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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
CECILIA TOSELI
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CECILIA TOSELI
___________________________________________
Prof. Dr. José Ademar Kaefer
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
__________________________________________
Prof. Dr. Helmut Renders
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
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AGRADECIMENTOS
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RESUMO
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ABSTRACT
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 CAPÍTULO 1: ANÁLISE EXEGÉTICA DE 1Rs 12,26-32 15
2.1 TRADUÇÃO INTERLINEAR LITERAL 17
2.2 TRADUÇÃO LITERAL 20
2.3 CRÍTICA TEXTUAL 21
2.4 DELIMITAÇÃO 23
2.5 ESTRUTURA 26
2.6 ANÁLISE DE COESÃO 29
2.6.1 A Coesão Interna de 1Rs 12,26-32 29
2.6.2 O Bloco de 1Rs 11 -14 e o Livro de Reis 31
2.7 GÊNERO LITERÁRIO E VISÃO DE MUNDO 34
2.7.1 Gênero Literário 34
2.7.2 Gênero Literário e Visão de Mundo 35
2.8 ANÁLISE SEMÂNTICA 37
2.8.1 Os Santuários de Betel e Dã (v. 26-30) 37
2.8.1.1 O medo de Jeroboão (v. 26-27) 37
2.8.1.1.1 “Voltar” 39
2.8.1.1.2 “Subir” 39
2.8.1.1.3 “Casa de Davi” e “casa de Javé em Jerusalém” 40
2.8.1.1.4 “Sacrifìcios” 41
2.8.1.1.5 “Matar” 42
2.8.1.1.6 “Jeroboão” e “Roboão” 43
2.8.1.2 As Ações de Jeroboão (v. 28-29) 45
2.8.1.2.1 O aconselhamento do rei 45
2.8.1.2.2 Os “touros jovens” 47
2.8.1.2.3 “Eis teus deuses, Israel” 49
2.8.1.2.4 Os santuários de “Betel” e “Dã” 53
2.8.1.3 A consequência das ações de Jeroboão (v. 30) 55
2.8.2 Os Lugares Altos (v. 31-32) 57
2.8.2.1 “Lugares altos” 58
2.8.2.2 “Casa de lugares altos” 60
2.8.2.3 Os sacerdotes 60
2.8.2.3.1 Sacerdotes das “extremidades do povo” 61
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1) INTRODUÇÃO
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A datação dos reis segue a cronologia proposta por Kaefer em: KAEFER, J.A. A Bíblia, a Arqueologia e a
História de Israel e Judá. São Paulo: Paulus, 2015, p. 68-69.
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Sobre o substantivo hebraico ‘egel (na forma plural construto em 1Rs 12,28), comumente traduzido por
“bezerro”, optamos pela tradução “touro jovem”, conforme a nota de Amihai Mazar, citando W. F. Albright: “As
for the relation between “calf” (egel) and “bull” (shor or par), W. F. Albright suggested that the biblical term
„egel may relate to a young bull (up to three years old)” (MAZAR, 1982, p. 41). A tradução de „egel por “touro
jovem” também é adotada por José Ademar Kaefer, com a seguinte justificativa: “„egel é um touro de cerca de
um ano de idade (Lv 9,3; Mq 6,6), por isso, optamos pela tradução „touro jovem‟, que nos parece mais
aproximada que „bezerro‟, como normalmente é traduzido nas versões portuguesas.” (KAEFER, 2015a, p. 881).
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Todas as datas neste trabalho deverão ser entendidas como anteriores à era comum, se não houver outra
especificação.
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1Rs 11,11-13. 29-39 e 1Rs 12,1-20.21-24; 2Cr 10-13; 3Rs 12,n.y (LXX).
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acentua a relação de proximidade entre Jeroboão I e o faraó “Sesac” 5 (1Rs 11,40; 14,25)6.
Detivemo-nos na Historiografia Deuteronomista, texto que traduz as tradições político-
religiosas norte-israelitas a partir de uma visão nitidamente sulista, à época de Josias (640-
609) e, mais tarde, no período do Segundo Templo.
A partir da análise exegética de 1Rs 12,26-32, buscamos compreender o contexto
político-religioso de Israel Norte, particularmente a tradição do Êxodo, sem as lentes
corretoras dos redatores judaítas.
Por exemplo, a associação de Jeroboão I e Roboão ao faraó “Sesac” em 1Rs 11,40 e
14,25, que é identificado como Sheshonq I (945-925), rei da 22ª dinastia do Egito, situa-nos
no séc. X. No entanto, a extensão territorial desde Betel até Dã (1Rs 12,29) corresponde à
configuração geopolítica de Israel no período de Jeroboão II (788-747), no séc. VIII.
A polêmica em torno dos “touros jovens” de Betel e Samaria, do culto nos lugares
altos e das festas populares é maior durante o governo de Jeroboão II (783-743), conforme
atesta a crítica profética de Oseias e Amós. E a mudança da iconografia do touro para imagens
com asas em selos da época ocorre somente no final do séc. VIII. Portanto, não parece que o
conflito apresentado em 1Rs 12,26-32 reflita uma realidade do séc. X.
Antes, o culto oficial a Javé, representado na forma dos touros jovens e associado ao
Êxodo como tradição fundante, nos santuários do rei, conforme o texto de 1Rs 12,26-32,
reflete a tradição de culto a Javé própria de Israel Norte, consolidada à época do reinado de
Jeroboão II, porém retroprojetada para o tempo de Jeroboão I (RÖMER, 2015a; BERJUNG,
2009). Mas o que dizer, então, sobre o culto e a memória do Êxodo em Israel no séc. X?
A correspondência extra bìblica entre “Sesac” e o faraó Sheshonq (945-925) nos
remete ao contexto da campanha militar egípcia em Canaã no final do séc. X. Neste sentido, o
núcleo da memória do Êxodo, consolidada como tradição fundante de Israel Norte à época de
Jeroboão II (788-747), estaria ligado ao processo de fortalecimento dos grupos das montanhas
da região centro-norte de Canaã: primeiro no planalto de Gabaon-Betel, depois em Siquém-
Tersa e, finalmente, em Samaria. Apesar da vitória de Sheshonq sobre a “casa de Saul” (como
veremos), a retirada do Egito de Canaã em curto período deve ter reacendido o sentimento de
vitória e libertação, após tantos séculos de opressão. Este nos parece o cenário mais próximo
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O substantivo próprio “Sesac”, conforme a tradução da Bíblia de Jerusalém em língua portuguesa (2006),
corresponde à transliteração da forma Shishaq no Texto Massorético. A forma “Sheshonq” corresponde à
transliteração em língua inglesa. O original é egípcio.
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Em 2Cr 10,1-19, apaga-se a expressão de aprovação “todo Israel”, que aparece em 1Rs 12,20; em 3Rs 12,24a-
z, aumenta-se a crítica pessoal a Jeroboão ao se omitir todos os versículos que lhe são favoráveis, conforme 1Rs
11-12; e em 2Rs 17,21, embora se apague totalmente a base profética da divisão do reino, a responsabilidade
pela queda do reino é atribuìda a Jeroboão e aos “israelitas”, que o imitaram.
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libertação do jugo imposto por Salomão e Roboão às “tribos” do norte (1Rs 12,1-20), quase
desaparece no plano narrativo, prevalecendo o enfoque essencialmente cultual.
A análise exegética nos revela que as tradições político-religiosas do Reino do Norte,
conforme apresentadas no texto de 1Rs 12,26-32, refletem a visão de Judá, à época de Josias
(640-609) e, mais tarde, no período do Segundo Templo. A tradição do Êxodo é considerada a
tradição de fundação de todo Israel, norte e sul, visto como um só povo desde as origens. E
sua referência no v. 28 soa como uma ironia se considerarmos que, à época da redação do
texto, o Reino do Norte já não existia. Interessa-nos, contudo, rever as tradições político-
religiosas do Reino do Norte, particularmente a tradição do Êxodo-Deserto, sem as lentes
corretoras dos redatores judaítas.
Neste sentido, buscamos reconhecer o Êxodo como tradição fundante de Israel Norte,
consolidada no séc. VIII, provavelmente durante o reinado de Jeroboão II. Para tal, a análise
exegética visa responder questões como: Em que consistiria a memória da libertação do Egito,
ou qual o significado da expressão “subir do Egito” (v. 28) em Israel Norte? Em que contexto
histórico poderíamos situar as raízes do Êxodo na tradição norte-israelita? É possível
depreender uma “geografia” do Êxodo? Qual a origem ou o sentido de uma tradição do
deserto do sul para um reino cujas terras são férteis e os vales possuem inúmeras fontes de
água? Por que ou como a memória de “libertação do Egito” se torna tradição fundante de
Israel Norte no séc. VIII? E como é aceita, mais tarde, como tradição de fundação de “todo
Israel” por Judá, no séc. VII e em releituras posteriores?
Por outro lado, o referencial do culto norte-israelita apresenta uma tradição do Êxodo
ligada a Javé, representado na forma do touro e celebrado em diferentes santuários do rei. No
entanto, por que não se usa o nome “Javé” em 1Rs 12,28? Qual o significado do “touro
jovem” ligado a Javé e à tradição do Êxodo? Qual o sentido do Êxodo nas liturgias do rei? Por
que a condenação do culto nos “lugares altos”, do sacerdócio local e das festas religiosas do
Reino do Norte?
A seguir, buscamos responder a essas questões a partir da análise exegética do texto de
1Rs 12,26-32. Optamos por desenvolver o tema específico da tradição norte-israelita do
Êxodo nas duas etapas seguintes: no capítulo 2, apresentaremos o contexto histórico da
tradição do Êxodo no séc. X; e, no capítulo 3, apresentaremos o Êxodo como tradição
fundante do Reino do Norte.
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`dwI)D" tybeîl. hk'Þlm' .M;h; bWvïT' hT'²[; AB+liB. ~['Þbr. "y" m,aYOðw: 26
Davi. para casa de o reino voltará agora em coração dele: Jeroboão E disse
hd"_Why> %l,m,ä ~['bÞ x. r; >-la, ~h,êynEdæao ]-la, ‘hZ<h; ~['Ûh' bleä bv'w>û
Judá; rei de para Roboão, para senhores deles, o este o povo coração de voltará e
‘~k,l'-br: ~h,ªlea] rm,aYOæw: bh'z_ " yleäg>[, ynEßv. f[;Y:¨w: %l,M,êh; #[;äW"YIw: 28
para vós muito para eles: e disse ouro; touros jovens de dois de e fez o rei, E se deixou
aconselhar
`~yIr")c.m #r<am,î e
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Apresentamos uma versão própria tanto na “Tradução interlinear literal” quanto na “Tradução literal” (p. 20
desta dissertação). Procuramos mater a ordem frasal e o sentido literal dos vocábulos, introduzindo poucas
alterações, apenas para facilitar a leitura em língua portuguesa. Nestes casos, assinalamos entre colchetes os
artigos ou verbos que foram inseridos (por exemplo, nos v. 26, 27, 28, 31 e 32) e em itálico as adaptações (por
exemplo, nos v. 26, 29, 30 e 32).
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Egito. de terra de
até Dã. o um
vd<xølo ; ~Ay‚ •rf'[-' hV'(mixB] ; ynIåymiV.h; vd<xåBo ; gx'‡ ~['bä r. "y" f[;Y:åw: 32
em Betel, fez assim sobre o altar, e subiu em Judá, que como festa
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os sacerdotes de em Betel, e ergueu que fez; para os touros jovens para sacrificar
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E disse Jeroboão no coração dele: „Agora voltará o reino para casa de Davi.
27
Se subir este povo para fazer sacrifícios n[a] casa de Javé em Jerusalém, então, voltará [o]
coração deste povo para [os] senhores deles, para Roboão, rei de Judá; e matarão a mim, e
voltarão para Roboão, rei de Judá‟.
28
E se deixou aconselhar o rei, e fez dois touros jovens de ouro; e disse para eles: „Basta para
vós subir a Jerusalém! Eis teus deuses, Israel, que te fizeram subir d[a] terra do Egito‟.
29
E pôs um em Betel; e o outro colocou em Dã.
30
E isto se tornou transgressão; e caminharam o povo diante de um até Dã.
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E fez a casa de lugares altos; e fez sacerdotes d[as] extremidades do povo, que não eram
dentre os filhos de Levi.
32
E fez Jeroboão festa no oitavo mês, aos quinze dias do mês, como [a] festa que [se fazia]
em Judá, e subiu ao altar, assim fez em Betel, para sacrificar aos touros jovens que fez; e
estabeleceu em Betel os sacerdotes dos lugares altos que fez.
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poucos manuscritos hebraicos e na LXX segundo a recensão de Luciano (séc. III), omitindo-
se uma das razões que levou Jeroboão a fazer os touros jovens (o medo de ser morto);
c) a oração hd"(Why>-%l,m(, ~['bî x. r; >-la, Wbv'Þw> “e voltarão para Roboão, rei de Judá”
apresenta duas notas: uma indicando a ausência em poucos manuscritos hebraicos e na LXX
original; outra perguntando se é um acréscimo. No Texto Massorético, a frase reforça a ideia
expressa no v. 27a, onde se diz que Jeroboão temia ser morto se o povo continuasse a subir a
Jerusalém.
O v. 28 apresenta duas notas:
a) a expressão #[;äW"YIw: aparece no Códice Alexandrino (séc. V) como “e foi” ou “e procedeu”,
deixando a frase assim “e foi (e não “e se deixou aconselhar”) o rei e fez dois touros jovens de
ouro...”. Apesar de deixar a frase mais clara e ser confirmada por um manuscrito da LXX, a
expressão lida como vayelek é uma questão ou informação incerta. Mantemos a opção do
Texto Massorético em função da importante associação com as circunstâncias do
aconselhamento de Roboão.
b) a LXX lê ’el-ha’am e não ~h,ªlea] ’ale-hem. Desta forma, a frase “e disse para eles” ficaria
“e disse para o povo”. Mantemos o TM em consonância com a escolha do uso do pronome
dêitico no v. 27 (“este povo”).
O v. 29 não apresenta variantes.
No v. 30, há duas notas:
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Utilizamos o aparato crítico da Bíblia Hebraica Stuttgartensia.
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expressão “a Israel”. Esse acréscimo deixa a frase alterada para “e isto se tornou transgressão
a Israel”, o que é possìvel e correto;
b) inserido possivelmente beit-’el velphny h’hd após dx'Þa,h' , transformando a frase para “e
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2.4 DELIMITAÇÃO
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De acordo com 1Rs 12,18.20, porém, Jeroboão só aparece em cena depois da morte de Aduram.
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Oliveira, baseada no método da análise da narrativa, opta pela unidade 1Rs 12,26-33,
identificando uma sequência cênica bem definida, com introdução, desenvolvimento e
conclusão (OLIVEIRA, 2010).
De fato, por um lado, o v. 33 parece pertencer à unidade de 1Rs 12,26-33. Nele, há
várias repetições de termos e expressões de versículos anteriores, por exemplo: o substantivo
“coração”, conforme o v. 26, reforçando a ideia de que as medidas religiosas de Jeroboão (v.
27-32) devem-se à sua iniciativa pessoal, e não à vontade de Deus; e quase todas as
expressões do v. 32: “e subiu ao altar, assim fez em Betel”, “no oitavo mês, aos quinze dias
do mês”, “e fez festa”. A conjunção coordenativa aditiva “e” (vav) mantém o estilo
enumerativo/repertorial da sequência de ações de Jeroboão (“E disse” (v. 26); “E se deixou
aconselhar”, “e fez”, “e disse” (v. 28); “e pôs”, “e deu” (v. 29), “e se tornou”, “e caminharam”
(v. 30); “e fez” (duas vezes no v. 31); “e fez”, “e subiu”, “e ergueu” (v. 32); “e subiu”, “e fez”
e “e subiu” (v. 33)). E especificamente se dá a repetição do verbo “fazer” (“E fez”): v. 31, 32
e 33.
Por outro, as repetições das expressões dos v. 32 no v. 33 sugerem uma retomada da
narrativa anterior a fim de introduzir a unidade seguinte; neste caso, as unidades seriam: 1Rs
12,26-32 e 12,33-13,34. A cena descrita no v. 33 funciona muito bem como introdução de
1Rs 13,1, afinal, no momento em que Jeroboão “subiu ao altar que fez em Betel para
incensar” (v. 33), “eis que o homem de Deus chegou” e “Jeroboão estava de pé junto ao altar
para incensar” (13,1). Note-se que, no v. 33 e em 13,1, o verbo hebraico empregado para a
ação de sacrificar é qatar (“incensar”), enquanto no v. 32 é zabhah (que tem o significado
básico de abate de animal). A referência não é àqueles que “sacrificam aos touros jovens”,
conforme os v. 28 e 32, mas aos que incensam sobre o altar de Betel (13,2). Assim, a
sequência de 1Rs 12,33 a 13,34 poderia formar uma unidade sobre o julgamento contra Betel
(LONG, 1984).
O v. 33, portanto, funciona como um versículo de transição. Então, nós o
consideramos parte da unidade seguinte, introduzindo outro tema e gênero literário: uma
“lenda profética” sobre o “homem de Deus” (introdução de nova personagem), que chegou de
Judá a Betel, por ordem de Javé, e anuncia a condenação do altar de Betel e o nascimento de
Josias (LONG, 1984, p. 150).
Assim, delimitamos nossa unidade de estudo em 1Rs 12,26-32.
