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Humberto Amorim

Ricardo Dias

Felipe de Almeida Ribeiro

Fabio Guilherme Poletto

(organizadores)

REVISTA VÓRTEX - Série Ebooks | Volume 1


1

Sérgio Abreu
e seu tempo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Sérgio Abreu e seu tempo. / Humberto Amorim; Ricardo Dias; Felipe de Almeida Ribeiro e Fábio
Guilherme Poletto (Orgs.). v.1. Curitiba: Revista
. Vortéx, 2023.
228 p. . il.
Catalogação na publicação elaborada por Mauro Cândido dos Santos – CRB 1416-9
1 e-book: (PDF)
DOI: https://doi.org/10.33871/23179937.2023.11.2.8345

ISBN: 978-65-00-82808-5

1. Violão. 2. Música Brasileira. 3. Violão – Sérgio Abreu. I. Amorim, Humberto. II. Dias,
Ricardo. III. Ribeiro, Felipe de Almeida. IV. Poletto, Fábio Guilherme. V. Título.

Catalogação na publicação elaborada por Mauro Cândido dos Santos – CRB 1416-9ª.

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Sérgio Abreu
e seu tempo

Sumário

1 Prefácio dos editores

2 Prefácio | Fabio Zanon

8 Meu irmão Sérgio | Eduardo Abreu

10 Meu amigo Sérgio | Ricardo Dias

19 Para Sérgio II | Maria Haro

22 I will give my love an apple: um momento único | Adélia Issa

24 Sérgio Abreu: Classic Guitar’s Renaissance Man (1948-2023) | A Personal Tribute | Alice Artzt

30 Sérgio Abreu, amigo | Antonio Tessarin

33 Segredos de mão esquerda | Breno Chaves

37 Sérgio Abreu, Eterno | Cecília Siqueira

40 Relembrando Sérgio Abreu | Clemer Andreotti

47 Depoimento | Crispim Vieira

49 Sérgio Abreu: obrigada por tudo | Cristina Azuma

51 Um adeus à Sérgio Abreu | Cyro Delvizio

55 Por onde quer que vá, estaremos sempre juntos | Daiane Boza

57 Sérgio Abreu: um modelo que permeou minha trajetória musical | Daniel Wolff

65 Sérgio Abreu: lições do maior de todos | Raphael e Thadeu Maia / Duo Maia

68 Sérgio Abreu | Edelton Gloeden

73 Sérgio Abreu, el intérprete | Eduardo Fernández

81 Sérgio Abreu: algumas palavras | Eduardo Meirinhos

92 Sérgio Abreu em três tempos: audição, concerto e amizade | Everton Gloeden

98 Sérgio Abreu: entre pai e filhos | Fernando de Lima

103 “O maior professor que não dava aulas” | Flávio Apro

106 O amor que fica | Geraldo Ribeiro e Márcia Braga

108 Sérgio Abreu para pianistas: um decálogo | Giulio Draghi

127 Sérgio Abreu: a escuta em busca da perfeição | Glauber Rocha

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131 “Espantar-se; não parar” | João Camarero

132 Sérgio Abreu: lição de humildade e generosidade que nunca será esquecida | João Luiz

136 A Arte do Ilusionismo: construindo a música plena ao violão | Luciano Lima

150 Depoimento sobre o arranjo livre para três violões de Sérgio Abreu da obra “Variações sobre um

tema da Ópera A Flauta Mágica, de Mozart, opus 9” | Luciano Morais

155 Desde Buenos Aires | Marcelo Fébula

173 Remembering Sérgio Abreu | Marcelo Kayath

176 Gentileza, generosidade, conhecimento e amizade | Maria do Céu

178 Sérgio Abreu in Memoriam | Miguel Praguer Coelho

182 Miss you, Sérgio | Nora Buschmann

183 Uma saudade enorme | Paulão 7 Cordas, em depoimento a Ricardo Dias

184 Lembranças de um gênio | Paulo Martelli

191 Café com gengibre | Pedro Rocha

193 Duas lembranças com Sérgio Abreu | Roberta Mourin

194 Sérgio Abreu: além da vida terrena | Sérgio Assad

196 António da Costa Rebelo (1902-1965) e Sérgio Rebello Abreu (1948|2023): breve panorama de

seu(s) tempo(s) | Teresinha Prada

212 Sérgio Abreu: Concatenação e Sincronia | Vicente Paschoal

214 Relato de experiência | Walmor Boza

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Lista de Figuras

23 Figura 1: Adélia Issa e Sérgio Abreu interpretando, em reunião particular, I will give my love an

apple, do ciclo Folk Song Arrangements, de Benjamin Britten. Foto: Vera de Andrade.
30 Figura 2: Sérgio Abreu e Alice Artzt. Fonte: Acervo pessoal de Alice Artzt.

30 Figura 3: Sérgio Abreu e Alice Artzt. Fonte: Acervo pessoal de Alice Artzt.

50 Figura 4: Paulo Bellinati e Cristina Azuma. Fonte: Acervo pessoal de Cristina Azuma.

50 Figura 5: Capa do CD Pingue-Pongue, de Cristina Azuma e Paulo Bellinati.

50 Figura 6: Cristina Azuma com o seu violão Sérgio Abreu (1987). Fonte: Acervo pessoal de Cristina

Azuma.

56 Figura 7: Outubro de 2022. Sérgio Abreu à esquerda. Crispin Vieira, seu fiel assessor de luteria em

primeiro plano. Jan de Kloe, violonista musicólogo e editor belga à direita. Frederico Sheppard,

luthier e musicólogo estadounidense ao fundo esquerdo. Cyro Delvizio ao fundo direito.

64 Figura 8: Daniel Wolff e Sérgio Abreu no apartamento de Sérgio, em Copacabana. Fonte: Acervo

pessoal de Daniel Wolff.

64 Figura 9: Daniel Wolff e Sérgio Abreu empunhando violões. Fonte: Acervo pessoal de Daniel Wolff.

64 Figura 10: Daniel Wolff e Sérgio Abreu ensaiando um duo. Fonte: Acervo pessoal de Daniel Wolff.

72 Figura 11: Programa do Recital-Palestra citado no texto e no qual Edelton Gloeden utiliza dois

violões Sérgio Abreu. Fonte: Acervo pessoal de Edelton Gloeden.

112 Figura 12: Piano David Rubenstein 3,71 m

112 Figura 13: Piano Stuart & Sons com nove oitavas e 108 teclas.

114 Figura 14: Ex 1 - Paganini Grand Sonata para violino e violão versão para violão solo de Sérgio

Abreu c.1-4

115 Figura 15: Ex 2 - Paganini Grand Sonata para violino e violão versão para violão solo de Sérgio

Abreu primeiro movimento compassos 84 e 182-183.

115 Figura 16: Ex 3 - Paganini Grand Sonata para violino e violão versão para violão solo de Sérgio

Abreu primeiro movimento compassos 123-124.

117 Figura 17: Ex 4 - PaganiniPaganini Grand Sonata para violino e violão versão para violão solo de

Sérgio Abreu primeiro movimento compasso 60.

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117 Figura 18: Paganini Grand Sonata para violino e violão versão para violão solo de Sérgio Abreu

segundo movimento Romanze compasso 16.


119 Figura 19: Ex 5 - Paganini Grand Sonata para violino e violão versão para violão solo de Sérgio

Abreu primeiro movimento compassos 6-8.


119 Figura 20: Paganini Grand Sonata para violino e violão versão para violão solo de Sérgio Abreu

primeiro movimento compassos 34-35.


119 Figura 21: Paganini Grand Sonata para violino e violão versão para violão solo de Sérgio Abreu

primeiro movimento compassos 14-16.


120 Figura 22: Ex 6 - Schumann Carnaval op.9 Pierrot compassos 46-50

138 Figura 23: Fandanguillo digitação de Sérgio Abreu (1997).

140 Figura 24:Tonadilla (c. 81-82) violão 1 original.Fonte: elaboração do autor (editoração da partitura

publicada).

140 Figura 25:Tonadilla (c. 81-82) violão 1 alternativa Sérgio Abreu. Fonte: elaboração do autor.

141 Figura 26: Tonadilla (c. 73-74) violão 1 original. Fonte: elaboração do autor (editoração da partitu-

ra publicada).

141 Figura 27: Tonadilla (c. 73-74) violão 1 alternativa Sérgio Abreu. Fonte: elaboração do autor.

142 Figura 28: Tonadilla digitação de Sérgio Abreu (1999). Fonte: arquivo pessoal do autor.

170 Figura 29:Humberto Amorim, Marcelo Fébula, Ricardo Dias y Sérgio Abreu.

170 Figura 30: Marcelo Fébula, Sérgio Abreu y el vino de Mendoza.

171 Figura 31: Humberto Amorim y Vicente Paschoal sumergidos en los archivos personales de Sér-

gio.

171 Figura 32: Marcelo Fébula y la guitarra Hermann Hauser.

172 Figura 33: Afiches del Bar El Chino en la Librería Berinjela.

173 Figura 34: Marcelo Kayath, Sérgio Abreu and Leo Brouwer.

174 Figura 35: Sérgio Abreu and Marcelo Kayath.

175 Figura 36: “Cinquentenário / Homenagem ao 50º aniversário do grande amigo Marcelo Kayath.

15-01-2014 / Sérgio Abreu”.

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178 Figura 37: Sérgio Abreu, Prof. Monina Távora e Eduardo Abreu.

180 Figura 38: Sérgio e Olga no júri do 2º Concurso Internacional de Violão, Rio de Janeiro, 1980.

193 Figura 39: Encontro na Cinelândia após o recital do violonista Flávio Apro no Centro Cultural da

Justiça Federal em 20 de julho de 2019, pela série Violões da AV-Rio. Em primeiro plano: Vicente

Pascoal (violonista) e Sérgio Abreu. Em segundo plano: Roberta Mourim (violonista e pesquisado-

ra) e Flávio Apro. Em terceiro plano: Raphael e Tadeu Maia (Duo Maia).

193 Figura 40: Foto tirada após o concerto realizado na sala Cecília Meireles em homenagem à Olga

Praguer Coelho, quando Nelson Freire, Fábio Zanon, Marcia Taborda e Rosana Lamosa apresenta-

ram uma seleção de obras em tributo à cantora e violonista. Na Foto: Suely Franco, Sérgio Abreu,

Roberta Mourim, Marcia Taborda e Ricardo Dias.

197 Figura 41: Viola da Terra, dos Açores. Foto: Cortesia do guitarrista açoriano Rafael Carvalho.

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Com grande entusiasmo, temos a honra de apresentar o lança-


mento do primeiro Ebook da Revista Vórtex, intitulado “Sérgio Abreu
e seu tempo”, dedicado à memória do violonista e luthier brasileiro
Sérgio Rebello Abreu (1948-2023). O livro reúne 42 textos, que vão
desde memórias e depoimentos pessoais sobre a trajetória, a arte e o
legado de Sérgio Abreu até textos acadêmicos, escritos por diversas
personalidades de destaque no universo do violão.
Este ebook foi concebido sob a curadoria de Humberto Amorim,
Ricardo Dias e nós, editores. Além de uma sincera homenagem a Sér-
gio Abreu, esta obra também celebra os dez anos de existência da Re-
vista Vórtex, um periódico de acesso aberto que, desde sua fundação
em 2013, estabeleceu-se como um espaço essencial na disseminação
da pesquisa em música no Brasil. Temos a satisfação de constatar que
hoje, a Vórtex desempenha um papel vital na promoção do conheci-
mento musical e na criação de um ambiente acadêmico colaborativo.
A proposta da nossa série de ebooks é a publicação regular, a
cada dois anos, de volumes dedicados a temáticas relevantes no con-
texto artístico e acadêmico contemporâneo. Desejamos que este con-
teúdo valioso e inspirador seja compartilhado com nossos estimados
leitores. E convidamos a todos a permanecerem atentos aos próximos
volumes que comporão a série de Ebooks da Revista Vórtex, reafir-
mando nosso compromisso contínuo de promover o conhecimento
em música em nosso cenário acadêmico e cultural.

Dr. Felipe de Almeida Ribeiro


Dr. Fabio Guilherme Poletto

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PREFÁCIO
Fabio Zanon

Sérgio fez, a pedido de amigos, vários arranjos para trio de vio-


lões de música dos filmes de Charlie Chaplin. Esta é a única lembrança
que tenho de conversar com ele sobre cinema. A gente sabe que o in-
teresse de Sérgio era voltado para poucos assuntos - Chaplin era um
deles. Pelo visto, celebrações de Natal não eram. Uma vez pedi para
fazer uma gravação no seu apartamento e ele marcou no dia 26 de
dezembro. Quando perguntei se isso não colidia com alguma festa de
família, ele se deu conta: “Ah, é verdade, nem lembrei disso! Ótimo,
assim o prédio vai estar em silêncio e não vai atrapalhar a gravação.”
Talvez, portanto, ele não se interessasse pelo filme de Frank
Capra, A Felicidade Não Se Compra (It’s a Wonderful Life, 1947), um
clássico natalino. Nele, um homem simples chamado George Bailey
passa sua vida adiando projetos pessoais para acomodar as necessida-
des de parentes e ajudar amigos; ele é querido por todos. Porém se vê
metido num confronto contra um poderoso local e sua vida toda vira
de pernas para o ar; vítima de uma trapaça, ele perde uma pequena
fortuna e, desesperado e com vergonha de encarar sua família, pensa
em suicídio. Na véspera de Natal, seu anjo da guarda (Classe II, sem
asas) aparece para tentar salvá-lo com um pouco de bom senso. Ele
cria uma distopia para convencê-lo de como a vida de todos na cida-
dezinha seria muito pior se ele não existisse: seu irmão teria morrido
na infância, amigos teriam caído na miséria, sua esposa teria uma
vida infeliz, e a qualidade de vida da comunidade toda seria, de uma
forma geral, péssima. Todos, naquele lugar, tinham tido suas vidas

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discreta e positivamente tocadas simplesmente por ele ter agido de


forma correta e generosa por toda sua vida. Claro que o filme tem um
final feliz.
Eu vejo um pouco do anjo e um pouco de George no Sérgio.
Do anjo porque realmente não consigo pensar em nenhuma me-
táfora melhor para descrever a personalidade e a natureza um pouco
sobrenatural dos talentos dele. É amplamente sabido, mas não custa
escrever aqui de novo: na minha longa e afortunada carreira musical,
tive a chance de conviver com, observar ou ao menos apertar as mãos
de músicos mundialmente reconhecidos - compositores, maestros,
solistas, professores formidáveis e muito famosos/as. Ainda assim,
posso dizer, sem hesitação, que Sérgio não foi somente um ponto de
inflexão na história do violão: sua capacidade, específica de intérpre-
te, estava um grau acima de todos os outros e, não tenho dúvidas, se
ele tivesse tido o desejo de desenvolver cada uma daquelas habilida-
des ao invés da de violonista e luthier, teria sido superior à maioria
dos rostos que figuram nas revistas ou vídeos da medici-tv.
A quantidade de anedotas que circulam sobre a natureza inu-
sitada de seu talento é enorme, e meu ceticismo natural tenderia a
tratá-las como exageros descabidos se não tivesse presenciado várias
delas. Ouvido afiado, memória nítida e detalhada, cultura, bom gosto,
originalidade, coordenação motora, a estimativa da perfeição, muita
gente tem isso em grau superlativo, mas ele parecia ter tudo isso num
sistema de rede, com tudo interconectado. Ele guardava com perfei-
ção a memória de um som que ouvira trinta anos antes e era capaz
de escrevê-lo e reproduzi-lo. Ele ouvia um violão, registrava mental-
mente as qualidades e defeitos e gerava uma maneira de melhorar no
próximo instrumento que confeccionava.
Para melhor compor o personagem, ele carregava essa sabedo-
ria com a leveza de quem já tinha resolvido o problema de tocar bem

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violão com quinze anos de idade; a gente notava até um certo desdém
pelos seus próprios feitos. Todos nós, seus herdeiros, teremos uma
história de dificuldades intransponíveis que foram superadas com
um comentário lacônico e certeiro como um raio laser, vindo da boca
do Sérgio. Esse segredo era revelado com tanta naturalidade que não
havia como não pensar que ele já tinha chegado ao mundo assim,
pronto, mas sem a menor necessidade de propagandear suas habili-
dades ou de colocar os mortais de joelhos com sua formidabilidade.
Ele estava contente como um anjo classe II, não precisava brilhar ou
rufar as asas.
De anjo, Sérgio carregava também um pouco do desconforto de
existir num mundo que lhe era um pouco alheio. Isso foi ficando mais
acentuado nos últimos anos; parecia que a cabeça dele estava sempre
em outro lugar. De uma certa forma, sua gentil intransigência foi a
maneira que encontrou para se encaixar um pouco melhor no mundo.
Muita gente não consegue definir como intransigente uma pessoa tão
polida, suave e marota, mas o fato é que ele abriu mão de seu maior
bem - a carreira de concertista - e escolheu uma profissão sedentária,
em que podia consolidar seu trabalho sem o esforço de ter de se exer-
citar somente para manter o que já sabia fazer, ou de se deslocar cons-
tantemente. Ele evitava viajar sem necessidade; acordava, dormia e
trabalhava quando queria, sem olhar para o relógio; só ouvia a músi-
ca que queria, comia a comida que queria, bebia o vinho que gostava
e pouca atenção dava para a roupa que vestia, os objetos que tinha
em casa ou para as preocupações mais comezinhas que consomem a
maior parte das horas de quem tem um trabalho mais convencional.
Sua proverbial generosidade e polidez, que o impediam de cometer
qualquer indelicadeza e de negar ajuda foram contrabalançadas por
uma vida pessoal discreta em que era devotado aos parentes e amigos
mais próximos, mas que não incluiu vínculos afetivos agregados a al-

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guma forma de dependência. Com isso, em pouco mais de 40 anos de


luteria, ele produziu um número superior a 760 instrumentos, mais
de 17 por ano, sem contar os quase 500 tampos feitos anteriormente
para a Giannini. Isso é praticamente a produtividade máxima de que
um luthier é capaz.
Eu até já brinquei em um documentário sobre essa natureza meio
sobrenatural e fugidia. Meu último encontro com ele foi o encontro
com uma quase-ausência. Não nos víamos desde a pandemia e mar-
quei uma visita num domingo, eu, Ricardo Dias, Vicente Paschoal e
a luthier Monicky Zaczeski, que ainda não o conhecia pessoalmente.
Fomos à oficina e Crispim, seu então assistente, disse que Sérgio esta-
va dormindo - no chão do quartinho. Eram 19h00 e ele parecia estar
preocupado com uma operação de catarata que deveria fazer no dia
seguinte. Ficamos conversando, comendo e bebendo até bem tarde,
e nada dele acordar. Decidimos deixá-lo em paz e fomos embora. Saí-
mos com a sensação de que ele não tinha se “materializado” daquela
vez; Monicky não estará exagerando se disser que conheceu Sérgio
sem vê-lo. Um mês depois sua saúde declinou rapidamente.
De George, Sérgio não tinha nem sombra do aparente desespero
ou frustração; perguntado se tinha se realizado mais como violonista
ou como luthier, respondeu que, como luthier, tinha chegado mais
perto do que queria. O que ainda vai ficar por muito tempo ainda é
sua influência sutil e benigna.
O Sérgio violonista atingiu, antes de tudo, um patamar de exce-
lência que nos deu uma estimativa de quão longe o violão poderia ir,
tanto em acabamento técnico quanto como um veículo de pensamen-
to musical. Mesmo sem ter tido nada que se parecesse com ensino
formal, será que eu, Paulo Martelli, Everton Gloeden, Duo Assad, Mar-
celo Kayath, João Luiz e Douglas, Fernando e Cecília, para ficar só nos
nomes mais óbvios, teríamos feito qualquer coisa significativa com o

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violão? Quando me perguntam qual foi minha escola violonística, não


pode haver outra resposta: a convicção de que, se os irmãos Abreu
conseguiram, eu teria de dar um jeito de conseguir também.
E o ensino de violão no Brasil? Teriam Jodacil Damaceno, Henri-
que Pinto, Nicolas de Souza Barros, Paulo Martelli, Maria Haro, Edel-
ton Gloeden, Daniel Wolff, Luiz Claudio Ferreira - que, juntos, res-
pondem pela maioria dos estudantes que tocam violão direito no país
- estabelecido uma eficiência pedagógica tão grande sem o exemplo
de ouvir Sérgio?
E o acesso a bons instrumentos? Talvez deixar um legado de 760
e tantos grandes instrumentos espalhados pelo mundo já esteja de
bom tamanho. Mas talvez quem é mais jovem não se dê conta da difi-
culdade de acesso a um bom instrumento no Brasil até os anos 1970.
Claro que já havia bons luthiers, mas ainda nenhum de projeção in-
ternacional. Praticamente ninguém tocava em bons instrumentos ou
tinha um parâmetro objetivo de comparação, porque o cenário eco-
nômico de então criava enormes obstáculos para a compra de um ins-
trumento importado. De repente, Sérgio nos mostrou que era possível
ter um violão nacional com a mesma qualidade dos Rubios, Fischers
e Romanillos que cobiçávamos. Percebendo que a necessidade resi-
dia aqui e sem muita paciência para disputar o mercado internacio-
nal, ele conseguiu produzir violões por um valor possível e destinado
ao consumidor interno. Sem esse exemplo, será que teríamos tido a
quantidade de grandes luthiers que hoje atuam no Brasil?
Esta edição é importante, portanto, não só como um gesto de
homenagem, mas como um primeiro passo para a construção de um
legado. A carreira do Duo Abreu foi curtíssima; a de Sérgio solista,
ainda mais curta. A geração seguinte ocupou o espaço no cenário in-
ternacional; nos anos 70, uma pedagogia mais sólida e espalhada per-
mitiu que ótimos violonistas pipocassem no mundo inteiro. Já com o

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celular na mão, a geração nascida no século 21 luta com a impaciência


para ouvir com mais atenção e qualidade, sem pressa, digerindo o que
foi feito com esmero: muitos mal conhecem Segovia ou Julian Bream,
quanto mais um duo que parou de tocar no seu auge; como um todo,
a comunidade de estudantes de música gravita naturalmente para o
estímulo visual dos vídeos de fácil acesso. É preciso que esse legado
seja preservado e que se permita que ele continue a nos iluminar por
muitos e muitos anos. Uma redescoberta pode estar à porta.
Sérgio morreu um ano e pouco depois e mais ou menos com a
mesma idade que o músico brasileiro de maior prestígio internacio-
nal, Nelson Freire, outro superdotado. Há algo desconcertante e mal
colocado na existência dessas pessoas num local como o Brasil, ainda
mais no Rio de Janeiro. Pela discrição, pela determinação em seguir
sua inclinação intelectual, pela dependência quase química pelo tra-
balho, pela pitoresca excentricidade alegremente cultivada, pelo sen-
so de humor, pelo gênio carregado sem perplexidade, pelo ego sob
controle, seria “normal”, até mesmo esperado, conhecer alguém as-
sim na Inglaterra, na França ou no Uruguai. Mas no Rio? Na praia, na
festividade neurótica, no hedonismo paranoico, na compulsão de se
ver gente e opinar sobre tudo o tempo todo, no meio da desgraceira
social, da inexistência de um espaço compartilhado, da sensualida-
de abrasiva, da violência mal disfarçada pelo manto de cordialida-
de? Realmente, só uma natureza quase angélica para passar ao largo
do mundo assimétrico criado pelas pessoas e manter um prumo, um
foco de visão no que de fato interessa, nutre e permanece, o eterno
ciclo de crescimento, plenitude e renovação da natureza espelhado
pela inesperada e sublime perfeição da música.

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Meu irmão Sérgio


Eduardo Abreu

Não tenho o hábito de escrever, então serei sucinto. Meu irmão


Sérgio foi uma pessoa extraordinária, um músico excepcional, um
companheiro de palco perfeito. Desde crianças tivemos o hábito de
ouvir música juntos. Nosso avô, Antonio Rebello, tinha uma bela cole-
ção de discos que ouvíamos com avidez. Quando crescemos um pouco,
ganhamos nosso próprio toca discos e ficávamos horas no quarto dos
fundos de nossa casa em Copacabana os ouvindo. Também lembro de
irmos à casa do saudoso Jodacil Damaceno pegar discos emprestados,
era nossa maior diversão.
Também desde cedo nos habituamos a tocar com nosso avô e
nosso pai, Osmar Abreu, sem imaginar que estaríamos nos preparan-
do para uma carreira profissional. A chegada de nossa professora,
Monina Távora, nos deu o fecho que precisávamos.
A vida de concertista me agradava muito, adorava viajar. Por al-
gum motivo que me escapa, minha carreira se encerrou; poucos anos
depois a de Sérgio também. Enveredei pela engenharia, Sérgio se tor-
nou um grande luthier. Como tudo que fazia, chegou próximo da per-
feição. Tenho um exemplar que ele me presenteou, de número 502,
um instrumento excelente.
Com minha mudança para os EUA nosso contato passou a ser
virtual, sempre trocávamos gravações, músicas que ouvimos antes,
coisas novas que julgávamos interessantes, mantivemos nossas audi-
ções da infância, dessa vez separados fisicamente.

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A morte dele me abalou, me deixou muito triste, mas consola


saber que ele cumpriu todos os seus objetivos, estou certo de que ele
deixou um grande legado, musical, técnico e de muita amizade.

Eduardo Abreu, 3/6/2023

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Meu amigo Sérgio


Ricardo Dias

Sérgio Abreu me deixou um gigantesco legado. Imensurável. O


último deles, essa enorme honra acadêmica, ser coeditor de uma re-
vista dessa importância. E como cabe a mim a apresentação, começo
dizendo que ele certamente iria morrer de vergonha por esta home-
nagem. Muitos escreverão sobre diversos aspectos do músico, do lu-
thier, da pessoa, mas peço licença para falar detalhes do amigo. Do
GRANDE amigo.
Sérgio foi um grande músico. Suas gravações comprovam. Mas
ele era muito maior que elas. Além de violonista, era um excepcional
pianista (“Ah, não passo de uma invenção a três vozes, nada mais
complicado que isso”), um excelente violinista, um arranjador único
– seus arranjos para violão tinham a característica de extrair o essen-
cial da música. Não havia fogos explodindo, havia o essencial sempre.
Sobriedade, elegância e o discurso integral. Mas ele fazia arranjos
para formações mistas, violão e voz, e sopros, trios, duos, quartetos,
para piano, para alaúde... Compunha pequenos trechos quando ne-
cessário. No disco Estampas, do Quaternaglia, fez um arranjo para as
Bachianas Brasileiras 1, de Villa. Comentaram que determinado tre-
cho estava soando especialmente bem. Observou:
-Esse pedaço fui eu que escrevi.
Ouvi uma gravação pirata de sua interpretação do Concerto para
Violão e Orquestra, também de Villa-Lobos. Notei que havia algo dife-
rente, a música parecia mais fluida, difícil de explicar a sensação. Ele

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deu um sorrisinho.
-Conversei com o maestro e ele aceitou minhas sugestões de me-
xer um pouquinho na orquestração...
Estive com o saudoso e grande Nelson Freire numa apresentação
na qual eu estava na organização. Conversamos um pouco, perguntou
se o Sérgio estaria lá também (Estaria). Nos anos 70 eles tiveram a
mesma empresária, comentou que não o via havia muitos anos.
-Era um músico extraordinário, além de uma pessoa encantado-
ra.
Além, claro, de ter sido um dos maiores violonistas da história.
Alguns diriam O Maior, mas isso não existe em música. Está no Olim-
po, e pronto.
Mas ser músico é mais que isso. Possuir um ouvido único ajuda.
Ser capaz de discernir na massa sonora esta ou aquela característica,
como deveriam os maestros, idem. Mas ter gentileza e disponibilida-
de para orientar TODOS que se acerquem já amplia o espectro. Sérgio
passou a vida distribuindo conhecimento, mas de forma despreten-
siosa, delicada. Um amigo querido estava compondo uma música e
estava travado. Ele ouviu a peça, e comentou:
-Por que você não tenta na metade da velocidade?
Tentou. Destravou. E ficou ótima.
Mas isso é apenas um pedaço de sua vida. O que mais o motiva-
va era a luteria. Tinha um método único, passo a passo – mas passos
minúsculos. De um instrumento para outro modificava algo quase
imperceptível. Com toda a razão, achava que para saber qual a altera-
ção sonora causada pela mudança, deveria haver uma e apenas uma
razão. Fez 496 violões para a fábrica Giannini e 767 com seu nome.
De um número para o outro, quem inspecionasse o instrumento não
distinguiria nenhuma diferença; mas do centésimo para o ducentési-
mo a diferença era gritante, e assim por diante. Mas cada um deles de

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primeira qualidade.
E era intransigente. Fazia violões que ELE gostasse. Era seu cri-
tério único, nunca fazia concessões. Ajustava de forma quase mágica
a sonoridade para quem o fosse tocar, mas sempre dentro de seu es-
pectro. Integridade artística em seu apogeu.
Mas Sérgio era um ser humano único, e é dele que, como disse,
quero falar.

Escrevi uma biografia dele. Sempre brinquei quando alguém elo-


giava o livro:
-Se gostou, aguarde a que vou publicar depois que Sérgio mor-
rer; e, melhor ainda, a de depois que EU morrer.
Eu ainda estava impactado pela dificuldade que foi escrevê-la.
Queria contar as coisas, e era impedido. Fora, claro, as que eu não te-
ria coragem de contar, sempre as mais saborosas...
Mas Sérgio, sempre avesso aos holofotes, criou uma série de di-
ficuldades gentis.
-“Dificuldades gentis”????
Sim. Dele jamais se esperaria uma grosseria ou uma indelicade-
za. Então sabotava delicadamente o projeto. Ora se esquecia de algo,
ora contava a mesma história com finais diferentes, ora negava algo
que já havia dito... Claro, sua memória para qualquer coisa que não
fosse música era pavorosa. Mas certamente a amnésia era mais inten-
sa para tentar evitar a vergonha máxima de estar no foco novamente,
depois de tantos anos.
Sérgio Abreu não estar entre nós era algo inimaginável, era uma
presença que a todos os amigos cobria e protegia. Sérgio sempre es-
tava lá. Fisicamente, um tanto raramente; espiritualmente, sempre.
Na verdade, não tão inimaginável. Um dia, sou acordado pelo amigo e

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

vizinho Vicente Paschoal:


-Ricardo, a moça que faz a faxina na oficina do Sérgio ligou. Ela
não está conseguindo entrar lá, está trancado por dentro e ninguém
responde. Vamos lá.
Enfiei uma roupa correndo e fomos, um trajeto de cerca de meia
hora, sem tráfego. E ia pensando: como seria a vida sem ele? Sim, pois
o apartamento onde ficava a oficina era pequeno, para não atender,
algo grave deveria ter acontecido. E pensei na meia hora seguinte –
e por conta disso dirigindo pior que habitualmente – em como seria
esse admirável mundo novo sem a presença de meu amigo...

O conheci em 1985. Fui à oficina dele comprar um violão, um


modelo que ele construía em conjunto com a fábrica Giannini. Estava
nervoso, ele já era um ídolo. Fui recebido por um cidadão jovem – 37
anos – e afável, que me mostrou dois exemplares. Escolhi um, deixei
um cheque pré-datado, como havíamos combinado.
Bem, preciso fazer uma digressão. Nós, os antigos, pagávamos
coisas com cheques. Folhas de papel distribuídas pelos bancos que
substituíam o dinheiro. A gente assinava e datava. Quando não havia
dinheiro na conta, acordávamos que este só seria depositado numa
data posterior.
Voltando, fui direto à oficina de Mario Jorge Passos, com quem
estudei luteria – também já falecido – para mostrar o violão novo.
Por sorte, comentei sobre o tal pré-datado.
-Ligue para ele imediatamente! Já deve ter esquecido, capaz de
já ter depositado!
Liguei para o famoso 5214818 e o peguei de saída... De fato, havia
esquecido e ia sim depositar o cheque.
Ou seja, já o conheci se distraindo.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

O trânsito apertou, transformando a esperada meia hora em 40,


45 minutos. A faxineira tornara a ligar, chorando. Nenhum sinal den-
tro do apartamento. E eu sem conseguir parar de pensar em como iria
ser a vida pós-Sérgio.

A viúva do querido professor Jodacil Damaceno estava no Rio de


Janeiro. Nada mais natural que Sérgio a convidasse para comer seu
famoso bacalhau. Tudo combinado, eu a pegaria na casa da filha e irí-
amos até a casa dele. No caminho, o telefone toca.
-Você está com a chave lá de casa?
-Estou.
-Então vai entrando com a Inês que eu vou me atrasar um boca-
dinho.
Era perto de 8 da noite. Eu, não comedor de bacalhau, havia me
preparado, levando minha marmitinha.
Às 9, todos os convidados já haviam chegado. Sérgio prometen-
do que não demoraria.
Às 9:30, a namorada de uma das convivas declarou que precisava
comer de qualquer forma. Perdi minha quentinha.
Às 10, Sérgio parou de atender o telefone.
Às 11, chegou.
O jantar foi servido por volta de 1 da manhã. Disseram que esta-
va uma delícia.
Não tenho ideia, não comi. Nada.

E o trânsito piorando. A buzina era meu único consolo.

Tempos depois, relembrando o assunto, declarei que quase ha-


via morrido de fome. Ele, filósofo:

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Sérgio Abreu
15
e seu tempo

-Se estivesse MESMO morrendo, tinha comido o bacalhau.


Esse raciocínio prático se repetiu quando comentei que em de-
terminada situação estava desesperadamente frio. Disse que só não
pus duas calças por não caber.
-Se estivesse frio mesmo, teria cabido...
Sérgio sempre foi prático diante da vida. Não era estoicismo, ou
mesmo cinismo: ele apenas aceitava o inevitável. Não lutava lutas
perdidas.

No trânsito, a dificuldade de me concentrar: como seria uma vida


sem ele? Quem me ensinaria uma música nova, um compositor novo?
Como fui formado por ele em termos musicais, sabíamos do que um
e outro gostava. Quando ele não podia ir a algum recital, sempre me
ligava depois:
-E aí, gostei do concerto?
A influência dele em minha vida profissional era direta. Fizemos
amizade rapidamente. Um dia ele me liga:
-Ricardo, você fala inglês?
-Well, meio que nem o Tarzan, mas quebro o galho. Por quê?
-Vou dar um jantar, teremos alguns convidados estrangeiros,
gostaria de te convidar.
Fui, todo pimpão. Não é todo dia que teu ídolo te convida para
alguma coisa. E foi um jantar inesquecível. Naquela época ele tinha
perto de si Margarida, uma deusa das panelas, uma das pessoas mais
doces que jamais conheci.
Tempos depois, já amigos, perguntei sobre esse dia; afinal, por
que ele me convidara? Surpreendentemente ele lembrava:
-Ah, eu não tinha intimidade com aquelas pessoas, achei que
você poderia falar algumas bobagens, divertir as pessoas...

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Até hoje não sei se foi um elogio.

Enfim, chegamos. A pobre senhora estava em frangalhos. Subi


e fiz o que qualquer um faria: bati na porta de novo. Evidentemente
com o mesmo resultado. Fechadura antiga, havia uma chave do lado
de dentro. Decidi que deveria quebrar a portinhola e meter a mão por
dentro, assim liberando o acesso. Peguei um martelo no carro, e subi
as escadas com o mesmo pensamento obsessivo:
-Como seria a vida sem o Sérgio?

Toda vez que viajava, ele deixava comigo cartões de banco, cha-
ves, senhas. Nunca temeu a morte, sempre – como eu já disse – acei-
tava o inevitável. Antes de uma dessas viagens, eu havia comprado
uma mala com rodinhas. Sim, havia um tempo em que malas não ti-
nham rodas! E ele usava umas muito velhas, meio caindo aos pedaços.
Liguei para ele contando a novidade, dizendo das maravilhas desse
objeto. Ele, pouco afeito a novidades, não ligou a mínima. Fui até ele,
levando o novo tesouro. Ele olhou para aquilo com desconfiança, pe-
gou, andou pela sala – pequena. Voltou. Foi. Voltou. Ficou indo de lá
para cá empurrando a mala. Foi na oficina e pegou um torno, coisa de
uns 10, 15 quilos. Colocou na mala, e continuou andando de um lado
para o outro. Colocou umas madeiras para aumentar o peso, e repetiu
o processo. Uma hora depois, se declarou satisfeito:
-É, parece que isso funciona.
Comprou 5 no dia seguinte.

Subi as escadas e dei uma martelada na porta. Não sei se algum


de vocês já fez isso. Se não, recomendo: é uma experiência fascinante.
Acho que é o maior número de decibéis que um ser humano consegue
atingir. Um barulho ensurdecedor.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Naquela oficina tinha passado momentos inesquecíveis, alguns


inacreditáveis para quem não o conhecia bem. Por exemplo, ele ia en-
tregar um instrumento para um amigo. Combinamos uma maldade:
peguei um violão quebrado, enfiei dentro vários pedaços de madeira,
e coloquei numa capa. Na oficina, uma pilha de madeiras colocada es-
trategicamente no caminho. O cliente estava na sala, Sérgio na parte
mais interna. Saiu com o violão falso na mão, e – propositalmente,
claro! – se arremessou sobre a pilha, simulando uma queda impres-
sionante. Caiu de joelhos sobre o instrumento, fazendo um barulho
enorme e assustador. Virou-se para mim, e com extrema irritação,
perguntou:
-Mas quem foi que deixou isso no caminho?
Sua atuação foi tão perfeita que me questionei se estava falando
a verdade. Podíamos somar o teatro às suas habilidades!
O infeliz dono do violão, taça de vinho na mão, balbuciou:
-ERA o meu violão?

Na segunda pancada do martelo, do lado de dentro, uma voz aba-


fada:
-Oi?
Abre a porta um Sérgio assustado, trêmulo do susto da martela-
da. Ao nos ver à porta – A faxineira, eu, Vicente, dois ou três vizinhos
– só conseguiu perguntar:
-O que aconteceu?
Todos riram, aliviados, e foram cuidar de suas vidas. Ele, enver-
gonhado, contou que uma vez, voltando de trem, só acordou na gara-
gem. O camareiro havia esmurrado a cabine, por horas. Resolveu não
usar a chave mestra na suposição que o passageiro havia morrido,
achou mais prudente chegar à sede e ter algumas testemunhas do
óbito. Encontrou um Sérgio de pijamas.

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Dormiu mal, sonhou com trovoadas...

Voltamos para casa aliviados. Sérgio não morreria jamais, o


mundo, o destino, a ordem natural das coisas não permitiria.

Como disse, o conheci quando ele tinha 37 anos. Nos deixou exa-
tos 37 anos depois. Fomos amigos por metade de sua vida. Me formou
como músico, como luthier, como ouvinte. Fui das poucas pessoas
que teve aulas formalmente com ele – uma experiência assustadora,
seu nível de exigência era brutal. Ele buscava a perfeição em tudo
o que fazia. Se não merecia ser perfeito, não merecia ser feito (não,
essa frase de efeito não é dele, saiu sem querer). Era obcecado pela
coisa certa. Nunca se esforçou para ser diferente, nunca mudou seu
comportamento pela presença de ninguém. Tratava todos da mesma
forma, do presidente da República ao funcionário mais humilde – e
não por educação formal, mas por, internamente, não reconhecer di-
ferenças entre pessoas. Ele era ele 24 horas por dia. Foi amado por
todos que o conheceram. Cobria nosso panorama violonístico como
Batman zelando por Gotham City: estava lá, discreto e invisível. Quan-
do precisavam, surgia e resolvia tudo.

No dia em que nos deixou, peguei um taxi. Fiquei falando com-


pulsivamente com o motorista sobre ele. Em dado momento, o taxista
virou-se para trás e com expressão compungida perguntou:
-Vocês eram namorados?
Respondi que não, nosso relacionamento nunca passou por aí.
Mas sim, nos amávamos muito. Fomos amigos. Muito amigos. Aquilo
que tanto temi no dia da porta trancada aconteceu. E continuo sem
resposta.
Ainda não entendi o mundo sem o Sérgio Abreu.

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Para Sérgio II
Maria Haro

esta é uma carta longa


não sei quando vai acabar
provavelmente nunca
teu violão chegou, fui na oficina buscar
o tampo que arrancastes e que depois fizestes novo
finalmente foi acoplado à base daquele violão Sérgio Abreu que
comprei nos idos de 1980, talvez 7 ou 9, não lembro, o rótulo antigo
se foi...
esse violão que foi um sonho, que consegui comprar graças a
concertos, a um aporte de mamãe Maël que fez questão de te conhe-
cer e perguntar se eu tinha futuro... e também a Eládio Perez Gonza-
lez, que junto à sua amada esposa Lola me doaram o cachet completo
de um concerto que fizemos
esse violão que emprestei a queridos alunos como Thadeu Maia
e Marco Lima
um violão com uma história profunda – como todos os violões –
esse violão chegou hoje, na véspera de teu níver, essa véspera
que começamos a comemorar desde que nos tornamos ‘Neighbours’
- acabei tentando com um vinhozinho a quem nunca gostou de come-
morar aniversários...
esse violão me chegou hoje através das mãos de Crispim Vieira
e Ricardo Dias, que colaram o tampo novo que tinhas feito - e aguar-
dava esse momento em berço esplêndido...- e completaram os acaba-
mentos necessários para ele começar a cantar novamente

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foi uma noite de muita emoção essa véspera de primeiro aniver-


sário teu sem tua presença física
Vera de Andrade e Vicente Paschoal estavam conosco
escrevo esta carta no caderno das gravações do Duo Maia, a quem
tanto sempre inspirastes
é redundante falar de como inspiras os e as violonistas e luthie-
rs, mas é fato
com teu jeito delicado e generoso, sábio e prático, sempre aju-
dastes a todas e todos que de ti se aproximaram
nesta madrugada já é dia 5 de junho de 2023, farias 75 anos
não tenho palavras para expressar essa saudade
tenho certezas
certeza de que estás na luz e na música eternas às quais sempre
pertencestes
e nas quais, mesmo com toda tua clareza e vivência da luta pela
sobrevivência,
sempre teu espírito e pensamento viveram
certeza my dear Neighbour
de que não consigo terminar esta carta – mensagem
só quero te dizer que sempre estarás em meu coração
e, tenho certeza, no coração de todas e todos @s que te conhece-
ram
tua bondade, teu espírito alegre
teu amor pela música
tua arte como intérprete e arranjador
tua arte como luthier, criador de violões
além da saudade
me inspiram e - tenho mais uma certeza - a tantas e tantos como
eu
nos deixam com essa vontade

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e seu tempo

de sermos melhores pessoas


de sermos música
agora tenho de volta meu Abreu
o som já está lindo e meu coração pulsa quando encosta nessa
madeira
agora só posso dizer
gracias siempre por todo my dear
e mesmo que aches bobo
até a próxima carta my dear Neighbour

Maria Haro - your neighbour


Madrugada de 5 de junho de 2023

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I will give my love an apple: um momento único


Adélia Issa

Conheci o Sérgio Abreu pessoalmente na década de 1990, mas


já era sua fã, pois tinha escutado suas gravações e também as do Duo
Abreu bem antes disso.
Logo ficamos amigos, pois Sérgio adorava o repertório de can-
to lírico, e eu costumava ir muito ao Rio de Janeiro, para concertos
com orquestra e óperas. Sérgio quase sempre estava presente nessas
apresentações, e costumávamos sair para jantar depois ou então as
amigas queridas Maria Haro e Vera de Andrade organizavam jantares
maravilhosos. Num desses jantares, em 2003, depois de várias taças
de vinho - é bem conhecida a paixão que Sérgio tinha por vinhos -
ele pegou o violão e começou a dedilhar a canção I will give my love
an apple, do ciclo Folk Song Arrangements, de Benjamin Britten, que eu
estava estudando na época.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Essa foto mostra então o nosso “duo” - eu cantando e ele tocando


essa canção magnificamente bem. Na hora, senti que foi só uma brin-
cadeira, mas depois, já sóbria, me dei conta da dimensão e da impor-
tância daquele momento único, inesquecível.

Figura 1: Adélia Issa e Sergio


Abreu interpretando, em
reunião particular, I will give
my love an apple, do ciclo
Folk Song Arrangements,
de Benjamin Britten.
Foto: Vera de Andrade.

