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Requiem

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Registro da obra®: Bruno “More Eyes” Moraes Alves
Texto, Edição e Revisão: Bruno “More Eyes” Moraes Alves
Diagramação: Bruno “More Eyes” Moraes Alves
Ilustrações do Interior: Bruno “More Eyes” Moraes Alves e MidJourney (todos os
direitos de imagem pertencem a Bruno)

ISBN 978-65-00-62109-9
Ficha Catalográfica:

A474r ALVES, Bruno Moraes.


Requiem: Anjo das Sombras / Bruno Moraes Alves; Ilustrações:
Bruno Moraes Alves; Sobral: UICLAP, 2023.
114 f. : il

ISBN 978-65-00-62109-9

Código de Assunto
B869.3 Literatura brasileira. Ficção e contos brasileiros

Subgênero
1. Ficção; 2. Ficção brasileira; 1. Título

CDD: B869.3 .
CDU: 821.134.3(81)-3

Publicado e Distribuído por UICLAP

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610/1998 (Direitos Autorais).


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Bruno Moraes Alves
https://rpg.more-eyes.com/
e-mail: bruno_ma@hotmail.com

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Ao amigo-irmão Thiago Memória,
pelo incondicional apoio a todas as iniciativas.
E por ter acreditado em mim quando até eu mesmo duvidei.

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Índice

A Velha Cruz ............................................................................................................................ 13


O Anjo ....................................................................................................................................... 17
O Caminho da Espada .......................................................................................................... 21
Os Cinco Fundamentos ........................................................................................................ 30
Os Cinco Elementos............................................................................................................... 51
Os Cinco Objetivos ................................................................................................................ 61
Um Momento de Três Partes ............................................................................................. 74
A Primeira Base ....................................................................................................................... 78
Aiko ............................................................................................................................................. 83
Segredo Guardado ................................................................................................................. 97

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No alvorecer da ainda jovem Criação,
Antes do homem de seu Sono despertar,
Uma Rebelião nos Céus estremeceu o Firmamento.
Anjos Perpétuos, que julgavam incapazes de morrer,
Aprenderam o blasfemo dom de destruir o Espírito um do outro.

Aquele ato era uma atrocidade aos olhos do Senhor,


Pois, se era Ele quem dava a dádiva do existir,
A ninguém seria permitido que a tirasse.
De “Requiem”, então, foi chamado aquele poder,
Abundantes e vis eram seus segredos.

As hordas que o usaram foram banidas do Empíreo,


E o dom foi proibido nos Reinos do Universo eternamente.

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“Quia et Christus semel pro peccatis passus est, iustus pro iniustis,
ut vos adduceret ad Deum, mortificatus quidem carne, vivificatus
autem Spiritu: in quo et his, qui in carcere erant, spiritibus
adveniens praedicavit”

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Entreato
A Velha Cruz

O homem passou a mão calejada em seus cabelos, com a


cabeça recostada para trás. De todas aquelas memórias guardadas
há décadas, muitas permaneciam intocadas, imaculadas. Outras
eram vagas e imprecisas, de forma que era necessário grande
esforço para recordar. Em certas lacunas, estava certo, até alguma
liberdade criativa era tomada a fim de criar significados,
explicações e interpretações que hoje lhe faltam.
Há também a marca, é claro. Ela ajuda imensamente. Quase
como em um livro, ela lhe permite invocar muitos dos detalhes
extraviados na Espiral do Tempo. Nunca perdidos, pois, como
tudo apoiado na urdidura da Realidade, vão e vêm em eternos
recomeços e relembranças. Apenas extraviados.
Tomou fôlego. Apoiou as mãos no móvel à frente, e seu
toque álgido lhe lembrou de onde estava. Recordou da mansão.
Tantas memórias, tantos momentos. Seu olhar, então, foi de
súbito para a segunda gaveta da escrivaninha. “Estaria ainda lá?”,
pensou.
Abriu então cuidadosamente o repartimento da mobília. O
bolor subiu e ganhou tons furta-cor quando os grãos de poeira
atravessaram a linha de sua visão até a chama das velas.

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Dentro da gaveta, para sua nostálgica surpresa, avistou um
embrulho embolorado, inicialmente indistinguível. Com um olhar
mais apurado, revelou-se um manto branco amarelado, puído
pelas intempéries das décadas. O que mais chamava atenção era a
cruz pátea de cor vermelha, bordada através de seu comprimento
frontal. A velha cruz.
O manto estava dobrado desleixadamente, dando a
impressão de que fora armazenado naquele lugar por alguém
descuidado ou apressado.
O homem retirou o manto de dentro da gaveta, deixando-o
se desdobrar sobre seu colo. Quando o avistou por inteiro, foi
impossível impedir que lágrimas lhe viessem aos olhos. Pois aquele
tinha sido um companheiro de muitas situações, belas e terríveis,
de sua história.
Olhou-o demoradamente, e perdeu-se no tempo enquanto
o fazia. Por fim, decidiu trajá-lo mais uma vez. Uma última vez
antes de fazer o que precisava ser feito.
Bateu a poeira do tecido e o vestiu por cima de suas roupas,
tirando apenas o manto que trazia consigo. Estava uma noite
álgida de qualquer forma, e o calor que vinha crescendo com
sutileza em sua palma da mão direita, ele sabia, não era natural,
nem servia para afastar o frio.
Foi somente quando estava de novo com seu antigo manto
templário que, em meio a um breve lampejo de autocomiseração,
retomou a caneta na mão e voltou a escrever.

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Capítulo 31
O Anjo

Tenho a nítida lembrança daquele dia em que mestre


Chamberlain me salvou dos ciganos. Não apenas por causa das
emoções intensas que vivi dentro da tenda com a cigana, mas
também porque passei o resto do dia inteiro regurgitando as
palavras que ela falou na barraca.
Ela disse que havia uma espécie de “bloqueio” em mim. Algo
que selava a visão de quem quer que fossem seus “aliados
espirituais”. E aquilo a deixou absolutamente estupefata, como se
não fosse comum. Ora, é claro que não era comum! Era comigo! E
comigo tudo sempre era mais complicado.
E a reação dela ao avistar a marca do fogo? O espanto. O
surto. Os espasmos. Tremo mesmo hoje ao lembrar. A mulher
estava desesperada, com medo de que eu ou algo fosse matá-la. O
que aquilo significava? Por que ela tinha medo que eu fizesse algo
contra ela?
Todas essas perguntas me consumiram ciclicamente por
horas, e eu precisava das respostas. E senti que era justamente
Madame Zara, aquela cigana, quem podia dá-las a mim.
Mas como? Mestre Chamberlain deixou muito claro que não
queria que eu voltasse àquele lugar, e reconheço que parecia o mais
prudente a fazer.

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Não queria contrariar o comando do meu professor. Por
outro lado, após muito tempo de escuridão eu finalmente tinha a
esperança de encontrar uma luz sobre meu passado. Sobre minha
origem. E sobre todos os mistérios que rondavam a minha
existência.
Eu não fazia ideia se aquele assentamento cigano era
permanente, se aquela comunidade habitava aquele local de forma
definitiva, mas recordo ter visto muitas carruagens e carroças, e
isso me sugeria que se tratava de um grupo itinerante. Quem sabe
quanto tempo ainda permaneceriam em Constantinopla?
Fui deitar à noite buscando paz para minha mente, mas o
destino tinha outros planos para mim. Porque durante aquela
noite, os sonhos sombrios e difusos que eu vinha tendo há semanas
confluíram para uma imagem mais nítida. E pela primeira vez eu o
vi. O anjo.
Era um sonho que eu viria a ter algumas outras vezes no meu
futuro. Eu vi um anjo completamente envolto por sombras, em um
local confuso, escuro e fechado, que muito me lembrava um
templo abandonado e em ruínas. O seu rosto era impossível de
visualizar com clareza, pois havia um capuz em sua cabeça, e o
bioco sombreava toda a região de seus olhos e um pouco do nariz.
Suas asas, escuras, exibiam-se abertas. Não tive certeza se
tinha mais de um par, embora apenas duas asas fossem mais
evidentes. Ele trajava uma couraça celestial, ao passo em que
também era envolvido por trapos, que em muito me lembravam
grilhões.

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Em sua mão, havia uma longa arma de comprida lâmina
coberta por uma chama azul iridescente. Parecia uma grande
glaive.
Eu não conseguia ver ao certo a expressão do anjo. Se estava
triste, ou com raiva, ou tranquilo. Seu rosto era um mistério, assim
como sua própria imagem.
Afinal, quem era o anjo das sombras?

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Capítulo 32
O Caminho da Espada

Por mais que eu quisesse encontrar respostas para meus


anseios e questionamentos, minhas obrigações comandavam meu
cotidiano. Eu passava os dias dedicado aos extenuantes treinos
impostos por mestre Chamberlain.
Além das corridas em torno das muralhas da cidade, eu logo
passei a fazer treinos de impulso e velocidade. Renée ordenou que
sempre que eu atravessasse uma ponte ou viela eu devia fazê-lo
correndo o mais rápido que eu pudesse. Segundo ele, aquele tipo
de treinamento me daria mais músculos, mais agilidade e impulso.
Depois de mais alguns meses, eu também fazia treinamentos
de saltos, abdominais e flexões de braço explosivas. Por mais que
eu protestasse – e eu reclamava bastante –, meu professor era
irredutível.
Durante todo o tempo que eu treinava, minha cabeça
frequentemente se voltava para Constance, em cada vez mais
crescente desejo de revê-la, e para Zara, a cigana, com quem eu
ansiava por novo contato em busca de respostas.
Não recordava precisamente mais quanto tempo eu treinei
meu corpo, mas lembro que pouco antes de completar catorze
anos meu mestre decidiu que eu já havia sido modelado o
suficiente para que prosseguíssemos com as lições.

