Você está na página 1de 292

-

UNIVERSIDAIIEFEDERAL DA PARAÍBA
UNIVEHSIDAIIE FICDEHAL DE CAMPINA GRANDE
- ZENTBO IIE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CENTRO DE HUMANIIIADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

BIBLIUTECA CENTRAL I UFPB

Os Potiguara da Baía da Traição e Montea-Mór:


história, etnicidade e cultura
C

ICstêvão Martins Palitot

.1f V:!t
Os Potiguara da Baía da TraiçTio~eMonte-Mór: i-..:

história, etnicidade e cultura i

Dissertação apresentada a Coordenação do Programa


de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Federal da Paraíba e Universidade Federal de
Campina Grande, em cumprimento as exigências
curriculares para a obtenção do grau de Mestre em
Sociologia, sob a orientação do Prof Dr.
,'
Rodrigo d e
Azeredo Grünewald.

JOÃO PESSOA - PB
2005
Palitot, Estevao Martins
Os Potiguara da Baía da Traiçao e Monte-M6r: História,
Etnicidade e Cultura 1 Estêvao Martins Palitot. Joao Pessoa,
2005.
270 p.: il.
Orientador: Rodrigo de Azeredo Grunewald
Dissertaçao (Mestrado-Programa de P6s-Grafluaç%o em
SqCiologia) Universidade Federal da Paralbal Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal de
Campina GrandelCentro de Humanidades

1. Antropologia Cultural
2. lndios Potiguara - situações hist6ricas.3. Etnicidade.

LIFPBIBC. CDU 39(043)2. ed.


, -
Estêvão Martins Palitot

Os Potiguara da Baía da Traição e Monte-Mór: história,


etnicidade e cultura
.,..... ,
'.i7
.:
. . 3 .-+,;:.j
. 'I.

. '*..{
Disseriação aprovada em de fevereiro de 2005 ..+ I

BANCA EXAMINADORA' ':': . .


. .

d'
/

Prof Dr. Rodrigo de Azeredo Grünewald ,


'
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPBIUFCG ,

(orientador)

: .
r. Marcos Avala

/
Programa de Pós-G addação em ~ o c i ó l o ~-i aU F P B m C G
(examinador)
-

Universidade de Pernambuco
Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia/L'F?E
(examinadora)
Para Julieta. Cristiane e Caiiã

Ein iiieirióiia dos caciques D;:iningos Barbosa c Valdemar Paulo


AGRADECIMENTOS

A Deus e aos Encantos de Luz, por me permitirem chegar até os Potiguara.

A Julieta Carvalho Martins, mãe zelosa e carinhosa.

A Cristiane Pereira de Sousa, companheira amada.

A Cauã Pereira Palitot, filho de luz, com nome de índio e pássaro.

A minhas tias Juracy, Nildes e Naury apoio essencial em toda a minha vida
acadêmica.

A Alexandre Palitot, Karinny e Clara, irmão, cunhada e sobrinha.

A orientação e amizade do professor Rodrigo Gninewald, de fundame~ital

importância na minha formação antropológica, no decorrer dos cursos do mestrado e na

confecção desta dissertação. Pela sinceridade ao longo desse caminho, pelo apoio e pela

liberdade de reflexão e escrita.

A incrível paixão da professora Neta Trigueiro, fundadora do nosso grupo de

trabalho indígena e a disposição de seu esposo, prof. João de Lima; ao incansável espírito

combativo de José Ciriaco Sobrinho, mais conhecido como capitão, índio Potiguara.

funciotiirio da UFPB e fundador do GT Indígena; a dedicação e confiança que Chico

Holanda, Helena Serrano e os demais técnicos do SEAMPO de~ositamem nossa equipe; a

disposição de Seu Eutalicio Diniz e dos demais motoristas que nos conduziram as aldeias;

ao entusiasmo dos colegas: Femando, Kelly, Hosana, Mima, Gretha, Luciana, Daniele,

Júnia, Ádria, Erik, Meire, Laerte, Suelita, Jeane, Oade e Roberta. Em aspecial, Fernando,
Mirna e Kelly que, além de amigos, dividiram muito das inquietações da pesquisa e leram
4

com atenção uma das versões do trabalho sugerindo, criticando e corigindo a gramática

que meus olhos cansados d tela e do teclado desapercebiam.

Ao professor Carlos Guilherme do Valle, pelo acompanhamento e proficua

interlocução ao longo desta pesquisa.

A professora Vânia Fialho, da LJPE por acompanhar minha trajetória acadêmica e

participar da segunda banca para qual eu a convido.

Ao professor Marcos Ayala, que, desde a graduação, vem contribuindo

enormemente na minha formação enquanto cientista social e por aceitar participar da banca

deste trabalho.

Ao amigo Lusival Barcellos, pesquisador incansável e homem de grande nobreza,

que dividiu muitas horas de campo e de reflexão comigo.

Aos professores que sempre me estimularam, orientaram as pesquisas e os escritos

em sala de aula, na graduação e no mestrado: Adriano de León, Otilia Storni, Simone

Maldonado, Maristela Andrade, Artur Permsi, Carmela Buonfiglio, Paulo de Tarso,


,'

Andrea Ciacchi, Teny Mulhall, Jacob Carlos Lima, Mauro Koury, Gervásio Aranha, Fábio

Gutemberg e Maria Ignez Novais Ayala.

Aos fUncionários do PPGS: Nancy, Agamenon e Sandra e a Vera, que cuida com

tanto carinho do SEAMPO.

A professora Tereza Baumann, pelas longas conversas e pelo acesso ao 'waterial

que coligiu para o seu famoso relatório sobre as tenas Potiguara.

A Sonia, Sheila. Roseli e as funcionárias da biblioteca do Museu do Índio.

A amizade dos colegas Marcos Alexandre e Elói Magalhães da UFCG.

A Edson Silva, professor da Universidade Federal de Pernambuco.


.+
Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Sociologia em João Pessoa e

Criiiipiiiri Grriiide: Marcos Alcxriiidi-c, Cririhy Dantas, Diracy, Patrícia, Jucieude, Gérson.

Madian, Cleomar, Josinaldo, Jomário (in memorian), Edisio, Vanusa, Valmir (Gamela)

Finalmente, mas de importância fundamental para tudo o que fiz até Iioje, agi-adcço

enormemente aos índios Potiguara, a amizade de Capitão, Caboquinho e lolanda. bem

como das suas respectivas famílias. A Vado, Dede, Neguinho, Bel, Si, Tonhô, Luís do

Cumani, Cecília, Seu Antônio Gomes, D. Maria Gomes, D Nancy Cassiano, Lena, D. Lia,

D. Luíza, D. Antônia, D Joana, Raké, Zé Máximo, Quinda, Aníbal, Adaílton, Seu Antônio

Cândido, Lourdes, Fátima, D. Zita, Sandro, Jurandir, Peilro, Josafá, Zuleide, leda,

Edileuza, Zito, Suru, Luís e muitos outros e outras que tornariam esta lista imensa demais.
RESUMO

Esta dissertação de mestrado volta-se para a interpretação das situações históricas

vivenciadas pelo povo indígena Potiguara. habitante do litoral norte da Paraiba. A

elaboração das fronteiras étnicas, a produção cultural, os processos de territorialização e as

formas de organização social deste povo são analisados a luz da constituição de um campo

intersocietário delimitado pela presença histórica de diversas agências de contato,

notadamente grupos agroindustriais, industriais e órgãos de Estado voltados para a

implantação de políticas indigenistas. Nossa reflexão concentra-se no carát,er relaciona1 e

na interação entre os Potiguara e'os segmentos da sociedade nacional com que estão em

contato. Desse modo, inicialmente, tratamos dos modos como os Potiguara são pensados
/

. .
pela sociedade paraibana, para então traçarmos a trajetória histórica de suas formas de

organização social e, ao fim, mostraimos como, através, destes piocessos os índios '

representam para si e para a sociedade envolvente a sua especificidade étnica e cultural.

Palavras-chave: índios Potiguara; situações históricas; etnicidade; cultura.


ABSTRACT BIBLITTECA CENTRAL I UFPB

This thesis concerns to ar1 interpretation of the historical situations lived by the

Potiguara Indian people, inhabitant of the north cost of Paraíba-Brazil. The elaboration of

ethnic boundaries, the cultural production, the land occupation processes and the social

organization are analyzed accordiiig to the constitution of an inter-social field tletermined

by the historical presence of severa1 agencies, generally groups of agro industries.

industriais and the govemment that work to implant Indian policy. Our reflection is

concentrated on the relatiopal aspect and on interaction among the Potig~araIndians and

the local society. In this way, w j studied how the society of ~a;aíba~onsiders~tlie
Indians.

jin order to draw a historical line of their social organization. Finally, we show how the
'I

lndians represent thei; ethnic and cultural :specification to themselves and tia the local
0

society through such processes.

Key Words: Potiguara Indians, Historical Situations, Ethnicity, Culture.


1.1. A busca pelo mito de origem .................................................................................. 001
1.2. As representaqões sobre os Potiguara .................................................................... 003
1.3. As impossibilidades de uma etnohistória............................................................ 008
1.4. Ao longo da história: os Potiguara do séculos XVI ao XIX ................................. 013
1.5. Iconografia ............................................................................................................... 031

.
2 CAPÍTULO
DOIS .BAJA DA TRAIÇÃO: OS POTIGUARA E O ORGÃO
INDIGENISTA OFICIAl. (SPJIFUNAI)........................................................................... 037

2.1. O poder tutelar e a disputa pelo controle de recursos


... .......................................... 04'1
2.2. 0 conflito como dinamica social ............................................................................. 046
2.3. A demarcaqão das terras iridigenas ....................................................................... 058
2.4. Etnicidade nunra perspectiva organizacional e histórica ..................................... 063
2.5. As lideranqas indígenas ................................................. ........................................ 074
2.6. As retóricas da mistura.! ....................................................... ...........2............. 085
2.7. Iconografia ............................ ................................................................................ 090
3. C A P ~ T U L OTRÊS.- MONTEMÓR: 9s POTIGUARA E ACOMPANHIA DE
TECIDOS RIO TINT'O.....................................................................................................
.......
096
..
3.1. O "Tentpo cln Amorusn": o regime de terror da Companhia .............................. 098,.
3.2. Mudanças no campo: sai a Companhia, entram as usinas.................................. 110'
3.3. Jaraguá e o comeqo da luta pela terra ................................................................... 121
3.4. A difícil inclusão da Vila Monte-Mór .................................................................... 129
. .
3.5. A "nova aldeia de Tres Rios..................................................................................134
9,

. .
3.6. A guisa de analise......................................................................................................
v
143
1-

3.7. Iconografia ............................................................................................... .............. 149

4.CAP~TULO. QUATRO . TLIPI OU NOT 'I'UPI? A CULTURA POT.IGUARA EM


QUESTAO ............................................................................................................................. 171
. .
4.1. O toré. a língua tupi e a escola indigena .............................................................. 173
4.2. As comemoraqões do Dia do Iridio .................................................................... 179
. . .
4.3. Sobre cultura. tradiqao e invenqáo....................................................................... 192
4.4. Iconografia .............................................................................................................. 201
.
5.CONSJDERAÇOES FINAIS...........................................................................................
nnn
LVY
Sou Tupã, sou Tupã, sou ~ o t i ~ u a r a .
Sou Potiguara nesta terra de Tupã,
Tenho arara, craúna e xexéu.
Todos os pássaros dlo céu,
Quem me deu foi Tupã,
Foi tupã, sou tupã, sou Potiguara.
INTRODUÇÃO

Imagine-se o leitor, sozinho, numa das praias tropicais da Baía da Traição. O que

você faria? Pegaria sua prancha de surf e enfrentaria as ondas do Tambá e Jerimum?

Pularia carnaval na praça, em meio a multidão de veranistas que invade a cidade? Iria até o
-
alto do Forte conhecer os canhões de ferro fundido da época colonial e tirar fotos da bela

vista que se tem da Baia? Coniprai-ia quilos de peixe e camarão fresco e faria aquele
'.
almoço? Subiria
"'
a ladeira da Vila São MigUèI e pagaria promessas ao santo, acendendo

caixas e mais caixas de velas? Visitaria a aldeia São Francisco, no dia do índio, para ver Ó
I
ritual do tÒré e comprar: artesanato? Não importa qual atividade você escolha fazer, em

qualquer uma delas, com certeza você vai cruzar com algum índio potiguara: surfando,

pescando, dançando, pagando promessas ou comprando artesanato. Eles estão presentes

em qualquer lugar do municipio da Baia da Traição, assim como em Marcação. Formam

mais da metade da população dessas duas cidades. Em Rio Tinto, também são uma parcela

importante dos habitantes. Nesses três municípios, e na vizinha Mamanguape, os :Potiguara

desempenham um papel fundamental na constituição da população, na ocupação territorial

e na história, do passado até os dias atuais e futuros.

6 sobre a história, a organização social e a cultura desse povo que esta dissertação
se debruça, tentando contribuir com u m novo ponto de vista sobre estes índios e sobre o

universo de relações sociais e culturais em que eles vivem. Nossa proposta é apresentar os

Potigirara enquanto uma popiilação etnicariientc organizada e inserida num campo


intersocietario que fornece os meios e os símbolos para a ação social, a constituição de

grupos e a atualização das froiiieii-as étnicas. Campo este que é definido pela própria

participação dos atores e agências e pelo desenvolvimento dos fluxos de idéias, i.ecursos e

estratégias postos em ação.

QUEM S A Ó O S PO'I'[C;IJARA1?

-3 Atualmente, os Potiguara são o único povo indígena oficialmente reconliecido no

---
-~
estado da Paraíba. Sua população gira em torno de 10 837-= pessoas', sendo uma das

maiores do Brasil e a maior do nordeste etnográfico2. Estão distribuídos em 26 aldeias e


-.--_---.-- -

-
.-- I

--
I
migratórios também levaram confi~i~entes
-:--
nas &eas urbanas dos municípios de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto. Processos
-- - -:-
significativos dos Potiguara a habitarem cidades
--

como Mamanguape, João Pessoa e 'mesmo u Rio de Janeiro. Outros locais im~orlantesnas
1 . ...
I

suas rotas migratórias são as cidades de Cabedelo (PB), Canguaretama e Vila ,Flor, estas .
duas últimas no Rio Grande do Norte.

No contexto organizacional contemporâneo dos Potiguara, os povoados que são


'- ..

- - L , - - . --
considerados aldeias são aqueles que possuem um líder ou representante, geralmente
-
,

chamado de cacique,
-- não importando necessariamente a quantidade de pessoas que

1
Este nuinero foi obtido por riiirn a partir do cruminenlo de dados dernográficos da FUNAJ e do Distrito
Sanitário Especial Indígena, o DSEI Poligiiiira da FUNASA.
2
FS!C lenno dcsigria a regi50 coinprcciidids 1x10s cslados do Ccará. Paraiba. Periiainbuco. Alagoas, Scrgipc
e Baliia (Norte e Oeste) onde vivcm riiais de 40 grupos étnicos indigcnas cuja longa Iiistória dc contato,
rclaçõcs com o csiado e a própria produçio antropológica sobre esses povos. Ilics confcrcrn caractcríslicas
particulares que nos permitem agrupá-los crn um conjunto relativamente definido. Para mais iiifonnaçõen s
algumas anhliscs sobre essa árca ciiiográíica. inclusive os iiiodos atravb dos qiiais foi pcnsada vc.i?l-sc
Galvão (1 19591, 1979). Ribeiro (1986). Dantas. Carvalho c Saiiipaio (1992). Mclatti (1997). Oliveira (2004) c
Sclicttino (2003).
habitem estes povoa dos^ As aldeias potiguara são: Forte, Galego, Lagoa do Mato,
Cumani, São Francisco, Vila São Miguel, Laranjeiras, Santa Rita, Tracoeira, Bento, Silva,

~cajutibiró~,
Jaraguá, Silva de Beléin, Vila Morite-Mi>r5,Jacaré de São Domingos, Jacaré

de César, Estiva Velha, Lagoa Grande, Gmpiúna, Brejinho, Tramataia, Camurupim,

Caieira, Nova Brasilia (Ibiquara) e Três ~ios! Além dessas aldeias existe em torno de uka

dczcna dc outros povoados que não possucin i-epi-cscrilariteolícialtnetitc i-ccoiihccidoc são

consideradas como aldeias há pouco tempo: Monte-Mór quando passou a contar com um

representante, saindo da esfera da aldeia Jaraguá e Três Rios, depois que os índios da zona

urbana de Marcação retomaram uma faixa de terras ocupadas.por canaviais e refundaram o

antigo povoado que havia no local. Já os índios que moram na Baía da Traição geralmente

recorrem aos representantes das aldeias Forte, São Miguel e Acajutibiró pela proximidade

destas com o centro da cidade.

As principais atividades ecoiiômicas desenvolvidas pelos índios são a pesca /


! s .. ..
marítima (na Baía da Traição, Cart-ynipim e Tramataia) e nos mangues (em quase todas as

aldeias), o extrativismo vegetal (mangaba, dendê, caju e batiputá), a agricultura de

subsistência (milho, feijão, mandioca, 'macaxeira, inhame, h t a s e etc.), a criação de

animais em pequena escala (galinhas, patos, cabras, bovinos, muares e cavalos), o plantio

comercial de cana-de-açúcar (geralmente em terras arrendadas para usinas), a criação de

camarões em viveiros, o assalariamento rural (principalmente nas usinas de cana) e urbano,

hincionalismo público (com destaque para as prefeituras) e as aposentadorias dos idosos.

3
Constain no anexo deste traballio quadros corn a divisão populacional dos Potiguara por aldeias e coin
sdrics deinográficascronologicaiiiente idcntiíícadas.
4
Estas no município da Baía da Traição.
Estas três ein Rio Tinto.
Estas ultiinas crn Marcação.
7
São eles Bcnfica, Sarrambi. Vau. Regina. Boa Vista. Tapuio, Carneira, Morrinho e Wova Esperança eiitre
outros.
Durante muitas décadas a economia da regiãc esteve centralizada na dinâmica da
I

Companhia de Tecidos Rio Tinto (CTRT), que contratava inúmeros trabalhadores índios e

não-índios cm suas fábricas c criava urn mcrcado coiisumidor para a produção agrícola c

pesqueira. Nos últimos anos, após a falência da CTRT, a economia da região está baseada
- . - -- . C
-
--.--- /
-
*

na exploração
-
da cana-de-açúcar, no turismo e na criação de camarões.
*.

As terras dos Potiguara ocupam um espaço de 33.757ha distribuídos em três áreas


ikontieuas, nos municípios de Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação. A Terra Indígena
--2-)

'
I
/. -

(TI) Potiguara situa-se nos três municipios e possui 21238ha, que foram dcmarcados em
-
1983 e homologados em 1991. A TI Jacaré de São Domingos tem 5.032ha nos inunicípios
-
de Marcação e Rio Tinto, cuja homologação se deu em 1993.. Por fim, a T1 Potiguara de

Monte-Mór, com 7.487 ha, em Marcação e Rio Tinto, está em processo de demarcação, em

razão de conflitos com as usinas de cana e a Companhia Rio Tinto.

O território dos Potiguara situa-se no litoral norte' da Paraiba, nas


,'
terras que
1 . .,.:.
1
... :

dividem as bacias hidrográficas,dos rios Mamanguape e Cm.uatuba.. Próximas ao mar,

suas terras têm médias pl~viométric~s


regulares e os seus rios recebem a influência das

marés que provêem ritmicamente os 'mangues e camboass com oxigênio e nutrientes

essenciais para a proliferação dos mariscos, caranguejos, camarões e peixes destes

berçários marinhos. Além dos rios Mamanguapz e Camaratuba, com seus pequenos

afluentes, destaca-se um complexo hidrográfico de rios e riachos que se complementam

nascendo e desaguando exclusivamente dentro do terrilório indígena: o riacho do"Si1va. o

rio Grupiúna, o rio da Estiva, o rio Jacaré, o rio Sinimbu e o riacho São Francisco

articulam-se num sistema que lança suas águas próximo ao estuário do rio Mamanguape,

Local, no leito dos rios. onde se reinansam as águas, que enclie coin o flriso do mare fica eiii seco coiii o
refluso.
enquanto o rio Tiiito (ou rio Verinellio) é um afluente mais interior deste rio rnaior. As

nascentes desses cursos d'água localizam-se quase sempre nos terrenos chamados de

tcihrrlciro, nas partcs mais altas oiide os índices de pluviosidadc são menores, eiiquanto as

partes baixas dc seus cursos ficam em terrenos alagadiços denominados depalíl.

A cobertura vegetal origiiiária deste complexo ecológico é marcada por uma

variedade de biomas, associados a tipos de solos, índices de pluviosidade e proximidade

com mar que incluem formaçõcs de restinga, manguezais, terrenos alasados, mata

atlântica, e caatingas litorâneas. Nos terrenos próximos ao mar e com solos areiiosos com

alto índice de salinidade destacam-se as formações de restinga com uina vegetação rala e

açoitada pelos ventos. Ao longo dos estuários dos rios e por extensões consideráveis de

seus cursos encontram-se os manguezais com solos sedimentares e inundáveis de acordo

com os ciclos das marés. Árvores esguias, retorcidas e de raízes aérzas compõem a O

paisagem onde se reproduzem os caranguejos, siris, goiamuns, aratus, camarões e peixes.

Os cursos mais altos dos rios que recebem menos influência das marés apresentam uin
'I

resime de cheias e vazantes sazonais que permitem a agricultura com bons resultados nos

terrenos das margens. As áreas de encosta e do topo dos tabuleiros são favorecidas pela

pluviosidade e abrigam formações florestais da mata atlântica que, no entanto, possuem

solos pobres. Nas áreas de tabuleiros mais altas e distanciadas do mar encontram-se

formações de "campos sujos" e caatingas litorâneas entremeadas pelas fonnaç8es naturais

de mangabeiras e cajueiros, espécies muito disseminadas na região.

Longe de ser um quadro natural e intocado, este meio ambiente é

afetado pela mão humana, desde muito tempo. O conhecimento dos Potiguara sobre este

meio e seus recursos naturais, em si mesmo, já é o resultado do acumulado de experiências


de séculos de ocupação deste espaço. Suas categorias ecológicas e agrícolas revclarn uma

longa intimidade com os solos, as águas, a cobertura vegetal e os animais, assim como as

vánas histórias sobrc a í70ntnJt.c l+i~k)zitthn,


o l'ai do A4nttg11c. e a Mfie I.)'LI~IILI,
I

representam as entidades protetoras da natureza e metsf~r-izama necessidade do uso

racional e tião prcdalório das iriaias, iiiaiigues c tios, sob a arncaça de tabus e I-cpreshlias

sobrenaturais.

Entre os principais espaços produtivos vamos encontrar os yuir~laisou terreiros, os

sifios, os rogados, o ntafo e o marrgtIe. Os q~ritlfaissão as áreas ao redor das casas onde

criam pequenos animais e cultivam plantas medicinais e temperos, fruteiras e

ocasionalmente lavouras. Os quintais de grandes dimensões são denominados de sifios e

apresentam concentrações de fmteiras como mangueiras, jaqueiras e coqueiros, cujos

frutos costumam ser comercializados. Geralmente, os sítios são formados pela proximidade

de casas de parentes de duas ou mais gerações. Nos rogados cultivam basicamente a

mandioca, a macaxeira, o feijão e o milho, além do jerimum, da melancia e defmtas como

a banana e o mamão. Da mandioca retiram sua base alimentar e,econômica, através da

produção de farinha, de beiju e tapioca, sendo a primeira comercializada nas feiras da

região. O inhame é um cultivo mais recente e quase sempre tem sua produção direcionaba

para a comercialização e menos para o consumo doméstico. O muro constitui as áreas mais

ou menos livres da ocupação humana de onde são retirados importantes recwisos de

subsistência como a madeira para lenha, fabricação de carvão e construção, a palha para o

artesanato, a caça e a coleta de mançaba, batiputá, dendê, caju e castanha. Diferentemente

dos quintais, sítios e roçados, que são apropriados de fomii familiar, o ma10 é uma área de .'

uso comum, cujos recursos são aproveitados por todos de forma indistinta. Outra. área de
uso comum muito iiiiportarilc é o ntcrriK/re de oiide retiram a sua maior fonte de proteínas

através da pesca de peixes e camaraes e da coleta de caranguejos e mariscos (Peres. 2004)

Esta forma de utilização dos i.ecursos naturais e de reprodução dos grupos

domésticos encontra-se hoje profundamente alterada pela exploração madeireira das

décadas passadas e pelo cultivo atual de cana-de-açúcar que ocupa os melhores tratos

agrícolas, sej'am em terras diretainente ocupadas pelas usinas e plantadores de cana. como

em Jaraguá, Marcação, Nova Brasília, Vila Monte-Mór e Jacaré de São Domingos, sejam

em terras arrendadas pelos índios, como em São Francisco, Galego, Jacaré de C'ésar,

Brejiiiho, Estiva Velha e Lagoa Graiide. Desse modo, os espaços que sobra111 para a

agricultura familiar são aqueles representados pelas áreas restantes de mato (compostas em

sua maior parte por capoeiras) e pelo mangue, cujos recursos vão sendo exauridos pela

sobre-exploração e têm sua capacidade de reposição ameaçadas pelo desmatamento das

encostas e nascentes.

Alem disso, os manguezais sofrem com os esgotos das cidades e os efluerites das

usinas de cana da região que despejam sazonalmente a calda (vinhoto) nos rios, matando a

fauna estuarina e prejudicando diretamente a população das aldeias de Jaraguá, Monte-

Mór, Três Rios, Brejinho, Tramataia, Camurupim e Cumaru. Uma outra atividade que vem

exercendo enorme impacto sobre essas áreas e o cultivo de camarões em viveiros

construídos dentro do mangue, devastando a vegetação e degradando a qualidade das

águas. Estes empreendimentos são financiados por empresas de fora da região e incidem

diretamente na Área de Proteção Ambienta1 do Rio Mamanguape, que é sobreposta a parte

das terras indígenas.


A rc dos I'otiguai-a c dispulada por divei-sasigrcjas crislãs - Católica, natisla, Betel

e Assembléia de Deus - e por sistcinas de crenças espirituais articulados em torno dos

cultos afio-brasileiros regionais como a Umbanda e a Jurema Sagrada, tratados

pcjorativamcntc como macumba ou caiimbó O catolicismo c a religião organizada mais

antiga entre os Potiguara, remontando ao período colonial e fonte dos sínlbolos ctnicos,

históricos e territoriais reprcsentados pclas vclhas igrcjas dc IVossa Scnhora dos Pr-azcrcs e

São Miguel com seus oragos e feslas anuais. Cada aldeia possui sua capela e seu santo

padroeiro, em honra do qual se celebi-amnoverias que são momentos de encontro e aliaiiça


I
entre as comunidades. Nos últimos anos têm crescido a atuação de missionários católicos

ligados ao Movimento Carismático, o que tem modificado as feições tradicionais do

catolicismo Potiguara. As chamadas igrejas evangélicas ou de c:entes estão presentes na

área desde a década de 1960 (Vieira, 1999) sendo as mais atuantes a Betel, a Batista e a

Assembléia de Deus. Várias aldeias dispõem de templos para a realização dos cultos e é

constante a movimentação de pastores nas terras indígenas"

BIBLIOTECA CENTRAL I UFPB


Os umbandistas e juremeiros são alvo de muitos estigmas, sendo acusados de

feitiçaria. Sua presciiça e atuação são discretas, embora existam alguns terreiros e

oficiantes publicamente conhecidos residindo nas aldeias. Na Vila Monte-Mói- há um

centro e:ipírita kardecista dirigido por um casal formado por uma índia e um não-índio. Em

interação com este universo multifacetado, mas invisibilizados, existem iiiumeros

rezadores e rezadeiras que curam males físicos e espirituais e se vinculam as práticas mais

tradicionais do catolicismo. É com discrição que a maioria dos índios mencionam o contato

com aqueles que consideram como os espíritos dos antepassados durante o ritual do teri C

Ainda no século XVII. os índios do litoral nordesiino fora111alvo da caieqiiese calvinista dc prcdicanlcs
tiolandescs. Pordm. findo o domínio flaincrigo. o medo de reprcsalias dos poríugucscs fcz COIII qiic iriilitos
dcsics indios se rcfugiasscin na scrra da Ibiapaba. quc à Cpoca ainda não cra controlada pcla coloni7*7ç8o
poríuguesa, de onde pediram socorro à Holanda. mas não foram alcndidos (cf. Mello, 1978).
outros. Contudo, afirmam que este tipo de contato é real e que seus antepassados ainda

hoje estão presentes nas matas e íiii-lias da região. Que os matos, mangues e as águas são

habitados por entidades que Ihes protegem e que os cahocos ilelhos tinham a faculdade de

conversar com csscs scrcs.

Em termos organizativos, a distribuição do poder de decisão e de representação se

dá a partir 'dos grupos de famílias extensas, que geralmente estão alocadas em aldeias

próximas umas as outras. Cada aldcia possui um caciqtre ou repre.sen/ai~fe


que media as

relações da comunidade com os órgãos oficiais (FUNAI, FUNASA, prefeituras etc.) e

comerciais (usinas, guias de turisino, ci-iadorcs de cai~iarãoetc.) c resolvc pequenos

problemas da localidade. Além desses representantes locais existe um cacigzre-geral, que

representa o grupo como um todo, principalmente perante os órgãos oficiais e a Justiça.

Esses cargos são resultado das adaptações realizadas historicamente nas Kormas de
. .
representação política do grupo étnico .desde o século XlX, e serão tratados mais

detalhadamente no capítulo 2. Por ora, ficamos com esta breve apresentação dps Potiguara

e partimos para a explanação da forrna como foi conduzida a nossa pesquisa. .

O PESQUISADOR E O CAMPO

Cheguei até os índios Potiguara em 1999, através de um projeto de extensão da

Universidade Federal da Paraíba que era coordenado pela professora Annelsina Trigueiro,

do Departamento de Comunicação Social. A época, eu ainda era aluno do curso de


-
graduação em Ciências Sociais ria riiesrna universidade e já pensava eni trabalhar com

etnologia indígena.

O projeto de extensão era realizado pela equipe do Grupo de Trabalho Indígena,

vinculado ao Setor de Estudos e Assessoria a Moviriientos Populares -- SEAMPO. O

SEAMPO é diretamente ligado a direção do Centro de Ciências Humanas, L,etras e Artes -

CCHLA da UFPB e congrega professores, tùncionários, estudantes e representantes de

inovimentos sociais e de órgãos públicos ein grupos de traballio que se voltam a estudar,

debater e assessorar os processos organizativos dos movimentos sociais no estado.

O Grupo de Trabalho Indígena teve início em 1997, em atendimento de uma

demanda de José Ciríaco Sobrinho (Capitão Potiguara), !;derança indígena e tùncionário de

nível médio da UFPB, para que a Universidade acompanhasse os processos de

reivindicação territorial e de atendimento as políticas públicas de educação, saúde e

atividades produtivas que ele e outros Potiguara vinham realizando. A professora


I#

Annelsina aceitou o convite para organizar o grupo e, desde então, diversos projetos já

foram desenvolvidos tendo como principais linhas de atuação o registro audiovisual, o

acompanhamento das discussões sobre :educação escolar indígena junto a Secretaria de

Educação do estado da Paraíba e a realização de palestras nas escolas de João Pessoa sobre

povos indígenas. O Grupo de Trabalho Indígena sempre esteve vinculado ao SEAMPO,

mas durante a realização de seus vários projetos também mantém relações com o Núcleo

de Documentação Cinematográfica - NUDOC, a Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos

comunitários - PRAC e a Comissão de Direitos Humanos da UFPB. Outras parcerias


também foram realizadas com as prefeituras de João Pessoa e Baía da Traição e com a

FUNAI''.

Até o fim da graduação, a mirilia relação corn os Potiguara era mediada pelas ações

do GT Indígena, que se concentravam no apoio politico, e não havia despertado nenhum

interesse maior em pesquisar o grupo. Ein 2002, conclui o curso, com um trabalho sobrc a

mobilização política dos indios Xukuru, de Pesqueira, Pernambuco. Logo em seguida, fiz a

seleção para o mestrado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da LIF131B/UFCG,

sendo aprovado e iniciando minha pós-graduação, em 2003, sob orientação do professor

Rodrigo Grünewald.

Iniciei o mestrado pensando em desenvolver a pesquisa junto aos indios de Crateús,

no estado do Ceará, porem, Rodrigo, na condição de orientador, sugeriu-me que, em

virtude das limitações de tempo dos cursos de mestrado, eu devesse trabalhar com um dos

dois grupos com os quais tenho mais familizridade (os Potiguara ou os Xukuru),
,'
deixando

a pesquisa com os índios de Crateús para o futuro.

Assim, passei a pesquisar os Potibwara com o fito de realizar a dissertação de

mestratlo. A minha iniciação ao campo não se deu como a da maioria dos pesquisadores

que a fazem a partir de grupos de pesquisa e de um distanciamento mais radical,

' O Durante os mcses de inaio a oiitubro dc 2004. participei como coordenador de uiiia das iiictas dc uiii
projclo de promoção social viabiliiado pela PRAC nas aldcias dc Jaraguá e Vila Monte-Mór. Ncssa meta
traballiamos com o desenvolvimento de uin curso de produção de artesanato, ministrado por dois Potigunrn.
Zito e Sandro, no intuito dc viabili7~ruiiia alternativa dc ren. para os mcmbros da coinunidade. ~ o n t ccoill
i
a colaboração de dois incmbros do GT Indígcna, Oadc Vascoiicelos c Fernanda Ribeiro. diiranic ;I rcali2<7ÇãO
dessas atividades. Esta nicta nos pcrinitiu participar não só do processo de invcnção dar tradiçks, qil?!!b!?
percebemos o valor que os indios atribuem aos colarcs e outros adornos dc sernentcs na exibição'publica dc
sua etnicidade, inas tambéin. perceber como através da produção de pcças artcsanais dcstinadas a
cornerciali7ação. dcsdobroii-sc um instigaritc cxcrcício dc ctnobotânica e reconlicciincnto do icmtono c dos
rccursos naturais quc artcs;los c alunos dcscri\lolvcrarn ao longo do curso corn cspcdiçõcs cin busca dc
rnatdria-prinia e a idcntiíícaçAo c c;italog;~çãodas cspkics vcgctais utili;ladas, nativas ou 1130.
.
objelificado por qucstõcs tccii-icas picviatnerite debatidas. Meu contato com os Potiguara jA

estava "poluído" pela ação política qiie exercia junto a outros colegas e professores da

UFPB, revelando comprometimentos e metas próprias de uma agência de contato.

Uma boa parte do meu conhecimento do campo foi se acuinulando a partir das

visitas que fazíamos no desenvolvimento dos vários projetos que foram realizados desde

1999. Alguns deles, inclusive, foram pensados de modo a associar a pesquisa coin a ação

politica, como o "Programa de lndio", desenvolvido de 2002 a 2003, e no qual

realizávamos exibições de vídeo nas aldeias, seguidas de debates e entrevistas gravadas.

Outros momentos importantes de pesquisa foram no acompanhamento das mobilizações

pela demarcação da Terra Indígena Potiguara de Monte-Mór, em especial as retomadas de

terras. Tudo isso, intercalado com visitas exclusivamente destinadas a coleta de

informações para a dissertação.

Da natureza dessa relação, resulta a inexistência de um diário de campo ordenado e


,
'

coerente de minha etnografía sobre os Potiguara, sendo este substituído por, pequenos

textos continuamente reescritos, descrições de eventos observados, entrevistas gravadas e

filmadas, centenas de fotografias, cópias e mais cópias de textos, documentos, relatórios,

livros, dissertações e artigos. A proximidade de João Pessoa com o território Potiguara

providenciou também que os longos períodos de campo fossem substituidos por visitas de

fim-de-semana, as vezes em períodos bastarite intensos, como entre os meses de agosto a

~utubrode 2003 e fevereiro a maio de 2004.

Cabe aqui uma nota a respeito de algumas entrevistas r!tilizadas nesta dissertação

que foram realizadas por uma equipe do GT Indígena coordenada pelo professor Carlos
Guilherme do Valle com o fito da produção de dois vídeos sobre os Potiguara de Monte-

Mór. Não estive presente nos trabalhos de campo realizados por esta equipe, mas participei

do planejamento das atividades e da seleção dos entrevistados. Identifico ao final de cada

transcrição aquelas que foram realizadas pela equipe e que periencem ao acervo do GT

Indígena. Aproveito tambéin para agradecer aos colegas Fernando Barbosa, Lusival

Barcelos, Gretha Viana, Miriia Nóbrega, Suelyta Alves e Fernanda Ribeiro por terem

cedido algumas das belas fotos que ilustram este trabalho

Os objetivos e os limites do trabalho só vieram a ser claramente delineados no

decorrer da sua escrita, requerendo um constante repensar da pesquisa e de seus dados e a

circunscrição d o campo e dos informantes a algumas localidades. Para isso, contribuiu

também a extensão da área pesquisada - mais de 30.000 hectares, distribuídos em três

municípios -; o volume da população neste território - mais de 35.OGO habitantes entre

índios e não-índios -; a presença das áreas urbanas da Vila Monte-Mór, de Marca(;ão e da

Baía da Traição e a dispersão da população indígena em vinte e seis aldeias. ,'

Outros fatores tornam a pesquisa na região mais complicada. a intensa proximidade

entre índios e não-índios, não permitindo uma clara definição dos limites efetivos do grupo

social para os "de fora"; apesar da presença antiga do órgão indigenista oficial na. região,

atestando as fronteiras geográficas, étnicas e jurídicas. Contudo, como demonstraremos

mais detalhadamente nos capítulos 2 e 3, a ação indigenista oficial contribuiu, ela mesma,

para a complexificação das fronteiras étnicas na região, na medida em que a distribiiição de

recursos e as estratégias de controle e repressão da população criaram uma instabilidade

situacional que abriu a possibilidade dos indivíduos transitarem entre identidades

possíveis, dentro e fora dos liinites da administração indigenista.


Além de tudo isso, o território Potiguara situa-se no meio do caminho entre João

Pessoa e Natal, abriga uma colônia de pescadores na Baia da Traição e os restos da Fábrica

Rio Tinto na Vila Monte-Mór, tem linhas diárias de ônibus ligando a região ao Brejo

paraibano e a capital. Sem falarmos nas rotas turísticas que saem de Pipa, rio Rio Grande

do Norte e de João Pessoa com direção as aldeias para comprar artesanato, ou nos ônibus

com banhistas, que todo fim de semana congestionam a rua principal da Baia da Traição,

vindos de várias cidades do interior. Assim, não há a mínima possibilidade de pensarmos o

universo social Potiguara como isolado ou com pouca comuiiicação com o "mundo

exterioryy.

Somem-se a isso as várias agências de contato que estão presentes na área: FUNAI,

FUNASA, prefeituras, secretarias estaduais, empresas de turismo, usinas de álcool e

açúcar, Companhia de Tecidos, IBAMA, Organizações Não-Govemanientais,

universidades e escolas, igrejas e movimentos religiosos, todas atraídas pelos indios, pela
,
'

riqueza do meio ambiente ou pela história da região. Essa pluralidade de atores, asências e

fluxos (econômicos, culturais, de informações etc.) torna impossível o "controle" pelo

antropólogo dos contatos e das relações dos indios com esses sujeitos sociais, deixando O

campo muito mais aberto e dinâmico do que se poderia imaginar - ou o pesqtiisador

"desejar" - a respeito de um povo indígena.

Desse modo, resolvi concentrar as ações de pesquisa naquelas localidades onde já

estava mais familiarizado (Forte, Cumaru, Baía, Marcação e Vila Monte-Mir, estendendo-

me até São Francisco, Vila São Miguel e Jaraguá apenas na procura de dados mais

XIV
específicos) e buscaiido construir a initilia percepção dos Potiguara a partir daqueles

sujeitos que já conhecia Iiá mais tempo e de suas redes de relações sociais.

Os trabalhos dc Ana I .úcia Azcvcdo (1 986), Frans Mooncri & I uciano Maia ( 1 992)

e Glebson Vieira (2001), (oiiiaiii São I;rancisço corno locrrs privilcgiado de suas

etnografias, em boa rncdida pclo pcso social, populaçional, político e simbólico dcssa

aldeia. Nesta pesquisa, busquei mais outras localidades e menos esta pelo fato dela já ter

sido bastante trabalhada, havendo uina carência de dados etnográficos sobre outras aldeias

e porque os processos que me interessavam mais de perto ou se concentravam nas aldeias

da terra de Monte-Mór, como a luta pela demarcação, ou estavam mais difusos, como o de

intensificação cultural, com a difusão do toré, da educação escolar indígena e do ensino da

língua tupi por outras aldeias.

O TRABALHO EM PERSPECTIVA

Ao contrário da farta docunientação historiográfica", a literatura etnológica sobre

os Potiguara é ainda pouco desenvolvida (contam-se apenas quatro trabalhos: Amorim,

1970; Azevedo, 1986; Moonen e Maia, 1992 e Vieira, 2001) e seus autores, apesar de uni

claro interesse pela história, organização social e cultura do grupo, não a discu,tiram de

modo a esgotar as questões que envolvem a abordagem de uma sociedade indígena num
/---

contexto pluriétnico.

I1
Coligidd por Tcrcz;i Baiiiiiíiiiii (1981) c111rclalorio quc subsidiou o proccsso dc dcriiíircaç50 d;i Tcrr;i
Indígena Potiguara pcla FUNAI.
AIcm desses trabalhos, vanios encontrar dois outros estudos produzidos na

IJniversidade Federal da Paraíba em cursos de p6s-graduação: o primeiro é a dissertação de

mestrado em Serviço Social de Maria da Salete Horácio da (1993) sobre o processo

de demarcação das terras de Jacaré dc São Domingos; o segundo, é a monografia de

especialização em Direitos Humanos de Fernando de Souza Barbosa Júnior (2002) sobre a

mobilização dos índios pela demarcação da l'erra Indígena f'otiguara de Monte-Mór.

Outros trabalhos relevantes sobre os Potiguara são os relatórios de identificação das terras

indígenas Jacaré de São Domingos e Potiguara de Monte-Mór de autoria de Vânia Fialho

de Paiva e Souza (1988), Maria de Fátima Campelo Brito (1995) e Sidnei Clemente Peres

(2004), re~~ectivamente'~.
Sidnei Peres em sua dissertação de mestrado ( 1 992) dedica um

capitulo a implantação da ação indigenista na Baía da Traição.

O interesse de Paulo Marcos de Amorim (1970) era a análise da integração dos

Potiguara enquanto um proletariado rural, destacando-se no seu trabalho a investigação

sobre as formas econômicas (agricultura e pesca). Seus estudos pautavam-se pela teoria da
,'

.Picção iiiteretnica (Cardoso de Oliveira, 1964) e o uso que fez da documentação histórica

serviu apenas como pano de fundo para a sua etnografia. Mesmo assim, a metade da sua

dissertação versava sobre a história do grupo.

O foco de investigação de Ana Lúcia Lobato de Azevedo (1986) já era claramente

historico e definia esta dimensão como essencial para a análise do gripo. Sua pesquisa,

l 2 Salctc Horácio foi uma das principais agcntcs riiissionarias da igrcja católica a atuar cntre os Potiguari~
durante a década de 1980 quando se derain os processos de rcgularizaçâo fundiária das Tcrras Iiidigenas
Potiguara e Jacaré de Sâo Domingos.
13
A produção etnológica sobrc os Potiguara vcin crescendo nos últimos anos c conta também com um
considerável número de artigos publicados. Frans Moonen publicou vários artigos sobre o gnJpo dcsde a
d6cada dc 1970. quc no cntanto cstão iiiais ou mcnos condcnsados na obra quc cscrcvcu junto coin o
p ~ ~ u i a Luciano
-e------
d ~ r Mariz Maia ern 1992: Glcbson Vicira (2004) e Sidnei Peres (2000. 2002) ii6rn n r t i ~ o s
publicados em periódicos na Internct c o autor dcslc traball~odivide uin artigo sobrc:o torC potiguarii Com
Fcrnando Barbosa (Barbosa c Palitot. 2004) ein coletânea organi7ada por Rodrigo Grünc\vald.

XVI
contudo, centrou-se na analise dc um drama social (Turner, 1974) específico, que foi o

processo de demarcação das terras indígenas ocomdo durante a década de 1980. Em seu

projeto de doutorado (infelizmente não lcvado adiante) a própria autora recoiihece a

necessidade de uma interpretação inais abrangente sobre o grupo (Azevedo. 1988).

Os trabalhos que se voltam para uma interpretação desse nível são dois: o de Frans

Moonen e :Cuciano Mariz Maia (1992) e o de José Glebson Vieira (20Gl). Mooiien e Maia

organizam um volume que se divide em duas partes: uma referente aos estudos de R4oonen

sobre etnologia indígena e a outra, apresentando uma massa documental considerá\lel, que

publica e cita o trabalho de compilação documental e histórica de Tereza Baumann (198 1)

e o complementa até o início dos anos noventa. A interpretação etnohistórica de Moonen,

na primeira parte do livro, deixa muito a desejar em temos dc análise (é basicamente uma
I-

narrativa da aculturação). Enquanto que os documentos arrolados na segunda parte 1180são

acompanhados de nenhum esforço interpretativo.

,'

Vieira (2001) é o autor que conseguiu ir mais longe ao propor uma interpretação

sobre os Potiguara de modo mais abrangente. Contudo, podemos perceber uma guinada

interpretativa no decorrer do texto. Suas primeiras argumentações nos levam na direção de

uma análise situacional (Gluckman, 1987) e histórica, considerando os Potiguara. como

grupo étnico envolvido num campo intersocietário (Oliveira, 1988). Logo depois, porém,

critica esta linha de interpretação como essencialmente política e formal, cujo foco está nas

ações indigenistas e na relação desta com os fenômenos da etnicidade. Afirma tambkm que

esta analise enfatizava "a idenfidade efrlicaconro o feilõnreiro mais imporfairfecomo se ela

p~efigr~rasse
a orgatriza~ãosocial trão aíetrlat~dopara o modo tlafivu de perceber o

con~afo(Vieira, 2001, p. 1 9 . " A partir deste ponto, sua interpretação passa a discorrer
sobre o modo como os Potiguara entendem o contato e busca compreender as concepções

nativas de história e mistura.

A análise histórica de Vieira poderia ter sido inais aprofutidada, utilizatido-se dos

conceitos de sifrração social, ccmpo i~r/e~:~ociefú~'io,


/er~.ifor~ializa& e i~~dinlridode
que tia

primeira parte do trabalho demonstrou conhccer. Ao partir para a conceitualização de um

modo nativò de entender o contato, o autor deixou subentendido que existe uma clivagem

entre o modo essencialmente Potiguara de conhecer e pensar o contato e o modo como a

sociedade envolvente o faz. O conjunto das relações sociais entre os dois grupos não seria

gerador de uma forma própria de organização social, como as teorias da etnicidade

cdocam mas, antes disso, um obstáculo a ser vencido pela interpretação antropológica.

para que o sentido do contato interétnico fosse revelado através das concepções endógenns

do grupo.

Fica assim subentendido no seu texto que existe uma diferença entre
,'
os níveis

interno e externo. A história Potiguara seria uma se fosse contada a partir de seus próprios

referenciais e outra se fosse contada a partir da documentação produzida pelos atores não-

indígenas. Verifica-se aí uma divisão ent're história e etnohistória que, como diz Eric Wolf

(1 982), não se faz operacioiial para entendermos o contato entre as sociedades.

Minha análise segue a partir do ponto abandonado por Vieira quando adota uma

postura etnohistórica. Tenciono entender os Potiguara não como uma sociedade a parte. .

mas como um grupo que se define e elabora a partir da interação com outros grupos sociais

e'com o Estado.
Desse modo, tenho como objetivo mais geral compreender os Potiguara

contemporâneos como a atualização de uma forma organizacional de base étnica (cf. Barth,

[I9691 2000) cujas fronteiras são historicamente construídas no processo de interação com

a sociedade mais ampla e, para isso, lançam mão de um patrimônio de expressões ciilturais

elaboradas com fins a cstabclcccr os sinais diacríticos quc os identificam ericjuanto índios

A intenção deste trabalho iião é a de analisar exaustivamente um deterlminado

processo ou elemento da vida cotidiana dos índios, mas antes, apresentar um panorama

sobre as siflrações his/(jricas Potiguara, contribuindo com um enquadramento a8rialítico

mais amplo que possa servir de estímulo e orientação pâra trabalhos futuros ao mesmo

tempo em que condensa discussões apresentadas nos trabalhos anteriores e cobre algumas

áreas não analisadas nestes. O fio condutor da dissertação é, portanto, compreender como

os sentidos e a viabilidade das fronteiras étnicas variaram no tempo e vêm se construindo

atualmente.

Faz-se necessário que apontemos aqui os conceitos básicos que estamos utilizando

na interpretação dos materiais históricos e etnográficos de nossa pesquisa. A partir das

monografias e coletâncas mais reccntcs da literatura etnológica sobre os chamados "indios

misturados", das discussões a respeito da problemática do conato interétnico e cultural e do

debate sobre antropologia e história destacamos um conjunto de noções qiie se

XlX
apresentaram como primordiais para a prodiição do conhecimento antropológico dessas

situações étnicas de multiplicidadc de agcntcs c perspectivas socioculturais.

a ) (;rupo 1;;lnico

O primeiro conceito que resenhamos aqui é o de grupo étnico, consoante com o

debate que vem se fazendo na antropologia internacional a respeito do tema desde a década

de 1960. A presença deste assunto no começo do trabalho faz-se necessário para que

possamos resolver o problema da naturalização dos processos de construção das fronteiras

sociais do grupo, assentado nas idéias de continuidade originária e pureza racial

Durante todo o século XIX e o começo do seculo XX as nascentes ciencias sociais,

ainda sob influência dos legados das ciências naturais, atribuíam ao fator biológico - a raça

- um caráter determinante na cultura e no comportamento humanos. Os grupos sociais

eram definidos, classificados e interpretados enquanto gradações qum padrão

evolucionário, cujo Único destino de realização seriam as sociedades modernas da Europa,

baseadas na urbanização, industrialização e organização estatal. Esse pensamento, tido

como científico, era utilizado largamente para justificar a expansão dos impérios coloniais

na África e na Ásia Sua penetração no senso comum deu-se de tal forma que, ainda hoje,

podemos encontrar, nas mais diversas situações sociais, a utilização de idéias oriundas

dessa matriz de pensamento.

Uma das primeiras vozes a destoar desta posição dentro das ciências sociais roi a de

Max Weber, em seu livro Economia e Sociedade, de 1921, num breve capitulo sobre as

relcrç6es com~rriifa~.ia.s
éfriicn.r.Neste artigo, distinguc as noções de raça, etnia e nação,
precisando-lhes os significados e usos para a análise soçiol6gica. Assim, para Weber, a

raça é um atributo natural, detcrii~inada por "uma apai-êiicia exterior" herdada e

transmissível pela hcrcditaricdadc, ou scja, o seu domínio é o biológico, escapando das

influências históricas ou da vontade dos indivíduos. Já a etnia é fundada na crença

subjetiva de urna origem cornuin dc uiii dcierniiiiado grupo social, o quc Ilics dilcrericia

dos outros grupos humanos. Para Weber a ctnia e a nação aproximam-se justamente neste

ponto - a crença numa origem comum -, mas, a nação - e todas as ações sociais motivadas

por essa idéia - se diferencia da etnia dada a paixão @alhos) relacionada a reivindicação

de um poderio político, entendida, nos dias de hoje como a soberania de um Estado

politicamente organizado.

Para Weber, são grupos étnicos os

...
" qire alimentam rrma crerrça .sirhjeti~)aem rrma
com7rnidadc de ortgcm .jilt7dada r7as semelhalr~.cr.~ de
a13at-ência extenra orr dos costrrme.~,o11 dos dois, 074 nas
1embratlça.s da colm~izaçãoou da migrap70, dé modo yac
e.rta crença torna-se in7/)ortat7tc para a propapção da
comrrrralizaflo, po~rcoimporta17doque Irma com~rnidadec/c.
salrgire exista orr não o/?jcti~)an~ente"
(Weber, [I 921 ] 1994, p.
318).

Assim, na definição de Weber, a etnicidade é uma relação movida não pelo

isolamento entre os ~rupos,mas pelo seu contato e aproximação, sendo os fatores da

língua, da religião e do compartilhamento de códigos culturais elementos importantes na

construção das relações étnicas, mas não deterrninantes. Pelo contrário, os conteúdos da

língua e da religião são manipulados pelos sujeitos ao sabor das circunstâncias de

interação. Nesse sentido, a úiiic+aforça que permite a ação comunitária étnica é o interesse

comum, base para a comunidade política, que no dizer de Weber é a forma "mais artiificial"
de origem da crença no parentesco étnico, aquela pela qual uma associação racional - uma

acão de defesa do território, de conquista, ou mesmo uma circunscrição administrativa -

transforma-se em comunalização étnica, atraindo um simbolismo da comunidade de

sangue e favorecendo a emergência dc utna consciência tribal ou a cclosáo de u m

sentimento de dever moral ligado a defesa da pátria (cf. Poutignat e Straiff-Fenart 1998,

p.39-40).

Encarado desse modo, o conceito de grupo étnico em Weber parece completamente

desprovido de conteúdo e excessivamente fluido. O interesse comum pode ser alegado

como motivação para outros tipos de organização de grupos, como os partidos ou

movimentos religiosos, mas esses grupos sociais jamais conseguirão que seus membros

desposem uma crença na origem e no destino comuns que os diferenciem de outros grupos

humanos por esse sentimento de origem. Esse é o conteúdo que podemos determinar para o

conceito de etnia: o sentimento partilhado pelos seus membros de que possuem uma

origem comum que os diferencia no mesmo nível dos outros grupos humanos (Poutignat &
3
'

Streiff-Fenart, I 998).

Contudo, a utilização desse sentimento no jogo social vai depender da existência de

um conjunto de interesses comuns, partilhados por um grupo dentro de um sistema social

maior, que inclua outros grupos em relação uns com os outros. Apenas nessas condições é

que a etnicidade torna-se um fator importante nas relações entre os grupos sociais.

Seguindo a linha de pensamento delineada por Weber, o antropólogo Norueguês

Fredrik Barth propôs, em 1969, que o grupo étnico fosse pensado como uma forma

organizacional, através da qual uma sociedade utiliza as diferenças fisicas, cultiirais,


linguisticas ou históricas para produzir a sua individualidade frente a outros grupos a partir

de processos de categorização, que são acionados em processos de iriteração. (Bartll

[1969], 2000). Esta proposição dc Barth foi um verdadeiro divisor de águas na teoria

antropológica no que toca ao entendimento da organização das diferenças culiurais par-a a

interação social.

Ao definir os grupos étnicos como uma forma de organização social, Barth elege

como característica mais inlportantc deste tipo a autoatribuição e a atribiiição por outros de

uma categorização étnica socialmente efetiva nas relações entre os sujeitos e grupos. E

explicita que

"A a/ribrripio de trnta ca/egot'ia rrttta a/ril.,rii~iío


é/nica qtratido class~ficauma pessoa em ferntos de srra
idetilidade básica, mais geral, determinada presumiialmeri/e
por .via oripni e circv)~s/âticia.s de cot?for.niaçiío. Nes.se
setifido orga~~izaciota/qtratido os a/orcs, /crido conto
Jltlalidade a itiferação, trsam ide~itidadesé/tiicas para se
ca/egor.izare categorizar os ot11ro.s~
passam a fornlar grir/~os
..
ennL:o.s. (Barth. 2000, p. 32)
/

Assim como Weber, Rarth desloca o foco de atenção dos conteúdos culturais, até

então entendidos como conjuntos de traços objetivos, para os processos de constn~çãoe

manutenção das fronteiras étnicas, que delimitam a pertença dos indivíduos aos gi-upos.

Essas fronteiras, apesar de poderem ser, em alguns casos, territoriáis., são

predominantemente sociais e simbólicas, não importando o conteúdo cultural em si que

elas englobam, mas, o modo como os atores manipulam esses elementos de cultura para

realizarem a interação em quadros históricos determinados.


Entendida assim, a etnicidade só pode existir no coritato entre os grupos, e não pelo

scu isolamento, e os elcinciitos dc cultura pcrdein a prioridade para as cstratcgias de ação e

comunicação entre os atores, que prcssupõcm um quadro de entcndimcnto mútuo entre as

partes. Nesse sentido, a cultura é uma inassa plástica a ser moldada pelos sujeilos de

acordo com as situações sociais em que se encontram, existindo elementos compartilhados

pelos distintos grupos, eriquanto outros são patrimonio exclusivo de uma das ctnias e são

utilizados jistamente para exibir a distinção - sempre social e simbólica - entre os

membros dos grupos em interação.

A perspectiva fundada pelos pressupostos de Weber e Barth distingue as relações

sociais dos conteúdos culturais na definição dos grupos étnicos. A classificação social em

termos étnicos é baseada no arranjo das relações sociais num determinado quadro de

referências e, portanto, histórica. Não são os caracteres somáticos, os elementos de cultura

em si (língua, religião, costumes), ou o isolamento geográfico que serão responsáveis pelo


,
estabelecimento das fronteiras étnicas entre grupos, mas, processos históricos ecsociais, tais

como a estratificação social, a colonização, as migrações ou a imposição de unidades

admiriistrativas. As carac~crísticasfísicas e os elementos de cultura serão manipiilados

pelos atores sociais como sitiais diacrficos para a manutenção das fronteiras étnicas, a

depender da situação em que os atores sociais se encontrarem (Barth, 2000).

