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Cavaillès, Husserl e a “matemática dos matemáticos”

In Jean Cavaillès, Sobre a Lógica e a Teoria da Ciência, tradução portuguesa N. M.


Proença, CFCUL, 2008, pp. 95-129.

Vasco CORREIA
Departamento de filosofia
Universidade Nova de Lisboa
vasco_saragoca@hotmail.com

1. HUSSERL E CAVAILLÈS: DA FILOLOFIA À FILOSOFIA DA MATEMÁTICA

No seguimento de um encontro algo infrutuoso com Husserl, no qual este se lamentara da


deserção dos seus discípulos, Cavaillès observa na sua correspondência como «é curioso essa
impossibilidade de compreensão em filosofia, sobretudo para quem como [Husserl] pretendia
remediar esta situação ao fundá-la como ciência»1. Dessa mesma incompreensão sempre sofreu
porém igualmente a reflexão de Cavaillès, à partida etiquetada como «filosofia da matemática» e
supostamente reservada a entendidos na matéria. É talvez por isso que o seu nome se encontra
porventura mais associado ao líder de uma rede de acção directa da Resistência durante a
ocupação alemã que ao filósofo empenhado em constituir uma ambiciosa «filosofia do
conceito». É certo que morte prematura rima com obra inacabada, que a extrema densidade dos
seus textos não é permeável a uma leitura inadvertida e que, como diz Bachelard, «seria
necessário um comentário detalhado para extrair linha por linha toda a riqueza dos seus livros»2.
Mas os frutos dessa reflexão estão à altura das suas exigências, porquanto convidam a encarar - «
para lá do matemático propriamente dito, no solo comum a todas as actividades racionais»3 -
uma teoria radicalmente inovadora da relação sujeito-objecto, bem como das instâncias que
desde Kant são supostas mediar essa relação no processo cognitivo, a intuição e os conceitos. O
nosso propósito limita-se contudo aqui a restituir o valor e a originalidade do pensamento de
Cavaillès somente na medida em que este se constituiu, em parte, como um olhar crítico sobre a
fenomenologia de Husserl.
Em novembro de 1942, enquanto redigia entre as paredes da prisão militar de Montpelier
o seu derradeiro livro, Cavaillès escreve ao seu colega e amigo A. Lautmann, pedindo-lhe que
lhe envie um exemplar de Lógica formal e transcendental e aproveitando para confessar que «é
em função de Husserl, mas um pouco contra ele que me tento definir»4. Embora as Investigações
Lógicas figurem já na bibliografia dos seus dois primeiros livros, é somente neste último escrito
– que acompanhou o filósofo na sua fuga e que G. Canguilhem e C. Ehresmann postumamente
intitularam Sobre a lógica e a teoria da ciência - que Cavaillès resolve explicitamente o
problema da sua dívida e o problema do seu divórcio relativamente a Husserl. Tratar-se-á
portanto aqui de tentar compreender a declaração que encerra este manuscrito: «Não é uma
filosofia da consciência, mas uma filosofia do conceito que pode estabelecer uma doutrina da
ciência»5.
Essa tão prometedora quanto enigmática filosofia do conceito, que filósofos como
Canguilhem, Bachelard, Foucault, Granger ou Desanti souberam diversamente interpretar,
1
Carta do 4 de Agosto de 1931, in : G. Ferrières, Jean Cavaillès, un philosophe dans la guerre, Paris, Seuil, 1982, p.
83.
2
Bachelard, « L’oeuvre de Jean Cavaillès », in : G. Ferrières, op. cit., p. 216.
3
Méthode axiomatique et formalisme, p. 21.
4
Carta do 4 de Novembro de 1942, in : G. Ferrières, op. cit., p. 164.
5
Sur la logique et la théorie de la science, Paris, PUF, 1960, p. 78.
partilhou com a fenomenologia o mesmo berço, a matemática. Mas como, ao contrário de
Husserl, Cavaillès foi primeiro filósofo e só depois matemático, importa tentar esclarecer antes
de mais a que se deve esse interesse por tão específico domínio. Porque não se interessou ele
antes pela física, por exemplo, que atravessava na mesma altura um momento de plena
efervescência? A hipótese de um acaso é dificilmente sustentável no caso dum filósofo cuja
vocação era recusá-lo. «Sou espinozista, creio que tudo é manifestação do necessário.
Necessários os encadeamentos matemáticos, necessárias as próprias etapas da ciência
matemática, necessária também esta luta que levamos a cabo»6, confessara Cavaillès a R. Aron
aquando de uma missão de resistência em Londres. E não menos necessária a escolha que o
levara a reflectir sobre a matemática: contrariamente ao que se passa nas outras ciências, na
matemática o pensamento confronta-se apenas consigo mesmo, desenvolvendo-se «segundo a
sua essência»7, sem que quaisquer condicionamentos extrínsecos afectem directamente a sua
actividade. Se Husserl insiste desde a sua Tese de habilitação sobre o facto histórico que «as
concepções relativas ao carácter teórico das matemáticas tiveram uma influência essencial e
frequentemente determinante sobre a formação de importantes visões filosóficas sobre o mundo
»8, Cavaillès vai portanto mais longe, sugerindo que isso se deve a uma conexão interna entre a
filosofia e a matemática. Para o filósofo interessado em constituir uma «teoria da razão», a
matemática constitui um observatório privilegiado, o lugar em que por excelência se realiza o
livre exercício do pensamento. Tal é pelo menos a convicção de Cavaillès, que visa portanto uma
teoria geral do conhecimento a partir desse laboratório de conceitos: «Não procuro definir as
matemáticas, mas, por intermédio das matemáticas, saber o que quer dizer conhecer, pensar; é no
fundo, muito modestamente retomado, o problema que se punha Kant. O conhecimento
matemático é central para saber o que é o conhecimento»9.
Tentando permanecer fieis a essa orientação do seu pensamento, e de modo a pôr em
evidência o tipo de problemas epistemológicos relativamente aos quais ele se cruza com o de
Husserl, começaremos por restituir brevemente o contexto algo atormentado da filosofia da
matemática durante o primeiro terço do século XX.

2. A CRISE DOS FUNDAMENTOS DA MATEMÁTICA

As reflexões de Husserl e de Cavaillès confrontaram-se ambas com a mesma


perplexidade aos problemas técnicos e propriamente filosóficos que estiveram na origem da dita
«crise dos fundamentos da matemática» do princípio do século XX. Não parece de facto
duvidoso que nos dois casos esta situação tenha alimentado a temática recorrente duma
renovação necessária da legitimação da ciência10. Porém, nem um nem outro participaram
directamente no polémico debate que opôs as três grandes vias de solução ao problema dos
fundamentos que desde logo se delinearam - o «logicismo» inaugurado por Frege, o programa
«formalista» liderado por Hilbert, e o «intuicionismo» sistematizado por Brouwer. Poincaré
resume sugestivamente nos seguintes termos as proporções que cedo tomaria a divergência entre
essas escolas: «os matemáticos não se entendem porque não falam a mesma língua, e há línguas