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2.5 ESTRUTURA
1) os lugares altos: v. 31
- construção de casa de lugares altos: v. 31a
- designação de sacerdotes: v. 31b
2) a festa: v. 32
- data da festa: v. 32a-b
- altar: v. 32c
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- resumo: v. 32d-g
- sacrifício aos touros jovens: v. 32d-e
- sacerdotes: v. 32f-g
A) v. 26a: introdução
B) v. 26b-27: medo de Jeroboão
C) v. 28-29: ações de Jeroboão
D) v. 30: comentário condenatório do narrador
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O texto de 1Rs 12,26-32 apresenta-se como uma narrativa coesa, em torno do tema do
culto em Israel Norte. O tema do culto se articula a partir de dois campos semânticos
principais: o político e o religioso propriamente dito. Ambos estão entrelaçados, como é
próprio da concepção da monarquia no Antigo Oriente Próximo. Em cada um desses campos,
porém, sobressai a tensão interna, decorrente da teologia (deuteronomista) da aliança, que
estabelece a hegemonia da casa davídica e a centralidade do culto a Javé no santuário de
Jerusalém.
Apresentaremos, primeiro, a coesão interna de 1Rs 12,26-32 e, depois, o lugar literário
de 1Rs 12,26-32 no bloco de 1Rs 11 – 14 e no livro de Reis.
A narrativa de 1Rs 12,26-32 como um todo é costurada pela conjunção vav (“e”), que
introduz os v. 26, 28, 29, 30, 31 e 32. Embora não introduza o v. 27, ela inicia dois segmentos
dentro deste versìculo (“e matarão a mim”; “e voltarão para Roboão, rei de Judá”).
A trama se apresenta como uma unidade narrativa, com início, meio e fim. Nos v. 26-
27, a introdução: Jeroboão é apresentado em seus pensamentos íntimos. Nos v. 28-29, o
desenvolvimento e clímax: Jeroboão fala e age. Nos v. 30 e 31, há desdobramentos e outras
ações de Jeroboão. No v. 32, a conclusão: com a “festa”, retomam-se os elementos anteriores
(sacrifício em Betel em honra aos touros jovens que fez (v. 28-29), para evitar que o povo
subisse à casa de Javé em Jerusalém (v. 26-27), e a designação de sacerdotes locais (v. 31)).
A personagem “Jeroboão”, cujo nome é citado nos v. 26 e 32, é elemento de coesão da
narrativa, uma vez que é o sujeito de todas as ações verbais (exceto no v. 28, quando “teus
deuses” é o sujeito do verbo “subir” do Egito).
As formas verbais também desempenham uma importante função na coesão, por
exemplo: “e fez”, “e disse”, nos v. 26 e 28; “e pôs”, “e colocou”, no v. 29; “e caminharam”,
no v. 30; “e fez (festa)”, “e subiu (ao altar)”, no v. 32. Essas formas verbais, ligadas entre si,
descrevem um tipo de ação ritual, que perpassa a narrativa do começo ao fim: após a
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fabricação (“e fez”) dos touros jovens, eles foram aclamados (“eis teus deuses (...)”) (v. 28),
entronizados nos santuários em procissões rituais (v. 29-30) e celebrados com festa (v. 32) e
oferta de sacrifìcios (v. 32). E a repetição do verbo “dizer” (v. 26 e 28) marca a alternância
entre a esfera particular e o discurso público de Jeroboão, que constitui o ponto literário de
virada do seu reinado.
O verbo “fazer” ocorre oito vezes: “e fez” touros jovens (v. 28 e 32); “e fez” casa de
lugares altos (v. 31.32); “e fez” sacerdotes (v. 31.32); “e fez” festa (v. 32); assim “fez” em
Betel (v. 32). Esse é o verbo que tem maior ocorrência, o que sugere a sua importância como
elemento de coesão da unidade, e na caracterização de Jeroboão como rei empreendedor. O
verbo “subir” ocorre quatro vezes: no v. 27, 28 (duas vezes) e 32. O verbo “voltar” ocorre
uma vez no v. 26 e duas vezes no v. 27.
Os substantivos relacionados ao campo semântico do “polìtico” subdividem-se em
dois grupos que, opondo-se entre si, asseguram a unidade do todo. Por um lado, “casa de
Davi” (v. 26), “Jerusalém” (v. 26), “Roboão, rei de Judá” (duas vezes no v. 27), “senhores
deles” (v. 27). Por outro, “o reino” (v. 26), “povo” (v. 27, duas vezes), “o rei” (v. 28), “Israel”
(v. 28), “Jeroboão” (v. 26.32), “Betel” (v. 29.32), “Dã” (v. 29.30). Tal oposição aponta a
primazia da casa da Davi em relação à casa de Jeroboão.
Podemos notar a mesma tensão interna entre os substantivos ligados ao campo
semântico do “religioso”. O substantivo “coração” é citado nos v. 26 e 27, e, juntamente com
o verbo “voltar” (v. 26 e 27) e com o substantivo “transgressão” (v. 30), é um termo caro à
teologia da Aliança, que perpassa todo o texto. Para facilitar a exposição, agrupamos os
substantivos ligados ao campo do “religioso” da seguinte maneira:
a) Quanto ao local de culto: “Betel”, nos v. 29 e 32; “Dã”, nos v. 29 e 30; “lugares altos”,
nos v. 31 e 32; “casa de lugares altos”, no v. 31, estão ligados entre si e estabelecem
oposição a “Jerusalém”, nos v. 27 e 28, e “casa de Javé”, no v. 27 (no v. 26, também
ocorre o substantivo “casa”, porém refere-se à dinastia de Davi, e não a local de culto).
Neste grupo, incluìmos a oposição entre o nome “Javé” (v. 27) e a designação
genérica “teus deuses” (v. 28);
b) Quanto aos sacrifìcios: no v. 27, o substantivo “sacrifìcios” está ligado à “casa de Javé
em Jerusalém”; no v. 32, o verbo “subir” (com sentido de ofertar sacrifìcio) e a forma
verbal “para sacrificar” referem-se ao altar de Betel;
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Assim, podemos notar que o uso da conjunção vav, dos substantivos e dos verbos
estabelece relações internas de proximidade ou oposição, que conferem coesão à narrativa. A
repetição dos vocábulos e sua organização intratextual nos permitem depreender ainda que o
tema do culto estabelece a centralidade do santuário de Jerusalém (associado à primazia da
casa de Davi), em relação à tradição cultual nos santuários norte-israelitas, condenada pelo
narrador.
A seguir, apresentamos a localização literária do texto de 1Rs 12,26-32 no bloco de
1Rs 11 – 14 e sua função no conjunto do livro de Reis.
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Seguindo a proposta de Burke Long, o texto de 1Rs 12,26-32 é uma composição com
diferentes gêneros literários, relacionados a diferentes contextos e tradições. O autor destaca
dois gêneros principais na unidade em estudo: a “narrativa” (story) e o “relatório” (report).
Como vimos, não há uma introdução típica ao reinado de Jeroboão (como em 1Rs 14,21-24 e
16,29-33), mas há uma conclusão em 1Rs 14,19-20, chamada por Long de “Resumo
Conclusivo do Reinado” (Concluding Regnal Resumé) (LONG, 1984, p. 140-142).
O gênero “narrativa” tem seu lugar original na oralidade ou em contos populares.
Neste sentido, propõe-se que 1Rs 12,26-30 constitui, em sua origem, um fragmento de relato
popular sobre santuários rivais, ou sobre locais de culto estabelecidos pelo rei. O uso do
monólogo interior (v. 26-27) confere subjetividade e tensão à trama. O mesmo podemos dizer
em relação à intercalação de comentário do narrador (1Rs 12,30.33; 13,33-34; 14,16), neste
caso, estabelecendo um juízo (teológico) sobre os lugares de culto fundados por Jeroboão; e
sobre o estilo de repetições e reiterações, que facilitam a memorização e conferem
dinamicidade ao enredo.
O gênero do “relatório”, ao contrário, caracteriza-se por seu tom repertorial,
enumerativo e impessoal. Normalmente, baseia-se em anais ou arquivos da monarquia sobre
atividades militares e construtoras de reis (eventos aleatoriamente selecionados). Não há
interesse no desenvolvimento propriamente de uma trama. Long considera 1Rs 12,31-32 um
tipo de relatório da fundação de santuários ou lugares altos por Jeroboão, apesar de fortemente
submetido à edição judaíta. Outros exemplos deste gênero são 1Rs 12,25, que informa sobre a
construção de cidades por Jeroboão; ou 1Rs 6,2-36 e 7,1-12, que descrevem as construções do
templo e do palácio, atribuídas a Salomão. Tal gênero encontra similaridades em inscrições
régias egípcias e mesopotâmicas.
Embora não conste na classificação dos gêneros literários feita por Long, a fórmula do
Êxodo em 1Rs 12,28, “Eis, teus deuses, Israel, que te fizeram subir da terra do Egito”, pode
ser um tipo de aclamação litúrgica, durante a qual apresentava-se a imagem/estátua do “touro
jovem” à assembleia.
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É difícil estabelecer, historicamente, se o nome do rei Jeroboão I fez parte de uma lista
de reis de Israel Norte ou se suas atividades foram registradas em arquivo palaciano. Mas,
enquanto personagem ficcional, Jeroboão faz parte da complexa narrativa do livro de Reis.
A narrativa do livro de Reis é classificada por Robert Alter como uma “prosa narrativa
historicizada” (ALTER, 2007, p. 47), o que corresponde, de certo modo, em termos de gênero
literário, ao que Long identifica simplesmente como “narrativa”.
Segundo Alter, as narrativas bíblicas são prosa de ficção historicizada, em oposição às
lendas e mitos dos povos antigos, em que prevalece o tempo cíclico. Apesar de muitos
estudiosos considerarem a Bìblia uma “epopeia nacional israelita, baseada em poemas épicos
da Criação e do Êxodo, transmitidos pela tradição oral, a prosa narrativa hebraica foge à
circularidade do gênero épico”, conclui o autor (ALTER, 2007, p. 47).
Alter considera que a escolha pelos escritores bíblicos da prosa narrativa para contar
as tradições nacionais traduz uma visão de mundo que revela a tensão do processo de
realização dos propósitos divinos nos acontecimentos da história. Ou seja, de certo modo, há
uma percepção da assimetria entre a “vontade de Deus” e a realidade efetiva, ou das escolhas
humanas (ALTER, 2007).
De fato, no livro de Reis, percebe-se este esforço de conjugar o que se compreende
como promessa divina e a realidade efetiva, que resultou na queda dos dois reinos, Israel e
Judá.
Neste sentido, compreendemos o relato da divisão do Reino Unido e da eleição de
Jeroboão como parte de um discurso de retórica que tenta explicar as reviravoltas da história,
tanto a queda de Israel quanto a de Judá, porém sempre na perspectiva do Sul.
A queda de Israel Norte, um reino tão grande e próspero, suscitou em Judá a crença de
que à casa de Davi e à casa de Javé em Jerusalém estava destinado o futuro de “todo Israel”,
norte e sul. Mas, ao mesmo tempo, como explicar tantos anos à sombra do Reino do Norte? E,
por fim, como explicar a queda também do Reino de Judá?
A prosa narrativa historicizada do livro de Reis é um gênero literário que possibilita a
recriação do passado em função do presente (e/ou futuro), deixando-se pouca margem para a
interpretação; o narrador sabe tudo sobre a vontade de Javé. Assim, os desastres de Israel e
Judá são avaliados pelo narrador como fruto da justiça de Javé (não de sua fraqueza), em
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virtude da quebra da Aliança pelo rei e pelo povo, apesar dos contínuos chamados à
conversão. Só na narrativa de Jeroboão, por exemplo, há quatro advertências divinas ao rei
por meio dos profetas: 1Rs 11,4-13; 11,29-39; 13,1-2 e 14,1-10 (FINKELSTEIN;
SILBERMAN, 2003).
Na inviabilidade de reconstrução da monarquia histórica, a releitura do passado de
Israel e Judá na obra de Reis se faz a partir de um viés exclusivamente teológico, desde a
perspectiva do Sul. E, por fim, também os profetas serão submetidos a uma autoridade maior
– a Lei de Moisés, até o ponto em que a Lei passa a constituir a única mediação realmente
necessária na relação com Javé. Assim, os escribas se tornam mais importantes do que
profetas (RÖMER, 2014b).
Deste modo, compreendemos que a identificação dos gêneros literários que compõem
1Rs 12,26-32 (“narrativa” e “relatório”) não apenas estabelece um tipo de relação entre os
versículos da unidade, como também revela um modo próprio de interpretar e atribuir sentido
à realidade.
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E disse Jeroboão no coração dele: „Agora voltará o reino para a casa de
Davi. 27 Se subir este povo para fazer sacrifícios na casa de Javé em
Jerusalém, então, voltará o coração deste povo para os senhores deles, para
Roboão, rei de Judá; e matarão a mim, e voltarão para Roboão, rei de Judá‟.
10
À parte a tradução que fizemos de 1Rs 12,26-32, os demais textos bíblicos seguem a tradução da Bíblia de
Jerusalém, nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2006.
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2.8.1.1.1 “Voltar”
A relação entre coração e fidelidade à aliança é corroborada pelo uso do verbo “voltar”
(shub). O verbo parece cerca de 1500 vezes na Bíblia Hebraica, sendo o décimo segundo
verbo mais usado. O verbo “voltar” indica movimento fìsico (mais de 270 vezes),
deslocamento espacial, no sentido de retornar de ou a algum lugar, e pode indicar ideia de
repetição de uma ação. Seu principal uso, contudo, é teológico e denota arrependimento,
desejo de voltar atrás ou retomar a aliança com Javé. Há um total de 164 usos do verbo shub
no contexto da Aliança, dentre os quais 113 vezes nos profetas clássicos (48 vezes em
Jeremias, mas somente 6 vezes no Primeiro Isaías). Em vários lugares significa “voltar do
exìlio” (Esd 2,1 e Ne 7,6), mas também é usado no sentido de restaurar o pecado (HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998). O verbo “voltar”, no sentido metafórico, ligado ao tema do
Êxodo, significa “submeter-se”, por exemplo, em Os 8,13 (“eles voltarão ao Egito”); 9,3
(“Efraim voltará ao Egito”); 11,5 (“ele não voltará à terra do Egito”).
Em 1Rs 12,26-27, o verbo “voltar” (citado três vezes) enfatiza a possibilidade de
arrependimento do povo por ter rompido com a casa de Davi. O uso do substantivo “coração”
e do verbo “voltar” nesses versìculos indica o contexto da Aliança, e mais precisamente o da
quebra da Aliança. Pois, impedir que o povo “volte à casa de Davi” significava impedir que o
povo subisse à casa de Javé em Jerusalém.
2.8.1.1.2. “Subir”
O verbo “subir” (‘alah) ocorre cerca de 900 vezes no AT. Os significados mais
comuns são “ir para cima” (300 vezes), “vir para cima” (160 vezes) ou “ascender” (17 vezes).
Nos graus causativos, “trazer para cima” (mais de 100) e “oferecer” (77 vezes) (HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998). Neste sentido, traduz a ideia de deslocamento geográfico ou de
apresentação de sacrifìcios. Mas o verbo “subir” também contém a ideia de mudança polìtica:
“levantar-se contra”, “insurgir-se”.
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No v. 27, o verbo “subir” significa ir para a “casa de Javé em Jerusalém”, para ali
apresentar os “sacrifìcios”. No v. 32, “subir ao altar” significa apresentar sacrifìcios rituais em
Betel.
No v. 28, porém, ao se estabelecer a relação entre a memória do Êxodo (“subir da terra
do Egito”) e o contexto da insurreição de Jeroboão contra a opressão de Salomão/Roboão,
podemos depreender um novo sentido do verbo “subir”: o de soberania polìtica. Subir ou não
subir à casa de Javé em Jerusalém implica a consolidação da autonomia político-religiosa do
reino de Jeroboão. De acordo com a narrativa, Jeroboão afirma a presença do deus do Êxodo
entre as tribos do norte e, por conseguinte, a aprovação “divina” do movimento de
independência em relação à exploração (interna) exercida por Judá – tal como no passado
esteve ao lado de seu povo contra a dominação do Egito. Voltaremos à discussão sobre o
sentido do verbo “subir” e a temática do Êxodo no capìtulo 3 desta dissertação.
No nìvel da narrativa, não “subir” à casa de Javé em Jerusalém para oferecer
sacrifícios implica oferecer sacrifício em santuários norte-israelitas, o que constitui a razão da
condenação e queda de Jeroboão.
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o período da história dos dois reinos. Portanto, neste sentido, a fundação dos santuários
nacionais de Javé em “Betel” e “Dã” seria anterior ao de Jerusalém. No nìvel da narrativa,
porém, de acordo com a visão dos redatores deuteronomistas, é o contrário.
Por isso, as ações de Jeroboão para impedir que o povo continuasse a subir à casa de
Javé em Jerusalém e voltasse o coração para “Roboão, rei de Judá”, são consideradas
infidelidade à Aliança de Javé com seu povo. Afinal, de acordo com a Lei, o “lugar
escolhido” por Javé para a oferta dos sacrifìcios é Jerusalém (Dt 12).
2.8.1.1.4. “Sacrifìcios”
A raiz do substantivo “sacrifìcio” (zebhah), no v. 27, está ligada à esfera das ofertas e
sacrifícios, geralmente com abate de animais, não necessariamente feito por sacerdote, e
precedido por convite à festa. O verbo correlato, “sacrificar” (zabhah), geralmente é usado no
qal. Em 1Rs 12,32, porém, está na forma piel do infinitivo (lzabeha la‘agalim, “para sacrificar
aos touros jovens”), que ocorre 19 vezes em relação aos sacrifìcios condenados nos lugares
altos (Os 11,2; 2Rs 12,3); deste modo, o próprio sentido “intensivo” da forma piel já insinua a
rejeição dos sacrifícios que serão apresentados por Jeroboão em Betel e Dã (HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998).
