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philip josÉ farmer

carne
título original: flesh

tradução de JOSÉ SANZ

diagramação: ANTÔNIO HERRANZ


revisão: JÚLIO BIERRENBACH

coleÇÃo asterÓide — 5
direção de JOSÉ SANZ

direitos exclusivos para a língua portuguesa reservados à editora sabia


limitada. rua toneleros, 191 — casas 4 e 5 — tels.: 257-0923 e 256-2601 —
rio de janeiro, gb, brasil, por acordo com scott meredith literary agency.
proibida reprodução integral ou parcial em livro de qualquer espécie ou outra
forma de publicação, sem autorização expressa da editora. copyright by
philip josé farmer, 1968.
sobre o autor

PHILIP JOSÉ FARMER nasceu em north terre haute, indiana, no dia 26 de


janeiro de 1918. quando estudava no bradley college, em 1940, conheceu
bette virgínia andré, com quem se casou em 1941. para sustentar a família,
passou a exercer diversas funções na siderúrgica heystone steel & wise, em
bartonville, illinois, fazendo o curso noturno de bradley, onde obteve, em
1950, o diploma de bacharel em literatura inglesa. seus primeiros trabalhos,
no gênero épico, tratavam do império romano e dos vikings com incursões
pelas selvas africanas e malaias. uma noite, em 1951, lendo um tratado de
biologia, interessou-se por um trecho que lhe fez lembrar um livro que lera
sobre formigas parasitas. foi essa a origem de the lovers, romance que iria
abrir novos caminhos à f.c. moderna. john campbell, o puritano redator-chefe
de astounding, recusou o romance, qualificando-o de repugnante. h.l. gold,
de galaxy, também não o quis, mas com outro pretexto: temia que os leitores
interpretassem mal a evolução de um mundo onde israel havia se tornado
uma potência planetária, e a descrição satírica de uma religião, cujo fundador
era um semi-judeu. mas o que havia por trás disso era uma coisa só: o sexo
era um tema tabu em f.c... até the lovers, os heróis da f.c. não tinham sexo
ou, pelo menos, não tinham sexo atuante. e farmer acabou com isso. ainda
em recente entrevista a jacques sadoul (le nouveau planète, n.° 18), afirmou:
"sou um homem sadio, que fala de coisas sadias. se a sexualidade nada tem a
ver com o tema de uma história, não a utilizo, porque seria pornografia fazê-
lo. mas, pelo contrário, se a ereção de um homem ou o intumescimento do
bico dos seios de uma mulher contribuem com alguma coisa essencial para
uma história, então escrevo a respeito". suas obras principais são: the green
odyssey (1957), the lovers (1961), inside outside (1964), dare (1965) e flesh
(1968), romances; e a série de cinco volumes, contando as aventuras dos
criadores de universos, dos quais já foram editados quatro, a saber: the
maker of universes (1965), the gates of creation (1968), a private cosmos
(1968) e behind the walls of terra (1970). philip josé farmer ganhou duas
vezes o prêmio hugo: em 1953 e 1968.
para BETTE,
corajosa
e afetuosa esposa
Índice

prelÚdio............................................................ ............................
um................................................................... ..............................
dois.................................................................................... ............
trÊs............................................................................. ...................
quatro............................................................... .............................
cinco................................................................................. .............
seis................................................................................................ .
sete..................................................................... ...........................
oito..................................................................... ...........................
nove...................................................................................... .........
dez.................................................................................. ...............
onze............................................................................... ................
doze............................................................................... ................
treze...................................................................................... .........
quatorze............................................................................. ............
quinze.............................................................................. ..............
dezesseis............................................................................... .........
dezessete...................................................................................... ..
poslÚdio........................................................................ ................
prelÚdio

a MULTIDÃO, defronte da casa branca, falava, gritava e ria. as mulheres


guinchavam; os homens trovejavam. o penetrante agudo das vozes das
crianças havia desaparecido. estavam em casa, vigiadas pelos irmãos e
irmãs ou primos mais velhos mas ainda adolescentes. não era aconselhável
que crianças vissem o que iria se passar naquela noite. não entenderiam os
ritos, dos mais sagrados, em honra da grande mãe branca.
também não era seguro para as crianças estarem presentes. séculos
antes daquela data (2860 no velho estilo), quando os ritos foram usados
pela primeira vez, era permitida a participação das crianças. muitas foram
mortas, literalmente estraçalhadas, durante o delírio.
aquela noite seria muito perigosa para os adultos. inúmeras mulheres
eram sempre duramente maltratadas ou mortas. invariavelmente, muitos
homens eram subjugados por mulheres de longas unhas e dentes afiados,
que cortavam pela raiz aquilo que faz o homem homem, e corriam berrando
pelas ruas com os troféus suspensos no ar ou presos entre os dentes, antes
de colocá-los no altar da grande mãe branca, no templo da terra negra.
na semana seguinte, na sexta-feira ritual, os porta-vozes da mãe,
sacerdotes e as sacerdotisas vestidos de túnicas brancas, quereriam
admoestar os sobreviventes por terem levado seu ardor um pouco longe
demais. contudo, palavras ásperas eram o mínimo que aqueles porta-vozes
podiam esperar e nem sempre berradas contra eles. um homem ou uma
mulher, verdadeiramente possuídos pela deusa — e quem não o era naquele
instante? — não podiam ser culpados. além , disso, que mais podia o porta-
voz esperar? isso não acontecia cada noite em que um herói solar ou um
rei-garanhão nascia? oh, muito bem, os porta-vozes sentiam que era
necessário acalmar os adoradores a fim de que eles pudessem retomar a
vida normal. ouvir, orar e esquecer. e esperar a próxima cerimônia.
além disso, as vítimas não tinham de que se queixar. seriam enterradas
num santuário, com orações e o sacrifício de um veado. as almas dos
assassinados beberiam o sangue e seriam muito glorificadas e confortadas.
o sol avermelhado desapareceu no horizonte; a noite chegou, com suas
frias e escuras asas sussurrantes. a multidão foi se acalmando, enquanto os
representantes das grandes fraternidades se reuniam na pennsylvania
avenue. estourou uma violenta discussão entre o chefe da fraternidade dos
cervos e o chefe da dos alces. cada um reclamava o direito de a sua
fraternidade encabeçar a parada. não eram ambos homens com chifres?
não era o herói solar deste ano um portador de chifres?
john grão-de-cevada, verde da cabeça aos pés no seu costume ritual,
mas com o rosto vermelho, cambaleante, tentou acalmar a disputa. como
sempre, ele estava, àquela hora, muito cansado para falar claramente ou
para se preocupar se falava ou não. suas poucas palavras compreensíveis
tornaram os dois chefes mais zangados. não era difícil para eles ficarem
zangados, uma vez que ambos estavam bastante embriagados. foram,
inclusive, mais longe, empunhando o cabo dos punhais, embora tivesse sido
uma provocação ainda maior se os desembainhassem naquela hora.
um destacamento da guarda de honra da casa branca deixou seu posto
para repor as coisas em ordem. as moças altas partiram do vestíbulo
marchando, com seus elmos cônicos brilhando à luz das tochas, com os
longos cabelos caindo pelas costas até a cintura, com as túnicas brancas
refulgindo. carregavam um arco e uma flecha em cada mão. ao contrário do
resto das virgens da cidade de washington, expunham apenas um seio, o
esquerdo. a túnica escondia o outro... ou melhor, a falta do outro.
tradicionalmente, uma ar queira da casa branca permitia alegremente que
seu seio fosse removido para não interferir no manejo do arco. a falta do
seio não era problema para a obtenção de um marido, quando se
aposentasse. naquela noite, depois que o herói solar plantasse sua semente
divina nelas, as arqueiras podiam escolher um homem para casar. um
homem cuja mulher tivesse sido uma guarda de honra de um só seio, era um
homem orgulhoso.
a capita da guarda de honra perguntou severamente qual a causa do
distúrbio. depois de ouvir ambos os chefes, disse:
— esta é a primeira vez que tais assuntos são resolvidos tão mal. talvez
estejamos precisando de um novo john grão-de-cevada.
apontou a flecha para o chefe da fraternidade dos alces.
— você encabeçará a parada. e você e seus irmãos, terão o, honra de
trazer o herói solar para fora.
o chefe da fraternidade dos cervos era ou um homem corajoso ou um
louco. protestou:
— eu estava ontem de noite bebendo com o grão-de-cevada e ele me
disse que os cervos teriam a honra! quero saber por que os alces foram
escolhidos em nosso lugar!
a capita fixou-o friamente e encaixou a extremidade da flecha na corda
do arco. mas era demasiadamente bem treinada na arte da política para
atirar num dos poderosos membros da fraternidade dos cervos.
— grão-de-cevada devia estar possuído por outros espíritos que os
dados a ele pela deusa — disse ela. — foi planejado já há algum tempo que
os alces deveriam escoltar o herói solar até o capitólio. o herói solar não é
um macho? não é um garanhão? você sabe que um alce masculino é um
macho, mas um cervo é um boi!
— isso é verdade — disse o chefe cervo, que empalidecera quando a
flecha foi colocada no arco. — eu não devia ter ouvido john grão-de-
cevada. mas seria normal que agora fosse a vez dos cervos. no ano passado
foram os pumas e no anterior os carneiros. deveríamos ser os próximos.
— e vocês teriam sido, não fosse aquilo.
ela apontou para pennsylvania avenue, às costas dele.
o cervo voltou-se e olhou. a rua era uma reta de seis quadras, partindo
da casa branca e terminando subitamente num enorme estádio de baseball.
acima do estádio, aparecia o brilhante nariz de uma nave que não era vista
havia setecentos e sessenta anos. não fora vista até havia um mês antes,
quando surgiu, trovejante e flamejante, de um céu de novembro, e pousou no
centro do campo de jogo.
— a senhora tem razão — disse o chefe cervo. — nunca 'antes o herói
solar desceu dos céus, enviado pela própria grande mãe branca. e,
certamente, ela deixou claro a que fraternidade ele honraria tornando-se
seu irmão, quando ela o designasse garanhão.
o cervo se dirigiu para a frente dos seus homens mesmo a tempo.
ouviu-se um tremendo grito, vindo do capitólio, que ficava a seis
quarteirões da casa branca. o grito silenciou a multidão; paralisou-a e fez
os homens empalidecerem. as mulheres, na multidão, ficaram excitadas, de
olhos arregalados e espectantes. muitas caíram no chão se retorcendo e
gemendo. ouviu-se outro grito e agora parecia que aquele terrível som saíra
das gargantas de inúmeras mocinhas que corriam pelos degraus da
escadaria do congresso.
eram sacerdotisas recém-graduadas pela faculdade de teologia de
vassar. usavam altos chapéus cônicos pretos, de abas estreitas, cabelos
soltos caindo sobre os quadris e os bustos nus como os das outras virgens;
mas estas deviam servir durante cinco anos mais, antes de usar o escudo
matronal. nessa noite, a semente do herói solar não era destinada a elas;
sua participação se limitava a iniciar as cerimônias. usavam deslumbrantes
e bem modeladas saias brancas com muitas anáguas; algumas delas
usavam, com cinto, cascavéis vivas e sibilantes e o resto carregava cobras
mortas nos ombros. empunhavam chicotes de couro de cobra, de três
metros.
os tambores começaram a ressoar; um clarim sobrepôs-se aos tambores;
címbalos reuniram; flautas trilaram.
gritando, alucinadas, as jovens sacerdotisas correram pela pennsylvania
avenue, limpando o caminho com seus chicotes. logo chegaram às grades
que cercavam os jardins da casa branca. houve uma rápida luta simulada,
quando a guarda de honra fingiu resistir à invasão. algumas delas não eram
tão indefesas, uma vez que as arqueiras e as sacerdotisas tinham a merecida
reputação de serem meretrizes depravadas. houve um puxar de cabelos e
arranhões e bicos de seios torcidos, mas a sacerdotisa mais idosa chicoteou
os traseiros nus das mais entusiasmadas. berrando, as moças pularam para
os lados e rapidamente tornaram a pôr a cabeça no lugar.
tiraram pequenas foices de ouro dos cintos e as brandiram: no ar, num
gesto ameaçador mas, ao mesmo tempo, ritualista. subitamente, como se
houvesse ensaiado dramaticamente sua entrada — e havia — john grão-de-
cevada apareceu na porta principal da casa branca. carregava, numa das
mãos, uma garrafa de uísque pela metade. não havia a menor dúvida sobre
o destino da metade faltante. ele cambaleava para a frente e para trás e
tateava o cordão pendurado no pescoço, à procura do apito pendurado nele.
então colocou o apito na boca e soprou agudamente.
um berro subiu imediatamente da rua onde os alces estavam reunidos.
uma quantidade deles irrompeu entre a guarda, na direção do pórtico.
esses homens usavam gorros de peles de veados novos, com chifres de
brinquedo saindo dos lados, capas de pele de veado e cintos dos quais
pendiam rabos de veados. suas tangas eram balões de forma fálica. não
corriam nem andavam, mas equilibravam-se nas pontas dos pés, como
bailarinos, simulando a andadura de um veado. ameaçaram as
sacerdotisas; estas tremeram como se estivessem apavoradas e se
espalharam, para que os alces pudessem entrar na casa branca.
lá, na grande sala de recepção, john grão-de-cevada soprou seu apito
mais uma vez e os enfileirou de acordo com sua posição na fraternidade.
então começou a caminhar, cambaleante, para a larga escada curva que
levava ao segundo andar.
perdeu o equilíbrio, e com ele o prestígio, tombando para trás, nos
braços do chefe alce.
o chefe segurou o grão-de-cevada e empurrou-o para o lado. em
condições normais, não teria ousado tratar tão rudemente o porta-voz da
casa, mas sabendo que ele caíra em desgraça, tornou-se corajoso. grão-de-
cevada cambaleou para um lado da escada. caiu para trás sobre a
balaustrada e bateu com a cabeça no chão de mármore da sala de recepção.
ficou caído ali, com o pescoço num ângulo estranho. uma jovem sacerdotisa
correu para ele, tomou-lhe o pulso, examinou seus olhos arregalados e
então puxou a pequena foice de ouro.
nesse instante, um chicote estalou contra suas costas e seios nus,
deixando um vergão de onde o sangue começou a gotejar.
— que é que você está fazendo? — gritou uma velha sacerdotisa.
a jovem sacerdotisa encolheu-se, desviou a cabeça, mas não se atreveu
a erguer os braços para se defender do chicote.
— estava exercendo meu direito — choramingou. — o grande john
grão-de-cevada morreu. sou uma encarnação a grande mãe branca; eu ia
proceder à colheita.
— e eu não vou impedi-la — disse a velha sacerdotisa. - É seu direito
castrá-lo... a não ser por uma coisa. ele morreu acidentalmente e não
durante os ritos de plantio. você abe disso.
— colúmbia me perdoe — choramingou a jovem sacerdotisa. — não
tenho salvação. foram os acontecimentos desta noite: a chegada da idade
viril do filho, a coroação do rei chifrudo, o defloramento das mascotes.
o rosto duro da velha sacerdotisa quebrou-se num sorriso.
— tenho a certeza de que colúmbia a perdoará. há alguma coisa no ar
que nos faz perder a cabeça. É a divina presença da grande mãe branca no
seu aspecto de virgínia, noiva do herói solar e grande garanhão. eu também
estou sentindo e...
ouviu-se, nesse momento, um berro vindo do segundo pavimento. ambas
olharam para cima. descendo os degraus, precipitavam-se os alces,
carregando o herói solar nas mãos nos ombros.
o herói solar era um homem nu, magnificamente dotá-lo sob todos os
aspectos. apesar de sentado nos ombros de dois alces era, sem dúvida, um
homem muito alto. seu rosto, de sobrancelhas pronunciadas, de nariz
adunco e queixo quadrado, poderia ser o de um simpático campeão peso-
pesado. mas, naquele instante, tudo o que levaria a lembrar palavras orno
"elegante" ou 'feio" desaparecera do seu rosto. ele exibia um aspecto que só
poderia ser descrito como "possesso". era exatamente essa a palavra que
qualquer pessoa na cidade le washington, da nação deecee, teria usado. seu
longo cabelo louro-avermelhado caía-lhe sobre os ombros. acima das
mechas encaracoladas, bem sobre a testa, surgia um par de chifres.
não eram os chifres artificiais que a fraternidade dos alces usava. eram
órgãos vivos.
tinham umas doze polegadas de altura e mediam dezesseis polegadas de
distância entre uma ponta e outra. eram cobertos por uma pele clara e
lustrosa, atravessada por veias le sangue azul. uma grande artéria pulsava
na base de cada um,, de acordo com a batida do coração do herói solar. era
evidente que eles haviam sido implantados muito recentemente na cabeça do
homem. havia sangue seco na base dos chifres.
o rosto do homem com chifres podia ser instantaneamente notado no
meio de uma multidão. os rostos dos alces e das sacerdotisas eram pessoais,
mas todos tinham o ar de pertencer à sua época e podiam ser chamados
cervinos. triangulares, com grandes olhos escuros e longas pestanas,
malares salientes, bocas pequenas mas carnudas e queixos afilados, eram
fundidos nos moldes do seu tempo. mas um espectador sensível perceberia
que aquele homem nos ombros dos cervinos, aquele homem com o rosto
vazio de inteligência, pertencia a uma época passada. da mesma maneira,
que um estudioso de retratos da humanidade podia dizer, olhando para
aquele rosto "ele pertence ao mundo antigo", ou "este homem viveu quando
a era industrial começava a se expandir", também o estudioso poderia ter
dito "este homem nasceu quando a terra fervilhava de gente. ele parece
vagamente um inseto. porém há uma diferença. ele também ostenta o
aspecto do original daqueles tempos — o homem que procurava ser um
indivíduo entre os insetos".
naquele instante, a multidão o carregava para baixo, pelos amplos
degraus, para o grande pórtico da casa branca.
ao aparecer, provocou um tremendo grito da multidão na rua. tambores
ressoaram; clarins troaram como o trompete do anjo gabriel; flautas
emitiram sons agudos. as sacerdotisas, no pórtico, passavam suas pequenas
foices nos homens vestidos como alces, mas não os cortavam... a não ser por
acaso. os alces, fora da multidão, carregaram sobre as sacerdotisas, que se
inclinaram para trás e caíram de costas. ficaram caídas, com as pernas
para cima, gritando e se retorcendo.
o homem chifrudo foi carregado pela calçada, através do portão de
ferro, para o meio da pennsylvania avenue. estava sentado no lombo de um
furioso macho preto. o macho tentava jogá-lo no chão; mas o homem
agarrou-se nos chifres e nos longos pêlos dos flancos dele, obrigando-o a
correr abruptamente pela rua. o homem no lombo do animal firmou-se nos
chifres deste para não ser desmontado. suas próprias costas se arquearam.
os músculos dos seus braços intumesceram quando forçou a poderosa
cabeça do macho para trás. o macho berrou e o branco dos seus olhos
brilhou à luz dos archotes. subitamente, quando parecia que seu pescoço
iria quebrar sob a pressão das mãos do homem, ele afrouxou e parou,
tremendo. a saliva escorria de sua boca e seus olhos continuavam abertos
mas estavam amedrontados. fora dominado pelo cavaleiro.
os alces formaram em filas de doze atrás do macho e seu cavaleiro. a
seguir, vinha uma banda de música, também ia fraternidade dos alces. atrás
da banda, vinham os cervos? seus músicos. depois, o grupo dos pumas,
usando caveiras de panteras como capacetes e peles de panteras como
capas, com a longa cauda arrastando pelo chão. seguravam as cordas de
um balão que pairava a quatro metros por cima deles. o balão tinha a forma
de uma salsicha comprida, com um protuberante nariz redondo. havia,
penduradas nele, duas gôndolas com mulheres grávidas sentadas em cada
uma delas, atirando flores e arroz na multidão que enchia a rua. atrás deles,
iam os representantes da fraternidade dos gaios, carregando seu totem, um
imenso poste em cujo topo havia a cabeça esculpida de um galo enorme,
com uma grande crista vermelha e um longo bico reto, com um calombo na
ponta.
a seguir, os chefes das outras fraternidades da nação: os elefantes,
mulos, coelhos, bodes e muitos outros. depois os representantes das grandes
irmandades: as corças selvagens, abelhas mestras, gatas do mato, leoas,
garças.
o herói solar não prestava atenção aos que estavam atrás dele. olhava
para a rua. ambos os lados estavam cheios de gente que evidentemente, não
estava reunida por acaso. estava organizada em filas bem definidas. o grupo
mais próximo ia rua era composto de moças de quatorze a dezoito anos.
usavam blusas de gola alta e mangas compridas, com a parte ia frente
aberta para mostrar os seios. as pernas estavam cobertas por saias brancas
em forma de sino, com muitas anáguas, e os pés, de unhas pintadas de
vermelho, calçavam sandálias brancas. os cabelos estavam soltos e caíam
até os quadris. cada uma carregava um ramo de rosas brancas na mão
direita. tinham os olhos arregalados e estavam excitadas; gritavam cada vez
mais alto:
— herói solar! rei chifrudo! poderoso garanhão! grande filho e grande
amante!
por trás delas havia matronas de pé que pareciam ser, pela maneira de
gritar, mães das moças. também elas usavam blusas de gola alta e mangas
compridas, mas tinham os seios cobertos. as saias não tinham as anáguas
que davam a aparência de sino; caíam retas até o chão, menos na frente,
onde usavam, sob a saia, enchimentos para ficarem com a aparência de
grávidas. o cabelo era enrolado num coque alto rodeado de cachos, nos
quais havia, espetados, galhos de rosas vermelhas, um por filho tido.
atrás das matronas vinham os pais, cada um usando a roupa da sua
fraternidade e segurando com uma das mãos o totem a ela referente. na
outra, sustinham uma garrafa da qual bebiam com muita freqüência e
ocasionalmente ofereciam às esposas.
todos gritavam e berravam, forçando a passagem, como se quisessem ir
para a rua. aquilo não estava no plano, uma vez que a rua fora deixada
livre para a passagem do desfile. a guarda de honra e as graduadas de
vassar correram para a frente do veado e seu cavaleiro. a guarda flechava
todos os que atravessavam a linha branca do meio-fio e as sacerdotisas os
chicoteavam. as virgens, nas primeiras filas, não se retraíam nem se
lamentavam vendo o sangue correr; em vez disso, urravam como se
gostassem da visão do seu próprio sangue.
fez-se um silêncio. os tambores, clarins e flautas cessaram por um
momento.
apareceram donzelas, vindas da casa branca, carregando nos ombros
uma cadeira onde jazia o corpo de john grão-de-cevada. essas donzelas
estavam vestidas com a roupagem da sua irmandade. longas túnicas
severas, tingidas de verde para parecerem folhas de cevada e, na cabeça,
altas coroas amarelas como espigas do cereal. pertenciam à irmandade da
cevada. carregavam o único membro masculino. estava morto. mas,
aparentemente, a multidão não sabia, pois riu ao ver o corpo. não era a
primeira vez que ele aparecia em público e ninguém, exceto as donzelas da
cevada, sabia a diferença. colocaram-se no lugar previamente marcado na
procissão, logo atrás da guarda e das sacerdotisas, e na frente do herói
solar.
os tambores recomeçaram; os clarins troavam; as flautas trilaram; os
homens rugiram; as mulheres gritaram.
o veado atirou-se para a frente com seu cavaleiro.
o homem na garupa teve de se agarrar para não cair e se misturar às
mocinhas que cercavam a rua. elas estavam gritando coisas capazes de
fazer um marinheiro corar e ele gritou de volta coisas do mesmo teor. seu
rosto, vazio de inteligência quando desceu as escadas, estava agora
demoníaco. lutou para sair de cima do animal. quando os alces o
empurraram de volta, esmurrou-os. eles cambalearam, com os narizes
quebrados e ensangüentados e caíram na rua, onde foram esmagados pelos
que marchavam. outros os substituíram e o herói solar foi agarrado por
inúmeras mãos.
— agüente firme, grande garanhão! — gritaram. — espere até
chegarmos às cúpulas! lá ficará livre e fará o que quiser! lá a grande
sacerdotisa virgínia o espera, sob o aspecto de grande mãe branca, como
donzela! e lá, também, esperam as mais belas mascotes de washington,
suaves donzelas cheias da divina presença de colúmbia e de américa, sua
filha! esperando para serem fecundadas pela divina semente do filho!
o homem dos chifres não pareceu ouvi-los nem compreendê-los, em
parte pelo fato de que sua língua, apesar de americana, era uma variante da
deles. e em parte por causa da coisa que o possuía. ela o deixava surdo para
qualquer coisa que não fosse o rugir do sangue dentro dele.
apesar da multidão ter feito uma tentativa para andar devagar até seu
destino, seis quadras adiante, não pôde impedir um aumento de velocidade
ao se aproximarem. talvez as ameaças e insultos das mocinhas na calçada,
que ameaçavam estraçalhá-los, fosse a causa disso. os chicotes e as flechas
arrancaram mais sangue. as mocinhas, contudo, continuavam a empurrar e,
subitamente, uma delas deu um pulo fantástico para cima e chocou-se com
uma sacerdotisa. levantou-se e pulou outra vez, caindo nas costas de um
alce, mas perdeu o equilíbrio e caiu de cabeça no meio da multidão. foi
tratada brutalmente; os homens estraçalharam suas roupas, arranharam-na
e beliscaram seu corpo todo até que ela começou a sangrar. um homem quis
se antecipar ao herói solar, mas esta blasfêmia foi impedida pelos outros.
bateram na cabeça dele e devolveram a mocinha à calçada.
— espere sua vez, querida! — gritaram. riram e um deles berrou:
— se o grande garanhão não for suficiente, os pequenos garanhões
satisfarão você mais tarde, anjinho!
no instante em que se produziu esse incidente, a procissão fizera alto ao
pé dos degraus do edifício do capitólio. houve uma certa confusão
momentânea quando as guardas e sacerdotisas quiseram empurrar as
mocinhas para trás. os alces retiraram o herói solar do lombo do veado e
começaram a subir os degraus com ele.
— agüente um minuto, grande garanhão! — gritavam. — tenha
paciência até chegar ao topo da escadaria. depois o deixaremos em paz!
o herói solar os fuzilou com um olhar enraivecido, mas permitiu-lhes
que o carregassem. olhou para a estátua da grande mãe branca, no alto da
escadaria, na entrada do edifício. esculpida em mármore, tinha cinqüenta
pés de altura e seios enormes. estava amamentando o filho. em dos seus pés
estava esmagando um dragão cheio de farpas.
a multidão emitiu um rugido formidável.
— virgínia! virgínia!
a grande sacerdotisa de washington acabava de aparecer, saída das
sombras das colunas do imenso pórtico do capitólio.
a luz das tochas ressaltava a brancura de sua longa saia, seus seios e
ombros nus, e faziam com que seu cabelo cor de mel, que caía até a barriga
das pernas, se tornasse mais escuro. aquela luz transformava sua boca num
poço escuro que, à luz do sol, era rubro como um ferimento. e tornava
pretos seus olhos que, em pleno dia, eram de um azul-escuro.
o herói solar gritou como um macho que fareja a fêmea na época do cio.
gritou:
— virgínia! você não pode me recusar mais! ninguém consegue me
impedir!
ela mantinha a boca escura aberta e os dentes brilhavam, alvos, à luz
das tochas. um braço longo, fino, muito branco, acenou para ele. o herói
solar se libertou furiosamente das inúmeras mãos que o seguravam e subiu
correndo os degraus. percebia muito vagamente que os tambores, clarins e
flautas atrás dele haviam iniciado um crescendo e que a gritaria era a
lascívia exacerbada da multidão de mocinhas. percebia isso muito
vagamente... mas não percebia absolutamente que seus guarda-costas
lidavam em defesa da própria vida, tentando não ser pisoteados ou
estraçalhados pelas longas unhas afiadas das virgens. nem viu também que,
misturadas com os corpos caídos dos homens, estavam as saias brancas e as
blusas arrancadas das mocinhas.
só uma coisa fê-lo deter-se por um instante. foi a súbita aparição de
uma moça mima jaula de ferro, colocada no pedestal da estátua da grande
mãe. era também uma mocinha, mas vestida de maneira diferente das
outras. usava um capacete como o dos jogadores de baseball, uma camisa
ampla com um emblema indistinguível, calças largas até o meio da perna,
meias grossas e sapatos de sola espessa.
sobre a gaiola havia um grande dístico, com grossas letras coloridas,
escrito em deecee:

MAESST
GAKAETI REA KESILAE

tradução:
MASCOTE
CAPTURADA NUMA INCURSÃO A CASEYLAND

a moça atirou-lhe um olhar apavorado, depois cobriu os olhos e virou


de costas para ele.
seu olhar atônito desapareceu e ele correu para a grande sacerdotisa.
ela o encarava com os dois braços erguidos, como se o estivesse
abençoando. mas suas costas arqueadas para trás e o movimento para a
frente dos seus quadris, deixavam bem claro que a espera dele havia
terminado. ela não resistiria.
o herói solar rosnou tão cavamente que parecia que o som saíra do mais
profundo do seu ser. então pegou o vestido dela e puxou.
atrás dele, inúmeras gargantas emitiram um som estridente e, rodeado
por carne, ele desapareceu da vista dos pais e mães aglomerados na base
da escadaria.
um

a ASTRONAVE circundava velozmente a terra.


no ponto em que o ar termina e o espaço começa, ela deslizava do pólo
norte ao pólo sul, para lá e para cá.
finalmente, o capitão peter stagg deixou de olhar pelo visor.
— a terra mudou bastante desde quando vivíamos aqui, há oitocentos
anos. como interpreta o que vimos?
o dr. calthorp cocou a longa barba branca e depois girou um dial no
painel sob o visor. os campos, rios e florestas embaixo aumentaram. o visor
mostrava, agora, uma cidade se estendendo pelas duas margens de um rio,
presumivelmente o potomac. a cidade aparentava ter dez milhas quadradas e
pôde ser vista tão nitidamente como se os homens da nave estivessem
quinhentos pés acima dela.
— como interpreto o que estou vendo? — perguntou calthorp. — sua
suposição deve ser tão boa quanto a minha. como um velho antropólogo da
terra, eu devia estar em condições de fazer uma análise justa dos dados
existentes... talvez mesmo explicar como algumas dessas coisas
aconteceram. mas não posso. nem mesmo estou certo de que se trata de
washington. se se tratar, foi reconstruída sem muita planificação. não sei;
você também não sabe. portanto, por que não descemos e verificamos?
— não temos muita escolha — disse peter stagg. — estamos quase sem
combustível.
subitamente, esmurrou a palma da mão com o punho fechado.
— uma vez pousados, que acontecerá? não vi um único edifício em lugar
algum da terra que parecesse poder abrigar um reator. ou nada semelhante às
máquinas que conhecemos. onde está a tecnologia? voltaram aos cavalos e
às carretas... só que não devem ter cavalos. os cavalos parecem estar
extintos, mas devem ter um substituto. uma espécie de veado sem chifres.
— para ser exato, veados têm cornos e não chifres — disse calthorp. —
acho que os americanos modernos devem ter criado veados ou alces, ou
ambos, não apenas para substituir os cavalos, mas como gado. como deve
saber, há grande variedade de cervinos. uns grandes, para tração e carga, e
animais de corte, e outros criados para montaria. milhões deles.
hesitou.
— mas estou preocupado. mesmo a aparente não existência de
combustível radiativo não me perturba tanto quanto...
— quanto o quê?
— a espécie de recepção que teremos quando pousarmos. grande parte
da terra tornou-se um deserto. erosão, a navalha de deus, retalhou a face
dela. veja em que se tornaram os velhos estados unidos. uma cadeia de
vulcões vomitando fogo e cinzas por toda a costa do pacífico! na verdade,
toda a costa do pacífico — ambas as américas, a parte superior da Ásia, a
austrália, as ilhas — está cheia de vulcões ativos. todo esse gás carbônico e
essa poeira distribuídos na atmosfera produziram um efeito radical no clima
terrestre. as calotas polares do Ártico e do antártico derreteram. os oceanos
subiram pelo menos seis pés e vão subir mais. estão nascendo palmeiras na
pensilvânia. os já recuperados desertos do sudeste americano estão como se
tivessem sido torrados pelo bafo do sol. o centro é uma cavidade
empoeirada. e...
— que é que isso tem que ver com a recepção que possamos ter? —
perguntou peter stagg.
— É o seguinte. a orla central do atlântico parece estar em vias de
recuperação. por isso, recomendo que desçamos nela. mas a organização
tecnológica e social aparenta ser a de um estado agrícola. pudemos ver como
a costa está ativa como uma colméia de abelhas. grupos plantando árvores,
cavando canais de irrigação, construindo represas e estradas. quase toda a
atividade, além dessas que pudemos perceber, é orientada no sentido de
recuperar o solo.
"e as cerimônias que vimos pelo visor são, obviamente, ritos de
fertilidade. a ausência de uma tecnologia desenvolvida indica muita coisa.
em primeiro lugar, a ciência, como a conhecemos, desapareceu. depois,
existe a repulsa à ciência e aos seus praticantes... porque a ciência é a
culpada, justa ou injustamente, da devastação que flagelou a terra." _ então?
— então, esse povo provavelmente esqueceu que a terra, antigamente,
mandou uma astronave explorar o espaço interestelar e localizar planetas
virgens. podem nos encarar como demônios ou monstros... especialmente se
representarmos a ciência que eles aprenderam a odiar como sendo o espírito
do mal. sabe, não estou apenas conjeturando, baseado na pura imaginação. as
imagens existentes nas paredes dos templos e as estátuas deles, e alguns
pomposos cortejos que testemunhamos, mostram claramente um ódio ao
passado. se formos a eles vindos do passado, podemos ser repelidos. um
tanto fatalmente para nós.
stagg começou a andar de um lado para outro.
— oitocentos anos, desde que deixamos a terra — murmurou. — o que
vale isso? nossa geração, nossos amigos, nossos inimigos, nossas mulheres,
nossas namoradas, nossos filhos, os filhos deles e os filhos dos filhos deles...
enterrados e transformados em grama. e essa grama virando pó. a poeira que
sopra em torno do planeta é a poeira de dez bilhões que viveram no nosso
tempo. É a poeira de deus sabe quantas dezenas de bilhões mais. houve uma
moça com quem não casei porque preferi esta grande aventura...
— você está vivo — disse calthorp. — e com a idade de oitocentos e
trinta e dois anos pelo tempo da terra.
— mas só trinta e dois anos de tempo fisiológico — respondeu stagg. —
como poderemos explicar a esse povo simplório que, quando nossa nave se
dirigiu para as estrelas, nós dormíamos, congelados como peixes no
frigorífico? saberão eles alguma coisa sobre as técnicas de suspensão
anímica? duvido. como poderão compreender que só saímos da suspensão
anímica o tempo suficiente para procurar planetas do tipo da terra. que
descobrimos dez deles, um dos quais pronto para a colonização?
— podemos dar duas voltas na terra enquanto você faz um discurso —
disse calthorp. — por que você não desce esta geringonça e nos leva para a
terra, a fim de que saibamos o que enfrentar? e então poderá encontrar uma
mulher para substituir a que deixou!
— mulheres! — gritou stagg, não mais divagando.
— o quê? — perguntou calthorp, espantado pela súbita violência do
capitão.
— mulheres! oitocentos anos sem ver uma única, solitária, abandonada,
desamparada mulher! tomei mil e noventa e cinco pílulas... o suficiente para
transformar um elefante macho num capão! mas deixaram de fazer efeito!
criei uma resistência! pílulas ou não, quero uma mulher. sou capaz de ter
relações com a minha própria bisavó, cega e desdentada! sinto-me como
walt whitman quando se vangloriava de ejacular material de futuras
repúblicas. tenho uma dúzia de repúblicas em mim!
— Ótimo você ter deixado de bancar o poeta nostálgico e voltar a ser o
que era — disse calthorp. — mas pare de escarvar o chão com as patas.
breve você terá seu suprimento de mulheres. pelo que o visor deixou ver, são
as mulheres que parecem mandar e você sabe que não pode enfrentar uma
fêmea tirânica.
imitando um gorila, stagg bateu no peito robusto.
— qualquer mulher que se opuser a mim vai passar mal! depois riu e
disse:
— na verdade, estou com medo. já faz tanto tempo que falei com uma
mulher, que nem sei mais como agir.
— lembre apenas que as mulheres não mudam. seja na idade da pedra,
seja na atômica, a mulher do coronel e juddy o'grady continuam as mesmas.
stagg tornou a rir e bateu afetuosamente nas costas magras de calthorp.
depois deu ordem de descer. mas durante a descida disse:
— acha que teremos a chance de uma recepção decente? calthorp
sacudiu os ombros.
— podem enforcar-nos. ou fazer-nos reis.
e foi isso o que aconteceu. duas semanas depois de ter feito uma entrada
triunfal em washington, stagg foi coroado.
dois

— PETER, você parece um rei da cabeça aos pés — disse calthorp. — viva
peter o sexto!
calthorp, apesar do tom irônico, achava isso.
stagg tinha seis pés e seis polegadas de altura, pesava duzentas e trinta e
cinco libras e tinha quarenta e oito polegadas de tórax, trinta e duas de
cintura e trinta e seis de quadris. seu cabelo, louro-avermelhado, era
ondulado e longo. seu rosto era bonito, como uma águia é bonita. naquele
instante, parecia com uma águia na gaiola, andando de um lado para outro,
com as mãos atrás das costas como asas fechadas, com a cabeça inclinada
para a frente e com os olhos, de um azul-escuro, ferozes e concentrados.
encarava calthorp com a testa franzida.
o antropólogo estava afundado numa imensa poltrona dourada, com uma
longa piteira trabalhada pendente dos lábios. como stagg, havia perdido para
sempre os pêlos do rosto. um dia após o pouso, foi metido no chuveiro,
ensaboado e massageado. os criados os barbearam, aplicando simplesmente
um creme no rosto deles e depois retirando o creme com uma toalha. ambos
pensaram que aquela era uma fácil e deliciosa maneira de se barbear, até que
descobriram que o creme os privara para sempre do direito de usar costeletas
se tivessem vontade.
calthorp gostava da barba, mas não se opôs a ser barbeado porque os
nativos deixaram claro que consideravam a barba uma abominação e ura
fedor para as narinas da grande mãe branca. agora lamentava seu
desaparecimento. não só perdera o ar patriarcal como revelara a fraqueza do
seu queixo.
de repente, stagg parou de andar e postou-se diante do espelho que
cobria uma parede da enorme sala. olhou atentamente para sua imagem e
para a coroa que usava. era de ouro, com quatorze pontas, cada uma
encimada por um grande brilhante. olhou para o imponente colar de veludo
verde pendurado no pescoço e para o peito nu, onde havia, pintado, um sol
flamejante. olhou, com desgosto, para o largo cinto de pele de jaguar em
torno dos rins, para o saiote escarlate, para o enorme símbolo fálico preto
pendurado na frente dele, para as lustrosas botas de couro branco subindo até
os joelhos. olhou para o rei de deecee em todo seu esplendor e arreganhou os
lábios. arrancou a coroa e atirou-a brutalmente através do quarto. ela se
chocou com a parede mais afastada e rolou de volta pelo chão até os pés
dele.
— então fui coroado monarca de deecee! — gritou. — rei das filhas de
colúmbia. ou, como elas dizem no seu americano degenerado: ken-a dot uh
k'lumpaha.
"que espécie de rei sou eu? não me é permitido exercer nenhum dos
poderes e privilégios que um rei deve ter. venho reinando nesta terra
dominada por mulheres há já duas semanas e não pararam de dar toda a
espécie de recepções em minha honra. tive minhas qualidades cantadas,
literalmente, em todos os lugares onde fui com minha guarda de honra de um
seio só. fui iniciado no totem da fraternidade dos alces e, deixe-me repetir,
foram os ritos mais fantásticos que já ouvi. e fui escolhido o grande alce do
ano..."
— É natural que, se chamando stagg, você pertença aos alces — disse
calthorp. — foi ótimo que eles não tivessem descoberto que seu segundo
nome é leo. levariam um tempo dos diabos a decidir se você pertenceria aos
alces ou aos pumas. só...
franziu as sobrancelhas. stagg continuava encolerizado.
— eles me disseram que sou o pai do meu país. se é verdade, por que
não me dão a oportunidade de ser mesmo? não deixam sequer uma mulher
ficar sozinha comigo! quando me queixo disso, aquela encantadora puta, a
sacerdotisa-mor, responde que não tenho o direito de preferir nenhuma
mulher. sou o pai, o amante e o filho de cada mulher de deecee!
calthorp olhava, cada vez mais acabrunhado. levantou-se da poltrona e
dirigiu-se à ampla sacada no segundo andar da casa branca. os nativos
pensavam que a mansão real fora assim denominada em honra da grande
mãe branca. calthorp sabia que não, mas era esperto demais para discutir.
convidou stagg a se aproximar e olhar para fora.
stagg se aproximou mas fungou alto e fez uma careta.
calthorp apontou para a rua. vários homens estavam içando um enorme
tonel para a traseira de um carroção.
— bebedores de néctar, é como são chamados há muito tempo — disse
calthorp. — eles vêm diariamente apanhar os dejetos e levar para os campos.
este é um mundo onde cada troço, por menor que seja, é apanhado para a
glória da nação e para o enriquecimento do solo.
— a gente já devia estar acostumado com isso — disse stagg. — mas o
cheiro parece estar cada dia pior.
— ora, não é um cheiro novo nos arredores de washington. só que,
antigamente, era mais bovino que humano.
stagg riu e respondeu:
— quem havia de pensar que a américa, terra das casas com dois
banheiros, regredisse para a casinha com o crescente na porta? menos as
casinhas sem porta. e não é por nada saberem sobre canalização. temos água
corrente em nossos apartamentos.
— tudo o que sai da terra deve voltar à terra. não pecam contra a
natureza, drenando para o oceano milhões de toneladas de fosfatos e outros
produtos químicos, necessitados pelo solo. não são como éramos, cegos
estúpidos, matando nossa terra em nome da saúde pública.
— você não me chamou para dar esta aula — disse stagg.
— foi para isso, sim. quero lhe explicar as raízes desta cultura. ou tentar
explicar. estou em desvantagem porque gastei a maior parte do meu tempo
aprendendo a língua,
"falam inglês. mas tão longe do nosso quanto o nosso do anglo-saxão.
"degenerou, no sentido lingüístico, mais rapidamente do que era de
esperar. talvez por causa do isolamento em pequenos grupos depois da
desolação. e também porque o grosso da população era analfabeto. ler e
escrever são privilégios, exclusivos dos sacerdotes e dos diradah."
— diradah?
— os aristocratas. acho que a palavra era, originalmente, deer-riders. só
aos privilegiados era permitido cavalgar veados. diradah. análogo ao
caballero espanhol ou ao cavalier francês. ambos têm o significado original
de cavaleiro. tenho muitas coisas a lhe mostrar, mas vamos dar uma nova
olhada no mural.
andaram até a extremidade da grande sala e pararam defronte de um
enorme mural, brilhantemente colorido.
— este trabalho — disse calthorp — reproduz o grande mito básico de
deecee.
apontou para a figura da grande mãe branca, que se sobrepunha às
minúsculas planícies e montanhas e às ainda .mais minúsculas figuras
humanas.
— como você pode ver, ela está muito zangada. está ajudando seu filho,
o sol, a destruir as criaturas da terra. está enrolando o escudo azul que,
antigamente, havia estendido em torno da terra para protegê-la das ferozes
flechas do filho.
"o homem, na sua cegueira, cupidez e arrogância, corrompeu a terra que
lhe foi dada pela deusa. suas cidades, que pareciam formigueiros,
esvaziavam sua sujeira nos rios e mares, transformando-os em vastos
esgotos. envenenaram o ar com gases mortais. esses gases, suponho, não
eram apenas o produto da indústria, mas também o da radiatividade. deecee,
é claro, nada sabe a respeito de bombas atômicas.
"então colúmbia, cansada de aturar por mais tempo o homem
envenenando a terra, o qual havia também deixado de adorá-la, arrancou o
escudo protetor e permitiu ao sol desferir a força total dos seus raios sobre as
criaturas vivas."
— vejo toda essa gente e animais caindo sobre a terra inteira — disse
stagg. — nas ruas, nos campos, nos mares, no ar. os pastos secaram e as
árvores murcharam. só os homens e os animais que tiveram a sorte de estar
protegidos das flechas do sol sobreviveram.
— não tanta sorte — respondeu calthorp. — não morreram das
queimaduras solares, mas precisavam comer. os animais chegaram primeiro,
durante a noite, e comeram os cadáveres e uns aos outros. o homem, depois
de ter devorado todos os alimentos enlatados, comeu os animais. e depois o
homem comeu o homem.
"felizmente, os raios mortais duraram pouco tempo, talvez menos de
uma semana. então a deusa ficou com pena e tornou a colocar o escudo
protetor."
— mas que foi a desolação?
— posso apenas imaginar. você se lembra de que, pouco antes de termos
deixado a terra, o governo encarregou uma empresa de pesquisas de
desenvolver um sistema de difundir energia sobre todo o planeta? um cabo
foi mergulhado até bem fundo para captar a radiação térmica do centro da
terra. o calor foi transformado em eletricidade e enviado para o mundo todo
através da utilização da ionosfera como meio de condução.
"teoricamente, cada sistema elétrico do planeta podia captar aquela
energia. isso significa, por exemplo, que a cidade de manhattan podia extrair
da ionosfera toda a energia de que necessitava para iluminar e aquecer todos
os edifícios, movimentar todos os aparelhos de tevê e, depois de instalados
os mecanismos, fazer andar todos os veículos.
"acho que essa idéia foi posta em prática mais ou menos vinte e cinco
anos depois de termos deixado a terra. acho também que as advertências de
alguns cientistas, especialmente as de cardon, foram justificadas. cardon
predisse que a primeira irradiação em escala total provocaria a destruição de
uma parte da camada de ozônio.
— meu deus! — disse stagg. — se uma grande quantidade de ozônio da
atmosfera for destruída...
— as ondas curtas dos raios ultravioleta, deixando de ser absorvidas pelo
ozônio, incidiram sobre as criaturas vivas expostas à luz solar. os animais —
incluindo os homens — morreram das queimaduras solares. as plantas,
suponho, agüentaram melhor. apesar disso, o efeito nelas deve ter sido
bastante devastador para explicar os grandes desertos que vimos pela terra
toda.
"e, como se isso não bastasse, a natureza — ou a deusa, se preferir —
atacou o homem até que ele caiu, trêmulo, a seus pés. o desequilíbrio do
ozônio deve ter durado pouquíssimo tempo. então os processos naturais
restauraram a taxa normal. mas, cerca de vinte anos mais tarde, exatamente
quando o homem começava a formar pequenos núcleos isolados, aqui e ali
— a população deve ter caído de dez bilhões para um milhão em um ano —
vulcões extintos, em toda a extensão da terra, entraram em erupção.
"não sei. talvez as sondagens no interior da terra tenham causado esse
segundo cataclisma — adiado durante vinte e cinco anos porque a terra
trabalha devagar mas seguramente.
"a maior parte do japão submergiu. krakatoa desapareceu. o havaí
explodiu. a sicília partiu-se em duas. manhattan afundou no mar alguns
metros e depois voltou à tona. o pacífico ficou rodeado de vulcões em
erupção. o mediterrâneo ficou pouco menos que um inferno. maremotos
rugiram pela terra adentro, somente se detendo nos sopés das montanhas.
estas foram abaladas e as que escaparam das ondas gigantescas foram
soterradas pelas avalanchas.
"resultado: o homem voltou à idade da pedra, a atmosfera ficou cheia de
poeira e de gás carbônico, responsáveis pelos magníficos ocasos e pelo clima
subtropical de nova york, derretendo as calotas polares...
— não admira que haja tão pouca continuidade entre nossa sociedade e a
dos sobreviventes da desolação — disse stagg. — ainda assim, podemos
imaginar que eles tenham redescoberto a pólvora.
— por quê?
— por quê? porque fazer pólvora é tão simples e óbvio!
— claro — respondeu calthorp. — tão simples e óbvio que a
humanidade só levou meio milhão de anos para aprender a misturar carvão
vegetal, enxofre e nitrato de potássio nas proporções adequadas a fim de que
resultassem numa mistura explosiva. só isso.
"tomemos, agora, um duplo cataclisma como a desolação. quase todos os
livros desapareceram. seguiu-se um período de mais de cem anos, durante o
qual os pouquíssimos sobreviventes ficaram tão ocupados em se manter
vivos que não tiveram tempo para ensinar aos mais moços ler, escrever e
contar. qual foi o resultado? uma ignorância total, uma quase completa perda
do conhecimento histórico. para aquela gente, o mundo foi criado novamente
em 2100 a.d. ou 1 d.d., ou seja, a época deles. d.d., depois da desolação. seus
mitos dizem que foi assim.
"vou-lhe dar um exemplo. o cultivo do algodão. quando deixamos a
terra, o algodão não era mais cultivado porque os plásticos substituíram as
fibras para fazer tecidos. sabe que o algodoeiro foi redescoberto há apenas
duzentos anos? o milho e o tabaco nunca desapareceram. mas até há
trezentos anos, os homens vestiam peles de animais ou nada. habitualmente
nada."
calthorp levou stagg do mural para a sacada,
— estou divagando, mas não há muito mais a fazer. olhe para fora, pete.
você está vendo uma washington, ou wazhtin, como é chamada agora, como
nunca vimos antes. washington foi demolida duas vezes desde que partimos
e a cidade atual foi construída há duzentos anos sobre os escombros das
cidades mortas. foi feito um esforço para reconstruí-la à maneira da antiga
metrópole. mas um zeitgeist diferente dominou os construtores. eles a
ergueram de acordo com os ditames de suas crenças e mitos.
apontou para o capitólio. parecia-se, em alguns aspectos, com o que
estava na memória deles. mas tinha duas cúpulas em vez de uma, e uma torre
vermelha no topo de cada cúpula.
— foi construído tendo como modelo os seios da grande mãe branca —
disse calthorp.
apontou para o monumento a washington, agora situado a cerca de cem
jardas à esquerda do capitólio. tinha trezentos pés de altura, uma torre de aço
e cimento, pintada como uma insígnia de barbeiro, com listas vermelhas,
brancas e azuis, e encimada por uma estrutura redonda, vermelha.
— não preciso lhe dizer o que isto procura representar. o mito diz que
pertence ao pai do seu país. dizem que o próprio washington está enterrado
ali. ouvi isso ontem à noite, contado com a maior devoção por john grão-de-
cevada em pessoa.
stagg atravessou o patamar da sacada e foi para a varanda do seu
apartamento no segundo andar. a varanda circundava o pavimento
totalmente, mas calthorp não passou da esquina. stagg, que se atrasara ao
segui-lo, encontrou-o debruçado no parapeito. este era composto de
pequenas cariátides de mármore que sustentavam grandes bandejas na
cabeça. calthorp apontou por cima do alto pomar nos fundos da casa branca.
— está vendo aquele edifício branco, com uma enorme estátua de
mulher no topo? ela é colúmbia, a grande mãe branca, vigiando e protegendo
seu povo. para nós, não passa de uma figura de uma religião paga. mas para
o povo dela — nossos descendentes — é uma força viva e vital, que dirige
esta nação ao encontro do seu destino. e usando de todos os meios. quem
ficar no seu caminho será esmagado... de uma maneira ou de outra.
— vi o templo quando vim a washington pela primeira vez — disse
stagg. — passa-se por ele no caminho da casa branca. lembra como sarvant
quase morreu de vergonha quando viu as figuras esculpidas nas paredes?
— que pensa delas? stagg corou e resmungou:
— eu pensei que era calejado, mas aquelas estátuas! nojentas, obscenas,
absolutamente pornográficas! e ainda por cima colocadas num lugar
destinado à adoração!
calthorp sacudiu a cabeça.
— nada disso. você compareceu a dois serviços. foram realizados com
grande dignidade e beleza. a religião oficial é um culto da fertilidade e suas
imagens são representações de vários mitos. conta histórias cuja moral óbvia
é que o homem, uma vez, quase destruiu a terra por causa do seu terrível
orgulho. ele e sua ciência e arrogância perturbaram o equilíbrio da natureza.
mas agora esse equilíbrio foi restaurado e cabe ao homem manter sua
humildade, trabalhar de braços dados com a natureza — que eles acreditam
ser uma deusa viva, cujas filhas casam com heróis. se você prestou atenção,
as deusas e os heróis reproduzidos nas paredes enfatizam, com sua postura, a
importância da adoração da natureza e da fertilidade.
— É? olhando certas posturas reproduzidas, garanto que algumas delas
não fertilizam nada.
calthorp sorriu.
— colúmbia é, também, a deusa do amor erótico.
— tenho a impressão — disse stagg — de que você está tentando me
dizer alguma coisa. mas por linhas tortas. e também tenho a impressão de
que não vou gostar do que está tentando me dizer.
nesse momento, ouviram o soar de um gongo na sala que haviam
acabado de deixar. correram para ver o que era.
foram saudados por uma explosão de clarins e troar de tambores. uma
banda de músicos-sacerdotes da georgetown university, situada nos
arredores, desfilava pela sala. eram rapazes gordos e bem alimentados, que
se haviam castrado em homenagem à deusa — e, incidentalmente, se
garantido uma perpétua posição de prestígio e segurança. À maneira das
mulheres, estavam vestidos com blusas de golas altas e mangas compridas e
saias até os tornozelos.
atrás deles, marchava o homem conhecido como john grão-de-cevada.
stagg não sabia o nome dele; "john grão-de-cevada" era, evidentemente, um
título. e também não sabia qual era a exata posição de grão-de-cevada no
governo de deecee. ele vivia na casa branca, no terceiro andar, e parecia estar
muito ligado à administração do país. sua função era, provavelmente,
semelhante à do primeiro-ministro da antiga grã-bretanha.
os heróis solares, tal como o monarca inglês, eram mais figuras de proa,
exemplo de lealdade e tradição, que verdadeiros governantes. ou assim
parecia a stagg, que fora forçado a calcular o que significava a maioria dos
fenômenos que aconteciam em torno dele durante sua prisão.
john grão-de-cevada era um homem muito alto e magro, de trinta e cinco
anos mais ou menos. seu longo cabelo estava pintado de verde brilhante e
usava óculos verdes. seu longo nariz arrebitado e seu rosto estavam cobertos
por uma rede de veias vermelhas. usava uma enorme cartola verde. tinha no
pescoço um colar de espigas de cevada. seu torso estava nu. o saiote era
verde e a bolsa pendurada no cinto era feita de um tecido forte, cortado em
forma de folhas de cevada. usava sandálias amarelas.
carregava na mão direita o emblema do seu cargo, uma grande garrafa de
relâmpago branco.
— salve, homem e mito! — disse, dirigindo-se a stagg. — saudações ao
herói solar! saudações ao exuberante, extraordinário garanhão do totem do
alce! saudações ao pai do seu país e ao filho e amante da grande mãe branca!
tomou um grande gole pelo gargalo da garrafa, limpou os lábios e passou
a garrafa a stagg.
— chegou na hora — disse o capitão, virando uma talagada. logo a
seguir, depois de se ter sufocado, tossido e chorado copiosamente, devolveu
a garrafa.
grão-de-cevada ficou exultante. — o senhor foi formidável, nobre alce! o
senhor deve ter sido visitado pela potência especial da própria colúmbia,
para ser tão afetado pelo relâmpago branco. de fato, o senhor é divino! veja
eu; sou um pobre mortal e quando bebi pela primeira vez o relâmpago
branco, fui afetado. contudo, devo confessar que, quando assumi pela
primeira vez a função, ainda rapaz, tinha capacidade de sentir a sagrada
presença da deusa na garrafa e ser tão afetado quanto o senhor. mas um
homem torna-se calejado, mesmo diante da divindade, que ela me perdoe por
dizê-lo. já lhe contei como colúmbia liquidificou pela primeira vez um
relâmpago e o engarrafou? e como ela o deu ao primeiro, nem mais nem
menos, o próprio washington? e como desgraçadamente este se comportou e
incorreu por isso na ira da deusa?
"já lhe contei? então, passemos às obrigações. estou lhe trazendo uma
mensagem da própria sacerdotisa-chefe. amanhã é o aniversário do filho da
grande mãe branca. e o senhor, o filho de colúmbia, vai nascer amanhã. e
então vai começar tudo outra vez."
tomou outro gole, cambaleou para stagg, quase caiu em cima dele,
tornou a se equilibrar e atirou-se para fora da sala. stagg chamou-o.
— espere aí! quero saber o que aconteceu com minha tripulação!
grão-de-cevada piscou.
— eu lhe disse que eles estavam num edifício no campas da georgetown
university.
— quero sabor onde estão agora... neste instante!
— estão sendo muito bem tratados. têm tudo o que querem, menos a
liberdade. e, esta, vão tê-la amanhã de manhã.
— por que só então?
— porque também o senhor será libertado. claro, não poderá vê-los. o
senhor estará na grande marcha.
— o que é isso?
— o senhor saberá.
grão-de-cevada virou-se para sair, mas stagg disse: — diga-me quem é
aquela moça presa na jaula. sabe, aquela com o cartaz que diz: "mascote,
capturada numa incursão em caseyland".
— também saberá isso, herói solar. entretanto, acho que não fica bem a
um homem da sua importância diminuir-se fazendo perguntas. a grande mãe
branca explicará tudo oportunamente.
depois da saída de grão-de-cevada, stagg disse para calthorp:
— que maluquice estava ele tentando esconder? o homenzinho franziu o
cenho.
— também gostaria de saber. afinal de contas, minha chance de examinar
os mecanismos sociais desta cultura está se tornando um tanto limitada. e
justamente a esse respeito...
— o esse respeito, o quê? — perguntou stagg, agitado. calthorp estava
olhando soturnamente.
— amanhã é o solstício de inverno. solstício de inverno... quando o sol
fica mais fraco no hemisfério norte e atinge sua mais extrema posição ao sul.
no calendário que usávamos, era vinte e um ou vinte e dois de dezembro. até
onde posso me lembrar, era uma data muito importante nos tempos pré-
históricos e mesmo nos históricos. toda espécie de cerimônias relacionadas
com ela, como... ahhh!
foi mais um gemido que uma exclamação de subida recordação.
stagg ficou ainda mais assustado. ia começar a perguntar o que havia de
errado quando a banda explodiu novamente. os músicos e assistentes se
viraram para a porta e caíram de joelhos.
gritaram em coro:
— grande sacerdotisa, carne viva de virgínia, filha de colúmbia! donzela
sagrada! beleza ímpar! virgínia perderá, breve, sua santificada e suave prega
para o impetuoso garanhão... descuidado, selvagem e excitado macho!
sagrada e condenada virgínia!
uma moça alta, de dezoito anos, entrou sobranceira na sala. era bela,
embora tivesse nariz adunco e rosto lívido. seus lábios cheios eram
vermelhos como sangue. seus olhos azuis eram penetrantes e inflexíveis
como os de um gato. seus ondulados cabelos cor de mel caíam até os
quadris. era virgínia, formada pelo vassar college, sacerdotisa oracular e
filha encarnada de colúmbia.
— alô mortais — disse ela, em voz alta e clara. olhou para stagg.
— alô, imortal.
— alô, virgínia — respondeu ele.
sentiu o sangue circular violentamente pelo corpo e a dor crescer em seu
peito e quadris. cada vez que a encontrava, sentia aquele irreprimível desejo
de possuí-la. percebeu que, se estivesse sozinho com ela, a possuiria,
quaisquer que fossem as conseqüências.
virgínia não deu o menor sinal de ter percebido a impressão causada
nele. olhou-o com a inabalável fixidez de uma leoa.
virgínia, como todas as mascotes, estava vestida com uma túnica
comprida até os pés, de gola alta, mas sua vestimenta era coberta por
enormes pérolas. uma ampla abertura triangular na roupa expunha seus
grandes mas empinados seios. os mamilos haviam sido maquilados de
vermelho e cercados por dois anéis, um azul e outro branco.
— amanhã, imortal, você se tornará ao mesmo tempo filho e amante da
mãe. por isso, é necessário que se prepare.
— que devo exatamente fazer para me preparar? — perguntou stagg. —
e por que devo fazê-lo?
olhou para ela e sentiu o corpo inteiro doer.
ela moveu a mão. imediatamente john grão-de-cevada, que devia estar
esperando fora de vista, apareceu. trazia agora duas garrafas, o relâmpago
branco e um líquido escuro. um sacerdote-eunuco ofereceu-lhe uma taça. ele
a encheu com a matéria escura e entregou-a à sacerdotisa.
— só você, pai do seu país, pode beber isto — disse ela, dando a taça a
stagg. — isto é o máximo. feito com as águas dos sticks.
stagg apanhou a taça. olhou-a duvidosamente, mas procurou se mostrar
despreocupado.
— cachaça clandestina, hem? bom, vamos lá! ninguém poderá dizer que
peter stagg não quis beber o fino... aaourrwkoosh!
os clarins vibraram, os tambores troaram, os presentes bateram palmas e
gritaram.
foi então que ouviu calthorp protestando.
— capitão, o senhor se enganou! ela não disse stick. ela disse styx. Águas
do s-t-y-x! percebeu?
stagg percebera mas não podia fazer nada. a sala girou, vertiginosamente
e a escuridão caiu sobre ele como um enorme morcego negro.
entre as clarinadas e os gritos, ele caiu de cabeça no chão.
trÊs