6
Citado por Canguilhem, « In memoriam », in : Jean Cavaillès Oeuvres complètes de philosophie des sciences,
Paris, Hermann, 1994, p. 674.
7
Carta do 6 de janeiro de 1928, in : G. Ferrières, op. cit., P. 45.
8
Husserl, « Über den begriff der Zahl », Heynemann’sche buchdruckerei (F. Beyer), 1887, Introdução, p. 1.
9
La pensée mathématique (em colaboração com A. Lautmann), in : Oeuvres complètes, op. cit., p. 625.
10
As duas primeiras obras de Cavaillès abordam especificamente este problema, uma directamente, e a outra sob o
ângulo da teoria dos Conjuntos de G. Cantor. Quanto ao papel da reflexão de Husserl sobre a matemática na
emergência da sua elucidação da lógica e na própria génese da fenomenologia, veja-se F. Dastur, Husserl. Des
mathématiques à l’histoire, Paris, PUF, 1995.
que não se aprendem»11. Essas «línguas que não se aprendem» são naturalmente as
pressuposições de ordem filosófica que acompanham e parecem orientar mais ou menos
explicitamente as soluções de ordem técnica. Ora, nestas condições, não parece que a pura e
simples exclusão das questões «extra-científicas» que propunha o positivismo lógico seja a
terapia mais pertinente. E mesmo a ambição outrora proclamada por Husserl e Hilbert, de fazer
da matemática «um domínio de investigações filosoficamente neutras»12 ou ainda «uma ciência
sem pressupostos»13, se revela infrutuosa quando não precedida por um diagnóstico rigoroso das
insuficiências desses mesmos pressupostos.
Tal é a tarefa preliminar que Cavaillès se propõe realizar nos seus dois primeiros
trabalhos, ambos publicados em 1938. O primeiro - Método axiomático e formalismo -, constitui
como o seu subtítulo anuncia um «Ensaio sobre o problema dos fundamentos das matemáticas».
O segundo livro - Notas sobre a formação da teoria abstracta dos conjuntos -, visa mais
precisamente elucidar a génese da Teoria dos conjuntos de G. Cantor, porquanto esta se erigira
no final do século XIX como um tronco comum aos diversos ramos da matemática; assim como,
por outro lado, os famosos paradoxos que nela surgiram e que ameaçavam por isso mesmo
contaminar pela raiz o resto do organismo. Não se tratava portanto para o filósofo-matemático de
resolver o problema dos fundamentos, mas «somente clarificá-lo, até que um novo resultado
apareça»14. Após um longo exame de cada uma das alternativas evocadas, a Conclusão do
primeiro destes livros revela de forma geral que nem o logicismo, nem o formalismo, nem o
intuicionismo se encontravam aptos a satisfazer a comum ambição de restabelecer as
matemáticas sobre sólidos fundamentos.
No que respeita o projecto logicista, que visava fundar a matemática sobre a lógica, as
insuficiências de carácter filosófico prendem-se com o «realismo escondido»15 que o orienta sob
diversas formas e que nada permite justificar: realismo extremo no caso de Frege, para quem a
referência das proposições são os próprios valores de verdade; realismo naïf do empirismo
lógico, que tende a confundir o objecto físico com o objecto da sensação; ou ainda realismo
analítico, que Russell contrapõe a este último mediante o atomismo lógico16. Por outro lado,
Cavaillès mostra a incoerência do projecto logicista do ponto de vista técnico, retomando um
argumento que Poincaré tinha já posto em evidência na célebre disputa que o opôs a Russell
entre 1905 e 1906 na Revue de métaphysique et de morale. Na sua forma canónica, esse
argumento lembra curiosamente aqueles que o próprio Russell opusera à Teoria dos conjuntos: a
redução da matemática a um sistema puramente lógico só seria possível mediante o recurso a
noções irredutivelmente matemáticas, como a de recorrência infinita17.
O formalismo de Hilbert não se confrontava por seu lado a tal dificuldade, dado que
defendia pelo contrário uma total autonomia da matemática relativamente à lógica. O seu
programa propunha com efeito uma fundação da matemática sobre si própria, e
consequentemente a criação duma metamatemática capaz de elucidar as propriedades da
11
Poincaré, « La logique de l’infini », Revue de métaphysique et de morale, 17, 1909, p. 465 ; reed. in : Poincaré,
Russell, Zermelo et Peano. Textes sur les fondements des mathématiques (1906-1912), Textos reunidos por G.
Heinzmann, Paris, Librairie scientifique et technique, 1986, p. 315.
12
Husserl, Investigações lógicas, 2ª ed., T. II, 1, Introdução, p. [3].
13
Hilbert, « Die Grundlagen der Mathematik », 1927, tr. fr. in : J. Largeault, Intuitionisme et théorie de la
démonstration, Paris, Vrin, 1992, p. 163.
14
Méthode axiomatique et formalisme, Paris, Hermann, « Actualités scientifiques et industrielles », nº 608, 609 e
610, 1938 ; reed. in : Oeuvres complètes, op. cit., p. 164.
15
Id., p. 177
16
Cf. Russell, « Le réalisme analytique », inicialmente publicado no Bulletin de la Société française de philosophie,
1911 ; reed. in The collected papers of Bertrand Russell, vol. 6, p. 409-432.
17
Com efeito, a tradução da matemática em termos estritamente lógicos implica previamente uma formalização
completa da aritmética, o que não é possivel sem a noção de recorrência (ou indução) infinita. No entanto, apesar de
Cavaillès persistir em pensar que esta noção « não pode razoavelmente ser considerada como lógica », o seu carácter
irredutivelmente matemático é discutível, tudo dependendo naturalmente da concepção mais ou menos estreita que
se tiver da lógica. Cf. La pensée mathématique, op. cit., p. 598.
matemática propriamente dita. Fundamentalmente, caberia a essa nova disciplina demonstrar a
não contradição dos axiomas fundamentais da aritmética18. Como ele declara na sua
comunicação de 1922, «Se conseguirmos demonstrar a sua consistência, teremos estabelecido
que as proposições matemáticas são efectivamente verdades inatacáveis e definitivas»19. Porém,
apesar de inúmeras tentativas, Hilbert não conseguiu nunca estabelecer a prova tão esperada.
Bem mais, em 1931 o jovem matemático austríaco K. Gödel publica num só artigo dois
resultados suficientes por si mesmos para arruinar a totalidade desse programa. Trata-se dos
surpreendentes «teoremas de incompletude», que demonstram respectivamente: 1) a
impossibilidade de demonstrar a consistência de um sistema formal (suficientemente rico para
conter a aritmética) no interior desse mesmo sistema; 2) a incompletude essencial da aritmética,
ou seja, a possibilidade de construir proposições indecidíveis (nem demonstráveis nem
refutáveis) mas verdadeiras no seio de qualquer sistema matemático minimamente complexo.
Todos os esforços de Hilbert no sentido de encontrar uma prova da consistência da aritmética
tinham sido vãos, doravante sabia-se que o eram necessariamente. Ver-se-á mais adiante que
também a «teoria dos sistemas dedutivos» de Husserl, em parte inspirada da axiomática de
Hilbert, acabaria por acatar as mesmas consequências.
Por fim, o intuicionismo de Brouwer não se revela mais eficaz, isto apesar de a sua
solução ao problema dos fundamentos ser sem dúvida a mais radical, ou talvez por isso mesmo.
Na realidade, o matemático holandês não pretendia de forma alguma salvar a matemática
instituída da proliferação dos paradoxos que faziam tremer as suas bases, mas pura e
simplesmente construir um novo edifício matemático sobre novos fundamentos. A sua solução é
por assim dizer de tipo cirúrgico: face ao estado crítico do organismo, é necessário amputar o
membro gangrenado, ou seja, desembaraçar-se de uma vez por todas da teoria dos conjuntos e
substituí-la pela matemática intuicionista. Simplesmente, o carácter intuitivo que esta nova
matemática pretende salvaguardar a todo o preço tem como contrapartida a suspensão da
validade de certos princípios fundamentais, como o do terceiro-excluído, par lá das matemáticas
numeráveis20. Ora, mesmo sem ir ao ponto de afirmar, como Hilbert, que «privar o matemático
do princípio do terceiro-excluído seria como retirar ao astrónomo o seu telescópio, ou ao boxista
o direito de se servir dos seus punhos»21, pode-se questionar do ponto de vista filosófico a
necessidade de tamanha restrição. Porque se limitaria ao infinito enumerável a extensão da
evidência para lá do finito? Por outro lado, segundo Brouwer a legitimidade das construções
matemáticas assentaria na possibilidade serem reconduzidas em última análise a uma certa
«intuição primordial» - a intuição da díade pura, isto é, da «separação de um instante de vida em
duas coisas qualitativamente distintas»22 -, que nem os seus discípulos mais próximos levaram a
sério23.

18
As duas outras condições fundamentais seriam a independência recíproca dos axiomas, assim como a completude
(ou saturação) da teoria, isto é, a garantia que qualquer proposição susceptível de ser traduzida na linguagem da
teoria é demonstrável ou refutável.
19
Hilbert, « Neubegründung der Mathematik. Erste Mitteilung », Abh. aus dem Math. Seminar d. Hamb. Univ., 1,
1922 ; tr.fr. in J. Largeault, 1992, op.cit., p. 117.
20
Cf. Brouwer, « Intuitionism and formalism », discurso de abertura na Universidade de Amsterdão, 1912, tr. ingl.
A. Dresden in : Bull. Amer. Math. Soc., 20, 1913, p. 81-96. São ditos de tipo numerável os conjuntos infinitos
susceptíveis de se encontrarem em correspondência biunívoca com o conjunto dos números inteiros, e de tipo
contínuo aqueles que só podem encontrar essa mesma correspondência pelo menos ao nível mais complexo do
conjunto dos números reais. Esta distinção deve-se ao fundador da Teoria dos conjuntos, G. Cantor, que conseguiu
provar graças ao engenhoso « método da diagonal » a existência de um número infinito de tipos de infinito!
21
Hilbert, « Die Grundlagen der Mathematik », 1927, tr. fr. in : J. Largeault, 1992, op. cit., p. 159.
22
Brouwer, « Mathematik, Wissenschaft, und Sprache », 1929, tr. fr. in : Largeault, 1992, op.cit., p. 258.
23
Heyting e de Weyl souberam com efeito liberar a matemática intuicionista dos pressupostos metafísicos
introduzidos pelo seu fundador..
3. A NECESSIDADE DE UMA ONTOLOGIA

