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Um conto de

Erson Rade

O Menino De Rua
Que Queria Viver
Numa Prisão

Editado por
Fábio Gonçalves
Copyright © 2023 by Erson Rade
Copyright do título © 2023 by Edna David

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor em Angola em 2000.

Título original
O Menino De Rua Que Queria Viver Numa Prisão

Ilustração da capa
Erson Rade

Edição
Fábio Gonçalves

Revisão
Fábio Gonçalves
Adriana Dalpiaz

Diagramação
Erson Rade

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


________________________________________________
Rade, Erson, 2003 - (…)
O Menino De Rua Que Queria Viver Numa Prisão/ Erson Rade
Lunda-Sul: Fábio Gonçalves, 2023.

Título original: O Menino De Rua Que Queria Viver Numa Prisão


ISBN: 978-989-91630-5-8
________________________________________________

[2023]
Todos os direitos desta edição reservados à
FÁBIO GONÇALVES
Cidade de Saurimo
Tel.: (+244) 926-437-231
Fagd0706@gmail.com
Facebook.com/fabiogonçalves
Instagram/gon_alves7
Para todas às crianças
que vivem numa prisão chamada casa.

Peço desculpas aos meninos de ruas por dedicar este


livro às crianças que não são de rua. Tenho dois bons
motivos: primeiro; essas crianças que não são de rua são
as únicas que frequentam à escola e sabem ler. Segundo;
essas crianças entendem de tudo, até mesmo de livros e
poderão entender este também. Se esses motivos não
forem suficientes, quero dedicar este livro a todos os
meninos de ruas. Todos esses meninos de ruas já foram
meninos com casas e famílias, mas hoje estão nas ruas.
Então, corrijo a minha dedicatória:
Para todas as crianças do mundo inteiro.
A liberdade é o maior problema da humanidade.
Já estava se fazendo tarde, eu deveria estar prestes a
dormir, mas minha barriga fazia de tudo para me manter
acordado, tinha passado quase todo o dia sem comer,
salvo um maravilhoso pão que recebi de um velho
senhor, no lado de fora da padaria e pequeníssimas
réstias de comida que achara no lixo.
Então, saí do sítio onde durmo e fui em busca de
algo para comer. Talvez se fosse a padaria, ganharia
alguma coisa novamente, mas eu não tinha tanta força
para chegar até lá. Então parei em uma cantina que
estava próxima, fui pedindo para as pessoas que
entravam e saíam, uma a uma, mas as respostas eram
sempre as mesmas, pensei em entrar para pedir ao
vendedor, mas o olhar do segurança foi mais que
suficiente para me fazer continuar sentado lá fora.
A cantina já ia ser fechada, uma moça de um vestido
incrivelmente branco e um moço musculoso de
vestimenta casual tão escura quanto aquelas ruas, eram
os últimos clientes, aproximei-me do casal,
interrompendo delicadamente a conversa deles sobre a
feira que teria no largo da cidade no dia seguinte, para
pedir qualquer coisa.
— Oh, pobrezinho. Desculpe, mas não temos nada
para te dar. —Disse a moça com um quê de gentileza.
Bom, aquela resposta já era suficiente e eu não
deveria me importar com o fato de ter visto ele contando
algum dinheiro quando saiu da cantina, talvez seja para
algo muito importante, também não deveria observar os
dois sacos pesados que o moço levava em uma só mão, e
o saco aparentemente leve que a moça levava. Mas eu
realmente não estava bem, qualquer coisa que eles me
dessem seria mais que suficiente. Eu não costumava
insistir, mas naquele momento estiquei as minhas mãos e
pedi mais uma vez.
— Por favor qualquer coi...
— Ah!!!
Meu pedido foi interrompido pelo singelo grito da moça.
— Não me toque — disse ela afastando-se de mim.
Não era minha intenção, mas minhas mãos realmente
tocaram no vestido, apesar de ter sido de raspão.
— Meu vestido novo! — Disse ela em tom de
lamento. — Seu imundo.
— Mas eu...
Mais uma vez não consegui terminar uma frase. Dessa
vez não foi por um grito da moça, mas sim pela mão
direita do moço ter me atingido em cheio na bochecha
esquerda.
— Não ouviu o que ela disse? Afaste-se! Disse o
moço.
— Não precisava fazer isso! – Disse ela. – Vamos
logo embora.
Ele era realmente forte, eu até voei e fiquei estendido
no chão. A moça era gentil mas tinha nojo de mim, ou
talvez fingia ser gentil, o vestido dela sequer sujou.
Enquanto eu estava no chão eu vi ela passando um lenço,
provavelmente humedecido, no local onde toquei de
raspão, que exagero, e ele colocou bastante álcool gel na
mão com a qual me esbofeteou, que exagero!!!
— Estou tão nojento assim? — Perguntei a mim
mesmo ao levantar — Ou será que eles simplesmente me
odeiam?
Ergui um leve sorriso.
— Já ouvi falar de amor à primeira vista, e não de
ódio à primeira vista.
Passei minha mão pelo rosto e eu estava sangrando
pelo nariz, a pequena gota de sangue que estava em
minhas mãos escorreu ao chão junto com minhas
lágrimas.
Antes eu estava fraco e com fome, e agora fraco, com
fome, sangrando, com dor e chorando, mas não havia
mais nada a fazer a não ser voltar, não foi a primeira vez
que aquilo aconteceu, eu devia me recompor porque em
algum outro momento, voltaria a passar pelo mesmo.
No caminho de volta, alguém foi deitar uma caixa de
pizza no contentor do lixo. Fui até lá, haviam só migalhas
