo com a
redação deuteronomista. Embora não haja dados precisos sobre a datação do sítio de Fanuel, diríamos que, por
analogia à datação de Betel e Dã, cujos dados estão bem definidos, a fortificação de Fanuel pode ter ocorrido no
séc. VIII.
121
122

4.3 O ÊXODO E A TRADIÇÃO DO CULTO A EL/JAVÉ EM ISRAEL NORTE

A partir da leitura de 1Rs 12,28-29, depreendemos a relação entre a divindade do


Êxodo, o símbolo cultual do touro jovem (’egel) e os santuários do rei, como Betel e Dã.
Contudo, não é usado o nome “Javé” (Yhwh) nesses versículos, e sim o termo hebraico
’eloheykha (“teus deuses”).
Uma dificuldade em relação à interpretação do uso do nome El na Bíblia Hebraica, ou
da forma plural ’elohim (“deuses”), é que tanto pode constituir referência a antigo culto ao
deus El, quanto se encaixa em textos tardios que usam el de modo genérico ou universal,
equivalente a “deus”, e geralmente identificado com “Javé” (RÖMER, 2015b).
Neste sentido, Albertz e Römer interpretam a expressão ’eloheykha (“teus deuses) em
1Rs 12,28 (e Ex 32,4) como referência a Javé, o deus do Êxodo. Os autores justificam-se
dizendo que a polêmica com a tradição norte-israelita do culto impede o uso do tetragrama
Yhwh neste texto (ALBERTZ, 1999; RÖMER, 2015b).
O mesmo argumento é usado em relação a textos do livro de Números onde aparece o
nome El associado ao Êxodo. Em Nm 23,22, lê-se: “El, o que os fez sair do Egito, seus
chifres são como os de touro selvagem (r’m)”. E em Nm 24,8: “El, o que o fez sair do Egito,
seus chifres são como os de touro selvagem”51. Normalmente, nesses versículos, El é
traduzido como “deus”, e somos levados a identificar a divindade do Êxodo com Javé
(RÖMER, 2015b).
No entanto, apesar do sentido genérico atribuído aos termos hebraicos el/ ‘elohim,
traduzidos por “deus” ou “deuses” nos textos acima, parece-nos que podemos reconhecer no
uso dessas expressões ecos de uma antiga tradição de culto ao deus El, representado na forma
de touro e associado, algumas vezes, ao Êxodo, em liturgias celebradas nos santuários do rei
(KAEFER, 2015a).

51
Tradução de Kaefer em: KAEFER, 2015a, p. 899.
122
123

4.3.1 O Deus El na Tradição de Israel

Diversas são as referências às manifestações e aos epítetos do deus El na Bíblia


Hebraica, por exemplo: em Gn 14,18-22, El Elyon (“El, o altìssimo”); apenas em Gn 16, El
Roi (note-se que o filho de Agar chama-se Ishmael, “El ouve”); em Gn 21, El Olam (“El da
eternidade”); em Gn 28,3; 35,11; 48,3; Ez 10,5; Jó, El Shadday (“El da montanha”, ou
“campo não cultivável”, onde se vive com dificuldade). El Shadday pode ter ligações com
regiões do deserto. Em Deir „Alla52, na Jordânia, há uma referência a Shadday, talvez como
uma divindade secundária, e em Temã foi achada uma inscrição que contém ’l shdy
(RÖMER, 2015b).
A importância das inúmeras referências ao deus El nas narrativas dos patriarcas,
inclusive entre as tribos árabes (descendentes de Ismael e de Qeturá (Gn 25) e edomitas
descendentes de Esaú), e as tentativas de identificar El com Javé sugerem a preservação de
memórias antigas do culto a El em Israel Norte, sob diferentes manifestações, antes de a
tradição do Êxodo ser atribuìda a “Javé”. Se as tradições de Jacó estão ligadas a grupos que
cultuavam El, e depois adotaram Javé, talvez a tradição do Êxodo também estivesse
inicialmente relacionada a El e depois foi atribuída a Javé.
Outro elemento que chama à atenção é a etimologia. O nome “Betel”, o segundo
santuário mais citado na Bíblia Hebraica, contém o elemento teofórico ’el e significa “casa de
El”. O santuário de “Fanuel”, na Transjordânia, ligado ao núcleo antigo do ciclo de Jacó no
livro de Gênesis e, depois, à atividade construtora de Jeroboão I (1Rs 12,25), também contém
o elemento teofórico El em seu nome, e significa “a face de El”, ou “diante de El”.
Ora, as regiões desses dois santuários – Betel e Fanuel – estão ligadas, nas narrativas
do livro de Samuel, à casa de Saul, cuja tradição, como dissemos, parece constituir o núcleo
da memória cultural do Êxodo na tradição de Israel Norte no séc. X, e esses santuários estão
associados, pela etimologia de seus nomes, ao culto ao deus El. Em todo caso, destaca-se
nessas referências o uso da partícula teofórica ’el (e não Ya ou Yo) em nomes de pessoas e
lugares ligados ao período formativo de Israel.
E o próprio nome “Israel” contém o elemento teofórico ’el. A etimologia do nome
“Israel” é controversa. Pode conter a ideia de “luta”, “combate” (Gn 32,9 e Os 12,4); de “ser
justo” Dt 32,15; 33,5.26); e de “reinar, governar, comandar, impor-se como chefe” (RÖMER,
52
Foram encontrados vários textos em Deir Alla do período entre 840-760, inclusive uma referência a um
profeta Balaão (Nm 22-24) (KAEFER, 2016b, p. 120).
123
124

