Você está na página 1de 3

FREIRE, Gláucia de Souza.

ENCONTROS, DIÁLOGOS E AGENCIAS: circularidades


culturais entre indígenas e missionários na Paraíba setecentista. Capina Grande: EDUFCG,
2015.
Erick Charlles Oliveira Silva

A autora atua principalmente em áreas como história indígena, história das religiões e
religiosidades, ordem carmelita história política e étnica. O texto foi a tese de pós-graduação
em história de Freire, sendo também o seu primeiro livro publicado, apresentado na
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) através do Projeto de Pós-graduação em
História, atualmente a autora está finalizando seu doutorado sanduíche em história.
O estudo de Freire (2015) gira em torno da identificação dos diálogos culturais que
houveram entre os indígenas da Paraíba setecentista -na obra, a autora cita pelo menos três
grupos étnicos, sendo eles Tarairiu, Xukuru e Kanindé-, norteando sua pesquisa com algumas
hipóteses a cerca das hibridizações culturais entre ambos sujeitos (indígenas e missionários),
uma vez que alguns missionários da Paraíba frequentavam e praticavam o ritual da Jurema
Sagrada, culto comum entre os indígenas lócus do texto, contrariando assim o modelo
catequético proposto pela Coroa portuguesa, fazendo que estes religiosos fossem denunciados
pelo capitão-mor da Paraíba e até mesmo levantando a possibilidade de estes serem julgados e
punidos tal e qual os “feiticeiros” indígenas.
Mas afinal, estes religiosos não poderiam estar se “assemelhando” aos indígenas a fim
de entendê-los para então dominá-los? Existiu alguma herança herdada desse contato
interétnico dos missionários e dos indígenas paraibanos? Existiu alguma brecha para que
fosse possibilitada esse contato direto com uma outra cultura senão a portuguesa? Esses
questionamentos norteiam o estudo e leitura de Glaucia.
No primeiro capítulo a autora apresenta e discute as formas como os missionários
utilizavam sua posição política e religiosa para bifurcar os caminhos de catequização
propostos pela Coroa e pela Igreja Católica, motivando denuncias feitas pelo Capitão-Mor da
Paraíba, Pedro Monteiro de Macedo, ao rei D. João V sobre a postura e comportamentos
contraditórios ao proposto pela Igreja. Os desvios comportamentais dos Jesuítas iam desde a
já mencionada participação do ritual de cura, com uso da bebida feita a partir da Acássia
Jurema, até relações próximas com mulheres.
Ansiosos para conseguir, de maneira mais rápida, a colheita das almas para Deus, os
religiosos fizeram seus próprios caminhos a partir do já proposto pela Igreja, simbolizando
uma afronta ao poder religioso e o da própria coroa, desagradando ambas pela grande ousadia.
Além disso, por estarem em contato direto e constante com o “novo”, com o “oposto, viram
neles a verdade de que não são tão diferentes, viram a si mesmo no outro, no indígena.
Possibilitado pelo cotidiano, gerou-se um diálogo entre ambos. Então, despertou-se um
sentimento proibido. Uma aproximação não admissível pela Coroa e tampouco pela Igreja.
Essa proximidade fez com que o Capitão-Mor, Pedro Monteiro, os denunciassem por
praticarem “feitiçaria” indígena, pois viu nessa aproximação um desvio ao que cabia seu
trabalho.
Se a aproximação feita pelos missionários no ritual da Jurema Sagrada foi feita
propositalmente buscando entendê-lo para no fim dominá-los, seu trabalho estaria sendo
semelhante o do etnólogo, obviamente com a diferença de que os etnólogos não dominam
nenhum grupo étnico. Entretanto, de algum modo, seus métodos se assemelham. Estudamo-
nos, não os dominamos.
Em um dos tópicos a autora fala sobre a ideia dos religiosos de comparar os indígenas
a figura do demônio, ou até mesmo a do próprio diabo. Entretanto, muitos dos missionários,
durante suas missões jesuíticas, tinham comportamentos vistos inapropriados e questionáveis.
Sendo envolvidos em crimes como abuso sexual e a própria participação do ritual, visto como
diabólico, já mencionado. Pregavam muito e pecavam tanto quanto pregavam. Por outro lado,
tais acusações não eram suficientes para prejudicar o prestígio ao projeto colonial, visto que
mesmo após as denúncias ainda havia a continuidade da atuação religiosa dos denunciados.
Em suma, este primeiro capítulo nos mostrou a evidente aproximação contraditória ao
projeto colonial entre os missionários e os indígenas da Paraíba, ambos grupos destintos que
só foi possível estabelecer um diálogo graças ao sentimento de curiosidade e de proximidade
que os missionários jesuítas tiveram frente aos indígenas. Além disso, nos foi mostrado que,
apesar da catequização dos indígenas, estes não aceitaram de maneira branda, como é vendido
a imagem do indígena durante o período de colonização no Brasil. Mesmo após terem sido
catequizados mantiveram suas práticas religiosas, tiveram de ser resistentes, ressignificando
símbolos religiosos para manterem o seu contato com o sagrado.
No segundo capítulo evidencia a tentativa de sufocamento da identidade indígena no
Brasil por parte dos colonizadores e missionários, adotando algumas estratégias para tal.
Agora, os jesuítas tinham que não somente catequizar os indígenas, mas também ficou a cargo
deles civilizá-los descontinuando a língua geral que era ensinada pelos missionários, pois isso
prendia-os aos seus costumes antigos, impossibilitando de ascender ao modelo civilizatório
proposto pela colonização.
