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Hyster Forklift Truck J004 (S80FT,S80FTBCS,S100FT,S100FTBCS,S120FT,S120FTS,S120FTPRS) Par

Hyster Forklift Truck J004 (S80FT,S80


FTBCS,S100FT,S100FTBCS,S120FT,S
120FTS,S120FTPRS) Parts Manual
4128401
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**Hyster Forklift Truck J004


(S80FT,S80FTBCS,S100FT,S100FTBCS,S120FT,S120FTS,S120FTPRS) Parts
Manual 4128401** Size : 47.1 MB Format : PDF Language : English Brand: Hyster
Type of machine: Forklift Truck Type of document: Parts Manual Model: Hyster
J004 (S80FT,S80FTBCS,S100FT,S100FTBCS,S120FT,S120FTS,S120FTPRS)
Forklift Content: Hyster 4128401-[J004]-H-PM-US-EN-(01-2016) Parts Manual.pdf
Hyster 4128401-[J004]-H-PM-US-EN-(04-2015) Parts Manual.pdf Hyster
4128401-[J004]-H-PM-US-EN-(07-2015) Parts Manual.pdf Hyster
4128401-[J004]-H-PM-US-EN-(10-2015) Parts Manual.pdf
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E o paquete não chegava, e os manuscriptos{60} arderam, e o
Conde queimou as gravuras e conservou apenas o Suetonio.

*
* *

Passados dias chegou uma carta.

Trazia um sobrescripto azul, um pouco transparente, muito boa


lettra, uma lettra com muitos finos e grossos, como a d'um professor
de caligraphia. Trazia a marca do Brazil e cheirava a carvão de
pedra.

Foi o José quem a recebeu, e correndo para a livraria, onde o


Conde estendia instinctivamente as mãos tremulas sobre as cinzas
frias da chaminé, entrou gritando:

—O paquete! o paquete!

O Conde estremeceu, ergueu-se e pegou na carta.

Era talvez a riqueza!

Passou-lhe uma nuvem pelos olhos.

Encostou-se a uma poltrona e, tremendo, abrio o sobrescripto.

E leu:{61}

«Temos o doloroso dever de dar parte a V. Ex.ª do fallecimento do


seu filho...»

O Conde não poude ler mais e deixou cair a carta.

José exclamava:
—Perdidos! Perdidos!

E dava com a cabeça nas paredes.

O Conde conservava-se silencioso e fitava os olhos turvos na folha


de papel azul, que tremulava no chão assoprada pelo vento.

—Resta-nos a caridade, José, disse porfim. Vae, vae ter com essa
gente a quem hontem ainda eu dei esmolla, e dize-lhe que o Conde
lhe pede, por amor de Deus, um bocado de pão.

E depois soluçando:

—Manuel! Filho!... Meu querido filho! E como fazia muito frio, o


Conde queimou o Suetonio.{62}

{63}

PERDIDO

Quando ouviu ao longe, no campanario da freguezia, bater meia


noite, entreabriu de mansinho a porta da choupana e escutou por
longo tempo. Nem um sussurro!... Tudo dormia áquella hora.
Saiu e, pé ante pé, com a enxada ao hombro, approximou-se da
aldeia, que tinha de atravessar.

Tudo era em silencio; apenas, muito ao{64} longe, junto á fonte,


uma rã solitaria coaxava tristemente.

A lua no minguante alumiava com uma serenidade triste umas


trinta ou quarenta casas, dispostas no fundo do valle, ao acaso,
entre os choupos da beira do riacho e os ultimos pinheiros da matta,
que descia pela encosta em pujante vegetação sombria.

Pelas fendas das portas mal cerradas, ouvia-se por vezes o


profundo ressonar compassado dos homens de trabalho. Então
parava de ouvido á escuta, olho á espreita, com um pé para deante,
o outro para traz, posto de bico, prompto para a retirada. E, quando
tudo outra vez cahia no primitivo silencio, tornava a caminhar
devagarinho, sempre cauteloso, sobresaltado, de olhar desconfiado,
como se fosse commetter um crime.