2015b). Porém, em qualquer uma dessas possibilidades, a etimologia indica que os membros
do grupo “Israel”, em suas origens, sentiam-se vinculados ao deus “El”, e não ao deus “Javé”.
Em outras palavras: embora geralmente se diga que “Israel” é o “povo de Javé”, a partir da
etimologia, sugerimos que o culto a Javé em Israel teria ocupado, inicialmente, uma posição
secundária, provavelmente subordinado a El, talvez como um dos filhos de El (Sl 89,7-8), até
se tornar a divindade principal de Israel. Neste sentido, El seria a divindade a quem estaria
ligada a libertação do Egito, no contexto do final do séc. X.
Outra evidência que nos leva a considerar El como o deus do Êxodo (nas origens) é o
símbolo cultual do touro nos santuários norte-israelitas, distinto, por exemplo, da
representação dos querubins no santuário de Jerusalém.

4.3.2 O Símbolo do Touro

As evidências bíblicas e extra bíblicas do touro como símbolo cultual dentro e fora de
Canaã são vastamente atestadas, seja como representação da divindade, seja como pedestal
para uma divindade antropomorfizada.
Consideramos que, em Israel Norte, em consonância com as tradições religiosas
locais, cultuava-se uma divindade representada pelo símbolo do touro. No panteão de Ugarit,
que está na base da religião canaanita, o touro representava o deus El e/ou o deus Baal.
Parece-nos que, num primeiro momento, o culto a El, com a representação do touro,
coexistiu com o culto a Javé. Por fim, a partir da própria dinâmica da cultura religiosa, pouco
a pouco, o culto a Javé tornou-se principal (o que situamos já no período dos Omridas, no
início do séc. IX), mantendo, contudo, elementos do culto a El e Baal, tais como: o símbolo
do touro como forma de representação da divindade, os atributos de força e fertilidade 53, e
Asherá, consorte de El. Tanto os textos bíblicos quanto a iconografia atestam o culto ao touro
em Israel Norte.

53
Normalmente, o atributo de fertilidade era associado ao deus Baal.
124
125

4.3.2.1 Os textos bíblicos

De acordo com o redator deuteronomista, Jeroboão I é paradigmaticamente condenado