De acordo com Dt 12,13-18, considerada a parte mais antiga da lei de centralização
do culto em Jerusalém (RÖMER, 2008), atribuída ao período do reinado de Josias (640-609),
assim está escrito em relação ao abate de animais:
Portanto, não subir à “casa de Javé em Jerusalém” (v. 27) significa transgredir a lei
de centralidade de culto, conforme o livro do Deuteronômio. E mais: evidencia a fraqueza de
41
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Jeroboão, pois ele não confiou na palavra de Javé que lhe foi dirigida por meio do profeta
Aìas de Silo: “Quanto a ti, eu te tomarei para reinares sobre tudo o que desejares e serás rei de
Israel (...) estarei contigo e construirei para ti uma casa estável, como o fiz para Davi” (1Rs
11,37.38; cf. 2Sm 7,13).
Na narrativa deuteronomista, Jeroboão é o único rei que recebe uma promessa igual
àquela que foi feita a Davi. Porém, com uma condição: “Se obedeceres a tudo que eu te
mandar, se seguires meus caminhos e fizeres o que é reto a meus olhos, observando meus
estatutos e meus mandamentos” (1Rs 11,38). No contexto narrativo, “obedecer aos estatutos e
mandamentos” significa ser fiel à lei de centralidade do culto na “casa de Javé em Jerusalém”.
Portanto, ao tentar evitar que o povo subisse a Jerusalém, Jeroboão estaria desviando o seu
“coração” do núcleo da Aliança, segundo os redatores deuteronomistas.
2.8.1.1.5. “Matar”
42
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para “matar” todo profeta ou intérprete de sonhos que queira seduzir o povo a seguir “outros
deuses”, pois foi “Javé teu Deus quem vos fez sair da terra do Egito” (Dt 13,6):
Vale lembrar também o texto de Ex 32,27, no qual os levitas teriam recebido a ordem
de Javé, por meio de Moisés, para “matar” (mesma raiz hebraica do verbo harag) todos
aqueles que cultuaram Javé na forma do touro jovem de ouro.
A ocorrência de termos com a raiz do verbo “matar” (harag) e dos substantivos “teus
deuses” (’eloheykha), levitas (mibbney levyi, “dentre os filhos de Levi”) e “touro jovem” (‘gl)
em 1Rs 12,28-32 e em textos tardios como Dt 13 e Ex 32 (citados acima) sugere, como
veremos, a releitura de nossa narrativa no pós-exílio. Neste caso, Jeroboão estaria sendo
comparado, ironicamente, a um lunático, como o intérprete de sonhos de Dt 13, por isso
merecedor de sentença de morte?
43
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consolidar a autonomia de seu reino. Porém, mais uma vez, no nível da narrativa, somos
levados a interpretar as iniciativas de Jeroboão como “transgressão” da Aliança (v. 30).
A seguir, nos v. 28 e 29, Jeroboão deixa a esfera da interioridade de seus pensamentos
e decide agir, a fim de evitar o risco de o reino “voltar para Roboão, rei de Judá”.
28
E foi aconselhado o rei, e fez dois touros jovens de ouro; e disse para eles:
„Basta para vós subir a Jerusalém! Eis teus deuses, Israel, que te fizeram
subir da terra do Egito. 29 Pôs um em Betel e o outro colocou em Dã.
Nestes versículos, Jeroboão fala e age pela primeira vez. A forma verbal hebraica
ya‘ats significa “sugerir, aconselhar, decidir, inventar (um plano), planejar” (HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998). Nos textos bíblicos, alternam-se bons e maus conselhos,
conforme ressaltam Harris, Archer e Waltke: Absalão rejeitou bons conselhos (2Sm 17,14);
Moisés, ao contrário, aceitou o conselho de Jetro (Ex 18,19); o Sl 33,10 fala dos conselhos e
planos de nações e povos, que são contrários aos desígnios de Deus (cf. Is 8,10; 30,1; 2Rs 6,8;
18,10; 1Cr 13,1). No Sl 1,1, adverte-se que uma pessoa bem aventurada não anda no
“conselho dos ìmpios”. Nos profetas, Deus tem o poder de desfazer soberanamente os planos
humanos, e os desígnios de seu coração são eternos (Is 48,3; Jr 33,3). Em outros textos, a
inconstância do povo deve-se à “falta de conselho” (Dt 32,28; Jó 42,3; Pr 1,25.30; 12,15;
19,20-21) (HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998).
O verbo ya‘ats no nifal significa “consultar alguém ou um conselho”; o seu cognato
aramaico ye‘at, no hitpael, cujo único emprego na Bìblia é Dn 6,7[8], significa “conspirar”
(HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 1698). Em 1Rs 12,28, a forma verbal está no nifal,
45
46
mas o narrador não apresenta os conselheiros de Jeroboão, que poderia ser o próprio
Jeroboão11, os conselheiros da corte ou o povo (JENNI; WESTERMANN, 1985).
A referência ao “aconselhamento” de Jeroboão logo nos remete ao desastroso
conselho tomado por Roboão por ocasião da assembleia em Siquém, que resultou na divisão
do Reino, de acordo com 1Rs 12,8.13 (//2Cr 10,6.8). Por meio dessa associação textual, o
redator já insinua que as ações de Jeroboão são motivadas pela ambição, tal como teria sido o
caso Roboão.
No v. 28, Jeroboão toma uma atitude: ele age (“e fez”) e fala (“e disse”). Então, ele é
chamado, pela primeira vez, de “rei”. Saìmos da esfera da interioridade (“coração”, v. 26-27)
e passamos para a esfera pública: o rei “faz” e “fala” ao povo.
Antes desses versículos, Jeroboão era apresentado de modo sempre passivo. De
acordo com 1Rs 11,11-13.26-39 e 12,1-24, Jeroboão não instiga a revolta contra a casa de
Davi; ele apenas é o beneficiário da decisão de Javé. Em 1Rs 12,15 (// 2Cr 10,15), é Javé
quem está no controle da situação: “Assim, o rei (Roboão) não ouviu o povo; era uma
disposição de Javé, para cumprir a palavra que ele dissera a Jeroboão, filho de Nabat, por
intermédio de Aìas de Silo”. Em 1Rs 12,20, Jeroboão é aclamado rei por “todo Israel”,
portanto tem o apoio popular12. Neste contexto de “passividade” é que se dá a eleição de
Jeroboão como “servo” escolhido por Javé (1Rs 11,11), e essa eleição está no contexto
narrativo da punição ao pecado de Salomão/Roboão.
Quando, porém, Jeroboão fala e age como “rei”, ele fabrica imagens de touros jovens,
aclama-as solenemente diante da assembleia e as entroniza em Betel e Dã, em meio a
procissões e festa. A alternância entre o uso e o não uso do substantivo “rei” implica a
mudança de atitude de Jeroboão, entre passividade e ação. Assim, suas ações como “rei” são
consideradas pelo narrador iniciativas “pessoais”, e não de acordo com a vontade divina.
11
GREEN, David E. Theological Dictionary of the Old Testament, vol. 5, p. 160, diz que o uso do verbo no
Nifal sugere “tomar conselho junto”, a exceção é Jeroboão I em 1Rs 12,28, que “toma conselho consigo
mesmo”, citado por OLIVEIRA, 2010, p. 100.
12
Há ambiguidade no texto bíblico: em 1Rs 12,12 é dito que Jeroboão teria participado da assembleia de
Siquém; de acordo com 1Rs 12,18.20, ele teria chegado apenas depois da morte de Aduram.
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47
48
do deus da fecundidade e da tempestade, que traz a chuva; em certas tribos árabes, ele era o
símbolo do deus-lua.
A raiz hebraica para “touro jovem” (raiz ‘egel) em 1Rs 12,28 ocorre em diversos
outros textos: Ex 32,4.8.19.20.24.35; Lv 9,2.3.8; Dt 9,16.21; Js 11,6; 27,10; 1Sm 28,24; 1Rs
12,32; 14,9; 2Rs 10,29; 17,16; 2Cr 11,15; 13,8-9; Ne 9,18; Is 27,10; Jr 31,18; 34,18.19;
46,21; Ez 1,7; Am 4,4; 5,5s; 6,4; 7,9; Os 2,4-7.18; 8,4-6.9; 10,4-7.11; 13,2; Mq 6,6; Ml 3,20;
Sl 29,6; 68,31; 106,19.
Na maioria dessas citações o substantivo hebraico traduzido por “touro jovem” vem
acompanhado de termos como massekhah (“imagem de metal fundido”), ‘atsabyim (“ìdolos”)
ou ma‘aseh harashyim (“obra de artesãos”). Em 1Rs 14,9, os touros são considerados
representação de “outros deuses (’elohim ’aherym), e não de Javé. Em 2Cr 13,9, os touros
jovens são chamados de “não deuses” (lo’ ‘elohyim). Isto não ocorre em 1Rs 12,28.32, onde o
touro jovem é considerado sìmbolo de uma divindade: “Eis teus deuses (’eloheykha), Israel”
(v. 28); “para sacrificar aos touros jovens que fez”.
O texto de Ex 32,4, citação idêntica a 1Rs 12,28, retroprojeta os touros jovens de
Jeroboão I para o tempo do deserto, como se o símbolo do touro estivesse condenado desde as
origens de Israel13. Mas, curiosamente, o texto sobre a “reforma de Josias” (2Rs 22-23), que
condena violentamente o altar de Betel, não faz menção aos “touros jovens” de Jeroboão I.
Por associação a textos tardios como Ex 32; Dt 9,16; 1Rs 14; 2Rs 10 e 17; 2Cr 13; 11
e Ne 9, entre outros, somos levados a associar a “transgressão” de Jeroboão em 1Rs 12,28-30
à “fabricação” dos touros jovens (idolatria) ou ao culto a “outros deuses”. Esse sentido,
porém, representa uma fase tardia da teologia da Aliança de cunho anicônico e monoteísta (Ex
34,17) 14, no período do Segundo Templo.
Segundo Pakkala, a transgressão de Jeroboão não é o culto aos touros jovens, e sim a
desobediência da lei de centralização do culto a Javé em Jerusalém. O autor argumenta que a
intenção do texto de 1Rs 12,26-33 é impedir o crescimento da importância religiosa de Betel
no período do exílio, e incentivar a restauração do templo de Jerusalém. Uma maneira de se
fazer isso é declarar a ilegitimidade do culto em Israel, porque se dá fora da casa de Javé em
Jerusalém (2Rs 17,19-23). Para o autor, a destruição do altar e dos lugares altos em Betel por
Josias, de acordo com 2Rs 23,15, evidencia que a rejeição do culto em Betel não é por
considerá-lo não javista, ou por sua representação na forma de touro, e sim porque se trata de
13
Sobre as correspondências intertextuais entre 1Rs 12,28-32 e Ex 32,1-6, ver: OLIVEIRA, 2010.
14
Sobre o sentido do “pecado de Jeroboão”, há controvérsias se seria o lugar de culto ou a fabricação ou o culto
aos touros jovens. cf. ALTER, 2007, p. 163; RÖMER, 2008, p. 17-19; BOGAERT et al. 2013, p. 249.
48
49
culto a Javé em lugar errado. Para o narrador bíblico, Javé quer que o templo de Jerusalém
seja reconstruído (PAKKALA, 2002).
Em outro artigo, Pakkala reafirma que os touros são uma adição tardia a 1Rs 12,26-33.
Jeroboão teria sido ligado aos touros somente num estágio muito tardio do desenvolvimento
do livro de Reis. Antes da adição dos touros, o pecado de Jeroboão era somente a construção
de templos nos lugares altos. Segundo o autor, quando os touros deixam de ser o foco de
atenção na leitura de 1Rs 12,26-33, percebe-se claramente que o objetivo do texto é o lugar do
sacrifício. A ideia dos touros jovens em Betel e Dã seria uma construção tardia, a fim de
ridicularizar Jeroboão I como rei fundador, conclui o autor (PAKKALA, 2008).
Mas o símbolo do touro no campo da religião é, na verdade, muito antigo, dentro e
fora de Canaã, e perdurou por muito tempo. É provável que tenha sido durante o governo de
Jeroboão II, sobretudo a partir da crítica da profecia de Amós e Oseias, que cresceu a
polêmica em torno dos “touros jovens” de Betel e Samaria. Tais crìticas, porém, mais
parecem constituir uma denúncia contra a política do rei, representada metonimicamente no
símbolo dos touros jovens nos santuários nacionais, do que uma proibição à fabricação de
objetos cultuais. Somente no final do séc. VIII, notamos uma mudança na forma de
representação de Javé: a iconografia do touro é substituída por uma representação solar de
Javé (RÖMER, 2011). Porém, o culto aos “touros jovens” passou a constituir alvo de
acusação de idolatria ou politeísmo somente no período persa-helenista15.
Após a fabricação dos touros jovens, Jeroboão os teria apresentado ao povo com uma
aclamação que associava os touros jovens à tradição do Êxodo: “Eis teus deuses, Israel, que te
fizeram subir da terra do Egito”.
A exortação começa com a seguinte frase: “Basta para vós subir a Jerusalém”. A raiz
verbal ‘alah indica que não é mais necessário o povo “subir” a Jerusalém para adorar o deus
que o fez “subir” da terra do Egito16 (v. 28). O paralelismo estabelecido pelo uso do mesmo
verbo, por um lado, equipara a opressão imposta pela casa de Davi à opressão egípcia no
15
A relação entre “touro jovem”, “teus deuses” e a “subida do Egito” é tema da apresentação do capìtulo 3 desta
dissertação, a propósito da tradição do culto a Javé em Israel Norte.
16
Sobre o sentido do verbo “subir” (‘alah) na fórmula do Êxodo, ver: LIVERANI, 2008, p. 339-343.
49
50
passado; por outro, sugere que Jeroboão teria se aproveitado de um sentimento generalizado
de insatisfação do povo devido à opressão dos governos de Salomão/Roboão (1Rs 12,16) para
dar inìcio a um “novo culto” em Israel, dado que a narrativa considera o culto a Javé em
Jerusalém mais antigo.
Segundo o texto, a razão para não precisar “subir” a Jerusalém é que os “deuses” de
Israel, que o fizeram subir do Egito, estão presentes no meio do povo, através da
representação dos dois touros jovens (v. 28), colocados um em Betel e o outro Dã (v. 29). O
narrador se refere à divindade do Êxodo com o substantivo hebraico na forma plural, com
sufixo pronominal de segunda pessoa, ’eloheykhem (“teus deuses”), e não com o tetragrama
do nome “Javé” (Yhwh). A raiz ’el e a forma plural sugerem ambiguidade.
“El” (’el) é o nome próprio da deidade-chefe do panteão ugarítico, geralmente
traduzido por “Deus”, no singular (a forma plural de ’el é ’elim, “deuses”). A divindade El era
comumente representada na forma de touro. O elemento teofórico –El encontra-se, por
exemplo, em “Betel”, que significa “casa de El”, e não “casa de Javé”; e em “Israel”, que é o
nome de um povo que se identifica com o deus El, mas que passou a ser conhecido como o
“povo de Javé”. Em Nm 23,22 e 24,8, por exemplo, lê-se: “El, o que o fez sair do Egito, seus
chifres são como os do touro selvagem”.
O substantivo ’elohim é a forma plural do substantivo masculino ’eloha. No singular,
’eloha é traduzido por “deus”. Mas, no plural, ’elohim pode ser traduzido tanto por “deuses”
como por “deus” (com sentido de singular) (KIRST, 2001).
O texto de 1Rs 12,28-29 se refere a dois santuários e a dois touros, mas os touros não
estariam representando deidades diferentes, conforme sugere a forma hebraica plural
’elohykhem, e sim o deus nacional de Israel Norte em suas manifestações locais: em Betel e
em Dã17. Römer considera especulativa a ideia de que o plural pudesse se referir à consorte
Asherá, visto que não há associação da deusa com a tradição do Êxodo. Outra explicação,
segundo Römer, seria entender o plural como uso polêmico: o narrador quer convencer a
audiência de que o culto nos santuários norte-israelitas de Betel e Dã é politeísta. O autor
compara 1Rs 12,28 com Ex 20,3-4, texto no qual se diz que Israel não deve ter “outros
deuses” (’elohyim ’aheryim) “perante mim” (‘al-panaya). Não deve fazer (‘asah) “ìdolo”
(phesel) nem se prostrar diante de “toda imagem” (khol-temunah). Assim, conclui Römer, a
forma plural em 1Rs 12,28 deve ser uma corrupção de uma aclamação litúrgica original no
singular (RÖMER, 2015a).
17
Sobre as diversas alusões ao culto local a Javé, dentro e fora da Bíblia, ver: RÖMER, 2011, p. 2.
50
51
Albertz concorda que a pluralidade das imagens dos touros jovens (v. 28.32; Os 10,5;
13,2) enfatiza a reprovação do politeísmo no Reino do Norte, visto que outros registros falam
somente de um touro jovem, no singular (Os 8,5; Ex 32,4.8; Dt 19,16; Sl 106,19). Segundo o
autor, cada santuário devia contar com uma imagem cultual do touro jovem, portanto a
fórmula de aclamação litúrgica original estaria no singular (ALBERTZ, 1999).
Albertz ainda compara a aclamação “Eis teus deuses, Israel, que te fizeram subir da
terra do Egito” em três passagens, que apresentam pequenas alterações: 1Rs 12,28 (“eis”,
hinne), Ex 32,4.8 (“este”, ’elle) e Ne 9,18 (“este”, ze). Sua conclusão é a de que se trata de
uma aclamação cultual habitual com que se apresentava a imagem diante da assembleia
reunida no templo de Betel (estilo direto, partículas dêiticas e alocução na segunda pessoa).