Grossos rolos de nuvens pardacentas, com largas nodoas escuras,


onde a lua, n'uma carreira seguida, mergulhava enchendo o campo
de trevas, começaram deixando cair{65} grossos pingos d'agua sobre
a rama dos pinheiros.

O vento soprava rijo do sul e toda a serra soltava gemidos


dolorosos, fantasticos, em meio do sussurro da folhagem.

Á medida que a encosta se ia elevando, cerrava-se mais e mais o


pinhal. A chuva engrossára, e por entre as ramas mal coava um ou
outro raio de luar, iriando, como perolas transparentes, as gottas
d'agua, que tremeluziam no extremo das agulhas.

Era no alto da serra que o seu thesoiro junto pouco a pouco,


desde tantos annos, fôra escondido. Vinha augmental-o n'aquella
noite, vinha palpal-o, tomar-lhe o peso, tendo como unicas
testemunhas de prazer tamanho o céo de temporal e os pinheiros a
gemerem.
*
* *

Subitamente estacou. Na clareira, ao meio do pinhal, era a


choupana do guarda. Ouvira um chôro de criança e uma voz triste
de mulher a cantar.{66}

O avarento approximou-se pé ante pé.

—É fome que o pequeno tem, dizia a mulher com a voz cheia de


lagrimas, interrompendo o canto. Se eu não comi!... Seccou-se-me o
leite.

E chorava.

Aquella mulher pedira-lhe esmola na vespera. Pedira-lhe esmola!...


Tinha fome, dizia. E elle?... Tinha frio. E elle? O filho definhava-se,
desde que o marido d'ella adoecêra. Pedira-lhe esmola, como se lhe
fôra possivel, a elle, dar um pedaço da sua alma. Era idiota a
mulher!

Mas ao som d'aquella voz estremeceu, porque ella, doida,


offendida pela recusa, desgrenhada, d'olhos injectados, chamára-lhe
ladrão, assassino, pondo-lhe os punhos cerrados ao pé da cara.

—Hão de tudo roubar-te um dia, e tu, cão, has de chorar, em cima


da cova onde escondeste o dinheiro, esfregando a cara na lama,...
ladrão!

E só a idéa de poder um dia ser assassinado,{67} roubado, que


vinha a dar na mesma, fez-lhe passar pela espinha um calafrio, que
lhe erriçou todos os pelinhos do corpo.

Afastou-se da chóça, para longe afugentar aquella idéa soturna;


mas poucos passos andára, quando lhe pareceu ouvir o rachador,
com uma voz fraca de tisico, entrecortada pela tosse, pronunciar-lhe
o nome.
Novamente estacou e ficou-se boquiaberto, respirando a custo, de
ouvido á escuta, sentindo bater accelerado o coração.

Calára-se tudo na chóça e apenas por vezes o vento arrastava


pelo pinhal fóra uns tristes gemidos de criança, já falta de forças e
farta de soffrer.

Tentariam aquelles roubal-o?

E estremecendo, cheio de susto, deitou a correr pelo pinhal fóra,


deixando o vento levar-lhe o chapéo esboracado e remoinhar-lhe nas
longas farripas grisalhas, largando aos bocados nos tojos e nas
silvas os tristes farrapos que o cobriam, escorregando na caruma,
agarrando-se aos pinheiros, que sacudidos{68} o encharcavam, a
correr, a correr por ali fóra, até ao alto da serra, onde se deixou
cahir extenuado ao pé d'um enorme pinheiro manso, sêcco, que
sobre um rochedo escalvado atirava para o ar os longos braços de
espectro.

Era ali o seu thesoiro.