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Foi numa manhã de quinta-feira quando Mestre
Chamberlain chegou no mosteiro e avisou aos monges que
passaríamos a noite fora e que voltaríamos apenas na sexta.
Nós chegamos ao local usual do início do meu treinamento,
nos amplos campos verdes próximos à Porta de Ouro, que ele me
deu a notícia de que começaríamos a treinar combate.
Foi nesse dia que ele me apresentou o Caminho da Espada.
— Seu corpo está bem mais preparado, garoto. Ainda há
muito que melhorar, mas acho que já é o suficiente por ora. – falou
meu mestre, no habitual francês que já usávamos sempre em nossas
conversas.
Eu já havia melhorado bastante minha desenvoltura no seu
idioma a ponto de Renée admitir que eu era capaz de falar como
o “adolescente petulante” que eu era. Ele nunca perdia as chances
de tecer comentários sarcásticos.
— “Mais preparado”? – eu ri. – Ora, mestre, você não
encontraria um corpo mais adequado do que o meu em um raio de
milhas! Estou até mais alto do que você! Além de mais jovem... e
mais bonito! – cutuquei.
— Vejo que meu treinamento serviu não apenas para afiar sua
mente e seu corpo, mas também para afiar a sua língua! – ele falou,
com um sorriso sarcástico. - Preciso ensinar-lhe logo a lutar, para
que eu possa chutar o seu traseiro toda vez que repetir isso!
Ambos rimos daquilo. A nossa proximidade nos permitia
brincar um com o outro daquela forma, e, mesmo que ele
continuasse a se dirigir a mim como uma criança, eu sentia que

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éramos semelhantes, como dois amigos da mesma idade. De certa
forma, aquilo me fazia lembrar bastante Eidil.
— Pois bem. Ao longo de quase dez meses eu estive
supervisionando seu treino para que pudesse aprimorar sua mente
e seu corpo.
— Dez meses? Puxa, eu sabia que havia sido um longo tempo,
mas acabei me perdendo na contagem. Não lembrava que fosse
tanto!
— Durante todo esse período, nós não fizemos nada além de
prepará-lo para receber o adequado ensinamento marcial do uso
de espadas.
Senti uma pontada de empolgação me percorrer o corpo.
— Tenho que admitir que acho que seu corpo e espírito já
estão preparados para aprender há algum tempo. Mas esperar era
necessário, porque o que eu vou ensinar vai lhe dotar de um grande
poder. Um poder que, se administrado de maneira equivocada,
pode ser usado para praticar o mal.
— E não é isso que nós queremos. – completei. – Eu
compreendo, mestre.
Mestre Chamberlain sorriu para mim ao ouvir aquilo.
Eu poderia discutir, defender minha índole e me indignar
com a mera hipótese que ele tinha acabado de fazer de que eu
pudesse usar algum poder para o mal, mas ao longo de todo aquele
tempo eu tinha aprendido bem sobre o que agradava e
desagradava Chamberlain.

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— Áscalon, o que eu vou ensinar para você agora é muito mais
do que o manuseio de espadas. Vou ensinar a você uma nova forma
de ver o mundo. Uma doutrina; uma filosofia; uma maneira de
viver. Para aprendê-la e vivê-la, você deverá dar o melhor de si e
se empenhar ao máximo. É o que espero de você.
Assenti com a cabeça e assumi uma postura corporal firme e
solene. Renée andou em círculos ao meu redor, enquanto parecia
me examinar. Então parou à minha frente e falou.
— Talvez você não saiba, mas existem dois tipos de pecados...
— Os perdoáveis, que não exigem o sacramento da confissão,
e os capitais, aqueles cuja ausência de confessor enseja a
condenação eterna. – completei quase automaticamente,
lembrando-me das minhas aulas de Doutrina Cristã.
— Perfeito. Os pecados capitais são os mais reprováveis e
repugnantes perante os olhos de Deus. Eles são sete. – parou por
um instante e olhou para mim. – Você saberia dizer quais são os
sete pecados capitais?
— Gula, Avareza, Luxúria, Ira, Inveja, Preguiça e a Vaidade.
Mas segundo Evagrius Ponticus, existiria ainda um oitavo crime
ou paixão humana: a Melancolia, que foi posteriormente
considerada demasiado vaga pelo Papa Gregório I e riscado da
lista.
— Eu não poderia dizer melhor. Para nossa aula de hoje,
contudo, só interessam os sete primeiros pecados que você citou.
Já ouviu falar na Psicomaquia, de Prudêncio?

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— Nós temos dois ou três exemplares na biblioteca do
mosteiro. Li a obra mais de uma vez. – falei sem o menor receio de
soar arrogante.
— Então diga-me qual é o enfoque do livro.
Olhei brevemente para cima, buscando as informações de
memória.
— É um poema com aproximadamente mil versos que narra
batalhas alegóricas entre as virtudes e os vícios humanos.
Mestre Chamberlain tentou esconder o espanto ao perceber
a profundidade de meu conhecimento, mas não conseguiu.
— Exato. Em sua obra, Prudêncio enumera as sete virtudes
antagônicas aos sete pecados capitais, que imagino que você
também conheça.
— A Castidade, que opõe a Luxúria; a Generosidade, que
opõe a Avareza; a Temperança, que opõe a Gula; a Diligência, que
opõe a Preguiça; a Paciência, que opõe a Ira... – passei um tempo
tentando lembrar o resto. – Espera, que são muitos! Hmmm... Ah!
A Caridade, que opõe a Inveja; e a Humildade, que opõe a
Vaidade.
Renée me dirigiu um olhar prolongado.
— Fico me perguntando se há alguma coisa que você não
sabe... – comentou, irônico.
Eu ri. Então ele continuou.
— A rigor, o bom cristão deve trilhar o caminho das virtudes,
evitando praticar qualquer pecado, sobretudo os pecados capitais.
Esse é o código de conduta de todo cristão obstinado. E essa foi a

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vida de todos os Santos. Em uma maneira geral, podemos dizer
que esse é o Caminho da Fé.
— Sim, mestre. É o que se prega no mosteiro e o que é
cobrado dos monges.
— De maneira semelhante, os ensinamentos que vou lhe
passar impõem um código de conduta, igualmente rigoroso. –
calou-se enquanto olhava para o horizonte. – Ele é chamado de
“Caminho da Espada”.

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Capítulo 33
Os Cinco Fundamentos

Lembro vividamente aquele momento. Eu lembro de ter


quase sentido na pele o quanto o a minha história estava prestes a
mudar... Era a concretização do que as Três Irmãs da Espiral do
Tempo tinham revelado sobre o meu destino, e eu não fazia ideia.
Aquela foi minha iniciação numa arte e filosofia que nortearam
minha vida e me renderam parte importantíssima da reputação que
ganhei. Que me tornaram quem eu sou.
Meu mestre fez uma pausa estratégica. Uma ave canora
trinou, entoando uma melodia enquanto o vento balançava as
folhas das árvores ao nosso redor. Então continuou:
— Para trilhar o Caminho da Espada, o guerreiro precisa de
corpo e mente afiados e um espírito virtuoso. Compreende isso,
Áscalon?
Assenti com a cabeça. Eu podia perceber o brilho no olhar
de meu mestre enquanto falava aquilo. Era nítida a importância
que ele dava para aqueles ensinamentos que me passava. Acredito
que talvez fosse justamente por isso que ele se referiu a mim pelo
meu nome, e não simplesmente como “garoto”, como de costume.
Ele prosseguiu:

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— Passei mais da metade da minha vida com uma espada na
mão. Comecei meu treinamento em L'art de l'épée1 com cerca de
quinze anos, um pouco mais velho que você. Eu era também
apenas um garoto. Minhas jornadas me permitiram aprofundar o
conhecimento marcial e também me familiarizar com as variantes
germânicas e italianas do combate armado.
Eu me impressionava mais a cada frase que ele proferia. Não
era à toa que meu pai o tinha escolhido como meu professor.
— As minhas participações nas Cruzadas pela Terra Santa
também me permitiram aprender a zinabzar2 dos persas e a
furusiyya3 dos mamelucos. Todas essas artes moldaram minha
forma de lutar com e sem espada, mas, principalmente, lapidaram
o meu entendimento de quando lutar ou não. Isso é igualmente
importante. O que eu vou lhe ensinar aqui tem como fortes
influências todas essas artes que mencionei.
Ele fez uma nova pausa. Talvez fosse para que eu pudesse
internalizar tantas informações. Pouco tempo depois, continuou:
— Mas o principal pilar dos meus ensinamentos aqui será O
Caminho da Espada, que, embora seja em vários pontos similar a
todas essas artes, é, de certa forma, único.
Senti uma nova onda de empolgação me percorrer o corpo.
Meu mestre continuou:

1 “A arte da espada”, em francês.


2 Nome da arte marcial dos cavaleiros da Pérsia medieval.
3 Nome da arte marcial dos árabes muçulmanos mamelucos na Idade Média.

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— Antes de prosseguirmos, preciso que conheça o juramento
que todo cavaleiro iniciante deve proferir. Meu mestre me fez
jurar, e assim, agora, também o passo a você:
— Sim, mestre.
— Repita comigo. – em seguida, Renée proferiu os belos
versos do juramento dos aprendizes de cavaleiro:

“Jovem cavaleiro,
aprendei a amar a Deus
e a donzelas respeitar,
de tal modo que, assim,
tua honra crescerá.

Praticai sempre a cavalaria


e dominai a arte que enobrece,
pois só assim, no combate,
o campo de batalha há de te honrar.”