Deste modo, a figura do touro representaria, na perspectiva do Reino do Norte, a força do
deus libertador da escravidão do Egito e do trabalho forçado imposto por Salomão e Roboão.
Note-se que, nesta memória do Êxodo, não há menção a Moisés (ALBERTZ, 1999; SMITH,
2006).
Outra questão relativa ao uso do substantivo ’eloheykhem (“teus deuses”) é se a raiz
‘el é apenas um termo genérico para “deus”; e, neste caso, o deus do Êxodo em 1Rs 12,28
seria Javé. Ou trata-se de resquício de antiga tradição do Reino do Norte segundo a qual a
libertação do Egito foi atribuída, inicialmente, ao deus El, antes de Javé tornar-se o deus
nacional de Israel.
Albertz não considera ‘egel uma designação oficial do touro jovem de Betel, uma vez
que não é usado como um epíteto referido a Yhwh. Neste sentido, ao contrário de Römer, que
traduz a inscrição do óstraco de Samaria18 com o nome ‘glyw como “Javé é um touro jovem”
(RÖMER, 2015b, p. 109), Albertz adverte que o óstraco deveria ser traduzido não como
“Javé é um touro jovem”, mas no sentido de que o portador era designado como um “touro
jovem”, “filho de Javé” (ALBERTZ, 1999; SMITH, 2006). Ou seja, para Albertz, o uso do
substantivo ’elohim é um modo de evitar a associação entre o nome “Javé” e a representação
do touro jovem.
Kaefer considera a possibilidade de que a tradição do Êxodo estivesse associada,
inicialmente, à divindade El e à sua representação na forma de touro jovem. Quando Javé se
tornou a divindade nacional de Israel Norte, ele já teria assimilado alguns atributos de El, e a
18
Conjunto de fragmentos de cerâmica do período de Jeroboão II com informações sobre quantidade de jarras de
vinho, óleo, etc.
51
52
forma de representação do touro, o que difere da tradição de Judá, onde a arca com os
querubins constituía o símbolo da presença de Javé (KAEFER, 2015a)19.
Consideramos que o texto de 1Rs 12,28 se reporta ao culto oficial em Israel Norte à
época de Jeroboão II, na primeira metade do séc. VIII. Neste contexto, no v. 28, o touro
jovem, assim como a expressão ’eloheykhem (“teus deuses”) representariam Javé, o deus do
Êxodo, em liturgias nacionais como as que eram realizadas nos chamados santuários do rei,
como Betel e Samaria. O não uso do nome Javé seria, então, uma forma de o redator (tardio)
evitar associar o nome de Javé à representação material da divindade (idolatria) ou a uma
forma de representação considerada ilegítima (em comparação com a representação da arca e
dos querubins no templo de Jerusalém). Ainda no séc. VIII, o culto oficial a Javé nos
santuários do rei não excluía o culto a Asherá, sua consorte, conforme evidenciam as
inscrições de Kuntillet „Ajrud, nem o culto a outras divindades auxiliares, masculinas e
femininas (CROATTO, 2001; NA‟AMAN; LISSOVSKY, 2008; RÖMER, 2015b).
Porém, consideramos que o uso da expressão ’eloheykhem (“teus deuses”), a
referência ao sìmbolo do touro e as manifestações locais da divindade em “Betel” e “Dã” em
1Rs 12,28-29 revelam uma tradição de culto própria de Israel Norte, segundo a qual a
libertação do Egito teria sido atribuída, inicialmente, ao deus El. O deus Javé, que teria sido,
no princìpio, uma divindade secundária, ou considerado um dos “filhos de El” (Sl 89,7.8), ao
se tornar o deus nacional de Israel Norte, já teria assimilado atributos de El, a forma de
representação do touro, a tradição do Êxodo e inclusive a consorte Asherá.
O uso da forma plural ’elohykhem (“teus deuses”) em 1Rs 12,28 nos parece uma
tentativa de acusação contra o politeísmo em Israel Norte, ou mesmo contra a fabricação de
estatuetas/imagens, tradição comum no Antigo Oriente Próximo. Tais acusações, porém, tal
como aparecem em textos tardios, como vimos (1Rs 14,9; 2Rs 17,16; Ex 32,8.31; Dt 5,7-8;
9,16.21; 13; 2Cr 13,8-9), refletem conflitos entre o santuário de Jerusalém e o santuário de
Garizim, no período persa-helenista, retroprojetados para o tempo de Jeroboão I (RÖMER,
2014).
19
Sobre a relação entre a simbologia do touro, Javé e a tradição do Êxodo, ver KAEFER, 2015a, p. 878-906.
52
53
A cena da fabricação e exortação dos touros jovens conclui-se com a entronização das
estátuas nos santuários de Betel e Dã, em meio a uma procissão festiva (v. 29.30b).
Relacionada a Betel, a raiz verbal sym tem como significado básico “por ou colocar
algo em algum lugar ou indicar que algum objeto foi colocado em determinado lugar”. Mas
também pode significar “estabelecer um novo relacionamento à medida que identifica a
colocação de algo ou alguém numa nova situação” (HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998).
O verbo hebraico natan significa “dar, por, colocar”, com amplo campo semântico (HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998). Paralelamente, os dois verbos indicam os locais onde os dois
touros jovens foram entronizados, um Betel e o outro em Dã, estabelecendo-se, assim, uma
“nova situação” para o culto a Javé no Reino do Norte, uma vez que, segundo o redator, o
santuário de Jerusalém seria mais antigo.
Betel e Dã, no v. 29, representam os limites geográficos de Israel ao sul e ao norte,
respectivamente, e, do ponto de vista simbólico, a totalidade do reino. Betel, citada uma vez
no v. 29 e duas vezes no v. 32, provavelmente é o foco principal da unidade. Além disso,
como vimos na Crítica Textual, embora não seja citada no v. 30b, há uma nota que sugere a
inclusão da expressão “a Betel” para completar o sentido do versìculo, que ficaria assim: “e
caminharam o povo diante de um em Betel e diante de um até Dã”.
Os touros jovens nos santuários de Betel e Dã marcariam, no plano narrativo, a
presença da divindade protetora de Israel, o deus do Êxodo, no “recém-fundado” Reino do
Norte, rompendo-se, assim, com a lei da centralidade do culto na “casa de Javé em Jerusalém”
e com a “casa de Davi” (v. 26-27). Entendemos que este seria o primeiro sentido atribuído ao
“pecado” de Jeroboão: o local do sacrifìcio.
Betel é a localidade mais citada na Bíblia Hebraica, depois de Jerusalém. Ela é
considerada talvez o lugar de culto mais importante do Reino do Norte. É o centro das
tradições em torno do ciclo de Jacó em Gênesis (Gn 12,8; 13,3; 28,19; 31,13; 35,1-15).
Aparece nas conquistas de Josué (Js 7; 8; 12; 16,1; 18,13) e no livro dos Juízes (Jz 1,22-26;
4,5; 20,18.26-29; 21,2). Está relacionada a Saul e Samuel, no Primeiro Livro de Samuel (1Sm
7,16; 10,3-4). É santuário oficial de culto no Reino do Norte, especialmente como o local de
um dos “touros jovens” estabelecidos por Jeroboão I (1Rs 12,29-33; 13,1), como vemos. É
depreciada no ciclo de Elias-Eliseu (2Rs 2; 10,29) e fortemente criticada em Amós (3,14; 4,4;
53
54
5,5.6; 7,10-13) e Oseias (10,5-13; 12,5). É lugar de assentamentos assírios, após a queda de
Samaria (2Rs 17,28). É o alvo principal no relato da reforma de Josias (2Rs 23,15-16). E, por
fim, Betel ainda figura na lista de cidades dos repatriados em Esd 2,28 e Ne 7,32. O termo
“Betel” em Zc 7,2 refere-se, provavelmente, a nome de pessoa e não a lugar. Assim, Betel é,
ao mesmo, local sagrado de fundação do Reino do Norte e casa da perversão de Israel
(TOSELI; KAEFER, 2015).
A referência a Dã no v. 29 segue no v. 30b, após a intercalação do comentário do
narrador (v. 30a). A caminhada diante de estátuas ou imagens pode representar rito
processional ou peregrinação festiva (v. 30b). Pouco sabemos sobre a liturgia em torno dos
touros jovens, mas Os 13,2 sugere que as estátuas eram beijadas, ou que o povo lhe mandava
beijos, e talvez até pudesse tocá-las, em sinal de adoração, quando, por exemplo, em certas
festas, a imagem era exposta ao público. Ao que tudo indica, era uma festa alegre e popular
(ALBERTZ, 1999).
De acordo com a tradição de Jz 17-18, Dã é um antigo santuário norte-israelita, que
ficava sob a responsabilidade dos levitas, para onde foi levada uma “imagem de escultura”,
“ìdolo de metal fundido” (Jz 17,3-4 e 18,14.30), provável alusão ao “touro jovem”
(HALPERN, 1976). Em Jz 18,30, é dito que os levitas permaneceram em Dã até a invasão dos
assírios em 721. Esta informação contrasta com 1Rs 12,31, que acusa os sacerdotes locais por
não serem de origem levita.
Quando comparamos as referências bíblicas a Betel e Dã com algumas pesquisas
arqueológicas recentes, há divergências. De acordo com Arie (ARIE, 2008), Dã se tornou
israelita pela primeira vez somente na época de Jeroboão II (783-743) e foi tomada pela
Assíria no final do séc. VIII. Um dos últimos registros relativos a Dã de que dispomos é uma
inscrição do séc. II: “Ao Deus que está em Dã” (KAEFER, 2016b).
A reavaliação dos resultados das escavações do sítio de Betel indica que esteve
desabitado ou fracamente ocupado no período de Jeroboão I, após a campanha militar de
Sheshonq I em Canaã no séc. X; as atividades na região seriam retomadas no período de
Jeroboão II, na primeira metade do séc. VIII; seguiu-se um período de baixa atividade no séc.
VII; durante o período babilônico e persa, o sítio de Betel esteve desabitado ou quase deserto.
Somente no séc. II retomou-se o desenvolvimento de Betel (FINKELSTEIN; SINGER-
AVITZ, 2009).
Com base nas informações da arqueologia podemos deduzir que o texto de 1Rs 12,26-
32 reflete a configuração do território israelita durante a fase de prosperidade do reinado de
54
55
Jeroboão II, retroprojetada para o tempo de Jeroboão I (BERJUNG, 2009). Thomas Römer,
apoiando-se no argumento de Arie (ARIE, 2008), também considera que a menção a Dã em
1Rs 12,29.30b é uma retroprojeção do tempo de Jeroboão II (cf. Am 9,21). E ele vai além,
perguntando se seria o caso de considerar a figura de Jeroboão I uma criação baseada na
figura do rei Jeroboão II (RÖMER, 2015a)20.
Afinal, a condenação do culto a Javé nos santuários de Betel e Dã em 1Rs 12,26-32
tem por finalidade, no livro de Reis, estabelecer a ilegitimidade de todos os santuários norte-
israelitas, à época da redação. Contudo, os redatores têm como referência a realidade político-
religiosa de Israel Norte à época de Jeroboão II, e não a de Jeroboão I, no séc. X.
Resumindo, os v. 28-29 sugerem que Jeroboão, do ponto de vista do narrador, valeu-
se de uma estratégia ambiciosa para se manter no poder, a saber: inovações cultuais. A
primazia da casa de Davi e do culto a Javé em Jerusalém, estabelecida nos v. 26-27, nos leva a
considerar a prática cultual norte-israelita, conforme descrita nos v. 28-29, como se fosse uma
mudança em relação à legítima forma de culto, previamente estabelecida em Jerusalém.
Assim, a fabricação das estátuas dos touros jovens é vista como uma inovação em relação ao
símbolo tradicional da arca (assim considerado); o culto nos santuários de Betel e Dã seria
posterior ao culto em Jerusalém; e os “deuses” cultuados em Israel Norte seriam outros
deuses, ou seria “Javé” cultuado ao lado de outras divindades – de qualquer modo, uma
maneira de menosprezar o culto norte-israelita. À parte a ideologia do texto, essas seriam
práticas cultuais autênticas do Reino do Norte.
30
E isto se tornou transgressão; e caminharam o povo diante de um até Dã.
20
Thomas Römer não desenvolve a questão no artigo citado.
55
56
21
Sobre a relação entre rei e culto nacional, ver: KEEFE, 2003, p. 93-131.
22
Consideramos mais provável que a reconstrução de Siquém e Penuel seja uma retroprojeção do período do
reinado de Jeroboão II para o tempo de Jeroboão I.
56
57
Davi e à casa de Javé em Jerusalém (v. 26-27) indica que o texto pode ter servido como
propaganda do rei e do clero urbano (sadocita) contra santuários considerados rivais a
Jerusalém, como o de Betel, ou santuários judaìtas do interior (os chamados “lugares altos”, v.
31.32). Neste contexto, a “transgressão” de Jeroboão teria sido a desobediência à lei de
centralidade do culto no “lugar escolhido” para a oferta dos sacrifìcios (Dt 12,13-18), isto é,
“a casa de Javé em Jerusalém” (v. 26).
Mais tarde, no período do Segundo Templo, teria havido uma nova releitura da
tradição do culto norte-israelita, provavelmente no contexto da reconstrução do templo de
Garizim, em Siquém. Assim, a ênfase interpretativa a propósito da “transgressão” de Jeroboão
(v. 30) passa a recair sobre a adoração aos “touros jovens” como sìmbolo da presença de Javé,
em desobediência à lei de proibição à fabricação de imagens, conforme Dt 5,7-8. E pode ser
uma alusão à prática politeìsta (“outros deuses”, v. 28), como o culto a Baal e a todo o
exército do céu, por exemplo (Ex 20,2-3; 2Rs 17,7.16.33.35-41). Essas interpretações
teológicas refletem a tendência oficial à consolidação de um javismo monoteísta e
iconoclasta, no período do Segundo Templo, a partir de Judá.
Contudo, é importante ter presente que o relato da tradição do culto a Javé em Israel
Norte, conforme atesta 1Rs 12,26-32, baseia-se em fontes mais antigas, pré-deuteronomistas,
que refletem o período de Jeroboão II (como vimos, a referência a Jeroboão I seria uma
retroprojeção), e que teriam chegado a Judá após a queda de Samaria.
31
E fez a casa de lugares altos; e fez sacerdotes d[as] extremidades do povo,
32
que não eram dentre os filhos de Levi. E fez Jeroboão festa no oitavo mês,
aos quinze dias do mês, como [a] festa que [se fazia] em Judá, e subiu ao
altar, assim fez em Betel, para sacrificar aos touros jovens que fez; e
estabeleceu em Betel os sacerdotes dos lugares altos que fez.
Nos v. 31-32, o narrador continua com a enumeração das ações atribuídas a Jeroboão
(iniciada no v. 28). O uso da forma verbal “e fez” (vaya‘as) assegura a coesão entre as duas
partes. Jeroboão teria feito “casa de lugares altos” (beyit bamot), instituìdo “sacerdotes
(kohen) das extremidades do povo, que não eram filhos de Levi”, “sacerdotes dos lugares
57
58
altos”, estabelecido a data da “festa” (hag) e oferecido “sacrifìcios” no altar de Betel aos
touros jovens que fez.
A forma plural “lugares altos” (bamot) traduz o substantivo singular hebraico bamah.
O sentido básico de bamah é de designação topográfica: “costas”, “flanco”, “colina”, “local
elevado” ou “cume” de montanhas (Dt 32,13; Is 58,14; Am 4,13; Mq 1,3), das nuvens (Is
14,14) ou do mar (as ondas, Jó 9,8), lugar elevado para evitar ataques (2Sm 22,34; Sl 18,34;
Hab 3,19) (McKENZIE, 1983; HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998; BOGAERT et al.
2013). Mas, na maioria das vezes, “lugar alto” se refere a lugar de culto.
Nas referências bíblicas aos lugares altos, normalmente acompanham termos como
asherah, árvore ou poste de madeira, que era símbolo da deusa da fertilidade, ou pequenos
bosques sagrados, que sombreavam o altar (Dt 16,21; Jz 6,25-30); massebah ou pedras
erguidas, que simbolizavam a presença da divindade (Gn 28,18; 2Rs 3,2); altares feitos de
pedra (2Rs 21,3; 2Cr 14,3), para sacrifícios e oferta de incenso (2Rs 21,3; 2Cr 14,2; Ez 6,6);
gabbim, que era uma tenda ou aposento onde os vasos cultuais eram guardados e as porções
sacrificiais eram comidas (1Rs 12,31; 13,32; 2Rs 17,29; 23,19). As principais atividades nos
lugares altos seriam queima de incenso, sacrifícios, refeições sacrificiais, preces, prostituição
(Ez 16,23-43; Lv 21,9) e sacrifício de crianças (2Rs 17,17) (McKENZIE, 1983).
Para Mckenzie, o lugar alto era essencialmente um santuário rural, ao ar livre, em
contraste com os templos urbanos (McKENZIE, 1983). Para RÖMER, também se trata de
santuários locais, ao ar livre, debaixo de árvores ou no cume de montes, diferente de “casa
(beyt) de Javé” e do “templo (heykhol) de Javé” (RÖMER, 2015b). Gerstenberger se refere à
bamah como lugar de culto local ou regional, diferente da casa e de santuário nacional
(GERSTENBERGER, 2007). Bogaert fala de “lugares altos” como colinas artificiais criadas
para o culto, ora “construìdas” (1Rs 11,17; 14,23; 2Rs 17,9; 21,3; Jr 19,5), ora “destruìdas”
(2Rs 23,8; Ez 6,3) (BOGAERT et al. 2013; FRIED, 200223).