Além da inviabilidade de cada uma destas soluções ao problema dos fundamentos, a


longa análise crítica que constitui o primeiro período da reflexão de Cavaillès evidencia ainda
dois aspectos pouco palpáveis na altura. Em primeiro lugar, o facto que apesar dos
desentendimentos entre os principais representantes das diferentes escolas, estas acabariam
todavia por interagir positivamente umas com as outras. Assim, por exemplo, é notável que a
fertilidade das investigações do logicismo de Carnap e do Círculo de Viena se tenha devido em
grande parte «ao próprio desenvolvimento da técnica formalista»24. Não é portanto surpreendente
que Carnap confesse já em 1931 partilhar uma certa «afinidade metodológica»25 com o
formalismo. Mas também o formalismo, por seu lado, soube tirar partido dos desenvolvimentos
intuicionistas, a partir do momento em que Gentzen e Gödel, quase simultaneamente (1932-
1933), conseguiram traduzir a aritmética clássica no cálculo intuicionista. Com o tournant dos
anos 1930, estas duas escolas caminharam pois a par uma da outra, ao ponto de outro eminente
protagonista da década, A. Tarski, se definir ambiguamente como um «formalista
intuicionista»26. A fronteira entre uma e outra via restringir-se-ia assim quase por completo à
questão do plano onde é suposta situar-se a objectividade matemática, «o intuicionista dizendo:
na mente humana, e o formalista: no papel»27. Isso reenvia-nos ao segundo aspecto salientado
por Cavaillès, que diz respeito precisamente ao problema do estatuto dos objectos matemáticos e
que constitui o principal ponto de conivência entre a sua reflexão e a de Husserl.
Deste ponto de vista, Cavaillès mostra que as dificuldades de ordem técnica relativas à
questão de saber como fundar a matemática dissimulam na realidade uma insuficiência de ordem
filosófica na resposta ao problema prévio da elucidação e da justificação daquilo que se pretende
fundar. Ao examinar esta segunda questão, Cavaillès apercebe-se da presença na maior parte dos
debates daquilo que ele considera ser um «preconceito de ontologia não-crítica»28. Trata-se,
genericamente, da propensão das filosofias da matemática para considerar os objectos
independentemente dos seus modos de construção, isto é, das operações que os permitem
determinar a qualquer momento. Segundo Cavaillès, a concepção da objectividade matemática
oscila tradicionalmente entre duas posições antagónicas e igualmente ilegítimas. De um lado,
encontram-se os denominados «platonistas», como Bolzano, Cantor e mais recentemente Gödel,
que ao relegar directamente para um plano inteligível e independente do sujeito os objectos
matemáticos negligenciam o problema das condições de acesso aos mesmos. De outro lado,
situam-se aqueles que, pelo contrário, sacrificam os próprios objectos na sua especificidade ao
subordiná-los ao processo da sua constituição, quer este se desenrole na consciência, como é o
caso em Kant, quer se verifique a partir de estruturas formais de natureza lógica, como é o caso
em Carnap.
Cavaillès ambicionava por conseguinte constituir uma «reflexão crítica sobre a noção de
objecto»29 capaz de evitar este tipo de preconceitos ontológicos, ou seja, elucidar o estatuto da
objectividade matemática a partir dos próprios processos de constituição dos objectos: «só
existirá uma matemática rigorosa quando se conseguir, pela própria investigação das operações,
definir o campo de objectos aos quais elas convêm»30. Não é portanto surpreendente que ele
24
Méthode axiomatique et formalisme, p. 166.
25
Carnap, « Die logizistische Grundlegung der Mathematik », 1931, tr. ingl. E. Putnam & G. J. Massey - « The
logicist foundations of mathematics », in : P. Benacerraf & H. Putnam, Philosophy of mathematics, Cambridge
University Press, 1983, p. 52.
26
Tarski, « Fundamentale Begriffe der Methodologie der deduktiven Wissenschaften », 1930, tr. fr. sob a dir. de G.
Granger - « Concepts fondamentaux de la méthodologie des sciences déductives », in : Tarski, Logique, sémantique,
métamathématique, vol. 1, Paris, Armand Colin, 1972, p. 71.
27
Brouwer, « Intuitionism and formalism », op. cit., p. 83.
28
Méthode axiomatique et formalisme, p. 176.
29
Id., p. 29.
30
Remarques sur la formation de la théorie abstraite des ensembles, p. 27.
tenha reconhecido na reflexão de Husserl uma via privilegiada para levar a cabo tal tarefa. Com
efeito, graças à descoberta da intencionalidade, preparada por Brentano, a fenomenologia parece
conseguir salvaguardar tanto os objectos como os seus modos de acesso, sem contudo sacrificar
a independência recíproca entre eles. Resta saber de que modo e a que preço.

4. A SOLUÇÃO DE HUSSERL: APOFÂNTICA E ONTOLOGIA

No seu livro introdutório de 1929, Lógica formal e transcendental, Husserl instaura uma
distinção fundamental entre a vertente apofântica e a vertente ontológica da lógica formal31.
Estas duas faces da lógica formal mostram-se independentes do ponto de vista dos seus temas
respectivos: enquanto a apofântica formal, ou teoria do juízo enquanto tal, tem apenas por
objecto as formas puras de juízos e de combinações possíveis entre juízos, independentemente
em todo o caso da questão da existência daquilo que eles visam; a ontologia formal, por seu lado,
visa directamente as modalidades puras do objecto em geral, isto é, do universo puramente
indeterminado do qualquer coisa em geral, cuja «generalidade formal deixa fora de
consideração, de forma genérica, qualquer determinação concreta de objectos»32. Encontra-se
assim desde logo assegurada a independência do domínio das formas possíveis de significação
face ao domínio das formas de preenchimentos possíveis dessas significações. É por isso que é
possível, no caso daquilo a que Husserl chama a «matemática dos matemáticos»33, elaborar
construções autónomas independentemente do facto dessas construções se referirem ou não a
uma realidade concreta. O matemático lida genericamente com «multiplicidades», como por
exemplo o domínio dos números, o dos conjuntos ou o dos espaços geométricos, que ele
manipula livremente sem se preocupar com a questão da sua existência ou da sua correlação a
objectos reais.
Existiria contudo no entender de Husserl uma condição para essa autonomia, que seria o
eventual fechamento sintáctico dos sistemas axiomático-deductivos construídos com base nessas
multiplicidades - ou, na sua terminologia, o carácter «definido» [Definit] desses sistemas -, isto é,
a garantia que para cada enunciado formulado na linguagem do sistema exista uma prova ou uma
refutação. Segundo Husserl, o grande mérito das matemáticas modernas, e em particular das
novas axiomáticas não euclidianas, foi o de tornarem possível a consideração deste tipo de
sistemas formais, a que ele dá o nome de nomologias, como sendo puras formas de sistemas
exemplificadas, implicando corolariamente a consideração de uma forma de verdade, uma forma
de dedução e uma forma de demonstração relativamente a cada multiplicidade34. Bem mais,
chegada a este grau de generalidade a matemática moderna permite «encarar tais formas de
sistemas como sendo elas mesmas objectos matemáticos, transformá-las livremente, generalizá-
las matematicamente e particularizar o geral assim obtido»35. Daí a ideia que remonta aos
Prolegómenos de constituir, correlativamente à teoria das multiplicidades, uma teoria das formas
possíveis de teoria36. Simplesmente, essa «tarefa universal» assenta por inteiro sobre o mesmo
requisito que a metamatemática hilbertiana reivindicara e que Gödel mostraria ser impossível de
satisfazer, o tal fechamento sintáctico dos sistemas formais.

31
Cf. Husserl, Formale und Transzendentale Logik, Halle, M. Niemeyer, 1929, § 25, p. 69. Note-se que se a análise
da solução de Husserl que Cavaillès tematiza no seu último escrito se baseia sobretudo em Lógica formal e lógica
transcendental, não é tanto devido ao caràcter particularmente sistemático deste último, mas pelo simples facto de se
tratar da única obra de Husserl de que o filósofo francês dispunha na prisão em que então se encontrava.
32
Ibid.
33
Id., § 51, p. 123.
34
Id., § 29, p. 81.
35
Id., § 30, p. 82.
36
Cf. Husserl, Prolegomena zur reinen Logik, Halle, M. Niemeyer, 1913, § 69, p. 247.
No entanto, a posição de Husserl não se confunde com o formalismo hilbertiano, pois não
considera a simples consistência de um sistema axiomático como a condição necessária e
suficiente para que a sua validade seja estabelecida. Embora as Investigações lógicas subscrevam
ainda a tese da independência das condições ideais relativamente às condições reais, com a
descoberta da redução fenomenológica essa autonomia dos «objectos de pensamento» face aos
«objectos possíveis» fica em definitivo reservada ao plano da matemática dos matemáticos. Com
efeito, diz agora Husserl, o ponto de vista lógico que é o da fenomenologia deve respeitar a sua
vocação fundamentalmente epistemológica, o que implica tentar pensar a recondução dessas
construções formais «a domínios possíveis e ao seu conhecimento possível»37. Sob pena de
reduzir a actividade matemática a uma mecânica dedutiva comparável a um jogo de cartas ou de
xadrez, é portanto necessário que os próprios objectos sejam tomados em consideração. Foi isso
que levou Husserl a compreender a necessidade de um terceiro estrato da apofântica formal – o
estrato da lógica da verdade -, que não tomavam ainda em conta as Investigações lógicas.
Ora, o que se torna manifesto ao nível da lógica da verdade, é a essência intencional do
próprio plano da enunciação, isto é, o facto que «a plena significação de julgar consiste em emitir
juízos sobre objectos, enunciar propriedades ou determinações relativas desses objectos»38.
Apesar da relativa autonomia das entidades lógicas, o modo de juízo originário «é o juízo
evidente e, ao nível de base, o juízo que se funda na experiência»39. Assim, quaisquer que sejam
os seus níveis de complexidade, as construções teóricas e as suas categorias respectivas assentam
em última instância sobre o «solo universal da experiência». Segue-se que a apofântica visa em
última análise exactamente a mesma coisa que a ontologia, embora de maneira indirecta, ou seja,
do ponto de vista do juízo enquanto tal. A «separação temática» entre estes dois planos não deve,
pois, dissimular a sua «solidariedade efectiva»40. É aos próprios objectos que a lógica formal,
directa ou indirectamente, acaba sempre por reenviar. É assim que Husserl consegue
salvaguardar, não só a independência recíproca entre os objectos e os modos de acesso, mas
também a sua indissociabilidade.