Repeti palavra por palavra, conforme meu mestre as recitava,


compreendendo o peso que cada uma delas tinha.
— Muito bem, Áscalon. Agora você conhece o juramento.
— Sim, mestre. Mas... isso quer dizer que eu agora serei um
cavaleiro? – perguntei com genuína inocência.
— Não. – riu Renée. – Eu não tenho poder, aqui, para
condecorar você como um cavaleiro. Mas muito do conhecimento

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que vou lhe transmitir aqui normalmente só é passado a cavaleiros.
Esteja ciente disso.
— Entendido.
— Saiba: a maioria das pessoas que empunham armas em
combate não tem realmente noção sobre o que está fazendo.
Muitas vezes, são plebeus e camponeses sem qualquer preparo,
que aleatoriamente balançam suas armas para um lado e para o
outro. Isso já lhe põe em vantagem sobre todas essas pessoas.
Fiz uma careta imaginando o sacrifício da vida de um
camponês em um campo de batalha; uma pessoa que só serviria
para engrossar as fileiras em um conflito que não entende e que
para ele não faz diferença. E, em nome de seu senhor, morre como
um indigente, sem direito a honrarias ou mesmo uma cova às vezes.
— Mesmo soldados e guardas das forças militares de muitos
reinos possuem apenas um conhecimento superficial da arte da
guerra e do manuseio das armas. – continuou meu mestre. - Estes
não são “inofensivos” como os camponeses, mas ainda assim
raramente apresentam algum desafio para cavaleiros
profundamente treinados em combate.
Renée esboçou alguns movimentos como se estivesse
esquivando de ataques invisíveis, demonstrando com
dramaticidade a que se referia. E continuou:
— Contudo, não são essas pessoas os inimigos contra os quais
você deve se preparar... E sim contra guerreiros experientes, que
realmente sabem o que fazem com uma arma. E também contra
“coisas” piores do que guerreiros.

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Lembrei subitamente do evento na capela do mosteiro.
Chamberlain me arrebatou da lembrança:
— O Caminho da Espada é a arte combativa mais completa e
mais eficiente que você jamais conhecerá em lugar algum.
Domine-o, garoto, e ninguém, absolutamente ninguém poderá
vencê-lo. Entendido? – a última palavra foi praticamente gritada
em minha direção.
— Sim, senhor! – respondi com igual entusiasmo.
— Pois bem. O Caminho da Espada tem cinco fundamentos.
Já conversamos algumas vezes sobre alguns deles, ainda que você
não recorde. Quero que os aprenda, memorize e internalize com
o mesmo afinco que dedicou às suas aulas de religião.
Eu então balancei a cabeça, confirmando que me esforçaria
a aprender.
— O primeiro fundamento, e o mais importante, é o da Vida.
Nenhum homem é supremo mal ou supremo bem. Todos somos
falhos, sujeitos a cometer erros e crimes, por isso a morte nunca
deve ser vista como uma punição ao homem. Apenas em último
caso é que se deve matar, como já conversamos antes.
— Nos casos em que a morte de um criminoso é o único meio
de salvar vidas inocentes.
— Exatamente. Se um dia você matar alguém
deliberadamente, sem que esta fosse a única maneira de evitar um
crime maior, você desviará do Caminho da Espada, contrariará os
meus ensinamentos e não mais merecerá meu respeito.
Engoli em seco.

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— Eu compreendo. – declarei.
Ele me avaliou com seus olhos severos e mais uma vez percebi
que o Caminho da Espada era sério.
— O segundo fundamento do Caminho é o da Justiça. Não
importa o que o dinheiro pode comprar, não importa quanto você
pode ganhar. A justiça deve prevalecer, e você sempre deve prezar
pelos atos mais justos, mesmo que isso exija que você vá contra
alguém da família. Ser justo é dar a cada um o que cada um merece.
Nunca esqueça disso. Você nunca deve atacar um inocente, mas
também nunca deve deixar a maldade impune.
Tentei anotar tudo mentalmente.
— O terceiro fundamento é o da Honra. A palavra de um
verdadeiro guerreiro vale mais do que sua espada. Um guerreiro
não mente nem se compromete com pessoas sem honra, e jamais
foge de compromissos assumidos. Uma promessa feita deve ser
cumprida, nem que para cumpri-la você precise sacrificar sua
própria vida. Além disso, você sempre deve ser honrado em
combate. Não deve atacar alguém desarmado ou rendido.
Assenti com a cabeça. Ele continuou:
— O quarto fundamento é o da Serenidade. Nunca, jamais,
sob qualquer hipótese deves agir sob efeitos da ira. Você deve
evitá-la, e tentar nunca ser tomado por ela. Ela é perigosa e carnal,
e contrária à Sabedoria. O verdadeiro sábio nunca é arrebatado de
seu estado de serenidade, não importa o que aconteça nem a que
seja sujeito. Lembre-se: mesmo uma atitude correta, caso seja
praticada com ira, tornar-se-á errada.

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Eu assentia sempre que ele terminava de falar sobre cada um
dos fundamentos.
— O quinto e último fundamento é o da Ponderação.
Nenhum código, texto sagrado ou sábio deve guiar teu
pensamento e tuas ações. Nem mesmo os quatro fundamentos
anteriores. Um verdadeiro guerreiro vive de acordo com seu
coração e conforme a sabedoria que adquiriu ao longo de seus anos
de vida e reflexão. Use o equilíbrio, o espírito e o sentimento
como guias, evitando transgredir os quatro fundamentos
anteriores, mas nunca esqueça que a essência é a Ponderação. É
por isso que o verdadeiro guerreiro precisa de uma mente afiada.
Passamos um longo momento parados, em pé numa posição
rígida e formal, e eu tentei assimilar tudo o que havia sido dito por
Renée. Então, contei em voz alta, tentando lembrar os cinco
fundamentos.
— Vida, Justiça, Honra, Serenidade e Ponderação.
— Exato.
— Eles lembram as sete virtudes cristãs.
— Lembram vagamente, mas são diferentes. Os cinco
fundamentos são ainda mais rigorosos, e impõem ao guerreiro
uma conduta severa e um caráter impecável. O homem que recebe
os ensinamentos do Caminho da Espada não pode trair seu
rigoroso código de conduta, e sua falha deve ser punida com
severidade.
— E qual é a punição, mestre?

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— A mutilação da mão que segura a espada. Em casos mais
drásticos, a própria morte.
Aquela resposta genuinamente me assustou.
— Mas tirar a vida de alguém não violaria o primeiro
fundamento do Caminho, a Vida?
Chamberlain encarou o horizonte com uma expressão
austera.
— Lembra do quinto fundamento, kenshi? Da Ponderação?
Como já falei para você, existem situações em que tirar a vida de
alguém pode ser uma necessidade, como na situação da proteção
de inocentes.
— Mas como isso seria uma necessidade, mestre?
— Um traidor do Caminho revela ser uma pessoa indigna, e
o conhecimento marcial que detém é extremamente perigoso.
Essa combinação potencialmente o transforma em um inimigo e
vilão terrível. A manutenção da vida do transgressor, nesse caso,
pode custar a vida de muitos inocentes.
— Mas não seria errado punir alguém por um crime que esse
alguém ainda nem cometeu?
— Sim. Entretanto, o traidor do Caminho já terá cometido
uma transgressão, e a conduta dele será um ataque direto contra o
próprio Caminho da Espada. Não será, então, um castigo
antecipado. Em decorrência do segundo fundamento, a Justiça,
você tem também o dever de jamais deixar uma maldade impune,
lembra?
Pensei um pouco. Então falei:

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— Ainda parece um pouco contraditório para mim, mestre.
Meu tutor respondeu quase automaticamente:
— Talvez você esteja igualando o praticante do Caminho a
um criminoso qualquer. E esse é um erro muito, muito perigoso.
— Como assim?
Renée respirou com parcimônia antes de falar:
— Seu pai me contou sobre o evento terrível que você
vivenciou na capela do mosteiro, quase um ano e meio atrás.
Eu tremi diante da menção daquela terrível entidade. Era
estranho pensar que já fazia tanto tempo desde aquela terrível
noite, principalmente porque eu ainda tinha muito vívida em
minha mente a lembrança.
Chamberlain continuou:
— Sei que você provavelmente tem muitas perguntas sobre
aquilo. Lamento não ter todas as respostas, e mais ainda por não
poder passar, neste momento, o conhecimento que detenho sobre
essas coisas.
Estranhei aquele comentário. Meu mestre continuou:
— Mas pense: se você tivesse a capacidade de fazê-lo,
hesitaria em atacar aquela criatura, mesmo que de forma
antecipada? Mesmo antes de qualquer transgressão que ela venha
a praticar?
— Não. Com certeza não hesitaria. – falei sentindo medo.
— Percebe? A Ponderação fala alto aqui. Uma criatura
maligna com tamanho poder é uma grande ameaça à vida de
muitos inocentes. Por isso, combatê-la e derrotá-la deve ser uma

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prioridade. As próprias Escrituras declaram que o Arcanjo Miguel
enfrentou o Grande Dragão, lançando-o nas profundezas da
terra, juntamente com seus asseclas. Isso foi uma severa punição.
— Mas não seria um exagero comparar a criatura que eu vi no
mosteiro a um mero indivíduo humano que violou um código?
— Assim como é um exagero comparar a nós mesmos com o
Arcanjo Miguel. Guardadas as devidas proporções, nós, seres
humanos, temos legitimidade para castigar outro ser humano.
— Mas estamos falando em punir com a morte, mestre. Nem
mesmo São Miguel puniu o dragão com a morte!
Chamberlain olhou para mim e me presenteou com um meio
sorriso.
— Mas ele não o destruiu porque não quis ou porque não
podia fazê-lo?
A pergunta me deixou genuinamente intrigado. Afinal, seria
possível “matar” o diabo?
Meu mestre interrompeu minha reflexão:
— Mas você tem razão, kenshi. Você está entendendo e
aplicando bem o fundamento da Ponderação. E por isso eu falei
que somente em casos mais drásticos deveria haver a punição com
a morte. Nos demais casos, a mutilação da mão da espada será
apropriada o bastante.
Eu era apenas um rapaz de treze anos, mas já conseguia usar
bem o fundamento da Ponderação. Permiti-me sentir orgulho de
mim mesmo naquele momento.