O império queria uma cultura identitária uniforme no Brasil e a presença indígena
colocava em xeque essa vontade, visto a pluralidade de etnias na mesma região, para tanto,
adotou-se termos genéricos como “Tupi” e “Tapuia”. O primeiro para designar àqueles que
eram dóceis, amigáveis, faziam trocas com os portugueses, cediam mulheres e o segundo
àqueles que se revoltavam frente as tentativas de dominação, escravização, ou seja, contra o
modelo colonial, eram descritos como bárbaros, selvagens, irracionais.
O próprio modelo colonial se mostrava fragilizado, por vezes, uma vez que diversos
conflitos e disputas internas nos aldeamentos jesuíticos foram notificados e identificados pelo
Capitão-Mor Pedro Monteiro. Além de marcar uma revolta que aconteceu com indígenas
aldeados na Baía da Traição, um indígena juntamente com dois filhos seu, liderou esse evento
contra a administração das aldeias, tendo sido acusado de tentar envenenar as autoridades com
o uso de feitiçaria e de ter ameaçado o referido Capitão-Mor. Esse evento torna-se ainda mais
marcante pelo fato destes indígenas terem tentado convencer alguns escravizados negros a se
juntarem na revolta, a fim de intensificar o movimento. “Senhores mortos, braços livres”
(Freire, 2015, p. 82).
O capítulo finaliza nos apresentando as origens das regras, que muitas vezes se faziam
leis, da ordem dos carmelitas, além de nos apresentar que os próprios religiosos, por vezes,
não seguiram à risca as normas propostas, tendo de desenvolver seus próprios modos de agir,
bifurcando os caminhos previamente propostos, frente a realidade do seu cotidiano, uma vez
que nem sempre o escrito leva em consideração a realidade da prática. As posições
questionáveis dos missionários eram vistas pelo Capitão-Mor como motivos suficientes para
que fossem punidos igualmente aos indígenas, por utilizarem meios de “feitiçaria” para cura e
proteção do corpo, assim como o uso de corpos de mulheres, como relatado pelo referido
capitão a situação de um carmelita, além do uso de armas de fogo, veementemente proibido
segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
No terceiro e último capítulo gira em torno da mística pressente na transgressão
espiritual que beneficiavam tanto os indígenas como os missionários carmelitas no ritual da
Jurema Sagrada, descreve os efeitos do transe provocado pela ingestão da bebida, a descrição
do ritual enteógeno e possíveis aproximações culturais entre os indígenas e os carmelitas.
Além de levantar algumas hipóteses como: por que os missionários não revelaram ao Bispo
que a participação deles no ritual da jurema era feito para assimilar para dominar? Houve uma
ressignificação do ritual para os carmelitas?
O agravante da situação dos indígenas envolvidos nos rituais da jurema se dava pois
estes já tinham passado pelo processo de catequização, mais uma vez evidenciando a
resistência ativa dos Tarairiu, enfrentando diretamente a tentativa de apagamento de seus
costumes e cultura. Para enfrentar isso, alguns povos tiveram de adotar armas, a exemplo:
tornar segredo absoluto informações sobre o ritual do Ouricuri do povo Karijó para preservar
seus o costume e o ritual. Sendo passado também para o povo Xukuru de Cimbres,
Pesqueira/PE, esta mesma tradição de manter segredo absoluto sobre seus rituais.
O ritual da Jurema é acompanhado de cânticos entoados pelo Pajé, danças como o toré
e a presença da própria bebida. A ingestão dela possibilitava um estado de transe, que
conectava a materialidade da vida com a esfera divina, tendo visões, alucinações, d mundo
Sagrado para os indígenas. Por outro lado, os carmelitas, aqueles que não faziam o uso da
bebida, relatam manifestações espirituais semelhantes a proporcionada pela jurema. O
silencio e solidão eram ferramentas para que o corpo entrasse em transe, para assim, ter uma
comunicação direta com o sagrado católico. A diferença é, portanto, toda forma de alcançar o
sagrado, que não fosse católica, era diretamente o oposto do caminho do bem.
As práticas mágicas, segundo Mauss, não partem unicamente de uma crença religiosa.
A magia está presente em toda e qualquer manifestação religiosa. Um dos encontros que trata
o livro é que tanto os carmelitas como os indígenas são grupos que estão diretamente ligados
a circuitos mágicos, entretanto, a magia é, para os católicos, geralmente vista como uma
prática diabólica.
Por fim, as considerações finais elucidam que, de fato, havia uma tentativa de
dominação simbólica dos indivíduos, isso não partia somente na esfera religiosa, através do
medo que era imposto aos indígenas do inferno, a fim de regrar suas ações, mas também
através da esfera política, ainda mais evidente e sistemática, como vemos nas cartas de Pedro
Monteiro. É possível presumir que todas as situações discutidas no livro não foram um caso
isolado, podendo ter acontecido casos parecidos em outras localidade e pela precariedade de
material historiográfico do período colonial no Brasil, acabou se perdendo no tempo e no
espaço. Entretando, é de suma importância notarmos a relevância de discutir e apresentar
temas como este, a fim de entender as hibridizações culturais e sincretizações culturais
existentes no país, tornando isso possível através da valorização na pesquisa da micro-
história, entendendo sua importância grandiosa para a historiografia indígena.

Você também pode gostar