no livro de Reis porque teria fabricado duas estátuas de “touros jovens”, entronizando-as nos
santuários de Betel e Dã (1Rs 12,28-30).
O texto de 1Rs 12,28 é base de referência de Ex 32,4-5, que também apresenta o touro
jovem como o deus do Êxodo, retroprojetando a condenação da representação do touro para o
tempo do “Deserto”.
Textos como o de Dt 9,16; 2Rs 17,16; 2Cr 13,8; Ne 9,18 e Sl 106,19, entre outros,
também criticam com veemência a estátua do touro no culto norte-israelita. Neste sentido,
destaca-se a crítica da profecia de Oseias ao “touro jovem” no santuário de Samaria e Betel
(Os 8,5-6; 10,5-6.11; 13,2).
Textos do livro de Números relativos ao profeta Balaão associam o touro, o Êxodo e
El (RÖMER, 2015b; KAEFER, 2015a54). Não há teor condenatório nesses textos.
Outros textos bíblicos associam (positivamente) Israel com o touro. Em Dt 33,17, José
é “primogênito de seu touro, glória para ele. Seus chifres são chifres de touro selvagem. Com
eles ele chifra violentamente os povos até os confins da terra. E eles são as miríades de Efraim
e eles são os milhares de Manassés”. E em Gn 49,22, “Filho do touro é Efraim, filho do touro
junto à fonte. Filho daquela que caminha a par do touro” (KAEFER, 2015a, p. 887-891).
À parte a teologia/ideologia dos textos bíblicos acima citados, é inegável a existência
do culto ao touro em Israel Norte. Apesar das restrições à interpretação do nome ou elemento
teofórico ’el, em lugar do tetragrama Yhwh, parece-nos, contudo, que a possibilidade de
intercâmbio dos nomes El e Javé apoia-se numa antiga tradição do culto ao deus El,
representado na forma de touro, a quem foi atribuída a libertação do Egito, antes de Javé
tornar-se a divindade tutelar de Israel Norte (e Judá).

54
Na citação bíblica mantivemos a tradução conforme o artigo citado de Kaefer, no qual o autor analisa cada
uma das referências mencionadas: Ex 32,4; 1Rs 12,28; Os 8,4-7; Dt 33,13-17; Gn 49,22-26; Nm 23,22 e 24,8
(KAEFER, 2015a, p. 878-906).
125
126

4.3.2.2 A iconografia taurina

Além dos textos bíblicos, diversas representações iconográficas na forma de selos,


altares e estatuetas de touro foram encontradas em Canaã e nas regiões vizinhas, desde o
período do Bronze.
No norte das colinas de Samaria, no cume de um monte, num lugar de culto aberto
(bamah, 1Rs 14,23), a uns 10km a leste de Dotan, foi encontrada uma estatueta de bronze na
forma de touro, com 18 cm de comprimento, considerada um importante objeto de culto nesse
sítio (MAZAR, 2003).
Em Hazor, foram encontradas estatuetas de touro de 5,5 cm de comprimento. Em
Ugarit, uma estatueta (de 6,5 cm de comprimento) de um touro de pé; o objeto foi encontrado
junto com a estatueta de um deus sentado (identificado como El) e duas estatuetas de deuses
cavalgando (identificados como Hadad/Baal).
Outros achados de estatuetas e selos de touro estão ligados ao norte da Síria, a
Carquemish (mostrando um deus de pé, cavalgando sobre um touro) e ao Líbano. Há também
um grande grupo de estatuetas do touro de Ápis do Egito e outro grupo de Chipre.
Há três estelas aramaicas do período do Ferro de Arslan Tash, Carquemish e Til
Barsip, assim como um relevo em pedra, assírio, de Maltai. Estas representações ilustram a
iconografia do deus da tempestade Hadad (Ba„al) e seus atributos, representado pelo touro
(MAZAR, 1982).
O touro como representação de deidade aparece num afresco de Mari, cavalgando no
topo das montanhas; e no relevo hitita de Ala„a Hüyük, mostrando um casal real em oração
diante de um touro de pé sobre o altar.
No museu do Louvré, em Paris, encontra-se uma imagem de Baal de Ugarit, deus da
tempestade, representado antropomorficamente, montado num touro (que lhe serve de
pedestal), segurando armas, raios e trovões (RÖMER, 2011).
Em um selo de Ebla, importante cidade do norte da Síria, uma cena de adoração à
deusa Ishtar apresenta um touro sentado num trono, tendo à esquerda uma pessoa em atitude
de oração e à direita um deus da tempestade (RÖMER, 2015b).
Kaefer cita o vaso de cerâmica em forma de touro encontrado em Silo, a estatueta de
prata na forma de touro encontrada em Asquelon e a estatueta de touro encontrada em
Siquém, perto do Monte Ebal (KAEFER, 2015a).