*
* *

Longo tempo ficou estirado, de bruços, sobre os fetos humidos,


arquejando longamente. Depois, creando animo, mostrando força
inacreditavel em corpo tão franzino, com os braços osseos erguendo
alto a enxada e deixando-a depois cair com um esforço, que lhe
arrancava do peito cavado um gemido a cada enxadada, começou a
cavar, a cavar, até que finalmente o ferro bateu de encontro ao ferro.

Então afastou a terra, ajoelhou, debruçou-se com avidez sobre a


cova, metteu-lhe dentro as mãos, e, arquejante, fazendo um{69}
esforço supremo, com um ah! de victoria, puchou a si o cofre, que,
rolando no chão, produziu um som criador do extasis.
Riu-se alto, enlevado. Depois ergueu-se e com a manga da
jaqueta limpou o suor que lhe escorria pela testa.

Ali estava o seu thesoiro!... Seu!

E olhava para o cofre, com ternura, sorrindo-se com uma


lagrimasinha no olho, abaixando-se para sopesal-o.

Queriam roubal-o talvez! Abraçava-se ao dinheiro, com o olhar


luzente d'uma fera, sentindo nas entranhas uma coragem enorme
para defendel-o, como nunca loba defendeu um filho.

Podia alguem ter desconfiado do logar onde o escondêra... Era


muito noite ainda teria tempo de sobra para leval-o d'ali. Felizmente
não lhe escasseavam forças. Querido thesoiro da sua alma, junto
moeda a moeda!

E, outra vez deitado sobre o cofre, abraçava-o, beijava-o, como se


outra alma lá{70} dentro houvesse de perceber a d'elle; pedia-lhe,
cheio de ternura que não se deixasse roubar, que era vida, sangue
de seu coração!

Os pinheiros humidos tornavam balsamica a atmosphera. Os raios


obliquos da lua quebravam as sombras das arvores nos troncos das
outras e as sombras das copas bailavam, fantasticas, sobre os fetos
molhados.

E elle ali, tão sósinho com seu thesoiro! Havia tanto que lhe não
punha os olhos!

Sentando-se n'uma pedra, approximando o cofre, com um esforço


enorme, fez girar a tampa nos gonzos ferrugentos e queixosos.

O luar, entre dois farrapos de nuvens, encheu o cofre de faiscas


d'oiro. E o avarento, em extasis, fechou os olhos, como encandeado
por tanta luz!{71}
*
* *

O vento cessára de repente e no instante em que o temporal


tomou fôlego, um grito de dôr, estridulo, repetido ao longe, ainda
mais dolorosamente, pelo ecco da montanha empinada, partiu da
choça do rachador.

Eram elles com certeza!... Eram os ladrões!

Ergueu-se abraçado ao thesoiro, tranzido de medo, suando frio. E


depois, espavorido, deitou a fugir, esbarrando nos pinheiros,
deixando a carne nos esgalhos, cahindo, agarrado ao cofre, sobre os
seixos agudos, e levantando-se logo para correr outra vez, correr
sempre, para fugir do grito, que, ameaçador, o perseguia.

E toda a noite durante, andou fugido, em correrias pelo pinhal, já


nem sabia por onde. E o sangue e o suor corriam-lhe pela cara.

Quando o luar começava esmorecendo,{72} ajoelhou, meio


desfallecido, e com as unhas agudas, recurvas, abriu uma cova
funda, onde, com esgares de doido enterrou o dinheiro, longe, muito
longe, d'onde estava d'antes. Tapou tudo e, por instincto de
precaução, puxou-lhe os fetos para cima. E abalou outra vez.

Era manhã quando chegou a casa extenuado, esfarrapado todo,


com os cabellos agarrados ás faces gotejando sangue, ardendo em
febre. Deixou-se cahir no catre nojento.