5. O DILEMA DO TRANSCENDENTAL

A questão do estatuto da objectividade matemática parece então resolvida. Mas


permanece por enquanto em aberto a questão da justificação e da constituição dos objectos assim
concebidos. Com efeito, segundo Husserl, a lógica formal, enquanto lógica objectiva,
historicamente constituída, é incapaz por si mesma de justificar os seus próprios conteúdos. Ela
limita-se a sistematizar e a generalizar as formações progressivamente adquiridas pela «lógica
espontânea», sem se interrogar sobre o seu sentido. Ora, é precisamente essa lacuna que pretende
colmatar a lógica transcendental, que é fundamento da primeira porquanto elucida e justifica os
seus produtos na actividade constitutiva da consciência. Mais precisamente, a lógica
transcendental visa remontar das entidades objectivas da lógica formal até aos actos subjectivos
que delas são origem e fundamento.
Porém, esse desdobramento reflexivo da análise lógica parece somente deslocar o
problema do fundamento, que se coloca desta feita ao nível da própria lógica transcendental. É
com efeito legítimo perguntar-se a que normas obedecerá essa lógica produtora de normas. Por
um lado, a recondução das estruturas ideais às evidências primordiais faz da lógica
transcendental uma lógica solipsista, cujas verdades «são válidas unicamente para mim, o ego,
(…) sem referência a outros sujeitos, reais ou possíveis»41. Por outro lado, importa determinar se,
37
FTL, § 52, p. 123.
38
Id., § 25, p. 69.
39
Id., § 89, p. 194.
40
Id., § 25, p. 69.
41
Ibid.
ao nível da subjectividade transcendental, a lógica constituinte coincide com a lógica constituída,
ou se é necessário conceber uma lógica da constituição do próprio ser constituinte, isto é, uma
espécie de meta-lógica transcendental. Cavaillès confronta Husserl ao seguinte dilema: por um
lado, a lógica transcendental, que é fundadora, não pode ser absoluta, pois deveria para isso ter
autoridade sobre os próprios actos fundadores; por outro lado, uma lógica absoluta não pode ser
transcendental, pois isso implicaria que ela resultasse de actos fundadores42. Por outras palavras,
o que está aqui em jogo é o problema da constituição da própria lógica constituinte. Husserl
tinha-se já confrontado a um dilema semelhante em 1905, a respeito do enigma da constituição
do tempo, e viria a reencontrá-lo nas Conferências de Paris de 1929, a respeito da auto-
constituição do próprio ego. Husserl estava portanto plenamente consciente da gravidade do
problema, que aliás ele próprio assinala no § 102 de Lógica formal e transcendental: «Que será
dessa lógica cujas normas dirigem as investigações transcendentais, as investigações que
elucidam a lógica positiva?»43.
O seguimento do texto limita-se contudo a contornar a questão mediante dois postulados
distintos. Por um lado, logo após ter levantado a questão, Husserl evoca o «carácter provisório»44
de cada investigação fenomenológica, que embora permita superar alguma da ingenuidade da
posição anterior, não deixa contudo de «acarretar ainda com ela a ingenuidade própria do seu
nível, ingenuidade que por sua vez deverá ser superada por investigações que penetrem mais
além»45. Mas não será esse apelo à dimensão teleológica uma forma de dissolver no tempo um
problema que se coloca a cada instante, a partir do momento em que se inaugura a pesquisa
transcendental? Mesmo supondo, com Husserl, que a apofântica e a própria ontologia são
passíveis duma estratificação progressiva, correlativamente às sucessivas fases da investigação46,
e que ambos os processos de alargamento convergirão para a realização efectiva da «ideia mais
geral duma lógica formal (…) no quadro da ciência universal absoluta e última»47, permanece de
pé a questão do estatuto e da autoridade dos actos da lógica subjectiva. Talvez em função disso,
no intuito de evitar quer uma regressão indefinida na série actos fundados - actos fundadores,
quer a simples coincidência entre eles, Husserl postula no parágrafo seguinte a reflexividade da
consciência, isto é, «a possibilidade que tem o existente absoluto, por essência e em qualquer
momento, de se reflectir sobre si mesmo segundo todas as suas formas»48. O problema que
deixava porventura pendente a estrutura horizontal da consciência encontrar-se-ia, por assim
dizer, verticalmente resolvido graças à reflexividade do próprio ego.
Ora, é neste tipo de justificações que reside segundo Cavaillès «a ambiguidade
fundamental da filosofia transcendental»49. Tal como Kant, Husserl pretende «determinar as
condições do conhecimento relativamente a uma actividade sintética susceptível de ser definida e
apreendida directamente num conhecimento que escapa ele próprio à crítica: a condição da
representação confundindo-se com as representações da condição»50. Para Cavaillès, o recurso
ao absoluto da consciência do idealismo transcendental revela-se portanto tão ilegítimo quanto o
recurso ao absoluto do ser das posições realistas. É verdade que a solução de Husserl permite
ultrapassar a exterioridade do objecto e da consciência, da intuição e do conceito, do conteúdo e
da forma, de que era ainda tributária a concepção kantiana. Mas a tese da intencionalidade não
impediu Husserl, em última análise, de subordinar a objectividade matemática às estruturas
42
« Si la logique transcendantale fonde vraiment la logique, il n’y a pas de logique absolue (c’est-à-dire régissant la
logique absolue). S’il y a une logique absolue, elle ne peut être transcendantale » (Sur la logique et la théorie de la
science, p. 65).
43
FTL, § 102, p. 238.
44
Ibid., p. 239.
45
Ibid.
46
Ibid.
47
Ibid.
48
Id., § 103, p. 241.
49
« Transfini et continu », in : Philosophie mathématique, Paris, Hermann, 1962, p. 272.
50
Ibid.
invariantes da consciência transcendental. «A consciência é a totalidade do ser: o que ela afirma
não é senão porque ela o afirma»51. Ora, sob estas condições, não é só a objectividade mas
também e sobretudo o próprio progresso científico que se torna injustificável enquanto
movimento autónomo e imprevisível: «se há consciência de progressos, não há progresso da
consciência»52.

6. A NEGLIGÊNCIA DO PROGRESSO E A «VINGANÇA DO TÉCNICO»

A própria concepção husserliana das teorias matemáticas, como sendo por excelência
nomologias ou sistemas formalmente completos e isoláveis, é sintomática de uma filosofia que
pretende estabelecer de antemão e em definitivo as possibilidades do pensamento efectivo. O
próprio Husserl parece aperceber-se das dificuldades que isso acarreta: «Como saber a priori que
um certo domínio é um domínio nomológico e que (…) a série de axiomas imediatamente
evidentes que se estabelece (…) é suficiente para determinar uma nomologia?»53. Mas não podia
prever que, apenas dois anos após a publicação de Lógica formal e transcendental, um jovem
matemático austríaco viria a mostrar a inviabilidade técnica de tal propósito. «Para a concepção
husserliana da lógica e da matemática », constata Cavaillès, « a aventura é particularmente grave,
(…) uma vez que a própria noção de teoria dominável e isolável deixa de fazer sentido»54.
Não é todavia tanto na revelação da impossibilidade de se obter as tais nomologias de
que fala Husserl que reside o principal interesse dos teoremas de incompletude. Na realidade, à
parte do engenhoso método de aritmetização que Gödel concebeu no intuito de demonstrar esses
resultados, as suas implicações técnicas ao nível da matemática propriamente dita não foram
muito significativas; e é um facto, como refere Hintikka, que «em geral os matemáticos não
encontram grandes dificuldades em obter o tipo de completude que realmente lhes interessa»55.
Se bem que a partir do seu aspecto técnico, é portanto a significação filosófica dos teoremas de
Gödel que Cavaillès pretende contrapor à concepção de Husserl. Ora, deste ponto de vista, os
ditos teoremas revelam que a verdade de uma teoria matemática não pode ser inteira e
definitivamente contida pelos seus axiomas e que, por conseguinte, é ilegítimo dissociar uma
teoria do seu processo efectivo de constituição e de alargamento. Brouwer tinha razão em alertar
os formalistas quanto ao perigo de quebrar a solidariedade entre o pensamento efectivo,
inventivo e imprevisível, e o pensamento formal, simples superestrutura do primeiro segundo
ele. Mais precisamente, é no inevitável desfasamento entre, por um lado, os actos concretos do
matemático em plena investigação face ao apelo urgente dum problema e, por outro lado, a
ulterior exposição axiomática dos resultados da investigação, que reside a causa da ilusão
formalista. Ao pretenderem isolar as teorias matemáticas do «sistema de gestos» que está na sua
origem, a metamatemática de Hilbert e a teoria das multiplicidades de Husserl esquecem-se que
«o progressivo é de essência e [que] as decisões que o negligenciam se perdem no vazio»56. Mas
a matemática no seu movimento efectivo, a «matemática em acto»57 como diz Cavaillès,

