irrompe a memória de desconexos momentos O ontem foi um amor velado e resistente, que se aventura na chuva para fluir pelas ruas Pára e se agasalha embaixo de pedras arrumadas, e surge senão o refúgio de uma pequena vida Um pássaro minúsculo quase engana o mistério, e com pernas fininhas desce uma escada irregular de calçada O cimento ondulado, fruto da areia, como se do deserto furasse a morte, busca na poças alimento Ali um pedaço tão pequeno quanto suas ossaturas de pão surge molhado, escondido, recôndito e esquecido O pão umedecido, encharcado, esperou o pássaro saltitar três degraus para ser apanhado Mas quebradas, explodidas as reminiscências, estancadas para uma imagem gravar sua força Uma porta de armário quebrada, cindida ao meio, está largada sobre o chão de um quarto mesquinho O chão marrom, a porta marrom (um pouco mais clara), e um armário exposto, exposto de intimidades e roupas rotas A roupagem se perde, decai, e o sumiço, para uma lembrança mais longínqua O banheiro da faculdade, com seus azulejos tão marrons quanto o chão do quarto, e uma música timidamente entoada A música é lançada por um assobio simples, relaxado, despretensioso como a mentira No entanto a lembrança perdida, de tempo largado, de humor olvidado, e eu esperando... Era uma música clássica, famosa, estrondosa até, mas para sempre enclausurada no tempo Quem não esperou, quem não andou, perdeu-se e viu que na saída do banheiro, chovia no pátio A cidade que recebe a chuva não é a mesma que aceitou um sol resignado... A urbe cosmopolita se estranha em si mesma, e vê nos seus habitantes um motivo de riso e orgulho A chuva avançou na memória, e a semana que passou se resguardou na água A água espalhada entristeceu a amizade, viu sofrer um par de amigos A rua agora, aliás, avenida, era tão paulista que era Paulista... Uma avenida símbolo, um símbolo síntese para mim, a síntese-mestre do capitalismo As pessoas apressadas, as garrafas, a velocidade, as higienes polidas dos transeuntes Os milhares de mundos escondidos e confortavelmente acolhidos em uma única avenida Do mendigo risonho ao tacanho executivo, todos gravitam um universo paralelo e próximo Mas os universos não se tocam, e se ocultam na menor água dos céus Ali, como em um filme, a chuva fazendo todos se recolherem na ilusão dos prédios A avenida é o capitalismo, e a chuva caiu, porém nada se derreteu, e tudo continua firme O capitalismo nunca derrete, a chuva uma hora se acalma, as amizades se riem dos molhados nas roupas... E rememorar a infância de correr no condomínio pelo asfalto com intuito de tomar chuva “Mãe, tomei chuva!”, “VAI TOMAR BANHO, VAI FICAR GRIPADO!” grita-me ela, e eu sei que a gripe (não) vem... Eu olhei para cima e os prédios estavam naturalmente estáticos, cinzas como sempre, enquanto a água cumpria seu papel Papel molhado, papel de molhar, papel esfarelado nas sandices de uma criança risonha E é essa a mesma chuva que alaga, desterra, humilha, desocupa, desmorona e soterra Quem vê na árvore caída a própria vida, não se enganou, é a miséria do ser impotente A árvore que fez os cabos elétricos ruírem, que está toda refestelada no centro da rua Trovões e relâmpagos que nos colocam na nossa pequenez medíocre A mesma chuva que nos rendeu músicas e musicais, a mesma chuva que fez estas estúpidas e fugidias lembranças... Já escorri frente à poesia, a poesia que andou e anda sozinha, me largou e fez de mim um poeta perdido Um poeta que anda pelos corredores como se o ato de andar fosse uma perda, o fim Quem anda perde a poesia, e quem perde a poesia morreu, nas gotas poluídas de um inferno vivo... E quando vejo, já sei o quanto foi, o quanto não volta, e que perdi a poesia A gota que inutilmente escorre no azulejo, também é minha vida... E já caiu