na caixa, mas naquele momento parecia um banquete.
Comecei a comer e no meio do lixo, avistei uma faca.
Peguei-a pelo cabo, era uma faca grande e sem serra,
além de muito enferrujada.
«Se eu tirasse a minha vida agora m.…» Pensei eu
posicionando a lâmina na direção da minha barriga. Mas,
naquele momento, as palavras de meu outro pai surgiram
em minha mente, ele sempre se manteve otimista, sempre
dizia que não se sofre eternamente neste mundo, que
alguém irá aparecer para ajudar, mas não foi isso o que
aconteceu com ele, ele não foi ajudado.
«E eu também não serei ajudado».
Eu estava completamente sozinho no mundo, a solidão é
a pior coisa que pode acontecer à um garoto com a minha
idade, os meus pais morreram muito cedo e também
sinto saudades do meu outro pai, se ele tivesse aqui eu
não estaria passando por tudo que tenho passado, seria
mais fácil sobreviver com ele por perto. Estou a um passo
de deixar de lutar, a um passo de deixar de sofrer, a um
passo de cometer uma loucura, a um passo de realizar o
meu maior desejo. Eu não suportava mais o
sofrimento nas ruas desde que o meu pai morreu.
— Ei! O que estás a fazer? — Disse alguém atrás de
mim.
Não virei para ver quem era, provavelmente era alguém
que estava se perguntando o porquê de um menino estar
aí no contentor àquela hora (o que fazia sentido), ou
talvez alguém que queria deitar o lixo e estava com medo
de mim, achando que eu fosse algum louco (bem, eu já
estava mesmo enlouquecendo).
A única coisa de que tinha certeza era de que a voz
pertencia a uma criança, uma menina. Eu e a faca viramos
ao mesmo tempo, os meus olhos foram ao encontro dos
olhos dela, e a faca foi ao encontro do pescoço dela.
— Que linda voz você tem — disse eu segurando a
faca com a minha mão direita.
Ela não tinha nada nas mãos, eu não entendi o porquê de
ela estar na rua tão tarde, era só uma criança, só não uma
criança como eu, estava tão bem vestida e com um cheiro
diferente, também não tinha um saco de lixo para jogar
fora.
— O que você faz aqui a essa hora? — Perguntei.
— Eu pergunto o mesmo.
— Eu moro na rua... — respondi.
Eu estava curioso com aquele olhar, ela parecia estar com
medo, mas não de mim, o olhar dela era bem diferente
daqueles de desprezo que eu recebia. Naquele momento,
no final da rua, à direita, ouvia-se claramente as sirenes
de uma viatura da polícia.
— E sabe, se eu matasse você, talvez eu vá para
prisão, ou reformatório, sei lá, e talvez lá eu tenha uma
chance de sobrevivência muito melhor do que aqui fora.
— Você mora na rua?! — Perguntou ela.
Não sabia dizer se era uma menina lerda ou se
simplesmente tinha ignorado tudo o que eu disse.
— Então, me esconda! — Disse ela, quase que em tom
de ordem.
— Quê?! — Indaguei.
Ela não parava de olhar para o lado de onde o som da
sirene vinha. Então eu percebi que ela, por algum motivo,
estava fugindo da polícia.
Pouco antes da viatura passar, nós já estávamos
escondidos atrás de um muro, era da nossa altura, por
isso estávamos agachados.
— Olha, se esconder na rua não é tão difícil, ainda
mais essa hora, você não precisava da minha ajuda.
— Por que você quer tanto ser preso? — Novamente
ela ignorou as minhas palavras.
— As coisas que eu digo demoram para entrar na sua
cabeça ou é de propósito? — Perguntei eu aborrecido.
— Você ia mesmo me matar?
Mantive-me em silêncio.
— Ia? — Insistiu.
— Primeiro me diga, por que você parece estar
fugindo da polícia?
— Ia ou não?! — Voltou a insistir.
«Que menina mais atrevida! Há pouco ela não parecia tão
destemida...», pensei.
Vendo que ela não pararia de insistir, respondi-lhe.
— Não. Apesar de eu querer muito ir para a prisão,
eu não o faria. Eu só queria que a polícia me apanhasse
com a faca na mão, que você ficasse assustada e fizesse
uma queixa, que eles achassem que eu estava prestes a
matar você — levantei-me e dei-lhe as costas.
— Se não fosse por um bom motivo, como
assassinato, acho que eu não seria preso, eles apenas me
dariam uma surra e me deixariam em qualquer lugar.
Então deixei a minha oportunidade passar.
— Ei! Aonde está indo? — Questionou ela após eu
andar alguns passos me afastando dela.
— Você não quer dizer nada, e também não tenho
motivos para ficar. Vá para casa!
— Eu fugi de casa — disse ela ao se aproximar de
mim. Por que você quer tanto assim ser preso?
— Você realmente tem um cheiro agradável, deve ser
um perfume caro. E acho que eu nunca vi um vestido
mais branco do que o seu. Nem mesmo o daquela moça
de há bocado... — voltei a olhar para ela.
— como consegue ficar tão perto de mim? Não está
com nojo?
— Eu perguntei primeiro.
— Você é mesmo introme.... — Antes que eu
terminasse de falar, ela me abraçou. Foi um tremendo
susto, exatamente aquele susto de quando acontece algo
que não se esperava nem um bocado.
— O que, o que, o que você está...
— Obrigada por me ajudar!
Depois que ela me soltou, o vestido dela ficou um
pouco sujo, mas só eu notei, por estar na frente dela. Os
olhos dela estavam focados em mim, ela não desviou o
olhar para verificar o estado da roupa.
— É mesmo... Hmmm... você disse que fugiu de casa.
Que história é essa?
— Você está fazendo duas perguntas, antes de