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— Mas e o que seriam esses “casos drásticos”, mestre? O que
poderia fazer um transgressor do Caminho merecer a morte? –
perguntei.
— Violações à honra, à serenidade ou à justiça são atos
vergonhosos, e não deixam de ser uma traição contra o Caminho.
Contudo, não são drásticos a ponto de fazer alguém merecer a
morte. Já um kenshi que viole a vida, por sua vez, estará
cometendo uma violação inadmissível. Isso é drástico o bastante.
Depois de algum tempo pensando, fiz uma nova pergunta:
— Mas, mestre, como conciliar esse código com as obrigações
provenientes das guerras? Guerreiros em uma batalha matam o
tempo todo.
Chamberlain suspirou.
— É complicado, kenshi. Você tocou num ponto realmente
delicado.
Esperei ele continuar. Mas, quando ficou calado por tempo
bastante, estimulei:
— Então? Um guerreiro que luta por seu rei, suas terras ou
qualquer outro motivo... viola o Caminho?
— Um guerreiro que luta por esses valores o faz porque é seu
dever. Ele não viola a vida porque quer, mas sim porque é obrigado
a fazê-lo.
— Ponderação? – perguntei.
Chamberlain assentiu com a cabeça, e me presenteou com
um sorriso de orgulho.

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Entendi a ideia. Era realmente complexo, de uma
profundidade moral que faria qualquer um fundir o cocuruto. Um
guerreiro que lutava por seu rei não poderia quebrar seu
juramento e desobedece-lo, pois isso violaria a sua Honra.
Passei muitos minutos conjecturando desdobramentos dessa
lição, como nas situações em que o governante do guerreiro
tivesse travado uma guerra injusta e cruel, ou quando os motivos
fossem egoísticos. Mas consegui compreender que os
Fundamentos do Caminho da Espada eram aplicados
especialmente em situações nas quais o kenshi tivesse o domínio
total sobre suas ações e decisões.
Considerei, então, resolvidos os dilemas que eu possuía
quanto àquilo.
Mas depois uma nova curiosidade surgiu:
— E quem deve punir o transgressor, mestre? A lei do
Caminho parece ser um código autônomo, sem vínculo com
qualquer reino ou nação. Quando um homem comete um crime
contra seu reino, apenas as autoridades daquele reino podem
puni-lo. E no caso do Caminho da Espada?
— Bem observado, Áscalon. O Caminho da Espada e seus
fundamentos constituem um código autônomo, não reconhecido
por nenhuma autoridade. Quando um “não-praticante do
Caminho” viola as leis de uma nação ou cidade, somente as
autoridades daquele lugar podem puni-lo. Da mesma forma, o
mais adequado é que um guerreiro do Caminho execute a pena
contra um transgressor do Caminho.

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Pensei por um instante, e formulei uma nova pergunta.
— Quantos guerreiros do Caminho existem hoje? Afinal,
quantas pessoas seriam capazes de aplicar a justa punição ao
transgressor do Caminho?
— O Caminho da Espada é quase tão antigo quanto a vida em
sociedade. Pelo que sei, ela foi criada em um lugar muito distante
daqui, onde as pessoas de maneira geral obedecem fortemente a
princípios como a honra e a moral. Eu não saberia dizer
precisamente quantos guerreiros do Caminho existem hoje, mas
muito provavelmente são pouquíssimos. Digo-lhe com certeza
que quase todos moram em uma terra distante que nunca veremos.
— A França?
— Não. Na França há alguns mestres na arte da esgrima.
Poucos aceitam pupilo. Estudei e dominei os ensinamentos de
alguns no passado. Mas aquelas lições, embora muito valiosas, são
diferentes do Caminho. O Caminho da Espada foi criado em uma
terra muito distante, no oriente, para além das terras dos persas ou
mesmo dos mongóis.
— Isso significa que um traidor do Caminho pode passar uma
vida inteira impune, já que não há outros seguidores do Caminho
aqui. – presumi.
— Mas que traidor? Também não haverá traidor do Caminho
se ninguém o pratica ou mesmo o conhece. E, como você mesmo
pontuou, quase ninguém conhece o Caminho por aqui.
— Mas... Então como o senhor recebeu os ensinamentos do
Caminho?

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Mestre Chamberlain pareceu pouco à vontade com a
pergunta. Então, após alguns momentos de reflexão, falou.
— Essa é uma longa história, para outro momento.
Assenti com a cabeça. Aquilo parecer reviver fantasmas do
passado de meu mestre. E eu não estava disposto a força-lo a falar.

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Capítulo 34
Os Cinco Elementos

Após a nossa conversa sobre os fundamentos do Caminho,


Renée me conduziu para um ponto afastado da Muralha de
Teodósio, onde havia uma grande árvore ao lado de um rochedo
de três metros. À nossa frente, corria o caudaloso Rio Lico, que
refletia o crepúsculo. Como já estava começando a anoitecer, eu
recolhi alguns gravetos secos e acendemos uma pequena fogueira
com a pederneira. Renée levava consigo sua espada presa à cintura,
como de costume. Levava ainda um comprido embrulho envolto
em seda, que eu não fazia ideia do que era.
Sentamos na relva abaixo da árvore e conversamos um pouco
sobre o Caminho da Espada. Então ele me conduziu ao ponto da
conversa que planejava:
— O número cinco é bastante significativo para o Caminho
da Espada.
— O cinco? E por quê?
— Porque o número cinco se repete de maneira sistemática
no universo. Em absolutamente tudo ao nosso redor.
Franzi o cenho. A informação não me pareceu convincente.
Meu mestre continuou:
— Temos cinco dedos em cada mão. Cinco dedos em cada pé.
Há cinco sentidos humanos: paladar, olfato, tato, audição e visão.

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O paladar consegue distinguir cinco sabores: azedo, amargo,
ácido, salgado e doce. O olfato consegue identificar cinco aromas.
Há apenas cinco cores primordiais. Cinco planetas no céu que
giram em torno da terra, além dos dois luminares4. O nosso corpo
possui cinco extremidades: cabeça, braços e pernas. Existem cinco
elementos na natureza. E, da mesma forma, existem cinco
fundamentos do Caminho e cinco Bases.
— Como é? Espera um pouco, não há apenas quatro
elementos na natureza? Os filósofos pré-socráticos identificaram
quatro elementos primordiais: água, fogo, ar e terra. Quatro, e não
cinco elementos!
— Essa é uma teoria aceita e bastante pregada. Mas não é essa
a teoria do Caminho da Espada.
— Como assim?
— A teoria dos quatro elementos foi desenvolvida pelos
gregos pela classificação em quente e frio, úmido e seco. A água
era úmida e fria, o ar era úmido e quente; a terra era seca e fria, e
o fogo era seco e quente.
— Eu... não sabia disso.
Mestre Chamberlain olhou incrédulo para mim.
— Não posso acreditar! Existe algo que ele não saiba, olhem
só! – falou rindo para uma plateia imaginária, enquanto me deixava
corado.
— Ora, deixe disso! Ninguém sabe de tudo! – retruquei.

4 Para muitos estudiosos da Idade Média, a terra era fixa no centro do Universo, e ao
redor dela giravam a lua e o sol (os dois luminares), e os planetas mercúrio, vênus, marte,
júpiter e saturno.

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— Desculpe. Eu tinha que aproveitar este momento. –
respirou fundo e se recompôs. – Pois bem, o Caminho da Espada
não classifica os elementos da mesma forma. Há, na verdade, uma
classificação muito mais complexa envolvendo a teoria dos cinco
elementos, que é determinada por um “ciclo de produção” e um
“ciclo de controle”.
— E como funciona isso? – perguntei com curiosidade
genuína.
— Os cinco elementos são fogo, terra, metal, água e madeira.
No ciclo da produção, a madeira produz o fogo; o fogo produz a
terra; a terra produz o metal; o metal produz a água; e a água
produz a madeira. No ciclo de controle, a madeira bloqueia a
terra; a terra bloqueia a água; a água bloqueia o fogo; o fogo
bloqueia o metal; e o metal bloqueia a madeira.
Pensei por um instante, então falei.
— Agora eu me perdi aqui... Parece que o ciclo de controle é
mais coerente do que o ciclo de produção. Não imagino o fogo
produzindo a terra, por exemplo.
— E mais um ponto para mim! – exclamou, divertido. O
reflexo das chamas em seu rosto lhe dotava de feições engraçadas
e coloria mais o seu humor. – O que sobra após o fim da
combustão? Cinzas, pó. Areia. E os vulcões? Expelem uma espessa
pasta flamejante que, ao secar, dá origem a diversas rochas. O
desgaste das rochas produz a areia, e, portanto encontramos areia
e pedra, que compõem a terra. – terminou de falar e dirigiu um
olhar divertido para mim.

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Eu dei de ombros. Realmente fazia sentido. Então ele
continuou.
— Mas não é sobre os cinco elementos que eu quero falar. E
sim sobre as cinco Bases do Caminho da Espada.
— Sim, eu vi o senhor mencioná-las. O que são? Achei que
Base e Fundamento fossem a mesma coisa.
— As duas palavras têm uma conotação similar. Mas, na
prática, os Fundamentos do Caminho são as cinco leis, o código
de conduta; enquanto as Bases do Caminho são as cinco guardas,
as cinco posturas de luta.
Senti mais uma pontada de emoção no peito.
— Ao dominar as cinco posturas do Caminho, o guerreiro
alcança um estágio que o torna virtualmente invencível.
Combinado com um corpo hábil e uma mente arguta, o
espadachim nunca pode ser derrotado. Nunca. Por isso o Caminho
da Espada é tão perigoso. Você treinou com dedicação sua mente
e seu corpo, e agora está pronto para aprender as cinco posturas.
Levante-se.
Obedeci, e ficamos em pé de frente um para o outro.
— As cinco Bases têm uma profunda ligação com os cinco
elementos da natureza. Por isso eu trouxe você a este lugar.
Olhei ao meu redor, e percebi que estávamos próximos a
pelo menos um de cada um dos elementos da natureza. A grande
árvore acima de nós representava a madeira, o Rio Lico
representava a água. A fogueira à nossa frente representava o

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fogo, e a grande rocha ao lado e a relva sob nossos pés
representavam a terra. Só senti falta do metal.
— Eu vejo aqui quatro elementos. Onde está o metal?
— É apenas uma representação, mas podemos encontrá-lo
aqui conosco. A lâmina da minha espada, ou desta adaga, por
exemplo; as moedas que carregamos nos bolsos; as fivelas de
nossos cintos. Tudo isso é metal. – fez uma pausa e sorriu para mim.
E então continuou. – Mas é isso que fará o papel do metal para nós
hoje.
Então se virou e pegou o longo objeto embrulhado em seda.
Com cuidado tirou todo o tecido que o envolvia e revelou a mais
longa espada que eu já vira em toda a minha vida. Chegava quase a
dois metros, desde o pomo até a ponta. Sua lâmina era enferrujada
e opaca, mas ainda assim parecia extremamente pesada.
— É a maior espada que eu já vi! – comentei.
— É uma Montante Escocesa. Uma velharia, mas servirá para
o seu treino de hoje.
Mestre Chamberlain a levantou do chão e a estendeu para
mim. Peguei a espada.
— Ungh! E sem dúvidas é a espada mais pesada que já segurei!
Não que eu tenha segurado muitas, mas...
— E é exatamente por isso que eu a escolhi para o treino.
Tentei ler os seus pensamentos, buscando uma explicação
para o uso de uma espada pesada como aquela.
— Então, está pronto? – ele perguntou.
— Sim, mestre.