126
127

Um óstraco da Samaria (n. 41) contém o nome próprio ‘glyw, que significa “touro
jovem de Javé” ou “Javé é um touro jovem” (RÖMER, 2015b)55.
Em Kuntillet ‟Ajrud, há uma inscrição a “Javé de Samaria e Asherá”, um desenho de
uma vaca amamentando seu filhote e, como vimos, uma possível referência à tradição do
Êxodo.
Enfim, uma grande quantidade de altares com quatro chifres é encontrada de norte a
sul em toda Canaã, com destaque para o altar de Dã e Bersabeia, e é expressão do culto ao
touro. Inclusive o altar do templo de Jerusalém tinha chifres. Havia altares grandes de chifre,
utilizados para os sacrifícios e ofertas, e altares pequenos, alguns de dois chifres, para o
incenso, colocado diante da divindade. Esses altares perpassam as fronteiras do tempo, vão
desde o Bronze até o Ferro II, e talvez sejam a maior expressão da continuidade do culto em
Canaã e Israel.
A representação do touro, na religião de Canaã e também em Israel, era atribuída,
inicialmente, a El ou Baal e, posteriormente, foi assimilada por Javé.

4.3.3 El, Javé, o Touro e o Êxodo

É muito conhecido o significado religioso do touro no Antigo Oriente Próximo. O


touro era símbolo do deus El ou Illu, divindade-suprema no panteão de Ugarit, considerada o
deus criador (ALBERTZ, 1999; KAEFER, 2015a).
O touro era símbolo também da representação do deus Baal, especialmente em seus
atributos de deus da guerra e da tempestade/fertilidade. Na Mesopotâmia, Hadad, o deus da
tempestade, recebia o nome de “touro de chifres magnìficos”, ou “o grande touro do céu e da
terra”. Em Ugarit, representava-se o deus Baal na figura do touro; no épico “Baal e a Morte”,
Baal, mediante sua união com uma vaca, representação da deusa Anat, gerava um bezerro
(Baal, pouco antes de morrer, “acasalou-se com uma vaca (prt) na desolação do deserto, com
uma novilha (‘glt) à margem do deserto”). Além da forma de touro, Baal também era
representado antropomorficamente, segurando em suas mãos armas, raios e relâmpagos.
Como deus da tempestade, Baal é visto de pé sobre as costas de um touro (ALBERTZ, 1999;
MAZAR, 2003).

55
Para opinião contrária, ver: ALBERTZ, 1999, p. 279.
127
128

A semelhança entre a tradição do culto a El/Baal, representados na forma do touro e


ligados a atributos de força e fertilidade, e a tradição do culto a Javé em Israel revela a forte
influência das tradições de culto de Ugarit, Síria e Mesopotâmia, especialmente em uma
região que disponha de vales férteis, como o de Jezrael (“El semeia”) e do Jordão. Esta nos
parece, portanto, mais uma razão para reconhecer a relação entre a memória da libertação do
Egito e o deus El. Considerando-se o Êxodo uma tradição de luta contra o Egito em Canaã, é
natural que esta memória tenha sido atribuída, primeiro, ao deus supremo da região, o deus El.
Além disso, Javé não fazia parte da lista (oficial ?) do panteão de Ugarit; ou seja, sendo um
deus que vinha de fora (seja do sul ou do norte), ele deve ter ocupado, inicialmente, uma
posição secundária.
Consideramos que Javé se torna a divindade principal em Israel Norte já no governo
dos Omridas, no início do séc. IX. Note-se, por exemplo, que todos os filhos de Acab têm em
seus nomes o elemento teofórico Yah: Ocozias, “Javé agarrou (minha mão para ajudar-me)”,
Jorão, “Javé é sublime” e Atalia, “Javé manifestou sua superioridade” (ALBERTZ, 1999). E a
estela de Mesha, rei moabita que recuperou os territórios ocupados pelos Omridas na
Transjordânia, nos anos 840, refere-se à vitória do deus nacional moabita Quemosh sobre
Javé, nomeadamente o deus nacional de Israel.
Voltando ao texto de 1Rs 12,28, podemos concluir que o deus nacional de Israel Norte
no séc. VIII, durante o reinado de Jeroboão II, é Javé, representado na forma do “touro
jovem” e associado à tradição do Êxodo, em liturgias celebradas nos santuários do rei, como
Betel e Dã. Assim, concordamos com Albertz e Römer quando dizem que o uso da expressão
’eloheykha (“teus deuses”), e não o nome Yhwh (“Javé”), é uma forma de menosprezar o culto
norte-israelita. Porém, consideramos que há vastas evidências do culto ao deus El em Israel, a
quem teria sido atribuída a libertação do Egito, antes de Javé tornar-se a divindade tutelar do
Reino do Norte.
Assim, a tradição do Êxodo, ligada ao deus El, teria sua origem no planalto de
Gabaon-Betel, no séc. X. De lá chegou a Samaria, onde foi atribuída ao deus Javé, sobretudo
a partir da consolidação do reino com os Omridas. Nascida, preservada e transmitida pela
tradição oral, a memória do Êxodo teria sido posta por escrito durante o governo de Jeroboão
II e chegado a Judá a partir do santuário de Betel.