O dia rompia sereno. O vento abrandára e só por detraz da serra é


que as nuvens azuladas sombreavam intensamente o fundo da
paizagem, em que destacavam alvejantes as casarias. O sol erguia-
se esplendido, enchendo os campos de joias scintillando no escrinio
de verdura. A aldeia acordára n'um banho de luz, cheia de bulicios,
de cantos de gallos e risos de crianças. Pelas chaminés subia uma
columnasinha de fumo azulado, transparente, que a enchia do
cheiro{73} bom, alegre, do pinho queimado nas lareiras, aquecendo
os almoços.

*
* *

Quando o homem voltou a si, depois de muitas horas de cruel


delirio, apenas intervallado por curtos somnos cheios de pesadelos,
um pesadelo ainda lhe pareceu a lembrança confusa de toda aquella
noite agitada.

Viu-se percorrendo o pinhal immenso, que gemia e dançava


lugubremente, estorcendo-se no temporal como um condemnado na
fogueira. Lembrou-se do grito que o perseguira. E logo se viu sujo
de sangue, com as unhas despegadas do sabugo, o corpo cheio de
nodoas negras, os joelhos escalavrados.

Mas onde enterrára o seu oiro?

Passava a mão pela testa, apertando as fontes, tentando recordar


o sitio, a forma d'algum pinheiro, o caminho que seguira. Sentou-se
no catre, rasgando com as unhas{74} lascadas a carne magra do
peito, tremulo, suando frio.

Levantou-se e atravessou a aldeia aos bordos, com a vista


desvairada, a bocca torta, ameaçando com a mão de esqueleto as
mulheres sentadas ás portas das casas, vigiando os pequenos, que
brincavam no riacho, tostando ao sol os ventresinhos redondos e as
cabecinhas loiras.

E o pinhal até onde a vista se alongava sombreava os montes por


ali fóra! Ali estava o seu thesoiro, ali debaixo d'uns fetos, cujas
hastes se abriam á sombra d'uns pinheiros, fetos e pinheiros todos
eguaes n'aquella immensidade!

Outra vez, arquejante, mal sustendo-se nas pernas, trepou e


desceu encostas, procurando pegadas, querendo lembrar-se,
serenar, passando a mão pela testa com gestos de desespero, como
tentando arrancar do cerebro a loucura, que, pouco a pouco, o
invadia!{75}

*
* *

Quasi noite foi dar á choça do rachador.

Lembrou-se então que d'ali partira o grito que o amedrontára e,


escumando de raiva, atirou-se contra a porta, berrando:

—Ladrões! Ladrões!

No meio do quarto estava a criança deitada sobre uma caminha


de fetos, pallida, mirrada, as mãosinhas de cera atadas sobre o peito
com uma fita velha de seda roxa.

E o pae e a mãe, ao lado do cadaver do filho, choravam


mansamente.

O avarento parou no limiar da porta, alumiado pelo ultimo


vislumbre da razão.

Recuou instinctivamente e foi cahir sobre um grande molho


d'achas, dizendo palavras desencadeadas, com os olhos esgaseados,
doido de todo e para sempre.

E por deante d'elle passavam bandos alegres de pintasilgos


fugindo para os ninhos, levando nos bicos os farrapos da jaqueta,
que elle deixára nas silvas do pinhal, em{76} quanto os gaios
contentes, aquecendo-se ao ultimo raio de sol d'aquella tarde de
primavera, soltavam, pulando de ramo em ramo, grandes
gargalhadas ironicas.{77}
AD ASTRA

Quando o tio Bernardo, deitando o barrete de pelles para o lado,


começava a apontar para o tecto as nuvens de fumo do negro
cachimbo de gesso, escusado era falar-lhe; só rosnava em resposta
um dito de mau humor ou, quando muito, um disparate. Estava
pensando no Brazil, no seu Brazil, como lhe elle chamava.

E era tratar de não fazer bulha, emquanto{78} elle, sorrindo para


os florões do tecto, recordava scenas da mocidade, temporaes
vencidos pelo arrojo, amores de mulatas, muito ouro ganho n'um só
bafejo da sorte.