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— Ótimo. Porque é hora de aprender o Caminho da Espada
na prática.

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Capítulo 35
Os Cinco Objetivos

— Antes de continuarmos, kenshi Áscalon, você precisa saber


sobre os objetivos do Caminho da Espada. – falou Renée.
— Espera um pouco... Do que você me chamou? – falei,
apoiando no chão ao lado a pesada montante escocesa que meu
mestre me mandara segurar.
— “Kenshi”? – ele me perguntou.
— Isso! O que significa?
— Bem, eu não sou um perito na língua yamato... mas
“kenshi” significa “o guerreiro da espada”. É como se chama o
praticante do Caminho.
Senti uma onda de orgulho me tomar o corpo. Eu era um
kenshi! Eu mal tinha conhecido o significado da palavra, mas já me
orgulhava daquilo.
— Como eu estava falando, você precisa saber sobre os
objetivos do Caminho da Espada. – continuou Mestre
Chamberlain.
— Fundamentos, bases, objetivos... Eu poderia jurar que é
tudo a mesma coisa. O Caminho da Espada é bem mais complexo
do que eu imaginava...
Meu mestre riu.

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— Isso é verdade, o Caminho da Espada é um caminho
complexo e estreito. Você já aprendeu que os fundamentos
consistem em um rigoroso código de honra que todo kenshi deve
seguir, sob pena de se tornar um transgressor do Caminho. As
bases consistem em diferentes posturas, guardas, estilos de
combate diferentes, que vão servir para momentos específicos no
combate. Os objetivos, por sua vez, são diretrizes mais específicas,
que regem a maneira como o kenshi deve lutar. O que deve
procurar e o que deve evitar no combate.
— Parece interessante.
— E é. Há um punhado desses objetivos, que servirão para
otimizar suas habilidades em combate. Sabe dizer quantos são?
— Cinco?
— Exatamente. – Mestre Chamberlain riu para mim.
— Pelo menos essa parte teórica parece não ter muita
novidade. – brinquei. – Acho que os criadores do Caminho da
Espada só sabiam contar até cinco.
Mestre Chamberlain fechou a cara para mim.
— O Caminho da Espada não é piada, garoto! Ele já existia
muito antes de mim ou você andarmos pelo mundo! Muito menos
são piadas os sábios e mestres que criaram o Caminho! Não
esqueça do Terceiro Fundamento do Caminho, a Honra! A honra
também inclui o respeito!
— Desculpe, mestre. Era apenas uma brincadeira...
— Nunca brinque com o Caminho! Ele é uma coisa séria, e
você vai tratá-lo como tal! Entendido?

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— Sim, senhor.
— Não se deve falar o nome de algo importante em vão. Você
fala o nome de Deus em vão, garoto?
— Não. Seria uma transgressão ao Terceiro Mandamento.
— Exatamente! Da mesma forma, nunca use o nome do
Caminho em vão, ou será uma transgressão ao Terceiro
Fundamento.
Lembro que naquela hora eu achei um exagero comparar
Deus a uma doutrina humana e estrangeira. Mas meu mestre
parecia bastante irritado com aquilo, e resolvi dar a ele o que
queria.
— Eu compreendo, mestre. Desculpe, nunca mais farei piadas
ou tratarei com leviandade o Caminho.
— Assim está melhor. – pareceu abrandar. Então andou um
pouco pela relva onde estávamos, enquanto esfriava mais a cabeça.
A noite já havia caído, e nossa fogueira era a única fonte de
luz além do pálido luar que banhava os campos ao nosso redor. A
Muralha de Teodósio agora era apenas uma faixa escura no
horizonte próximo, e ainda podíamos ver algumas casas em ruínas
nos rodeando, a uma distância de uns cinquenta metros.
Então, sem qualquer aviso, Mestre Chamberlain sacou sua
espada da bainha e num rápido movimento de braço a direcionou
à minha garganta. Pude sentir a lâmina gelada na minha pele. No
mesmo instante, apavorei-me. “Acho que fui longe demais com as
minhas brincadeiras”, pensei.
Então Mestre Chamberlain falou.

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— “Nunca golpear pontos incorretos”! Este é o primeiro
objetivo. Toda a matéria é criada a partir dos cinco elementos. O
homem não é diferente, e guarda os cinco elementos em sua
composição. Você deve aprender os pontos vitais do homem, onde
estão concentrados os cinco elementos, para o caso de precisar
derrotá-lo. Ou até matá-lo.
Engoli em seco. Não entendi como o homem era feito dos
cinco elementos. Não conseguia vislumbrar como aquilo poderia
ser verdade. Mas resolvi não contrariar meu mestre, que já parecia
irritado o suficiente e tinha a “pequena” vantagem que uma
espada no pescoço de um adversário podia propiciar.
Como se adivinhasse o que eu estava pensando, Mestre
Chamberlain começou a falar.
— O homem é quase todo composto de água. Perfure-o e
perceberá a água fugindo de seu corpo. O espírito da vida é o
sopro de fogo que há em cada um. Desequilibre o calor de alguém
e ele morrerá de febre ou de frio. O humano foi criado por Deus
a partir do barro, da terra, e para a terra volta depois de morrer.
Por isso há muito da terra em nosso organismo, e a terra é que
produz a massa que evita que nossa pele desgrude dos ossos e caia
no chão. Os ossos do homem são feitos de madeira. É uma madeira
diferente da madeira das plantas, mas ainda assim é madeira.
Quebre os ossos de um homem, e ele morrerá com graves
contusões e rapidamente.
Então Renée retirou a espada de minha garganta, e a
embainhou novamente. Ele me deu as costas e pela primeira vez

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desde que tinha sacado a espada, respirei aliviado. Então falei,
ainda receoso.
— Mas... E o... Metal?
Mestre Chamberlain virou-se subitamente, com a raiva
estampada nos olhos, e me encarou demoradamente. Ele era mais
baixo do que eu, mas eu de repente passei a vê-lo como um
gigante.
— Você já sentiu o gosto do sangue, garoto?
— Nã... Não, senhor.
Então, de uma maneira súbita como eu jamais preveria, meu
mestre desferiu um soco rápido que me acertou a boca em cheio.
O golpe fora mais rápido do que forte, mas ainda assim teve força
suficiente para me jogar ao chão. Quando caí, levei as duas mãos à
boca instintivamente, tentando em vão aliviar a dor com uma
massagem precária. Ao tocar meus lábios, percebi que tinha
sofrido um corte na boca, e que sangrava.
Então, alguns segundos depois, pus-me de pé e olhei para
meu mestre, indignado e confuso.
— O... o que foi isso, mestre?
— Qual é o gosto, garoto? – retrucou, ríspido, meu mestre.
— O quê? Gosto de quê?
— Do sangue.
Concentrei-me no líquido quente que se espalhava pela
minha boca, e movimentei a língua por dentro da boca como se
limpasse o sangue de meus dentes. Então falei.
— Tem gosto... de ferro, mestre.

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— E o que é o ferro, garoto?
Então respirei fundo e falei:
— Um metal.
— Eis a sua resposta. – falou, fazendo uma mesura exagerada
e debochada.
Talvez eu realmente tivesse merecido aquilo. Satirizar o
modo de vida ou a religião de alguém não é algo tão engraçado
para a vítima da piada. Torci para que o soco desferido por meu
mestre fosse suficiente afinal para esquecermos a minha anedota
infeliz. Ele continuou:
— Existem cerca de dois mil pontos vitais no corpo humano.
Os principais, contudo, estudados no Caminho da Espada, são
sessenta e seis. Com o tempo, você aprenderá todos. Em um
combate, existem cinco maneiras de atingir os pontos vitais do
adversário: Perfuração, corte, concussão, pressão e invalidação.
Fiz um esforço para anotar tudo mentalmente. A teoria do
Caminho da Espada era vasta, e eu tinha sede de conhecimento.
Mestre Chamberlain prosseguiu:
— A perfuração é bem simples. Consiste em executar um
movimento de pressão com uma superfície de pequena área na
ponta, como uma agulha, uma espada ou lança. O corte, por sua
vez, consiste em um movimento similar, porém produzido pelo fio
de uma lâmina, deslizando-o sobre a superfície que deseja lesar. Já
a concussão é produzida por um rápido movimento de objetos
sólidos para causar impacto sobre o corpo do adversário. Não tem
o objetivo de tirar sangue, mas apenas criar um trauma. A pressão