128
129

4.3.4 Betel e as Tradições de Israel Norte

Betel é um dos mais importantes santuários de Israel Norte, anterior a Samaria, e a ele
tem sido atribuído um papel fundamental na origem, preservação e transmissão das antigas
tradições norte-israelitas, antes e depois da queda de Samaria.
O apogeu político e econômico de uma nação envolve crescente complexidade
administrativa e burocrática no aparato estatal, o que requer, por sua vez, o desenvolvimento
da escrita, especialmente nos templos e palácios. Este período, correspondente ao reinado de
Jeroboão II, na primeira metade do séc. VIII, é uma boa alternativa para situar a compilação
das tradições norte-israelitas, antes da queda de Samaria56. Em Israel, o surgimento da escrita
elaborada é atestado no início do séc. VIII (ou um pouco antes, conforme sugere a estela de
Mesha, dos anos 840)57, e em Judá um pouco mais tarde, no séc. VII, quando o Reino do Sul
alcançou, efetivamente, a condição de estado (FINKELSTEIN, 2015b).
Dentre as principais tradições originárias do Norte, citamos o núcleo do ciclo de Jacó
em Gênesis, o chamado “Livro dos Salvadores” em Juízes, o material pró-Saul e anti-Davi
nos livros de Samuel e Reis, parte do ciclo de Elias e Eliseu no livro de Reis, possíveis
informações sobre a história dos reis do norte registradas nos anais da realeza, alguma
profecia do Norte do séc. VIII, nos livros de Oseias e Amós, tradições sobre as tribos do
planalto central de Israel (Gn 49,13-22), tradições remanescentes no livro de Números, entre
outras. E, evidentemente, também o Êxodo, como tradição originária do Norte, ligada a Betel,
Samaria e Kuntillet „Ajrud, tal como nos propomos a apresentar nesta dissertação.
Não dispomos de grande quantidade de textos, nem de narrativas extensas, abarcando
a totalidade do passado de Israel Norte. A maior parte das tradições norte-israelitas nos
chegou de modo fragmentário e está relacionada a memórias locais, surgidas, talvez
paralelamente, em diferentes santuários (FINKELSTEIN, 2015b).
Sabemos pela reavaliação dos dados das escavações (FINKELSTEIN; SINGER-
AVITZ, 2009) que, após o período de prosperidade em Betel à época dos Saulidas, no séc. X,

56
Há autores que defendem uma data posterior de redação em Betel, por exemplo: KNAUF, E. A. Bethel: The
Israelite Impact on Judean Language and Literature. In: LIPSCHITS, O.; OEMING, M. (orgs.). Judah and the
Judeans in the Persian Period. Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 2006, p. 291-349; DAVIES, P. R. The Origins
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Honour of A. Graeme Auld. Leiden: Brill, 2007, p. 93-111, conforme citação de FINKELSTEIN, 2015b, p. 17.
57
A estela de Mesha, rei de Moab, é um exemplo de um longo texto, com cerca de 24 linhas, datado nos anos
840, o que sugere a possibilidade de que também em Israel tenham sido escritos documentos desta magnitude.
Podemos citar ainda a estela de Dã, também dos anos 840, escrita no reinado de Hazael, rei de Aram-Damasco.
129
130