51
Sur la logique et la théorie de la science, pp. 55-56.
52
Id., p. 78.
53
Husserl, FTL, § 31, p. 84.
54
Sur la logique et la théorie de la science, p. 72.
55
Hintikka, The Principles of Mathematics Revisited, Cambridge University Press, 1996, p. 99. Hintikka mostra que
é necessário distinguir quatro tipos de completude, e que aquela que é visada pelos resultados de Gödel – por ele
denominada « deductiva » - está longe de ser a mais importante. Isto compreende-se facilmente se se tiver em conta
que os enunciados indecidíveis propostos por Gödel foram construídos precisamente com vista a obter a
indecidibilidade dos sistemas em causa. Trata-se, pois, de casos excepcionais concebidos com vista a testar o
pensamento formal nos limites das suas possibilidades. Para uma análise completa, veja-se J. Ladrière, Les
limitations internes des formalismes, Gabay, 1992.
56
Sur la logique et la théorie de la science, p. 70.
57
La pensée mathématique, op. cit., p. 595.
relembra em permanência que o encadeamento dedutivo não começa nem acaba com a teoria no
seu aspecto axiomático, que ele é por si mesmo «essencialmente criador dos conteúdos que
atinge»58. São disso exemplos particularmente convincentes quer os paradoxos dos conjuntos
quer os teoremas de Gödel, que constituem neste sentido uma espécie de «vingança do técnico,
que derruba as construções efectuadas num abstracto que o ultrapassa»59.
Porém, nem toda a concepção husserliana da matemática é afectada pelos teoremas de
Gödel. Já se viu que Husserl se demarca de Hilbert no que concerne o problema da relação entre
a matemática e a física. Enquanto o matemático de Götingen instaura desde os Fundamentos da
geometria uma cisão radical entre as teorias matemáticas e qualquer referência exterior, real ou
possível, Husserl defende por seu lado que aquele que se ocupa de lógica filosófica «não pode
admitir (…) uma matemática que se desprende da ideia de aplicação possível e se torna um jogo
de pensamento engenhoso, senão mesmo, como na matemática puramente calculadora, um jogo
de símbolos que recebem o seu sentido de simples convenções de cálculo»60. Apesar da
autonomia total de que desfruta a matemática entre as mãos dos matemáticos, a sua vocação
originária é fundada sobre a «função de conhecimento», devendo por isso mesmo reenviar a um
«domínio de aplicações possíveis»61. Simplificando, pode dizer-se que a matemática consciente
da sua significação autêntica e original se divide por sua vez em duas vertentes: a matemática
formal, que é lógica, e a matemática aplicada, que é física.
Na Krisis…, Husserl oferece uma visão bastante curiosa e não menos polémica desta
segunda vertente, ao sugerir que a física matemática se constituiu desde Galileu como uma
simples técnica teórica, que se teria sobreposto ao «mundo da vida» [Lebenswelt] no único
intuito de o dominar pela previsão62. Além disso, segundo a descrição de Husserl, todo o
progresso técnico e conceptual consecutivo à matematização da natureza e à tradução algébrica
da geometria teria conduzido a uma «extenuação do sentido» original do mundo intuitivo.
«Galileu era já ele, do ponto de vista da pura geometria, um herdeiro. A geometria que ele
herdara, com uma maneira “intuitiva” de imaginar e de demonstrar, e com construções
“intuitivas”, já não era ela própria a geometria original; ela estava já, mesmo nessa
“intuitividade”, esvaziada do seu sentido»63. As noções e as teorias da física não passam pois
duma «vestimenta de ideias» com que «travestimos» o mundo da vida, o corpo carnal das coisas,
que permanece manifestamente imutável sob toda essa superestrutura acessória64. Mas até que
ponto será necessário atravessar as sucessivas camadas dessa sedimentação do sentido, em busca
duma suposta «intuição original» se, com Galileu, é já demasiado tarde? Por outro lado,
acrescenta Cavaillès, se as entidades categoriais da ontologia formal constituem somente
complicações auxiliares e elimináveis, se quaisquer que sejam os seus graus de abstracção ou de
idealização permanecem sempre visados através delas os objectos concretos no mundo real,
torna-se possível encarar a sua estrutura independentemente dos «desenvolvimentos racionais
progressivos»65. «Daí o curto-circuito entre a ideia de ontologia abstracta e o conhecimento
efectivo»66, uma vez que, segundo as próprias palavras de Husserl, «é possível colocar-se
directamente o problema duma ontologia formal sem passar pela ideia de uma doutrina da
ciência»67.

58
Sur la logique et la théorie de la science, p. 73
59
Id., p. 72.
60
Husserl, FTL, § 40, p. 97.
61
Ibid.
62
Husserl, Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, Martinus Nijhoff,
La Haye, 1954, cap. II, § 9-h.
63
Ibid.
64
Ibid.
65
Sur la logique et la théorie de la science, p. 69.
66
Ibid.
67
FTL, § 54, p. 132,
Assim, mesmo no que respeita a sua vertente aplicada, a matemática que descreve
Husserl permanece alheia à sua evolução interna, ao seu movimento sui generis. Ao relegar a
matemática ao estatuto de simples técnica teórica ao serviço da física, Husserl aproxima-se
estranhamente das teses do empirismo lógico. A vantagem da concepção tautológica das
matemáticas é evidente: todo o conteúdo do conhecimento se encontra estipulado no enunciado
dos axiomas, de tal forma que «as deduções ulteriores, o movimento próprio da teoria, não fazem
senão explicitar o que já estava previamente estabelecido como prefácio indispensável e
independente do trabalho matemático»68. A dimensão evolutiva não é então compreendida senão
de forma teleológica, e ainda assim sob a ilusão do progresso linear, por justaposição das teorias,
«sem que haja necessidade interna, nem dependência de sentido, entre a teoria restrita e a teoria
generalizada»69. É certo que a concepção da Krisis, que o ensaio sobre a Origem da geometria
ajuda a precisar, convida a encarar do ponto de vista histórico o processo de constituição das
formações matemáticas. Simplesmente, essa elucidação opera-se segundo «o mito do retorno ao
passado»70, como se o regresso ao sentido originário implicasse o acesso ao sentido original: «A
prática da agrimensura, que ignorava tudo das idealidades, precedeu a geometria das idealidades.
Tal actividade pré-geométrica é contudo para a geometria o fundamento do seu sentido»71.
Duma investigação genealógica passa-se deste modo a uma genética no sentido estrito, senão
mesmo a uma forma de arqueologia, já que «não há nada a interrogar para lá do acto ou do
conteúdo na sua presença imediata»72. Vítima da crença numa origem última do sentido, de resto
arbitrária e aproximadamente situada, Husserl dá a entender que os desenvolvimentos ulteriores
das teorias obscurecem e deturpam de algum modo a autenticidade dos actos primitivos. Aos
olhos de Cavaillès, porém, isso é ignorar que o progresso da ciência «não consiste num aumento
de volume por justaposição, o anterior subsistindo com o novo, mas revisão perpétua dos
conteúdos por aprofundamento e emenda»73.