— QUE RESSACA! — resmungou stagg.


— temo que sim! — disse uma voz que stagg mal reconheceu como a de
calthorp.
stagg sentou-se e, então, berrou pela dor e pelo choque. pulou para fora
da cama, caiu de joelhos por causa da fraqueza, lutou para ficar de pé e
olhou para os três grandes espelhos que faziam ângulo uns com os outros.
estava nu. seus testículos estavam pintados de azul; o pênis, de vermelho; as
nádegas, de branco. não se preocupou com isso. não podia se preocupar com
coisa alguma, a não ser com as duas coisas que ele viu sobressaindo de sua
testa, num ângulo de quarenta e cinco graus, com a altura de um pé e com
ramificações em vários pontos.
— cornos! como fizeram isso? quem os colocou? por deus, se pego o
engraçadinho...
e tentou tirar as coisas da cabeça. gritou de dor e deixou as mãos caírem
ao longo do corpo, enquanto continuava a olhar para o espelho. havia uma
mancha de sangue na base de um dos chifres.
— não são cornos — disse calthorp. — são chifres. faço questão de ser
preciso. chifres... e não o duro, morto e nem do tipo córneo. são, de fato,
convenientemente macios, quentes, aveludados. se colocar o dedo aqui
sentirá uma artéria pulsando, logo abaixo da superfície. se irão se
transformar, mais tarde, nos duros chifres sem vida do garanhão maduro, não
sei.
o capitão estava com medo e procurava um pretexto para explodir.
— está bem, calthorp! — rugiu. — você está metido nesta palhaçada? se
estiver, vou reduzi-lo a pedaços!
— você não só parece um animal, mas começa a agir como tal —
murmurou calthorp.
stagg poderia ter batido no pequeno antropólogo por causa do que ele
dissera. mas viu que calthorp estava pálido e com as mãos trêmulas, sua
atitude era um disfarce para o pavor real que o possuía.
— está bem — disse stagg, mais calmo. — que foi que houve?
com a voz insegura, calthorp contou-lhe que os sacerdotes carregaram
seu corpo inconsciente para o quarto. mas uma multidão de sacerdotisas
correu sobre eles e se apoderou do corpo de stagg. durante um pavoroso
momento, calthorp temeu que stagg fosse estraçalhado pelas duas facções.
no entanto, a luta era simulada, era um ritual; as sacerdotisas deviam ficar
com o corpo.
stagg foi carregado para o quarto. calthorp tentou segui-lo, mas foi
literalmente expulso.
— percebi logo o negócio. elas não queriam nenhum homem no quarto a
não ser você. até os cirurgiões eram mulheres. juro que quando as vi
entrarem no quarto carregando serrotes, brocas e ataduras, e toda aquela
parafernália, quase fiquei maluco. principalmente quando vi que as cirurgias
estavam bêbedas. que bando de selvagens! mas john grão-de-cevada me fez
ir embora. disse-me que, naquela altura, as mulheres seriam capazes de
estraçalhar — literalmente — o primeiro homem que encontrassem. ele
insinuou que alguns dos músicos não se qualificaram voluntariamente como
candidatos a sacerdotes; simplesmente, não foram bastante rápidos para sair
do caminho das mulheres na véspera do solstício de inverno.
"grão-de-cevada me perguntou se eu era um alce. só os irmãos de totem
do grande garanhão estavam relativamente a salvo naquele período. respondi
que não era um alce, mas que era membro do lion's club... embora minhas
mensalidades não viessem sendo pagas havia muito tempo. ele me respondeu
que eu estaria em segurança no ano passado, quando o herói solar foi um
puma. mas agora eu estava em perigo mortal. e ele insistiu para que eu saísse
da casa branca até que o filho — ele se referia a você — nascesse. então eu
saí. voltei de madrugada e não encontrei ninguém, exceto você. fiquei a seu
lado até que você acordasse."
ele sacudiu a cabeça e cacarejou com um jeito simpático.
— sabe — disse stagg — várias coisas me aconteceram. É tudo muito
vago e confuso, mas posso me lembrar de terem acontecido depois que bebi
aquele troço. fiquei fraco e desamparado como uma criança. havia um
barulho infernai em torno de mim. mulheres gritando como se estivessem
sofrendo as dores do parto...
— você era o nascituro — disse calthorp.
— era. como sabe?
— as coisas começaram a tomar um jeito mais familiar.
— por favor, não me deixe no escuro! — implorou stagg. — afinal de
contas, eu escava só meio consciente a maior parte do tempo. tentei resistir
quando me puseram sobre uma mesa e colocaram em cima de mim um
carneirinho branco. eu não tinha a menor idéia do que elas pretendiam... até
que o degolaram. fiquei encharcado de sangue da cabeça aos pés.
"depois ele foi retirado e fui forçado a passar por uma estreita abertura
triangular. a abertura devia ter uma estrutura de metal, mas era revestida por
uma matéria esponjosa cor-de-rosa. duas sacerdotisas me seguravam pelos
ombros e me empurravam pela abertura. a outras ululavam como bruxas.
dopado como eu estava, meu sangue gelou. você nunca ouviu guinchos
iguais a esses em toda sua vida!"
— ouvi, sim — respondeu stagg. — toda washington os ouviu. toda a
população adulta estava parada mesmo defronte dos portões da casa branca.
— eu estava parado na abertura e as sacerdotisas me empurraram
violentamente. meus ombros foram esmagados. de repente, senti água
escorrendo pelas minhas costas; alguém abrira uma mangueira em cima de
mim. lembro ter pensado que deveria haver uma espécie de bomba na casa
para a água ter aquela pressão formidável.
"aí, deslizei pela abertura... mas não caí no chão. duas sacerdotisas
agarraram minhas pernas. fui suspenso no ar e posto de cabeça para baixo. e
fui espancado, duramente espancado. fiquei tão chocado que berrei.
— isso era o que elas queriam que você fizesse.
— aí fui posto em outra mesa. meu nariz, boca e olhos foram limpos. É
gozado, mas até esse instante eu não havia percebido que minha boca e
narinas estavam cheias de um troço parecido com um muco espesso. devo ter
tido qualquer problema respiratório, mas não tinha consciência disso... aí...
aí...
— aí?
stagg corou.
— aí me carregaram para aquela sacerdotisa tremendamente gorda que
escava reclinada sobre almofadas na minha cama. nunca a vira antes.
— talvez ela venha de manhattan — disse calthorp. — grão-de-cevada
me disse que a sacerdotisa-chefe de lá é enorme.
— enorme é a palavra — continuou stagg. — ela era a maior mulher que
já vi em toda minha vida. aposto que, de pé, é tão alta quanto eu. e deve
pesar mais de trezentas e cinqüenta libras. tinha o corpo todo empoado;
devem ter usado um barril de pó para cobri-la. ela era vasta, redonda e
branca. uma abelha-mestra humana, nascida para não fazer nada a não ser
pôr milhões de ovos e...
— e o quê? — perguntou calthorp, depois de stagg ter ficado em silêncio
durante quase um minuto.
— colocaram-me de tal maneira, que minha cabeça repousou num dos
seios dela. É um dos maiores do mundo, juro. parece a curvatura da própria
terra. aí ela pegou minha cabeça e virou-a. quis lutar, mas estava tão fraco
que não pude resistir. não pude fazer nada.
"de repente, senti-me como um bebezinho. não era mais um adulto, era o
recém-nascido peter stagg. devia ser por causa do efeito daquela bebida. juro
que era um hipnógeno. seja como for, eu tinha... eu tinha..."
— fome? — perguntou calthorp, calmamente. stagg concordou com a
cabeça.
nesse instante, num evidente desejo de fugir ao assunto, pôs a mão num
dos chifres e disse:
— hmmm. os cornos estão sòlidamente implantados.
— chifres — disse calthorp. — mas você pode perfeitamente continuar a
empregar mal a palavra. sei que também em deecee se usa a palavra inexata.
ora, mesmo que eles não distingam entre chifres e cornos na fala popular,
seus cientistas são biólogos excelentes. talvez não tão bons em física e
eletrônica, mas soberbos artistas da carne. por falar nisso, esses chifres são
mais que simbólicos e ornamentais. têm uma função. aposto mil contra um
como contêm glândulas que estão bombeando toda espécie de hormônios
para dentro de sua corrente sangüínea.
stagg estremeceu.
— por que você acha isso?
— por um lado, grão-de-cevada deu a perceber que poderiam fazê-lo.
por outro, essa sua fenomenal recuperação de uma operação tão grande.
afinal de contas, foi necessário praticar dois orifícios no seu crânio,
implantar os chifres, ligar os vasos sangüíneos, fazer a conexão da corrente
sangüínea dos chifres com a sua e, quem sabe o que mais? stagg pigarreou e
disse:
— alguém vai se arrepender disso. a culpa é daquela virgínia! arrebento
com ela na primeira vez que a vir. estou cansado de ser jogado de um lado
para outro.
calthorp estava olhando atentamente para ele. disse:
— está se sentindo bem?
stagg dilatou as narinas e bateu no peito.
— não estava. mas agora estou me sentindo como se pudesse derrotar o
mundo. a única coisa é que estou com a fome de um urso saído da
hibernação. quanto tempo estive fora?
— cerca de trinta horas. como pode ver, está ficando escuro lá fora. —
calthorp pôs a mão na testa de stagg. — você está com febre. sério. seu
corpo está rugindo como um forno, fabricando novas células a torto e a
direito, bombeando hormônios como um louco para dentro do sangue.
precisa de combustível para o forno.
stagg esmurrou o tampo da mesa.
— também preciso de um drinque! estou queimando! socou o gongo
repetidamente até que o som se espalhou pelo palácio. como se estivessem
esperando pelo sinal, criados entraram de roldão. carregavam bandejas com
inúmeros alimentos e taças.
stagg, sem nenhuma educação, arrancou uma bandeja das mãos de um
criado e começou a devorar a carne, as batatas, o molho, o milho, os tomates,
o pão e a manteiga, com rápidos movimentos dos maxilares, só parando para
lavá-los com tremendas goladas de cerveja. os alimentos e a cerveja
escorriam pelo peito e pernas dele, mas, embora o comandante tivesse sido
sempre um garfo exigente, não se importou.
num certo instante, depois de um enorme arroto que quase derrubou um
criado, trovejou:
— posso comer mais, beber mais...
foi interrompido por outro arroto gigantesco e voltou a comer como um
porco no cocho.
sentindo-se mal, não pelo que via, mas pelo que aquilo implicava,
calthorp deu-lhe as costas. evidentemente, os hormônios estavam varrendo
as inibições do comandante e expondo a parte puramente animal do ser
humano. que viria a seguir?
finalmente, com a barriga estufada como a de um gorila adulto, stagg
levantou-se. bateu no peito e gritou:
— sou o maior, o maior! eh, calthorp, você também deve arranjar um par
de cornos! oh, é claro, eu esqueci! você já tem um par. foi por isso que
deixou a terra na primeira vez, não foi? ha, ha!
o pequeno antropólogo, com o rosto inflamado e contorcido, berrou e
correu sobre stagg. este riu, pegou-o pela camisa e o manteve afastado,
enquanto calthorp tentava, sem sucesso, atingi-lo com seus braços curtos.
subitamente, calthorp sentiu o quarto ir ao encontro dele velozmente.
chocou-se violentamente com alguma coisa atrás dele. houve uma gongada
altíssima e ele percebeu vagamente, quando estava sentado meio
inconsciente no chão, que devia ter-se chocado com o gongo.
percebeu que uma enorme mão o havia agarrado dolorosamente pelo
pulso, pondo-o de pé. temendo que stagg fosse acabar com ele, cerrou o
punho para dar um corajoso mas inútil soco. então deixou o braço tombar.
corriam lágrimas dos olhos de stagg.
— meu deus, que está me acontecendo? devo estar completamente
maluco para fazer uma coisa dessas com você, meu melhor amigo! o que é
que está errado'! como pude fazer isso?
soluçou e puxou calthorp para junto dele, abraçando-o afetuosamente.
calthorp gemeu de dor quando suas costelas foram apertadas. stagg,
parecendo sofrer, largou-o.
— está bem, eu perdôo você — disse calthorp, recuando
precavidamente.
agora percebia que stagg não era responsável pelo que fizera. tornava-se
criança em alguns momentos. mas uma criança não é totalmente egoísta e
pode freqüentemente ser carinhosa. stagg estava verdadeiramente penalizado
e envergonhado.
calthorp foi até a sacada e olhou.
— a rua está regurgitando de gente e incendiada de tochas — disse. —
vai haver outra festa esta noite.
mesmo para ele aquilo soava falso. sabia muito bem que deecee estava
reunida para uma cerimônia que teria seu comandante como convidado de
honra.
— outro esfolamento, você quer dizer — respondeu stagg. — nada
detém essa gente quando começam uma festa. as inibições são jogadas fora
como a pele velha das serpentes. e não se incomodam com quem ficar ferido.
depois fez uma declaração que surpreendeu calthorp.
— espero que comecem a festa cedo. quanto mais cedo, melhor.
— por que, pelo amor de deus? — perguntou calthorp. — já não viu o
bastante para ficar apavorado?
— não sei. mas há alguma coisa em mim que não havia antes. estou
sentindo uma ânsia e uma força, uma força real,, que nunca tive antes. me
sinto... me sinto... como um deus i um deus! estou explodindo com a força
do mundo inteiroi quero explodir! você não pode saber como me sinto!
nenhum homem pode!
fora, as sacerdotisas gritavam, correndo pelas ruas.
eles pararam de conversar para ouvir. ficaram como estátuas de pedra
enquanto ouviam a luta simulada entre as sacerdotisas e as guardas de honra.
aí os alces derrotaram as sacerdotisas.
depois houve o barulho de pés no hall do apartamento deles, o barulho
dos alces batendo tão violentamente nas portas com seus corpos que as
arrancaram dos gonzos.
stagg foi içado para os ombros deles e levado.
stagg pareceu, por um instante, estar em seu estado normal. voltou-se e
gritou:
— socorro, doutor! socorro!
calthorp não pôde fazer nada, a não ser chorar.
quatro