contexto no qual situamos as raízes históricas da tradição do Êxodo em Israel Norte, Betel
apresentará nova fase de expansão somente no início do séc. VIII e, depois, no séc. II
(FINKELSTEIN, 2015b).
Assim, o período mais adequado para a redação das tradições norte-israelitas,
particularmente a tradição do Êxodo-Deserto, seria na fase de apogeu do reinado de Jeroboão
II, quando existem evidências de desenvolvimento da escrita e conforme atestam, sobretudo, a
profecia de Oseias e as inscrições de Kuntillet „Ajrud.
De acordo com 2Rs 17,24ss, houve assentamentos assírios em Betel após a queda de
Samaria em 722. Embora as escavações arqueológicas não registrem sinais de forte atividade
neste período, pode ter havido algum tipo de culto no santuário. Dada a proximidade de
Jerusalém, Betel pode ter continuado como um lugar de peregrinação de refugiados norte-
israelitas que vieram para Judá, trazendo suas tradições. No contexto das deportações assírias
do oitavo e sétimo séculos, em Israel e em Judá, do desenvolvimento do Reino do Sul e da
queda da Assíria, na segunda metade do séc. VII, além da nova ameaça do Egito (sob a 26ª
dinastia), a tradição do Êxodo tornou-se a tradição fundante de “todo” Israel, agora concebido
como um só povo, desde as origens.

130
131

4.4 CONCLUSÃO PARCIAL

Iniciamos este capítulo propondo a reconstituição da tradição do Êxodo em Israel


Norte a partir da memória de luta dos “homens fortes” da região centro-norte das montanhas
de Canaã contra o Egito, particularmente, no séc. X, no contexto do confronto entre a entidade
político-territorial da “casa de Saul”, sediada no planalto de Gabaon-Betel, e o faraó Sheshonq
I.
Disto resultou a compreensão de que a tradição do Êxodo surgiu em Israel Norte (e
não no Sul), no contexto do séc. X (e não nos sécs. XIII-XII), está ligada à memória dos
grupos das montanhas (não das planícies), e consiste no movimento de luta contra o Egito em
Canaã (e não migração do Egito para Canaã).
A retirada forçada do Egito abriu caminho para a consolidação do reino de Israel no
início do séc. IX. Assim, ao longo da história da monarquia em Israel, a tradição do Êxodo foi
apropriada pelo estado como propaganda de vitória do rei contra seus inimigos, conforme
atestam registros de Kuntillet „Ajrud, no séc. VIII. Por outro lado, a tradição profética
manteve a memória da “libertação do Egito” como força de resistência contra a exploração e
opressão da monarquia, como podemos ver em Oseias e Amós, por exemplo.
A origem da tradição do Deserto na profecia norte-israelita do séc. VIII pode estar
ligada ao sìtio de Kuntillet „Ajrud, localizado no deserto do Sinai. Inicialmente, as memórias
do deserto do Sinai e do sul da Transjordânia constituíam uma tradição independente, que,
chegando a Samaria, foi ligada à tradição do Êxodo, favorecendo a unidade do reino de
Jeroboão II.
Ao lado da tradição do Êxodo-Deserto, a tradição de Jacó constitui outra narrativa
sobre as origens de Israel Norte, também originária do séc. X e concorrente com a tradição do
Êxodo no séc. VIII, conforme Os 12. Após a queda de Samaria e com o desenvolvimento do
estado de Judá no séc. VII, a tradição de Jacó é submetida à tradição de Abraão, e suplantada
pela tradição do Êxodo-Deserto como tradição fundante de um Israel unificado, especialmente
num período em que o Egito novamente se torna uma ameaça à soberania nacional, durante o
reinado de Josias, rei de Judá.
A tradição do Êxodo é celebrada nos santuários do rei como memória fundante de
Israel Norte: “Eis teus deuses, Israel, que te fizeram subir da terra do Egito” (1Rs 12,28). O
deus do Êxodo é Javé, representado na forma do “touro jovem”. No contexto do séc. VIII, o
“touro jovem” simbolizava, por um lado, a força e o poder de um reino que foi capaz de se

131
132

libertar do Egito, no passado, e que é capaz de submeter os inimigos, no presente, conforme


se vê pela extensão territorial de Israel à época de Jeroboão II; por outro, o símbolo do “touro
jovem” refletia a fertilidade das terras norte-israelitas no período de maior expansão
comercial do Reino do Norte. Certamente o culto a Javé, representado na forma do touro
jovem e associado à tradição do Êxodo nos santuários do rei, era uma demonstração da
grandeza do reino de Israel.
Antes, porém, de Javé se tornar a divindade tutelar do Reino do Norte, consideramos
que a “libertação do Egito” era atribuìda ao deus El, a divindade-suprema do panteão de
Ugarit, tradicionalmente representado na forma do touro e ligado à deusa Asherá. Neste
contexto, o deus do Êxodo é uma divindade guerreira, que vai à frente, garantindo a vitória.
Dado o desenvolvimento da escrita e o apogeu do reino de Israel Norte no séc. VIII,
este é o período mais provável para a redação das principais memórias norte-israelitas que
chegaram até nós – por exemplo, a tradição do Êxodo-Deserto. O santuário de Betel, berço da
casa de Saul e centro da memória do Êxodo no séc. X, certamente desempenhou um
importante papel na transmissão da tradição do Êxodo e de outras memórias do Reino do
Norte, após a queda de Samaria.