7. DAS FILOSOFIAS DA CONSCIÊNCIA À FILOSOFIA DO CONCEITO

Da crítica de Cavaillès ao projecto fenomenológico sobressaem ao mesmo tempo os


principais eixos da problemática de Sobre a lógica e a teoria da ciência, sobre os quais se deverá
vincular o aspecto positivo da dita «filosofia do conceito». Por um lado, trata-se de elucidar o
estatuto e os próprios processos de constituição da objectividade matemática, sem recorrer ao
absoluto do ser das concepções realistas, nem ao absoluto da consciência das concepções
transcendentais. Por outro lado, importa justificar o progresso científico enquanto movimento
necessário mas imprevisível.
Cavaillès atribui a Bolzano o mérito duma conversão epistemológica capaz de dar
resposta a estes problemas. «Talvez pela primeira vez, [com Bozano] a ciência já não é
considerada como simples intermediário entre a mente humana e o ser em si, dependendo ora de
um ora de outro e não possuindo realidade própria, mas como um objecto sui generis, original na
sua essência, autónomo no seu desenvolvimento»74. No fundo, trata-se duma solução que
Cavaillès não deve senão a si próprio, ou no mínimo a uma leitura algo espinozista da obra do
matemático checo75. Como quer que seja, a adopção dessa tese é o ponto de partida para uma

68
Sur la logique et la théorie de la science, p. 70-71.
69
Ibid.
70
Id., p. 77.
71
Husserl, Die Krisis…, op. cit., § 9-h.
72
Sur la logique et la théorie de la science, p. 76.
73
Id., p. 78.
74
Id., p. 21.
75
O « platonismo » de Bolzano impedi-lo-ia na verdade de subscrever a revolução epistemológica que Cavaillès lhe
atribui. Veja-se sobre este ponto o artigo de J. Laz, « Bolzano, un platonicien débridé ? », Philosophie, 1990, nº 27.
superação da clivagem entre o realismo (ou «platonismo») e o idealismo em filosofia da
matemática. A justificação do objecto e do progresso da ciência deverá prescindir do apelo a uma
realidade que lhe seja exterior, seja ela transcendente ou subjectiva, para assentar unicamente na
imanência das suas estruturas e dos seus conceitos. Por outras palavras, «a teoria da ciência
[deverá ser] um a priori, não anterior à ciência, mas alma da ciência»76.
A solução de Cavaillès parece modelar-se em função dessas duas restrições. Em primeiro
lugar, ele evita a pressuposição realista de um universo de objectos independentes do
conhecimento que deles possamos ter, ao proceder a uma desreificação radical do estatuto da
objectividade. Tal foi a principal lição que Cavaillès tirou da leitura dos Fundamentos da
geometria de Hilbert e, mais precisamente, da ruptura aí estabelecida entre a axiomática e o
mundo sensível. Os axiomas da geometria, em particular, não serão nem determinações a priori
do espaço no sentido kantiano, nem a expressão matemática de relações empiricamente
constatáveis, como pretendia Pash, nem, inversamente, hipóteses teóricas sobre o mundo físico
que a experiência permitiria em seguida confirmar ou infirmar, como pretendia Riemann77. Sem
tão pouco ir ao ponto de afirmar, como Poincaré, o carácter puramente convencional da
geometria78, Hilbert defende que os axiomas descrevem as propriedades de certos elementos
iniciais – pontos, linhas e planos no caso da geometria -, mas estes elementos não reenviam por
sua vez a uma realidade exterior ao sistema. Na realidade, os elementos descritos pela teoria não
possuem sequer uma significação determinada, o termo «ponto» podendo ser substituído pelo
termo «livro» ou «cadeira», por exemplo, sem que o sistema sofra qualquer alteração. Importa
apenas fixar a correspondência entre cada «elemento» e um símbolo indefinível da linguagem do
sistema, por um lado, e determinar ao nível dos axiomas as relações formais entre esses
símbolos, por outro lado. Compreende-se então que os objectos matemáticos deixem de
apresentar a estabilidade e a individualidade a que a tradição sempre os associou, para se
tornarem simples elementos substituíveis e elimináveis consoante as necessidades internas do
sistema. O matemático e o filósofo da matemática deparam-se assim com uma objectividade
relativamente fluida, estruturada por uma axiomática, na qual se cristalizam provisoriamente
conteúdos cada vez mais complexos.
Mas isso não implica que este fluxo conceptual se deva condensar nas estruturas
constitutivas duma consciência, tal como pretendiam sob formas diversas Kant, Brouwer ou
Husserl. Com efeito, Cavaillès postula, em segundo lugar, a total autonomia dos conceitos
relativamente às determinações subjectivas: esses conteúdos objectivos «são propriamente o
essencial no seu movimento e a pseudo-experiência primordial da consciência desaparece
perante o dinamismo autónomo que eles revelam e que não deixa lugar a outra coisa que não eles
mesmos»79. Retomando o esforço desenvolvido por Espinoza no sentido dum «esgotamento do
cogito»80, segundo a expressão de Canguilhem, Cavaillès emancipa a objectividade e a
necessidade do devir da ciência de toda e qualquer referência à subjectividade. «A ciência move-
se fora do tempo – se o tempo significa referência à vivência duma consciência»81. Assim
concebida, a inteligibilidade dos seus conteúdos e do seu progresso torna-se «autêntica
imanência»82, sem que qualquer exigência ou tentativa de justificação exterior a possa garantir.
Os objectos são conceitos, isto é, entidades absolutamente objectivas e inteligíveis das quais está
ausente «qualquer referência à actividade da mente»83. A des-reificação dos objectos
76
Sur la logique et la théorie de la science, p. 25.
77
Cf. Riemann, « On the the Hypotheses wich lie at the Foundations of Geometrie » [1854], in: A Source Book in
Mathematics, Dover publications, N.Y., 1959, p. 412.
78
Segundo Poincaré « os axiomas da geometria não passam de definições mascaradas » (La science et l’hypothèse,
Paris, Flammarion, 1968, p. 76).
79
Sur la logique et la théorie de la science, p. 4.
80
Canguilhem, « Mort de l’homme ou épuisement du cogito? », Revue Critique, 242, Junho, 1967.
81
Id., p. 22.
82
Méthode axiomatique et formalisme, p. 181.
83
Id., p. 56.
acompanha-se portanto duma des-substancialização do próprio sujeito, ideia de que o movimento
estruturalista se apropriaria mais tarde. Como declara G. Canguilhem no final dos anos 60,
«Podemos hoje compreender que o enigma valia como anunciação. Cavaillès determinou, com
vinte anos de antecedência, a tarefa que a filosofia se está hoje a atribuir: substituir ao primado
da consciência vivida ou reflectida o primado do conceito, do sistema ou da estrutura»84.

8. PARADIGMA E TEMATISAÇÃO

Ao romper com a filosofia de Husserl, é portanto a Espinoza que Cavaillès parece


retornar. O início de Sobre a lógica e a teoria da ciência anunciava já a necessidade de decidir
entre essas duas vias: «É preciso ou o absoluto de inteligibilidade que legitima a superposição
espinozista da ideia da ideia, ou a referência a uma consciência geradora capaz de se apreender
de forma imediata nos seus actos autênticos»85. Mas essa tensão permanece suspensa na
densidade do manuscrito até à sua última página - sem dúvida a que mais fecundos comentários
inspirou -, na qual Cavaillès se reivindica quase ostensivamente como herdeiro legítimo do
filósofo de Amsterdão. Do mesmo modo que para Espinoza a ideia verdadeira não reenvia nem a
uma faculdade subjectiva de concepção, nem a um objecto ao qual ela conviesse, mas a outra
ideia86, para Cavaillès «não existe uma consciência geradora dos seus produtos, ou simplesmente
imanente a eles, mas ela encontra-se sempre no imediato da ideia, perdida nela e perdendo-se
com ela, e não se relacionando com outras consciências (o que seria tentador chamar outros
momentos da consciência) senão pelas relações internas das ideias às quais estas pertencem»87.
Os objectos-conceitos não existem portanto nem em si mesmos nem na consciência, « são a
própria realidade do acto de conhecimento »88. Mais que entidades manipuláveis, os objectos
matemáticos são métodos de construção que permitem responder a problemas precisos, dentro
dos limites fixados por um conjunto de regras. Cavaillès diz em termos husserlianos que os
objectos são o correlato de uma actividade, mas acrescenta de imediato que «tudo o que [neles]
pensamos são as regras de raciocínio matemático que são exigidas pelos problemas que se
colocam»89. A imagem do acto ou do gesto não deve portanto enganar; os objectos não reenviam
a uma livre criação da consciência, mas às regras que emergem dos seus processos de
constituição e que, reciprocamente, os condicionam.
Torna-se então inútil tentar fundar a objectividade matemática sobre um plano que
supostamente a precedesse do ponto de vista lógico ou mesmo ontológico: «Número, função,
esses actos intuitivos da mente são instrumentos que se forjam a si mesmos, pois nada lhes
preexiste»90. Pelas mesmas razões, o problema do fundamento da matemática, ao qual Cavaillès
consagrara plenamente Método axiomático e formalismo (1938), deixa também ele de fazer
sentido. Poderá apenas falar-se dos fundamentos das matemáticas, caso se tome a precaução de
substituir a metáfora das «bases do edifício» pela imagem mais exacta do fundo do rio que se
move com o seu leito.
A questão que agora se coloca é a do modo de constituição dos objectos no campo
temático, ou seja, a dos seus processos efectivos de constituição. Deste ponto de vista, Cavaillès
põe a nu certas propriedades do pensamento matemático que a axiomática abstracta desenvolvida