As bamot existem desde a época canaanita antiga (Meguido) até o final da época
monárquica em Judá (Malhah, a sudeste de Jerusalém), e certamente depois, como podemos
23
A autora comenta sobre as bamot serem construções essencialmente urbanas e sua destruição estar ligada às
campanhas Sheshonq I, Teglat-Falasar III, Salmanasar IV e Senaquerib (e não às reformas de Ezequias e Josias).
58
59
depreender das crìticas aos “lugares altos” no perìodo persa-helenista. Estão situadas em plena
cidade, ou perto de uma cidade, ou no campo, e se apresentam sob a forma de plataformas
ovais ou circulares de 6 a 25 metros de diâmetro, construídas sobre pedras grossas, munidas
de uma escada para subir e envoltas por um muro retangular ou poligonal que delimitava o
espaço sagrado (BOGAERT et al. 2013).
De uma forma ou de outra, os “lugares altos”, elevações naturais ou construìdas, com
estruturas mais ou menos complexas, dentro ou fora das cidades, geralmente são repudiados
como lugar de culto ilegítimo e imoral, seja em referência ao culto a Javé, seja em referência
ao culto a “outros deuses”.
Dentre as poucas referências positivas aos lugares altos, estão a do sacrifício de
Samuel, em Ramá (1Sm 9,12.13.14.19.25;10,5.13), e a de Salomão e o povo, em Gabaon,
antes da construção do “templo” (1Rs 3,2.4).
As citações negativas sobre o culto nos lugares altos estão no Pentateuco (Ex 20,3; Lv
26,30; Nm 22,41; 33,52), nos livros Proféticos (Os 10,8; Am 4,13; 7,9; Mq 1,3.5; 3,12; Jr
7,31;19,5; 32,35; Ez 6,3; 16.16; 20,28; Hab 3,19), em Jó 9,8, nos Sl 16,34; 78,58; em 2Cr
21,11; 28,25 e 33,17.19 e, sobretudo, no livro de Reis. Tantas referências atestam a prática
generalizada do culto nos lugares altos.
No livro de Reis, o substantivo hebraico na forma plural bamot, “lugares altos”, refere-
se a culto não só em Israel (1Rs 12,32; 1Rs 13,33; 2Rs 17,9.11; 23,15.19-20), como também
em Judá. Em 1Rs 14,23, Roboão, rei de Judá, constrói “lugares altos” e reproduz todas as
abominações das nações que Javé havia expulsado de diante dos israelitas (v. 24). Em 1Rs
15,14, Asa (911-870), rei de Judá, empreende grande reforma religiosa, mas não consegue
fazer desaparecerem os “lugares altos”. Em 2Rs 18,4, Ezequias faz uma tentativa de destruir
os lugares altos, mas não consegue. Em 2Rs 23,5.8.9, o rei Josias condena com veemência os
“lugares altos” das cidades de Judá e dos arredores de Jerusalém, inclusive aqueles edificados
por Salomão a diversas divindades estrangeiras (2Rs 23,8.13; cf. 1Rs 11,7).
Há referência a lugar alto também nos territórios vizinhos a Israel e Judá. Na inscrição
de Mesha, rei de Moab, faz-se menção a um “lugar alto” (bamah) no território moabita de
Aroer (McKENZIE, 1983).
Assim, apesar da referência aos santuários do rei em Betel e Dã (1Rs 12,29), de acordo
com os v. 31-32, não havia centralização do culto. Mantinha-se a tradição do culto nos
“lugares altos”, o que parece ter sido proibido pela tradição de Jerusalém, segundo os
redatores deuteronomistas, provavelmente a partir do período de Josias.
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60
24
Sobre as cinco ocorrências da expressão “casa/s de lugares altos” em Reis, ver: BARRICK, 1996, p. 621-642.
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deuses. Por um lado, repetem-se as mesmas expressões em 1Rs 12,31 e 2Rs 17,32:
“sacerdotes das extremidades do povo” e “sacerdotes dos lugares altos”. Por outro, sobressai,
em 2Rs 17,32, a acusação de politeísmo, pois esses sacerdotes prestariam culto a Javé e a
outras divindades.
Na rede textual, a associação entre 1Rs 12,31.32 e 2Rs 17,32 tem como efeito a
retroprojeção da acusação de politeìsmo (explìcito no texto de 2Rs 17) para “o tempo de
Jeroboão I”, sugerindo-se, assim, que tal prática é contínua no Norte, desde suas origens até
“os dias de hoje” (2Rs 17,35-41[34.41]), e esta foi a razão para a queda do reino.
Tudo indica que a tradição de culto no Norte está relacionada a vários santuários,
chamados “lugares altos”, e que a função sacerdotal nestes lugares de culto é exercida por
diferentes grupos de origem local. Não devem pertencer a uma linhagem especial, nem
necessitam ser “separados” do povo.
2.8.2.3.2 Sacerdotes “que não eram dentre os filhos de Levi” (v. 31)
62
63
63
64
64
65
65
66
2.8.2.4 A festa
Por fim, Jeroboão teria instituìdo uma “festa, no oitavo mês no décimo quinto dia do
mês”. A palavra hebraica para “festa” (hag) significa na origem “coro de dança” (BOGAERT
et al. 2013). O substantivo hag traduz o sentido de festa, festa religiosa, festa de peregrinos,
solenidade, dia santificado ou período de alegria ligado à religião. Este sentido combina com
1Rs 12,30b, que diz que “caminharam diante de um até Dã”, sugerindo uma procissão ritual.
De acordo com a data proposta para a festa de Jeroboão em 1Rs 12,32, o substantivo
hag sugere que seja a festa da colheita. A festa da colheita corresponde ao fim da colheita dos
frutos da terra (uvas, azeitonas, tâmaras, etc.; Ex 23,16; 34,18-22; Lv 23,33-43; Dt 16,16; 2Cr
8,13), e a preparação do vinho – é uma festa da alegria (McKENZIE, 1983; HARRIS;
ARCHER; WALTKE, 1998).
De acordo com Dt 16,13-15, a festa da colheita prescreve a celebração por sete dias,
começando no décimo quinto dia do sétimo mês (chamado Ethanim ou Tishri), o que seria em
meados de setembro ou outubro.
Em Dt 26,1-11, determina-se a oferta de um cesto com todas as primícias dos frutos da
terra que Javé dará a seu povo “no lugar que Javé teu Deus houver escolhido para aí fazer
habitar o seu nome”.
Em 1Rs 8, no mês de Ethanim, que é o sétimo mês, durante a festa da colheita,
Salomão teria convocado todo o povo para a transladação da Arca da Aliança da Cidade de
Davi (Sião) para o Templo de Jerusalém (v. 1-2). Esta festa incluía uma procissão anual com
a arca até o templo e a apresentação de sacrifícios de ovelhas e bois diante da arca (v. 5). A
condução da arca pelos sacerdotes foi feita “sob as asas dos querubins”, “os querubins
estendiam suas asas sobre o lugar da Arca” (v. 6.7). De acordo com a cena, Javé se manifesta
na Nuvem (v.10-11), o rei abençoa a assembleia (v. 14), faz uma longa oração e, por fim,
despede o povo.
Ora, quando comparamos 1Rs 8 com 1Rs 12,26-32, percebemos a mesma dinâmica
textual nas duas festas, afinal, como diz o narrador, Jeroboão buscava realizar uma festa
“como a que [se fazia] em Judá” (1Rs 12,32), para que o povo não continuasse a subir à casa
de Javé em Jerusalém (1Rs 12,27). Assim, Jeroboão celebra com o povo a dedicação dos
santuários de Betel e Dã (1Rs 12,29), novo lugar da presença de Javé (e não Jerusalém), a
divindade se manifesta na forma do “touro jovem” (e não da arca/nuvem), em memória da
66
67
Provavelmente durante o festival, Jeroboão subiu ao altar de Betel para sacrificar aos
touros jovens (v. 32).
Quanto à ação de sacrificar aos touros jovens, vimos que, segundo o texto bíblico, os
reis tinham a prerrogativa de apresentar sacrifícios (1Rs 3,4; 9,25; 2Rs 16,12.13). Mas, ao
contrário de Davi e Salomão, somente Jeroboão é punido por isso.
Quanto ao “altar de Betel”, ele é um alvo constante da crìtica judaìta às práticas
cultuais norte-israelitas. Na sequência narrativa do livro de Reis, segue, em 1Rs 12,33-13,10,
o anúncio profético da destruição do altar de Betel e da promessa de nascimento de um rei da
casa de Davi, Josias, que, então, realizaria esse oráculo. O texto da reforma de Josias retoma a
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figura deste profeta (“o homem de deus de Judá”) ao apresentar a cena da destruição do altar
de Betel e da morte dos sacerdotes dos lugares altos que nele ofereceram sacrifícios (2Rs
23,15-18.20).
Os relatórios das escavações afirmam ter havido fraca atividade em Betel à época de
Josias (FINKELSTEIN; SINGER-AVITZ, 2009). Mas, de acordo com 2Rs 17,15-41, teria
continuado a existir alguma forma de culto em Betel após os acontecimentos de 721. Assim, a
condenação do altar de Betel em 1Rs 12,32 bem se encaixa no contexto da chamada reforma
de Josias e traduz antigas rivalidades entre os dois santuários.
Provavelmente, a crítica de Amós e Oseias contra o culto em Betel e Samaria à época
de Jeroboão II serviu de base à condenação dos santuários norte-israelitas à época de Josias e,
mais tarde, no período persa-helenista (Am 3,14; 4,4; 9,1; Os 8,5.6; 10,5.15; 13,2).
Jeroboão sobe ao altar de Betel, durante os dias da festa, “para sacrificar aos touros
jovens” (lzabeha la‘agalim”), v. 32.
O verbo hebraico zabhah (“sacrificar”) se liga ao substantivo plural de mesma raiz
“sacrifìcios”, no v. 27. A expressão “aos touros jovens” estabelece a ligação com os v. 28 e
29.
O sentido básico da raiz verbal zbh é abater animal. O substantivo significa sacrifício
“comunitário” (KIRST, 2001). Geralmente, a gordura é queimada e a carne consumida
comunitariamente em refeição ritual (NAKANOSE, 2000). Em Lv 3,1-17, zbh aparece como
zebhah shelamim, que significa “sacrifìcio de comunhão” ou “sacrifìcio pacìfico”. No
“sacrifìcio de comunhão”, a gordura e partes especìficas dos órgãos internos são queimadas
sobre o altar pelo sacerdote, que tem direito “ao peito e à coxa” (Lv 7,31-32). No sacrifício de
“holocausto” (‘olah), cuja raiz é a mesma do verbo ‘alah, que significa “subir”, a carne é
totalmente queimada sobre o altar (1Rs 9,25).
Em 2Sm 15,12, é Absalão quem oferece “sacrifìcios” (zebah) durante a rebelião contra
Davi (NAKANOSE, 2000, p. 245). Absalão não é rei, nem sacerdote, o que sugere que o
ritual deste sacrifício podia ser realizado fora do templo, em santuários locais, presididos pelo
chefe de família.
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2.9 RELEITURAS
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(2Sm 9 – 2Rs 2); as histórias de Salomão, considerado rei sábio e construtor de templo (1Rs 3
– 11); a vida de Moisés, líder da libertação do Egito, segundo a versão do livro do Êxodo; os
relatos da conquista da terra; a ideia de um Reino Unido, sob o governo da casa davídica, e,
certamente, o Êxodo como tradição de um Israel unificado, norte e sul.
É possível que o sofrimento decorrente das invasões e deportações assírias no Reino
do Norte e em Judá, nos séc. VIII e VII, e da subsequente queda do Império Assírio por volta
dos anos 620, durante o governo de Josias, tenham fortalecido a tradição do Êxodo como
propaganda nacionalista anti-Egito/Assíria, tornando-se memória fundante de Israel (norte e
sul) como um só povo desde as origens. E rivalizando com a tradição fundante de Jacó,
associada a Israel Norte. A aclamação de Jeroboão “aos deuses” que fizeram Israel subir do
Egito, em 1Rs 12,28, retrata, no nível da redação, essa ideia do Êxodo como tradição de um
Israel unificado desde as origens.
Assim, compreendemos que uma primeira redação de 1Rs 12,26-32 no tempo de
Josias funcionaria mais como uma propaganda do rei judaíta em sua campanha de anexação
do território de Betel e de sua reforma de centralização do culto em Jerusalém, contra os
lugares altos e os sacerdotes que aì atuavam, do que um relato “historiográfico” sobre os
reinados de Jeroboão I e Roboão (RÖMER, 2008).
Mas há elementos na narrativa de 1Rs 12,26-32 que sugerem uma releitura pós-exílica
sobre a monarquia de Israel Norte e suas tradições do culto. Em outras palavras, a crítica
josiânica a Betel e a Jeroboão, à diversidade de locais de culto, à apresentação de sacrifícios e
à instituição de sacerdotes locais foram retomadas e ganharam novo sentido à época do
Segundo Templo.
Diante da crise instaurada pela queda dos dois reinos, e da inviabilidade de restauração
da monarquia em Israel e Judá, desenvolve-se, no exílio e no pós-exílio, uma releitura do
passado em perspectiva histórica. A realidade presente é entendida como o resultado de uma
sucessão de eventos, cronologicamente ordenados na sequência narrativa.
Este esforço de reconstrução do passado se dá a partir de um olhar essencialmente
teológico, com teor retributivo; e o narrador onisciente dessa história afirma que nada escapou
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Por exemplo, a referência aos levitas em 1Rs 12,31 é uma indicação de releitura do
texto no período pós-exílico. No tempo de Josias, os levitas eram sacerdotes de segunda
categoria, submissos ao clero sadocita de Jerusalém. Neste versículo, eles ocupam uma
posição dominante. O fortalecimento dos levitas dentre os grupos sacerdotais é próprio do
período do Segundo Templo, e certamente sua hegemonia resulta em conflitos com grupos
sacerdotais, ligados ao templo de Garizim e a outros locais de culto (RÖMER, 2008).
Outra indicação de releitura é a condenação do culto nos “lugares altos” (bamot). À
época de Josias, os lugares altos estavam relacionados ao culto a Javé (e outras divindades) e
foram proibidos devido à lei da centralidade do culto no templo de Jerusalém (Dt 12,13-18).
No pós-exílio, a condenação do culto nos lugares altos é uma acusação de politeísmo, culto
dedicado a “outros deuses” (1Rs 11,5-7; 2Rs 17,1-2.24s; 2Rs 23,13; RÖMER, 2008).
Ao lado da acusação de politeísmo, normalmente se dá a acusação de idolatria,
entendida como fabricação e adoração de objetos cultuais. À época de Josias, a condenação ao
touro jovem de Betel, ecoando a crítica da profecia de Oseias e Amós, deveria ser uma
maneira de depreciar a tradição do culto norte-israelita, em favor do templo de Jerusalém.
Talvez ainda houvesse em Betel, no séc. VII, algo da tradição do culto a Javé representado na
forma de touro jovem, que rivalizava com o símbolo da arca em Jerusalém. Não era acusação
contra o uso de imagens cultuais. Mas, no pós-exílio, com o processo de fortalecimento das
estruturas do Segundo Templo, cresce a tendência (oficial) à proibição de representação da
divindade por meio de estátuas, consideradas “não deuses”, “obra de artesãos” (Ex 34,17;
32,8.19; Dt 9,12.16.21; 1Rs 14,9; 2Rs 10,29; 17,16; 2Cr 13,8-9; Ne 9,18; Os 13,2). Ao
mesmo tempo, Javé passa a ser considerado o deus único e universal.
Por fim, a disputa em relação à data da festa, especialmente da festa da colheita,
durante a qual se apresentava oferta de cereais no templo, deve estar ligada a fatores
econômicos e simbólicos. A data da festa de Jeroboão no oitavo mês talvez corresponda à
festa mais antiga, em Israel Norte; e, ao contrário do que normalmente somos levados a
imaginar, a fixação da data da festa no sétimo mês tenha sido uma estratégia para garantir o
recolhimento das oferendas no santuário de Jerusalém, no caso, um mês antes.
Em todo o processo de releitura de 1Rs 12,26-32, a redação judaíta, após a queda de
Samaria, imprimiu uma marca negativa sobre as práticas cultuais norte-israelitas, seja à época
de Josias, seja no período do Segundo Templo. Deste modo, construiu-se um imaginário
segundo o qual Israel Norte é concebido como um reino de decadência religiosa e moral, de
corrupção e violência desde sua origem.
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santuários de Betel e Dã, em meio a festas, procissões e aclamações. Esses versículos chamam
à atenção, pois neles se evidencia a relação entre o touro jovem e a memória do Êxodo em
Israel Norte, celebrada nos santuários do rei: “eis teus deuses, Israel, que te fizeram subir da
terra do Egito” (v. 28). O narrador evita o uso do nome “Javé” e opta pela expressão “deuses”
(’elohim).
Do ponto de vista do narrador, “isto se tornou transgressão” (v. 30). Comentamos
sobre os diferentes sentidos atribuìdos à “transgressão” de Jeroboão ao longo da história da
recepção desse texto. À época de Josias, constituía, provavelmente, reprovação quanto ao
local do sacrifìcio (“Betel” e “Dã”), ou seja, violação da lei de centralidade do culto no
santuário de Jerusalém (Dt 12). No pós-exílio, agregou o sentido de acusação de idolatria
(fabricação de imagens) e politeísmo (culto a outros deuses), seguindo a tendência de
consolidação de um javismo anicônico e monoteísta.