132
133

5) CONCLUSÃO FINAL

O objetivo desta pesquisa foi apresentar o Êxodo como tradição fundante de Israel
Norte, consolidada no séc. VIII a.EC, a partir da leitura de 1Rs 12,26-32. Organizamos o
desenvolvimento do tema em três capítulos.
No primeiro capítulo, apresentamos a Análise Exegética de 1Rs 12,26-32. O texto
apresenta as medidas religiosas de Jeroboão para consolidar a independência do recém-
fundado Reino do Norte, em relação à “casa de Davi” e à “casa de Javé em Jerusalém” (v. 26-
27). Concluímos que a perspectiva da redação é nitidamente judaíta, com releituras à época de
Josias e do Segundo Templo. O referencial dos redatores é o da primazia da casa de Davi e da
centralidade do culto a Javé no santuário de Jerusalém, a partir da perspectiva da divisão do
reino. Disto decorre a avaliação negativa do narrador em relação às práticas de culto norte-
israelitas.
No entanto, chamou-nos à atenção o v. 28, no qual se estabelece uma relação entre o
sìmbolo do touro, a tradição do Êxodo (“subir do Egito”) e os “deuses” (’elohim) de Israel.
Isto levou-nos a considerar a possibilidade de haver, por trás da narrativa de 1Rs 12,26-32,
ecos da memória do Êxodo como tradição fundante de Israel Norte. Por outro lado,
percebemos, através da análise exegética, que o texto de 1Rs 12,26-32 reflete a realidade do
reinado de Jeroboão II, retroprojetada para o tempo de Jeroboão I.
No segundo capítulo, então, buscamos as raízes históricas do Êxodo na tradição de
Israel Norte. A associação de Jeroboão I e Roboão ao faraó “Sesac” (1Rs 11,40; 14,25),
identificado como Sheshonq I, rei da 22ª dinastia do Egito, levou-nos ao contexto da
campanha militar do faraó em Canaã, na segunda metade do séc. X.
Na verificação da lista de lugares conquistados por Sheshonq, conforme o registro de
Karnak, no Egito, chamaram-nos à atenção os nomes de um conjunto específico de sítios no
planalto de Gabaon-Betel e na área do rio Jaboque, na Transjordânia. Esses sítios
localizavam-se fora das principais rotas comerciais e não possuíam uma grande importância
geopolítica. A melhor justificativa para a sua destruição e abandono era constituírem a sede de
governo de uma entidade político-territorial forte o bastante a ponto de ser considerada uma
ameaça aos interesses do Egito em Canaã. Os territórios dessa entidade político-territorial do
planalto de Gabaon-Betel, cujos nomes são citados na lista de conquistas de Sheshonq em
Karnak, no Egito, estão relacionados à casa de Saul, no livro de Samuel.