84
G. Canguilhem, « In memoriam », 1967, in : Jean Cavaillès Oeuvres Complètes de Philosophie des Sciences, p.
674.
85
Sur la logique et la théorie de la science, p. 19.
86
« Por ideia adequada, entendo uma ideia que, enquanto é considerada em si sem relação ao objecto, tem as
propriedades ou as denominações intrínsecas da ideia verdadeira » (Espinoza, Ética, II, Def. 4).
87
Sur la logique et la théorie de la science, p. 78.
88
Pensée mathématique, p. 595.
89
Id., p. 604.
90
Remarques sur la formation de la théorie abstraite des ensembles, in : Oeuvres Complètes, op. cit., p. 161.
na Escola de Hilbert durante os anos vinte ajudara a precisar91. Trata-se de dois processos de
formalização e de generalização através dos quais as regras das operações se emancipam das
formações singulares de que são oriundas, autorizando subsequentemente a engendração de
novos domínios de objectos.
Num primeiro tempo, tem lugar o processo de idealização ou «paradigma», que se opera
ao nível dos próprios encadeamentos demonstrativos92. Falar-se-á neste sentido dum movimento
«horizontal», mediante o qual uma operação se libera das condições extrínsecas à sua realização,
ou seja, das restrições impostas pela particularidade do conjunto de objectos a que inicialmente
se referia. Trata-se de um processo clássico em matemática, que remonta pelo menos aos
primeiros passos da álgebra e que não fez mais que se acentuar com o desenvolvimento da
axiomática. Fazendo-se abstracção da singularidade dos conteúdos primitivos de determinada
operação, isto é, traduzindo-os em elementos variáveis, torna-se possível substituí-los mediante
um «princípio de variação interna»93, até que surja como único invariante o esqueleto da própria
operação. Esta aparecerá então como «executável de maneira incondicionada»94. A adição, por
exemplo, que no seu estado mais elementar é uma operação sobre números inteiros, torna-se
graças a este processo «indiferente aos números», podendo aplicar-se da mesma forma a
vectores, ângulos, séries, etc. É portanto a forma de uma operação que o paradigma isola, « e
isto pela introdução dum sistema de objectos que já não coincide com os objectos da intuição »95.
Aos elementos previamente considerados como únicos «reais» ou intuitivos, como era o caso dos
inteiros em aritmética, vêm juntar-se com efeito elementos ditos «ideais» mas não menos
efectivos ou concretos, enquanto resultados possíveis da operação considerada: números
imaginários, negativos, infinitesimais, etc.
Compreende-se assim que os processos de formalização e de abstracção, longe de se
exercerem em detrimento do intuitivo e do contentual, são pelo contrário geradores de novos
campos temáticos, contribuindo ao mesmo tempo para um alargamento do domínio intuitivo.
Mantém-se deste modo uma solidariedade indissolúvel entre a operação e o objecto, entre a
forma e o conteúdo, que descredita a ideia tentadora de um «formal irredutível». Como escreve
Granger, «o trabalho do pensamento cria no “paradigma” as condições de uma relação
[endógena] de forma a conteúdo»96. Se não é separando-se pura e simplesmente dos conteúdos,
mas mobilizando-os, fazendo-os variar, que uma forma deles se destaca, como poderia essa
forma subsistir em seguida por si mesma, fazer sentido, sem uma recondução iminente ao acto
que a engendra? A forma que o movimento paradigmático põe em evidência só existe portanto
enquanto «sentido actual», ou seja, «na singularidade da realização do encadeamento», mesmo
se apenas reclama essa singularidade na sua indeterminação. Visando de maneira crítica um
formalismo radical que ele crê encontrar já em Leibniz, e mais seguramente em Carnap e Von
Neumann, Cavaillès escreve que a forma não encerra o sentido mas «libera-o», imprime-lhe um
movimento autónomo, fá-lo emergir da indefinida variabilidade dos seus conteúdos e da
polivalência das operações em que se insere. Com efeito, a identificação duma pluralidade de
formas não constitui senão o primeiro momento do processo de formalização, que exige além
disso a integração dessas formas num sistema de regras.
É aqui que intervém o momento «vertical» do processo, que Cavaillès descreve a partir
da noção husserliana de tematização, entendida como a «transformação de uma operação em

91
Para uma compreensão aprofundada da importância destes trabalhos, veja-se H. Sinaceur, Corps et modèles, Paris,
Vrin, 1991, 2ª parte.
92
A análise do par conceptual paradigma-tematização é recorrente na obra de Cavaillès, se bem que apenas tenha
merecido um aprofundamento significativo na segunda parte de Sur la logique et la théorie de la science, p. 27-33.
93
Sur la logique et la théorie de la science, p. 27.
94
« Réflexions sur le fondement des mathématiques », in : Jean Cavaillès, Oeuvres complètes, op. cit., p. 579.
95
La pensée mathématique, p. 602.
96
Granger, Pour la connaissance philosophique, Paris, Odile Jacob, 1988, cap. 3, p. 74.
elemento de um campo operatório superior»97. Se o paradigma põe a nu a forma da operação ao
neutralizar os seus conteúdos variáveis, a tematização permite que «os gestos realizados sobre
um modelo ou um campo de indivíduos possam, por seu turno, ser considerados como indivíduos
sobre os quais o matemático trabalhará, encarando-os como um novo campo»98. Por outras
palavras, a forma isolada pelo movimento longitudinal deixa manipular-se como conteúdo do
ponto de vista do movimento vertical. Porém, «tematizar» não significa simplesmente explicitar
de maneira reflexiva o processo de criação da forma; trata-se mais precisamente de «partir da
maneira de criar para fornecer o seu princípio»99. Retomando o exemplo sugestivo da adição,
pode-se dizer que a actividade tematizante consistiria aqui a considerar a forma dessa operação
como sendo ela mesma susceptível de variação, de modo a determinar reflexivamente as regras
do seu funcionamento: leis de comutatividade e de associatividade, existência de um elemento
neutro, distributividade de uma operação relativamente a outra, etc. Ao tomar a forma como um
novo objecto - um objecto-operação liberado do seu contexto primitivo -, a tematização conduz à
criação de sistemas de regras cada vez mais ricos, que desemboca por fim na constituição de uma
unidade superior axiomaticamente articulada, que Cavaillès denomina «objecto-teoria» (como
para sugerir que mesmo a esse nível não há hipostase possível, apenas constelações provisórias).
Quer o paradigma quer a tematização testemunham dessa «fuga indefinida em direcção ao
sentido»100, da maneira como este prolifera em matemática, algures entre o conteúdo e a forma,
entre o intuitivo e o abstracto, entre o objecto e a operação, ou melhor, no movimento que leva
de um pólo a outro, sem jamais se reificar.

10. INTUIÇÃO E CONCEITO

Granger traça um paralelismo interessante entre o par conceptual paradigma-tematização


e a distinção que Tarski opera entre sintaxe e semântica, segundo o qual «a sintaxe de uma língua
natural corresponderia à análise tematizante, a semântica à análise paradigmática»101. E é talvez
um facto significativo que, na economia do seu último livro, Cavaillès tenha procedido a uma
análise crítica dos então recentes trabalhos de Tarski logo após a elucidação dessas noções102.
Como quer que seja, é na reflexão de Husserl que nos parece residir a verdadeira filiação desse
tema. Quanto à tematização e à noção correlativa de «campo temático», o próprio autor diz
retomá-las no sentido em que Husserl as entendia, ele que aliás já havia assinalado o quanto elas
constituem «sólida tradição»103 em matemática. E como não reconhecer na descrição do processo
de «paradigma» certos traços do método de variação eidética, ou mesmo do processo de
«abstracção formalizante»104 descrito na terceira das Investigações Lógicas?
Ora, essa semelhança parece ser significativa: por um lado, quer Husserl quer Cavaillès
se aplicam a descrever as modalidades de um mesmo fenómeno - o movimento de formalização
e de axiomatização que se acelerou de forma inédita a partir da segunda metade do século XIX -;
por outro lado, ambos procuram restabelecer o vínculo entre as formações resultantes desse
processo, manifestamente abstractas, desencarnadas, e o mundo sensível. Como escreve