ERAM OITO: churchill, sarvant, lin, yastzhembski, al-masyuni, steinborg,


gbwe-hun e chandra.
eles junto com os ausentes stagg e calthorp, eram os dez sobreviventes
dos trinta que, originalmente, haviam deixado a terra oitocentos anos antes.
estavam reunidos na ampla sala de descanso do edifício no qual estavam
sendo mantidos como prisioneiros nas últimas seis semanas. estavam
ouvindo tom tabaco.
tom tabaco não era o nome dele. o verdadeiro, nenhum deles sabia.
haviam perguntado, mas tom tabaco respondera que nunca ninguém o
mencionara nem nunca ele o ouvira. no momento em que se tornara tom
tabaco deixara de ser um homem para se tornar um dim. ao que parecia, dim
era a palavra usada para designar os semideuses.
— se as coisas tivessem andado normalmente — estava ele dizendo —
não seria eu, mas grão-de-cevada quem estaria aqui falando com os
senhores. mas a grande mãe branca achou conveniente acabar com a v;da
dele antes dos ritos do plantio. foi realizada uma eleição e eu, na qualidade
de chefe da grande fraternidade do tabaco, ocupei o lugar dele como
administrador de deecee. e aqui ficarei até ser bem velho e fraco... e então o
que será, será.
no pouco tempo em que a tripulação da astronave esteve em washington,
aprendeu a fonologia, a morfologia, a sintaxe e o vocabulário básico da
linguagem comum de deecee. as máquinas do laboratório da terra os
tornaram capazes de falar o deecee fluentemente, embora não pudessem
pronunciar os fonemas tão bem quanto um nativo e, provavelmente, nunca o
conseguiriam. a estrutura da língua inglesa mudara muito; agora havia
alguns sons nunca ouvidos antes em inglês ou mesmo nos seus parentes
germânicos; havia muitas palavras vindas de fontes desconhecidas; uma
combinação de acentuação e entonação desempenhava um papel importante
no significado das palavras.
além disso, a falta de conhecimento da cultura de deecee impedia a
compreensão. para aumentar ainda mais as dificuldades, o próprio tom
tabaco não conseguia falar o deecee comum com muita facilidade. havia
nascido e se criado em norfolk, virgínia, a cidade mais ao sul da nação
deecee. nafek, ou norfolquês diferia tanto do wazluliii, ou washingtoniano,
como o espanhol do francês ou o sueco do islandês.
tom tabaco, como seu predecessor john grão-de-cevada, era alto e magro.
usava cartola marrom, plastrão feito de um tecido marrom duro, imitando
folhas de tabaco, capa marrom, saiote esverdeado, do qual pendia um
charuto de dois pés de comprimento, e botas marrons, que iam até a barriga
da perna. seu cabelo comprido era castanho, seus óculos puramente
decorativos eram tingidos da mesma cor e um enorme charuto castanho
estava preso entre seus dentes manchados de marrom. enquanto falava,
tirava charutos de um bolso do saiote e os distribuía pelo grupo. todos,
menos sarvant, os aceitaram e acharam excelentes.
tom tabaco expeliu uma densa nuvem de fumaça verde e disse:
— serão libertados assim que eu me for. o que será breve. sou um
homem ocupado. tenho de tomar muitas decisões, assinar muitos papéis,
comparecer a muitas solenidades. meu tempo não me pertence; pertence à
grande mãe branca.
churchill tirou uma longa baforada do charuto para ter tempo de refletir
antes de falar. os outros estavam falando ao mesmo tempo, mas quando
churchill começou, todos calaram. ele era o primeiro imediato da terra e
agora que stagg desaparecera era não só o oficial em comando, mas, por
força de sua personalidade, um verdadeiro líder.
era um homem baixo e troncudo, de pescoço, braços e pernas grossos.
tinha um rosto infantil mas ao mesmo tempo forte. tinha cabelos vermelhos,
espessos e crespos, e rosto avermelhado, com leve quantidade de sardas.
tinha olhos redondos e azuis como os dos bebês; o nariz era pequeno e
redondo. no entanto, se tinha à primeira vista tudo de um bebê indefeso,
tinha, também, a habilidade de uma criança para dirigir os que o rodeavam.
sua voz, totalmente em desacordo com sua aparência, soou cheia e rica.
— o senhor pode ser um homem ocupado, mister tabaco, mas não o
bastante, no entanto, para não poder nos dizer o que esta acontecendo. fomos
aprisionados. não nos permitiram falar com nosso comandante ou com o
doutor calthorp. temos motivos para desconfiar que eles foram vítimas de
uma cilada. além disso, quando perguntamos por eles, nos respondem que o
que será, será. muito engraçado! muito reconfortante!
"agora, mister tabaco, quero que responda às nossas perguntas. e não
pense que, porque tem guardas colocados lá fora, não podemos fazê-lo em
pedaços imediatamente. queremos respostas e já!"
— tome um charuto e se acalme — respondeu tom tabaco. — o senhor
foi, com certeza, enganado e está furioso. mas não fale de direitos. os
senhores não são cidadãos de deecee e estão numa situação muito precária.
"apesar disso, vou-lhes dar algumas respostas; foi para isso que vim.
primeiro, vão ser libertados. segundo, terão um mês para se integrarem na
vida de deecee. terceiro, se, no fim desse mês, não se mostrarem capazes de
ser bons cidadãos, serão mortos. não exilados, mas mortos. porque, se os
escoltarmos até o outro lado das fronteiras com outro país, estaremos
incrementando a população dos estados inimigos. e não temos a intenção de
fazê-lo."
— finalmente, sabemos onde estamos — disse churchill.
— quer dizer, vagamente. teremos possibilidade de ir à terra"! o
resultado de dez anos de estudos únicos estão dentro daquela nave.
— não, não poderão. contudo, suas bagagens lhes serão entregues.
— obrigado — disse churchill. — sabe que, a não ser uns poucos livros,
não temos um tostão de nosso? como nos arranjaremos enquanto procuramos
emprego? talvez não sejamos capazes de arranjar emprego nesta sociedade
um tanto primitiva.
— na verdade, não sei dizer — respondeu tom tabaco.
— afinal de contas, permitimos que conservem suas vidas. houve quem
nem isso lhes quisesse dar!
meteu dois dedos na boca e assoviou. apareceu um homem com um
saquinho na mão.
— senhores, agora preciso ir. assuntos oficiais. todavia,
para evitar que infrinjam, por ignorância, as leis desta bendita nação e
também para afastar qualquer tentação de roubo, este homem vai esclarecê-
los sobre nossas leis e emprestar-lhes dinheiro bastante para comprarem
comida para uma semana. pagarão quando tiverem empregos... se os
tiverem. colúmbia os abençoe.
uma hora depois, os oito homens estavam parados defronte do edifício,
lugar até onde haviam sido escoltados.
longe de estarem contentes, sentiam uma certa confusão e mais que um
certo desamparo.
churchill os olhou e, apesar de se sentir como eles, disse:
— pelo amor de deus, animem-se! que é que há com vocês? já passamos
por coisas piores. lembram de quando estivemos em wolf 69 iii, e
atravessamos numa balsa aquele enorme pântano do tipo jurássico? e do ser
parecido com um balão, que nos perseguiu e nos fez perder as armas dentro
dágua, obrigando-nos a voltar indefesos para a nave? foi muito pior que
agora e não ficamos tão desanimados. que é que há? vocês já não são mais
os mesmos?
— acho que não — respondeu steinborg. — não é porque tenhamos
perdido a coragem. mas porque esperamos demais. quando pousamos num
planeta recém-descoberto, esperamos o inesperado e o desastroso. sempre
contamos com isso. mas aqui, ora, esperamos demais... além do fato de
estarmos sem recursos. estamos desarmados e, se corrermos na direção de
uma situação complicada, simplesmente não podemos abrir nosso caminho a
bala e voltar para a nave.
— então vocês querem ir ficando e esperar que tudo entre nos eixos? —
perguntou churchill. — pelo amor de deus! vocês são a nata da terra,
escolhidos entre dez mil candidatos por causa dos seus q.i., de sua educação,
de seu engenho, de suas condições físicas. e agora vocês ficam zanzando no
meio de um povo que não tem o conhecimento que vocês têm no dedo
mindinho! vocês poderiam ser deuses... e são ratos!
— pare com isso! — intimou lin. — ainda estamos sob o efeito do
choque. não sabemos o que fazer nem o que está nos assustando.
— bom, eu não vou ficar por aí até que uma alma generosa chegue e me
estenda a mão — continuou churchill. — vou agir... e já!
— e o que é que você vai fazer? — perguntou yastzhembski.
— vou andar por washington até encontrar alguma coisa interessante. se
quiserem vir comigo, podem. mas se quiserem seguir seus próprios
caminhos, também estou de acordo. sou o líder de vocês, mas não quero ser
o pastor.
— você não entende — respondeu yastzhembski. — seis de nós não
nasceram neste continente. eu gostaria de retornar à minha querida sibéria.
gbwe-hun quer voltar ao daomé. chandra, à índia. al-masyuni, para meca. lin,
para xangai. mas isso parece impossível. steinborg poderia,
presumivelmente, voltar para o brasil. no entanto, se o fizer, só encontrará
deserto e selva e selvagens ululantes. por isso...
— por isso, vocês têm de ficar aqui e fazer o que tabaco sugeriu... se
adaptar. pois o que eu vou fazer é isto. alguém me acompanha?
churchill não esperou novos argumentos. começou a descer a rua e não
olhou para trás uma só vez. quando dobrou uma esquina, porém, parou para
olhar um grupo de garotinhos e garotinhas nus, jogando bola na rua.
cerca de cinco minutos mais tarde, suspirou. aparentemente, ninguém o
acompanhara.
tinha-se enganado. assim que se virou para continuar a andar, ouviu
alguém chamá-lo.
— espere um instante, churchill. era sarvant.
— onde estão os outros? — perguntou churchill.
— os asiáticos decidiram tentar voltar para a terra deles. quando os
deixei, ainda estavam discutindo se deviam roubar uma embarcação e
atravessar o atlântico ou roubar um veado e cavalgar para o estreito de
bering, onde atravessariam de barco para a sibéria.
— isso os torna os homens mais corajosos do mundo... ou os mais
estúpidos. eles acham mesmo que vão conseguir? ou acham que lá terão
melhores condições que aqui?
— eles não sabem o que vão encontrar, mas estão desesperados.
— eu gostaria de voltar e desejar-lhes felicidades — disse churchill. —
mas acabei de tentar tirar-lhes essa idéia da cabeça. são uns tipos corajosos.
compreendi quando os chamei de ratos, mas estava tentando encorajá-los.
talvez eu o tenha conseguido.
— abençoei-os, embora a maioria deles seja agnóstica — disse sarvant.
— mas temo que os ossos deles embranqueçam neste continente.
— e você? vai tentar o arizona?
— pelo que vi do arizona, quando estávamos circunavegando a terra,
diria que não há, lá, governo organizado e quase não há ninguém. vou tentar
o utah, mas não parece muito melhor. até o lago salgado secou. não há nada
que estimule a volta. não importa. há muito o que fazer aqui.
— trabalho? você não quer dizer sermão?
churchill olhou, incrédulo, para sarvant, como se só naquele instante
percebesse seu verdadeiro caráter.
nephe sarvant era um homem baixo, moreno, ossudo, de cerca de
quarenta anos. seu queixo era tão pronunciado que dava a impressão de ter a
ponta revirada para cima. seus lábios eram tão finos que sua boca parecia
uma linha. o nariz, como o queixo, era superdesenvolvido. curvava-se para
baixo, como se quisesse encontrar o queixo. seus companheiros de tripulação
diziam que, de perfil, ele parecia um quebra-nozes.
os grandes olhos castanhos de sarvant eram muito expressivos e naquele
instante pareciam arder com uma luz interior. arderam freqüentemente
durante a viagem estelar, quando ele exaltava os méritos de sua igreja, como
a única verdadeira deixada na terra. sarvant pertencia à seita conhecida como
as últimas testemunhas, o âmago estritamente ortodoxo de uma igreja que
havia sofrido a suburbanização experimentada por muitas igrejas.
considerada antigamente como uma gente esquisita, os membros daquela
seita agora só podiam ser distinguidos dos outros cristãos pelo fato de ainda
comparecerem à sua igreja. mas o ardor espiritual havia desaparecido.
menos o grupo a que sarvant pertencia. as Últimas testemunhas
recusaram adotar os supostos vícios dos vizinhos. eles se reuniram na cidade
de fourth of july, no arizona, e de lá mandaram missionários para um mundo
indiferente ou divertido.
sarvant foi escolhido para integrar a tripulação da terra porque era a
maior autoridade no campo da geologia. só foi aceito depois de ter assumido
o compromisso de não fazer catequese. nunca tentou abertamente uma
conversão. mas ofereceu aos outros a bíblia da igreja dele, perguntando
apenas se a haviam lido. e discutiu com eles a autenticidade daquela bíblia.
— claro que quero dizer sermão! — respondeu. — este país está tão
aberto às escrituras quanto estava quando colombo desembarcou. olhe, rud,
quando vi a desolação do sudoeste, fiquei desesperado. parecia que minha
igreja havia sido varrida , da face da terra. e se isso fosse verdade, então
minha igreja era falsa, porque estava destinada a ser eterna e não tinha sido.
mas rezei e então a verdade me foi revelada. quero dizer que... eu continuo
existindo! e, por meu intermédio, a igreja poderá renascer... renascei- como
nunca, pois essas mentes pagas, uma vez convencidas da verdade, se
tornarão os primeiros discípulos. a bíblia se espalhará como o fogo. sabe,
nós, as Últimas testemunhas, podemos fazer algum progresso entre os
cristãos porque eles pensam já ter a verdadeira igreja. mas verdadeira igreja
significa para eles pouco mais que um clube recreativo. não o caminho da
verdade e da vida, o único caminho. era...
— estou entendendo — disse churchill. — a única coisa que lhe peço é
que não me envolva nisso. as coisas já estão ficando bastante duras. bem,
vamos.
— para onde?
— para qualquer lugar onde possamos trocar estes macacões por roupas
nativas.
estavam numa rua chamada conch. estendia-se do norte para o sul. por
isso churchill achou que, se seguissem para o sul, acabariam finalmente por
dar no porto. lá, a menos que as coisas estivessem muito mudadas, haveria
mais de uma loja onde negociar as roupas e talvez ter algum lucro na troca.
naquela vizinhança, conch street era uma mistura de residências abastadas e
enormes edifícios governamentais. as residências estavam localizadas dentro
de ricos jardins e eram de tijolo ou cimento. de um só pavimento, tinham
amplas fachadas e muitas delas duas alas formando ângulos com a frente das
casas. eram pintadas com muitas cores e desenhos variados. cada uma exibia
um poste totêmico na frente. eram, na maior parte, esculpidos em pedra, uma
vez que a madeira era usada nas construções navais, nos vagões, nas armas e
como combustível.
os edifícios governamentais ficavam na beira da rua e eram de tijolo ou
mármore. tinham paredes curvas e eram rodeados de pórticos sem teto, com
altas colunas. no cimo de cada cúpula havia uma estátua.
churchill e sarvant caminharam pelo pavimento asfaltado — não havia
calçadas — durante dez quadras. de vez em quando, viam-se forçados a se
encostar nas paredes para evitar serem atingidos por homens que
cavalgavam veados furiosamente ou dirigiam carruagens da mesma maneira.
os cavaleiros estavam ricamente vestidos e obviamente esperavam dos
pedestres que saíssem do caminho ou fossem esmagados. os que dirigiam
carruagens pareciam ser mensageiros ou coisa semelhante.
de repente, a rua se tornou mais pobre.
os edifícios mostravam sólidas fachadas, com passagens aqui e ali. eram,
evidentemente, edifícios governamentais vendidos a particulares,
transformados em lojinhas ou moradias. crianças nuas brincavam em frente a
eles.
esses não estavam, nem de perto, tão limpos quanto os outros pelos quais
passaram.
churchill encontrou a loja que procurava. com sarvant nos calcanhares,
entrou. o interior da loja era uma salinha atopetada de roupas de toda
espécie. a vitrina e o chão de cimento estavam imundos; o cheiro de
excremento de cachorro enchia a loja. dois cães de raça indeterminada
tentaram colocar as patas sobre os dois homens.
o dono ora um sujeito barrigudo, baixo, com papada e careca, que usava
dois enormes brincos de metal. parecia muito com qualquer lojista de sua
espécie, não importa de que século, exceto pelo ar cervino dos tempos atuais,
visível nos seus traços.
— queremos vender nossas roupas — disse churchill.
— elas têm algum valor? — perguntou o proprietário.
— como roupas, pouco — respondeu churchill. — como curiosidade,
podem valer muito. somos da astronave.
os olhinhos do proprietário se escancararam.
— ah, irmãos do herói solar!
churchill não apreendia todo o significado da exclamação. sabia, apenas,
o que fora casualmente dito por tom tabaco. que o comandante stagg se
tornara um herói solar.
— tenho certeza de que o senhor pode vender cada peça de nossa
vestimenta por uma bela quantia. estas roupas estiveram nas estrelas, em
lugares tão distantes que, se o senhor fosse andando, sem parar para comer
ou descansar, isso lhe tomaria metade do caminho para a eternidade. a luz de
sóis alienígenas e o ar de mundos exóticos estão impregnados nas fibras
destas roupas. e os sapatos ainda conservam os traços das terras onde
andavam monstros maiores que este edifício, fazendo o barulho de
terremotos.
o lojista não ficou impressionado.
— Ó herói solar tocou nessas roupas?
— inúmeras vezes. ele, uma vez, vestiu este casaco.
— ahhh!
o proprietário devia ter percebido haver traído sua cupidez. baixou as
pálpebras e tornou o rosto impenetrável.
— tudo isso é muito interessante, mas sou um homem pobre. os
marinheiros que vêm a esta loja não têm muito dinheiro. pelo tempo que
passam nas tavernas, estão sempre prontos a vender as próprias roupas.
—- É a pura verdade. mas tenho certeza de que o senhor dispõe de
agentes que podem vender estas roupas a pessoas mais ricas.
o proprietário apanhou algumas moedas no bolso do saio te.
— dou-lhe quatro colúmbias pelo lote.
churchill empurrou sarvant e começaram a andar na direção da porta.
antes de chegarem a ela, encontraram o proprietário barrando a saída.
— talvez possa lhe oferecer cinco colúmbias. churchill apontou para um
saiote e umas sandálias.
— quanto vale isso? ou devo dizer, quanto está cobrando por isso?
— três peixes.
churchill refletiu. uma colúmbia era, grosso modo, igual a uma nota de
cinco dólares do tempo dele um peixe era igual. a vinte e cinco centavos.
— o senhor sabe tanto quanto eu que está tendo um lucro de mil por
cento à nossa custa. quero vinte colúmbias por isto.
o proprietário levantou as mãos para o ar, num gesto de desespero.
— pare com isto — disse churchill — se eu estivesse com tempo, iria de
casa em casa na millionaire's row, pechinchando. mas não tenho. quer dar
vinte ou não? É a última proposta.
— o senhor está roubando o pão da boca dos meus pobres filhos... mas
aceito.
dez minutos depois, os dois astronautas saíram da loja. vestiam sandálias
e saiotes e chapéus de abas moles. seus largos cintos de couro tinham,
penduradas, bainhas com longas facas de aço. cada um levava, no bolso, oito
colúmbias. carregavam bolsas e, dentro delas, ponchos à prova de chuva.
— a próxima parada será no cais — disse churchill. — eu costumava
comandar iates para os ricos, no verão, trabalhando para pagar a
universidade.
— sei que você sabe navegar — respondeu sarvant. — já esqueceu que
dirigiu aquele barco que roubamos, quando fugimos da prisão no planeta
vixa?
— tinha esquecido — disse churchill. — quero examinar as
possibilidades de arranjar emprego. mais tarde, começaremos a farejar por
aí. talvez descubramos o que aconteceu com stagg e calthorp.
— rud — respondeu sarvant — deve haver por trás disso mais coisa que
arranjar emprego. por que especialmente barcos? conheço você bastante para
perceber que está planejando várias coisas.
— bem. sei que você não é um saco furado. se eu conseguir uma
embarcação adequada, podemos apanhar o pessoal do yastzhembski e partir
para a Ásia, via europa.
— que bom ouvir você dizer isso — falou sarvant. — pensei que você
havia tirado o corpo fora, lavado as mãos. mas como achá-los?
— você está brincando? — disse churchill, rindo. — basta perguntar no
templo mais próximo.
— templo?
— claro. É evidente que o governo tem um olho na gente. na realidade,
há alguém nos seguindo desde que saímos da prisão.
— onde está ele?
— não olhe agora. mostrarei mais tarde. continue andando.
churchill parou de repente. sou caminho fora barrado por um círculo de
homens ajoelhados na estrada. nada impedia que churchill os contornasse.
mas ele parou para olhar por cima dos ombros dos homens ajoelhados.
— jogando dados, versão século xxix.
— mesmo olhar jogo é contra meus princípios. espero sinceramente que
não tenha a intenção de se juntar a eles.
— acho que tenho exatamente essa intenção.
— por favor, rud — implorou sarvant, pondo a mão no braço de
churchill. — não entre nisso. você pode se dar mal.
— capelão, não sou membro de sua paróquia. provavelmente, as regras
continuam as mesmas. isso me basta.
churchill retirou três colúmbias do bolso e falou alto:
— posso entrar nisso?
— claro — disse um enorme homem moreno, que usava um tapa-olho.
— pode jogar enquanto tiver dinheiro. acabou de desembarcar?
— não faz muito — respondeu churchill.
caiu de joelhos e colocou uma colúmbia no chão.
— É minha vez com os dados, não é? venham, filhinhos, papai precisa
encher o bolso de grana.
trinta minutos depois, um churchill risonho andava na direção de sarvant,
com um punhado de moedas de prata.
— o salário do pecado — disse para o capelão. deixou de sorrir quando
ouviu um grito atrás dele. voltando-se, viu os jogadores de dados
caminhando para ele. o enorme caolho gritava:
— espere aí, camarada, queremos saber umas coisas!
— oh, oh — disse churchill, pelo canto da boca. — prepare-se para
correr. esses caras não sabem perder!
— você não roubou, roubou? — perguntou sarvant, nervoso.
— claro que não! você devia me conhecer melhor. além disso, eu não
teria chance com todo esse bando de brutamontes.
— olhe, camarada — disse o caolho. — você tem uma fala gozada. você
vem de onde? albany?
— manitowoc, wisconsin — respondeu churchill.
— nunca ouvi falar. alguma aldeia no norte?
— noroeste. que quer saber?
— não gostamos de estranhos que nem sabem falar deecee direito.
estranhos têm truques marotos, especialmente quando jogam dados. faz uma
semana que pegamos um marinheiro de norfolk. ele usava mágica para
controlar os dados. arrebentamos os dentes dele e jogamos ele na água, com
um peso pendurado no pescoço. ninguém viu mais ele.
— se pensa que eu estava roubando, devia ter dito na hora do jogo.
o marinheiro caolho ignorou a interrupção de churchill e continuou:
— não vejo qualquer emblema em você. a que fraternidade você
pertence?
— lambda chi alfa — respondeu churchill. empunhou a faca.
— que diabo de língua é essa? quer dizer a fraternidade do carneiro?
churchill percebeu logo que ele e sarvant poderiam vir a ser considerados
carneiros pelo criminoso, a menos que pudessem provar que estavam sob a
proteção de alguma fraternidade poderosa. não pensou em mentir, naquela
situação, mesmo que isso o salvasse. mas um ressentimento que crescia nele
nas últimas seis semanas, explodiu numa fúria súbita.
— pertenço à raça humana! — gritou. — e isso é mais do que você pode
dizer a seu respeito!
o marinheiro caolho ficou vermelho. rosnou:
— pelos seios de colúmbia, arranco seu coração! nenhum estrangeiro
fedorento fala comigo desse jeito!
— venham, seus ladrões! — gritou churchill.
puxou a faca da bainha e, ao mesmo tempo, gritou para sarvant:
— dá no pé!
o marinheiro caolho também puxou a faca e atacou churchill. este jogou
o punhado de moedas na cara do homem e, simultaneamente, deu um passo à
frente. a palma de sua mão esquerda se abateu sobre o pulso do marinheiro. a
faca escapou da mão dele o churchill mergulhou a sua na barriga volumosa
do homem.
churchill retirou a faca e recuou, agachando-se, para enfrentar os outros.
mas eles sabiam lutar deslealmente tão bem quanto qualquer marinheiro. um
deles apanhou um tijolo num monte de entulho e o atirou na cabeça de
churchill.
o mundo escureceu e ele percebeu vagamente que o sangue escorria
sobre seus olhos, vindo de um corte na testa. quando voltou a si, viu que
estava sem a faca e que seus braças estavam imobilizados por dois fortes
marinheiros.
um terceiro, um magrelo baixote, com um rosnar através dos dentes
quebrados, avançou e meteu a faca na barriga de churchill.
cinco