Outros autores também trataram da etnicidade como, por exemplo, Michael Banton,

que no livro A Idéia de Raça (1977), utilizou o termo ettiogétiese para qualificar os

movimentos sociais dos negros norte-americanos na década de 1960, o "Hlnck I'uwer". De

acordo com Banton, muitos movimentos sociais nessa época inspirarani-se na inversão de

valores que o movimento dos negros nos Estados Unidos, provocou sobre as velhas

XXIV
concepções de raça e o uso que se fazia de expressões como negro, chicatto e hldio. Para

clc, as fcrniitiologiasda raça crntn iiiilizndas pcla maioria branca para dividir c doiniiiar os

grupos minoritários no pais, principalmcntc os negros. Porém, as rnodificações no campo

politico americano e tnundial dos anos 60 (independência dos estados africanos, difusão

dos meios de comunicação de massa, como a TV; mecanização da agricultura e, migração

dos negros expulsos do campo para os grandcs ccntros industriais) riicxcram coni as

perspectivas dos negros norte-americanos e estes passaram a reivindicar um novo lugar na

sociedade, paralelamente a construção de uma nova identidade para si próprios. Desse

modo, Banton, também vai identificar os fatores decisivos para a etnicidade com o

conjunto das relações sociais numa sociedade composta por diferentes grupos, darido

ênfase ao aspecto político, do interesse comum.

Essa noção de sociedade composta por diferentes grupos vai ser melhor delineada

por Max Gluckman (1987), que a partir das noções de sihtação social e campo social

busca demonstrar como o conjunto de rclações entre os Zulu e os colonizadores ingleses e


'I

bôeres constitui uma única sociedade composta por povos diferentes em interação

constante. Não se trata mais de enxergar os Zulu como um grupo isoiado e singular, mas

como participantes de um conjunto maior de relações. O contato não é visto como um

processo desintegrador, mas antes como "fator organizador básico" de um determinado

campo social, composto por grupos interdependentes em interação contínua e que'mantêm

entre si padrões de comportamento compartilhados. Esta aná'lise de Gluckman é a base do

conceito de siluação hislórica que apresentaremos mais a frente

Até os dias de hoje, a maior parte dos estudos sobre etnicidade foi realizada na

literatura das ciências sociais de língua inglesa, com uma çrande concentração da produção

entre as décadas de 1960 e 1970. É neste período que se inscreve o divisot- de á p a s

xxv
marcado pelo trabalho de Barth (1969) e onde ganham espaço discussões que revelam os

aspectos pragmáticos da etnicidade, através da consideração das identidades como

situacionais. Uma postura que vai iniciar uma grande polêmica entre diversos autores que

de infer.es,ve,afirmando a prevalência dos chariiados


vão contestar essa visão dos g1~111)o.v

laças primordiais para a consecução dos grupos étnicos. Esta visão "primordialista" será

vista mais adiante, por enquanto vejamos os autores "pragmáticos" ou "situacionistas".

Antes mesmo de Harth publicar seu fainoso livro em 1969, Michael Moei-mann, já

havia questionado os princípios substancialistas definidores dos grupos étnicos num

trabalho de 1965. Para ele os grupos étnicos sustentam-se nas situações de interação social

e contato. Para isso lançam mão de uma categorização entre membros e não-membros e as

fronteiras existem para a manutenção do grupo. Em sociedades complexas, onde as

distinções entre os grupos étnicos não são tão aparentes, os grupos lançam mão de

elementos de cultura que serão guindados a condição de emblemas (o que em Barth se

Neste processo, também é importante que se


tornou a clássica expressão sirlais diacr.ifico.~).
,#

desloque o foco de atenção para as relações entre os grupos e a capacidade de coinunicação

que os emblemas étnicos possuem para relacionar .os vários grupos entre si. É essa

capacidade de permitir a comunicaçãõ das diferenças entre o s grupos relacionados que

tornará a cultura como principal instrumento de visibilização das fronteiras étnicas.

.-

Judith Nagata (1974) nos apresenta uma análise das possibilidades .de oscilação

identitária que uma sociedade plural e poliétnica como a da Malásia permite. Seu texto

coloca-se contra as perspectivas assimilacionistas correntes nas interpretaçoes norte-

americanas, que afirmam a incorporação dos gnipos numa etnia dominante e

hegemonicamente "neutra". Pelo contrário, ela demonstra que em muitas sociedades não

XXVI
existe iim grupo étnico largamente rna.joritáiio e que as oscilações do status étnico ocorrem

sem lima direção determinada, de iniido bastante fluido.

Abner Cohen é o paradigina do pragmatismo nos estudos de etnicidade. Ein seu

livro Custom and Politics in LTrban Africa (1969) nos apresenta as mudaiiças sociais que

vinham ocorrendo nos recém-formados estados africanos com o processo de urbanização e

a formação de novos grupos políticos nas cidades a partir dos processos que chamou de

deslrihalização e relrihalização. Por destribalização Cohen entende a incorporação de

populações tribais no mundo urbano, com o abandono rápido de suas tradiqões. Por

retribalização ele define a construção ou o exacerbamento de novos referenciais

identitários e culturais pelos grupos étnicos urbanizados, constituindo-se como novos

grupos políticos. Identifica ambos processos ocorrendo ao mesmo tempo, tanto nas cidades

"industriais" como nas "tradicionais". Para Cohen, os grupos étnicos são grupos políticos

informais, baseados em interesses comiins, organizados dentro dc um sistcina maior de

relações sociais. Esses grupos se organizam tendo como objetivo a aquisição de


,
'
recursos e

poder. Desse modo, o elemento que vai definir a etnicidade é a política, a associação com

fins a interesses comuns, embora tendo em conta um arcabouço cultural compartilliado.

Em um texto de 1974, Cohen critica a perspectiva apontada por Barth de que um

grupo étnico é um tipo organizacional que classifica as pessoas a partir de sua identidade
V

mais básica e geral, ou seja, o sentimento de origem comum. Para Cohen, este argumento é

redundante e não fornece dados confiáveis para a interpretação. A alitoidentificação e a

identificação pelos outros constitui não a conclusão, mas o ponto inicial da pesquisa. De

acordo com o seu ponto de vista, Cohen define o grupo dtnico como um giupo de pessoas

com os mesmos padrões de comportamento que estão em interação com outros grupos

XXVII
dciiiro dc iim incsmo sis~ci~ia
dc I~CI~IÇGCS
sociais. N C S ~ CP~OCCSSOde iiiicraçfío a cinicidadc

se manifesta quando o grupo se organiza com determinados fins a partir dos elementos de

comportamentos comuns. Assim, sua dcfinição de grupo étnico baseia-sc em um

arcabouço cultural que alimenta a ação social de grupos que buscam alcançar determinados

interesses em comum dentro de uma estrutura social, geralmente representada pelo Estado.

Os grupos étnicos seriam então associações políticas informais, baseadas em

comportamèntos e intci-csses comuns, diferentes das associações políticas formais

respaldadas pelo Estado. I

Os trabalhos de Leo A. Despres e Harmannus Hoetink, fmem parte da mesma

coletânea (Despres, 1975) e podem ser vistos como exemplos de uma interpretação da

etnicidade a partir de uma perspectiva do pragmatismo econômico. Para estes autores a

etnicidade é o resultado da estratificação social e da competição de grupos por recursos em I

contextos sociais mais amplos. Na base dos grupos étnicos estariam populações étnicas,,

definidas por partilharem a mesma cultura e/ou oriçem. A etnicidade seria, então, a
/

. . Essa
organização destes grupos de cultura comum em fùnção da captação de recursos.

maneira de ver a etnicidade se pauta, necessariamente, pela existência do estreito contat'

entre os grupos e pelo processo histórico de formação de sociedades multiétnica,

geralmente em estados coloniais, que associaram grupos culturais a níveis de estratificação

social. . 1

A chamada corrente dos autores primordialislas, dentre eles Clifford Geertz (1 983),

Charles Keyes (1976) e G. Bentley (1987), escreve seus trabalhos em resposta as

considerações dos estudiosos da etnicidade enquanto grupos de interesse. Para estes

autores, os laços prinrordiai.~(nascimento, laços de sançue assumidos, raça, costume,


língua, religião, região) precedem os grupos de interesse na formação dos grupos étnicos.

Neste ponto começamos a perceber uma polarização entre as interpretações

instrumentalistas e as primordialistas nos estudos da etnicidade. A superação desta

dicotomia só vai ser realizada algum tempo depois, contribuindo para urna maior abertura

deste campo de estudo.

As questões colocadas pela polarização entre primordialistas e situaciotialistas se

apresentaram como falsas oposições quando foram abordadas por alguns autores que se

voltaram para a compreensão desses fenômenos, já entre as décadas de 1970 e 1980. Estes

estudiosos propuseram em suas análises que os aspectos pragmáticos (interesse comum,

mobilização política) e os aspectos essenciais (parentesco, língua, senso de comunidade)

da etnicidade são complementares e atuam de modo a se reforçarem mutuamente no

decorrer de processos históricos que envolvam a categorização de grupos a partir de

alinhamentos étnicos.

,'

Dentre os autores que defenderam esta perspectiva podemos citar A.'. 1,. Epstein
1

(1978), A.S. Ahmed (1 982). As argumentações promovidas nesta fase consideram que os

grupos étnicos não se definem exclusivamente por meios da cultura psrtilhada ou dos

interesses comuns. E a combinação desses dois referenciais que permite a construção dos

grupos. Para este autor os elos primordiais são importantes para a construção da identidade

do grupo (neste sentido, a identidade é autoreferida), mas se atualizam através das

dinâmicas políticas que constituem a etnicidade do grupo, ou seja, a sua relação com outros

grupos. O sentimento de origem comum funciona como bac!grroiri~dpara a ação política e

esta, por sua vez, é capaz de realimentar este sentimento quando em situações de crise

XXIX
Neste seiitido, João Pacheco de Oliveira afirma, tomando como exemplo as
sociedades indígenas do Nordeste, que

"A e/nicidnde strpOe, nece.s.sarianien/e, trmu /raje/(jria


(Que é his/<iricae delerminada por miil/,plosfatores) e tima
origenl (qrre é irma exl~eriênciapt-iniát-ia, irldi\)idrrul,mas qire
/utit/~kttte.s/~i/rnJttzida ent sahercrs c. rmnrrcr/ri)n.vm c11rni.s
\)em n se nco/~lar).O qtre seria yr(j1)rio das iderllidndes
éftiicas é qtre nelas a atiralizaçâo hisfhrrca não atltrin o
setitintettto de referência a origem, mas até ntesmo o refir-qa.
li' da re.so/trgão simbó/ica e co/c/i\)a dessa con/raJiqiio clrre
d~cor.re a f i r ~ a polifica e emociorlal da efnicidade. 1.

(Oliveira, 2034, p.32-33)

A leitura de todos estes autores nos revela a percepção da etnicidade como uma

forma de organização social que se processa através do contato entre grupos sociais em

interaçâo permanente. Desse modo, a etnicidade é informada por fatores sociais e políticos,

principalmente a partir de relações de dominação estabelecidas entre esses grupos.

justamente esse caráter de interdependência que constitui o pano de fundo pani. o estudo

das relações interétnicas, não se contestando a natureza das fronteiras étnicas, mas
,
investigando-se os modos como elas são construidas, mantidas, atravessada% demolidas e

refeitas. . ,

No debate mais recente sobre os povos indígenas no Brasil toda essa literatura foi

incorporada e testada em sua aplicabilidade. O contexto do Nordeste - mas não só ele - se

destacou pelas mobilizações políticas em torno dos processos de emerçèncias étnicas de

vários grupos indígenas e possibilitou que essas teorias tivessem sua operacionalidade

avaliada a partir da confrontação com casos empíricos distintos daqueles que as originaram

em outros campos de investigaçâo. Nesse sentido, Oliveira sustenta

". ..qtre é impor/an/erefletir mais detidamente .sobre o


coti/ex/o infersocieiário no ira1 se cons~i/irernos griq>os

XXX
é/ttico.c Niio se /rato de ntat?eira alglrma de 1r17i coll/ex/o
ahs/rn/o e getlerico, que po,r.ra absorver /(&r. ar .socrednde.v
e s1rn.u d~fc.re~t/es
.fi~rma.sde go\~er~to,
mas d m a in/cra~@
ylre é processada det2tr.o de trm quadro f~o/i/ico
~rcciso.cl!jo.s
/~nrcinte/i.ossão dados pelo Es~ado-iracão." (Oliveira, 2004,
p. 23. Grifos nossos)

É justamente essa necessidade de precisar os contextos históricos de formação dos

grupos étnicos que vai levar o autor acima citado a elaborar as noções de .vi/~taqfio
lii.~/cir.icn

e terri~orializa~ão.
Cuja aplicação será efetuada no estudo dos processos de interação entre

as sociedades indígenas e o Estado brasileiro, inclusive como parte de uma crítica ao

regime tutelar estabelecido sobre essas populações.

b) Situação J-listórica
WIOTECA CENTRAL I UFPB

.'
Esta noção foi elaborada por João Pacheco de Oliveira no decorrer de sua pesquisa

entre os Ticuna do Rio Solimões e decorre de uma reflexão crítica sobre os pressupostos

teóricos e metodológicos utilizados na antropologia para dar conta dos processos de

contato e mudança sociocultural. Longe de ser uma perspectiva naturalizadora..d.osgrupos

sociais e do contato entre eles, é uma forma do pesquisador reconstruir as sitirações de

interação a partir do enquadramento dos atores sociais e de seus interesses, perspectivas e

estratégias de ação em campos sociais determinados. Assim, a noção de situação histórica

se refere

"a modelos ou esquemas de dis/rib~riçãode uoder


enfre di ver.sos aiores sociais. (...) Trata-se de Irnla
cott,~/rl~qno do pesqlrisndor. Irma ahs/ração com .fi~ta/idades
nrla/í/ica.s, conl/~o,slados yadrces de itt/erdii,e1td2ttciaet1fr.e
os a/olae.s.~ociais,e das fon/es e canais it~s/if~rcioi~ais do
coi!fli/o." (Oliveira, 1988, p.57. Gnfos no original).

XXXI
Tal concepção faz pensar o contato interétnico como o corijunto das relações ,entre

si~jeitossociais ligados a gnipos distiiitos. Ilin processo cuja

"... ~rrridade(...) rião 6 irm pre.s,sir/)o.s/o/c.cír-icoclrrc.


ex/)liqire iodos os .fafo.v, mas algo a ser pe.sq,~i.scrdo c.
cir~dado~rametife de3nido pelo esfirdiosodo cotifafo,qlre deve
birscar fal irtiidade tio proces.ro cor rcre/o dt? it ~/era(:lio social
c. rias /)er.ce/)çõcscllrc dcle f2m o.s difir,crifc.s~ I * I I ~ ) O .(c;fiirco.v
S (.

orrfro.~) envolvidos ". (Idem, p.58)

Assim, seguindo a trilha proposta por Fredrik Barth ([I9691 20CO), Oliveira afirma

que "O coniato inierétriico E L..) I I I ~fato cora/ifz~fi\~o,


qlre preside a pro/>ria orgariização

irifer~iae ao esiahelecimeriio da idetriidaJL. de lrnr gri111o éftrico. (1988, p.58, gri fos no
"

original).

Toda situação de contato interétnico também é uma situação de classificação e

categorização dos atores e de seus comportamentos de accrdo com a estrutura de poder

que se delineia nestes momentos, assim, os sujeitos assumem suas posições no quadro
,
'

interativo a partir deste processo de escolhas conscientes, dentro dos referenciais sociais e

culturais postos no campo

"c..) A si/rra~.ãode co~iiaioinierétnico de ccírio modo


des?ra/~~raliza os c0digo.s culturais em que ~rmapessoa .foi
.socializada, iransformando as normas de ação em rcnlá (etrire
olriras) possibilidade de cotiduta, os \~aloresde orietiiaçlio
ficatido como cc~m/~otietite.r de ideo1ogia.r aiiertiaii~~as. As
nornrct.~e o saber polifico de cada grll/)o éitiico ~ar~hcrnl lrma
sigri~ficaçlioadscriia aqlrela si111a~~ão de co?r/a/o,iendetido a
r<fle/ir. e incorporar (por 7tm processo relali~~amenie
co?i.ri.r/eti/ede tradlrqão c~rlt~rral)
cerios ~~adrões e .sinihol(~~
de 011im.r c~~Iii~ra,r, /ri73 ~iecorretidoq~ctrasporiatiio de
itiieresses, cost~rniese valores da iradiçc?~. (Oliveira, 1988,
"

P. 59)

XXXII
Assitn, no csliido dc casos concretos dc contato irilcrctnico como o dos Ticuna

realizado por Olivcira (1988), ou cstc, sobre os Potiguara

"... a noção de sihração hisfórica poderia .ier defiwidn


pela cnl)nciJaJe qtre n.citrme fentpornrinntente tmtn ng61lcin
Je confnfo Je prodtrzir, nfrzr\@s Jn intl)o,si(:~1oJc irlfere.cse.v,
w-~lor-ese /~adrõe.s orga~tizativo.~,unt certo escprenta Je
Jisfribtrição de poder e atrforiJaJe ertfre o.s Jiferertfes atores
.iociais ni exi,sfertfe,s, hn,seaJos ent trnt cor?jtmfo de
inferziq1c.nJ21tcin.s e rlo e.rfnhelecinte~tfo Je Je/erntirmJo.v
cnrmi.s pnrn resoltrção Je cot!,jlifo.~." (Idem, p . 59)

Esta "imposição" não significa em absoluto a refutação da capacidade de ação do

grupo dominado, pelo contrario,

"A irt.sfatwação t.eprlar dessa dontinaqão pre,s.s~rpõe-.


alént Jn nntenca otr Ja /)o.s.sihilidaJe Je trso de .fnfor.t..v
coercifi\~os - o e.sfabelecinteitfo Je Jifirenfes j:ratr.s de
comp~.ontissocont cada Irm dos di\~ersosnfo~.es, nlént de
cerfn Jose Je Iegifintidde, provertiettfe de trntn cotwxfio
posi f ivn e.sfaheleciJa pelo grtrpo éfttico strhoru'ir tado entre
esfa dontirtaqão e set1.s prbprios \~alorestil/irnos. " (Idem,
I#

p.59, grifos no original).

É seguindo nesta direção que podemos perceber como o grupo subordinado busca

criur e sustentar seus espaços de autonomia social a partir da incorporação de idéias, regras ,
e instituições do grupo dominante, principalmente nas sociedades onde a presença do

aparelho de Estado assume um papel preponderante no ordenamento das relações sociais.

Foi amparado nesta posição que Oliveira ([1998], 2004) cunhou a noção de
territorialização como instrumental para o conhecimento dos povos indígenas postos numa

situação de tutela pelo estado. Pois,

"a atrihirição a unta sociedade de uma base


lerritoria1 .fixa se cot?.s/itiri em trm ponto-chave para n
al)t.eeti.~Liodas nt irdat tçct.~por 91re ela /)aar.rct.is.so qfe tat tdo
prc?fiíttdantettte o firttciottametito das s1ra.v itntitiriçõe.s e o
.~igttificadode s1ra.Y matttfe.staçõe.s cirltirrai.~.Nesse sentido, n
tioçfio de tewitorializacão é d<fittida conto irnt ~)rocessode
t.eo~*gatiiza~&o social Fie imj)lica: i) a o-inqão de Irttia t ~ o i ~ n
irtiidade .~ociocirlttrt.almediante o estahelecinietito de imin
idetitidade étt~ica d!ferenciadora; ii) a cott.stifrrição de
mecn~ti.vl?iavpolitico.~e.s~~eciaIizncios; iii) a rcd.finiC.no do
cotttrole .vocinl sobre 0,s t.ecirt:~o.s arnhien/ai.~; t i n
reeln1)oração da cirltirra e da relação com o passado".
(Oliveira, 2004, p. 22, grifos no original).

Num quadro politico e institucional dominado pela presença do Estado e de seus

agentes, onde "ser indio" também está condicionado a um status jurídico e a existência de

organismos especificas de controle dessa população, concluímos que

"A dinietisão estratégica para se pettsar a


it tcotpornqão de yopir1açõe.s etiticat?7etite afere,tciadas
detttt.~ de 1rn1 I<vtado-ttn@o 6 c..) a tert.i/nt.ial. lIn
~)er.spec/ii~adas ot~anizações estatais c..) go~~et-ttark
realizar n gestão do território, é dividit*a slra j~oj)?llap%~
em
irtiidades geograficas menores e hierarqtricmienrc.e
relacic~tin'ns (Rei~el,1989b), dejttit- limites e demarcar
.frottteirm (13ourdieir, 1980). (Oliveira, 2004, p.23)
"

Sendo assim, podemos afirmar que a noção de territorialização é

"...irma ittler~~ettção da esfera política qire nssocin


de .forma yre.~criti~~a e ittsofismai~el- irm corljirti/o de
it7di1~idiro.s e gr1rpo.s n liniites geograjco.~bem determittndo.s.
L'! es.w nto j)olitico - coti.s/i/iridorde objetos eftiico,~ atra~~és
de tiiecatri.snio.s arbitrcírios e de arbitragem fito sottido LJL'
exiel-roresa pol>~rlação considerada c reszrltat~tedas relaç6e.s
de . f i r p etilt.e os diferetttes grtqms qire ;ntegrn,ii o f3,stnd(1)-
cpre es/olr /)rol)o~ldo
/orna/.como.fio co~rd~r/o~'
da i~ri)e,s/i~p%c'
a ~ ~ / ~ ~ o o(Idem,
I i c ~p."
2 3.)

A idéia de ierri~oriali~açiiorios faz pcnsar dctiiro dc iim quadro histOr-iço

determinado, onde a ação do Estado sobre os grupos étnicos, circunscrevendo-os i.erritoria1

e administrativamente, dcsencadcia a sua reorganização enquanto coletividades políticas,

que elaboram identidades e formas de representação próprias, reformulando, inclusive, 0

seu universo cultural, priricipalmeriie, na relação com o meio ambiente, corn o sagrado e

com o passado (Oliveira, 2004, p.24) No tocante a identidade e a cultura

"...Asqfinidades ctnlftrrais otr li~lgiiística.~,


bem como
o.c iii~~etrlo~
qfe/ii)o.ce hhisiQrico.spori)enftrraexi.c/e~l/escrlfre
os merí~h~.o.c.
des.sa ~n~~idade (arhifrzirin
poli/ico-nd~ííi~~i.s/rafii~n
e circtrr1,cfnrícia~,
serfio relrabalhad0.spelos pr(jprios .c~!jci/o.s
ení Irní co~ífexfo hisfórzco deiermir~adoe co~í/rasfn~~o.c cont
cnrncferi.sfica.safrib~rída.~ aos membros de o~ifras rrnidades.
deflngrwldo rrríí processo de reorgantza~âosocioc~rl/tnral de
nn?plnspr-oporções. (Idem, p .24).
"

Os atuais contextos étnicos do Nordcste são resultado da produção colonial e

imperial de territórios poliétnicos coin vistas a homogeneização da população trabalhadora;

através de uma estratégia e de uma retórica da mistura14. A sua história pode ser

decomposta, basicamente, em dois grandes processos de territorialização e sucessivas

"misturas", operados em contextos radicalmente diferentes. O primeiro deles deu-se nos

séculos XVII e XVIII, quando as várias coletividades indígenas foram sendo reunidas e

catequizadas nos aldeamentos missionários, que se constituíam em pontas de lança da

colonização portuguesa. O segundo ocorreu no século XX, sob a égide da ação do órgão

indigenista oficial, que intermediava o acesso a ocupação fùndiária e forneceu as bases

14
Sobre o uso da categoria "inistura" para os povos indígenas do Nordeste veja-se Dantsa et All.. 1992;
Oliveira. 2004 e Arruti. 200 1.

xxxv
jurídicas e sociais para a viabilização das identidades étnicas indígenas em situações de

intensas disputas por recursos e coiicentração f~indiária.

Tomando por base esses conceitos, nosso interesse nesta dissertação é compreender

as situações históricas vividas pelos Potiguara e os principais processos dc interação que as

estnituraram no último século. A disscrtação cstá, dcstc modo, dividida cni quatro

capítulos que tomam uma perspectiva histórica e situacional como fundamentais para 0

entendimento do campo intersocietário em questão.

+
O capítulo um é intitulado provocativamente de O/'lge/7.s!?,com exclamação e

interrogação, pois indicamos a surpresa e a dúvida sobre as idéias correntes de .que os

índios de hoje se explicam por suas oriscns primitivas e pela manutenção ou perda de uma

essência qualquer. Ao cabo desta crítica apresentamos um panorama da história Potiguara

do século XVI ao XIX, fundamental para entendermos como uma forma de org,anizaqão

étnica se reconstrói a partir da inserção de populações nas estruturas de uma


P
sociedade

colonial. ,. .

Nos dois capítulos seguintes delineamos três situações hist.óricas vivenciadas pelos

Potiguara nos últimos cem anos e que possuem um peso profùndo na estmturação de suas

formas de organização e nos dilemas sociais e culturais que atravessam

contemporaneamente

Partimos da hipótese de que, mesmo após a demarcação das sesmarias de São

Miguel e Monte-Mór, realizada na década de 1860, continuou a desenvolver-se uma forma

de campesinato étnico em conflito com o acirramento de relações de patronagem e


grilagem de terras até que, a partir da década de 1920, este campo passou a sofrer as

injunções da presença de duas poderosas agências de contato: a Companhia de Tecidos Rio

Tinto e o Serviço de Protcção aos Índios.

Estas duas agências vão çoiiSortnar estruturas difcrcntcs dc cxcrciçio do podcr, dc

organização da vida cotidiana, de controle dos recursos econômicos e de viabilidade da

identidade étnica que perdurarão de forma mais ou menos distinta - embora coin muitas

inter-relações - até a década de 1980.

O segundo capítulo abordará o quadro de relações dos indios com o órgão

indigenista oficial, uma situação histórica essencial para a compreensão da orga~iização

social Potiguara em relação com o reçirne de ittdianidade (Oliveira, 1988) estabelecido

pelo Serviço de Proteção aos índios e continuado pela FUNAI. Este tópico foi abordado

;C: Pures (2002), a partir da crítica aos documentos do órgão oficial. Orientamo-nos então

para a reconstmção deste processo através da memória dos índios em diálogo com o que
i

foi salientado no trabalho citado Aqui abordaremos ainda os pontos relacionados

identidade étnica, aos processos de constituição de lideres, aos faccionalismos e às

retóricas acusatórias da "mistura" acionadas nas situações de disputa por recursos

O terceiro capitulo tratará da análise do regime de terror que a Cotnpanhia Rio

Tinto implantou nas terras da antiga sesmaria de Monte-Mór, dando principal atençgo aos

temas da repressão e da patronagem como elementos inibidores da manifestação da

identidade étnica. O principal recurso utilizado aqui será a memória social dos habitantes

da terra indígena. Este capitulo trará também a etnografía do processo de i.egularização da


terra indígena Potiguara de Monte-Mór, destacando a elaboração da identidade étnica,

constituição de formas de representação política e produção cultural.

No desenrolar destcs dois capítulos prctendernos mostrar corno estas duas situações

se entrelaçam atualmente na constituição de uma terceira situação que não se reduz a

presença de uma única agência ou a divisão do campo entre duas formas dt: poder

autocrático, mas a complexificação das relações sociais com a multiplicação de agências,

atores e fluxos num campo intersocietár-io cujas fronteiras étnicas e territoriais estão em

expansão e por isso mesmo em uma ferrenha disputa. Estes conflitos são drainatiza.dos nos

processos de demarcação das terras indígenas, que são vividos como formas de

reorganização das relações sociais

Por fim, o quarto capítulo apresenta, amparado nos dois anteriores, os dilemas

inerentes ao processo de in/er?s$cação c~rl/irralvivido pelos Potiguara, principalmente em

função das mudanças operadas no campo social. O toré, o "resgate" da língua


,'
itupi, a

implantação da educação escolar indígena e as comemorações do dia do ,índio são

trabalhados como a exposição intencional de referenciais e visões de mundo por parte dos

grupos políticos indígenas concorrentes na relação com as agências presentes, tornando-se

parte de uma linguagem da etnicidade que atualiza ou transforma esquemas de poder

visen tes.

Por fim, nas considerações finais, apontamos a partir das interpretações aventadas

os prováveis direcionamentos que o campo vêm tomando, retomando de forma sucinta as

principais argumentações do texto. E, como finalidade maior deste panorama, e1enc;amos

as possibilidades de novas pesqiiisas que se evidenciaram.


DADOS DEMOG~~ÁFICOS

Tabela I - População Potiguara no decorrer do Século XX.

Fonte: Dados do SPI e da Funai citados por Moonen & Maia, 1992.

Tabela I1 - Populaqão residente, por cor ou raça, nos municípios de Baía da


Traição, Marcação e Rio Tinto - Paraiba.

População Residente
Cor ou Raça
Municípios Total i Sem
Declaração
2E-
4;
7C
13;
27 26C

Fonte: Censo Demográfico 2000 - Resultados da Amostra. IBGE, 2002.


População Indígena no ~Municipiode Marcação

ALDEIA População
Breiinho 228

Estiva Velha 288


Griiniiina 263
Jacaré de César 320
Jacaré de São Domingos 418
1 Lagoa Grande 337
/ Nova Brasília 257
1 Tramataia 588
1 Marcacáo/Três Rios 648
I Total 3.953 1
Fonte: FLNAI - AER João Pessoa/PB e FUNASA - DSEI Potiguara

População Indígena no Município de Rio Tinto.

Aldeia População
Jaraguá 52 1
Silva do Belém
Vila Monte-Mór
1 Total
325
1.231
2.077 /
1
Fonte: FUNAI - AER João Pessoa/PB e FUNASA - DSEI Potiguara

População Indígena no Município de Baía da Traição

Fonte: FUNAI - AER João PessodPB e FUNASA - DSEI Potiguara


ICONOGRAFIA

C..

,-.
O !

-'.J

Mapa apresentando a situação das terras Potiguara (circundada ) em relação a Joiio


Pessoa, capital do Estado da Paraiba.
. . . . . .......
-"., -.,..
. ". . . ...

......

. . . . . .. -- -- -

L-
Mapa das terras indígenas Potiguara, identificando as 26 aldeias que compõem
a etnia. Adaptado de Atlas das Terras Indígenas do Nordeste, 1993, p.41.
. . . . . ... ..- - - - -.. - -- - -. --- --- - ... - -
. .- -. --.
Baía da Traição. Fonte: IBGE

XLII
Mapa do município de Rio Tinto. Fonte: IBGE.
XLIII
Estandarte na porta da oca onde Mazinho produz artesanato. Forte. 12 de agosto

de 2003. Foto: Estêvão Palitot.


ORIGENS!?

1.1 . A BUSCA PE1,O M I T O l)E 017 1(;1?M

"Os primeiros desta lingtla se


chamão I'ofyguaras, senhores da
Parahyba, irinia léguas de Peníambuco.
senhores do melhor part do brasil e
grandes amigos dos .france.ses. e com elles
conirafarão aié agora. casando com elles
sttas .filhas;"(Fernão Cardim, 11583-15901
1F80j p. 101)

Em setembro de 2001, eu estava na Vila São Miguel, acompanhando uma reunião


.. 'I

preparatória para uma conferência sobre direitos humanos com algumas lideranças

Potiguara. Durante um dos intervalos, fiquei conversando com lolanda, professora

municipal e aluna do curso de terceiro grau indígena na Universidade do Estado de Mato

Grosso - UNEMAT, em Barra do Bugres - MT. Ela me contava como estava sendo a

experiência de fazer um curso universitário especifico para formação de prófessores

indigenas, com turmas formadas por índios de vários povos, em cursos modulares durante

os meses de janeirolfevereiro e julholagosto. O curso oferece oitenta por cento de suas


vagas para estudantes indígenas de Mato Grosso e o restante para os povos indígenas de

outros estados. Dos povos do Nordeste apenas os Potiguara da Paraiba (01 aluna), os

Tapeba do Ceará (02), os Pataxó e Tuxá da Bahia (03) e os Wassu de Alagoas (01)
possuíam estudantes fazendo o curso.
Numa das primeiras aulas de biologia, a sala de aula repleta de alunos Xavante,

Bororo e Xinguarios, rtllctias os dois rtliirios Tapcha c lolanda csiavani r-cpreseiitando os

cstudaritcs do Notdcstc. A aula c1.a sob1.c a oi.igcrn das cspcçics c o pi-orcssor pcdiu para

que a turma contasse a origem do mundo segundo as tradições de seus povos. E assim.

cada índio que falava, dizia como o mundo havia sido criado pelo passarinho que espalhou

a terra com suas patas c asas, pelos sercs que vieram do fundo das águas e outras narrativas

que salientam a diferença entre a perspectiva indígena sobre a origem do mundlo e a dos

"homens brancos". Quando chegou a vez dos alunos do Nordeste, eles perceberam que não

possuíam histórias semelhantes para contar e, entre angustiados e envergonhados, disseram

que não podiam narrar seus mitos de origem porque eram segredos frihais. Deveriam pedir

permissão aos pajés e aos mais velhos para que revelassem suas histórias sagradas e, que

no próximo módulo do curso, quando retomassem de suas aldeias poderiam falar, pois

estariam autorizados pelos "mais antigos" para contar as histórias secretas das suas tribos.

'I

Iolanda me contou esta história de forma bastante descontraída, entre risos, e

salientando a rapidez de raciocínio que os livrou de passarem por um vexame. Contudo.

logo depois, mudou sua expressão e disse de modo enfático e com seriedade que ela e

outros Potiguara precisavam se reunir e elaborar um mito de origem para que ela pudesse

apresentá-lo, não só aos seus colegas e professores em Mato Grosso, como para-qualquer

outro interlocutor, de modo que ficassc claro para os outros que os Potiguara possuem uma

história indígena própria e que sabem contá-la. Que este saber os legitima como índios

plenos e não restos de um passado de perdas. A necessidade de criação da narrativa de um

mito fundador próprio, segundo lolanda, era urgente.


Esta "anedota" de campo nos reniete a alguns problemas hndamentais para a

etnologia das populações indígenas do Nordeste, em especial nos temas que dizem respeito

aos processos de construção de suas identidades étnicas, da sua dinâmica histhrica e dos

elementos de cultura que apresentam para estabelecer a sua diferença perante os não-índios

e rncsino os índios de outras regiões.

A suposta ausêiiçia dc uiii iiiito dc origem próprio ao grupo e a iiecessidade de criá-

to e apresentá-lo frente a outros interlocutores revela os dilemas que são colocados aos

grupos étnicos indígenas que vivem em regiões de colonização antiga. Produtos do mesmo

processo histórico de incorporação dessas populações a sociedade nacional, uma percepção

linear da história e uma visão da cultura como um agregado composto por itens de formas

e conteúdos estanques tomam paradoxais a existência e a (re)criação atuais de identidades

coletivas, que são definidas, exatamente, pela aiegada continuidadc com povos pré-

colombianos. Do mesmo modo, a ausência de traços físicos "tipicos de índios" ou de uma

língua própria apenas contribuem para reforçar a estranheza e o desagra/ do senso

comum em relação aos povos indígenas que vivem nestas áreas, como os Potigua~a.

A idéia do segredo, assim, faz parte de uma estratégia indígena de construção da

sua especificidade frente aos não-índios, balizando a fronteira étnica e singularizando o

grupo (cf Mota, 1996). Não é o conteúdo do segredo que importa, mas o fato da crença na

existência dele ser compartilhada pelos grupos sociais em interação (índios e n5o-índios)

que permite a sua eficácia simbólica e social: a elaboração das fronteiras étnicas e a

qualificação positiva dos índios pela reafirmação constante da posse de um bem de valor

inestimável que deve ser resguardado daqueles que não fazem parte do grupo. O segredo é

relacional, em alguns coiitextos é relevante e acionado, em outros não. Em meu contato


com os Potiguara, poucas vezes tne vi diante de posturas nas quais eles me

obstaculizassem algo, alegando ser segredo tribal. Contudo, a reserva e a discrição fazem

parte do universo de temas ligados a religiosidade presente rio toré e que têm a ver com a

manifestação dos espíritos dos antepassados.

Mais operacional que a idéia do segredo na lógica das relações interétnicas, para os

Potiguara, são as retóricas da perda e da mistura como elementos desabonadores e. que Ilies

retiram a autenticidade, reforçando uma posição subaltcrna cm relações de dependência

com agências oficiais e particulares. Daí o investimento que certos grupos Potiguara

realizam no "resgate" de sua cultura como parte de um processo de mudança de status e

controle dos recursos naturais e sociais advindos da sua condição de índios.

No campo social do Nordeste indígena as retóricas da perda, da mistiira e do

segredo atuam como foi-mas de resolver, em níveis diferentes e para grupos distintos, a

tensão causada pelo contraste entre os modos de vida específicos dos povos indígenas
'I

contemporâneos e as representações que a sociedade nacional faz a seu respeito: de como

eles devem ser e que traços dever11 ostentar para comprovar a sua continuidade histórica

com os povos pré-colombianos.


Durante muito tempo os povos indígenas do Nordeste foram vistos como resíduos

de antigas nações, outrora riuincrosas, plcnas c soberanas. Sua história era tida como o

desenrolar de perdas demográficas, econômicas e culturais que os transformaram em

remanescentes indígenas a ponto de darem o último passo em direção a assimilação

completa na nossa sociedade: o abandono inevitável da consciência de uma identidade

étnica diferencial em favor da ititegi.ação corno camponeses proletarizados.

Os Potiguara, em especial, são alvos desta visão por parte de seus vizinhos não-

índios. O seu território tradicional é citado como de ocupação indígena desde os

primórdios da conquista da Paraiba. A Baía da Traição possui, na história canônica e

popular do estado, o mesmo papel que Porto Seguro e Coroa Vermelha no inzaginário

historico nacional (cf. Grünewald, 2001): teria sido nas praias da Baía da ,,Traição que

ocorreram os primeiros contados entre os ameríndios e os europeus iio que é hoje a costa

paraibana, quando um grupo de tripularites da nau em que viajava Americo Vesphcio, em


1 1501, foi capturado e devorado num rito antropofágico. Um acontecimento que ficou

registrado como uma traição por parte dos índios, que teriam ludibriado os niaririheiros

para que desembarcassem na praia. Este episódic está narrado numa Ie!/er.a (carta) de

Américo Vespúcio, a qual é tratada pelos historiadores mais tradicionais como "o primeiro

documento paraibano", algo similar à carta de Pero Vaz de caminha'.

I
Para uma transcrição deste docuinento veia-se A!irreida, Horicio dc. Hir!ória da Paraiba. Toiiio I. JWAO
Pessoa: UFPBIEditora Universitária: 1996.
Para a populac;ão c uma parcela iiiiporlantc dos intclcciuais paraibanos. a cxisiência

contemporânea dos Potiguara na Baía da Traição e seus arredores constitui uma prova viva

do passado de lutas que originou o estado. Geralmente, nos livros de história da paraíba2 a

presença indígena é relatada nos capítulos que tratam da conquista do litoral e da ocupação

holandesa no século XVII, notando-sc unia total auscncia nos s6culos scguiiites, até que

numa pequena nota de fim de capitulo, fala-se rapidamente dos ~ilfimosreniane.vcenfe.s

indígenas do Estado, que vivem eni estado de pobreza e descaracterização cultural tia Baia

da Traição.

As representações históricas são reforçadas ainda mais pela presença de uma

bateria de canhões do século XVIII na aldeia do Forte, vizinhos a casa do Posto Indígena.

Como a Baía da Traição tomou-se um balneário de grande afluxo turístico nas últimas

décadas, uma outra representação se faz bastante forte, a da primitividade dos índios, ou

melhor. a ausência desta primitividade, o que corrobora a percepção de que os Potiguara

são os remanescentes dos índios do passado, degradados e deprivados pela colonização.


,'
A

própria produção etnológica sobre o grupo, enquanto discurso científico autorizado.

reforçou essa percepção, como podemos ver nos trabalhos de Frans Moonen (1992.), onde

o tom alarmante e emergencial percorria os textos, tomando a forma de denúncias contra a

usurpação das terras e a leniência da ação do órgão indigenista na defesa dos direitos dos

índios

Curiosamente, se os Potiguara se ressentem da ausência de um mito ftindador

próprio, no mito fiindador da Paraíba eles tem um lugar e um destino garantidos: o de

eternos monumentos fossilizados na memória oficial do Estado, testificando com a sua

Falo aqui da Paraiba. por eslarinos Iriitaiido de iiin gnipo Icrriloriali7ado ncstc estado. in;is podciiios
cstcndcr essa critica ao resto da prodiição Iiistoriogr;r7fica inassificada distribuída nas escolas brasilciras.
existência o inevitável triunfo da "civilização". Esse é um paradoxo do imaginário

histórico brasileiro sobre os povos indígenas e que nega a essas populações o papel dc

sujeitos, como diz João Pacheco de Oliveira na introdução de um de seus livros:

"Ora (os 'brancos') es/âo si/rrados rla hi.srória e


c~aracferizant-epela complexidade; oufro.~(os 'índios') são
conto estci/tras, corlí,r/rlr~6es acabad~~..rent /errílo,s de
sociabilidade e htrmartidade, ntontrmenlos de pedra qrre
podem ser des/rtrídos, deformados ou parcicalmet1/e
clnn~ficahs - ntas qtre se rtão o .forem se apreser~larão
.sentpr-e id2rt/ico.~a conto .forartt corlcebidos." ( 1 999, p. 7,
parênteses nossos).

Esta é a perspectiva exotizante que envolve os campos de interação social nos quais

os Potiguara se constroem enquanto sociedade indígena. Só após vencermos estas posições

é que poderemos lograr êxito na compreensão de como se processa a sua identidade e das

suas formas de organização social e cultural. A superação de tais representações estáticas e

simplificadoras pode ser alcançada através de um olhar histórico, que nos desvele algumas

das múltiplas encruzilhadas de possibilidades vividas pelos índios no litoral paraibano. Um


I.

olhar que se pretenda problematizador onde, a descrição dos quadros determjnados que

envolveram os acontecimentos seja utilizada como ponto de partida para a condugão da

pesquisa. Portanto, resta-nos optar agora por qual perspectiva histórica: uma constitutiva,

que leve em consideração as interações e a inserção dos indígenas em campos sociais mais

amplos; ou uma etnohistória, que os isole enquanto grupo discreto, integrado e pe~-sistente

no tempo e no espaço.
De acordo coin Marileiia Chauí (2000) todo mito fundador possui um caráter a-

Iiistórico e teleológico, que tcrnii~~a


por encobrir. a dinâmica histhrica através das quais as

sociedades se organizam. Se nos dcixarmos levar pela ilt1si7oatlt(icíot~e(Grunewald, 2004,

p.140). de que os Potiguara atuais são o mesmo grupo social que vivia na Baía da Traição

no século XVI, se aliou aos franceses e combateu os porlugueszs, não seremos ca'pazes de

perceber como uma identidade étnica específica foi se construindo na faixa de terras do

litoral paraibano nos últimos cinco séculos. Devemos, necessariamente, abandonar uma

visão continuista e perceber como uma singularidade étnica e social emerge atraves das ,

descontint/idades hi.stóricns (Idem) criadas pelos processos de conquista e colonização do

litoral nordestino até os dias de hoje. Isto posto, deixamos de lado qualquer recurso a idéia

de uma "essência" atemporal e substaritiva que os caracterize enquanto grupo.

I*

Os Potiguara não são menos índios pelo caráter descontínuo de sua história ou por

não falarem a língua tupi, nem apresentarem diferenças somáticas e culturais significativas

frente a população não-indígena envolvente. Pelo contrário, se há um fio condutor, e um

elemento contínuo entre os Potiguara do século XVI e os atuais é a constante refabricação

de uma fronteira étnica nesta região. Por mais que os processos históricos tenham trazido

modificações ao campo social, existiram elementos de ordem sociológica que permitiram a

manutenção e a positividade de uma identidade étnica indígena que serviu de abrigo a

existência dos Potiguara enquanto grupo dentro da sociedade regional e nacional.


Esia identidade iião se coiistruiu :i0 vazio, inas dentro de sif11nq6e.sh i s / ( j r i c a ~

(Oliveira, 1988) concretas, marcadas pela presença de múltiplos atores sociais, inclusive

organizações estatais, comerciais e religiosas. Os Potiguara contemporâneos, por mais que

se considerem desceiidentcs dos índios do século XVI quc dcvorarám os coinpanhciros de

viagem de Américo Vcspí~çio,só 11o<lemter a história de suas formas de organiza~ãosocial

relativamente remontadas até o final século XVII, quando foram criados os aldeamentos

inissionários de Nossa Sciiliora dos i'razcics dc Moiitc-Mór ou aldcia da I'rcguiç;~c São

Miguel da Baía da Traição, no litoral e interior entre os rios Mamanguape (ao sul) e

Camaratuba (ao norte). É a vinculação entre as famílias indígenas aldeadas e o território

destas missões que irá constituir o dado fundamental para a compreensão dos processos de

reelaboração das fronteiras étnicas nos últimos séculos, nesta região.

Enquanto população indígena os Potiguara não são a redução progressiva da grande

nação de língua tupi, de que nos falam as crônicas quinhentistas, até um punhado de

remanescentes atuais, como algumas interpretações querem crer. Pelo con~rário,assim

como outros povos indigenas do Nordeste e de outras regiões de colonização antiga no

Brasil, eles são o resultado dos processos históricos de ferrifurializn~ãu(Oliveira, I, 999) de

vários povos e segmentos de povos nas'instituições coloniais de controle do território e da

população que foram os aldeameiitos missioiiários e seus sucedâneos civis, as vilas de

índias3. A existência de tais aldeamentos forneceu as condições necessárias~~paraa

formação de campos intersocietários que permitiram a manutenção da eficácia. social,

cultural e legal de certos alinhamentos étnicos. A permanência, mesmo que latente, destes

alinhamentos forneceram as bases para os ressurgimentos de povos indígenas durante o

Outras parcelas dc população iridigcna identificada lia Iiistoriografia coiiio Potiguara ioraiii aldcadas C111
divcrsos locais como o litoral do Rio Grandc do Norte (Ares, Estremozl Vila Flor c São José do Mipibu). dc
Pernambuco (Goiana, Escada c Barreiras) e do Ccará (Caucaia, Messcjana. Paraganba). além da scrra da
Ibiapaba (Viçosa) e no Maranldo (Ilha de São Luís).
século XX, quando da atuação de agências indigenistas oficiais ou missionárias nestes

cainpos sociais.

A Iiislói-ia dcsscs povos, B assiiii, iião a dc uina çontiriuidadc irrcfutávcl (tcri-itoi-ial,

cultural e biológica) com seus antepassados, mas a de processos descontinuos de

reorganização social e cultural ao logo do tempo e de instituições diversas. São populações

descendentes de grupos sociais que foram controlados por divtrsos regimes jurídicos desde

o período colonial, o que interferiu profundamente em suas formas de organização e em

seus sistemas classificatórios e sin~bólicos.Pois, como argumenta Oliveira

d'Mtii/as vezes um grliyo dorniriado rtão k rnarifrdo


conto Iinma lrrtrdade isolada, nms é iricor/?orado a o~ifrns
yo/)trla~õe.s(igia/rneti/edomirtada.s orr, iriijer:scrrnert/e,.fi.aqõe.s
da poprila~ão domirrartfe), sendo dividido, sribdi~)ididoe
son~adoa outras unidades de diferenles lipos. Esq~rarfejrrdo,
morifado e remonfado sob modalidades dii1er:sa.~e em -
diJerertfes cortfextos sittracioriais, qlral a confri~~irdade
hisfórica e cirllural que um tal grupo domiriado pode airida
apreserifar?" (Oliveira, 1999, p. 172).

Desse modo, a tarefa da investigação histórica e antropológica sobre os povos

indígenas atuais deve estar atenta aos processos de reconstmção social que foram

vivenciados como rupturas e reordenamentos das relações de poder, cuja "~ínica

cor~fiririidade
que fcrlvez possa ser. /)o.s,sívelsrr.s/ertfaré aqirela de, rec~i/)ercnicioo processo

histórico vivido por fal grilyo, mosirar como ele refabricozr cortstmtfentenfesira ihidade e

dfleran~a
face a oufrosgrri/)os corn os clricris csfeijc.ent iri/erap?o" (idem, p. 1 72).

Se a "certeza" da continuidade histórica dos Potiguara nos territórios da Baía da

Traicão e Monte-Mór é um obstáculo a percepção etnológica desse grupo, ela deve ser

problematizada na análise antropológica, de modo que possamos avançar na compreensão


daquilo que Eric WolT (2003) idcritiíiça como os proccssos de constituição de nexos e

nódulos de institucionalização social em meio a fluxos e correntes de poder que criam

efetivamente os grupos sociais ao atravcssá-los e incorporá-los a campos sociais e redes de

relações mais amplos. Dcstarte, a alteridade indígena não é algo dado, mas sim, construído

I~istoi.icanicntc,c sO C passívcl tlc scr pci-ccbida pela análisc das re!açõcs sociais nuin

determinado campo social, através das categorias classificatórias acionadas pelos atores e

dos padrões de interação, interdepcndência e relações de poder que produzem a dinâmica

do campo.

É nesse sentido que buscamos descrever os indios Potiguara nesta dissertação,

~ C Z Cz resultado de um longo processo de reelaborações sociais e culturais, realizadas na

interação com vários sujeitos sociais e, especialmente, com agentes e órgãos de Estado.

Para tanto, falta-nos uma pequena explanação sobre os principais processos históricos que
*
envolveram os índios no litoral da Paraíba. Não vamos realizar a análise da trajetória

histórica dos Potiguara, como numa sucessão de eventos sobredeterminad~>,s


uns pelos

outros, mas tentar operacionalizar uma visão sobre processos de mudança .social que

consideramos importantes para o conhecimento desse grupo étnico, destacando os

processos de territorialização (Oliveira, 2004) experimentados pelos índios nestes sécuRos. ,

As bases dos processos de territorialização encontram-se na segunda metade do

século XVII com a constituição dos dois aldeamentos, mas não sigriificam de modo a.l$um

que esta é uma história contínua e linear. Pelo contrário, estamos tratando com muitos

desencontros e descaminhos. Idas e vindas. Idas sem volta. Processos inacabados,

bruscamente interrompidos, mudanças de rota. Retomadas de perspectivas e idealizacão de

projetos.
Para compreendei-mos os I'oti~uara de hoje, precisamos, olhar para os elementos

fundamentais de sua existência e para os processos históricos que vivenciaram desde os

momentos de sua territorialização. Em meio a volumosa torrente do devir histórico,

represaremos apenas alguinas águas passageiras. Clieias estrondosas de docuinentos e

relatos que nos permitirão reconstruir uma imagem fugaz dos Potiguara em momentos
r
cruciais, tais como: a dcinarcação realizada pclo crigcrihciro Antoiiio Gonçalves da Justa
I

Araújo; a terrível implantação da Fábrica da Companhia de Tecidos Rio Tinto; a chegada

do Serviço de Proteção aos índios e o poder tutelar; a presença dos agentes missionários e

da universidade; a implantação das usinas; a luta pela demarcação das terras indígenas.

Tudo isto constituindo as descoiitinuidades históricas por meio das quais a identidade

étnica dos Potiguara vai ser refeita no decorrer de séculos e décadas.


1 . 4 . A O 1,ON(;O 1)A I I IS'I'(>I<IA: O S I->O'I'I(;IJAI<A 110 SfiCIII,O XVI AO XIX.

' l i i l - (~(piir i t ? ~liwlro (li: t t l i í ~ n ( :i!( ~ ~


conflilos, que conip(Sem as esrra1L;qia.s
indígenas de sobrevivência e &fèsa de
.Tens inleresses polilico.~ e /erriloriai.~. "
(Potiipa, 2003, p. 208)

As situações históricas não são periodizações ou ciclos temporais, mas cotistruções

analíticas elaboradas pelo pesquisador para dar conta das estruturas de poder e dos padrões

de inter-ação entre os atores sociais Definida como um conceito operacional, a noção de

situação histórica é uma elaboração do investigador para proceder a descrição e análise do

campo e não um dado naturalizado ou uma periodização tortf coitrt. Existir"ao tantas

situações históricas distintas quantos forem os recortes efetuados pelo antropólogo e a

amplitude destes. O processo de demarcação de uma terra indígena pode ser uma situação

histórica, bem como todo o período de conflitos que envolvem as duas ultimas décadas

onde a demarcação das terras e a prcscnça das usinas tornaram-se um dos eixos principais
'1

de disputas políticas e sociais no campo Potiguara.

Propomos, aqui, sustentar o argumento de que as populações indígenas do litoral

norte da Paraíba, geralmente conhecidas como Potiguara, viveram diferentes situações

históricas desde o século XVI, que se caracterizariam por diferentes quadros de interação e

relações de poder entre eles e outros sujeitos sociais, marcados, como diz Cristina Pompa

na epígrafe deste i tem, pelas "e.s/r.afigiasitidigetlas de sohrevivêticia e defesa de serts

ittteresses ~~olíficos
e ferriforiais. Os pequenos resumos a seguir são apenas descrições
"

simplificadas dos quadros históricos passados, que i:ão se esgotam no iaventário sucinto de

atores e processos que enumeramos. Cada situação dessas é passível de uma análise em

separado de sua complexidade histórica e social, um trabalho que não caberia nesta
dissertação. Porém, não podíamos continuar nossa empreitada sem nos referiirmos aos

processos históricos vividos pelos indios e que, efetivamente, promoverain a sua

reorganização social e cultural ao longo desses cinco séculos de colonização4. Salientamos

que o nosso interesse se restringe aos processos quc idcntificamos em três recortcs que

realizamos no último século e cuja análise será o escopo dos capítulos seguiiites deste

trabalho.

liiicialmente, poderíamos falar de uma sllr~aqão hi.st~jricaprk-co~rtato, ondc as

relações sociais estavam ceiitradas nas guerras intertribais e na expansão dos povos tupi

pelo litoral do que viria a ser o Brasil e cujos principais atores eram os povos nativos cujas

lógicas de alianças e oposições, fusões e cisões, só podemos perceber em parte, na leitura

das forites quinhetistas.

Desde os limites da capitania de Pernambuco e avançando pela costa, no sentido

sul-norte e depois leste-oeste, os grupos locais denominados Potiguara seriam


,'
a ponta de

lança das migrações tupi que vinham avançando desde Iguape, no que atualmente é o

litoral de São Paulo, e que, no momento da chegada dos primeiros navios europeus tinham

como limite máximo de sua exparisão.~litoral entre o Rio Grande do Norte e o Ceará

(Fausto, 1992). De acordo com o consenso da maioria dos estudiosos do assuiito (ver

Rodrigues, 1986; Urban, 1992 e Fausto, 1992), os índios de língua tupi estariam se

deslocando ao longo da mata atlântica desde a bacia do rio Paraná, onde se separaram dos

Guarani, e desalojando os grupos tapuias das melhores localizações próximas ao mar.

"cveinos argumentar que sc csiste uina coiisidcrávcl produçiío Iiistoriográíicac ctnológica, ainparadas nuin
rclativamentc dcnso conjunto dc fontes. sobrc as rclaçõcs entre indios e brancos (nas quais os Poiiguara sc
!::C!:%) nos séculos XVi e XVJJ. espccialinente durante o período Iiolandês e, se lia para o séciilo XX urna
produção antropológica e docuincntal (principalmente do SPI e da FUNAl) sobre os índios Potiguara da Baía
da Trniç;?o c dc Monic-Mór. o incsiiio não podc scr dilo sobrc os séciilos XVIII c XIX. sobrc os qiiais. apcsar
coiiliccida. n20 1iá iicnliuina analisc iiiais dctalliada eiii !cr!!!n? d~
da csistência de fontcs scr rn~oa\lclii~cntc
produção histórica.
BIBLIOTECA CENTRAL / UFPB
Ocupavam os nichos ecológicos mais propícios para a agricultura de coivara, tipica da

floresta tropical (mandioca, macaxeii-a e milho), a caça e a pesca, ao longo dos rios

próxiriios a costa c nas fraldas úmidas das serras interioranas.

Quando da chegada dos portugueses e outros europeus na virada do séciilo XVl,

faziam poucas gerações que os índios de língua tupi haviam se estabelecido no litoral do

Nordeste. Sua expansão dava-se não pela conquista territoria1 por parte de u m grupo

fortemente organizado e centralizado mas, pelo constante: fracionamento de seus grupos

locais num processo de crescimento populacional e constantes guerras que doniiiiavam a

vida social destes povos5.