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e seu tempo

Sérgio Abreu: Classic Guitar’s Renaissance


Man (1948-2023) - A Personal Tribute
Alice Artzt

In losing Sérgio Abreu, the classic guitar world has, without exa-
ggeration, lost one of its all time most luminous stars. Sérgio excelled
in everything he ever decided to do. He was undeniably a brilliant ge-
nius, but also a very kind, funny, warm, generous friend. He influen-
ced me greatly and helped me in my own career in countless ways, as
well as influencing many other guitarists and composers.
Both as a soloist, and performing with his brother Eduardo as a
duo, he was a perfectionist - a true virtuoso, with impeccable musi-
cianship, as his LP records (for Decca, CBS and Ariola) demonstrate.
He would tackle any technical problem with imagination and tenaci-
ty. I remember once in Rio, playing him a harpsichord record of a fast
and complicated Scarlatti sonata, and saying it was a pity that such a
nice piece would be impossible to play on the guitar. Later that day, I
noticed he was sitting at the dining room table trying out a few ideas
from that piece on the guitar. That evening he was still at it. By the
next morning, having worked all night, he actually had figured out
how to play that “impossible” piece on one guitar. I remember ano-
ther instance, when we were both playing in a festival in Porto Alegre
in southern Brasil. I performed Bach’s First Lute Suite, and he told
me that the way I had fingered part of the Gigue (which I had already
worked very hard on figuring out) was much more difficult than it
had to be…. he had a better way to do it. I took one look at his solu-
tion (which he had worked hard on) and didn’t think it was all that

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

much easier. So together, the two of us went back to the hotel, tried
out everything we could figure out, and finally came up with a much
better fingering we both liked. All that probably represented a total
of maybe 20 or so hours of work between the two of us - just for those
few measures of music. But it made that passage work much better.
Sérgio also made many wonderful, skillful transcriptions of mu-
sic (from different historical periods and in widely varying styles) for
himself and his brother to play. But later, he also transcribed Grana-
dos’ Valses Poeticos for me to play as a duo with several other gui-
tarists. And for my guitar trio, he transcribed and arranged many
pieces from Leonard Bernstein’s West Side Story, and a lot of music
composed by Charlie Chaplin for his films. He did the Bernstein and
Chaplin just by listening - by ear - with unbelievable ease. With his
usual modesty, he commented that it was no big deal - that he just
had to figure out what key to put it in, and it was done.
He also branched out into other aspects of music. In the early
1990s, he came up from Rio to the United States to produce a recording
of my Trio for a CD (first issued by Bay Cities and later reissued on the
GRI label.) And years later he managed to salvage an earlier album of
mine, some three decades after the fact. A California label, for whom I
had recorded a lovely selection of baroque music, released it without
my knowledge or approval as a totally disastrous LP - so drastically
flawed that I had to do my best to quickly get it off the market. (That
original LP was a horrific unlistenable mess with various measures
in some of the pieces completely missing, and also many mechanical
flaws in their equipment had caused frequent mis-matched speeds
and pitches in the recording.) Knowing of my disgust with the album,
Sérgio used his computer, his wonderful ears and musical skill, to
completely re-edit that record, using mostly parts of the actual faulty
record, along with some 7 3⁄4 ips copies of tapes from the recording

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Sérgio Abreu
26
e seu tempo

sessions, which I had kept. In Sérgio’s brilliant hands, this stillborn


album of mine was resurrected - and became one of my favorites of
my own records. He performed a miracle. I don’t know how he did it.
After his brother Eduardo decided to no longer tour or play
duos, Sérgio toured for a short time by himself as a soloist. But soon,
after tiring of that, he decided to start making guitars. He had built
up some knowledge of guitar construction techniques and ideas du-
ring his many concert tours, by visiting the best makers, asking them
questions, and seeing what they did. He also got some hands-on woo-
dworking instruction from his good friend Tom Humphrey in Tom’s
NYC studio. Almost instantly, he began making some of the finest
classic guitars in the world. His guitars have a lovely clear tone, a re-
markable sustain and fluidity, and an extraordinary balance betwe-
en the treble and bass strings - perfect for playing counterpoint and
bringing out whatever voices one wants. His guitars demonstrate a
close relationship to the wonderful 1930 Hauser guitar Sérgio played
in concerts for so many years. A year or so after Sérgio began making
guitars, I asked him if he was using many of the ideas and “secrets” he
got from other makers. He replied that by then, he had pretty much
figured out his own way of doing things. I think if he had decided to
be an astrophysicist, after a bit of study, he’d have become one of the
best. I’ve never known anyone else with such a brilliant mind.
My own close association with Sérgio began with a series of lu-
cky coincidences. I had been studying with the great French virtuo-
so Ida Presti and took every possible opportunity to meet with her.
So when she, and her husband and duo partner, Alexandre Lagoya,
were passing through NY’s Kennedy airport for a few hours, I went
out there to meet them. Presti said she had just got a new piece from
the British composer John (Jack) Duarte, that he wanted her to put in
the fingering for publication. She told me she thought it was a good

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

piece I’d enjoy playing, so she said she’d write to ask him to send me
a copy. Then shortly afterwards, on that same tour, tragically, Ida
Presti died. Jack Duarte then sent me the piece, and asked me if I’d
take over for Presti and do the fingering. After checking with La-
goya, I agreed, and so I got to know Jack. The following year, when
I went to the UK to play my London debut recital, I of course visited
Jack and his wife Dorothy. By pure chance, my timing coincided per-
fectly with Sérgio and Eduardo’s first London visit. Jack always made
it a point to invite any guitarists who ever set foot in London to come
to dinner at his house. On this occasion, he showed me a flyer with a
very unprepossessing photo of Sérgio and Eduardo, who were also to
play a debut concert in London, and said he had invited them to din-
ner. They were in London with their father, and Jack had determined
that none of them spoke anything but Portuguese except Sérgio, who
could speak French. Jack already knew I spoke French, so he asked
me to come to dinner as well, so I could translate Sérgio’s French and
we could all converse.
Jack had invited the duo to dinner, despite the fact that he had
little hope that they were any good - judging from that horrible photo
on their flyer, that made them look like a pair of drunk dope addicts.
Because of various other misunderstandings, Sérgio had also got the
impression from Jack that I would be a disaster too. So after dinner,
when Jack handed out guitars and asked us to play for each other,
we were all very noticeably shocked to find that neither they nor I
turned out to be the disasters we had each expected. I still clearly re-
member the wonderful Vivaldi duo they first played at Jack’s house
- absolutely flawless technically, and superb musically in every way.
I was absolutely blown away by that very unexpected performance.
Sérgio and I had each noticed the others’ reactions to our res-
pective playing, and we discussed and laughed about this afterwards.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

This brings to mind what a sheer delight it always was to be in his


company - a bon vivant in the best sense. While his high standards
for perfection and excellence were always in play (especially in his
own work) - there was not a shred of any feelings of superiority over
anyone in his being. He was truly exceptional in this way. His deci-
dedly sardonic sense of humor and outlook on our crazy world was
beautifully tempered with modesty and grace. His glee at pointing
out the ridiculous and absurd in life was infectious - such as when
he’d recount idiotic experiences he encountered in his musical care-
er, with all the badly or barely solved problems and situations that
would cluelessly be put forth. He was generous to a fault with his
time, information, and resources, and was a truly gifted “outside the
box” problem solver. Truly a renaissance man. We’ll not see his like
again. (For a delightful interview with Sérgio in Portuguese but with
English subtitles, go to: https://guitarcoop.com.br/interview-Sér-
gio-abreu/ )
Sérgio and I quickly became good friends during the several we-
eks we were all in London together. (We stayed in a very small bed
and breakfast hotel that we pretty much took over - Sérgio and Edu-
ardo and their father, as well as Oscar Ghiglia, who also had a concert
to play, and myself. Some of the few other guests, encountering this
place full of guitarists, asked us if we were a band.) We all heard each
other perform in London’s Wigmore Hall, and I also came to the recor-
ding sessions for Sérgio and Eduardo’s first record on the Decca “Ace
of Diamonds” label. I also met Earl Price of CBS Records, who came to
London to meet with the Abreu brothers (they were already signed
with CBS even before making the Decca record). Price also came to
my recital, and then arranged for me to be signed by his friend, Ted
Perry, who was just establishing the Hyperion record label in London
(since Price said he knew CBS didn’t want any more guitarists at that

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Sérgio Abreu
29
e seu tempo

time). And when Sérgio and his brother and father returned to Rio,
they contacted the Rio Guitar Society, who pestered the U.S. Cultural
Affairs Office there until they agreed to get the U.S. State Department
to bring me down to play 10 concerts all over Brasil. So my meeting
Sérgio and his family was instrumental in starting both my recording
and my international touring career.
Once Sérgio was back in Brasil, we started writing very long let-
ters to each other - discussing every aspect of music and performan-
ce we could think of…which conductors we preferred and why…who
did the best version of a particular symphony, or piano or violin so-
nata etc, and why. We began writing in French, but pretty soon, Sér-
gio wrote me that although he had no idea how to pronounce English
at that time, actually his written English was a lot better than his
written French. So we switched to writing our very long letters in
English. I kept most of his letters - a big box full.
I am having great difficulty imagining my world, and the world
at large, without Sérgio in it. I keep thinking of things I need to tell
him or share with him - or questions to ask him that he’d know the
answers to. And I know that I am not alone - that I share this fee-
ling with everyone who knew him. He needed to stick around much
longer. The musical world, and the world of the classic guitar, are all
enormously poorer now because of his absence.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Figura 2: Sérgio Abreu


e Alice Artzt.
Fonte: Acervo pessoal
de Alice Artzt.

Figura 3: Sérgio Abreu


e Alice Artzt.
Fonte: Acervo pessoal
de Alice Artzt.

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Sérgio Abreu
31
e seu tempo

Sérgio Abreu, amigo


Antonio Tessarin

Já se foram 37 anos na profissão de luthier, passou voando, mas


algumas lembranças ficaram. Boas lembranças.
Depois de ter aprendido com o mestre Laurentino Poli, lá em
1986, o grande professor e amigo Henrique Pinto me apresentou o
Sérgio Abreu, pois estava gostando do meu trabalho.
Sim, o Grande Sérgio, aquele que fui ver tocar em duo no MASP,
em 1974, e que ainda guardo o programa autografado, concerto dos
nossos ídolos Duo Abreu.
Que simpatia, que educação, que humildade, que grande cora-
ção, desprovido de ego totalmente, sempre disposto a ajudar.
Passei a me encontrar com ele e trocar informações, quantos de-
talhes legais aprendi, e ele gostava das minhas invenções e das fer-
ramentas que eu desenvolvia. Até comprou uma lixadeira de calibrar
fundo e faixas que fiz, ele a adorava e vinha usá-la na minha oficina,
em São Paulo.
Trazia-me ferramentas dos EUA de presente, coisas que não tí-
nhamos no Brasil e nem se podia importar, sem eu pedir nada, incrí-
vel a bondade. Ainda tenho o Safe-T-plane que ele me deu, agradeci-
do a cada vez que o uso, que ferramenta incrível e que ajuda demais.
Ficamos muito amigos, sempre nos falando por telefone. Graças
a ele, fui progredindo nos instrumentos, tendo outra visão, outro en-
foque. Nas visitas que lhe fiz, pude conhecer os seus violões Hauser e
Santos Hernandez e adquirir mais conhecimento. Um caminho infi-
nito esse.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

O tempo foi passando, mais violões, mais experiência, mais ami-


zade, mais tudo, falar com o Sérgio era sempre uma alegria, ele gos-
tava muito do meu trabalho e da minha família. O meu filho Cesar
nasceu e lá vem o Sérgio com uma coleção de CDs de presente… “O
Cesar precisa ouvir música boa, então gravei estas cópias pra ele...”
Muito agradeço por este simples e importante presente, valeu muito
para a formação do menino.
O Sérgio foi um presente muito importante que ganhei nesta vida
e muito importante na minha carreira de luthier, mas como as coisas
não são do jeito que a gente deseja, só ficam as lembranças e a sauda-
de dos papos, das risadas e até da poeira que fazíamos na oficina.
Enfim, acho que não consigo descrever essa amizade o tanto que
ela merece, já que minha emoção não me deixa enxergar o teclado
com nitidez…
Antonio Tessarin

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Segredos de mão esquerda


Breno Chaves

Em 2001, o Sérgio Abreu me enviou uma carta respondendo a


algumas dúvidas que eu tinha em relação à técnica de mão esquerda.
É um documento generoso e detalhado no qual ele descreve o seu
pensamento e a sua conduta quando tocava, o que ele chamava, em
uma surpreendente analogia com as artes marciais orientais, de “a
eficiência da economia de esforço”.
A carta me chegou em um momento pessoal difícil. Poucos anos
antes, em 1999, eu havia encerrado minhas atividades com meu an-
tigo grupo de câmara, no qual tinha atuado por oito anos como 1º
violão, participando da gravação dos três primeiros CDs do conjunto.
Depois desse período, o Sérgio se tornou uma espécie de mentor dis-
creto e, assim como a violonista americana Alice Artzt, foi responsá-
vel pelo meu retorno à carreira de músico e violonista.
Segue abaixo o precioso e importante relato do mestre, que ser-
viu de guia para a minha reorganização técnica e de incentivo para a
minha pesquisa pessoal e de colegas do universo acadêmico.

Breno,

É complicado dar alguma opinião à distância, mas, de fato, é muito co-


mum a gente fazer esforço desnecessário sem se dar conta, o que, evidente-
mente, além de nada ajudar, só atrapalha, às vezes só um pouco, às vezes
demais, variando de caso para caso.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Uma das coisas mais comuns é a mão esquerda agarrar o braço do violão
numa atitude semelhante à de se agarrar no corrimão de uma escada quando
a pessoa está com medo de despencar lá embaixo. Na verdade, quanto menos
o polegar da mão esquerda interferir, melhor, já que tocar ele não toca nada,
e não deve nunca trancar a mão fazendo como se fosse um alicate agarrando
o braço, especialmente em pestanas, já que o indicador consegue muito mais
pressão quando se usa somente o antebraço para puxar esse dedo, deixando
assim o polegar, bem como o médio, o anular e o mínimo soltos e relaxados,
e a mão toda igualmente solta quando for a hora de largar a pestana para
mudar rapidamente de posição.

Outra impropriedade muito comum é os dedos da mão esquerda aper-


tarem antecipadamente as notas a serem tocadas, para estarem certos de
que estarão lá quando a mão direita for tocar as notas. É muito mais eficiente
quando as duas mãos tocam exatamente ao mesmo tempo, o que se consegue
pensando no ritmo com as duas mãos, como acontece num teclado, e não
apenas com a mão direita. Com isso reduz-se a uma fração a pressão neces-
sária para os dedos da mão esquerda, já que uma leve martelada do dedo na
corda (conseguida com a velocidade do impulso e não com pressão e se fazen-
do força) produz uma pressão enorme momentaneamente, pressão essa que é
necessária apenas no momento do toque da mão direita, bastando que, após
essa ligeira martelada, o dedo da mão esquerda continue apenas encostando
na corda levemente para manter a sustentação do som já tocado.

Não é difícil perceber a eficiência na economia de esforço resultante de


se tocar as duas mãos em sincronia absoluta, usando-se, em vez de uma pres-
são contínua dos dedos da mão esquerda sobre as cordas, apenas uma deci-
dida mas leve martelada no momento exato da nota ser tocada. Sem exagero
algum, é a mesma diferença entre se bater um prego com o martelo, como
normalmente se usa a ferramenta, e tentar apenas empurrar o prego com o

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

martelo sem bater. É fácil dizer “Você está tenso, você precisa relaxar”. Re-
laxar o braço e a mão completamente é fácil, mas a mão simplesmente cai e
não faz nada.

Então a questão não é relaxar tudo, mas relaxar tudo o que for possível,
usando só o que for necessário, e também conseguir o máximo de eficiência
dos movimentos utilizados em vez de apenas apelar para a força. As artes
marciais orientais dão excelentes exemplos de como é possível se conseguir
eficiência no uso do corpo para se fazer o que quer que seja.

O grande problema é que ao tocar um instrumento não pensamos em


cada movimento ou contração que fazemos, mas usamos reflexos adquiridos
durante anos e anos. Então, mexer no que quer que seja dessa cadeia extre-
mamente complexa dos reflexos que usamos para tocar é muito complicado
e exige muito trabalho e concentração. E, claro, é muito mais demorado se
apagar reflexos antigos e desenvolver novos reflexos depois de uma certa
idade, algo que teria sido muito mais fácil de se conseguir antes dos 18 anos,
por exemplo.

No entanto não é possível voltar no tempo... E mais: tudo isso é a pró-


pria pessoa que tem que se dar conta e descobrir, achar onde exatamente
está cada problema. Um observador com prática pode certamente ver sinais
(em geral óbvios, aliás) de contrações indevidas, etc., mas, se não conseguir
fazer a própria pessoa se dar conta de onde está o problema, não vai adiantar
muita coisa.

Quando você diz “percebi que quando eu tocava o meu braço esquerdo
não estava relaxado”, isso significa que você está descobrindo o caminho
correto. É exatamente esse o único caminho, não há alternativa, muito me-
nos mágica. Só se corrige qualquer defeito quando se descobre exatamente

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

onde e qual é o problema, seja na mão, no ombro, ou no sistema operacional


de um computador...

Estou contente em saber que você está tocando novamente. Como num
barbante todo emaranhado, o mais complicado é achar a ponta por onde co-
meçar. Achando-a é possível começar o desembaraçamento e ir progredindo
aos poucos. No início é lento e pode parecer quase impossível, mas, à medida
que se vai desembaraçando, mais fácil vai ficando e mais rápido o progresso.

Grande abraço,

Sérgio

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Sérgio Abreu, Eterno


Cecília Siqueira

Muito difícil escrever sobre o Sérgio sem me emocionar. A dor


é certa, mas o agradecimento pela sua vida também o é. Por um ser
iluminado ter vindo à terra, por ele ter escolhido o violão, por ser
contemporânea a ele e a vida me presentear com vários anos de con-
vivência. É muito privilégio!
Eu ainda não o conhecia, mas desde o começo do Duo Siqueira-
-Lima, o Fernando e eu sonhávamos tocar o nosso repertório para ele.
Só que demorou muito para encontrarmos coragem e nos sentirmos
preparados para tanto. E lá fomos nós: depois de 5 anos de duo decidi-
mos que já era hora de marcar uma ida ao Rio e cumprir essa missão.
Chegamos no ateliê e ele nos recebeu com a sua usual genero-
sidade. Logo após um pouquinho de prosa, aproveitando que o Fer-
nando e ele já se conheciam, fomos ficando um pouco mais à vontade
para o grande momento de tirar meu Abreu n.9 e fazê-lo soar para
aquele que, além de tê-lo construído, era um dos maiores violonistas
da história!
Decidimos começar com um arranjo que o Fernando fez para a
Sonata k. 27, de Domenico Scarlatti. E assim, além de ouvir o duo, já
daria o seu parecer sobre a transcrição também.
Bom, só sei que depois de tocar a última nota, o Sérgio soltou
um “bravo” e seu aplauso entusiasmado chegou em mim como se eu
fosse a pessoa mais feliz do planeta!! Assim era o tamanho da minha
admiração por ele, que a partir desse dia só foi aumentando.
É claro que decidiu já logo abrir um vinho, esse era um dos seus

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

prazeres. A gente comentou que só iríamos beber depois de tocar e


ele comentou que sabia muito bem como era isso e que havia perdido
oportunidades de experimentar vinhos maravilhosos enquanto ele
ainda era concertista... Do qual se arrependia amargamente (risos).
Continuamos tocando e ele sempre com a mesma empolgação,
fazendo com que nos sentíssemos cada vez mais seguros, tão seguros
que perto do final decidimos mostrar a ele também os arranjos que
tocávamos de música popular - Dominguinhos, Pixinguinha, etc - coi-
sa que ele adorou e depois sempre nos solicitava que tocássemos.
A partir desse dia, passamos a frequentar o Rio de Janeiro o má-
ximo que podíamos, nos hospedando sempre em sua casa (ele não
nos deixava ficar em outro lugar) e aproveitando cada espacinho de
tempo que ele tinha livre para trabalhar algumas músicas. Ele, nos
seus comentários, era muito prático. Falava pouco, mas dizia muito.
Ou tudo...
Era uma aula de concepção da música. De pensar em leveza ou
densidade, no espírito da obra e sua sonoridade. Os aspectos técnicos
ficavam em função disso. Nos fez enxergar a música - de um modo
geral - que jamais tínhamos percebido. Abriu os nossos olhos!
Um certo dia disse a ele que ouvíamos os discos do Duo Abreu até
“gastar” e que nós (Fernando e eu) queríamos tocar com essa mes-
ma perfeição e musicalidade. Comento: “o que podemos fazer, Sérgio,
para conseguir isso? Ao que ele respondeu: “para isso não ouçam o
Duo Abreu, mas ouçam o que o os Abreu ouviam”. E nos presenteou
com um monte de gravações espetaculares (de piano, cravo, violino,
orquestra) nas quais eles se inspiravam. Nem preciso dizer que o nos-
so duo foi um antes e um depois de tudo isso.
E surgiram os arranjos pós Abreu. A Bachianas Brasileiras n.4 foi
um deles, registrado no álbum “the Art of Duo Siqueira Lima”, que
conta com a produção do próprio Sérgio. Sim, ele veio à São Paulo es-

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

pecialmente para isso. Mais um dos privilégios que recebemos e que


levamos guardado a sete chaves.
Se for comentar as genialidades do Sérgio que o Fernando e eu
fomos testemunhas não me alcança o grafite. Só posso afirmar que
temos a certeza de que convivemos com um GÊNIO, assim, com letras
maiúsculas. Foi violonista - para nossa felicidade -, mas com certeza
poderia ter tocado qualquer outro instrumento com a mesma Maes-
tria. Se dedicou também à luteria, com a mesma genialidade. Tudo
o que se propusesse a fazer era motivo de insistência, até alcançar a
perfeição. Esse seu olhar sem pressa e dedicado para tudo o que fazia
não parecia realmente se adequar ao mundo atual. Para tudo tinha o
seu ritmo.
Para finalizar, não posso deixar de dizer que todas as suas qua-
lidades profissionais eram na mesma proporção equilibradas com a
sua qualidade humana. Um ser generoso, íntegro, verdadeiro, alegre
e de bem com a vida. Faltam-me adjetivos para descrever o incrível
ser humano que acompanhava tanta genialidade.
Por agora, evito pensar na falta e na saudade que deixa. Prefiro
pensar na infinidade de ensinamentos que me deixou e que até agora
continuo a decifrar. Para mim, o Sérgio é Eterno!

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Relembrando Sérgio Abreu


Clemer Andreotti

Na despedida está o nascimento da memória


e a memória é o único paraíso do qual não seremos expulsos.
Lá eu cheguei.

Henrique e o LP dos irmãos Abreu

Ouvi o Duo Abreu, pela primeira vez, no intervalo de uma das au-
las com o professor Henrique Pinto, na casa onde ele morava com os
pais. Eu estava, à época, com 12 anos e Henrique me preparava para
um exame de admissão em um conservatório musical. The Guitars
from Sérgio and Eduardo Abreu era o título do Long Play, que trazia
na capa a foto de dois jovens com semblantes sérios. Na foto, um deles
segura um violão e as mãos de ambos aparecem em primeiro plano. A
imagem me encantou logo de início, mas a surpresa foi ainda maior
no momento em que ouvi os primeiros acordes daquela linda Pavana,
Sir John Langhton’s Pavan, do compositor renascentista inglês John
Dowland. Já o segundo LP dos Irmãos Abreu, ganhei de presente de
meu pai.
A primeira oportunidade de ouvir Sérgio e Eduardo Abreu ao
vivo aconteceu em junho de 1974, no teatro do MASP – Museu de Arte
de São Paulo Assis Chateaubriand. Aos 15 anos de idade, eu fazia parte
do grupo de alunos de Henrique Pinto na primeira fileira da plateia.
Foi um concerto inesquecível, ainda presente em minhas lembranças

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

de estudante adolescente. A dupla esbanjava qualidade técnica e mu-


sical. Algo incomparável.
A mesma sensação eu tive ao assistir a todos os concertos que
vieram depois: apresentações solo de Sérgio Abreu; o duo com o ir-
mão; com a cantora lírica Maria Lúcia Godoy e com o flautista Norton
Morozowicz, só para citar alguns exemplos. A cada exibição, Sérgio
confirmava a seu destacado talento, a sua vitalidade, a clareza rítmi-
ca e a articulação primorosa. Era mesmo um músico genial.
Os anos setenta também foram muito importantes para os alu-
nos mais destacados de Henrique Pinto. Tínhamos a oportunidade de
concorrer às bolsas de estudos do Seminário Internacional de Violão
em Porto Alegre. Alunos de vários estados brasileiros, além de alunos
da Argentina, Uruguai e Estados Unidos, desfrutavam de aulas com
o professor e compositor uruguaio Abel Carlevaro, o ítalo-uruguaio
Guido Santórsola, o casal Zárate, Miguel Angel Girollet. Presencia-
mos, novamente, concertos memoráveis com os Abreus, Álvaro Pier-
ri, Eduardo Fernández, Roberto Aussel e tantos outros.

Sérgio, amigo

Sempre motivados por Henrique Pinto, fizemos as primeiras


apresentações no interior e na capital de São Paulo. No início, dividí-
amos parte dos programas com quatro solistas. Em breve, foi possível
que cada um de nós realizasse programas solo completos.
Sérgio Abreu aceita o convite para ouvir alguns alunos de Henri-
que durante uma de suas estadias em São Paulo. O encontro foi mar-
cante. Ele direcionou o meu repertório para o meu primeiro concerto
solo, no MASP, poucos meses depois. Mudou minha postura em rela-
ção ao som, como atacar as cordas, técnica, como estudar e o uso da

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Sérgio Abreu
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concentração.
A partir daquele momento, Sérgio e eu mantivemos contato, nos
tornamos amigos e passamos a conversar sobre os mais diversos te-
mas.
Uma digitação especial que ele usava em alguma passagem de
uma obra, como eram as suas estratégias de estudo, o andamento de
alguma música etc. Também pude visitá-lo algumas vezes no Rio de
Janeiro, queria me ouvir tocando nos violões que tinha. Sempre achei
que não tinha nada a ver com a minha maneira de tocar, mas a curio-
sidade dele de ouvir os vários violões.
Aos poucos meu repertório foi mudando. Comecei a estudar pe-
ças tocadas pelos Abreus, tanto os solos quanto os duos com o amigo
Giácomo Bartoloni. Mudei o meu foco sonoro em busca de alcançar
a qualidade das interpretações da dupla, que considerava de outra
dimensão.
Lógico que não se toca como o seu ídolo da noite para o dia, e es-
tes pequenos contatos não mudaram o meu som definitivamente ou
a minha técnica, mas creio foi mudando aos poucos a minha postura
em relação a fazer música. Sérgio sempre teve a sua assinatura pró-
pria em tudo o que fazia e, ao final, imitar assinatura de alguém nem
sempre é o melhor caminho para encontrar a sua própria. Tentar uma
cópia pode fazer parte do aprendizado, pode ajudar, mas nem sempre
é o caminho.
Acho que uma coisa importante é que ele sempre teve uma po-
sição muito honesta com o que fazia e com a música. Nunca teve a
necessidade de se enfeitar com fama ou sucesso.
A partir desse desenvolvimento, tive a oportunidade de possuir
um dos instrumentos de Sérgio Abreu, um violão David Rubio, de
1974. Com esse violão peculiar e executando parte do repertório solo
dos Irmãos Abreus, cheguei ao primeiro lugar no importante concur-

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so musical Palestrina, em Porto Alegre.


Nesse meio tempo, os projetos dos alunos de Henrique se am-
pliavam. Trabalhávamos em cursos que Henrique organizava. Os con-
certos solos com programas cada vez mais ambiciosos, seguindo a
inspiração de intérpretes como Julian Bream, John Williams e, claro,
o Duo Abreu.
Confiantes e buscando novos caminhos, aproveitando todos os
ensinamentos obtidos ao longo de anos de estudos, nasceu a forma-
ção de trio de violões Trio opus 12, com Paulo Porto Alegre, Oscar
Ferreira de Souza e eu. Gravamos o nosso primeiro disco, em uma
época ainda dominada pelo vinil. Nessa ocasião, já utilizamos violões
que foram de Sérgio Abreu, dos luthiers David Hirsch, Paul Fischer e
David Rubio. Sérgio era uma presença constante e influente em São
Paulo e já havia mudado de atividade.

Sérgio, luthier

Depois de mais de duas décadas sobre os palcos, Sérgio Abreu de-


cidiu dar uma guinada na carreira e passou a se dedicar à construção
de violões. Com muito interesse, acompanhei o desenvolvimento dos
seus instrumentos no período em que ele atuou na tradicional firma
de construção de violões Tranquillo Gianinni, em São Paulo. Ganhou
experiência e criou o seu próprio estúdio de luteria no Rio de Janeiro.
Em 1984, eu estava de malas prontas para me mudar para a Ale-
manha. Semanas antes do meu embarque, Sérgio me mostrou um vio-
lão, o terceiro que ele tinha feito na sua oficina. Fiquei encantado
com as qualidades do instrumento. Nessa ocasião, tive a sorte de ou-
vi-lo tocando os 3 Tentos da Kammermusik 1958, do compositor ale-
mão Hans Werner Henze. Primeiro não conseguia entender como ele,

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envolvido com a luteria, ainda tocava daquela maneira fenomenal.


Perguntei se ele via a possibilidade de me construir um instrumento.
Deixei claro que não tinha pressa, afinal, minha mudança para
outro país transformava o meu futuro em uma incógnita.
Em agosto de 1985, telefonei para a minha mãe. Estava morren-
do de saudades. Foi quando ela me comunicou que “um rapaz mui-
to gentil, do Rio de Janeiro, esteve em casa e deixou um violão para
você. A próxima pessoa que for para a Alemanha irá te levar”. Recebi
o instrumento algumas semanas depois.
Com o violão, um bilhete escrito por Sérgio: “não me pague ain-
da, experimente e veja se você se sente bem com ele. É o meu déci-
mo primeiro violão, minha interpretação do Hermann Hauser I que
tenho”. E revelando modéstia, me lembrou o seguinte: “não esqueça
que você tem um ótimo David Rubio e eu estou apenas iniciando”.
Logo comecei a trabalhar com o violão Abreu. Na verdade, todo
um novo repertório se desenvolveu com ele. Vários violonistas que-
riam saber que instrumento eu tocava e começaram a fazer encomen-
das. Creio que vieram sete ou oito violões para a Alemanha, entre eles
um para um intérprete canhoto. O agora luthier Sérgio Abreu nunca
quis um centavo pelo Nr.11, dizia que já estava bem pago.
Em 1990, Sérgio perguntou se eu poderia ajudá-lo na compra de
madeiras em Bubenreuth, cidade ao norte de Nürnberg, famosa pela
enorme quantidade de construtores de instrumentos musicais e for-
necedores de material de luteria.
Sérgio chegou em nossa cidade vindo de New York com uma
mala pesadíssima, com pouca roupa, mas cheia de ferramentas. Ele
tinha o hábito de trocar os trastes dos violões depois de um tempo e
pretendia revisar o Nr.11. Na ocasião da visita, eu morava com minha
família, a esposa Mirjam, grávida de quase nove meses, e a pequena
Lea, em um minúsculo apartamento. Porém, mesmo com pouco espa-

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ço, Sérgio improvisou uma oficina e trocou os trastes.


Ele queria rever os violões despachados para a Alemanha. Fize-
mos uma peregrinação junto aos donos e os trastes de três instrumen-
tos deveriam ser trocados. Um amigo construtor de violas da gamba,
cedeu sua oficina para Sérgio, que adorou a atmosfera e trabalhou o
dia todo com uma concentração impressionante.
Fomos até Bubenreuth para adquirir o material que Sérgio pro-
curava. Ele passou o dia com a típica concentração escolhendo tam-
pos e peças de ébano.
Uma noite, eu contei a ele que estava trabalhando em duo com
um barítono e precisava realizar uma série de transcrições de canções
de Schubert. Expliquei que estava com algumas dificuldades, como a
escolha de tonalidade e com as passagens pianísticas. Ele pediu para
olhar. Como não dormia à noite, para manter o fuso horário do país
de origem, debruçou-se sobre as partituras. Pela manhã, ele me mos-
trou umas 7 ou 8 canções que havia transcrito, algumas até em duas
tonalidades diferentes para eu escolher a que soava melhor. Era dessa
forma que o Sérgio revelava a suas habilidades. Os sons estavam em
sua mente, mesmo sem serem tocados.
Acho que o último encontro que tive com Sérgio Abreu foi na ofi-
cina dele, no Rio de Janeiro, mais de três décadas depois da sua visita
à Alemanha. Ele me mostrou os tampos ainda secando na sua oficina
e comentou sorrindo: “são os tampos que comprei na Alemanha, os
tampos do nascimento da tua segunda filha, Luana.”
Nesse meio tempo, Sérgio havia construído centenas de violões
e inspirado muita gente, sem contar a sua atividade de produtor mu-
sical.
E suas maravilhosas transcrições sendo tocadas.

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Sérgio, despedida

Mais do que qualquer outra pessoa que conheci, Sérgio combi-


nava duas personalidades. Uma com suas inigualáveis habilidades,
talento, inteligência e musicalidade. A outra, com o seu lado humano
ímpar, amável, generoso, inspirador, sem arrogância e desapegado
do lado material. Estou convencido de que foi essa união que deu ao
seu gênio essa extraordinária grandeza, livre de todas as concessões
e adaptações lucrativas ao gosto predominante.

Quanto mais bela e completa a Memória, mais difícil é a separação.


Mas a gratidão transforma o tormento da Memória em uma alegria
silenciosa.
Não se carrega Beleza passada como um espinho, mas sim como um
presente precioso em si.
Dietrich Bonhoffe

Randersacker, 16 de Julho de 2023

Prof. Clemer Andreotti


Escola Superior de Música da Universidade de Würzburg
Alemanha

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Sérgio Abreu
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Depoimento
Crispim Vieira 1

Eu trabalhava com outro luthier, que prestava pequenos servi-


ços para Sérgio Abreu, quando o conheci. Me disseram que ele era o
maior do Brasil, e isso aguçou meu interesse, sempre busquei o me-
lhor. Por questões pessoais, tive que voltar para João Pessoa, onde
nasci.
Quando voltei, pedi a um amigo que descobrisse o endereço do
Sérgio. Estava morando em Botafogo2, o endereço era em Copacaba-
na, resolvi ir a pé. O que não sabia era que ele morava no outro ex-
tremo do bairro! Andei durante muito tempo, até que cheguei. Falei
com ele pelo interfone – o que foi uma sorte, pois era na parte da
manhã, período em que ele raramente estava acordado. Ele não podia
me atender, anotou meu telefone e disse que me ligaria à noite.
E ligou...
Marcamos encontro para o dia seguinte, em sua oficina de Ipane-
ma, onde ele me perguntou quais eram as minhas intenções. Eu disse
que queria aprender com o melhor, e que não daria trabalho, prejuízo
ou teria acidentes, já que trabalhava com ferramentas desde criança3.
Ele perguntou o que eu pretendia na carreira, eu disse que um
dia queria ter minha própria oficina. Ele disse: “ótimo!”, afirmando
que me ajudaria nisso. E ajudou muito. Graças a ele, hoje, além de tra-
balhar com você [Ricardo Dias], tenho o meu próprio atelier.
Durante esses 12 anos (com um intervalo de 2 anos, quando mo-
rei na Itália), convivi com uma pessoa extraordinária, um mestre e
amigo. O vi sempre ajudar todos que o procuravam, fosse na música,

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

fosse na luteria. Nunca o vi se recusar a ajudar quem quer que fosse. E


lembro com muito carinho dos fins de semana, quando abríamos um
vinho depois do expediente.
Lembro que as pessoas que vinham procurá-lo por causa de mú-
sica sempre saíam impressionados. Uma vez veio um rapaz que ele
nem conhecia, mandado por outro, para ele ajudar numa partitura. O
rapaz tocava bem, mas estava preso num trecho. Sérgio pegou a par-
titura, rabiscou umas coisas, deu para o cara e ele saiu tocando, feliz
da vida. Disse que Sérgio havia solucionado em 2 minutos um proble-
ma enorme. Ah, Ricardo, que saudade da porra que eu tô do Sérgio!4

1 Nota dos editores: Auxiliar de luteria de Sérgio Abreu em seus últimos 12 anos de vida, Crispim
Vieira foi convidado a escrever um testemunho sobre esses anos de trabalho ao lado de Sérgio,
mas não se sentiu apto à tarefa por conta do abalo ainda latente da perda. Como se trata de um
profissional e amigo decisivo para o homenageado, Ricardo Dias sugeriu que ele concedesse
o depoimento espontaneamente, por áudio, predispondo-se a, posteriormente, transcrevê-lo em
texto. Ainda assim, o relato precisou ser interrompido logo no início, pois ambos os luthiers se
emocionaram. Por se tratar de um depoimento recolhido por áudio, optamos por manter o caráter
informal próprio de um testemunho do gênero, mantendo as suas idiossincrasias e aproximando,
tanto quanto possível, o registro escrito do falado.
2 Nota de Ricardo Dias: bairro do Rio de Janeiro próximo à Copacabana.
3 Nota de Ricardo Dias: Sérgio sempre se preocupava com a segurança no uso de ferramentas, já
que algumas podem ser potencialmente perigosas.
4 Nota de Ricardo Dias: Nesse momento, fomos forçados a terminar a conversa. Crispim ficou com
a voz embargada, não conseguiu mais. Posso testemunhar que Sérgio tinha absoluta confiança
e amizade por ele.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Sérgio Abreu: obrigada por tudo


Cristina Azuma

Aprendi a tocar violão com meus professores, mas aprendi a fa-


zer música tocando em duo de violões. E, nesse contexto, aos meus
quatorze anos de idade, passava meu tempo ouvindo as referências
do violão, dentre as quais o duo Abreu era uma das principais, o que
me deixou marcas profundas.
Primeiro, o repertorio que eles gravaram foi e é ainda referência
para os duos. Com minha parceira de adolescência, Regina Albanez,
tocamos várias peças, como a Sonata em Ré Maior (Scheidler), que
nos faziam avançar, sem perceber, em direção da música:

Sonata em ré maior - Scheidler: Cristina Azuma e Regina Albanez


https://youtu.be/64m9VjiNbXs?si=LSpCpmlW9o1c0ZhJ

E a influência deles vai além de tocar o mesmo repertório. Com


outro duo, junto ao Paulo Bellinati, fazíamos, ao princípio (1988), a
célebre versão que o Duo Abreu fazia do Canon de Telemann, mas em
duo de cavaquinhos, o que entrava perfeitamente na tessitura do ins-
trumento! Funcionava tão bem que o Paulo resolveu compor também
um canon, o que resultou na obra Pingue-pongue, primeiro canon
maxixe brasileiro, que dá nome ao nosso CD.

Pessoalmente, apenas cruzei com ele, em Porto Alegre, São Paulo


e no Rio de Janeiro, onde ele comentou sobre o belo som que eu tirava
do seu violão, principalmente nas gravações, como no CD Contatos.

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Sérgio Abreu
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Toquei e gravei com um violão feito por ele, de 1987, e ainda o


utilizo hoje em dia. Ou seja, só tenho que lhe agradecer por tudo que
nos proporcionou. Sérgio, muito obrigada por tudo!

Figura 4: Paulo Bellinati


e Cristina Azuma.
Fonte: Acervo pessoal
de Cristina Azuma.

Figura 5: Capa do CD
Pingue-Pongue, de Cristina
Azuma e Paulo Bellinati.

Figura 6: Cristina
Azuma com o seu violão
Sérgio Abreu (1987).
Fonte: Acervo pessoal
de Cristina Azuma.

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Sérgio Abreu
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Um adeus à Sérgio Abreu


Cyro Delvizio

*Artigo originalmente publicado na revista Soundboad Vol. 49 n.1 da Guitar Foundation of Ame-

rica em Abril de 2023

Sérgio Abreu está morto. O grande violonista e construtor de


violões brasileiro está morto! - Preciso repetir para mim mesmo para
reconhecer essa triste verdade. A cena do violão no Rio de Janeiro
nunca mais será a mesma. A cena do violão brasileiro e internacional
não será a mesma. Não foi a mesma quando o Duo Abreu maravilhou
o mundo do violão em 1968, dando origem no Brasil a uma longa li-
nhagem de duos de violão impecáveis, como o Duo Assad, Barbieri-S-
chneiter, Brazil Guitar Duo, Duo Siqueira-Lima, Duo Maia, para citar
alguns. Obviamente, eles não “inventaram a roda”, pois a ideia de
dois instrumentos dedilhados tocando juntos é bastante antiga re-
montando possivelmente aos duos de alaúde no renascimento. Mais
à frente, o Duo Sor-Aguado (por volta de 1825) e Llobet-Anido, Pujol-
-Cuervas e Presti-Lagoya (todos no século XX) também são dignos de
menção nessa breve e desconstruída linha do tempo. Agustin Barrios
também se apresentou em duo com Alfredo Medeiros no Recife, em
1931, mas isso foi rapidamente esquecido na história do Brasil quan-
do os Abreus começaram a tocar...
A ideia de tocar juntos parece ter ocorrido a Eduardo e Sérgio
Abreu desde o início: seu avô Antônio Rebello estava ensinando vio-
lão para Jodacil Damasceno e os meninos sempre interrompiam ao
tocar as cordas soltas do violão. Um dia, o seu avô foi mais rápido,

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Sérgio Abreu
52
e seu tempo

agarrou suas mãos e perguntou: -Vocês querem aprender? -Sim, mas


apenas se o Sérgio também quiser... (apud DIAS, 2015, p.16). Naquele
dia, nasceu o Duo Abreu, mesmo sem eles saberem. Rebello era um
açougueiro português e um dos três melhores professores de violão
disponíveis no Rio de Janeiro nos anos 50. Os outros dois estavam
envolvidos em uma briga sem sentido. Rebello foi informado por Jo-
dacil Damasceno sobre alguém difamando-o. Ele apenas respondeu:
- Daqui a vinte anos estaremos tocando, eles estarão falando... (apud
DIAS, 2015, p.18). Ele estava certo. O que ele não poderia imaginar
é que, menos de vinte anos depois, seus netos não apenas estariam
tocando, mas conquistando o mundo do violão: antes disso os dois
meninos prodígios teriam outro professor importante, a argentina
Adolfina Raitzin de Távora, mais conhecida como Dona Monina.
Discípula de Andrés Segovia, ela exigia muito, mas também polia
os jovens Abreus. Mais tarde, ela também ensinaria o Duo Assad, de
onde podemos inferir que treinar grandes intérpretes era sua espe-
cialidade. Em resumo, em vez de “mostrar como” aos seus alunos, ela
apenas pedia pelos resultados musicais e eles precisavam utilizar suas
habilidades de resolução de problemas. E essa era uma das melhores
habilidades de Sérgio: “Nós tocamos e ele escuta silenciosamente. En-
tão ele dá um conselho e resolve tudo. Normalmente algo simples,
mas muito esclarecedor” (ZANON apud DIAS, 2015, primeira página).
Monina seria a professora deles por quinze anos, nutrindo sua
musicalidade, organizando e solidificando seu repertório e agendan-
do seus concertos, que cresceram em número e importância muito
rapidamente: em 1966, eles fizeram o seu primeiro grande concer-
to no Theatro Municipal do Rio de Janeiro; em 1967, Sérgio venceu
o famoso Concours International de Guitar, em Paris, o que lhe deu
fama instantânea no Brasil, não apenas com intensa atenção da im-
prensa, mas também com um concerto com um pôster de 1,98 metros

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Sérgio Abreu
53
e seu tempo

com sua foto - algo que incomodava bastante o introspectivo rapaz


de vinte anos. Um parêntese precisa ser feito: a relutância em cha-
mar atenção era uma característica encontrada em ambos os irmãos,
muito diferente dos chamados “influenciadores” dos dias atuais. Eles
construíram uma carreira não apenas pela carreira em si, mas pela
música, muito pautados nos ensinamentos do avô (“tocar e não di-
famar”) que seriam reforçados por Monina ao focar na música como
objetivo principal, não em como alcançá-la.
O Sérgio que eu conheci em 2005 era econômico, mas muito efi-
caz com as palavras, como Zanon descreveu acima. Ele era incapaz de
caluniar, diminuir os alunos ou se gabar de alguma conquista - e ele
tinha muitas em seu currículo. MÚSICA não se tratava de EGO, e essa
é a razão pela qual ele fez colaborações divinas para o mundo. A par-
tir da Competição de Paris, o Duo Abreu estreou no Wigmore Hall, no
Reino Unido, em 1968; gravou LPs (para Decca, Columbia, CBS); divi-
diu um concerto com o violinista Yehudi Menuhin; apresentou-se no
Concertgebouw, na Alemanha (1973 e 75); além de França, Holanda,
EUA, Argentina, Austrália, África do Sul, Iugoslávia e URSS.
Uma carreira intensa que terminou em 1975, quando Eduardo,
o irmão mais tímido, decidiu abandonar os concertos. Sérgio assu-
miu os concertos agendados e concentrou-se em sua carreira solo,
também se apresentando e gravando com a impecabilidade habitual.
Em 1977, decidiu retomar sua antiga paixão: a construção de violões.
Ele terminou uma longa turnê e passou dois meses de férias com Pat
O’Brien, discípulo de Rubio. Sérgio voltou ao Brasil decidido a cons-
truir seu primeiro violão, uma cópia de um Hauser de 1930. Para Dias,
seu principal biógrafo, “quando o violão foi terminado, sua carreira
também havia terminado” (DIAS, 2015, p.210). A construção de vio-
lões era há muito tempo uma obsessão que o levou a se conectar com
muitos construtores em suas turnês, como “David Rubio, Paul Fis-

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

cher, Pat Lister, George Love, Jean Larrivée, Gutemberg, Daniel Frie-
derich, Michael Gurian, John Gilbert e Hermann Hauser II, filho de
seu ídolo” (DIAS, 2015, p.210). E apenas alguns sabem que seu avô
também era um construtor. José Romanillos e David Hirschy também
devem ser incluídos na lista de luthiers que mantiveram amizade
próxima a Sérgio. Desenvolvendo essa segunda carreira, Sérgio reno-
vou e disseminou o conhecimento da construção de violões no Brasil,
iniciando um renascimento desse ofício e orientando diretamente e/
ou indiretamente uma infinidade de fabricantes de violão brasileiros.
Ele também foi responsável por vender instrumentos internacionais
de alta qualidade a preços abaixo do mercado internacional, fazendo
com que os músicos brasileiros tomassem consciência de como um
verdadeiro violão poderia soar. Com essa mesma mentalidade cari-
dosa, muitos anos antes (nos anos 70), ele foi quem emprestou aos
irmãos Assad seus primeiros instrumentos de qualidade por quatro
anos (DIAS, 2015, p.24).
Ele será lembrado por suas poucas, mas profundas palavras, seu
gosto por vinho, suas camisas xadrez e por colocar jacarandá de qua-
lidade na estreita entrada de seu estúdio, tornando difícil entrar e
difícil sair. Mesmo muitos anos distante de sua carreira como intér-
prete, sempre que ele experimentava um instrumento dedilhando
rudimentarmente as cordas soltas, sem unhas, todos ficavam em si-
lêncio. E para os músicos nesses dias barulhentos e modernos, o si-
lêncio é provavelmente o maior sinal de respeito que alguém pode
receber. O silêncio eterno o levou em 19 de janeiro de 2023, mas suas
gravações e seus violões manterão sua voz viva neste mundo. E essa
voz ressoará com poucas ou muitas palavras, quem sabe? Mas certa-
mente serão profundas...