Nos v. 31-32, segue a enumeração das ações atribuídas a Jeroboão: ele teria
disseminado o culto nos “lugares altos”, designado sacerdotes locais, “que não eram dentre os
filhos de Levi”, apresentado (pessoalmente) sacrifìcios no altar de Betel, “aos touros jovens
que fez”, e instituìdo uma “festa”, “como a festa que se fazia em Judá”. Essas ações de
Jeroboão também se enquadram no comentário condenatório do narrador (v. 30). E podem
refletir tanto o contexto narrativo da reforma de Josias, quanto do período do Segundo
Templo, neste caso, o conflito com o templo de Garizim, em Siquém.
Apesar de a narrativa de Jeroboão ser fortemente marcada pela teologia
deuteronomista de Judá, a análise exegética permitiu-nos encontrar indícios que nos levam a
compreender o Êxodo como uma tradição fundante de Israel Norte, já consolidada no séc.
VIII, antes, portanto, de se tornar memória de fundação de um Israel “unificado”, no séc. VII.
A associação de Jeroboão I e Roboão ao faraó “Sesac” em 1Rs 11,40 e 14,25 nos
levou a buscar o núcleo histórico do Êxodo na tradição de Israel Norte no contexto da
campanha militar de Sheshonq I (945-925) em Canaã, na segunda metade do séc. X. Neste
sentido, a expressão “subir do Egito” (v. 28) significava, originalmente, soberania polìtica, e
não deslocamento espacial de uma região para outra.
A referência ao “touro jovem” de Betel e Dã (v. 28-29), associado à memória do
Êxodo, revelou, por sua vez, que o culto nacional a Javé em Israel Norte, no séc. VIII,
apresentava características próprias do contexto religioso de Ugarit. A representação na forma
de touro, as manifestações locais da divindade e a ligação com a deusa Asherá eram
tradicionalmente relacionados ao deus El, divindade-suprema do panteão ugarítico. Assim, ao
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que tudo indica, antes de Javé se tornar o deus nacional de Israel (o que situamos
aproximadamente no séc. IX, no governo dos Omridas), a libertação do Egito teria sido
atribuída ao deus El. Diversos textos bíblicos associam El, Israel/Efraim/José, touro e chifres
e libertação do Egito (Gn 49,22; Ex 32,4; Nm 23,22; 24,8; Dt 33,17; 1Rs 12,28, etc.).
No próximo capítulo, apresentaremos as raízes históricas do Êxodo em Israel Norte a
partir do contexto da campanha militar de Sheshonq I em Canaã, no séc. X. Neste sentido, a
tradição norte-israelita do Êxodo está vinculada ao processo de fortalecimento das entidades
político-territoriais das montanhas da região centro-norte de Canaã (ao norte de Jerusalém) e
às suas lutas contra o Egito.
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3.1.1 A Datação
25
No quinto ano do rei Roboão [926], o rei do Egito, Sesac, atacou
Jerusalém. 26 Apoderou-se dos tesouros do templo de Javé e dos do palácio
real, levando tudo, até mesmo todos os escudos de ouro que Salomão
mandara fazer.
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Os nomes das localidades conquistadas por Sheshonq em Canaã estão registrados num
relevo do templo de Amon, em Karnak. Eles foram organizados em três grupos. As cinco
primeiras linhas são curtas e mencionam lugares no centro e norte do país (topônimos 11-65).
As linhas seguintes são longas e citam lugares no sul: no vale de Bersabeia, na área de Basor e
nas montanhas do Negueb (topônimos 66-150). As últimas linhas, também longas, estão
muito danificadas: os cinco nomes preservados incluem dois sítios localizados na costa sul, e
talvez outras localidades ao longo da costa e na Shefelá.
Os topônimos que foram seguramente identificados representam as seguintes regiões
do país: o vale de Jezrael, a estrada internacional na planície de Sharon, a área de Gabaon nas
montanhas, a área de Fanuel e Maanaim na Transjordânia, o vale de Bersabeia, a costa sul, a
região de Basor e as montanhas do Negueb.
26
Finkelstein sugere que o narrador deuteronomista tomou conhecimento de uma antiga tradição oral sobre a
campanha de Sheshonq, recordada no final do séc. IX, com o início da formação de um estado em Judá, ou no
séc. VIII, quando começou a difusão da literatura no Reino do Sul. Outras possibilidades elencadas pelo autor
são: a) Sheshonq pode ter erigido em Gabaon ou em outro lugar no norte de Jerusalém uma estela similar à de
Meguido, que ainda estaria visível no final do séc. VII; b) o historiador deuteronomista pode ter conhecido sobre
a campanha de Sheshonq a partir dos soldados da 26ª dinastia que estavam ativos na Palestina no final do séc.
VII e após a retirada da Assíria; c) o historiador deuteronomista pode ter conhecido sobre a campanha de
Sheshonq a partir dos judaítas que viviam em Taphanhes (Jr 43,8), no leste do Delta do Nilo no final do séc. VII,
a 30 km de Tanis (um importante centro da 22ª dinastia – por isso, os judaítas que ali viviam podiam estar
familiarizados com a história do faraó fundador de Tanis) (FINKELSTEIN, 2002, p. 113).
80
81
Do vale de Jezrael, são citadas as seguintes localidades: Taanach (n. 14), Suném (n.
15), Betsheã (n. 16), Tel Rehov (n. 17) e Meguido (n. 27) (FINKELSTEIN, 2002;
FINKELSTEIN; PIASETKY, 2006; FINKELSTEIN, 2015b).
Do norte de Jerusalém: Gabaon (n. 23), Bet-Horon (n. 24) e Zamaraim (n. 57),
próximo a Ramalá (FINKELSTEIN; PIASETKY, 2006; FINKELSTEIN, 2002;
FINKELSTEIN, 2015b).
Da região do rio Jaboque, a leste do Jordão: Adamá (n. 56), Sucot (n. 55), Fanuel (n.
53) e Maanaim (n. 22) (FINKELSTEIN, 2002).
Da região árida do sul: Arad (topônimo 108-109; 110-111, rbt: FINKELSTEIN, 2002;
FINKELSTEIN; PIASETKY, 2006) e um conjunto de sítios nas montanhas do Negueb cujos
topônimos (n. 84. 90. 92) têm o elemento ngb em seus nomes (FINKELSTEIN; PIASETKY,
2006; FANTALKIN; FINKELSTEIN, 2006, corrigem FINKELSTEIN, 2002).
Outras regiões importantes não aparecem na lista, tais como: Jerusalém e as
montanhas de Judá; Siquém, Tapuah, Dotã e outros lugares ao norte de Samaria; a Shefelá; a
Galileia e o norte do vale do Jordão; a planície costeira central e norte; o fértil e densamente
habitado platô de Galaad, Moab e Amon. O nome [ ]-rtf-stz (n. 59) é identificado por Mazar
(MAZAR, 1957 citado por FINKELSTEIN, 2002), e aceito por vários pesquisadores, como
Tersa. Na‟aman, contudo, propõe a leitura Luz (Betel), condizente com a proximidade de
Zamaraim (n. 58), porém pouco provável, segundo Finkelstein (FINKELSTEIN, 2002).
Apesar das áreas danificadas no registro de Karnak, é possível depreender o quadro
geral da campanha de Sheshonq I em Canaã, na segunda metade do séc. X. Chamam-nos à
atenção, particularmente, a ausência de Jerusalém e a destruição de um conjunto de sítios no
planalto de Gabaon-Betel, e a correlação entre esta região e a destruição de assentamentos na
área do rio Jaboque, na Transjordânia (FINKELSTEIN, 2002, p. 109-110).
defendeu seus interesses no Levante, no mínimo, até meados do séc. IX. Entre outras, citamos
as seguintes evidências: a estela de Sheshonq I, encontrada em Meguido, as estelas de
Osorkon I (924-889) e II (874-834), encontradas em Biblos, a participação de tropas egípcias
na coalizão anti-assíria por ocasião da batalha de Qarqar em 853, inúmeros selos-estampas e
amuletos de aparência pós-ramsida28, além de um fragmento de vaso com o nome de Osorkon
II, encontrado em Samaria (FANTALKING; FINKELSTEIN, 2006). Considerando a intenção
de uma ocupação egípcia de longo prazo, é necessário rever os sinais de destruição e
abandono em Canaã, comumente atribuídos à campanha de Sheshonq.
Na região de Tel Masos, no sul árido, e em Meguido, no fértil vale de Jezrael, não há
sinais de destruição decorrentes de uma incursão militar egípcia. Ao contrário, nota-se uma
nova fase de prosperidade nessas áreas a partir do envolvimento do Egito (FANTALKING;
FINKELSTEIN, 2006). Porém, o mesmo não pode ser dito em relação a um conjunto de sítios
no planalto de Gabaon-Betel e na área do rio Jaboque (na Transjordânia). A destruição desses
sítios em particular revela interesses específicos.
A seguir, apresentamos as principais regiões de Canaã atingidas pela campanha de
Sheshonq, na segunda metade do séc. X, e a correlação entre esse contexto histórico e as
raízes do Êxodo na tradição de Israel Norte. Comecemos, porém, pela significativa ausência
de Jerusalém na lista de cidades conquistadas pelo faraó, conforme o registro de Karnak.
3.1.3.1 Jerusalém
28
Ramsés II é o mais famoso rei do Egito (1279-1233). A ele é associada a construção da cidade de mesmo
nome, Ramsés, citada em Ex 1,11, e outras construções nas quais era usada mão de obra semita. Por isso, supõe-
se que, durante o seu reinado, teria havido um Êxodo em massa. Sob a inviabilidade de tal hipótese, ver:
FINKELSTEIN, 2003, p. 87ss.
29
O substantivo Shefelá traduz o termo hebraico transliterado na língua inglesa por Shephelah, que significa
“baixada” ou “terras baixas”, como em 1Rs 10,27, por exemplo. Cf. KIRST, 2001, p. 260.
82
83
83
84
30
O termo “Khirbet” vem da palavra árabe para “ruìna” ou “ruìna no topo do morro”, um lugar com uma vasta
visão. Cf.: DAGAN, Yehudah. Khirbet Qeiyafa in the Judean Shephelah: Some Considerations. In: Tel Aviv,
2009, p. 68-71.
84
85
Outro fator que evidencia a importância da produção de cobre de Tel Masos nesta
época é a ausência de cidades filisteias na lista de conquistas de Sheshonq. A prosperidade da
produção de cobre da região do deserto necessita estabelecer relações comerciais com a
planície costeira sul, controlada pelos filisteus. Provavelmente, as cidades filisteias
cooperaram com o faraó e serviram como ponto de apoio ao Egito em Canaã. Talvez, por isso,
apenas Ekron31 tenha sido destruída à época de Sheshonq, sendo sua posição substituída por
Gat. Não podemos dizer se havia citação de cidades filisteias na parte danificada da lista.
Concluímos, então, que não há razão para associar o fim de Tel Masos com a
campanha de Sheshonq. Provavelmente, o faraó pretendia restabelecer seu poder político e
econômico na região do Levante no final do séc. X, e ali se manter por um longo tempo, o que
resultou na fase de maior prosperidade no sul, especialmente devido à continuação da
produção de cobre até o séc. IX, na região de Khirbet en-Nahas.
Depois do enfraquecimento do Egito, o comércio de cobre foi controlado
provavelmente por um poder local, talvez Gat, que cresceu e se tornou um centro urbano. Em
seguida, o controle sobre as rotas do sul pode ter sido exercido por uma aliança Omridas-Gat,
na primeira metade do séc. IX. Nos dias de Osorkon II (874-834), talvez essa aliança tenha
sido apoiada pelo Egito.
O declínio da região está associado ao assalto de Hazael, rei de Aram-Damasco, a Gat
(2Rs 12,18), em meados do séc. IX, ou um pouco depois, e à reativação do comércio de cobre
de Chipre no séc. IX (FANTALKING; FINKELSTEIN, 2006).
O vale de Jezrael sempre foi uma região cobiçada pelos grandes impérios. As
vantagens naturais do norte são evidentes em relação ao sul: clima, vegetação, água, grandes
vales férteis, declives montanhosos moderados, favoráveis ao plantio de oliveiras e videiras e
ao cultivo de grãos em terraços, planícies irrigadas e estradas de ligação entre o Egito e a
Mesopotâmia. Os sítios da região norte, com diversos tamanhos, apresentavam, nos tempos de
crise, um aumento da densidade demográfica e o predomínio da agricultura sedentária;
enquanto, no sul, os sítios eram geralmente pequenos e sugeriam uma população migratória
31
A identificação de “Gaza” tem sido substituìda por “Gezer” (FINKELSTEIN, 2002, p. 116).
85
86
32
Termo atribuído por Finkelstein ao renascimento dos vales do Norte, depois da fase de destruição de várias
cidades-estado no séc. XII (FINKELSTEIN, 2015b, p. 46s).
86
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87
88
Betel, et-Tell (Ai), Khirbet Raddana, Tell en-Nasbeh (Masfa), Khirbet ed-Dawwara, Hirbet
Tell el-„Askar, Gabaon33 e Tell el-Ful (FINKELSTEIN, 2002; 2015b).
Ao contrário do que aconteceu em Tel Masos e no vale de Jezrael, a destruição e o
abandono dos sítios no planalto de Gabaon-Betel e dos sítios da área do rio Jaboque
possivelmente foram resultado da campanha de Sheshonq.
Em geral, os faraós evitavam penetrar em áreas de matas, esparsamente ocupadas e em
montes ásperos e hostis. Talvez por isso as localidades desta região não apareçam na
descrição de conquistas de outros reis do Egito. Além disso, a região do platô de Gabaon-
Betel, assim como a área do rio Jaboque estavam longe das rotas principais. Também vimos
que Jerusalém não era alvo da campanha de Sheshonq. Portanto, podemos concluir que a
destruição ou o abandono dos sítios de Gabaon-Betel é uma exceção. Então, o que teria
atraído a atenção do faraó para esta área relativamente remota, sem grande importância
geopolítica?
Para Finkelstein, a única explicação razoável é que, no planalto de Gabaon-Betel,
localizava-se o centro de governo de uma entidade político-territorial emergente, cujos
domínios se estendiam à margem sul do vale de Jezrael (ao norte), à região do rio Jaboque (a
leste), talvez até Khirbet Qeiyafa 34 (a oeste, na Shefelá) e até Jerusalém (ao sul), ameaçando
áreas de interesse do Egito em Canaã (FINKELSTEIN, 2015b).
Uma razão para o Egito se sentir ameaçado por uma entidade das montanhas era a
tentativa desses grupos de se expandirem para as planícies férteis e estrategicamente
localizadas perto das rotas internacionais de comércio, por exemplo, no vale de Jezrael. É
possível, portanto, que o governo da região de Gabaon-Betel o tenha feito. Este movimento
não é incomum em Canaã.
Finkelstein compara o processo de expansão da região de Gabaon-Betel no séc. X a
histórias de “homens fortes” que estabeleceram antigos domìnios territoriais a partir de
assentamentos relativamente modestos nas montanhas (FINKELSTEIN, 2006).
A expansão desses domínios nas montanhas ocorreu em várias regiões e períodos,
desde o Bronze até séculos mais recentes, por exemplo: Lab‟ayu, governador de Siquém, e
„Abdi-Ashirta e Aziru, governadores de Amurru, no período de Amarna; e Fakhr ad-Din nas
33
Gabaon é o único sítio nesta área nominalmente citado na lista de Sheshonq e que tem sido completamente
escavado. Foi destruído no final do Ferro I e manteve-se deserto (ou esparsamente habitado) no início do Ferro
II. Forte atividade é retomada no final do Ferro II (FINKELSTEIN, 2015b, p. 61). O registro de Betel parece
representar um quadro da forte atividade no Ferro I e no final do Ferro II e fraca ou nenhuma atividade no início
do Ferro II (FINKELSTEIN; SINGER-AVITZ, 2009).
34
Khirbet Qeiyafa localiza-se numa colina no vale de Elah, entre Soco e Azeca, cerca de 10km a leste da cidade
de Gat. Sobre a afiliação de Khirbet Qeiyafa a Gabaon ou a Judá, ver: FINKELSTEIN, 2015b, p. 76-82.
88
89
35
A recuperação dos territórios do norte, perdidos para a aliança entre Hazael de Aram-Damasco e Judá, deve ter
ocorrido durante os governos de Joás e Jeroboão II, na primeira metade do séc. VIII.
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90
90
91
36
Em 2Sm 2,9, o uso da preposição não deixa claro se o governo era exercido diretamente (preposição‘al) ou
indiretamente (‘el) “sobre/para” “Galaad, os ashuritas, Jezrael, Efraim, Benjamim e todo Israel”
(FINKELSTEIN, 2002, p. 128; 2015b, p. 75).
91
92
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como Gaza ou Gezer. Mas Na‟aman sugere o nome Gob para Khirbet Qeiyafa
(FINKELSTEIN, 2015b).
Deste modo, a expansão da casa de Saul em direção à planície da Shefelá teria sido
considerada uma ameaça aos interesses egípcios na região, o que explicaria a destruição de
Qeiyafa à época da campanha de Sheshonq.
Feitas essas observações a propósito de Khirbet Qeiyafa, ao que tudo indica, há um
núcleo histórico por trás da narrativa do livro de Samuel acerca das tradições positivas de
Saul: a casa de Saul teria governado a primeira entidade político-territorial “norte-israelita”,
desde o planalto de Gabaon-Betel até a margem sul do vale de Jezrael, estendendo-se, a leste,
às áreas de Galaad, na região do rio Jaboque e, talvez, até Kh. Qeiyafa, na planície da Shefelá,
a oeste, e Jerusalém, ao sul. Tal como na tradição dos “homens fortes” das montanhas do
período de Amarna, seu movimento de expansão em direção às terras férteis da planície do
norte (e do sul?) chocou-se com os interesses egípcios na região.