"A inimizade r.eci)~rocadi.s/ir~~,~iia


grri/~osde aldeias
aliacIns, ylie operavam se~pr1douma e,strii/iirade /ipo 'rede ':
as aldeias, rinida.s uma a lima, formavam rmr 'ccir~rirt/o
mul/icon~lini/ario*,capaz de se exparldir e se cor~trair
cor?fi)rnieo.s jogos da aliarlça e da guerra. Os limiles de.s,~a.s
'unidades' rlão são palpái~eis,nem defi~~i/i\ros:iim dia yoder-
se-ia es/ar de tini lado, 110 dia segiinte do oidro - ininrigos (e
ciir~ha<los)eram jristamen/e tobaiara: 'os do ha/ro lado ',
,

c01110 .urigere a e/imologicr muis 1,rovavel do /ermou. (I;austo,


1992, p. 384. Grifos no original)

Com a chegada dos europeus, 'iniciou-se uma outra situação, aquela das trocas

comerciais - pau-brasil, algodão, aves, especiarias, peles e mulheres por espelhos,

machados, facas, enfeites e tecidos - e das guerras de conquista. As relações sociais neste

período são marcadas pela confluência de interesses militares e comerciais entre índios e

europeus, que se alinhavam a partir dos interesses da expansão colonial no Novo Miindo e

das lógicas guerreiras das sociedades tupi.

sobre a guerra nas sociedades Iiipis veja-sc os iraballios de Fernandes, 119481 1989, 1970 e Fauslo. 1902.
Ao mesmo tempo em que as guerras nativas, movidas pelo desejo de capturar

inimigos para o ritual antropofágico, foram instrumentalizadas pelos colonizadores no

intiiito de defendcr a colhia dc povos hostis c conscguircm escravos, os índios

itistruincntalizaram as foi-$as coloiiiais, nurncricarncritc infcriorcs, mas dotadas dc recursos

teciiol6gicos e militares inais cliciciitcs, iia lógica de suas guerras (sobrc este tenia veja-se

as análises mais detalhadas constantes nos recentes trabalhos de Fausto, 1992; Pompa,

2003, ~lmeida,2003 e Silva, 2004).

A partir destes processos é que surgem na literatura historica as referências acerca

dos inúmeros grupos tupi denominados de Tabajara. Segundo Fausto, (1992, p.384, 385 e

391) o termo ibhajara, era uma categoria classificatoria dos povos tupi que servia para

denominar aqueles grupos com os quais podiam estabelecer relações de reciprocidade ou

de guerra alternadatncnte, advindo daí a sua dupla tradução como cm~hudoe it~imigo.

Este ponto sobre os Tabajara é importante de ser salientado, pois a historiografia


,'

regional destaca a aliança e o rompimento dos ~ a b a j a r acom


~ os potiguara7 çomo fator

preponderante para a fixação do primeiro povoado colonial português no território que

viria a constituir a capitania da Parahyba do Norte. Tentamos neste ponto desnaturalizar as

idéias a respeito de unia suposta unidade e diferenciação indígena em grupos bem

delimitados e segmentados nas oposições entre franceses e portugueses8, estaria

6
Ou. ao invés de falannos nuin grupo étnico Tabajara, poderíamos dizer os indios dc língua tupi liderados
por Piragibe c aliados dos poriugucscs (Silva, 2004).
5 !eniio Potiguara tainbéin não é dc íicil tradução e, inuito inenos, representaria uin grupo coeso c de
fronteiras sociais claramente dcliinitadas. Inicialincntcparecia designar os indios dc língua lupi da casta cntrc
o rio Paraliyba e o Poicngi que cornerciavaiii com os franceses e niantihliarn relações aiiibiguas de
convivéncia c conllito com os poriugucscs scdiados ein Pcrnambuco. Entrc as varias versões do nome variiar
encontrar corncdorcs dc c;iiniir;l;o(Mooiicii & M~iii.1992). iriascadorcs dc fuino (Pinto. 1935) c. :i16 iiicsiiio.
coiiicdorcs dc bosta (S;iiiipaio. 1987). AICiii dii csis!éiicia dc virias grafias: Potygu:ira, Potiguiir. Pot~goar.
Potyiara. Pitiguara. Pitaguav. Biittiigaris. Pitagoar. Pctiiiguaras. Potivara.
Sobrc as guerras dc conquista da Paraibn c urna crítica a Iiistoriograiía regional. coinproiiictida coin a
criação do mito fundador do estado da Paraíba. veja-s a tcsc dc Gonçalves. 2003.
representada em seus etnônimos. Pois, "l,orige de ser trma prufirrida ex/jrc.s.sãoda irriidad~'

de Irm gnrpo, Irm e/rioriimo r.esrr//a (geralmente) de um acidenle hisfórico, qire

i coricei/ira/izaclo como Irm n/o.falho. a,cvociack, a irm joxo de pcrlai~ra.~


,fi.~~qiier~/emeri/c e

corti qfci/o de chi.s/c"(Oliveira, 1999, p. 172. ParCintcses nossos). Ainda mais nos casos dos

ciiconti'os c dcsciicoiiii~oscoloiiiiiis, iios (1ii;iis os Iogas dc ii:ici.csscs c as giiçrras

provocavam constantes mudanças sociais, com grupos se fragmentando, se reunindo e

mudando de lado9

O contexto no qual se deram os primeiros contatos dos Potiguara com os

c~lonizadoreseuropeus foi marcado pelo estabelecimento de relações comerciais, guerras e

deslocamentos populacionais. Franceses e portugueses disputavam entre si o comércio de

pau-de-tinta com os nativos e as oportunidades de estabelecimento de feitonas e riúcleos

coloniais. Até a década de 1570 a ocupação colonial portuguesa restringia-se ao núcleo de

Pernambuco e Itamaracá, e suas relações com os índios avançavam e recuavam de acordo

com as mudanças econômicas provocadas pela expansão da lavoura cayvieira e da

procura por escravos (Gonçalves, 2003).

Os Potiguara, habitantes da Baía da Traição e da Serra da Cupaoba, representavam

o principal obstáculo para o avanço da cana-de-açucar nas terras ao norte de Pernambuco e

oscilavam a sua disposição nas relações comerciais com os portugueses e os franceses.

Uma legião de mamelucos, indivíduos mestiços, nascidos de relações entre marinheiros e

índias, e criados em meio as feitorias, percorriam as várias aldeias estreitando os laços que

uniam cada vez mais os dois universos: o indígena e o co!onial. O famoso episódio da

"Pagédia de Tractrnhaém", tido como o precursor imediato do avanço português sobre o

9
Para uma anhlise detalliada dcstes processos dc íraginentações, reuniões e niudanças dc lado. vcja-sc os
traballiosjá citados de Alineida. 2003; Poiiipa. 2003 e Silva, 2004.
territOrio Potiguara c a conscclucn~cruiidação da Capitacia Real d a Parahyba, revela

exatamente esse inundo da expansão colonial, d e iiitcrcsses, fronteiras e aliaiiças móveis e

fugidiasi('.

De acordo com Pompa (2003), o primeiro século da colonização terá um impacto

profundo nas sociedades indígenas, que será responsável por inúmeros deslocamentos

populacionais motivados pelas guerras e pela expansão da empresa colonial. Além dos

colonos, aventureiros, índios e mamelucos, o s padres missionários, especialmente

capuchinhos e jesuítas, desempeiiharão um papel fundamental no reordenamento das

relações sociais, neste cenário d e rápidas mudanças. As guerras coloniais entre portugueses

e franceses, a s migrações e fugas dos índios, a catequese volante e o s deslocamentos d e

aldeias inteiras movidas pelas necessidades da guerra o u da produção uniticavam uma

vasta área (da Paraíba a o Ceará) e grupos populacionais, tendo como epicentro das ações, o

núcleo colonial d e Pernambuco em oposição a s perspectivas d e vida livre e autònoma d o s

índios em aliança com o s franceses na serra da Tbiapaba e no ~ a r a n h ã o "

Após a coiisolidação da conquista dos pr-imeiros núcleos coloniais das capitanias da

costa entre Pernambuco e o Maranhão pelos portugueses, o quadro histórico será

fortemente abalado pela invasão holandesa e a renovação das alternativas a o domínio

colonial lusitano. Esta nova situação apresentará uma pluralidade maior d e sujeitos sociais

' O Este episódio quc csta descrito origiiialriiciitc no Sui~ri~tcirio


h s art~raclosque se.fizerar1r e guerras que se
deranl na conquista do rio I'aral~.vha(Aii61iiiii0, 1983) c lia obra dc Frci Viccntc do Salvador (1975) c
constantemente retomado e rciiioiiiado - coin uiii acciitiiado pendor roiiiântico - no capítulo priiiiciro dos
livros de lustória da Paraíba Não nos dcteinos nclc pclas razões de espaço já mencionadas. eiiibora sc-ia uni
excelente teina para estudo pelo nível de eiitrelaçainentodas relações sociais e dos diferentes irn;~giiilriosqiie
cercam as suas citaçõcs nos escriios Iiistóricos. Sobre cste cpisódio espccííico da coriquisia da Paraliyba
rc~ilctciiios
II
a tcsc citada dc Gonçalves (2003. p. 67 c scguii!ics).
Para iiina aiiálisc das iiiigrnçõcs tupi para o Maranlião vcja-sc Fcrnandcs (1989) c a rccciitc crítica dc
Poinpa (2002) sobre as inotivaçõcs dcssas iiiignçõcs na literatura ctnológica.
e dc opções políticas e religiosas com a cisão dos ítidios em grupos católicos e protestantes,

cada um apoiando um dos lados coiitendores.

Podemos, com isso, perccbcr a profundidade da interdependência cxistcmte entre

índios e europeus no mundo colonial, pois não era só através da adesão religiosa e militar

que se evidenciavam os alii~hamentosdos índios frente as potências coloniais ein disputa,

mas tambkm na própria administi.ação colonial, onde sc tornava patente a elaboração de

instituições de controle do território e da população, representadas pelas aldeias

missionárias católicas c calvinistas c pela rcunião de uina câmara de escabinos indígenas

na vila de Goiana (Mello, 1978). Outros exemplos eloqüentes da profundidade dessas

relacões são as cartas trocadas na língua tupi pelos capitães indígenas Pedro Poti

(calvinista) e Felipe Camarão (católico), convocando-se mutuamente a abjui-arem da

crença que professavam e a mudarem de lado na guerra de reconquista. Podemos perceber

.~ I. I /]ara
aqui que "o que sig~~!fica para o~rtros"(W olf, 2003 :
~ O I I I I S , abre oportlrr~idades

247) ao observarmos as lógicas faccionais que se criaram no momento em que uma nova
'I

potência colonial surgiu como alternativa.

Com a expulsão dos holandeses e a expansão das fi-onteiras coloniais pelo Sertão,

na seçunda metade do século XVJI, novas situações históricas vão surgir em decorrência

do restabelecimento das missões católicas para a cateq~esee o controle -dos índios,

liberando terras e administrando uma população essencial ?ara o provimento de braços

para a mão-de-obra e a defesa da colônia. Os aldeamentos missionários reunirão os índios

aliados aos portuguescs, que rcccbem as maiores bcnesses em tcrmos dc tcrras e titulos

honoríficos, como a família do capitão Antônio Felipe Camarão (cf Silva, 2004).
Na Paraíba, os indios dc língua tupi, já prolundamente transforinados pelas guerras

e pela dominação colonial, começam a ser aldeados e recebem, através de cartas de

scsmarias, tcrras ao redor dc sciis aldcanicntos. Ao longo da costa da capitania, quatro

missões vão ser instaladas para estes indios: Aratagui, Jacoca, Mamanguape e Baía da

Traição. Tereza Baumailn (1 98 1 , p. 45) cita várias cartas régias de 1701, 1703 e 1705 que

mandavam construir igrejas, enviar missionários para cuidar da conversão dos indios e

nlencionavam os indios de Baía da Traição e rio Cainai-atuba. Cita ainda uma publicação

b's padres Carmelitas em que estes "fitittat?ient 1 713 a selr cargo, as niissões dos a1deia.s
de Manía)tg.lraf~e,
da Ijaia da ihai~iioe da I'regriqa" na capitania da Paraíba, além da

missão de Igramació (Vila Flor) no Rio Grande. Alguns anos depois, os índios da missão

da São Pedro e São Paulo, em Mainanguape, vão ser transferidos para a aldeia da Preguiça

(Monte-Mór) em razão dos conflitos com os moradores brancos do lugar.

A administração missionária dos aldeamentos - que dura mais de um século - lança

as bases sobre as quais vão se reformular a visão de mundo, a organização,' política e a

noção de território dos índios aldeados. Estas instituições vão ser responsáveis pela

conversão dos índios ao cristianismo, pela sua integração ao mercado e por associar de

forma radical um rótulo étnico a uin' status jurídico possuidor de uma contrapartida

territorial.

O processo de catequese, civilização e, provavelmente, mistura com indios de

outras etnias no espaço das missões resultou na criação de uma categoria étnica dentro do

mundo colonial que incorporou as populações aldeadas como caboclos ou íiídios nínlaos,

sinônimos de crisfãm,do~í~e,sficado,.v.
Não é a toa que os documentos do Século XVITT já se

referiam aos habitantes dos aldeamentos dc litoral da Paraiba como "cahoclos de liiigra
Kera/'"2 (conf Dantas et Alli, 1992) Qualquer traço de especificidade étnica dos grupos

aldeados, ou um etnônimo mais adscritivo foram silenciados por essa imposição, calando

fundo na memória social, de modo que, ate lioje, os Potiguara utilizani-se, eiitre si, do

termo caboclo para designar aqueles índios tidos como mais antigos e "puros".

Contudo, o termo caboclo, enquanto uma construção do mundo colonial, traz em si

o caráter da mistura e do hibridismo. É uma denominação para populações cr.io~rlns

(Hannerz, 1997) no sentido em que designa tanto a miscigenação fisica - nunia de suas

interpretações correnlcs - quanio a çul~ural, ao deniarcar o staius de índio cristão,

civilizado, incorporado a sociedade colonial e que vive uma duplicidade constitutiva.

Elemento intermediário entre a selva e a civilização, "outro" por excelência, representando

a alteridade dos dois pólos justamente no espaço de sua fiisão.

Além de marcar os caboclos aldeados como uma categoria social híbrida, com

fronteiras maleaveis, os aldeamentos também forneceram um marco territori$ e jurídico a

partir do qual eles se inseriam na sociedade colonial. Durante os séculos XVll, XVIII e

XIX, ser caboclo era ser vinculado a um determinado espaço, referenciado pela igreja e

pelo santo padroeiro, e que derivava de uma circunscrição administrativa do Estado, as

aldeias, vilas ou povoações de indios. Essas dimensões, essenciais e constitutivas da

incorporação dos índios aldeados no empreendimento colonial foram traballiados por

Regina Almeida (2003) em relação as aldeias coloniais na província do Rio de Janeiro.

demonstrando como durante mais de trezentos anos os indios souberam apropriar-se das

12
Língua Geral e a denoininaç;?~dada ao conjunto de dialetos Tupi falados por boa parle dos povos
indígenas do litoral brasileiro e que nos séculos seguintes ao descobrimento transformou-se numa língua dc
CcII!2!", entre índios e colonizadores a partir de iim prksso que envolveu índios.'aventureiros. colonos:
comerciantes e padres. disseminando-sepor vastas regiões (Rodrigues, 1986).
categorias administrativas para fazerem valer seus interesses e construir espaços de

negociação e resistência dentro de um quadro maior de dominação. Pois,

"Ao cot~lrário das expeclalir)a.s, porlat~do, tlão


íieixcrram de ser ít~dios,nem saíram da história. Isso apotita
1)trtzr < r l)o.csihilit/~rt/
c/c. c..s/tu.~íío.s
dituttc. dtr recritrqfio L/c.
iden/idoJe.s, ctilitiras e hisiórias desses N1dio.s u1deado.s a
parfir de srras iieces.sidudes novas vir)ertciadaslia experiêt~cia
co~idianudas relaçiies com vários orltros grrryos t ! f ) l l ~e~ . ~
sociai.~ tio m t ~ ~ colonicrl.
~do " (Almeida, 2003, p. 25).

Tal capacidade de adaptação é tão grande que não hesito em reconhecer nela uma

possível origem das motivações sentimentais e culturais dos processos de territorialização

que Oliveira (2004) tão bem sinaliza como constitutivos das sociedades indígenas atuais,

principalmente no Nordeste. Sociedades que o próprio autar cs;acteriza como mi.s.turadas,

ou seja, híbridas.

É nesse contexto que podemos localizar as origens da associação que os Potiguara


f.
fazem atualmente entre o seu território étnico e G S santos padroeiros: São Miguel, para a

Baía da Traição e Nossa Senhora dos Prazeres para Monte-Mór. Várias narrativas são

contadas a respeito dos milagres realizados por esses santos, da construção de suas igrejas

e das circunstâncias misteriosas eni que os índios encontraram as duas imagens

Na segunda metade do século XVIII a situação das aldeias missionárias vai ser

modificada pelo diretório pombalino que determina a expulsão das ordens missionarias e a

elevação das aldeias a categoria de vilas de índios. O mesmo diretório incentiva os

casamentos mistos e a fixação de colonos nas aldeias num 'processo deliberado de

assimilação dos índios a sociedade colonial, buscando dissolver as fronteiras sociais entre

os aldeados e os demais súditos do rei de Portugal.


No século XTX, com o Brasil independente sob o regime monárquico, as relações

de poder vão se encaminhar para urna radicalização das tentativas de assimilação e diluição

dos índios na população, por força dc Icis, mcdidas oficiais e um projeto ideológico muito

forte. O interesse pelas terras dos índios vai toniar desneçessáriz para a Ibgica dominante a

manutenção do status diferenciado atribuído aos índios civilizados, que serão

gadativamente despojados de seus territórios e dos beneficios legais que possuíam. As

distinqões étnicas passam a fazer cada vez menos sentido em quadros políticos mais

amplos e se sustentam apenas em quadros locais oide os antigos aldeamentos deram lugar

a formas de campesinato indígena cada vcz mais envolvidos em rclaçõcs dc patronagem e

dominação particulares.

De acordo com Cunha (1992), no decorrer do século XIX "a qquesfão it~digena

deixo11de ser esse~rcialtttct~~e


Irttta clrre,sfc?ode mh-de-obra /)ara se forr~arI ~ I L ~I I I ~ s ~ LdeI O

ferras" (p.133). Nas áreas de colonização mais antiga operou-se o esbulho das terras

indígenas, despojando suas populações do recurso mínimo a sobrevivência. Urna outra

característica do período, apontada pela autora, é o estreitamento da arena política onde se

desenrolava a administração dos aldeamentos. Ao vazio de legislação, quc dura de 1800

até 1845, quando é promulgado o regimerifo das missões, somavam-se a dependência

direta dos missionários ao poder central do Império e a criação das diretorias de iuidios nas

províncias como forma de garantir as oligarquias locais o controle na aplicação das

políticas indigenistas.

Toda a pressão exercida sobre as terras iiidigenas sit,uava-se dentro de uma

conjuntura maior que buscava restringir o acesso a propriedade fundiária de uma


população livre - escravos libertos, índios, negros e brancos pobres - e conveirtê-10s na

massa de mão-de-obra necessária ao latifundio agroexportador (Cunha, 1992. p. 144;

Arruti, 2001, p. 220-223). Um dos processos políticos e sociais mais importantes do

segundo império foi aquele que associou políticas diversas de regularização da propriedade

fUndiária com outras de controle da população administrada pelos órgãos de estado e do

poder local: discriminação das tcrras públicas, libertação dos escravos, imigração

estrangeira,' implantação de colônias (agrícolas, militares, indigentes, órfãos etc.),

catequese e extinção dos aldeamentos. O principal instrumento dessas políticas foi a Lei

de Terras de 1850, que formulou os procedimentos jurídicos responsáveis pela

regularização da propriedade fundiaria no Império.

Na Paraíba, o marco desse processo é a demarcação das terras dos índios na década

de 1860, pelo engenheiro Antônio Gonçalves da Justa Araújo. Este engenheiro é o ator

social responsável pela regularização da ocupação fundiária nos antigos aldcarnentos de

Alhandra (Aratagui), Conde (Jacoca), Monte-Mór (Preguiça) e Baía da Traição. Era da


/

competência de Justa Araújo não só a deinarcação das antigas sesmarias e a distribuição de

lotes entre os índios casados. mas também a avaliação e regularização das posses de

particulares e dos arrendamentos porventura existentes nelas. Trabalho que elle realizou

entre 1864 e 1868.

e Exn10 Sr. Conselheiro Diretor Geral das Terras


ttll_~~lo

1'ríhlica.s e Color~ização.Em cumprimento do meir dei~er


i~e~rho hqje dar contu a V. lix."'" do estado em qrre se achanr
os trabalhos a n~etrcargo nesta Provir~eia;assim como das
despesas rea11zada.s com os mesmos, desde o /O de julho do
ano y. .firrdo até esta data. Logo qtre 'terntirteias medições das
posses dos r~rdjosda Jacóca, segui sem perda de ft:n?popara
o m~r~ticipio de Mamangrrape, a fim de exectttar iguais
.serviços nas Sesmarias dos htdios do Monte-Mor e S. Mignel
da Baía da Traição." (Relatório de Antônio Goiiçalves da
Justa Araújo, Engenheiro em comissão de medições cle terras
ria I'rovíiicia da Par-atiybado Norte 1" de julho de 1867).

A documentação sobrc cstc processo está guardada no Arquivo Nacional (BIJ) c no

Arquivo Público Estadual (PB). Consta de relatórios de atividades, cartas dos índios,

plantas, mapas demonstrativos, ofícios, tabelas e notícias e notas publicadas em jornais da

época13. Além disso, uma parte dos títulos individuais pode ser recuperada nos cartórios

das comarcas onde as terras foram registradas ou junto aos descendentes dos índios que os

receberam, como pude ver em mais de uma oportunidade, quando os Potiçuara nos

mostravam cópias dos títulos e mapas dos lotes como comprovantes de seus direitos. Dc

acordo com a memória do grupo, estes títulos forma concedidos por D. Pedro 11, quando de

sua visita a Mamanguape em 1859.

Enquanto agente de uma política geral do Império para a regularização fundiaria a

ação do engenheiro Justa Araújo possuía grande respaldo político e não era desconectada

de outras do mesmo tipo, como a criação de colônias de imigrantes e trabalhadores.


/

Inclusive, Justa Araújo, quando chega na Paraíba, já vem de uma expe,riênci de

demarcação de terras indígenas na província do Ceará onde demarcou as terras das

sesmarias de Soure, Messejana e Parangaba, entre os anos de 1860 e 1864. Fazia parte do

"staff" oficial de engenheiros que compunham as comissões demarcadoras de terras.

O contexto no qual o engenheiro realiza a demarcação das sesmarias dos indios na

Paraíba é marcado pelo assédio constante que as câmaras de vereadores mantinham sobre

os patrimônios territoriais indígenas buscando revertê-los para o seu controle. Desde 1862

havia ordens imperiais para a extinção dos aldeamentos, a distribuição de lotes e a

13
Essa rnassa docuincntal aitida aguarda por utna pcsquisa Iiistórica adequada, que'cotn ccríc7a. podcrá
rcvclar inúincros proccssos ainda dcsconliccidos sobrc os indios c suas tcrras na Paraiba.
regularização da situação dos ocupaiitcs rião-indígenas com o arrendamento ou a venda das

terras que pretendiam.

Segundo informações de Justa Araújo, num oficio de outubro de 1066, nas

sesmarias de Monte-Mór e Baía da Traição as posses dos índios se elevavam a perto de

500, assim como havia 8 porções de terrenos arrendados, 2 aforamentos e 3 pequenas

posscs particulares ria scsrnaria dc Moiilc-Mór. Dcscrcvcndo ainda cssa mcsma scsrnaria,

no relatório acima citado, relata que

"Os NiClios ci!jo ~izimerosse eleva a perto de 300 habifam as


margera dos rios .Jacaré e Grzrpiúna e os ltigares Arrepia,
CIatolk, IZ~icarifada,Taholeiririho, Marcacão e Br~iriho:
Vivem da agricultura e da pesca, e são geralmerite ativos e
de boa Nidole porém desconJiados como são f o h s os
caboc1o.s. A aldeia de Monte-Mbr ou fila da 13regzriça se
aclla ~r.s.seritadaem ferreno plario e elevau'u, e tem afor.nta de
irm quadrilátero com trma igreja em rtrit~asdo lado do ieste.
As casas em nirmero de mais de 50 são coberfas de palhas e
mal cori.7frirída.s. 0.7 ítidios, desde que a vila.foi irivadida por
exfrartlio.~,poíica arsisféricia .faz~rniw!a, c v& pouco a
,107ico a/)ario'oitaitdo-a. (Relatório de Antônio donçalves da
".

Justa Araújo, Engenheiro em comissão de medições de terras


na Província da Parahyba do Norte 1" de julho de 1867)

Menciona ainda os povoados de Marcação e Maria Pitanga e três engenhos de cana:

Patrício, Preguiça e Três Rios. N u m oficio postzrior, de 27 de novembro de 1867, i

engenheiro afirma estar demarcando as posses dos índios da Baía da Traição, as quais já

passam de 300.

Em um outro relatório,, de 3 de dezembro, menciona que demarcou 8 posses nos

arrendamentos extintos de Jaraguá e Pedrinhas em virtude dos índios estarem ocupando

estas terras que eram requeridas por rendeiros. Das 237 posses demarcadas para os índios,
165 forma distribuídas: 22 no Arripia, 10 em Brejinho, 7 no Catolé, 12 na Gameleira, 7 em

Grupiúna, 12 no Jacaré, 15 no Jacaré de Baixo, 9 em Jacaré de Cima, 9 em Jacaré do Meio,

3 em Jaraguá, 3 em Lagoa Graridc, 8 crn Marcação, 2 nas Pcdrinhas, G no Porto Vclho, 7

na Preguiça, 1 no Rio Vernielho, 1 no Silva, 17 no Taboleirinho, 8 no Taboleiro Grande e

6 ein Três ~ i o s ' ~Outras


. 72 posses "Jic:nrnrn tlevohrfns, 11or fcrc.171 se crrr.wt~fcrclo

da Guarda Nacio~lal,os it~cliv~dtro.~


untedrotrfuclos pelo recrrrfunteltfo e d~.sig~~a+.de.s a

Demarcou
qtrem eram 'deslil~adlr~s". airida o quadro da aldeia da Preguiça (Vila Monte-

Mar), legitimou algumas posses particulares (Buraco, Salema, Três Rios, Salgado) e

discriminou duas porçõcs de tcrras devolutas no oestc da scsmaria que haviam sido

requeridas por compra ao governo provincial.

Geralmente, a literatura sobre os Potiguarâ (Baumann, 1981 c depois Moonen &

Maia, 1992) afirma que o engenheiro Justa Araújo faleceu no ano de 1868, sem ter

conseguido teminar a divisão das posses na Baía da Traição e que, por isto, estas terras

coiititiuaram ocupadas dc forma coletiva, enquanto as terras de Monte-Mór teriatn sido


' I

rapidamente usurpadas por estarem sendo ocupadas na f o m a de lotes .individuais.

Contudo, no 12eperfório úe Doctrrnel~fo.~


do Arqtri\ro Ptíhlico do /::\.fado d o (,'eard,

organizado por Sylvia Porto Alegre encontramos oficios referentes a ação desse

engenheiro demarcando terras de índios na Província do Ceará durante o ano de 1875

(Porto Alegre, 1994, p.87 e 88)15

Esse ponto pode parecer de menor importância, mas ele ajuda a esclarecer um mito

em relação as terras dos Potiguara, que se sustenta desde o inicio do século XX quando se

I4
Consta. cin anexo ao rclalório. um iiiíipíi dcmonslralivo onde são apresentadas as despesas fcilas c0111a
mcdição e a demarcação das posscs c os iiomcs dos índios quc as receberam. dc ondc são rcliradas cslas
informações.
'' Agradeço esta indicação ao profcssor Carlos Guilhcnnc Octaviano do Vallc. que consultou csles oficios
quando de sua pesquisa sobrc os indios Trcmcnibé de Almofala.
acirraram as disputas territoriais na região: o de que apenas os indios da Baía da Traição

teriam permanecido vivendo "aldeados", etnicamente identificados, enquanto os dle Monte-

Mór teriam sido incorporados a sociedade nacional pelo fracionamento das suas terras.

Essa visão se reproduz tanto nas opinioes dos agentes do órgão indigenista, como nas

alegações dos grupos interessados nas terras indígenas, possuindo um efeito ~~ernicioso

para as mobilizações étnicas dos Potiguara de Monte-Mór. Além dissg, continuarmos

afirmando esse suposto "acaso histórico" como responsável pela manutenção das fronteiras

étnicas. não permite que possamos dimensionar o campo intersocietario e como as relações

interétnicas se desenvolveram nele.

Sustentamos, eiitão, que depois que o engenheiro demarcou as terras da antiga

sesmaria e as distribuiu entre os indios, um sistema de campesinato étnico e familiar

continuou a se desenvolver e reproduzir onde os índios não eram ainda ameaçados'pelos

interesses dos arrendatários de terras públicas. Porém, cada vez mais acu;idos pela

espoliacão territorial e o avanço da patronagem, os índios se viam obrigados a conviverem


/

e disputar suas terras com pequenos agricultores e latifundiários, organizando redes de

dependência e reciprocidade até que duas grandes agências entram no ca.inpo para

modificar esta dinâmica: uma, acelerando a ocupação das terras dos indios, outra contendo

o ímpeto dos grileiros, normatizando o acesso a terra. A primeira foi a Companhia de

Tecidos Rio Tinto (CTRT) e a segunda o Serviço de Proteção aos índios (SPI). Estas duas

~g8i.ciasvão implicar tia divisão do campo social Potiguara em duas situações históricas

específicas dominadas pelas suas distintas lógicas de dominação.

A Companhia vai exercer um domínio patronal e industrial de mão-de-krro sobre

os índios do antigo aldeamento de Monte-Mór, forçando a negação da idcítitidade indiçena


na sua área dc atiiação. O SPI vai csiabclcccr um regimc tutclar dc controle dos recursos

territoriais e populacionais ria Baía da Traição, normatizando o acesso de particulares as

terras através de arrendamentos e buscando controlar a população indígena através do

regime de ittdía)~idade(Oliveira, 1988) A discussão dessa segunda situação histórica é

importante no que toca ao estudo das forinas de organização social iridígetia que foram

elaboradas no decorrer da relação com o órgão oficial e hoje se reproduzem como

"tradi~ionais'~.AIcm disso, C. intcrcssantc realizar uma discussão com o trabalho dc Pcrcs

(1992) que trata do mesmo assunto, mas a partir da ótica do órgão indigenista. Nosso

interesse é confrontar o ponto de vista do SPI com a perspectiva dos índios, inclusive

daqueles que foram seus funcionários.

-/para efeito de nossas análises, essas situações históricas vão se estender mais ou

menos até a década de 1980 quando as mobilizações indigenas pela demarcação de suas

terras; a falência da Companhia Rio Tinto; a implantação das usinas de alcool; o

crescimento do fluxo turístico; a atuação de missionarios católicos e evangélicos;


,*
a

presença de Organizações Não-Governamentais; de agentes sociais vinailados a

Universidadc Fcdcral da Paraiba; a criação de municípios; a ampliação c a modificaçiio dos

regimes de indianidade da FUNAl para a Fundação Nacional da Saúde - FUNASA e as

Secretarias de Educação, que acompanharam a atribuição de responsabilidade a esses

órgãos das políticas públicas de saúde e educação, e, a maior capacidade de circúlação,

mobilização e articulação dos índios vão adicionar elementos complexificadores ao campo

social, reunificando as situações históricas da Baía da Traição e de Monte-Mór.

Ao chegarmos nesta situação e olharmos para trás podemos perceber o quão

distantes estamos nós e os Potiguara daquelas situações vividas no século XVI, e onde,
geralmente, começa a história canônica das relações entre a sociedade ocidental e os índios

na Paraiba.
1.7. ICONOGRAFIA

Gravura de Theodor de
Bry, ilustrando o livro
de Hans Staden sobre
suas viagens no Brasil.
Vê-se o ritual do
sacrificio aiitropofágico
do inimigo. Marca das
sociedades tupi do
século VXí. 1554.

Representações sobre os índios, em especial os Potiguara: acima, o


canibalismo das crônicas quinhentistas. Abaixo a direita, guerra e
primitividade. Abaiso a esquerda, a aculturação dos índios.

Índios tupinambás guerreiros.


Mulher brasiliana (tupi). Tela do pintor
Gravura do livro de Jean de
Holandês Albert Eckhout. 1641.
Lery. 1578.
DistribuiGo dos grupos Potiguara
nos seculos X V I e X V I I

fonte: MAPA ETW-HIST~AICCIMi B R M L E REGIÕES m A ( X n T E S


~ d o p t o d odo mapo do Curt NimurndPfi -1944
Mapa indicando os limites e a localização aproximados das sesmarias de São Miguel e Monte-
M ó r no Século X M , quando d a demarcação procedida pelo engenheiro Antônio Gonçalves da
Justa Araújo entre 1866 e 1868. Os toponimos sublinhados em vermelho indicam as localidades
onde distribuiu lotes aos índios. Os topônimos em azul identificam as áreas ocupadas no limite
norte, nas margcns d o n o camaratuba por não-índios que exibiam títulos doados durante o
império. Os limites externos aproximados das sesmarias estão identificados com um traço mais
escuro e os prováveis limites entre amhas por uma linha mais clara.
Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres. Núcleo do antigo aldearnento
da Preguiça. Vila MonteM6r. Foto: Mima ff6brega

Ruinas da Igreja de Silo Miguel, cruzeiro e cemitério. Núcleo do


antigo aldearnento da Baía da Traiçlio. Vila Silo MigueL Foto: Lusival
Barcelos
I Planta Topográphica do
1 Aforarnento do Patricia, na
I Sesmaria dos índios do Monte-
i Mór. Assinado pelo engenheiro
j Antônio Gonçalves da Justa
I Araújo, entre 1866 e 1868.
,I Documentos da Comissão
Demarcadora de Terras do
i Engenheiro Justa Araújo.
4 Arquivo Nacional. Terras e
Colonização - Caixa 1219.
8aIa da Ir4ição: Os Potiguara e o órgão
indSgenbta o f i c i a G ( s ~ ~ / ~I)z l ~ ~
Posto Indígena Potiguara, construído em 1942. Aldeia do Forte. Setembro de 2001.

Foto: Estêvão Palitot.


BAIA DA TRAIÇÃO: O S POTIGUARA E O ORGÃO

INDIGENISTA OFICIAL (SPI/FUNAI)

Quem chega até a Baía da Traição pela ponte da Caieira, através do Único acesso

asfaltado a cidade, não se impressiona com a paisagem plana e de terrenos alagado:; que a

precede. Muito menos com a visão das primeiras coristruçoes esparramadas sobre pequenas

dunas, resultado da especulação imobiliária dos últimos anos. Apenas quando d.obra a

pequena curva que dá acesso a praça principal é que se perde o fõlego. Ao longe, as

,falésias do Forte e Tambá fecham a visão, qual um paredão sobre o mar, servlindo de

moldura para a baía que se forma. Logo ali, do lado direito de quem olha p&a o mar, um

recife rochoso estronda com o impacto das ondas, formando um porto seguro para as

dezenas de barcos de pesca que ancoram próximos a praia e sob a guarda do raro1 na

extremidade das pedras.

Para quem se dirige ao Forte, sede do Posto Indígena Potiguara, segue-se sempre

em frente pela comprida rua principal, paralela ao mar. Indo por este caminho tem-se a

impressão de que a Baía da Traição é uma cidade estreita, espremida entre o inar e o

alagadiço do rio Sinimbu. Se não for época de veraneio, a metadedas casas estará vazia e o

movimento nas pousadas será pequeno. Antes de se chegar ao limite com a terra indígena -
pois o perímetro urbano foi excluído da demarcação em 1983 - o calçamento de pedras

acaba e a ma continua em terra batida.

Nada vai fazer o visitante desavisado perceber que estará entrando na aldeia do

Forte. As casas continuam seguindo ao lotigo da rua e a própria placa da FIJNAI,

indicando que aquela c lima "área proibida", fica quase imperceptível numa calçada.

Somente depois de subir a ladeira para conferir a vista de lá de cima é que o visitante ira se

deparar com uma oca para a venda de artesanato, a sede do Posto Indígena, os canhões de
-r

ferro apontados para o mar e o posto de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena

Seu Antônio Gomes mora no Forte e, dos Potiguara que foram hncionários do

Posto Indígena, contemporâneos aos tempos do Serviço de Proteção aos índios - SI'I, é o

último ainda vivo. Seu Antônio nasceu em São Francisco e só depois é que se mudou para

o Forte, quando começou a trabalhar no Posto. 6 de uma entrevista e algumas coilversas

com ele que retirei as principais informações sobre o modo como o SPl começou a atuar
I/

entre os Potiguara e os conflitos subjacentes a implantação do campo de ação i,ndigenista

na região (cf Peres, 1992). As informações fornecidas por ele foram ainda confirmatlas por

sua esposa, Dona Maria Gomes e por Dona Nancy Cassiano, ex-prefeita da Baía e também

moradora do Forte. Seu Riitônio não foi contempcrâneo de vários dos fatos que narrou,

mas o seu pai participou ativamente da mobilização dos índios no intuito de conseguir a

proteção do SPI.

Corria a década de 1920 e os índios da sesmaria de São Miguel, concentrados no

povoado de São Francisco, enfrentavam sérias disputas territoriais com posseiros e

proprietários que tinham se instalado como foreiros da Câmara Municipal de Mamanguape


nas terras do aiitigo aldeameiito, coiisidei-ado extiiito por lei provincial de 1873

(Demarquet, 1982). O governo estadual pretendia vendê-las em hasta pública e encontrou

oposição do Sr. Jose Campcllo Galvão (provavelrriente o mesmo (i)n~etiJnJo~'


(Ow~/~clo,

de triste memória para os indios de Monte-Mór), que num artigo publicado no jornal

Correio da Manhã, em 1 9 1 9, onde afirmava que "as /erras oc11l)aJ.spe/o.s it1Jio.y tr6o sfio

d e v o l ~ ~ / ase
s ' ~estendendo
, desde o Forte, limite norte da freguesia da Baia da Traição até o

Engenho Cumaru, no rio Cainaratuba, numa distância dc dez quilômctros de cosia (Citado

em Baumann, 1981, p. 72-73).


TECA CENTRAL / U
m
Seria de estranhar o fato de que, possivelmente, o mesmo "corretoryyque tomou, sob

coação, vários títulos de terras indigenas em Monte-Mór e depois as veiideu para os

Lundgren (cf. Arnorim, 1970, p. 41), estivesse se colocando na defesa dos indios de São

Miguel, não fosse Seu A.ntÔnio Gomes destacar a aliança estabelecida entre o Chl.o)~eI

Frederico Lundgren e o Regetrle Jos hrdios Manoel Santana. Segundo o relato, lblanoel

Santana era amigo do Corotiel Fredcrico, tendo inclusive recebido deste um cavalo e uma
,'

sela para fiscalizar a área.

Quando os índios da sesmaria de São Miguel entraram em conflito com os irmãos

~ a n t a s 'e o Major José Ribeiro Bessa, proprietários de terrenos e coqueirais na Baia da

Traição e Cumaru, foi ao C'ororiel Frederico que eles recorreram, como a Única instincia de

poder na região capaz de apoiá-los. De acordo com Seu Antônio, os irmãos Dantas
LC
en?r,rrlava alé os ítidios tirar car.a)igicjo tro matig-ue, pescar. Não qireria", iinp~:dindo a

utilização de recursos essenciais a sobrevivência das famílias indigenas, O domínio desses

1
A documentação do SPI refere-se ao Dr. Franklin Danlas; Seu Antônio Gomes fala ein João Dantas. que
scria o mesmo quc disparou os tiros contra o prcsidcnte do cstado. João Pessoa, cm 26 dc julllo ~dc19.30 c
Ec!!? Jczna. do Galego. refcre-se ainda a Manocl Dantas, quc morava na Baia da Traiçâo e tcria sido vitima
da ira popular após o assassinato dc João Pcssoa.
proprietários ficou marcado na metnoria do grupo e faz parte das narrativas que contam a

história de várias aldeias, como esta a respeito de Tramataia:

" 0 , s í11d1o.s co/ííepirc.tm a ser tíí~t.ciucrtdo/)elo,s


Ilnrltas, qtre chegaram tla Haia da iraicão rtcr dkcah (/L. 20.
(..) onde tomaram posse do Sitio do Me10 e domirraram as
aldeias Caieira, Camurtrpim, 7imtafaia,Ht-ejitlho e /)arte c/L.
.Jacark de (2e.sar. c..) /'ara os irxiios irenr afk o nmm~,r~rc!
fit~harnytre ir escotididos, tlent se qzrer podiam .fazer .fogo
para conter um caranguejo assado, para não serem
percehrdos no marl,qire, pois caso .fissem, eram apanhado.^ e
aqor fados.
c..) a cata do carar1pejo eta o meio de sohresri~êrtcia
dos Potigwara, e para isso tinham yiie passar pelo coqrreiral
do,s 1Ia11tas. Cet-to dia. um casal irtdígetia .servrc/or- Jo.s
lhitas, Jettzrnciozr a pr-esença de Ntdios 110 coqueiral. k-oi rrnt
detis 170s aci~da!Muitos i~tdiosforam violentados com
partcadarras e prisões. enqilanto outros corriam para a Haia
& 7 h i ç ã p ~ ) a r a comri~ticar ao Caciq~eGet-a/ Ma,loel
Sanla~ia." (Cartilha Os Potiguara pelos Potiguara, 2004, p.
20. grifos nossos).

Um grupo de dez (,'ahoco,s de São Francisco, liderados por Manoel Santana,

dirigiu-se ao Rio de Janeiro para reclamar a proteção do SPI, contando para


,'
isso com

passagens de navio e um advogado, fornecidos pela Companhia Rio Tinto. Provavelmente,

em resposta a essa solicitação dos índios, realizou-se a visita do ajudante adido do SPI,

Dagoberto de Castro e Silva a Baía da Traição em 1923 para averiguar as condições de

instalação de um posto indígena na região. Os intermediários dessa visita foram OS

Lundgren, que forneceram o automóvel para transporte do funcionário do SPI de ~ e c i f eaté

Rio Tinto, onde ficou hospedado e o cavalo para que percorresse as terras dos índios. A

CTRT enviou ainda alguns de seus assessores para acompanhar Dagoberto durante a sua

estadia na região (cf. SEDOCIMI. Microfilme 170, fotogramas 1557-1589 e Peres, 1992,
A visita de Dagoberto de Castro e Silva consistiu no primeiro movimento do SP1

em atuar efetivamente junto aos índios do Nordeste, pois visitou tanto os Potiguara, quanto

os Carijós (Fulni-6) de Pernambuco, cabendo-lhe indicar as melhores linhas de ação e as

prioridades que o órgão deveria toinar no atendimento a estas populações. No seu relatório,

afirma que foi "l'revenido~~or


\~ariaspes.soas
das d~flctrlJaJesque devia enconirar c..) tlcr
Hahia da Pahição, pela co~alarrleameaça de elemenlos in/eres.sados em 11ía11le1.
ali a

desordem e o desrespeifoas leis " (SEDOCIMI. Microfilme 170, fotogramas 1 557- 1 589),

tendo então solicitado o auxílio do delegado de policia de Mamanguape, João Facundo. De

Rio Tinto dirigiu-se a São Francisco onde encontrou 191 índios vivendo em 49 casas de

palhü, ao longo de uma rua. Segurido o relatório, os índios viviam na pobreza, trabalhando
'I

na fabricação de óleo de batiputá e na pesca de caranguejo, com apenas 29 hectares de

roças de mandioca. Informa ainda, na estatística em anexo ao relatório, que Manoel

Santana e Pedro Ciríaco, residentes em São Francisco, eram respectivamente, o chefe e o

ajudante do chefe dos indios.

Dos milhares de pés de coqueiros existentes em São Francisco, somente 404

estavam em poder dos índios, a maioria tendo sido vendida para ynrlic~~lmes
como o

senhor João Domingos (já falecido a época). Ainda havia três casas, com sítios e roças,

pertencentes aos senhores Antonio Bello, Antonio Alexandre e aos irmãos Dantas, que

também possuíam uina casa de farinha. De São Francisco saiu em direção do Taiépe.
Lagoa da Barra, Tambar, São Miguel, Baía da Traição, Tapuia, Laranjeiras, Tracueira,

Saiila Rita, Rio Silva, Rio Grupiútia, Izstiva Vclha, Cartieira e Rio Jaca1.C.

Ncstcs locais cotistalou a cxislêiicia de 208 tnoradores ~)~u-/ic~~lcrr-~s.


radicados

desde vários anos, com casas, benfeitorias, criações, plantações e muitos sítios de fruteiras.

O total de índios se aproximava de 422 pessoas, incluindo os de São Francisco. Nestes

dados não consta a população de algumas localidades como Camurupim, Tramalaia, Vau,

Caieira e a própria Baía da Traição, que nesse tempo já era uma vila e sede de distrito do

município de Mamanguape. Na Baía registrou a existência de milhares de coqueiros de

posse particular.

Castro e Silva idetitifica ainda os limites das terras dos índios. Ao norte, localizou

cinco marcos de pedra, com a letra R gravada. Segundo os moradores estes marcos foram

colocados pelo engenheiro Antônio da Justa Araújo, quando da demarcação das sesmarias

dos índios em 1868 e eram conhecidos pelos nomes dos locais onde haviam sido fixados:

Cajarana, Jardim ou Taiépe, ltaúna, Encantado e Suzana, estando alguns deles danificados

ou arrancados. Registra ainda a existência dos engenhos Itaúna, Itaunbnha e Cumaru nos

limites desses marcos. Ao sul, limitava-se com a antiga sesmaria de Monte-Mór, cita que o

antigo aldeamento dos índios está todo ociipado pelos "irzdi~striai.~


I,~lild~eir
e a oilfro.~

que adquiriram por compras" os lotes de terra que os caboclos haviam recebido do

engenheiro Justa Araújo. Ao leste, eram confrontadas com "as ferras do L)r. 1;ratlklitl

Dair/a.s,ale a igreja de S. Adigrel e dahi com a lagoa do Sii~imbu,ruii~asdo Forfe c..,? afk a
barra do rio Camarafilhcr."Ao oeste, ficaria o vértice das divisórias norte e sul.
Finalizando o seu relatório, Castro e Silva nega a identidade étnica dos Potiguara,

alegando que estes são mestiços de vários tipos, vivendo "eni promiscuidade coni os

e slijeito.~,como e.vte,v,ao regime feticlal yiie ali s e oh.serva".Desaconsclha a


ci~)ilisnJo.v,

instalação de um Posto Indígena para atender aos ']~retet~so.v


Poiyguaras", pois estes não

apresentam as caracteríslicas gcralrnente aceitas pela "scietlcicr etht~ogrci/)hiccr"


no tocante

ao fenótipo, comportamento, traços culturais ou língua. Pondera que deveriam receber

proteção oficial enquanto traballiadores nacionais, ")I&)/hes cu/)etlJo,.veg,rt~do/,eti.vo,o.v

benefícios do Seri~içode Protecção aos Ítldios". Além disso, argumenta que o elevado

numcro de proprietários quc possucrn muitas bcnfcitorias na rcgião traria muitos

inconvenientes para o SPI, pela possibilidade de ações na Justiça por perdas e danos. Alega

inclusive, que alguns destes proprietarios possuíam títulos antigos de terras, adquiridos a

terceiros, como o Dr. Franklin Dantas e o Major José Ribeiro Bessa, com grande influência

na região, mereceriam, atenção especial dos poderes públicos "ytiatldo se tratar de

soltrcionar essa questão de terras de\~o/zrtase dos itldios". Em razão destes argumentos

.indica como prioridade para o SPI a instalação de um posto para os Fulni-9, ppis os índios

viviam aldeados e conservando a lirigua e alguns costumes dos antepassados. Além disso,

os proprietarios incidentes nas terras dos índios estariam dispostos a pagar rendas ao SP1;

enquanto na Baía da Traição estes deveriam ser indenizados pelas benfeitorias que

possuem:

E com grandes reticências, portanto, que o Serviço de Proteção aos índios passa a

exercer as suas atividades junto aos Potiguara. Entre 1929 e 1930 o inspetor Antônio

Estigarribia se esforça em promover junto ao governo do estado um acordo sobre as terras

dos antigos aldeamentos de São Miguel e Monte-Mór, criando assim as bases para a

imolantaqão do campo de ação indigenista na resião. Esse acordo previa a regularização


daqueles proprietários que apreselitasscm títulos hábeis sobre as terras indígenas e a

incorporação como arrendatários do Posto Indígena dos que não possuissem tais títulos,

dcixando, portanto, dc pagarcm impostos a colctoria estadual. Foi adicionada também uma

cliiusulu uiirivds tla tlual as Ici.i.as i~cvci.ici.iaiiiao podci do cstado caso o SI'] suspcritlcssc os

seus trabalhos de assistência ao índio (cf. Peres, p.93-94). O Posto Indígena São' Francisco

foi instalado em 1932, quando passou a atuar dcnti.0 dcssc cainpo dc forças sociais já

constituídas (Peres, 1992, p. 85), no qual iniciava-se um processo gradual de concentração

fundiária e desenvolvimento de relações de patronagem, envolvendo índios e moradores de

um lado e a Companhia Rio Tinto e demais proprietários do outro.

As ações do Posto Indígena, representado por seu encarregado Vicente Ferreira

Viana, durante a década de 1930 se concentrarão na tentativa de estabclcccr o controle do

órgão sobre os recursos fundiários, madeireiros e agrícolas que estavam sendo utilizados

pelos proprietários não-índios, especialmente os Lundgren, que contavam com a

colaboração do Regenre Manoel Santana. A extração de madeiras e a prod/ução de carvão

para a Fábrica Rio Tinto serão os principais motivos de atritos entre o SPl e os índios,

constantes de denuncias, apreensões de madeira e processos judiciais - entre 1935 e 1939.

É tiesse período - 1939 - que ocorre a expulsão dos índios da Vila Monte-Mór, quando

estes recorrem ao SPI solicitando sua proteção. Neste mesmo ano os arrendatários do Posto

somavam mais 400 (cf. Amorim, 1970, p. 5 1 ; SEDOCIMuseu do índio. Mjcrofilme 180,

fotogramas 45-68; SEDOC/Museu do Índio. Microfilme 180; Fotograma 1 75; Peres, 1992,

Entre as décadas de 1940 e 1960 as ações do SPI na área vão se voltar cada vez

mais para o estabelecimento de instrumentos de controle da população e dos recursos


disponivcis na área. itistitiiiiido tini csqiicnla de poder c autoridade qt~csc deseiivolverá ao

longo das décadas como uina situação de recorrentes conflitos em torno dos postos de

inando c dccisão. A csiruiura dc podcr característica da irrdiarlid~rdesc dclincia no dccorrcr

destes processos, o que envolve, basicaniente. o controle dos recursos náturais e da mão-

de-obra indígena pelo aparclho adniinistrativo do órgão tutor e a subordinação/

incorporação das formas de representação indígenas por este mesmo aparato. Segundo

João ~achecode Oliveira

"l:in .Jirrr~üodo recorll~ecirííerlode .vrrcr cotrd~p?~ de


itldios por /)arfe do orgar~ismo compeletlle, rrnt grttpo
Ntdígeria especifiro rece3e do Esfado proteção ojliial. A
.fir.nta fbica dessa af~~ação(presetlca acarrela o s~rrginterlfo
de deler-rítitladas relações ecot~ômicase polilicas, yrrc se
repefent jtrtlfo a muifos grrrpos assisfidos ipalmerlfe pela
F(/NA/, apesar de drfereriças de corttetído deri1)ada.s dos
d(fit.erííe.v fradições ctrll~rraisetti)c)lvidn.r.I>e.s.re cot?jtrrlfode
t~egirluridude.sdecor-re Irm modo de ser caracferisfico de
grupos itidigetías assistidos pelo órgão tutor, modo de ser
qtre ezr poderia chawar aqui de ittdiar tiu'ade para disfirlprir
do modo de vida resultatlte do arbitrário cztlf~rralde cada
trm. " (Oliveira, 1988, p. 14) ,#

Fronteiras jurídicas e assistenciais serão sobrepostas aos limites étnicos existentes

até então, associando a distribuição de:recursos ao enquadramento da população em duas

categorias: os caboclos, isto é, os índios de um lado e os parliculares, ou seja, os não-

índios de outro. Ao mesmo tempo será instituído um novo sistema de ordenação do poder

que tenta submeter as lideranças indígenas as determinações da administração do órgão

tutor. A figura do Regenfe, oriunda do ordenamento político das diretorias de índios do

sécu!o XIX e aliada aos interesses de exploração dos recursos naturais pelos proprietários

estabelecidos nas terras indígenas, será cornbatidz pelos encarregados do Posto Indígena.

Em 1942, com a morte de Manoel Santana, ocorrerá a substituição desse papel pelo de

Tlrxalra, subordinado a estrutura Iiierárquica da proteção oficial.


Estcs tcmas scrão tratados ciii dctalhc nos próximos itens onde analisamos como

esse sistema de poder se constituiu e vem se reproduzindo nas últimas décadas. Antes,

porém, analiscmos os conflitos rccorrentcs na área indígena, resultantes da imposição do

regime tutelar sobrc os I'otiguara.

2.2. O CONFI.I'I'0 COMO I ) I N A M I C A SOCIAI,.

"l'orqrre esse ncgdcio de co,?firsãonrrnca se acaboir".


(Seu Antônio Gomes, Forte, agosto de 2004).

A memória dos Potiguara sobre os acontecimentos ocorridos em tomo da instância

de administração do Posto Indígena durante o século 'XXestá marcada por moiiientos de

enfrentamento c violencia cntrc os índios c os agcntcs dcssc órgão, scja o 'lht?i/)odc.

Ca.s/elo, sejam as disputas em torno da escolha do líder dos índios ou o regim6 de trabalho

pesado nas roças e coqueirais do Posto. Por seu turno, a documentação do SPI e da FUNAI

está repleta de referências a "turbulência", "rebeldia" e "desobediência" dos indios que,

"insuflados" pelos regionais, depredavam as matas do Posto e impediam a cobrança de

arrendamentos, ficando eles mesmos com o que fosse recolhido.

Como já falamos, os principais conflitos davam-se justamente em torno das

disputas pelo controle dos recursos e pela definição das direções que a atuação do posto

deveria tomar. Passemos agora a narrativa de alguns desses embatek para que o leitor possa

ter uma dimensão de como eles se processavam em meio a estrutura de poder esiabelecida.
O 'Iempode Ca.s/eloe o marcador cronológico através do qual os indios identificam

o periodo em que o funcionário Oriculo Castelo Branco assumiu a responsabilidade pelo

Posto Indígena Nísia Brasileira, ariiigo P.1. São Francisco, transferido para o Forte em

1942. Corriatii os pi-iinciros anos da dkcada de 1940, a Segunda Guerra Muiidial provocava

uma intensa movimentação de tropas e representantes de agências governameiltais pelo

litoral, com a instalação de bases aéreas militares em Natal, Recife e For-taleza. Castelo

Branco, ao que parece, era um militar ainda não vinculado ao SPI, que assumiu a

responsabilidade do Posto Indígena nesse periodo, tendo ingressado formalmente i10 órgão

depois dos fatos aqui narrados.

Nesse mesmo ano falece Manoel Santana, último Regetife dos jndios da Baía da

Traição, que exercia o cargo desde os anos 1920. Para substitui-lo na função, Castelo

Branco decide colocar o genro de Manoel, o índio conhecido como João Batista. Porém, os

Cabocos do Sifio, como são conhecidos os habitantes de São Francisco, já haviam

escolhido Pedro Ciríaco para representá-los. Pedro Ciriaco havia sido uma, espécie de

"segundo homem" de Manoel Santana, e para uma parte dos índios seria a escolha

"natural" para a sucessão na chefia. Deu-se o impasse e foi convocada uina reunião no

Posto para decidir-se quem seria realmente o novo lider dos indios. Segundo o relato de

Seu Antônio Gomes, a reunião deu-se da seguinte maneira:

Pergunta. - Cusfelo,aqtri, ele era trm chefe fnnthént?