PETER STAGG acordou. estava deitado de costas sobre alguma coisa macia,
tendo os galhos de um grande carvalho por teto. pôde ver, entre as folhas,
um brilhante céu sem nuvens. havia pássaros nos ramos, um pardal, um
tordo... e um enorme gaio, apoiado sobre o rabo, balançando pernas nuas e
humanas.
as pernas eram morenas, elegantes e lindamente torneadas. o resto do
corpo estava disfarçado por uma gigantesca fantasia de gaio. logo depois que
stagg abriu os olhos, o gaio retirou a máscara, revelando o belo rosto moreno
e de olhos grandes de uma moça. ela se inclinou para trás e apanhou um
clarim que estava pendurado numa corda, por trás e acima dela. antes que
stagg pudesse impedir, a moça emitiu um longo e modulado toque.
ouviu-se, imediatamente, um tumulto em algum lugar às costas dele.
stagg sentou-se e se voltou para identificar a fonte do barulho. este partia
de uma multidão parada do outro lado da estrada. a estrada era uma larga
rodovia de cimento, que atravessava os campos de pastagem das fazendas.
stagg estava sentado a poucos pés da beira dela, numa grossa pilha de
cobertores que alguém colocara cuidadosamente ao alcance dele.
o comandante não tinha a menor idéia de quando ou como chegara,
àquele lugar. ou onde ficava ele. lembrava apenas, muito vivamente, de
coisas acontecidas pouco antes da aurora; depois, o nada. a altura do sol
indicava ser, mais ou menos, onze da manhã.
a môça-gaio desceu do galho, ficou pendurada um instante e depois
pulou da altura de cinco pés para o chão. levantou-se e disse:
— bom-dia, nobre garanhão. como está passando? stagg resmungou e
respondeu:
— estou com tudo quanto é músculo dolorido e machucado. e tenho
uma, tremenda dor de cabeça.
— vai melhorar depois que comer. permite que lhe diga que esteve
magnífico ontem à noite! nunca vi um herói solar igual a você. bom, preciso
ir embora. seu amigo calthorp disse que, quando você acordasse, iria querer
ficar a sós com ele durante algum tempo.
— calthorp! — disse stagg.
resmungou outra vez.
— Ê o último homem a quem quero ver.
mas a moça já havia atravessado a rodovia correndo e se misturado com
o povo.
a cabeça branca de calthorp surgiu por detrás de uma árvore. aproximou-
se, carregando uma grande bandeja coberta. sorria, mas estava claro que
procurava desesperadamente esconder a preocupação.
— como está se sentindo? — gritou. stagg respondeu:
— onde estamos?
— diria que estamos no que costumava ser a u.s. 1, mas que é agora
chamada mary's pike. estamos mais ou menos dez milhas fora dos limites
atuais de washington. duas milhas para baixo, na rodovia, fica a cidadezinha
agrícola chamada fair grace. sua população normal é de duas mil pessoas,
mas hoje tem cerca de quinze mil. os fazendeiros e suas filhas, vindos de
milhas ao redor, reuniram-se aqui. cada pessoa, em fair grace, está esperando
ansiosamente por você. mas você não está à disposição deles. você é o herói
solar, por isso pode descansar à vontade. quer dizer, até o pôr-do-sol. depois,
você tem de fazer o que fez na noite passada.
stagg baixou os olhos e notou pela primeira vez que continuava nu.
— você me viu ontem de noite?
olhou suplicante para e velho antropólogo. foi a vez de calthorp olhar
para o chão. depois disse:
— das primeiras filas... pelo menos durante um certo tempo. andei em
volta da multidão e entrei no edifício. então assisti à orgia, instalado num
balcão.
— você não tem a menor parcela de vergonha? — perguntou stagg,
furioso. — já era péssimo eu não poder me defender. e pior ainda você
testemunhar minha humilhação.
— que humilhação! claro, vi você. sou antropólogo. foi a primeira vez
que eu tive a chance de ver um rito de fertilidade tão de perto. como seu
amigo, também me preocupei. mas eu não precisava ter me preocupado;
você tomou conta de você. outros também tomaram.
stagg arregalou os olhos.
— você está zombando de mim?
— que deus não permita! não. eu não estava fazendo uma piada, estava
exprimindo meu espanto. talvez inveja. claro, foram os chifres que deram a
você o ardor e a capacidade. imagino se também me darão um pouquinho
daquela substância produzida pelos chifres.
calthorp colocou a bandeja na frente de stagg e retirou a cobertura.
— eis um café como você nunca tomou. stagg virou a cabeça para o
lado.
— leve isso daqui. estou me sentindo mal. estou doente do estômago e
da alma por causa do que fiz ontem à noite.
— você parecia estar gostando.
stagg rosnou com uma fúria repentina e calthorp estendeu a mão de
forma apaziguadora.
— não, não quis ofender. É que eu vi você e não pude fazer nada. vamos,
rapaz, coma. olhe o que trouxemos para você! pão recém-saído do forno.
manteiga fresca. e geléia. mel. ovos, bacon, presunto, truta, caça... e um jarro
de cerveja gelada. e poderá ter outros pratos do que quiser.
— já lhe disse que estou doente! não posso comer nada. stagg sentou-se
em silêncio durante alguns minutos, olhando para o outro lado da rodovia,
para as tendas brilhantemente coloridas e para o povo aglomerado em torno
delas. calthorp sentou-se ao lado dele e acendeu um enorme charuto verde.
subitamente, stagg apanhou o jarro e sorveu uma enorme golada de
cerveja. depositou o jarro, limpou a espuma dos lábios com as costas da
mão, arrotou e pegou um garfo e uma faca.
começou a comer como se fosse o primeiro alimento de sua vida... ou o
último.
— preciso comer — justificava-se, entre uma garfada e outra. — estou
fraco como um gatinho recém-nascido. veja como minhas mãos tremem.
— você deve comer o equivalente para alimentar cem homens — disse
calthorp. — afinal de contas, você fez o trabalho de cem... de duzentos!
stagg levantou uma das mãos e apalpou os chifres.
— ainda estão aqui. eh! não continuam eretos e duros como na noite
passada. estão flácidos. talvez encolham e sequem.
calthorp sacudiu a cabeça.
— não. quando você recuperar as forças e a sua pressão subir, voltarão a
ficar eretos. não são chifres verdadeiros. os de veado consistem em
protuberâncias ósseas sem cobertura de ceratina. os seus parecem ter uma
base óssea, mas a parte superior é principalmente cartilagem rodeada de
vasos sanguíneos e coberta de pele.
"não é de espantar que tenham murchado. mas é de espantar que você
não tenha rompido um vaso sangüíneo. ou outra coisa."
— o que quer que fosse que os cornos injetaram no meu corpo — disse
stagg — sumiu. exceto pelo fato de me sentir fraco e dolorido, estou normal.
se eu, ao menos, pudesse me livrar destes cornos! doutor, você pode cortá-
los?
calthorp sacudiu a cabeça tristemente. stagg ficou pálido.
— então tenho de passar por tudo aquilo outra vez?
— temo que sim, meu caro.
— esta noite, em fair grace? e na próxima noite, em outra cidade? e em
outra até... quando?
— lamento, peter, mas não tenho como saber até quando. calthorp berrou
de dor quando uma enorme mão apertou os ossos dos seus pulsos, uns contra
os outros.
stagg afrouxou o apertão.
— desculpe, doutor. fiquei nervoso.
— olhe — disse calthorp, esfregando suavemente o pulso — agora há
uma possibilidade. parece-me que, se todo esse negócio começou com o
solstício de inverno, deve findar com o solstício de verão. ou seja, em 21 ou
22 de junho. você é o símbolo do sol. na realidade, essa gente olha você,
muito provavelmente como sendo literalmente o próprio sol... especialmente
porque você chegou do céu num flamejante cavalo de ferro.
stagg pôs as mãos na cabeça. lágrimas escorreram entre seus dedos e
seus ombros nus estremeceram. calthorp dava tapinhas na cabeça loura dele,
enquanto lágrimas corriam de seus próprios olhos. compreendeu como seu
comandante devia estar sofrendo terrivelmente, uma vez que conseguiu
chorar, vencendo as defesas de suas inibições.
finalmente, stagg se levantou e começou a atravessar os campos, em
direção a um córrego próximo.
— preciso tomar um banho — murmurou. — estou imundo. se tenho de
ser um herói solar, ao menos serei um limpo.
— aí vêm eles — disse calthorp, apontando para a multidão que estivera
esperando, mais ou menos a cinqüenta jardas de distância. — seus fiéis
adoradores e sua escolta.
stagg fez uma careta.
— neste momento sinto nojo de mim. mas ontem à noite tive prazer em
fazer o que fiz. não tive inibições. vivi o sonho secreto de cada homem...
oportunidade sem limites e capacidade inexaurível. fui um deus!
parou e agarrou novamente o pulso de calthorp.
— vá até a nave! apanhe uma arma, mesmo que tenha de enganar os
guardas. volte e me dê um tiro na cabeça... assim não terei de passar por tudo
aquilo outra vez!
— lamento. em primeiro lugar, não sei onde achar uma arma. tom tabaco
me disse que todas as armas haviam sido retiradas da nave e recolhidas a um
lugar secreto. em segundo lugar, não posso matar você. enquanto há vida, há
esperança. vamos nos safar desta enrascada.
— diga-me como — pediu stagg.
não tiveram tempo de continuar a conversa. a multidão atravessou o
campo e rodeou-os. tornara-se difícil uma conversa contínua, com os
tambores e clarins atroando nos ouvidos deles, as flautas trilando, os homens
e as mulheres tagarelando aos berros e um grupo de lindas moças insistindo
em banhar stagg e depois o enxugando e perfumando. em pouco tempo, a
pressão da multidão separou um do outro.
stagg começou a se sentir melhor.
com o concurso das mãos hábeis das moças, suas dores desapareceram
com massagens e, ao mesmo tempo em que o sol chegava ao apogeu, as
forças de stagg aumentavam. pelas duas horas, transbordava de vitalidade.
queria que chegasse a noite para poder agir.
infelizmente, era a hora da sesta. a massa se dispersou, à procura de
sombra onde descansar.
uns poucos fiéis continuaram em volta de stagg. pela expressão
sonolenta deles, stagg percebeu que também gostariam de se deitar. mas não
podiam; eram sua escolta, inflexíveis homens de confiança, armados de
lanças e facas. poucas jardas além, havia inúmeros arqueiros. estes usavam
estranhas flechas. as hastes eram terminadas por longas agulhas, em vez das
pontas de aço afiado. indubitavelmente, essas agulhas eram untadas com
uma droga que paralisaria temporariamente qualquer herói solar que tivesse
a coragem de fugir.
stagg pensou que era uma loucura eles porem uma escolta. agora, que se
sentia melhor, não tinha a menor intenção de fugir. na verdade, ele se
perguntava como poderia imaginar fazer tal coisa.
por que haveria de querer fugir e correr o risco de ser morto... quando
havia tanta vida a ser gerada?
refez o caminho através do campo, com a escolta o acompanhando a uma
distância respeitosa. havia cerca de quarenta tendas erguidas no prado e três
vezes mais gente espalhada, dormindo. stagg não estava, naquele instante,
interessado neles.
queria falar com a moça na jaula.
desde que fora transferido para a casa branca, ele ficara imaginando
quem ela era e por que era conservada presa. suas perguntas eram
invariavelmente respondidas com a enfurecida frase: o que será, será.
lembrou-se de tê-la visto quando se aproximou de virgínia, a sacerdotisa-
chefe. sentiu uma pontada ao lembrar da vergonha que tivera havia pouco,
mas esta foi logo esquecida.
a jaula sobre rodas estava à sombra de um plátano e o veado que a
puxava estava pastando perto. não havia guardas ao alcance da voz.
a moça estava sentada numa latrina instalada num dos cantos da jaula.
perto dela, havia um camponês fumando um charuto, enquanto esperava que
ela acabasse. quando ela acabou, ele começou a retirar o vaso de sob o
assento, pois iria levá-lo para sua granja, a fim de adubar o solo.
ela usava o boné de jóquei imitando um bico comprido, camisa cinzenta
e as calças até a barriga da perna, usadas por todas as mascotes, embora as
calças dela, naquele instante, estivessem arriadas até os tornozelos. tinha a
cabeça inclinada para baixo, mas stagg não julgou que fosse porque tivesse
vergonha de fazer suas necessidades em público. estava farto de ver aquela
atitude descuidada, animalesca — para ele — comum naquela gente. podiam
sentir vergonha e inibição por muitos motivos, mas defecar em público não
era um deles.
uma rede fora esticada presa ao teto. uma vassoura estava encostada num
canto e, no canto oposto havia um armário aparafusado no chão. continha,
provavelmente, artigos de toucador, uma vez que, numa saliência existente
ao lado desse armário, havia uma bacia de rosto e toalhas.
olhou mais uma vez para o cartaz, que se projetava do alto da jaula como
uma barbatana de tubarão.

MASCOTE
CAPTURADA NUMA INCURSÃO A CASEYLAND

que significaria aquilo?


ela sabia que "mascote" era a palavra em deecee que designava as
virgens humanas. o termo "virgem" era reservado para as deusas donzelas.
mas havia muita coisa que não entendia.
— alô — disse ele.
a moça teve um sobressalto, como se estivesse dormitando. levantou a
cabeça para olhar. tinha grandes olhos escuros. e feições miúdas. sua pele era
branca e ficou ainda mais branca quando o viu. virou a cabeça.
— eu disse alô. você não pode falar? não vou lhe fazer nada.
— não quero falar com você, seu animal — respondeu a moça, com voz
trêmula. — vá embora.
ele havia subido um degrau da escada que levava à jaula, mas parou.
era claro que ela testemunhara o que acontecera na noite anterior. mesmo
que tivesse virado a cabeça e fechado os olhos, não poderia deixar de ouvir.
e a curiosidade deveria tê-la forçado a abrir os olhos. mesmo que por breves
períodos.
— não tenho culpa do que aconteceu — disse ele. tocou nos chifres.
— foram estes que agiram, não eu. me fizeram alguma coisa. não sou o
mesmo.
— vá embora — replicou ela. — não quero falar com você. você é um
demônio pagão.
— É porque não estou vestido? — perguntou ele. — porei um saiote.
— vá embora!
um dos guardas se dirigiu a ele.
— grande garanhão, o senhor deseja essa moça? o senhor possivelmente a
terá, mas não agora. não até o fim do dia. aí a grande mãe branca a dará ao
senhor.
— só quero falar com ela. o guarda sorriu.
— um ferro em brasa aplicado na linda bundinha dela pode fazê-la falar.
infelizmente, não nos é permitido torturá-la ... por enquanto.
stagg voltou-se.
— darei um jeito de fazê-la falar. mais tarde. agora quero mais um pouco
de cerveja gelada.
— imediatamente, senhor.
o guarda, pouco se incomodando de estar acordando a maioria do
acampamento, soprou estridentemente o apito. uma moça saiu correndo de
um dos cantos de uma tenda.
— cerveja gelada! — gritou o guarda.
a moça correu para a tenda e voltou logo com uma bandeja onde havia
um jarro de cobre coberto de gotas de suor.
stagg apanhou o jarro, sem agradecer à moça, e virou-o na boca. só o
largou depois de vazio.
— estava ótimo — disse, alto. — mas cerveja encharca. você não tem
relâmpago gelado?
—. tenho, senhor.
ela voltou da tenda com um jarro de prata cheio de cubos de gelo e outro
com uísque puro. derramou o relâmpago no jarro de gelo e estendeu o último
a stagg.
o comandante bebeu metade do jarro antes de colocá-lo de volta na
bandeja.
o guarda chegou, alarmado.
— grande garanhão, se o senhor continuar nesse ritmo, teremos de
carregá-lo até fair grace!
— um herói solar pode beber mais que dez homens — disse a moça — e
ainda pode possuir cem mascotes numa noite.
stagg riu com a sonoridade de um clarim.
— claro, mortal, você não sabia? além disso, que adianta ser o grande
garanhão se não posso fazer aquilo que quero?
— perdoe-me, senhor — disse o guarda. — É porque eu sei o quanto o
povo de fair grace está ansioso por saudá-lo. no ano passado, sabe, quando o
herói solar foi um puma, ele seguiu pela estrada do outro lado de
washington. o povo de fair grace não pôde participar das cerimônias. por
isso eles se sentirão muito mal se o senhor não aparecer.
— não seja idiota — interveio a moça. — você não pode falar dessa
maneira com o herói solar. e se ele ficar doido e resolver matar você? não
será a primeira vez, você sabe.
o guarda ficou pálido.
— se me permite, senhor, vou para junto dos companheiros.
— vá! — disse stagg, rindo.
o guarda correu a se juntar a um grupo que estava mais ou menos a
cinqüenta j ar das de distância.
— continuo com fome — disse stagg. — arranje-me o que comer.
montes de carne.
— sim, senhor.
stagg pôs-se a vagar pelo acampamento. quando passou por um homem
gordo, grisalho, que roncava numa rede montada em dois tripés, virou a rede
e derrubou o gordo no chão. dando gargalhadas ruidosas, andou pelo
acampamento, gritando no ouvido de cada pessoa adormecida pela qual
passava. elas se sentaram, com os olhos assustados e o coração batendo de
medo. stagg riu e pegou a perna de uma moça, começando a lhe fazer
cócegas na sola do pé. a moça riu esganiçadamente e se lamentou, pedindo a
ele que a deixasse. um rapaz, noivo dela, estava perto, mas nada fez para
libertá-la. tinha os punhos cerrados, mas seria considerado um sacrilégio
interferir nos atos do herói solar.
stagg ergueu os olhos e viu o rapaz. franziu as sobrancelhas, soltou a
moça e se pôs de pé. nesse instante chegou, com uma bandeja nas mãos, a
moça a quem ele mandara buscar comida. havia, na bandeja, dois jarros de
cerveja. stagg apanhou um e, calmamente, derramou-o na cabeça do rapaz.
ambas as moças riram e aquilo pareceu ser um sinal para o acampamento
inteiro. todo mundo começou a berrar.
a moça que trouxe a bandeja pegou o outro jarro de cerveja e o derramou
sobre o gordo que fora derrubado da rede. o líquido gelado fê-lo levantar-se
precipitadamente. correu para a própria tenda e voltou com um barrilete de
cerveja. mantendo-o com a abertura para baixo, inundou as moças com o
conteúdo.
teve início uma batalha de cerveja que se propagou pelo acampamento
inteiro. não havia ninguém no prado que não estivesse empapado de cerveja
e uísque; a única exceção era a moça na jaula. até o herói solar ficou
molhado. ele começou a rir quando sentiu o líquido gelado e correu para
arranjar mais e atirar de volta. mas, no caminho, teve outra idéia. começou a
derrubar as tendas, aprisionando seus ocupantes sob elas. urros de angústia
saíram de dentro das tendas desmoronadas. os outros começaram a imitar as
ações do. stagg e logo não havia mais tendas de pé no prado.
stagg agarrou a moça que o servira e a em cujo pé fizera cócegas.
— vocês duas devem ser mascotes — disse. — se não,, não estariam
meio nuas. como foi que não peguei vocês ontem à noite?
— não éramos suficientemente bonitas para a primeira noite.
— os juizes devem estar cegos — rugiu stagg. — vocês são duas das
mais belas e desejáveis moças que já vi em minha vida!
— nós lhe agradecemos. mas não é unicamente a beleza que torna uma
de nós apta a ser escolhida para noiva do herói solar, meu senhor, embora eu
hesite dizer isso, com medo do que poderá me acontecer se uma sacerdotisa
me ouvir. mas o fato é que, se o pai de uma de nós tiver riqueza e influência,
a chance de ser escolhida é muito maior.
— então por que vocês foram escolhidas para o meu séquito?
— tiramos segundo lugar nos concursos para miss américa, senhor. fazer
parte do seu séquito não é uma honra tão grande quanto debutar em
washington. mas é uma grande honra. e temos a esperança de que esta noite
em fair grace...
ambas olhavam para ele de olhos arregalados. seus lábios e mamilos
começaram a intumescer e elas estavam com respiração ofegante.
— por que esperar até de noite? — berrou ele.
— não é costume fazer nada antes do início dos ritos, senhor. além disso
a maioria dos heróis solares não se recupera da noite anterior antes do fim da
tarde...
stagg engoliu outra dose. atirou o jarro para cima, o mais alto que pôde, e
riu.
— sou um herói solar como vocês nunca tiveram! sou o genuíno
garanhão!
agarrou as moças pela cintura, envolvendo uma em cada braço, e as
carregou para a tenda.
seis