—O tio Bernardo está no Brazil, diziamos nós baixinho.

E, quando o cachimbo se lhe apagava, olhava para nós a rir,


sacudindo a cinza na unha rugada e negra:

—Cá me embarquei eu outra vez! Demonio de tabaco! Este diabo


vem de lá... Não sou capaz de fumal-o sem que logo me ponha a
sonhar... Estava pensando agora...

E começava uma historia por nós ouvida mil vezes. Eu e minha


irmã sahiamos nos bicos dos pés, e elle concluia-a, dirigindo-se a
minha mãe, que sentada na poltrona de tabúa, já sem feitio, pouco
a pouco adormecia serenamente.

É com lagrimas nos olhos que, depois de tantos annos, me


recordo d'esses tempos.{79}

A nossa casa era a mais risonha de toda a villa.

Ainda me alegra relembral-a, no alto dos rochedos, sobranceira ao


mar. Muito pequena, mas sempre muito caiada, davam-lhe certo ar
as gelosias verdes das janellas. Tinha em volta uma cercadura de
ninhos, e todas as manhãs, no verão, acordava ouvindo cantar as
andorinhas.

No inverno era mais triste. Quando havia temporal, as ondas


salpicavam os vidros e minha irmã pequenina, assustada como um
pardal, escondia a cabecinha loira debaixo do chaile de minha mãe,
que, sentada á lareira, lembrando-se do marido e do filho mais
velho, que andavam sobre as aguas do mar, resava o credo em cruz.

Não eramos dos mais infelizes; nunca soube o que era miseria.
Depois que o tio Bernardo chegou, houve até sempre, lá em casa,
um certo luxo, uma certa despreoccupação pelo dia seguinte.

É que o tio, além de vir dono d'um cahique,{80} trazia comsigo


uma caixinha de ferro cheia até cima de muito boas libras.

Meu pae, que viera com elle como piloto, pouco tempo se
demorou comnosco.

O tio Bernardo disse-lhe, uma noite, depois da ceia:

—Olha, irmão; o que ali está... (e apontava para a tal caixinha) o


que ali está chega-me para aqui poder acabar socegadamente os
meus dias. Sabes que mais? Dou-te de presente o cahique. Não
tenhas cuidado na mulher e nos filhos. O teu mais velho tem quinze
annos; que vá comtigo. Vai, e sê tão feliz, como eu fui.
Era sina de todos—o mar. Os mais desgraçados eram pescadores;
os outros quasi todos partiam para o Brazil; alguns voltavam pilotos,
alguns commandando por sua conta; eram os mais felizes. Alguns
tambem... nunca voltavam.

E era a lembrança d'estes que tornava tão triste a lareira nas


longas noites de inverno, quando uivava o temporal.{81}

*
* *

Um dia parti para a escola um bocado mais cedo que o costume,


porque no quintal do padre prior, tinha visto uma figueira deitar por
cima do muro, para o lado do caminho, um dos ramos todo cheio de
figos brancos, tentadores.

O mestre, ou porque desejasse lisongear o tio Bernardo ou porque


na verdade eu me atirasse ao estudo um pouco mais que os outros,
quando ao domingo, depois da missa, nos encontrava a passear na
Praça, nunca deixava de me dizer, tocando-me com dois dedos na
cara:

—Ah! que se o tio quizesse... havias de ir longe.

Eu não sabia bem o que elle queria dizer com aquelle ir longe.
Lembrava-me logo do Brazil. Mas porque motivo eu e não os outros?

N'aquelle dia, quando já de vara na mão{82} me dispunha a roubar


quatro figos ao prior, ouvi de repente a voz de meu tio. Senti um
calafrio pela espinha.

—Olá, rapaz! que andas por ahi a mariolar, em vez de ires direito
para a escola?