Cyro Delvizio, Rio de Janeiro, 30 de janeiro de 2023.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Relato curto
Daiane Boza

Começo meu relato com uma certeza: Faço parte de uma multi-
dão de pessoas que tiveram a honra de conhecer a história do gênio,
Sérgio Abreu; porém, não tiveram a mesma sorte em conhecê-lo pes-
soalmente.
E mesmo sem ter tido o prazer de desfrutar de sua presença,
sinto como se o conhecesse de uma forma transcendental, como se
tivesse passado muitos momentos em sua companhia, ouvindo suas
histórias e rindo de seus comentários engraçados. Mesmo não tendo
uma vasta história de amizade com o Sérgio, sempre o senti como
meu amigo, tamanha minha admiração por ele. Admiração a qual me
criou um desejo de poder homenageá-lo em vida, algo que poucos
fazem. Foi assim que idealizei um Duo em sua homenagem, que além
de ter sua bênção, também foi batizado por ele em parceria com o
querido Ricardo Dias, nascendo assim o Duo Rebello; onde a escolha
do nome foi uma homenagem do Sérgio ao seu avô, Antônio Rebello.
Minha criação tem como premissa enaltecer os violões Abreu
e manter viva sua memória através das obras interpretadas em sua
carreira, assim como as obras que eram de seu deleite. Em 2022 ini-
ciei a catalogação dos selos através das informações enviadas pelos
prioritários de violões Abreu; e posteriormente através dos cadernos
de encomendas do próprio Sérgio. Alegra-me saber que minhas ini-
ciativas tomaram uma proporção muito maior do que eu imaginava,
dando origem a um artigo contendo essas informações tão preciosas.
Sabemos que todas as homenagens prestadas jamais serão o suficien-

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

te frente à grandeza do Sérgio, mas tudo que fazemos vem sempre


com um lembrete especial: “Por onde quer que vá, estaremos sempre
juntos”.

Figura 7: Outubro de 2022.


Sergio Abreu à esquerda.
Crispin Vieira, seu fiel
assessor de luteria em
primeiro plano. Jan de
Kloe, violonista musicólogo
e editor belga à direita.
Frederico Sheppard, luthier e
musicólogo estadounidense
ao fundo esquerdo. Cyro
Delvizio ao fundo direito.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Sérgio Abreu: um modelo que permeou


minha trajetória musical
Daniel Wolff

Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Brasil

2023 foi um ano que começou bastante agitado. Após meses de


uma tumultuosa divisão bipolar no campo político, que culminou com
a eleição presidencial com escore mais apertado da história, atos de
vandalismo extremo na capital da nação — ameaçando ferozmente
a democracia — deixaram o povo brasileiro ainda mais apreensivo
do que antes. Os ataques de 8 de janeiro entrarão para os anais da
história como um importante marco a ser lembrado e — esperemos!
— evitado em tempos futuros. Contudo, creio que para os amantes
do violão e da boa música, outro fato ainda mais marcante ocorreria
poucos dias depois, mais precisamente em 19 de janeiro: o falecimen-
to do grande Sérgio Rebello Abreu.
Ao receber o convite para contribuir com estas modestas linhas
para a publicação em homenagem a Sérgio Abreu, meu primeiro ím-
peto foi recusar, dado que — infelizmente — nosso contato pessoal
foi muito mais breve do que eu teria desejado. Porém, a influência
dele em minha trajetória como músico foi tão marcante que, imedia-
tamente, refreei tal impulso; Sérgio merece os depoimentos e honra-
rias de todos que, como eu, tiveram a felicidade de conviver com ele,
ainda que brevemente.
Meu primeiro contato com o Duo Abreu foi ainda em meus tem-
pos de colégio, quando adquiri o LP (os CDs ainda não tinham che-
gado ao Brasil) Os violões de Sérgio e Eduardo Abreu. Para mim, que

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

tocava o instrumento há muito pouco tempo, foi uma verdadeira re-


velação. A sincronia entre os irmãos, a sonoridade primorosa, a enge-
nhosidade dos arranjos, tudo parecia perfeito naquela gravação que
esbanjava musicalidade.
Foi um grande incentivo para meu estudo. Em seguida, convi-
dei um colega para formar um duo e tocar aquele repertório maravi-
lhoso. Como éramos ainda iniciantes, começamos com as peças mais
simples (O rouxinol, a Pastoral de Domenico Scarlatti) evoluindo a
seguir para a sonata de Christian Gottlieb Scheidler e outras obras de
maior complexidade.
Eu teria dado tudo para poder assistir ao duo, ver como eles obti-
nham aqueles sons maravilhosos, mas, naqueles tempos pré-internet,
não havia como aceder aos seus raros vídeos. De fato, eles haviam to-
cado na minha cidade, Porto Alegre, poucos anos antes, nos lendários
Seminários Internacionais de Violão do Liceu Musical Palestrina. Mas,
infelizmente, quando comecei a tocar violão, o duo já não existia.
Ao terminar o ensino secundário, transferi-me para Montevidéu
para cursar a universidade. Nos três anos em que residi no Uruguai,
tive aulas particulares semanais com Guido Santórsola, que me con-
tou muitas histórias sobre o duo. Relatou-me o primeiro encontro
dele com os irmãos Abreu, ainda bastante jovens, no qual os ouviu to-
car uma obra barroca. A seguir, fez algumas recomendações quanto à
interpretação da música daquele período. Para sua surpresa, Sérgio e
Eduardo imediatamente tocaram a obra novamente, já incorporando
as sugestões, algo que o impressionou fortemente.
Outro fato que o marcou ocorreu quando o duo se hospedou por
alguns dias em sua residência na rua Francisco Vidal, no bairro Po-
citos, mesma casa onde eu posteriormente viria a estudar com ele.
Santórsola observou que, enquanto Sérgio passava o dia no quarto,
debruçado sobre o violão, Eduardo caminhava pela casa com as mãos

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

às costas, movendo os dedos. Estudava assim, com um violão imagi-


nário. Quando finalmente pegava o instrumento para ensaiar com o
irmão, tocava perfeitamente, como se o tempo de prática fora de fato
realizado com o violão em punho. Permitindo-me talvez um peque-
no exagero, seria algo equivalente a um jogador de futebol treinar
dribles, chutes e embaixadas apenas movendo os pés no ar, com uma
bola fictícia, para depois, na hora do jogo, marcar os gols mais im-
pressionantes, como se tivesse treinado com uma bola de verdade.
Coisa de outro mundo!
Em suas aulas, Santórsola usava uma fábula dos tempos bíblicos
como metáfora para alertar os alunos para as notas mal tocadas. Con-
tava que os discípulos de Jesus, ao encontrar um belo presunto, o le-
varam ao mestre para ser consumido na próxima refeição. Jesus disse
que alguém deveria ter perdido a iguaria; o correto seria primeiro
procurar o legítimo dono e, caso isto não fosse possível, aí sim seus
discípulos poderiam comê-lo. Instruiu-os então a ir à praça pública e
perguntar se o fiambre pertencia a alguém. Os discípulos foram até a
praça e, com esperteza, começaram a indagar, em voz forte, “Quem
perdeu…”, para logo em seguida sussurrar “o presunto?”. O povo só
ouvia a primeira parte da pergunta e, naturalmente, ao ignorar de
que se tratava, ninguém se apresentou como proprietário do fiambre.
Moral da história: ao tocar uma música, temos que evitar os “presun-
tos”, ou seja, as notas mal tocadas, que o público dificilmente conse-
gue ouvir.
Com muito bom humor, Santórsola me contou que quando ouvi-
ram alguns candidatos não muito bem preparados em um concurso,
Sérgio se aproximou e disse, discretamente: “Quanto presunto, hein,
maestro?” Várias destas histórias viriam a público décadas mais tar-
de, na biografia de Sérgio escrita por Ricardo Dias.
Minha apreciação pelo trabalho dos irmãos Abreu persistiu no

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

decorrer dos anos. Na época em que vivi em Nova Iorque, cursan-


do doutorado na Manhattan School of Music, tive a oportunidade de
analisar os arranjos de Sérgio, durante a pesquisa para minha tese.
Pude confirmar o que já sabia de longa data: tratava-se de um arran-
jador de talento extraordinário.
Um destes arranjos era da Fantasia, BWV 906, de Johann Sebas-
tian Bach. A obra me atraiu tanto que comecei a tocá-la com meu co-
lega de doutorado Daniel Göritz, violonista alemão com quem estabe-
leci um duo. Iniciamos a partir da transcrição de Sérgio e depois nos
permitimos fazer algumas alterações, não porque houvesse qualquer
falha nas soluções encontradas por ele, apenas para melhor se adap-
tar às nossas características técnicas.
Esta peça era originalmente seguida de uma fuga, deixada in-
completa por Bach, sendo esta a possível razão para Sérgio ter trans-
crito apenas a fantasia. No afã de tocar a obra na íntegra, tive o atre-
vimento de completar — dentro de minhas humildes possibilidades
— a fuga inacabada de Bach. A partir de então, incorporamos também
este segundo movimento em nossos concertos, não sem antes mos-
trar a fuga para vários músicos, pedindo que tentassem identificar
onde terminava Bach e começava Wolff. Como é natural, sentia-me
bastante inseguro em agregar algo à escrita magistral de um gigante
como Bach. Para meu alívio e satisfação, ninguém conseguiu identi-
ficar onde ocorria a transição, nem algum elemento que contrastasse
com o estilo Bachiano. Foi o sinal verde para que a obra entrasse em
nosso repertório.
Pode parecer estranho, mas o que me encorajou a assumir ta-
manha empreitada foi o afã de tentar concluir algo que não apenas
Bach, mas também Sérgio Abreu, haviam iniciado. Era como se parte
da confiança que Sérgio sentiu ao adaptar a fantasia para dois violões
houvesse extrapolado para mim, como um estímulo subconsciente.

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Sérgio Abreu
61
e seu tempo

Evidentemente, trata-se de uma sensação exclusivamente minha;


Sérgio só viria a saber do fato anos mais tarde, quando lhe comentei
o assunto.
Durante o curso de doutorado, não longe da minha casa resi-
diam os irmãos Paulo e Pedro Martelli, que também estudavam na Big
Apple. Paulo, amigo próximo de Sérgio, enviou a ele meus arranjos
para violão solo de músicas de Egberto Gismonti, que ele gravaria no
CD Roots. Uma das maiores emoções que tive como músico foi o mo-
mento em que Paulo me comentou que Sérgio achara meu arranjo de
Água e vinho deslumbrante e que o arranjo de Loro deveria abrir o
álbum, por ser a peça mais brilhante do repertório. Foi como receber
a bênção de um dos meus maiores ídolos.
Por uma feliz coincidência, Gismonti estaria também relaciona-
do ao meu primeiro encontro presencial com Sérgio, vários anos mais
tarde. Era 2009 e eu passava alguns dias no Rio de Janeiro para parti-
cipar da Mostra Nacional de Violão Fred Schneiter, a convite de Luis
Carlos Barbieri. Eu tinha o domingo livre e aproveitei para ir pela
manhã à residência de Gismonti, para conversar sobre os arranjos
que eu fizera de músicas dele. Dias antes, eu comentara com o luthier
Ricardo Dias (o já mencionado biógrafo de Sérgio) que uma de minhas
maiores frustrações era não ter tido ainda a oportunidade de conhe-
cer pessoalmente meu ídolo Sérgio Abreu. Ricardo me deu uma tre-
menda alegria ao arranjar para almoçarmos juntos naquele domingo.
Saí da casa de Gismonti direto para encontrar Sérgio e Ricardo
em um restaurante. De lá, fomos passar a tarde na residência do Sér-
gio e tive em mãos os violões Hermann Hauser e Santos Hernández
que foram usados nas célebres gravações do duo Abreu. Sobre a mesa,
havia várias partituras, dentre elas a Pastoral de Scarlatti que eu co-
nhecera através daquele LP que eu ouvi até gastar a agulha do toca
discos, na minha adolescência. Me atrevi a perguntar a Sérgio se ele

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

toparia tocá-la em duo comigo. Para minha surpresa, ele aceitou na


hora e passamos um belo tempo lendo esta e outras partituras que ele
tinha à mão, naqueles instrumentos maravilhosos. Haja coração!
No final do dia, quando estava me despedindo para ir assistir
ao concerto de encerramento da Mostra, Sérgio me perguntou se eu
poderia levar a Porto Alegre um de seus violões, que havia sido enco-
mendado por Alisson Alípio, na época meu aluno de mestrado. Pron-
tamente concordei e Sérgio disse-me que teria ainda que preparar o
instrumento para despachar; iria levá-lo ao meu hotel naquela noite
(meu voo para Porto Alegre partiria cedo na manhã seguinte).
Após encerrada a Mostra e o subsequente jantar final de confra-
ternização, quando finalmente cheguei ao hotel, em hora bem avan-
çada, aparece Sérgio não apenas com o violão, mas também com uma
bela surpresa. Eu havia comentado durante a tarde sobre meu apre-
ço por gravações históricas que, naqueles tempos pré-streaming, não
eram nada fáceis de se obter. Sabendo disso, Sérgio trouxe um HD
com muitos gigabytes de gravações raríssimas. Levou um bom par
de horas até conseguirmos transferir tudo para meu notebook, tem-
po que proporcionou mais um ótimo papo entre nós. Chamou-me a
atenção sua resposta à minha indagação de como fizera para tocar de
forma tão primorosa as obras mais complexas. Sua resposta foi lacô-
nica: “com grande dificuldade”!
Voltaríamos a nos ver quase dez anos mais tarde, numa de mi-
nhas idas ao Rio de Janeiro. Além do violão, outra paixão mútua que
compartilho com Sérgio Abreu é um bom vinho, algo que regou a óti-
ma conversa que tivemos num jantar entre amigos. Dentre eles, nova-
mente, lá estava o caríssimo Ricardo Dias. Na saída, deixamos Sérgio
em sua oficina, onde passaria a noite trabalhando. Era um notívago
incorrigível.
É realmente uma lástima que, apesar da forte influência que Sér-

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

gio teve sobre mim, nossa convivência tenha sido tão esparsa. Foram,
não obstante, encontros muito especiais para mim, os quais guardo
com muito carinho em minha memória. Sérgio Abreu foi um modelo
para muita gente, um exemplo com sua incansável busca pela per-
feição, seja como violonista, como arranjador, como luthier, enfim,
como pessoa. Ele agora repousa nos céus, onde deve estar fazendo
música com Bach, Scarlatti, Paganini, Sor, Rodrigo e tantos outros
compositores que ele interpretou magistralmente em vida.

Daniel Wolff, junho de 2023

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Figura 8: Daniel Wolff e


Sérgio Abreu no apartamento
de Sérgio, em Copacabana.
Fonte: Acervo pessoal
de Daniel Wolff.

Figura 9: Daniel
Wolff e Sérgio Abreu
empunhando violões.
Fonte: Acervo pessoal
de Daniel Wolff.

Figura 10: Daniel


Wolff e Sérgio Abreu
ensaiando um duo.
Fonte: Acervo pessoal
de Daniel Wolff.

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Sérgio Abreu: lições do maior de todos


Raphael e Thadeu Maia / Duo Maia

Por volta do ano de 2008, chegamos à oficina do Sérgio. Raphael


havia feito contato com ele após um de seus ajudantes regular um
violão nosso, o que resultou em um encontro em sua oficina. Ao en-
contrá-lo, Raphael começou a perguntar sobre algumas possibilida-
des de digitação da famosa Sonata k-141 (Toccata), de D. Scarlatti.
Sérgio disse que não tocava essa peça havia mais de 30 anos, mas
que ainda se lembrava das notas. Pegou uma folha de papel, riscou
um pentagrama e começou a escrever toda a música de memória, in-
cluindo as digitações.
Após esse primeiro contato, Raphael ligou para o Sérgio e pediu
que escutasse o repertório que estávamos estudando. Ainda estáva-
mos começando a tocar em duo. Quando chegamos, Sérgio nos rece-
beu com máxima generosidade. Sérgio sempre foi o nosso maior ídolo
e aquele primeiro contato nos deixou sem palavras.
Logo de primeira ele chegou com arranjos de 3 sonatas de Scar-
latti. Disse “essas aqui, L 107 e L 65, dão para tocar, mas a L 450, não.
Vamos trabalhar as duas”. Naquele momento, Sérgio abriu as portas
para a maior mudança musical das nossas vidas (agora, em 2023, gra-
vamos estas 3 sonatas para o nosso novo disco, realizado em home-
nagem a ele).
Voltando no tempo, em 2008, estávamos estudando um arranjo
dele da BWV 814, o qual, para variar, Sérgio não se lembrava de ter
feito. Fez algumas modificações para trabalharmos, e tudo funciona-
va. Vimos novamente ele fazer as mudanças de digitação sem encos-

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

tar no violão. Quando tocamos, tudo funcionou.


Desse dia em diante, sentimos que precisávamos estudar com
mais foco. Era impossível não aproveitar a oportunidade de fazer au-
las com ele (apesar de ele odiar esse termo). Encontrávamo-nos com
uma certa periodicidade nessa época. Sempre trabalhávamos por se-
manas antes de pegar o telefone para marcar um novo encontro/aula.
Estudamos grande parte do repertório que o duo Abreu estudou
e gravou. Era uma espécie de fixação, no bom sentido da palavra. E ele
sempre parecia gostar de nos ouvir.
Sérgio tinha uma forma simples e direita de abordar as situações
musicais. Muitas vezes a lógica que não conseguíamos ver era desven-
dada em segundos. Fizemos inúmeras perguntas em fases diferentes
da nossa amizade. Perguntamos sobre a “Técnica Abreu”. Para variar,
ele deu uma risadinha e disse que isso não existia: “As pessoas gostam
de inventar muitas coisas.”
Perguntamos sobre as escalas com os dedos médio e anelar da
mão direita, o porquê fazê-las desta forma. A resposta foi simples,
como sempre: “Você já viu a diferença do tamanho dos meus dedos?
Precisei dar um jeito”.
Ele nunca nos orientou a fazer exercícios específicos de técnica,
mas falava para tocarmos as escalas e arpejos das músicas de forma
isolada. Tudo sempre se direcionava para o contexto musical. Quando
surgia alguma questão interpretativa, dizia: “Continuem tocando que
a música vai aparecer.”
Certo dia, estávamos estudando o prelúdio e fuga em C#m, de
Mario Castelnuovo-Tedesco. Nesse dia, tivemos literalmente uma
aula de como ele estudava. Ficamos 1:20h em uma página de poucos
compassos. Sérgio ligou o metrônomo em 40 bpm. Tudo era extrema-
mente lento e foi um dos maiores desafios tocar naquele andamen-
to: nos olhávamos e Sérgio parecia estar em outro mundo, prestando

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

atenção na sincronia.
Naquele momento, entendemos um pouco como deveríamos es-
tudar dali para frente.
Nosso som sempre foi muito diferente e essa sempre foi a nos-
sa maior dificuldade para começarmos a tocar em duo. Sérgio falou
para estudarmos gravando os ensaios. Não precisava ser uma música
inteira. Mas o importante era casarmos o nosso som e ajustarmos os
trechos com precisão.
Quando ele fez os nossos violões, em 2009, pedimos violões gê-
meos. Ele perguntou se queríamos violões diferentes, mas pedimos
violões idênticos. Isso acabou ajudando bastante na união dos nossos
timbres.
Nossa admiração sempre foi profunda e com muito respeito. Na
última vez que ele nos viu tocar, em 2022, apresentamos um arranjo
nosso do 1º Mov. da Sonatina para piano, de Edino Krieger. Ele gostou
e disse “eu sempre achei que isso iria soar bem para violão”. Talvez
esse tenha sido um dos maiores elogios que já recebemos.
Fica a saudade de poder pegar o telefone, ligar para ele durante
a madrugada e perguntar como ele resolveria determinado trecho
musical; era uma coisa que adorávamos fazer.
A forma como ele recebia a todos, sempre disposto a ajudar, com
extrema humildade, independentemente do prestígio ou conheci-
mento musical do interlocutor, talvez seja o seu maior legado.
E que assim possamos aprender algo com o maior de todos os
violonistas.
Obrigado, Sérgio Abreu.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Sérgio Abreu
Edelton Gloeden

Na biografia de Sérgio Abreu, escrita por Ricardo Dias (2015),


tive a honra de fazer a apresentação e um depoimento sobre a traje-
tória do violonista e luthier, figura referencial da história do violão.
Aqui faço apenas simples menções sobre encontros informais a partir
dos anos 1980 e sobre meus instrumentos feitos por Sérgio.
No final de sua carreira como músico, Sérgio vinha com certa
frequência a São Paulo, e tive a oportunidade de presenciar suas apre-
sentações
Na Sala Guiomar Novaes, com o flautista Norton Morozowicz; no
Museu de Arte de São Paulo (MASP), com o soprano Maria Lucia Go-
doy; e em dois recitais solo no Theatro Municipal.
Nessa época, trabalhou como luthier para a Giannini em uma
série especial de instrumentos, os conhecidos C-7, que se destacaram
pela alta qualidade e o baixo custo para amadores e estudantes. Ao
mesmo tempo, esse trabalho era para ele um laboratório de observa-
ções e experimentos, e nesse período manteve intenso contato com o
Prof. Henrique Pinto.
Tive mais encontros pessoais com Sérgio no Rio de Janeiro, e
sempre fui recebido com alegria e cordialidade também pelo seu cír-
culo de amigos - Jodacil Damaceno, Nicolas de Souza Barros, Maria
Haro, Vera de Andrade e Ricardo Dias. Não faltaram jantares prepa-
rados por ele, revelando-se um exímio alquimista gastronômico e
sommelier. No último jantar em que estive em seu apartamento, em
2011, Fernando Lima e Cecília Siqueira começaram a tocar a transcri-

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

ção que Sérgio fez para eles das Valses Poéticos, de Enrique Granados.
Quando o nível etílico já ultrapassava os limites, Sérgio tirou Maria
Haro para dançar, uma cena inusitada!
Em sua oficina, foram horas e horas experimentando e compa-
rando seus novos instrumentos e os de sua coleção, sempre acom-
panhadas de bons vinhos. Ele fazia questão de me hospedar em seu
apartamento, onde ouvíamos e conversávamos sobre música em ge-
ral e, às vezes, comentava sutilmente as excentricidades do mundo
do violão. Nos últimos encontros, lamentava a falta da presença do
violão em grandes séries de música de câmara, como acontecia em
sua época de músico atuante no Brasil e exterior.
Certa vez, folheando uma biografia de Vladimir Horowitz que
estava em sua sala, eu comentei sobre o encontro histórico do pianis-
ta com Sergei Rachmaninov, quando tocaram obras para dois pianos
deste compositor russo. Sérgio começou a conjecturar sobre o en-
contro e, por um momento ficou em silêncio, possivelmente ouvindo
interiormente a música e sentindo toda a atmosfera do encontro, e
depois comentou: “Dá para imaginar!”
Dois fatores sempre me causam desconforto: microfones e palco.
Entretanto, em sua presença, eu sempre me senti bem em reci-
tais, seções de gravações e experimentando informalmente seus vio-
lões.
Sérgio combinava objetividade e simplicidade em seus comen-
tários, feitos sempre de forma tranquila e construtiva, e tinha ideias
muito claras sobre os diversos assuntos relacionados à performance
e luteria. Sérgio foi um músico além de seu tempo e não se restringia
ao mundo do violão, pois possuía uma cultura musical ampla e sofis-
ticada. Frequentemente trocávamos gravações e partituras, e quando
eu tocava alguma obra que ele não tinha ou não conhecia, se mostra-
va interessado pelas partituras. Foi assim com a Fantasia, de Roberto

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Sérgio Abreu
70
e seu tempo

Gerhard; a Cançó i dansa nº 13, de Frederic Mompou; e Prelúdio e Baile-


to, de Fernando Lopes-Graça. Sérgio tinha uma memória prodigiosa,
e a cada encontro nosso ele me passava as gravações mencionadas
em conversas ocorridas muito tempo antes, entre elas algumas de
Andrés Segovia, dos Quartetos de Franz Schubert e os de Béla Bar-
tók com o Juilliard Quartet, as Sonatas para violino e cravo de J. S.
Bach com Yehudi Menuhin e George Malcolm, algumas Sonatas de
Beethoven com Wilhem Backhaus, a 9ª Sinfonia de Bruckner com Ser-
giu Celibidache e os concertos para violino de Manuel Ponce e Mario
Castelnuovo-Tedesco.
Sobre os instrumentos: o primeiro que adquiri de Sérgio, nos
anos 1990, foi vendido posteriormente para Paola Pichersky. O se-
gundo veio da série Hirschy/Abreu, com o qual gravei os CDs Puer-
tas com o soprano Adelia Issa (Selo Sesc), as 12 Valsas Brasileiras em
Forma de Estudos de Francisco Mignone (editais ProAc-SP) e Integrais
– 2 CDs a serem lançados brevemente pelo Selo Sesc. Foi uma esco-
lha feita com Sérgio entre três instrumentos da série que estavam
disponíveis no momento. Em 2003, fiz uma apresentação do ciclo de
valsas de Mignone no Rio de Janeiro com esse instrumento. No pal-
co, pouco antes de começar o recital, Sérgio apareceu discretamen-
te para colocar um pequeno gravador à minha frente, e compreendi
imediatamente sua atitude, sabendo que ele sempre usava o recurso
da gravação em seus estudos cotidianos. Em seguida, ele me convidou
para gravar esta obra em seu apartamento - fiz a gravação meses de-
pois, mas infelizmente não levei o projeto adiante, o que com certeza
foi um erro. Voltando à série Hirschy/Abreu, é importante observar
as madeiras utilizadas, guardadas por David Hirschy por cerca de 20
anos após este lutier interromper a construção de violões. Sérgio fir-
mou um acordo, finalizando vários instrumentos, que revelaram so-
noridades de grande beleza e equilíbrio. Certamente, após o projeto

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Hirschy/Abreu, sua ideia de selecionar madeiras mais envelhecidas


em condições adequadas foi decisiva para atingir novos patamares de
excelência na arte da luteria.
O terceiro violão me foi entregue em 2011 e, antes de começar
sua construção, Sérgio quis saber qual seria a minha ideia sobre este
novo instrumento. Fiz apenas a escolha do material e o deixei livre
para seguir como achasse melhor, pois penso que ele me conhecia
muito bem como instrumentista, e da mesma forma procedi na minha
última encomenda. Infelizmente, Sérgio não chegou a rever este ins-
trumento, pois quando eu ia ao Rio, levava sempre o Hirschy/Abreu.
Comecei a alternar o uso destes violões em recitais, procurando uma
adequação entre instrumentos e repertórios, como no programa em
anexo.
Pouco depois de Sérgio nos deixar, Ricardo Dias anunciou que o
último instrumento com o selo Sérgio Abreu (violão 767) pertence a
Edelton Gloeden, fato que me arrepia e causa uma emoção parecida
com a que senti no primeiro recital que presenciei do Duo Abreu, no
Teatro de Câmara, em Porto Alegre, numa noite gelada de julho de
1972. Este meu último pedido foi feito dois anos antes da pandemia
pelos mesmos motivos já mencionados: o nível de excelência dos ins-
trumentos desta última fase de Sérgio e a possibilidade de combiná-
-los em programas especiais.
Concluo me reportando ao que apresentei no livro de Ricardo
Dias: Sérgio Abreu pertence às linhagens de duas grandes tradições histó-
ricas - uma ligada aos grandes intérpretes que parte de Francisco Tárrega,
seus discípulos Emilio Pujol e Miguel Llobet, passando por Andrés Segovia,
Maria Luisa Anido, Ida Presti e Julian Bream, e outra voltada à arte da cons-
trução de violões, que tem como paradigmas Antonio Jurado Torres, Santos
Hernandez e Hermann Hauser.
DIAS, Ricardo. Sérgio Abreu: uma biografia, Rio de Janeiro, Edição independente, 2015.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Figura 11: Programa do


Recital-Palestra citado no
texto e no qual Edelton
Gloeden utiliza dois
violões Sérgio Abreu.
Fonte: Acervo pessoal
de Edelton Gloeden.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Sérgio Abreu, el intérprete


Eduardo Fernández

La generosidad de Sérgio está más que señalada por tantos co-


legas, y no es necesario demostrarla aquí, pero voy a decir lo que me
tocó de ella. Sérgio, casi sin conocerme personalmente, me prestó una
guitarra para participar en concursos internacionales en Europa en
1975. En seguida, pasé algunos días en Londres, en el mismo hotel en
que se alojaba el dúo, con frecuentes encuentros, asistí al concierto
del dúo en el Wigmore Hall, y volví a encontrarlo a mi regreso al pa-
sar por Río. Me facilitó comprar la primera guitarra buena que tuve,
hecha por Paul Fisher en el taller de David Rubio – y de hecho había
tenido la oportunidad de conocer a ambos, Fisher y Rubio, en una vi-
sita que hicimos con Sérgio a Oxford en esa ocasión, en 1975. Sérgio
tenía el trato más sencillo que se pueda imaginar, y si no me atreví
a hablar más a fondo con él de música y de interpretación, fue culpa
exclusivamente de mi timidez frente a un ídolo. No me iba a poner
a opinar frente a quien tenìa incomparablemente más experiencia y
visión que yo, bastaba con escucharlo. Volví a encontrar a Sérgio al-
gunas veces con el pasar los años,: en Rio me regaló su transcripciòn
de una sonata de Scarlatti que luego toqué en mi debut en New York.
Lo volví a encontrar alguna vez en New York, cuando estaba prepa-
rándose para su segunda vida como luthier, y luego en Rio en algunas
ocasiones, pero fueron, lamentablemente, encuentros muy fugaces.
Entre ellos estuvo el memorable homenaje que se le rindió en 2011 en
Sao Paulo.
Pero quiero concentrarme aquí en el intérprete Sérgio Abreu,

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e seu tempo

y tengo que hacer memoria. Lo primero que oí de Sérgio fue cuando


tocó la Ballade-Phantasy de Tom Eastwood en el concierto que dio el
dúo Abreu en el ciclo del Centro Cultural de Música en Montevideo,
debe haber sido en 1970 o 1971, y creo que es pertinente recapitular
mis impresiones de entonces, revivir esos pocos segundos iniciales.
Nadie conocía esa obra entonces, al menos en Uruguay. Aquí recién
estábamos descubriendo el repertorio de Bream, de quien casi na-
die tenía grabaciones; ese repertorio no se conocía completamente, y
como Bream no había grabado esa obra (ni lo hizo, desgraciadamen-
te) era completamente desconocida. Era un caso perfecto de enfren-
tarse a una música desde el absoluto cero, y en estos casos, el papel
del intérprete es siempre decisivo.
La obra comienza en piano, con una melodía no acompañada,
tanteando y dando vueltas en torno a un La, parece estar en Fa mayor
pero un Sol sostenido en el bajo al final de la frase inicial desmiente
eso y lo apunta a Fa menor, o a quién sabe qué. Hay que decir que en
ese momento era ya insólito que una obra para guitarra sola comen-
zara así. En el enorme espacio del teatro Solís, con una acústica no
demasiado favorable para la guitarra (y nadie pensaba en amplifica-
ción en esa época) parecía un desafío enorme dar forma a esos dos o
tres primeros compases, tan sotto voce. La sutilísima gradación de di-
námicas de Sérgio lo hizo no solamente convincente sino hipnótico,
sumergiendo al oyente en la obra: desde la primera nota, el mundo
dejó de existir. El mismo motivo se retoma y se desarrolla, creciendo
muy rápidamente en intensidad y densidad, explotando ya la tercera
vez que aparece en una variante de esa misma melodía envuelta en
arpegios, una textura casi más pianística que guitarrística. No es ne-
cesario decir que Sérgio resolvió esa transición, que no era solamente
de textura sino también de tempo, y otras del primer movimiento, de
un modo magistral; la obra fluyó como un discurso épico.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Hasta ese momento, nunca había oído a un guitarrista enfrentán-


dose así a una obra, explorando cada uno de los rincones, iluminando
todas las posibilidades sugeridas por la música, dándole una corpo-
reidad tridimensional e intelectual. Era una maravilla de sensibili-
dad, sin duda, pero también de intelecto, de paciencia constructiva, y
ni que hablar de la maestría técnica. No había ninguna sensación de
esfuerzo, y seguramente esa sensación de naturalidad y facilidad no
había sido conseguida sin costo. No había ningún intento de utilizar
la obra para mostrarse o exhibirse, sino la más pura intención de ser-
vir a la música, de presentarla por todo lo que pudiera valer. Fue una
revelación, un ejemplo de ética, y al mismo tiempo algo que hay que
describir como heroico, en los términos de ese momento, por lo lejísi-
mos que estaba del rendimiento habitual de un guitarrista. Hablar de
perfección no tiene mucho sentido, porque lo perfecto es, casi por de-
finición, limitado: depende de que se establezcan ciertos parámetros
de perfección, y una vez establecidos, siempre resultan demasiado
reducidos. Esto era otra cosa. La hiperclaridad de la exposición evi-
dentemente tenía que ver con la técnica, pero la técnica era solamen-
te un medio para presentar la música – y era claro además que había
habido una inversión tremenda de esfuerzo y tiempo, no solamente
en lo trivial, ocuparse de que todas las notas se oyeran bien, sino en
la comprensión global de la obra, en la creación de una visión de la
mismo. Repito: no era perfecto, excepto en el sentido obvio de que no
había errores ni inseguridades, algo que hoy parece trivial, pero no lo
era en absoluto en ese momento. Era algo más: era trascendente, era
algo que revelaba el verdadero, invisible pero irresistible poder de la
música.
Entonces: Sérgio nos estaba dando una lección de ética, y de hu-
mildad frente a la obra. ¿Era eso lo que hoy llaman “modernismo”?
Creo que calificarlo así sería un encasillamiento demasiado reducti-

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Sérgio Abreu
76
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vo. Era nada más y nada menos que cumplir con su oficio de intérpre-
te del mejor modo posible, ubicarse como un músico frente a la pieza,
no como un mero guitarrista, trascender lo instrumental para llegar
a lo espiritual. Si eso es modernismo, quién no quisiera ser modernis-
ta.
Y lo que hacía Sérgio no surgía solamente de su enorme talento
como guitarrista. Implicaba un conocimiento profundo de la música,
de toda la música, y una capacidad natural de empatía frente a dife-
rentes estilos. En ese comienzo de la Ballade-Phantasy, y simplemen-
te a modo de ejemplo, había muchas horas de escuchar y entender a
fondo a Chopin y Liszt.
Me he concentrado en esos primeros segundos, pero no es nece-
sario decir que no fueron ninguna casualidad. Sérgio, al menos en esa
época, estudiaba con metrónomo; esto lo sabía por medio de Santór-
sola, en cuya casa se quedó el dúo en esa ocasión. Eran horas y horas
de trabajo minucioso, comenzando muy lento; no se trataba de sim-
plemente aprender la obra, estudiaba así aunque la obra estuviera ya
completamente dominada. Estudiar de esa manera obliga a meditar,
explorar, encontrar. Es un proceso enormemente lento y laborioso,
y no carece de peligros. Me recuerda la vieja historia tibetana, de un
diente de mono que alguien creía que era el diente de Buda. Lo ha-
bían colocado en un altar y se le rezaba todos los días; al cabo de un
tiempo, el diente comenzó a resplandecer en la obscuridad. Cualquier
obra estudiada de esa manera adquiere una carga de devoción que
le otorga profundidad. Recuerdo que en Londres Sérgio estaba estu-
diando la Gran Sonata de Paganini, y pude seguir algo de ese proceso.
Estudiaba el movimiento lento con una paciencia infinita, saborean-
do cada nota y cada frase – y después de un tiempo, todo comenzaba
a resplandecer. Con todo, no sé si Sérgio hubiera continuado estu-
diando de ese modo. Es muy tentador especular sobre cómo hubiera

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

continuado su desarrollo como intérprete con el paso del tiempo, con


una mayor maduración de su enorme talento.
Pero ¿tocaba metronómicamente? Ahí está la grabación en vivo
de la Ciaccona de Bach. Es cualquier cosa menos una ejecución me-
cánica. Comienza “a la antigua”, en un tiempo lento, el de Segovia y
tantos violinistas tradicionales, pero se va despegando de ese tempo a
medida que avanza la pieza. Sérgio levanta vuelo gradualmente y ter-
mina en un registro emocional completamente diferente del inicial.
¿Estaba planeado eso? La misma música parece llevarlo gradualmen-
te a otro tipo de enfoque, en realidad más cercano a la visión de los
especialistas en música antigua (y Sérgio estaba muy bien informado
sobre toda esa investigación). ¿Sucedió eso esa vez solamente, o es-
taba concebido así? Es difícil pensar que una ejecución de Sérgio no
estuviera planeada y definida desde la primera nota hasta la última.
La pregunta inevitable es: ¿por qué Sérgio dejó su carrera de
concertista? Quizás una razón era esa intransigencia, ese apuntar
constantemente a la pureza absoluta. En la vida real, ciertamente uno
trata de mantener el nivel, pero pueden suceder cosas; estar cansado,
llegar a un concierto cinco minutos antes de que empiece porque fal-
ló la logística, que las cuerdas fallen, que la acústica del lugar sea de-
sastrosa, que uno tenga que esperar entre bambalinas algún discurso
introductorio innecesario que en vez de los dos minutos que debe-
ría durar dura veinticinco, puede haber una tremenda diferencia de
temperatura o humedad entre el camerino y el escenario que provo-
que inestabilidad en las cuerdas, y mil otros posibles contratiempos.
Las condiciones ideales no siempre se dan. En cualquier concierto en
vivo, con cualquier instrumento, el resultado siempre es menos de
lo que hubiéramos querido conseguir; en guitarra es aún más difí-
cil realizar todo lo que hemos construìdo durante el estudio, por el
millón de factores ajenos a nuestro control que pueden intervenir.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Quizás esa fue una de las razones; había en Sérgio algo de aspirar a lo
sobrehumano o aún a lo inhumano (quizás por eso tantos han hecho
referencia a su naturaleza angélica), algo que el oyente sentía con ab-
soluta claridad y lo hacía enormemente atractivo como modelo, pero
que era quizás problemático para él, y me atrevo a pensar, difícil-
mente sostenible a largo plazo. Como fabricar guitarras no se hace en
tiempo real, no existe esa presión de performance, y me imagino que
eso puede haber sido un factor en su decisión. No hay que subestimar
también la dificultad (que existe aún ahora pero en ese momento era
mucho mayor) de desarrollar una carrera internacional desde un país
periférico, incluso desde un país enorme como es Brasil.
Cuando Sérgio decidió dedicarse a la guitarra, la música proba-
blemente se perdió un gran director de orquesta. No sé si lo hubiera
llegado a ser, porque el mismo problema del anhelo de pureza absolu-
ta y trascendencia hubiera estado presente, y quizás hubiera sido aún
más agudo y frustrante para un director, que necesariamente depen-
de de la colaboración con otros músicos. Si Sérgio estaba insatisfecho
con sus propias ejecuciones, qué hubiera pasado con él lidiando con
una orquesta; quizás hubiera llevado a una maduración, a una evolu-
ción que en el fondo no hubiera sido para nada negativa. Pero quiero
decir que Sérgio tenía la mentalidad de un director de orquesta, de
ver las cosas de forma global y en profundidad: por eso los planos son
tan definidos en sus interpretaciones y todo se entiende con una cla-
ridad maravillosa; la versión del “Preludio, Fuga y Allegro” de Bach
(en vivo en New York en 1974) es ejemplar en ese sentido y en tantos
otros. Curiosamente, el color, el “tono de voz”, no parece ser una va-
riable para él, y a veces parece que tocara en blanco y negro. Pero qué
exquisita gama de grises y qué inigualable comprensión del conjunto.
Los Estudios de Sor, en su última grabación, me parecen tambi-
én emblemáticos de su estilo de intérprete. ¡Qué es lo que hace que

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

esa grabación sea tan memorable? Hay virtuosismo, sin duda: ¿cuán-
tos pueden tocar así? Pero el objetivo no es brillar. Sérgio los trata
como música (después de todo, el mismo Sor definía a un “estudio”
como una pieza de música); les dedica la máxima y la más iluminada
atención, lo mismo que un gran pianista haría con una sonata de Bee-
thoven. No trata de aplicar técnicas históricas, que por otra parte no
eran conocidas y no le interesaban a nadie en ese momento. Pero sí se
concede una enorme libertad a la hora de abordar las piezas. No hay
referencias a la tradición interpretativa: Sérgio parte de la partitura,
del texto, quitándole el polvo acumulado a lo largo de los años y de
tantas versiones (recuerdo a Boulez diciendo que la tradición es la
última mala interpretación). Así el estudio en Re mayor op. 35 Nº 17,
por ejemplo, se transforma en un lied prácticamente schumanniano,
reteniendo las armonías que se van formando, y no necesita de gran-
des rubatos para que la articulación de las frases sea meridianemente
clara y enormemente expresiva – de todos modos es una clase magis-
tral sobre cómo aplicar el rubato. De nuevo, la obra adquiere una cor-
poreidad tridimensional y revelatoria. Como todas las ideas geniales
en interpretación, parece obvia una vez que la oímos, pero a nadie
se le había ocurrido antes, ¿no? Es como si nunca antes hubiéramos
oído este Estudio. El Estudio en La menor, p. 31 No. 20 hace entender
que Sor era un precursor de Mendelssohn. El estudio en Sol mayor
op. 29 Nº 11 comunica toda su energía heroica sin necesidad de forzar
nada, simplemente con un manejo correcto y extremadamente sutil
del fraseo y las dinàmicas. El estudio en Si Bemol op. 29 se presenta en
un tempo más rápido del habitual, que es probablemente el estableci-
do por Sor, y así recobra su dramatismo y su vida. Y así podría seguir:
uno tras otro, los estudios revelan la grandeza de su autor, y debemos
esa revelación a la interpretación de Sérgio.
Entonces, resumiendo: no es para nada sorprendente que tantos

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

hayamos visto a Sérgio como un ejemplo y un ideal casi inalcanzable


de ética, humildad, y genialidad interpretativa, y lo veamos así aún
hoy. Nos queda la intriga de especular sobre cuál hubiera sido su evo-
lución si hubiera continuado su carrera como guitarrista. Por suer-
te tenemos algunas grabaciones para atesorar y seguir oyendo, para
comprobar que algunas veces, cuando aparece alguien como Sérgio,
la guitarra puede producir música al más alto nivel imaginable.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Sérgio Abreu: algumas palavras


Eduardo Meirinhos

Quando ouvi pela primeira vez a música de Sérgio Abreu, fiquei


de pronto perplexo, mesmo pelo pouco que consegui perceber à épo-
ca. Eu tinha por volta de 16 anos e quisera eu já ter percebido a im-
portância norteadora que o gênio musical e pessoal de Sérgio teria
sobre a minha vida musical. Digo, sim, musical e pessoal, pois é para
mim muito difícil dizer quem era maior, o talento musical e inteligên-
cia ou o ser humano Sérgio Abreu. Fale-se então antes, da sua gene-
rosidade, que ele derramava sobre conhecidos e desconhecidos, sem
qualquer interesse. Fale-se ainda da sua humildade, quando ingenu-
amente se igualava ao seu interlocutor, demonstrando desconhecer,
ou não acreditar no valor que tinha.
Sérgio era dono de um poder de síntese único, quando frequen-
temente conseguia reunir grandes verdades ou soluções em frases
simples; isso, sempre com o elegante e natural gesto em não deixar
espaço para que o eu interlocutor se sentisse menor. Sempre com
simplicidade, envergava atitudes nobilíssimas e despretensiosas, que
sempre vinham a esclarecer ou somar às inquietações ou dúvidas de
quem lhe falava.
Tinha ouvidos moucos aos elogios que lhe eram feitos. Frequen-
temente silenciava. Por vezes, transferia os méritos. Em outros mo-
mentos tratava seus feitos como fossem algo corriqueiro, nunca se
colocando no centro das atenções, porém, quase sempre estando.
De 1975 a 1978 eu estudei no Conservatório Dramático e Musical
de São Paulo e foi nessa época, ainda que tardiamente, que tive o pri-

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Sérgio Abreu
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meiro contato com a gravação do LP do Duo Abreu (Decca, 1968). Se-


dento, fui em busca de mais e cheguei à gravação do segundo LP (CBS,
1969). Mais surpresa e estupefação. Eu não conseguia entender como
era possível se tocar violão daquela maneira e isso começou a marcar
o meu caminho de utopia. Ouvir o Duo Abreu foi para mim como en-
trar numa catedral gótica: para onde se olha, vê-se a perfeição.
Muito marcante ainda foi o recital solo de Sérgio no Teatro Mu-
nicipal de São Paulo, ao que ouvi, como comentário, que ele possuía
um virtuosismo escondido, que sempre surpreendia, porém somente
aparecia a serviço da música.
Eram muitas as informações contidas no que eu ouvia deles. Aos
poucos, durante anos, fui tentando desvendar e via de regra eu me
deparava com a maestria, requinte e elegância despretensiosa. Com o
tempo e a convivência com Sérgio, que durou por toda a minha vida,
até pouco antes da sua partida, fui percebendo o uso sábio do essen-
cial em tudo o que fazia. Ele me disse algumas vezes: “uma coisa de
cada vez”, ao que entendi, “não vá adiante em algo que ainda não do-
mina”. Ocorre que para ele o procedimento era orgânico e nós ainda
tínhamos que aprender.
Em 1979 ouvi um de seus recitais solo no Teatro Municipal de São
Paulo. Em 1980 ouvi o recital de Sérgio junto com o flautista e regente
Norton Morozowicz, no Teatro Cultura Artística, e ainda naquele ano,
ouvi o LP “Sérgio Abreu interpreta Paganini e Sor”. Se alguma dúvida
ainda restava a respeito do que eu queria fazer pelo resto da minha
vida, ali ficou selado, para o desespero do meu pai.
Nos anos de 1980 e 1981 tive o privilégio de estudar com Henri-
que Pinto e tivemos memoráveis momentos juntos, Henrique, Sérgio
e eu, onde eu me embevecia somente com a ideia de estar próximo
a personalidades tão importantes na história do violão brasileiro, na
história do violão no planeta. O Sérgio ia com frequência a São Pau-

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Sérgio Abreu
83
e seu tempo

lo em virtude do trabalho que desenvolvia junto à Giannini, com os


então famosos violões C7. Nós três nos encontrávamos no estúdio do
Henrique ou no Hotel Artemis, no centro de São Paulo, onde numa
ocasião o Sérgio chegou a lixar um violão, transformando o quarto
numa verdadeira azáfama, para a exasperação do senhorio. Sérgio,
com o seu humor sutil e inteligente, dizia quase não perceber...