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consiste em exercer, normalmente com as mãos, uma força
concentrada em pontos vitais do adversário. Não verte sangue e é
ideal para tirar uma pessoa de seu estado de consciência. Por fim,
a invalidação é a mais complexa de todas, pois consiste em golpear
pontos vitais por onde flui a energia interior do adversário,
permitindo assim invalidar, aleijar e matar com extrema facilidade.
É extremamente perigoso.
— É um campo bastante vasto, carregado de ensinamentos e
conhecimento. – comentei, bajulando um pouco o Caminho e
tentando me reaproximar de Mestre Chamberlain.
— Exatamente. Por isso o Caminho da Espada é tão sério.
Mesmo eu, que o pratico há mais de quinze anos, ainda não me
considero conhecedor de todos os segredos do Caminho.
Eu me surpreendi com aquilo. Meu mestre prosseguiu:
— Obviamente, no Caminho da Espada utilizamos mais
frequentemente a perfuração e o corte, porque são as funções mais
óbvias de uma lâmina afiada. Os pontos vitais mais evidentes estão
localizados na cabeça, no pescoço e no coração. Cortando ou
perfurando qualquer um desses três pontos, provavelmente a luta
terá acabado. Apesar da facilidade, o bom kenshi nunca deve
procurar a morte do adversário, apenas quando for a única opção
para salvar vidas. Com o tempo, aprofundaremos esse campo de
conhecimento, mas agora precisamos continuar o estudo dos
objetivos do Caminho.
Assenti com a cabeça. Ele continuou:

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— O segundo objetivo é “Não desperdiçar golpes”. A
verdadeira luta ocorre em ocasiões de emergência. Nesses casos,
cada segundo pode ser precioso quando se trata de salvar a própria
vida ou a de outra pessoa. Desferir golpes inúteis é desperdiçar
tempo e energia. Você deve salvar cada fôlego para os momentos
em que mais precisará deles. A luta ótima é aquela que você finaliza
em um, dois ou no máximo três movimentos.
— Mas se o adversário também for versado no Caminho da
Espada, o que acontecerá?
— Neste caso, dificilmente a luta será encerrada em poucos
movimentos. Os bons guerreiros do Caminho sabem posturas de
defesa quase impenetráveis, e por isso uma luta entre dois kenshis
deve demorar muitos minutos. Talvez horas. É costume dizer que
a luta entre dois verdadeiros mestres do Caminho não tem fim.
— Eu duvido disso.
— Eu também, mas não há como saber. Nunca aconteceu
antes, até onde eu sei. - Mestre Chamberlain deu de ombros.
Então voltou a falar. – O terceiro objetivo é “Procurar sempre
quebrar a guarda do adversário”. Você perceberá que as cinco
Bases do Caminho são o ponto de partida e o porto seguro de cada
guerreiro. Enquanto você permanecer em sua postura da maneira
correta, nunca será derrotado. Portanto, ao lutar contra seu
adversário, você deve buscar o desequilíbrio da postura dele e criar
brechas para atacar seus pontos vitais.
Mestre Chamberlain gesticulava com as mãos enquanto
explicava. Continuou:

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— O quarto objetivo é “Golpear sem temer a morte”. O
medo é o principal empecilho para a vitória. Um guerreiro com
medo é um guerreiro derrotado. E o medo da morte é o medo mais
óbvio na batalha. Elimine o medo, e você nunca será surpreendido
numa luta, nem mesmo quando for atingido para morrer, pois já
estará preparado para isso.
Respirei fundo. Quão difícil seria preparar o espírito para
morrer? Era necessário abraçar a morte antes de encontrá-la para,
somente assim, não a temer. Quem era capaz de fazer isso?
— O quinto e último objetivo é o mais óbvio de todos:
“Terminar a luta apenas quando você for o vencedor”. Nunca
desista de lutar enquanto não for declarado o vencedor. Nunca
aceite a derrota numa luta real, pois ela será a sua morte. Caso o
adversário desista de lutar, terá declarado você como vencedor.
Por razões óbvias, esse objetivo pode ser ignorado nos treinos e
nas lutas amistosas, afinal ninguém vai lutar até a morte contra seu
mestre ou seu companheiro.
Então Mestre Chamberlain olhou demoradamente para
mim, avaliando minhas reações diante de todos os ensinamentos.
— Compreendeu tudo, kenshi Áscalon?
— Sim, mestre.
— Pois bem. Acho que você está preparado para aprender a
primeira Base do Caminho da Espada.
Aquiesci com a cabeça. Eu tinha uma missão muito clara em
minha mente: ser um mestre na espada. E nada me tiraria do foco.

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Capítulo 36
Um Momento de Três Partes

É interessante como nos relacionamos com a Espiral do


Tempo. Passado e futuro se encontram em um perpétuo presente,
e o fluxo temporal que existe em nossas memórias, enredado com
nossos anseios e receios, cria um amálgama indistinguível da
Realidade.
No dia em que Mestre Chamberlain me falava sobre o
Caminho da Espada, de que tenho vívida lembrança, eu ainda era
cheio de incertezas e temores sobre meu passado; perguntas que
precisavam ser respondidas. E eu sentia que, de alguma forma, a
conversa que eu tive com a cigana tinha “desbloqueado” as visões
sobre o anjo. Aquele.
O anjo das sombras passaria a aparecer outras vezes para mim
ao longo de minha história. Mas as vezes que o avistei de olhos
abertos, tão cedo em minha mocidade, duvidei dos meus sentidos.
Eu tinha razão em fazê-lo. Pelo menos os meus cinco
sentidos, aqueles que todos nós temos, não eram inteiramente
confiáveis. Mas eu possuía outros sentidos aos quais ainda não
tinha atribuído significado; os quais eu ainda não tinha aprendido
a entender e dominar.
Por isso, quando mestre Chamberlain declarou que eu estava
pronto para aprender a Primeira Base do Caminho, tive a

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impressão – incongruentemente tentando capturar com um dos
meus cinco ordinários sentidos – de ver novamente o anjo das
sombras.
Lá. Parado, ao longe, olhando para mim. Sem falar nada.
Tolo que era, imaginava estar vislumbrando o presente. Eu
ainda não fazia ideia de como era o Universo. Não sabia nada
sobre os diferentes Reinos, nem tampouco como a Realidade se
subordinava à Espiral do Tempo.
E é claro que isso faz parte da piada sem graça das Três
Irmãs. Elas zombam dos mortais e da sua incapacidade de
compreensão além dos cinco sentidos e além da Realidade.
O Tempo, composto pela linha tripla, como passei a
compreender depois, retorce-se em torno de si mesmo.
Hoje eu sei que eu não via o presente. Ao avistar novamente
o Anjo das Sombras naquela noite, eu simplesmente tive a
oportunidade rara de olhar para fora da Realidade, capturando o
precioso momento de convergência das três linhas; a
concentricidade do fluxo da Espiral.
E foi naquele instante que, pela primeira vez, pude reparar
que o anjo não estava ileso. Estava machucado.
Aquela alucinação me permitiu ver, ao mesmo tempo, o
passado, o presente e o futuro. Um momento de três partes.

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Capítulo 37
A Primeira Base

— Pegue a montante! – Ordenou Renée.


Subitamente, o anjo não estava mais lá. Como falei,
simplesmente interpretei como uma mera alucinação. Não perdi
tempo e empunhei a gigantesca espada que, minutos antes, eu
havia deixado sobre a grama. Ela era muito pesada para ficar
segurando enquanto conversávamos.
— A primeira Base é chamada de “A Rocha”. Ela tem esse
nome porque, assim como uma gigantesca pedra, tem uma defesa
impenetrável.
Chamberlain então deu alguns passos.
— Observe esta rocha ao nosso lado. – apontou para a grande
pedra que se erguia imponente próxima à nossa fogueira. – Você
pode golpear essa pedra inúmeras vezes, kenshi, mas nunca
conseguirá destruir sua defesa. A primeira Base também funciona
desta maneira. Domine as variantes da Rocha, e você nunca será
atingido. Por ser uma base essencialmente defensiva, esta é a
primeira base a ser ensinada, pois, antes de saber atacar, o kenshi
deve saber como não ser atacado.
Então meu mestre sacou sua espada da bainha, e desta vez
pude ver nitidamente a coloração cinza-escura da lâmina. Era
linda.

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Então, assumiu uma estranha postura com a espada
empunhada à frente do corpo, enquanto os dois punhos fechados
a seguravam à altura do umbigo. As costas ficaram ligeiramente
arqueadas, e o abdome, travado. Os cotovelos levemente
separados. Suas pernas ficaram levemente flexionadas, com uma
das pernas ligeiramente à frente, ambos os pés voltados para a
mesma direção da espada. Parecia uma postura rígida e bem
estável.
— Esta é a postura fundamental da Rocha. Ela lembra
bastante a guarda Pflug, da tradição alemã, mas é mais alta. Parece
também com a guarda Posta breve, da tradição italiana, embora se
empunhe a espada mais para frente, como um meio caminho rumo
à Posta longa, conseguindo solucionar o problema de instabilidade
existente na postura dos italianos. Eu quero que você tente
reproduzi-la.
Eu fiz o que ele mandou: separei levemente as pernas e as
flexionei, com uma das pernas um pouco mais à frente. E então fiz
força para empunhar a espada à frente do corpo, mas quase não
consegui. Aquela espada era extremamente pesada. Não pesava
menos do que quinze quilos.
— Argh! Acredito que com a sua espada seja bem mais fácil
executá-la! – falei, ácido.
— Certamente. Mas você não deve aprender com a espada
fácil, e sim com a espada adequada. Se tiver resistência para treinar
com a montante, será capaz de manusear com facilidade a espada
longa. Lembre-se: treino difícil, prova fácil.

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— Hunf! Falar é fácil! – resmunguei, continuando na postura
da Rocha.
Renée riu do meu mau-humor e então sentou-se,
recostando-se sobre uma pedra, muito bem acomodado. Comecei
a esboçar um movimento, para deitar e imitá-lo, mas ele me
repreendeu.
— Ei! O que pensa que está fazendo?
— Eu ia me sentar, assim como o senhor!
— Eu não me lembro de ter permitido que você saísse da Base.
— O quê? Mas eu já a aprendi! Veja! – continuei na base,
concentrando-me em acertar a postura da maneira mais ortodoxa
possível.
— Estou vendo. Há alguns vícios na sua postura, mas isso nós
corrigiremos amanhã.
— Está bem. – falei, rompendo a postura e me preparando
para deitar.
— Kenshi Áscalon! Você ouviu minha permissão para sair da
postura? – Arregalei os olhos.
— Mas eu achei que...
— Pois achou errado! Volte à Base!
Posicionei-me na Base da Rocha novamente, desta vez
fumaçando.
— Por quanto tempo precisarei manter esta postura? –
perguntei, para saber quão grande seria meu sacrifício.