Voltei-me todo assustado e vi-o á janella do prior, que, felizmente


para mim, desatou ás gargalhadas.
—Espera ahi que te quero falar.

Esperei, mas quando chegou ao pé de mim, apesar de elle nunca


me ter batido, com as duas mãos tapei as orelhas e a nuca.

O tio Bernardo poz-se a rir.

—Não tens vergonha...!

Começou andando ao meu lado muito depressa. Ás vezes parava


limpando o suor.

—Sabes o que vou fazer? perguntou-me. Vou ver se o teu mestre


diz verdade. Quero um dia assistir á escola.

Tremeram-me as pernas. Se ainda depois de me ter apanhado a


roubar os figos, me fosse ver a atrapalhar-me á pedra! Fiz a
promessa d'uma véla de cera á Senhora dos{83} Milagres e, com
mais alguma confiança, entrei na escola e fui pedir a bençam do
mestre.

Chegámos um nadinha tarde. Estava o Patricio á pedra.

O tio Bernardo fez um signal para que ninguem se incommodasse


e sentou-se ao pé do professor. Eu caminhei gravemente para o meu
logar.

O Patricio, coitado, que estenderete!

Parece-me ainda estar a vel-o com as calças de quadradinhos,


remendadas, muito curtas, a barriguinha muito redonda, o que lhe
dava um aspectosinho grave, a camisa de panno cru aberta sobre o
peito, e dois bocados de ourelo a servirem de suspensorios. Com as
mãos nas algibeiras, os olhos muito injectados, e as azas do nariz a
tremerem, ouvia contendo o mau genio, a rabecada do mestre.
Não foi nunca dos mais felizes, coitado! Por ali ficou sempre. Tem
quatro ou cinco medalhas ao peito e todos os dias a fome em casa.
{84}

—O senhor... disse o mestre apontando para mim.

Ergui-me e, pegando no giz, acabei com desembaraço a conta,


que tanto atrapalhava o Patricio.

—Muito bem. Tire a prova dos nove. É o que eu digo, murmurou,


quando acabei. Has de ir muito longe.

O tio Bernardo pediu ao mestre que me fizesse mais algumas


perguntas. A todas respondi com muito animo e desembaraço.

—D. Affonso Henriques, o Conquistador, D. Sancho I, o Povoador,


D. Affonso II, o Gordo...

A historia toda.

—Muito bem. Pode sentar-se.

O tio levantou-se, dizendo-me:

—Estou contente comtigo, rapaz.

E sahiu.

Ao jantar reparei que o tio Bernardo e minha mãe deviam de ter


falado a meu respeito. Apenas eu abria a bocca, olhavam um para o
outro e tossiam com certo ar{85} misterioso. Minha mãe teve
alternativas de alegria e de tristeza.

Quando a via rir, pensava:

—O tio falou-lhe na lição.


E, quando a ouvia suspirar, lembrava-me dos figos. Se ella
soubesse...!

Quando o jantar acabou, o tio Bernardo chamou-me e disse-me:

—Ouve cá. Tu tens uma cara seria e o teu mestre, que deve ser
n'isso entendido, diz que aqui dentro tens mais alguma coisa do que
os outros.

E batia-me com os nós dos dedos na cabeça.

Eu estava radiante de alegria.

—Além d'isso tens os pulsos muito fraquitos, e isso é o diabo para


um homem do mar.

A conversação tomava de repente para mim um caminho


inesperado. Se os pulsos eram fracos, e isso era o diabo para um
homem do mar, que me importava o que o mestre dizia que eu tinha
dentro da cabeça?{86}

Olhei para minha mãe. Minha mãe sorria.

—Ainda agora, continuou meu tio, estive a conversar com o padre


prior a teu respeito. Aquillo é que é vida, meu filho: padre!

—Não quero! respondi, dando um murro em cima da mesa. Não


quero ser padre.