No processo sucessório, à derrota da casa de Saul diante do exército de Sheshonq em
Canaã, dá-se a transferência do governo local do platô de Gabaon-Betel para a região de
Siquém-Tersa, que, de acordo com o texto bíblico, foi a sede de governo de seis ou sete reis
de Israel Norte, até a mudança da capital para Samaria.
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94
37
A única evidência textual de que dispomos sobre a Siquém dos sécs. XIII-XII é o texto de Jz 9, que descreve
“Abimelec” como um “homem forte” que controla uma grande entidade territorial no “tempo dos Juìzes” (que
compreende o período bíblico entre cerca de 1200 e 1000); cf. FINKELSTEIN, 2006, p 179.
38
A parte escavada de Tersa corresponde a 15% do sítio, o que, por sua vez, na avaliação de Finkelstein, é
proporcionalmente maior do que as escavações realizadas na maioria dos sítios das terras altas (FINKELSTEIN,
2012, p. 333).
94
95
No entanto, a preservação de seu nome no texto bíblico, sugere que Tersa foi capital antes de
Samaria, uma vez que não ganhou destaque em outras fases da história da região. Tersa é
citada também em Js 12,24; 17,3 e Nm 26,33. Assim, a memória de Tersa teria chegado a
Jerusalém, provavelmente, com os refugiados do sul de Samaria, no final do séc. VIII
(FINKELSTEIN, 2015b).
As escavações arqueológicas indicam que, no final do Bronze (1550 a 1150), Tersa
pertencia ao território de Siquém e foi destruída por fogo. Não há evidência de intensa
ocupação no período do Ferro I (especialmente na segunda metade do séc. X até início do séc.
IX), ao contrário do fenômeno que se deu nas demais regiões das montanhas centrais, o que é
ainda mais estranho por ser uma área fértil e, estrategicamente, bem localizada. Esta fase do
Ferro I em Tersa corresponde às primeiras décadas da monarquia em Israel Norte, com
assentamento relativamente pequeno, esparsamente ocupado e sem sinais de fortificação. Não
se pode dizer se, na parte não escavada, havia palácio e templo. E também não dá para saber
se Jeroboão I reconstruiu Tersa depois de um longo período de vazio ocupacional, ou se ela
havia sido reocupada um pouco antes dele. Na opinião de Finkelstein, Tersa pode ter sido
tomada como capital para evitar os antigos e tradicionais grupos de poder em Siquém, além
da vantagem de seus recursos naturais (FINKELSTEIN, 2015b).
Com os dados disponíveis sobre Tersa, tem-se que a capital dos primeiros reis de
Israel Norte reproduz, mais uma vez, o fenômeno comum em Canaã acerca da capacidade de
expansão territorial a partir de governos rurais, relativamente modestos e não fortificados,
situados na região das montanhas centrais, como vimos em relação a Labayu de Siquém e à
casa de Saul de Gabaon-Betel (FINKELSTEIN, 2006; 2012; 2015b).
Concluímos, então, que Siquém e Tersa estiveram sob a dominação direta ou indireta
do governo da casa de Saul, sediado em Gabaon-Betel, no início do séc. X. A campanha de
Sheshonq, na segunda metade do séc. X, provocou novos arranjos nas montanhas e na
planície fértil do norte. A destruição da região de Gabaon-Betel e da área do rio Jaboque abriu
caminho para a ascensão de Jeroboão I, tìpico “homem forte” das montanhas, resultando na
transferência do governo local para o território de Siquém-Tersa. Não é possível dizer se o
vale de Jezrael já era governado pela unidade política de Tersa, em substituição à entidade
territorial de Gabaon-Betel, ou se Sheshonq entregou-lhe a administração a partir de algum
tipo de acordo (FINKELSTEIN, 2002; 2015b).
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96
O texto bíblico reforça a ideia de acordo entre Jeroboão I e o Egito. Em 1Rs 11,40 e
mais ainda na Septuaginta em 3Rs 12,24c-f, evidenciam-se as relações entre Jeroboão e o
faraó, sugerindo que sua ascensão é resultado ou iniciativa egípcia.
No período seguinte, isto é, no início do séc. IX, quando Omri transfere a capital para
Samaria, Tersa perde sua importância política, especialmente porque Omri se volta para o
porto de Dor, na planície costeira. Porém, paradoxalmente, neste período, Tersa apresenta
nova fase de desenvolvimento, em consonância com a prosperidade de todo o reino do Norte.
Esta fase termina em destruição e abandono, após a ascensão de Hazael de Aram-Damasco.
Consideramos que o contexto da queda da entidade de Gabaon-Betel/casa de Saul e a
ascensão da unidade política de Siquém-Tersa/Jeroboão I no séc. X constitui o núcleo
histórico do Êxodo como tradição fundante de Israel Norte.
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Em geral, a tradição do Êxodo tem sido ligada à memória da expulsão dos hicsos do
delta do Nilo, no séc. XVI-XV (FINKELSTEIN, 2015b), e, sobretudo, à memória da opressão
egípcia sobre o povo de Canaã nos sécs. XIII-XII (NA‟AMAN, 2011a; HOFFMEIER, 2014;
MAEIR, 2015).
Este contexto reflete, principalmente, a realidade da opressão egípcia sobre a região
sul de Canaã e a partir da perspectiva de redatores judaítas, seja à época de Josias, seja em
releituras do exílio e do pós-exílio (LIVERANI, 2008). Portanto, faz sentido que tenha sido
preservada na região de Basor ou da planície do sul, onde a opressão egípcia no séc. XII, de
fato, foi uma das mais severas. O fortalecimento da memória do Êxodo nessas regiões servia
também para preservar a identidade de Judá frente ao Egito, que era muito superior
economicamente e que despertava um grande fascínio na população judaíta (cf. livro da
Sabedoria).
No entanto, a memória da opressão/libertação do Egito nas planícies do sul ou mesmo
no vale de Jezrael, no norte de Canaã, pouco traduz a experiência dos grupos das montanhas
da região centro-norte. Tradicionalmente, o Egito não tinha interesse nas terras altas. Por isso,
a destruição dos assentamentos no planalto de Gabaon-Betel e na região do rio Jaboque,
atribuída à campanha de Sheshonq, tem chamado à atenção (FINKELSTEIN, 2015b). Além
disso, pouco tempo depois da campanha de Sheshonq, dá-se a retirada forçada do Egito de
Canaã (embora não sejam claros os motivos). Assim, consideramos que esta (inesperada)
retirada do Egito, aliada à memória recente da luta dos grupos das terras altas contra
Sheshonq, foi vista como uma vitória, abrindo caminho para a consolidação do reino de Israel.
Neste contexto, a tradição do Êxodo nasce como memória de luta contra o Egito (e não de
“saìda” da terra do Egito) e está ligada ao surgimento do Reino do Norte, anterior ao
surgimento de Judá, daí considerá-la uma tradição originária de Israel Norte.
Neste contexto, do ponto de vista teológico, o deus do Êxodo, El/Javé, é concebido
como um deus que vai à frente de seu povo, garantindo-lhe a vitória, como um deus guerreiro.
A compreensão do Êxodo a partir do contexto do fortalecimento dos grupos das
montanhas centrais de Canaã, sobretudo no séc. X, fornece-nos um cenário mais próximo da
realidade por trás, por exemplo, da tradição do Êxodo-Deserto na profecia de Oseias e Amós,
97
98
39
Sobre a relação entre a tradição do Êxodo e o conceito de “memória cultural”, ver: ASSMAN, J. Exodus and
Memory. In: LEVY, T. E. et. al. (Orgs.). Israel’s Exodus in Transdisciplinary Perspective, Quantitative Methods
in the Humanities and Social Sciences. Springer International Publishing Switzerland, 2015, p. 3-16; MAEIR, A.
M. Exodus as a Mnemo-Narrative: an archaeological perspective. In: LEVY, T. E. et. al. (Orgs.). Israel’s Exodus
in Transdisciplinary Perspective, Quantitative Methods in the Humanities and Social Sciences. Springer
International Publishing Switzerland, 2015, p. 409-418; HENDEL, R. The Exodus in Biblical Memory. In:
Journal of Biblical Literature, 120, n. 4, 2001, p. 601-622; HENDEL, R. The Exodus as Cultural Memory:
Egyptian Bondage and the Song of the Sea. In: LEVY, T. E. et. al. (Orgs.). Israel’s Exodus in Transdisciplinary
Perspective, Quantitative Methods in the Humanities and Social Sciences. Springer International Publishing
Switzerland, 2015, p. 65-77; NA‟AMAN, Nadav. The Exodus Story: Between Historical Memory and
Historiographical Composition. In: Journal of Ancient Near Eastern Religions 11, 2011, p. 39-49. Koninklike
Brill NV, Leiden.
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Não é possível dizer se já havia uma tradição nacional do Êxodo durante a dinastia
Omrida, embora não seja difícil imaginar algum tipo de celebração que exaltasse a autonomia
do estado nacional em relação ao Egito e a prosperidade do reino. Porém, só dispomos de
evidências consolidadas do Êxodo como tradição fundante de Israel Norte no séc. VIII.
Da compreensão do Êxodo como um processo de libertação do Egito em Canaã, surge
a necessidade de reler a expressão “subir do Egito” na fórmula tradicional do Êxodo, por
exemplo, em 1Rs 12,28. Na perspectiva deste estudo, essa expressão significava,
originalmente, na tradição de Israel Norte, luta contra a opressão egípcia, isto é, soberania
polìtica, e não deslocamento espacial de “saìda” da terra do Egito e “entrada” na terra de
Canaã.
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Liverani apresenta textos hititas e citações de Amarna onde verbos de movimento, como
“entrar” e “sair”, descrevem mudança no status político.
Por exemplo, o rei hitita Shuppiluliuma faz referência à conquista da Síria central:
Todas as cidades (rebeldes) de que falei a meu senhor, sabe-o o meu senhor
se voltaram! Desde o dia da partida das tropas do rei meu senhor, tornaram-
se todas hostis (LA 169, de Biblos42).
41
ANET: abreviatura de Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. Cf.: PRITCHARD, J. B.
(org.). The Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. Nova Jersey: Princeton University
Press, 1969.
42
LA: abreviatura de Le Lettere die l-Amarna. Cf.: LIVERANI, M. Le Lettere di el-Amarna I-II. Brescia, 1998-
9, citado por LIVERANI, 2008, p. 340.
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Este também nos parece o melhor sentido da expressão “subir do Egito” (e suas
variantes) na tradição do Êxodo em Israel Norte, ou seja, uma expressão que traduz,
inicialmente, a memória de luta contra a dominação/presença do Egito em Canaã, e não
processo migratório de fora para dentro.
A mudança de sentido dos verbos ocorreu, ao que parece, após a conquista assíria da
Síria, de Israel Norte e Judá e com o começo das deportações em larga escala. As imagens de
tantos grupos de refugiados do norte que se deslocaram para o reino de Judá no final do séc.
VIII, assim como das deportações de Senaquerib no sul, que reduziram o território de Judá
praticamente a Jerusalém, no início do séc. VII, contribuíram decisivamente para a mudança
do significado dos verbos hebraicos. Neste sentido, a promessa divina do tipo “eu vos farei
subir para uma terra boa e vasta” também está de acordo com as garantias do governo assìrio
de dar a quem se submete a possibilidade de ir habitar numa terra fértil e produtiva
(LIVERANI, 2008, p. 205).
Assim, no contexto do final do séc. VIII e início do séc. VII, os verbos hebraicos
traduzidos por “subir” (’alah), “sair” (yatsa’), “voltar” (shub) adquiriram o sentido “real” de
movimento migratório de pessoas e povos, embora conservassem o valor ético-político. Como
resultado da mudança de conotação dos verbos, a tradição do Êxodo passou a ser interpretada
como descrição de uma migração de dentro para fora do Egito.
A associação da fórmula de “saìda do Egito” com o sentido de deslocamento espacial
de grandes populações foi reforçada nos períodos do exílio da Babilônia e no início do pós-
exílio, fazendo com que a ideia antiga de “saída” (metafórica) do Egito se tornasse
antecedente para o retorno (deslocamento espacial) dos deportados para Judá no tempo dos
autores tardios (Jr 23,7-8; 16,14-15). A fórmula do Êxodo foi também aplicada à saída de
Abraão de Ur dos caldeus (“Sou eu o Senhor que te fez sair de Ur dos Caldeus para dar-te esta
terra em posse”, Gn 15,7).
Assim, o Êxodo passa a constituir um mito étnico, que legitima, ideologicamente, a
posse da terra de Canaã, na medida em que fala da chegada de fora e da conquista armada, em
cumprimento da promessa divina (LIVERANI, 2008).
Nadav Na‟aman acrescenta que a “transferência de memória” para o Egito explica, nas
narrativas bíblicas, a omissão da memória da longa ocupação egípcia em Canaã. Argumenta o
autor que as memórias de sofrimento e escravidão sob a presença egípcia em Canaã foram
107
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substituídas pela “memória de conquista”, o que reflete o caminho por meio do qual a antiga
sociedade israelita procurou apresentar seu passado (NA‟AMAN, 2011a).
Essas imagens de entrada e saída do Egito, no séc. VII, ligam-se também a histórias
antigas de migrações de pastores da região árida do sul, entre o Sinai e o delta do Nilo, a
histórias de trabalho forçado de grupos de semitas nas construções do faraó Ramsés II e a
movimentos mais recentes de refugiados entre Judá e Egito, no processo de formação da
memória da cultural do Êxodo no Reino do Sul. A opressão egípcia é uma história comum em
toda Canaã, por séculos, e isso fará do Êxodo um tradição unificadora, com a qual todos os
grupos se identificam, do norte e do sul, em diferentes períodos.
Pouco a pouco, a expressão “subir do Egito” deixa de ser entendida como metáfora de
submissão/libertação ao/do poder estrangeiro, passa a representar a imagem de deportações
antigas e recentes, até se tornar memória fundante de todo Israel, norte e sul, a partir do séc.
VII, provavelmente durante o governo de Josias (640-609), rei de Judá (cf. RÖMER, 2015b).
As memórias de resistência dos grupos das montanhas centrais contra o Egito podem
ter sido guardadas nas regiões de Betel e Siquém, por exemplo, e foram unidas às histórias
das lutas dos grupos das planícies contra a opressão egípcia nas terras baixas do norte
(FINKELSTEIN, 2015b), sobretudo a partir de quando os Omridas tomaram o vale de Jezrael.
Note-se que, na tradição do Êxodo em Israel Norte não aparece a figura de Moisés 43, porém,
ao longo do processo de recepção, e de acordo com a forma final do livro de Reis, a história
de Jeroboão I muito se assemelha à de Moisés (ALBERTZ, 1999).
A memória da luta contra o Egito, preservada e transmitida pela tradição oral, teria
sido posta por escrito já no séc. VIII, tornando-se o Êxodo tradição fundante de Israel Norte,
provavelmente durante o reinado de Jeroboão II.
43
Geralmente, a configuração da personagem Moisés na narrativa do livro do Êxodo é associada a Sargon II
(721-705), rei da Assíria, durante o período de dominação de Judá.
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O Selo de Meguido, descoberto em 1904 por Gottlieb Schumacher, onde se lê “Sema servo de Jeroboão”,
provavelmente pertenceu a um ministro do rei Jeroboão II, cuja história se encontra em 2 Rs 14,23-29 (Aharoni,
1998, p. 103). Cf. HUBNER, M. M. Êxodo: História ou Conto de Fadas? Em: Revista Vértices, n. 10. 2011,
FFLCH-USP. Disponível em: http://revistas.fflch.usp.br/vertices/view/26. Acesso em 08/10/2015.
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localizado na região árida ao sul do Mar Morto. À época de Jeroboão II, embora Israel não
contasse mais com a produção do cobre, ele se beneficiou com o lucrativo comércio árabe na
região do deserto, como evidencia o sítio de Kuntillet „Ajrud, na região de Kadesh Barnea, no
Sinai (FINKELSTEIN, 2015b).
O desenvolvimento econômico, por sua vez, repercute no sistema religioso de
compreensão e representação do mundo. A dimensão religiosa da vida israelita estava
profundamente enraizada na estrutura da “casa”, na relação entre famìlia e terra e num sistema
de intercâmbio, troca e solidariedade, baseado nos vínculos de parentesco e de proximidade.
Essa era a matriz essencial do pensamento religioso no antigo Israel das montanhas (KEEFE,
2003).
Assim, à medida que a economia de subsistência de Israel, baseada no clã e na aldeia,
é transformada progressivamente em uma economia comercial, impulsionada pelo mercado
inter-regional, a estrutura da casa é ameaçada e se rompe. A transformação dos processos de
produção e de troca, e a ruptura das relações entre casa/família e terra, devido à
desapropriação e latifundização, significou, sobretudo no séc. VIII, além da crise social, a
perda dos referenciais (simbólicos) de auto compreensão da comunidade (KEEFE, 2003).
Neste contexto de exploração e opressão da monarquia, a memória profética da
libertação do Egito tornou-se um importante elemento para a reconstrução da identidade e do
tecido social, sobretudo no séc. VIII, durante o reinado de Jeroboão II.
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Sobre a relação entre o símbolo do touro jovem, os rituais de fertilidade e a política agrária do governo de
Jeroboão II, ver KEEFE, 2003, p. 100.
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Inscrição da Pithos46 A:
A expressão “o amigo do rei” ocorre em textos bìblicos, como 2Sm 15,37; 16,16; 1Rs
4,5; 1Cr 27,33, e é mencionada em vários documentos do antigo Oriente Próximo. „O amigo
do rei‟ era provavelmente um conselheiro e assistente confiável do rei.