CHURCHILL recuou e procurou arrebentar outros dentes do marinheiro


dentuça. a tijolada o havia esgotado mais do que ele pensava. mas conseguiu
movimentar as pernas.
— você quis, né? — gritou o dentuça.
pulara para trás por causa do movimento ameaçador de churchill. depois
avançou confiante e deu uma facada na altura do plexo solar de churchill.
ouviu-se um grito, um homenzinho pulou para a frente e meteu o braço
na trajetória da lâmina. a ponta entrou na mão espalmada e saiu vermelha do
outro lado.
fora sarvant, que usara aquela forma desajeitada mas eficiente de evitar a
morte do amigo.
a faca tinha sido detida por um momento. outro marinheiro empurrou
sarvant com tanta violência que ele caiu de costas, com a lâmina ainda
atravessada na mão. o marinheiro arrancou a faca, para tornar mergulhá-la
no alvo original.
um apito estridente soou no ouvido dele. parou. quem apitou estendeu
um bastão de espinheiro e enganchou a ponta no pescoço esquelético do
dentuça.
o homem do apito estava vestido de azul-claro e tinha olhos da mesma
cor, para combinar. eram tão frios quanto uns olhos podem ser.
— estes homens estão sob a proteção da própria colúmbia — disse ele.
— vocês vão se dispersar imediatamente, a menos que queiram ser
enforcados dentro de dez minutos. e nem pensem em se desforrar deles mais
tarde. entenderam?
os marinheiros empalideceram sob a pele intensamente crestada.
sacudiram a cabeça concordando, engoliram em seco e foram embora.
— devo-lhe a vida — disse churchill, trêmulo.
— o senhor a deve à grande mãe branca — respondeu o homem de azul.
— e ela cobrará quando quiser. sou apenas um seu servidor. nas próximas
quatro semanas, os senhores estarão sob a proteção dela. espero que os
senhores dêem provas de ser dignos de sua consideração.
olhou para a mão gotejante de sarvant.
— acho que também deve sua vida a este homem. não obstante ter sido
apenas um instrumento de colúmbia, serviu-a bem. venham comigo. vamos
tratar dessa mão.
seguiram o homem de azul rua abaixo, com sarvant gemendo de dor e
churchill o amparando.
— este era o homem que estava nos seguindo — disse churchill. —
felizmente para nós. e... obrigado pelo que você fez.
o rosto de sarvant perdeu o ar de sofrimento e se tornou feliz.
— foi um prazer fazer aquilo, rud. eu o repetiria, mesmo sabendo o
quanto é doloroso. faz com que me sinta justificado.
churchill não sabia o que dizer; por isso não disse nada.
ambos estavam silenciosos quando saíram do porto e chegaram a um
templo afastado da rua. o homem que os guiava levou-os para o interior
fresco do templo. falou com uma sacerdotisa de longa túnica branca que, por
sua vez, conduziu-os até uma sala de pequenas dimensões. pediram a
churchill que esperasse ali, enquanto levavam sarvant.
churchill não se incomodou. estava convencido de que eles não tinham
más intenções a respeito de sarvant... por enquanto.
andou de um lado para outro durante uma hora, marcada por uma
enorme ampulheta que estava sobre uma mesa. a sala estava silenciosa,
escura e fresca.
ia virar a grande ampulheta, quando sarvant reapareceu.
— como vai a mão?
sarvant a ergueu para que churchill pudesse vê-la. não havia curativo. as
bordas do orifício haviam sido unidas e uma película transparente, composta
de uma substância qualquer, cobria o ferimento.
— eles me disseram que posso fazer qualquer trabalho pesado agora
mesmo — disse sarvant, pensativo. — rud, essa gente pode ser atrasada em
muitos aspectos, mas quando se trata de biologia, não perdem para ninguém.
a sacerdotisa me disse que este troço fino é uma pseudocarne que cresce e
faz com que o ferimento pareça nunca ter existido. deram-me uma transfusão
de sangue e depois alguma coisa para comer, que me carregou de energia na
hora. e concluiu, com ar esquisito:
— disseram que vão me mandar a conta.
a impressão que eu tenho é que esta cultura não tolera biscateiros —
disse churchill. — acho melhor arranjarmos um emprego qualquer, e já.
saíram do templo e recomeçaram sua caminhada interrompida na direção
do porto. desta vez, passaram pelo rio potomac sem incidentes.
o porto tinha uns dois quilômetros de cais. havia barcos atracados nos
molhes e muitos ancorados no meio do rio.
— parece um quadro reproduzindo um porto do princípio do século
dezenove — disse churchill. — barcos a vela de todos os tipos e tamanhos.
eu não esperava encontrar nenhum navio a vapor, embora seja inconcebível
supor que essa gente não saiba construir um.
— o carvão e o petróleo já se tinham esgotado muito tempo antes de
termos deixado a terra — respondeu sarvant. — podem queimar madeira,
mas tenho a impressão de que, apesar de não haver escassez de árvores, eles
só as derrubam em caso de extrema necessidade. e é evidente que eles
também esqueceram as técnicas de fabricar combustível nuclear, ou então
seu conhecimento foi suprimido.
— a força do vento pode ser fraca — disse churchill. — mas é grátis e a
usaremos quando chegar a ocasião. rapaz, olha que bela embarcação!
apontou para um iate de um só mastro, de casco branco e vela vermelha.
estava sendo amarrado numa rampa bem sob o molhe onde se encontravam.
churchill, fazendo um sinal a sarvant, começou a descer os degraus da
comprida escada que levava à rampa. queria conversar com marinheiros e a
gente daquele iate parecia ser do tipo da com quem trabalhara nas férias de
verão.
o homem no leme era grisalho, troncudo, com cerca de cinqüenta e cinco
anos. as outras pessoas, um rapaz e uma moça, pareciam ser seus filhos. o
filho era alto, esbelto, bonito e louro, parecendo andar pelos vinte anos; sua
irmã era baixa, de seios bem feitos, cintura fina, pernas bem modeladas,
rosto extremamente belo e compridos cabelos cor de mel. podia ter entre
dezesseis e dezoito anos. usava calças largas, de boca-de-sino, e uma jaqueta
azul. estava descalça.
a moça, de pé na proa do barco, ao ver os dois homens na rampa, abriu
um sorriso de dentes alvos e gritou:
— pegue este cabo, marujo!
churchill o apanhou e puxou o iate ao longo do molhe. a moça pulou a
amurada e sorriu.
— obrigada, marujo!
o rapaz louro remexeu no bolso do saiote e tirou uma moeda, que jogou
para churchill.
— pelo trabalho, camarada.
churchill virou a moeda. era uma colúmbia. se aquela gente podia
gratificar tão generosamente um trabalho tão insignificante, merecia ser
abordada.
atirou a moeda de volta para o rapaz que, embora espantado, a apanhou
com destreza.
— agradeço-lhe — disse churchill — mas não sou criado de ninguém.
a moça arregalou os olhos e churchill viu que eles eram de um cinza-
azulado escuro.
— não queríamos ofender — disse ela. sua voz era bela e cheia.
—. não estou ofendido — respondeu churchill.
— pelo seu sotaque, vejo que o senhor não é de deecee — disse ela. — o
senhor ficaria ofendido se eu lhe perguntasse de que cidade é?
— de maneira nenhuma. nasci em manitowoc, cidade que não existe
mais. meu nome é rudyard churchill e meu colega se chama nephi sarvant.
nasceu em mesa, arizona. temos oitocentos anos de idade e somos
notavelmente bem conservados para a idade que temos.
a moça respirou fundo.
— ah, os irmãos do herói solar!
— somos companheiros do comandante stagg. churchill ficou contente
por ter causado tão grande impressão.
o pai ergueu a mão e, por aquele gesto, churchill percebeu que ele e
sarvant haviam sido aceitos como iguais, pelo menos no momento.
— sou res whitrow. este é meu filho bob e essa minha filha robin.
— o senhor tem um belo barco — disse churchill, que , sabia ser esta a
melhor forma de estimular uma conversa.
res whitrow começou imediatamente a exaltar as qualidades do barco e
os filhos davam apartes entusiásticos. um tempo depois, houve uma breve
pausa na conversa e robin disse, excitada:
— oh, o senhor deve ter visto tantas coisas, tantas maravilhas, se esteve
mesmo nas estrelas! gostaria de ouvi-lo falar a respeito!
whitrow reforçou:
— eu também estou ansioso por ouvir. por que não aceitam ser meus
convidados esta noite? quer dizer, a menos que tenham outro compromisso!
— É uma honra — respondeu churchill. — mas temo não estarmos
convenientemente vestidos para participar de sua mesa.
— não se preocupem — respondeu whitrow cordialmente. — estou
vendo que os senhores estão vestidos como os irmãos do herói solar devem
estar!
— talvez o senhor possa me dizer o que aconteceu a stagg.
— o senhor quer dizer que não sabe? bom, acho que não. falaremos disso
logo mais de noite. evidentemente, há algumas coisas que o senhor
desconhece a respeito desta terra que deixou fantàsticamente há tanto tempo.
É verdade mesmo? oitocentos anos! colúmbia nos proteja!
robin tirou a jaqueta e ficou nua até a cintura. tinha um busto magnífico,
mas parecia ter tanta consciência disso quanto do resto dos seus atributos.
quer dizer, ela sabia que merecia um olhar, mas não deixava que esse
conhecimento perturbasse sua graça de movimentos ou lhe impusesse
qualquer faceirice.
sarvant parecia realmente perturbado, uma vez que não permitia que seu
olhar pousasse nela, exceto em brevíssimos instantes. era estranho, pensou
churchill. sarvant, a despeito da sua condenação às roupas das virgens de
deecee, não parecia aborrecido quando andavam pelas ruas. talvez fosse
porque podia olhar as outras moças de forma impessoal, como nativos
selvagens de uma terra estranha, até aquele encontro transformar esse
comportamento em relações pessoais.
subiram a escada que dava para o cais, onde uma carruagem estava
esperando. era puxada por um parelha de grandes veados vermelhos e tinha,
além do cocheiro, dois homens armados, instalados numa pequena
plataforma na traseira do carro.
whitrow e o filho se sentaram e convidaram sarvant para ocupar um
lugar ao lado deles. robin colocou-se, sem hesitação, junto de churchill e
muito agarrada nele. tinha um seio colado ao seu braço. churchill sentiu um
grande calor passar do seio para seu braço e deste para o rosto, e se maldisse
por mostrar quanto a moça o perturbara.
partiram a galope pelas ruas, com o cocheiro tendo a certeza de que os
pedestres sairiam da frente ou sofreriam as conseqüências. em quinze
minutos, deixaram para trás os edifícios governamentais e chegaram ao
distrito reservado aos ricos e influentes. viraram por uma longa estrada
coberta de saibro e pararam na frente de uma grande casa branca.
churchill pulou para o chão e estendeu a mão para ajudar robin a saltar.
ela sorriu e disse:
— obrigada.
ele, porém, já estava examinando o poste totêmico no pátio. era
composto de cabeças estilizadas de inúmeros animais, o mais freqüente dos
quais era o puma.
whitrow reparou no que churchill estava fazendo e disse:
— sou puma. minha mulher e filhas pertencem à irmandade da gata do
mato.
— estava pensando nisso — respondeu churchill. — sei que o totem é
um fator poderoso na sociedade dos senhores. mas a idéia é esquisita para
mim.
— notei que o senhor não veste nada que o identifique com uma
fraternidade — falou whitrow. — acho que talvez deva fazer um esforço
para colocar o senhor na minha. É melhor pertencer a alguma. aliás, não
conheço ninguém, fora 03 senhores dois, que não pertençam a alguma.
foram interrompidos por cinco crianças, que irromperam pela porta da
frente e se atiraram afetuosamente sobre o pai. whitrow apresentou os
meninos e meninas nus e, assim que atingiram a varanda, apresentou a
mulher. era gorda, de meia idade, e antigamente devia ter sido muito bonita.
passaram por uma saleta e foram para uma sala que ocupava toda a
extensão da casa. era uma combinação de sala de estar, sala de diversões e
sala de jantar.
whitrow encarregou o filho bob de levar os hóspedes para se lavar. os
dois foram para o interior da casa, onde tomaram um banho de chuveiro e
puseram finas roupas, que bob insistiu para que usassem.
depois, retornaram à sala principal, onde receberam dois copos de vinho,
oferecidos por robin. churchill impediu que sarvant recusasse beber.
— sei que é contra seus princípios — sussurrou — mas recusar poderá
ofendê-los. pelo menos tome um golinho.
— se eu cedo num pouquinho, mais tarde cederei nas coisas mais
importantes — respondeu sarvant.
— está bem, seja um idiota teimoso — resmungou churchill com raiva.
— mas sabe que não ficará bêbedo com um copo.
— tocarei o copo com os lábios — respondeu sarvant. — mais longe não
vou.
churchill estava zangado mas não a ponto de não poder apreciar o fino
bouquet do vinho. quando esvaziou o copo, foi chamado para a mesa.
whitrow levou-o para a cadeira à sua direita, o lugar de honra. sentou sarvant
perto dele.
robin se sentou na frente de churchill. este ficou contente porque era um
prazer olhar para ela.
Ângela sentou na outra cabeceira da mesa. whitrow rezou, trinchou a
carne e serviu os hóspedes e a família. Ângela falou muito, mas sem nunca
interromper o marido. as crianças, embora rissem e cochichassem entre elas,
tinham o cuidado de não irritar o pai. até os vinte ou mais gatos domésticos,
que rondavam a sala, eram bem comportados.
aquela mesa, certamente, não servia de exemplos de uma terra onde o
alimento era racionado. além das frutas c vegetais habituais, havia carne de
caça e de cabra, galinha e peru, presunto, gafanhotos e formigas fritos.
criados mantinham os copos cheios de vinho ou cerveja.
— eu tenho, naturalmente, vontade de ouvir sua viagem às estrelas —
trovejou whitrow. — mas deixemos isso para mais tarde. durante o jantar,
conversaremos coisas amenas. quero falar-lhes sobre nós, de maneira a que
se sintam como se nos conhecessem há muito tempo c, portanto, à vontade.
whitrow enfiou enormes bocados de comida na boca e, enquanto
mastigava, falava. nascera numa fazendinha ao sul de virgínia, disse, não
distante de norfolk. seu pai era um homem respeitável, grande criador de
porcos. e, como todos sabem, exceto possivelmente os homens, das estrelas,
um criador de porcos é uma pessoa profundamente respeitada em deecee.
no entanto, whitrow não gostava de porcos. tinha preferência por barcos
e, por isso, assim que terminou o curso, deixou a granja e foi para norfolk. o
curso era, aparentemente, equivalente ao oitavo ano do tempo de churchill.
whitrow deixou implícito que a educação não era obrigatória e que custara
uma enorme quantia a seu pai mandá-lo se educar. a maioria do povo era
analfabeta.
whitrow embarcou num navio pesqueiro como aprendiz de marinheiro.
depois de alguns anos, havia economizado bastante dinheiro para voltar à
escola, em norfolk, onde ensinavam navegação. pelas anedotas contadas
sobre o tempo em que ele passara lá, churchill deduziu que o compasso e o
sextante ainda eram usados.
whitrow, apesar de homem do mar, não fora iniciado em nenhuma
fraternidade de marinheiros. mesmo naquela tenra idade já se preocupava
com o futuro. soube que a mais poderosa fraternidade em washington era a
do puma. não era uma fraternidade fácil para um rapaz relativamente pobre
entrar, mas teve um golpe de sorte.
— a própria colúmbia colocou-me sob sua asa — disse ele.
bateu na mesa três vezes.
— não estou me gabando, colúmbia, estou apenas fazendo estes homens
conhecerem tua bondade!
"sim, eu era um simples marujo, apesar de graduado pela faculdade de
matemática de norfolk. precisava da proteção de um homem rico para obter
um lugar de oficial-estagiário. e encontrei meu protetor. isso aconteceu
quando eu navegava no bergantim mercante petrel, indo para miami, na
flórida. os nativos daquela nação acabavam de perder uma grande batalha
naval e tinham sido obrigados a pedir paz. Éramos o primeiro navio de
deecee que chegava com uma carga na flórida, nos últimos dez anos. por
isso, esperávamos ganhar uma grande bolada. os habitantes tinham de
acolher bem nossos mantimentos, mesmo que não gostassem das nossas
caras. no caminho, porém, fomos atacados por piratas karelianos."
primeiro, churchill pensou que karelianos eram os carolinianos, mas
alguns detalhes a respeito deles, fornecidos por whitrow, fizeram com que
mudasse de idéia. ficou com a impressão de que eram de ultramar. se fosse
verdade, a américa não estava tão isolada quanto parecia.
os navios karelianos abalroaram o bergantim e os piratas o abordaram.
foi durante a batalha que se seguiu, que whitrow salvou um rico passageiro
de ser cortado em dois por uma espada kareliana. os karelianos foram
derrotados, embora o bergantim tivesse sofrido pesadas baixas. todos os
oficiais tinham sido mortos e whitrow assumiu o comando. em vez de voltar,
dirigiu o barco para miami, vendendo a carga com lucro.
a partir daí, progrediu rapidamente.
ganhou um barco. como comandante, tinha muitas chances de aumentar
seus lucros. além disso, o homem cuja vida salvara, conhecia os segredos do
mundo dos negócios em washington e manhattan, e deu a whitrow várias
sugestões de ordem financeira.
— fui hóspede dele muitas vezes e, lá, conheci Ângela. depois que casei
com ela, tornei-me sócio do pai dela. e agora sou dono de quinze grandes
barcos mercantes e muitas fazendas, e pai orgulhoso destes saudáveis e belos
filhos. que colúmbia continue a nos fazer prosperar.
— um brinde a isso — disse churchill e emborcou outro copo de vinho, o
décimo.
fez um esforço para ficar sóbrio e recuperar imediatamente o controle.
mas whitrow insistia para que seu hóspede bebesse toda vez que ele bebia.
sarvant recusara. whitrow nada disse, mas passou a falar com sarvant só
quando este se dirigia diretamente a ele.
a mesa, agora, estava muito barulhenta. as crianças bebiam cerveja e
vinho, mesmo o mais novo, um garoto de seis anos. deixaram de rir baixinho
e passaram a fazê-lo aos brados, principalmente quando whitrow contou
piadas que teriam deliciado rabelais. os criados, de pé atrás das cadeiras,
riam até as lágrimas escorrerem pelo rosto e tinham de pôr as mãos nos
quadris doloridos.
aquela gente tinha poucas inibições visíveis. mastigavam ruidosamente e
não se incomodavam de falar com a boca cheia. quando o pai arrotou alto, as
crianças tentaram ultrapassá-lo.
a princípio, ver a linda robin comer como um porco deixou churchill
doente. isso o tornou consciente do abismo que os separava, um abismo que
não era só de anos. depois do nono copo, pareceu perder a repugnância. ele
pensou que a atitude dela com relação à comida era mais saudável que a do
tempo dele. além disso, comportamento na mesa não era intrinsecamente
bom ou mau. os costumes locais determinavam o que era ou não aceitável.
sarvant não parecia pensar assim. Ã medida em que o jantar avançava,
ele se tornava mais silencioso e, no fim, não quis levantar os olhos do prato.
whitrow se tornou mais turbulento. quando Ângela passou por ele para ir
dar uma ordem a uma criada na cozinha, ele lhe deu um forte mas afetuoso
tapa no volumoso traseiro. riu e disse que aquilo lhe fazia lembrar da noite
em que robin foi concebida e aí começou a contar detalhadamente aquela
noite.
subitamente, no meio da história, sarvant se levantou e saiu. deixou um
enorme silêncio atrás dele.
finalmente, whitrow perguntou:
— seu amigo está se sentindo mal?
— de certo modo — respondeu churchill. — ele vem de uni lugar onde
falar de sexo é tabu.
whitrow estava espantado.
— mas... como é que pode ser isso? que costume mais curioso!
— acho que os senhores também têm os seus tabus — disse churchill —
e eles devem ser muito curiosos para sarvant. se me der licença, vou
perguntar a ele o que pretende fazer. mas voltarei.
— diga-lhe que volte. quero dar outra olhada num homem que pensa tão
sujamente.
churchill encontrou sarvant numa situação muito estranha. estava trepado
na metade da altura do poste totêmico, agarrado firmemente numa das
cabeças esculpidas de animais, para não cair.
churchill deu uma só olhada na cena iluminada pela lua e correu para
dentro da casa.
— há uma leoa lá fora! está acuando sarvant!
— oh, deve ser alice — disse whitrow. — nós a deixamos lá fora, depois
que escurece, para assustar os ladrões. robin é quem cuida dela. ela e a mãe
podem cuidar dos grandes felinos melhor que eu. robin, quer levar alice de
volta para a toca?
— eu preferia que ela saísse comigo — disse robin. olhou para o pai.
— você se incomoda se mister churchill me levar agora ao concerto? ele
pode conversar com você depois. tenho a certeza de que ele aceitará um
convite para ser nosso hóspede por tempo indeterminado.
alguma coisa pareceu se passar entre pai e filha. whitrow riu e disse:
— claro. mr. churchill, aceita ser meu hóspede? teremos o maior prazer
em que fique o tempo que quiser.
— É uma honra para mim — respondeu churchill. — .sarvant está
incluído no convite?
— se ele quiser aceitar. mas não tenho certeza de que ele se sentirá à
vontade aqui.
churchill abriu a porta e esperou que robin passasse à frente dele. ela saiu
sem hesitação e pegou a leoa pela coleira. churchill gritou:
— desça, sarvant. ainda não chegou a hora de atirar um cristão aos leões.
relutantemente, sarvant desceu.
— eu devia ter agüentado firme. mas fui apanhado de surpresa. era a
última coisa que eu esperava.
— ninguém lhe culpa por se ter posto fora de alcance — disse churchill.
— eu teria feito o mesmo. um puma não é coisa que se despreze.
— um momento — disse robin. — tenho de arranjar uma correia para
alice.
bateu na cabeça da leoa e fez uma festa no queixo dela. o bicho ronronou
como um trovão a distância e depois, obedecendo à dona, seguiu-a para os
fundos da casa.
— pronto, sarvant — disse churchill. — por que você caiu fora? não
sabe que podia ter ofendido seriamente nossos hospedeiros? felizmente,
whitrow não se incomodou. você poderia ter estragado o melhor golpe de
sorte que tivemos até agora.
sarvant parecia zangado.
— você certamente não esperava que eu me sentasse lá e tolerasse um
comportamento tão animalesco! e ainda por cima, as descrições obscenas das
intimidades dele com a mulher!
— acho que não há nada de errado naquilo, considerando o tempo e o
lugar — respondeu churchill. — esta gente é, digamos, apenas terra-a-terra.
gostam de muita ação na cama e adoram descrevê-la na conversa.
— bom deus, você não os está defendendo, está?
— sarvant, não compreendo você. você encontrou centenas de costumes
mais nojentos, realmente repulsivos, quando estivemos em vixa. contudo,
nunca o vi recuar.
— era diferente. os vixanos não são humanos. — são humanóides. você
não pode julgar esta gente pelos nossos próprios padrões.
— você não quer dizer que achou graça nas piadas a respeito do
comportamento sexual dele!
— tive uma espécie de náusea quando ele falou sobre a concepção de
kobin. mas creio que foi porque kobin estava presente. ela, evidentemente,
nem se incomodou... estava se divertindo a valer.
— essa gente é degenerada! precisa de chicote!
— pensei que você fosse vigário do príncipe da paz.
— o quê? — perguntou sarvant.
ficou um instante em silêncio e depois disse, com voz calma:
— você tem razão. odeio quando devo amar. mas, afinal de contas, sou
humano. por isso, mesmo um pagão como você tem o direito de me
repreender, quando falo em chicotear.
— whitrow mandou convidar você a entrar outra vez. sarvant sacudiu a
cabeça.
— não, não tenho estômago para isso. só deus sabe o que poderá
acontecer se eu passar a noite lá. não me surpreenderia se ele me oferecesse
a própria mulher.
churchill riu e disse:
— acho que não oferecerá. whitrow não é esquimó. e não pense que,
apenas porque ele fala de maneira dissoluta, não tenha um código sexual
profundamente rigoroso, em certo sentido, como tínhamos em nosso tempo.
você vai fazer o quê?
— vou procurar uma espécie de motel e dormir lá. e que vai você fazer?
— acho que robin vai me levar à cidade. depois, dormirei aqui. não
quero jogar fora esta oportunidade. whitrow pode ser o veículo que nos
permitirá ter uma bela posição em deecee. em muita coisa, washington não
mudou; ainda vale a pena conhecer alguém de prestígio.
sarvant ergueu a mão. seu rosto de quebra-nozes estava sério.
— deus esteja com você — disse e foi embora, sendo engolido pela
escuridão da noite.
robin voltou dos fundos da casa. estava segurando, numa das mãos, a
correia e, na outra, uma grande bolsa de couro. evidentemente, ela não fora
apenas colocar uma correia na coleira da leoa. apesar da única luz ser a da
lua, churchill pôde ver que ela mudara de roupa e se maquilara novamente.
também trocara as sandálias por sapatos de salto alto.
— onde vai seu amigo? — perguntou ela.
— arranjar um lugar para dormir.
— Ótimo! não gosto muito dele. e temia ter de ser rude e não o convidar
para sair conosco.
— não posso imaginar você rude... e não gaste muita simpatia com ele.
acho que ele gosta de sofrer. aonde vamos?
— estava pensando em irmos ao concerto no parque. mas isso significa
ficar muito tempo sentado. podemos ir ao parque de diversões. havia coisa
assim no seu tempo?
— havia. será interessante ver se ele mudou muito. mas não importa
aonde vou. basta que esteja com você.
— eu sabia que você gostava de mim — disse ela, sorrindo.
— que homem não gostaria? mas estou surpreendido por você parecer
gostar tanto de mim. não sou alguém a quem se olhe muito. apenas um ruivo
brigão, com cara de bebê.
— gosto de bebês — respondeu ela, rindo. — mas não precisa fingir
surpresa. aposto que foi para a cama com centenas de moças.
churchill estremeceu. ele não era tão insensível à fala direta de deecee
quanto sarvant gostaria.
foi bastante esperto para não se vangloriar. disse:
— posso honestamente jurar que você é a primeira mulher que eu toco
em oitocentos anos.
— grande colúmbia, é incrível que você não exploda por todos os lados!
ela riu alegremente, mas churchill corou e ficou contente por não
estarem em lugar muito iluminado.
— tive uma idéia — disse ela. — por que não vamos velejar esta noite?
É lua-cheia e o potomac deve estar lindo. e podemos fugir deste calor. deve
haver brisa.
— de acordo, mas é uma caminhada.
— virgínia nos protege! você não está pensando em andar! nosso carro
está esperando nos fundos.
ela apanhou um apito no bolso da saia em forma de sino. logo após o
trilar, ouviu-se o bater de cascos e o ranger do cascalho sob as rodas.
churchill ajudou-a a entrar na carruagem. a leoa subiu depois deles e deitou-
se aos seus pés. o cocheiro gritou "giddyap!" e o carro desceu a rua
iluminada pela lua. churchill se perguntava por que ela queria levar a leoa, já
que dois criados armados estavam sentados na traseira do carro, ele julgou
que, tendo alice com ela, a moça estava duplamente defendida. ela derrotaria
dez homens numa luta.
os três saltaram do carro. robin deu ordem aos criados de esperarem até
que eles voltassem do passeio. descendo a longa escada que levava ao barco,
churchill perguntou:
— eles não vão se aborrecer esperando por nós?
— acho que não. têm uma garrafa de relâmpago branco e dados.
alice foi a primeira a pular para bordo do iate e acomodou-se na pequena
cabina onde, provavelmente, esperava que a água não a atingisse. churchill
desatracou o barco, deu-lhe um impulso e pulou para dentro. depois, ele e
robin ficaram muito ocupados desfraldando a vela e fazendo outras coisas.
foi um passeio agradável. a lua-cheia lhes deu toda a luz de que
precisavam ou queriam e a brisa tinha a força necessária para levá-los numa
boa velocidade quando pagaram a linha do vento. a cidade era um monstro
negro, com milhares de olhos chamejantes, representados pelas tochas do
povo nas ruas. churchill, sentado, com a barra do leme na mão e robin ao
lado, explicou a ela como era washington no tempo dele.
— havia muitas torres cheias de gente e ligadas pelo ar por inúmeras
pontes e no subsolo por muitos túneis. as torres se elevavam no ar a uma
milha de altura e mergulhavam outra milha no chão. não havia noite porque
as luzes eram fortíssimas.
— e agora tudo isso acabou, derretido e coberto de sujeira — disse robin.
estremeceu, como se lhe desse frio pensar em todo aquele esplendor de
pedra e aço e nos milhões de pessoas agora desaparecidas. churchill pôs o
braço em volta dela e, como a moça não resistisse, beijou-a.
churchill pensou que havia chegado a hora de ferrar a vela e deitar
âncora. imaginou se a leoa ficaria agitada, mas achou que robin devia saber
como o bicho agiria naquelas circunstâncias. talvez ele e robin pudessem
descer para a pequena cabina, embora ele preferisse ficar no tombadilho.
aquilo seria possível se o animal não reagisse a ser fechado na cabina.
mas nada disso aconteceu. quando ele disse à moça, abruptamente, por
que queria colher a vela, foi informado de que aquilo não podia acontecer.
pelo menos naquele instante.
robin falou suavemente e sorriu para ele. disse até que lamentava.
— você não tem idéia do que isso significa para mim, rud — disse ela.
— acho que estou apaixonada por você. mas ainda não tenho certeza se é a
você ou ao irmão do herói solar que eu amo. você é, para mim, mais que um
homem; é, em muitos aspectos, um semideus. você nasceu há oitocentos
anos e viajou por lugares tão longínquos que, só de pensar, minha cabeça
anda à roda. para mim, você tem uma auréola fulgurante, mesmo em dia
claro. mas sou uma moça direita. não posso me permitir — embora colúmbia
saiba que eu quero — fazer isso com você. não até ter certeza... mas sei
como deve se sentir. por que não vai amanhã ao templo de gotew? churchill
não tinha idéia do que ela estava falando. estava só preocupado de tê-la
ofendido tanto que ela não mais quisesse vê-lo. não fora só a luxúria o que o
atraíra para ela. tinha certeza. ele amava aquela bela moça; ele a quereria,
mesmo logo após ter possuído doze mulheres.
— vamos voltar — disse robin. — acho que isso acabou com seu bom-
humor. a culpada sou eu. não deveria tê-lo beijado. mas queria.
— então não está zangada comigo?
— por que deveria estar?
— por nada. mas estou contente outra vez.
depois de terem atracado o barco na rampa e justamente quando
começavam a andar para a escada, ele a fez parar.
-— robin, quanto tempo você acha que precisa para ter certeza?
— vou ao templo amanhã. só poderei responder quando voltar.
— vai rezar pedindo conselho? ou coisa parecida?
— vou rezar. mas não vou lá especialmente para isso. quero que uma
sacerdotisa me faça um teste.
— e depois do teste, você saberá se quer casar comigo ou não?
— meu deus, não! — disse ela. — preciso conhecer você melhor que
conheço, antes de pensar em casar com você. não, preciso ter esse teste feito
e então saberei se devo ou não ir para a cama com você.
— que teste?
— se você não sabe, então não se preocupe. mas terei certeza amanhã.
— certeza de quê? — perguntou ele, zangado.
— então saberei se posso deixar de agir como virgem. o rosto dele
demonstrou espanto.
— saberei se carrego no ventre o filho do herói solar!
sete