responder a minha.
Respirei fundo e segurei a mão dela.
— Para onde está me levando? — Perguntou ela.
— Aquela casa no final da rua, tem uma varanda.
Quando lá chegamos, ela viu que tinha alguém lá.
— Tem alguém dormindo aqui.
— Não te preocupes, eu o conheço, além disso ele
tem um sono pesado, não te preocupes com ele.
— Está bem.
Entramos e ela foi a primeira a sentar no chão,
sentei-me do lado dela e continuamos.
— Então, por que quer tanto assim ser preso?
— Tenho vivido a minha vida toda suportando
vários insultos, levando vários tapas, comendo nos lixos e
passando grandes dificuldades, a sentir-me inferior, a
sentir-me ninguém, mais vale ir preso e passar a viver
bem do que ficar aqui na rua, pelo menos lá tem comida e
estarei protegido dos insultos e tapas que eu tenho
apanhado e, também não estarei mais sozinho.
— Mas você não está sozinho...
— Está falando dele? — Apontei para a pessoa que
estava dormindo na nossa frente.
— Bom, vocês não são amigos?
— Nem por isso.
— E quanto a mim? — Indagou ela.
— Claro! Como se a gente morasse junto. Você está
aqui agora e depois vai voltar sei lá para onde e eu? Eu
vou continuar aqui, sozinho como vim ao mundo.
— Se você for preso, não será pior? Você não terá
nem pelo menos a sua liberdade.
— De que me serve a liberdade se eu não sou feliz?
A rapariga se aproximou um pouco mais...
— Meu pai diz que a prisão é um lugar ruim, é um
lugar onde só vivem pessoas más.
— Aqui é um lugar de pessoas más — respondi — lá
é um lugar de pessoas que fizeram algum mal e estão
pagando por eles. Os verdadeiros criminosos são esses
que estão em liberdade e não na prisão, as pessoas que
estão na prisão cometeram crime enquanto estavam em
liberdade, a liberdade é perigosa.
— Como a liberdade pode ser perigosa?! Eu não vejo
perigo algum em ser livre.
— Fique esperta menina! O perigo da liberdade está
no seu uso.
— Então, você não a está usando bem? Por isso não
quer mais tê-la? O que garante que você não a está
usando bem? Eu compreendo que a vida na rua é dura,
mas...
— Não, tu não compreendes — Interrompi —
Batem-me e insultam-me diariamente, vivo sozinho e não
sei o que fazer... tu vives bem, tu tens uma família e uma
casa por isso não me compreendes.
Quando terminei de falar, percebi que talvez não
devesse ter falado naquele tom.
«É verdade, eu quase me esqueci que ela fugiu de
casa, qual será mesmo o motivo? Ela parece ser de uma
família que é capaz de lhe proporcionar tudo, aliás, só de
ter uma família já é bom. Então, por que ela fugiu?»,
Pensei.
— Desculpa — pedi. – Não deveria ter falado assim
com você.
Ela manteve-se em silêncio.
— Por que você fugiu?
Ela continuou quieta.
— Entendo, se não quiser dizer, tudo bem —
levantei-me e minha barriga começou a roncar.
Ela sorriu e continuou:
— Eu vou contar, mas antes, vamos comer, eu
também estou com fome.
— Comer? Como?
— Não te preocupes! — Ela parecia maliciosa.
— Então, você tem dinheiro?
— Não tenho.
— E então?
— Vamos invadir um certo lugar — ela levantou-se
também e piscou o olho direito para mim.
— Invadir?! Do que estás falando?
— Bom, talvez seja e talvez não seja uma invasão. O
importante é que vamos comer. Pense que é uma
aventura.
Ela segurou minha mão e seguimos em frente,
percorremos quatro quarteirões de caminhada enquanto
eu reclamava da suposta invasão e ela me tranquilizava,
sem falar de eu ter estado a suar frio por andar com ela.
Felizmente chegamos em ruas mais movimentadas, isso
porque eu queria que ela estivesse mais segura, mas estar
em lugares movimentados também não era a situação
ideal. Para dizer a verdade eu estava cheio de medo,
medo do que podia acontecer, as pessoas passam por
mim diariamente e ninguém jamais teve a coragem de se
aproximar tanto de mim como aquela menina, eu ainda
não sabia o nome dela e nem a conhecia de lugar algum,
mas de uma coisa eu tinha certeza, ela era do bem, eu via
enquanto andávamos, mesmo estando sujo e com cheiro
de lixo, ela não saiu de perto de mim, ela segurou minha
mão e ficou andando comigo.
Mas para uma pessoa que tinha fugido, ela parecia
ou ingênua ou tranquila e bem confiante de sua fuga, mal
olhava para os lados, apenas para a frente e para mim. Eu
me mantive observando todos os cantos para o caso de
alguém estar a segui-la, mas, se alguém estivesse a fazer
isso, já nos teriam apanhado naquela varanda.
— Então, você ia dizer que... — tentei recuperar a
conversa que estava pendente e ela interrompeu
gritando: CHEGAMOS!
— Fugitivos não deveriam gritar assim — disse eu. —
E que mania é essa de interromper as minhas falas?
— É aqui onde podemos comer.
Era um dos melhores restaurantes daquela cidade,
perfeitamente decorado com uma enorme variedade de
flores em todos os cantos, bem iluminado, a cor
predominante era o branco, que fazia as flores e as mesas
com toalha carmesim sobressaírem.
Estávamos do outro lado da estrada, fitando o
restaurante frente a frente.
— É um restaurante de luxo. Não temos dinheiro e eu
com certeza nem posso pisar no passeio do outro lado.
Além disso, parece que já é hora de fechar.
— Claro que pode.
— Supondo que seja verdade, como vamos entrar?