Inscrição na Pithos B:
“Amaryo”, em nome de Javé, abençoa seu superior e o senhor da casa dos altos
oficiais – provavelmente o rei de Israel.
A referência a Yhwh de Samaria na Pithos A, assim como os nomes pessoais baseados
na forma teofórica Yo, indicam que os visitantes eram do reino de Israel. A Pithos B e outras
inscrições mencionam “Javé de Temã”, o deus da região sul de Judá.
Nota-se que Javé era associado a territórios particulares, o que sugere que era visto
como um deus local no séc. VIII. Ou seja, no séc. VIII, Javé ainda não era percebido como
um deus universal, senhor de toda a terra, mas um deus ligado a uma região especìfica: “Javé
de Samaria” era o deus da região de Samaria, “Javé de Temã” era o deus das regiões ao sul de
Judá e o “Deus de Jerusalém” era o deus das montanhas de Judá.
Uma vez que as duas linhas acima incluem um pedido de bênção dirigido a Javé, em
favor do “senhor da sua casa”, possivelmente o rei de Israel, o termo em destaque tem sido
identificado como o “libertador”. Em 2Rs 13,3-5, por exemplo, é dito que “Yhwh deu um
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Vaso ou pote grande de cerâmica, usado geralmente para armazenamento de grãos.
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ungido, um meshiah (messias), que libertou Israel do rei de Aram”. O verbo ysh‘ (“libertar”)
aparece na referência a Joás e Jeroboão: para Joás, “um arco de vitória” sobre Aram (2Rs
13,17); e para Jeroboão, “e ele libertou-os através de Jeroboão, filho de Joás” (2Rs 14,27b).
Ele abençoe você por Yhwh de Teman e Asherata. Tudo o que o „favorecido
do pai e de sua aljava‟ perguntou de um homem – YHW(H) dará a ele de
acordo com sua vontade. (NA‟AMAN, 2011b, p. 306).
Na interpretação de Na‟aman, o “pai” é Joás, pai de Jeroboão II, que é o rei atual de
Israel. A bênção é, provavelmente, para o rei Jeroboão II, que participou nas guerras do pai
contra os arameus. O escritor deseja a Jeroboão que tudo o que ele pediu sobre esse assunto
seja garantido por Javé.
O termo “aljava” é mencionado diversas vezes na Bíblia, sempre em contexto militar,
como na narrativa do ciclo de Eliseu sobre a vitória de Joás (2Rs 13,14-19; Is 22,6; 49,2; Jr
5,16; Sl 127,5; Jó 39,3; Lm 3,13). Este também parece ser o contexto da citação da “aljava”
na inscrição de Kuntillet „Ajrud.
Ele (deus) pode abençoar seus dias para que eles possam ter [abundância]
para comer [e...] recontem [elogios] para Yhwh de Teman e Asherata. Yhwh
de Te[man] fez bom [...], definiu o vinho e o figo árvore”. Yh[wh] de
Te[man] tem [...].(NA‟AMAN, 2011b, p. 308).
O texto apresenta “Javé de Temã” como o provedor de bênçãos para seus fiéis: comida
e pomares. A referência às vinhas e figueiras indica que os fiéis chegaram de regiões
cultivadas, mas, enquanto estão no sul, atribuem o sucesso ao deus patrono local.
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A cena nos faz lembrar a travessia do Mar de Juncos ou a travessia do Jordão para
entrar em Canaã.
Na opinião de Na‟aman, trata-se de uma versão norte-israelita antiga da narrativa do
Êxodo, no séc. VIII, que foi, posteriormente, desenvolvida e teologizada no Reino de Judá, no
séc. VII e em releituras posteriores (NA‟AMAN, 2011b).
Resumindo, os desenhos e inscrições de Kuntillet „Ajrud apresentam os seguintes
elementos: a) a figura de um governante, provavelmente o rei de Israel, sentado no trono e
segurando uma flor de lótus, pintada na parede de entrada do edifício; b) a figura de uma vaca
amamentando um bezerro; c) um hino em escrita (prestigiosa) fenícia que descreve a teofania
de um deus, aparentemente Javé, invocado para socorrer o rei na guerra; d) um fragmento de
narrativa de uma possível versão antiga do Êxodo; e) a presença de alto funcionário da realeza
(“o amigo do rei”) no sìtio; f) uma bênção para “o senhor da tua casa”, provavelmente o rei de
Israel; g) possìvel alusão a Joás e Jeroboão como reis “ungidos” ou “libertadores”; h) uma
possível referência a Jeroboão II, na inscrição “o favorecido do pai e sua aljava”; i) culto local
a Javé, conforme as inscrições “Javé de Samaria”, “Javé de Temã”; j) e culto a casal de
divindades (Javé e Asherá).
Sobre a causa do declìnio de Kuntillet „Ajrud é possìvel conjecturar a seguinte
hipótese: havia duas rotas para o comércio árabe com a costa do Mediterrâneo: uma pela
estrada Edom-vale de Bersabeia, mais curta e mais árida; e outra por Dharb-el Ghazza. No
final do séc. VIII, especialmente nos dias de Sargon II (722-705), a Assíria optou pela rota
edomita, e construiu fortalezas em Tell el-Kheleifeh e „Em Hazeva e um complexo
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Sobre as hipóteses acerca da natureza do sìtio de Kuntillet „Ajrud, ver: NA‟AMAN; LISSOVSKY, 2008,
p.186-208.
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Essa diversidade de características relativas a Javé gera uma dificuldade ainda maior a propósito da origem do
culto a Javé em Israel Norte. A tendência atual tem sido a de que Javé é uma divindade proveniente da região
árida do sul, Madiã/Temã/Edom (RÖMER, 2015b). Um dos argumentos dos defensores dessa posição é que o
nome de Javé não aparece na lista do panteão de Ugarit. Por outro lado, a forte influência de El e Baal na
tradição norte-israelita do culto a Javé nos instiga a levantar a hipótese sobre a existência de um culto periférico
a um Javé proveniente do Norte, talvez originário de Ebla, Ugarit ou Mari (?). Tal investigação, porém, extrapola
o limite desta dissertação.
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Compreendemos, contudo, que o processo cultural de transmissão e assimilação de memórias não se restringe
à intencionalidade política de um governo.
50
Visto que os sítios em torno da área do rio Jaboque foram citados na campanha de Sheshonq I no final do séc.
X, assim como vários sítios do planalto de Gabaon-Betel, todos ligados à casa de Saul, é possível que a narrativa
do livro de Reis seja uma retroprojeção do período de Jeroboão II, tal como vimos em relação à referência a
Betel e Dã (1Rs 12,29), que também fazem parte da atividade construtora de Jeroboão I, de acordo com a
redação deuteronomista. Embora não haja dados precisos sobre a datação do sítio de Fanuel, diríamos que, por
analogia à datação de Betel e Dã, cujos dados estão bem definidos, a fortificação de Fanuel pode ter ocorrido no
séc. VIII.
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Tradução de Kaefer em: KAEFER, 2015a, p. 899.
122
123
2015b). Porém, em qualquer uma dessas possibilidades, a etimologia indica que os membros
do grupo “Israel”, em suas origens, sentiam-se vinculados ao deus “El”, e não ao deus “Javé”.
Em outras palavras: embora geralmente se diga que “Israel” é o “povo de Javé”, a partir da
etimologia, sugerimos que o culto a Javé em Israel teria ocupado, inicialmente, uma posição
secundária, provavelmente subordinado a El, talvez como um dos filhos de El (Sl 89,7-8), até
se tornar a divindade principal de Israel. Neste sentido, El seria a divindade a quem estaria
ligada a libertação do Egito, no contexto do final do séc. X.
Outra evidência que nos leva a considerar El como o deus do Êxodo (nas origens) é o
símbolo cultual do touro nos santuários norte-israelitas, distinto, por exemplo, da
representação dos querubins no santuário de Jerusalém.
As evidências bíblicas e extra bíblicas do touro como símbolo cultual dentro e fora de
Canaã são vastamente atestadas, seja como representação da divindade, seja como pedestal
para uma divindade antropomorfizada.
Consideramos que, em Israel Norte, em consonância com as tradições religiosas
locais, cultuava-se uma divindade representada pelo símbolo do touro. No panteão de Ugarit,
que está na base da religião canaanita, o touro representava o deus El e/ou o deus Baal.
Parece-nos que, num primeiro momento, o culto a El, com a representação do touro,
coexistiu com o culto a Javé. Por fim, a partir da própria dinâmica da cultura religiosa, pouco
a pouco, o culto a Javé tornou-se principal (o que situamos já no período dos Omridas, no
início do séc. IX), mantendo, contudo, elementos do culto a El e Baal, tais como: o símbolo
do touro como forma de representação da divindade, os atributos de força e fertilidade 53, e
Asherá, consorte de El. Tanto os textos bíblicos quanto a iconografia atestam o culto ao touro
em Israel Norte.
53
Normalmente, o atributo de fertilidade era associado ao deus Baal.
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54
Na citação bíblica mantivemos a tradução conforme o artigo citado de Kaefer, no qual o autor analisa cada
uma das referências mencionadas: Ex 32,4; 1Rs 12,28; Os 8,4-7; Dt 33,13-17; Gn 49,22-26; Nm 23,22 e 24,8
(KAEFER, 2015a, p. 878-906).
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Um óstraco da Samaria (n. 41) contém o nome próprio ‘glyw, que significa “touro
jovem de Javé” ou “Javé é um touro jovem” (RÖMER, 2015b)55.
Em Kuntillet ‟Ajrud, há uma inscrição a “Javé de Samaria e Asherá”, um desenho de
uma vaca amamentando seu filhote e, como vimos, uma possível referência à tradição do
Êxodo.
Enfim, uma grande quantidade de altares com quatro chifres é encontrada de norte a
sul em toda Canaã, com destaque para o altar de Dã e Bersabeia, e é expressão do culto ao
touro. Inclusive o altar do templo de Jerusalém tinha chifres. Havia altares grandes de chifre,
utilizados para os sacrifícios e ofertas, e altares pequenos, alguns de dois chifres, para o
incenso, colocado diante da divindade. Esses altares perpassam as fronteiras do tempo, vão
desde o Bronze até o Ferro II, e talvez sejam a maior expressão da continuidade do culto em
Canaã e Israel.
A representação do touro, na religião de Canaã e também em Israel, era atribuída,
inicialmente, a El ou Baal e, posteriormente, foi assimilada por Javé.
55
Para opinião contrária, ver: ALBERTZ, 1999, p. 279.
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Betel é um dos mais importantes santuários de Israel Norte, anterior a Samaria, e a ele
tem sido atribuído um papel fundamental na origem, preservação e transmissão das antigas
tradições norte-israelitas, antes e depois da queda de Samaria.
O apogeu político e econômico de uma nação envolve crescente complexidade
administrativa e burocrática no aparato estatal, o que requer, por sua vez, o desenvolvimento
da escrita, especialmente nos templos e palácios. Este período, correspondente ao reinado de
Jeroboão II, na primeira metade do séc. VIII, é uma boa alternativa para situar a compilação
das tradições norte-israelitas, antes da queda de Samaria56. Em Israel, o surgimento da escrita
elaborada é atestado no início do séc. VIII (ou um pouco antes, conforme sugere a estela de
Mesha, dos anos 840)57, e em Judá um pouco mais tarde, no séc. VII, quando o Reino do Sul
alcançou, efetivamente, a condição de estado (FINKELSTEIN, 2015b).
Dentre as principais tradições originárias do Norte, citamos o núcleo do ciclo de Jacó
em Gênesis, o chamado “Livro dos Salvadores” em Juízes, o material pró-Saul e anti-Davi
nos livros de Samuel e Reis, parte do ciclo de Elias e Eliseu no livro de Reis, possíveis
informações sobre a história dos reis do norte registradas nos anais da realeza, alguma
profecia do Norte do séc. VIII, nos livros de Oseias e Amós, tradições sobre as tribos do
planalto central de Israel (Gn 49,13-22), tradições remanescentes no livro de Números, entre
outras. E, evidentemente, também o Êxodo, como tradição originária do Norte, ligada a Betel,
Samaria e Kuntillet „Ajrud, tal como nos propomos a apresentar nesta dissertação.
Não dispomos de grande quantidade de textos, nem de narrativas extensas, abarcando
a totalidade do passado de Israel Norte. A maior parte das tradições norte-israelitas nos
chegou de modo fragmentário e está relacionada a memórias locais, surgidas, talvez
paralelamente, em diferentes santuários (FINKELSTEIN, 2015b).
Sabemos pela reavaliação dos dados das escavações (FINKELSTEIN; SINGER-
AVITZ, 2009) que, após o período de prosperidade em Betel à época dos Saulidas, no séc. X,
56
Há autores que defendem uma data posterior de redação em Betel, por exemplo: KNAUF, E. A. Bethel: The
Israelite Impact on Judean Language and Literature. In: LIPSCHITS, O.; OEMING, M. (orgs.). Judah and the
Judeans in the Persian Period. Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 2006, p. 291-349; DAVIES, P. R. The Origins
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Honour of A. Graeme Auld. Leiden: Brill, 2007, p. 93-111, conforme citação de FINKELSTEIN, 2015b, p. 17.
57
A estela de Mesha, rei de Moab, é um exemplo de um longo texto, com cerca de 24 linhas, datado nos anos
840, o que sugere a possibilidade de que também em Israel tenham sido escritos documentos desta magnitude.
Podemos citar ainda a estela de Dã, também dos anos 840, escrita no reinado de Hazael, rei de Aram-Damasco.
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contexto no qual situamos as raízes históricas da tradição do Êxodo em Israel Norte, Betel
apresentará nova fase de expansão somente no início do séc. VIII e, depois, no séc. II
(FINKELSTEIN, 2015b).
Assim, o período mais adequado para a redação das tradições norte-israelitas,
particularmente a tradição do Êxodo-Deserto, seria na fase de apogeu do reinado de Jeroboão
II, quando existem evidências de desenvolvimento da escrita e conforme atestam, sobretudo, a
profecia de Oseias e as inscrições de Kuntillet „Ajrud.
De acordo com 2Rs 17,24ss, houve assentamentos assírios em Betel após a queda de
Samaria em 722. Embora as escavações arqueológicas não registrem sinais de forte atividade
neste período, pode ter havido algum tipo de culto no santuário. Dada a proximidade de
Jerusalém, Betel pode ter continuado como um lugar de peregrinação de refugiados norte-
israelitas que vieram para Judá, trazendo suas tradições. No contexto das deportações assírias
do oitavo e sétimo séculos, em Israel e em Judá, do desenvolvimento do Reino do Sul e da
queda da Assíria, na segunda metade do séc. VII, além da nova ameaça do Egito (sob a 26ª
dinastia), a tradição do Êxodo tornou-se a tradição fundante de “todo” Israel, agora concebido
como um só povo, desde as origens.
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5) CONCLUSÃO FINAL
O objetivo desta pesquisa foi apresentar o Êxodo como tradição fundante de Israel
Norte, consolidada no séc. VIII a.EC, a partir da leitura de 1Rs 12,26-32. Organizamos o
desenvolvimento do tema em três capítulos.
No primeiro capítulo, apresentamos a Análise Exegética de 1Rs 12,26-32. O texto
apresenta as medidas religiosas de Jeroboão para consolidar a independência do recém-
fundado Reino do Norte, em relação à “casa de Davi” e à “casa de Javé em Jerusalém” (v. 26-
27). Concluímos que a perspectiva da redação é nitidamente judaíta, com releituras à época de
Josias e do Segundo Templo. O referencial dos redatores é o da primazia da casa de Davi e da
centralidade do culto a Javé no santuário de Jerusalém, a partir da perspectiva da divisão do
reino. Disto decorre a avaliação negativa do narrador em relação às práticas de culto norte-
israelitas.
No entanto, chamou-nos à atenção o v. 28, no qual se estabelece uma relação entre o
sìmbolo do touro, a tradição do Êxodo (“subir do Egito”) e os “deuses” (’elohim) de Israel.
Isto levou-nos a considerar a possibilidade de haver, por trás da narrativa de 1Rs 12,26-32,
ecos da memória do Êxodo como tradição fundante de Israel Norte. Por outro lado,
percebemos, através da análise exegética, que o texto de 1Rs 12,26-32 reflete a realidade do
reinado de Jeroboão II, retroprojetada para o tempo de Jeroboão I.
No segundo capítulo, então, buscamos as raízes históricas do Êxodo na tradição de
Israel Norte. A associação de Jeroboão I e Roboão ao faraó “Sesac” (1Rs 11,40; 14,25),
identificado como Sheshonq I, rei da 22ª dinastia do Egito, levou-nos ao contexto da
campanha militar do faraó em Canaã, na segunda metade do séc. X.
Na verificação da lista de lugares conquistados por Sheshonq, conforme o registro de
Karnak, no Egito, chamaram-nos à atenção os nomes de um conjunto específico de sítios no
planalto de Gabaon-Betel e na área do rio Jaboque, na Transjordânia. Esses sítios
localizavam-se fora das principais rotas comerciais e não possuíam uma grande importância
geopolítica. A melhor justificativa para a sua destruição e abandono era constituírem a sede de
governo de uma entidade político-territorial forte o bastante a ponto de ser considerada uma
ameaça aos interesses do Egito em Canaã. Os territórios dessa entidade político-territorial do
planalto de Gabaon-Betel, cujos nomes são citados na lista de conquistas de Sheshonq em
Karnak, no Egito, estão relacionados à casa de Saul, no livro de Samuel.
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