—Ninguem te obriga, rapaz. Ha outras vidas tão boas ou melhores


até. Medico, por exemplo.

—Não quero!

E, desviando os olhos para o lado da janella, vi lá onde o céo vai


dar um beijo no mar, uma velasinha alvejando, que me pareceu do
meu partido e a gritar-me lá de longe:
—Fazes muito bem. Não queiras ser medico, não queiras ser
padre. Olha para mim. Cá dentro vai a ventura!

—Pois não queiras! gritou meu tio.

E começou a passear pelo quarto, puxando grandes fumaças.

Eu, espantado do meu atrevimento, tinha{87} baixado tristemente


os olhos e, muito amuado, coçava a cabeça.

—Lá no collegio, tens tempo de sobra, para te resolveres, disse


meu tio porfim, parando deante de mim. Ámanhã vais comigo para
Lisboa.

Lisboa!

Soou-me o nome aos ouvidos como palavra magica.

Lisboa! Ia partir para Lisboa, que nunca tinha visto, mas cujo só
nome me despertava na imaginativa sonhos encantadores, prodigios
de riqueza, mansões de fadas!

Ergui a cabeça, tão cheio de alegria, que até me puz a rir de rijo!

Olhei para minha mãe. Coitadinha, chorava.

—Vamos, disse o tio, batendo-me com a mão no hombro. Vai


vestir o teu fatinho preto, que tens que despedir-te desta gente!

Lisboa! Lisboa!

Eu bem via as lagrimas da minha mãe,{88} mas este grito da


minh'alma calava-me o coração.

Fui despedir-me do mestre-escola que, adeante de todos, me deu


um valente abraço, dizendo-me:

—Continua assim, meu rapaz. Sic itur ad astra!


Eu, muito envergonhado, para fazer alguma coisa, bafejava a palla
do bonnet e limpava-a depois á manga da jaleca.

Ficou-me o latinorio no ouvido. Annos depois encontrei-o... Boa


vontade não te faltava, querido mestre!

Á noite, depois da ceia, o tio Bernardo julgou dever discursar.

—Quando ás vezes me esqueço para ahi horas inteiras a fumar


cachimbo, vocês põem-se a rir e dizem: «Lá está o tio Bernardo no
Brazil!...» Pois bom é que saibas, antes que o aprendas á tua custa:
nem tudo são rosas na vida. E no mar os espinhos são muitos. A
gente volta, chega a casa, esquece tudo. Quantas vezes o diabo
não{89} levou a cardada! O que passou, passou; olha a gente para
traz e só vê aquillo de que tem saudades: por isso nunca falo de
fomes, de privações, de perigos... Não te dê desgosto não ser
homem do mar. Andar sobre as ondas é tentar a Deus.

Não sei que mais me disse ainda o tio Bernardo para me provar
que, desde que eu voltava costas ao Oceano e marchava para
Lisboa, era o ente mais feliz do mundo. Bem lhe dispensava o
sermão. Já me via homem, voltando para a terra, de relogio e
breloques, apertando na praia, depois do banho, as mãosinhas das
senhoras, fumando o meu charuto, tratando o administrador por tu e
o prior por você.

—Agora, rapaz, vai deitar-te e pede a bençam á tua mãe.

Então, não sei porquê, senti de repente um nó na garganta e eu,


que tão pouco me lembrára d'ella, foi a soluçar que lhe cahi nos
braços. Ella apertou-me contra o peito, muito, muito, até me fazer
doer, e dando-me{90} um beijo muito longo, disse-me um adeus tão
sumido, tão sumido que quasi o não ouvi.

No dia seguinte, ao romper da manhã, eu e o tio Bernardo, ambos


na almofada da diligencia, partiamos caminho de Lisboa.
*
* *

Quando, depois de bacharel e de muito tempo gasto a escrever


cartas e procurar empenhos, consegui finalmente ser admittido
como amanuense nos proprios nacionaes, telegraphei a minha mãe,
ou que na resposta me participou a chegada de meu pae.