— Espere um pouco — ela não parava de
movimentar a cabeça como se estivesse procurando por
alguém. E realmente estava.
Quando encontrou a pessoa que queria, deu-lhe um
sinal acenando com a mão esquerda e em seguida outros
sinais com as duas mãos.
— Agora é só esperar.
Um homem enorme saiu de lá e foi ter connosco, a
distância ele já parecia grande, mas de perto era outra
conversa, eu teria dores no pescoço se tentasse olhar para
o rosto dele por muito tempo. Ele usava um fato mais
escuro que a noite, logo ao chegar, curvou-se diante dela,
como se princesa fosse.
— Mas nós estamos com fome, será que não podemos
entrar para comer alguma coisa? — A voz dela já se
parecia mais como o de uma menininha.
— “Nós? ’’ Indagou Ken.
«Você mal percebeu que eu estava aqui?!», pensei.
— Sim, eu e o meu amigo aqui. Podemos?
— Então a senhorita já fez um amigo! Estou
impressionado.
«Impressionado com o tipo de amigo, não é? »,
pensei. «E não somos amigos coisa nenhuma! »
— Mas é claro. Mas, tal como eu disse, é sobre isso,
do que adianta fugir se não consegue se alimentar
sozinha nem no primeiro dia?!
— Ah, mas você faz parte do plano. Se eu precisar de
algo você vai me ajudar.
— Entendo, senhorita. Por favor, vamos entrar.
Então ele nos levou por outra entrada, bem menos
iluminada, e entramos numa sala grande, mas bem
aconchegante, lá as paredes tinham um tom bem suave
de castanho claro, havia uma grande mesa retangular no
centro com oito lugares.
— Essa é uma sala VIP, aqui ninguém irá encontrar a
senhorita.
— Não tenho memórias dessa sala — disse ela.
— Está é diferente, senhorita. Ahm... Menino de...—
Ken estava tentando arranjar um jeito de me chamar. —
Rapaz! Não gostaria de tomar um banho antes? Também
posso oferecer-lhe outras roupas.
Bom, não podia reclamar, eu parecia uma figura
rupestre em meio a tamanha obra prima ao meu redor,
inclusive ela. Quando eu voltei, ela estava me
aguardando havia um prato onde ela estava sentada e
mais um ao lado dela, com certeza era o meu.
— Estou de volta — disse eu antes de sentar.
— Esse azul escuro ficou bem em você — disse ela se
referindo a camisola.
— Por um instante eu achei que ele me daria um fato
preto.
— Ficaria tão elegante — disse ela sorrindo e eu
acabei sorrindo também.
— Então — puxei a cadeira. — Senhorita Bia!
— Bia Marques, prazer! — Ela estendeu a mão e eu
estendi a minha também.
— Prazer.
— Não vai dizer o seu?!
— Menino de rua — sentei.
— Não, o teu nome...
— É esse o meu nome e é assim que as pessoas me
chamam. Não lembro de já ter tido um nome antes desse.
Parece que infelizmente eles nem sequer tiveram tempo
para isso.
— Eles... Os seus pais? O que aconteceu com os seus
pais?
Tentei conter as lágrimas, mas era impossível.
— Eu não tenho família. Eles morreram no dia em
que eu nasci, segundo a minha tia, eles estavam saindo
do hospital para casa quando um carro acabou batendo
no carro onde estávamos. Eu fui o único que sobreviveu
ao desastre. Fui criado pela minha tia até os cinco anos,
mas ela maltratava-me, me chamava nomes e dizia
sempre que eu era bruxo, que eu matei os meus pais no
acidente, por isso eu fugi da casa dela e nunca mais soube
de ninguém. Mas depois fui acolhido por um meu outro
pai, ele criou-me e ensinou-me as regras das ruas, como
se manter vivo nela e graças aos seus ensinamentos estou
aqui até hoje.
— E onde anda esse seu outro pai?
— Ele acabou morrendo também há três anos, desde
a morte dele que as coisas têm sido difíceis para mim.
Bia parecia estar sem fôlego depois de ouvir tudo
aquilo.
— Lamento pelas tuas perdas!
— Obrigado. Mas, e tu?
— E eu, o quê?
— A tua família sabe que estás aqui?
— Bom... já vou dizer, mas vamos começar a comer.
— Está bem. — Então falaríamos enquanto comíamos
— Eu fugi de casa...
— Estou a ver...
— O meu pai é governador e minha mãe é dona
desse restaurante.
Eu quase me engasguei ao ouvir aquilo. Ela
rapidamente começou a dar-me tapas nas costas.
Continuamos quando passou.
— Governador?!
— Sim.
— Isso é mais do que eu estava à espera! — Disse eu
dando as últimas ‘tossidelas’.
— Do que estava à espera? — Ela sorriu.
— Qualquer outra coisa. Mas podes continuar.
— Bom, há muita coisa, tem o facto dos meus pais
quase nunca estarem comigo, mas não os culpo, o
trabalho não é fácil, mas, sempre que os vejo são só
discussões, eles podem parecer um belo casal, mas em
casa a história é outra, é insuportável, eu choro cada vez
que os vejo daquele jeito, e também, eles são demasiado
controladores e eu não posso fazer muita coisa por causa
do trabalho deles, não posso sair quando quero, não
posso ter amigos que não são da minha classe social, não
posso simplesmente fazer o que uma criança normal faz.
Não consigo! O tempo todo tem sempre alguém olhando
por mim. Eu não sou livre como uma criança da minha
idade devia ser.
— E eu achando que bastava ter uma família para ser
feliz!
— Pois... não é tão simples.
— Isso me faz lembrar de quando falamos sobre
liberdade. Sobre ela ser perigosa demais — disse eu.
— A liberdade é perigosa quando não sabes as coisas
ruins que a falta dela pode causar.