Antônio Gomes. - Era, Casfeloera trm chefe.
P. - O povo diz qtre ele era rtlim que era danado?
A .G . - Cas/ elo aqt~i... Mas a rt~indadeprinteiro cltrent
.fez .foi os... foi os cahoco mesnto. Que naqtrele tenylo ... (1
a

chefe qtre attfigametite chantava era O ttrxa, tte. Hoje a gettie


chanta o caciqtre, ntas era o ftrxá. c..) Eles qtrerianl bufar trnt
chefe, qtle era o pai daqtrele Matloel Raiisia, trni ia1 de .JOGO
Ba!is/a, ai comeqaw por isso. Qtre era até d1ra.r ttrrma a.s,si,tt.
7ittha n ttrrma de .João Batisfa qtre era do liido do 130.rto. a
OII~I'CI ir~t-n~e~ e1.a do orriro lc~do.Aí .Jj)i c/ire começcrro es.sc>
rrilg(ji01o. I< ~li~.s.st~ I J C ~ Z , sielo elo (iir~~~tdol:/r~)gorr(r(111i.C I I
c/iur~~ot/ ... o,s ír~di(l~/)ar.a.fazer trma reiirlifio ali. A /ln.nla de
.IoCo Haihsin .Ji)ipra cima, .foi lá pra deniro do l'o,s/o. IJ a
oirfra ~ I I I . ~ficoti
V C I ent baixo. I~a/)a:!Aí veio ~eriiede iodo
c~~trnro. A i .foi urna rei~olia~ão danada. (,'hegoir aí. Aí ele I ) I I I
clire e1.n níitria gertie, ele di.sse: - Caztjza, pegue c.s.se r~fleaí,
.fiy~reaí rio porião, nãc) deixe riir~grémetlfrar! c..) aí e1e.s
cliariiar~crriio j~e.s.soc~l.Aí ele di.s.se: Q~reni.Jj)r do 1'o.sio
etifra,e clirem riãofor.fica lá. Deixa, qtre ele chamou...o chqfe
Ji.s.se: - 12 .s(j para vir irldio.Quem for parfictrlar t ~ ü ovem
nerlhirm aqiri. Ah! Eles chamotr .foi iodo murldo qire morava
ayrrr Jeriir.o.
Maria Gomes - Qtrem chnntoir?
A. G. - Os caboco, chamar0 itrdirlho.
M. G. - Mas essa qlresião era por que?
A. G. - lI,s,saqtre,sifioera /Ira l~ofar o ttrxci. I/ri,s i11dio.s
qtrerin .I& Haiisia, otriros não qtreria. Queria I'ed~.o
CJiríaco. Os caboco viram logo Cazirza arntado con~rifle, I @ .
Ai, o pai daquele Mig~relAru'sio c..) aí ele (inaudível) lci \,ai,
14 vai e ele, e ele cairldo de .fora, .saliarido, .salia~~do, ele e111
cinta, ent cima atrás de tomar o rifle. Aí Cazlrza via qire ele
(inaudivel) aí, Cazzrza dezr firo. Mas pegou pra cima. Agora
ele de11 rim firo, e .soliotr o r!fle e corretr, aí-foi o qire eles
qtriser.ani. Aí hoiaran? o pé airás, correram airás, e ylrarlíh
chego11lá embaixo, rlayuele harreiro ali, bufaro ele tio chão
e nieierani pau. Aí, foi paz/ mesmo!
M. G. - IZm Caztrza.
A. G. - 1701. IZm Cazzrza. Qirase gire mura. A i chegorr:
- Maiarant Cazuza! l'egaro Caztrza, hziiaro logo'dee,rrro dzrnt
carro e saíram para Rio Titlro. Aí, o Castelo foi e disse
a.ssint: i~oct?s podem ir simbora, já iá liherado. I'ode ir
enihora. A í.fi11.o emhora. A í qtrarido.fii rio olriro dia, (...).firo
ver a polícia, rié c..) aí ele fez assim: - Qiremfor ítidro pode
chamar. 12 índio? Vem. 0; camarada ilir~hade pés aí, ele
dizia n.s.rim: - Vo&s .são íridio? - 1'2, somas. Aí, ele prerldia.
I'a.s.sa~)a11.2.~ dias. De11oi.s de irés dias ele dizia: Votr .soliar
vocés j~ra /r htrscar os otriros, \lirem j~racá. Mas st5 qlrero
írtdio, cltreni não .for íridio r~ãoverlha, não. Aí io&s eles
vielzrrn ucliri ur.ru~icat.foco uqiri, ~rrr~tsia\)a C U I . I . ~ ~ L .fir:ia
J.
iirdo, rapaz, jtrdiai)a dentais dos cahoco. (Seu Antônio
,

Gomes, Forte, agosto de 2004).

Num relato semelhante ao de Seu Antônio, Dona Joana, do Galego, conta que nessa

época as pessoas neçavam que eram índios com medo de serem presas e obrigadas a

trabalhos forçados. A prisão seria numa caixa d'água que existia ao lado do Posto onde os
caboclos ficavam detidos por dias. Ainda de acordo com o que ela nos relatou, Castelo

terminou sendo preso pelo Exército por maltratar demais os caboclos e andar montado a

cavalo quase nu.

As narrativas a respeito da violência ficaram marcadas não apenas na memória dos

indios mas, na própria documentação do órgão indigenista, podemos perceber a

perpetuação dos conflitos como parte da dinâmica social instaurada. Num oficio de 195 1,

enviado ao Diretor do SPI por Raimundo Dantas Carneiro, Chefe da 4" Inspetoria Regional

do SPI, sediada em Recife, este comenta que

"A vida do Posfo Nísia Brasileira, desde a sua


itisfala~âo, tem sido uma verdadeira luta, pois, a.falfa de boa
vontade dos ilidios, fem drficultado se impor ali, a disciyli~m
e o níesnlo ritmo de traha1ho.s que dese11i~o1i~erno.s
nos otrfros
I'osta~ desta I.]<. que seguem a oriet;fação de seirs
re,s/)eclivos encarregadas ". (SEDOCIMI . Filme 169.
Fotogramas 1003-1004).

Afirma que os indios são envolvidos por inimigos do SPI, que reside& na Baía da

Traição e os incentivam ao consun~ode álcool e a desobediência. A mudança constante de

encarregados era resultado da agressividade dos índios, pois

"O primeiro encart-egado do dito posfo, ,Sr. V~cetlfe


1;erreira Viatla (...), foi agredido e sofetc nttrif os vexciniespor
,)arfe dos itldios. Ob. 0t.iciclo Casalo Bra,ico, hoje itt~pefor
des/e Serviço .sofi.etc idê~iricaagres.sio. O 1rrs/)efctr 7irhal
1;ialho Viatia não cotiseg~ciuencamirlha-/os, C..) e por tiltimo
o Itispefor Leonel Cartleiro de Morais. sofietl o massacre
o deixotr sent .serifido.s tio terreiro do altrdido l'osto. as 23
horas do dia 19 de -fevereiro de 1948. "(SEDOCIM 1. Filme
169. Fotogramas 1003-1004. Grifos nossos).
Afirma, então, que é necessário para administrar os índios um chefe "c?~lér.gico,

prlldente, sem vicios e irltegrah no verdadeiro eq)irito do SPI". O encarregado da época

era um homem sem vícios e disposto, mas %

"/)aJc~.ses.sa,s circ~i~r,stci~rciu,s,
r160 sei se fum/)i!m/)elo
receio clc ser ugrediJo, o /n.s/~etorAry~iimeJe.~ Sol~foMclior
Filho, at~ralrneilterespotlsável pelo Posto em apreço c..)
com/~a~*ecc?/)olrcas vezes ao l'o.sto, vez que e.stií sediado na
ciJc7Je de Mclt~matlprc~/~e, cli.stat~te6 ICp1u.s ck) I? I. Ni.sia.
"

(SEDOCIMI. Filme 169. Fotogramas 1003-1 004).

Em 1978, mais de trinta anos depois dos fatos do rlkmpo de Ca.stelo e das surras

que os caboclos deram nos encarreçados do SPI, um chefe de posto da FUNAI, Iiamilton

Lima Soares, em depoimento prestado a uma comissão de sindicância que averiguava o

conflito entre indios e topógrafos que faziam a medição do Sítio do Melo, afirmou que

"... ,já cotlhecendo fatos anteriores de ex-.~ervidores


do I->/, terem sido atacados e feridos no próprio l'osto, e
mesmo temendo rima investida contra sua própria pessoa no
Posto oilde reside com a sua familia, retirou-s; c..) para a
cidade de Haia da Traiqão, deixatldo ali sua esposa e .filha
pequena e em seprida /)rossegui~rc..) até a cidade de
Mamallgt~a/~e, onde, através Jo telefotle. fez ligaq60 para a
residência do Sr. Delegado da ~ " D I U I ~ I I (Hamilton
II~I" Lima
Soares, termo de declaração prestado a comissão de
sindicância da FUNAJ. Baía da Traição, 09 de novembro de
1 978).

Tais conflitos cram resultantes das disposições dos funcionários do orgão

indigenista buscarem afirmar a posição do SPI no contexto local. Entre várias medidas

tomadas nesse sentido ganharam destaque ao longo das décadas de 1940 e 1950 a

demarcação das terras, a retirada dos ocupantes através de indenizações e o acirramento do

controle sobre os arrendamentos. De acordo com Peres


". .. fii)a esfr.tr/egiu delirreadc~ /)ara o 1'. 1. Ni.srcr
l~r~tr.silc.rrc~, cm .firis do.s alios 40, a deniarcaqão /arnhém
estu~~cr ~rrricii/crdaao pr.oc.esso de reg111ariza~'Cli) nieri~ioricrclo,
~ I I CIIGO
~ c~~riio,/irii e s~ntcortio rim nieio y(riur 'li~i~pcrr (r cir.etr '.
De~kJouo,s cor?fl~fos exi.s/en/eseritre oclil,ari/e.s, ír7dros e os
trgeti1e.s do ,\/'I, iml)orta~~a ert/&o fraqur precisanietile a Srea
do /)o,v/oconto o 1octi.s excllrsir~oe ittytie.s/ioiiÚ\~el Je cotif~~ole
do (i/ ir~digerii.vfct. l W Z I I ie~e.~súrio
reordet~~rr CLY 1.e1~1qrje.s
erilre írrdio.~e ociipa)~/es, a pariir do efefirlo e.s/ahe/ecin~e~i/o
de ~rniterriforio itidigetta, com seti slatus jtiridico e.,i,ccifico
~~:t+trrrf~Jo pelo l~:.s/crJI)" ( 1 992, p 1 05).

'Se a estratégia oficial era delimitar a área de atuação do SPT e retirar dela os

ocupantes que não se adequassem As novas regras sobre os arrcndamcntos, contra-

estratégias foram desenvolvidas pelos pequenos sitiantes que viviam na região,

estabelecendo alianças com alguns líderes indígenas. Seu Antônio Gomes susterita uma

versão muito interessante sobre como findou o pagamento das rendas dos parficiilares para

o posto indígena.

Pergunta - Tittha mtiifa cot2frrsão aqtii do chefe do


posto com os caboco I a do Sitio, rrão?
Aii tôiiio Gomes - Não, eles fazia ...fporqlre esse
?ieg(jcrode cor!fisão ?itrtica.se acoholi.
P. Por catisa de arretidame~ito?
A. G. - Não, mas tlaqliele tempo r?&) íitihu
nr7.ertJc~meti1o.L.s.se.~cara de .fora que vrtiha mo/-ar aqui,
Irahalhnt; 1)agava.
P. -- l'agava renda?
A. G. - I'agaa\la, era.
P. -- Mas não tinha briga tlão para ver qrient .ficava
coni o Jrriherr.o da /erra?
A. G. - Não, rião, titrha não, eles vinha pagava fodo
mês, por ano. 1;evereiro. arretldava o roçado. Otrattu'o no fim
do alio, vrríha, r)agava. Todos eles pagava. Adepois. com oc;
tenrpos, .for qtie... vamo deixar de. tlão var pagar mars
nitirrrreni. tiitimiém niini paga ntais rião. Vai ajudar tio /en?po
d m festa. rré. Ai ficaro ajudando. Dai~aaqtreles atrxílio paras
festa. I!m São ~raticisco.ali em SCo Migiel, ne. I~idahqfg
eles aitrda tlas festa. né. iént os noitero, né. Aí tirint paga
mais turlpuént. rerrda. não. Mas atl!ipamente pagava.
P. - Qtier dizer qire deixaram de pagar rc')ru'u uo
/'osto qriatih j)as.sarani ii dsr dirlheiro /)ara as,festa..;?
A. C. - lqi~i.Qne lá tio ltecjfe, eles disse 1160, \7ar110
deixnr- esse tteg(jcio de rettda. Vanto acabar c0171 ~ S S C
iieg(jcio de rettda, yorqtre ttiio dá certo. Aí, os cara qtre
pagava reiida vão, vai pagar por alto, tent ytre dar; aj~rdar.
rtus .fes/<r.,Y~io~ro\~e ttoife de tiovetta que eles fazeni. Aí C L I ~ L I
tlm fení a stru iioife. Galego. Galego, fení uma noite aí se
arreiitte rrr/~rcle/)es.soa, dii bqrrele arlxiljo tté. São I'ratici.sco.
ibdo co~tto,afé complclnr. n.7 itoi~eitoife. Aitlda hoje c/c.\.
.fi~zerí~, os rrove troile de rtov~tta../ucar.k. .Jucut-é, o C Z I L ~ de
~ ~ I ~
retirre o povo, pede aylrele dittheiro todittho e vem .faz a
rtojle. (Seu Antônio Gomes, Forte, agosto de 2004. Grifos
nossos).

Inicialmente Seu Antônio confunde as rendas que os partic~rlar.espagavam ao posto

com os grandes arrendamentos que se fazem hoje para o plantio de cana, mas depois narra

como se forjou a aliança entre os pequenos moradores e alguns líderes indígenas frente a

ameaça de expulsão das terras em que trabalhavam por decisão do SPI acabar com os

arrendamentos. Antes que o órgão finalizasse os contratos anuais, como muitas disposições

davain a entender, os arrendatários procuravam os líderes indigenas, os rroifeiro.~,

responsáveis pela organização das festas de São Miguel e Nossa Senhcra da Conceição e

sé ofereciam para continuar morando e trabalhando na área em troca das contribuições


,'

anuais para as festas. Desse modo, criavam laços de solidariedade com os índios e se

resguardavam de possíveis tentativas de extrusão. É óbvio, que não houve nenhuma

decisão da Inspetoria em Recife de transferir as rendas do posto para as festas religiosas,

mas a lógica do arranjo entre cabocos e parficulares é pertinente, como poderemos

observar mais adiante quando nos detivermos nas festas do padroeiro.

Pedro Ciríaco, depois que assumiu a liderança dos índios contra a vontade do posto,

fez valer essa lógica de alianças ao cobrar as rendas de muitosparfictrlares e tornou-se um

elemento problemático para os interesses do órgão indigenista. Peres (1 992, p. 106-109)

cita várias reclamações de encarregados contra ele e os índios que liderava, primeiro sobre
a retirada de madeiras, depois a respeito da arrecadação das rendas que deveriam ser

recolhidas no posto e ainda sobre o controle dos coqueirais do Sitio das Cardosas (em

torno de 2000 pés).

Em 1951, foi proposta a remoção de três famílias da área indígena por virem

cortando madeira e perturbando os trabalhos do Posto: os Ciriaco, os César e Antônio

Cassiano. utilizando-se de uma retórica da mistura, o encarregado do posto, Arqwimedes

Souto Maior, procurou deslegitimar Pedro Ciríaco acusando de ser um dos "itrd~osn~ui.v

mes/iços" e que estava em constante rebeldia, incitando outros índios. Contudo, a

Inspetoria ponderou que seria muito dispendioso transferir essas famílias para outra área e

se negou a cumprir a solicitação do encarregado. Contudo, foi acionada a presença tle força

policial que Souto Maior solicitou para coibir os índios (SEDOCIMI. Filme 169.

Fotograma 101 1).

Esta outra faceta das relações entre o SPT e os índios, a da presença constante de
'I

força policial para coibir ações mais ousadas dos tutelados foi corriqueira e marca ainda

hoje as lembranças dos descendentes de Pedro Ciríaco, como José Ciriaco Sobrinlio, mais

conhecido como Capitão. Tudo começou com a tentativa de demarcação das terras por

parte do SPT em 1948, quando foi contratado um agrimensor e, apesar, de terem sido pagas

algumas parcelas adiantas do trabalho, este foi paralisado antes de finalizar a Segunda

etapa, em 1949. Os índios liderados por Pedro Ciríaco reclamavam que mesino esta

demarcação vinha deixando de fora áreas ocupadas por sitiantes da vila de Mataraca, ao

longo de 4 léguas do rio Carnaratuba e que a Companhia de Tecidos Rio Tinto vinha

ocupando grandes extensões entre o marco das balanças - que havia sido modificado de

lugar - e a Gruta do Gurubu.


Antes disso, em fevereiro de 1948, um grupo de índios foi preso no Posto Indígena

por estar cortando madeira e fazendo carvão Fato que provocou a revolta dos cnhocas do

Sifio, que dcsceram dc São Francisco para o Foi-te e espancaram o chefe de posto Leonel

Carneiro de Morais, liberiaiido os pi-esos. Iim 1049, I'edro Ciríaco e seus lilhos são levados

presos ele segue para a penitenciária em João Pessoa e os seus filhos ficam relidos em

~amaiguapk,durante alguns mcses.

Em face da falta de recursos, da presença de muitos ocupantes não-índios o SPI

propõe a redução da área indígena como uma forma de expulsar os invasores as avessas

Esta política, levada a cabo ao longo das décadas seguintes é chamada por Peres (1992, p.

1 1 1) de "ins?r/arizaqãode área.s ir~dígerma~s"


onde o órgão toma como procedimento

demarcar apenas aquelas terras que estão ocupadas permanentemente pelos índios,

evitando assim o confronto judicial com os ocupantes que apresentavam documentos de

propriedade das terras. Tal política teve como resultado o recrudescimento dos conflitos
I*

entre administração, particulares e íiidios

A redução da área indigena foi uma estratégia de resolução de conflitos e contenção

dos problemas administrativos restringindo a fronteira étnica oficial apenas aqueles grupos

mais próximos ao Posto, reificando uma situação de exclusivismo para os índios da Baía

da Traição. O que se reproduz na demarcação das terras indígenas na década de 1980 onde

QS g i p o s que conseguiam demarcar suas terras não se solidarizavam com os que haviam

sido excluídos da demarcação.


Alguns autores como Moonen & Maia (1 992) ressentem-se de que os Potiguara têm

a sua organização social no scculo X X pautada pela presença do órgão indigenista oficial,

criticando as açõcs dcstc a partir dc urn porito de vista "político", esquecendo-se de

analisar as particularidades deste modo de vida sob o controle de uma agência colonial.

Contudo, a crítica antropológica a tal perspectiva está bastante sedimentada, inclusive com

a publicação de vários livros sobre este tema (Oliveira, 1988, 1998; Lima, 1995), nos

possibilitando uma abordagem mais criteriosa do tema e a proposição de uma persliectiva

mais frutífera sobre a massa documental e o material coletado na memória social sobre esta

forma de organização das rclaçõcs sociais sob o domínio de um órgão de estado.

Três pontos destacam-se, portanto, em nossa análise dessa situação histórica. O

primeiro foi a disputa pelos recursos econômicos (terra, madeiras, plantações e mão-de-

obra) entre os índios e os agentes do SPIIFUNAI, que vai se estender durante todo o

período analisado, tendo um reflexo direto na forma de organização social do grupo e nos

movimentos de cisão e aproximação entre as lideranças indígenas e a estrutura do Orgão,


,'

com a constituição de duas linhagens de líderes cuja legitimidade de um lado apoiava-se na

livre escolha dos índios, do outro era garantida pelo exercício do poder tutelar e da

arregimentação de um grupo de parentelas pelo Posto Indígena.

Portanto, nossa interpretação do quadro histórico de atuação do órgão indigenista

na Baía da Traição é devedora daquilo que apontou o trabalho de Sidnei Peres (1 992, p. 60

e seg.), onde a implantação do campo de ação indigenista é interpretada como um processo

de reorientação na distribuição dos recursos fundiários através da incorporação dos antigos

invasores das áreas indígenas como arrendatários do órgão. Criando, desse modo, um

mercado de terras tutelado, assim como modificando as relações de poder e autoridade


vigentes até então. O Serviço de I>roteção aos índios passou a exercer um papel de

mediação e dominação num cenário conflituoso que envolvia interesses diversos, desde o

governo estadual até o dos índios, passando por latifundiários e pequenos posseiros

regionais. A oficialização dos arrendamentos é considerada por Peres (1992, p. 61) como

um "disposi~i\~o
de resolrrçtio de cor!fli/os"com as instâncias governamentais que tinham

ou representavam interesses sobrc as terras indígenas. Nesse sentido, cita a tentativa de

acordo estabelecida entre o SPI, representado por Antonio Estigarribia e o governo do

estado da Paraíba, na figura do presidente João Pessoa.

Ressalte-se a dimensão do conflito num cenário de mudança social, onde o

esquema de autoridade que os funcionários do Posto Indígena tentavam exercer vinha se

opor aos padrões de alianças anteriores entre índios e regionais. A documentação do SPI

vai falar muitas vezes em desobediência e turbulência dos índios que não aceitavam as

normas colocadas pelo Posto e continuavam comercializando madeiras e arrendando terras.

Enquanto isso, os índios registrarão em sua memória os enfientamentos comys chefes de

posto por causa do exercício do poder e do controle dos recursos existerit~sna área

indígena.

Na interação entre indios e o posto indígena a violência será utilizada conio forma

de ação pelos dois lados, e se constitui em nosso segundo ponto de análise. As estratégias

de controle exercidas pelos representantes do poder tutelar geralmente recorriam a coerção

e a violência, causando medo entre os índios. Tal regime de força era enfrentado pelos

índios a partir de outras formas de violência, desta vez ccletivas. A coação era utilizada de

formas distintas pelos dois lados: uma era a imposição do poder do Estado e de seus

agentes, a outra era a revolta da "turba", a "multidão", os índios costumavam i-evidar a


violência institucional a partir da ação coletiva direcionada contra o posto indígena e seu

encarregado. Neste ponto parece ser interessante ver uma aproximação com E. P

Thompson (1998) c a sua aiiálisc sobrc a Economia Moral da Multidão, onde propõe que

os atos de violência das multidões ein certos períodos históricos não sejam encarados pelos

historiadores como episódicos ou explosões de fiiria scm sentido, mas formas soc;ialineiite

elaboradas de ação por parte dos grupos dominados contra os grupos dominantes em

situações di quebra de dircitos e mudanças sociais. Podcriamos acrcsccritai. aqui, situaçõcs

de disputas dentro de quadros de poder hierarquizados.

Ainda em termos de ação indigenista, cabe ressaltar uma interpretação sobre as

esferas de distribuição do poder e de alocação dos recursos advindos da proteç.ão oficial

que efetivamente reformularam as formas de arganização social na área indígena.

Atualizando antigos espaços de representatividade e burocratizando a identida.de étnica

numa situação de tutela (Grünewald, 1993). Neste caso, apenas fornecemos as infòrmações

básicas de como a identidade dc índio Potiguara foi-sc construindo ao longo da ação


,'

indigeiiista através da oposição cahoclo/yar~ictrlar


e como a própria noção de território dos

índios da Baía da Traição foi informada pela ação oficial, reificando no imaginário social e

nos discursos as fronteiras entre as terras e os grupos das antigas sesmarias de São Miguel

e Monte-Mór. Estes Últimos argumentos serão retomados com mais profundidade nos itens

seguintes.
2.3. A D E M A R C A Ç A O D A S 'J'EIIRAS J N D f G E N A S

O campo itidigenista na Paraiba modificou-se com radicalmente no final da década

de 1970 com a entrada de novos atores e agências atuando nos intersticios da ação tutelar e

permitindo aos Potiguara uma atnpliação de seus horizontes políticos. A perspectiva de

demarcação das terras indigenas foi a maior mudança trazida pela ação dos novos atores

ligados a içreja católica e ao nascente movimento indigenista em nível nacional. Azevedo

(1986), em sua dissertação de mestrado, tratou dos processos políticos de constituição da

Terra Indígena Potiguara aprofiindando a análise de um processo de territorialização em

níveis até então pouco realizados. Tomo este processo como um marco para as mudanças

que o campo intersocietário passou nas últimas décadas e me dedico, neste item a sumariar
,
'
os principais dados fornecidos no trabalho de Azevedo.

Até a primeira metade da década de 1970 a FUNAT não havia se preocupado de

modo mais sério que o SPI com relação a demarcação das terras indígenas. Limitava-se a

levantar a lebre algumas vezes quando os delegados regionais de Recife iam até a área

indígena e faziam tomadas públicas de preços de serviços demarcatórios. Depois,, caia-se

no mesmo silêncio de sempre, alegando falta de verbas, a quantidade de ocuparites não-

indigenas e as dificuldadesjurídicas inerentes aos títulos de propriedade que estes exibiam.

Em 1976, é publicado no Diário Oficial da União um edita1 em que a FUNAI

informa que fará a demarcação da área Potiguara e apresenta um memosial descritivo, sem
mapa, definindo os limites e a extciisão de 57.000 ha. Em 1978, porém, emite duas

certidões negativas a respeito de terrenos incidentes sobre o território indígena e de

interesse dc particularcs. Um atcndcrido aos intcrcsscs da Usina Agicam, que estava sendo

instalada de frcrite a cidade dc Matai-aca, as margens do Rio Camaratuba , e o outro para os

proprietários do Sitio do Melo, localizado nas imediaçoes da Baía da 'Traição, quc tinharn

interesse na especulação imobiliária para a construção de casas de veraneio.

Nesse mesmo período, começa a atuar junto aos índios da aldeia São Francisco a

enfermeira e agente pastoral da arquidiocese da Paraiba, Maria da Salete Horácio cla Silva,

que convidada pela FUNAI passa a dar asscssoria de saúde (cf Azevedo, 1986, p. 134).

Salete já havia se envolvido com outras comunidades camponesas do estado que

vivenciavam conflitos de terras, como os moradores da fazenda Mucatu, em Alhandra,

onde ela participou, com auxiliar de enfermagem das atividades realizadas pela pastoral

organizada por Dom José Maria Pires. (cf Moreira, 1997, p. 199). Em suas ações Salete

busca conhecer os problemas mais graves que os índios viviam e divulga entre eles
sC

algumas cópias do estatuto do índio, fazendo-os perceber de modo mais palpável que

existia um ordenamento jurídico que Ities garantia direitos sobre as terras que ocupavam.

As terras indígenas já vinham de longa data ocupadas por terceiros e inúmeras

negociações eram realizadas sobre elas, inclusive a expansão de plantios de cana

incentivados pelo governo. Uma ação de aviventação de picadas foi realizada pelo c,hefe de

posto, Hamilton Lima Soares e um grupo de índios recebendo como resposta dos

~roprietáriosdo Sítio ltaúna, as margens do rio Camaratuba, um processo na justiça de Rio

Tinto, em julho de 1978. Em novembro, ocorre um gravc conflitg entre os índios, liderados

por Daniel Santana e um grupo de topógrafos que realizava medições no Sítio do Melo,
quando estes são agredidos e tem os instrumentos de medição quebrados e jogados no rio

Siiiiinbu. Em dezembro, os índios da São Francisco, são levados por Salete até a

Universidade Federal da Paraíba, onde solicitain que a instituição realizasse a concessão de

"aparclhos" para (luc cles possatii I*tizci-a dctnarcação de suas terras.

No decorrer do alio de 1979 a FUNAl interfere na relação entre os Potiguara e os

professores 'da UFPB que estavam prestando apoio técnico aos índios, suspendendo as

açõcs de medição. Mcses depois, a FUNAI e a UFPB firmam um convênio para a

demarcação das terras indígenas, suspenso algum tempo depois. Nestas ações, começam a

se destacar as figuras de José Augusto da Silva, Severino Fernandes e João Batista

Faustino como líderes do grupo que reivindicava a demarcação das terras. Data desse

mesmo ano a movimeiitação da Companhia Rio Tinto e dos proprietários do rio

Camaratuba, enviando cartas ao Ministério do Interior e dando entrada em ações iia justiça

contra a FUNAI, acusando-a de ser responsável pela movimentação dos índios, que

estariam penetrando em suas propriedades, abrindo picadas, derrubando cercas


,
'
e tirando

madeira.

No ano seguinte, a FUNAi noticia que o Exercito demarcará as terras dos I'otiguara

ate o fim do ano. Diante da situação de conflitos que se intensificaram desde 1978 e da
movimentação dos ocupantes não-indígenas o órgão tutor ameaça apelar para a i n t b e n ~ ã o

das forças armadas, lembrando aos atores envolvidos que ainda estavam todos sob um

regime de ditadura. Contudo, a sociedade civil já vinha se organizando naqueles anos de

distensão e anistia e os índios conseguiam movimentar-se com maior liberdade. José

Augusto havia viajado até o Rio de Janeiro, tendo trabalhado uns tempos num estaleiro e,

através de membros da Associação Nacional de Apoio ao Índio - Seção João Pessoa e da


Comissão pró-índio do Rio de Janeiro, tem acesso a mapas e documentos sobi-e as terras

indígenas constantes do acervo do Museu do índio.

No ano seguinte recrudescem os conflitos e outras agências entram na disputa,

como o Governo do Estado e a Polícia Federal. O Projeto Integrado Potiguara, elaborado

pela Secretaria de Agricultura do Estado, é apresentado como a solução para os problemas

dos índios corn a abertura de litltias de crédito e outras raçitidadcs para o itiçctitivo da

produção agrícola e pesqueira. Salete e Heliton, os dois agentes missionários que

trabalhavam em São Francisco denunciam o Projeto Integrado Potiguara como uma

manobra para desviar a atenção dos índios da luta pelas terras. Com isso, instaura-se um

processo faccional na área, com o alinhamento de 14 aldeias lideradas por Daniel Santana,

com o apoio da FUNAI e do Governo Estadual contra os índios de São Francisco,

liderados por Severino Fernandes, Zé Augusto e Batista Faustino.

Ainda em 1981 os índios darão início a autodemarcação das terras contando com o
1.

apoio dos agentes pastorais e indigenistas, como José Humberto do Nascimento, o

famigerado Tiuré. O presidente da FUNAI, Coronel Paulo Moreira Leal promete

reconhecer os limites demarcados pelos índios,, mas estes serão reduzidos, ao longo dos

anos de 1982 e 1983, pela intervenção do Exército para 21.238 ha. Essa intervenção é

resultado da mobilização dos produtores de cana de açúcar que, ao acionarem um.a rede de

relações dentro das instâncias governamentais, conseguiram excluir as áreas que ocupavam

nos limites das terras indígenas. A redução das terras indigenas processou-se no âmbito de

um Grupo de Trabalho Interministerial, bastante sensivel as solicitações da Companhia Rio

Tinto, dos proprietários do rio Camaratuba e da prefeitura da Baía da Traição, que ganhou

290 hectares para a sede municipal desmembrados da Terra Indígena.


Assim, uma parcela importante da população e do território Potiguara foi excluída

da deitiai.caçiio, enscjaiido novas mobilizí~c;c?es


para a regiilarização das terras restantes. A

primeira, entre 1985 e 1993, para a área de Jacaré de São Domingos c a segunda, desde

1993 até hoje, para os Potiguara de Monte-Mór, cujas terras não haviam sido contempladas

nem mesmo com aquela autodemarcação de 1981.

Segundo Azevedo (1986, p. 227) a luta pela demarcação permitiu que os Potiguara

repensassem a sua concepção acerca dos significados da terra e do grupo, ao organizarem-

se na defesa de interesses comuns. O compartilharnento de experiências na abertura de

picadas, simbolizando a retomada do território, a participação nas arenas polii.icas do

movimento indígena, da administração da FUNAI e das entidades de apoio permitiram a

ampliação de seus horizontes e a coritestação de situações de controle e imobilidade postas

pelo poder tutelar.

,
'

No capítulo 3, abordaremos como a experiência de demarcação da ~ e i lndigena


r ~

Potiguara repercutiu entre a população indígena das aldeias que foram excluidas pela ação

do Exército e a daquelas áreas que sequer eram consideradas mais como habitadas por

índios. Por enquanto, continuemos com a análise das formas de organização social

gestadas na esfera de ação do órgão tutor.


". ..unta yersyectiva qtre eltfoca eslrafégias,
mais do qtre esfrtrftrrasé mais adeqtmda para
a crrtcílise de trnta realidade ntrrl/i\!ocal."
(Sjoberg, 1993 apud. Barbosa, 2003)

A partir da apresentação dos quadros históricos descritos nos itens anteriores

podemos tratar das formas de organização social e política dos Potiguara, observando-as

como resultado das direrentes políticas dc intervetição a que foram submetidos no século

XX. Em destaque, serão abordadas três dimensões ab vid; desse povo indígena: a

elaboração histórica das fronteiras étnicas num contexto intersocietário; a estruturação de

I
um campo político de representação étnica imbricado com as disposições da inclianidade

(Oliveira, 1988) operante na lógica de ação das agências indigenistas; e ag'retóricas da

mistura que perpassam as ciisputas faccionais sobre 3 coiitrole das fontes de recursos.

r-
Et-ic Wolf, na crítica que faz as formas naturalizadas e substancialistas de se ,falar

em nações e etnias, lembra que

". ..e1a.s sertio mais bem compree~ídidasconto efei!os e


catrsaa age~ifc'.r
e vifintasdtr pl-oc~.s,~os
dtl ex/;~7)tsão
yolí/ica e
eco~~(jnticn,1igado.r diretame~rte a presença evropéia(...)
,S,~cied&s e ctrl/trra,s r150 devem ser \~i.s/~r.sconto dados,
r~~!ep.ado.spor alguma essê17cia '. i~tienta,~, mola mesira
orgu~trzaciortal024 pka17o mesfre. c..) os co~tjwttosczrlftrrais
(...) esfão co~ífinuame~t/e em co~tsirução,descor~s frtrção e
recom~/r~rção, sob o impac/o de mtil/iplo.r proce.cro.r qlre
operani sohru antplos canpos de cor~dxcie.~ crrl(rtrrais e
c.
.socitris. .) /+I I~rgarde ~rnidades.sej)arada.~e e.s/a/icas
cIarn~?t(í~i/~lirttitadas, devemos portanto tratar de ctrnipos de
d e t j t r ~das qlrais cot#rrjtos c~r1t~r1ai.s
I,cI~~ÇÕL'.I. silo r<rlrnido.~
e
desntemhrados. (Wolf, 2003, p. 296-299).
"

Seguindo esta proposta de Wolf e tendo em conta a premissa de Fredirik Barth

([I 969: 2000) de que os grupos étnicos são formados no decorrer da interação entre grupos

sociais de modo a organizar a própria interação, pretendemos evidenciar a produção das

fronteiras étnicas Potiguara como resultado de um processo de territorialização .(Oliveir-a,

1999) conduzido num quadro histórico específico, marcado pela ação tutelar tio órgão

indigenista e por poderosos fluxos de capital, forças que incidem diretamente na

constituição das formas de organização do grupo, sejam elas étnicas, políticas ou culturais.

Devemos lembrar, portanto, que atos políticos e jurídicos desde o período colonial

contribuíram para a formação de unidades sociais e étnicas no Brasil, atravessando-as e

incorporando-as por relações de poder mais amplas qtre se or-igitlamfora delas e \?donzuifo

além delas, que devem stra cri.s/alizciçãoa essesprocesscs, parricipm deles e, por sua vez,
I*

os afeetam (Wolf, 2003b: 296).


"

Na virada do século XIX para o XX o campo intersocietário das antigas sesmarias

de Monte-Mór e São Miguel era habitado por grupos sociais heterogêneos, sendo os

caboclos apenas um dos grupos, e talvez o mais pauperizado. Havia senhores de..engenho

(Cumaru, Preguiça, Patrícia, Três Rios, Piabussú, Itaúna, Itauninha), fazendeiros (nas

margens do Camaratuba), comunidades de pescadores (Baía da Traição), moradores,

pequenos agricultores, arrendatários e foreiros, entre outros. A identidade étnica era algo

tenuamente manifestado, visto que as principais formas de organização social estavam

marcadas pelo trabalho agrícola e pesqueiro e pe!as festas dos santos padroeiros que,
apesar de serem realizadas nas antigas missões e lembrarem a ascendência indígena de

alguns grupos familiares, eram festas católicas (oficiais) e, por isso, congregavam todos os

habitantes da região indistintamente.

Nessa época, os índios estavam dispersos por várias localidades das antigas

sesmarias, vivendo nas mais distintas situações: nas Gilas e povoados maiores dividiam o

espaço com moradores não-índios, as vezes sendo minoritários; nos engenhos e fazendas

ocupavam a situação de moradores; nos lotes entregues pelo engenheiro, na área de Monte-

Mór eram pequenos proprietários, assediados por grileiros; em outras localidades eram

hegemônicos (como São Francisco), mas r?ão exclusivos; nas terras da sesmaria de São

Miguel ocupavam terras comuns garantidas pela demarcação de 1868.

Apesar das fronteiras étnicas serem menos aparentes do que hoje, não prevalecia

uma invisibilidade total da condição indígena dos habitantes da região. E o que podemos

ver, por exemplo, nesta passagem do livro Notas sobre a I'arahyba de Innêo
,
'
Joffily,

publicado em 1892:

"li'ti/re/at~fo,
~rmaexcepção se iw/a em cío~r.s/)oti/o.s da
orla mari lima, coiisliluiiido isoladores ethiiicos. ReJirimo-tios
a Bahia da Traição ao norte da capital, e a fiesdezia de
Alhat~draao srrl, onde aii~da;wje se eeiiconlra o ypa indígena
y~rro. ( 1 977, p.234)
"

As diversas situaç6es vividas pelos índios constituíam uma rede de relações sociais

e espaciais informada pelo parentesco e pela idéia de que aquelas terras haviam sido

doadas aos seus antepassados por que estes erari: indígenas, onde os santos padroeiros

seriam uma espécie de fiéis depositários deste contrato social.


A relação entre os iiidios c o satiio padroeiro é tão significativa dessa lòrma de

elaboração da identidade étnica que as narrativas sobre o aparecimento de sua imagem

relatam a transubstanciação de um índio no santo,

"1: C.CSC ,VZo Migtrel, ele .foi encotrfrado, SZo Miprc.1


Arcatljo, o tlonle dele era Arcanjo. fia írm, era rrm, lml
it~diozit~ho, 11m caboco. Naquele tempo chamaira caboco.
Moraira ali no Tapuia c..) e então encoilfraram esse M i g ~ ~ e l
Arcailjo morfo. Ali era Irma mata. A í enterrara ele. /J ...com
oifo dia.Ali era rrma mafa. Ai, a cova lava rachada em crlrz.
Aí, os íi1dio.s se relrniram, da Baía mesmo, do 7'a/)lria,
I~r.ai?jeir.as. A í,.forml chamar o /ladre lá de Manlarlgl~a/~e,
/)(~dre./oiío Hafi.sfa(...) ai, o padre veio e ... cavaro a cova e
firam, qrre era rrm sanfo, ta~?a.formado nrrm sarlfo. Aí, le~aro
yra Roma. Lle Roma foi que trouxer0 esse qrre /a Ia em São
/;ra~~ci.sco.(D. Joana Ferreira da Silva, Galego, agosto de
"

2002).

Outras narrativas destacam que após a imagem ter sido encontrada os holíindeses

construíram a igreja na Vila São M.iguel, onde o santo foi entronizado e ficoii sendo

,venerado pelos índios. Segundo nos contou Seu Tonhô, de São Francisco, muitos

duvidavam que o santo fosse vivo, até uma certa vez uma índia, muito curiosa, espetou o

braço dele com uma agulha, sem que ninguém visse, e o sangue começou a ecorrer.

causando grande admiração. Ainda contam que a imagem toda vez que era retirada da

igreja retomava misteriosamente para o altar e, quando, a igreja da Vila São Miguel ruiu e

os índios levaram a imagem para a igreja da aldeia São Francisco, o céu- parou o

movimento e fez-se uma noite escura e sem vento.

Desse modo, as festas em homenagem ao santo servizin e servem para lembrar aos

descendentes dos índios os laços de parentesco e sdidafiedade q'ue os unem, através da

perpetuação dessas narrativas e do reencontro das aldeias nas nove noites de novena.
Por outro lado, estes riiuais íarnbérn contribuem para estabelecer as relações com os

não-índios. Dona Joaiia Ferreira da Silva, do Galego, nos relatou que vários proprietários e

arrendatários das margens do rio Camai-atuba contribuíam com as festas de São Migucl, na

Vila e de Nossa Senhora da Conceição, no Sífio, como é mais conliecida a aldeia São

Francisco. No relatório sobre o Posto Indígena Nísia Brasileira elaborado por Cícero

Cavalcanti, em 1966, este fala que

"da ,fiz do riacho Ver?furaaté o .fim do lirgar


Sarram hí, (...) enconfram-.re 36 6ocafário.r (...) c?m sua
maioria colocado.r nesse se13:orpelo Nidio Matioel Pedro, sem
os de \rido.s consetif imenfos do ,S131, e clwe era ele qirem
recebia defermitiadas imr>orfâticia.sem dinheiro dií:etido o
mcsrno cl~reera para as-fesfaardas d1ra.r izreiias, São A4igrel e
São I~i~ancisco. O Marirrei l'edro se ififulavade capifão dos
íiidios e por isso matidava e desmandava deniro das ferras
desfeposfo." (Cavalcanti, 1966, p. 2 1-22, grifos nossos)

Ainda hoje, esta prática se faz presente. Pedro, professor da aideia Nova Brasília

vos contou que o proprietário Murilo Paraíso, que ocupa terras vizinhas a sua aldeia com
,'
plantações de cana, costuma contribuir com certas quantias em dinheiro todos os anos para

a festa de São Miguel, através dos índios dessa aldeia2. Lembremos, ainda, o que Seu

Antônio Gomes falou a respeito do fim ,dos pagamentos de renda dos pequenos posseiros

para o Posto Indígena, que deixavam de recolher suas c!íl!idss com o brgão indigeinista em

troca de alianças com os líderes das aldeias mediadas pela contribuição nas festas dos

santos. Podemos afirmar, portanto, que as festas da igreja se tratavam - e ainda se tratam -

de um modo de organização das relações dentro de um quadro hierarquizado de e

poder, perpassado por uma fronteira étnica latente.

2
Atualniente. este fazendeiro apresento11 iitna contestação adniinistrnliva contra a identificação da Terra
Indígena Potiguarn de Monte-Mór o qiic ab;iloii a sua alé ent5o boa rclação coni os índios.
Tal raciocínio se apreserita corno coinplementar aos apresentados por Vieii-a (200 1,

p. 1 0 1- 108) e Peres (2004, p. 70-7 1 ) quando afirmam que os festejos católicos são o 1ocir.s

privilegiado da produção simbólica da identidade do grupo e de suas forrnas de

organização. Nestes rituais destacam-se não só a atualização àa especificidade étinica do

grupo, mas também as suas relações com os outros membros do campo intersoc:ietário,

revelando a reprodução de relações sociais assimétricas - diria até de patronagem - entre

índios e não-hdios, onde estes se alternam nos pólos de poder.

Mas, retomando ao início do século XX, a situação étnica na regiiío teria

permanecido assim, vivenciada poucas vezes por alguns grupos de famílias, se não

houvesse a chegada da Companhia de Tecidos Rio Tinto - CTRT e do Serviço de Proteção

aos índios - SPl entre as décadas de 1920 e 1930, possibilitando que novas relações de

poder se desenvolvessem articulando alguns membros desses gnipos heterogêrieos em

torno da "oposição" a fábrica - por parte de algumas famílias de Monte-Móo - e da


,
situação de tutelados de um órgão federal que ao mesmo tempo que os provia/ de recursos

funcionava como instância reguladora de conflitos e relações entre os grupos e os atares

sociais "de fora".

Ao adentramos no universo de relações sociais estabelecidos pela ação dessas

agências, em especial do órgão indigenista, fundamental para a compreensão da estrutura

de poder vigente nos dias de hoje na área indígena, nos deparamos, em primeiro lugar, com

as categorias de atribuição étnica correntes no campo e, que, por força da ação tutelar

tornam-se essenciais para a aquisição de recursos e direitos. Estas categorias sgo as de

cahoc/o e yarlictrlar, apresentadas em sua gênese institucional nos itens precedentes.


Diferente da fornia como Vicira (2001) coloca, as categorias étnicas

operacionalizadas não são exclusivas de u m modo indígena de perceber o contato, mas

fazem parte de um campo semântico da etnicidade (Valle, 1993, 2004) criado pelas

relações entre os atores, legitimados por diferenças sensíveis de poder, inclusive aquele de

atribuição. A presença do SPI e depois da FUNM, atestando e validando a existencia de

uma fronteira étnica na região e incorporando uma população heterogênea a sua malha

administrativa, serviu como canal primordial de elaboração desse campo semântico, pois,

se podemos identificar o uso histórico dos termos "índio" e "caboclo", seus sigr~ificados

atuais só podem ser compreendidos a luz do contexto de reconhecimento de direitos

promovido pela ação indigenista. Pois,

"O governo /ri/elaragrega as relações ri/tiai.re de a,fiiiidade


ori parcil/e.rco tima relação eiilre a ideilfidadc c o /erri/ório
iildígeiia (agora espaço jurídico), que passa por rima
i.cferêiicia aos 'direi~os'. (...) uma ideirlificação é~rticg1160é
prodrr/o apeiias de uma 'confrasiividade', mas da
coniposição dessas fronfeiras, é/nica,jrirídica e /erriforial.
Ou, de oufraforma, é rint modo de classrjcar sujeiios qrie os
ii1clrti faitfo em grupos locais quaizfo em arc~~boriços
jtirídicos e políiicos esfafais. (Arruti, 2001, p.f28. gifos no
"

original)

A primeira categoria que se apresenta nesse campo é o termo caboclo. Como vimos

no capítulo 1, este seria uma categoria social produzida pelos processos de territorialização

dos séculos XVIlI e XIX, evidenciando o caráter de incorporação física e cultural dos

índios a sociedade colonial e depois nacional. Pude chegar a esta forma de atribuição não

só através da literatura sobre o grupo e dos documentos consultados, mas a partir das
entrevistas que realizei em campo onde, muitas vezes, para definirem o que era ser índio os

Potiguara argumentaram que índio é um termo utilizado hoje e Cjue se refere aos. direitos

jurídicos que possuem enquanto coletividade, destacando a relação com o órgão


indigenista3. O termo que os distinguiria enquanto grupo, antes da vigência da sir.uação

jurídica atual, seria o de cahoco, cahoco vel/?o, choco Cegiiimo ou ainda cahoco

caratlp~ejeiro, que serviria como base para o entendimento daquilo que eles eram

enquanto um grupo social singiilai-.

~~o, o
A categoria cahoco e uma dc suas variantes, o cahoco c a r a t ~ p ~ j e iassocia

recorte étnico a uma ocupação e a um determinado modo de utilização dos recursos

naturais que combinava a pesca com a agricultura familiar e o assalaria.mento

complementar (reserva de mão-de-obra para um mercado local). Tudo isso dentro de uma

relação que envolvia a disputa pelo controle do acesso a terra e a arregimentação de

trabalhadores determinados por instâncias sociais e jurídicas herdeiras das antigas formas

de organização dos aldeainentos e diretorias de índios.

A criação de um campo de ação indigenista na década de 1930 na Baía da Traição

(cf Peres, 1992) permite a remodelação dos significados atribuídos a categoria dos
f

caboclos, tornando-os sujeitos de dircitos garantidos por um órgão de Estado. D-nti-e estes

direitos destaca-se aquele que reconhece a sua primazia em relação a utilizaçilo dos

recursos naturais, principalmente a terra. 3 o que nos lembra Amorim (1975, p.15) a

respeito da ambigüidade existente entre os estereótipos marcados pelos regionais coiitraos

índios e a situação de tutelados que estes vivenciam, dispondo "de reserr7a.s que, pelo

menos teoricamente, lhes garantent o trso i160cot~testadodo ,solo".

3
Tal raciocínio taiiibbrn c foniiulado pclos Atikuiii. da serra do Uiiiã-PE estudados pbr Grüne\\~ald(1993.
p.71 e seg. )
No contexto em que os Potiguara vivem atualmente, quando certos grupos de não-

índios4, chamam alguém de caboclo é para desqualificá-10, acusando-o de ser um falso

índio, um ex-índio, relembrando justamente o processo de "aculturação" vivido. Num certo

tipo de aceitação da visão dominante, os próprios Potiguara reconhecem-se como índios

misturados, referindo a "pureza" étnica aos seus antepassados ou aos índios do Xirigu, que

são veiculados na mídia como protótipos do índio brasileiro (cf. Vieira, 2001)'. Porém,

eles próprios entendem que ser caboclo é ser índio, que o seu direito as terras em que

habitam é derivado dessa condição de descendentes de índios, o que significa ser índio,

para os termos da proteção oficial. O hibridismo do termo caboclo é reinterpretado, não

mais como sinônimo de diluição. mas como vetor de diferenciação e construção de uma

identidade política, social e cultural exclusiva, num contexto histórico e social

determinado6.

Se a categoria social dos cahoclos pode ser identificada como oriunda de

reformulações das formas de controle pretéritas das populações indígenas (d~sdeo século

XVII), a categoria particlrlar parece ser mito das lógicas de ação do Serviço de Proteção

aos Índios ao longo do século XX. Como vimos no capítulo anterior, esse termo já aparece

no relatório de Dagoberto de castro' e Silva, de 1923, exatamente com a função de

identificar os ocupantes não-indígenas das terras que seriam alvo da proteção do órgão.

Ocupantes estes que, de acordo com a lógica institucional da época, deveiiam ser

incorporados como arrendatários do governo federal, enquanto solução para os conflitos

que resultavam de sua presença numa área de ocupação indígena.

4
Em especial fazendeiros. usinciros e outros invasores das terras indígenas
Devemos ter em mente também que os sentidos das categorias de atribuição não s20 fisos no cainpo.
variando para os difcrcntcs alorcs sociais que o coinpõcni. a dcpndcr da situação c dds irilercsses ein jogo.
Para uma discussão sobre cssa forina dc constmção da identidade indígeiia ver Gninewald. 1997.
mL
1"
TECA CENTRAL I UFPB
Desse modo, nossa reflexão sobre a identidade étnica Potiguara enquanto forma de

organização social passa necessariamente pela sobreposição das dimensões do parentesco

(um conjunto identificável de famílias extensas inter-relacionadas), do território

(historicamente referenciado pelos limites dos antigos aldeamentos), da devoção aos santos

padroeiros destes aldean~entos(que articularia estas famílias em torno de um denoininador

comum, a isto também se juntam a memória e a prática do toré), da relação com os

recursos naturais (que os diferenciaria enquanto grupo e classe da população envolvente -

o caboco cararlgrrejeiro) e da proteção do Estado (que os assegura enquanto uma

coletividadejuridicamente diferenciada).

Percebo aqui que os quadros históricos de atualização da organização Potiguara

foram pontuados nos últimos séculos pelas políticas indigenistas da Colônia, do Iniperio e

da República. No século XX, é importante retermos a percepção da progressiva

qualificação étnica das politicas públicas, tais como o processo de tenitorialização -

dimensão preferencial para entendermos os Potiguara - e os atendimento9 específicos

definidos para a saúde e educação.

Uma boa parte das arenas políticas em que os Potiguara interagem estão marcadas

pela existência da categoria "índio" enquanto elemento de adscrição, categorização e

acesso a recursos. Porém, nem todas essas arenas são univocas na relevância que atribuem

ao fator étnico, um exemplo é a política partidária dos municípios em que vivem. Eiiquanto

administração do município e campo de forças em atuação os prefeitos e vereadores não

tomam a questão indígena o tempo todo como crucial para suas ações. O que não quer

dizer que o fato dos três municípios estarem inseridos nas terras indígenas não inteifira nas

questões politicas municipais. O que quero dizer aqui é que, pela lógica das administrações
municipais as questões indígenas não teriam centralidade na distribui~ãodos re:cursos

territoriais, financeiros e politicos. Contudo, a presença da população indígena nestes

municípios causa uma disputa constaiitc com as outras esferas de poder representadas pelas

políticas da FUNAI (terra), F U NASA (saúde) e educação. Tainbécii aíirrrio que se 1 i.aiaiiios

estas duas esferas políticas de modo separado aqui, para melhor exposição, na realidade

elas estão profundamente entrelaçadas, correspondendo a um único campo político de

interação: as disputas e clivagens numa .dimensão refletem-se imediatamente nas outras. A

concorrência pelo poder municipal se reflete na disputa pelo controle dos recursos da terra,

saúde e educação, sendo praticamente os mesmos os grupos que se opõem.

Como já disse, nossa explanação toma como ponto central o caráter étiiico da

interação política dos Potiguara nas mais variadas arenas. Nesse sentido, buscan~os

compreender dos níveis mais básicos de etnicidade até os mais complexos. Numa çradação

realizada de modo superficial poderíamos dizer que na base encontramos como elementos

fundamentais da identidade Potiguara as relações de parentesco entre as famílias

descendentes dos antigos habilaiitcs dos aldcamcritos dc São Migucl c Montc-Mor. Ou


,'

seja, território e parentesco, intimamente ligados, pois é índio aquele que é fiIho.de índios e

índios são aqueles que detêm o acesso exclusivo as terras da região, delimitadas por uina

instância superior de poder que os incorpora a uma sociedade mais ampla. Desse modo, os

não-índios que convivem diretamente com os Potiguara nas aldeias, os chiimados

partictllares, representam as fronteiras étnicas mais elementares onde a tendência é-sempre

do grupo incorporar estes elementos, através de casamento ou relações de reciprocidade,

como o compadrio e a participação nos ritos católicos. Inclusive, a intenção dos

particulares, pelo menos dos mais pobres, é conseguir um pedaço de terra para trabalhar,
0'

numa região em que o acesso a esta é escasso. Assim, se as fronteiras são porosas
permitindo a incorporação de elementos estranhos ao grupo, este processo não se clá sem

conflitos, em muitas aldeias é patente a desproporção entre os particulares e os caboclos,

onde os primeiros são muito mais numcrosos que os segundos. Nesses casos as disputas

pelo controle dos recursos são constantes.

Estratégias de legitimação e alianças são postas em prática por atores de ambos os

grupos, ora apelando para as prefeituras e os políticos regionais, ora apelando para a

política oficial de indianidade promovida pela FCTNAI e outros órgãos, como a FUNASA.

Numa situação de recursos escassos - terra, trabalho, moradia, ateridinicnto rricdico,

educação, transporte - e atendimento diferenciado para um dos grupos sociais, as fronteiras

étnicas vão ser muito mais porosas e kocirs de conflitos.

2.5. A S LIDERANÇAS INDf(;ISNAS

,
'

.,,
n l l ~
É essa relação com os aparelhos de Estado, tidos como fontes de recursos e bens,
,,..stitui
~ n n o principal espaço de produção e distribuição do poder entre os Potiguara

Nossa análise dos processos políticos de constituição e legitimação das lideranças leva em

conta o seu papel de intermediários na relação entre o grupo e as agências de contato. Esse

ponto é deveras problemático e envolve não só interpretações distintas na literatura

etnológica (vide Azevedo, 1986; Moonen & Maia, 1992 e Vieira, 2001) como o interesse

das agências de contato em compreender as formas de organização política do grupo em

virtude do montante de recursos em disputa existentes nas terras indígenas.


Esse segundo aspecto me foi revelado quando conversei pela primeira veí: com o

procurador Luciano Mariz aia^ na intenção de entrevistá-lo para esta dissertação e ele me
dissc quc cra prcciso sabcr sobrc quais bascs sc assentava a Icgitirnidadc das 1ic;lcranc;as

Potiguara, para que o Ministério Público pudesse agir na responsabilização dos in(livíduos

que arrendam terras.

Da ótica de uma das agências responsáveis pela defesa constitucional dos direitos

indígenas, Luciano Maia pontuou um grave problema que atinge os índios, o da enorme

diferença de poder aquisitivo entre aqueles Iíderes que intermediam os contríitos de

arrendamento e os demais habitantes das aldeias que vêem suas terras de trabalho e o

mangue serem devastados pela monocultura canavieira. A partir do momento que tais

contratos são considerados ilegais pela legislação vigente, o operador do Ministério

Público deseja identificar os responsáveis por tais atos. Contudo, a conjuntura política local

impede, muitas vezes, que se chegue a esses Iíderes. Na maiona dos casos, os mesmos são

reconhecidos pela FUNAI como rcpresentantes Iegitimos de suas comunipades, c é a

agência indigenista a principal fonte de informações do Ministério Público e .responsável

pela fiscalização e vigilância do patrimônio indígena, contando, para isso, com a

colaboração desses Iíderes.

Tais situações são claramente prodi~tode sete décadas de exercício do poder tutelar

sobre essa população, através do qual desenvolveram-se padrões organizativos e esquemas

de distribuição do poder que associam os interesses do órgão tutor aos de segmenitos do

7
O Dr. Luciano Maia ioi procurador do Ministério Piiblico c111 João Pess-da e ateou durante o pro<:esso dc
demarcação da terra indígena Jacaré de São Domingos e na resolução dos arrendamentos que tomavam conta
do território Potiguara no inicio da década de 1990. Publicou ein conjunto com Frans Moonen o livro
Etnohistória dos Indios Potiguara (1992). Além disso. é membro do Conselho Estadual de Direitos Huinanos
e como professor da Universidade Fcdcral da Paraíba permitiu a intennediação de atores dcstas duas agencias
no campo político Potiguara. notadamciitc nas qucslõcs relativas a dcinarcação de tcrhs c a conflil~ss ~ h E
Q
uso dos recursos naturais.
grupo étnico em disputa pelo coiitrole dos canais de acesso a recursos e b instâncias

reguladoras de conflitos. Entre as priiicipais atribuições das lideranças Pctiguara estão o

proccdimcnto de cadastrameritos junto a FUNAI e a FUNASA, para discriminar a

população beneficiada pela assistência desses dois órgãos, e passadas a época dessas ações,

conceder declarações e atestados de indianidade para as pessoas que, por alçuni niotivo,

não foram contabilizadas. Estes fatos nos levam de volta a discussão presente nos tra.balhos

sobre o grupo, de quais seriam os meios e as bases através dos quais se constrói e

sustentam as lideranças indígenas.