O violão no. 15

À época eu tinha o violão de um outro luthier e não estava con-


tente. O Henrique me dizia dos violões do Sérgio, da experiência que
ele tinha tido com os luthiers David Rubio e Paul Fisher. Após alguns
anos de economia, em 1986, consegui finalmente o meu primeiro vio-
lão de sua construção, onde ele já se ensejava como o grande luthier
que viria a ser, o violão de no. 15, que tenho até hoje e do qual pre-
tendo nunca me desfazer. Foi somente tocando em seus violões por
toda a vida que, penso aos poucos, consegui vislumbrar o som que se
colocava como paradigma. Não que tenha conseguido reproduzi-lo.
Eu toquei neste único instrumento de 1986 a 2004 e foi nestes
anos de convívio com este violão que pude estreitar os laços de ami-
zade com o seu construtor. Longas e curtas conversas sobre luteria,
música, técnica violonística, pessoas, fatos, anedotas produtos da
vida real, em visitas que lhe fiz ao Rio e frequentemente em conver-
sas ao telefone, convivência à qual devo muito do que consegui até
hoje saber sobre violão e sobre música. E geralmente vinham grandes
verdades ou soluções colocadas de forma simples e natural.
Lembro-me de passagens que, ao longo dos anos se tornaram
motivos de boas risadas.

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Sérgio Abreu
84
e seu tempo

O zumbido

Recordo-me de um ínfimo zumbido que se apresentava no ins-


trumento e que nos momentos de gravação me pareciam como se fos-
se o som predominante. Eu gravava e ouvia o zumbido. Falei inúme-
ras vezes com o Sérgio a respeito do incômodo. Só que, sempre que eu
levava o instrumento para que ele me ajudasse, o que também foram
várias vezes, como que por encanto, o zumbido sumia... Hoje o zum-
bido inexiste, ou eu não o ouço mais.

O violão perfeito

Em uma de nossas conversas postei-me a descrever o que gosta-


ria de encontrar no violão, que este tivesse graves profundos, médios
presentes, agudos definidos, uma primeira corda que fosse um mel e
muito volume. Sérgio me olhou e disse simplesmente: - não se pode
ter tudo, eu também gostaria de um violão assim. Aceita uma taça de
vinho?

O violão no. 493

Em certo tempo fui muito aficionado pelas medidas do instru-


mento, fosse esta o tamanho da escala (acreditava que me daria me-
lhor numa escala de 640 ml ao invés de 648 como o violão que ti-
nha), distanciamento entre as cordas, ação do instrumento etc. Eis
então que o Sérgio surge com um violão pronto, que mostrou a vários
amigos, exatamente com as medidas que eu buscava. Era uma dessas
coincidências únicas do destino. Isto foi por volta de 2004. Estava en-
cantado pelo instrumento e finalmente, este violão, de no. 493, pas-
sou a ser o instrumento principal nos recitais.

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Sérgio Abreu
85
e seu tempo

O violão 630

No ano de 2010 eu liguei para o Sérgio e disse-lhe que acabava de


fazer uma grande turnê de 90 concertos pelo país e que eu queria me
dar um presente, um novo violão. Disse-lhe que, salvo por algumas
medidas (rs), gostaria que ele fizesse o violão que ele acreditava. Ele
me perguntou: “você já tem dois, não é mesmo?” Sim, eu disse, ao que
ele retrucou: “viajar para a Europa e beber bons vinhos não te passou
pela cabeça, passou?”. Não, eu disse. Em 2012 eu tinha o violão de no.
630. Poderia tentar discorrer sobre os diferentes sons dos diferentes
instrumentos, através de superlativos, metáforas, comparações, re-
presentações, mas como o próprio Sérgio teria dito: “De que adianta
falar do sabor e perfume da maçã se a pessoa nunca viu uma maçã?”,
(livro biográfico Sérgio Abreu, de Ricardo Dias). Hoje eu me alter-
no tocando em instrumentos maduros, diferentes entre si, mantendo
uma distinção única em suas personalidades e que são, para mim,
inestimáveis. Agora ainda mais.

O CD Sonatas

Algumas situações em nossas vidas nos marcam para sempre,


mesmo que aparentemente possam parecer simples.
Recordo-me de quando fiz a gravação do CD “Sonatas por Edu-
ardo Meirinhos”. Assim que estava pronto, mesmo antes do lança-
mento, eu enviei um exemplar para o Sérgio, na expectativa ansiosa
de ouvir o que ele diria. Passou algum tempo e eu já queria começar a
entender que ele não tinha gostado muito. Numa tarde ele me ligou:
- A tua gravação está muito boa. Parabéns! Ótima interpretação.
Há muito tempo eu não ouvia um CD por mais de duas vezes e ouvi
este teu. (!)

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Sérgio Abreu
86
e seu tempo

Sérgio não se deu conta do que me dizia nas entrelinhas, que não
precisava escutar uma gravação mais de uma vez para perceber o que
ali estava. Se ele o percebeu, e muito provavelmente o fez da primei-
ra vez, ainda assim ouviu mais uma. Eu tomei isso como um grande
elogio; é um dos momentos que guardo na memória com especial ca-
rinho e orgulho. E claro, com um certo deleite...
Outra curiosidade sobre o Sérgio com respeito a este CD. Na mes-
ma ocasião da ligação, ele me pergunta:
- A Sonata do Diabelli você gravou com outro instrumento?
Estranhei a pergunta e retruquei:
- Não Sérgio, o CD inteiro foi gravado com o violão 493.
- Tem algo diferente ali, disse.
Isso ficou na minha cabeça. Afinal, o que poderia estar diferente?
A distância dos microfones exatamente a mesma, mesma angulação,
o espaço, o equipamento, a troca de cordas. Tudo exatamente igual.
Liguei para o técnico. Ele me confirma. Tudo exatamente igual.
Depois de alguns momentos eu perguntei a ele sobre as datas de gra-
vação. E foi somente então que eu me dei conta que esta peça havia
sido gravada na época das chuvas em Goiânia, enquanto as outras
sonatas, na época da seca... algumas semanas de diferença, com algu-
mas chuvas no meio do caminho...
- Sim, Eduardo, então é isso. Esclarecido, disse Sérgio.
Ele percebeu a diferença de som do instrumento na gravação,
nas diferentes porcentagens da umidade relativa do ar.

Sonata em Lá Maior de Paganini

Uma das gravações que mais me marcou, dentro de tudo o que


eu já ouvi na minha vida, foi o LP “Sérgio Abreu interpreta Paganini
e Sor”. Depois de muitos anos namorando a peça, achei por bem estu-

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

dá-la; arranjo do Sérgio, claro.


A minha reverência pela peça e por esta gravação era tanta que
resolvi ligar para o Sérgio e pedir licença para tocar o arranjo dele:
- Sim, claro! Pode tocar, pode gravar, pode usar como base para
fazer o seu próprio arranjo. Pode fazer o que quiser. Até vi a partitura
há alguns dias aqui pelo apartamento, mas não sei onde está. Eu mi-
rava a cópia dos seus manuscritos há anos.

Sem problemas

Estávamos em sua oficina e fiz-lhe uma pergunta casual:


- Sérgio, seria um problema para você enviar isso para mim por
correio?
- Não, Eduardo. Os meus problemas acabaram quando eu parei
de tocar violão.

Nervosismo

Lembro-me de um recital que fiz no Rio de Janeiro. Não me lem-


bro o ano. Acho que foi no Teatro do SESC Flamengo. Antes do recital
estávamos, no camarim, em várias pessoas, inclusive Jodacil Damace-
no, Nícolas Barros e Sérgio. Um camarim muito bem servido, mas eu
não conseguia colocar nada na boca. Num certo momento, Sérgio diz:
- Bem, vou para a plateia, senão daqui a pouco vão pensar que
serei eu a tocar.
Olhou-me de relance e com um meio sorriso disse: Boa Sorte!
Foi então que eu me dei, de fato, conta de que eu tocaria com
Sérgio Abreu na plateia. Senti mais medo do que quando toquei em
certa ocasião para 1700 pessoas, em São Paulo. Correu tudo satisfa-
toriamente bem. No dia seguinte fizemos uma “violonada” em seu

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Sérgio Abreu
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apartamento, tocando em vários instrumentos e, claro, tudo regado a


um vinho chileno muito especial.

Lição sobre o papel do professor

Recordo-me de uma ocasião em que falávamos saudosamente do


nosso amigo em comum, Henrique Pinto, que havia partido recen-
temente. Eu falava da época em que tive aulas com ele, de como fre-
quentemente eu saia empolgado das aulas, com vontade de estudar
mais. Ele disse:
- Eu tinha aulas com a Dona Monina e eu saia das aulas com a
convicção de que tocar violão era a coisa mais importante do mundo.

Pena, era Fá#

Quando eu ainda morava em São Paulo, o luthier Antonio Tessa-


rin era quem mexia no violão que eu tinha do Sérgio, o no. 15. Eu aca-
bava por fazer da vida dele um inferno, sempre testando regulagens
diferentes, sempre diferenças de milímetros. Quando eu me mudei
para Goiânia, passei a ir para o Rio, para que o próprio autor o fizesse,
uma vez que era longe do mesmo jeito.
Na oficina ele tinha um quartinho com isolamento acústico,
onde colocava os trastes nos instrumentos. Com seus hábitos notur-
nos e precisando martelar trastes noite adentro, ele precisava deste
isolamento para não atormentar os vizinhos. Sempre quando está-
vamos juntos ele me punha um violão nas mãos. Assim, fiquei eu na
sala tocando e ele trancado no quartinho martelando trastes no meu
instrumento. Toquei por uma hora, uma hora e meia, um repertório
contínuo. Em dado momento, ele sai e diz: Esse violão soa bem na tua
mão. Só uma coisinha, é Fá# na peça tal...

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Aula de escalas, aula de música

Numa outra ocasião em seu apartamento, toquei uma peça que


tinha muitas escalas. Não me lembro qual. Algumas das escalas não
saiam claras o suficiente.
- Sérgio, por que eu não consigo?
- Porque não está havendo uma boa sincronia entre as mãos, uma
está indo antes da outra. Tente colocar o dedo na nota com a mão es-
querda no exato momento em que toca com o dedo na corda com a
direita.
Treinei um tanto e acabou por sair.
Então ele complementou:
- Agora, perceba. Está muito rápido. Acho que não fica bem as-
sim. Deveria ser mais lento...
Ou seja, ele me conduziu a tocar rápido como eu queria, para me
dizer depois que ali eu não deveria tocar rápido...
Anos mais tarde eu comentei isso e ele não lembrava. Mas disse:
- Eu não me lembro. Mas isso tem a minha cara. Uma coisa de
cada vez.

Aula de inteligência e simplicidade técnica

- Sérgio, a ação das cordas está muito alta. Assim como está, eu
preciso fazer muita força.
- Eduardo, não é preciso fazer força para tocar violão.
Diante do enorme ponto de interrogação na minha face, ele con-
tinuou:
- É só puxar o violão para trás e não usar o polegar para pressio-
nar. O polegar fica ali, porque não tem outro lugar para ficar. Quando

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Sérgio Abreu
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eu descobri isso, tudo ficou mais fácil. Se ainda não der certo, use a
técnica do violoncelo.
Mesmo assim, abaixou a ação das cordas.

O melhor violão do mundo

Ao encomendar o violão 630, ao final de todas as medidas do ins-


trumento que eu lhe pedi, eu brinquei:
- Outra coisa, Sérgio, faça-me o melhor violão do mundo!
Ao que ele responde com a maior simplicidade e naturalidade:
- Eu posso tentar.

Afinação do violão

Sérgio tinha o hábito de, sempre que alguém estava tocando


algo, por mais complexo, qualquer linguagem harmônica, ele saia de
onde estava, vinha na direção do violonista e ajustava a afinação, en-
quanto a música andava.
Em uma ocasião eu decidi que afinaria o instrumento tão bem
que o Sérgio não precisaria sair de onde estava e proceder o ajuste.
Usei o afinador eletrônico. Ajustei a primeira corda que normalmente
fica um pouco baixa. Ajustei a terceira corda que normalmente pelo
afinador fica um pouco alta. Afinei os acordes na tonalidade da mú-
sica que iria tocar, em diferentes regiões do instrumento, calibrando
tudo. Gastei tempo. Mal comecei a tocar, vejo o Sérgio se levantando.

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Sérgio Abreu
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Aula de meninice

Mais uma vez em seu apartamento, com uma taça de vinho, fa-
lávamos das excentricidades de um certo violonista. Num certo mo-
mento eu disse em tom de autocrítica:
- É ruim, né? Ficar assim falando de outra pessoa.
Depois de um breve momento de silêncio, ele retruca:
- Mas é tão divertido ...

Por fim ...

Poderia aqui acrescentar muitos outros “causos”. Mas acredito


que não caiba mais.
Sérgio Abreu nunca foi muito afeito a formalidades. Porém, em
tudo o que fazia, o compromisso que tinha com tudo, a busca pela
perfeição, o bom gosto, a memória musical infindável, a percepção
única, a integridade e elegância de caráter, a generosidade, e tudo
isso permeado por uma extrema simplicidade, acabava por sempre
induzir uma aura de respeito, reverência e austeridade. Aura esta que
ele nunca alimentou intencionalmente.
Não tenho ciência na história do violão de outra personalidade
que tenha compreendido tantas diferentes qualidades, no nível de
excelência que ele o fez: o incomparável violonista, o sábio arranja-
dor e transcritor, o grande luthier. Tudo o que Sérgio tocava trans-
formava-se em um feito de excelência. O perfeccionismo lúcido era o
seu processo mental.
Tenho a convicção de que vivi o privilégio de ter conhecido um
dos maiores músicos e luthiers que a história do violão teve.

Obrigado, Sérgio.

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Sérgio Abreu
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Sérgio Abreu em três tempos:


audição, concerto e amizade
Everton Gloeden

Em audição

No começo dos anos 70, ouvi pela primeira vez os 2 primeiros


LP’s dos “Irmãos Abreu”.
Que beleza!
Que clareza de exposição!
Que beleza de som!
Foi um arrebatamento ouvir os primeiros acordes do “Sir John
Langton’s Pavane”!
Era algo totalmente fora dos padrões violonísticos da época, um
som que encantava, uma execução clara e perfeita.
O objetivo do Sérgio era a clareza e o instrumento que ele usava
era muito apropriado para isso. E, indo além, era um sonho de bele-
za sonora e tocabilidade. Logo de início ele teve a fortuna de ter um
“Strad”, isto é, um Hauser da melhor qualidade dentro dos Hausers,
um instrumento que ele amava com paixão e que o inspirou mais tar-
de a ser luthier.
Continuando no assunto clareza, sua mestra, Monina Távora,
era exigente nesse aspecto e transmitiu a ele que a textura musical
devia ser muito bem explicada e exposta com musicalidade, caráter e
inspiração!
O trabalho que Sérgio dedicava para deixar uma obra pronta
para o palco era muito criterioso: primeiro estudava intensamente,

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Sérgio Abreu
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por meses, a base técnica da obra, depois, descansava dela por algum
tempo, e depois retornava para a finalização. Esse processo poderia
levar anos e, quando finalmente sentia a peça pronta para ser apre-
sentada, ainda assim, ligava o gravador antes de entrar no palco para
ouvir a execução após o concerto, corrigindo o que fosse necessário.
Era um perfeccionista!
Em 1974, o maestro Guido Santórsola esteve em São Paulo minis-
trando um curso de interpretação musical. Além de suas maravilho-
sas aulas, que me marcaram profundamente, ele nos apresentou uma
gravação do seu “Tríptico” para 2 violões em leitura à primeira vista
dos Abreus ... perfeita! Em seguida, nos mostrou em primeira mão a
gravação do Concerto para 2 violões de sua autoria, que ainda nem
tinha sido lançado em LP.
O Maestro Santórsola era rigorosíssimo e, ouvindo a gravação,
sorria de prazer com a maestria da execução tanto dos solistas, como
da Orquestra de Câmara Inglesa. Segundo ele, a gravação do LP com-
pleto com o Concerto para 2 violões de Castelnuovo Tedesco foi feita
em apenas 6 horas!
Esse álbum, em minha humilde opinião, é a maior execução vio-
lonística já feita! Foi o meu norte desde a primeira audição.

Em concerto

No mesmo ano, 1974, no Festival de Porto Alegre, assisti ao duo


pela primeira vez ao vivo.
Novo choque de encantamento!
Como podiam tocar daquele jeito?
Era muito melhor do que no disco!
A estrutura dos programas de seus concertos era sempre a mes-
ma: iniciavam a primeira parte com obras em duo, finalizando com

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Sérgio Abreu
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solos, para na segunda parte iniciarem com solos, fechando o progra-


ma em duos.
Em 1974, Sérgio solou a Tonadilla e o Rondó - vivo e enérgico, de
Castelnuovo Tedesco.
O Teatro da Assembleia Legislativa de Porto Alegre era grande e
estava lotado, o som era claro, lindo e forte o suficiente para tomar o
espaço! Uma beleza!
Depois do recital, consegui me aproximar no camarim, espan-
tando-me com a fisionomia deles, a pele branca e o próprio espanto
deles com o entusiasmo das pessoas.
Um ano depois, em São Paulo, no Masp abarrotado de gente, eu
os assisti bem de perto, nos degraus que levam ao palco. Espetacular!
Começaram com 6 peças de Rameau transcritas pelo Sérgio, ina-
creditável!
Depois o Sérgio fechou a primeira parte com a Suíte de Buxtehu-
de e Bach - Prelúdio, fuga e alegro, com a terceira corda afinada em
Fá#, o que na época me deixou perplexo (essa não é a afinação usual),
mas que, alguns anos depois, eu usaria em minha própria gravação
desta obra.
Depois do concerto, fui com alguns amigos que tiveram a mesma
felicidade de assistir àquele concerto ao vivo, andando da avenida
Paulista até o Parque D. Pedro II para pegar o ônibus de volta para
casa, meio atordoados e sem palavras para descrever o que tínhamos
presenciado.
Muitos colegas, depois desse concerto, se perguntavam se conti-
nuariam ou não a tocar, porque parecia algo inacessível chegar àque-
le nível de excelência. Para mim, tudo aquilo chegou como um enor-
me incentivo.
Um ou dois anos depois o duo se desfez, no auge da carreira ...
eles estavam por volta dos 30 anos de idade!

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Sérgio Abreu
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Sérgio continuou com trabalhos solo e em duos com Maria Lúcia


Godoy e Norton Morozowics.
Assisti ao Sérgio em recital solo algumas vezes, sempre com o
mesmo deslumbramento, como no Teatro Municipal de São Paulo,
tocando Bach, Paganini (melhor do que no disco) e uma maravilhosa
obra de Tom Eastwood – “Romance et Plainte”, que nunca mais ouvi
ninguém tocar.
O Municipal tem uma acústica difícil para violão, mas o Hauser
52 nas mãos do Sérgio soou muito! Que beleza!

Em amizade

Após encerrar a sua carreira de concertista, no início dos anos


80, Sérgio iniciou sua segunda carreira, a de luthier.
Foi também a época em que trabalhou na fábrica de violões Gian-
nini fazendo uma série para profissionais e estudantes avançados que
supria uma grande lacuna no mercado, tendo em vista a escassez de
luthiers de violão àquela época. Segundo o próprio Sérgio, essa expe-
riência foi fundamental para sua formação como luthier.
Esse trabalho o trazia sempre para São Paulo e passei a encon-
trá-lo com frequência.
Em 1982, pude testar um de seus primeiros instrumentos, era
cópia de seu amado Hauser 1930.
Lembro da empolgação de todos sobre a nova carreira do Sérgio,
finalmente tínhamos um luthier de categoria internacional no Brasil.
Tive o privilégio de partilhar de sua imensa cultura musical, o
que corroborou para o meu entendimento de sua arte como solista e
camerista.
Afora a música, desfrutamos o gosto pelo vinho, que, curiosa-
mente, ele descobriu após parar a carreira de concertista; consequen-

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Sérgio Abreu
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temente aquela pessoa que quase não falava se tornou muito sociável,
um verdadeiro cavalheiro, bondoso, generoso, sempre disposto a aju-
dar.
Era o consultor musical de todos, qualquer dúvida, “liga pro Sér-
gio”!
Como produtor musical era maravilhoso, ele transformava qual-
quer gravação. Foi inesquecível sua colaboração no primeiro álbum
do Quarteto Brasileiro de Violões, experiência que foi a base da sono-
ridade do grupo.
Tem uma passagem que guardo com carinho, em 1985, eu estava
hospedado em seu estúdio, em Ipanema, finalizando a gravação de
minha gravação das obras de Bach para alaúde.
Foi uma semana de gravação e outra de edição. Quando final-
mente terminei, cheguei no estúdio, Sérgio estava começando a tra-
balhar em sua oficina, era começo da noite, ele me perguntou se eu
havia terminado, eu disse que sim e ele me perguntou: “você tem
uma cópia?” “Sim!”, respondi. E ele: “Vamos ouvir?” Imaginem meu
constrangimento, o primeiro a ouvir o meu trabalho seria ele!
A gravação dura aproximadamente 90 minutos. Em pé, ele en-
costou o ombro na parede e ouviu tudo atentamente sem falar nada.
Quando terminou ele disse: “depois dessa tourada, precisamos tomar
um vinho”!
E conversamos sobre a gravação com alegria e comemorando!
Outra passagem que mostra a sua generosidade e companhei-
rismo: eu estava na Alemanha hospedado na casa de meu compadre
Clemer Andreotti. Sérgio mandou 2 ou 3 violões para ele vender, eu
gostei muito de um deles, entrei em contato com o Sérgio e ele diz
que se eu tinha gostado poderia ficar o tempo que quisesse com o
violão! “Mas Sérgio, tô sem grana!” ... “Não se preocupe, quando você
puder você me paga”.

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Enfim, o Sérgio era uma pessoa maravilhosa que deixou amigos


e o mundo musical com muitas saudades.
Para mim, um artista de grandeza equivalente a seu ídolo, Ho-
rowitz, ou de um Rubinstein ou de um Richter: um violonista que
transcendeu o violão, enfim, e fez música como eles. Ele foi simples-
mente o maior violonista de todos os tempos!

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Sérgio Abreu: entre pai e filhos


Fernando de Lima

Como e por onde começar para, em algumas linhas, falar de uma


figura que durante quase duas décadas norteou meu caminho na mú-
sica, na vida e, ainda depois de sua partida, continua sendo minha
grande referência? Bom, penso que minha limitada escrita não será
suficiente para tal. Mas tentarei de alguma forma descrever essa pro-
funda relação de amizade, admiração e aprendizado que tive com
Sérgio Abreu.
Conheço o Sérgio desde o ano 2000, mas foi por volta de 2005 que
mais nos aproximamos. Na época, como aluno do saudoso Henrique
Pinto, comecei a entender o que era o “fenômeno Abreu”. Henrique
era muito próximo ao Sérgio e, segundo ele, essa proximidade havia
mudado seu entendimento do violão. Naturalmente isso influenciou
sua maneira de pensar e de ensinar o instrumento.
Eu havia me formado no ano de 2002, ainda como aluno do Hen-
rique – que também foi uma pessoa fundamental em minha vida – o
Duo Siqueira Lima com minha parceira Cecilia Siqueira. Nós espera-
mos 5 anos - de muito ensaio - para tomarmos coragem de mostrar
este trabalho ao Sérgio. Não era pouca coisa: tocar para um de nossos
maiores ídolos como violonista e a pessoa que, em minha opinião, re-
volucionou a maneira de se tocar em duo de violões.
Resumindo, posso dizer que desde esta primeira vez até o dia de
hoje, a influência do Sérgio foi determinante em tudo o que produzi-
mos e certamente continuará sendo.
Como já disse, é impossível para mim traduzir em palavras o que

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Sérgio Abreu
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foi essa convivência com ele. Então achei por bem contar um causo.
Um relato que, a meu ver, traduz com bastante precisão a nossa rela-
ção com Sérgio Abreu e a profundidade de nosso amor e carinho por
ele e também dele por nós.
Se deu em São Paulo, no mês de novembro de 2011, no “II Festi-
val Leo Brouwer”. O duo Siqueira Lima foi convidado para participar
do concerto em homenagem ao Sérgio Abreu. Nós e o grande vio-
lonista uruguaio Eduardo Fernández – separadamente - tocaríamos
com a Orquestra de Câmara da USP (OCAM), no teatro do MASP, sob a
regência do Maestro Gil Jardim.
(O concerto foi no domingo de manhã e Sérgio, conhecido por
ser uma pessoa de hábitos noturnos, chegou em cima da hora para a
sua própria homenagem).
No início do concerto o homenageado foi chamado ao palco para
dizer algumas palavras. Com sua conhecida timidez, usando uma de
suas características camisas xadrez, Sérgio apenas disse: “Transfiro
toda esta homenagem à Dona Monina Távora, à quem devo tudo o
que sei”.
Estávamos com a emoção à flor da pele. Além de estarmos par-
ticipando desta tão significativa homenagem, a plateia era basica-
mente de violonistas e, entre eles, alguns dos maiores nomes do ins-
trumento, como o próprio Leo Brouwer, Manuel Barrueco, Eduardo
Fernández e a nata do violão brasileiro (Fabio Zanon, Marcelo Kayath,
Edelton Gloeden, Paulo Bellinati - para citar alguns nomes). Quando
terminamos o último movimento do Concerto N.3 para 2 violões, de
Radamés Gnattali, e voltamos para um bis (uma sonata de Scarlatti
que dedicamos ao homenageado), Sérgio saiu de onde estava, veio
até a frente do palco (como se não tivesse ao redor de 400 pessoas o
assistindo) para afastar as estantes de partituras para que o público
nos visse melhor (ele sabia que o bis tocaríamos de cor). Também dis-

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se à Cecilia que girasse sua cadeira para frente (saindo da formação


diagonal necessária para tocarmos com orquestra). Ele estava numa
empolgação que até então nunca havíamos visto.
Terminou o concerto e foi uma grande euforia, todo mundo se
cumprimentando, etc. Era muito violonista por metro quadrado! Nós,
sempre ao lado do Sérgio, recebíamos as felicitações pelo concerto.
Então vem o ponto alto do dia.
Brouwer e Barrueco se aproximam (Sérgio já havia os encontrado
no dia anterior – eles não se viam há décadas). Então Sérgio olha para
eles e com um enorme sorriso e cheio de orgulho diz: “Leo, Manuel:
estes são os meus filhos! ...” Impossível não me emocionar quando me
lembro deste momento. Uma memória que irá nos acompanhar pelo
resto de nossas vidas.
O Sérgio jamais falaria algo desse tipo somente pela emoção. Es-
tas palavras, além de uma carinhosa e espetacular apresentação de
nosso Duo para o Brouwer e o Barrueco, foram também como uma
declaração dele para nós, deixando transparecer um sentimento re-
cíproco. Isso também dizia muito do que já havíamos conquistado
como seus pupilos até então e o que ainda tínhamos pela frente. Nes-
te momento nós percebemos que poderíamos contar sempre com ele.
Até aí já havia sido o suficiente para uma transformação trans-
cendental em nossa maneira de tocar, de enxergar o violão e a música
de uma forma antes nunca imaginada por mim e Cecilia.
Os anos que seguiram foram também transcendentais para nós
neste aspecto. Não nos víamos com tanta frequência, mas, cada vez
que íamos ao Rio, pra gente não existia o Mar, o Pão de Açúcar, o
Corcovado. Existia o Sérgio. Cada vez que chegávamos em seu apar-
tamento, em Copacabana, parecia que entrávamos em uma outra di-
mensão... não sei como descrever, mas era algo mágico. Tocávamos o
dia inteiro esperando quando ele voltasse da oficina para nos ouvir.

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As vezes estávamos no meio de uma peça e percebíamos que ele che-


gava na porta e ficava ali quieto, pelo lado de fora, ouvindo até que
terminássemos. Quando entrava já tinha algum comentário a ser fei-
to!
Nosso contato pessoal foi contínuo até o ano de 2019, pois em
2020 se iniciou a quarentena em função da pandemia de Covid 19. Nos
anos que se seguiram mantivemos contato somente à distância e nós
infelizmente nunca mais voltaríamos a vê-lo.
Um fato curioso é que, em 2019, estávamos no Rio para um reci-
tal - hospedados em seu apartamento como sempre - e o Sérgio sur-
preendentemente fez questão de que não voltássemos para São Paulo
antes de fazermos uma gravação em vídeo onde nós tocaríamos em
seus violões históricos (Hauser de 1930 e Santos Hernandez de 1920) e
nos violões que ele havia construído especialmente pra gente (Cecilia
2013, Fernando 2014). Além de tocarmos, ele faria comentários entre
uma música e outra. Nós nos empolgamos muitíssimo com a ideia,
remarcamos nosso voo de volta e nos preparamos para a tal gravação.
Nos reunimos a noite em sua sala. Além de Cecilia, Sérgio e eu,
estavam presentes os queridos Vicente Paschoal, Ricardo Dias e o
saudoso Mário Jorge Passos. Com a ajuda destes ilustres colegas, pro-
duzimos coisa de uma hora de material entre músicas e comentários
do Sérgio. Não foi nada muito profissional do ponto de vista técni-
co - utilizamos um Iphone para gravar áudio e vídeo - mas ele que-
ria aproveitar este momento. Depois, quando possível, faríamos algo
mais profissional.
Bom, sempre que juntávamos esse time era uma festa. Mas, além
disso, desta vez havia uma emoção, um deslumbramento no ar, da
parte de todos nós que éramos próximos a ele: nunca o havíamos vis-
to com essa necessidade - eu diria - de fazer um tipo de registro como
aquele, pois ele sempre foi avesso a aparecer, gravar entrevistas etc.

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Mas para nossa felicidade isto está registrado e é algo que guar-
damos com todo carinho do mundo. Divulgamos até o momento um
pequeno trecho. Mas o que mais nos sensibiliza e, de certa maneira,
nos causa um certo espanto, é que aquela seria a última vez que nos
veríamos.
É como se ele, de alguma forma, estivesse pressentindo isso.
Mas a nós cabe somente agradecer à Deus, à vida e à música por
nos haver concedido a dádiva de conviver e aprender tanto com esse
ser iluminado que foi o Sérgio Abreu.

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“O maior professor que não dava aulas”


Flávio Apro

A inesperada partida de Sérgio R. Abreu, em 19 de janeiro de 2023,


representou não somente o encerramento de um capítulo da história do
violão mundial, como também a despedida de um amigo com quem tive
o raro privilégio e honra de compartilhar diversos momentos marcantes
em minha trajetória musical. Como já mencionado por diversos colegas,
embora Sérgio não desse aulas formalmente, ele foi o nosso maior mes-
tre. Em minha opinião, o “approach Abreu” era resultado do transborda-
mento natural da personalidade de um ser humano que possuía um raro
e benéfico impulso de amar o próximo à sua maneira, que se manifestava
na forma de “conselhos” ou “dicas” que tinham a poderosa eficácia de
nos transportar imediatamente a um estado superior de esclarecimento.
Comecei a aprender música com Sérgio mesmo antes de tê-lo co-
nhecido pessoalmente. Das minhas incontáveis dificuldades na lide com
o violão durante a adolescência, talvez uma das maiores tenha sido o ma-
nejo da mão direita e o controle sonoro. Meus professores à época detec-
tavam a necessidade de melhorar o volume e a qualidade do meu som e
tentavam todas as possíveis estratégias físicas e mecânicas para efetuar
tal aprimoramento, mas nada gerava o devido resultado. Esse patinar no
mesmo lugar durou até o momento em que ouvi, pela primeira vez, uma
gravação em fita cassete do lendário Duo Abreu. O efeito de um “estado
superior de esclarecimento” foi imediato, como um raio: ali estava o mo-
delo mais divinal que eu poderia ter encontrado no violão clássico, ao
qual ainda hoje não ouvi outro superior. Uma vez absorvido internamen-
te o modelo sonoro ideal que eu buscava e finalmente encontrei, não de-

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Sérgio Abreu
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morou muito tempo para que a minha mão se moldasse naturalmente


àquela referência. Meu professor comentou que meu som havia mu-
dado “milagrosamente” desde o encontro da semana passada, e até
mesmo desconfiou que eu estivesse tendo aulas com outro mestre
(sim! eu já estava aprendendo com Sérgio, mesmo antes de tê-lo co-
nhecido...).
Conheci Sérgio pessoalmente aos 16 anos, durante as férias es-
colares de 1989. Desde então, tive o privilégio de ouvir, observar e
dialogar com a encarnação do “modelo divinal” do violão clássico.
Cada conversa com o mestre tinha o efeito de uma espécie de raio na
cabeça: até mesmo os problemas mais insolúveis sempre encontra-
vam em Sérgio uma solução simples e lógica. A distância entre Rio
e São Paulo, onde eu morava à época, não era impeditivo para mim:
viajava com prazer por seis horas de ônibus para encontrá-lo, ou até
mesmo receber certas dicas milagrosas por telefone. Outra caracte-
rística marcante de sua didática natural era a objetividade: Sérgio
jamais sobrecarregava com informações irrelevantes, desnecessárias
ou acima do nível de seu interlocutor. Era sempre um tiro certeiro no
problema.
Essa benção que recebi, a de tê-lo como mestre informal, passou
também por estágios. Muitas vezes, nem era necessário que Sérgio se
expressasse por palavras. Um olhar ou reação dele já era suficiente
para que eu me desse conta de que algo não estava completamente
solucionado. Não foram poucas as vezes em que solucionei problemas
técnicos ou musicais como resposta à alguma reação sua e, de surpre-
sa, ouvir algum comentário surpreendente como: “eu estava para te
falar isso ontem, mas parece que você já encontrou a resposta sozi-
nho”. Talvez uma das etapas mais estimulantes desse upgrade em nos-
sa contínua relação mestre-informal/discípulo-impertinente tenha
sido algo que eu chamaria de ensinamento-reflexo, ou seja, aprender al-

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Sérgio Abreu
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guma “nova” estratégia musical através de outra fonte e me espantar


em já encontrá-la aplicada nas antigas gravações de Sérgio ou do Duo.
Como exemplo disso, gostaria de mencionar algo recente, que é uma
característica sonora desenvolvida e ensinada pelo maestro romeno
Sergiu Celibidache, denominada por ele como fluxo contínuo musical:
em poucas palavras, trata-se de um controle total de cada elemento
dentro de uma frase musical, com uma direção precisa que ajuda a
ligar cada um dos eventos: A com B, B com C, e assim sucessivamente
até o final de cada frase, sessão ou obra completa, criando assim uma
massa sonora completamente homogênea, livre de qualquer fissura
ou quebra sonora, criando, dessa forma, uma sensação irrevogável
de unidade. Fato igualmente observável em qualquer gravação dos
Abreus.
Mesmo após sua morte, continuo me surpreendendo com seu
transbordamento de sabedoria musical. Recentemente eu estava me
questionando sobre uma passagem de velocidade bem específica na
Chaconne de Bach. Porém, poucos dias antes de sua partida, Sérgio
compartilhou comigo, em forma de mensagem, um vídeo instrucio-
nal de um músico que ambos compartilhávamos admiração, o vio-
lonista italiano Augustin Hadelich. Nessa aula, Hadelich comentava
estratégias para manter o relaxamento em passagens rápidas, em que
os dedos da mão esquerda pisavam as cordas tão levemente que, se
pressionadas de forma mais lenta, não produziriam o som completo.
Mais um problema resolvido, dessa vez do além túmulo, como mais
um raio de luz enviado por Sérgio.
Em suma, me sinto seguro em descrever o “approach Abreu”
como sua forma particular de amar a humanidade e de nos tirar da
ignorância. E isso era feito de uma forma tão espontânea e intensa
que esse amor simplesmente transbordava dele. É por isso que repito
Sérgio Abreu como “o maior professor que não dava aulas”.

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Sérgio Abreu
106
e seu tempo

O amor que fica


Geraldo Ribeiro e Márcia Braga

Conheci Sérgio desde seus 12 anos, na casa de seu avô, Antônio Rebello.
Notei um interesse especial de sua parte quando ele me ouvia tocar. Pergun-
tei a seu avô se ele estava estudando violão e a resposta foi positiva.
Depois de alguns anos fiquei surpreendido ao ouvi-lo tocar com seu ir-
mão, Eduardo. Duo que se tornou famoso no mundo todo, imortalizando as-
sim a arte com perfeição, algo até aquele momento nunca visto.
Posteriormente assisti a recitais solo de Sérgio que muito me impressio-
naram pela segurança rítmica e sentido musical, principalmente nos clássi-
cos e nos autores que ele tanto gostava.
Como se não bastasse, tornou-se um dos melhores luthiers do mundo,
senão, em minha opinião, o melhor.
Sua falta, também por sua amabilidade, causou uma perda irreparável
para os amigos e por seus talentos uma imensa lacuna no mundo violonístico.
Geraldo Ribeiro

Há quase 6 meses, na mais recente apresentação de Geraldo Ri-


beiro, fiz um pedido de um minuto de silêncio ao público, onde já
estava emocionada suficiente para dizer: “Sérgio nasceu uma estrela.
Sérgio viveu como uma estrela. Além de trocar o dia pela noite, ele
iluminava a quem por ele passava. Sérgio voltou para o lugar das es-
trelas”.
Sérgio Abreu iluminou não só o meu caminho como professora
de violão. Era um dos raros exemplos de violonista que, a meu ver,
atingiram a perfeição. Quando estive em seu estúdio pela 1ª vez, e

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Sérgio Abreu
107
e seu tempo

depois jantamos juntos, foi como se eu tivesse obtido uma espécie de


1º lugar: estive por 3 momentos ao lado de um grande ídolo. Em tro-
ca, deixei a ele um lugar especialmente reservado para os melhores
amigos.
Dizem que quando parte alguém muito querido, essa saudade se
transforma em “o amor que fica”.
Salve Sérgio Abreu.

Márcia Braga

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Sérgio Abreu
108
e seu tempo

Sérgio Abreu para pianistas – um decálogo


Giulio Draghi

“O piano é talvez a última caixa de truques na história dos instrumentos mu-


sicais. A arte de dominar seus idiomas é a arte da ilusão, sempre negando sua
inegável natureza percussiva. É um instrumento no qual cada nota, quer se
queira quer não, começa no seu [ponto] mais alto e então diminui rapida-
mente de volume - um fenômeno inatamente antimusical e sem paralelo no
mundo das vozes, cordas ou sopros. Sério? Digam isso a Chura Cherkassky.”-

Jeremy Siepmann1

O honroso convite para colaborar com um artigo nesta homena-


gem ao genial violonista e luthier Sérgio Abreu desaparecido em janei-
ro último, deve ser precedido de uma explicação. Nosso objetivo não
é o de analisar, detalhar ou discutir a arte de Sérgio Abreu. Existem
violonistas que com Sérgio Abreu conviveram, que tiveram a ventura
de ouvi-lo ao vivo, que acompanharam suas atividades como luthier
e que, portanto, possuem conhecimento de causa muito maior para
se orientar dentro daquela miríade de particularidades que somadas
resultam num verdadeiro primus inter pares. Na verdade, o legado de
Sérgio Abreu passa neste exato momento por uma renascença, seja
através da publicação de sua primeira biografia2, como através da pu-
blicação de dezenas de entrevistas, depoimentos e gravações inéditas
oriundas de arquivos privados e agora pela primeira vez disponibili-
zados na internet.
Estipulada esta primeira premissa apresentamos uma segunda:
uma vez que o nosso instrumento é o piano, nosso discurso se voltará
mormente para especificidades pianísticas. A pergunta que norteia
este artigo é: o que nós pianistas podemos aprender com a arte e o

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Sérgio Abreu
109
e seu tempo

legado de Sérgio Abreu? Tal pergunta poderá parecer à primeira vista


um tanto singela, mas foi exatamente este o questionamento que mo-
tivou nossas reflexões, acompanhado da arraigada convicção de que
qualquer pianista que entre em contato com a arte e o pensamento
de Sérgio Abreu obterá em troca uma aula de música, de vida e de in-
tegridade artística que irá obliterar instantaneamente qualquer pru-
derie, sobranceria ou esnobismo que possa surgir advindo da enorme
distância que separa um violão de um piano de concerto.
Nosso primeiro contato com a arte de Sérgio Abreu se deu por
volta de 1983, quando nos deparamos com o LP Sérgio Abreu interpreta
Paganini e Sor3. Os nomes de Sérgio Abreu e de seu irmão Eduardo na-
quela época nos eram totalmente desconhecidos. Quando mais tarde
diante de nossa professora Gloria Maria da Fonseca Costa menciona-
mos uma possível compra, para nossa surpresa, a mestra sempre tão
severa, abaixou seu tom de voz a quase um sussurro ao se referir às
suas lembranças dos “concertos daqueles meninos” num tal tom de
reverencia e pasmo que foram mais do que suficientes para voltar-
mos imediatamente à loja e realizarmos a compra4. Poucos minutos
de audição dos Estudos de Sor bastaram para nos darmos conta de
estar diante de uma gravação emblemática na mesma escala de gran-
deza dos 24 Estudos de Chopin por Maurizio Pollini, gravação esta, que
cinquenta anos depois continua insuperável dentro dos parâmetros
de uma concepção moderna e neoclássica dos estudos de Chopin. Já a
Grand Sonata para violão e violino de Paganini (numa transcrição para
violão solo do próprio Sérgio Abreu) causou-nos o efeito de uma ver-
dadeira revelação. Não tanto pelo virtuosismo em si, transcendental
sem dúvida, mas através do resultado sonoro, que parecia sintetizar
as diversas sonoridades presentes na história da evolução do piano.
Naquela primeira e apressada audição recordamos nitidamente como
o jovem maestro recriou em diversas passagens o brilho de um cra-

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Sérgio Abreu
110
e seu tempo

vo, o efeito do vibrato – “Bebung” – do clavicórdio e os três efeitos de


pedal do piano moderno: a ressonância do pedal direito, o prolonga-
mento dos baixos do pedal tonal ou pedale sostenuto e o efeito de vi-
bração de cordas por simpatia do pedal esquerdo também conhecido
como pedale una corda. Todas estas sonoridades desfilaram diante de
nós em pouco mais de dezenove minutos e hoje, quarenta anos após e
uma boa centena audições seguidas, fazemos tranquilamente nossas
as palavras do crítico Piero Rattalino que ao se referir a uma inter-
pretação ao vivo da Petrouchka de Stravinsky por Pollini rendeu-se
com “[...] não é dito que não possam existir outras leituras, mas não
saberia imaginá-las e nem mesmo as desejaria”5.
A fim de ilustrarmos melhor a nossa premissa do porquê de a
gravação da Grand Sonata de Paganini executada por Sérgio Abreu
pode ser um valioso elemento no ensino do piano, faremos uma rá-
pida digressão sobre os três instrumentos que o precederam e suas
características principais. Trata-se de uma descrição extremamente
simplificada, pois não é o propósito neste artigo – e nem haveria es-
paço – fazer uma digressão aprofundada sobre uma história da evo-
lução do piano6.
O percurso da evolução das sonoridades poderia ser drastica-
mente resumido assim: o pequeno clavicórdio, com suas cordas per-
cutidas por um pequeno martelo e reais possibilidades de vibrato,
possuía, no entanto, um som pequeno que mal ultrapassava um cô-
modo, ficando, portanto, restrito a um uso praticamente doméstico.
O cravo substituiu-o no gosto da época, suas cordas eram pinçadas
por uma pena de ave e não mais percutidas como no clavicórdio. Pos-
suía decididamente maior volume de som e brilho, mas alas! não per-
mitia graduações de dinâmica nem o efeito do vibrato do clavicórdio.
Foi somente com a chegada do fortepiano ou gravicembalo col forte e
piano7 que o piano começou sua vertiginosa evolução. O novo instru-

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111
e seu tempo

mento, embora ainda com um longo caminho à sua frente, se provou


definitivo pois realizava o sonho da tão almejada ampla sonoridade,
sonoridade esta que ainda vinha aliada a possibilidades dinâmicas.
Sua evolução foi célere, em poucas décadas surgiram numa rápida se-
quência: o duplo escape, que permitia a execução de notas repetidas
em alta velocidade (Erard 1821), o iron frame, que suportava pressões
até então inéditas no encordoamento (Babcock 1825), as cordas cru-
zadas, que pouco a pouco substituíram definitivamente o piano com
cordas paralelas aumentando seu som – cumpre porém notar que em
detrimento da clareza polifônica – Steinway & Sons 1859) e por fim o
pedal tonal Steinway & Sons 1876) que acrescentava a possibilidade
de manter um baixo ou um acorde prolongado ao longo de uma me-
lodia. Atualmente o piano se encontra estacionado em sua evolução,
seus avanços têm se dado mais na direção da exploração de meca-
nismos feitos de materiais sintéticos não sujeitos a dilatação ou con-
tração provocadas pelo clima como a fibra de carbono por exemplo
(Mason Hamlin modelo VX) e a construção de pianos cada vez maio-
res tais como o vienense Bösendorfer Imperial com 2,90 m e 97 teclas,
os italianos Fazioli com 3,08 m e Borgatto Grand Prix com 3.33 m, o
norte-americano David Rubenstein que atinge a espantosa medida de
3,71 m e por fim o australiano Stuart & Sons com suas nove oitavas e
108 teclas. Nota-se no caso do piano David Rubenstein que um tampo
tão grande não se sustentaria através de uma única haste sendo, por-
tanto, necessárias duas hastes para manter a estabilidade e suportar
o enorme peso.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Figura 12: Piano David


Rubenstein 3,71 m

Figura 13: Piano Stuart


& Sons com nove
oitavas e 108 teclas.