Por uns momentos ela parecia ter razão, quando eu
vivia com a minha tia, ela não me deixava nem sair de
casa, os filhos delas podiam ir ao parque, podiam brincar
e fazer um monte de coisas que eu não podia, eles até
tinham direito de ir à escola enquanto eu ficava em casa a
fazer os trabalhos e isso era realmente deprimente, só não
era tão deprimente quanto nas ruas.
Já tínhamos terminado de comer e ainda tínhamos
ficado por uns minutos, depois Ken voltou a
acompanhar-nos para a saída e então começamos a
caminhar, eu mal pensava por onde ir e ela
aparentemente também não, já que só íamos em linha
reta.
— Ah, eu esqueci de perguntar — lembrei enquanto
caminhávamos. — Que comida era aquela?
Ela sorriu e disse o nome: Vitela.
— Nunca ouvi falar!
— Só um nome bonito para bezerra.
— Estou a ver. Bom, tem mais algo que eu quero
saber.
Caminhamos bastante até chegarmos a um dos
rossios da cidade e sentamos em um dos bancos.
— Você disse que queria saber de alguma coisa... —
lembrou ela.
— Sim, quem é o Ken? E, se você fugiu de casa, por
que se arriscar em ir para o restaurante da sua mãe e por
quanto tempo pretende ficar nisso?!
— O Ken era um dos seguranças da casa. Ele e vários
outros estão no restaurante agora apenas para reforçar a
segurança, porque meu pai tem convidados políticos
importantíssimos nessa semana que têm feito lá as
refeições.
— Isso me deixou mais preocupado, tem certeza que
ele não vai contar nada ao seu pai? Além disso, não me
pareceu que havia tanta segurança no restaurante, é
estranho.
— Ele já sabia do meu plano, antes de eu sair de casa,
se fosse contar ao meu pai já o teria feito. Além disso, nós
somos amigos.
Eu tenho mais confiança com ele do que com os meus
pais. E sobre o restaurante, o Ken conhece bem cada
passagem e o sistema eletrônico, nem câmaras nem os
outros seguranças nos poderiam encontrar.
— Bom, parece que sim, até porque entramos,
ficamos e saímos tranquilamente.
— Isso mesmo — disse ela enquanto bocejava. — E
sobre até onde pretendo ir... eu não sei.
— Você está... — dessa vez ela interrompeu a minha
fala, não com palavras e sim com a cabeça dela
recostando repentinamente no meu ombro.
— Você está com sono? — Perguntei.
— Hmmm... — ela estava tão sonolenta que parecia
não entender as minhas palavras.
— Tal como eu pensava...
«Você pretende mesmo dormir aqui? », pensei. «Eu
posso dormir em qualquer lugar, mas e você? Não sente
frio? » Continuei a olhar para ela e depois ergui meu
olhar para cima.
— Durma bem, Bia! — Disse eu.
Fiquei um tempo olhando para as estrelas e a pensar
sobre a maravilhosa pessoa que tinha acabado de
conhecer naquela noite. Até que finalmente também
adormeci.
Quando amanheceu, eu ainda estava sentado no
banco, do mesmo jeito que estava quando adormeci,
dormir daquele jeito deixou-me com os músculos bem
doridos. Eu acreditava que acordaria com uma dor maior
no ombro, mas ele não doía, e quando abri os olhos,
percebi o porquê. Era porque Bia já não estava aí, aquela
menina doce e linda que me fez acreditar que ainda
existem pessoas boas, tinha sumido. Levantei-me, olhei
ao redor e eu simplesmente não a encontrava em lado
nenhum.
Foi então que parei para pensar, que talvez, tudo
que eu tinha na memória sobre a noite passada, poderia
ser nada mais nada menos que um sonho. Mas parecia
tão real! Se foi um sonho, com certeza foi o melhor que eu
já tive.
Por outro lado, eu tinha a certeza que não era um
sonho. Mas se não era, onde estava a Bia? Porque ela
desapareceu assim tão de repente? Porque ela nem sequer
disse adeus?! Eu estava confuso, não conseguia entender
se aquilo tinha sido um sonho ou ela existiu mesmo.
Depois de refletir por mais um momento, pensei que ela
poderia ter desistido de sua fuga, ou se fartado de mim e
da rua. Não que eu criticasse, eu ficaria feliz em saber que
ela estava segura em casa, mas se foi sozinha para casa,
não terá acontecido nada no caminho? Eram muitas
probabilidades.
Mas se ela tivesse desistido ou não, a minha
realidade era outra. Tinha que pensar no que fazer sobre
mim a partir daí eu esperava conseguir ir para uma
prisão ou reformatório, mas depois de conhecer a Bia, eu
tinha parado meus passos. Talvez eu pudesse pensar em
algo diferente, uma forma melhor de continuar a viver.
Primeiro eu precisava sair daí e voltar para o lugar
onde normalmente dormia, lá estavam algumas coisas
minhas. Pelo caminho, perguntei as pessoas se estava
tudo bem com a família do governador, se estava tudo
bem com a filha, se ela tinha desaparecido. Algumas
ficavam surpresas com a questão, mas senti que já não me
ignoravam como antes, talvez porque eu já não estava
sujo e usava uma roupa melhor. As respostas eram bem
vagas, alguns sequer sabiam que o governador tinha uma
filha, outros sabiam, mas não conseguiam confirmar se o
nome era mesmo Bia.
Isso me fazia pensar, que conhecer a Bia realmente foi
um sonho. Uma pessoa que confirmou ter visto o
telejornal do dia anterior e que estava a ouvir a rádio da
cidade naquele momento, disse que não houve notícia
alguma sobre algum desaparecimento naquela cidade.
Bom, eu achei que se a filha de alguém tão importante