Na literatura sobre os povos indígenas no Nordeste (Sampaio, 1995; Oliveira Jr.,

2000 e Brasileiro, 2004, entre outros) destacam-se considerações a respeito das tensões

provocadas entre as teridhcias Iiorizoiitalizarites de uma ética camponesa (Wooirtn~an,

1988) - que enfatiza a família nuclear como unidade básica de produção e consumo, em

interação com práticas de solidariedade interfamiliares - e a centralização provocada pela

imposição dos esquemas de autoridade característicos da irldiarlidade. E9tas tensões

perpassam todos os processos de constituição das áreas indígenas e de suas estruturas de

representação política formal perante as agências de contato.

Incorporando esta reflexão as impressões de Azevedo (1986) e realizando uma

critica aos trabalhos e Moonen & Maia (1992) e Vieira (2001), observamos que os carsos e

instância de poder entre os Potiguara remontam historicamente ao posto de Hegerzre dos

Índios, vigente da segunda metade do século XIX até as duas primeiras décadas do século

X X . Tal posição, ao que parece era uma atualização dos cargos d e diraelores de nldeicr e

capiiães-mores que vigiam durante o período colonial na administração dos povoados de

índios catequizados. Na documentação da Comissão Demarcadora de Teras do engenheiro


Justa Araújo na Província da Paraliyba do Norte, guardada no Arquivo Nacional do Rio de

Janeiro e citada por Baumann (198 I), consta que o cargo de liegerile era exercido poi-

indios nas aldeias de Alhandra, Jacoca, Monte-Mór e São Miguel na década de 1860. De

acordo com os primeiros relatórios do Serviço de Proteção aos índios a respeito dos

Potiguara o Regente das M o s era a figura responsável por intermediar os contratos de

trabalho dos caboclos com os proprietários rurais, representar o grupo perante as

autoridades e organizar os festejos em homenagem a São ~ i ~ u e l * .

"Hoje, porém, a autoridade dessa per:sor,tagem é


mlriío limiíada. Sua ríoníeação provem do \~igáriode Stio
Miglrel e o vig~irioriada mais quer, de ordirihrio, seii&oque o
liegerifeSol-riecadiríheiro a igreja. Ile fal sor.te o papel desse
chefe clrra.se .se reduz a arrecadação das espórflrlas com ylre
cada trm de \)e cconfrihtrir para as desj~esasdiscrintiricfd'nspelo
padre. Além desfa .firiip?o e da prerrogativa de .falar.
primeiro, em nome de todos, qzrando recebem visita de
ceremônia, só lhe conheci uma distinção s ~ b r eo cojnlrm do.9
.se?rsstidirifos a de se eriferíder com OS eslrariho.~qrre vão a
aldeia coriíralar trabalhc~dores."(SEDOCIMuseu clo índio.
Microfilme 1 70, fotogramas 1542-1555).

Esse mesmo relatório, de autoria de Alípio Bandeira, que visitou os Potipara em

1913, afirma que os indios de Grupiúna e das cabeceiras do rio Jacaré faziam suas festas na

igreja da Vila de Monte-Mór, onde ainda havia "alguns índios dispersos". E que os indios

de Estiva Velha, de Jacaré do Meio e Jacaré de Baixo, Laranjeiras, Santa Rita e São,

Francisco faziam suas celebrações na igreja da Vila São Miguel. Tal assertiva faz

supormos que existisse um outro regente para os índios da sesmaria de Monte-Mór

"ieira (2001, p. 85 e seguintes) identifica iiessas atribuições rituais e no parentesco a fonle da legitiinidadc
política dos lideres Potiguara. O que considero reducionista, uma vez que não contempla a relaç20 necesdria
com o poder esercido pclas agências dc Estado e o papcl dc intcrmcdiários na distribuição de reciirsos quc as
lidcranças indígenas assumcm.
Como vimos anteriormente, em 1923, um outro relatório do SPI (SEBOC/MI.

Microfilme 170, fotogramas 1557-1589) revela os nomes de Manoel Sant7Annae Pedro

Cyriaco como chefc c ajudanlc do chcrc rcspcctivamentc Os dois rclatórios citam a aldcia

de São Francisco como a mais habitada e o local de residência do I<egerl/e Após a

instalação do posto indígena, o nome atribuído ao Iíder indígena será progressivamente

substituído pelo de firxa~ra,um termo indígena, mais "natural" e condizente com a

oriciitação do órgão tutor que preleiidia substituir a igreja e sua ação catequética

Manoel Santana é citado por Vieira (2001, p. 85) como o Iíder que anga.riou mais

prestígio e legitimidade frente aos índios no último século, sendo tratado por alguns como

o "i~erdadeirotuxaua dos I'o~yg~at-a"(Idem). Tal memória também nos foi relatada em

campo e nos parece que tem a ver com dois fatos: o primeiro, foi o de Manoel Santana ter

liderado um grupo de índios ao Rio de Janeiro para pedir a proteção do SPI, sendo

atendido com a instalação do Posto; e, o segundo, o seu papel como intermediador das

relações políticas e de trabalho dos índios da sesmaria de São Mguel com a pFncipal fonte

de poder e recursos da época, a Companhia Rio Tinto.

Como vimos, ao ser instalado o' posto indígena na década de 1930, o SP'T procura

tornar-se a instância máxima de decisão e controle dos recursos na área, buscando

subordinar os índios ao direcionamento mais geral do Órgão de que os postos indígenas

fossem economicamente auto-suficientes. Este controle das terras, da produção e da

população causou alguns choques com os líderes Manoel Santana e Pedro Ciriaco que

pretendiam também exercer o controle sobre os recursos da área indígena (Peres, 1992).

Como vimos mais acima, em 1942, Manoel Santana vem a falecer e o SPI não reconhece o

direito de Pedro Ciríaco a sucessão, conduzindo Daniel Santana, filho de Manoel, ao posto
de iirxalra, após a tentativa fmstrada de colocar João Batista no cargo. A comunhão de

interesses que não havia conseguido realizar com hlarioel Saritana o SPI, logrou fazer com . .

Daniel, uma vez que este também era funcionário do Posto.

Apesar da escolha do SPI ter recaído sobre Daniel Santana, os índios de São

Francisco mantiveram Pedro Ciriaco como seu líder, marcando uma posição de autonomia

frente ao centro de poder representado pelo Posto Indígena. Esta divisão do poder na área

administrada pelo posto perdurou até a década de 1980, com a formação de duas

"linhagens" de chefes: uma na aldeia São Francisco, onde os líderes eram escolhidos pelos

índios e a outra no Forte, sede do Posto Indígena, onde era o órgão tutor que nomeava os

líderes.

Em São Francisco, a sucessão deu-se de Pedro Ciriaco para seu filho Manoel Pedro

e deste a João Batista Faustino. No início da década de 1980, num contexto marcado pela
penetração das usinas de cana e pela luta pela terra, Batista Faustino foi substituído
,*
por

Severino Fernandes, que contava com o apoio de missionários católicos, .ligados ao

Conselho Indigenista Missionário - CIMI - que estavam estimulando os índios na luta pela

terra. Severino Fernandes foi escolhido 'como líder sob inspiração do movimento indígena

e indigenista nacional, que crescia naquela época e assumiu o título de Cacique.

Moonen & Maia (1992, p. 127) afirmam que a escolha de Severino Ferna.ndes deu-

se por influência do ClMI que pretendia "destituir" Daniel Santana do cargo de Tuxalra.

Pouco depois do conturbado processo no qual o exército terminou por demarcar a Terra

Indígena Potiguara, Severino Fernandes foi substituído por Batista Faustino.


Ainda nessa época, podemos identificar a formação da categoria de lideranças

intermediárias que são os caciques das aldeias. De acordo com Azevedo (1986) e Moonen

Maia (1992) paralelo ao proccsso dc rnobilização dos íridios pela demarcação díis tcrras,

o governo estadual propôs o Projeto Integrado Potiguara, coin o intuito de desmobilizar os

índios. Os agentes do CIMI e os íridios dc São Fraricisco opuseram-se a este projeto, que

foi endossado por Daniel Santana e os lideres de outras aldeias como Gaiego, Forte, Jacaré,

Estiva velha, Cumaru, Tracocira, São Miguel, Silva, Camurupim ctc. Estc!; lídercs

passaram a intermediar os contratos de arrendamento nos terrenos ao redor de suas aldeias

e ascenderam social e economicamente sendo com o tempo reconhecidos pela FUNAI

como representantes dos interesses locais.

Estes lideres não surgiram do nada ou foram produto da interferência das usinas.

Antes disso, já exerciam um certo tipo de liderança em seus grupos familiares, geralmente

concentrados em uma ou duas aldeias e eram responsáveis pela arrecadação das

contribuições para as festas religiosas, especialmente a de São Miguel, recebendo


,
'
para isso

a designação de noiteiros ou rtoiiaros, por serem responsáveis pela animação das rioites de

novena Para que pudessem reunir os recursos destinados as celebrações, os rroiteiros já

deviam exercer algum tipo de representatividade frente aos seus parentes e vizii~hos,ao

que se somava o fato de resolverem os pequenos problemas do cotidiano, levando 0s

maiores até o liegertte em São Francisco (cf Azevedo, 1986 e Vieira, 2001). Tal lorma de

liderança em tudo condizia com as expectativas da ética camponesa horizontal (Woortman,

1988) vigente nas relações entre as famílias da região.

A expansão da atividade canavieira e o maior volume de recursos que passaram a

adentrar a área indígena contribuiu para que estas figuras que já çozavaiii de certo prestígio
político e ritual, conseguissem se firmar fiente ao órgão tutor e outras instâncias de poder

como representantes de suas comunidades, ainda mais no período de grave crise que

envolveu a demarcação das terras indígcnas entre 1978 e 1984, no qual, tanto os lideres de

São Francisco como Danicl Santana saíram desgastados. Alguns destes lideres emergentes

foram chamados por Moonen & Maia (1992, p.128) de "caciques da cana" ou "índios

empresários", numa alusão a reprodução de práticas de exploração econômica incentivadas

pelas novas Gentes do capital na região.

Daniel Santana faleceu em 1986 e a FUNAT indicou seu filho Heleno, como novo

Cacique, função para a qual ele não demonstrou muita disposição após alguns anos,

permitindo que o substituto de Batista Faustino em São Francisco, Djalma Domingos,

fosse confirmado como Caciqtre-Geral pelo órgão tutor durante a década de 1990.

Atualmente, existem 26 Caciqtres, Lideres ou lieyrese~itantes oficialmente

reconhecidos pelas agências oficiais (FLNAI, FUNASA e Ministério Público) e um zC

Cacique-Geral, Antônio Pessoa Gomes, mais conhecido como Caboquinho, que.conseguiu

unificar em tomo de si o apoio de grupos de diferentes aldeias, inclusive São Francisco, e

substituir Djalma Domingos em 15 de mhço de 2002

A trajetória de Caboquinho revela alguns dados importantes para nossa hipotese de

que a liderança entre os Potiguara é legitimada pela capacidade de intermediação política


com as agências de contato. Caboquinho é filho de seu Antônio Gomes, último dos índios

funcionários do SPI ainda vivo, foi criado no Forte e conseguiu estudar até o nível médio,

tendo conduído o curso de técnico agrícola. Duas irmãs suas fazem cursos universitarios e

são professoras de escolas indígenas e o irmão mais novo também é técnico agrícola.
É na aldeia do Forte, inclusive, que se encontra uma certa "elite" dos índios

Potiguara, descendentes dos antigos funcionários do Posto pertencentes as famílias Gomes,

Cassiano e Santana. Alguns membros destas famílias conseguiram estudar, chegando a

universidade. Desde cedo ocuparam funções na administração local do Posto Indígena,

inicialmente serviços gerais e trabalhos braçais, mas as gerações seguintes log,raram a

indicação como auxiliares administrativos, professores, parteiras e agentes de saúde.

Quando a FUNAI, estabeleceu uma administração regional em João Pessoa, em 1987, o

cargo de chefe de posto sofreu uma diminuição em sua importância e os índios

rapidamente passaram a ocupá-lo. O primeiro chefe de posto Potiguara foi Marcos

Santana, que depois de ocupar o cargo tornou-se prefeito da Baía da Traição, por dois

mandatos consecutivos (1996-2000 e 2000-2004). Antes de Marcos, porém., Nancy

Cassiano ex-parteira contratada pela F U N N , foi eleita a primeira prefeita indígena do

Brasil, em 1992.

No inicio dos anos 1990, Heleno ~ant'anaapresentou Caboquinho ao.movimento

indígena numa reunião na aldeia do Forte. Através destes contatos Caboquinho chegou a

integrar duas organizações indígenas: o Conselho de Articulação dos Povos Indí,genas no

Brasil - CAPOIí3 e a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas (Gerais e

Espírito Santo - APOINME. Depois de morar em Brasília e ter viajado para a Alemanha e

Holanda representando essas duas entidades voltou para a Baía da Traição e lá passou a

representar a APOINME, estabelecendo contatos com várias agências, entre elas a

Universidade Federal da Paraíba, onde já trabalhava o índio Potiguara Jose Ciriaco

Sobrinho, mais conhecido como Capitão, neto de Pedro Ciríaco.


Juntos, eles passaram a construir alianças com diversos caciques e outros líderes

familiares9, intermediando recursos na forma de projetos agrícolas, cursos de capacitação e

internações hospitalares e apoiando as mobilizações dos índios de Monte-Mór pela

demarcação das terras.

Nesse meio tempo, novas formas de mediações indígenas ganharam espaço no

campo político nacional e começarain a desenvolver-se as primeiras associações indigenas

entre os Potiguara. Se antes, as lideranças tradicionais eram os intermediários privilegiados

entre a comunidade e as fontes de recursos, o aparecimento desses novos agentes locais

possibilitou um reordenamento nas formas de acesso e gestão aos recursos disponibilizados

por instituições de fomento, públicas ou não. As associações produtivas tiveram um papel

destacado nas aldeias de Cumaru, São Francisco, Vila Monte-Mór e Jaraguá, onde além da

mediação econômica, têm exercido relevante papel político rio encamiiiha.mento de

demandas, inclusive de terras.

,*

Em 2000, Capitão foi eleito vereador pelo PT. Em 2001, conseguiram levar o índio

Raqué, cacique da aldeia do Galego, ao cargo de chefe do posto i:idígena. Ao niesino

tempo, Djalma tinha sua liderança questionada por suspeitas de que estava se apropriando

de albwns recursos que vinham para os indios, como uma casa de farinha comunitária,

sobre a qual exercia o controle (cf Vieira, 2001).

Nesse mesmo ano, numa reunião com as famílizç do Forte, Heleno Santana indica

Caboquinho como seu sucessor na linha dos líderes oficialmente reconhecidos pela

FUNAI. Alguns meses depois, um conflito envolvendo os índios da aldeia Tramataia,

9
Ein São Francisco conseguiram o apoio de uina das associações coinunitárias, eiti Cuinaru. o apoio do
cacique Luís; em Tracoeira, do Cacique Davino entre outros.
policiais federais e agcriies do IUAMA ciii toi-tio da coiistrução irregular de alsuiis viveii-os

de camarão na área de mangue que está scb prote;ão permanente foi !evada ao Ministério

Público para que este intermediasse a resolução. Neste processo, a atuação de Capitão e

Caboquinho contribuiu para que as ações da Procuradoria da República não incriminassem

os índios responsáveis pelos viveiros o que 1Res garantiu o apoio dos Iíderes das aldeias de

Tramataia e Camumpim.

Com a resolução deste conflito e o apoio de um número considerável de aldeias e

lideranças familiares, Caboquinho conseguiu ser escolhido como cacique-geral, marcando

o seu ato de posse com um grandioso ritual as margens do Rio Sinimbu onde foi batizado e

consagrado, frente as câmeras de produtoras de vídeo, alunos e professores da

Universidade Federal da Paraíba e da Universidade Federal de Campina Grande,

representantes sindicais, políticos e religiosos, fiincionários da FUNN e da FUNASA e de

Iíderes Xukuru e Tuxá,

,'

Nos últimos anos, contudo, os arrendamentos na área indígena se intensificaram e

um gmpo de caciques, passou a pressionar os aliados de Caboquinho que são contrários ao

arrendamento nas aldeias de São Francisco, Tracoeira e Cumam. Suas ações chegaram

inclusive a destituir o cacique Luis da liderança da aldeia Cumam, num ato marcado pela

violência e intimidação. A presença crescente dos arrendamentos dentro das terrds

indígenas reavivou os dilemas a respeito das forrrias de controle e utilização das recursos

naturais que dividem os Potiguara e as agências envolvidas no campo social local.

Assim, podemos argumentar que o exercício do poder e a legitimidade da

representação política entre os Potiguara são h t o s da capacidade de mediação entre os


interesses de segmentos do grupo e as agências de contato, não se constituindo numa

organização marcada pela objetividade e pelas formalizações, mas, pelas alianças entre os

grupos familiares e de interesse e as disposições dos jogos políticos com o 8rgão tutor e as

demais agências. A disputa por recursos em um campo povoado por agências e estruturas

de poder provoca o surgimento de cisões e grupos concorrenciais que numa situação social

indígena, marcada pela presença de políticas tutelares, assumem formas prc~priasde

clivagens e faccionalismos que mobilizam noções de grupo, território, identidade e cultura

discrepantes. Merecem destaque neste ponto as disputas de sentido em torno da idéia de

mistura.

A "mistura" é uma categoria classificatória e acusatória utilizadá eim varios

contexfos de interação étnica indígena no Brasil, notadamente no Nordeste, pelos vários

atores sociais envolvidos nestas relações: agentes do Estado, posseiros e índios (<:f Arruti,

2001). As disposiçõcs classiíicaií~i-ias


siio rcsultado dc lutas pelo podcr dc nomcar e dccidir

a posição social de grupos dentro de uma estrutura de poder e dominação (l3ourdieu,

1989). Os rótulos étnicos são, então, produtos dessas lutas, ainda mais em formações

sociais que resultaram de estados coloniais como o Brasil.

É justamente pela imposição colonial que penetram as retóricas da mistura

enquanto uma categoria acusatória oriunda da administração indigenista que dividia os

seus tutelados em i~tdtos,desce~~dertfes


(mcsliços) e yarticrrlare.~,como; podemos ver em
estatísticas do Posto Indígena da Raia da l'raição citados por Amorim (1 970, p. 12-16). A

mistura, enquanto um dos elementos do campo semântico da etnicidade (Valle, 1993,

2004), c utilizada coiiio acusação dc iiiaiitcnticidadc c ncgadora dc dir-citospor parte tarito

dos interessados nas terras indígenas como pelas facções da mesma etnia em confronto

pelos recursos das políticas públicas destinadas aos índios. Cada grupo aciisa o outro de ser

constituído por indivíduos misturados, ou em última instância, não-índios se: fazendo

passar por índios, ou de acolher em seu seio indivíduos assim identificados.

Antes de ser uma concepção nativa exclusivamente indígena, como Vieiira (2001)

coloca, a mistura é um conceito operacionalizado por todos os atores do campo, inclusive,

e principalmente, o órgão indigenista e seus agentes que atribuíram a esta categarização o

papel de diferenciador no acesso aos recursos produzidos pela ação tutelar. Tentamos aqui

seguir as ponderações de Oliveira (2004, p. 19) de que a afirmação dos rótulos da mistura

sobre as populações indígenas deve receber mais atenção, ' i o i s permite exp/icita,r*i~alores,

Provavelmente, antes da presença do SPTEUNAI a mistura resultante dos

intercasamentos não provocava maiores questões entre os moradores, já que os fatores

determinantes das relações sociais eram o parentesco e a participação nos rituais em

homenagem aos santos padroeiros e não a diferenciação produzida pela ação do Estado no

controle de recursos e assistência. Mas, com a instalação de um campo de ação indigenista

a fronteira étnica ganha novos contornos e a distinção entre os que são alvo da proteção

oficial e os que dela são excluídos deve tomar-se clara. Desse modo, constituiu-se um
espaço propício para o desenvolvimento de retóricas da mistura, levadas adiante tanto por

índios como por não índios.

Se a interpretação oficial sobre as populações indígenas do Nordeste já vinha, desde

o século XIX, utilizando-se da expressão "índios misturados" para legitimar as pretensões

de extinção dos aldeamentos e ocupação destes por senhores de terras e câmaras

municipais, impondo agenciamentos sobre populações (Artuti, 2001, p. 218) ela irá se

repoduzir ao longo do século XX para evitar que se reconstituam os territórios nativos por

meio da ação do órgão indigenista. Nesse sentido, os posseiros do rio Camaratuba enviam

um telegrama a presidência da república em 1955, solicitando que tomem-se

'j)lwvidZtlcia.s er~&r~ica.sjirt~/o
ao Scrvi~ode I'roic~ão
aos jtldio.s set~ticl'o.fazer sustar i~~cursõesit~di~lid,ros
qlre se
dizem caboclos sz~borditiados I'ôsto It7dige)ia Haia da
Tiaição 0.7 qlrais invadem nossas propriedades c..) 13.s.re.s
itidii~id11o.rque se dizem ítidio.~o11 caboclos são ,Ia maiona
poriadores de /itlrlo de eleitor conierciat~iesalmocreves e
an~hula~lies /)revalecetido-se falsa idetliidade caboc!u para
abi~~rn~-eni ia1 prerrogatii~asómoite itr/trito de etieflciar-se
/)~'od~~io.s/)ropriedades alheias ..j o I'osto I~ídigetiaesiá
itld!feretlie as nossas cotaiaiiie,~reclamações." (cit. em
Arnorim, 1970, p.3 1).

Um outro exemplo de utilização dessa mesma retórica pode ser obsenlado no

Capitulo 3, referente as disputas entre as usinas e os índios Potiguara de Monte-Mór. por

outro lado, a população mais pobre da região, compelida pela falta de terras, vem

buscando, historicamente, ser incorporada as redes de relações sociais indigenas e ocupar

pequenos pedaços de terras nas circunscrições da área indígena, seja através de

casamentos, compadrio ou participação ritual, como já tivemos a oportunidade de

demonstrar.
E essa tentativa de incorporação de não-índios ao ciclo de distribuição de recursos

promovido pela indianidade tutelar que causa as mais freque2tes acusações faccionais

entre os Potiguara. Não há aldeia que não conte com a presença de regionais. Mesmo São

Francisco, tida como a que guarda a população Potiguara mais pura e tradicional - a aldeia

mfie, como os indios costumam dizer - apresenta não-índios convivendo lá desde longa

data. As alianças estabclccidas critrc os p~rficrrlnre.~


c os índios nos mais diversos níveis dc

interação social colocam os alinhamentos politicos em constante tensão com as retóricas da

mistura e a desqualificação que esta traz.

São Francisco não é só tida como a mais tradicional das aldeias, mas como a

origem de muitas famílias que fundaram outras aldeias (cf Vieira, 2001) abrindo roçados e

como aquela que resistiu durante mais tempo as imposições do órgão tutor. Vários autores

(Azevedo, 1986; Moonen e Maia, 1992 e Vieira, 2001) apontaram a rivalidade existente

entre as aldeias de São Francisco e Galego, por exemplo, onde os habitantes da primeira

acusam os da segunda, e de todas as outras aldeias por extensão, de que não querem
,'
mais

ser indios, ou de só o ser para adquirir os beneficios oriundos da assistência oficial. Por seu

turno os habitantes das outras aldeias alegam que os índios de São Francisco, os C~ahoco.~

do SIlio, são mais atrasados e agressivos e que só querem os recursos para si,

considerando-se mais índios que os outros.

Tais acusações são compreensíveis, portanto, dentro de um campo político onde a

diferenciação étnica e o agenciamento de classificações populacionais por paite dos órgãos

de Estado sempre atuaram no sentido de restringir os grupos, administrando a sua

incorporação no avanço das frentes de expansão econômica. Quando, agências de contato

como as missões ou o SPVFUNAI atuam no sentidc de criar espaços de redução da marcha


assimilacionista ou os próprios grupos subordinadcs a essas políticas encetam movimentos

contra-hegemônicos as disputas em torno do poder de classificar e dividir, de decidir quem

recebe e quem perde tomam-se mais árduas e atingem o nível de verdadeiros dramas

sociais, como podc scr pcrccbido, por cxcmplo, no caso da luta dos índios de Monte-Mór

para serem reconhecidos enquanto tais e pela demarcação de suas terras.

No capítulo seguinte iremos perceber como, na situação histórica vivida pelos

Potiguara de Monte-Mór, o "gr~ipoéltlico reljensa a misllrra e Ifjjrt?la-.se cotno rrma

coletividade precisamet~te qlrartdo dela se apropria segundo os it~teressese crenças

l.'riorizados'' (Oliveira, 2004, p.28), enfrentando para isso, a força dos iatifundiários, o

descrédito os órgão indigenista e as acusações de parte dos índios da Baía da Traição de

que são "sem-terra disfarçados de índio".


2.7. ICONOGRAFIA

Várzea do rio Sinimbu, visto da ponte da Caieira. O coqueiral no fundo, a


direita é a cidade da Baía da Traição. Foto: Lusival Barcelos.

Aldeia do Forte, vista de cima da ladeira, nas proximidades do posto


indígenas, ao fundo a Baía da Traição e a Vila São Miguel (a direita), na
falésia que se eleva depois da várzea do rio Sinimbu. Foto: Lusival Barcelos.
Posto Indígena Potiguara, construído em 1942. Aldeia do Forte.
Setembro de 2001, foto: Estêvão Palitot.

Ritual de posse e batismo de caboquinho como cacique-geral. Aldeia


do Forte, ao fundo vê-se o Posto Indígena. 15 de'-marçode 2002. foto:
Fernando Barbosa.
Antônio Pessoa Gomes (Caboquinho).
Cacique-Geral dos Potiguara pela linha
de sucessiío estabelecida na aldeia do
Forte. 15 de março de 2002. Foto:
Fernando Barbosa.

Josd Ciríaco Sobrinho (Capitão).


Neto de Pedro Ciríaco, funcionário da
UFPB, ex-vereador pelo PT na Baía da
Traiçiío e liderança indígena. CTFPB,
Joiío Pessoa. Maio de 2004. Foto:
Estêviío Palitot.
Mapa da FLINAI, de 1982, mostrando uma das propostas mais abrangentes para
demarcação das terras Potiguara. Fonte: Azevedo, 1986 p. 190.
-:..,o. '.

31NA)S CONVENCIONAI~

-
'C---- . iooorir 04 a c v r i r ~ u r ~ r6rioo
- .ooori.or
ro
m4rr,liir#ro,oLro
O NACIONAL D O ~NDIO

.- . .. .
orrtririclo
- FUMt
- -.e.

O -.o"~O...I.ID..D~,1.,,'
<+- - ~ c e a . .ariemoio. .rrosimc~oa.is ,*o,.

Mapa da FUNAI, de 1984, mostrando a proposta de demarcação definida pelo


Grupo de Trabalho Interministerial, com a menor extensão para as terras
indígenas. Fonte: Azevedo, 1986, p. 209.
U I I S I C ; ~ 0 0~
~ ~i u r c r t o m

f u w o r ~ h oN A C I O N ~ L0 0 -
INDIOF U R A #
w, W P S ~ I ~ ~ V I U D ~ U C I Anr ASVUNTOS - SUA'
*ueo~íntos

.o.i.CU

;R ta I I I D ~ ~ C H A POTJVUARI a c u r m ~ ~ ~ f o
i"*W.

Mapa da FUNAI, de 1991, mostrando a Terra Indígena Potiguara em sua


configuração definitiva, quando da homologação. Fonte: FUNAI, 1991, p. 54.
Ruínas da fábrica de tecidos dos Lundgren na Vila Monte-Mór. 19 de junho de

2004. Foto: Estêvão Palitot.


MONTE-MOR: O S POTIGUARA E A COMPANHIA

DE TECIDOS RIO TINTO

"MONTEMOR TEM SCIA HS7:


('OM A CHFXAlIA />OA~,/<MÃO
/>/iIXAN/JO MIJLHJ:'/(SLM A4A/(/DO
E 171LH0S SEM IEl<O 13Ã0
O JEITO I;OI MUI7 OS FUG//<
N ( ~ SNÃO TEMOS PRA ONIJE /I<
N I " EU NEM MEU IKMÃO. "
(Poesia do índio Marinésio Cardoso, 2000)'

Moroso e cheio de curvas, o rio Mamanguape desce dos contrafortes orientais da

serra da Borborema, recebendo as águas de riachos quase secos pela ausência de chuvas e

atravessando uma das zonas de colonização mais antigas da Paraíba. Terras d6 engenhos e

currais de gado, de matas outrora imponentes e de pequenas lavouras de m;indioca e

macaxeira. Próximo a sua foz, o rio banha a cidade homônima. Mamanguape, velha cidade

do açúcar na Paraiba, como Santa Rita, Pilar e Areia. Suas igrejas centenárias testemunham

o tempo do poder dos senhores de engenho e da escravidão, assim como a sua matriz de

São Pedro e São Paulo lembra o primeiro aldeamento missionário de íiidios na região,

ainda.no século XVII. Um aldeamento cujos catecumenos foram obrigados a deslocar-se

para os altos do rio da Preguiça em virtude dos conflitos com os senhores de engenho que :

aí se estabeleciam no correr do seiscentos.

' Algumas epígrafes serão grafadas em caixa alra. pois é assiin que aprecem em uma canillia elalmrada pelos
índios de Monte-Mór e que conta a "sua liistória".

96
Este era um ponto estratégico para um aldeamento missionário, localizava-se numa

das principais zonas de produção açiicai.cir-s da capitania: o Vale do Mamanguape, com

solo de massapê, água em abundância e bons portos naturais. A fixação dos índios nesta

r-cgião obedccia a lógica dc garaiilir a rcurii5o da mão-dc-obra ncccssária ii lavoura da cana,

alem de proteger uni dos pontos mais vulneráveis da costa entre a Paraíba e o Rio Grande

contra invasões de outras polências colotiiais. Ao longo dos séculos XVII, XVIII c XIX a

aldeia da ~r&uiça, posteriormente Vila de Nossa Senhora dos Prazeres de Monte-Mór,

cumpriu o papel de controlar e fornecer mão-de-obra indígena para os senhores de engenho

da região.

Na aldeia processou-se a conversão dos índios ao catolicismo e o estabelecimento

de uma relação especial entre a santa padroeira, Nossa Senhora dos Prazeres, e os

aldeados, que a tinham como milagrosa, pois foi achada nas matas pelos indios.

"Qrrem descobriu a santa foi os caboco caçartdo )ta


mata, ai deram ela num pé de jtrrema, o tronco d.jicrerna.A i
ela.ficotr, agasaiotr-se ali em cima. Ai ela ficoir. A padroeira
do Irrgar. k Nossa Serthora dos I'razeres. Ai as cahoca
descohriro qtre a terra era dela.(...)A lerra era dela, já qrre
ela fava )to pk dajtrrema, ertfão a ferra perfertcia (7 ela. Ai
fico11 a ferra de Nossa Senhora dos I'razeres. ( D . Petronilia
"

Cordeiro, Vila Regina, agosto de 2004. Acervo do GT


Indígena).

Além disso, a santa não se adaptava em nenhum outro lugar. Contam que certa vez

ela foi levada para a igreja de São Pedro e São Paulo em Mamanguape pelo Padre João e.

quando ele fechou a igreja, ela voltou para a capela da Vila se recusando a sair de lá. Então

ela foi levada para Roma para que fosse estudada sendo eliviada uma réplica para. ficar em

seu lugar. A Vila Monte-Mór seguiu habitada pelos indígenas, fulcro de sua identidade

étnica, até a primeira metade do século X X quando estes se viram forçados a abandonar o
local com a chegada dos irmãos Frederico e Arthur Lundgren. Estes dois eram

proprietários da Companhia de Tecidos Paulista, em Pernambuco e buscavam expandir

seus investimentos industriais com a construção de uma segunda fábrica na Paraíba. A

iiistalaçiío da Fábrica de 'Tecidos Rio 'I'itito deu inicio ao regime .de terror, esbulho e

nesaqão da identidade indígena que ficou conhecido como o iem/)oda Amorosa.

3.1. " O TEMPO DA AMOIIOSA" : O REGIME DE TERROR 1)A COMPANI-IIA

"E quem tava doido de dizer aqlri que era


índio! Se dissesse morria".( D . Antônia
Conceição de Oliveira, Vila Monte-Mór,
agosto de 2003).

A primeira vez em que estive na área indígena, foi durante a I Assembléia do Povo

Indígena Potiguara, realizada na aldeia Estiva Velha nos dias 10 e 1 1 de abril de Y 999. Lá,

vi um senhor de idade - de pele beni escura, chapéu na cabeça e capanga de coHro embaixo

do braço - pedir licença a mesa que conduzia os trabalhos e relatar, numa voz.,pausada e

firme - com um carregado sotaque da região - a história da usurpação das terras dos índi~s

de Monte-Mór. Era Seu Domingos, cacique da aldeia Jacaré de São Domingos, que nos

últimos quinze anos havia lutado arduamente pela demarcação das terras de sua aldeia

enfrentando todo o aparato repressor da Usina Miriri, formado por pistoleiros, policiais e o

próprio sistema judiciário. Por ordem da juíza da comarca, Seu Domingos chegou a ser

preso por 48 horas na. cadeia de Rio Tinto por liderar a oposição dos índios contra os

desmatamentos e plantios de cana que a usina fazia nas terras da aldeia.


De um modo muito característico e com olhar resoluto Seu Domingos iniciou seu

fortc rclaio, contando corno o í'oro~tclFicdcr-ico Lundgren fazia para expulsar os índios de

scus lotes de terra:

"Boa /arde a /o&s da mitrha comrrtridade. Roa iatede a


iodo o ~iicri/)o\lo ~irie(inaudível).
litr/otrce, eli \lori .falar aqui a \~ocês,(inaudível) que eu
trão .sei .falar. Mas qqliero que escrile, pra orivir a verdade.
1)etr.sgosfn da verdade! A mettiira />ar/edo rettro de Sa/atr.v!
M[I.Se11go.s/oda ver&.
Oi, aqui os ít ldio vivia ludo... quie/o t1o.s .seri.s catl /o,
trabalhatrdo, i'lido dereilo. Mas em 17, chegoli pracrilá rim
Honietii. A li.. . dizem que com/)rori ikês l<ios.Aí, de i i-& /(io.s
/)assoli p1.a lá, pra otlde hqje ottde é a .fábrica. Lá, tiioraila
7rm Cahôco Véio, sozittho! Em 16. Jáfoi em 17, láfoi em 16.
O! Aqtii foi em Ib, lá.foi em I 7. A í o que foi que aconlece~i...
Ele ltifoti, l~ifoii,11~loii.O Cahoco (inaudível) gire dizia
(inaudível). O Véio tlão era dotlo da lerra. A /erra titrha sido
dtim Cabôco. Mas o Cabôco morreu e ele disse: - Cumpade,
essa terra .fica pro setthor. Pro senhor sohreviiler dela, mas
trão -ma iletider! Aí Ele lriiou, 1uio1i e comprou. Aí, dertia
desse ienipo chegou a rriittdade. Acaharo de chegar a
rliitidade pros ittdio.
O q~ie~foi que Ele fez? Arr~imoulá em baixo 12 vigia,
\leio cá, /Ira Vila de Matíle-Mbr, tião etlcotllrozi 12 vrgra, 12
cabôco, arr~inio~i I I.
Et ifonce, linha Iim Cah6co ttuma casa de. .farit lha,
fazetido .faritiha, ele e o pessoal dele. A i Ele di.r.se: - Vd
,

chamar aqriele Cahdco pra (inaudível), pra vir- aqrri /Ira


reiiriião!(...).
Aí, qiiatrdo o Cabôco .foi chegatido, Ele .foi logo
dizendo a.ssim: - Cabõco, você sabe me dizer de quem é essa
ferra.?
O Cahôco di.s.se: - Sei.
- De qtieni é?
Ele dixe: - do cabôco.
Aí .se \liror pro o~ifro Cahdco e di.sse: - Cahdco, r)oc2
.sabe nte drzer de qtiem é essa /erra.?
Disse: - Seio.
- / I de quem é?
- 12 de Nossa Setlhora dos 13razeres.
Ai, H e se viroli-se pro oulrò Cabôco e disse: -
Cabôco da cara de sapo! Saia da minha frenle senão eu dou
lima carga desse revólver todinho na sua cara!
Aí, o Cabôco saiti, foi lá pra Jarapá, pegoli limas
hesieriliha que ele linha e tirori p,-a fiamataia. Pas.so1i 13
dias erii 'ti.nntn/~ra. De 7)-artiuftrin,
i:;)//ori.de rtoife!j'egotr o.s
nitjudrrrko &/c. (c.c)ni /ice~tquda /)a/ai~rn c/ire etr .jCi diji.\:sc..)
L'
firotr pro ]<;o(;r-ande.Se ~iirmmorreir air~da/a pr-a /i!iO
r)errdocrrmtr G cr hi,s/tir.icr?
I:' fi)i amagoartdo os cahóco, foi amapoar7do os
cnhtico,..fi)i htrínrtdo rto cor/e de /e!ihn, niort/artdo nyjg/ll
.fiibricu trctriti. anturtsurtd)os cuhõco. Hoje e171dkr rrr1171
lem irni cabôco que possa viver sossegado 170 cart/irtho dele.
Pru quê? Os hrarico. Não é lodo branco qtre .faz isso /tão.
7en1 nir~i/o,rhrartco qtre *jtrda a genle (inaudível).'" (Seu
Domingos, abril de 1999, grifos meus)

Esta narrativa retrata a violência e o terror que se instalaram nas terras da Sesmaria

de Monte-Mór quando os irmãos Lundgren chegaram na década de 1920 para construir o

complexo fabril de Rio Tinto.

O primeiro ponto que merece destaque no relato é sobre a forma de apropriação da

terra pelos cabocos, ressaltando a doação feita entre compadres do direito de uso de uma

posse, destacando-se a interdição em comercia-Ia. O que nos leva a supor que, mesino com

a,divisão promovida na década de 1860, os índios continuavam ocupando o território da

sesmaria de acordo com padrões coletivos de transferência da terra, assé8uraiido a

continuidade das relações entre os membros do grupo e o espaço. Significativo disso são as

afirmativas perante o Corortel de que as terras pertenciam aos cabocos e a Nossa Senhora

dos Prazeres.

Pcço desculpas ao leitor pela transcrição iiiuito extensa. periiiiti-inc coloci-Ia ciii Iioiiienagciii a Scii
Do~iiingos,falccido ein íevcrciro dc 2003, e porquc este relato sintetiza muitas das experiências sociais dos
Potiguara com relação a sua noção de temtório, as categorias étnicas operacionais e a violência a que forain
submetidos pela Coinpanhia Rio Tinto. Por outro lado, a narrativa não 15autoexplicativa. Ela foi transcrita do
registro ein SuperVHS da Asseinbldia supracitada e alguns trcxlios estão inaudíveis. Em nenliuin inoiiiento
Seu Domingos se refere noininalmente ao Coronel Frederico Lundgren, embora fique claro que é dcle que
está falando, daí optei por marcar com uma inicial maiuscula as palavras que substituein o nome do Coronel
("Homem" e "Ele"). Da mcsma fonna, optci por marcar com inicial maiúscula todas as vezes eiii que Seu
Domingos se refcria ao "Cabôco" como uin pcrsonagcin individuali7r;ido. apesar da nariativa rcssaltar uina
violSncia histórica coletivamente vivida.
Seguindo a narrativa, podemos perceber que a ocupação das terras indígenas pelos

Lundgren deu-se de forma gradual, mas rápida. Pois, inicialmente adquiriram através de

compra, uma propriedade em Três Rios, talvez o engenho mencionado nos relatórios do _ _
S .

.-
..-:
engenheiro Justa Araújo. Outros índios, como Seu Vicente Espindola que mora na Vila

Regina em Rio Tinto, relatam que primeiro G Coronel cornprou o engenho da Presuiça e as

terras que iam até Maria Pitanga, limitando-se com os índios ao longo do rio Vermelho. De

acordo com seu Vicente, a Fábrica de Tecidos começou a ser construída 1918.

Outras fontes (Amorim, 1970; Baumann, :981) informam que antes mesnno dos

primeiros intermediários da Compaiihia chegarem a região, uin Iiomem corihecido como

Comendador Campelo, de grande prestigio e residente em Mamanguape, apossou-se a

força de cerca de 30 títulos de terras dos índios. Vendendo-os depois para os .Lutidgren.

Por volta de 1917, Artur Góes e Ornilo Costa, intermediários da CTRT são enviados a

região para comprar terras e preparar a instalação da fábrica. O senhor Alberto César, que

segundo a memória dos índios recebeu o Engenho da Preguiça de D. Pedro


,
'
11, em

recompensa por ter lutado na Guerra do Parabwai, vendeu este terreno para os .Luiidgren.

Estes em 1918 nomearam Apolônio Gomes de Amda para o cargo de administrador do

engenho, dando início ao processo de drenagem das águas, abertura de caminhos e

aplainamento do terreno para a construção da fábrica. Em 1924, a Companhia de Tecidos

Rio Tinto iniciou suas atividades fabris.


Trecho da cartilha organizada pelo índio Marinézio Cardoso (Neguinho) sobre
a história dos índios de Monte-Mór.
1 02
Apenas alguns anos depois é que o í81.onel Frederico teria atravessado o rio e usurpado as

posses dos índios na Vila Monte-Mór. Documentos do Serviço de Proteção aos índios dão

a entender que em 1939 teria sc dado o cotiflito envolvendo os iridios da Vila contra a Cia

Rio Tinto.

"0.7 tr~dio.~ da Vila de Mor~te-Mcjr.firam este ato


exl~trl.vo.sde setis lo1c.s de ierra pela (,'om/)arthia I+ühriccrde
i'ecidos de I<io iYr~io.
Um de seus proprieiários, o Sr. Frederico Lliridgren,
.for, enr pesscia, quem conteteti esse rt~c~iialr~cá~~el ahti.so
coriir-a a seguraliça e /~rcy~riedaJe dos mesmos, Jeixatrh
desubi-igadasnttli/as.familiasi~~dígenas.
O rridro I'edro J..orrreilço .foi i)iiimado a comparecer
em Rio iinto onde ,foi defido e obrigado, com a pres6r i u d~r
policia e do advogado daqírela enprêsa, a assinar. tini
docrirne)iio, para entregar o seu loie de ierra nirm prazo
n~Ír?iríio
de 30 dras.
Des.se.s.fatos, como me compele, dei co~ihecimenloa
I~i.yetor-ia I<egronnldo Ministirio do 7i.abalho.
Exj>ulsos os ú~drosdos seus loies, sob ameaças e com
o auxílro da policia, que iem sido um marieq~iim,ias mãos da
pode1.o.s~em/)rêsa, esta se ayroyria dos referidos lofes!"
(Vicente Vianna. Relatório encaminhado a 7 " Delegacia . .. .
Regional pelo Sr. Feitor do Posto Indígena "São Francisco" -
na Baía da Traição, deste Estado - Paraíba - referente ao ano , .-
de 1939 SEDOCIMuseu do índio. Microfiltne 180: - . .
Fotograma 175)

Pedro Lourenço, ou Pedro Belmiro, como é mais conhecido na memória dos índios

da Vila Monte-Mór, teria liderado a resistência a expulsão pela Companhia de Tecidos Rio

Tinto, procurando o encarregado do Posto Indígena Potibwara na Baía da Traição, Vicente

Ferreira Viana. Mas nem mesmo o Serviço de Proteção aos Índios pode fazer frente a

violência dos Lundgren.

"I.s.~oaqui era irm maiador de cahoco, dizia que a


Conipaiihia /i~ihazim biiraco só pra botar os cahoco \@i,
ma/a\)a e bo/a\la Ia. Se tinha tima carreiririha de casa, eles ia
lá e toca\?a fogo. Antes a Comparihia .fazia assim. IZla
ntandava chamar e num \~oliava.Tinha um monte de vigia e
Aff-0 R w 8 W H 7GRRA 6 QWJ '~ U W1--
W M~
vN p
FIIG W W N ~ L /MC)N&A N ~ J URW;& 63U5 ff
GWTiF N% 56;~ C ~ ~ V C
O ) ~ 6 & (/Fe
Nno
.-
sai m a l m.ec? i NOJTC~,OOCUJWNQ ehri;
a&,

Trecho da cartilha organizada pelo índiü Marinézio Cardoso (Neguinho) sobre


a história dos índios de Monte-Mór.
1 o5
dois n?a/adorde irtdiomqireera Piaba e Zé Perrtamhirco. For-o
eles qtre birlaro ftrdo abaixo, ex/)irl.saro lodo mintdo. (D. "

Allt6fli~COIICC~ÇBO dc Oliveira, Vila Moritc-MOr, agosto dc


2003).

"M~ri/o.s
irtdio,~morreram e .ficoir bem poirco. 0 s clrre
.ficotr se chegaran? S í,í,nil)arihia. NZío f i ~ ~ com
h a c/ire brigar.. * ,
A Curiil~arthiaconi 200 huniem arniado de cipó-pair e rifle.
Nessa época ttão exisfia policia, ttão. Qire a /)olícia s(j erlr
eles mesmo, os ipigia, e f t ~ d omal. O qire eles chaniava esa a
Amorosa, rtesse femjjo. " (Seu Vicente José da Silva, Jaraguá,
agosto de 2004. acervo do GT Indígena)

Pedro Lourenço conseguiu escapar da perseguição da companliia porque um dos

vigias era seu amigo e lhe avisou para que fosse embora antes que viessem matá-lo em sua

casa. Segundo Seu Antônio Cândido, natural de Jacaré de São Domingos e morador na

Vila Monte-Mór a muitos anos, Pedro Lourenço fugiu de noite para Gmpiúna, onde ficou

vivendo uns tempos num casebre de palha na beira do rio, trabalhando escondido no seu

roçado de macaxeira dentro de uma grota. Enquanto isso, os vigiaar da Companl~iao

procuravam, até que descobriram seu paradeiro e ele foi obrigado a fugir novamente,
/
abandonando tudo.

Esse é o 7 e n i p d a Amor.o.sa ou O Qirehra, época .de um regime de força e terror

sobre as terras de Monte-Mór. A Companhia possuía um corpo de 12 vigias. Talvez fossem

mais, mas esse número é o que ficou marcado na memória das pessoas. As torturas e

mortes eram realizadas nas instalações da fábrica ou no meio do mato, em lugares ermos.

Na fábrica, falam que os índios eram atirados dentro de uma das caldeiras. Havia um lugar

na Mata do Burro D'água onde dentro de um buraco tinha umas agarras de ferro, onde os

cahocos eram atirados. Aqueles que ficaram negavam ou não eipunham a identidade

étnica, como uma forma de viver sob o jugo da Companhia


1'- .
l ililia yire dizer ytre litrm era. 0 , s ytre /raha//iorrdizia
ytre titrm era tiada. I'orque disser ytre era itidio niorria. 72
dizettdo, eru mesmo! Olha, acltri, no ikml~ode Amorosc~,0 , s
veio, os itidio veio corria. Saia escottdido, cont os .filhinho
pra titlm morrer. .Jtrtt/o com o.s.fio. Ade1)oi.s. vittha ~)or/attcjo
de~)agarittho dizettdo qtre tttlni era itidio, qr~elnrm era itldio.
/n/&qlre /odo nrrntdo vol/otl e /rahaliic~~.. ..) 7j~~1I1~1lltí1
IJCI I ICI

(,'onilxuihia pra dar de comer aos filho." (D. Antôiiia


Conceição de Oliveira, Vila Monte-Mór, agosto de 2003)

No lugar das casas de palha dos índios a Companhia construiu uma segunda fábrica

e uma vila operária onde muitas famílias indígenas foram reassentadas, a Vila Regina.

Nestas casas, as condições de vida eram precárias, sendo que dependendo do número de

quartos de cada residência, se dois, três ou quatro, igual número de famílias era obrigada a

aí conviver. Em cada rua, vigias ficavam de prontidão circulando para coibir qualquer

distúrbio ocasionado pela concentração de pessoas, as vezes desconhecidas, num1 mesmo

domicílio

A instalação da CTRT nas terras indígenas, a construção da fábrica e da cidade

criaram uma estrutura de poder que enfeixou todos os aspectos da vida social nesta região

durante mais de cinco décadas. A cidade de Rio Tinto é produto da fábrica, que com sua

crescente demanda por terras, madeira e mão-de-obra transformou completaniente o

cenário da antiga sesmaria dos índios de Monte-Mór a partir da década de 1920.

A Companhia exercia o controle dos recursos fundiarios, das oportunidades

econômicas, do mandato político e do aparelho repressor, assim. como da habitação, da

vida religiosa e do lazer (cf. Panet et Alli., 2002). A expropriação violenta das terras

indígenas impediu que a identidade étnica continuasse operando como uma forma de
organização social explícita, sendo banida para os subterrâneos dzs memórias familiares,

sussurrada as escondidas, com medo dos vigias.

Estc c uin outro poiito a scr dcslacado, a rorinac;ão do corpo de agentes repressores.

eram não só o aparato de coação da CTRT, mas as figuras que mediavam o


Os i)igia..~'

exercício da sua dominação sobrc uma população, cada vez mais heterogênea, atraída pela

oferta de trabalho que a fábrica representava. Aos vigias era dispensada a incumbência de

manter a ordem entre os milhares de trabalhadores que chegavam de diversas regiões do ,

.- . -
estado arregimentados por funcionários da Companhia, principalmente nas cidades que , .-

recebiam grande afluxo de retirantes das secas.

Esta origem de muitos trabalhadores terminou transformando o termo ,ser./arlejo

numa categoria étnica, que qualificava todos os chegados de fora, em oposição a categoria

de caboco que era resguardada aos antigos moradores do lugar, aos da Baía da Traição e de

Vila Flor (RN) reconhecidos como "lugares de índios".

Os temidos \)igia.seram recrutados tanto entre os .se~*~ar~cjo,s


como entre os cnhoco,s

dando-se preferência aqueles que já haviam servido nas forças policiais. O Sargento

Barreto, morador de Marcação, é o paradigma desses sujeitos sociais que transitavam entre

várias instâncias de poder exercendo sempre um papel coercitivo. A exemplo do próprio

Sargento Barreto, que casou-se com a índia Emilia Gomes de Brejinho, geralmente, os

vigias sertanejos uniam-se com as cabocas, criando relações de parentesco e compadrio

com a população que deviam coagir. Este tipo de aliança também era procurado não só

pelos cabocos como pelos outros trabalhadores de modo a conseguirem alguma margem de

negociação com as determinações da Companhia.


Não nos detemos crn detalhes na análise do controle que a CTRT exercia na vida i

social de Rio Tinto - até porque isto já foi tratado por outros autores numa perspectiva que

destacava os aspectos ui-banos c iridustriais (Panet et all, 2002) - mas sim na análise da

estrutura de poder que possibilitou a dominação da Companhia sobre a população

indígena. Certos eventos marcam a memória dos índios a respeito de suas relações com a

Companhia, como a repressão, as fugas e a negação da identidade étnica

Os índios que ficaram vivendo sob o domínio dos Lundgren relatam a época de

intenso trabalho na fabrica, nas lavouras e no corte de madeira. As zonas agricolas e

madeireiras ao redor da cidade eram o espaço onde a CTRT impunha um regime de

dominação patronal. Sob esse regime viviam muitas famílias de caboclos misturadas aos

sertanejos que eram trazidos para trabalhar. As memórias relatam também uma vida

agitada na cidade, com feira movimentada, festas e cinema. Quem vivia da agricultura

produzia quase que exclusivamente para abastecer a cidade e pagava renda3 e diárias a

Companhia. . .

Durante todo esse tempo criou-se também um folclore em torno de Rio Tinto e da '

origem alemã dos seus proprietários, na verdade sJecos, mas ao que parece simpatizantes

dos regimes totalitários das décadas de 1930 e 1940. De modo que muitas histórias'sobre o

campo de pouso e o casarão afirmam que estes eram destinados ao acolhimerito de Hitler,

no final da Guerra. Com a vitória dos aliados, em 1945, uma multidão depredou o casarão

dos Lundgren, na Vila Regina.


No campo político, os Lundgren eram inimigos dos Fernandes de Lima, tradicional

oligarquia do município de Mamanguape Também se colocavam em várias situações

contrários ao Posto do SPl, ocupando terras na sesmaria de São Miguel e realizando

contratos de arrendametito e corte de iriadeira com os indios, estirriulando-os ao

enfientamento com o posto'.

Rio Tinto tornou-se uma poderosa cidade industrial com agitada vida urbana e

papel proeminente na política do Estado. Era conhecida como a Manchesler I'araihnna De

um mero engenho no município de Mamanguape, até a sua emancipação miinicipal

passaram menos de três décadas. Contudo, ao longo das décadas de 1960 e 1970 o modelo

econômico da fábrica foi perdendo competitividade e esta foi paulatinamente fechando

suas portas. Até que nos anos 1980 vendeu grande parte das terras que possiía para. Usinas

de Álcool e encerrou de vez as atividades industriais.

- -

Conforme já foi apontado no capítulo 2.


13.2. MUDANÇAS NO CAMPO: SAI A COMPANI-IIA, EN'I'RAM A S USINAS

"Eti olho /Ira Morrle-Múr,


L ~ l ã ovejo szia beleza.
&de tinha uma riqueza,
Que encarltava mui/n gente,
Veio um />ovo d!feretrte,
/'tot. d o ytie ~irna.fera,
Trotixeram clima de guerra.
Assim diziam meus avos:
7iij16,o que será de rrcís?
Mas, Mot~te-Mbré tio.sscr lerra. '"
(Marinésio Cardoso, índio Pot iguara)

No fim da década de 1970, o Governo Federal lançou o PROALCOOL - Programa

Nacional do Álcool, que visava estimular o setor canavieiro do país através de incentivos

oficiais para a produção de álcool em substituição a gasolina no abastecimento da fiota

nácional de veículos, em virtude da crise mundial do petróleo de anos antes. É esse projeto
,
'

que impulsiona as usinas de cana dos estados da Paraíba e Pemambuco a avançare. sobre

novas áreas antes exploradas apenas pela agricultura de subsistência, seja com a compra e

o arrendamento de terras diretamente para a plantação, seja estimulando proprietários

rurais a produzirem para essas empresas.

Nesse período, a Cia Rio Tinto começa a negociar com as usinas as terras que

possuía na Paraíba como forma de recuperar-se economicamente. Grupos como

Agorpoastoril Rio Vermelho SIA, Destilaria Miriri e Usina Japungu, de difícil

identificação quanto aos proprietários e se compõem ou não ramos de uma mesma

corporação passam a exercer o controle sobre vastas áreas antes de posse da CTRT. Os
desmatamentos para o plantio de cana e a expulsão de pequenos agricultores, foreiros e

arrendatários transformam rapidamente o cenário das relações sociais na região levando

estes grupos subalternos a se organizarem na defesa dos seus direitos de acesso a terra e de

áreas de uso comum.

Tal processo nos Icva diiciatiicriic ao contcxlo no qual os índios passatil a sc

mobilizar demarcação das terras indígenas e no que isso significa para a reformulação

de suas formas de organização política e para a expansão do reconhecimento dos direitos

indígenas sobre grupos até então negados enquanto tais.

O processo de regularização fundiária da Terra Indígena Potiguara de Monte-Mór é

produto destas novas situações políticas e econômicas na região. Nossa narrativa a respeito

dessas mobilizações seguirá mais ou menos a seqüência de eventos que levam a 111fnpelas

terras de Monte-Mór de um grupo de lideranças a outro, envolvendo progressivamente as

aldeias de Jaraguá, Vila Monte-Mór e MarcaçãoITrês Rics. A terra indigena yotisuara de

Monte-Mór é composta pelas seguintes aldeias: Lagoa Grande, Nova Brasília (lbiquara) e

MarcaçãoITrês Rios, no município de Marcação e Jaraguá e Vila Monte-Mór, em Rio

Tinto.

Antes que possamos falar naturalmente em "aldeias" e "terra indígena", devemos

dizer que uma parte da população destes povoados passou a reivindicar o seu .

reconhecimento étnico e territorial e neste processo constituíram-se a si e as localidades em

que moram como í~ldiose aldeias. A narrativa desta luta é a de uma.en~ergêrtciaéfilica que

envolve diretamente o processo de territorialização do grupo, criando, em estreita relação


com este, um conjunto de rituais, sinais diacríticos e uma forma nova de organização

social, constituindo lideres e espaços de decisão e aplicação do poder4.

Por que falamos aqui de uma emergência étnica? Pelo fato de que os principais

grupos Potiguara que reivindicam a demarcação da terra indígena hoje n-i30 eram

reconhecidos enquanto tais, nem se mobilizavam para isso antes dos anos 1980, inicio da

luta pela terra. O atendimento que o posto indígena oferecia a população de descendentes

dos índios da antiga sesmaria de Monte-Mór era residual e periférico, uma vez que estas

terras se encontravam sob controle da poderosa Cia de Tecidos Rio Tinto. O própriio órgão

indigenista, nas propostas de demarcação que aventou ao longo do século XX, considerava

muito difícil a retirada da CTRT destes locais, não incluindo-os portanto em nenhuma das

possibilidades de demarcação5.