Acrescentamos ainda o fato de que os grandes fabricantes – e por


grandes entendemos aqueles que lograram impor agressivamente os
seus instrumentos em praticamente todas as salas de concerto do
mundo – ficaram restritos a praticamente quatro Steinway, Yamaha,
Kawai e Fazioli seguindo todos praticamente os mesmos objetivos, a
saber: um som amplo e o mais brilhante possível a fim de atender a
construção de salas de concerto cada vez maiores, registros unifor-
mes entre as diferentes regiões do teclado, ousaríamos dizer até “pas-
teurizados” e um mecanismo extremamente regulado e confortável
já de fábrica, que se por uma lado à primeira vista facilita a execução

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Sérgio Abreu
113
e seu tempo

como um todo, por outro impede a criação de uma sonoridade pesso-


al principalmente em relação aos pianissimos. Alfred Brendel emitiu
um comentário bastante ferino sobre esta evolução que acreditamos
ser interessante citar integralmente:

Quando tentamos tocar o piano Érard de Beethoven de 1803 na coleção de


instrumentos musicais do Kunsthistorisches Museum de Viena, fica então
imediatamente evidente: som, dinâmica e forma de tocar têm surpreenden-
temente pouco em comum com os pianos de hoje. O som de cada nota tem
um início distinto, em seus limites íntimos é mais vivo e flexível, e altera-se
mais claramente ao longo de sua sustentação. A diferença de registro no bai-
xo, registro médio e agudo é significativa (execução polifônica!). Os agudos
soam breves e penetrantes e resistem à dinâmica, rebelando-se contra uma
cantilena que queira colocar-se acima de um delicado piano. Mesmo na re-
gião clara e transparente do baixo, um tanto rouca, o espectro dinâmico é
bem mais limitado do que nos nossos instrumentos. Compreende-se o acom-
panhamento constante em piano na escrita orquestral dos concertos para
piano de Beethoven – muito embora também o som orquestral de seu tempo
certamente não fosse muito semelhante ao de hoje. Quanto à força neces-
sária por parte do intérprete, o Érard está para o nosso Steinway como um
mecânico de precisão está para um estivador.8

Em face do exposto acima um pianista atualmente tem o gran-


de desafio de encontrar a sua própria sonoridade, de apurar e “per-
sonalizar” o seu toque diante de partituras tão dispares como as de
Scarlatti, Bach, Mozart, Chopin e Brahms, todas compostas em pianos
muito distantes dos instrumentos atuais.
E é precisamente neste momento que a gravação da Grand Sonata
de Paganini por Sérgio Abreu vem a nosso encontro como uma ver-
dadeira aula de sonoridades diferenciadas, de estilo e de equilíbrio.
Acrescentamos a isto a vantagem não desprezível (quem leciona jo-
vens pianistas sabe exatamente a que nos referimos) que, vinda de
instrumento tão distante do piano, faz com que o ouvinte se desligue
da obsessão de resolver desafios simplesmente copiando os maneiris-
mos de outros pianistas, proporcionando assim uma audição límpida e
despida de ideias pré-concebidas. Tal audição acaba se passando num
nível superior uma vez que inexistem competições, “escolas pianís-
ticas” ou a interferência direta ou indireta de docentes antagônicos,

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

lívidos ou dogmáticos. Os mais diversos efeitos que um pianista pode


almejar são expostos por Sérgio Abreu com uma clareza neoclássica.9
Diante do exposto propomos alguns exemplos que nos norteiam des-
de aquela longínqua audição em 1982 e que continuam inalterados
até os dias de hoje:

1) Notas repetidas.
Surge a necessidade de realizarmos notas repetidas numa sonata
de Scarlatti, de Soler ou uma peça de Rameau num piano moderno,
mas almejamos a clareza de um cravo? Sugerimos consultar a varia-
ção n.4 do terceiro movimento.

Figura 14: Ex 1 - Paganini


Grand Sonata para violino
e violão versão para violão
solo de Sérgio Abreu c.1-4

Além da clareza absoluta, as notas repetidas de Sérgio Abreu são


despidas de quaisquer traços de exibicionismo vulgar. Executadas
num andamento ideal, sem, porém, renunciar ao virtuosismo, fazem
soar nitidamente a primeira de cada quatro semicolcheias onde se
encontra a melodia. Ali encontramos também o efeito do pedal tonal
ou o “pedal de dedo” dos cravistas. Um erro muito comum num tre-
molo ou em oitavas quebradas ao piano é o de executar as notas mais
graves e as mais agudas todas na mesma intensidade. O resultado é
fazer desaparecer imediatamente qualquer melodia que esteja sen-
do conduzida por qualquer uma das partes. Considerando o excesso
de pedal que geralmente as acompanham ao piano (numa tentativa

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Sérgio Abreu
115
e seu tempo

canhestra de encobrir falhas nas repetições) situamos a clareza de


Sérgio Abreu pari passu com um Glenn Gould, um Horowitz ou um
Michelangeli.

2) Acordes.
Um acorde executado ao piano de maneira monolítica, isto é, no
sentido em que todas as notas são tocadas com a mesma intensidade
– salvo em caso especificamente indicado pelo compositor – pode e
deve ser evitado. Garrick Ohlson em aula com Claudio Arrau lembrou
que este sugeria que em relação aos dedos envolvidos no acorde “de-
víamos nos comportar um pouco como um percussionista de vibra-
fone que escolhe baquetas de dureza diferente para fazer ressaltar as
notas de um acorde”.10
Um belo exemplo de como acordes podem ser valorizados na
execução de Sérgio Abreu pode ser visto nos compassos 84 e 182-183
do 1º movimento. Cada nota apresenta uma cor distinta, e nos acor-
des arpejados as notas são valorizadas de maneira magistral.

Figura 15: Ex 2 - Paganini


Grand Sonata para violino
e violão versão para violão
solo de Sérgio Abreu
primeiro movimento
compassos 84 e 182-183.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

3) Escalas.
As escalas representam outro ponto a merecer atenção especial.
Há uma tendência por parte de pianistas de entender as escalas ape-
nas como uma seção virtuosística, de um meio destinado a atingir cer-
ta nota onde haverá um ponto culminante ou irá se iniciar uma nova
melodia. Erro frequente dos alunos é o de “pesar” os dedos natural-
mente fortes (polegar e terceiro) sobre os naturalmente mais fracos
(quarto e quinto). “Estou ouvindo todos os polegares da sua escala”
é uma frase ouvida pontualmente em sala de aula. Nos compassos
123 e 124 do primeiro movimento Sérgio Abreu realiza um crescendo
em que cada nota da escala faz um completo sentido musical com a
anterior atingindo seus pontos culminantes em mi4 e lá5 respectiva-
mente, surpreendendo assim o ouvinte tanto através da sonoridade
como pela ênfase. Sérgio Abreu transforma dois simples fragmentos
de escalas num efeito dramático contundente.

Figura 16: Ex 3 - Paganini


Grand Sonata para violino
e violão versão para violão
solo de Sérgio Abreu
primeiro movimento
compassos 123-124.

Ao comentar com Abram Chasins o motivo de seu afastamento


dos palcos em 1936 Vladimir Horowitz alegou: “Eu tinha um bocado
de coisas para refletir. Uma pessoa não pode passar vida toda tocando
oitavas”. Anos mais tarde em seu livro de memórias, Chasins com-
plementou o que provavelmente não se sentiu à vontade para retru-
car ao temperamental Horowitz naquela ocasião: “Foi um comentário
modesto. As oitavas de Horowitz não eram apenas oitavas. Nem as
suas escalas e notas duplas eram apenas escalas e notas duplas. Elas sempre

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Sérgio Abreu
117
e seu tempo

dramatizavam a música que ele tocava. Elas possuíam uma intensidade


controlada e insuperável por outros pianistas”.11 (grifos nossos) In-
tensidade controlada. Termo perfeito para definir a arte de Sérgio
Abreu.

4) Ornamentos.
Ornamentos devem soar como melodias e não com o que nosso
inesquecível mestre Jacques Klein definia irritadíssimo como “trina-
do campainha”.12 Neste exemplo os ornamentos e trinados de Sérgio
Abreu são a comprovação definitiva de que ornamentos e trinados
são música e não adereços criados para mera demonstração de des-
treza. Sugerimos ouvir o compasso 60 do primeiro movimento ou o
compasso16, a cadenza do segundo movimento Romanze. Neste caso
uma descrição por escrito nos escapa completamente, trata-se de algo
próximo da voz humana, a execução do maestro tem algo de inefável
e palavras não lhe fariam justiça. No entanto não podemos deixar de
imaginar como a execução da música de Chopin poderia se beneficiar
de cadências ou trinados executados neste nível de ourivesaria.

Figura 17: Ex 4 -
PaganiniPaganini Grand
Sonata para violino e violão
versão para violão solo
de Sérgio Abreu primeiro
movimento compasso 60.

Figura 18: Paganini Grand


Sonata para violino e
violão versão para violão
solo de Sérgio Abreu
segundo movimento
Romanze compasso 16.

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Sérgio Abreu
118
e seu tempo

5) Rubato.
Questão das mais espinhosas da qual todos parecem ter uma te-
oria pessoal. Heinrich Neuhaus talvez o maior pedagogo do piano no
século XX, pregava aos seus alunos que rubare significa “roubar” e
que “se roubarem tempo e não o restituírem depressa, serão (consi-
derados) ladrões; se inicialmente acelerarem, em seguida terão que
desacelerar; então permanecereis uma pessoa honesta e estareis em
grado de restituir o equilíbrio e a harmonia.”13
Já Abram Chasins menciona que Chopin “sofria agudamente
aquele dia funesto em que ‘rubato’ foi traduzido como significando
‘roubado’ e quando um incrível número de executantes insensíveis,
procederam em confundir estética com moralidade através da tenta-
tiva tola de devolver numa medida métrica exatamente o que havia
sido ‘roubado.’”14
Em sua execução da Grand Sonata Sérgio Abreu em momento al-
gum se prende ao controverso preceito moral anteriormente men-
cionado, seu rubato é calculado estritamente como um efeito poético,
o que foi perdido permanece perdido, mas a maneira etérea como o
maestro prossegue com o seu discurso musical após um rubato tem
algo muito mais próximo da fala humana do que da mera reposição
matemática da métrica. Neste ponto Sérgio Abreu parece estar ple-
namente em sintonia com os rios de tinta que os contemporâneos de
Chopin usaram para descrever seu sutilíssimo rubato e comprovada-
mente com o celebre rubato do grande pianista polonês Ignacy Pade-
rewsky.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Figura 19: Ex 5 - Paganini


Grand Sonata para violino
e violão versão para violão
solo de Sérgio Abreu
primeiro movimento
compassos 6-8..

Figura 20: Paganini Grand


Sonata para violino e
violão versão para violão
solo de Sérgio Abreu
primeiro movimento
compassos 34-35.

Figura 21: Paganini Grand


Sonata para violino e
violão versão para violão
solo de Sérgio Abreu
primeiro movimento
compassos 14-16.

6) Vibrato.
Este efeito tão presente e imprescindível nos instrumentos de
corda é também conhecido como Bebung no clavicórdio é tido como
inviável num piano atual. No entanto verdadeiros magos da sonori-
dade como Michelangeli não desistiram de criar mais esta “ilusão”
– como a definiu Jeremy Siepmann na epígrafe do nosso texto – ao
piano. Um exemplo dos mais perfeitos pode ser encontrado na peça
Pierrot do Carnaval op. 9 de Schumann gravação EMI. A esse respeito
o crítico Piero Ratallino assinala que “ao fim de Pierrot Benedetti Mi-
chelangeli obtém com o pedal um leve efeito de rebatimento do mi
bemol baixo, retomando o Bebung (efeito) do qual se diz foi um mes-
tre Carl Tausig.”
O efeito, acreditamos, é demasiadamente sutil para ser captado
por toda uma plateia numa sala de concerto ao vivo, mas como pode-
mos verificar foi fielmente captado pelos microfones.15

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Figura 22: Ex 6 - Schumann


Carnaval op.9 Pierrot
compassos 46-50

7) Método de memorização e interpretação através do Método Leimer-


Gieseking.
De acordo com seu biografo Ricardo Dias e comprovado por um
programa impresso,16 Sérgio Abreu iniciou seus estudos musicais ao
piano. Sua excelente professora Monina Távora orientou os irmãos
Abreu a estudar por um método hoje praticamente esquecido: o Mé-
todo Leimer-Gieseking, baseado no estudo mental e na memorização
sem o uso do instrumento. O depoimento de Eduardo Fernández co-
letado por Ricardo Dias relata um flagrante uso deste método que é
digno de nota:

“Tive oportunidade de conversar um pouco com Sérgio, mas eu estava real-


mente intimidado demais, além do que ele estava sempre estudando. Já Edu-
ardo não. Ficava passeando pelo salão de Santórsola como se estivesse admi-
rando uma exposição de quadros invisíveis, com as mãos atras das costas – os
dedos moviam-se, e Santórsola me dizia: ‘É que ele estuda assim.’”

Este método permitiu a Walter Gieseking manter em sua memó-


ria um repertorio imenso e sua mente sempre aberta e disponível a
estreia de obras novas. Infelizmente por algum motivo difícil de ser
explicado à luz da lógica ˗˗, mas onipresente em termos aparente-
mente tão caros a alguns pedagogos profissionais tais como “biogra-
fia empoeirada”, “método ultrapassado”, “eurocentrismo” etc. ˗˗ este
método genial foi praticamente cancelado dos currículos das escolas

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Sérgio Abreu
121
e seu tempo

de música. O resultado é lamentável: jovens pianistas recém-forma-


dos após oito períodos de graduação com um repertório restrito a
pouco mais de oito obras, repetindo em concursos e em recitais ano
após ano exatamente as mesmas obras, ad nauseam. Acrescenta-se
que repertorio tão restrito praticamente inviabiliza a possibilidade
de substituir em tempo hábil um músico subitamente incapacitado. A
história da performance nos demonstra que muitos artistas consagra-
dos tiveram sua primeira grande oportunidade ao substituir a curto
prazo um grande nome. A metodologia da professora Monina Távora
e a carreira meteórica dos irmãos Abreu falam por si só.

8) Uso do metrônomo.
O estudo lento e concentrado era talvez o mais obvio segredo da
arte de Sérgio Abreu. Entre diversas referências à maneira de estu-
dar lentamente por diversos artistas em depoimentos na biografia de
Ricardo Dias selecionamos este diálogo que é todo uma simplicidade:

“E o método era sempre o mesmo. Tocar o mais devagar até não haver erro
nenhum. Subir o andamento até o ponto em que não haja mais erros, e assim
sucessivamente. Não subir o andamento enquanto o anterior não estiver só-
lido.

– Mas Sérgio isso é o óbvio...

– É, mas as pessoas não entendem isso. Querem que o segredo esteja na unha,
no tamanho do banquinho, nos “segredos”, afinal estudar dá um trabalho...17

Corroborando esta obviedade – que irresistivelmente nos remete


ao célebre “obvio ululante” de Nelson Rodrigues – com uma contra-
partida pianística, fomos encontrar em Rachmaninoff um exemplo
ilustre. Numa visita ao maestro, Abram Chasins relata uma experien-
cia à beira do surreal:

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Sérgio Abreu
122
e seu tempo
“Certa feita marquei um encontro com ele em Hollywood. Chegando na hora
marcada ao meio-dia, ouvi um som ocasional de piano quando me aproximei
da cabana. Fiquei do lado de fora da porta, incapaz de acreditar no que ou-
via. Rachmaninoff estava praticando o estudo de Chopin em terças, mas num
ritmo tão lento que demorei para reconhecê-lo porque muito tempo se pas-
sava entre cada toque de um dedo para o seguinte. Fascinado, observei esta
notável execução; vinte segundos por compasso foi seu ritmo por quase uma hora
enquanto eu esperava cravado no lugar, incapaz de tocar a campainha. Tal-
vez essa forma de desenvolver e manter um mecanismo infalível explicasse
seu amargo sarcasmo em relação aos colegas que praticavam seus programas
“uma vez de leve” entre os concertos.18” (grifos nossos)

Considerando o pianismo titânico de Rachmaninoff -comprova-


do por suas gravações- e o nível transcendental das gravações ao vivo
dos irmão Abreu, os benefícios obtidos através do estudo lento e dis-
ciplinado com o auxílio do metrônomo dispensam maiores compro-
vações.

9) Autoridade artística para recriar e até mesmo apurar uma transcrição em


relação ao original.
Glenn Gould assim se referiu à sua famosa versão pianística do
preludio dos Meistersinger de Wagner. “Eu simplesmente decidi que,
por exemplo, é impossível manter um acorde no piano por uma du-
ração indefinida sem que o som se disperse - e, em qualquer caso,
não se pode esperar que a dinâmica desse acorde cresça como pode
se for tocada por uma formação de cordas”, explicou ele em uma en-
trevista com Ken Haslam, que foi publicada como encarte da grava-
ção wagneriana. “Então, nesses casos, ativei as vozes intermediárias,
deixando-as imitar sempre que possível as intenções dos motivos de
Wagner, espalhando os motivos conforme eles chegam – para man-
ter um senso realista de tempo e movimento” [...] “Normalmente os
primeiros sete minutos se transcorrem sem incidentes, e depois nós
nos dizemos, ‘okay que temas queremos deixar de fora esta noite? [...]
para os últimos três minutos, nos quais ele [Wagner] reúne todos os
temas, para executá-los de maneira correta são necessárias pelo me-
nos três mãos, ou preferencialmente quatro [...] Portanto para estes

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Sérgio Abreu
123
e seu tempo

últimos três minutos simplesmente compus uma parte como primo,


gravei-a e usei um fone de ouvido gravando e sobrepondo aqui e ali a
voz faltante”.19
Da arte de Sérgio Abreu neste aspecto encontramos exemplo
infinitamente superior, uma vez que foi realizado sem o auxílio de
quaisquer recursos tecnológicos. No CD Estampas do grupo Quaterna-
glia – do qual Sérgio Abreu foi também o produtor – em dado momen-
to do ensaio o grupo elogiou a beleza de um trecho da Fuga ao que o
maestro respondeu com simplicidade: “Essa frase não é do Villa, tive
de preencher para conservar a presença da harmonia.”20

10) Concentração total e sem concessões na sua missão de músico e


intérprete.
Este aspecto pode facilmente ser confundido num primeiro mo-
mento com alienação, mas na verdade está presente – em maior ou
menor dose – na vida de todo artista.
Sérgio Abreu viveu toda sua vida em profundo estado de con-
centração, seja em sua atividade de intérprete como em sua carreira
de luthier. Relativo à sua capacidade de abstração de tudo o que não
é música ou estudo encontramos em Ricardo Dias uma passagem im-
pressionante. Ao tentar obter detalhes maiores detalhes e impressões
sobre a estreia do Duo Abreu na gravadora CBS teve lugar o seguinte
diálogo:
– Mas como isso, dois garotos, de repente numa das maiores gravadoras do
mundo?

– Nós não tivemos uma participação nisso, foi tudo com meu pai e Dona Mo-
nina.

– Então você não se lembra de nada? Um belo dia era contratado pela CBS e
pronto?

– É mais ou menos isso mesmo...

– Mas não deu nenhuma emoção tipo: “Puxa fui contratado pela CBS!!!!”?

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Sérgio Abreu
124
e seu tempo
– Hummm... Não.

– Nada?

– Eu tenho uma lembrança tão nebulosa deste período...

– Tem algum período em que tuas lembranças não sejam nebulosas?

– Hummm... Não.

– Sérgio, foi tua estreia com orquestra, isso não acontece todo dia!

– É, às vezes acontece que eu estou num lugar e não presto muita atenção. Eu
estou dentro de mim o tempo todo.21(grifos nossos)

A última frase nos revela bem mais do que aparenta num primei-
ro momento. Ao estudarmos as biografias dos grandes artistas cons-
tatamos que a obsessão, a capacidade de abstração de tudo aquilo que
pode interferir no processo criativo, a noção de tempo totalmente
subordinada às necessidades artísticas do momento, está presente na
ordem do dia. Esta capacidade de abstração diante de tudo aquilo que
não representa um crescimento artístico a reencontramos numa se-
vera admoestação que Edwin Fischer fez a um de seus alunos ao tér-
mino de um de seus célebres cursos de verão:

“Certamente você compreendeu (neste) verão que nada, nem família, nem ou-
tros interesses, nem especulações modernas devem impedi-lo de construir aquilo que
é fundamental: um repertório clássico, trabalhado com o maior rigor e maior
precisão. Só repito porque o esquecemos.”22(grifos nossos)

Nestes tempos atuais em que imperam as mídias sociais, em que


artistas se afligem com seu número de “seguidores”, com a quantida-
de de “curtidas” e com o receio de ser “cancelado”, receio este que
paira tal qual espada de Dâmocles, e que – digamo-lo de maneira cla-
ra e inequívoca – em momento algum da história das Artes impediu
qualquer artista de valor de se movimentar contra a corrente seja
abraçando a vanguarda ou reafirmando a tradição, ignorando olim-
picamente a opinião pública e tendo como mantra a frase do bardo:

REVISTA VÓRTEX - Série Ebooks | Volume 1


Sérgio Abreu
125
e seu tempo

“acima de tudo sê fiel a ti mesmo”, a intransigência, a interiorização


e a dedicação exclusiva de Sérgio Abreu podem nos ensinar uma lição
inestimável.

[1]SIEPMANN, Jeremy. Texto do encarte do CD Rubinstein piano concerto n.4 com Chura Cherkassky, Royal Phimarmonic
Orchestra sob a regência de Vladimir Ashkenazy. London: Decca, dezembro, 1994. “The piano is perhaps the ultimate
box of tricks in the history of musical instruments. The art of mastering its idioms is the art of illusion, forever denying
its indeniable percussive nature. It is an instrument in which every note, willy-nilly, begins at its loudest and then rapi-
dly decreases in volume- an innately unmusical phenomenon without parallel in the world of voices, strings or wind.
Oh, yes? Just tell that to Chura Cherkassky.”
[2] DIAS, Ricardo. Sérgio Abreu uma biografia. Rio de Janeiro: Editora do autor, 2015
[3] PAGANINI, SOR. Sérgio Abreu interpreta Paganini e Sor. New York: Ariola, 1980, LP.
[4] Gloria Maria da Fonseca Costa, assistente de Jacques Klein, foi aluna de Alexander Siloti e Bernardo Segall e nos en-
cantava quando relatava ter assitido Rachmaninoff ao vivo no Carnegie Hall e conhecido pessoalmente o legendário
aluno de Liszt Moritz Rosenthal. Vinda de professora tão experiente e vivida, sua descrição da arte dos irmãos Abreu
nos causou uma profunda impressão.
[5] RATTALINO, Piero. Da Clementi a Pollini dueccento anni com i grandi pianisti. Segunda edição. Florença:Editora Giun-
ti/Martello. 1984. p.423 “[...] non é detto non ci siano altre possibili letture, ma non saprei immaginare di diverse, né
le desidererei”.
[6] Existe uma extensa literatura dedicada à evolução dos instrumentos de teclado. Apenas para citar três exemplos de
fácil acesso sugerimos GILLESPIE, John. Five Centuries of Keyboard music. New York: Republicação Dover Publica-
tions Inc,1965. GAYMAR, Konstantin. Historia del Piano Y de sus grandes maestros. Buenos Aires: Edición Centurión
Buenos Aires, 1945. e LOESSER, Arthur. Men, Woman and pianos a social history. New York: Dover Publications, 1954.
Recomendamos vivamente este último, trata-se de uma obra excepcional que se mantem atual como em seu lança-
mento e foi leitura de cabeceira de ninguém menos que Vladimir Horowitz.
[7] O novo instrumento criado por Bartolomeu Cristofori aparece mencionado e acompanhado de detalhada planta de
seu mecanismo em documentos da época já no ano de1700.
[8] BRENDEL, Alfred. Nachdenken über Musik. 6ª Edição, München/Zürich: R.Piper & Co Verlag, 1976, p. 14: “Wenn man
versucht, auf Beethovens Erard-Flügel aus dem Jahre 1803 in der Musikinstrumentensammlung des Kunsthistoris-
chen Museums Wien zu spielen, so wird es sofort Klar: Klang, Dynamik und Spielart haben sich mit unseren heutigen
Flügeln erstaunlich wenig gemein. Der Klang jedes einzelnen Tones hat einnen deutlichen Ansatz, er ist innerhalb
seiner intimen Grenzen belebter und biegsamer und verändert sich stärker während des Klingens. Der Registerunters-
chied in Baβ, Mittellagen, und Höhe ist bedeutend (poliphones Spiel!) Die Höhe klingt kurz und dünn und wiederstrebt
der Dynamik, sie sträubt sich gegen eine Kantilene, die sich über ein zartes piano erheben will. Selbst in den klaren
und durchsichtigen, etwas schnarrenden Baβlage ist die dynamische Spanne um vieles geringer als auf unseren Ins-
trumenten. Man begreift das ständige Begleitpiano im Orchestersatz der Klawierkonzerte Beethovens - obwohl gewiβ
auch der Orchesterklang seiner Zeit den heutigen nicht allzu ähnlich gewesen ist. Im Hinblick auf den Kraftverbrauch
des Spielers verhält sich der Erard zu unserem Steinwey wie ein Feinmechaniker zu einem Möbelpacker”.
[9] Precedentes ilustres existem, não seria em absoluto a primeira nem a última vez que um pianista confessa candida-
mente que o seu ideal artístico, seu modelo de sonoridade nunca foi outro pianista e sim um outro instrumentista
ou um cantor. É bem conhecida a obsessão de Vladimir Horowitz para com o barítono Mattia Battistini de quem
admirava as longuíssimas frases realizadas por meio de uma única respiração, a de Arturo Benedetti Michelangeli
com o violinista Bronisław Huberman de quem admirava a sonoridade e entoação perfeitas ou a predileção de Svia-
toslav Richter por grandes cantores, em especial o barítono Dietrich Fischer-Dieskau com quem realizou concertos e
gravações antológicas.
[10] HOROWITZ, Joseph. Conversazioni com Arrau. Milão: Arnoldo Mondadori,1984, p. 213. “E suggeriva che ci si com-
porta un po’ come un suonatore di vibrafono che sceglie bachette di durezza diversa per far risaltare le note di un
accordo.”
[11] CHASINS Abram. Speaking of pianists... New York: Alfred Knopf, 1967. p.141. “I had a lot of things to think about,” he
said. “One cannot go through life playing octaves.” “It was a modest comment. Horowitz’s octaves are not just octaves.
Nor are his scales and double notes just scales and double notes. They always dramatize the music he plays. They
have a controlled intensity unmatched by any other pianist.”
[12] Esta citação provém de nossas aulas e convívio com Jacques Klein. Ele a disse diretamente ao autor deste texto por
ouvir deste no concerto “Imperador” de Beethoven um perfeito exemplo de “trinado campainha.” Escusado dizer que
40 anos depois, a mera lembrança da irreverência e do temperamento de Jacques Klein ainda nos faz sorrir.
[13] NEUHAUS, Heinrich. L’Arte del pianoforte. Milano: Rusconi, 1985, p.62. “rubare vuol dire che se ruberete del tempo e
non lo ristituerete in fretta, sarete un laddro; se inizialmente accelerate, in seguito dovrete rallentare; allora rimanerete
una persona onesta e sarete in grado di ristabilire l’equilibrio e l’armonia.”
[14] CHASINS Abram. Speaking of pianists... New York: Alfred Knopf, 1967, p.223. “He suffered acutely from the effects
of that day when ‘rubato’ was discovered to mean ‘robbed’, and when an incredible number of insensitive performers

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Sérgio Abreu
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e seu tempo
proceeded to confuse aesthetics with morality by ludicrous attempts to ‘restore’ in exact rhythmic measure what they
had previously ‘stolen.’”
[15] RATTALINO, Piero. Da Clementi a Pollini dueccento anni com i grandi pianisti. Segunda edição. Florença: Editora
Giunti/Martello.1984, p.349. “Alla fine di Pierrot Benedetti Michelangeli ottiene com il pedale un efetto di lieve ribatti-
tura del mi bemolle basso, riprendendo il Bebung in cui si dice, era maestro Karl Tausig”.
[16] DIAS, Ricardo. Sérgio Abreu uma biografia. Rio de Janeiro: Editora do autor, p.240
[17] DIAS, Ricardo. Sérgio Abreu uma biografia. Rio de Janeiro: Editora do autor, p.193.
[18] CHASINS Abram. Speaking of pianists... New York: Alfred Knopf, 1967, p.44. “Once I had an appointment to spend
an afternoon with him in Hollywood. Arriving at the designated hour to twelve, I heard an occasional piano sound as
I approached the cottage. I stood outside the door, unable to believe my ears. Rachmaninoff was practicing Chopin’s
étude in thirds, but at such a snail’s pace that it took me a while to recognize it because so much time elapsed betwe-
en each finger stroke and the next. Fascinated, I clocked this remarkable exhibition; Twenty seconds per bar was his
pace for almost an hour while I waited riveted to the spot, quite unable to ring the bell. Perhaps this way of developing
and maintaining an unerring mechanism accounted for his bitter sarcasm toward colleagues who practiced their
programs ‘once over lightly’ between concerts.”
[19] STEGEMANN, Michael. Texto do encarte da gravação The Glenn Gould Edition Gould conducts and plays Wagner.
Toronto: CD Sony Classical SMK 52650, 1973.
“Ho semplicemnte deciso che ad esempio è impossibile tenere um acordo al pianoforte per uma durata indefinita senza
que il suono si disperda- e in ogni caso non si può pretendere que la dinâmica di quest’accordo cresca come puó fare
se viene eseguito da uma formazione di archi” Spiegò in um colloquio com Ken Haslam, che fu pubblicato come nota
di copertina per l’incisione wagneriana. “E allora in questi casi ho attivato le voci intermedie lasciando che imitassero
là dov’era possibile, le intenzioni dei motivi di Wagner, distribuendo i motivi man mano che arrivano- per conservare
um senso realístico del tempo e del movimento.” [...] “Di solito i primi sette minuti passano senza incidenti, e poi si
dice, ‘okay, quali temi vogliamo lasciar fuori stassera?’ [...] Per gli ultimi ter minuti, nei quali egli riporta tutti i temi,
per eseguirli in maneira adatta ci vogliono almeno ter mani, o preferibilmente quattro. [...] Quindi per questi ultimi ter
minuti ho semplicemente scritto uma parte di primo l’o registrata e mi sono messo uma cuffia d’ascolto registrando
e sovrapponendo qua e là la voce mancante.”
[20] QUATERNAGLIA. Estampas. Arizona: 2007. O trecho mencionado se encontra entre 2’16” e 2’25” da faixa 3 da obra
Bachianas Brasileiras n.1.
[21] DIAS, Ricardo. Sérgio Abreu uma biografia. Rio de Janeiro: Editora do autor, p.93.
[22] MEYER- JOSTEN Jurgen. Musiker im Gespräch. Frankfurt: Henry Littolff’s Verlag unter Nr. EP8455 für Edition Peters
aufgenommen,1981, p.4. “Gewiβ haben Sie im Sommer gesehen, daβ nichts, weder Familie noch andere Interessen,
noch zu moderne Spekulationen Sie abhalten dürfen, das was not tut, aufzubauen: ein klassisches Repertoire, mit
groβter Strenge und Exaktheit ausagerbeitet. Ich wiederhole das nur, Weil man es vergβit.”

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Sérgio Abreu: a escuta em busca da perfeição


Glauber Rocha

Sérgio sempre foi conhecido por ser um violonista e luthier ex-


tremamente perfeccionista, mas talvez a ideia de entender Sérgio
como ouvinte ainda não tenha sido tão explorada por seus interlocu-
tores em entrevistas públicas ou algo do gênero.
Não tenho a intenção de me aprofundar sobre o tema, mas acre-
dito ser de extrema importância mostrar um pouco do gosto pessoal
do Sérgio como ouvinte perfeccionista que foi e de como ele resolvia
´´problemas´´ em gravações que admirava.
Gostaria de dividir com vocês três e-mails que o Sérgio me en-
viou. O contexto do primeiro email é sobre a interpretação de uma
Sonata de Beethoven com os pianistas Murray Perahia e Emil Gilels.
Como resposta a minha mensagem, Sérgio contou que estava fazendo
uma edição completa nas gravações das Sonatas de Beethoven com o
pianista Artur Schnabel, com o intuito de escutar com perfeição téc-
nica tais obras com o intérprete que ele tanto admirava. Se pararmos
para refletir e entender o que ele estava fazendo aqui, teremos uma
compreensão melhor de como funcionava um pouco a mente brilhan-
te do Sérgio em busca dessa ´´perfeição´´. De brinde, soube da imensa
admiração que ele tinha por Schnabel e Backhaus.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo
21 de dez. de 2020, 12:43

´´Oi Glauber,

Duas coleções completas monumentais, na minha opinião, são as do Artur


Schnabel da década de 30 e segunda gravação feita pelo Wilhelm Backhaus
no final da década de 50 e década de 60. A coleção do Backhaus tem completa
no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=7U726VrX-U0

A Waldstein e a Appassionata dessa coleção do Backhaus são minhas grava-


ções favoritas dessas duas sonatas.

No entanto, na maioria das Sonatas ninguém chegou sequer perto da gran-


deza de compreensão musical do Schnabel. Um exemplo é a gravação dele da
Sonata Op. 109 que considero sublime (link do YouTube abaixo):

https://www.youtube.com/watch?v=5eKGHvoh93M

Foram gravações de 78 rpm feitas em um único take e em muitas delas há


esbarrões feios de técnica (porém não é o caso dessa Op 109, que está deslum-
brante em todos os sentidos). Eu fiz para mim uma edição dessas gravações
do Schnabel (que ainda não completei) pois nas Sonatas em que há repetições
é possível usar as melhores partes para corrigir uma grande quantidade dos
esbarrões de técnica. Se te interessa posso enviar pelo WeTransfer assim que
eu tiver um tempinho sobrando.

Abraço,

Sérgio´´

O segundo email foi em resposta a uma gravação de Michelange-


li: (https://www.youtube.com/watch?v=y2n9Is3IOVI)
A resposta, além de elogiosa, apontou um pequeno esbarrão:

27 de abr. de 2018, 19:35

“É impressionante como gritam duas sujeirinhas minúsculas no harpejo final


- por causa da perfeição inacreditável de tudo que veio antes. Um lembrete
de que era um ser humano, apesar de tudo o que conseguia fazer…

Assisti dois recitais memoráveis dele no Teatro Municipal aqui do Rio de Ja-
neiro na década de 60”.

O terceiro email foi relacionado ao oboísta Heinz Holliger, em


uma das minhas visitas ao Sérgio, ele estava escutando lindos arran-

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Sérgio Abreu
129
e seu tempo

jos desse oboísta. Sérgio o admirava muito, fiquei realmente encan-


tado com o que escutei e, um tempo depois, enviei um email pedindo
ao Sérgio que me passasse mais informações.

23 de mai. de 2017, 13:52

“É oboista, Heinz Holliger.

Ele continua em plena forma, mas as gravações dele ainda jovem são fantás-
ticas

Alguns links:

https://www.youtube.com/watch?v=Cn_WtQ-sH-8

https://www.youtube.com/watch?v=ZbxYtphXZME

(eu tenho esse LP, creio que foi o primeiro dele para a Philips, Concertos de
R. Strauss e Mozart com Edo de Waart regendo, extraordinário, do início da
década de 70).

Uma entrevista curta, mas interessante:

https://www.youtube.com/watch?v=3fqGyvho-Bs

Aqueles arranjos de Bach são dos Trio Sonatas para órgão, BWV 525 a 530, um
CD da década de 80. Estão no YouTube, abaixo o BWV 526:

https://www.youtube.com/watch?v=WbhWAReu2zU

Por esse link você ouve os outros. Foi daqui que eu baixei.

Vale a pena ouvir os Concertos de Bach, Handel, Vivaldi.

Ele também é compositor, de estilo extremamente moderno.

Vale a pena ouvir o Concerto para oboé e harpa que o Henze escreveu para
ele e a mulher dele (que era excelente harpista e faleceu há pouco tempo)

https://www.youtube.com/watch?v=-J__TrbevCw ”

Querido amigo Sérgio, muito obrigado por tantas conversas,


conselhos e a grande inspiração que você é, sua presença na Terra foi

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Sérgio Abreu
130
e seu tempo

abençoada, nós temos a obrigação de conhecer a fundo todo o seu tra-


balho como músico e luthier. Obrigado também por ter sido um ser
humano tão gentil e nobre, serei sempre grato à linda oportunidade
que tive de ser seu amigo, foi uma honra.
Pensei muito se divulgaria esses três e-mails, por ser algo que o
Sérgio escreveu no privado, mas acredito fortemente estar fazendo a
coisa certa: mostrar aos que o admiram um pouco do seu gosto mu-
sical e de como ele fazia para tentar atingir a perfeição de escuta em
gravações que amava.

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Sérgio Abreu
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“Espantar-se; não parar”


João Camarero

Sempre com olhar atento e – principalmente – generoso, Sérgio


Abreu era como uma espécie de Midas do violão: tudo que ele punha
a mão – seja tocando, confeccionando instrumentos ou mesmo o con-
tato com algum músico que o visitava – virava ouro.
Não vou rememorar as célebres histórias que já foram tão re-
lembradas, ou mesmo falar da importância de Sérgio músico ou lu-
thier, também já devidamente registrada. Acredito que minha mo-
desta contribuição pode ter mais valia falando do ponto de vista da
convivência afetiva, do aspecto humano, do carinho e da sensibilida-
de: estas sim, qualidades primeiras para qualquer grande músico.
Em ensaio sobre a então recém-inaugurada Brasília, Clarice Lis-
pector disse que os “arquitetos não pensaram em construir beleza,
seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inex-
plicado”. Sérgio ergueu seu espanto ao longo da vida. Sua busca, se
fosse apenas pela beleza, seria fácil. Mas foi além: foi a beleza da im-
perfeição, a beleza do mistério. A incessante busca pelo profundo.
Distribuiu amor para aqueles que o cercavam, conhecimento para
aqueles que o buscavam. De seus ensinamentos, quiçá o mais bonito:
espantar-se; não parar. Cultivou o espanto até os seus últimos dias. Se
cada um que se aproximou de Sérgio carregar um pontinho dessa luz,
garantiremos uma Terra iluminada por muito tempo.
Não passo um dia sequer sem pensar no meu querido amigo.

João Camarero

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Sérgio Abreu: lição de humildade e generosidade


que nunca será esquecida
João Luiz

A morte de Sérgio Abreu teve um grande impacto no meio vio-


lonístico mundial e de certa maneira sua ausência vai ser cada vez
mais sentida na medida em que o violão de concerto brasileiro siga
evoluindo. Sobretudo no Brasil, a influência de Sérgio é tão marcan-
te que muitos de nós nos sentimos “órfãos”. O Sérgio mentor (termo
nunca usado por ele, mas como muitos violonistas o consideram) era
acima de tudo um exemplo de humildade e generosidade. Seu coman-
do técnico e intelectual, sua sensibilidade e devoção à musica são ape-
nas algumas das características que fazem de Sérgio um dos músicos
mais impressionantes de nosso tempo.
Para falar sobre o Sérgio violonista e luthier seria necessário um
livro inteiro, algo que já foi feito por seu biógrafo, Ricardo Dias. Po-
rém, a comunidade mundial de violonistas, por meio de tributos nas
redes sociais e artigos nas principais publicações violonísticas, já está
se encarregando da tarefa necessária de informar às novas gerações
a respeito do legado de Sérgio Abreu.
Em meu texto, optei por compartilhar um pouco sobre minha
convivência e amizade com Sérgio, um gigante da música que conhe-
ci quando tinha 18 anos e com quem, ainda poucos dias antes de sua
internação derradeira, fazia planos para um encontro no Rio de Ja-
neiro.
Eu tive o prazer de conhecer o Sérgio quando tinha 18 anos, em
São Paulo, no Seminário de Violão Souza Lima, evento organizado

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

por meu professor Henrique Pinto. Pouco tempo depois, toquei um


concerto solo no Festival de violão de Campo Grande, e ali estava o
Sérgio no concerto. Eu lembro de me atrever a fazer muitas pergun-
tas ao Sérgio, e ele não só as respondeu graciosamente, mas também
me deu muitas sugestões sobre o que eu tinha que melhorar como
violonista. Desde então, passei a fazer visitas frequentes ao Sérgio
no Rio, e ele, sempre muito generoso, fez questão de me hospedar
em seu apartamento. A partir desse nosso primeiro contato, Sérgio
acompanhou de perto tudo o que eu fazia, desempenhando um papel
fundamental no meu desenvolvimento como violonista, professor e
compositor. Sendo mais específico, Sérgio opinava no meu repertó-
rio e em como interpretá-lo, sempre opinava sobre o som dos meus
álbuns e meticulosamente estudava minhas composições, a ponto de
sugerir mudanças.
Considero o Sérgio um dos meus grandes mentores. Tenho a
maior admiração por ele como violonista e também pelo duo Abreu,
ambos pilares da minha formação como músico. Sérgio sempre este-
ve à disposição para me aconselhar e sempre se mostrou muito en-
tusiasmado em poder ajudar. Uma das qualidades do Sérgio que mais
me chama atenção é o seu poder de síntese: com seu jeito “econômi-
co”, em poucas palavras explica as coisas mais complexas com muita
simplicidade e clareza. Em todos os meus encontros com o Sérgio, ele
falava duas ou três coisinhas quando eu tocava para ele, e aquilo que
ele falava continua me servindo até hoje. Essa foi sempre a minha im-
pressão: eu tocava várias peças para o Sérgio, por muitas horas, e ele
falava duas ou três palavras. O que ele falava, resolvia.
Acho que não é uma coincidência que o Sérgio deixou de se apre-
sentar e se decidiu por uma carreira de construtor de violões. Por
meio dos violões que construiu, continuou fazendo música com o
mesmo nível de excelência do intérprete que foi. Estou convencido

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

que os violões do Sérgio são uma extensão do Sérgio violonista: inte-


gridade, sua busca pela perfeição, a sonoridade ideal e a musicalida-
de são qualidades que os violões do Sérgio possuem e que, a meu ver,
os destacam dos demais.
Estar na companhia do Sérgio era uma mistura de satisfação,
despojo e a sensação de ser um privilegiado, por ser considerado
amigo de uma figura humana superior. Não é um exagero dizer que
sempre, após uma visita ou conversa com Sérgio, me sentia como
uma “criança que ganhou um presente”.
Depois que me mudei para os Estados Unidos, tive que encon-
trar uma maneira de poder estar com o Sérgio, mesmo que com me-
nor frequência. A solução era óbvia: encomendar violões novos do
Sérgio assim que fosse possível. Tenho 7 violões Abreu e todos são
instrumentos maravilhosos. Desde que me levo a sério como violo-
nista, tenho tocado em violões Abreu, incluindo todas as minhas gra-
vações e concertos. Todo o trabalho que o meu professor fazia de
ensinar os alunos a tirar som do violão estava diretamente ligado ao
violão Abreu. O som do Duo Abreu era o modelo, e o violão do Sérgio
era a ferramenta para atingir aquela sonoridade ideal (e devo dizer
aqui que meu professor Henrique Pinto considerava o Sérgio Abreu o
maior violonista de todos os tempos, com quem Henrique aprendeu
muito sobre sonoridade). Encomendar novos violões do Sérgio e po-
der discutir sobre possíveis mudanças na construção de seus instru-
mentos, não só possibilitou uma reaproximação com o Sérgio, mas
também iniciou um novo capítulo de nossa amizade. Com esses novos
violões, ambos - Sérgio e eu - nos deparamos com muitas questões e
surpresas em relação aos resultados desses instrumentos, o que até
agora tem superado expectativas.
Para gerações e gerações de violonistas, especialmente os que
tiveram a honra de conhecê-lo ou privar de sua amizade, Sérgio nun-

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

ca será esquecido. A figura humana do Sérgio é tão grande que ele


será sentido a cada nota, a cada acorde, a cada reflexão, a cada ques-
tionamento: vai continuar nos acompanhando (e, por que não dizer,
nos guiando) no caminho infinito da música.
Só tenho a agradecer ao Sérgio por toda sua generosidade e
atenção, seu incentivo e confiança no meu trabalho, por construir os
violões mais musicais que conheço, e por continuar sendo um mode-
lo absoluto de excelência e bondade.

João Luiz, São Paulo, 1 de julho de 2023.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Relato de experiência
Luciano Lima

Minha geração pôde acompanhar a trajetória de Sérgio Abreu se


estabelecendo como um de nossos maiores luthiers, mas, infelizmen-
te, não teve idade suficiente para vê-lo tocar, nem solo e tampouco
em duo com seu irmão, Eduardo. No entanto, através de relatos de
professores e colegas mais velhos, sabíamos dos feitos de Sérgio como
violonista, histórias que se investiam de uma aura mítica, como um
conto de fadas que ouvíamos atônitos. A sensação de alumbramento
nunca passou e era algo que eu precisava conscientemente conter du-
rante meus encontros com Sérgio, sabendo o quanto ele não se sentia
à vontade na condição de ídolo ou celebridade.
Desde meu primeiro encontro com Sérgio, estivemos em conta-
to durante cerca de 20 anos, mas não de forma regular. Na verdade,
poucas foram as vezes que tive a chance de estar com ele. Por isso,
não achei que minha contribuição pudesse ser significativa para o
presente dossiê e que o espaço seria mais adequado a quem realmen-
te teve uma convivência mais próxima. Ao comentar sobre isso, Hum-
berto Amorim me convenceu do contrário, apontando que seria im-
portante justamente para mostrar a relevância do alcance de Sérgio
além de seu círculo. Assim, meu propósito aqui é compartilhar alguns
relatos que talvez possam ser úteis para alguém na comunidade do
violão. Para mim, não só é uma honra poder fazer parte desta home-
nagem, como também uma oportunidade para revisitar os momentos
que pude viver com esta que foi, sem dúvida, a pessoa mais brilhante
que conheci.