desaparecesse, apareceria nas notícias. Cada vez mais
ficava em dúvida se era real ou não. Eu me lembrava
também que a polícia estava atrás dela, então, talvez o pai
apenas quis que a informação não se espalhasse, ou a Bia
estava preocupada à toa, talvez nem mesmo a polícia
estivesse atrás dela.
«Ah, isso vai me deixar doido! », pensei.
Quando cheguei aos meus aposentos, um lugar na
periferia, onde era necessário passar por vários becos,
fiquei surpreendido, as pessoas que também dormiam aí
estavam jogadas no chão, algumas delas com sangue
escorrendo pela boca. Era uma visão aterrorizante, o
espaço isolado onde eu dormia, e o espaço onde eles
estavam, não havia rastos das nossas coisas, os colchões
velhos, as caixas, o ferro velho, já não havia sequer uma
pedrinha ou folha no chão.
— Mas o que... O que aconteceu aqui?! — Gritei em
desespero.
Aproximei-me de um deles e perguntei novamente.
— Você, a culpa é sua! — Disse ele. — Olhe o que
aconteceu.
— O quê? — Questionei. — Seu idiota! Como a culpa
disso seria minha? O que raios aconteceu?!
— Fuja! — Disse o outro ao lado.
Eu estava sem entender mais.
— Deve ser você — disse uma voz atrás de mim.
Era um homem de grande postura, de fato preto e
máscara, o punho direito dele estava banhado em sangue
e ele o limpava com um pano branco.
— Não te preocupes, eles estão só desmaiados, e você
será o próximo!
Quando ele deu o primeiro passo, corri, corri como
nunca, corri o máximo que eu podia, saltei um muro e
segui pelos becos.
«Quem é aquele homem? O que ele quer?! O que
aconteceu?!»
Pensava enquanto corria.
— Nem parece que você mora nesse lugar, há vários
atalhos para chegar até aqui — disse o homem, ele estava
bem na minha frente, mesmo após eu ter corrido tanto ele
me alcançou facilmente e não parecia suado.
Quando eu tentei recuar ele me deu um chute da
barriga, senti como se fosse desmaiar no mesmo
momento.
— Ei, ei! Eu nem usei tanta força.
Fiquei ajoelhado no chão tossindo bruscamente.
Havia uma pedra ao meu lado. Segurei-a antes que ele
me pegasse pelo pescoço com as duas mãos. Ele me levou
para o alto e perguntou.
— Onde está a senhorita Bia?!
«Então era isso! », pensei.
— Eu não sei — respondi.
— Após a minha resposta ele apertou ainda mais e
aproximou-me de seu rosto.
— Me responda! Ou eu...
Antes que terminasse de falar, levei a pedra em minha
mão na direção do rosto dele.
— PODE FAZER O QUE QUISER! EU JÁ RESPONDI
A SUA PERGUNTA.
Mesmo depois daquilo, ele não me soltou, a cabeça
dele sequer se mexeu. Tudo que consegui fazer foi
estragar-lhe a máscara e tirá-la da cara.
— KEN?! — Disse eu, surpreso. O homem na minha
frente era o mesmo que nos ajudou na noite passada.
Sabia que já tinha visto aquele tamanho em algum lugar,
mas ele conseguiu mudar a voz então parecia outra
pessoa. Aquela era a pessoa de confiança da Bia, um
traidor.
— Por quê?! — Perguntei ofegante.
Ele tinha noção do que eu estava perguntando.
— Eu nunca fui cúmplice nem confidente dela —
naquele momento, Ken voltou a alterar sua voz, dessa
vez era a voz que eu conhecia. — Eu relato ao pai dela,
todos os passos e segredos que ela me conta, afinal de
contas eu trabalho para ele. Mas dessa vez, achei
desnecessário contar porque realmente não acreditava
que ela teria coragem e capacidade de sair de casa e
porque ele estava com vários problemas por resolver, não
o quis incomodar com tal infantilidade.
Ouvir aquilo deixou-me tão irritado que eu tentei me
debater.
— Persistente — disse ele ao me apertar ainda mais.
— Mas você não tem força alguma. Mesmo quando me
acertou há pouco, não o fez com toda força. Lembre-se de
usar toda força que tem da próxima vez que quiser fazer
algo assim. Isto é, caso tenha uma próxima vez. Você não
sabe com quem se meteu, mesmo que seja criança,
podemos deixar você apodrecer numa cela na prisão,
ninguém saberá mesmo.
— Eu... ficaria feliz — disse eu usando o último
fôlego que me restava.
O homem largou-me e eu caí bruscamente no chão.
— Agradeça por ter sido eu a vir interrogá-lo! Se
fosse qualquer um dos meus colegas, você já não estaria
vivo. Estarei de olho em você! — Disse ele antes de ir
embora.
— Eu fiquei no chão por muito tempo. Quando
acordei o sol estava bem em cima de mim, então
provavelmente era meio dia.
Supus que ele já tivesse ido embora após tanto
tempo. Eu voltei para o lugar onde dormia, estavam
todos sentados.
— Seu! — Um deles levantou tentado ir para cima de
mim, e foi impedido pelos outros.
Pelos olhares, eu percebi que eles me culpavam pelo
acontecido.
— Eu já percebi, não precisam dizer nada. Eu só vim
ver com mais calma, se sobrou alguma coisa minha.
— Não está vendo que tudo desapareceu, idiota?! —
Disse um deles.
— Então veja, depois vá embora! — Disse o outro.
Fui até meu espaço, que era bem separado, estava lá
alguém sentado.
— Aqui, coma — disse ele me oferecendo um pedaço
de pão.
— Obrigado, mas não estou com fome.
— Ah, está, está. Não te preocupes, é novinho em
folha.
Acabei por aceitar, comi um pequeno pedaço e
coloquei o resto no bolso.
— Parece que já não há mesmo nada, então vou
embora.
Obrigado pelo pão!