Desse modo, a ascendência indígena era objeto de introspecção e cscamoteamento

na Vila Monte-Mór e ern Jaraguá. Enquanto no povoado de Marcação e ao l,ongo do rio

Jacaré (Lagoa Grande, Jacaré de São Domingos e Nova Brasilia) esta se confiindia com os

domínios marginais da assistência do posto indígena tornando as fronteiras étnicas móveis

e situacionais. Merecem destaque os contatos efetivos de vários grupos farni1iai.e~das

localidades do município de Marcação com a população administrada pelo posto, contatos

1
Apesar do desconforto e das ressalvas que os próprios antropólogos fazein ao utilid-10, o terino emerg2ncin
étnica, assim como etnogênese (Banton, 1979; Gallagher, 1974; Goldstein, 1975; Sidcr, 1976): vem sendo os
mais cornumente citados na literatura especialbada para referir-se aos processos de forinação de grupos
sociais politicaincnte organizidos coin base cin alinliainenlos identitários alicerçados iio scntiinciito dc
origein comum, que os difercncia do rcsto da população de cstados nacionais,'@rincipalraentc aqueles cuja
!!!s!irin_ está inarcada pcla colonização, escravidão ou iinportação de trabalhadores imigraritcs. Pa.m uma
definição dos grupos étnicos corno forinas organimcionais veja-se Barth, 119691 2000; Webcr, [ 1921) 1991 e
Colicn, 1969. 1974, 1985 enlrc outros.
A cssc rcspcito vcja-sc o traballio dc Azcvcdo (1986) sobre o proccsso dc deinarcaç.20 da Tcrra liidigcna
Potiguara e os inapas quc o acornpanliarn. Ncstcs inapas, difcrentcs propostas de cxiensa'ò parí a TI Poliguara
são aventadas, ncnhuma dclas incluindo os povoados ao sul de Marcação.
estes realizados por meio de laços de pareiitesco e pela participação comum nas festas dos

santos padroeiros São Miguel e Nossa Senhora da Conceição.

Os índios dcssa faixa dc ri.oriicii-a crii.i-e os doniiiiios da Coinpanliia c d o posto

indígena foram envolvidos diretamente no processo de demarcação da terra indígena

Potiguara entre 1978 e 1984, participando ativamente da autodemarcação e das viagens à

Brasilia (cf.-Azevedo, 1986, pp.227-8). As aldeias de Jacaré de São Domingos e Lagoa

Grande, foram as mais ativas neste processo e sin:omaticamente~excluidas da deniarcação

realizada pelo Exército em janeiro de 1984 e que contemplou a área Potiguara coni apenas

20.820 ha dos 34.320 ha pleiteados pelos indios. Também excluída dessa demarcaqão foi a

aldeia Gmpiúna de Cima. Devemos lembrar, contudo, que mesmo esses 34.320 ha

reivindicados pelos Potiguara na dccada dc 1980, não contcmplavam as tcrras ao sul de

Marcação, que incluem as aldeias de Três Rios, Vila Monte-Mór e Jaraguá.

O clímax dos conflitos envolvendo os Potiguara e a Cia Rio Tinto acopeceii em 27

de outubro de 1983, em Lagoa Grande, quando foi morto e esquartejado Elionai da Silva

Freitas, técnico agrícola da empresa Rio Vermelho. Tendo sido responsabilizado José

Soares (cacique de Lagoa Grande) e mais seis índios, incluindo alguns filhos deste. No

decorrer da perseguição judicial e policial que se seguiu estes indios foram acolhidlos em

São Francisco por dois anos. Azevedo (1986, p. 234) comenta que este "episOdio $)i

Iradirzido como parle de irma /irra comirm na di.s/~irl~~ o


pela lerra, irm aio de defesa cnn~l-a

ai)ançoda Rio Vermelho."

Numa de nossas estadas em campo, ficamos sabendo por intermédio de Manoel de

Analia; soçro do atual cacique de Três Rios, que as vésperas do assassinato do capataz, a
B!Bf ETECA CENTRAL / UFPB
Rio Vermelho vinha pondo obstáculos a utilização das áreas de uso comum nas matas e

capoeiras, chegando inclusive a fechar com uma cerca a estrada que levava de Marcação

para o Porto no rio Mamanguape, onde todos os dias as pessoas iam pescar. Essa cerca foi

logo derrubada pela ação cotijutita dos pescadores de Marcação, não sendo mais recrguida.

Esses fatos alargam o entendimento do fato da morte do capataz da Rio Vermelho como o

desfecho previsível de um conflito pelo acesso aos recursos naturais que vinham sendo

restringidos pela instalação das empresas canavieiras no lugar da antiga Cia Rio Tinto.

A partir de 1985 recomeça a mobilização dos índios de Jacaré de São Domingos

pela demarcação de suas terras, quarido um grupo familiar da aldeia, liderado por Elita

Pereira da Cruz, tentou vender os lotes distribuídos no século XIX, e dos quais eram

herdeiros. para a Usina Miriri No seniido de impedir essa transação. os índios de Jacaré de

São Domingos, liderados pelo cacique Domingos Barbosa dos Santos e com o apoio da

Comissão Pastoral da Terra e de Salete Horácio da Silva passam a reivindicar a

demarcação de suas terras como parte da antiga sesmaria dos indios de Monte-Mór

Instrurnentalizam, assim, a possibilidade de que as terras de Monte-Mór sejam de.marcadas

para os atuais descendentes daqueles índios que receberam os lotes distribuídos pelo

engenheiro Antônio Gonçalves da Justa Araújo em 1867. Uma comissão de índios formada

por João Batista Faustino, José Augusto Sobrinho, Domingos Barbosa dos Santos, Vic:ente

José da Silva e Manoel Bernardes dos Santos segue até Brasília, em maio de 1986, para

reivindicar a ampliação da área demarcada em 1983.

Os indios de Jacaré de São Domingos não contaram com o apoio das outras aldeias

Potiguara durarite muito tempo, apesar de nu início a demarcação das terras ter sido uma

luta conjunta. Os graves dilemas que envolviam na época a utilizaçãodos recursos da terra
indígena demarcada, como por exemplo, a obrigatoriedade da extinção dos arrendamentos,

os rescaldos das divergências em torno do Projeto Integrado Potiguara e a aliança que

alguns Iídcres da área dcmarcada cstabclccerarn com os mesrnos usineiros e fornecedores

de cana que estavam em disputa com os habitantes de Jacaré e Gnipiúna, impediram que

houvesse uma continuidade de interesses entre os indios que já tinham sua:; terras

demarcadas e aqueles que ainda não as tinham (como poder ser visto em Azevedo, 1986 e

Moonen e d aia, 1992).

Desse modo, os principais agentes que colaboraram com as lutas dos índios de

Jacaré de São Domingos e, depois, de Jaraguá foram trabalhadores rurais de outras áreas

em conflito, através da intermediação da Comissão Pastoral da Terra e da Federaçiio dos

Trabalhadores na Agricultura.

No decorrer do processo de demarcação da Terra Indígena de Jacaré de São

Domingos, foi-se construindo uma identidade étnica Potiguara específica, pyis, se essas

aldeias foram excluídas da demarcação da Terra Indígena Potiguara por esta ter-se .baseado

nos limites da antiga sesmaria de São Miguel (opção demarcatória encampada pelo órgão

indigenista desde a década de 1930), reconheciam-se agora como indios de Monte-Mór e,

para isso, valiam-se da massa documental reunida pela FUNAI para realizar a demarcação

da terra Potiguara - O relatório Baumann (1981). Isso fica claro num relatório que

entregaram ao presidente da FUNAI em 1992:

"Nós, indios de Jacaré de São Domingos da V11a


Monte-Mor, qqlieremos contar pr 'o setfhora nossa i~istórinna
Iqlita pela terra.(...) A qíii nasceram nosso.^ hi.sa\~cís,ai~cis,
como consta no relatcirio da pesqqliisadora Ikrezinha
Bauma?iri (...). Nascemos aqtii como também nossos .filhos e
esfamo,i lufattdo pela tíossa ferra." (cf. transcrito em Silva,
1993).

A assunção de uma identidade de índios de Monte-Mór, contrariando as pressões

dos advogados da Cia Rio Tinto e da Usina Miriri, que afirmavam não mais existireiri

índios nas terras da antiga sesmaria, e a posterior demarcação da terra indígena Jacaré de

São Domingos, com 5.032 ha em 1988, abriu o precedente e a perspectiva de que outras ,

partes do temtório de Monte-Mór viessem a ser demarcados, a partir da reivindicação do

mesmo status ctnico por parte de seus moradores.

"A ptífe comecemo ... porque, qtrattdo Seir Don~irlgos


começotr firar ... as primeira picada de Jacaré de São
Domirígos. Aí nós i~imosqtre tai~ana hora fambérn de nós
.fazer do mesmo jeito qIre Seu Domirígos .fez, ~ t c í sfaça ayrr i
iambém.
E Seu Domirígos foi pra Rrasília, lá f irou... parece
qtre .foi 5 mil e pouca hectare de terra e assitíotr Iá qtre
ajudal~aos índios daqui de .Jaragmá fambém conquistar o
r-esfiríhoda ferra. Aí ele frouxe a notícia yra gente, aí ticís
dissemo... agora, nós vamos abragar e vamos vencer a tíossa
carrsn C..) '' (Anibal Cordeiro Campos, Vila ~egir&,agosto de
2004. Acei-vo do G'l' Indígena).

Nessa época, na Paraíba, não eram apenas os índios Potiguara que estavam

mobilizados pela conquista de terras, mas muitas populações camponesas, formadas por

antigos moradores, empregados e pequenos arrendatários vinham buscando a - reforma

zigrhria (cf. Morcira, 1997). No iiiuiiiçípio dc Itio l'into as duas lutas sc aproximavam

geograficamente e se imbricavam numa mesma rede de relações com as agências que


....'
acompanhavam a luta pela terra no Estado.

Nesse município, vários outros povoados viam-se ameaçados de serem expulsos

das terras que ocupavam depois que a CTRT as vendeu para as ~ s i n h s Maria
. Emília
Moreira (1997) no livro "l'or ttnt I'edaqo de (:/~ão"
cita, na década de 1980, os casos dos

conflitos tùndiários em Rio Tinto envolvendo as fazendas Tatupeba, Pacaré, Tavares, Rio

Vermelho e Jaraguá (estas duas últimas iiicluídas hoje na TI Potiguara de Monte-Mór), e

localiza o conflito na aldeia de Jacaré de São Doiniiigos no município de Baía da Traição,

confundindo a circunscrição municipal com os limites da Terra Indígena Potiguara. Em

alguns desses conflitos, a presença indígena era quase nula e não havia relações com as

terras da antjga sesmaria. Já em Jaraguá, Vila Monte-Mór e Marcação algumas famílias

sustentavam uma identidade indígena, ainda que discreta e doméstica.

Mesmo essas famílias encaravam a identidade étnica de modos diferentes, sem

constituírem uma unidade de ação ou de pertencimento. Os índios, ou melhor dizendo, os

cahoco velho, ou estavam no passado genealógico, o que implicava uma memória de

massacres e perseguições; ou eram legitimamente reconhecidos como habitantes da área

demarcada na Baía da Traição, estabelecendo-se com eles relações de parentesco, aliança e

oposição. Nesse contexto, as famílias indígenas defendiam a sua etnicidade a partir de

referenciais distintos. Umas se vinculavam por descendência as famílias que habitaram a

antiga Vila Monte-Mór, que fora queimada pela Cia. Rio Tinto, tendo como'priricipal

ponto de referência a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres. Outras famílias sustentai~ama

descendência de índios que haviam recebido lotes de terras no século XIX - era o caso de

várias famílias de Marcação, assim como as de Jacaré de São Domingos. Outras, haviam

migrado da área reconhecida pelo posto indígena em busca de empregos na CTRT

(famílias espalhadas por Jaraguá e Monte-Mór). Há, ainda, aquelas que reivindica111 sua

origem em Vila Flor, velho aldeamento missionário no Rio Grande do Norte, (:orno

justificativa para serem reconhecidos como índios - é o caso de uma fmilia extensa em

Jaraguá, mas tainbéin de outros grupos que, no entanto, alegam que seus bisavós
transitavam entre as duas "terras de índios", tendo em algum momento se fixado

definitivamente nas terras que eles Iiqie ocupam6

A luta pela terra e a elaboração de uma nova identidade étnica - menos residual e

mais combativa - entre os Potiguara de Monte-Mór se dá em meio a um campo social

carregado de conflitos e que passa por rápidas mudanças nos esquemas de controle dos

recursos naturais. Até a década de 1980, mais ou menos, a Companhia Rio Tinto ainda era

a dona quase que absoluta das terras no município de Rio ~ i n t eo era


~ através de seu corpo

de gerentes e vigias que se definia como os recursos (madeiras, acesso ao mangue, terrenos

para roçados, etc.) seriam utilizados e por quem. Contudo, o processo de falência da (ZTRT

causou profundo impacto nessas relações, pois, a fabrica fechou as portas lançando a

cidade de Rio Tinto numa estagnação econômica completa. As terras que ocupava foram

vendidas ou arrendadas para as Usinas Mirin e Jápungu e outros fornecedores de cana,

causando o deslocamento compulsório das famílias de antigos moradores da CTR'T dos

lotes de terras que ocupavam para as periferias de Rio Tinto, Vila Monte-Mór ,'e Marcação,

carentes de oportunidades econômicas. . -

Por fim, o desmatamento e o plaiitio de cana nas encostas, a pulverização aérea do

canavial com defensivos químicos (ação que os índios chamam de aguar a cana) e o

despejo de vinhoto, a calda, no estuário do Rio Mamanguape causou a diminuição e a

secagem dos mananciais, bem como a completa escassez de peixes, moluscos e cnisticeos,

fontes primordiais de proteína e renda para a população da região. Sidnei Peres ('2000,

2002), nos artigos que escreveu a partir do relatório de identificação da terra indígena

6
Esse t o caso das famílias que se reivindicam o iiidio Cliico dos Santos como anceslral que. lendo circulado
cntrc Vila Flor c Montc-Mór dcisou vas1:i dcsccnd8ncia nas aldcias de Jacard dc São domingos. Lagoa
Grande. Grupiuna e Marcação.
7
Marcação só crnancipou-sc cin 1996.
atenta para os "cor?flifo,~
.socioanthienfai.srto '7entpo das IJ.sirtasn'como a principal causa

das reivindicações territoriais dos índios

13 ncssc contcxto dc rcdcliiiiqão c ccrccamciito do accsso aos recursos mais bitsicos

de sobrevivência que a luta pela demarcação das terras indígenas vai chegar até os

caboclos que viviam em Jaraguá, Monte-Mór e Marcação, como uma alternativa para a

nova situação de privação e miséria. Se antes, dizer-se índio era tornar-se um alvo da

repressão da Companhia, nos últimos anos passou a ser uma atitude de negação radical ao

poder das Usinas e da falida CTRT, um leão moribundo que ainda assusta pelo seu rugido

e pela força demonstrada outrora Afirmar a identidade indígena das pessoas e o seu

vínculo privilegiado com a terra, retira toda e qualquer legitimidade a presença e ao

usufiuto que os latifundiários fazem das terras que compraram da Companhia Rio 'Tinto.

Uma nova memória começou a ser produzida, rearticulando eventos e experiências numa

narrativa de redescobrimento e produção de símbolos, assumindo uma pretensão de

legitimação, dando aos tcrmos caboclo e írldio um novo significado, não mais,suballerno,

no quadro de relações de poder na região.

Essa inversão de sentidos promovida pela emergência étnica dos Potigua1.a de

Monte-Mór é minjmizada pelos advogados da Cia Rio Tinto e das usinas que, em rrções

judiciais, esforçam-se em negar a existência dos índios, afirmando que as terras que

ocupam foram adquiridas legalmente de terceiros.

"O qlie a int/~rertsartofrcia r~os1il1into.s1ernpo.s nlfio c!


bem a reolrdade, 1160 exisíe rrer~ht~m'to~fliío r1a região- A f t
yorqrre exisfejtr rima reserva irldígerta Ira regiiiv demancada
desde / 9 9 / que e a reserva ir~digerraPolipara. O lugar. gtie
eles hoje esfão reivirtdicmtdo é onde era irm a i ~ í ~ g o
aldeartr~ri/oqtie .foi insfirtío(SJC) pelo govetrio im/~ei?a/, por
ticrc/íre/e /enlpo ti60 al)re.setl/ar'mais as carac/er'is/icascle irm
aldeameti/o itídiget~a".(entrevista com Maria Madalena
Lianza, advogada das Usinas Miriri e Japunçu, citada em
Figueirêdo, 2004, p.5)

A própria FUNAJ não escapa das crÍticas tecidas pela advogada Madalena Lianza,

que a acusa de mistificadora, ao carrear recursos para a área contribuindo para a adesão de

várias pessoas supostamente indígenas a reivindicação territorial. "IZu sejo isso como unia

da /+'(/NA/em /)e,:si.s/ir, ela


irre~~ot~sabilidade tio-fitído Irma vet~dedorade il11.~6es,
poi.s

está pegaltdo pessoas pouco esclarecidas de que a terra é deles, mas delas nmica foi, pode

ler SI& Irm dia de .sei~sat~/e/~a.s.suJoS'


(Idem).

A FUNAI também é alvo de reclamações por parte dos índios e de outros atores do

campo indigenista como professores da UFPB que acusam o órgão de omissão e de

preterimento em relação as demandas dos índios de Monte-Mór. Apesar do órgão

indigenista manifestar um grande desconforto inicial - e demonstrado ainda hoje por

alguns fùncionários - em atender as demandas dos índios de Monte-Mór, com o passar do


'I

tempo e a realização dos estudos de identificação da terra indigena, foi tornando,se mais

palpável no campo político local a possibilidade da existência de uma etnicidade indigena

publicamente reconhecida. Assim, mais pessoas foram aderindo ao pequeno grupo que

iniciou a luta pela terra, dando novos contornos a mobilização étnica. Em anos mais

recentes, fontes de recursos (sementes, ferramentas, remédios, curscs e einpreios de

professores e agentes de saúde) forarn carreadas para a área, em hnçao da ação da

FUNASA e de projetos desenvolvidos pela Universidade Federal da Paraiba gerando

tensões e faccionalismos e instituindo definitivamente o reconhecimento público de um

recorte étnico na região. É o desenrolar deste processo que passo a narrar agora.
3.3. JARAGUA E O COMIZÇO I)/\ 1,II'I'A P E L A 'I'ERHA

"O ZAHUNHA DI; ,SEU VICEN7E


Q(JE .YKMllltk,- 111Vfi,'lt71; N(),Y
C'OM A DAN(:A DO 701(12
CAN7 AM0,Y I;M AL 7 A VOZ
O CAHOCOHI3BE L; IWMA
NO I<L.:I'IQIJEDO 7AH F INHA
/i IIA SAIA iUIL4 I( O COI. "

(Poesia do índio Marinesio Cardoso, 2000)

Tudo indica que o início de uma mobilização temtorial em Jaraguá deu-se a partir

de 1982, com os moradores identificando-se como trabalhadores rurais e clientela de

reforma agrária. Além de referências fornecidas em entrevistas com índios de Jaragua, nas

quais afirmam que o começo de sua hrfa contou com o apoio dos sem-terra e da CPT -

Comissão Pastoral da Terra, encontramos uma sugestiva citação no já citado livro "llor rlm

pedaço de chão":

"A Iiazeilda .Jaragrá.foi ohjeto de denlit~ciae befag


11or11arfedo.s fraha1hadore.s em 22 de.jtrlho de 1982. a!rai~k.s
de irnta carfaderttiiicia os moradores do imóvel relaforn qtre
esfavant seiido ameaçados pelo grupo empesaria1
A g r o a . f r i 1 I<io Vermelho, de terem stros lavouras
dc.sfr.r~ída,.r pelo gado. Alim dis,so, varios agrictrlfor.císferiam
sido proibidos de retirar capim e cipó da mata e de pescarem
cara~ignejo no mangue loca!izado no interior da
~x-opriedade.Seprrdo o documento citado, os prohlemas com
a entpresa strrgiram depois qtre a mesma iiiiciotr ilm projefo
eco~lômicode exploração da madeira na mala ali localizada,
bem como de criação de gado para corte e pla~itio de
coq~reirais.A partir desse momento eles viram setrs roçados
serem ameaçados de exlinção para dar Iirgar a essas
afividades. Diailte dis.so pediam providêricias a Fe tag para
evilar que fosscm expí;lsos.
A~)~..snr de em 1993 essa area aiilda coil.sfar de urna
ralaç.ão do Incra de corlf7ifos não solircior~ados,a pesyrrisa
tlão oh/ei~etret~hrinmo1itt.a itfomm@o .soh,a a mesma."
(Moreira, 1997).

Sugestivamente chamada de Fazenda Jaraguá nos documentos consultados para a

pesquisa que resultou no livro e que constam nos arquivos da FETAG~e do INcRA~,

nenhuma outra informação sobre o conflito de terras em Jaraguá é registrada por essas

agências na década de 1990. Isso se dá porque uma parte de seus moradores passam a

reivindi-r "ma identidade étnica indígena a partir de 1986 e direcionam suas

reivindicações para a FUNAI.

"O ir~ícioaqtii de Monte-Mór .JQi o seprrlfe... A


Companhia Lulldgre)?...pegou a terra que, que a Companhia
faliti. l<:,1lãottão linha mais co)~diçlíode, de ~rubalhar,né? Ai
foi pegoti, arrertdov a /erra, oti irendefi. Os usirieiros diz que
iatrdeu, e ilet~deu.A Compa)~hiaL~lndgreniatideir as lerra a
eles. Aí a catlaflcoti bem ai, por rodo canto, e~i.fiqtreisem ier
())de/mhalhar. Que eu ~ ~ t ifarto, m . cii. 7 a i7etldo ai, (i? 'liido 2
roqa mnlha de cabeça a de11tr.o. Porque eu lendo a tnit~ha
roGa qrie eti platt/o a mitlha faritlha, eu rettho o meti comer
cerlo. (...) 1% i7ou morrer de fome? EIJvoti .ficar conprat~do
.faritlha tm ).tia . ~ I I Iler cottdição? ,c

C..) Nit~p~ém aqui me acompatthava, tião. Aí eri \~oti


j)ra ltecife. Dessa vez chego Ia, pro)tto. Aí eu-fileicom o,era
delegado, tté? Era um tal de Vice~tielambem (...) Isso.foi em
8.5. No mCs de maio eu fui pra Hrasilia. " (Vicente José da
Silva, Jaraguá. agosto de 2004. Acervo do GT indígena)

Seu Vicente relata ainda nesta entrevista o apoio que ofereceu aos índios de Jacaré

de São Domingos, revelando uma luta conjunta que depois seguiu caminhos diversos.

"7ai7a lá no ba~tcodo Hradesco, aí chegou, chegou


Datliel (Santat~a)(...) que era o cacique geral lá do posto. I.zi
peguei traíar do assunto com ele, ele,disse: - Vocês qlierem
hitar por essa Vila? Então a Vila ,São M i g ~ ejál tinha sido
demarcadn. (...) Tem no alagadiço de Brejinho, o documento
reza: lwa l í São Mipiel, p m ccí Mo~tle-Mtjr.Ai, vai ele djssc:
R
Federação dos Trabalhadores na Agricullura.
Instituto Nacional dc Coloni7ação c Rcforiiia Agríiria.
- lbcê qrrer lrrfar? ferího o docirmerifoqrre reza por dol~dt.
é. -- Voe2 me dá? Ele disse: - Dou! c..) Ai, eir.fii, niatrdei Zk
Airprsfo, e irm irtdio lb de Tramafaia. Martdei ele ir hirscar.
/:'/e 11.01rxc.NCjo frrrhn lq'ONA/ uqlri em ./oüo /'c?.s,wí~, ercl e111
ltec~fi.Ai. t1cí.s ,firmo pra Rec!fe. Icir. Zt; Atrgrrsfo e o .filrudo
/lonii~~gos, de ./ucnrd. Ai cheprei lá, o ndnii~tisfradorde /h,
qirnr~doiiiir o s docirniertfos e di.r.~e:- rapaz, como .fii qlre
~)ocê.s/~egaram isso!?c..) Ai, ele firotr trni xérox, eir dei a Serr
Donii11go.virnr, .fii ai qtre ele se armoir - - e.fiqlrei com 01rfr0.
(Vicente Jose da Silva, Jaraguá. agosto de 2004. Aceivo do
GT indígena)

Assim, em 1988 apenas as terras que envolviam mais diretamente a aldeia de Jacare

de São Domingos foram demarcadas, ficando o restante das terras sob o controle da CTRT

e das usinas. É neste período que começa a se destacar a liderança de Seu Vicente, em

Jaraguá, que articula umas poucas famílias indígenas em sua aldeia e nos povoados de Vila

Regina (Vila Monte-Mór) e Marcação. A mobilização é mais acentuada em Jaraguá onde

os recursos econômicos estão mais ameaçados de restrição e os índios contam com o apoio

da FETAG e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Tinto (cf. Peres, 2004, p. 3).

"A primeira la~~oura que nós plarílemo, a irsina


ma~idoudistiorar. Qi~artdoa roça fa11aassim, linha. o milho.
O frnfor /Ia,r.roir acabou com firdo .c..)
/!.e ~toife!Lá em
./arab'~ra.Nos platttemo de n o ~ ~ Ao . í veio, veio, veio unias
pessoas deu uma forciriha a gente. Irtfé OS sem-ferra iUero
faniht;m. lleir irma .forcitiha a gente. Comecemo de I ~ O I J O . E
irtfk Iioje, graças a Jleirs, a gertfe riâo... ttiri~'~rknt, rtem
rti~tgrrémcorrei) e fomo aqui ainda." (Seu Pedro Máximo,
Três Rios, agosto 2004. Acervo GT Indígena)

O enfrentamento direto com as usinas, plantando roças que eram destruidas de

imediato, o apoio das agências vinculadas a luta pela reforma agrária no Estado, o recurso

ao Mi:iistério Público Federal e a postura esquiva da administração da FUNM em João

Pessoa são ressaltados nas interpretações acerca deste momento. Data dessa época também

o início da realização do toré pelos índios de Jaraguá e da Vila Monte-Mór como uma
forma de demarcar a identidade étnica e os posicionamentos políticos daqueles que

assumiam publicamente a condição de índios.

"Ai, coniecenio, plarlfarlo, a Usina virllia, passava o


frator rta roça da genfe (...) I'lanterno qiíatro, seis hectare, a
primeira luta da gert fe, seis hectare. Qiíarldo deir crrtco e
meia da tarde a IJsirm ,/apiírtgí veio, /)a.v.voií o frafor, rto
meio da r-oqa. Acabou com tido. Aí nós $imo orlde ta o
Prociírador, qiíe era Luciano Maia, na época. Presderno
queixa a ele C..) Ai, quando ele chegoir aqiri, trozíxe a
pmmofora, a Dra. Socorro, ai de 12io Tinto. Aí, .fazer0 o
acordo. No orífro dia, rlós fomo aj)lartfa, a Usrrta veio de
rtovo passar o trator. O Administrador era 1;rarTça e o cabo
Marcos,troiíxe a polícia, froi~xeo jor.rtal. Mas rlir~gíémfeve
medo de er?fianfa./+a a polícia assini e rtcís trzlhaiartdo,
et!fi.enfartdo.
Aí, daí qtíe começoti a lirfa da genfe (...) qiíe rtent Seir
Vicertfe. O delegado chegoir: - Seir Vicenfe, i)anio Ia rta
delegacia pra corthecer, pra ttós conversar. ,Seir V~ceitfe cai11
rta be.vfeira,aí, .ficou nove dia preso. A i, rtos.firnto rta FIJNAI,
pedir adevogado. A AIUNA1 disse qtíe não fittha
adevogado.(...) O adrnittisfrador disse assim: - Vocss que se
i~irent.O adminisfrador era Marcos Clemertfe. A i, nós .firnto
Ia rta CPI: qiíe é a I'asforal da Terra. Aí, cottsegírmo com
~ adei~ogado.Ai, solfoií Seií Vicerlfe.
Frei ~ t m s f a c r o 'iínt "

(Aníbal Cordeiro Campos, Vila Regina, agos5o de 2004


Acervo do GT Indígena).

Em 1993 alguns índios de Jaraguá e da Vila Monte-Mór encaminham através do

Ministério Público Federal uma solicitação a FUNAI para que sejam tomadas as

providências no sentido de proceder a identificação e delimitação da área como terra

indígena. Em 1995 foram realizados os estudos de identificação da Terra indígena

Potiguara de Monte-Mór, coordenados pela antropóloga Maria de Fátima Cainpelo Brito,

ficando o relatório pronto em 1996. A área identificada possuía uma extensão de 5.300

hectares, nos municípios de Rio Tinto e Marcação, incluindo as aldeias de Jaraguá, Nova

Brasília e Lagoa Grande, além da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, marco do antiço
10
Frci Anastácio atuou durante muitos anos na Coniissão Pastoral da Terra e foi eleito deputado estadual pcla
primeira vez em 1996, pelo Partido dos Trabalhadores com uma grande base de aptoio entre as areas dc
reforma agrária do cstado.
1) aldeamento de Monte-Mór. Ficaram excluídos dos limites da Terra Indígena o perímetro

urbano de Marcação - sede de muiiicipio instalado ein 1996 - e as Vilas Regina e Monte-

Mór. A equipe de identificação ponderou que mesmo com a grande presença indígena

nestas manchas urbanas, o número de ocupantes não-indígenas poderia dificultar e atrasar

o processo de regulari7~çãofundiária Segundo o levantamento fundiario de 1995 incidiain

sobre a terra indígena a Usina Japungu, Rio Vermelho Agropastoril Mercantil S.A.,

Fazenda santa Eliane, além de outros ocupantes (cf Peres, 2004, p. 2 e 3)

Em 1997 a ideiiiiíicac;ão da Tci-i-a Indígena foi conicsiada adtiii~iisiraiivai~icn~.~


ria

FUNAI pelos representantes da Companhia Rio Tinto, das usinas e de plantadores de cana.

As contestações foram indeferidas no âmbito do órgão indigenista e o processo seguiu para

o Ministério da Justiça onde, num parecer, o ministro Renan Calheiros negou-se a

reconhecer a área indígena, aceitando as alegações dos mntestantes. Em 14 de jullio de

1999, através de um Despacho Ministerial desaprovou a identificação e a delimitação da

Terra Indígena, determinando que a FUNA1 procedesse a novos estudos de idefitificação e

delimitação excluindo as propriedades de Rio Vermelho Agropastoril Mercantil S.A.,

Luismar Melo, Emilio Celso Cavalcaiiti de Morais, Paulo Fernando Cavalcanti de Morais e

Espólio de Arthur Herman Lundgren.

Tal decisão foi publicada apenas dois meses depois que os Potiguara de ~ o n t e - ~ ó r

haviam realizado uma autodemarcação do território identificado pela FUNAI, mobilizando

um grande número de pessoas, a imprensa e agêricias como o Conselho Estadual de

Direitos Humanos e a Universidade Federal da Paraíba. Em agosto do mesmo ano, com o

apoio da UFPB e do Conselho Estadual de Direitos Humanos os índios recorreram ao

Ministério Público através de uma Ação Ordinária contra a União e os contestantes,


promovida pela Procuradoria da República na Paraiba pedindo a antecipação da tutela. 9

despacho do ministro foi refutado e a FUNAI intimada a realizar novos estudos sem

cxcluit- iis ái.cus i.civiiidic;udns pclus ~)arliciilai~cs.


Uiri scguiido grupo de trabalho c íòrmado

em 2000 sob a coordenação de Sidiiei Clemente Peres, que identificou, num primeiro

momento, uma área de 5.800 ha, posteriormente ampliada para 7.487 ha, a qual foi

declarada como indígena em 2004.

"O Mitristro da Justiça... o Remati Calheit.os, atites


dele .wir ele.. . de~rum decreto descot ihecetido Mot ?te-Mór
conto área itrdigctla, e sim, cotlhecia como área itldígctta e
daila o avara1 se .fosse com os ~rsitieirosdentro. I{tilão, pra
deixar os trsi~icirosdentro nós só ficava sometlte com o
cemitério, que e yra onde a get16e ia se etrterrar, o resto
.ficava cont a Compatihia e os usitteiro." (Valdemar Paulo
Ribeiro, Vila Monte-Mór, agosto 2002)

Como mostra o depoimento de Seu Vado, a decisão do Ministro da Justiça foi um

grande golpe contra a mobilização dos índios, frustrando suas expectativas de um desfecho

rápido para a situação de dificuldades econômicas e sociais que viviam. ' 2

, ..
' ~ o ~ - a ~ uapo so!pu!
m sop epoisyq e
arqos (oqqnâad osoprea o~zaupqqolpu! olad epez!ue8ro eq~!~.re:, ep o q : , a ~ ~
Em virtude das contestaçòes judiciais ao processo de regularização fundiaria, da

morosidade causada por estas decisões no andamento da demarcação e de acusações de

que seu Vicente não estaria mais agindo com tanto afinco na defesa dos interesses dos

índios, incluindo-se aí a apropriação de recursos comunitários como o controle da casa de

farinha, ocorreu o rompimento da maioria dos grupos familiares que o apoiavam

A complexificação do campo de ação indigenista, com a alocação de recursos para

a área através da implantação do Distrito Sanitário Especial Indigena, criando

oportunidades de trabalho como agentes de saúde e de um curso sobre associativismo

protnovido pela UFPB, criando associações indígenas tias aldeias, também contribuiu para

esse processo, pois novas lideranças passaram a se destacar e promoveram a substituição

de Seu Vicente do cargo de cacique juntamente com o seu representante em Marcação,

Antônio Culau. Em Jaraguá, Aníbal Cordeiro Campos foi escolhido cacique; na Vila

Monte-Mór, Valdemar Paulo Ribeiro, Sei: Vado; e, em Marcação, José Roberto de

Azevedo Santos, Bel (cacique) e Josesi Soares (vice-cacique). 1

BIBLIOTECA CENTRAL I UFPB


' I
tava )to meio das inatas,
[{ir
1u ~ )tir'airdo
a cil~ó.
Lá chegoir nieirs caboqiriirho
Ila uldeia de Motifc-Mdr: "
(Toré Potiguara)

Esta substituição dos representantes foi acompanhada de uina mudança na dinâmica

da luta, que passou a ser liderada pelos índios da Vila Monte-Mór (Vila Regina). A Vila

Monte-Mór e uma vila opcraria próxima a scdc do município de Rio Tinto, havia ficado fora dos

limites da terra indígena proposta em 1995 por ser uma área urbana (considerava-se que

seria muito difícil e dispendioso indenizar todos os moradores não-índios da Vila).

Contudo, várias famílias indígenas moram lá e estavam sendo pressionadas pela

companhia de Tecidos Rio Tinto que vinha cobrando judicialmente o pagamento dos
,'

aluguéis atrasados. . .

"Aqiri iros fica pressionado pelas irsiira, .fica


ameaçado de ser despejado pela Compairhia, se nirm pagar
os alirg~rel.Na qirestão da saiide nos fica seirdo discrimirrado
pelo pessoal da FUNASA, se quer fazer um exame, o.ítidio as
vez tem que esl)er'ar' três ou qualro més. E para nos viver'
niais frarrqiiilo itris devia ter' mais estirdo, porqire nos faml~éni
irão feni escola para nossa .família indígetia. O íiidio de
Moiife-Mór é discrimir~ado." (Vado, Vila Monte-Mór, agosto
de 2002)

A mobilização liderada por Vado ganhou novo fõlego e angariou a disposição dos

índios para a realização quinzenal do toré, para a reivindicação do reconhecimento da Vila

Monte-mór como aldeia e a sua inclusão no território a ser demarcado, pela supressão do
pagamento dos aluguéis das casas habitadas por índios e para a retomada de pequenas

extensões de terra nos arredores da Vila e no Arrepia.

Na Vila Monte-Mór, o toré garihou centralidade na mobilização política dos índios,

aglutinando aquelas famílias mais diretamente envolvidas com a realização do ritual como

as que estão a frente das reivindicações territoriais. O toré que registramos ria Vila Monte-

Mór cumpria a função de exteriorizar a identidade dos Potiguara que vivem lá, e não só

dos moradores, mas da própria terra, como algo indissociável da unidade étnica que

formam. A relação identidadelterritório é reforçada nas músicas cantadas durante o ritual:

Os cahoco 1tãc1qlrel- briga.


Os caboco não quer guerra.
,S'al\)e, sal \)e a padroeira!
Monle-Mór é nossa.^ terra.
r.
c t r iava 11a minha casa
Iraé foi me avisar.
Pega a l a ~ t e~ as
a flechas
Que o pqje rna~~dozr chamar.

O cahoco pofigcara,
Nesfa terra ele nasceu.
IZIa é sanfa.ela é mãe.
Ela é do hldio, ela é de Ber~.s.

Contudo, o toré é muito mais que um ato pragmático de exibição da fronteira

étnica, tomou-se uma hrirtcadeira do cotidiano. Os índios se reúnem para relembrar quem

são de forma alegre e desprendida, se pintam, dançam, comem e bebem. Sempre que há

um toré se faz muita comida". O Iúdico predomina, há sorrisos e,animação. Contudo, na

abertura, todos se ajoelham e oram, num ato cristão, ao mesmo tempo em que afirmam

" Ncsic ponio dcsiaco1~-sca csposa dc Vado. Doii;i \.,ia. qiic cuidava da organização c disiribiiiç50 d;i coiiiida
durante o ritual.
estar pedindo a presença de seus antepassados. Esta é a forma por onde se expressam os

conteúdos étnicos, políticos e religiosos do gnipo.

"A ,yen/c.brinca o /ork de 15 ent 15 dias, rio y~rin/alde


i~mucasa. Mas tirís rtão pcira porqtre é 1ios.vc7/rad;~:Goe rtcis
/em qr~ecori/it~irar
yra tnostrar qirem são o.s i)et.dadeir~os
dono
de Morile-M~I:"(Vado, Vila de Monte-Mór, Agosto de
2002)

A realização pública do toré num espaço historicamente marcado pelo controle da

Companhia Rio Tinto assume para os índios o significado de um grande desabafo. E

motivo de orgulho e prazer dançar o toré em praça pública. Alguns chegam a afirmar, num

tom emocionado, que ao dançar o toré hoje podem ser livres, por eles próprios e por seus

antepassados que foram perseguidos e obrigados a negar sua identidade. Observando a

roda do toré em Monte-Mór lembramo-nos de que "A cvltura aparece ayiri conto a atttilese

de irm projeto colortiali.s/ade esfahilização, zrma vez que os povos a utilizam rtno a~>erias

para marcar sua identidade, como para retomar o cotitrole do próprio destino" (Sahlins,

O que está em jogo em Monte-Mór é a própria identidade Potiguara, negada pelos

poderosos do lugar, que Ihes roubaram as terras, poluem seus rios, não Ihes dão trabalho e

ainda cobram aluguel das casas em que vivem, ameaçando-os de despejo. Assim; o toré é

invocacio como expressão do ser indígena, patrimônio espiritual exclusivo dos Potiguara

que se torna uma prática subversiva ao incitar a recuperação/recriação de uma memória

indígena sobre a Vila de Monte-Mór.

Nessa luta pelo espaço de afirmação simbólica do grupo podemos perceber como O

próprio espaço fisico e seus marcos arquitetônicos são ressignificados edapropriadosnum


movimento de contestação e retomada dos sentidos históricos dos "monumentos". A igreja

de Nossa Senhora dos Prazeres e praticaiiiente o único elemento material que assevera a

existência da antiga aldeia dos índios. Nesse sentido, os Potiguara investiram, desde o

primeiro Grupo de Trabalho da FUNAI em 1995, para que ela ficasse dentro dos limites da

Terra Indígena, inclusive, mobilizando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do

Estado da Paraíba - IPHAEI' para o tombamento da mesma, em agosto de 2000 (Duarte,

2001, p . ~ 8 - i 9 ) .

Por sobre os restos da antiga aldeia foi construída a fábrica, a vila operária e o

grande casarão dos Lundgren, modificando totalmente a face do antigo po;loado de índios,

dando-lhe as características urbanas e industriais que tem hoje. A urbanização é, portanto,

uma marca das memórias da opressão e das profundas mudanças causadas pela Companhia

Rio Tinto. Sendo relembrada com freqüência nas narrativas sobre o passado, "Isso não era

cidade assim, não, isso aqlri era níata, mata, mala, mata".(D. Antônia Conceição de

Oliveira, Vila Monte-Mór, agosto de 2003). ,4

. -
Assim, como muitos Potiguara já disseram, "a Vila c! oride /h toda a hi.vt~j~kI",

sendo um loctcs fundamental da identidade do grupo. Desse modo, a mobilização dos

índios da Vila Monte-Mór atualiza e transforma as memórias do tempo de repressão na

afirmação étnica do presente. Por sobre os marcos da urbanidade na qual estas--famílias

teceram suas vidas como operários e operárias têxteis, recriaram espaços de visibilidade de

sua nova condição social: primeiro, foi o toré, realizado no quintal da casa de Seu João

Cândido, de frente a uma das praças; depois, a construção de uma grande oca comunitária

numa das extremidades da Rua Nova para a realização de rituais, reuniões e aulas da escola

indígena que então se estruturava precariamente. A construção da oca foi embargada uma
primeira vez pelo delegado de polícia de Rio Tinto atendendo a um pedido da Companhia.

Depois de uma reunião com o procurador da república e o administrador da FUNAI na

Vila Monte-Mór em agosto de 2003 os índios conseguiram proteção oficial para levantar a

oca pela segunda vez.

Nesse meio tempo realizou-se a transferência do pólo base de saúde de Rio Tinto

para a Vila, institucionalizando o reconhecimento da identidade étnica dos habit,antes do

local. O grupo de professores envolvidos com a escola indígena também logrou consolidar

sua posição institucional e ocupou um dos horários da escola estadual existente, adornando

com desenhos e peças de artesanato as paredes de tijolo aparente características da

arquitetura dos prédios públicos coristruídos pelos Luridgren.

Por outro lado, o problema com a cobrança dos aluguéis das casas ampliou o

circuito de reivindicações étnicas para outras famílias, que passaram a ser atendidas pela

FUNAi quando esta assumiu o pagamento das dívidas de 174 casas junto a CTRT, I--

liberando-as desse ônus financeiro e incorporando-as oficialmente como indígenas. ..

O cadastramento realizado pela FuNASA da população indígena da Vila, também

atuou no sentido de expandir as fronteiras étnicas incorporando as pessoas ao grupo

indígenas pela perspectiva dos direitos. Muitos não mobilizam tima identidade indígena em

nenhuma outra situação a não ser naquelas em que o acesso aos recursos é garantido pelo

pertencimento ao grupo indígena. A descendência é acionada como fator legitimador de

acesso aos direitos. Contudo, essa prática gera disputas entre grupos familiares,

principalmente com os que participam mais ativamente das mobilizações.


3.5. A " NOVA Al..,l)IilA" 1115 'l'l<l?Sl<lOS

" M c I I .a~1~O.s. rnelrs hisai~ci.s,.falai~acpre vai


.srrrgir rrm cajja l~erdetla ler-/-a.C..) /:ir ficava
ctwioso e nrrnca ela níe de11 trma r'e.sl~o.~fa. (...)
i a l ~ ~ eque
z era o Iaf~fi~rlJiúi.;o, a ILsilm. Qrre
chqplr e dtísfr11iír toda a nossa .fkrre.s/a, a
tío..rsa riqueza, ittcltrsi\~eaferrando os rlofi. "
(Zé Máximo, Três Rios, agosto12004. Acervo
GT indígena.)

Marcação é a sede do município de mesmo nome que foi emancipado no ano de

1994, tendo elegido seu primeiro prefeito em 1996. Quando o engenheiro 14ntônio

Gonçalves,da Justa Araújo demarcou as terras dos indios de Monte-Mór e Baía da Traição

em 1866, Marcação já era referida como povoado, sendo que a linha divisória entre os dois

patrimônios passava pelo cemitério do povoado.

Durante o século XX, este povoado foi marcado pela dominação da CÓmpanhia de

Tecidos Rio Tinto que passou a controlar as terras da região e obrigava os indios e demais

moradores a pagar arrendamento para poderem trabalhar. O homem forte da CTRT em

Marcação era conhecido como Sargento Barreto e exercia o poder com mão dc: ferro.

Durante muito tempo o povoado destacou-se como um entreposto do comércio de produtos

do mangue, principalmente o caranguejo, de onde várias famílias retiravam o susteiito. As

atividades de pesca e coleta no mangue eram complementadas pela agricultura de

macaxeira, mandioca, milho e feijão realizada nos terrenos mais altos, pela coleta de

mangaba e caju e a comercialização de madeira das áreas de matz oútrora abundantes.


No inicio da década de 1980 a CTRT atravessa um processo de falência e começa a

se desfazer de parte de suas propricdadcs que são vendidas as usinas Japungu e Miriri. Ao

tomarem conta dos terrenos ao redor dc Marcação as usinas passam a pressionar os

pequenos moradores e arrendatários a sc retirarem das terras abrindo espaço para as

plantações de cana. Essas famílias são empurradas para o povoado onde passam a vender a

sua força de trabalho as próprias usinas ou pagar renda aos caciques da Terra Indígena

potiguara para trabalhar dentro da área demarcada. Essa prática de arrendamentos já era

antiga pelo que pudemos observar de listas de arrendatários do Posto Indígena nos tempos

do SPI e que incluíam moradores de Marcação.

O primeiro prefeito eleito foi Gilberto Barreto, filho do Sargento Ban-eto. O

município de Marcação foi desmembrado de Rio Tinto e encontra-se quase totalmente

envolto pelas terras indígenas Potiguara, Jacaré de São Domingos e Potiguara de Monte-

Mór e pela Área de Proteção Ambienta1 do Rio Mamanguape. Em seu temtório


,
encontram-se as aldeias de Tramataia, Camurupim, Caieira, Brejinho, Estiva yelha, Lagoa

Grande, Nova Brasilia, Jacaré de César, Grupiúna, Jacaré de São Domingos e Três Rios.

Para efeito das ações assistenciais da FUNAI e da FUNASA os índios que

habitavam Marcação eram considerados desaldeados, o que os colocava muitas vezes em

situações de suspeita ou embaraço quando requisitavam os beneficios oferecidos pór estes

órgãos. As primeiras mobilizações dos índios forain incentivadas por Seu Vicente, que

vinha de Jaraguá para fazer reuniões e dançar o toré. Segundo Bel, atual cacique de

MarcaçãoITrês Rios, as pessoas tinham medo de se assumirem como indígenas e poucas

famílias acompanhavam a luta. Com a instalação de um Pólo Base da FUNASA na cidade

instaurou-se uma situação mais favorável de afirmação da identidade étnica


Paralelamente, pequenas retotnadas de terras já viiiham sendo realizatlas pelos

índios. ganhando impulso com os resultados do segundo GT de identificação. Ainda em

2000, os índios de Marcação haviam ocupado uma pequena faixa ao lado da estrada que

margeia a cidade e vinhatn expandindo seus roçados ano a ano.

O processo de substituição de lideranças ocorrido em Jaraguá e na Vila Monte-Mór

fez-se sentir também ein Marcação, de modo que Antônio Culau, representante: ligado a

Seu Vicente, vinha sendo contestado por vários índios, principalmente aqueles liderados

por Josesí Soares, o Nêgo Si. As próprias agências indigenistas contribuíam para uma

instabilidade na representação política local ao negarem-se a atender solicitações de

remédios, atendimento médico e sementes encaminhadas por aquelas pessoas que os índios

tinham como seus representai~tes.

Numa reunião organizada por Caboquinho, cacique geral e Zé da Estiy, presidente

do conselho distrital de saúde indígena, surgiram cinco candidatos a liderança.,dos índios.

Segundo contam, nenhum desses seguia de perto as mobilizações te]-ritoiiaisdos índios,

estando mais interessados em utilizar o posto como forma de aumentar suas próprias redes

de influência na cidade. Foi aí que um grupo de índios indicou o nome de Bel, pois a sua

família era bastante numerosa e reconhecidamente indígena, enquanto paira.& sobre

Antônio Culau a suspeita de não ser índio. Bel foi escolhido por não representar em

principio nenhuma das partes em questão e logo çanhou o apoio de Caboquinho e Si, que

tomou-se sua segnlda pessoa, como gosta de dizer.


Em agosto de 2003 duas ocupações simultâneas foram realizadas pelos iiidios da

Vila Monte-Mór e de Marcação: uma parte da fazenda Rafaela, de propriedade da Usina

Miriri e dois talhões de cana na fazenda Rio Claro, de propriedade da Usina Japungu. A

fazenda Rafaela fica as margens do riacho Arrepia, antiga aldeia de índios, expulsos pelos

1,undgren no começo do século XX. Já os talhões da fazenda Rio Claro ficam dc frente a

cidade de Marcação e são contíguos as áreas retomadas em 2000.

"A terra qire lava ocirjiada tttrm lava mais dattdo /ira
comirrt~dadetrabalhar, tté. Aí, Si (vice-cacique de Marcação)
coni~er~son cirm Caboqiritlho e falou (para) 1~e/l.onio1'. Dixe: -
'Os ittdlos, que tem, tão passando fome. eles tão
precisa)ido de terra mais'. E soubemos também que a
jirefeitirra ia .fazer irm cor~jirntoali! Que dixe qtre cla titlha
tnil nietros por trás da /iista. Nirlgdém yodia (...)deixar
acontecer irnia coisa dessas. Porqtre a terra era da gente. Ai
110s comecemos. Marqlrentos o dia de etltr*arlá, jirnto com a
contutlidade. Chamenio .Jaraprá, a turma de ./ai-agvrh, a
Vila... e, hoje, os ítldios tão... itêgo que tlão tiilha. tiriha
,9011 qiritlha seniente de itlhame, hoje, rlêgo ta tirattdo itlhanie,
tté, a niandioca. E o ohjetiijo da gente é fazer as casa,.foiniar
a aldeia da get~te c..) qire aonde eir e Si chageva, eir conto
caciqire era discrimitlado pelas próprias lideratisa.~,por-qire
ticis morava deritro da cidade. O objetii~oda gctite era
jirociwar e niattter. oude nós titiha o direito da Kettte (José
"

Roberto de Azevedo, Bel, Três Rios, agosto de 2004. Acervo


GT Indígena. parênteses meus).

Um mês após os índios plantarem suas roças, a usina Japungu enviou uni trator e

trabalhadores para plantar cana-de-açúcar, destruindo os cultivos indígenas. Este fato

provocou a apreensão, por parte dos índios, de três veículos (o trator, uma saveiro e um

caminhão) da empresa que acompanhavam aquela'aqão e o inicio de um acampamento nas

terras retomadas. índios de Jaraguá, Vila Monte-Mór, Marcação, Nova Brasília, Lagoa

Grande, Forte e Jacaré de São Domingos revezavam-se debaixo:das barracas de lona e


I

palha de cana, enquanto as lideranças participavam de reuniões na Administração Regional

l2 Petrônio Machado. administrador da FLINAI em João Pessoa.


da FUNAI e no Ministério Público Federal em João Pessoa, viajando logo em seguida para

Brasília, onde reivindicaram o término das ações do segundo grupo de trabalho, paralisadas

desde o inicio de 2002.

Quando da visita do procurador da república a área em conflito em agosto de 2003

os índios de Marcação, liderados por Bel e Nêgo Sí, externaram a intenção de saírem com

suas famílias da cidade e ocuparem aquela área com suas casas, onde poderiam exercer um

controle maior sobre o uso dos recursos naturais e a circulação de pessoas. A zoiia urbana

de Marcação é densamente povoada, espremida entre os canaviais e os quintais das casas

são muito próximos, não guardando as condições de relações entre os moradores que os

índios consideram ideais. Além disso, como já haviam manifestado aos dois Grupos de

Trabalho da FUNAI não tinham interesse que a sede municipal ficasse dentro dos limites

da terra indígena, de modo que, a partir daquele momento estariam ocupando aqueles

terrenos vizinhos a cidade para a consolidação da aldeia Três Rios, marcando no plano

'espacial a distinção política entre o território indígena e o município, representante de uma


,'

estrutura de poder marcadamente não-indígena.


. .'

Além de tudo isso, Três Rios é um "local da memória", onde se processam

narrativas sobre a identidade indígena e marcos fisicos testemunham a resignificação da

etnicidade. Este é o caso da sapucaia, uma árvore centenária que existe no local-da antiga

aldeia de Três Rios. Ela é um marco da ocupação indígena e símbolo da resistência aos

usineiros, que já tentaram queimá-la, mas não conseguiram, pois ela resistiu àIs chamas.

Desde as primeiras vezes em que estive em Três Rios os índios fizeram questão de falar e

de mostrar a Sapucaia, protegida agora por uma cerca para evitar depredações.
As retomadas de terras nesta área não contaram com o apoio expressivo dos lideres

de outras aldeias, principalmente das vi7,inhas Rrejinho, Caniiirupim, Tramataia e Jacaré de

Cesar, quc estão dcntro da árca dcmarcada cm 1983. Os índios quc cstavam acainpados em

Tits Rios i.csscii~iliiii-setlc que alguiis caciclucs os ti-alava111dc roi.ina pcjoraiiva, laxaiido-

os de sem-terra, iiiinitnizando seus esforços e a manifestação pública que faziam da

identidade étnica. Em convcrsa com alguns íridios da Baía da Traição tanibcm pude

perceber que referiam-se aos habitantes de Monte-Mór e Marcação como falsos índios que

queriam apenas se aproveitar dos recursos trazidos pela FUNAI e pela FUNASA,

atualizando assim as retóricas da mistura enquanto estratégia de legitimação e

deslegitimação de grupos

Durante o ano de 2004, alguns fatos vieram modificar um pouco a situação na área.

Em fevereiro, o cacique Vado falece devido a complicações de uma cirurgia na coluna; em


L

abril, é eleito um novo cacique para a Vila Monte-Mór, depois de tumultuado processo

decisivo onde cinco candidatos são lançados para ser escolhido um através de
,'
voto secreto.

!Jnla prática muito diferente daquela realizada até então nas outras aldeias, onde a escolha

se dá por aclamação em reuniões onde a posição do grupo familiar conta mais do que o

voto individual. Tal forma de escolha 'do novo cacique foi criticada por muitos como uma

"eleição de branco" e não "de índio". O cacique eleito foi Dedé, presidente da Associação

Indígena de Monte-Mór e uma espécie de "segundo homem" de Vado. Essa forma de

escolha provocou a divisão da população de Monte-Mór em várias facções e a perda da sua

proeminência na "luta pela terra".

Ainda em maio, cansados de esperar pela publicação do relatório de identificação

da área, prometido para janeiro e depois para abril, os Potiguara das três a1deia.s resolvetn
ocupar a sede da FUNAI em João Pessoa (segunda-feira, 17/05) e só sair de lá quando a

portaria de identificação da terra indígena fosse publicada, fato que aconteceu após cinco

dias de ocupação. Durante este tempo os iridios percorreram, a pé, vários locais da capital,

chamando a atenção da população e da imprensz. Visitaram a Universidade Federal da

Paraiba onde, interrnediados por Capitão, pediram apoio as associações de docentes,

funcionários e estudantes. Dirigiram-se a Assembléia Legislativa Estadual, onde foram

recebidos por uma comissão de deputados e participaram de uma audiência na sede da

Procuradoria da República, onde receberam a notícia de que o relatório de identificação e

delimitação das terras havia sido api-ovadopelo presidente da FLINAI.

No dia seguinte pela manhã (sexta-feira, 21/05), após receberem cópias da

publicação no Diário Oficial da União - DOU, os Potiguara começaram a se preparar para

voltar pra casa. Antes, porem reccberam vários órgãos de imprensa. Dançaram o toré

agitando as cópias do DOU nas mãos e deram depoimentos emocionados. Pouco antes do

meio-dia, dois ônibus cheios saíram da sede da FUNA1 em direção a Rio Tinto,
,'
onde u m

grupo de índios de Marcação já os esperava. , .

Por volta das 13:00 h um ônibus trazendo índios da Baía da Traição chegou ao

Fórum de Rio Tinto, encontrando-se com os dois ônibus de João Pessoa e os I'otiguara que

já estavam esperando. Reunidos somaram cerca de 200 pessoas, que saíram em-marcha

pelas ruas de Rio Tinto, exibindo as cópias do Diário Oficial, passando em frente a antiga

fábrica de tecidos, a prefeitura e a igreja, tocando tambores e cantando o toi-é. Logo,

dirigiram-se para a Vila Monte-Mór, três quilômetros ladeira acima.


Na entrada da Vila os fogos estouravam chamando as pessoas para engrossarem a

marcha. As crianças corriam agitadas de um lado para o outro. A primeira parada foi de

frcntc a ccntcnária igrcja dc Nossa Scnl~orados Prazcrcs, marco do antigo aldcamento dc

Monte-Mór e da relação entre o grupo indígena e as terras que habitam. Lá, já esperava a

marcha um grupo de indios de Jaraguá. Um foré foi realizado em frente à igreja Na imensa

roda os índios dançaram e cantaram. Ajoelhados, fizeram um momento de silêncio e

depois, ~nitial,cacique de Jaraguá coriduziu unia emocionada oração a Tupã, São Migucl e

Nossa Senhora dos Prazeres.