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— Você deve permanecer na Rocha até não perceber mais que
está em uma Base. Até acreditar que essa é a sua nova posição de
existência.
— O quê? Mas quando vai ser isso?
— Para começar, pode passar toda a madrugada assim.
— Mestre, está falando sério?
— Nunca falei tão sério em toda a vida.
Eu não podia acreditar. Aquilo era tortura.
— Mas... Como eu vou dormir? – Perguntei, atônito.
— Se a ideia lhe agradar, pode tentar dormir enquanto
permanece na Rocha. Eu nunca tentei, mas não me parece muito
confortável. Portanto, acho melhor não dormir. E não tente me
enganar saindo da postura quando eu dormir. Eu saberei.
Respirei fundo e me preparei para a pior noite da minha vida.

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Capítulo 38
Aiko

O pior de passar horas na Base da Rocha é a dor nos ombros.


Por você precisar manter os braços erguidos à frente por muito
tempo, em poucos minutos seus ombros começam a arder como se
estivessem em chamas. Em uma hora, você não sente mais o braço
inteiro. Em algumas horas daquilo, a circulação do sangue passa a
não passar muito bem pelo local, e você começa a acreditar que
não tem braços. Imagine ainda passar por esse processo cansado,
durante a madrugada, e empunhando uma espada enferrujada de
vinte quilos.
Os primeiros dez minutos pareceram uma eternidade. Eu
gemia, suava, me esbaforia e praguejava como se estivesse sendo
castigado por um crime terrível. Quando eu percebi que aquilo
não faria Mestre Chamberlain se convencer de que eu morreria se
passasse a noite daquele jeito, resolvi parar de resmungar. Por
incrível que pareça, quando meus braços ficaram dormentes, ficou
um pouco mais fácil suportar o suplício.
Meu mestre passou um tempo cutucando as chamas da
fogueira com um galho curto, fazendo fagulhas subirem com a
limpa fumaça da combustão da lenha seca. Então perdeu seu olhar
no coração do fogo, e pareceu mergulhar em memórias profundas.
Deve ter passado mais de uma hora daquele jeito, mas não sei dizer

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ao certo, porque você perde a noção do tempo quando está
condicionado a uma dor constante.
Então, sem qualquer preâmbulo, falou:
— O nome dele era Aiko.
Jurei que meu mestre estava delirando. E era eu quem estava
sujeito à dor intensa, não ele.
— O quê?
— O nome dele.
— Nome de quem, por todos os santos? – minha paciência
tinha se esvaído de mim com o suor, não me interprete mal.
Renée pareceu absorto em seus pensamentos durante um
instante, então falou:
— Eu não devia ter muito mais de vinte anos. Estava de noite,
e eu estava perdido em algum lugar pela Terra Santa. Os mouros
haviam capturado todas as bases militares na Antioquia, e as tropas
cruzadas foram dispersas, fugindo para os morros desérticos
durante a noite. – fez uma pausa.
Eu começava a entender. Ele estava falando de alguma
experiência que tivera durante as cruzadas. Por que aquilo tinha
lhe ocorrido, não faço ideia.
— Eu era um jovem cavaleiro templário, e estava desesperado
tentando encontrar o caminho de volta para nossa última base da
Ordem, no Acre. A noite no deserto é tão fria que faz você preferir
a morte a dormir ao relento.
Franzi o cenho. Ainda tentava entender onde ele queria
chegar.

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— Eu não podia acender uma fogueira, porque a fumaça e a
luminosidade atrairiam os mamelucos que estavam procurando
pelos cruzados foragidos. Então, enquanto a noite me envolvia
com seu manto longo e escuro, escutei o som de sua carruagem.
Acredito que estava próximo à Rota da Seda.
Mestre Chamberlain continuou olhando para o fogo.
— Era uma carruagem pequena, cheia de bugigangas
desconhecidas para mim, conduzida por uma miniatura de homem
de meia idade. Seus olhos eram inacreditavelmente estreitos,
como se estivesse fazendo força para enxergar qualquer coisa ao
longe. Pareciam constantemente fechados. Em sua cabeça
assentava-se o maior chapéu que eu já vira na vida. Parecia um
prato.
Meu mestre fez silêncio novamente, e por um momento
pude ouvir os sons da noite, além do som dos meus músculos
latejando para me manter na Base da Rocha.
— Ele falava uma língua que eu nunca tinha ouvido antes,
ríspida e célere. Às vezes, quando falava, parecia estar cantando.
Nenhum de nós conseguia entender nada do que o outro falava.
Demoramos dois dias para criar uma espécie de dialeto neutro,
meio francês e meio seu idioma, que nos permitiu manter um
pobre diálogo.
Então comecei a entender o rumo da conversa.
— Ele se apresentou, dizendo se chamar Aiko. Falou-me que
vinha de uma terra distante, além do mar do fim do mundo, perto
da caverna de onde sol nascia. “Yamato”.

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Renée respirou fundo antes de continuar:
— Disse que estava viajando a esmo havia milhares de
quilômetros, e que queria encontrar um local onde pudesse viver
com liberdade e vender suas... hmmm... “invenções”. Eu falei a ele
sobre as guerras na Terra Santa, e como havíamos sido
massacrados, e ele deu pouca importância.
— E então ele ensinou-lhe sobre o Caminho da Espada? –
Perguntei.
Mestre Chamberlain pareceu surpreso ao ouvir minha voz,
como se por um momento estivesse esquecido que eu estava ali.
Depois de algum tempo, voltou os olhos para o fogo, e falou:
— Não imediatamente. Aiko me vestiu com alguns de seus
trapos, e juntos conseguimos passar pelas forças muçulmanas por
quase toda a Terra Santa. Alguns soldados muçulmanos nos
interceptaram algumas vezes, mas logo nos liberavam quando
viam o rosto estrangeiro de Aiko e sua fala embolada. – pensou um
pouco, tentando tirar a poeira das memórias antigas.
— Não sei se é porque achavam que ele era um pacífico
mongol viajante, ou simplesmente porque não o consideravam
ameaça... Eles simplesmente nos deixavam partir. Um dia,
contudo, alguns mamelucos mais atentos pediram para revistar a
carroça e encontraram os restos de meu manto de Cavaleiro
Templário. Meu disfarce foi descoberto. Eram uma dúzia de
soldados, e eu já estava prestes a me entregar, quando Aiko retirou
de um compartimento escondido na carruagem uma espada com a
lâmina fina e encurvada.

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Eu prestava atenção das palavras de Chamberlain enquanto
me mantinha imóvel na postura da Rocha.
— Eu não acreditava no que estava vendo até três dos guardas
estarem no chão, inconscientes. O bastardo era rápido como eu
nunca tinha visto. Com o mero desembainhar de espada, atingiu
dois dos soldados no pescoço. Com uma rápida volta de braço, em
uma singela continuação do primeiro movimento, acertou mais
um. Passei anos treinando esgrima na França e me destacava como
bom espadachim, mas eu nunca tinha visto nenhum guerreiro tão
rápido, nem mesmo entre os italianos. Foi então que saí do meu
torpor e o ajudei a derrotar o restante deles. Aquele pequeno
pedaço de homem era ligeiro como um raio e derrotou com
facilidade sete soldados antes mesmo de eu poder desembainhar a
minha espada. Logo vi que ele guardava algum segredo.
As palavras de meu mestre me impressionaram. Ele
continuou:
— Perguntei a Aiko sobre aquilo durante boa parte da
viagem, mas ele sempre se mantinha em silêncio e se recusava a me
dar qualquer informação mais detalhada. Voltamos à base
templária no Acre, pegamos um barco para o Chipre, e por fim
viajamos até o Reino da Sicília, pelo qual Aiko ficou fascinado. Eu
nunca gostei muito dos sicilianos... Povinho arrogante. Mas não
saí de perto do pequeno homem até que ele resolvesse falar algo
sobre seu estilo tão fascinante de luta.
Enquanto Renée falava aquilo, eu ficava imaginando o
quanto de sua habilidade na espada tinha sido influenciado pelo

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tal Aiko. Pelo que ele tinha dito, à altura em que o conheceu, já era
profundo conhecedor da arte da esgrima. Meu mestre continuou
falando.
— Ele tentou me mandar embora inúmeras vezes. “Tome seu
caminho de volta”, ele dizia. Mas eu retrucava lhe dizendo que não
o deixaria enquanto ele não revelasse seu segredo a mim. Meses se
passaram até Aiko perceber que eu não iria embora. Eu não sei
bem se foi porque passou a confiar em mim ou se foi porque queria
se livrar da minha presença, algum tempo depois ele decidiu me
ensinar.
— Então finalmente o senhor passou a aprender todas as
Bases do Caminho. – sugeri.
— Ainda não. Aiko era meticuloso, e quis se certificar de que
estava passando seu segredo a alguém que merecesse aprender.
Por isso passamos a jogar inúmeras partidas de um jogo de
tabuleiro que só aumentava minha ansiedade por aprender a lutar.
— Ah! A Mancala! Então o senhor também sofreu com isso,
hein? – perguntei, inundado em um sarcasmo que exigiu grande
esforço para continuar equilibrado na Base da Rocha.
Renée sorriu.
— Jogamos por meses aquele joguinho antes de Aiko decidir
me ensinar os fundamentos do Caminho. Toda aquela prática no
jogo me pareceu supérflua. Mas eu estava enganado, e descobri
isso da pior maneira possível.
— Como assim, mestre?