97
Méthode axiomatique et formalisme, p. 177.
98
La pensée mathématique, p. 602.
99
Sur la logique et la théorie de la science, p. 30.
100
Id., p. 28.
101
Granger, Essai d’une philosophie du style, Paris, Armand Colin, 1968, p. 130.
102
Essa análise não deixa de salientar o duplo mérito de Tarski que, ao invés de Carnap na Sintaxe, soube ter em
conta que o pensamento formal, longe de ser posição simultânea dos possíveis, permanece condicionado pelo
pensaamento efectivo ; e cujo método, por outro lado, permite um de vai-e-vem indefinido entre sintaxe e semântica
que suprime, « do ponto de vista prático », a linha de demarcação entre matemática e metamatemática (Sur la
logique et la théorie de la science, p. 36-39).
103
Husserl, FTL, § 26, p. 72.
104
Husserl, LU III, Halle, M. Niemeyer, 1913, p. 284.
Cavaillès, o interesse filosófico da noção de tematização consiste precisamente em «mostrar que
nunca cessa a ligação entre a actividade concreta do matemático desde os primeiros momentos
do seu desenvolvimento (…) e as operações mais abstractas, pois essa ligação reside sempre no
facto que o sistema de objectos considerados é um sistema de operações que, elas próprias, são
operações sobre outras operações que, por fim, reenviam a objectos concretos»105.
No entanto, ao contrário de Husserl, Cavaillès não vê na inflação da abstracção uma
ameaça de sedimentação de um suposto sentido primitivo ou de uma correlativa «intuição
original»106. Qualquer que seja o grau de complexidade do sistema de objectos considerado,
existe sempre segundo Cavaillès um «domínio intuitivo»107 que lhe é correlativo e cujo grau de
evidência não é de forma alguma atenuado pela distância que o separa do domínio precedente:
«as operações são complicações de operações do domínio primitivo; mas, quando já só nelas se
considera o que concerne unicamente as suas propriedades, elas engendram novos actos
intuitivos concretos»108. Por outras palavras, aquilo que a dado momento da história da
matemática é encarado como «evidente» varia em função dos processos de construção existentes,
na medida em que «existe em cada momento um critério de evidência condicionado pelo próprio
método»109. Não é por acaso que, por exemplo, os números que constituíam à partida o domínio
intuitivo da aritmética foram designados como «naturais» e que as outras classes de números
ulteriormente entronizadas herdaram uma nomenclatura que é já por si sintomática do conflito
que causou a sua introdução na intuitividade previamente instituída: números ditos «irracionais»,
«imaginários», «ideais», «transcendentes», etc. Outro exemplo disso é o nascimento da teoria das
funções recursivas, desenvolvida por Herbrand, Church, Kleene e Gödel nos anos 1930, que
inaugura um novo campo intuitivo na medida em que «exige uma intuição mais complexa»110
que a requerida pela aritmética elementar. Quer isto dizer que a intuição, à imagem dos
conceitos, é também ela susceptível de evoluir, de se transformar, de se estratificar em graus de
complexidade e de alargar o seu campo de aplicação: «a evidência não se deixa prescrever de
uma vez por todas, mas revela-se sempre num modo de novidade radical»111. Sendo assim, não é
somente o estatuto da intuição, mas também e sobretudo os termos da própria relação entre a
actividade intuitiva e a actividade conceptual que deverão ser profundamente reformulados.
É noutro texto póstumo, o artigo «Transfinito e contínuo», que Cavaillès resolve este
problema. O seu ponto de partida é uma crítica do estatuto da intuição. Tradicionalmente, a
intuição é quase sempre encarada como uma apreensão de objectos dados ou construídos nela.
Supõe-se portanto um sujeito face aos objectos ou face às representações de onde ele induz as
suas propriedades. A intuição seria neste sentido a instância intermediária, como que o palco
desse face-a-face, o plano supostamente primitivo de um processo de conhecimento que visa
transformar a intuição confusa num conceito exacto. É por isso que a elucidação do estatuto da
intuição reenvia na maior parte dos casos a uma análise da subjectividade: cogito cartesiano,
juízo sintético a priori em Kant, que se reencontra aliás em Poincaré, acto introspectivo da mente
em Brouwer, livre criação da mente em Dedekind, ou ainda preenchimento das intenções de
significação em Husserl. De uma forma ou de outra, a intuição manifesta portanto a
espontaneidade do sujeito em presença do objecto em questão, apresentando-se neste sentido
como o índice de uma actividade subjectiva.
Ora, ao invés da tradição, Cavaillès considera a intuição como o índice da objectividade:
ela não é manifestação da consciência, mas «manifestação para a consciência empírica duma
independência relativa dos métodos e das teorias, permitindo elaborações autónomas que

105
La pensée mathématique, p. 602.
106
Husserl, Krisis…, op.cit., cap. II, 9-l.
107
« Réflexions sur le fondement des mathématiques », in : Oeuvres complètes, op. cit., p. 579
108
Ibid.
109
« La pensée mathématique », p. 595.
110
« Transfini et continu », op. cit., p. 273.
111
Sur la logique et la théorie de la science, p. 63.
provocam pelos seus resultados encontros e derrubamentos»112. Analisando essa afirmação,
compreende-se que 1) a intuição revela a autonomia das formações científicas relativamente à
nossa subjectividade e que 2) essa intuição não é nem «pura», nem «intelectual», nem
«categorial», mas simplesmente a intuição contingente duma consciência empírica. Mais
precisamente, é à «intuição do matemático em plena actividade que adivinha de que lado deve
investigar»113 que Cavaillès se refere. Assim entendida, a intuição não se comporta nem como a
instância fornecedora nem como o receptáculo dos objectos, mas antes como a marca da
autonomia destes em relação à nossa intervenção contingente; testemunhando desse «milagre
extraordinário» que resulta do facto que independentemente do que se considera como
«evidente» a dado momento, independentemente da contingência associada ao trabalho efectivo
do matemático, surgem problemas cujas soluções conduzem a novas formações segundo um
movimento necessário: «o matemático histórico, contingente, pode parar, estar cansado, mas a
exigência de um problema impõe o gesto que o resolverá»114.
Mas como é isso possível, como pode uma intuição contingente manifestar a necessidade
intrínseca ao devir conceptual? Além do mais, se os objectos não são entidades imutáveis mas
conceitos em permanente evolução, a que se poderá concretamente aplicar a intuição? Cavaillès
não hesita em afirmar que é às próprias estruturas do conhecimento, enquanto estruturas em
movimento, que se aplica verdadeiramente o acto de intuir. A intuição não é passividade perante
um certo dado, nem «contemplação de um todo, mas apreensão, no próprio exercício do acto
pensante, das condições que o tornam possível»115. É por isso que a multiplicidade não se
encontra somente à partida, dada de uma vez por todas sob forma de um «diverso», como
pretendia Kant, mas renova-se a cada momento, correlativamente ao progresso conceptual. Com
efeito, a ideia de uma síntese unificando na intuição pura um diverso exterior aos conceitos do
entendimento permite apenas «submeter essa exterioridade à unidade, sem a abolir como tal»116.
Mas essa exterioridade não pode caracterizar os objectos matemáticos, que são objectos de
pensamento. É portanto necessário que o processo de síntese, que está na origem de cada nova
entidade e de cada novo método de construção, «seja ele próprio definido como regra, isto é,
unidade racional de uma certa multiplicidade»117. Na regra dissolve-se, pois, a oposição entre
intuição e conceito. Como põe em evidência o duplo processo de idealização e de tematização,
por um lado, são os conceitos que determinam a um dado momento o campo de possibilidades da
intuição mas, por outro lado, os próprios conceitos podem por sua vez tornar-se objectos da
intuição, submeter-se ao «princípio de variação interna»118 que neles permite isolar novas
relações de dependência objectiva. Assim, não sendo a síntese exterior ao sintetizado, intuição e
conceito reúnem-se, são relativos um ao outro, progridem de maneira paralela: «A intuição na
sua essência progride paralelamente ao encadeamento dialéctico dos conceitos»119. Do mesmo
modo, cai por terra a oposição entre forma e conteúdo, já que formalizar, obter uma forma, não
significa eliminar a intuição, mas fazê-la variar, tomar a virtualidade dos seus conteúdos como
germe de uma relação invariante, de uma analogia ou de uma generalização. Poderá então falar-
se sem paradoxo de «intuição abstracta»120, como faz Cavaillès a respeito da axiomática
hilbertiana, ou mesmo de «conteúdo formal»121, como faz Granger no seu seguimento.
Mas relembremos para concluir o carácter inacabado desta reflexão, tragicamente
interrompida pelas balas do nazismo. É certo que, como escreve o seu comentador mais
112
« Transfini et continu », p. 273, sublinhado por nós.
113
« La pensée mathématique », p. 601.
114
Id., p. 627.
115
Méthode axiomatique et formalisme, p. 27.
116
« Transfini et continu », p. 270.
117
Id., p. 272.
118
Sur la logique et la théorie de la science, p. 27.
119
Ibid.: « L’intuition dans sa quiddité progresse parallèlement à l’enchaînement dialectique des concepts ».
120
« Mathématiques et formalisme », in: op. cit., p. 663.
121
Cf. G.-G. Granger, Formes, opérations, objets, Paris, Vrin, 1994, cap. 2.
consequente, «ao substituir o conceito ao sujeito e o dinamismo do conceito à problemática
sujeito-objecto, Cavaillès modificou de forma radical o paradigma tradicional do
conhecimento»122. Mas inúmeras questões permanecem por esclarecer, e nomeadamente os
termos exactos dessa «relação entre a superposição intuitiva e a dialéctica conceptual»123 que
constitui sem dúvida o aspecto fundamental da filosofia do conceito. Tentámos apenas
reconstituir uma das silhuetas possíveis desta última, aquela que deve à sombra de Husserl
alguns dos seus contornos, mas muitas outras se poderão perfilar, sob condição que se encare a
reflexão de Cavaillès sobre a ciência do mesmo modo que ele encarava a própria ciência:
«compreendê-la é apreender o seu gesto e poder continuá-lo»124.

122
Sinaceur, Jean Cavaillès. Philosophie mathématique, Paris, PUF, 1994, p. 124.
123
« Transfini et continu », p. 273.
124
Méthode axiomatique et formalisme, p. 178.

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