Pintar o mundo, resta-me, de negro, cinza ou multicores,
criaturas disformes de um mundo disforme como eu Pintar, pois é o que me sobra, dessa única vida, dessa única possibilidade
As cores se embriagam, como se ouvissem o burburinho seco
de um cabaré infame, ultrajado pelo tempo Neste cabaré de sombras deserto, embriagado de nada, esperando a hora de fechar, o momento em que a porta se retrai
É como se pudesse rever velhos amigos que nunca tive,
sorrir a tristeza que jamais provei, e arder de juventude engolida Os sentimentos reclusos, gigantescos e febris de um artista fracassado, perdido em qualquer beco morto Vagando por entre danças de sons, danças de conversas, entre palavras de soluço, de uma existência descompassada
Um único gole de êxtase, profundo, profano, imundo
e vagabundo, um gole de lodo, sólido de melancolia Qual espectro não se perdeu? Qual a solução que jamais pude dar? Qual o instante em que tudo ruiu?
Na ilusão negada, excluída, em que as emoções
se partiram e se enfiaram em vão, em fresta manchada Em que o pobre silêncio resolveu ser grandioso, dolorido, desses sentimentos impuros, transcendentes e inglórios
Em luzes naufragadas, abandonadas, o rosto esquivo
alumiou-se de horror, tenebroso de aparecer Era polido, fino, frágil e ágil na máscara senil, escondendo o verso grave que se compunha deteriorado
E esse grande artista do sono, da morte,
perdeu em si todo fulgor flagelado Maltrapilho, como se as pernas nascidas sãs, agora coxas, se interrompem na vasta impotência