“En... con... t-tramo-nos no fi...nal” quando virei as
costas, a pessoa que me ofereceu o pão começou a dizer
essas palavras com dificuldade, quando virei, notei que
ele estava lendo um papel. “... da tarde no jaaar...dim.
Com.… a.… mor... Bia”
— Hmmm, você já tem namorada? — Perguntou ele
depois de ler.
Rapidamente tirei o papel das mãos dele.
— Onde você encontrou esse papel?
— Caiu do seu bolso quando você tirou a mão.
«Então essa carta estava comigo o tempo todo. Não
foi um sonho, bom, eu percebi isso depois da surra. Se
ainda estão procurando por você, é porque você não
chegou em casa, onde será que você está? », pensei.
Saí imediatamente daí. A carta me deixava feliz por
um lado, mas haviam milhares de perguntas para serem
respondidas. Eu sentia que cada passo meu era em vão,
pois se aquele homem foi capaz de encontrar aquele
lugar, então com certeza estava me observando.
— Ah — suspirei — Em que situação estamos hein
Bia!?
Se eu estava a ser seguido, então precisava entrar no
meio de uma enorme multidão e despistá-lo, mas onde
encontraria a tal multidão?! Caminhar sem direção não
me ajudaria.
«Há muito que analisar, mas vamos passo a passo...»,
pensei. «Ela fugiu de casa, ok; não parecia querer voltar
tão cedo, ok; estávamos juntos até eu adormecer, ok; ela
desapareceu, mas obviamente não foi para casa, deixou
uma carta confirmando que voltaria, ok; na opção mais
pessimista, ela pode ter sido sequestrada, talvez por
alguém que não goste do pai dela, ou talvez bandidos; a
opção otimista... Ken e os seus colegas devem conhecer
bem a cidade, se eles não a encontraram, nem mesmo
com ajuda da polícia, então ela foi para um lugar que só
ela conhece. Se assim for, posso ficar tranquilo».
Outro problema era a possibilidade de estar a ser
seguido. Então me encontrar com a Bia seria perigoso, eu
o levaria direto para ela. Pois é, Ken não me deixou vivo
por pena, ele está me observando e esperando que eu
volte a me encontrar com a Bia.
Apesar de parecer uma brincadeira de criança, ela
não queria ser encontrada então eu não podia permitir.
Não podia ser tão ingrato.
«Então, o que eu posso fazer? », perguntei-me ao
marcar novamente os passos.
— Ah! — Alguém que vinha em minha direção
gritou assustado.
— Você! Você! É tudo culpa tua!
— Do que você está falando? — Era o idiota que
estava dormindo naquela varanda em que eu e a Bia
sentamos para conversar. — E o que é isso na sua cara?
— Eles me bateram, queriam saber onde você estava!
Eles bateram em mim! Não quero mais ver você! Não
quero mais ver você! — Ele passou por mim.
«Maldição, ele já não batia bem da cabeça e agora
fizeram isso com ele! Acho que foi assim que eles
descobriram aquele lugar. Eu não culpo ninguém por ter
dado informação, eu que devia pedir desculpas por todos
estarem numa situação como essa», pensei.
Foi muita epifania para um só dia, mas ele ainda não
tinha acabado.
Eu precisava diminuir a percepção da minha
trajetória mesmo que um pouco. É como dizem: “se quer
esconder uma árvore, use uma floresta”. Logo lembrei
que haveria uma feira no largo. Fui até lá e havia mesmo
muita gente, seriam minhas árvores. Eu já estava sujo
novamente, depois de ter ficado deitado naquele chão
durante toda a manhã, então ninguém estranhava minhas
roupas, já estava a ser tratado novamente como Menino
de Rua, e ainda bem, assim chamaria menos atenção.
Depois de me esgueirar entre as pessoas, encontrei um
pequeno lugar onde meu corpo cabia, onde podia
enterrar minhas raízes e esperar a hora certa de
desabrochar.
No final da tarde, ainda havia muita gente, e a
escassez de luz no local era benéfica para mim. Saí pelo
lado oposto de onde entrara, cobrindo minha cabeça com
um curto pano que encontrara no chão.
Também havia muita gente no caminho.
Quando cheguei ao jardim, no rossio, lá estava ela,
sentada no mesmo banco onde estávamos. Olhei para
todos os cantos, ninguém suspeito, então prossegui.
Apesar de ainda não ter estado mais perto, ela percebeu a
minha chegada, levantou-se acenou com a mão direita e
com um sorriso dizendo: “Aqui estou”. «Você me deixou
tão preocupado!», pensei relaxando todo meu ser. «Por
onde você estav...» meus pensamentos foram
interrompidos quando vi um homem se aproximando
por trás da Bia, ele era muito estranho, usava um fato
desajeitado, tinha um sorriso horrível cravado no rosto e
caminhava com as mãos nos bolsos. Podia ser alguém
que estava apenas passando, com certeza não era um dos
colegas do Ken, muito menos um polícia.
Eu sentia que era alguém bem mais bizarro.
— Bia! — Minha voz saiu com um volume mínimo
enquanto aquele homem se aproximava.
— BIA!! SAI DAÍ! – Gritei. Mas já era tarde, o homem
a agarrou bem antes de Bia entender o porquê da minha
gritaria.
— SOCORRO! ALGUÉM! — Gritei em desespero.
Eu parecia um louco gritando para o nada, as pessoas
de passagem, que já eram poucas, não ligaram para mim
pois nada de anormal parecia estar acontecendo, já que o
homem tinha soltado ela e sentaram juntos como se
fossem familiares. Parecia que eu era o único que viu a
cena anterior. Eu parei por alguns segundos, não
entendia o que estava acontecendo, quem era ele, se era