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Sérgio Abreu
137
e seu tempo

A primeira vez que estive com Sérgio Abreu foi em 1997, em


Curitiba, quando veio ministrar uma masterclass no Conservatório
John Dowland a convite da professora e violonista Norma Einsiedel.
Eu havia me mudado para Curitiba neste mesmo ano, não era aluno
do Conservatório e não lembro como fiquei sabendo da vinda de Sér-
gio, mas essa era uma oportunidade que jamais poderia perder. Era
uma manhã chuvosa, dia típico da capital paranaense, e desci do ôni-
bus a poucas quadras do Conservatório com o guarda-chuva em uma
mão e o estojo do violão na outra. Ao abrir a porta percebi que tinha
sido o último a chegar e me deparei com a sala cheia, Sérgio sentado à
frente e todos naquele impasse sobre quem tocaria primeiro. Alguém
disse: “quem chegou por último começa!” Adorei a ideia, sempre pre-
feri tocar primeiro nas masterclasses para não ficar alimentando o
nervosismo. Peguei o violão Di Giorgio que era da minha mãe e confe-
ri a afinação. Sérgio perguntou qual peça eu iria tocar, era a Sonata Op.
15, de Fernando Sor. Tinha uma cópia da edição da época e perguntei
se ele queria a partitura, mas educadamente respondeu que não pre-
cisava. Após terminar, ele fez as mesmas duas perguntas que faria
para todos: “por que você está tocando essa peça?” e “quais são as
suas dúvidas?” São questões aparentemente simples, mas carregadas
de muita sabedoria, algo que só entendemos plenamente mais tarde.
Como se dá e o que orienta a escolha do seu repertório? Quais são
os motivos que o levam a tocar uma determinada peça? Como ela se
encaixa no programa que está preparando? Qual é o seu envolvimen-
to com o estilo, a linguagem musical da peça e/ou do compositor?
Quanto às dúvidas, se você não sabe o que precisa ser melhorado, fica
difícil direcionar o estudo. No meu caso, a primeira pergunta era fácil
de responder, eram peças exigidas na prova de admissão da Escola
de Música e Belas Artes do Paraná. Já a segunda, eu disse que tinha
dúvidas sobre interpretação e Sérgio respondeu: “acho que há alguns

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Sérgio Abreu
138
e seu tempo

problemas técnicos para resolver antes”.


Algo que apontou foi que é preciso deixar a nota soar todo o va-
lor dela antes de saltar para outra posição. Confesso que no momento
fiquei um pouco confuso, achando que já estivesse fazendo isso. Pois
bem, não estava! Foram quatro dias de aulas, de 8 a 11 de outubro de
1997, e tive a chance de tocar outras peças, Fandanguillo, de Turina, e
alguns movimentos da Suite BWV 1006a, de Bach – em tempo: sim, a
prova de admissão da Embap naquela época exigia esse programa. No
Fandanguillo, Sérgio anotou algumas alternativas de digitação:

Figura 23: Fandanguillo


digitação de Sérgio
Abreu (1997).

No último sistema da figura acima, há duas situações de ligado


mecânico descendente com os dedos 4 e 1: Mi – Dó# (terceiro tempo
do primeiro compasso) e Dó – Lá (segundo tempo do compasso se-
guinte). Sérgio explicou que esse é um ligado forte (nessa configu-
ração de terça menor descendente com 4 e 1), praticamente como se
ambas as notas fossem tocadas pela mão direita.

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Sérgio Abreu
139
e seu tempo

Outro detalhe foi em relação aos pizzicatos. Não é colocar a mão


inadvertidamente sobre as cordas, no cavalete, e tocar com um som
abafado. Disse que um bom pizzicato permite que as notas tenham
sustain e mostrou como posicionar a mão direita colocando a “faca da
mão” na “canaleta” (na falta de um termo melhor) entre o rastilho e
o bloco de amarrar as cordas (como se fosse um golpe de karatê1). A
partir dessa posição, bastaria inclinar o suficiente para pulsar as cor-
das. Inclusive fez uma piada sobre o significado do termo, pizzicato,
que quer dizer literalmente “tocar com os dedos”, e a ironia disso no
contexto do violão. Em uma das aulas, outro violonista havia mostra-
do o Preludio da BWV 1006a e lembro de Sérgio ter sugerido tocar com
a terceira corda em Fá sustenido.
Aprovado no processo seletivo, comecei o bacharelado em vio-
lão na Embap em 1998. Pouco depois, eu e o violonista Fabiano Zanin
formamos um duo ao qual nos dedicamos quase que exclusivamen-
te durante os três anos seguintes. Evidentemente, tínhamos grande
admiração pelo Duo Assad, mas os irmãos Abreu eram nossa maior
referência. Isso se refletia em nosso repertório; além de transcrições
próprias, tocávamos peças icônicas para dois violões que, para nós
(e muitos outros, tenho certeza), tornaram-se modelares nas mãos
de Sérgio e Eduardo Abreu: Sonata (Scheidler), Intermezzo de Goyescas
(Granados), Danza de La Vida Breve (Falla), Tonadilla (Rodrigo) etc. Até
hoje seus LPs são itens de coleção e, naquela época, tínhamos somen-
te os dois últimos em fita cassete. No final do ano fomos a São Paulo
para o Concurso Souza Lima e aproveitamos para ir à biblioteca do
Centro Cultural atrás do primeiro disco do Duo Abreu, de 1968, que
não conhecíamos. Ansiosos para ouvir, tivemos que dividir o fone,
uma metade para cada um.
Em 1999, demos um recital no Rio de Janeiro, no espaço Arte Su-
mária, em Santa Teresa. Eu estava com um violão Abreu de um colega

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Sérgio Abreu
140
e seu tempo

de Curitiba que pediu que depois deixasse com Sérgio para revisão.
Foi a segunda vez que o encontrei. Nos primeiros degraus já pude
vê-lo esperando na porta do ateliê, lá no alto, e a extensão da esca-
da foi providencial para controlar a empolgação. Conversamos sobre
violões, ele mostrou algumas madeiras e uma das coisas que lembro
é ele dizendo que já havia desistido de construir violões com som de
instrumento antigo, violão novo vai ter som de violão novo. Então,
perguntou se eu queria conhecer um violão antigo e me apresentou
ao famoso Guttenberg, de 1980, um instrumento incrível construído
por um luthier americano com base na planta do Hauser que perten-
ceu à Monina Távora.
Aproveitei para tirar algumas dúvidas sobre o primeiro movi-
mento da Tonadilla para dois violões, de Rodrigo. Como é de praxe em
obras para violão do compositor espanhol, alguns trechos demandam
ajustes para que possam fluir melhor. Eu havia feito algumas tentati-
vas a partir da gravação do Duo Abreu, mas ainda sem entender exa-
tamente como tocavam. Na passagem abaixo, Sérgio disse algo como:
“coloca o dedo 3 no Dó, na segunda corda, e alterna com o médio”.
Funcionou imediatamente!

Figura 24:Tonadilla (c.


81-82) violão 1 originall
Fonte: elaboração do
autor (editoração da
partitura publicada).

Figura 25:Tonadilla (c.


81-82) violão 1 alternativa
Sérgio Abreu. Fonte:
elaboração do autor.

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Sérgio Abreu
141
e seu tempo

No terceiro tempo, inclusive há notas erradas na partitura pu-


blicada. A solução de Sérgio não só está harmônica e melodicamente
alinhada à parte do segundo violão, mas também à repetição um tom
acima nos compassos seguintes.
O trecho que inicia no compasso 73 normalmente é executado
alternando o dedo indicador (ou médio) para cima e para baixo, algo
mais próximo à técnica de rasgueo do violão espanhol, um aspecto
reforçado pela notação da partitura publicada:

Figura 26: Tonadilla (c.


73-74) violão 1 original.
Fonte: elaboração do
autor (editoração da
partitura publicada).

Sérgio, entretanto, propôs outra forma de organizar o dedilha-


do. Apesar de se afastar um pouco da inflexão “espanholada”, o resul-
tado é uma articulação mais assertiva e, talvez, menos banal:

Figura 27: Tonadilla (c.


73-74) violão 1 alternativa
Sérgio Abreu. Fonte:
elaboração do autor.

Considerando o andamento (semínima = 120) e a extensão (oito


compassos), tocar a versão original (Figura 4) plaqué implicaria em
uma exaustiva repetição de movimento que poderia comprometer a
precisão rítmica. Estou resgatando a alternativa de Sérgio de memó-
ria, já faz mais de 20 anos que não toco a Tonadilla e não anotei o que
ele me disse, por isso não posso afirmar com certeza que seja exata-
mente isso. De qualquer maneira, o princípio é o mesmo, dividir a
articulação de mão direita em duas unidades: 1) anelar; 2) polegar,
indicador e médio juntos. O recurso de “limar” determinadas notas

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Sérgio Abreu
142
e seu tempo

equilibra a sequência de movimentos com a proporção de durações


(notas em destaque no exemplo anterior). Além disso, na soma com o
segundo violão, as notas inferiores omitidas das tríades no exemplo
acima não fazem falta.
Mas analisar este trecho isoladamente é insuficiente. Há que se
considerar, sobretudo, o efeito que essa decisão interpretativa gera
em uma visão mais ampla, inserida em um arco formal completo. O
trecho que inicia no compasso 73, pianíssimo súbito, é emoldurado
por seções mais contundentes, sendo precedido por rasgueos e esca-
las em uma dinâmica forte e sucedido por uma seção com a indica-
ção “Furioso”, fortíssimo, que conduz ao final do movimento. Assim,
a opção pela articulação mais “aristocrática” de mão direita (Figura
5) – se é que podemos colocar dessa maneira – valoriza ainda mais
o contraste entre as seções e a chegada do rasgueo no fortíssimo no
compasso 81. Isso é um pequeno exemplo de como as escolhas de Sér-
gio eram feitas com propriedade e estavam em consonância com o
todo de uma obra.
Perguntei sobre outra passagem, ele pegou um papel e escreveu
tudo de memória, incluindo a digitação, sem auxílio do violão:

Figura 28: Tonadilla


digitação de Sérgio
Abreu (1999).
Fonte: arquivo
pessoal do autor.

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Sérgio Abreu
143
e seu tempo

Entre os encontros presenciais, conversei com Sérgio algumas


vezes por telefone. Em uma dessas ocasiões, perguntei sobre o Con-
certo para dois violões, de Castelnuovo-Tedesco, e ele disse: “eu li-
mei metade das notas desse Concerto”. Vale frisar que Sérgio se valia
desse recurso tendo em vista sempre um propósito musical, jamais
como uma manobra gratuita para contornar uma dificuldade técnica.
Isso me estimulou a encarar a partitura de outra forma, procurando
aplicar o que havia absorvido de seus conselhos sobre digitações e
dedilhados, não só neste Concerto específico, mas em qualquer outra
obra, solo ou de câmara. A lição mais importante é o critério, saber
por que, quando e quais notas omitir. Não deixa de ser uma espécie
de ilusionismo, dando a impressão de que tudo (ou até mais) ainda
está ali.
Em 2002, finalmente consegui reunir recursos para comprar um
violão Abreu. Liguei para o Sérgio e ele comentou que estava termi-
nando um violão com o qual a pessoa que havia feito a encomenda
não sabia se poderia ficar. Disse então para esperar alguns dias e, se o
violão estivesse disponível, poderia vender para mim. Assim, adquiri
meu primeiro Abreu (n. 469, NS-NWR). Até hoje não entendo a opção
pelo jacarandá da Bahia de quem encomendou. Se fosse para escolher
um upgrade, eu definitivamente daria prioridade a um tampo enve-
lhecido. Quando Sérgio ligou avisando que o violão estava pronto,
perguntei: “e como ficou?”, interessado em saber sobre as qualidades
sonoras. Ele deu uma risada discreta e respondeu: “ficou um violão
muito bonito”. Naquela época, Sérgio ainda enviava os instrumentos
e recebi o violão em Curitiba. Eu havia recém voltado para casa, es-
tava absolutamente encantado, tocando, e Sérgio ligou perguntando
se o violão havia chegado e o que eu tinha achado dele. Pensei em
responder que achei “muito bonito” (que, de fato, era, sobretudo o ja-
carandá do fundo e das laterais), mas disse que até então foi o melhor

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Sérgio Abreu
144
e seu tempo

violão que tive (e não foi mera força de expressão).


No ano seguinte, fui para o Canadá fazer meu mestrado na Mc-
Gill University, em Montreal. Considerando as baixas temperaturas e
os problemas com umidade, perguntei ao Sérgio se o violão precisava
de algum cuidado especial. Ele disse que esse violão não havia sido
construído para essas condições e que, para os instrumentos desti-
nados ao exterior, recomendava a categoria designada como EWR
(extreme weather resistance). Esses eram violões construídos com ma-
deiras selecionadas e tratadas para suportar as agruras de condições
climáticas como as do inverno canadense. Como isso aumentava o
custo do instrumento, dizia que não fazia sentido para instrumentos
que seriam utilizados no Brasil, para os quais recomendava a cate-
goria NWR (normal weather resistance), que era o caso do meu violão.
Propôs que eu enviasse o violão ao Rio para que ele fizesse um teste,
deixando-o em uma sala climatizada, para avaliar como se compor-
taria em condições mais severas. Após algumas semanas, disse que
tinha ficado surpreso e que o violão havia respondido bem, como
se fosse um EWR. Quando o recebi de volta, por ter sido submetido
a uma umidade mais baixa, estava até soando melhor do que antes.
Gestos como esse mostram um pouco da generosidade de Sérgio.
Em 2014, encomendei outro violão Abreu (o de 2002 acabei ven-
dendo no Canadá). Com a fila de espera, a ideia era que o instrumen-
to ficasse pronto em 2016, quando eu completaria 40 anos. No final
de 2015, fui à Academia Brasileira de Música, no Rio, para acertar
os detalhes da edição do Guia Prático para Violão Solo, de Villa-Lobos.
Aproveitando a viagem, também agendei uma visita à Nelly Gnattali,
viúva de Radamés, que então morava em Búzios. Não podia deixar
passar a oportunidade de rever o Sérgio e perguntei ao Ricardo Dias
se não seria incômodo fazer uma visita. Ele gentilmente organizou o
encontro e foi me buscar à noite no hotel em que estava hospedado.

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Sérgio Abreu
145
e seu tempo

Sabendo que Sérgio era um conhecedor de vinhos, levei um dos me-


lhores rótulos nacionais que já provei, um Cabernet Franc da Valma-
rino, vinícola da Serra Gaúcha. Junto com Ricardo também estava o
violonista e compositor Vicente Paschoal, que tive o prazer de conhe-
cer pessoalmente nessa ocasião e que, assim como eu, também levava
uma garrafa.
Chegando ao ateliê, Sérgio já nos aguardava com mais uma gar-
rafa de vinho que havia deixado aberta para respirar. Era a primeira
vez que voltava lá depois de mais de 15 anos. Sérgio me entregou um
de seus violões para experimentar, um instrumento incrível, se não
me engano de 2005, apelidado de “Pintadinho” por conta de algu-
mas manchas que surgiram no processo de aplicação da goma laca.
Segundo Ricardo, esse foi o melhor violão que Sérgio fez e comentou
com seu bom humor característico que depois “só foi ladeira abaixo”.
Sérgio me mostrou outro violão, de 2013 (acho), construído em ho-
menagem à Monina Távora em virtude de seu falecimento em 2011.
Esse violão tinha um tampo antiquíssimo, um abeto tão escuro que
parecia cedro, laterais e fundo de gombeira e, até então, sequer tinha
selo. Um grande violão! Até hoje não sei de qual gostei mais, deste ou
do “Pintadinho”. Quem quer que esteja com estes violões hoje, tem
em mãos alguns dos melhores Abreus que conheci.
Outro presente que levei foi a cópia de uma composição minha
dedicada a Sérgio. É a quarta de uma série intitulada 10 Choro e Cantiga
em que cada uma é dedicada a um músico ou compositor brasileiro
que admiro muito. Tive a honra de tocar essa peça para o Sérgio, no
violão que ele construiu em homenagem à Dona Monina, com sua
participação afinando o violão vez ou outra enquanto eu tocava.
No final da noite, estávamos eu e Sérgio em uma sala e pergun-
tei: “Como você fazia para tirar aquele som?” Ele respondeu com um
de seus famosos bordões: “com grande dificuldade!”

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Sérgio Abreu
146
e seu tempo

Antes de irmos embora, comentei que estava preparando a pu-


blicação de minhas transcrições para violão de peças do Guia Práti-
co, de Villa-Lobos. Sérgio lembrou de uma entrevista do compositor,
da década de 1950, em que comentava que Segovia teria transcrito
algumas peças do Guia Prático. Essa era outra característica sua que
impressionava, tinha uma memória absolutamente fora do comum,
era capaz de lembrar coisas que leu uma única vez, há muito tempo,
como essa entrevista.
Devia ser entre 3 e 4 horas da manhã quando cheguei ao hotel
e dali a poucas horas, às 7h00, teria que pegar o ônibus para Búzios
para visitar Nelly Gnattali, conforme havíamos combinado. Mas es-
tava tão extasiado que mal pude dormir. Cochilei durante alguns mi-
nutos e fui direto à rodoviária. Um dos motivos da viagem era poder
tocar no violão Di Giorgio de Radamés que lhe teria sido dado por Ga-
roto. Há no YouTube um vídeo meu na casa de Nelly, filmado por ela,
em que toco o Estudo X, de Gnattali, dedicado a Garoto. Gravação feita
com uma ressaca impiedosa, mas a viagem, os encontros e os violões
valeram cada segundo.
De volta a Curitiba, Sérgio me enviou uma cópia da entrevista,
uma das últimas de Villa-Lobos, publicada na revista francesa Guitare
et Musique, em 1958. Foi justo a tempo de incluir essa informação no
texto introdutório da edição:

- O senhor escreve obras para violão hoje em dia?

- Não. Eu não componho mais música para violão no momento. Mas Segovia
empenhou-se em transcrever algumas páginas do Guia Prático...

- ... Que o senhor infelizmente escreveu para piano

- É verdade, mas podemos transcrevê-las para violão e os resultados são ex-


celentes.

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Sérgio Abreu
147
e seu tempo

O fato de Sérgio ter lembrado este detalhe que poderia facilmen-


te passar despercebido, em uma entrevista pouco conhecida, é uma
contribuição muito significativa, pois, de certa forma, traz o aval do
compositor para a realização do Guia Prático para violão. Quanto às
transcrições de Segovia, infelizmente não há registro de que as tenha
feito.
Em dezembro de 2016 meu violão ficou pronto (n. 690, OS-NWR,
com jacarandá da Bahia). Aproveitei para fazer uma viagem em fa-
mília, com minha mulher e minha filha. Fomos visitar o prédio azul,
da série infantil de TV Detetives do Prédio Azul, que minha filha ado-
rava. Lá perto também fica a rua Nascimento Silva 107, onde morou
Tom Jobim. À noite, ao nos receber no ateliê, Sérgio deu algumas ma-
deirinhas para minha filha (que tinha 6 anos na época) e ela ficou
brincando, sentada no chão, em frente ao sofá na entrada. Com o vio-
lão na bancada, ele estava finalizando alguns ajustes no rastilho. A
primeira coisa que me chamou a atenção foi a roseta, diferente da
que vinha utilizando. Ele disse que era uma roseta difícil de trabalhar
porque quebrava com facilidade. O curioso é que foi algo que pensei
em perguntar quando fiz a encomenda, se teria outra opção – nunca
gostei muito do desenho da roseta mais recente – mas preferi não in-
comodar.
Enquanto eu experimentava o violão, Sérgio ouvia atentamente,
avaliando como se comportava o instrumento recém terminado. Em
um dado momento, foi buscar o “Pintadinho” para comparar; na sala
ao lado, afinou o violão e inclusive acompanhou de ouvido o que eu
estava tocando. Detalhe: não era uma peça que ele conhecia, era um
arranjo que eu havia feito a partir de uma das Cirandinhas, de Villa-
-Lobos. Eu e minha mulher nos entreolhamos e sussurramos: “ele está
tocando!”
Sérgio perguntou se eu queria ver um violão por dentro e me

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Sérgio Abreu
148
e seu tempo

mostrou outro instrumento que estava sendo construído, sem o fun-


do ainda, com os leques à mostra. Comentei: “aí é que está o segredo,
então” e Sérgio respondeu: “na verdade, não tem segredo”.
Antes de ir embora, dei-lhe de presente uma cópia do Guia Práti-
co para Violão, publicado meses antes (Sérgio está nos agradecimentos
pela entrevista de Villa-Lobos). Tiramos fotos e Sérgio deixou minha
filha levar as madeiras com que ficou brincando. Depois, toda vez que
falávamos sobre o Sérgio em casa, ela perguntava: “aquele das madei-
rinhas?” Impressionante como, naturalmente, sem chamar a aten-
ção, ele tinha jeito com as crianças.
Em 2017, voltei ao Rio para um recital no auditório Radamés
Gnattali, na Casa do Choro, com o violão Abreu que logo completaria
um ano2. Queria muito visitar Sérgio novamente, mas sabia o quanto
era reservado e ocupado. Aprendi com meus pais, desde cedo, a res-
peitar o espaço e não abusar do tempo dos outros. Além disso, sempre
tive consciência de que nunca fui tão próximo a ponto de ter qual-
quer tipo de liberdade.
Depois só tive contato com Sérgio por e-mail, sendo o último em
2021. No começo de 2023, algumas pessoas receberam uma mensa-
gem compartilhada por Maria Haro e Vera de Andrade comentando
sobre a delicada situação da saúde de Sérgio. A comunidade violonís-
tica ficou em estado de alerta, acompanhando cada notícia e trans-
mitindo toda força para sua recuperação. Confesso que o imaginava
voltando para casa e, quando indagado sobre como havia conseguido
sair dessa, dizendo: “com grande dificuldade!” Mas poucos dias de-
pois perderíamos essa figura que transcende qualquer tentativa de
descrevê-la.
Nos dias seguintes, curiosamente, fui tropeçando em lembran-
ças do Sérgio. Minha filha estava arrumando o quarto e me chamou,
tinha encontrado nas gavetas uma das madeirinhas que Sérgio lhe

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Sérgio Abreu
149
e seu tempo

deu, um pedaço pequeno, retangular, no qual ela havia desenhado na


época uma árvore, metade com folhas, como se fosse primavera, e a
outra metade com galhos secos, como no outono. De um lado da árvo-
re uma menina soltando pipa e, no outro, uma pulando corda. Isso me
deixou muito emocionado. Outro dia, procurando um documento em
uma pasta, eis que me deparo com a folha manuscrita de Sérgio com
os trechos da Tonadilla, de Rodrigo.
Obrigado, Sérgio, por tudo. Pela música, pelos conselhos, pelos
violões e pela oportunidade de ter convivido esses poucos, mas inten-
samente vividos, momentos com você. É com grande dificuldade que
seguimos tentando superar a falta que você faz.

[1] Associação minha.


[2] Em 2018, decidi vender meu violão. Gosto muito do som e da aura de nobreza dos
violões Abreu, mas o violão Abreu parece não gostar muito de mim. Acredito que
outros colegas tenham passado por experiência semelhante, mas o fato de não se
encaixar tão bem na minha mão não quer dizer que não admire todas as suas quali-
dades, que são muitas, e o que representa para nós violonistas brasileiros.

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Sérgio Abreu
150
e seu tempo

Depoimento sobre o arranjo livre para três violões


de Sérgio Abreu da obra “Variações sobre um tema
da Ópera A Flauta Mágica, de Mozart, opus 9”.
Luciano Morais

Em 2004, quando de meu ingresso como mestrando no progra-


ma de pós-graduação da ECA-USP, meu orientador, professor e ami-
go Edelton Gloeden sugeriu que fizéssemos um trabalho que pusesse
Sérgio Abreu no mapa das contribuições acadêmicas em performance
de alguma forma. Edelton viu o duo Abreu em atividade e eu desen-
volvi toda a minha formação violonística tendo as gravações deles
como referência. Portanto, a oportunidade de voltar nossa pesquisa
para esse assunto foi recebida com grande entusiasmo. Este seria o
primeiro trabalho acadêmico sobre os irmãos Abreu, até onde tenho
notícia. O maior problema: como chegar nele? Era bem conhecida a
fama de Sérgio Abreu como uma pessoa reservada e avesso a aten-
ções, homenagens ou mesmo ao mais justo dos reconhecimentos por
sua contribuição. Ele provavelmente se sentiria desconfortável ao ser
visto como foco de um trabalho científico.
Entendemos então que o trabalho precisaria ter uma base docu-
mental sobre a qual estudar a maneira dele pensar musicalmente e
isso poderia ser feito de forma mais objetiva através da catalogação
e análise de suas transcrições para violão. Após um contato com Sér-
gio, em que lhe pedi para acessar seu arquivo e, em troca, organizar
todas as suas partituras, ele concordou em me receber para coletar
o material do trabalho. A sugestão de organizar suas partituras veio
do Edelton. Isso quebrou o gelo com meu “objeto de pesquisa” e, ao

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Sérgio Abreu
151
e seu tempo

mesmo tempo, me deu livre acesso a tudo o que Sérgio havia estuda-
do, copiado e arranjado ao longo da vida. Ele me recebeu gentilmente
em sua casa por vários fins de semana dos anos de 2005 e 2006, conce-
dendo uma entrevista e permitindo que eu vasculhasse sua produção
como arranjador, embora ele mesmo nunca tenha se creditado dessa
forma.
Dos quase 50 arranjos que encontrei nesses dois anos, um em
especial me chamou muito a atenção, justamente pela audácia: uma
transcrição de uma obra original para violão solo de Fernando Sor, as
Variações sobre um tema da Ópera A Flauta Mágica, de Mozart, o famoso
opus 9 do celebrado compositor catalão. Uma releitura de uma peça
tão conhecida para violão solo poderia muito bem parecer uma extra-
vagância. Mas era o Sérgio Abreu fazendo. Um mestre da discrição,
das palavras e notas essenciais, da objetividade de ir direto ao ponto
em tudo o que fazia e não desperdiçar nada em uma expressão vazia
ou excessiva. Isso merecia atenção. Comecei a estudar a peça.
A realização toda me parecia muito interessante e tive oportu-
nidade de experimentá-la com meus colegas, os irmãos Luiz Roberto
e João Francisco Botosso, com quem eu tinha, desde 2004, um dedi-
cado trabalho de música de câmara, o Trio Ibirá. Gravamos um disco
com André Simão como quarteto, mas quando este se mudou para a
Alemanha, optamos por não o substituir e seguimos como Trio até
meados de 2008. Foi com essa última formação que lemos o arranjo de
Sérgio Abreu para o opus 9, de Sor, com Edelton Gloeden.
A impressão era de que se tratava de um diálogo entre gigantes.
Fernando Sor e Sérgio Abreu pareciam dialogar entre épocas e o ar-
ranjo (no manuscrito lia-se “Arranjo livre para 3 violões”) funcionava
muito bem, com uma variação a mais, escrita em harmônicos e uma
harmonização do tema original, colocado estrategicamente antes das
variações finais. Sérgio também ampliou a coda e mudou a tonalidade

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Sérgio Abreu
152
e seu tempo

daquela originalmente usada por Sor (mi maior), refazendo tudo na


tonalidade usada por Mozart (sol maior) na ária Das Klinget So Herrlich.
A peça ganhava em amplitude sonora, em densidade e em extensão
e o material original de Sérgio se encaixa milagrosamente no todo.
Ele simplesmente redimensionou a obra, dando a ela uma grandeza
camerística e revelando um conhecimento fora do comum do estilo
clássico, da técnica vienense de composição e da capacidade de elabo-
ração de uma ideia, além, é claro, de uma maestria absoluta sobre as
possibilidades do violão e do conjunto escolhido.
Mas foi uma desilusão quando Sérgio, ao ser informado de que eu
tinha encontrado este arranjo e o estava trabalhando com meus ami-
gos, desaconselhou sua execução, afirmando ter se tratado apenas
de uma “brincadeira que ele fez para tocar em casa” com seu irmão
Eduardo Abreu e seu avô, Antônio Rebello. O trabalho deve ter sido
feito em algum momento entre 1960, ano em que os irmãos Abreu
começaram a estudar violão seriamente, e 1965, ano do falecimento
de seu avô, que faria o terceiro violão. Mas Sérgio não se lembra da
época exata. Aos seus 58 anos, idade dele quando eu o apresentei à
partitura, a ideia geral do arranjo deve ter lhe parecido extravagante.
Mas eu fiz uma análise minuciosa da introdução e o enviei, pedindo
autorização para publicar o material. Em resposta, ele me enviou este
email, ainda sem se convencer de que a obra deveria ser tocada:
“Luciano,

Eu teria que olhar novamente esse Op. 9 do Sor. Vendo o trabalho enorme
que você teve fico com pena de pedir para você jogar fora. Se der para você
incluir o que você escreveu sem incluir cópia da música, aí nenhum proble-
ma. Se você tem que incluir a música eu teria no mínimo que corrigir pelo
menos as coisas mais gritantes.

Você se lembra onde está essa partitura? está dentro daqueles sacos plásti-
cos?

Aproveito para desejar Boas Festas e um ótimo Ano Novo.

Abraço, Sérgio”

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Sérgio Abreu
153
e seu tempo

Diante de tão educado e cuidadoso desestímulo, a obra acabou


ficando guardada. Ninguém teria coragem de insistir com Sérgio em
algo que lhe pudesse provocar algum desconforto. Esperamos por um
momento em que um olhar mais acurado pudesse conciliar o descaso
da parte de Sérgio com o entusiasmo do Edelton, de meus amigos Luiz
Roberto e João Francisco e meu, quando da nossa primeira leitura.
Mas a análise da introdução da obra foi publicada em minha disser-
tação, disponível no banco de teses da USP. E essa análise, junto com
novas visitas à partitura ao longo dos anos, foi aos poucos abrindo
minha percepção de que ali havia algo que merecia muito mais aten-
ção.
Muitos anos depois, fui convidado para compor a formação inau-
gural do trio Elipsoidal, em 2018, com Breno Chaves e Alberto Guedes.
Evidentemente pensei no arranjo logo que começamos os ensaios. Ti-
rei a peça desse segundo confinamento ao qual ela tinha sido – agora
sabemos – injustamente submetida. Lemos juntos a obra e a traba-
lhamos novamente com Edelton Gloeden. Com muito menos cerimô-
nia, liguei para Sérgio e o comuniquei que iríamos estreia-la em um
concerto marcado para aquela semana, no dia 2 de junho de 2019, na
série de concertos na cripta da Catedral da Sé de São Paulo, sob cura-
doria de Alexandre Ribeiro. Lembro de Sérgio responder com aceita-
ção e doçura: “Mas e daí, se eu disser que não quero, não vai adiantar
nada, né? Você não vai tirar a peça do programa, vai?”. Respondi,
respeitosamente, que a impressão de inevitabilidade dele tinha total
razão de ser. A peça foi estreada. A aceitação do público foi intensa e
entusiástica.
Durante a pandemia acabei saindo do trio Elipsoidal. Mas, em
2022, Breno, Alberto e Vinícius Brandão fizeram uma visita ao Sérgio
e tocaram a obra para ele. Eles devem fazer um relato mais minucioso
da ocasião, mas eu soube que o último concerto a que Sérgio assistiu

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Sérgio Abreu
154
e seu tempo

foi o desta formação do Elipsoidal, na série organizada por Luiz Carlos


Barbieri, com o arranjo dele do opus 9 de Fernando Sor no programa.
Uma audição informal em sua casa na madrugada do dia do concerto
o convenceu de que ali estavam os elementos que nos davam razão em
retirar a peça da gaveta e colocá-la de modo definitivo no repertório.
É importante dizer que, segundo Breno Chaves me informou, Sérgio
alterou algumas coisas do arranjo neste encontro com o trio em sua
casa, numa atitude pela qual todos nós aprendemos a reconhecê-lo:
como uma mente inquieta, sempre em movimento, sempre em busca
de ir além do ponto em que tinha chegado, nunca totalmente con-
formado com os resultados a que havia chegado, por mais excelentes
que fossem. Mas essa atitude nunca foi no sentido de um workaholic, e
sim de um mestre atento, paciente, aberto e encorajador.
Este arranjo é, sem dúvida nenhuma, um ápice na história dos
arranjos para grupos de violões, ao lado, por exemplo, das Bachiani-
nhas n. 1 de Villa-Lobos para quarteto ou El Puerto e Evocación para duo
de violões, todas produções de Sérgio. Sinto muito orgulho por ter
feito parte do esforço coletivo que envolve a divulgação, preparação
e organização desta maravilhosa obra e agradeço ao trio Elipsoidal,
não só pela convivência proveitosa e pela oportunidade de trazer à
lume este resultado da minha pesquisa e do trabalho de Sérgio Abreu,
mas também por prosseguir na divulgação desta obra. Ela surge no
repertório de concerto, dessa que é uma formação já clássica envol-
vendo o violão, como uma justa homenagem ao Sérgio e a tudo o que
ele representou em vida. São iniciativas como esta que nos permi-
tem afirmar, mesmo sem recorrer a qualquer metafísica, que Sérgio
Abreu vive.

01 de junho de 2023.

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Desde Buenos Aires


Marcelo Fébula

Hasta los encuentros que voy a referir, como para miles de ad-
miradores en todo el mundo, para mí los hermanos Abreu eran una
leyenda. Dos jóvenes cariocas considerados el mejor dúo de guitarras
clásicas de la historia que, habiendo recorrido buena parte del plane-
ta con sus conciertos y dejando registrada una breve discografía, sor-
presivamente un día pusieron punto final a su carrera artística para
literalmente desaparecer del mapa.
A través de los años ese perfil legendario había crecido desde
dos bases: el nivel de los antológicos discos grabados para Decca y
CBS, referencia permanente de la guitarra clásica, y el misterio. En
círculos guitarrísticos se sabía que Eduardo, ingeniero electrónico,
estaba radicado en USA desde hacía décadas, alejado de la música.
Sérgio, que continuó un tiempo como solista (registrando un discazo
con obras de Sor y Paganini, entre otros trabajos), al cabo también se
había retirado para dedicarse a la luthería. Más allá de esas certezas
todo era una nebulosa de versiones, especialmente aquellas referidas
a los motivos del retiro.
La llegada de internet en una primera etapa fue revelando al
gran público algunos datos biográficos. El nacimiento en una familia
de músicos, la formación con una maestra que los marcó para toda la
vida, el suceso inmediato al debut profesional y la posterior conquis-
ta de escenarios en Sudamérica, Europa y USA. Luego comenzaron a
difundirse grabaciones de conciertos en vivo, algunas seguramente
captadas con aparatos rudimentarios, de pobre sonido pero invaluab-

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le valor testimonial. Y más adelante espectaculares videos rescatados


de la TV europea, como para confirmar que los discos no habían sido
una ilusión auditiva. Era verdad que esos dos extraterrestres tocaban
así.
Pero todo ese material los mostraba como estudiantes o concer-
tistas consagrados. Las biografías parecían detenerse allí, sus imáge-
nes habían quedado congeladas como muchachos de veinte años en
las tapas de los discos, en un puñado de fotos y en las crónicas de sus
conciertos. ¿Qué apariencia tendrían hoy que andaban pisando los
70? Muchas opiniones referían a Sérgio como el constructor de gui-
tarras más importante de Brasil, pero no tenía página web ni redes
sociales. Imaginé a un hombre que no había negociado con las nuevas
tecnologías de comunicación. Busque mi número en la guía telefónica
y llame. Si atiendo estoy y si no atiendo, no.
Afortunadamente, gracias al ritmo vertiginoso del Sr. Youtu-
be, no hubo que esperar mucho más para ver imágenes actualizadas
de Sérgio grabadas en su atelier, y un imperdible reportaje sobre la
trayectoria del dúo. Así lucía él, hoy. Miré todo ese material decenas
de veces.
Meses después de descubrir esos videos viajé a Rio de Janeiro de
vacaciones. Luego de una de mis acostumbradas caminatas me tiré a
descansar un rato, y cuando ya se iba la tarde salí a la puerta del ho-
tel a fumar un cigarrillo. Allí estaba tirando humo y mirando mujeres
cuando de pronto vi avanzar por la vereda a un hombre. Caminaba
despacio, llevando dos bolsas de supermercado. ¡Era Sérgio Abreu!
Quedé petrificado como una estatua. Pero fue apenas un instante, en-
seguida reaccioné.
–Buenas tardes.
–…
–Señor Abreu.

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–…
Caminaba como en trance, mirando un punto fijo en el horizonte
y balanceando una bolsa en cada mano. Parecía no haberme escucha-
do. Insistí, aunque cuidando no caer en la grosería de cerrarle el paso.
–Hola. ¿Es usted el Maestro Sérgio Abreu?
–…
Nada. Siguió caminando sin alterar el ritmo mientras yo volvía a
transformarme en una estatua, ahora con el detalle de la boca abier-
ta. Lo vi entrar en un edificio, apenas a 20 metros del hotel. Volví a la
habitación sin entender del todo lo que había pasado.

A la mañana siguiente fui hasta el edificio. Me atendió el portero.


–Buen día. Soy argentino, estoy alojado en el hotel de al lado.
Ayer vi entrar aquí al Maestro Sérgio Abreu. ¿Podría usted decirme
en qué departamento vive?
–No entiendo.
–Ayer entró aquí el Maestro Sérgio Abreu, soy un viejo admira-
dor de Argentina, me gustaría mucho saludarlo personalmente.
–No conozco.
Amagué volver a explicar, pero me detuve. No tenía sentido. Sa-
ludé y me fui. Iba insultando al portero entre dientes pero luego en-
tendí que el hombre estaba haciendo su trabajo, no podía darle esa
información a un desconocido. Se me ocurrió una idea y llegué hasta
la librería de la esquina, donde ya había estado hurgando estantes va-
rias veces. Hablo muy mal el portugués, luego de memorizar algunas
frases y palabras encaré a un vendedor.
–Hola. Ayer vi pasar caminando por aquí al Maestro Sérgio Abreu,
pero no alcancé a saludarlo. Entró en el edificio que está al lado del
restaurante. Estoy segurísimo que era él, pero recién fui hasta allí y
el portero me dice que no lo conoce.

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–¿Abreu?
–Sí. Sérgio Abreu, uno de los más grandes guitarristas clásicos de
todos los tiempos. ¿No ha escuchado hablar de él?
–No.
Calma. No estaba hablando de una estrella pop, la respuesta era
normal.
–Ah, qué pena. Es que yo pensé que al ser vecinos tal vez lo co-
nocían.
–Puede ser. ¿Usted no tiene una foto?
Esa pregunta me revivió.
–No. Pero puedo mostrarle un video si ustedes tienen internet y
me permiten usar un minuto la computadora.
El vendedor me pidió que espere y fue hasta la caja. Señalándo-
me le explicó todo a quien parecía ser el encargado del local. Hicieron
señas para que me acercara.
–¿Cómo es el nombre, Sérgio Abreu? –me preguntó el hombre de
la caja poniendo las manos en el teclado de la computadora.
–Sí. Usted debería escribirlo en Youtube.
Luego de unos instantes ambos se miraron. Sonreían.
–¡Claro! Lo vemos pasar por aquí todos los días.
Ni me dieron tiempo de planear cómo seguir.
–Tenemos un amigo que trabaja en el edificio donde usted lo vio
entrar, hace mantenimiento. Le preguntaremos a él. ¿Usted dónde
está alojado? Si hay novedades nosotros lo llamamos antes de cerrar.

Ese día ni quise alejarme del barrio por temor a alguna demora
o contratiempo. A las cuatro de la tarde ya estaba en mi cuarto espe-
rando el probable llamado. Era tal mi grado de ansiedad y expectativa
que cuando sonó el teléfono di un salto y me caí de la cama. Manoteé
el teléfono desde el suelo.

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–¿Señor Marcelo?
–Sí.
–De la librería. A las cinco va a pasar el señor Abreu por aquí,
quiere conocerlo.
Eran cinco menos diez minutos. Sin ocuparme del hilo de sangre
que me salía de la rodilla, vistiéndome a los saltos me zambullí en un
ascensor. Corrí por la recepción y salí a la calle.
Sérgio entró en la librería apenas unos segundos después que
yo. Le estreché la mano con gran emoción. Seguramente era difícil
entender a un tipo nervioso que luchaba con el idioma, pero de to-
das formas pudimos conversar un poco. Me presenté, le hablé de mi
admiración por él y su hermano, de los discos, los conciertos, pero
parecía querer salir de ese tema, sólo asintiendo. Cambió a una acti-
tud más entusiasta cuando me referí a otros maestros como Eduardo
Fernández, su amigo según me comentó. Era un hombre que hablaba
poco y pausado, pero decía mucho con su mirada. En determinado
momento me preguntó si era guitarrista. Con cierto pudor le dije que
sí. Guitarrista era él, para lo que hacía yo había que buscar otro nom-
bre.
–¿Cuándo se vuelve a Argentina?
Regresaba dos días después. Pensó un poco, pidió una lapicera.
–Bueno, ahora no tengo tiempo, pero en su próximo viaje pode-
mos acordar un encuentro. Aquí le dejo mis datos. Venga, tengo algo
para usted.
Tomé el papel que me daba. No estaba tan peleado con las comu-
nicaciones como imaginé, allí había escrito sus teléfonos y un correo
electrónico. Lo seguí.
–Pase –me dijo abriendo la puerta de su departamento. Comen-
zó a revolver en unas cajas desordenadas hasta que encontró lo que
buscaba.

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–Llévese esto.
Era uno de los discos del Dúo Abreu reeditado en CD: Sérgio e
Eduardo Abreu - BBC Recital 1970.

En mi siguiente viaje, según lo arreglado vía email, lo llamé tres


días después de mi llegada. Había descubierto que existía una bio-
grafía suya, obra de Ricardo Dias, y pasé gran parte de ese tiempo
recorriendo librerías. Pero en todas me decían lo mismo: agotado. Le
comenté sobre mi búsqueda.
–El libro… no sé. Le doy el teléfono del autor, llámelo. Y anote la
dirección de mi atelier. Este viernes vamos a hacer una reunión de
amigos, quiero que venga.
Estaba invitado a una reunión en el atelier de Sérgio Abreu… To-
davía no me caía la ficha pero ya estaba llamando a Ricardo Dias para
ver si aún quedaban ejemplares en algún rincón de la ciudad.
–No lo va a conseguir. Yo tengo uno, pero usted tendría retirarlo
en la casa de mis padres. ¿Conoce la red de subterráneos?
Me sorprendí tanto con la respuesta que no me salió una pala-
bra, pero Ricardo ya me daba las instrucciones para que fuese en bus-
ca del libro.
Al otro día estaba en la dirección indicada. Teóricamente era yo
el que tenía que preguntar, pero un señor venía caminando a mi en-
cuentro, saludándome.
–Señor Marcelo, de Buenos Aires.
–Así es.
–Aquí tiene.
La biografía de Sérgio. En la primera página se leía “Para Marce-
lo, con un gran abrazo. Ricardo. Julio de 2018.”

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Viernes lluvioso en Rio. Cinco minutos antes del horario conve-


nido estoy tocando el timbre. A mi lado se para un hombre con una
guitarra. Sérgio nos recibe y hace las presentaciones. Mi compañe-
ro de timbre se llama Humberto Amorim. Claro, recuerdo haber vis-
to videos suyos, es un instrumentista notable. Ha traído su guitarra
porque necesita cambiar un tornillo del clavijero. La desenfunda y
comienza a tocar algo. Me sorprende el volumen de su pulsación, el
maestro lo advierte de inmediato y me hace una broma.
–Toca muy bien, pero le falta un poco de sonido.
Luego escucha del problema con el tornillo y se queda pensativo
un instante. El atelier luce bastante desordenado entre bolsas, estu-
ches, maderas, cajas y aserrín, pero él hunde la mano en una bolsa
grande repleta de cosas y al cabo exhibe un tornillo igual al que tiene
que cambiar. Me preguntan si quiero probar la guitarra. Les digo que
tal vez más tarde.
Tocan a la puerta, llegan más invitados. Uno es Vicente Pascho-
al, otro amigo de la casa, otro guitarrista excepcional que además es
el tester de los instrumentos del maestro. Junto a él Ricardo Dias, el
autor del libro, que saluda y me pregunta si no tuve problemas para
llegar hasta la casa de sus padres.
Estoy en el paraíso. En el atelier de Sérgio Abreu, charlando con
Humberto Amorim y Vicente Paschoal mientras el dueño de casa y
Ricardo, que también es guitarrista y luthier, debaten si conviene
cambiar todos los tornillos y juntos ponen manos a la obra. Pienso
que puedo quedarme allí hasta el día siguiente sin problemas. Me tiro
a dormir en el piso si es necesario.
–Vamos a cenar –dice Ricardo cuando la guitarra de Humberto
queda lista y Sérgio aclara que no aceptará ningún pago por el traba-
jo.

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Ya de madrugada, fumo en el balcón de la habitación del hotel


mirando las nubes bajas sobre el mar. Voy recordando diálogos, imá-
genes, retazos de la velada.
El personal del restaurante de Ipanema conoce al maestro, que
les consulta sobre un plato y se excusa cuando le ofrecen la carta de
vinos.
–No, hoy el vino lo elegirá nuestro amigo argentino. Ellos saben
mucho de eso.
Miro la carta. Los precios de los vinos que conozco me parecen
una exageración.
–Mejor pidamos alguno que usted tome habitualmente. Le pro-
meto que en mi próximo viaje le traigo una caja de vinos de Mendoza.
Me han sumado al grupo como si me conocieran de toda la vida.
Evidentemente los cuatro son del ámbito clásico, pero están muy le-
jos del elitismo que suelen exhibir algunos cultores del género. Co-
nocen a cada uno de los músicos brasileros que menciono, a muchos
personalmente, y de todos tienen cosas para contar. Cuando hablo de
mi admiración por Rafael Rabello, tal vez el músico que le dio el im-
pulso definitivo a la guitarra de 7 cuerdas como instrumento solista
en Brasil, Ricardo me cuenta de la gran amistad que los unía y Sérgio
lo evoca con una sonrisa.
–¿Rafael? Venía mucho a casa, quería tomar clases. Pero yo le
decía que sería mejor hacer al revés, yo tomaba clases con él.
Y recuerda una velada memorable con Rafael tocando en su de-
partamento de la que lamentablemente no quedaron grabaciones.
Humberto y Vicente cuentan de sus proyectos y preguntan so-
bre mis actividades con la música en Buenos Aires. Ricardo, con la
misma naturalidad con que yo puedo contar que fui al supermerca-
do habla de visitar a su amigo Egberto Gismonti o recuerda diálogos
telefónicos con Joao Gilberto por una guitarra que necesitaba unos

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ajustes. Sérgio, en la cabecera de la mesa, me sigue reconfirmando la


imagen de aquella tarde en la librería: dice más con la mirada que con
las palabras. Duda respecto a detalles de la carrera artística del dúo
y recomienda consultar a su hermano, o no tiene muy en claro cosas
que hizo el día anterior, pero es capaz de recordar la interpretación
de un tema en un concierto al que asistió como espectador una déca-
da atrás.
A la salida del restaurante, esquivando charcos por las veredas
camino a su lado.
–Muy buena esa entrevista que le hicieron. La he visto muchas
veces, de hecho me sirvió para reconocerlo aquella tarde.
–¿Entrevista?
–La que está en Youtube dividida en cuatro partes.
–Ah, sí. Yo creo que fue un interrogatorio.
No sé si es una broma o una crítica, sus respuestas a veces me
resultan enigmáticas. Voy con otro tema que olvidé mencionar en la
cena.
–Escuché la versión de Milonga Triste de Monina Távora, exce-
lente. Pero hay un error en el epígrafe, está errado el nombre del
compositor. Es Sebastián, no Agustín Piana.
–¿Sebastián? ¿Y usted dónde escuchó eso?
Por un instante me alarmo, el maestro se puso serio.
–En una página de internet. Un texto suyo acompañado de dos
grabaciones de la señora. Milonga Triste y Balada para Martín Fierro.
–¿Sí? –pregunta. Y sigue caminando como si nada.

