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Com o objetivo de assegurar a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens,
a Lei nº 14.611/23, dentre outros mecanismos, instituiu a obrigação de publicação semestral de relatórios
de transparência salarial e de critérios remuneratórios por todas as empresas com 100 ou mais
empregados. Em casos de desigualdade identificada pela fiscalização, as empresas deverão elaborar
planos de ação com metas e prazos, sob pena de estarem sujeitas a multa de até 3% da folha salarial.
Estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) citados pela relatora do projeto de lei que
culminou na edição da Lei nº 14.611/23 apontam que, globalmente, as mulheres recebem, em média,
cerca de 20% menos do que os homens e que, em grande parte, essa diferença se deve à discriminação
com base no gênero. A síntese de indicadores sociais de 2023, estudo publicado pelo IBGE, expõe que o
rendimento nacional médio dos homens, no ano de 2022, foi de R$ 2.838, frente ao rendimento nacional
médio de R$ 2.235 das mulheres, uma diferença percentual de praticamente 27%.
O conjunto de dados e informações listados nas normas é extenso e traz informações críticas da estrutura
salarial praticada pelas empresas e sobre seus empregados, com amplo detalhamento da estrutura
remuneratória. Caso todos os dados que passarão a ser compartilhados com o governo federal sejam
tornados públicos através dos relatórios de transparência salarial, na prática, estaremos diante de um
cenário em que uma legislação aprovada em regime de urgência inaugura o dever de ampla transparência
salarial em nosso ordenamento. Isso sem a necessária maturação do debate público sobre o tema e a
necessária ponderação de questões econômicas e sociais que vão muito além do fomento à equidade
salarial.
Não há elementos que corroborem a ampla transparência como medida mais adequada para o fim
proposto, especialmente se seria este o meio menos invasivo para alcançar o mesmo resultado. Diante
da ausência da publicação da análise sobre impacto regulatório, conforme exigido pela Lei da Liberdade
Econômica, sequer é possível apreender os fundamentos que possam ter levado à compreensão de que os
benefícios de uma transparência irrestrita suplantam os custos coletivos e individuais dela.
No aspecto coletivo, impõe-se que se pondere sobre os efeitos colaterais da medida. Estudos conduzidos
pela Universidade de Chicago demonstram que a vigência da Lei de Transparência Salarial do Estado da
Califórnia resultou em redução média da remuneração em 7% para os cargos de gestão. Outro estudo,
publicado pela Harvard Business Review, concluiu que a transparência salarial estimula o acordo por
benefícios personalizados não financeiros em detrimento de incrementos salariais.
A preocupação com a privacidade e a segurança é latente em nossa sociedade, tanto que foi necessário o
próprio MTE vir a público, em comunicado publicado em seu site, esclarecer que “a divulgação de
salários de homens e mulheres não mostrará nomes de colaboradores”. No entanto, como se sabe, o
nome não é dado indispensável para identificar um indivíduo.
Em contradição com o próprio ato do governo federal de retirar do ar a publicação dos microdados do
Inep até que se avalie alternativas que garantam a privacidade dos titulares, o MTE fez vistas grossas à
clara possibilidade de utilização de um conjunto de dados indiretos para reidentificar os titulares
afetados. Se agregamos apenas alguns dos dados elencados na Portaria nº 3.714/2023, como sexo, raça e
etnia, com os respectivos valores da remuneração mensal, não é difícil concluirmos que a reidentificação
do titular será possível ser realizada sem grandes esforços.
À luz destas premissas, a publicação de todos os dados elencados nos atos infralegais é incompatível
com o próprio comando normativo da Lei nº 14.611/23, que estabelece expressamente o respeito à Lei
Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o dever de anonimização de dados. Circunstância esta que se
agrava quando observamos que na lista de dados pessoais que deverão ser compartilhados temos dados
pessoais sensíveis e dados pessoais que trazem elevado risco de dano aos titulares.
Soma-se aos riscos individuais e coletivos, a ausência de critérios previamente estabelecidos para
dosimetria da multa e definição normativa de qual será a sua destinação. Incertezas que trazem
insegurança jurídica e poderão ser causa de passivo judicial ao próprio Estado.
A relevância do combate à desigualdade de gênero não deve nos impedir de denunciar que o rei está nu,
que as incertezas e riscos existentes na formatação dos relatórios de transparência salariais devem ser
melhor endereçados. Mostra-se mandatório que o governo federal submeta à sociedade civil a proposta
de estrutura do relatório de transparência salarial, a avaliação do impacto regulatório e de proteção de
dados, bem como que amplie o debate sobre quais as consequências da publicação de cada uma das
informações que serão tornadas públicas.
A segurança jurídica e o direito à privacidade são direitos fundamentais que devem ser considerados na
construção desta importante política pública e não são antagônicos aos seus objetivos. É possível
avançarmos com transparência sobre o diagnóstico situacional da odiosa discriminação salarial baseada
em gênero sem prejuízo à efetividade da fiscalização, bem como em sinergia com outros direitos
envolvidos.
Date Created
24/12/2023