133
134

Apesar da vitória do faraó, em pouco tempo deu-se a retirada forçada do Egito de


Canaã. Consideramos que a retirada forçada do Egito, aliada à memória recente da luta da
entidade Saulida contra o faraó, fez emergir nos grupos remanescentes das montanhas o
sentimento de vitória e libertação, após séculos de opressão egípcia – este seria, então, o
núcleo histórico da memória do Êxodo na tradição de Israel Norte, situado na segunda metade
do séc. X.
Assim, no terceiro capítulo, a partir da análise do contexto de luta entre a entidade
Saulida e o Egito, apresentamos as seguintes considerações a propósito da tradição do Êxodo
em Israel Norte: a) a tradição do Êxodo é originária de Israel Norte, pois foi aí que se formou
a primeira entidade político-territorial forte o bastante para ameaçar os interesses do Egito em
Canaã; b) o fortalecimento da entidade Saulida está em conformidade com a longa tradição de
luta dos grupos das montanhas centrais contra a presença egípcia, sobretudo, nos vales férteis
do norte, como o vale de Jezrael. A partir de assentamos relativamente modestos, os grupos
das montanhas, liderados pelos chamados “homens fortes”, eram capazes de dominar vastas
extensões territoriais; o enfrentamento da casa de Saul contra o Egito constituiu a fase final de
sucessivas lutas contra a presença egìpcia no norte; c) o sentido da expressão “subir do
Egito”, na fórmula do Êxodo, significava, originalmente, “levantar-se contra”, “insurgir-se”,
portanto, luta pela soberania política, e não movimento migratório; d) a retirada do Egito está
implicitamente ligada à consolidação do reino de Israel; a saída do Egito abriu caminho para a
ascensão da dinastia Omridas, no início do séc. IX; e) a tradição do Êxodo representa, por um
lado, a libertação do Egito; por outro, contudo, o movimento de expansão dos grupos das
montanhas implicava a conquista das terras baixas e a submissão da população aí assentada.
Neste contexto de luta, o “deus do Êxodo” é concebido como um deus guerreiro, que vai à
frente, assegurando vitória na guerra.
Uma vez que, pouco tempo após a retirada do Egito das terras de Canaã, consolidou-se
o reino de Israel Norte, no início do séc. IX, pareceu-nos importante situar a tradição do
Êxodo no contexto político-religioso da Monarquia em Israel Norte. Um dos elementos que
destacamos foi o entrelaçamento constitutivo entre o culto nacional e a política do rei. A
tradição do Êxodo encaixa-se muito bem como propaganda da monarquia, sobretudo, no
reinado de Jeroboão II (788-747), época de apogeu de Israel Norte. É provável que o rei se
“beneficiasse” de uma memória (a do Êxodo) que afirmava a soberania polìtica e apontava
para tempos de paz e prosperidade, conforme atestam as inscrições de Kuntillet „Ajrud e o
próprio texto de 1Rs 12,28-29. Por outro lado, a tradição do Êxodo manteve-se como força de

134
135

resistência contra a exploração e opressão do sistema monárquico, por exemplo, na profecia


de Oseias e Amós.
A propósito da origem da tradição do deserto do Sinai e do sul da Transjordânia em
Samaria, e na profecia de Oseias e Amós, no séc. VIII, tudo indica que o conhecimento sobre
as memórias do deserto do Sinai tenha chegado a Samaria por meio de oficiais e funcionários
do rei que atuavam no comércio árabe do sul, a partir de Kuntillet „Ajrud. Em Samaria, a
tradição da caminhada no deserto, que constituída uma memória independente (Nm 33), foi
ligada à tradição do Êxodo, que, então, já estava consolidada.
A fim de obter um quadro mais completo acerca da tradição do Êxodo, mencionamos
ainda a tradição de Jacó, que é a outra narrativa sobre as origens de Israel Norte, baseada em
memórias de família. De acordo com Os 12, a relação entre ambas é conflitiva.
Na última parte do capìtulo, apresentamos “O Êxodo e o culto a El/Javé em Israel
Norte”. A análise exegética de 1Rs 12,26-32 levou-nos a concluir que o culto nacional em
Israel Norte, no séc. VIII, é dedicado a Javé, representado na forma do “touro jovem” e
associado ao Êxodo, em santuários como Betel, Dã e Samaria. Antes, porém, de Javé tornar-
se a divindade tutelar de Israel, a memória da libertação do Egito, teria sido atribuída,
inicialmente, ao deus El, divindade-suprema do panteão de Ugarit, tradicionalmente
representado na forma do touro e ligado à deusa Asherá.
Após a queda de Samaria em 722, as tradições norte-israelitas chegam a Judá, trazidas
pelos refugiados, dentre elas a tradição do Êxodo e a tradição de Jacó. A tradição de Jacó é
submetida à de Abraão e suplantada pela tradição do Êxodo, que se torna, a partir de então,
memória fundante de “todo” Israel. A memória comum de séculos de opressão egìpcia em
toda Canaã, no passado, aliada ao cenário das deportações assírias nos sécs. VIII e VII, e
ainda a nova ameaça do Egito de Necao, certamente, constituíram fatores para a aceitação e
ressignificação da tradição norte-israelita do Êxodo, agora concebida como memória de um só
povo desde as origens (norte e sul).

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