Da igreja, seguiram para o terreiro de toré, onde construíram uma 0c.a para os

rituais, reuniões e aulas da escola indígena. Neste local foi velado o corpo do cacique

Valdemar (Vado), que faleceu no começo do ano. 'Lá, os líderes Potiguara discursaram e

homenagearam Vado e sua família. Durante os cinco dias de ocupação da FUNAI: em João

Pessoa Dona Lia, viúva de Vado, junto com sua mãe, Dona 12nt6nisn, suas filhas e netas

estiveram presentes em todos os momentos de mobilização. 'I

Uma caminhada ainda mais árdua esperava pelos indios que se dirigiram depois

para Marcação (a 7 KM da Vila Monte-Mór). Após de quase uma hora de marcha, homens,

mulheres, velhos e crianças chegaram a aldeia Três Rios. Mais fogos e bastante comida

recepcionaram os caminhantes: água de coco para matar a sede, macaxeira cozida, feijão

verde, carne de charque, caranguejos e picado de bode para refazer as enersias. índios de

Nova Brasília e Lagoa Grande já estavam esperando pelos que vinham em caminhada.

Novo toré foi realizado na chegada dos índios a Três Rios. Depois, as pessoas se

dispersaram para finalmente almoçar, quando já passavas das 16:OO h. Antes que as
festividades fossem encerradas, todos se reuniram mais uma vez. Agora, embaixo da oca

da aldeia, que serve para as reuniões comunitárias. Novos discursos foram proferidos,

lembrando que o resultado favorávcl dcsta mobillzação só foi possível graças a união de

todos, e que este era apenas o primeiro passo no processo de regularização fundiária das

terras indígenas. Antes que escurecesse por coinpleto, foi feita urna leitura dos principais

pontos do relatório de identificação. Ao anoitecer, algumas pessoas ainda estavam

dançando o toré, mas a maioria já se dirigia a suas casas, principalmente aqucles que

passaram a semana toda em João Pessoa.

Juntamente a estes fatos consolidou-se a posição dos índios nas terras de Três Rios

e o crescimento da aldeia com a construção de casas e a ocupação com roçados dos talhões

de cana adjacentes a área retomada. Da mesma forma, os conflitos coiií os usineiros se

intensificaram: no mês de julho, ações de reintegração de posse movidas pela usina

Japungu ameaçaram despejar os Potiguara de Três Rios e do Arrepia, com o concurso de

agentes da policia federal e reforço da polícia militar. Seguiu-se um peri9o de muita

tensão, solucionado apenas pela interrnediação do Ministério Público que selou.,iim acordo

entre as partes, onde os indios concordaram, não sem relutância, em ceder uma. parte das

terras ocupadas em 2000, nas proximidades de Três Rios. O que ainda está para ser feito no

inicio de 2005

As mudanças provocadas pelas retomadas de terras repercutiram profundamente no

arranjo das forças políticas em Marcação. Nas úkimas eleições, ocorridas em outubro de

2004, foram eleitos cinco vereadores indígenas além do prefeito e da vice-prefeita,

respectivamente, Paulo Sérgio e íris. Paulo Sérgio já era vereador em Marcação e

juntamente com Íris apoiaram as ações dos índios que retomaram Três !Rios. Em
contrapartida, Bel declarou publicarnente o seu voto para Paulo Sérgio, invertendo a

tendência política do município, cujo prefeito anterior contava com o apoio das usinas.

Essa situação provocou uma cisão entre as lideranças das aldeias que se

polarizaram em torno das duas candidaturas: a de Paulo Sérgio e íris de um lado e a de

Dona Célia e Zé da Estiva dc outro. Em r-epresália, alguns caciqucs chegaram a propor que

Bel deixasse de representar perante a FUNAI e a FUNASA os interesses dos índios da

cidade, uma vez que ele agora era lider de uma aldeia própria. Contudo, em uma reunião

essa proposta não foi accita permanecendo Bel como cacique de Três Rios e Marcação.

3.6. h GUISA DE ANAl,lS13

Se a movimentação pela demarcação da Terra Indígena Potiguara d ~Monte-Mor


:

iniciou-se em estreita associação com a chamada "luta pela terra" de outras coiriunidades

camponesas do estado, revelando o enfrentamento com o avanço do capital agroindustrial e

especulativo sobre as antigas áreas de uso comum e de concessões patronais ela fo,i

progressivamente transformando-se numa emergência étnica, articulando novos sentidos e

práticas a velhas memórias subsumidas no medo e na repressão, num processo de

reformulação do campo de forças políticas existentes. O grande mote dessas lutas foi a

degradação ambienta1 e a privação das áreas de trabalho realizadas pelas usinas.

"I'I.~gente sobreviver ay~riatttes era da pesca, mas


agora ttão tem mais pesca yorqlre a calda da Usirra mato11
tzrdo c. tamo tettdo qrre sobreviver do cah~ãp,qrre no.^ sahemo
q~re6 crime nnrhietttal. Mas O yrre a gei~tei ~ êaqrri são í~ldio
com 12, 13 .fioase qrratrdo vai na porta das rrsi~rsllão tem
trabalho porq~reé itldio. 7èm ate .família catatldo lixo para
comê. Pra plantar roça a gente tem que invadir o terreno qlre
a [l.dna diz que é dela, e o itrdio tem qrre .ficar Irm a110
es/)crat~dopra roça da, e t ~ q ~ r ai.s.so
~ ~ t ele
o e.s/)era coltt .fi)nte.
ient íttdio aqlri que sai com dois saco de carslio as seis horas
da ntatlhã e chega dez horas da ttoite e para /tão chegar ent
casa sent rtada ele troca por qlralqtrer coisa 170 nteio do
cnntinlw). trnt ,saco de.farittha, carne. milho, 17ii0, .wj I)rn ler o
clve conter. " (Vado, Vila Monte-Mór, agosto de 2002)

Ao longo desse processo. os contatos com os índios da Daia da Traição e Jacaré de

São Domingos, em relações ambíguas e múltiplas, permitiu vislumbrar-se uma perspectiva

de resolução para o conflito que passava justamente pelo alinhamento étnico dos

moradores da região. Destarte, esta tomada de posição redirecionou os investimentos

políticos e os horizontes de ação para um outro conjunto de agências formado pela FUNAI,

FUNASA, Ministério Público Federal, Conselho Estadual de Direitos I'iumanos e

Universidade Federal da Paraíba que modificaram a correlação de forças existente no

campo

A idéia e o sentido da "comunidade" ou do "grupo", se constrói, então,.através da

mobilização e das estratégias e conceitos trazidos a baila nesta. No caso dos índios de

Monte-Mór, a qualificação étnica de suas reivindicações territoriais, a realização do toré e

a incorporação de suas comunidades ao campo de ação das políticas indigenistas,

contnbuiram no sentido de delimitar as fronteiras sociais do grupo em relação aos demais

atores presentes no campo.

Além disso, o próprio processo de organização em defesa de uma ameaça comum

promovem a identificação das pessoas como fazendo parte de um niesmo grupo. As

relações de parentesco e as memórias sobre o passado tomam novos sentidos no decorrer


do processo mobilizatóno. Geralmente, uma tioqão de direitos e acionada pelos sujeitos e a

sua modificação repcrcutc na modificação do perfil do grupo. Assiin, iião sc lula apeiias

pela terra no sentido de um recurso econômico básico para a subsistência, mas como o

próprio clcinciito consiituidor da idciiiidadc do grupo, pois no caso desse tipo de

mobilização étnica "A rela@io etltre a /)es.soa e o grrpo d/tiico seria niediuda /]elo

/)cidc.ria retnelet. tião scj a rrtna rz.cirperaqiío mais j)rimht.ia


íc.rril(jrioe a sira re/~re,setrtír~o

da memória, mas também as imageta mais expressivas da aufocíonia.. " (01ivei ra, 2004,

p.33. grifos no original).

Então, não é qualquer terra que serve para os Potigiara, como seria de pensar para

os grupos camponeses que são clientes da reforma agrária, mas essa terra específica da

qual falam suas memórias e os documentos históricos compulsados ao longo dos processos

de demarcação e que, uma vez nas mãos dos índios, são apropriados como importantes

atestados de suas pretensões. A relação com os recursos naturais passa por- diferentes níveis

e o sentimento de pertencimento ao lugar é erigido como marco fündamental dessa relação.

Porque, como disse Nego Si, "Aqiri é área itldigetia, mas a getite t~60lit.ihcr como

frahalhar, como a getite hoje e,síamos ~rabalhatido.Nós tião ti~ihaa agric~rl~trrn


que n

gente /amos tetrdo hoje. A lavo~rragire a getlle tamo tetldo hoje. lodo mrttldo chega aí e i@.

(Marcação, agosto de 2004. acervo do GT Indígena). Pelz sua fala podemos perceber que

valores são atribuídos como fundamentais a organização étnica dos Potiguara de Monte-

Mór: de um lado o coritrole dos meios de produção como oposição a dependência

econômica aos latifundiários, do outro a qualificação do temtório como algo indissociável

da existência do grupo.
Por fim, a rcorgani7~çãodas iiistâncias de poder coloca novas pcssibilidades de

nçiio, pois junto coin a ctiiicidadc vêiii iiiiiii csirii~urade autoridades e postos de mando que

são reforçados pclo cnglobamcnto da situação dcntro de uma política de indianidade

piuiiiovida pclo órgão iiidigciiista olicial c por scus corolái.ios voltados para a assistSricia i

saúde e educação. As disputas em torno do cargo de cacique, uma função até então

inexistente, são mostras dessas redefinições do campo político. O próprio campo da

indianidade se vê reformulado pela entrada destes atores. reivindicando o mesmo status

dos índios das aldeias já atendidas na Raia da Traição. As manipulações das categorizações

étnicas se incrementam ao recolocar em jogo as retóricas da mistura e tentativas de

deslegitimação dos grupos reivindicantes a um lugar nas políticas assistenciais.

Desse modo. podemos afirmar que uma terceira situação histórica vem se

construindo nas últimas décadas e é marcada pela expansão do campo de ação indigenista,

como resultado das mobilizações dos próprios índios que querem ser incorporados nele. A

luta pela demarcação das terras, desde a década de 1970, redimensiona as posições e os 4.-

horizontes políticos dos vários segmentos que habitam a área em questão, modificando os

sentidos das fronteiras étnicas e o quadro dos enfientamentos políticos.

As mudanças provocadas nas últimas duas décadas pela multiplicação das agências

e dos atores sociais que circulam no cainpo social Potiguara constituem unia outra'marca

da atual situação histórica. Transformações do quadro econômico com a presença das

usinas de cana e o aumento do fluxo turístico e a concorrência na ação indigenista que

missionários e atores sociais ligados a Universidade Federal da Paraiba provocam

redimensionam as expectativas e projetos de ação dos índios.


O campo de relações sociais agora experimetita a participação de novos atores e

agências vinculados ao nascente niovitnento indigenista; setores da igreja católica

caracterizados pelo cnvolvimento com a luta pela reforma agrária, como o CIMI e a CPT, e

professores c futiçiotiários da Uiiivcisidudc J7cdci-alda I'araiba, que fornecetil as coildiçõcs

necessárias para que os índios possam atua: com inaior desenvoltura aletn dos limites do

poder tutelar estabelecido pela FUNAI.

O campo de ação indigenista oficial também se modificou, com a FUNAl tendo que

dividir espaço com o Ministério Público Federal, o Conselho Estadual de Direitos

Humanos, a Universidade Federal da Paraiba, a Fundação Nacional de Saúde, a Secretaria

Estadual de Educação, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e a Fundação de Ação

Comunitária, na implantação de projetos, políticas públicas e no campo de interação

política e controle de recursos.

Contudo, nestas últimas décadas o campo intersocietário não se restringiu apenas à

luta pela demarcação das terras e à expansão do campo indigenista, mas se compJexificou

ainda mais com o aumento da participação indígena na politica dos municípios que estão

inseridos em seu território com a eleição de vários vereadores para as duas câmaras

municipais de Baia da Traição de Marcação e de três prefeitos indígenas, dois para a Raia

da Traição, totalizando três mandatos consecutivos e um para Marcação, inic/aiido o

mandato neste ano de 2005.

Por fim, tais mudanças são apreendidas e manipuladas pelos indios em suas ações e

projetos de modo que a sua vida social ganha novos níveis de realiza~ãoe embates. É o

que podemos perceber, portanto, nos investimentos que fazem hoje na revitalização de
praticas culturais tidas como tradicionais, nas mais diversas arenas de interação: política,

tutelar, turística e territorial. O último capítulo desta dissertação toma como objeto esta

nova dimensão da vida dos Potiguara e que perpassa todas as situações históricas até aqui

descritas.
Ruínas da fhbrica de tecidos dos Lundgren na Vila Monte-Mór.
19 de junho de 2004. Foto: Estêvao Palitot.

Ruínas do posto médico na Vila Monte-Mór, exemplo do estilo arquitetônico dos


empreendimentos dos Lundhen. 19 de junho de 2004. Foto: Estêvão Palitot.
Casas geminadas na Regina 1. Residências de baixo padrão para os
empregados menos qualificados da Companhia. Segundo Panet (2002, p. 51)
muitas acomodavam prostitutas e são ainda hoje conhecidas como prostíbulos.
O valor dos aluguéis cobrados aos índios que residem aí é de R$ 35,OO.

Casas geminadas na Rua Nova. Maiores e com mais cômodos chegavam a abrigar
três ou quatro famílias. O valor dos aluguéis cobrados aos índios é de R$ 47,OO.
Nesta rua moram muitas das famílias indígenas que sustentam a identidade étnica
mais abertamente como o grupo familiar dos Cândidos, o cacique Vado, quando
vivo também residia aí. O terreiro de toré e a oca comiinitária ficam situados nlela
também. 11 de agosto de 2003. Foto: Estêvão Palitot.
Seu Doi.iiingos Bai-bosa, caciqiie Falecido de Jtici-iré

.
z - .

I)omingos. Salvatioi-, Mnrclia Indigciia.


'A' -.;y
':.
;,$*83 ('2. 3
, C - .
...,
-
.e , .
- O = Te
.
-PIE~.*
'
: , / e 2000. Foto: Fernatido Uai-bosa.

O 5
. , .-+:.. --- )3.*tDi*I i
?
.
.
9 .

..:i
.:\i
1
.

Seu Vicente, lider inicial da Iiita pela


demarcação d a Terra Indiçena Potiguara
, de Monte-Mór. .laragiia, açosto d e 2004.
Falo. Fernando narbosa

Visita d o Prociii-ador Diiciraii I'arcna à 'I-crra Indiçcna Potiguara d c Moi~tc-Mói-


Sentados da esqucrda para direita o procurador, Petrôi-iio Macliado (Adi~~ii~istl-ador
da FUNA1 e Seu Vado. Cacique da Vila Moiite-Mór. 1 1 d e Agosto d e 2003. Foto:
Mii-na Nóbrega.
O recurso ao Ministério
Público. Os Potiguara realizam
o torC durante audiência no
órgão.João Pessoa, Maio de
2004. Foto: Fernando Barbosa.

fndios de Jaraguá aguardando o


inicio do torC no pavilhão da
aldeia. '25 de Setembro de 2004.
Foto: Fernanda Ribeiro. . .
, '

Mulheres Potiguara da Vila Monte-


M6r observam o toré no terreiro da
casa de Seu João Cândido. 11 de
agosto de 2003.
Foto: Estêvão Palitot.
Sandro e I,uis, tocadores dos bombos. preparando-se
para o torC no terreiro da casa de Seu .leão Câtid'ido.
Vila Monte-Mór. 11 de agosto de 2003. Foto:
Estêvão Palitot.

O r a ç a o inicial do toié.
Terreiro da casa de Seu João
Cândido. Vila Monte-Mór. f
I
1 1 de agosto de 2003. !

Foto: Estêvão Palitot.

Toré na oca da Vila Monte-


Mór. Agosto de 2004. Foto:
Mima Nóbrega.
Oca da Vila Monte-Mór. I

Pólo Base de Saúde do


Distrito Sanitário Especial
Indígena da FUNASA.
Além de promover a
assistência medica tia
comunidade é importante
atestado oficial tia
existência de índios lia
área urbana da Vila
Monte-Mór. No canto
direito, o cacique Dedé.
19 de junho de 2004. Foto:
Estêvão Palitoi.

Dona Lia e Dona Antônia, viúva e


sogra do cacique Vado. Vila Monte-
Mor. 26 de setembro de 2004. Foto:
Estêvão Palitot.
~niii~xx!,ciiciclt~cdc .Ia1
Vila ~o~iíc-h,Oi- 26
sclci~ibio de 2004.
1:criiaiida I<ilic.ii o
I

Ao lado, José Robei-to de Azevedo


Silva (Rel), caciqiie de Mai-cação/l'iès
Iiios. Vila Moiitc-M6i 2 0 dc sctciiil~i-o
de 2004. Foto: Feriiaiida Ribcii-o

Abaixò, Josesi Soai-cs, N ~ Si, ~ O


I - de
.seginlu'o />es.soli do ccrc~iqr~c~
MarcaçãoITrês Rios ~ $ i s a ~ i < i .
Agosto de 2004.
Foto: Mii-iia Nóbi-ega. I,

Acitiia, Jose Maxiiiio, pajé da altfeia


'Ti-ês liios. Jaraçiiá, 25 de seieiiibiu clc
2004. Foto: I'ei-iiaiida liil~cir-o

I
Ao lado, José Viaiia dos Santos
(Dedé), presidente da associação
coinunitária e caciqiic daI Vila Monle-
I
Mór. Jai-agiia. 25 de setenibi-o dc 2004.
Foto: Feriiaiida Ribcii-o
I
Seu Antonio Cândido,
nasceu em Jacaré de são
Domingos, morou em
Gnipiuna e veio morar na
Vila Monte-Mór para cortar
madeira para a Companhia.
Líder de um importante
grupo familiar e guardião
da memória sobre vários
acontecimentos.
Vila Monte-Mór, agosto de
2004. Foto: Mirna Nóbrega.

Cartaz de curso promovido pela UFPB para os índios


de Monte-Mór. Arte: Fernando Barbosa.

Seu Vicente Espíndola e Dona '

Doralice, ele guardiâo da


memória sobre os acontecl.mentos
que envofveram a criac,ão da
Fábrica de Tecidos Rio Tinto.
Regina 1. Agosto de 2004. Foto:
Mirna Nóbrega.
Entrada da cidade Marcação. ., d
De frente para a aldeia Três
Rios. Março de 2004.
Foto: Gretha Viana.

Casa de palha de Dona Zita ria


aldeia Três Rios. Março de
. 2004. Foto: Gretha Viana.

í
u

Conflito em usinagera
tensáo com indígenas
o cirini:FS i11

Nota no Jornal da Paraíba de 07 de


setembro de 2004 sobre o conflito
envolvendo os índios de Marcação e a
Usina Japungu.

Os indins prolestarairi (1 apicericJe-


ram carros e tralci-is rrn Ivlai-cacau
' I

centenária no local da antiga


aldeia de Tres Rios. hlarc6 da
ocupação indígena e sifiibolb da
I
resistência aos usineiro'c,, que já
tentaram queimá-la, inas :' não
t

conseguiram, .pois ela risist/u as


chamas. Agosto de 2084. Foto:
r
Mirna Nóbrega.

Degradação ambiental. coqueiros


morrendo em antigo /sítio em
Brejinho de Cima )onde o
fazendeiro Murilo Parfiso vem
plantando cana. A cada colheita,
quando a cana 6 clueimada as
mangueiras e os coqueirbs sofrem
, com o fogo. Os índios! planejam
uma ação para impedir a hestruiçãio
desta fonte de recursosr comuns.
Dezembro de 2004. Foto: Lusival
Barcelos. II

li
I,
Bel e Z6 Máximo exibem org~lhosos
a produção dos acjueiros , anões
plantados pelos índios na primeiia
área retomada em 1999. ~ e z e k b r ode
2004. Fote: Lusival Barcelos.
:jl
Ocupação da sede da
FUNAI em João
Pessoa. Índios dançam
o toré em frente a
Assembléia Legislativa.
20 de maio de 2004.
Foto: Estêvão Piilitot.

Ocupação da sede da
FITNAI em João Pessoa.
índios são recebidos por
comissão de deputados na
Assembléia Legislativa, ?
recebendo cobertura da
imprensa. 19 de maio de
2004.
Foto: Estêvão Palitot.
Ocupação da sede da FüNAI em João Pessoa. índios marcham
pelas ruas da cidade chamando a atenção da população para a sua
mobilização. 20 de maio de 2004. Foto: Estêvão Palitot.

Ocupação da sede da FüNAI em João Pessoa. fndios são


recebidos em audiência no Ministério Público. 20 de maio de
2004. Foto: Estêvão Palitot.
Comemoração em Rio
Tinto. jndios marcham na
frente da fábrica desat ivada
da CTRT e exibem cópias
do Diário Oficial onde está
publicada a idenitificação
da Terra Indígena Potiguara
de Monte-Mór.
21 de maio de 2004.
Foto: Estêvão Palitot.

Comemoraçao na Vila Monte-Mór. Potiguara


dançam o toré na frente da Igreja de Nossa
Senhora dos Prazeres.
2 1 de maio de 2004. Foto: Estêvão Palitot.

Comemoração na Vila Monte-


Mór. Aníbal comanda oração
em agradecimento a
identificação da Terra Indígena
na frente da Igreja de Nossa
Senhora dos Prazeres.
2 1 de maio de 2004.
Foto: Estêvão Palitot.
Comemoração na Vila Monte-
Mór. Caboquinho discursa
ressaltando a identificação da
Terra Indígena na frente da
Igreja de Nossa Senhora dos
Prazeres.
21 de maio de 2004.
Foto: Estêvão Palitot.

. t

Comemoração na !vila Monte-Mór. Líderes Potiguara discursam na Oca


i
destacando a nece sidade da união do povo indígena para conseguir a
demarcacação da Tetra Indígena. 21 de maio de 2004. Foto: Estêvão Palitot.

Potiguara bloqueiam
estrada lia frente de
Marcação em protesto
contisaordem judicial de
reintegração de posse.
Julho de 2004. Foto:
Estêvão Palitot.
Mapa da Terra Indigcna Jacaré de São Doiniilgos, identificada coin 4.500 ha. ei1.i
1988. Note-se a exclusão de Nova Rrasilia, Marcação e Vila Monte-Mór. I'onle:
FUNAI, 1991, p.35.
Mapa indicando a localização de Rio Tinto, Vila Monte-Mór e Jaraguá. Retirado de
Panet, et al. 2002, p.45.
-
.. ,,.
I*,. I
R I 0 TINTO
F "'-' ' , r
. . d '

LEGEIdUA
1 , r I , I' I. :.. :..
2 - l~.'.:rJ~.l!%,
!I. 14 l..'l I I ,I . h , .! a.
{: - I , ~ ~ ~ J ~ ~I-,,. 't ]8 [>iq:!
-i~ ! * lI
.
4 . r.1 (.[Ii ;i (\,:I. ! < r . < I , , ' .
5 .<
fif,,ll;l.,l!' h 1 !.I ! i . ' i l , I : : I [
6 1 (-I .1: I...I..!\[:I.
j . i,:~i.ir"i i EC,I i ;i.n!..
8 . Ii!->FF'ITAI-
9 . [-!<(3o..>L.A Cip .'I1 h I J ~ .' l ' J A
10 -l?kC.;ll.l.! E?<l:t,) I < I I I 1 I[(!

, I

I#

I * <

'.
I
1

I I)
- ::r41
L-.
.?I 111111~1'
I

i - . ..

Mapa de Rio Tinto e Vila Monte-Mór apresentando a estrutura urbana criada pela
Companhia de Tecidos Rio Tinto. Adaptado de Panet, et al. 2002, p.46.
h,lapn iiidic.;tiitio:i I)i.cseiiça das iisiiias e de Arca das terras iiidigeiias destiiiada
iiiiia
i N I Iilaboi-adua pai.iii de dados dc caiiipo sobre adaptação de inapa
coiisiaiiic iio A I Ias das '1'ci.i.a~l iidigeiias clo Noi.dcsic. 1093. 13.4 1 .
CQ CQ
c 'C3
0
."i
13
z
O
E G +
g.go8
%
"acd -"o.
a o
0 C Q
e-

3:s:
z-0~4'0
Levantamento fundiário da terra indigena Potiguara de Monte-Mór. atente-se para o s
limites da proposta de 1995, excluindo a Vila Monte-Mór. FLJNAI.2001. '
1
~ I O V C CENTRAL
A / UFPB i

upi, or not tupi?


2
Artesanato. Produção de sinais diacríticos através da cultura material. Máscara

em coco de sapucaia produzida pelo pajé Zé Máximo. Três Rios. Agosto de 2004.

Foto: Mima Nóbrega.


T U P I OR N O T TUPI? A CULTURA POTIGUARA

EM QUESTÃO

"l'oi.s o-faio é que, em si mesnla, a dferertça


ctrltural não tem nenhnm valor. Tztdo depende
cie quem a es/a tema/izatldo, em relaqão a que
siluação hi.stúrica mut~dial".(MarshalISahlins,
1997, p. 45)

Retornemos agora ao ponto inicial desta dissertação, a busca por um mito de

origem enquanto uma estratégia de produção cultural com vistas a modificação da posiqã~

gocial dos Potiguara no campo intersocietário. Neste capítulo apresento e discuto o


I'

processo dinâmico de geração de sentido e produção de conteúdos culturais que os índios


. .
. -
denomiriam de resgate c~tl/~tr.al
e que permitem a comunicação com os outros atores

sociais, ressaltando a singularidade étnica do grupo. O ponto de vista básico é de que os

Potiguara estão o tempo todo realizando releituras e novas proposituras sobre sua. cultura,

em conexão direta com os processos étnicos, políticos e sociais. A inifenção e

institucionalização das tradições através de vários movimentos, entre eles a escola. indígena

são a faceta mais atual de um processo que poderíamos chamar de intetts!fica~io c~rl~rrral

(Salisbury, 1984 apud Sahlins, 1997).


Nem todos os campos daquilo que numa leitura antropológica poderiamos chamar

de "cirl/irrayo/igrara" são envolvidos no processo de invenc;ão da tradição que reforça o

sentimento étnico. A festa de São Miguel e um dos exemplos de que nem todas as

dimensões da sua vida social são exibidas como indígenas. As comemoi-ações ein

tioiiicriagciri ao padrocii-o são vivitlas coirio uiiia rcsta católica, iião sctido acioiiiidas tia

produção dos sinais diacríticos da identidade étnica, apesar de possuírein forte ligação com

s fazem os Potiguara sentir-se corno grupo. A divisão da festa em duas


os e ~ e m e n t ~que

localidades - Vila São Miguel e São Francisco -, a disputa pela posse da imagem do santo

e pelos recursos advindos das contribuições das aldeias ajuda a diluir os significados

étnicos da festa. Além disso, a atuação de missionários ligados ao movimento Carismático

vein tiansformando rapidamente as celebrações tradicionais do catolicismo Potiguara,

esvaziando-as completamente dos sinais diacríticos da etnicidade tornado-as celebrações

meramente cristãs. Vale destacar que uma parcela significativa dos Potiguara são afiliados

a igrejas evangélicas1 e não sustentam sua identidade étnica na devoção a.os santos
I

padroeiros. Neste trabalho, fùrto-me, então, a uma análise mais demorada dessas
,'
festas,

deixando para o leitor a referência ao trabalho de Vieira (2001, p. 101-1 14), onde se tem

uma descrição das mesmas e de seus aspectos principais. Concentro-nie, portanto. no

processo de revitalização cultural vivido pelos Potiguara e que, pelo menos nos Últimos

anos, não tem envolvido as celebrações católicas em homenagem a São ~ i g u e l ~ .

O multifacetado processo de valorização dos "traços culturais indígenas", ou

resgate como alguns índios falam, é tematizado neste capítulo como parte essencial das

mudanças por que passa o campo intersocietário em que os Potiguara vivem, as


I
Ein outro traballio. Vicira (1999) abordou as posturas dos índios c\laiigclicos coiii rclação à iixinifcstação
da cinicidadc Potiguara.
Por outro lado. os índios das aldcias Monte-Mór. Três Rios c Jaraguá v&ii investindo na fesk de:C :!::'!
Senliora dos Prazeres na igrcja da Vila Monle-Mór como um momento privilegiado dc csibição da identidade
dtnica. Abstenho-me de analisar esta festa neste traballio poic n;So pude acompanliar a sua rcalimção.
transformações políticas e econôinicas quc envolvem as aldeias indígenas reverberam no

universo simbólico do grupo. Não são apenas os recursos que estão em disputa, mas as

próprias concepçõcs de mundo quc movcrn os intcgrantcs dos scgmentos indígenas em

interação. O que nos interessa, portanto, é o processo de ohje/!fica@ ciilíi~~~al

representado pela demarcação consciente de iim corpus de práticas e saberes que

especifiquem a sua individualidade étnica enquanto estratégias de interação social.

Se "o termo ohjeí~ficaçãocitlí~tral refere-se a incorporação inlagiriati\)a de

realidades httmarias em termos de Irm íii.sctirso íeórico haseadu r l o co~iceiíode ctiltirra"

(Handler, 1984. p. 56 tradução minha) os Potiguara agem do mesmo modo que as formas

clássicas de produção do conhecimento ocidental, identificando através do isolamento e da

nominação de itens e traços, um conjunto específico que denominam de nossa culíttra.

Este conjunto é, então, tratado como um objeto a ser cuidado, cultivado e exibido com a

finalidade de atestar a diferenciação do grupo frente aos outros atores sociais.

I*

Grunewald (1997, 200 1) e Barbosa (2003) trabalhando com processos de invenção

das tradições e intensificação cultural em contextos étnicos indigenas contemporâneos,

revelam duas dimensões fundamentais onde estes esforços se concentram. A primeira diz

respeito as arenas de interação social desses grupos com as agências e atores "externos",

com "os outro^'^, onde a representação da cultura assume importante papel na delimitação

dos grupos e no acesso aos recursos carreados nestas situações. Estas arenas podem ser

turísticas, tutelares, religiosas ou político-partidárias. A segunda dimensão é derivada

destas relações e se apresenta como uma disputa "interna" pelo monopólio da autenticidade

das tradições que são exibidas, alinhando cisões faccionais a perspectivas culturais

distintas. Nossa percepção do processo de intensificação cultural entre os Potiguara


caminha no sentido de ilustrar estes dois movimentos para fora e para dentro e como,

através deles os diversos segmentos iiidigcnas se refazem no decorrer destas dinâmicas.

Os aspectos ressaltados, portanto, em nossa análise são o ritual do toré, o "resgate"

da língua tupi e a ênfase na educação escolar indígena diferenciada O dia do íridio é um

momento chave para compreeiidcrmos cstas dinâmicas, pois associa, exatamcritc numa

situação de' contato com os não-índios, os elementos de interdependência que são

metaforizados pelos rituais difereticiadores e, na disputa pela primazia de representar a

face pública do grupo indígena, as divisões internas e alinhamentos faccionais se

evidenciam promovendo distintas perspectivas culturais.

'I

"Unta crr//trr-a es/á bem ntorta qt~ando a


defendem em vez de itti)etr/á-Ia."(Pad Veyne, ,

1983).

O toré é o ritual mais característico dos povos indígenas do Nordeste (Gninewald,

2004) e suas origens são de difícil localização histórica, sendo geralmente aceito como

produto das interações entre os diversos sistemas xamânicos nativos e as estratigias de

catequese católica levadas adiante nos aldeamentos coloniais (cf Nascimento, 1994). Nas

ultimas décadas, o toré foi transfigurado em performance paradigmática da etnicidade

pelos grupos indígenas da região.


Na Paraiba, o toré pode ser encontrado, enquanto prática cultural, em duas regiões:

no litoral sul, como um ritual religioso rnediúriico referenciado ao uso da planta jurerna e à

história dos antigos aldeamentos de Alharidra e Conde (cf Vandezandc, 1975;

Albuquerque, 2003); e rio litoral riorte, corno expressão da identidade étnica dos indios

Potiguara.

Em trabalho anterior (Barbosa Jr. e Palitot, 2004) descrevemos o toré Potiguara em

detalhes, portanto, apresentaremos aqui apenas uma versão resumida de nossa

interpretação acerca do ritual. Originalmente, o toré seria uma prática ancestral de contato

com os antepassados e os seres espirituais protetores da natureza, uma forma de

homenagear os santos padroeiros, a união e a alegria dos índios. O toré representa aquilo

de mais precioso na cultura potiguaia c os (3Qhoco.vcio Slfio scriam os ri~aiscapacitados na

sua realização. Já em Monte-Mór o toré seria uma prática proibida desde os "7ern/)arda

Amorum" pela Companhia Rio Tinto, por isso relegada ao esquecimento.

O primeiro registro do toi-e entre os Potibwara data de 1938, quando da passagem

pela Paraiba da Mis,s& de l~e,sy~r~.sc~.s


I;olc/irica.s, organizada por Mário de Andrade

(Carlini, 1994). Nas imagens gravadas .pela Missão o toré aparece sendo executado

juntamente com o coco pelos índios de São Francisco, em roupas comuns e ao som de

bombos, caixa e gaita. Durante muitos anos o toré esteve desarticulado entre os índios,

sendo apenas apresentado em datas oficiais como uma brincadeira folclórica. Foi retomado

no período de luta pela demarcação da Terra Indígena Potiguara entre os anos de 1978 e

1983, em função dos contatos com o movimento indígena (Moonen & Maia, 1992). Ao

que tudo indica é nesse período que é incrementado pelo uso de roupas de palha e adornos
de penas que passam a constituir o traje ou //.ajo, utili7~dohoje em dia nos principais

momentos de ação política.

Alualnieiile, o 101-cé i-ealizado ao sorii de dois boinbos (zabuinbas) - urii de soiii

mais grave e o outro mais agudo - ganzá, inaracás e uma gaita (flauta reta com quatro

fiiros). Os instrumentistas e os puxadores das músicas colocam-se ao centro do circulo,

envoltos por um círculo composto pelas crianças e de outro ainda maior pelos adultos. No

espaço entre os dois círculos posiciona-se o cacique geral, numa atitude de observação e

guarda. Os pajés e os caciques das aldeias ora posicionam-se no círculo maior, ora

evoluem junto com o cacique entre os círculos. Os maracás são portados por várias

pessoas, independente do sexo e da idade.

A sonoridade e a originalidade da música é dada pelo toque da gaita que confere

leveza e harmonia a base percussiva e orienta a entonação das músicas. Aperías Seu José

Bitu, sabe executar as peças musicais na gaita. Existem sensíveis diferenças efítre o toré

executado ao som da gaita e aquele que é feito apenas ao som dos bombos e das' vozes

nuas, como o que é realizado pelos íridios de Monte-Mór.

Assim que a roda do toré é formada, e antes que qualquer música seja iniciada,

todos se ajoelham e em silêncio fazem suas orações, entregando-se á proteção de Deus e

dos seus antepassados. Essas orações devem ser feitas em silêncio, podendo ser um Pai-

Nosso, uma Ave Maria, ou simplesmente uma concentração do pensamento em alguma

idéia ou pessoa. Este momento dura em torno de um minuto e finda-se quando o cacique

sacode o seu maracá e os zabun~bcirosrufam nos bombos.


A coreografia da dança segue alguns passos básicos. Girando sempre em sentido

anti-horário, ou no dizer dos índios parc~as direitas cada pessoa vira-se para um seu

vizinlio e, fazendo uma flexão com o trorico, o cumprimenta, voltando-sc imediatamente

para o outro lado e cumprimentando o outro vizinho da mesma forma, e dai repetindo o

movimento. Algumas alterações nesse passo são feitas quando num ritmo de marcha

executada pela gaita, sem acompanhamento de vozes, caminham em fila, as vezes dando

saltinhos levantando o pé que vai a frente, as vezes de forma mais lenta e compassada.

sempre obedecendo ao ritmo imposto pelo instrumento de sopro. Nessa cadência de

marcha são entoadas algumas músicas que se referem á Cahoquit~hada .Jrrt-emae ao Xei

dos ~ t ~ d i oOutras
s. vezes, essas mais raras, quando cantam "os caboclos lu t ~ omar-,

ce.cw-ndoa~.eia"modificam completamente o passo, voltando-se todos para o centro da

roda, dando rápidos pulinhos para a direita com o tronco curvado e os braços estendidos

imitam o movimento de quem está trabalhando peneirando a areia da praia em busca de

mariscos. f

. .
Acompanhando as mobilizações pela demarcação das terras indígenas o toré se

difundiu de São Francisco para as outras aldeias e passa a ser exibido cada vez mais como

sinal diacntico da condição indígena dos Potiguara. No desenrolar desses acont~cimentos

surge também a produção de peças artesanais, como colares, pulseiras, saias de palha e

cocares, acompanhando a difusão do ritual. Então, sobre os significados religiosos e

Iúdicos, soma-se o de delimitador das fronteiras étnicas. Contudo, essa expansão do ritual

leva a atritos com grupos de índios de São Francisco que se consideram como os legítimos

guardiões da tradição, deslegitimando as iniciativas dos índios de outras aldeias como


deturpações do ritual, o que, em algumas situações extremas, chega a desqualificar a

própria condição de indígenas dos Iiabitaiites destas aldeias.

Nos Últimos anos, o toré passa a ser incorporado as iniciativas de instituição de uma

educação escolar indigena formal, através da qual se processa a objetificação de um

patrimônio cultural indígena a ser encampado nas ações dessa instituição como algo a ser

cultivado e transmitido de modo regular para as novas gerações.

As discussões sobre a educação escolar indígena chegam até os Potiguara através

de normatizações do Governo Federal, como resposta a pressões e propostas dos

movimentos indígena e iridigenista nacionais. Agências como a FUNAI, as secretarias de

educação estadual e municipais, a Universidade Federal da Paraíba e o Centro Federal de

Tecnologia - PB compõem o campo onde este processo vai se desenvolver, com o

oferecimento de cursos de capacitação, incentivo a criação de uma organização de

professores e a implantação das primeiras escolas indígenas oficialmente r/econhecidas,

formando-se a categoria dos professores indígenas. , -

.É no bojo destas dinâmicas que ganha terreno a discussão sobre as possibilidades

de se reabilitar o uso da língua tupi entre os índios. Muitas opiniões divergentes são

colocadas, uma vez que, pelo menos a 250 anos, os Potiguara são monolíngues em

português. Também especulou-se muito sobre qual variante da língua tupi seria ensinada,

pais a maior parte dos registros que se tem dela são das normatizações produzidas pelos

jesuítas; se seria certo chamar este processo de resgate, ou se o ensino dessa Iínpa não

terminaria sendo arbitrário e impositivo de uma visão dominante que não se satisfaz com a

falta de primitividade dos índios


Eiii tiicio n CSIC iur-1)illiãodc iiiccr-IC~S
foi Irazido iitc a I'araiba o profcsson dc iupi

antigo da Universidade dc São I'aulo, Eduardo Navarro, cm maio de 2000. A organização

Conselho Estadual dc Dcfcsa dos Diicitos da Mullicr Indigcria foi a r-csporisávcl pcla vinda

do professor e por fazê-lo circular entre os índios e nas agências que estavam envolvidas

com a construção do projeto de educação escolar indígena Alguns iridios ficaram muito

interessados'na possibilidade de tomar contato com aquela que teria sido a lingua materna

de seus ancestrais e o professor Eduardo Navarro recebeu apoio oficial do Governo do

Estado e da FUNAI para ministrar um curso de formação de moniiores bilíngues, que

serviriam como professores nas escolas atuando como multiplicadores do conhecimento

desta língua indígena. lndios de varias aldeias fizeram o curso que durou dois anos,

formando a primeira turma em 2002 Posteriormente, foram elaboradas e publicadas pelo

governo estadual algumas cartilhas em tupi para o uso nas escolas das aldeias

Certa vez. curioso sobre qual seria o efeito real deste curso sóbre os Pqtiguara e de

toda a discussão que se realiza então sobre resgate crrltrrral, aproveitei a oportunidade de

estar observando um grupo de discussão dedicado ao tema da cultura numa assembléia

indígena que foi realizada em novembro de 2002, e perguntei aos índios presentes o que

eles entendiam por cultura indígena, quais práticas e rituais eram significativos para eles e

se a língua tupi fazia parte de sua cultura. Como resposta, extemaram uma linha de

pensamento que se apoiava na cultura como um conjunto de traços que serviam para

demarcar a sua diferença em relação aos brancos: o toré, o artesanato e a língua tiipi como

um projeto de fùturo, no qual os seus filhos e netos poderiam ser hábeis no uso e

manipulação de palavras, frases e diálogos nesta língua de modo a dramatizarem para os


não-índios a sua individualidade. Ou scja, a cultura seria um conjunto de sinais diacríticos

res~ansávelpor estabelecer a diferença entre "nós" Potiguara e os "outros" não-potiguara.

Se no entendimento dos índios a cultura é objetiíicada enquanto os elementos

visibilizadores da fronteira étnica, vale agora, mostrar como a exibição desses traços

culturais se processa em um dos seus contextos privilegiados, as comemorações do dia do

índio e que dilemas são acarretados por estas situações.

Todos os anos no dia 19 de abril, dia do índio, os Potiguara costumam se reunir e

dançar o toré numa exibição pública e oficial para as agências de contato, a imprensa e

excursões de estudantes e turistas que afluem para a região. Nesse moment6, a fronteira

étnica é demarcada e atualizada para as agências oficiais com quem se relácionam. E

comum a presença de autoridades e uma arrecadação prévia de mantimentos com a FüNAI

e políticos da região.

A exibição do toré ocorre nesse dia como marca da tradição e da etnicidade

indígena e exibe, assim, a unidade e a especificidade dos Potiguara frente a sociedade

envolvente. Contudo, nem todos os anos isso acontece da mesma forma. Em 2002,

Caboquinho, o cacique geral recém-empossado, realizou uma festa do dia do índio na Vila

São Miçuel reunindo alguns grupos familiares, caciques das aldeias e certas agências;
enquanto Djalma, o cacique geral anterior, realizou outra festa na aldeia São Francisco,
reunindo outros grupos familiares, caciques das aldeias e outras agências. A alimentação

conseguida com a prefeitura e a FUNAI foi dividida entre os dois grupos, assim como a

atcrição da imprensa, dos tuiistas c das autoridades.

Já em 2003 o cacique geral absteve-se de realizar uma festa, bem corno de

participar da festa do dia do índio promovida por Djalma. Enquanto isso, os índios de

~ o n t e - M Ótentaram
; organizar uma festa ria entrada da área indígena, pedindo apoio a

Universidade Federal da Paraíba e a FUNAI, alegando que toda vez que participam da

festa em São Francisco suas reivindicações são minimizadas e deixadas de lado, e que seria

melhor fazer uma festa na Vila de Monte-Mór já que todos os carros e Ônibus que seguem

para a Baía da Traição têm que passar obrigatoriamente por lá. No entanto, como não

conseguiram efetivar este apoio compareceram a festa em São Francisco:

Esta divisão da festa revela a tensão existente entre os grupos faccionais e de

aldeias na disputa por recursos e poder simbólico, bem como as fissuras e linhas de tensão
,'

que marcaram o processo de substituição do cacique geral, ocorrido no segundo. semestre

de 2001. O cacique geral é a figura respoi~sávelpor realizar os contatos oficiais do povo

indígena com os interlocutores externos, dentro do esquema hierárquico da indianidade. E

o dia do índio é o momento mais emblemático dessa relação. A disputa em tomo do poder

de representar legitimamente os interesses do grupo nos contatos oficiais e de arkcadar e

distribuir os recursos captados externamente com seus partidários revela como as alianças

políticas se realizam dentro da área indígena e a sua relação com formas diferentes de se

perceber e exteriorizar a cultura indígena, embora dentro de um padrão comum de

significados e práticas, informados por um mesmo processo histórico.


A festa do dia do índio é o momento privilegiado para a construção das alianças

políticas, tanto externas como internas ao grupo, e tarr~bémo ?!etor de separação entre as

facções políticas e grupos de interesse. O que importa é que essa data não pode deixar de

ser festejada, principalmente como atualização das relações entre os Potiguara e a

sociedade mais geral, momento onde se diferenciam enquanto grupo étnico portador de

uma especificidade cultural e sujeitos políticos numa relação, que a depender do

interloc~tor'~ode
ser de dependência, clientelismo, patronagem, barganha ou oposição.

A seguir transcrevemos a festa do dia do índio realizada em 2004 como análise

situacional (Gluckman, 1.987), de modo a tornar claro a partir da narrativa etnográfica os

padrões de interdependência e as relações estabelecidas cm torno dessa comemoração tão

emblematica para os Potiguara.

Dia do índio - 19 de abril de 2004

Nesse dia saí de João Pessoa acompanhado pelos pesquisadores Lusival Baecellos,

Glebson Vieira e Mirna Nóbrega que também desenvolvem estudos entre os Potiguara,

uma verdadeira "expedição Nos dirigimos inicialmente ate Marcação

onde os índios estavam iniciando os preparativos para a festa ria área retomada em Três

Rios. Quando passamos por Monte-Mór demos carona para alguns índios que iain para a

festa em Marcação

3
Lusival é doutorando ein Educação na Universidade Federal do Rio Grandc do Norte e pesquisa os sisleiilas
religiosos e educacionais Polipara; Glcbson C professor dc antropologia na Univcrsidadc Estadiial do Rio
Grande do Norte e dcfcndcu dissertação dc mcstrado sobrc os Potiguara na Univcrsidadc Fcdcral dc PXu!!S:
Mirna, aluna de jornalismo e ciEncias sociais na UFPB, colega do GT lndígcna pesquisa as rclaçõcs de
gênero entre os Potiguara.
Adaílton, um dos índios qiic scguiu conoscc, logo comentou que sei1 irmão, Anibal,

cacique de Jaraguá, havia levado os índios desta aldeia para dançar o toré em Tramataia, na

festa organizada por Deda, cacique desta aldeia, e com patrocínio de D. Célia, catididata à

prefeita de Marcação. Não comparecendo por este motivo a festa promovida pelos índios

de Ma~cação.Também falou que saii-ia uin ônibus de Monte-Mor para Marcação, poréni,

as disputas pelo carço de cacique estariam interferindo na organização da comitiva, de

modo que poucos índios iriarn ate Três Rios. Falou que havia muito cacique para pouco

índio, desde o falecimento do cacique Vado, um mês antes.

Ao chegarmos em Três Rios, encontramos os caciques Bel (Marcação), Carioca

(Estiva Velha) e Oliveira (Nova Brasília) vestidos com camisas amarelas com seus nomes

e de suas aldeias estampados no peito. Estas camisas foram confeccionadas com o apoio do

deputado estadual Ariano Fernandes, e estavam sendo distribuídas por Carioca entre os

caciques das aldeias do mutiicípio de Marcação. Nas costas havia estampado o nome do

deputado. Carioca demorou-se pouco, pois ainda tinha que distribuir algumas
,'
dessas

camisas com os outros caciques. subiu na moto e foi para ?.ramataia. . .

Tramataia condensou os festejos "oficiais" do dia do índio em Marcação, contando

com o apoio da prefeitura. Enquanto Três Rios representava a "oposição", ao realizar a

festa numa área retomada a usina Japungii e sem o apoio da prefeitura. Em Tramataia

houve um campeonato de futebol durante o dia inteiro e a noite um show com bandas de

Este ano, praticamente cada aldeia resolveu realizar a sua própria festa do dia do

índio. descentralizando as atenções e os recursos que as agências oficiais estavam


destinando para esse dia. Três Rios, Tramataia, Camurupim, Forte, São Miguel, São

Francisco e Jacaré de César, realizaram comemoraç6es. Estas aldeias chegaram a

coiicentrar as representações de outras mais próximas ern suas festas, como foi o caso de

'I'rês Rios, com Monlc-MÓr e Nova Urasilia; 'I'rainataia com Jaraguá c Caniurupirn; São

Francisco com Galego, Tracoeira e Santa Rita, e Forte, com os índios da Baia da Traição.

Em Três Rios, a festa começou por volta das 10:OO e seguiu até as 19.00 horas

Embaixo da oca que foi construída para as atividades comunitárias foram montadas duas

mesas com artesanato (uma de Sandro, de Monte-Mór e outra de Pedro, professor de Nova

Brasilia) e uma com comidas típicas feitas de mandioca, fiutas e caranguejos. Essa mesa

era muito significativa dos primeiros resultados da retomada em Três Rios, onde alguns

produtos agricolas já estavam sendo produzidos e comercializados.

O grupo de teatro Fala Curumim, formado por crianças indígenas organizadas pelos

agentes pastorais do MAC - Movimento de Adolescentes e Crianças, sediado em João


'I

Pessoa e atuante em Marcação há alguns anos, encenou uma peça de teatro que falava dos

índios Potiguara, de seus conhecimentos (fitoterápicos, caça, pesca, agricultura), da

colonização portuguesa, das plantações de cana-de-açúcar e da luta pela terra.. Foi a

primeira vez em que assisti a encenação dessa peça, cujos atores-mirins são membros das

famílias que estão vivendo da agricultura em Três Rios. No decorrer do ano de 2004 ela foi

encenada pelas crianças do Grupo Fala Curumim, em duas outras situações: na assembléia

indígena realizada na Baia da Traição, no mês de maio e no encerramento de um curso

promovido pela WPB, na Vila Monte-Mór, em outubro.


Um almoço coniunilái-io foi pr-ovidericiado e Lena, esposa de 13el, estava

encarregada de distribuir a alimentação: mungunzá, arroz, feijoada, macarrão e salada. Ao

redor das poucas casas já construidas, muitos roçados de feijão, macaxeira e mandioca

brotavam seus mitos.

Os índios de Monte-Mór que foram até Marcação representavam dois dos grupos

que estavam em disputa pelo cargo de cacique: o de Dedé, presidente da associação e o de

Dona Lia, viúva de Vado. Chegaram até lá em transportes separados. D. Lia não

compareceu, mas pessoas que a apoiavam estavam lá e declaravam-se a seu favor. Muitas

das conversas que rolaram durante o dia faziam referência ao processo dt: preenchimento

do cargo de cacique. As pessoas discutiam sobre a falta de consenso em torno de nome de

pelo menos cinco candidatos e das tentativas fnistradas de se manter uma comissão de

lideranças, através de uma série de reuniões. Muitos argumentavam contra o modelo de

processo escolhido para a definição do novo cacique: uma eleição nos moldes tradicionais,
,
com voto secreto, uma e comissão eleitoral, presidida pelo cacique-geral e o chefe de posto

da FUNAI. Ao que parece, Dedé havia escolhido esta forfila dc processo, pois.fdava dela

como a melhor forma, com convicção.

Irmã Juvanete, uma freira vinculada ao CIMI, que trabalha junto aos Potiguara

chegou em Três Rios um pouco antes do alnloço. Ela mora no Forte e participou

ativamente das ações da retomada de Três Rios, organizando terços e a distribuição da

comida. Conversei com ela e fiquei sabendo que os índios do Forte estavam realizando

também uma comemoração na sua própria aldeia. Combinamos de irmos juntos para 0

Forte logo depois do almoço. Lusival e Glebson haviam seguido de carro para São

Francisco logo cedo, enquanto eu e Mirna ficamos em Marcação, combinamos de nos


reencontrarmos antes de virmos embora e o Forte seria um local estratégico, no meio do

caminho.

Antes de sairmos de Três Rios, conversamos ainda com Rel e Oliveira sobre nossas

futuras visitas para a realização de vídeos sobre a luta pela terra e o toré. Também

conversamos com alguinas pessoas i10 M A C (Nena e Aline) que nos fàlararn sobre a ,

atuação antiga do movimento na cidade e da existência de um filme chamado A Árvore de

Marcação, que narra a luta pela preservação de uma imensa Sapucaia que estava ameaçada

de ser derrubada pelos plantadores de cana. Esta árvore é hoje um símbolo da luta pelas

terras dos índios e quando estivemos na área da retomada pela primeira vez fomos

informados da sua existência e levados até ela. Znclusive, o cacique 'Bel já havia externado

mais de uma vez a intenção de realizar grandes torés embaixo dela para que nós os

registrássemos em vídeo.

Algumas pessoas com camisas do Partido dos Trabalhadores também estiveram


'I

presentes na festa de Três Rios, mas de forma muito rápida, evidenciando os investimentos

político partidários nas mobilizações indígenas, pois em outubro seriam realizadas as

eleições municipais, e os grupos políticós em Marcação já começavam a se polarizar em

torno de propostas e alianças.

Durante o almoço alguns índios pegaram os bombos e começaram a cantar cocos de

roda, quando foram prontamente interrompidos pelo cacique. No entanto, continuaram a

tocar e cantar, estimulados pela minha presença com o gravador. Repentinamente, seu

Antônio Cândido, da Vila Monte-Mór, interpôs-se no nosso meio, reclamando que aquele

não era o momento do coco-de-roda e sim do toré, que aquela era uma festa dos índios e
não de "brancos", que o coco não era tradiqão indígena e que se devia tocar toré o dia todo.

Jurandir e seu Francisco Batista, que estavam cantando com animação, argumentaram

dizendo que coco e ciranda também fuiam parte da cultura do indio, assim como o toré4.

Eles haviam crescido dentro das aldeias vendo e participando tanto de cocos e cirandas

como de torés. Seu Antonio, bastante irritado, asseguroti que se o coco de roda não parasse

ele pegaria a sua "tropa" (isto é, seus familiares, cerca de uma dezena de pessoas, todos

~rajndos)e voltaria para casa Com essa situação o coco encerrou-se e seu Antônio ainda

ficou um bom tempo falando sobre a impropriedade dessa brincadeira no dia do indio.

Infelizmente, não pude conversar com ele a respeit~,pois logo depois a irmã nos chamou

para irmos ao Forte. Fiquei apenas com as palavras de Jurandir e seu Francisco, que

afirmavam serem o coco e a ciranda hrirlcncleiras válidas nos festejos do dia do índio.

Nesse meio tempo, Adailton, pediu-me que ligasse o gravador e desfiou um

desabafo sobre o comportamento de seu irmão Aníbal, que estava abandonando os seus

parentes para participar da festa promovida pelo cacique Deda em Tramataia. Quando este
'I

mesmo cacique os havia desdenhado e chamado de sem-terra durante o período da

retomada de Três Rios, negando-lhes apoio e que fossem índios de verdade.

Esta negação ao reconhecimento dos índios de Monte-Mór e de suas mobilizações,

por parte de algumas lideranças das aldeias da Terra Indígena Poti~waratem urn peso

político e simbólico muito grande, e revela uma das dimensões das complexas teias

políticas locais. Reiteradamente, os índios de Marcação, Monte-Mór e Jaraguá reclamam

4 O coco e a ciranda são expressões da cultura popular da região, seus ritinos e letras são conhecidos de norte
a sul. variando pouco cm sua forma dc esccução e nas datas quc aconiccem, geraliiiente os rncscs de maio a
jullio. com maior intensidade nos fcstcjos juninos. O banho dc São João. a incia-~ioitcdc 23 para 24 dc junlio.
c o scu ritual mais tradicional. scja para os ii~dios.pcscadorcs ou coinunidadcs ncgras (cf. Ayala Clr. Ayala.
2000, p. 30-3 1).
que são maltratados e discriminados por seus "parentes", que deveriam apoiá-los na luta

contra os usineiros. Do outro lado, são constantes as afirmações de que os índios da

sesmaria de Monte-Mór já estariam completamente misturados aos brancos e por isso, não

teriam mais direito a terra e ao atendimento dispensado pela FUNAI e FUNASA.

Em meio a essas disputas encontramos a atuação dos órgãos indigenistas, das

prefeituras municipais e dos plantadores de cana que estimulam conflitos e dissensões

internas ao privilegiarem determinadas lideranças e aldeias. Os mesmos usineiros que

enfrentam conflitos com os índios de Monte-Mór, Jaraguá e Marcação arrendam terras e

compram cana a alguns índios de Tramataia, Brejinho, Jacaré de César e São Francisco. As

prefeituras locais, cujas redes de aliança e clientelismo por vezes atravessam as dissensões

indígenas em relação ao território também contribuem para o acirramento de posições e

disputas em torno da distribuição de recursos.

As fronteiras e as clivagens étnicas nesses casos se acentuam, certos grupos


I-.
negam

a etnicidade de outros, que buscam afirmá-la perante certos conjuntos de atores sociais.

Alguns índios da TI Potiguara recusam o status étnico dos seus vizinhos, que são apoiados

por outros índios - em especial pela numerosa família de Caboquinho, residente no 'Forte -

e legitimados pela presença da FUNAI e da FUNASA em suas áreas, bem como através da

participação nos encontros e treinamentos de professores e agentes de saúde e, no-recurso

constante ao Ministério Público e a Comissão de Direitos Humanos da UFPB.

Façamos uma pausa nesta reflexão e voltemos ao relato de nossa visita. Fomos de ,

táxi até o Forte, junto com a irmã, e lá encontramos os índios dançando o toré no pátio ao

lado do Posto Indígena. O pátio estava todo enfeitado e a oca que Mazinho, um artesão do
Forte, havia construido para vender seu artesanato estava aberta. O toré era puxado por Seu

Tonhô, de São Francisco, que tocava o bombo, e por três irmãs conhecidas como as

cararp~ejeiras:Zuleide, Ieda e ~ d i l e u z a ~ .