Meses más tarde estoy de nuevo en Rio. Desde mi última visita


cruzamos varios correos con el maestro. Pude enviarle la partitura
de Xodó da Bahiana de Dilermando Reis dedicada a Abel Fleury, a
propósito del vínculo de amistad y admiración entre ambos del que

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habíamos hablado. También la partitura de piano de Milonga Triste


para que pudieran corregir aquel epígrafe erróneo, y algunos mp3
con versiones del tema: Dúo Roberto Grela - Ciro Pérez, Nelly Omar
con guitarras, Alfredo Zitarrosa con guitarras, y un registro de Sebas-
tián Piana solista.
Esta vez la cita es en su departamento.
–Somos los mismos de la otra vez, lo esperamos a las nueve.
Llego puntual, los muchachos ya están. Unos días antes dejé a
salvo en la portería la caja de vinos de Mendoza prometida.
–Ellos no beben alcohol –me dice Sérgio. –Nosotros vamos a em-
pezar con un blanco fresco, ¿Le parece?
Sirve en unas copas frías un vino blanco que es una exquisitez y
se va a la cocina con Ricardo. Ha estado toda la tarde preparando un
risoto carioca.
Humberto y Vicente están sumergidos entre papeles con expre-
siones de asombro. Me sumo a ellos. Humberto viene desarrollando
una de sus minuciosas investigaciones sobre la guitarra brasilera y
Sérgio ha puesto a su disposición una verdadera montaña de parti-
turas. Sueltas, ordenadas en carpetas, hay hasta hojas manuscritas
de su abuelo, Antonio Rebello. Una cantidad y calidad de material
impresionante. De a ratos el chef sale de la cocina, responde alguna
consulta sobre determinada obra, desaparece y vuelve con más.
–Ahora sí –dice cuando la cena está lista, y descorcha una botella
de tinto mendocino.

El risoto es una delicia. Y el encuentro la continuación de aquel


en el restaurante. Por la mesa desfilan músicos, luthiers, grabaciones,
obras. Al comentarle partes de su libro biográfico el maestro desgra-
na algunas anécdotas de las giras por Rusia y otras partes del mundo,
y me cuenta de la única vez que vio en vivo a Astor Piazzolla.

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–No recuerdo bien si los integrantes del quinteto eran los que
usted menciona, pero ah… Qué música tan fantástica.
Estoy nuevamente en el paraíso. Es tan agradable el ambiente,
tan abierta y cálida la actitud de todos, que en contraposición recuer-
do unas palabras del maestro Daniel Galán definiendo con su estilo
cáustico ciertas actitudes en algunos colegas.
–Hay tipos que cuando aprenden a tocar el A7M en primera po-
sición, ya dejan de saludar.
Terminada la cena tomo coraje para decir algo que estuve pen-
sando desde que llegué. No puedo perder la oportunidad de escuchar
semejantes guitarristas en una reunión privada. Sería imperdonable.
–Sérgio, ¿no tiene alguna guitarra aquí en el departamento? Me
gustaría mucho escuchar a los muchachos.
Asiente y trae tres guitarras. La primera es un verdadero gui-
tarrón Guttenberg 1980, pero enseguida queda eclipsada frente a las
otras dos. Es que el maestro también ha traído la Hermann Hauser
1930 y la Santos Hernández 1920. No salgo de mi asombro, esas dos
guitarras son tan legendarias como los mismos hermanos Abreu, las
que han utilizado en sus grabaciones para la BBC.
Es sabido que el maestro no toca, y esta noche Ricardo tampoco
porque está con un problema lumbar. Vicente y Humberto, con una
felicidad que tal vez sólo puedan entender los músicos, se van tur-
nando para probar esos dos instrumentos fenomenales. Quiero que
esto dure para siempre, que no se detenga nunca el sonido de esas
guitarras en sus manos. Pero de pronto llega la misma propuesta que
supe esquivar aquella noche en el atelier.
–Pruébelas, Marcelo –me dice Sérgio.
Ahí estoy. Pelé me tiró la pelota de la final del ‘70 para que patee
al arco. Van Gogh me dio uno de sus pinceles señalando un lienzo en
blanco. Primero pido que por favor me saquen unas fotos con las gui-

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tarras. Luego comienzo a tocar bajito algunos acordes con la Hauser


ante la atenta mirada de todos.
Elijo el tango Nada, música de José Dames. Estoy muy nervioso.
Sabido es que cuando uno toca los errores le suenan como cañonazos
mientras el público suele tener una percepción distinta de eso que a
uno le parece un desastre. Pero este no es cualquier público, cuatro
grandes músicos, uno de ellos fuera de toda categoría. Hago lo que
puedo, y con el acorde final mentalmente le pido perdón a Dames
(mucho tiempo después Humberto me contaría que el maestro can-
turreaba en voz baja mientras yo tocaba, pero en ese momento no
lo advertí…). Luego, más distendido, toco un poco de Flores Negras,
obra de Francisco De Caro que Ricardo reconoce de inmediato, les
muestro algunos rasgueos de ritmos folklóricos argentinos, y cuento
algo de mi historia.
Yo venía de lejos geográficamente y de aún más lejos guitarrís-
ticamente. Con una formación académica muy mala, mis primeros
conocimientos de armonía fueron prácticos. Los adquirí desde muy
joven en peñas folklóricas y tanguerías como el Bar El Chino, donde
ante un desfile interminable de cantores con mi amigo Walter tení-
amos que acompañar cualquier tema en cualquier tonalidad, a pura
intuición y oreja. Llegó un día en que descolgué los diplomas obte-
nidos en el conservatorio, que eran puro papel pintado, y me puse
a analizar seriamente dónde se originaban y por qué sonaban bien
determinados acordes. Pero siempre guardé un muy buen recuerdo
de aquellos tiempos orejeros, donde estudiaba armonía, conocimien-
to del diapasón y repertorio sin saber que estaba estudiando. Si algo
tenía de interesante mi formación, estaba allí. No aportaba nada ha-
blarles de los estudios de Tárrega o Villa-Lobos, esos eran los caminos
que transitaban miles de guitarristas en todo el mundo y, dicho sea
de paso, yo los había recorrido a los tumbos.

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Siguen horas de música y charla. Sérgio escucha con mucha


atención, y cuando hace algún comentario trato de retenerlo en la
memoria porque ante maestros de ese nivel una sola observación da
para estudiar un año entero. Sólo sale de su quietud para mover la
clavija de una cuerda que se ha desafinado repentinamente en plena
interpretación de un tema. Sus amigos ya lo conocen, pero a mí me
asombra la naturalidad y precisión con que lo hace, a veces simple-
mente estirando el brazo sin mirar el clavijero.
Escuchando guitarras suelo perder la noción del tiempo. Es de
madrugada cuando pienso que no está nada bien eso de traer un re-
galo y llevárselo puesto.
–Maestro, traje el vino para que lo disfrute usted y ya descorcha-
mos tres botellas… Mejor cierre la caja.
Un rato después, con mis amigos desperdigados entre la cocina
y el balcón, de pronto me encuentro solo en la sala y pruebo Camino
de las Tropas de Carlos Moscardini con la guitarra Santos Hernández.
No lo escuché llegar, pero cuando levanto la vista Sérgio está sentado
frente a mí.
–¿Vio? Esa guitarra hace lo que usted quiere.
Sobre el final de la reunión me regala dos CD. Uno del Dúo Si-
queira Lima, donde amén de trabajar en la edición y mezcla y ser
el Productor Musical es el luthier de los instrumentos que tocan los
notables Cecilia Siqueira y Fernando de Lima. Y otro de Olga Praguer
Coelho, donde colaboró en la edición y masterización.
Cerca del amanecer nos despedimos en la avenida desierta. No
sé cuándo podré volver. Sérgio me dice unas palabras que recordaré
mientras viva.
–Siempre que usted llegue será bienvenido en mi casa.

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Al día siguiente aproveché mis últimas horas en Rio para visitar


la librería Berinjela, recomendada por Ricardo. ¿Me habría expresado
bien la noche anterior? ¿Habría servido mi limitado portugués para
explicar por qué consideraba un bar como ámbito de estudio? Me iba
haciendo estas preguntas mientras seguía el camino para llegar a la
librería.
Cuando crucé la puerta del local quedé petrificado, como aquella
tarde en la que me choqué con un señor que caminaba llevando dos
bolsas de supermercado. Allí, a 2800 kilómetros de Buenos Aires, en
el fondo del tercer subsuelo de una galería, sobre una de las paredes
había dos grandes afiches amarillos enmarcados: “Bar El Chino de
Jorge Garcés - 41 años en Parque Patricios - Presenta Peña Los Gomí-
as - Beazley 3566”. Sí, el bar donde pasé incontables noches guitarre-
ando. Me acerqué, calculando que tendrían más de 30 años. Uno de
ellos estaba autografiado por el mismísimo “Chino” Garcés. Recordé
su voz de vino y tabaco diciendo –Vamos nene para que arrancára-
mos a acompañarlo. Y me puse a lagrimear, claro.

Luego de la pandemia volví a Rio, pero pasé sólo 5 días en la ciu-


dad, bastante melancólicos. Sentí una gran congoja caminando por
las calles donde fue asesinada Marielle Franco, y un hondo vacío en el
pecho con la ausencia de Alfredinho Melo al frente de su Bip-Bip en
Copacabana. Por entonces Sérgio estaba terminando contra reloj tres
instrumentos para entregar. Me dijo que tal vez pudiera hacer un
hueco para que tomáramos un café, pero lo dejé trabajar tranquilo.
Nos reuniríamos en mi próximo viaje.
Sobre finales de 2022 le avisé vía correo electrónico que pronto
estaría visitándolo. No me preocupé al no recibir respuesta, sabía bien
que tenía sus tiempos. Pero en realidad nunca llegó a leer aquel men-
saje. Fue recibido por uno de sus ángeles de la guarda, María Haro,

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quien me puso al tanto de su grave estado de salud. Sentí un estreme-


cimiento porque apenas unas horas antes, en una de las recorridas
virtuales que suelo hacer con la cámara de Google Maps por la calles
de Rio para aliviar mis saudades de la ciudad, había estado detenido
frente a su casa.
Pocos días después, el maestro se iba.

Conocer a Sérgio Abreu fue el hecho más extraordinario de mi


vida junto a la guitarra. Si el instrumento tiene un oráculo, una de
sus entradas estuvo durante décadas en la avenida Nossa Senhora de
Copacabana y por ahí entró una tarde un humilde músico popular de
Buenos Aires, recibido por un sumo sacerdote desentendido de tro-
nos y báculos, con jeans gastados y camisa a cuadros.
Yo diría que Sérgio fue un sibarita, en cualquier plano. Como
guitarrista clásico, solista o en dúo con su hermano, está considerado
uno de los mejores de la historia. Como luthier, proyectó sus instru-
mentos de notable sonido y acabado perfecto entre los del máximo
nivel, en su país y el exterior. Era muy buen cocinero, y a la hora del
vino sus elecciones eran aristocráticas. No sabía nada de fútbol pero
imagino que de haberse interesado su nombre estaría entre jugadores
o directores técnicos de elite. Y mientras junto a trayectorias, capa-
cidades y conocimientos mucho más modestos que los suyos suelen
crecer unos egos monumentales, él tenía un estilo diametralmente
opuesto. Era tan refinado como sencillo, entendiendo cabalmente
aquello de la fama es puro cuento del tango Vieja Viola.

Deja un legado gigantesco. En sus grandes aportes como trans-


criptor y arreglador, en sus icónicas grabaciones y conciertos, en sus
más de 700 instrumentos firmados, y sobre todo en su ejemplo de tra-
bajo, sencillez y generosidad.

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Gracias Maestro.

Marcelo Fébula
Abril de 2023.

Figura 29:Humberto Amorim,


Marcelo Fébula, Ricardo
Dias y Sérgio Abreu.

Figura 30: Marcelo


Fébula, Sérgio Abreu y
el vino de Mendoza.

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Figura 31: Humberto


Amorim y Vicente Paschoal
sumergidos en los archivos
personales de Sérgio.

Figura 32: Marcelo Fébula y


la guitarra Hermann Hauser.

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Figura 33: Afiches


del Bar El Chino en la
Librería Berinjela.

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Remembering Sérgio Abreu


Marcelo Kayath

I am very sad to know that my close friend and lifelong mentor


Sérgio Abreu has left us. I can’t describe how sad I am - he was a very
special human being. One of the brightest minds I ever encountered
in my whole life, Sérgio would have been successful in anything he
focused on. Luckily for us, he chose to be a musician and luthier.
He was an angel sent by God to illuminate our path. He touched
and changed the lives of thousands of people that were lucky enough
to meet him or to have contact with his music and artistry. His mis-
sion here was fulfilled, and we are all his children.
Below, some special memories with him.
Remembering Sérgio Abreu (1): with Sérgio Abreu and Leo
Brouwer in 2013

Figura 34: Marcelo


Kayath, Sergio Abreu
and Leo Brouwer.

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Sérgio Abreu
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Remembering Sérgio Abreu (2): I was 18 years old in this pic-


ture, it seems like yesterday. Sérgio is delivering a guitar as a special
prize that I won at the Young Concert Artists of Brazil Competition.
What an honor it was for me!

Figura 35: Sergio Abreu


and Marcelo Kayath.

Remembering Sérgio Abreu (3): about ten years ago, I asked


Sérgio to build a very special guitar for me to celebrate my 50th bir-
thday and our 35 years of friendship. He chose a very special top and
a beautiful back that he thought would suit my playing. After many
discussions about how this guitar should be built, he got it done and
the result is the guitar #645, which we named “Cinquentenário” (see
rosette).
From the very start this guitar had a very powerful but sweet
sound, with a sustain and balance across the whole fingerboard that
only the best guitars in my personal collection could match (in a good
day). He always said to me: “I have a lot of hope for this special guitar

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Sérgio Abreu
175
e seu tempo

- let’s see how it will sound in a few years.”


I played a few pieces on it for him about an year ago, some Tor-
roba, Bach and Giuliani… and from the smile on his face I could see
that he was really happy. I feel that this guitar has a special soul, and
in my mind Sérgio’s heart lives inside this guitar.

Figura 36: “Cinquentenário


/ Homenagem ao 50º
aniversário do grande
amigo Marcelo Kayath.
15-01-2014 / Sergio Abreu”.

I don’t know why God chose to call him back so soon, but I do
know one thing: people only die when we forget about them. For me
and for countless others, Sérgio is eternal and will live forever in our
hearts.
Rest in peace, amigo.

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Sérgio Abreu
176
e seu tempo

Gentileza, generosidade, conhecimento e amizade


Maria do Céu

Fique muito honrada com o convite, mas creio que não sou uma
pessoa apropriada para escrever sobre o Sérgio.
O que poderia dizer sobre ele seria mais como fã, admiradora,
e pela influência que teve sobre mim, assim como sobre TODOS os
violonistas clássicos que conheceram a sua arte, pelo seu alto nível
técnico tanto nas gravações quanto nas suas apresentações. Não tive
contato tão próximo, estive somente duas vezes em sua oficina.
Era uma lenda para mim, sentia-me há anos-luz do seu talento.
Quando iniciei os estudos de violão clássico na Escola Villa-Lo-
bos, com o prof. Milton Rodrigues (que me apresentou Segóvia e o
Duo Abreu, em gravações), já tinha 23 anos e havia acabado de me
formar em Psicologia. Já era meio “coroa” perto dos outros alunos.
Mas escolhi a faculdade de Psicologia ignorando um dom que trazia
comigo desde criança, aos 5 anos, quando comecei a estudar piano e
iniciação musical na UFRJ. Tinha e tenho um ouvido especial e habili-
dade nos instrumentos.
Foram 5 anos estudando para uma profissão que não era a minha
praia… penso que buscava mais um autoconhecimento para me sen-
tir melhor. Por isso, acho que sempre me senti ao largo da profissão
de músico, até porque nunca aprendi a ganhar dinheiro dessa forma,
tive 3 filhos e eles tiveram prioridade na minha vida.
Nas horas “vagas”, eu era violonista.
Escrevo tudo isso porque não pude viver uma vida de artista e,
às vezes, “sozinha no silêncio da noite…”, estudando violão, é que me

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Sérgio Abreu
177
e seu tempo

dou conta de que sou.


Por essa razão, e também pela distância de onde vivo, e por ter
a natureza de bicho do mato, não participei de tantos eventos, de en-
contros, as comemorações que aproximam as pessoas, os violonistas.
Lembro dos comentários sobre os encontros gastronômicos/cul-
turais na oficina, as preparações que o Sérgio fazia, e eu tinha um
sentimento de saudade… teria adorado estar lá também, pois a mú-
sica, amigos e a comida combinam muito, já que são quem nos dão
conforto.
Então, minha admiração pelo Sérgio, para além do artista e lu-
thier geniais, veio da sua habilidade única de agregar pessoas por
meio da gentileza, generosidade, conhecimento e amizade.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Sérgio Abreu in Memoriam


Miguel Praguer Coelho

Nossos caminhos se cruzaram pela primeira vez em 1961-62,


quando por sugestão da minha mãe, fui convidado para ir ao aparta-
mento da professora de violão Monina Távora, na Avenida Rui Barbo-
sa, para conhecer os irmãos Sérgio e Eduardo Abreu e ouvi-los tocar
Bach arranjado para dois violões. Essa maravilhosa experiência musi-
cal me levou a uma grande admiração pela musicalidade dos irmãos.
Por coincidência, meus professores de violino e piano, Mariuccia Ia-
chovino e Arnaldo Estrella, moravam no mesmo prédio.

Figura 37: Sergio Abreu,


Prof. Monina Távora
e Eduardo Abreu.

Mais tarde, ainda adolescentes, em 1964, visitei-os no aparta-


mento de sua família em Copacabana, perto de onde eu passava os
verões com meus tios, a alguns quarteirões da praia. Sérgio e Eduardo
se dedicavam de corpo e alma aos estudos musicais, a ponto de não
fazerem pausas para curtir a praia próxima, por mais que eu implo-
rasse para que me acompanhassem. A concentração com que estuda-

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Sérgio Abreu
179
e seu tempo

vam era admirável. As lembranças dessas visitas ocupam um lugar


especial em meu coração.
É interessante ver as mudanças de destaque entre os duos de
violões clássicos ao longo dos anos. Antes do Duo Abreu, Ida Presti e
Alexander Lagoya foram o duo mais célebre nos anos 1950 e primeira
metade dos anos 1960. O surgimento do Duo Abreu, com a conquista
do primeiro prêmio de Sérgio Abreu no concurso internacional de
violão de Paris - Radio France, em 1967, e a estreia do duo Abreu no
Wigmore Hall em Londres, no ano seguinte, marcou um novo capítu-
lo no mundo do violão clássico.
Em fevereiro de 1972, Sérgio e Eduardo fizeram sua estreia no
Alice Tully Hall, em Nova York, e receberam uma crítica do NY Times
intitulada “Abreu Brothers Are Awe-Inspiring In Guitar Program” (os
Irmãos Abreu são de uma inspiração incrível no Programa de Violão),
em 26 de fevereiro de 1972.
Enquanto estava em Nova York, Sérgio me visitou em meu pe-
queno apartamento e compartilhei com ele minhas experiências na
Juilliard School, o que criou um forte vínculo de amizade e deixou
uma impressão duradoura.
Quando minha mãe, a soprano e violonista Olga Praguer Coelho,
faleceu em 2008, pedi a ajuda de Sérgio para ouvir criticamente a
transferência digital das gravações de 78 rpm de Olga reproduzidas
por um engenheiro de som que teve acesso ao acervo fonográfico e
aos equipamentos de Leon Barg, o famoso colecionador de música
folclórica e popular da década de 1930-40, em Curitiba.
A dedicação de Sérgio em preservar as gravações musicais de
Olga ficou evidente em sua disposição em rejeitar uma trilha sonora
distorcida e resolver o problema por conta própria, oferecendo-se
pessoalmente para fazer a transferência. Seu compromisso em man-
ter a integridade da música de Olga mostra seu profundo apreço pe-

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Sérgio Abreu
180
e seu tempo

las gravações dela e a importância de preservá-las para as gerações


futuras.

Figura 38: Sergio e Olga


no júri do 2º Concurso
Internacional de Violão,
Rio de Janeiro, 1980.

Uma década depois, em 2018, quando eu estava em negociações


com a GuitarCoop para lançar um CD sampler das gravações de Olga,
Sérgio desempenhou um papel significativo na preservação e home-
nagem às gravações de Olga. Naquele momento, a GuitarCoop tinha
orçamento para produzir apenas um CD, que pretendia ser o relan-
çamento do recital do Duo Abreu na BBC, em 1970. À maneira típica
de Sérgio, ele gentilmente cedeu o seu lugar, permitindo que o CD de
Olga fosse produzido primeiro, antes de seu próprio CD. Sua ajuda
para garantir a qualidade de áudio da música de Olga, colocando em
uso seu ouvido absoluto na análise dos antigos discos 78 rpm, é real-
mente louvável. Sua abnegação e o tremendo impacto que teve nesta
homenagem a Olga são emocionantes.

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e seu tempo

Sérgio foi um ser humano notável e sou eternamente grato a ele


pela sua amizade e generosidade.

Miguel Praguer Coelho

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Sérgio Abreu
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Miss you, Sérgio


Nora Buschmann

I met Sérgio Abreu when I was at a concert tour in Brasil after a


festival in Argentina. Fabio Zanon introduced us in Rio de Janeiro. We
immediately had a nice connexion. I tried Sérgio’s guitars and orde-
red one later. He later came to a concert of mine in Niteroi and loved
my playing, especially for the Brazilian music. Another year, he even
let me stay in his house, in Rio, near Copacabana, and showed me his
Hauser guitar and his workshop.
Sérgio’s sense and taste for great music and interpretations was
also shared with me when he showed me his hobby to clean at the PC
old vinyl records and make them better on Cd, but still with the char-
me and warm quality of old recordings. So he copied for me some
of those old Yehudi Menuhin LPs on Cd or Brazilian interprets. I did
not know all his recordings with his brother and as solist from the
70’s. I was so impressed about their laying unique togetherness and
outstanding repertoire. When I came back to Gernany, I played those
recordings for my friends collegues and students, because I needed to
share those treasures!
Sérgio was a wonderfull modest humorous and warm human
beeing with this social gift first playing like a god and later conver-
ting his talent into serving others by making instruments for them.
His personality and talent was always sounding through his guitars
played by others.
I will always miss him!
Nora Buschmann

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Uma saudade enorme


Paulão 7 Cordas, em depoimento a Ricardo Dias

Eu conheci o Sérgio Abreu pessoalmente na casa da Maria Haro,


final da década de 90. Eu já o conhecia artisticamente através do pro-
fessor Sérgio de Pinna, que inclusive uma vez me apresentou ao pai
de Sérgio, Osmar Abreu. Eu passei a admirá-lo por meio de discos, de
seus trabalhos, até que o conheci pessoalmente.
Ficamos bastante amigos, conversávamos bastante, eu tocava
violão para ele, eu toco popular, tocava Cartola, ele gostava bastante,
sempre perguntava de quem era. Uma vez eu estava tocando, a gente
tomando um vinho, e ele escrevendo um arranjo num papel de uma
outra coisa, que nada tinha a ver com o que estava sendo tocado...
Muitas vezes me ajudou com o instrumento, ele não era de me-
xer, de regular, mas sempre abria uma exceção e me atendia, com a
mesma alegria com que fazia os dele. Tive um violão seu, e uma das
poucas coisas de que me arrependo na vida foi de tê-lo vendido, era
um instrumento maravilhoso.
É isso, todas as vezes que nos encontrávamos era uma alegria,
uma troca de carinho. Uma vez fizemos um jantar na minha casa, ele
fez uma ganache maravilhosa de chocolate de sobremesa, inesquecí-
vel.
Vai deixar uma saudade enorme em todos que privaram da ami-
zade dele.

Paulão 7 Cordas
violonista, arranjador e produtor

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Lembranças de um gênio
Paulo Martelli

Desde criança, eu ouvia falar em um duo de violões brasileiro


cuja perfeição havia tomado o mundo de assalto. Dois adolescentes
que tocavam com tamanha perfeição que faziam dois violões soarem
como um só. Dois jovens que, com seus vinte e poucos anos de idade,
no auge de uma carreira de sucesso internacional, haviam decidido
abandonar os palcos para sempre. Desde então, uma aura mítica ha-
via se estabelecido em volta de Sérgio e Eduardo Abreu, cuja breve e
meteórica carreira marcou a história para sempre com o Duo Abreu.
Meu primeiro contato pessoal com Sérgio Abreu se deu na minha
adolescência, por meio do meu então professor Henrique Pinto, em
1985. Sérgio foi assistir a meu recital no Centro Cultural de São Paulo,
onde me apresentei no projeto do Henrique. Lembro-me que, antes do
recital, ele me pediu para experimentar um violão que trazia consi-
go, tocando trechos naquele violão e repetindo-os no violão Ramirez
(do Henrique) que eu estava usando naquela apresentação. Enquanto
isso, ele escutava os trechos que eu tocava, andando na plateia de um
lado para o outro, parando e escutando o resultado acústico de cada
canto daquela sala. Após o recital, ele me disse que havia gostado
muito e que eu tinha um “sonzão”. Tudo aquilo tinha um significado
mágico para mim, resultando em um tremendo estímulo para um jo-
vem de 17/18 anos de idade que estudava violão obstinadamente, o
tempo todo, e que literalmente idolatrava os irmãos Abreus.
A partir de então, passei a encontrar Sérgio Abreu vez ou outra
no Studio do Henrique quando ia fazer aulas em São Paulo. No entan-

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Sérgio Abreu
185
e seu tempo

to, minha amizade com o Sérgio somente se estreitou anos depois,


quando fui um dos vencedores do Concurso Jovens Concertistas Bra-
sileiros. Tratava-se de um concurso que premiava 5 jovens instru-
mentistas sem ordem de classificação, cujo maior prêmio, naquele
ano, era uma bolsa de estudos da CAPES para o país de escolha dos
músicos vencedores. Sérgio fazia parte do júri daquele concurso, o
evento mais importante do gênero no Brasil naquela época. Durante
toda a vigência desse concurso, raramente premiou-se violonistas.
Sérgio ficou tão feliz com minha vitória que me convidou para al-
moçar no dia seguinte. A sobremesa foi conhecer sua incrível coleção
de violões. Lembro-me que ele estava chocado por eu ter literalmente
“comido” os trastes do violão (um Abreu de orelha de onça) de tanto
praticar. Ele trocou todos os seus trastes naquela mesma noite. Usei-
-o na noite seguinte, no concerto dos vencedores com a orquestra no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Neste concerto, Sérgio foi ao meu
camarim, tranquilizou-me e conferiu a afinação do meu violão antes
de eu iniciar a apresentação com o Concierto de Aranjuez.
A partir daí, Sérgio foi incansável em me ajudar de todas as for-
mas possíveis. Ele foi meu mentor musical, sempre me ouvindo, acon-
selhando e ensinando. Ele realmente apreciava a minha música e me
incentivava o tempo todo. Ele gravou e produziu o meu primeiro CD,
o qual foi primeiramente lançado no Canadá. Hoje em dia, pode ser
encontrando no selo Sesc com o título “Debut”. Este álbum foi gra-
vado no apartamento de Sérgio, em Copacabana. Nele, eu gravei com
violões que o Duo Abreu usava: um Hermann Hauser de 1930 e um
Santos Hernández de 1920. “Debut” é, até hoje, o único registro reali-
zado com esses instrumentos após os irmãos Abreu se retirarem dos
palcos.
Para dar seguimento aos meus estudos musicais com a bolsa da
CAPES, prêmio do concurso mencionado, Sérgio me aconselhou a ir

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Sérgio Abreu
186
e seu tempo

para Nova Iorque, decidindo assim o curso da minha vida e educação


musical.
No meu segundo CD, intitulado “Roots”, Sérgio foi responsável
por escolher a ordem das músicas, excluindo um dos três Estudos Po-
pulares Brasileiros do Geraldo Vespar. Ordenou as músicas do meu
álbum “A Bach Recital”, bem como as do CD “J. S. Bach: transcrições
inéditas para o violão barroco”. Além disso, ele contribuiu com su-
gestões geniais para as transcrições e arranjos desses dois últimos
trabalhos.
Conviver com Sérgio Abreu sempre foi um enorme privilégio
para mim. Sempre fui consciente de que havia sido musicalmente
adotado por ele. Herdei dele o amor aos intérpretes da “Gold Gene-
ration” e a busca pelo perfeccionismo técnico-musical. Durante os
anos que morei em Nova Iorque, criei o hábito de falar com ele por
horas ao telefone, costume que mantivemos quando regressei ao Bra-
sil. Sempre trocávamos gravações, sendo essa uma das formas pelas
quais me educava musicalmente, mostrando-me a sutil diferença en-
tre o muito bom e o melhor.
Sérgio possuía um perfeccionismo agudo e revelava isso em to-
das as atividades a que se dedicava. Ele habitava um mundo à parte,
o qual era muito especial. As poucas pessoas que escolhia para fazer
parte desse mundo lucravam imensamente pelo privilégio de com-
partilhar de seu convívio fascinante. Sempre fui muito consciente de
sua rara capacidade de transformar o tempo que passávamos juntos
em algo transcendental. Seu conhecimento musical, aliado a uma in-
teligência e generosidade sem precedentes, sempre deixou a todos
que o conheciam arrebatados, extasiados.
Somado a isso, Sérgio Abreu era dotado de uma inocência quase
angelical, sendo toda a pureza e limpeza que ouvimos em sua música,
um reflexo do seu caráter e personalidade. Em Sérgio, a genialidade

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Sérgio Abreu
187
e seu tempo

e generosidade musicais encontravam extensão em sua própria per-


sonalidade. Afinal, tudo o que ele se propôs a fazer resultou em algo
genial, fruto do perfeccionismo e da visão artística além do normal.
Suas execuções, sejam elas em gravações profissionais ou ao vivo, pos-
suem qualidades absolutas. Suas interpretações são dotadas do corte
perfeito, nunca excedendo ou faltando expressão, apresentando uma
técnica que beira o incompreensível, tamanha perfeição e sonorida-
de. Seus arranjos, nos diversos gêneros, são irretocáveis, bem como
seu trabalho produzindo gravações de terceiros.
Tudo isso já seria suficiente para o nome de Sérgio Abreu ficar
marcado na história da música e do violão. Mas, além disso, ainda te-
mos o seu trabalho de luthier. Nesse campo, Sérgio fez uma comple-
ta revolução na história da lutheria no Brasil, mudando a referência
sonora que tínhamos até então do violão em nosso país. Sérgio pas-
sa a régua, existindo literalmente um antes e um depois dos violões
Abreu. O nível de qualidade dos seus instrumentos se equipara ao
dos grandes luthiers da história do instrumento. Assim como pode se
afirmar que o violão timbrou a música brasileira, podemos afirmar
que Sérgio Abreu é responsável por mudar o referencial do violão no
Brasil. Seus instrumentos apresentam a mesma perfeição caracterís-
tica de sua musicalidade.
Clareza, potência sonora, volume, brilho, equilíbrio entre os re-
gistros agudo, médio e grave, beleza estética e qualidade do timbre
são algumas das características dos seus quase 800 instrumentos, nos
quais o que mais impressiona é a homogeneidade. Eu mesmo nunca
encontrei um Abreu de nível abaixo de excelente. Sérgio fez para mim
vários violões sob encomenda ao longo dos anos. Sempre utilizei seus
instrumentos nos meus discos, exceto naqueles em que toco no alto
guitar. Cada disco traz um Abreu diferente. Fiz isso propositalmente,
uma vez que cada instrumento tem características próprias que se

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Sérgio Abreu
188
e seu tempo

encaixam em repertórios diferentes.


Em outubro do ano passado (2022), encomendei a ele um novo
violão. Um instrumento diferente, o qual seria seu primeiro exem-
plar com tampo de pinho e cedro, uma criação que se baseava nos
violões do luthier italiano Andrea Tacchi.
Sérgio sempre foi purista e gostava de manter a tradição. Cus-
tou-me muita conversa para conseguir convencê-lo a fazer para mim
um exemplar com tampo misto. Uma vez adotada a ideia, ele havia
se animado muito com o novo desafio. Quando o tampo de cedro que
o Tessarin me vendeu chegou no seu apartamento pelo correio, Sér-
gio me ligou exultante, dizendo que este era de excelente qualidade.
Contou-me então que já havia pensado nesse tipo de tampo muito
antes de Tacchi, mas que não havia tido coragem de fazer tal “mons-
truosidade”. Sentindo nova oscilação, mais que depressa afirmei que
se o violão ficasse ruim, eu o compraria mesmo assim.
Ele então se convenceu a construí-lo, mas alegou que precisa-
va secar o cedro um tanto mais. Como eu já havia escolhido os jaca-
randás do fundo e lateral, os quais eram mais desenhados do que os
que Sérgio gostava de usar, nos dias que se seguiram, ele começou a
trabalhar no braço do meu violão, cuja escala seria 64. Passou então
a procurar um pedaço de pinho muito velho, que dizia existir na sua
oficina, a fim de fazer a parte do tampo misto sem ter de cortar um
tampo. Isso se estendeu por dias e dias. Durante esse tempo, ele ia
me enviando fotos do braço e das madeiras sendo trabalhadas. Então,
numa madrugada de novembro (2022), ele me ligou e falou que havia
encontrado um tampo que havia feito para ele mesmo. Tratava-se de
um tampo de pinho diferente, com a emenda acima do meio, seme-
lhante a alguns violões do Hauser, os quais ele achava excepcional.
Por ter fabricado alguns violões assim sob encomenda, ele havia
resolvido fazer um violão com as mesmas características para si, a

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

fim de estudar o seu desenvolvimento. O projeto ficou pela metade e


o tampo estava lá parado, guardado a vários anos, secando na sua câ-
mera antiumidade. Depois de vários elogios e de ver algumas fotos, vi
que se tratava de uma madeira muito especial. Então, disse-lhe: “me
faça dois violões, esse agora e o de tampo misto depois”.
Com todas as partes do instrumento já em andamento, o violão
ficaria pronto em dezembro. Sérgio me enviou um áudio no ZAP que-
rendo saber o dia de dezembro que eu iria buscá-lo. Temendo que ele
não fosse mais fazer o violão de tampo misto, aleguei que só iria uma
vez ao Rio para buscar os dois violões devido ao surto de Covid que se
noticiava. Ele concordou e achou sensato.
Sempre trocamos mensagens via e-mail, mas, nos últimos meses,
havíamos estabelecido um ritmo intenso de mensagens no whatsapp.
Perto do natal, Sérgio me avisou que o violão de pinho já estava na
fase de verniz, faltando apenas colar o cavalete. Esta é uma das últi-
mas mensagens que tenho dele guardadas no meu celular. Nas pró-
ximas, ele me falou de uma gripe... E então o silêncio se fez. Sérgio
faleceu no dia 19 de janeiro de 2023, deixando um enorme vazio em
uma legião de amigos e fãs.
Numa das sessões de gravação do meu primeiro CD, no aparta-
mento de Sérgio, sua mãe me disse que, ao ver os filhos, tão jovens
e tão brancos, tocando na sala Cecília Meireles, pensou: “dei à luz
dois anjos”. Desde então, quando ouço alguma gravação dos Abreus,
recordo-me de Dona Lourdes. Hoje em dia, tenho certeza de que ele
voltou para o céu.
Quando recebi meu violão de pinho com o tampo de emenda des-
locada em fevereiro, uma forte onda de melancolia me abateu. Emo-
ciono-me só de pensar no selo assinado com a letra tremida de Sérgio
no hospital, dez dias antes de falecer. Com este seu gesto, ficou para
mim a sensação de uma energia póstuma enviada por ele por meio

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Sérgio Abreu
190
e seu tempo

desse instrumento. A sensação de que, ao tocá-lo, vibro uma Harpa


Eólica, um cordofone soprado com a aragem de seus últimos sons di-
vinos lançados do etéreo firmamento a acalentar a breve existência
humana.

Araraquara, 31 de maio de 2023

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Sérgio Abreu
191
e seu tempo

Café com gengibre


Pedro Rocha

Estive com Sérgio Abreu 4 vezes. Ele sempre cordial, calmo e ge-
neroso. A primeira vez foi em Brasília, minha cidade natal, tive a fe-
licidade de almoçar com ele e outros amigos violonistas, não me lem-
bro, porém, porque Sérgio estava de passagem em Brasília.
No Rio, em seu ateliê, estive 3 vezes, curioso que ao pegar o táxi
para ir ao ateliê os taxistas nunca estiveram de acordo com o ende-
reço da rua Canning, em Copacabana, como afirmava Sérgio. Sempre
questionavam se essa rua não seria em Ipanema.
A primeira vez que visitei o ateliê foi em 2009, durante a cons-
trução do meu violão, o de N° 613. Eu estava de férias no Rio e passei
em seu ateliê para ver o futuro violão, este estava sendo construído,
as madeiras do tampo, fundo, laterais e braço já estavam coladas e
separadas na sala onde Sérgio tratava suas madeiras. Lembro dele me
explicar que preparava as diferentes partes de vários violões simulta-
neamente ao longo de meses e que um dia quando todas as partes de
um determinado violão estivessem prontas e ele se sentisse inspira-
do, montava o violão.
A segunda vez foi quando fui buscar o violão já pronto, que fe-
licidade! Após pouco mais de dois anos de espera. Nesse dia Sérgio
me ofereceu café, perguntou se eu queria com gengibre, e eu espan-
tado com a proposição disse que sim. Ele fez café numa cafeteira ita-
liana e por cima do café adicionou raspas de gengibre, segundo ele
isso dava um toque de gengibre ao café e substituía o açúcar, técnica
que aprendera com um violonista uruguaio. A forma escolhida para

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Sérgio Abreu
192
e seu tempo

o pagamento do violão foi bastante curiosa, Sérgio disse que estava


bastante ocupado com as encomendas de violões e com as burocra-
cias envolvendo o falecimento da dona Monina Távora. Assim ele me
enviou vários boletos de contas em seu nome (condomínio, luz etc.) e
me pediu que as pagasse, isso lhe pouparia um tempo precioso, assim
feito.
Uma terceira vez foi quando estive no Rio para revisão do meu
violão. Quando agendei a visita Sérgio foi muito gentil e logo me per-
guntou se eu tinha hospedagem e que caso contrário que eu pode-
ria ficar hospedado em seu apartamento. Meio sem graça aceitei pois
percebi que a possibilidade de passar tempo com esse personagem
ímpar do violão era irrecusável. Com o violão tudo estava certo, Sér-
gio regulou a altura do rastilho, elogiou as novas tarraxas que eu ha-
via instalado no violão e me disse que estava muito satisfeito com
a evolução desse instrumento. No seu apartamento ele me mostrou
seus violões e praticamente me pediu que tocasse no seu famigerado
Hauser para que ele escutasse, disse que o violão ainda estava evo-
luindo. Sérgio me deixou muito à vontade e nesse dia me presenteou
com o disco no qual toca Paganini e Sor, que felicidade a minha! Disco
que até então eu somente havia escutado através de arquivos de áu-
dio compartilhados na internet. Guardo-o hoje com muito carinho e
esmero.

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Sérgio Abreu
193
e seu tempo

Duas lembranças com Sérgio Abreu


Roberta Mourin

Registros com Sérgio Abreu e amigos em duas ocasiões especiais:


1) Figura 28: após o concerto de Flávio Apro, no Centro Cultural da
Justiça Federal (CCJF), no Rio de Janeiro (RJ); 2) Figura 29: após o con-
certo em homenagem à soprano e violonista Olga Praguer Coelho, na
Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro (RJ).

Figura 39: Encontro na Cinelândia após o recital


do violonista Flávio Apro no Centro Cultural da
Justiça Federal em 20 de julho de 2019, pela
série Violões da AV-Rio. Em primeiro plano:
Vicente Pascoal (violonista) e Sérgio Abreu.
Em segundo plano: Roberta Mourim (violonista
e pesquisadora) e Flávio Apro. Em terceiro
plano: Raphael e Tadeu Maia (Duo Maia).

Figura 40: Foto tirada após o concerto realizado


na sala Cecília Meireles em homenagem à
Olga Praguer Coelho, quando Nelson Freire,
Fábio Zanon, Marcia Taborda e Rosana
Lamosa apresentaram uma seleção de
obras em tributo à cantora e violonista. Na
Foto: Suely Franco, Sérgio Abreu, Roberta
Mourim, Marcia Taborda e Ricardo Dias.

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Sérgio Abreu
194
e seu tempo

Sérgio Abreu: além da vida terrena


Sérgio Assad

No mundo da música, certos talentos brilham intensamente e


deixam uma marca indelével em suas respectivas áreas. Recentemen-
te, o cenário musical sofreu uma perda significativa com o falecimento
de Sérgio Abreu, um renomado violonista. Sérgio não apenas deixou
um legado musical duradouro, mas também foi um amigo próximo
e inspirador para o Duo Assad, do qual faço parte. Sua contribuição
para o mundo da música é imensurável e sua ausência será profunda-
mente sentida.
Sérgio, ao lado de seu irmão, Eduardo, formou o famoso Duo
Abreu, que desempenhou um papel de destaque no final dos anos 60 e
início dos 70. Ambos os irmãos eram talentosos violonistas e compar-
tilhavam uma conexão musical única. Sérgio brilhava como violonis-
ta e suas habilidades musicais eram verdadeiramente excepcionais.
Uma das qualidades mais marcantes de Sérgio como músico era
seu ouvido absoluto excepcional. Ele possuía a capacidade extraordi-
nária de distinguir as notas dentro de um acorde complexo, mesmo
quando este continha até mesmo 10 sons diferentes. Além de ser um
virtuoso no violão, Sérgio Abreu também era conhecido por sua habili-
dade como arranjador e transcritor. Sua paixão pela música levou-o a
adaptar obras originalmente compostas para piano para dois violões,
expandindo o repertório disponível para violonistas. Sua capacidade
de transcrever e arranjar com maestria permitia que ele explorasse a
riqueza e a complexidade das obras pianísticas, adaptando-as para o
universo sonoro do violão.

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Sérgio Abreu
195
e seu tempo

Após o término do Duo Abreu, Sérgio Abreu dedicou-se à luthe-


ria, a arte de construir e reparar instrumentos musicais de corda.
Sua especialização concentrou-se exclusivamente no violão, e seu
trabalho como luthier o estabeleceu como um dos mais importantes
e respeitados do Brasil. Os violões construídos por Sérgio Abreu são
verdadeiras obras de arte, famosos por sua qualidade sonora excep-
cional e pela meticulosa atenção aos detalhes. Violonistas brasileiros
de renome continuam a buscar seus instrumentos até os dias de hoje,
reconhecendo sua maestria como luthier.
A partida de Sérgio Abreu deixa um vazio imensurável no mun-
do da música clássica. Sua genialidade musical, sua habilidade como
violonista, arranjador e transcritor, e sua excelência como luthier
tornaram-no uma figura icônica e reverenciada. Sua influência como
músico e luthier será lembrada por gerações futuras de violonistas e
amantes da música.
Nós, do Duo Assad, somos profundamente gratos por ter tido a
oportunidade de compartilhar momentos musicais com Sérgio Abreu
e por termos sido inspirados por sua brilhante musicalidade. Sua par-
tida é uma perda imensurável, mas sua música e seu legado continu-
arão vivos em nossos corações e nos corações de todos aqueles que
tiveram a sorte de testemunhar seu talento.
Que a memória de Sérgio Abreu seja um lembrete constante de
que a música transcende a mortalidade e é capaz de tocar almas, mes-
mo além da vida terrena. Seus violões continuarão a ecoar a beleza da
música em mãos talentosas, e seu legado como músico e luthier será
eterno. Descanse em paz, Sérgio Abreu, e obrigado por sua contribui-
ção inestimável à música clássica e ao violão.

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196
e seu tempo

António da Costa Rebelo (1902-1965) e


Sérgio Rebello Abreu (1948-2023): breve
panorama de seu(s) tempo(s).
Teresinha Prada

Tempo de despedida. A saudação à trajetória de Sérgio Abreu


vem sendo feita de muitas formas. Próximo ao dia de seu falecimen-
to, quando informações chegavam sobre seu estado de saúde, houve
uma profusão de manifestações de carinho a sua pessoa. Uma multi-
dão de admiradores, cada um a seu tempo, fez e ainda fará algo em
sua memória. O conjunto da obra de Sérgio Abreu não será esquecido.
A minha reação imediata ao saber das notícias em janeiro foi re-
ler sua biografia (DIAS, 2015), ouvir muita música executada por ele
e Duo Abreu e, agora, faço um breve gesto por meio deste texto. Aqui
eu poderia me referir ao seu modo de existir na arte, o que nos reme-
te aos êxitos musicais e objetos trazidos ao mundo por Sérgio Abreu
– os incríveis três Long Plays como Duo Abreu e o LP solo e, ao que se
sabe, perto de 800 violões construídos. Também poderia lembrar que
os discos foram realizados em pouquíssimo tempo de carreira efetiva,
com impecável musicalidade e técnica, moldadas pela mestra Monina
Távora, cujo perfeccionismo encontrou em Sérgio Abreu um compa-
nheiro, e ainda recordar que quando a luteria passou a ser a tônica de
sua vida, lá estava a mesma dedicação ímpar – foram 74 anos e meio
de idade dos quais mais de 60 entregues a produzir arte e “aprender
sempre”, como Abreu disse (ANTUNES, 2007, p. 27).
Mas quero me referir, especificamente, ao Tempo e, para isso,
vou começar lá de trás.