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Chamberlain olhou para mim e avaliou se valeria a pena
aprofundar o assunto naquele momento.
— Você não é meu primeiro aluno do Caminho da Espada,
Áscalon.
Olhei assustado para meu tutor.
— Não? E quem foram os outros?
— O outro. – corrigiu-me.
— Foi apenas mais um?
— Sim.
Continuei olhando para ele esperando que ele me dissesse
quem foi o misterioso kenshi antes de mim. Aquele momento
pareceu demorar horas, e Renée continuava encarando as chamas
da fogueira. Eu já ia perguntar novamente quando finalmente meu
mestre falou.
— É um homem cujo nome não vale a pena mencionar.
— E por quê?
— Ele se tornou um dos mais habilidosos mestres da espada
do ocidente. Mas se mostrou um traidor e um transgressor do
Caminho.
— O que ele fez, mestre?
— Eu... não quero falar sobre isso. Esse é um tema sombrio,
kenshi. – falou meu tutor após alguns instantes de meditação.
— E por que ele não foi punido por...
— Eu não vou falar sobre isso, Áscalon! – gritou mestre
Chamberlain, seus olhos vermelhos ameaçadores na minha

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direção. Senti que ele me bateria, se não estivesse sentado sobre a
relva olhando para a fogueira. Senti medo.
— De... desculpe, mestre. – falei, tentando diminuir a tensão.
Por um instante, tive a impressão de que os olhos dele
marejaram, e ele começaria a chorar. Então ele se acomodou mais
sobre a grama e me deu as costas.
— Continue na Base da Rocha, kenshi, até que eu diga o
contrário. Agora vou dormir, porque amanhã será um longo dia.
Simples assim. Não falou mais nada. Nem mais se virou para
mim. Não sei se ele perceberia se eu tivesse abandonado a postura,
mas não o fiz. Permaneci na Rocha por todas as horas que restavam
até o amanhecer, os músculos das costas, ombros e braços
queimando.
Mas aquele assunto estava longe de ser encerrado, para mim.
Eu descobriria quem foi o outro discípulo de Chamberlain, e o
motivo de ter-lhe causado tamanho rancor. Nem que fosse a
última coisa que eu fizesse na vida.

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Capítulo 39
Segredo Guardado

No dia em que Mestre Chamberlain me ensinou a Base da


Rocha, precisei varar a noite na postura segurando a maldita
montante escocesa, e só tive permissão para sair da posição quando
finalmente Renée havia acordado, lavado-se no rio e tomado um
rápido e pobre desjejum. Nem preciso dizer como meu corpo
ficou debilitado durante os dias que se seguiram.
Ainda assim, mesmo nesses dias tive pouca trégua e muito
exercício. Nada nesse período curto que se sucedeu ao
aprendizado da Primeira Base seria digno de nota, se não fosse na
sexta ou sétima noite posterior, que foi quando eu tive o mais
detalhado sonho com o Anjo até então.
Àquela altura, eu ainda não estava certo sobre os significados
daquelas visões que eu tinha. Não sabia se eram presságios,
lembranças ou mesmo alucinações. Mas era fato que, conforme os
meses se afastavam do terrível evento no monastério na noite do
meu aniversário de doze anos, mais e mais do Numen que eu tinha
consumido naquele combate já estava restaurado, e, com isso, os
dons ignotos que minha marca do fogo me concedia retornavam
com intensidade, e alguns até se aprimoravam.
Tenho a vívida lembrança de uma daquelas noites. Após um
árduo dia de treinamento com Chamberlain sobre a rigidez da

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postura da Rocha, em que tive de suportar diversos golpes no
tórax enquanto permanecia imóvel na guarda, meu corpo ansiava
por descanso. E seria um sono sem sonhos, não fosse aquela uma
noite aparentemente especial.
Eu tinha deitado cedo na noite, seguindo o protocolo dos
cenobitas, pouco mais tarde do que uma ou duas velas após o
crepúsculo.
Em meus aposentos, que ficavam no dormitório da ala oeste,
era plena a escuridão que me envolvia. As velas estavam apagadas,
e apenas o fraco luar que entrava pela estreita janela beijava a
mobília. Ouvi, então, uma voz sussurrada que balbuciou palavras
estranhas:
— Atze!
Não reconheci o comando. A palavra era desconhecida.
Em meio à escuridão onírica da minha mente, um lampejo de
movimento se desenhou, mas de maneira indecifrável. Continuei
às cegas.
O comando vocal foi mais intenso:
— Zeo ozahe!
Eu não entendia a língua falada, mas meu coração acelerou.
A voz tinha um soar metálico, e também de vitrais estilhaçando,
similar ao que eu já tinha ouvido no terrível evento que vivi no
passado.
Mais um lampejo se desenhou em meu sonho, e pude ver
corpos humanoides cruzando rápido os céus. Enormes pares de
asas brotavam de suas costas. Eram... anjos?

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Eles voavam com ferocidade pelo céu escuro, e, conforme se
moviam em inacreditável cadência, atravessavam as nuvens,
fazendo-as enegrecerem e relampejarem. Senti que testemunhava
uma espécie de perseguição.
Novamente voltei à escuridão.
Meu perturbado sono me presenteou mais uma vez com
aquela voz:
— Atze, Alma! Zeo ozahe! – uma das criaturas bradou para a
outra.
Eu nunca tinha ouvido aquela língua antes. Não era grego
nem latim. Eu não era exatamente um estudioso do hebraico, mas
saberia reconhecer se fosse aquela língua. Também não era,
embora soasse de alguma maneira parecida com ela.
Mais uma vez, os olhos da minha mente me levaram à cena
tempestuosa da perseguição. Uma das criaturas aladas se virou
para trás enquanto voava em velocidade estonteante. De sua lança,
uma rajada de brasa cintilante e furta-cor traçou-se até o seu
perseguidor. Ele desviou.
O anjo perseguido fez uma brusca curva e disparou para o
alto, perturbando a água que estava alguns metros abaixo de si
para todos os lados em uma explosão de vento. Seu perseguidor
mudou a direção.
— Zim, Alma! Edchom naka eoithibalt zoda-zodu! – o perseguidor
bradou com a voz parecendo o ribombar de um trovão.
E novamente mergulhei nas sombras.

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Abri rapidamente os meus olhos para avistar de novo a
tranquila escuridão dos meus aposentos, onde eu dormia sozinho.
Meu anseio era de olhar apenas o luar que entrava em meu quarto
e voltar à realidade. Mas enorme foi a minha surpresa ao perceber
que havia alguém ao meu lado.
Era um enorme vulto, de pé, como se me observasse dormir
em silêncio. Senti um pungente arrepio me tomar da cabeça aos
pés, e uma forte agulhada gélida atravessou minha palma da mão.
E então eu o avistei. Novamente.
O Anjo das Sombras, parado ao meu lado. Não estava nem a
dois passos de distância. Sua mão estendida em minha direção.
O ar me faltou.
Paralisei.
O que havia em sua mão era o mais perturbador: ele segurava
pendurada uma fina corrente em brasa. Na ponta dela, em cegante
incandescência, havia um pequeno crucifixo, que caberia
facilmente na palma da mão. O crucifixo ardia em fogo vivo,
estendido para mim.
Eu não fazia ideia do que ele estava tentando fazer comigo,
mas fui imediatamente tomado pelo pavor.
Vi por através do anjo um cenário diferente daquele do meu
quarto. Ele estava aparentemente em um altar de uma capela ou
catedral em ruínas.
A visão não durou nem um segundo.
Logo após, o Anjo desapareceu tão rápido quanto tinha
aparecido.

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Subitamente, vi-me de volta ao silêncio e solidão dos meus
aposentos. Em genuína dúvida sobre se eu tinha visto apenas o
resquício do meu sonho, como acontece quando um braço de
sonho “vaza” para a Realidade... ou se eu estava presenciando uma
visão real de uma entidade misteriosa... que por algum motivo
misterioso queria algo comigo.

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ATO V
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É autor de fantasia e de RPG, e cria histórias fantásticas desde que consegue lembrar. Graduado
em Direito, com Mestrado e Doutorado concluídos nessa mesma área, atua profissionalmente
como advogado desde 2012, e também é professor universitário, já tendo lecionado para mais
de dois mil alunos ao longo de sua carreira.
Bruno é também músico e ilustrador, embora não atue profissionalmente com nenhuma dessas
áreas (mas várias ilustrações de seus livros são de sua autoria, inclusive deste livro). É casado com
Rafaella Ibiapina desde 2014, e com ela tem dois filhos: Clarice (nascida em 2017) e Dante
(nascido em 2022).
Os hobbies de Bruno incluem a música, desenho, leitura e a escrita. Ainda hoje, joga RPG uma
vez por semana com seus amigos.

Bruno já tem vários livros publicados no momento de publicação deste livro, principalmente de
RPG (Roleplaying Game). Ele é o criador de sistemas de RPG independentes, como o Sistema
Edhen (publicado sob a alcunha de “Andrakon”), o Sistema Dharma e o Sistema Saga. Em sua
página do Instagram, Bruno também já publicou centenas de histórias e ideias para RPG, tudo
com o objetivo de contribuir para a cena nacional de RPG.
Caso tenha interesse em conhecer esses outros trabalhos do autor, visite os endereços citados
no final desta página. Você também pode contatar o autor por e-mail (endereço de e-mail
também citado no final do livro).

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Este livro foi originalmente escrito em 2012. Por uma infelicidade do destino, o HD
externo em que eu o armazenava foi danificado de modo irreversível (várias tentativas de salvá-
lo foram realizadas, todas sem sucesso). Por sorte, grande parte do livro se mantinha a salvo
graças a cópias em PDF que eram enviadas a leitores beta por e-mail.
Após dez anos desde o surgimento da história, resolvi apresenta-lo ao mundo. Fiz
edições (meu modo de escrever mudou bastante em dez anos) e dividi o conteúdo do livro
completo em atos menores, almejando oferecer uma leitura mais fácil e acessível.
Aproveite todo o conteúdo deste livro. Se gostar da história, aguarde pela publicação
dos próximos atos (e também pela versão completa do livro com todos os atos em um só volume).
Faço tudo sozinho (escrevo as páginas, diagramo, edito, reviso, providencio as ilustrações,
idealizo a estética da obra e do universo), então peço desculpas por eventual impropriedade na
qualidade final do produto.
Sou receptivo a contatos via e-mail, via Instagram, via canal do YouTube e via website.
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Bruno Moraes Alves


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