Uma ausência sentida na festa do Forte foi a de Seu Zé Bitú, índio de Cuniaru que

toca a gaita, uma flauta reta de quatro furos cuja sonoridade é a marca do toré dos

Potiguara. seu Zé Bitu, gosta de tocar sempre acompanhado por Seu Tonhô, mas, neste

ano ele foi impedido por algumas liderariças de São Francisco de tocar no Forte, pois, eles

disseram que se ele não tocasse na festa do Sífio, não tocaria em nenhum outro lugar."

A População do Forte é formada basicamente por três grandes famílias, os Gomes,

os Cassiano e os Santana. Os Gomes são a família do atual cacique geral, Caboquinho, e os

Cassiano são a família da ex-prefeita da Baia da Traição, lraci Cassiano (1992-1996)

Irenildo, seu filho, é o atual representante do Forte e presidente do conselho de saúde

indígena. Já os Santana, são os descendentes do Regenfe Manoel Santana e a família de '


I

Marcos Santana ex-chefe de posto e prefeito da Baia da Traição por dois mandatos (1 996-

Conversando com as professoras Jolanda e Cecilia, irmãs de Caboquinho, estas me '

disseram que a comunidade precisou pressionar muito Irenildo para que a festa d o dia do

As Ires innãs moram na cidade da Baia da Traição, na localidade conliecida como Morrinlio e destacam-se
pela animação com que cantam o tore, bem corno cocos, cirandas e boide-reis, brincadeira da qual scu pai
era Inesfre. O seu apelido vein do falo que seu pai. por trabalhar vendendo os produtos que pescava no
mangue, era conhecido como I/r?lho.Joaquirti Caranguejeiro. Elas dizcrn que não se iinportam com o apclido
e dão sonorosas gargalliadas quando convcrsaiii. Nasccrain cin Piabussú no liinitc das tcrras dc S2o Migiicl C
seus pais são de São Francisco, mas iiiorain desde pequenas na Baía.
Atualmente Seu Zé Bitu mora em Canguaretaina - RN onde têm parentes, pois algumas pessoas dc C u i i i a ~
aliadas aos índios quc arrendam tcrra dcstruirain o seu roçado e passaram uiiia cerca no quinlal dc siia casa.
plantando cana onde ficava a sua roça. Seu 2 recorreu as lideranças indígenas e a FUNAI. iiias nada Iòi fciio
no sentido de defendc-10, cntão para quc os coisas não lomasscrn urna proporção iiiaior clc prcfcriu iiiudar-sc
para perto de uma filha sua, voltando periodicamente ao Cumam para ver corno está a sua casa c marcar a
intenção de reaver scu roçado tão logo cncontre apoio de algudm.
índio fosse realizada na aldeia, iiiclusive para que ele repassasse os recursos destinados a

alimentação dos participantes. Doiia Maria Gomes, mãe de Caboquinho, teve papel

importante na organização da festa junto com outras pessoas. Apesar da ausência de

Caboquinho e Capitão, que estavam em 13rasília, a fcsta foi rcalizada. Um grupo dc chefes

de família formado por Coiné e Dido (irniãos de Caboquinho), Jurandir (cunhado) e os

irmãos Mazinho e Manoel (da família Cassiano) tomaram a frente da organização, junto

com Lúcia (esposa de Caboquinho), lolanda, Cecília e Dona Maria Gomes. Resolveram

realizar a festa no Forte porque se recusavam a ir para São Francisco, participar da festa de

Djalma, ex-cacique geral e que faz oposição a Caboquinho. Djalma e o grupo que

representa são acusados por algumas lideranças de arrendar terras.

A oposição entre os grupos de Djalma e Caboquinho atravessa todos os espaços de

representação política no campo, desde a FUNAI, até as prefeituras, passando pelas

políticas de cducação, saúdc c gcstão dos iccursos naturais. Lidercs aliados a Caboquiiilio,

como Davino, de Tracueira e Luís do Cumaru, sofreram pressões de pessoas 90 grupo de


Djalma. Luís chegou a ser destituído do cargo de cacique da aldeia Cumap-e, mais

recentemente, um aliado de Djalma havia se apoderado das chaves da escola da aldeia

Tracueira, liderada por Davino, e impedido que as crianças assistissem aula.

Ainda conversando com lolanda, ela me disse que os professores da -Escola

Indígena Estadual em Tramataia haviam preparado uma "recepção" para o prefeito de

Marcação, Gilberto Barreto, e a sua candidata que estariam presentes a festa naquela

aldeia, cujo cacique, Deda, era conhecido pela sca aliança histórica com o prefeito da

cidade. Nesta "recepção", cartazes cobrando da prefeitura os repasses das verbas da escola.

que estavam atrasados e outros, denunciando a destruição do mangue, aguardavam a visita


das autoridades. Os cartazes e a festa do dia do índio faziam parte das atividades da

Semana C~lltnralda escola que havia se iniciado no dia 13 de abril e culminava com as

comemorações do dia 19. lolanda coinciitou que a escola estava muito bonita e que se eu

pudesse tirar algumas fotos ela gostaria de rcceber algumas cópias.

.Enquanto conversávamos uin ônibus com estudantes chegou de São Francisco e

ignorando a'festa dos índios no terreiro do Forte dirigiu-se até os canhões que ficam na

cxtremidade da falcsia para tirar Iòtos. Logo dcpois, um comboio de carros do Distrito

Sanitário Especial Indígena - DSEI, da FUNASA, chegou também, vindo de São

Francisco e trazendo a coordenadora do Distrito, Dorotéia, e outros fiincionários que

vieram assistir as comemorações do dia do índio. Conversei com eles rapidamente e soube,

que estavam percorrendo as aldeias onde as festas estavam acontecendo de modo a marcar

presenca no maior numero possível delas.

Encontramo-nos com Lusival e Glebson, que também vinham de São,'Francisco, e

f ~ i n ijuntos
s para Tramataia. Lá chegando, nos deparamos com um intenso mo,vi,mentode

pessoas, motos, carros e ônibus. Muitas pessoas estavam com trajes de banho, e o forró e o

brega saiam em altissimo volume das caixas de som. Um grande palco para o show da

noite já estava montado, numa das extremidades da aldeia. Estacionamos o carro de frente

a escola indígena e fomos ver os cartazes que estavam afixados nas paredes.

Num ato descuidado e sem perceber que estávamos sendo cuidadosamente

observados pelo corpo de professores da escola, parei em frente ao primeiro cartaz com

cobranças para o prefeito e tirei uma foto dele. Depois, me dirigi para onde já estavam

Lusival, Mima e Glebson, observando os trabalhos dos alunos referentes ao meio


ambiente. Só então perccbi que algumas pessoas nos seguiam com os olhos e guardei a

câmera. Alguns dias depois, encontrei-me com Iolaiida e ela me falou q u ~os
, professores

de Tramataia queriam saber quem eram aqueles cstranhos, especialmente o j)nj)irdinho que

chegou lá tirando fotos e que só escapou de apanhar porque guardou logo a máquina

fotoçráfica. Realmente, a chegada do nosso grupo na escola foi muito abrupta e. em meio a

multidão que circulava pcla aldeia, não passamos dcsperccbidos, especialmente pelo grupo

de índios responsáveis pela escola.

Escapando da surra iminente, scguimos até o cainpo de futebol atrás da escola onde

uma das partidas do campeonato estava para ser decidida em empolgantes cobraiiças de

pênaltis. Depois disso voltamos para frente da escola e encontramos com Pedro, professor

de Nova Brasília, que tinha vindo da festa em Três Rios, Edson cacique da aldeia

Camurupim, e Edvaldo, índio Potiguara natural da aldeia de Edson e padre, ordenado pela

arquidiocese da Paraiba. Edvaldo foi ordenado há poucos anos e é responsável por uma

paróquia no Agreste, estava passando o final de semana na casa dos pais e resolveu
/
ficar

até as comemorações do dia do índio, naquela segunda-feira para poder rever outras

parentes e amigos. Ao longc pudc obscrvar Carlos, cacique dc Jacaré de São Domingos.

com uma das camisas amarelas distribuidas por Carioca, subindo num ônibus que levava o

time de sua aldeia para casa.

Depois que encontramos com Pedro, Edson e Edvaldo foi-nos servido água-de-coco

e camarões e ficamos conversando sobre a experiência do padre Edvaldo como pároco.

Encontramos ainda com Josafá, professor e chefe do posto indígena. Neste momento a

composição do nosso grupo se alterou com Glebson seguindo com Josafá de volta para São

Francisco e Pedro nos pedindo uma carona até' sua casa em Nova Brasília. Antes de
sairmos de Tramataia ainda falamos com Luiz Carlos, administrador substituto da AER-

.loHo Pessoa da FUNAI. qiic virilia pcrcorrcndo as aldeias, do rncsmo modo que a equipe da

FUNASA.

No caminho até sua casa, Pedro foi-nos contando como tem sido o seu trabalho de

professor de tupi, agciitc de saudc e aricsão indígena, cnvolvido com todas as esferas da

cultura indígena. Relatou algumas mudanças de nomes de aldeias que vem realizando,

como o da sua própria, balizada agora de Ibiquara, que quer dizer grota em tupi, o que

corresponde a topografia do terreno na qual está situada, um declive em direção ao rio

Jacaré de fronte a Gruta do Gurubu. Também falou que o nome indígena da Baía da

Traição, Acajutibiró que é traduzido como "terra do caju azedo" é incorreta, pois o sentido

verdadeiro da palavra deve ser cajueiro bravo, uma espécie nativa cujas folhas são tão

duras que utilizam como lixa. Pedro falou isso apontado-nos de dentro do carro diversas

árvores dcssa cspécie ao longo do caininho. Dcpois dc mais mcia hora dc conversa cm sua
I

casa e algumas saborosas laranjas. Nos despedimos e voltamos para João Pessoa.

4.3. SOBRE CULTURA, TRAI>lÇ/1íO E INVENÇÃO

Os evcntos ocorridos ncstc dia do índio e as dcmais situações crn quc observci os

Potiguara exibirem a sua cultura, só podem ser entendidos dentro' de uma dimensão

processual e construtivista, onde múltiplos atores interferem na.-construção histórica. A

"cultura potiguara" é o resultado de um processo consciente de elaboração dos símbolos

que demarcam as fronteiras do grupo, realizado dentro de um contexto intersocietario


determinado pela presença do Estado, afluxo turístico e disputas territoriais que termina

por moldar o próprio grupo étnico O escopo de miriha interpretação é compreender como

essa elaboração é realizada pelos diferentes segmentos que compõem o povo indígena

neste quadro a luz de discussões recentes da teoria antropológica que levam em

consideração a dimensão Iiistórica dos feriôriienos culturais

esse modo, me posiciono entre aqueles que percebem nos processos de

colonização e globalização estradas de mão dupla: largas e com fluxo intenso no sentido da

homogeneização cultural e estreitas, siriuosas, de terra batida e, também, muito

movimentadas no sentido das apropriações coletivas que ressignificam a dominação a

partir dos contextos locais onde a vida dos riativos se refaz em contracorrentes híbridas e

múltiplas.

Diante da crítica feita a iioção de cultura como operacional na "demarcação de

dflerenças" que serviram ao propósito da dominação colonial e imperialista ocidental,


,
'

Marshall Sahlins contra-argumenta, afirmando que . .

"... a 'cultura' não pode ser abaridonada, sob pena de


deixnrmo.~de compreender o.fenômeno ~iriicoqlre ela nomeia
e di.v/it~g~re: a o r p t l i z a p k da experiência e du nq?o
h~rnlatraspor meios simbólicos. As pessoas, relaq6es e coisa.^
que povoam a existência humana mariifés/am-se
essettcialn~eti/ecomo valores e sign~ficados"( 1 997: p. 4 1 ).

Essas experiências não podem ser desprezadas enquanto processos ativos de

compreensão e ação no mundo dos grupos dominados. Apesar do caráter étnico e político

da exibição do toré pelos Potiguara, podemos perceber que esta ação se constrói dentro de
um universo maior que organiza a vida cotidiana e fornece os elementos simbólicos que

explicam para os atores a sua existência e o seu papel no mundo.

c~rlfrrrnl(Tassinari, 2003) é percebê-lo coino central


Tratar o toré como cor~.sfr~~çtío

no processo de elaboração da froiiteira étnica e dos sentidos de pertencirilento ao grupo.

Emblema privilegiado do ser Potiguara articula-se em outros níveis que vão além da

distinção política. Opera no plano religioso, fornecendo um importante sentimento de'

origem, pois é tido pelos índios como o momento privilegiado de contato coin os espíritos

dos antepassados e as forças sobrenaturais presentes nas matas, mangues, rios e mar.

Como Grünewald (1997, 2001) já havia notado para os casos Atikum e Bataxó, as

estratégias do órgão indigenista oficial na tentativa de padronizar e determinar quais seriam

os traços culturais indígenas a serem exibidos pelos grupos, desencadearam processos de

geração de tradições muito mais criativos e mobilizadorCs do que se poderia esperar. A

cultura não é matéria inerte a ser conservada e exibida, seja em museus, shoppings.
,
'
ou

programações oficiais. Ela é muito mais subversiva e rebclde. Seu caráter maleável e

dinâmico é muito mais próximo das noções de fluxo (Hannerz, 1997) ou de correntes

(Barth, 2000b) do que da noção de bem, no sentido de algo passível de ser tombado e >

mantido como está, pois é significativo de si mesmo, e não de um conjunto de relações

maiores.

Todo esse processo de revalorização dos "traços culturais indígenas" e de ocupação

de espaços de representação das diferenças culturais - seja em eventos tunsticos, seja no

dia do índio, seja na oca da Vila Monte-Mór, ou na retomada de Três Rios - são tomados,

como positividade do ser indígena. Aprender o t t p i antigo com um professor vindo da


USP é importante para os professores indígenas que fazem cursos universitários, como

modo de se posicionar frente aos colegas não-índios, as autoridades estaduais e aos

próprios parentes como especialistas na cultura indígena, valorizando assim a sua posição

social. As demandas, questionamentos, negações e imposições dos variados segmentos

sociais com quem os Potiguara interagem nunca geram respostas totalmente instrumentais.

Pelo contrário, estas respostas intensificam os sentidos e os sentimentos do ser índio,


I

agregando novas formas, símbolos e significados ao repertório tradicional num processo

constante de cotatrt~ção(Tassinari, 2003) ou intetarjicação clrltzrral (Sahlins, 1997). O

contato com outros povos indígenas também contribui para essa reordenação de

significados, possibilitando a interação com outros fluxos culturais e a incorporação de

novas músicas ao toré, de novos adornos e a intensificação da produção artesanal.

Com respeito as arenas turísticas em que detemlinados povos indígenas no

Nordeste vêm sendo incorporados nos últimos anos - e os Potiguara não fogem a esse

processo - Gmnewald (2001) caminha num sentido próximo ao de Sahlins (1997) quando
'I

percebe que o desenvolvimento de relações globais cada vez intensos em determinados

contextos sociais, corrcspondc à construção de diferenciações culturais locais. Sendo

assim, a forma como o artesanato e as danças tradicionais vêm se deserivolvendo

fortemente entre os Pataxó, já há um bom tempo, podem estar prenunciando uni processo

que n3o tardará a chegar aos Potjguara, e que já ensaia seus primeiros passos em
apresentações em shoppings centers e no dia do índio ou na construção de ocas para a

venda de artesanato no Forte, Galego e São Francisco.

Tudo o que viemos apresentando até aqui leva em direção ao entendimento de que

0s Potipara vivem um processo de invenção das tradições. Tal conceito, do modo como
foi colocado por Hobsbawri e Rariger (1983) é propositadamente iconoclasta e deriuricia

como, no processo de formação dos estados-nações modernos, as e!ites burguesas

elaboraram e impuscrarn a difcrcritcs grupos sociais tradições que simbolizavam e

corporificavam a unidade nacional através da crença numa origem e destino cornuris. O

caráter dessas análises parece ser puramente instrumental, e até certo ponto o é, por

objetificar processos políticos e culturais que se dão de modo subjetivo.

Mas, como operacionalizar estes conceitos para a compreensão do interesse e

dedicação com que os Potiguara investem na revitalização de símbolos culturais

diferenciadores no presente, sem cairmos num reducionismo pragmático?

Uma saída é apostar na invenção das tradições como o trabalho consciente de

grupos sociais sobre elementos culturais com o fim de investi-los de significados

denotadores da condição única do grupo que os aciona. Nesse sentido, Handler e Linnekin

(1984) e Linnekin (1983) compreendem que a tradição é um processo interpretativo


,' 1

. .
realizado no presente com vistas ao passado e a reconstrução de uma continuidade

discursiva que os processos históricos revelam descontínuos e imprevisíveis. Neste sentido,

a autenticidade é definida não pela sua antiguidade, mas pelas relações construidas na

atualidade sobre fatos, signos e idéias localizadas na história. Deste modo, a tradição,

assim como a história, é algo fluido, mutável, não um marco de pedra duro e fixo ádvindo

do passado. Os significados de ambas, tradição e história são definidos no presente a partir

de relações sociais contemporâneas e da gestação de projetos de futuro.

Apesar de Moonen & Maia (1992) imputarem um incentivo externo para que os

Potiguara exibam traços culturais específicos não podemos deixar de lado a percepção que
os próprios índios manifestam sobre a sua cultura. Percepção esta que se faz plural entre os

mesmos. Se, de um lado, encontramos grupos que instrumcntz!izam tanto a apresentação

de sua "cultura tradicional" para pessoas de fora, que chegam a dançar o toré para

cxcursõcs dc turisias ou cotiiratar grupos dc outras aldeias para abrilhantar a fcsia do dia do

índio, do outro podemos falar de verdadeiros movimentos contra-hegemônicos de

afirmação política e étnica frente a interlocutores dc estado e da sociedade "envolvente".

Tomando estas duas posturas como relacionais, onde a principal finalidade é

atestar, num contexto de interação, a identidade especifica do grupo, elas não seriiam em si

muito distintas. Originam-se das observações que os Potiguara fazem do campo

intersocietário no qual desempenham suas ações, onde cada vez mais a exibição de uma

cultura própria faz parte das posturas e expectativas políticas que os atores esperam uns

dos outros.

A diferença entre uma e outra postura frente as "tradições" reside, justamente, no


/

modo como os diversos segmentos indígenas conceitualizam o que deve ser a "sua

cultura", qual o papel que ela assume nas relações com as agências e em que situações é

relevante a apresentação desse corpus que os legitima enquanto sujeitos.

Alguns grupos, como aqueles vinculados as escolas indígenas ou os envolvidos na

luta pela terra, procuram vivenciar a diferença culturai no cotidiano, usando colares.

realizando o toré com freqüência e investindo-se numa busca religiosa do contato com OS

antepassados. Um processo de criação, atualização e incorporação da memória,

desenvolvido por eles como uma maior especialização em si mesmos, um aprofundamento

naqueles traços que os unem internamente e os singularizam na relaçãc com outros grupos.
Apesar dessas mobilizações preverem no seu horizonte a relação com os atores não-

indígenas, esta não é colocada como fundamental para o investimento na cultura

tradicional, que deve ser realizado com regularidade, incorporando nos sujeitos o que fora

objetificado enquanto uma cultura própria e distintiva.

Outros grupos, no entanto, tomam a exibição da cultura para as agências externas

como finalidade maior e atualizam, assim, as relações de interdependência com certos

esquemas de poder, onde a dramatização da etnicidade faz parte da imposição de uma

indianidade hegemônica. Não há liderança indígena que se diga contrária ao toré, inas são

recorrentes as acusações e reclamações de que certos líderes só realizam o ritual quando

podem auferir algum capital material ou simbólico, não contribuindo para a retomada e o

aprofundamento nas práticas culturais nativas.

Nesse sentido, podemos falar de diferentes projetos políticos, étnicos e culturais

que grupos de parentesco e interesse específicos sustentam para todo o povo indígena,
,
'

buscando legitimar as imagens, simbolos, idéias, discursos e práticas que elabqram como

aqueles mais adequados para a representação coletiva.

A "invenção das tradições" é um processo consciente, mas nem por isso meramente

objetivo e utilitário, uma vez que essas pessoas vivem isso como parte do que das são,

como escolhas e opções de vida frente a alternativas possíveis. Lembrando que cada ,

possibilidade implica em conseqüências e Ônus diferenciados, que são conhecidos e

vislumbrados no momento de sua avaliação pelos atores sociais. ,


Desse modo, podemos levantar a hipótese de que o atual processo de resgate

cultural vivido pclos Potiguara n(io (': tiina siibiia ioinada dc corisciência a rcspcito dc lima

perda cultural progressiva, lenta e inexorável que viviam até então, mas, uma nova postura

frente a novas situações sociais, onde o elemento discursivo e performático "cultura" passa

a ter importância central na definição do grupo e das possibilidades de reposicionamento

de seus membros em cadeias de relações sempre em movimento.

Antes, a idéia de uma cultura própria não era tão relevante na afirmação de sua

condição étnica e dos direitos daí advindos. O parentesco e a presença no órgão tutor

constituíam o núcleo a partir de onde se legitimava o status jurídico e social das pessoas. A

representação de uma diferença cultural estava relegada a apresentações oficiais e

folclóricas pontuais que serviam para dramatizar a identidade étnica frente a visitantes e

agências oficiais, inclusive como uma prática de estado para as populações indágenas do

Nordeste com um todo, se levarrnos em corisideração os arguineritos de Grünewald (2004a

e 2004b) a respeito das exigências feitas pelo SPI ao longo das décadas de 1940150 para
I*

reconhecer os grupos emergentes. . .

Agora, quando uma pluralidade de processos, agências e fluxos perpassam a

sociedade Potiguara como um todo, a cultura toma novos contornos e produz novas

relações. A mobilização pela demarcação das terras atualiza laços de solidariedade e

objetivos comuns ao mesmo tempo em que é pródiga na produção de símbolos que

sintetizem as experiências compartilhadas7. A estruturação de políticas e sistemas oficiais

de atendimento a educação e a saúde que, em sua definição, assumem-se como

dijerenciadas, pelo caráter étnico da população atendida, cria novos espaços de a.ção para

' Tais processos IainbCin gcrain facciorialisiiios. ao coloc;~rctiig n i p s dc indígenas cni siiii:içõcs oposias
quanto as formas de controle do terrilório.
os índios, legitimando a posse de saberes e práticas exclusivos que devem ser tra.tados por

aparelhos institucionais especificamente destinados a esse fim. Ainda, a "nova indústria"

do turismo, em suas ações concretas ou virtuais, perpassa segmentos indígenas de modo

distinto, estimulando-os a investirem nuina atividade econômica mais rentável, que 0s

permita permanecerem em seus lares e atualizarem uma memória étnica Assim, diferentes

projetos étnicos correspondem a deferentes estímulos e padrões de interdependência entre

os atores envolvidos no campo Potiçuara.

Desse modo, podemos chegar a um certo nível de entendimento de que o ser

Potiguara, o ser caboclo é um ser híbrido, é um crioirlo que vive como "branco" e é

cobrado como "índio" pelas agências com quem negocia. Essa imposição da necessidade

de traços diferenciadores como língua, tradição e fenótipo, termina por gerar uma

apropriação resistente e criativa por parte dos índios das exigências descabidas dos não-

índios. Esse processo histórico de dominação, mistura e resistência se alinha num

movimento dialético de construção das fronteiras - que são porosas e permitem a


/

manipulação e as trocas - . que


e dos conteúdos culturrris que levantam as torres de. vigia

marcam ao longo dessa linha pontilhada os emblemas do ser Potiguara nos dias de hoje.
,.
Um processo consciente e determinado'de construir o seu lugar no quadro de iiiterações

marcado pela presença inevitável de muitos outros atores e pelo' desejo de garantir

melhores condições de vida e, até mesmo, de consumo, sem abrir mão de sua autonomia de

decisão política e econômica.


Seu Zé Bitu, mestre da gaita do toré. Ritual de
posse e batismo do cacique-geral. Aldeia do
Forte, 15 de março de 2002. Foto: Fernando
Barbosa.

Seu Chico e Seu Tonhô,


lideranças da aldeia São
Francisco e mestres do
toré.
11 Assembléia Potiguara,
04 de novembro de 2002.
Baía da Traição. Foto:
Fernando Barbosa.

Insttumentistas do. toré.


Da esquerda para a
direita: Aníbal (bombo),
Seu Tonhô (bombo), Seu
Zé Bitu (gaita) e
Buchudo (bombo).
Ritual de posse e
batismo do cacique-
geral. Aldeia do Forte, 15
de março de 2002. Foto:
Fernando Barbosa.
Oração inicial do toré. Posse do cacique geral
Caboquinho Potiguara. 15 de março de 2002. Foto:
Fernando Barbosa.

Ritual de posse do cacique geral Caboquinho Potiguara. 15 ,de


março de 2002. Da esquerda para a direita: Iolanda Mendonça
(professora indígena), Fátima (pajé), Caboquinho Potiguara e Seu
Zé Bitu. Foto: Fernando Barbosa.
Zuleide, Ieda e Edileuza,
as Irmús Carangirejeircls.
animadoras incansávcis
dos torés.
111 Assembléia Potiguara.
05 de maio de 2004. Baía
da Traição. Foto: Estêvão
Palitot

Iolanda Mendonça, professora


e coordenadora pedagógica da
Escola Estadual Indígena Pedro
Poti. Aldeia São Francisco.
Formatura da primeira turma da
8" série indígena. 1811212004.
Foto: Lusival Barcelos

Toré na escola da aldeia


Nova Brasília (Ibiquara).
Professor Pedro Ka'aguasu
e seus alunos. Agosto de
2004. Foto: Suelyta Alves
Professores indígenas: Pedro,
de Nova Brasília e Rainiundo.
de Jaraguá.
6ncerramento do curso sobre
poder local e cidadania
promovido pela UFPB. Vila
Monte-Mbr, 26 de setembro de
2004. Foto: Estevão Palitot

Sala de aula da Escola


Indígena Pedro Lourenço,
funcionando no pátio da
Escola Estadual na Vila
Monte-Mbr. Março de 2004.
Foto: Gretha Viana.
Ritual dentro das ftirnas.
Colaç30 de grau da
primeira turma de oitava
série da Escola Estadual
Indígena Pedro Poti.
Celebração presidida por
Nilda, vice-diretora,
Iolanda, coordenadora, e
Caboquinho, cacique-geral.
Ao redor deles os
concluintes.
Terreiro de ritual da aldeia
Si30 Francisco.
Dezembro de 2004.
Foto: Lusival Barcelos.

Toré no terreiro da aldeia São Francisco. Colação de grau da primeira turma de


oitava série da Escola Estadual Indígena Pedro Poti. Em primeiro plano, Sônia,
professora, Nilda, vice-diretora, Djalma, cacique da aldeia e os concuintes. No
centro da roda o filho de Djalma toca o bombo e D. Joana, puxa as cantigas do toré.
Dezembro de 2004. Foto: Lusival Barcelos.

de ritual da aldeia São


Francisco. Alguns índios
:hamam este local de
luricuri, outros de
Terreirão. Festa do dia do
- - .. . . .
' 1
. .- índio, 19 de abril de 2003.
.-
--;---
.-
r ,.
7 .--.
p>-
- . - - -
i e'
--
. ----
. -2-;:-: -: -
.
.e.--

.-.-- .
4 2

,..:--
._. .-
..
-. :s-

-
:

,
.4-
$?

. -., .. .
..- '
- :. ,.
. -..-. ---.-r zi;--=
. --.
- ,
. --I.

-..,.*
*-.r
' C - _ .

a
Foto: Estêvão Palitot.
Barracas montadas pata a
venda de comidas típicas
no terreiro de ritual da
aldeia São Francisco.
Festa do dia do índio, 19
de abril de 2003.
Foto: Estêvão Palitot.

Grande roda de tose no


terreiro de ritual da aldeia
São Francisco. Festa do
dia do índio, 19 de abril de
2003.
Foto: Estêvão Palitot.

I I

Após não conseguirem efetuar os apoios necessários para a realização de uma festa
própria de torC na Vila Monte-Mór, os índios desta aldeia comparecem a festa em
São Francisco. Na foto, o cacique Vado é entrevistado por uma das emissoras de
televisão que registravam a festa. 19 de abril de 2003. Foto: Estêvão Palitot.
Toré na Vila Montc-Mór.
rilon~ctito de cclehrac;ão
aos caboclos da jurema.
Em destaque Jurandir e
Luís. Agosto de 2004.
Foto: Mima Nóbrega.

Grupo de teatro !fala


Curumim, encena qeça
sobre o modo de vida
tradicional e a história !dos
Potiguara. Festa do dia do
índio, Três Rios. 19 de abril
de 2004. Foto: ~st(vão
Pali tot.
,
. '..
t.
:-r

Mesa farta na oca da aldeia


Três Rios. Celebração da
produtividade da área
retomada: cocos, bananas,
goma, tapioca, caranguejos, .
feijão verde, urucum e
macaxeira. Festa do dia do
índio. 19 de abril de 2004.
Foto: Estêvão Palitot.
Oração inicial do toré.
Festa do dia do indio,
Três Rios. 19 de abril
de 2004. Foto: Estêvão
Palitot.

As pessoas vão
chegando para a festa
na Oca. Ao redor, as
plantações da macaxeira
e feijão verde.
Três Rios. 19 de abril
de 2004. 'I

Foto: Estêvão Palitot.

Toré no dia do índio na


aldeia do Forte. Ritual
realizado no terreiro ao
lado do Posto Indígena.
Ao fundo vê-se a oca
para venda de artesanato
de Mazinho Cassiano.
19 de abril de 2004.
Foto: Estêvão Palitot.
Rafael, filho de Caboquinho. Rio Mamanguape, aldeia Tramataia. 16 de março de

2002. Foto: Femando Barbosa.


Ao fim e ao cabo deste trabalho podemos resenhar alguinas considerações a

respeito daquilo que foi dito e ousar discutir possíveis direções para as quais o campo

tende a seguir. Minha preocupação principal foi apresentar os Potiçuara como inseridos

num campo de relações múltiplas e heterogêneas, através das quais eles constituem-se
I

como um grupo étnico em relação a sociedade, ao Estado e as forças do capital com que se

defrontam

Diferentes visões, interessadas ou não, se interpõem sobre o conhecimento em

relação a este povo indígena e seus distintos níveis de interação social. A opção
,'
por uma

perspectiva histórica e situacional de análise permitiu iniciar o trabalho a partir da ,crítica as

posições correntes que toinam os I'o~iguai-acomo "reinanescentcs" de uma condição de

aboriyinalidade plena, deçradada pela colonização. Essa' forma de encará-los.

simplesmente, nega as suas possibilidades de ação na história, desleçitimando-os enquanto


..
interlocutores para qualquer questão sejam elas políticas, econômicas ou culturais.

Optei, então, por recuperar, ainda que de forma lacunar e arbitrária, o longo

processo de interação histórica dos índios identificados como Potiguara, desde o s e c u l ~

XVI até o presente momento. Busquei com isso, localizar os processos descontínuos no

tempo e nas relações sociais que engendraram as reformulações das fronteiras étnicas na
região, permitindo que uma rorma dc organização social baseada na idéia de uiila origeiil

comum e diferenciadora fosse toinada como operante no decorrer destes séculos

As dimensões territoriai e colonial forarn tomadas como essenciais para a

compreensão das formas através da qual a organização étnica dos Potiguara foi elaborada

ao longo de diversos processos. Assim, a análise das situações históricas apreseiitadas nos

dois capítulos que compõem o miolo do trabalho toriiou-se fundamental no entenditneiito

das condições de existência e manipulação das estruturas de poder e classificação que

operam no campo.

Num primeiro movimento, abordo a longa relação entre os índios e o . órgão

indigenista oficial, instituidora de uma iridianidade hegemônica através de diversos

conflitos. As formas institucionalizadas de legitimação e distribuição do poder encontram

aí suas bases sociais de afirmação e i-epi-odução,articulando, através de uma burocratização

crescente da identidade étnica e das atribuições de mediadores assumidas pelas liderancas


zC

indígenas, os modos de repartição dos recursos e os canais de resolução dos conflit,os.

Num segundo movimento, tomo a implantação da Companhia de Tecidos Rio Tinto

e seu regime de terror como contraponto ao reconhecimento dos limites étnicos

propiciados pela presença do órgão indigenista. A negação da identidade étnica e a

desarticulação dos sentidos e idéias sobre as terras indígenas de Monte-Mór provocados

pela estrutura de coiitrole e subinissão da Coinpaiihia, só serão revei-tidos em época muito

recente, quando os índios das duas situações envidarem esforços para a demarcação de

suas terras.
Os processos de territorialização encetados nas duas últimas decadas se fazem

então, a partir da mediação dos esqliemas de autoridade característicos das relações com o

órgão tutor, tornando-se assim, vcíciilos atravcs dos quais sc articulam as fronteiras

étnicas, os faccionalismos e os processos classificatórios de acusação e negação da

identidade. O quadro de relações que envolvem as lutas pelas terras revela-se mais

complexo e plural, descortinando iiovas possibilidades para os índios de planejamento e


I

realização de projetos coletivos de gestão do tet.i.itói.io e dos recursos

É através do enfrentamento com a Companhia Rio Tinto, as usinas de caiia-de-

açúcar e a própria FUNAJ que os índios ense.jarão transformações no campo, reivindicando

para si mesmos o papel de agentes históricos. A chegada de novos atores sociais

rearranjando os fluxos de poder e comunicação e possibilitando outras formas de

mediação, potencializam as reflexões dos Potiguara a respeito de suas condições de vida.

Assim, ao longo dos processos de demarcação, outros dilemas se coloc~m:como 0s

destinos a serem dados aos recursos naturais, a aceitação ou não da presença dos pequen's

posseiros que desde longa data estão vivendo na área indígena e o status e o valor das

alianças e oposições com as usiiias de cana, maiores fontes de recursos econômicos

presentes no campo. ,

Por fim, como resultado das transformações ocomdas, dos reposicionaiiientos dos

atores sociais e da maior circulação dos Potiguara em instâncias e situações de iiiteração

social, o elemento discursivo e performático "cultura" ganha espaço e proeminência. O que

me faz retomar as considerações iniciais do trabalho, atinentes as representações sociais

formuladas sobre os índios. Contudo, inverto a polarização e passo a perceber como os


Poiigiiara representam para si e pai-a a sociedade ao redor a siia condição indígetia, através

da manipulação consciente da idéia de cultura, como um conjunto de elementos

significantes da diferença

Proponho, então, que este trabalho seja um panorama das situações históricas

Potiguara, um amplo espectro de convergência de analises - onde sou devedor da literatura

sobre o giupo - e disseminação de possibilidades dc pesquisa. Coiisidcio que iiiiia

aiifroyologia hisfurica (Oliveira, 1999, 2004) seja a melhor forma de tratar as questões

relacionadas a contextos étnicos, abrindo espaço para o aprofundamento de pesquisas

ancoradas em material de arquivos e etnografias, ampliando o espectro de diálogo entre

disciplinas afins como a história, a sociologia e a aiitropologia.

Nesse sentido, considero como possibilidades de aprofundamento, investigações

sobre a história indígena na Paraíba - não só sobre os Potiguara - cujos documentos, ainda

inéditos, resistem bravamente as traças nos fundos dos arquivos; sobre as relações entre os

Potiguara e o órgão indigenista, notadamente no seu aspecto político; sobre a erpergência

étnica dos Potiguara de Monte-Mór e o processo de recuperação/recriação da memória

social; sobre o dinâmico quadro de invenção das tradições e intensificação cultural vivido

pelos Potiguara de quase todas as aldeias, destacaiido-se o papel da educação escolai-

indígena, não só como promotora dessa discussão, mas como espaço de coiiflito entre

visões distintas sobre'a cultura e a identidade, para ficar apenas nas propostas mais óbvias.

Dou, então, este trabalho por f nalizado, dentro dos limites a que me propus e aos quais fui

submetido na estrutura do curso de inestrado.


AHMED, A. S. "Hazarawal: Formatioii and Structure of District Ethiiicity in Pakistan".
in: MAYBURY-LEWIS (ed.) The Prospects for Plural Society2 The American
Ethnological Society. 1982.

ALBUQUERQLTE, Marcos Alexandre dos Santos. Destreza e Sensibilidade: os


VáriosSujeitos da Jurema (as Práticas Rituais e os Diversos Usos de um Enteóneno
Nordestino). Monografia de Graduação, Campina Grande.UFCG, 2002

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas: identidade e cultura nas
aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Arquivo Nacional, 2003.

AMORIM, Paulo Marcos. Índios camponeses: os Potiauara de Baía da Traiç-&. Rio de


Janeiro. Mestrado em Antropologia Social - MN-UFRJ. 1970.

. Acamponesamento e proletarizacão das populações indígenas do Nordeste


brasileiro. ln, Boletim do Museu do índio. Antropologia,n02. Rio de Janeiro. FUNAI,
1975.

ARRUTI, José Maurício. "Açenciamentos Políticos da "mistura": Identificação étnica e


segmentação Negro-Indígena entre os Pankaraní e os Xocó." Estud.Afio-asiat, -v. 23; n. 2.
' Rio de Janeiro, 2001.
I
'

ATLAS das Terras Indígenas do Nordeste. OLIVEIRA FO,João Pacheco e LEI'T'IE, Jurandir
C. F. (orgs 3 Rio de Janeiro, PETlIMuseu Nacional/LJFRJ, 1993.

AYALA, Maria lgnez Novais & AYALA, Marcos (orgs.). Cocos. Alegria e Devoção.
Natal :EDUFRN. 2000.

AZEVEDO, Ana Lúcia Lobato de. 'A terra somo nossa':^ análise de processos políticos
na construção da terra potiguara. Rio de Janeiro. Mestrado em Antropologia Social - MN-
WFRJ. 1986.

. Desfigurados, transfiaurados ou quase transparentes? Projeto de pesqu'isa. Rio de


janeito. PPGASIMNIUFRJ. 1988.

BABTON, M. A Idéia de Raça. Lisboa, Edições 70. 1979.

BARBOSA, Wallace de Deus. Pedra do Encanto: dilemas cultiú-ais e disputas políticas


entre os Kambiwá e os Pipipã. Rio de Janeiro: Contra Capa LivrariaJLaced, 2003.
BARBOSA JUNIOR, Fernando de Souza. Os caboclos de Monte-mór: identidade e
resistência potiguara. João Pessoa-1%. Monografia (especialização em direitos humanos) -
UFPB. 2002.

, e PALITOT, Estêvão."'T'odos os pássaros do Céu. O tore Potigiiara." In,


Orunewald, Rodrigo (org.) Tore: regimc encantado do índio do Nordeste. Rccife.
Massangana. 2004

BAUMANN, Terezinha de Rarcellos. Relatório Potiguara. Rio de Janeiro: Fundação


Nacional do índio. I98 I .

BOURDEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa. Difel, 1989.

BRASILEIRO, Sheila. "Povo indígena Kiriri: emergência étnica, conquista teri-itorial e


faccionalismo " In, OLIVEIRA F.', João Pacheco de (org.). A viagem da volta: etnicidade,
política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contracapa, 2004.
pp 175-198.

BRTTO, Maria de Fátima Campelo. Relatório dos estudos de identificação da T. 1.


Potiguara de Monte-Mór. Recife, FUNAT, 1 995.

ÇARDIM, Fernão . Tratados da terra e gente do Brasil.São Paulo; EDUSP:Belo Iiorizonte:


Itatiaia. Coleção Reconquista do Brasil, v01 1 3. 1980.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O índio e o Mun_d_o-dosBrancos. A Situação dos


Tukúna do Alto Solimões. São Paulo: DIFEL. 1964.

,CARLTNl, ÁLVARO L. R. S Cante lá que gravam cá: Mário de Andrade e a Missão de


Pesquisas Folclóricas de 1938. (mestrado em história). São Paulo. USP. 1994. i

CHAUI, Marilena. Brasi1:mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo; Editora


Fundação Perseu Abrarno, 2000.

COHEN, A. Custom and Politics in Urban Africa. Gniversity of Califomia Press. 1969.

GOHEN, A. "lntroduction: the Lesson of Ethnicity". in: Urban Ethnicity. London


Tavistock. 1974.
r--- rn n
~ u i u r I A Manuela
, Carneiro da. (org.) História dos índios no Brasil, 2" ed., São 13aulo: Cia.
das Letras1 Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1992.

."Política Indigenista no século XIX'. In, CUNHA, Manuela Carneiro da. (org.)
História dos índios no Brasil, 2" ed., São Paulo: Cia. Das Letras1 Secretaria Municipal de
CulturaJFAPESP, 1992.

DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José Augusto L. e CARVALHO, Maria do Rosário Ü.


"Os Povos Indígenas no Nordeste Brasileiro: Um Esboço Histórico". In: M. Carneiro d i
Cunha (org.), História-dos índios no Brasil. São Paulo: FAPESPISMCI Companhia das
Letras. pp. 43 1 -456. 1992.
DEMARQUET, Sônia de Almeida. Informação Indígena Básica - IIB N003/82 AGESP -
FUNAI. Grupo Indígena Potinuara Brasilia. FUNAI, 1982.

.DES.P.RES,L. A. Ethriicitv and Resource Competition in Plural Societies. Paris, Moutoii


Publishers. 1975.

DUARTE, Thamara. Ein alvum lugar do passado Potiguara: remanescentes de Rio Tinto
querem preservar sua história. João Pessoa. A União, 2001. I

EPSTEIN, A. L. Ethos and Ideniity. London, Tavistock. 1978

FAUSTO, Carlos. "Fragmentos de história e cultura tupinambá. Da etiloloçia c01110


instrumento 'crítico de conhecimento etnohistórico". In: M. Carneiro da Cunha (org.),
História dos índios no Brasil. São Paulo: FAPESPISMCI Companhia das Letras. 1992.

FERNANDES, Florestan. A organização social dos Tupinambá. São Pauloll-IUCITEC.


Brasília/UNB. 1989.

FIGUEIRÊDO. Gretha L. V. Guerreiros nunca morrem: a traietória de luta dos índios


Potiguara de Monte-Mór (trabalho de conclusão de curso - Jornalismo) João Pessoa
UFPB, 2004.

GALLAGIER, J. 1'. "'l'lie Emerçence of an African Ethnic Group: the Case of the
Ndendeuli. in: The International Journal of American Historical Studies. 7(1), 1974.

GALVÃO, ~duardo."ÁreasCulturais Indígenas do Brasil: 190011959". In: E n c m


Sociedades. Rio de Janeiro: Paz e Terra. pp. 193-228. 1979.

GLUCKMAN, Max. "Análise de uma situação social na Zululândia moderiiá." h,


Feldman-Bianco, B. (org.) Antropoloaia das sociedades contemporâneas.'~~âoPaulo:
Global, 1987. .. ,

GOLDSTEIN, M. C. "Ethnogenesis and Resource Conpetition among Tibetan Refugees


in South India" in: DESPRES, L. (ed.) Ethnicity and Resource Competition in Plural
Societies Paris, Mouton Publishers 1975

GONÇALVES, Regina Celia. Guerras e açúcares. Política e economia na capitania da


Parahvba (1 585- 1630). (Tese) São Paulo. PPGHIUSP. 2003.

GRmEWALD, Rodrigo. Regime de índio e faccionalismo: os Atikum da Serra do Umã


Rio de Janeiro: PPGAS-Museu Nacional-UFRJ. Dissertação de mestrado. 1993.

."A tradição como pedra de toque da etnicidade". Anuário Antropoló~ico96. Rio


de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1997. pp. 1 13-125.
h A A .
. Os índios do Descobrimento: tradicão e turismo.Rio de ~aieiro,Contracapa, LVV I. '

. "Etnoçênese e 'regime de índio' na Serra do Umã." OLIVEIRA, João Pacheco de


(org.). A viagem da volta: etnicidade. política e reelaboração cultural no Nordeste
indi-ena. Rio de Janeiro: Contracapa. 2004.
HANNERZ, Ulf "Fluxos, Fronteiras, Híbridos: Palavras-Chave da Antropologia
Transnacional". Mana. Estudos de Antropologia Social, 3(1):7-39. 1997.
HANDLER, R. "On Sociocultural Discontinuity: Nationalism and Cultural Objectificatioii
in Quebec". in: Current Anthropolcgy- Vol. 25 no 1 . 1984.

HANDLER, R. & LINNEKIN, J . "l'radition, Genuine or Spurious" in: Sournal of


American Folklore, Vol. 97, no 385. 1984.

HOBSBAWM, E. "Tntrodução: A Invenção das Tradições" in: MOL3SBAWN, E &


RANGER, T. (orgs.). A Invenção das Tradições. Kio de Janeiro, Paz e Terra. 1984.

HOETINK,' H. "Resource Cornpetition, Monopoly, and Socioracial Diversity" in:


DESPRES, L. A. Ethnicity and Resource Competition in Plural Societies. Paris, Mouton
Publishers. 1975

JOFFILY, Geraldo Irineu. Notas sobre a I'arahvba. Seleção das crônicas de Irineu Jofily
I - nnrr
1 I ~ Y L 1901
- 1, Brasília, Thesaurus, 2''.ed.. 1977.
LIMA, Antonio Carlos de Souza. Um Grande Cerco de Paz. São Paulo/Petrópolis:
AnpocsIVozes. 1 995.

LTNNEKIN, J. S. "Defining Tradition: Variations on the Hawaiian Identity" in: Ame-


Ethnologist. 10 (2). 1983.

MELATTI, Julio César. "Por que áreas etnográficas?'. ln indios da América do Sui -
Áreas Etnográficas. -vol. 1 Brasília. Universidade de Brasilia, Mimeo. 1997.

MELLO, José Antônio Gonçalves de. Tempo dos Flamengos.


- Recife. BNBISEC. 1978

MOERMAN, Michael. "Ethnic Identification in a Complex Civilization: Who, are the


Lue?'in: American Anthropologist. 57 (5). 1965.
.iv~uuNEN,Frans & MAIA, Luciano Mariz. Etnohistória dos índios Potisuara: Ensaios,
'nA

Relatórios e Documentos. João Pessoa: PR/PB-SECIPB. 1992.

MOREIRA, EMILIA de Rodat (org ). Por um pedaço de chão, v a . João Pessoa. Editora
UniversitáridüFPB. 1997.

MOTA, Clarice Novais da "Sob as ordens da Jurema: o xamã Kariri-Xocó." In:


Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. E. Jean Matterson Langdon (org). Ed. da UFSC:
Florianópolis, 1 996.

NAGATA, J. "What is a Malay? Situactional Selection of Ethnic ldentity in a Plural


S6cieiyn.American Ethnologist 1 (2). 1974

NASCIMENTO, Marco Tromboni do. "O tronco da Jurema" Ritual e etnicidade entre os
povos indígenas do Nordeste - o caso Kiriri. Salvador. Dissertação de Mestrado,
PPGSIUFBA, 1994.
OLTVETRA, João Pacheco de. O-_noss~goxno:os Ticuna e o regime tutelar. São Paulo,
Marco Zero; Brasilia, MCTICNPq, 1988.

. (org.) Indinenismo e t e n i t o r i a l i z a ç ~ o d e r e srotinas e saberes coloniais no Brasil


Contemporâneo. Rio de Janeiro. Contracapa, 1998.

. Ensaios em Antropologia I Iistórica. Rio de Janeiro. EDUFKJ. 1999

.(org.). A viagem da volta: etnicidade. política e reelaboração cultural no Nordeste


indígena. Rio de Janeiro: Contracapa. 2004.

OLIVEIRA JR.,Adolfo Neves de "Faccionalismo Xukuru-Kariri e a atuação da FUNAI."


ln, ESP~RTTO SANTO, Marco Antonio do, (org.). Política lndigenista: Leste e Nordeste
Brasileiros. Brasília. FLTNAI/I>EDOC, 2600 p 97 a 106.

PERES, Sidnei Clemente. Arrendamento e terras indígenas: análise de alguns modelos de


ação indinenista no Nordeste (1910-1960) Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro.
PPGAS/MN/UFRJ. 1992. I

. "Os Potiguara de Monte-Mór e a luta pelo reconhecimento do seu território". In:


RICARDO, Carlos Alberto (editor). Povos Indígenas no Brasil, 1996-2000. São Paulo
Instituto Socioambiental.2000.

. Relatório dos novos estudos de identificação e delimitacão da Terra Indígena


Potiguara de Monte-Mór. Brasilia FUNAI, 2004.

. "A identificação da
T.1. Potiguara de Monte-Mor e as conseqüências (im)previstas
do Decreto 1775196". In, Boletim do GERI. Ano 6, No. 6. Brasilia, GERI/DAN/UNB,
2002. http://www.unb.br/ics/dan/geri/boletim06-port.htm. Acesso em 14 d e janeiro de
2003.

PINTO, Estevão. Os Indígenas do Nordeste. São Paulo: Companhia Editora Nacionai.


1935.

POMPA, Maria Cristina. Religião como' tradução: missionários, Tupi e "Tapuia" no Brasil
colonial. Bauru. EDUSC. 2003.

PORTO ALEGRE, M.S.; Mariz, M. e Dantas, B.G. Documentos para a história indígena
no Nordeste. São Paulo, NHTI-USPIFapesp. 1 994. ,

POTIGUARA, professores e alunos. Cartilha Os Potiguara pelos Potiguara. João Pessoa.


FLINAI. 2004

POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido


de grupos étnicos e suas fronteiras de Frederik Barth. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998.

RIBE~IRO,Darcy. Os índios e a Civilização. Petrópolis. Vozes. 1986.


RODRIGUES. Aryon D. Lin_gu~~!3rasiIeirgs:-para o conhecirnerito das lín~uasindirienas.
São Paulo: Loyola. 1986.

SAIII.,INS, Marshall. "O 'pcssiiiiisino sciitimental' e a expcriêricia etnográftca: por- qiic a


cultura não é um 'objeto' em vias de extinção (parte I)". Mana. Rio de Janeiro, 3 ( I). 1997.

SAMPAIO, José Augusto L. "Notas sobi-e a formação histórica, etnicidade e constituição


territorial do povo Kapinawá". In: REIS, Elisa et al. (Orgs.) Pluralismo. Espaço Social e
Pesquisa. São Paulo: ANPOCSIHUCITEC. 1995. p.245-271.

SCHETTINO, Marco Paulo Fróes. Áreas IIfi~ogr~@cas: Proposta de reestruturação do


De~artamentode Identificação e Delimitação com base na atuação em Áreas Etnopráficas.
Brasilia. FUNAI,2003.
http://www.íünai.~ov.br/ultimas/erevista~artigos/areas~etnograficas~marco.pdf
Acesso em 14 de fevereiro de 2003

SLDER, G. M. "Lumbee Indian Cultural Nationalism or Ethnogenesis" in: Dialetical


Anthropology, 1. 1976.

SILVA, Maria da Salete Horacio da Resistência indisena potiguara . o caso de Jacaré de


São Domingos. João Pessoa. Dissertação (mestrado em serviço social) UFPB. 1993.

SILVA, Geyza A. da. indios e identidades: Formas de insercão e sobrevivência na


sociedade colonial (1535-1 71 6). (mestrado em história). Recife. UFI'E, 2004.
a
SOUZA, Vânia R. F. de Paiva e. Relatório de identificacão da área indígena Jacaré de São
Domingos. Recife. FUNAI, 1 988.

TASSINARI, Antonella M. I. No Bom da Festa: O Processo de Construção Cultural das


,'
Famílias Karipuna do Amapá. São Paulo: EDUSP. 2003.

THOMPSON, E. P. "A economia inoral da multidão" ln: Costumes em comum. São


Paulo: Companhia das Letras, 1998.

TURNER, Victor W. Dramas, Fields, and Metaphors. Ithaca: Cornell University


Press. 1974.

CTRBAN, Greg. "A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas-" ln: M.
Carneiro da Cunha (org.), História dos jndios no Brasil. São Paiilo: FAPESPISMCI
Companhia das Letras. 1 992.

VAiNFAS, Ronaldo. A heresia dos indios; catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São
Paulo: Companhia da Letras, 1995.

VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. Terra. Tradição e Etnicidade: Um Estudo dos
Tremembé do Ceará. Dissertação de Mestrado, PPGASI MN/UFN.: 1993.

."Experiência e semântica entre os Tremembé do Ceará" in, OLIVEIRA F.". João


Pacheco de (org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no
Nordeste indígena. Kio de Janeiro: Contracapa. 2004.
VANDEZANDE, Rerié. Catirnbó. I'esquisa exploratoria sobre unia foi-ina iiordestina de
culto mediúnico. Dissertação de mcstiado (I'.I.M.E.S. do I.F.C.1-I da UFPE); Recife, 1975.

VIEIRA, José Glebson. O regime de índios "misturados". O processo de (re)construçâo da


identidade étnica indígena otiguara. Campina Grande. Monografia. Curso de Bacharelado
em Ciências Sociais. Universidade Federal da Paraiba. 1999.

. A íim)pureza do sangue e o perigo da mistura: uma etnografiado grupo indiaena


i'otvguara da I'araíba. Cui-itiba I~isscrtaçãode Mestrado. I'I'GAS/UI;I'R 200 1 . I

. "De 'noiteiro' a cacique: constituição da chefia indígena Potiguara da Paraiba."


In, Revista Anthropológicas, ano 7, vol 14, no 1 e 2. Recife. UFPEJPPGA. 2004.

WEBER, Max. "Relações Comunitárias Étnicas". In: Economia e Sociedade, 1 . Brasília,


Unb. 1991.

WOLF, Eric R.. "lntroduction" in: Europ_eand the People without History. L,os Ançeles
and Berkeley, University of California Press. 1982.

. "Etnicidade e Nacionalidade". In, FELDMAN-BIANCO, Bela e R.IBEIR0,


Gustavo Lins (orç.) Antropologia e Poder: contribuições de Eric Wolf. BrasilidEDUNB.
São PauloJImprensa Oficiall Editora Unicamp. 2003. pp.243-254.

."Cultura: panacéia ou problema?" In, FELDMAN-BIANCO, Bela e RIBEIRO,


Gustavo Lins (org.) Antropologia e Poder: c o n t r j k õ e s de Eric Wolf Brasília/EDUNB
São PauloJImprensa Oficial1Editora Unicamp. 2003. pp. 291 -306

."Inventando a sociedade" In, FELDMAN-BIANCO, Bela e RIBEIRO, Gustavo


Lins (org.) Antropologia e Poder: contribuições de Eric Wolf. ~ r a s í l i a / g ~ uSão
~~.
PaulolImprensa Oficial1 Editora Unicamp. 2003.p~.307-324.

WOORTMAN, Klaas. "Com parente não se neguceia". Anuário Antroooló~ico87. Rio de


janeiro. Tempo Brasileiro. 1988.

DOCUMENTOS CONSUL'T'ADOS

ALBUQUERQUE, Cícero Cavalcanti de. Relatório sobre a situação das terras do Posto '
m e n a Nísia Brasileira. Baía da Traição, Ministério da AgriculturdSPI, 1965. t

CARDOSO, Marinésio. A cartilha do Potiguara de Monte-Mór. Rio Tinto. Mimeo. 2000.

JUSTA ARAÚJO, Antônio Gonçalves da. Ofícios, cartas, relatórios e demais documentos
da Comisão Demarcadora de Terras na Parahyba do Norte entre 186.5-1868. Rio de .
Janeiro. Arquivo Nacional. Seção 'l'ei-ras Públicas e Colonização. Caixa 12 19.
FUNAI. Paraíb,a,seus índios, suas (erras. Recife, FUIVAI, 199'1.

. Relatório de fisc~l~i~ç&o..-Teria
Indígena Potiguara de Monte-Mór. João Pessoa.
2003.

. Relação dos indios de Monte-Mo[ (aluguel das casas). João Pessoa. Sem data.

Oficio 20-IR4 de 071031195 1 . Do Chefe da IR4 para o Diretor do SPI (SEDOCIMuseu do


Índio. Microfilme 169. Fotogramas 1003-1004).

Processo SPI no 1996151 e processo IR4 no 42415 1. Do Chefe da IR4 ao Diretor do SPl, sld
(SEDOCIMuseu do lndio. Microfilme 169. Fotograma 101 1).

Relatório referente aos índios remanescentes da Bahia da Traição, a nordeste da Paraíba.


Rio de Janeiro, outubro de 1920. assinado: Alipio Bandeira. (SEDOCIMuseu do lndio.
Microfilme 1 70, fotogramas 1 542- 1 55 5)

Relatório referente as terras ocupadas pelos índios Potiguara na Bahia da Traição,


município de MamanguapeIPB e visita aos índios Carijó. SID. Assinado: Dagoberto dt:
Castro e Silva. (SEDOCIMuseu do lndio. Microfilmc 170, fotogramas 1557-1589).

Oficio no 1478, de Dustam Miranda, Inspetor Regional (Sétima Inspetoria regional do


Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio) ao procurador da republica na Paraíba. João
Pessoa, 2010911938. (SEDOCIMuseu do lndio. Microfilme 180, fotogramas 45-68).

Relatório encaminhado a 7 " Delegacia Regional peio Sr. Feiiar do Posto Indigeria "São ,

Francisco" - na Baía da Traição, deste Estado - Paraíba - referente ao ano de 1939 .


,SEDOCIMuseu do índio. Microfilme 180; Fotograma 175.

Mario de Andrade e os Primeiros Vídeos Etnográficos. VHS, 30 Min. São Paulo: Centro
Cultural São Paulo, 1998.

A Luta dos índios Potiguara da aldeia de Jacaré de São Domingos. VHS, 60 min. João
Pessoa, CEDOP, 1989.

Você também pode gostar