Não se calcula a alegria com que parti.

Havia trez annos que não via o querido velho, que só de longe em
longe vinha a Portugal matar saudades.

Estavamos então no principio do inverno e um denso nevoeiro


espalhava-se sobre o mar. Ainda longe da villa, já ouvia o sino{91} da
Senhora dos Milagres tocando afflictivamente para indicar o porto
aos que andavam fóra.

—O José Sacrista, coitado, disse-me o cocheiro, tem o filho lá no


mar e desde hontem de manhã que está agarrado á corda do sino.

Foi talvez o nevoeiro, ou foi aquelle sino tão afflicto, ou talvez dó


do sacrista, que fez com que me apeasse da diligencia, levando
oppresso o coração.

No caminho de casa encontrei o mestre-escola que me veio


abraçar todo tremulo, cheio de brancas, abordoado a uma bengala.

—Parabens, muitos parabens. Eu bem te dizia.

Não pude deixar de sorrir-me.

—Que pena, continuou, vires em occasião tão triste!

—O que?

—Não sabes?... Valha me Deus! O tio Bernardo...


—Morreu? perguntei ancioso.{92}

—Não, felizmente ainda não. Venho de lá agora. Mas está tão


mal...

Não ouvi mais e desatei a correr. Estavam todos reunidos no


quarto do tio. Quando entrei, abriu os olhos e disse:

—És tu! ainda bem que vieste. Deu-me o caruncho. Tinha pena de
morrer sem tornar a vêr-te. Já sei que estás amanuense. Sou um
homem rude, não sei o que isso é; mas deve ser... muito! Foste
longe.

Esteve um momento calado, respirando a custo, e depois


continuou:

—O teu irmão foi menos feliz. Nasceu forte, foi para o mar. O teu
pae já está farto de andar por esses oceanos e deu-lhe o cahique.

Olhei para meu irmão. Estava herculeo. Uma barba negra, muito
espessa, descia-lhe até meio do peito. Um pesado grilhão de oiro
cahia-lhe do pescoço até ao ventre redondo. Meu tio fitou por um
instante em mim os olhos já embaciados, e sorrindo:

—Olhem que mãosinhas! Não vivias no{93} mar dois dias. Tive
rasão. Emfim, graças a Deus, fiz todos felizes.

Fechou os olhos e esteve assim por muito tempo, arquejando.


Quando tornou a abril-os, procurou-me com a vista:

—Tenho pensado muito em ti... Como é o latinorio do mestre?

Não sabia o que elle queria dizer... Depois lembrou-me de repente.

—Sic itur ad astra.

—Ad astra, ad astra! repetiu machinalmente.


E, com os olhos vidrados fitando os florões do tecto, ficou-se a
sorrir, como se Deus o houvera levado para um Brazil ideal.{94}

{95}

O VENTURA

Quando começou de namoro com a Maria Eduarda, ainda não


havia carreiras de vapor. Faziam apenas concorrencia aos catraeiros
de Belem os omnibus immensos da Companhia, que de meia em
meia hora passavam, chocalhando por aquella estrada fóra até ao
Pelourinho, uns vinte passageiros, a seis vinténs por cabeça.

A vida de barqueiro não era então das{96} peores; e o José da


Anastacia com o seu bom genio constante e o sorriso obsequiador,
em que mostrava os dentes amarellados pelo tabaco, quasi da côr
do rosto requeimado pelas soalheiras do Tejo, conquistára as
sympathias de muitos, que preferiam o bote d'elle e a viva conversa
do algarvio, á velocidade pacata dos churriões da Companhia.

Era vel-o quando, por exemplo, tinha de transportar até ao


Terreiro do Paço a familia do Conselheiro, azafamado, logo desde
manhã, lavando o bote, arranjando o toldo, remendando a

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