um conhecido que tinha o costume de fazer aquilo. Mas
logo percebi que estava errado, o homem colocou seu
braço em volta do pescoço dela, e o que estava na mão
era uma arma, ele a tinha ameaçado de algum jeito para
que ficasse quieta.
Dei o primeiro passo e o que vi fez meu corpo correr
inconscientemente. Ele tinha colocado a mão em baixo do
vestido dela e ainda continuava com seu horrível sorriso.
Novamente eu corri como nunca, com uma pedra em
minhas mãos que eu tinha pego depois do primeiro
passo. Eu estava por trás deles, correndo em direção a
cabeça do patife.
Naquele momento, a voz do Ken veio até mim
“Lembre-se de usar toda força que tem da próxima vez
que quiser fazer algo assim”. Dessa vez eu não estava
esgotado, não estava debatendo para salvar a mim
mesmo, cada movimento era para livrar Bia das mãos
daquele pedófilo. E assim o fiz, dei-lhe com a pedra na
cabeça após o salto. Sua cabeça inclinou-se para o outro
lado enquanto sangrava e a Bia saiu do banco gritando.
Todos ouviram, olharam para mim e disseram
“Aquele menino atacou aquele homem! ”, “Acho que é o
pai dela, ele está morto? ”, “É um menino de rua! ”.
Eu estava ofegante, parado, quase sem reação,
explodindo tudo na minha mente.
— Eu... — Bia tentava dizer alguma coisa. Mas a
multidão nos cercou. Nem eu sei de onde haviam saído
tantas e tantas pessoas num piscar de olhos.
— Vejam! Uma arma! — Disse um deles.
Naquele momento, várias pessoas e vários veículos
cercaram o local. Nem parecia que há poucos minutos
estava quase vazio.
— Saiam da frente! — Ken saiu no meio da multidão
e foi ter com Bia.
— O que está acontecendo aqui?! — Outra pessoa
passou pela multidão, usava um fato mais elegante, não
era alto como o Ken e vinha com vários seguranças e
claro, a polícia.
Algumas pessoas exclamavam no meio da multidão
“É o senhor governador! ”.
A polícia rapidamente conteve a multidão, mais
ninguém poderia se aproximar. Naquele momento, Bia
veio me abraçar, foi o melhor abraço que já recebi, ela me
apertava como se fosse meu último dia respirando.
— Meu senhor — Ken começara a explicar. Eu estava
de olho no rapaz, quase o perdi de vista, mas voltei a
achá-lo e vi-o chegando até este lugar. Percebi que a
senhorita Bia também estava aqui, eu os observei
escondido há vários metros daqui.
Mas, este homem apareceu e... Tentou pegar a sua
filha. Eu vim correndo o mais rápido possível.
— Ele é um pedófilo — disse o senhor agente. — Há
tempos que o procurávamos. O menino, ele o matou, é
visível e há testemunhas. Ele salvou sua filha, mas...
— Ele não salvou ninguém — disse o senhor
governador. — Não quero saber de mais nada, faça com
que esse rapaz viva encarcerado para o resto da vida.
— Como desejar.
— Ken! Pegue a Bia e vamos embora. Chega dessa
brincadeira de crianças.
Ken foi imediatamente fazer com que a Bia parasse
de me abraçar, ela se debatia, chorava e gritava,
declarando minha inocência, bom coração e que não
podiam fazer aquilo com uma criança.
Antes que ela fosse arrancada de mim, sorri para ela,
para que sua última memória sobre mim fosse com um
sorriso.
– Eu estou muito feliz por ter te conhecido. Não te
preocupes, eu vou ficar bem.
Minhas palavras não pareciam atenuar a dor que Bia
estava sentindo. Por fim ela foi levada à marra pelo Ken e
eu, pela polícia.
***
— Ah, eu não consigo parar de chorar, seus idiotas!
— Disse um dos meus colegas de cela.
— Você veio parar aqui completamente à toa, por
causa dessa menina. Sinto raiva dela — disse o outro.
— Cale-se! Se diz isso é porque não entendeu a
relação deles. Bom, o mais importante é que você vai sair
amanhã. Ainda bem que exigimos que você contasse essa
história antes de sair.
— Então você está aqui desde que era criança!
— Sim. Só não fui parar noutro lugar para ser morto,
graças ao Ken.
— O Ken? Ele não era mau? Ele está do seu lado? Ou
sentiu pena e remorso?
— Não sei. A Bia também estava atualizada de tudo.
Ela se formou em direito por minha causa, é graças a ela
que vou sair amanhã.
— Aquela bela moça que vinha te visitar sempre, a
sua advogada, é a Bia?
— Sim.
— Só por esse pequeno esforço eu não vou sentir
mais raiva dela.
— Mandei você calar, mas ao menos disse uma boa
coisa.
— Parem de brigar! — Disse eu.
— Verdade. Vamos comemorar, amanhã voltarás à
liberdade e verás a Bia lá fora.
— Pois é... Mal posso esperar.
FIM...
Dados do Autor

Este é o primeiro livro de Anderson Francisco Guilherme De


Andrade, ou simplesmente conhecido como Erson Rade,
nascido aos 8 de julho de 2003 em Luanda, Angola. É
atualmente residente na província da Lunda-sul,
município de Saurimo.
Começou a escrever em março de 2020 durante o período
de isolamento social. Na busca de um passatempo viu na
escrita uma forma de não só passar o tempo, mas como
também de organizar seus pensamentos e aprender.
Começou escrevendo poemas, mas, com o passar do
tempo começou a escrever também romances e contos.
Contatos do Autor

Tel.: (+244) 932654957 / 939109877


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Email: ersonrade@gmail.com

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