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e seu tempo

1. No tempo de Antonio Rebello: Elegia ao avô.

No título desse texto, utilizei o sobrenome Rebello para reve-


renciar primeiramente suas raízes, Antonio Rebello, um esperançoso
imigrante açoriano, pois todo aquele que sai de sua terra o faz com
expectativas. Os Açores já nos deram outros maravilhosos imigran-
tes, os Villa-Lobos, fato lembrado com orgulho (e eventos1) no pa-
radisíaco arquipélago português. Fala-se muito do violão de certos
países, mas Portugal é uma terra plenamente transpassada por cor-
das dedilhadas, a profusão de violas é algo incrível, com um amor aos
instrumentos como no Brasil, em um exíguo espaço geográfico. Os
Açores têm a viola da terra, que Rebello tocava, e que é bem próxima
a nossa viola de arame.

Figura 41: Viola da


Terra, dos Açores.
Foto: Cortesia do guitarrista
açoriano Rafael Carvalho

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198
e seu tempo

Recordo que duas pesquisadoras, Sandra Alfonso (2005; 2017) e


Marcia Taborda (TABORDA, 2011), já mencionaram Rebello, por sua
posição de destaque como professor no Rio de Janeiro, a capital fe-
deral até inícios de 1960, e Taborda nos lembra do lado violeiro de
Rebello, ou seja, a nomenclatura tradicional luso-brasileira do ofício
de construtor de instrumentos (TABORDA apud DIAS, 2015, p.189).
Também Luciano Morais (2007) cita o avô Rebello na trajetória fami-
liar-musical dos Abreu.
É importante reiterar que o resultado dessa diáspora transatlân-
tica tomou uma dimensão artística quase inimaginável, com uma dá-
diva chamada Duo Abreu, que o avô Rebello conseguiu, felizmente,
tempo suficiente para ver acontecer, esse que foi um dos maiores fe-
nômenos do circuito violonístico, e não somente.
Nascido António da Costa Rebelo2 (1902-1965), na Ilha Terceira,
ele migrou com seu pai, Gregório, e chegou ao Rio de Janeiro aos 18
anos de idade. Na capital, trabalhou em várias atividades, antes de se
dedicar exclusivamente a ministrar aulas de violão, provavelmente
início da década de 1950 (ALFONSO, 2017, p. 25, menciona o ano de
1952). Rebello sempre amou a música, possuía uma coleção de LPs
que deleitava seus netos.
Da sua destacada trajetória no Rio, fala-se do seu contato com
Isaias Sávio (1900-1977) e a importância que assumiu na cena vio-
lonística carioca – já entraria para a História ter sido professor de
Turíbio Santos (1943-) e Jodacil Damaceno (1929-2010), mas Rebello
ainda estenderia sua didática a Osmar Abreu, bancário, seu futuro
genro, pai de Sérgio e Eduardo, e foi incentivador da atuação musical
de Maria de Lourdes, filha de Rebello, que tocava piano e violão, a
futura mãe dos Abreu. Também foi o iniciador dos estudos de violão
dos netos.

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Sérgio Abreu
199
e seu tempo

Interessante que não há elite financeira nesta história de família.


Imigração, pedreiro, lavradores, açougueiro e bancário... A propalada
ligação da música de concerto às classes de ganhos econômicos mais
altos do país, não sucedeu aqui. Também Jodacil Damaceno, quase
um membro da família Rebello, trabalhava em um bar servindo café,
ainda adolescente (ALFONSO, 2017, p. 24).
Graças à biografia de Dias, descobrimos tantas coisas de Sérgio Abreu, inclu-
sive aquele detalhe a mais no campo das afinidades: Rebello, além de pro-
fessor e violonista, gostava de construir instrumentos, fez um violão com o
professor Isaias Sávio, que estava atuando entre o Rio e a capital paulista,
(DIAS, 2015, p. 209) e como reitera Taborda, sobre a decisão de Abreu em se
tornar luthier, tal fato:

...fecha um círculo ‘virtuoso’ de nossa história: estabelece um importante elo


com a trajetória de vida de inúmeros imigrantes portugueses que se transfe-
riram para o Rio de Janeiro e que aqui se estabeleceram como construtores
de instrumentos de cordas.

(...) O círculo se fecha com a retomada do trabalho de seu avô, Antonio Re-
bello, português nascido nos Açores, que transferiu-se para o Rio de Janeiro
em 1920. Além de ter sido um dos precursores de ensino do violão clássico
(...), foi construtor de violões, um dos quais ainda conservado pelo neto.

A mestria do artesanato de Sérgio Abreu toma assim um significado expres-


sivamente maior; por manter viva no Brasil uma tradição secular, um ofício
que deu suporte à difusão dos mais importantes gêneros de nossa música po-
pular; assim como permitiu, através do contínuo apuro técnico, a franca am-
pliação do repertório de concerto no Brasil (TABORDA apud DIAS, p.189-190).

Nessa fala, creio que Marcia Taborda fez uma primorosa inter-
pretação dessa identidade familiar.

1.1. De Portugal, três momentos de homenagem a Rebello.

Um amigo de infância de Rebello, o escritor e professor açoriano


Vitorino Nemésio (1901-1978), um dos maiores nomes da literatura
local, foi um dos responsáveis em cultivar a memória do antigo cole-
ga de escola. Nemésio foi o criador e apresentador de um programa
de televisão (na RTP – Rádio e Televisão de Portugal) intitulado “Se
bem me lembro”, no qual, em novembro de 1972, realizou um episó-
dio sobre Rebello, sob título: “Evocação de António Rebelo da Costa”3.

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Sérgio Abreu
200
e seu tempo

A segunda homenagem também foi uma promoção de Nemésio,


quando na mesma ocasião do programa televisivo, organizou um con-
certo em memória de Rebello em Lisboa, em 7 de novembro de 1972 –
acredito que pela efeméride de 70 anos de seu nascimento – realizado
no Palácio Foz, evento apresentado pelo renomado musicólogo por-
tuguês João Freitas Branco, tendo como atração o Duo Abreu para um
auditório lotado – esse momento tem imagens registradas no Arquivo
da Rádio e Televisão Portuguesa4.
Interessante saber que pouco tempo depois da passagem do Duo
Abreu em Lisboa, um programa de rádio “O Gosto pela Música” ide-
alizado pelo mesmo Freitas Branco, em janeiro de 1973, utiliza a ma-
estria dos dois jovens talentos para exemplificar possibilidades da
guitarra clássica, que ainda enfrentava os percalços para mostrar-se
como instrumento de nível instrumental na área de concerto. O pri-
meiro álbum The Guitars of Sérgio and Eduardo Abreu foi apresentado e
comentado durante o programa5.
Ao final do programa radiofônico, Freitas Branco comenta que a
vinda do Duo Abreu a Lisboa foi, além do impressionante aspecto ar-
tístico, uma também realçada demonstração de outros significados,
tal seja: a amizade de Nemésio por seu caro amigo Antonio Rebello e
pela terra, Portugal e os Açores.
Voltando aos dados biográficos, o pai de Rebello, Gregório, nas-
ceu na mesma localidade que praticamente todos da família, São Bar-
tolomeu, e sabemos que Gregório veio primeiro ao Rio de Janeiro,
sem precisão de datas:

Gregório da Costa Rebelo – N. [nasceu] em S. Bartolomeu em 1877 e f. [fale-


ceu] na Terra-Chã em 1942.

Pedreiro de cisternas. Emigrou para o Rio de Janeiro, onde teve um negócio


de açougues. C.[casou-se] em S. Bartolomeu a 18.1.1902 com Maria de Jesus
Pimentel, n.[nascida] na Terra-Chã [1879-1956] (MENDES e FARJOZ, 2007, p.
45).

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e seu tempo

Nemésio se referiu com mais detalhes da vida de Rebello no pro-


grama impresso do concerto do Palácio Foz do Duo Abreu de 1972:

Natural da Ilha Terceira, um dos sete filhos de um pedreiro de cisternas da


Terra-Chã, de Angra, depois açougueiro no Rio de Janeiro (Copacabana). No
seminário diocesano c. [cerca] 1914, fez preparatórios no Liceu. Em crise de
vocação, feito o 7º ano de ciências emigrou com o pai (de visita à terra) para
o Rio de Janeiro (1920), onde foi caixeiro-viajante e cortador de carne no
açougue familiar, por morte do chefe (1928) (NEMÉSIO, 1972 apud MENDES e
FARJOZ, 2007, p. 45)

Nota-se na próxima fala que Nemésio transcende a simples


informação biográfica, preocupando-se em ligar Rebello à procedên-
cia de seus antecessores, professores e contemporâneos, inclusive co-
nhecedor de fatos do violão brasileiro, até nomeando Robledo como
origem da vertente clássica. Pela amizade entre o literato e Rebello,
posso deduzir que são dados obtidos e interpretados pelas suas fortes
relações pessoais, pois sabe-se que mantiveram contato por toda a
vida. Essa gênese é provavelmente um reflexo de uma visão também
de Rebello.

Casado com D. Ilda Tavares, três filhos. Amador de viola açoriana de “seis
parcelas” desde os seis anos, entusiasmou-se ouvindo os “choros” cariocas
de Canhoto e Quincas Laranjeira, companheiro de Heitor Villa-Lobos, com
quem se iniciou no estilo de violão brasileiro e, autodidacticamente (pelo
método de Aguado), na guitarra clássica6, recebendo depois longo ensino de
Isaías Sávio, discípulo uruguaio de Miguel Llobet (linhagem violonística de
Fernando Sor e Tárrega), de 1933 a 1940. Ambos iniciaram o Rio de Janei-
ro (onde Josefina Robledo lançara semente virtuosística) nos repertórios e
técnicas superiores de violão: concertos a solo e a duo na Escola Nacional de
Música e nas Rádios “Globo” e Roquete Pinto.

E continua:
Ensinando já Sávio em São Paulo (1940), os recitais anuais de Rebelo e seus
alunos no Rio foram considerados decisivos para a formação de uma escola de
excelentes instrumentais de clássico e do castiço brasileiro com expoente no
Heitor Villa-Lobos dos prelúdios, também violista de experiência. Do magis-
tério de Sávio saíram Barbosa-Lima e Luiz Bonfá. No de Rebelo se formaram:
Turíbio Santos, Prêmio Concurso Internacional RTF Paris, 1965, e professor
nos conservatórios de Nancy e de Rennes; Jodacil Damasceno, assistente de
Turíbio em Paris; finalmente seus netos Sérgio e Eduardo Abreu (NEMÉSIO,
1972 apud MENDES e FARJOZ, 2007, p. 46)

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202
e seu tempo

No próximo ponto do texto, o literato menciona a relação do avô


Rebello e seus netos já reconhecidos:

Filhos do professor Osmar Abreu e de Maria de Lourdes Rebelo, aos quais An-
tónio Rebelo, pai desta, deu lições de violão. Pelos sete anos de Sérgio o avô
perguntou-lhes: – “quem quer aprender?” Sérgio: “Eu quero!” Eduardo: “E eu
também”. Desenhou lhes as chaves das mãos num papel e deu-lhes violas pe-
queninas (construía com Sávio), que levaram para o colégio dos beneditos do
Rio. Aos sábados tocavam Giuliani e Graziani em trio, com o avô (NEMÉSIO,
1972 apud MENDES e FARJOZ, 2007, p. 47).

Em seguida, resume a carreira de sucessos do duo, citando o tra-


balho de Monina Távora, e elenca várias notícias de jornais estrangei-
ros a respeito do Duo Abreu e, inclusive, o verbete do Dicionário Grove
sobre o duo.
A terceira homenagem foi por ocasião do Centenário de Rebello,
2002, em um importante evento local, o Festival Internacional de Mú-
sica dos Açores, que teve a iniciativa de realizar uma programação
especial em memória a Rebello.

Por ocasião da passagem do Centenário do seu nascimento (2002) o autor


(J.F.)7 e Adriano Jordão, como responsáveis pela organização do Festival In-
ternacional de Música dos Açores, propuseram a Câmara municipal de Angra
do Heroísmo que a XV edição do Festival fosse especialmente consagrada a
comemoração desse centenário, o que recebeu o acolhimento da autarquia
local que patrocinou integralmente o projeto, que constou do seguinte pro-
grama: Sete de Setembro: recital de Victor Castro e inauguração de uma ex-
posição fotográfica e documental apresentada e comentada pelo prof. Jodacil
Damaceno, que foi assistente de António Rebelo; 8 de setembro, recital pelo
jovem pianista João Bettencourt da Câmara; 9 de setembro, recital de Turíbio
Santos, antigo aluno de António Rebelo, e de um grupo de jovens músicos do
projeto que Turíbio Santos dirige no Rio de Janeiro de recuperação social de
miúdos das favelas através da música8; 10 de setembro- recital de guitarra
de Dagoberto Linhares e do seu ensemble de 8 guitarras. (MENDES e FARJOZ,
2007, p. 47).

Nesta homenagem, nomes essenciais de ambos os países se ir-


manaram para um trabalho artístico e memorialístico. Por um triste
acaso, Maria de Lourdes Rebelo falece no Rio de Janeiro no mesmo dia
do início das homenagens no XV Festival Internacional de Música dos

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Sérgio Abreu
203
e seu tempo

Açores em Angra do Heroísmo.


Como dito, Vitorino Nemésio foi literato dos mais conceituados
no país, a poesia era o seu mister. Após a morte do amigo Rebello,
dedicou-lhe um poema, assim contextualizado por MENDES e FARJOZ
(2007, p. 46): “Nas suas inúmeras visitas ao Brasil, Nemésio procurava
sempre António Rebelo, até que um dia dedicou à sua memória esta
Nénia9 de meu violão novo, composta a bordo do ‘Aragon’ em via-
gem do Rio para Lisboa, a 05.12. 1968”. Veja-se adiante que o poema
é uma nítida demonstração de quanto Nemésio conhecia do circuito
violonístico brasileiro, pela mediação em vida e no “eu poético” que é
Rebello, agora nobremente velado em versos pelo amigo:

“Meu violão de concerto

Brasileiro de raiz,

Caixão de enganos:

Não paramento de tumba

Mas paz de meus velhos anos.

Viola, violão airado,

Preciso como o batente,

Redondo no som pulsado

Como coração de gente.

Mais amplo do que as seis ondas,

Negro pelos olhos de Ela

Grave como de preceito

Rente de sua janela.

Silvestre Delamara10 te fez,

Silveira te experimentou

Rasgando de alma briosa,

E em prelúdio Villa-Lobos

Santa Maria dos Anjos

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Sérgio Abreu
204
e seu tempo
Atenta te acalentou

Com aquela graça antiga

Que o Anjo Custódio11 herdou.

Baptizou-te Jodacil

com mão de mestre, o Brasil

De vento te encordoou.

(NEMÉSIO 1968 apud MENDES e FARJOZ, 2007, p. 46)

Concluo que do avô Rebello, sons e dons atávicos reverberaram


sobremaneira em Sérgio Abreu.

2. No tempo e o tempo de Sérgio Abreu

O eixo Rio-São Paulo na década de 1960 era o ponto de encontro


para atuações de excelência ao violão por, em especial, Maria Livia
São Marcos (1942-), Carlos Barbosa Lima (1944-2022) e Turíbio San-
tos (1943-), reunião de notáveis músicos que fará crer na carreira in-
ternacional de concertista como algo possível a acontecer a músicos
brasileiros. O recém-falecimento de Heitor Villa-Lobos (1959) tem o
efeito de um sinal de alerta contra a dispersão, e logo realiza-se uma
reunião de forças para a criação do Museu Villa-Lobos (1960), com
Mindinha à frente. Tendo Villa-Lobos no currículo, a classe dos músi-
cos nacionais vira notícia dentro da música clássica mundial.
Maria Livia fez a estreia brasileira do Concerto de violão e pequena
orquestra, de Villa-Lobos, tendo Alceo Bocchino na direção orquestral
da orquestra da Rádio MEC (1961); em breve iniciará uma carreira na
Suíça, tendo Portugal (berço paterno) como porta de entrada para sua
vida de concertista internacional. Turíbio Santos grava e estreia os 12
Estudos de Villa-Lobos e ruma a Paris, para participar e vencer o VII
Concurso da Radio France (1965), fato raríssimo para os brasileiros12.

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Sérgio Abreu
205
e seu tempo

O precoce Barbosa Lima na década anterior (1956) já havia estreado,


com carreira fonográfica e nos palcos.
E no ano de 1963 temos a estreia oficial do Duo Abreu, no auditó-
rio da ABI (Rio de Janeiro), com Monina Távora, em concertos anuais,
que seriam de sua orientação e preparação – perfeccionismo e apro-
priação do tempo peculiar, já desde o começo.
A exposição de antepassados e seu entorno, com momentos his-
tóricos da música na adolescência de Sérgio Abreu, representa o que
ele recebeu das vivências desses primeiros núcleos artístico-cultu-
rais, transferindo modos de avaliar situações e solucionar problemas.
Vejo isso como um saldo, em que uma parte que veio de um tempo de
experiências construídas socialmente foi sendo aplicada num futuro
desejoso em seguir na Música, como aqueles demais brasileiros, e, si-
multaneamente, para que conseguisse ser ele mesmo.
Assim, creio que de um caminho inicial, por ressonância da fa-
mília, pela transição gradual para professores, do ambiente musical
de época – de grande arco estético –, isso tudo se conectou para uma
vida com muita arte, até o momento em que, por sua própria intensi-
dade, Sérgio Abreu passa a fazer e viver a própria arte.
Mas viver a Arte e ter um estilo trazem seus problemas, a socie-
dade cobra sempre uma reprodução de modelos e estranha as contra-
riedades. Justamente, no momento em que se adquire uma aparente
estabilidade repetitiva de padrões, é quando o Duo Abreu se desliga
das convenções mais esperadas do mundo do concerto: a exibição pú-
blica e a promoção da carreira na velocidade real do mercado13.
O que já se esboçava no comportamento antiestablishment dos
dois irmãos, consubstanciado artisticamente pela singularização de
suas performances, atravessa agora todo o seu ser, passando a não
fazer mais nada que os atrase ou impeça de atingir sua meta: serem
eles mesmos.

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Sérgio Abreu
206
e seu tempo

Chego à conclusão de que Sérgio Abreu – adquirindo um tem-


po particular para fazer sua arte – conseguiu de fato ser ele mesmo,
com as consequências disso, inclusive para o próprio. Pessoas que
escolhem maneiras diferentes de assumirem seus modos de vida, já
passaram por um período em que experienciaram seus potenciais de
singularização tentando ser alterados pelas convenções.
Mas para Sérgio Abreu, seu cotidiano musical era de um foco
profundo, o seu mundo. Sua trajetória é também a demonstração de
como persistiu em se religar à sua essência perfeccionista, fazer um
caminho interior. Abreu era irredutível; ele produziu e viveu exata-
mente como quis. Seu sentido personalíssimo de viver estava em um
tempo que parece outro. O tempo de Sérgio Abreu.
Tendo como mote a necessidade cotidiana de seu trabalho, ele
quis estar em extrema concentração para otimizar o tempo, que du-
rava não em horas, mas no fluxo para iniciar e acabar suas criações
– foi assim como músico e luthier, realizando-se no processo de sua
produção perfeccionista.
Por isso, temos as notícias do tempo de Sérgio Abreu e o tempo
de Sérgio Abreu, por onde, de fato, ele esteve durante todos esses
anos.
Com certeza pode-se afirmar que ele foi uma das pessoas mais
singulares das quais, nós da ampla atividade artístico-musical, fomos
contemporâneos.

2.1. Entrelaçamentos finais: conceitos e reiterações da singularidade


de Sérgio Abreu

Gostaria, ao finalizar, de usar conceitos para reiterar argumen-


tos que eu trouxe no texto para comentar a principal característica
que vejo em Sérgio Abreu: a sua singularidade perante as subjetivida-

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Sérgio Abreu
207
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des construídas.
Ao creditar à notória trajetória do avô Rebello como algo de mui-
ta contribuição à materialidade da carreira de Sérgio Abreu, posso
citar Pierre Bourdieu (1983) que estudou o conceito de habitus pelo
aspecto socializador, como a experiência e transferência adquiridas e
de uso para novas situações; vejo nisso analogias com aquelas raízes
(o círculo do violão e da luteria do avô) posto que ficou apontado que
Sérgio Abreu recebeu uma iniciação e primou pela singularização, em
uma espécie de diálogo com independência de ideias e novas soluções.
Abreu desponta em um momento efervescente do violão, a dé-
cada de 1960, cujo avô Rebello era e se relacionava com grandes no-
mes do circuito violonístico, visto como um ambiente ainda dúbio
sobre as posições conquistadas na música de concerto. É evidente em
Sérgio Abreu a força criadora inicial fortalecida pelo meio em que
violonistas já atuavam com desenvoltura, isto é, havia a visibilidade
da vida concertística possível com o instrumento, pelas notícias de
época. Isso, no entanto, não o interessou como consequência natural,
inerente a qualquer atuação musical.
A continuidade de uma carreira musical não se tornou o seu
ponto de contato com o instrumento, pareceu-me que, devido à sua
singularidade em meio às trajetórias violonísticas mundiais de brasi-
leiros apontados e estrangeiros como Bream e Williams (Segóvia era
o “marco zero”), o seu objetivo era outro, tal seria chegar à perfeição
musical, e para isso o extremo foco e as técnicas (inclusive a constân-
cia em se gravar, concertos e ensaios, e a duração do seu foco) foram
elementos melhor organizados por Monina Távora, e levados mais
adiante por Sérgio Abreu (e Eduardo, até certo ponto na história em
comum).
Outros pontos teóricos são a projeção da Arte com o nível de em-
penho em uma vida; em teoria é uma questão já abordada por estu-

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Sérgio Abreu
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diosos como Luigi Pareyson (1989), em que o fazer artístico e a pessoa


se integram no objeto; e, mais ainda, a força de uma singularidade,
como de Sérgio Abreu, em atrito e paralelização com a Subjetividade
Contemporânea como nos molda a sociedade, foi ao que se dedicaram
muito os autores Deleuze e Guattari (1995; 1996; 1997), e tudo isso re-
flete conceitualmente, a meu ver, o afastamento de Abreu dos palcos,
embora reunisse inúmeras condições, com excelência técnica e mu-
sicalidade necessárias, para o trabalho da performance em música de
concerto.
Por fim, em relação ao uso personalíssimo que Sérgio Abreu fez
do Tempo, tratado como duração, e não o tempo medido, foi algo far-
tamente demonstrado na biografia de Dias, de como o violonista ca-
rioca se “perdia” em tempos, em que horas não eram contabilizadas
se o seu objetivo precisava ser alcançado. O tempo como duração foi
um tema especialmente abordado por Henry Bergson (1991), inclusi-
ve, esse filósofo francês utilizou-se da experiência com a música para
exemplificar a ideia da tal duração não medida.
Com meu argumento inicial da presença do avô materno como
início da materialização de uma carreira, somado com a colocação
de um círculo que se fecha por aquilo que aproxima avô e neto (as
atividades com violão e luteria), isso dá margem para algumas consi-
derações que deixam transparecer o simbolismo que temos aqui: um
imigrante português, do início do século XX, aficionado das cordas
dedilhadas, chega ao Brasil – um terreno também fértil e com a im-
prescindível atuação do uruguaio Sávio, outro imigrante – e se torna
uma referência. Assim, é revelador que olhemos para o enlace Portu-
gal (a ancestralidade nas violas), países do Cone-Sul (Argentina, Para-
guai e Uruguai, em figuras como Barrios, Sávio, Monina e Carlevaro) e
Brasil (o lugar dos encontros) como uma genealogia da conformação
do perfil brasileiro do violão. Sobre este ponto trazido ao presente

REVISTA VÓRTEX - Série Ebooks | Volume 1


Sérgio Abreu
209
e seu tempo

texto, vemos que até isso está refletido na formação de Sérgio Abreu
e demonstra uma fraternidade que tem em comum atuações oriundas
de localidades com afastamento dos grandes centros.
Com a ascensão do Duo Abreu e da meteórica carreira solo de
Sérgio, o avô Rebello foi agente e testemunha, que vê a projeção de
seus próprios sonhos musicais no Duo Abreu, pois esses são a concre-
tude do que Rebello veio para trabalhar – a música e o violão como
instrumento habilitado a proporcionar práticas e dar visibilidade a
múltiplas vertentes da história da música (dos grandes centros). Tan-
to é que as homenagens a Antonio Rebello tratam de sua lida pessoal
e estampam os nomes que consubstanciam tal projeção: em especial
a Jodacil, Turíbio e aos netos Abreu. Rebello e Duo Abreu, com o natu-
ral aspecto da ancestralidade, demonstraram a corrente de aconteci-
mentos, aurora e apogeu do que Rebello buscou.
A contribuição de Sérgio Abreu foi imensa para a música e o vio-
lão, mesmo retirando-se tão cedo dos palcos, lugar em que se perfilou
com grandes nomes da música de concerto e espaço que era a evi-
dência de suas habilidades, e de seu irmão, transferidas para outras
esferas. No caso do Duo Abreu, o assombro continuou em seus LPs
difundidos e nos relatos de quem os assistiu. E de Sérgio Abreu, a la-
cuna artístico-musical sentida pelo público pôde ser atenuada pela
admiração ao luthier, sendo uma visita a sua oficina um momento de
reiterar o que sempre se veiculava sobre ele.
O tempo agora é de despedida e de salvaguarda de tudo o que
Sérgio Abreu representa.

REVISTA VÓRTEX - Série Ebooks | Volume 1


Sérgio Abreu
210
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1. [1] A página do evento informa: “O Festival Internacional dos Açores em 2021 será dedicado ao
Brasil e à relação dos músicos brasileiros com esta ilha açoreana. (...) Neste ambiente mágico
relembramos Villa-Lobos, um dos maiores compositores brasileiros do sec. XX, descendente de
açoreanos. Músicos brasileiros farão parte da edição deste ano, com especial destaque para
o grande pianista mundial Nelson Freire, ele próprio descendente de faialenses [Ilha do Faial
– Açores], ascendência conhecida que nos remonta aos finais do século XVII”. Freire acabou
cancelando sua ida devido ao seu estado de saúde. Ver 16º Festival Internacional dos Açores.
Disponível em: https://festivalinternacionalacores.com/fia Acesso em: 15 de maio de 2023.
2. [2] O sobrenome Rebelo em Portugal é com uma letra l. No Brasil, Rebelo passou a ficar
conhecido e grafado com duas letras l – Rebello, e sem o acento agudo na tônica de
seu prenome: António. Vamos utilizar a grafia adotada no Brasil – Antonio Rebello, mas
respeitando a grafia original se assim estiver nos textos portugueses consultados.
3. [3] Disponível em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/evocacao-de-
antonio-da-costa-rebelo/Acesso em: 19 de dez. 2022.
4. [4] Disponível em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/concerto-de-Sérgio-
e-eduardo-rebelo-abreu/ Acesso em: 19 dez. 2022.
5. [5] Disponível em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/musica-para-
guitarra-classica/ Acesso em: 23 de abr. 2023.
6. [6] Nomenclatura comum em Portugal atribuída ao violão de repertório de concerto.
7. [7] J.F. – abreviatura de um dos autores da publicação Jorge Farjoz (2007).
8. [8] Provavelmente, refere-se ao trabalho de Turíbio Santos à frente do Museu Villa-
Lobos e ao programa musical com a comunidade de Santa Marta.
9. [9] Nénia é o canto fúnebre em Poesia.
10. [10] Menção ao luthier Silvestre Delamare, autor de um modelo Rebello, Violão Do Souto.
11. [11] Anjo Custódio é o Anjo protetor de Portugal
12. [12] Pouco meses antes (1964), o pianista Nelson Freire (1944-
2021) recebe o Prêmio Vianna da Motta em Portugal.
13. [13] Turíbio Santos, um dos nossos maiores concertistas com vasta experiência de turnês, habitualmente
fala da solidão que a carreira acarreta, como um efeito colateral ao qual poucos se preparam, e que
Sérgio Abreu estava “insatisfeito com a solidão da vida de concertista“ (DIAS, 2015, contracapa).

REFERÊNCIAS

ALFONSO, Sandra Mara. Jodacil Damaceno: uma referência na trajetória do violão no Brasil. Dis-
sertação (Mestrado em História Social), Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
2005.

ALFONSO, Sandra Mara. Jodacil Damaceno e seu legado para o violão brasileiro: a prática de
um professor. Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, 2017.

ANTUNES, Gilson. Soberano dos Violões. Revista Violão PRO. n°11, pp. 21-27, 2007.

BERGSON, Henry. Oeuvres, éditon du Centenaire. Paris: PUF, 1991.

BOURDIEU, Pierre. Sociologia (organizado por Renato Ortiz). São Paulo: Ática, 1983.

DELEUZE, G. ; GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia.V.1. Trad. Aurélio Guerra


Neto e Celia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.

DELEUZE, G. ; GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. V. 3. Trad. Aurélio Guerra


Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claúdia Leão e Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Ed 34, 1996.

DELEUZE, G. ; GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. V. 4. Trad. Suely Rolnik.

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Sérgio Abreu
211
e seu tempo
Rio de Janeiro: Ed 34, 1997.

DIAS, Ricardo. Sérgio abreu – uma biografia. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, 2015.

MENDES, António Ornelas & FORJAZ, Jorge. Genealogias Da Ilha Terceira, Vol. 8 - Rayte a
Silvano. Angra do Heroísmo: DizLivro Histórica, pp.45-48, 2007.

MORAIS, Luciano Cesar. Sérgio Abreu sua herança histórica, poética e contribuição musical
através de suas transcrições para violão. Dissertação (Mestrado em Música). Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2007.

PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

TABORDA, Marcia. Violão e Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

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Sérgio Abreu
212
e seu tempo

Sérgio Abreu - Concatenação e Sincronia


Vicente Paschoal

A primeira vez que ouvi o Sérgio falar de concatenação e sincro-


nia foi com o Duo Siqueira Lima.
Sérgio insistia que estava dessincronizada a mão esquerda com
a direita, de ambos. E estava dando uma pequena interferência na
limpeza da música.
Na ocasião, eu e Ricardo Dias estávamos de passagem na casa do
Sérgio e, no dia seguinte, iríamos encontrá-los para um jantar.
No tempo em que lá ficamos, tentei perceber o que o Sérgio dizia
sobre estar dessincronizado, mas não conseguia entender, pois, para
mim, estava uma perfeição. Nada a dizer sobre a interpretação ou a
técnica do Duo. Sei que Ricardo também não havia visto nada de er-
rado, pois conversamos sobre isso na volta para casa. E, até onde eu
pude perceber, o próprio Duo estava em dúvidas.
No dia seguinte, antes do jantar, o Duo passou o repertório, e
sentimos que havia algo muito estranho, uma coisa a mais, uma per-
feição a mais, uma magia. Eles tinham conseguido a concatenação e a
sincronia que o Sérgio estava buscando! Foi incrível presenciar isso.
Quando cheguei em casa, pensei muito sobre o assunto e resolvi
entender isso, perceber e estudar uma forma de elaborar exercícios
para desenvolver esta concatenação.
Como gosto muito de técnica e é a minha especialidade, isolei a
ideia e elaborei alguns exercícios de prática. Entendi e observei várias
coisas que o Sérgio dizia sobre técnica: a martelada de mão direita e
esquerda, o entendimento de que um som, no violão, é produzido por

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Sérgio Abreu
213
e seu tempo

dois movimentos sincronizados etc.


Depois de muito exercício, resolvi aplicar. Escolhi as Variações
sobre Guardame Las Vacas, do compositor Luís de Narvaez. Isolei o as-
pecto técnico e trabalhei somente isso, sem nenhuma interpretação,
para poder perceber a técnica funcionando. Quando fiquei satisfeito
com os resultados, mandei para o Sérgio.
Dias depois, recebo uma mensagem do Ricardo, dizendo, mais ou
menos, assim:
“Vicente, o Sérgio está preocupado com você! Ele disse que você
mandou uma gravação de Guardame Las Vacas para ele, e disse que es-
tava horroroso!”
Liguei para o Sérgio e expliquei que era uma tentativa de fazer a
sincronia de mão direita e esquerda, sem interpretação alguma, para
poder reconhecer a técnica.
E ele disse:
“Olha, está muito bem sincronizado, você conseguiu! Mas não
adianta nada tocar assim, né?”
O Sérgio nunca separou técnica de música. Esta foi, com certeza,
a maior de todas as lições que aprendi com ele. Para ele, nada estava
resolvido em Guardame Las Vacas. Só estaria, quando soasse magica-
mente, como foi com o Duo.

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Sérgio Abreu
214
e seu tempo

Relato de experiência
Walmor Boza

O ano era 2009, estava no primeiro ano da graduação e sempre


ia à casa de meu tio, Vilmar Boza, para mostrar minha evolução ao
violão e apresentar a performance das obras que estava tocando. Ele
sempre me incentivou a seguir em frente com os estudos, tanto que
nesse mesmo ano ele me perguntou – “Qual é o melhor violão do mun-
do?” – Eu prontamente respondi que era o do Sérgio Abreu, meu tio
então perguntou de onde ele era e se eu tinha o contato dele. Após al-
gum tempo conversando ele me disse – “Então entre em contato com
o Sérgio Abreu, encomende o violão que eu irei pagar.” – mal sabia o
meu tio que naquele momento a minha vida mudaria para sempre!
Consegui o e-mail e também o telefone do Sérgio, mandei um
e-mail e liguei na mesma hora (12/03/2009, às 22:16 hrs), do outro
lado uma voz calma atendeu (nesse momento balancei, estava falan-
do com um dos meus maiores ídolos), me apresentei e disse que havia
enviado uma mensagem sobre a encomenda de um violão, ele muito
simpático disse que naquele mesmo dia iria me enviar as informações
necessárias para efetuar e encomenda e que a fila de espera estava
prevista para aproximadamente um ano e quatro meses. Sérgio me
respondeu no dia 13/03/2009, às 00:53 hrs, algumas horas depois da
nossa conversa, ali estava selada a encomenda.
Sempre tive a fama de ser chato e com o Sérgio não foi diferen-
te, ao longo de 2009 liguei para ele algumas vezes, sempre deixando
claro que não tinha pressa para pegar o meu violão, que ele poderia
construir o meu apenas quando estivesse muito inspirado e que na

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Sérgio Abreu
215
e seu tempo

ocasião da ligação eu apenas aproveitava para trocar umas palavras


com o meu ídolo; Sérgio sempre muito humilde apenas respondia –
“Tá tá tá” – quando eu começava a dizer o quanto o admirava, mas
como sempre fui muito palhaço, ainda conseguia fazer ele sorrir um
pouco. Passou-se o ano, já me encontrava em julho de 2010 quando o
Sérgio disse que meu violão atrasaria um pouco e que ficaria pronto
em setembro, eu disse que não havia problema e ele de uma maneira
muito simpática disse que se eu fosse pessoalmente buscar o violão,
poderia ficar em sua casa. É claro que aceitei, na verdade esse sonho
só melhorava!
Viajei ao Rio de Janeiro no dia 30/09/2010, cheguei ao apartamen-
to do Sérgio, localizado em Copacabana, na hora do almoço. Toquei a
campainha, fui atendido por um homem um pouco mais alto que eu,
camisa xadrez, uma barba um pouco longa e um olhar penetrante,
era ele, o meu ídolo! Sérgio prontamente me cumprimentou e pegou
a minha mala, que homem educado, quem o conheceu pessoalmente
pode confirmar. Disse que era um prazer me receber e me convidou
para almoçar; descemos e fomos a um restaurante bem próximo. Na
fila do buffet eu fiquei pensando, como esse sonho só melhora! Terei
um violão Abreu, estou na casa do próprio e agora “de quebra” estou
almoçando com ele! Sérgio fez seu prato primeiro e me mostrou em
qual mesa estava, fiz meu prato e me dirigi à mesa, porém no caminho
olhei meu prato e senti vergonha, estou almoçando com um gênio e
veja o que irei almoçar... No meu prato havia pães de queijo, pastéis
e uns pedaços de carne; mas agora é tarde para me arrepender terei
de comer isso mesmo, pensei. Porém ao chegar à mesa, para o meu
espanto, o prato do Sérgio contava com pães de queijo, pastéis e mais
um monte de outras coisas. Comecei a sorrir, ele olhou meu prato e
provavelmente entendeu o motivo do meu riso, tudo isso acompa-
nhado de um vinho.

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Sérgio Abreu
216
e seu tempo

Após o almoço subimos para o seu apartamento, ele pegou o meu


violão e tocou uns acordes, parecia um pai se despedindo de um fi-
lho que iria partir, afinou e me entregou. Toquei algumas músicas e
enquanto tocava o Sérgio ia afinando o violão, nessa época eu tocava
muito pior que hoje, porém ele me ouviu um pouco e começou a tra-
zer outros violões para eu ver, para a minha surpresa esses violões
eram o Hauser 1930 e o Santos Hernandez 1920 que ele e seu irmão
usavam! Mais uma vez pensei, esse sonho só melhora!
Enquanto eu tocava nesses violões incríveis, o Sérgio pedia para
eu tocar determinados trechos e eu obedecia, prontamente tocando
em todos os violões. Após tocar um tempo, eu insisti por alguns con-
selhos, ele em poucas palavras me deu dicas sobre como pensar o
ritmo das notas, como fazer ligados mais sonoros e algumas outras
curiosidades. Ao cair da noite ele foi para oficina, eu fiquei sozinho
em seu apartamento admirando o meu violão novo. No outro dia al-
moçamos novamente e, antes da minha partida, o Sérgio me presen-
teou com dois LP’s autografados e gravações em Cd do Duo Abreu. Re-
tornei para minha cidade com muita alegria e gratidão por ter vivido
momentos tão intensos com um ser humano tão especial.
Em 2011, durante uma de minhas ligações, perguntei ao Sérgio
se eu poderia ser útil em algo, ele relutou, mas eu insisti e ele disse
que estava precisando de sebo de gado ou cordeiro, ele disse que após
tratar esse sebo é possível extrair uma substância bem pura para lu-
brificar o contato entre os rolos das tarraxas e a madeira. Meu pai
tinha um amigo que possuía um açougue, falamos com ele e conse-
guimos uma boa quantia, enviei para o Sérgio por Sedex (é cada coisa
que enviamos por correio) quando chegou o pacote, Sérgio me ligou
agradecendo.
Mas voltando ao fato de eu ser um “grude” (sim, eu sou mesmo,
meu mestre, Fábio Zanon é uma das maiores vítimas disso), conti-

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Sérgio Abreu
217
e seu tempo

nuei ligando para o Sérgio, não com a frequência que eu gostaria,


mas sempre liguei perguntando como ele estava e aproveitava para
falar sobre obras, sugestões de repertório etc. Numa dessas ligações
eu perguntei sobre tarraxas, qual ele me recomendaria e se eu pode-
ria levar para ele trocar. Comprei a tarraxa que ele indicou e quando
as mesmas chegaram, parti novamente ao Rio, o ano é 2012. Cheguei
ao apartamento do Sérgio, o mesmo me esperava, me recebeu com
muita educação, entretanto se desculpou, pois dessa vez, teria de re-
tornar o mais rápido possível ao trabalho, apenas trocou as tarraxas,
me ouviu tocar alguns minutos e se foi. Mas lembro desse dia como
se fosse ontem, pois ao me ouvir tocar ele disse: – “Você está tocando
muito bem”! Esse comentário valeu a minha viagem. Em 2013 nova-
mente eu estava no Rio, mas somente para uma rápida visita em que
trocamos poucas palavras.
Passaram-se os anos, continuei minhas ligações e e-mails, Sérgio
sempre muito atencioso e simpático fez com que eu sentisse que de
certa forma já havíamos estabelecido uma relação de amizade. Todos
os anos eu ligava em várias ocasiões, sobretudo no dia de seu aniver-
sário, em 5 de junho, data esta muito marcante para mim, pois além
de ser o dia do aniversário do Sérgio e de um dos meus irmãos, tam-
bém é o dia de falecimento do meu pai.
No ano de 2019 eu fui convidado para tocar na “Série Violões
da AvRio”, (depois fiquei sabendo que foi o próprio Sérgio quem me
indicou) e como já era de costume, fiquei hospedado em sua casa. Eu
fiquei absolutamente ansioso com o fato de que o meu ídolo, Sérgio
Abreu, iria assistir ao meu concerto (Sim, foi muito difícil tocar com o
Sérgio assistindo). Lembro que o meu querido amigo Ricardo Dias me
disse: - “O Sérgio gosta mesmo de você!” – Perguntei o motivo dele
dizer isso e segundo o Ricardo, quase nunca o Sérgio chegava antes da
primeira música e ficava até o fim do concerto. Tomei isso como um

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Sérgio Abreu
218
e seu tempo

grande elogio.
Após o concerto todos se foram, Sérgio e eu fomos tomar um
café ali no próprio teatro, na ocasião eu estava estudando o concerto
de Villa-Lobos, sabendo da sua genialidade, eu não economizei nas
perguntas, já saí perguntando como tocava determinadas passagens,
ele pensou um pouco, pediu à garçonete um guardanapo e uma ca-
neta e escreveu de cabeça todas as notas das passagens em questão
e todas as digitações que ele fazia, eu simplesmente fiquei em estado
de choque e tomado por uma profunda admiração, ali em frente aos
meus olhos, um gênio estava me dando uma amostra de toda sua ge-
nialidade. Sérgio ainda acrescentou: “Eu não toco esse concerto há
quarenta anos!”.
No dia seguinte, após o almoço, toquei o concerto inteiro para
ele escutar, nessa ocasião estava tocando com o seu primeiro instru-
mento, o violão nº 1. Fiquei absolutamente impressionado com a qua-
lidade do violão, disse ao Sérgio que esse era, sem dúvida, o melhor
violão que já havia tocado na vida, perguntei se ele me venderia, ele
recusou, mas achou curioso eu ter ficado tão deslumbrado com o ins-
trumento. Nessa ocasião, além de tocar o concerto de Villa, toquei ou-
tras obras de Bach, Tárrega, Sor e Weiss, foram horas inesquecíveis.
Quando retornei à Curitiba, escrevi para o Sérgio agradecendo por
cada momento e, mais uma vez, elogiar o violão nº 1 que eu simples-
mente havia me apaixonado.
Após essa ocasião não viajei mais ao Rio por conta da pandemia,
mas aumentei meu número de ligações para uma frequência semanal
(sim, eu sou um grude mesmo), lembro-me de um dia ficarmos con-
versando ao telefone por mais de uma hora sobre uma sonata de Bach
que se estendeu para uma conversa por e-mails com vários exemplos.
Assim se estendeu o meu contato com Sérgio ao longo dos anos de
2020 e 2021.

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Sérgio Abreu
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e seu tempo

Em 2022, com o passar da pandemia, no mês de novembro, eu


iria realizar um novo concerto pela “Série Violões da AvRio”, dessa
vez minha esposa, Daiane, iria comigo para conhecer o meu ilustre
ídolo e que eu agora tomava a liberdade de chamar de amigo. Porém,
em outubro eu tive complicações na vesícula biliar o que me fez can-
celar os concertos até o final do ano. Liguei para o Sérgio explicando
o ocorrido, ele me contou que seu pai havia passado pelo mesmo pro-
blema, que era uma coisa terrível, me desejou melhoras e conversa-
mos mais um pouco antes de desligar.
Em novembro novamente liguei para o Sérgio, a essa altura eu já
não dizia que era eu, com tantas ligações, só de ouvir minha voz ele
já sabia de quem se tratava. Sérgio muito atencioso perguntou como
eu estava e que naquele mesmo instante estava pensando em mim e
eu logo pensei: - “Que honra! Eu presente na memória do Sérgio!” –
Conversamos como de costume.
Deixei passar uns dias, fiquei sabendo pelo meu amigo, Ricardo
Dias, que o Sérgio não estava muito bem de saúde, esperei até o dia 23
de dezembro. Nesse dia o Sérgio me atendeu com a voz um pouco trê-
mula e percebi que ele de fato estava debilitado, não quis me estender
na ligação, entretanto era o Sérgio que estava querendo conversar
mais, me disse palavras amorosas e me agradeceu por toda amizade
que eu tinha por ele (nesse momento eu fiquei muito emocionado),
foi então que o Sérgio perguntou se eu ainda tinha interesse no Abreu
n° 1 e que ele gostaria que o instrumento ficasse comigo, eu disse que
seria uma honra e que eu iria usá-lo pelo resto da minha vida, assim
ficou acordado entre nós. Então ele me pediu para enviar uma mensa-
gem por WhatsApp para tratarmos de valores e formas de pagamento,
antes de desligar mais uma vez agradeceu pela amizade e nos despe-
dimos com votos de boas festas de fim de ano.
Antes de o Sérgio ser hospitalizado, gentilmente a Maria Haro (por

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Sérgio Abreu
220
e seu tempo

quem sou muito grato) terminou as negociações entre nós seguindo


as orientações dele, sempre muito generoso. Ela posteriormente dei-
xou o violão com Ricardo Dias. Sérgio faleceu em 19/01/2023, quando
fiquei sabendo da notícia eu me emocionei muito (exatamente como
estou agora), ali eu me despedi não só do maior gênio que um dia eu
poderia ter conhecido, eu me despedi do meu amigo. Se eu soubes-
se que aquele concerto que cancelei dois meses antes seria a última
oportunidade de ter visto o meu ídolo, sem dúvidas eu teria ido, por
várias razões, sobretudo para a minha esposa conhecê-lo, pois mes-
mo sem ela ter convivido com o Sérgio, idealizou um duo em sua ho-
menagem, que o Sérgio, juntamente com o Ricardo, batizou de Duo
Rebello, além de ter dado início ainda em 2022 em seu maior projeto,
que é a Catalogação dos violões Abreu.
Prometi ao Sérgio que tocarei com seus violões para sempre, irei
empunhar um violão Abreu para onde for, o violão Abreu n° 1 con-
tinuará soando enquanto eu viver. Esse é o meu relato, só tenho a
agradecer ao Sérgio pela sua generosidade e ter me dado o privilégio
de chamá-lo de amigo.

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Sérgio Abreu
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Créditos

Organizadores: Humberto Amorim, Ricardo Dias, Felipe de Almeida Ribeiro, Fabio Guilherme Poletto

Projeto Gráfico: Jack de Castro Holmer

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