CHOVIA no d.a em que stagg foi encabeçar o desfile em baltimore, stagg e


calthorp estavam abrigados sob uma grande barraca sem lados e bebiam
relâmpago branco quente para ficarem aquecidos. stagg estava imóvel como
um manequim, enquanto se submetia à habitual repintura dos órgãos genitais
e das nádegas, necessária, pois, de noite, a pintura saía. estava em silêncio e
não ligava para os risinhos e atenções das três moças, cujo único trabalho era
a redecoração diária do herói solar. calthorp que, geralmente, falava sem
parar para manter o moral de stagg, também estava calado. finalmente, stagg
disse:
— sabe, doutor, já se passaram dez dias desde que saímos de fair grace.
dez dias e dez cidades. já era tempo de você e eu termos elaborado um plano
de fuga. de fato, se fôssemos os homens que costumávamos ser antigamente,
já estaríamos longe daqui. mas o único momento que tenho para pensar é de
manhã e a essa hora estou muito cansado e imprestável para realizar alguma
coisa construtiva. e, de tarde, não estou me incomodando. gosto disto!
— e eu não tenho sido muito útil, não é? — perguntou calthorp. — ando
tão bêbedo quanto você e me sinto demasiadamente ressaqueado pela manhã
para fazer qualquer coisa útil.
— que diabo está havendo? — lamentou-se stagg. — você já imaginou
que eu nem mesmo sei aonde vou ou o que me acontece quando chego em
qualquer lugar? nem mesmo sei, na verdade, o que é um herói solar!
— sou muito culpado disso — respondeu calthorp. suspirou e sorveu um
pouco mais de bebida.
— eu positivamente não pareço estar em forma. stagg olhou para um dos
guardas que estavam parados na entrada da tenda ao lado.
— você acha que, se eu ameaçar torcer o pescoço dele, ele me dirá tudo
o que quero saber?
— você pode tentar.
stagg se levantou da cadeira.
— passe-me essa capa, sim? acho que eles não se incomodarão que eu a
vista porque está chovendo.
estava se referindo ao incidente do dia anterior, quando vestira um saiote
antes de ir falar com a moça na jaula. os espectadores pareceram chocados e
chamaram os guardas. estes cercaram stagg. antes que o comandante pudesse
saber o que eles iam fazer, um homem por trás dele arrancou o saiote e
correu para o bosque com aquela peça de vestuário.
ficou desaparecido o dia inteiro, talvez com medo da ira de stagg, mas a
lição fora aprendida. esperava-se que o herói solar exibisse sua nudez
gloriosa a todos os adoradores.
stagg vestiu a capa e atravessou a grama molhada com •os pés descalços.
os guardas deixaram as barracas e o seguiram, mas não se aproximaram.
stagg parou diante da jaula. a moça que estava sentada dentro dela
levantou os olhos e depois virou o rosto.
— não precisa ter vergonha de me olhar — disse ele. — estou coberto.
não houve resposta.
então ele prosseguiu:
— pelo amor de deus, fale comigo! também sou prisioneiro! estou tão
enjaulado quanto você.
a moça agarrou as barras e encostou o rosto nelas.
— você disse "pelo amor de deus!" que quer dizer isso? você também é
de caseyland? não pode ser. você não fala como meus conterrâneos. mas
também não fala como um deecee... ou como qualquer outro que eu tenha
ouvido antes. diga-me, você é devoto de colúmbia?
— se você parar de falar um minuto, explicarei tudo — disse stagg. —
graças a deus, finalmente você falou.
— lá vem você outra vez — respondeu ela. — você pode não ser
adorador da infame deusa-puta. mas se não é, por que é rei cornudo?
— eu tinha esperança de que você me dissesse por quê. se você não sabe,
talvez possa me dizer algumas outras coisas que eu gostaria de saber.
ofereceu a garrafa a ela.
— quer um drinque?
— gostaria bastante. mas não aceito de um inimigo. e ainda não tenho
certeza de que não é um.
stagg a entendeu com dificuldade. ela usava inúmeras palavras parecidas
com as de deecee, o que lhe permitia ter uma idéia geral das frases. mas a
pronúncia de algumas vogais era diferente e o sotaque não era o de deecee.
— você pode falar deecee? — perguntou. — não consigo me entender
com você em caseyland.
— falo deecee bastante bem — replicou ela. — qual é a sua língua
materna?
— americano do século vinte e um.
ela suspirou e seus enormes olhos se tornaram ainda maiores.
— como pode ser isso?
— nasci no século vinte e um. dia 30 de janeiro de 2030, anno domini...
vejamos, deve ter sido...
— não precisa me explicar — atalhou ela, na sua língua materna. —
deve ter sido... hum... bem, 1 anno domini é 2100 anno domini. portanto, no
calendário de deecee, você nasceu em 70 a.d., antes da desolação. mas que
importa isso agora? nós, em caseyland, usamos o antigo calendário.
stagg finalmente cessou de fitá-la de olhos arregalados e disse:
— você fala americano do século vinte e um! ou pelo menos coisa
parecida!
— falo. habitualmente, só os sacerdotes podem falar, mas meu pai é um
homem rico. mandou-me para a universidade de boston e lá aprendi
americano religioso.
— quer dizer, linguagem litúrgica?
— É. o latim desapareceu durante a desolação.
— acho que preciso de um drinque — disse stagg. — você aceita um?
— não entendi direito o que você disse, mas aceito. stagg passou a
garrafa entre as grades.
— finalmente sei seu nome. É mary de-viagem-para-o-paraíso little
casey. mas tudo o de que preciso é me livrar dos guardas.
mary devolveu a garrafa.
— maravilhoso. foi há um tempão. você disse guardas? por que precisa
de guardas? pensei que todos os heróis solares fossem voluntários.
stagg começou a contar sua história. não tinha tempo de entrar em
detalhes, mesmo quando a expressão do rosto de mary lhe dizia que ela só
compreendera metade do que estava contando. e de vez em quando, tinha de
recorrer ao deecee porque era evidente que mary poderia ter estudado o
americano religioso na universidade, mas não o dominava.
— você pode ver, portanto, que sou vítima destes cornos — concluiu. —
não sou responsável pelo que faço.
mary ficou vermelha.
— não quero falar a esse respeito. me sinto profundamente mal.
— eu também me sinto — disse stagg. — isto é, pela manhã. de tarde...
— você não pode ir embora?
— posso. e volto ainda mais depressa.
— oh, esses miseráveis deecees! devem tê-lo enfeitiçado. só um
demônio nas costas pode enfeitiçar dessa maneira! se pudéssemos fugir para
caseyland, uma sacerdotisa exorcizaria você.
stagg olhou em volta.
— estão começando a levantar acampamento. partiremos dentro de um
minuto. para baltimore. ouça! falei-lhe a meu respeito. mas continuo sem
saber nada de você, de onde vem, como foi aprisionada. e há coisas a meu
respeito que você pode me esclarecer, como, por exemplo, o que significa
toda esta história de herói solar.
— mas não compreendo por que cal... ela pôs a mão na boca.
— cal! você quer dizer calthorp! que é que êie tem com isto? não me
diga que ele tem falado com você! ele me disse que não sabe nada!
— ele andou conversando comigo. pensei que ele tivesse lhe dito.
— nunca me disse nada! na verdade, ele me disse que não sabia mais que
eu a respeito disto tudo! por que aquele...
perdendo a fala, virou-se e saiu correndo.
no meio do campo, recuperou a voz e começou a berrar e nome do
pequeno antropólogo.
a gente que estava no caminho dele se espalhou; pensaram que o grande
garanhão ficara doido outra vez. calthorp saiu da barraca. vendo stagg correr
para ele, fugiu para o outro lado da estrada. não se deixou vencer pela
amurada de pedra existente na sua trajetória. pôs a mão sobre ela e pulou por
cima. do outro lado, correu tão depressa quanto suas finas pernas o
permitiram, através de um pasto e na direção de uma casa de fazenda.
stagg gritava atrás dele:
— se eu o pego, calthorp, quebro osso por osso do seu corpo! como pôde
fazer isso comigo?
parou um instante, ofegante de raiva. depois deu meia-volta,
murmurando:
— por quê? por quê?
a chuva parou nesse momento. alguns minutos depois, as nuvens
desapareceram e um ardente sol de meio-dia se mostrou. stagg tirou a capa e
jogou-a ao chão.
— calthorp que vá pro diabo! não preciso dele e nunca precisei! traidor!
que se dane!
chamou sílvia, uma criada, para lhe trazer comida e bebida. comeu e
bebeu como sempre fez de tarde e, quando acabou, examinou-se
ansiosamente. os chifres, antes balançando molemente a cada movimento da
cabeça, estavam agora eretos e duros.
— quantos quilômetros até baltimore? — berrou.
— dois e meio, senhor. devo chamar seu carro?
— dane-se o carro! não posso ser retardado por rodas! vou correr até
baltimore! vou tomar a cidade de surpresa! estarei dentro dela antes que
percebam! pensarão que o avô de todos os garanhões está atacando! vou
pegar a todos e deixá-los arrasados! desta vez não serão só as mascotes que
levarão o delas! não pegarei apenas o que escolheram para mim. não apenas
miss américas só para mim! esta noite quero a cidade inteira!
sílvia estava apavorada.
— mas, senhor, as coisas... as coisas não podem ser assim! desde tempos
imemoriais...
— sou o herói solar ou não sou? o rei cornudo? vou fazer o que quero!
apanhou a garrafa na bandeja que ela estava segurando e saiu correndo
pela estrada.
no começo, se manteve no cimento. mas apesar da sola dos pés dele
serem agora mais duras que ferro, achou o pavimento áspero demais e por
isso passou a correr sobre a grama fofa da margem da estrada.
aqui é melhor — pensou. — quanto mais junto eu ficar da mãe terra, é
melhor para mim e eu gosto mais. pode ser uma superstição absurda dizer
que alguém se reanima ao contato direto com a terra. mas estou inclinado a
acreditar nos deecee. posso sentir a força surgindo do coração da mãe
terra, surgindo como uma, corrente elétrica, tornando a carregar meu
corpo. e posso sentir a força chegando com tal energia, com tal exuberância
de energia, que meu corpo não é suficiente para contê-la. e o excesso jorra
do alto da minha cabeça e chameja para o céu. posso sentir.
parou de correr por um instante, desarrolhou a garrafa e tomou um gole.
verificou que os guardas estavam correndo atrás dele, mas pelo menos a
duzentas jardas de distância. eles não tinham sua velocidade e resistência.
além de sua musculatura natural, tinha o poder adicional proporcionado
pelos chifres. ele era, pensou, provavelmente, o homem mais veloz e mais
forte já aparecido sobre a terra.
tomou outro gole. os guardas estavam se aproximando, mas haviam
perdido o fôlego e diminuído o impulso. mantinham os arcos e flechas
preparados, mas stagg achava que eles não atirariam enquanto ele estivesse
na estrada de baltimore. o comandante não tinha a intenção de deixar essa
estrada. só queria continuar a correr ao longo do seio arredondado da terra e
sentir sua força penetrar nele, sentir o êxtase dos seus pensamentos.
aumentou a velocidade, desta vez dando grandes saltos e grites
estranhos, inundados de prazer, de exuberância e desejos indizíveis e da
satisfação desses desejos. eles se exprimiam na linguagem dos primeiros
homens na terra, o caótico conjunto de expressões que os macacos eretos
devem ter criado com suas línguas rudes quando estavam tentando dar um
nome às coisas em volta deles. ele estava procurando dar nomes a
sentimentos. e com tão pouco sucesso quanto seus ancestrais, havia cem mil
anos.
mas, como eles, stagg estava tendo prazer com o esforço. e estava tendo
consciência de alguma coisa nunca antes experimentada, alguma coisa nova
para ele e, talvez, para cada criatura no mundo.
passou por homens, mulheres e crianças que andavam na estrada. eles
paravam quando 'o viam e então, ao reconhecerem-no, pelos atributos que
ostentava, caíam de joelhos.
stagg não parou; ultrapassou-os.
— pareço estar sozinho! — gritava para eles. — mas não estou! a terra,
mãe de vocês e minha, está a meu lado! É minha noiva e vai comigo aonde
quer que eu vá. não posso me afastar dela. mesmo quando viajei pelo espaço,
para lugares tão distantes que são precisos anos-luz para chegar lá, ela estava
comigo. e a prova é que estou de volta e agora vou cumprir minha promessa,
feita há oitocentos anos, de casar com ela!
quando acabou de falar, já estava muito longe deles. não ligou para se
estavam ouvindo ou não. o que ele queria era falar, falar, falar. gritar, gritar,
gritar. arrebentar os pulmões, se necessário, mas gritar a verdade.
subitamente parou. seus olhos haviam pousado num grande veado
vermelho que estava pastando dentro de um cercado. era o único macho de
um rebanho de corças e, como os cervinos criados para leite e carne, aquele
macho tinha uma visível qualidade bovina. o corpo era pesado, as pernas
curtas, o pescoço grosso e os olhos estúpidos mas sensuais. era,
provavelmente, um macho puro-sangue muito premiado como reprodutor.
stagg pulou o cercado, embora este tivesse cinco pés de altura e fosse
construído de granito. isso, porém, não era suficiente para o deter. caiu de pé
e correu para o veado. este mugiu e o enfrentou. as corças fugiram para um
canto do pasto e depois se voltaram para ver o que ia acontecer. latiam como
cães assustados, fazendo tanto barulho que o dono veio às pressas de um
celeiro próximo.
stagg correu para o grande macho. o animal esperou até que o homem
estivesse a cerca de vinte jardas de distância. então baixou os chifres,
trompeteou um desafio e atacou.
stagg riu de prazer e se aproximou mais. regulando cuidadosamente sua
velocidade, pulou para o ar exatamente no momento em que os grandes
cornos varreram o lugar onde ele estivera. o comandante encolheu as pernas
e os cornos não o atingiram. então estendeu as pernas, de maneira a que os
pés pousassem por trás dos chifres, sobre o pescoço do reprodutor. um
segundo depois, o veado empinou a cabeça, tentando atingir o homem com
os cornos e atirá-lo para o ar. o veado só conseguiu se transformar num
trampolim para o homem e o impelir pelo lombo. o homem pousou na ampla
garupa do veado.
lá, em vez de pular para o chão, deu uma cambalhota para trás, com a
intenção de voltar para o pescoço do animal. seus pés, porém, escorregaram
e ele rolou do lombo do veado para o chão, caindo ao lado dele.
o veado fez meia-volta e trompeteou novo desafio, baixando os chifres e
atacando outra vez. mas stagg já estava em pé. assim que o animal
arremeteu, stagg pulou para o lado, agarrou uma das grandes orelhas e se
içou para o lombo dele.
nos cinco minutos seguintes, o espantado fazendeiro viu o homem nu
cavalgar o escoiceante, empinante, corcoveante, resfolegante e urrante veado
e se manter no lombo dele, apesar dessas furiosas manobras. subitamente, o
veado parou. seus olhos estavam esbugalhados, a saliva escorria da boca
aberta, através da qual saía uma respiração ofegante, e seus flancos arfavam
angustiosamente à procura de mais ar.
— abra o portão! — gritou stagg para o fazendeiro. — vou cavalgar este
animal em alto estilo até dentro de baltimore, como compete a um rei
cornudo!
o fazendeiro, em silêncio, empurrou o portão, abrindo-o para o campo.
não iria protestar pelo fato de o herói solar se apoderar do veado premiado.
como também não protestaria se o herói solar quisesse sua casa, sua mulher,
sua filha ou sua própria vida.
stagg levou o animal para a estrada de baltimore. bem na frente, viu uma
carruagem se dirigindo para a cidade. mesmo àquela distância, pôde ver que
era sílvia, indo avisar ao povo de baltimore que o rei cornudo estava
chegando adiantado... e sem dúvida advertir que o orgulhoso rei cornudo
estava disposto a violar a cidade inteira.
stagg teria gostado de correr atrás dela e alcançá-la. mas o cervo ainda
estava respirando com dificuldade e ele permitiu que o animal marchasse a
passo até recuperar o fôlego.
a meio quilômetro de baltimore, stagg bateu com os calcanhares
descalços nos flancos do animal e berrou nos ouvidos dele. o veado começou
a trotar e, sob a contínua pressão do cavaleiro, a galopar. correram entre dois
outeiros e subitamente desembocaram na rua principal de baltimore. esta se
estendia, em linha reta, por doze quarteirões, até chegar à praça central, onde
uma grande multidão fora apressadamente reunida. assim que stagg
atravessou os limites da cidade, uma banda começou a tocar colúmbia, gema
do oceano, e um grupo de sacerdotisas movimentou-se na direção do herói
solar.
atrás delas, enfileiravam-se num grupo compacto as mascotes que
tiveram a sorte de ser escolhidas para noivas do herói solar. estavam muito
bonitas nas suas saias brancas em forma de sino o seus véus de renda branca;
seus bustos estavam orlados de babados de renda branca. cada uma
carregava um buquê de rosas brancas.
stagg permitiu que o grande cervo diminuísse a velocidade, passando ao
trote, a fim de reservar a energia dele para o estouro final. sacudia a cabeça e
abanava a mao para os homens e mulheres que orlavam a rua e o vivavam
frenèticamente. foi saudado pelas mocinhas que estavam ao lado dos pais, as
mocinhas que não haviam tirado o primeiro lugar nos concursos de miss
américa.
— não chorem! não desprezarei vocês hoje!
então o toque dos clarins, o rufar dos tambores, o trilar das flautas se
elevaram e encheram a rua. as sacerdotisas caminharam para ele. usavam
túnicas azul-claro, a cor reservada para a deusa mary, entidade protetora de
maryland. mary, de acordo com a lenda, era neta de colúmbia e filha de
virgínia. ela se tomara de amores pelos nativos daquela região e os colocara
sob sua proteção.
as sacerdotisas, cinqüenta robustas, caminhavam para stagg. cantavam e
jogavam malmequeres na frente delas e, ocasionalmente, davam longos
gritos trêmulos.
stagg esperou até estar a cerca de cinqüenta metros delas. então
espicaçou o animal nas costelas e esmurrou-lhe a cabeça. o veado berrou e
corcoveou e depois partiu a galope, direto em cima das sacerdotisas. estas
pararam de cantar e ficaram num silêncio espantado. de repente, percebendo
que o herói solar não tinha a intenção de deter a montaria, que esta não
diminuía a velocidade, mas a aumentava, começaram a gritar e tentaram
pular para um lado. então viram que a multidão formava um corpo
impenetrável. elas se viraram e procuraram fugir do veado galopante;
atropelaram umas às outras, pisaram nas caídas, procurando uma saída.
só uma sacerdotisa não fugira. era a sacerdotisa-chefe, uma mulher de
cinqüenta anos, que conservava a virgindade em honra da deusa protetora.
ela permaneceu, como se estivesse pregada no chão pela sua coragem.
ergueu a mão, como o teria feito para abençoá-lo se ele tivesse chegado
normalmente. atirou para ele seu buquê de malmequeres e, com a outra mão,
que segurava uma pequena foice de ouro, traçou no ar um símbolo religioso.
os malmequeres caíram junto aos cascos do veado, sendo esmagados.
então a sacerdotisa-chefe foi atirada ao chão e sua cabeça arrebentada por
uma patada.
o impacto do corpo da sacerdotisa mal refreou a violência do impulso do
veado, que pesava, no mínimo, uma tonelada. ele se atirou de cabeça sobre a
compacta multidão de. agitadas, desfiguradas mulheres.
o animal estacou como se tivesse batido num muro de pedra, mas stagg
não.
foi projetado por cima do pescoço e dos chifres abaixados e flutuou no
ar. durante um momento, pareceu estar imobilizado no espaço. embaixo,
havia o grupo de sacerdotisas vestidas de azul, dividido em dois pelo
impacto do grande corpo, que voava em todas as direções, algumas planando
de costas, outras de cabeça para baixo, várias dando cambalhotas. havia uma
cabeça decapitada rodando perto dele, uma cabeça que devia ter sido
atingida sob o queixo pela ponta de um chifre e arrancada.
stagg passou pela ruína azul e desceu sobre um campo de véus brancos e
bocas vermelhas por trás dos véus, de vistosas saias em forma de sino e de
virgens seios nus.
então caiu na armadilha de renda e carne e desapareceu.
oito

PETER STAGG não acordou até a tarde do dia seguinte. foi novamente o
primeiro do seu grupo a levantar, com exceção de um. este era o doutor
calthorp, que se sentou na beira da cama do comandante.
— você está aqui há quanto tempo? — perguntou stagg..
— em baltimore? segui você de perto. vi você atirar aquele cervo contra
as sacerdotisas... e tudo o que aconteceu depois.
stagg sentou e gemeu.
— sinto-me como se cada músculo do meu corpo estivesse triturado.
— deve estar. você não foi dormir antes das dez da manhã. mas você
deve estar sentindo mais que uma dor muscular. suas costas não estão
doendo muito?
— um pouco. sinto como se tivesse uma pequena queimadura no fim das
costas.
— só isso?
as sobrancelhas brancas de calthorp se arquearam.
— bom, nesse caso só posso dizer que os chifres devem fazer mais que
injetar hormônios reprodutores na sua corrente sangüínea. devem, também,
ser condutores de reconstituintes celulares.
— que quer dizer com isso?
— quero dizer que, ontem à noite, um homem o golpeou nas costas com
uma faca. contudo, ele não deve ter atingido você muito profundamente,
porque o ferimento parece estar quase cicatrizado. É verdade que a faca não
entrou mais de uma polegada. você tem músculos fabulosamente firmes.
— lembro disso vagamente — respondeu stagg, estremecendo. — e que
aconteceu com o homem depois?
— as mulheres o estraçalharam. — mas por que ele me esfaqueou?
— parece que ele é desequilibrado mental. ficou ofendido pelo interesse
que você manifestou pela mulher dele e meteu-lhe a faca. ao fazer isso,
cometeu um horrível sacrilégio. as mulheres se serviram de dentes e unhas
para castigá-lo.
— corno você sabe que ele era desequilibrado mental?
— porque ele era... pelo menos do ponto de vista da cultura nativa.
ninguém, um estado normal, se opõe a que a mulher tenha relações sexuais
com um herói solar. aliás, isso seria uma grande honra, porque usualmente os
heróis solares dedicam seu tempo às virgens e a ninguém mais. contudo,
você ontem à noite abriu uma exceção... para toda a cidade. ou, pelo menos,
tentou.
stagg suspirou e disse:
— a noite de ontem foi a pior de todas. não houve mais estraçalhamentos
que os usuais?
— você dificilmente pode acusar os baltimoranos de serem culpados
disso. você deu início à coisa em grande escala quando esmagou aquela
sacerdotisa. por falar nisso, o que foi que inspirou aquele gesto?
— não sei. na hora me pareceu uma boa idéia. mas penso que pode ter
havido um comando do meu inconsciente para me vingar dos responsáveis
por isto.
apalpou os chifres. depois olhou calthorp fixamente.
— seu judas! por que você fez aquilo comigo? — quem lhe disse? aquela
moça?
— foi. deixe para lá. vamos, doutor, desembuche. mesmo que machuque,
desembuche. não vou lhe bater. meus chifres são o espelho de se estou ou
não no meu juízo perfeito. você pode ver como eles estão flácidos.
— comecei a suspeitar do verdadeiro caráter dos acontecimentos assim
que comecei a entender a língua — disse calthorp. — eu não tinha certeza,
no entanto, até que eles implantaram esses chifres em você. mas eu não
queria lhe dizer enquanto não tivesse esboçado um plano de fuga. pensei que
você poderia arranjar uma oportunidade e querer cair fora. vi imediatamente
que, se você fugir de manhã, estará de volta de tarde... ou mais cedo ainda.
esse mecanismo biológico na sua testa lhe dá mais que uma inexaurível
capacidade para espalhar seu sêmen; também lhe dá uma irresistível
compulsão a fazê-lo. envolve-o completamente... possui você inteiramente.
você é o maior caso de satiríase da história.
— sei como isso me afeta — disse stagg, impaciente. — quero saber
exatamente que espécie de papel estou desempenhando. com que objetivo. e
porque toda essa história de herói solar é necessária.
— você não quer um drinque antes?
— não! não quero afogar as mágoas em álcool. hoje vou realizar alguma
coisa. gostaria de um grande copo de água gelada. e estou morrendo de
vontade de tomar um banho, de tirar todo este suor e sujeira de cima de mim.
mas isso pode esperar. conte a história, por favor. e conte depressa!
— agora não tenho tempo para falar da lenda e da história de deecee —
disse calthorp. — faremos isso amanhã. mas posso lhe esclarecer bastante
sobre a posição de duvidosa honraria que você tem.
"em suma, você combina vários papéis religiosos com os de herói solar e
de rei-garanhão. o herói solar é o homem escolhido anualmente para
representar a passagem do sol em volta da terra, de forma simbólica. sim, eu
sei que a terra gira em torno do sol e as sacerdotisas e as massas analfabetas
de deecee também o sabem. mas, por motivos de ordem prática, o sol gira ao
redor da terra e é dessa mesma maneira que pensa o cientista, quando não
pensa cientificamente.
"portanto, o herói solar é escolhido e nasce simbolicamente durante a
cerimônia que tem lugar mais ou menos em 21 de dezembro. por que nessa
data? porque ela é a data do solstício de inverno, quando o sol está mais
fraco e atingiu sua posição mais ao sul.
"e é por isso que você está seguindo, agora, a estrada do norte. você está
destinado a viajar como viaja o sol depois do solstício de inverno: para o
norte. e como o sol, você fica cada vez mais forte. você notou como o efeito
dos chifres se torna cada vez mais poderoso? a prova disso foi a louca proeza
que você executou quando subjugou aquele veado e atacou as sacerdotisas."
— e que acontecerá quando eu atingir a posição mais ao norte? —
perguntou stagg.
sua voz estava calma e bem controlada, mas a pele, sob o bronzeado,
empalidecera.
— essa posição deve ser a cidade que conhecíamos como albany, no
estado de nova york. É agora o limite mais ao norte do território deecee. e é
também onde alba, a deusa-porca, vive. alba é columbia no seu disfarce de
deusa da morte. o porco é consagrado a ela porque, como a morte, é onívoro.
alba também é a deusa lua branca, outro símbolo da morte.
calthorp parou. seu ar era de quem não agüentava continuar aquela
conversa; seus olhos estavam úmidos.
— continue — disse stagg. — posso agüentar. calthorp respirou fundo e
prosseguiu:
— o norte, de acordo com a lenda de deecee, é o lugar onde a deusa lua
aprisiona o herói solar. maneira indireta de dizer que ele...
— morre — terminou stagg, pelo doutor. calthorp engoliu em seco.
— isso. o herói solar está destinado a completar a grande marcha a
tempo do solstício de verão... mais ou menos em 22 de junho.
— e quanto ao grande garanhão, o rei cornudo?
— deecee não seria nada se não fosse uma nação econômica. por isso,
combinaram o papel de herói solar com o de rei-garanhão. É o símbolo do
homem. nasce como uma criança fraca e desamparada, cresce para se tornar
um macho viril e sensual, amante e pai. mas também ele completa a grande
marcha e deve, quer queira, quer não, enfrentar a morte. quando ele a
encontrar, estará cego, careca, fraco e impotente. e... lutando pelo último
alento mas... alba, implacavelmente, arranca do peito dele esse último alento.
— não use linguagem figurada, doutor — falou stagg. — diga as coisas
em inglês claro.
— haverá uma fabulosa cerimônia em albany, a cerimônia final. lá você
possuirá não as suaves jovens virgens, mas a velha sacerdotisa de cabelos
brancos e seios de porca, servidora da deusa-porca. e sua natural repugnância
pela velha fará com que eles o prendam numa jaula até que você chegue a tal
ponto de sensualidade que aceite qualquer mulher, mesmo uma avó de cem
anos. depois...
— depois?
— depois você será cegado, escalpado, castrado e, finalmente,
enforcado. haverá uma semana de luto nacional por você. então você será
enterrado em posição fetal sob um dólmen, uma arcada de grandes lajes de
pedra. e serão ditas orações em homenagem a você e veados serão
sacrificados sobre seu túmulo.
— É um grande consolo — disse stagg. — olhe, doutor, por que fui
escolhido para esse papel? não é verdade que os heróis solares são, em geral,
voluntários?
— os homens lutam por essa honra, como as virgens lutam para se
tornarem a noiva do garanhão. o homem escolhido é o mais forte, o mais
bonito, o mais viril rapaz da nação. foi azar seu ser não só tudo isso mas o
chefe de homens que realmente subiram aos céus num cavalo de fogo e
voltaram. eles têm uma lenda sobre um herói solar que fez isso. acho que o
governo de deecee decidiu que, se se livrassem de você, conseguiriam
desfazer a união da tripulação. e assim fazendo, nos neutralizariam,
diminuindo qualquer perigo de que trouxéssemos de volta a velha e
abominada ciência.
"estou vendo mary casey acenando para você. acho que ela quer lhe
falar."
nove

PETER STAGG disse:


— por que você olha para o lado quando fala comigo? — porque —
disse mary casey — é difícil para mim manter vocês dois separados.
— que dois?
— o peter que vejo de manhã e o peter que vejo de noite. sinto, mas não
posso fazer nada. fecho os olhos de noite e tento pensar em outra coisa, mas
não posso fechar meus ouvidos. e ainda que eu saiba que não pode fazer
nada contra isso, detesto você. desculpe, não posso evitar.
— então por que me chamou para conversar?
— porque sei que não estou agindo caridosamente. porque sei que você
quer tanto sair de sua jaula de carne quanto eu da minha de ferro. porque
espero que pensemos alguma forma de fugir.
— calthorp e eu estudamos inúmeros planos de fuga, mas não sabemos
como fazer para que eu não volte. assim que os cornos começam a me afetar,
volto correndo para as mulheres.
— não pode usar sua força de vontade?
— um santo não teria forças para resistir aos cornos.
— então não tem jeito — disse ela, desanimada.
— talvez tenha. sabe, não tenho a menor intenção de ir sempre na
direção de albany. em algum lugar entre manhattan e albany cairei fora pelo
mato. É melhor morrer tentando, que ir para o matadouro como um boi.
"mas mudemos de assunto. fale-me de você e da sua gente. uma das
coisas que me prejudicam é a minha ignorância.
o que eu sei não chega nem mesmo para imaginar uma maneira de fugir."
mary casey respondeu:
— É melhor mesmo. preciso de alguém com quem falar, mesmo se fòr...
desculpe.
no decorrer da hora seguinte, stagg permaneceu ao lado da jaula e ela,
conservando os olhos abaixados, falou a respeito de si mesma e de
caseyland. o comandante interrompia com perguntas de vez em quando,
porque mary tinha tendência a generalizar.
caseyland ocupava a área conhecida antigamente como new england. não
era tão densamente povoada como deecee, nem tão rica. seus habitantes se
dedicavam principalmente a recuperar o solo, mas dependiam muito da
criação de porcos e cervos e também do mar para obter alimentação. embora
estivessem em guerra com deecee a sudoeste, com a karélia ao norte e com o
iroquois a noroeste, comerciavam com esses inimigos. tinham uma
instituição peculiar, chamada tratado de guerra. este limitava, por acordo
mútuo, o número de soldados a serem enviados através das fronteiras, em
incursões de um ano de duração, e também regulava as normas de combate.
deecee e iroquois respeitavam as regras, mas, de vez. em quando, karélia as
rompia.
— como pode cada lado esperar vencer? — perguntou stagg, espantado.
— nenhum lado quer. acho que o tratado de guerra foi adotado por
nossos antepassados por um motivo. para dar razão às energias dos homens
beligerantes, enquanto mantinha a maioria da população ocupada com a
recuperação do solo. acho que quando a população de qualquer país cresce
demais, há uma guerra geral, sem qualquer espécie de regra. entretanto,
nenhuma nação se sente bastante forte para iniciar uma guerra sem normas.
os karelianos romperam os tratados porque são um povo que vive da
economia de guerra.
ela prosseguiu, fazendo um breve resumo das origens de sua nação.
havia duas lendas referentes à razão pela qual caseyland era chamada assim.
uma dizia que, depois da desolação, uma organização conhecida como
knights of columbus fora bem sucedida ao fundar uma cidade-estado perto
de boston. essa cidade-estado, como o pequeno núcleo inicial de roma, se
expandiu e absorveu a vizinhança. a cidade-estado começou a ser chamada
k.c. e, depois de certo tempo, as iniciais foram transformadas no nome de um
eponímico e mítico antepassado, casey.
a outra história era que houvera, realmente, uma família casey, que
fundara a cidade, tendo esta tomado o nome dela. e isso dera origem ao atual
sistema de clã, em virtude do qual todos na cidade se chamavam casey.
havia uma terceira versão, não amplamente aceita, de que a verdade era
uma combinação das duas primeiras lendas. um homem chamado casey fora
o chefe dos knights of columbus.
— talvez nenhuma dessas lendas seja verdadeira — disse stagg.
essa opinião pareceu não agradar a mary, mas a moça era,
essencialmente, cordata. respondeu que era possível.
— e a história contada em deecee? — perguntou stagg. — eles dizem
que vocês adoram um deus-pai chamado columbus e que vocês tiraram esse
nome do da deusa deles, colúmbia. vocês masculinizaram ambos, a deusa e o
nome. não é verdade que o deus de vocês tem dois nomes, jeová e/ou
columbus?
— É mentira! — disse ela, zangada. — deecee deve ter confundido o
nome do nosso deus com o de saint columbus. É verdade que rezamos
freqüentemente à saint columbus para que interceda junto a jeová. mas não o
adoramos.
— quem foi saint columbus?
— ora, todo mundo sabe que ele veio do leste, através do oceano, e
desembarcou em caseyland. foi ele quem converteu os cidadãos da cidade-
mãe casey à verdadeira religião e fundou os knights of columbus. se não
fosse por saint columbus, seríamos todos pagãos.
stagg começou a ficar agitado, mas conseguiu fazer mais uma pergunta
antes de ir embora.
— sei que mascote, é a palavra usada hoje para designar virgem. tem
idéia de como mascote passou a ser usada com esse significado atual?
— foi sempre usada assim — respondeu ela, encarando-o pela primeira
vez. — sabe, uma mascote trás sorte. talvez tenha notado como os deecees
tocam no cabelo de uma mascote adolescente sempre que podem. isso
acontece porque a sorte às vezes se transmite pelo toque. e, é claro, uma
incursão de homens sempre leva uma mascote para dar sorte. eu participava
de uma expedição guerreira contra os poughkeepsies quando fui capturada.
esse cartaz mente quando diz que fui capturada por ocasião de uma incursão
dos deecees em caseyland. ela fica em outra direção. mas, evidentemente,
você não pode esperar a verdade de um povo que adora a mãe da mentira.
stagg concluiu que os nativos de caseyland eram tão confusos e
equivocados quanto os de deecee..não adiantava discutir ou querer separar a
lenda da história.
as grandes artérias na base dos seus chifres principiavam a pulsar
fortemente e os próprios chifres começavam a endurecer.
— agora preciso ir — disse ele. — até-amanhã.
virou-se e foi embora depressa. graças à sua força de vontade, continuou
correndo.
passaram-se dias e noites. as manhãs chegavam e se iam, encontrando
stagg fraco, discutindo os planos de fuga. as tardes eram passadas comendo e
bebendo e, às vezes, em loucas e brutais brincadeiras. as noites... as noites
eram visões de ululantes carnes brancas, eram a impressão de ser ele uma
grande pulsação que soava em uníssono com o coração enterrado da própria
terra, era o sentimento da transformação de um ser humano em força da
natureza. Êxtase descuidado e o corpo obedecendo à vontade de uma causa.
ele era um instrumento que não tinha escolha; devia obedecer a quem o
possuía.
a grande marcha ia de washington a colúmbia pike, antigamente
conhecida como u. s. route 1, e passava por baltimore, onde virava para a
que fora a u. s. route 40, mas que agora era conhecida como mary's way.
abandonara o mary's way nos arredores de wimlin (wilmington, delaware),
para seguir pelo antigo new jersey turnpike. esta estrada também era
chamada njuhzhi, nome de uma das filhas de colúmbia.
stagg ficou uma semana em kaept (camden) e reparou no grande número
de soldados existentes na cidade. disseram-lhe que era. porque filadélfia, do
outro lado do rio dway (delaware), era a capital da nação hostil pants-elf
(pensilvânia oriental).
os soldados acompanharam stagg até a saída de camden, na antiga u. s.
route 30, e esperaram que ele penetrasse profundamente na região, até estar a
salvo. então o deixaram e ele e seu grupo continuaram viagem para a cidade
de berlim.
depois de suntuoso desfile e das orgias que se seguiram, stagg continuou
na ex-u.s. 30 até talant (atlantic city).
atlantic city reteve stagg durante duas semanas. era uma metrópole de
trinta mil habitantes, cuja população quintuplicava quando os moradores do
interior chegavam para participar dos ritos do herói solar. dali, stagg seguiu
pelo antigo garden state parkway até virar no que fora o state highway 72.
este levava ao 70 e o 70 à ex-u.s. route 206. stagg pegou a estrada de trint
(trenton), onde foi novamente recebido por uma enorme escolta.
quando deixou trenton, voltou a trilhar colúmbia pike, a ex-u.s. route 1.
depois de ter atravessado em tempo normal as relativamente grandes cidades
de elizabeth, newark e jersey city, stagg pegou a balsa para manhattan island.
fez sua mais extensa parada na área da grande nova york porque manhattan
tinha cinqüenta mil habitantes e as cidades em torno quase a mesma coisa.
além disso, ali começavam as grandes séries.
stagg tinha não só que dar início à primeira partida de baseball da
temporada, como participar de cada jogo. pela primeira vez, teve consciência
de quanto o jogo havia mudado. agora ele era jogado de maneira bizarra,
onde ambos os times procuravam não sofrer ferimentos nem baixas fatais.
a primeira parte das grandes séries era preenchida por jogos entre os
campeões de várias ligas estaduais. o jogo final, valendo pelo campeonato
nacional, foi entre os manhattan big ones e os washington sentahs. os big
ones ganharam, mas perderam tantos homens que foram obrigados a usar
metade dos sentahs como reforço nos jogos internacionais que se seguiram.
o primeiro turno internacional das grandes séries foi entre os campeões
nacionais de deecee, pants-elf, caseyland, liga iroquois, os piratas de karélia,
flórida e búfalo. esta última nação ocupava um território que começava na
cidade de búfalo e incluía parte da costa dos lagos ontário e erie.
o jogo final das grandes séries foi uma sangrenta batalha entre os times
de deecee e caseyland. o time desta última usava perneiras vermelhas como
parte do uniforme, mas no fim da partida, os jogadores estavam vermelhos
da cabeça aos pés. os ânimos estavam muito exaltados, não só entre os
jogadores como também entre os torcedores. uma parte do estádio fora
reservada para caseyland, separada das outras por uma alta cerca de arame-
farpado. além disso, a força policial de manhattan tinha soldados acampados
perto, para proteger os torcedores de caseyland, se os ânimos se exaltassem
demais.
infelizmente o juiz — um kareliano que se pensava fosse neutro porque
odiava os dois lados — tomou uma decisão de efeito desastroso.
era o nono turno e o resultado estava sete a sete. os big ones estavam
usando o bastão. havia um jogador na terceira base que, embora ostentasse
uma cutilada no pescoço, era bastante forte para correr até o objetivo, se
tivesse chance. dois homens estavam fora de jogo... literalmente. um,
coberto com um pano, jazia onde fora atacado, entre a segunda e a terceira
base. o outro, estava sentado no banco dos jogadores e gemia, enquanto um
médico suturava os cortes do seu couro cabeludo.
o homem com o bastão era o menor batedor de deecee e enfrentava o
maior catcher de caseyland. usava um uniforme que não mudara muito
desde o século xix e seu rosto tinha um calombo provocado peio grande
pedaço de fumo que mascava. balançava o bastão para a frente e para trás. os
raios do sol brilhavam nas partes de metal, pois a metade superior do bastão
estava coberta de finas lâminas verticais de cobre. ele estava esperando que o
juiz gritasse atirar bola! e, quando ouviu o grito, não se dirigiu
imediatamente para sua posição.
em vez disso, virou-se e esperou até que a mascote corresse do banco
para ele.
ela era uma bela moreninha em uniforme de baseball. a única diferença
do antigo uniforme era a abertura triangular na camisa, que expunha seus
pequenos mas eretos seios.
big bill appletree, o batedor, esfregou os nós dos dedos na cabeleira da
mascote, beijou-a na testa e depôs deu, com o bastão, uma amigável pancada
nela, quando voltou correndo para o banco. então se colocou no lugar
devido, um quadrado desenhado a giz no campo, e adotou a posição
tradicional do batedor pronto a rebater a bola.
lanky john up-the-hill-and-over-the-river-jordan mighty casey cuspiu o
tabaco e depois se preparou para atirar a bola. esta, do tamanho
regulamentar, estava em sua mão direita. quatro pontas de aço de meia
polegada saíam dela: uma em cada pólo e duas no equador. john casey tinha
de segurar a bola de maneira a não ferir os dedos quando a arremessasse.
isso o tornava um tanto inferior, em comparação com um lançador de
antigamente. mas ele se postou seis metros mais perto do batedor,
compensando desta forma a dificuldade de arremessar a bola.
esperou até que a mascote de caseyland se aproximasse, para que ele
tocasse na cabeça dela. depois finalizou, deixando a bola voar.
A bola eriçada zumbiu a uma polegada do rosto de big bill appletree. este
piscou, mas não recuou.
elevou-se um rugido na multidão, diante dessa prova de coragem.
— primeira bola! — gritou o juiz.
os torcedores de caseyland vaiaram. de onde estavam, parecia que a bola,
embora chegando próximo ao rosto de appletree, estava na mesma linha da
marca de giz da posição. for isso, o arremesso devia ter valido um ponto.
appletree tentou bater na seguinte e perdeu.
— primeira batida!
no terceiro arremesso, appletree brandiu o bastão e atingiu a bola. esta,
no entanto, subiu pela esquerda. era, claramente, uma falta.
— segunda batida!
o arremesso seguinte chegou zunindo, diretamente na barriga de
appletree. este encolheu a barriga e pulou para trás o bastante para não ser
atingido, mas não o bastante para não sair da marca, o que constituiu uma
perda.
no próximo, appletree bateu e errou. mas a bola não. appletree caiu no
chão, com uma das pontas de aço da bola cravada no flanco.
a multidão gritou e, logo depois, se tornou relativamente silenciosa,
quando o juiz começou a contar.
appletree tinha dez segundos para se levantar e voltar a jogar ou então
teria uma falta marcada contra ele.
a mascote deecee, uma bela moça alta, com pernas excepcionalmente
longas e abundantes cabelos vermelhos que caíam até as nádegas, redondas e
rijas como maçãs, correu para ele. erguia as pernas à maneira saltitante das
mascotes nessas ocasiões. quando chegou junto de appletree, caiu de joelhos
o inclinou a cabeça para ele, atirando o cabelo para frente, de modo a que ele
pudesse tocá-lo. a força da virgem, da masco;e dedicada à grande mãe branca
no seu disfarce de unfekk pretensamente passaria dela para ele.
aparentemente, não foi suficiente. ele lhe disse alguma coisa e ela se
levantou, desabotoando uma aba sobre o púbis, e depois tornou a se inclinar
para ele. a multidão rugiu, porque aquilo significava que appletree estava tão
ferido que precisava de uma dose dupla de energia físico-espiritual.
À contagem de oito, appletree se levantou. a multidão aplaudiu. até os
torcedores de caseyland lhe fizeram uma ovação... todos homenageavam um
homem de coragem.
appletree retirou a ponta de aço da ilharga, apanhou um curativo da mão
da mascote e colocou-o sobre a ferida. o curativo aderiu ao ferimento sem
precisar de pressão porque sua pseudocarne imediatamente pôs para fora
uma quantidade de pequenas garras que se enfiaram nele.
big bill acenou para o juiz, dizendo que estava pronto.
— atirar bola!
agora era a vez de appletree arremessar. foi-lhe permitido tentar derrubar
o pegador. se conseguisse, poderia andar para a primeira base.
girou o braço e arremessou a bola. john casey permaneceu dentro do
pequeno quadrado de sua posição. se saísse dele, seria mandado embora — o
chuveiro mais cedo para ele — e appletree poderia continuar até a segunda
base.
manteve-se na base, mas seus joelhos dobraram e ele pôde inclinar o
corpo para um lado ou outro.
a bola foi uma perda técnica, visto que a borda de uma das pontas rasgou
seu quadril direito.
e então ele pegou a bola e a arremessou.
os torcedores de deecee rezavam em silêncio, com os dedos cruzados ou
com as mãos tocando as cabeças das mascotes mais próximas. os de
caseyland, por sua vez, gritavam roucamente. os de pants-elf, iroquois,
flórida e búfalo, berravam insultos aos times que eles detestavam mais.
o jogador de deecee, localizado na terceira base, moveu-se para fora,
pronto a correr para a meta na primeira oportunidade. casey o olhou mas não
fez nenhum gesto ameaçador.
arremessou em direção à meta, preferindo fazer appletree bater uma
direta em vez de desviar e talvez ter outra bola confirmada. quatro bolas e
appletree poderia ficar cm primeiro.
o grande batedor de deecee atirou a bola reta. mas, como freqüentemente
acontecia, uma das pontas foi atingida. a bola passou acima da linha, longe
do objetivo, na direção da primeira base e, depois, caiu num ponto entre o
objetivo e a primeira base.
appletree atirou o bastão para o pegador, que estava à
a bola o atingiu na cabeça. o jogador na primeira base, ao correr para
agarrá-lo, também se chocou com ele. appletree caiu violentamente no chão,
mas saltou como uma bola de borracha, correu um certo trecho e deslizou de
barriga para a primeira base.
todavia, o jogador na primeira base, mesmo caído, apanhou a bola e fez
um passe a appletree. logo depois, ficou de pé e correu para o objetivo. a
bola esmagou-se contra a enorme e grossa luva do pegador, um momento
antes do jogador que estava na terceira base se mover para o quadrado.
o juiz mandou o jogador de deecee sair sem discussão. mas o jogador na
primeira base caminhou para o juiz e declarou, aos gritos, que ele tocara em
appletree na corrida. em conseqüência disso, appletree também foi posto
fora.
appletree negou que tivesse sido tocado.
o jogador na primeira base disse que podia provar. ele havia lanhado o
lado do tornozelo direito de appletree com uma das pontas da bola.
o juiz fez appletree tirar a meia.
— você tem um ferimento aqui, ainda sangrando — disse. — você está
fora!
— não estou! — rugiu appletree, dando uma cusparada cheia de fumo no
rosto do juiz. — estou sangrando de dois cortes na coxa, também, e isso
aconteceu no último turno. esse adorador do deus-pai é um mentiroso!
— como pôde ele me dizer para olhar seu tornozelo direito, se não o
tivesse cortado? — rugiu o juiz de volta. — sou o juiz e você está fora!
a decisão não agradou aos torcedores de deecee. vaiaram e gritaram o
tradicional "matem o juiz!"
o kareliano ficou pálido, mas se manteve firme. infelizmente, sua
coragem e integridade de nada lhe valeram, pois a multidão saiu do estádio e
o enforcou numa viga. a massa começou, também, a espancar o time de
caseyland. este poderia ter morrido em conseqüência do selvagem
espancamento, mas a polícia de manhattan o isolou e começou a espancar
por seu turno, os frenéticos torcedores, com o lado da lâmina das espadas.
deram também um jeito de cortar o laço do pescoço do kareliano, antes que o
nó completasse sua obra.
nesse ínterim, os torcedores de caseyland se esforçavam para socorrer
seu time. apesar de nunca terem conseguido chegar perto dos seus jogadores,
entraram em luta com os fãs de deecee.
stagg olhou a confusão durante um momento. a princípio, pensou em
pular no meio da massa de corpos em luta furiosa e distribuir socos para
todos os lados, com seus enormes punhos. sua sede de sangue acordou.
levantou-se para pular sobre a massa embaixo, mas nesse instante um grupo
de mulheres, também se levantando para lutar, porém num outro sentido,
caminhou na direção dele.
dez

CHURCHILL, naquela noite, não dormiu bem. não pôde se libertar da


expressão extasiada do rosto de robin, quando ela disse que esperava
carregar no ventre o filho do herói solar.
primeiro, ele se amaldiçoou por não ter adivinhado que ela deveria ter
estado entre as cem virgens selecionadas para serem iniciadas durante os
ritos. robin era muito bonita e seu pai muito importante, para que fosse
recusada.
depois se desculpou, pelo fato de, realmente, pouco conhecer sobre a
cultura deecee. suas atitudes eram, principalmente, as do seu tempo. ele a
havia tratado como se ela fosse uma moça do longínquo século xxi.
lamentou ter-se apaixonado por robin. estava procedendo mais como um
jovem de vinte anos que como um homem de trinta e dois... não, como um
homem de oitocentos e trinta e dois. um homem que viajara milhares de
milhões de quilômetros e havia feito do espaço interestelar o seu domínio.
cair por uma moça de dezoito, que apenas conhecia uma pequena parte da
terra e uma estreita faixa de tempo!
mas churchill era um homem prático. um fato era um fato. e era um fato
ele ter querido robin whitrow para esposa... ou tido querido, a partir do
momento, na noite anterior, em que ela o havia atordoado com o que
anunciara.
por um momento, odiou peter stagg. sempre tivera um ligeiro
ressentimento do comandante porque stagg era alto e bonito e tinha um cargo
que churchill sabia que também era capaz de exercer. gostava de stagg e o
respeitava mas, para ser honesto, devia confessar que sentia ciúmes
era, para ele, quase insuportável pensar que stagg, como sempre, o
vencera. stagg sempre fora o primeiro.
quase insuportável.
como a noite custasse a passar, churchill se levantou da cama para fumar
um charuto andando de um lado para outro, e fazer um esforço para ser
franco consigo mesmo.
a culpa não era de stagg nem de robin se aquilo acontecesse. e,
certamente, robin não estava apaixonada por stagg. este, coitado, fora
condenado a uma curta mas excitante vida.
o problema imediato que churchill teria de enfrentar, era que ele queria
casar com uma mulher que ia ter um filho de outro homem. era fora de
dúvida que, nem ela nem o pai podiam ser culpados. que importância tinha
se ele quisesse casar com robin e criar o filho como seu?
finalmente, tornou a deitar e se relaxou usando técnicas iogas, o que lhe
permitiu dormir.
acordou uma hora depois do amanhecer e saiu do quarto. uma criada o
informou de que whitrow fora para o escritório, na cidade, e robin e a mãe
haviam ido para o templo. elas deviam voltar dentro de duas horas ou antes.
churchill perguntou por sarvant, mas este ainda não havia aparecido.
churchill tomou café junto com algumas das crianças. eles lhe pediram
que contasse uma história sobre sua viagem às estrelas. contou, então, o
incidente em wolf, quando a tripulação, ao cruzar um pântano numa balsa,
fugindo dos lupinos, fora atacada por um polvo-balão. era uma coisa
enorme, que flutuava no ar por meio de uma bolsa cheia de gás e agarrava
suas presas com tentáculos bamboleantes. os tentáculos podiam dar um
choque elétrico, que paralisava ou matava as vítimas, depois do que o polvo-
balão estraçalhava o cadáver com as garras afiadas existentes nas
extremidades dos oito tentáculos.
as crianças ficaram em silêncio e de olhos esbugalhados enquanto ele
contava a história e, no final, olharam para ele como se fosse um semideus.
ficou de mau-humor quando terminou a refeição, especialmente quando se
lembrou de que fora stagg quem salvara sua vida ao decepar o tentáculo que
o envolvera.
quando levantou da mesa, as crianças lhe pediram outras histórias. só se
livrou ao prometer contar mais quando volta ssp
deu ordem aos criados para dizer a sarvant que esperasse por ele e a
robin que havia ido procurar os outros membros da tripulação. os criados
insistiram para que usasse uma carruagem e uma parelha. ele não queria
dever a whitrow mais do que já devia, mas percebeu que, recusando o
oferecimento, provavelmente o insultaria. partiu guiando rapidamente por
conch street abaixo, dirigindo-se para o estádio onde a terra estava guardada.
churchill teve dificuldade em encontrar as autoridades adequadas. em
alguns aspectos washington não havia mudado. um pouco de dinheiro aqui e
ali deu um resultado satisfatório e naquele instante estava na sala do homem
encarregado da terra.
— também quero saber onde está a tripulação — disse churchill.
o funcionário pediu licença. esteve fora durante quinze minutos, tempo
no qual deve ter verificado o paradeiro do ex-pessoal da terra. voltando,
informou a churchill que todos, menos um, estavam na casa das almas
perdidas. esta, explicou, era uma casa que fornecia alojamento e comida para
estrangeiros c viajantes que não tivessem encontrado o albergue destinado a
suas respectivas fraternidades.
— se o senhor fosse o herói solar e estivesse numa cidade, poderia se
hospedar na mansão dos alces — disse o funcionário. — mas, até ser
iniciado numa fraternidade, o senhor deve procurar qualquer estabelecimento
público ou particular que puder. nem sempre é fácil.
churchill agradeceu e saiu. segundo as instruções do funcionário, dirigiu-
se à casa das almas perdidas.
lá encontrou todos os homens. como ele, estavam todos vestidos com
roupas nativas. como ele, haviam vendido suas roupas.
trocaram informações sobre o que acontecera desde a véspera. churchill
perguntou onde estava sarvant.
— não temos a menor idéia — disse gwbe-hun. — e ainda não sabemos
o que vamos fazer.
— se vocês estiverem dispostos a ter paciência — disse churchill —
poderão navegar de volta para casa.
esboçou para eles o que sabia sobre a indústria marítima de deecee e as
possibilidades que tinham de utilizar um barco. concluiu:
— se eu conseguir um barco, verei se posso colocar vocês trabalhando
nele. primeiro, vocês devem estar habilitados a trabalhar a bordo. isso quer
dizer que vocês devem ser iniciados numa das fraternidades náuticas e
depois devem treinar navegação. o plano global leva tempo. se não tiverem
paciência, podem tentar por terra.
discutiram as possibilidades e, duas horas depois, decidiram acompanhar
churchill.
churchill se levantou da mesa.
— muito bem. o quartel-general de vocês será aqui até decisão ulterior.
vocês sabem como me achar. até-logo e felicidades.
churchill deixou que o cervo puxasse o carro na sua andadura preferida.
ele temia o que poderia encontrar quando chegasse em casa de whitrow e
ainda não sabia o que fazer.
a carruagem parou, finalmente, na porta da casa. os criados retiraram a
parelha. churchill obrigou-se a entrar em casa. encontrou robin e a mãe
sentadas à mesa, tagalerando como um alegre par de gralhas.
robin pulou da cadeira e correu para ele. seus olhos brilhavam e ela tinha
um sorriso de felicidade.
— oh, rud, aconteceu! carrego o filho do herói solar... e a sacerdotisa
disse que vai ser menino!
churchill procurou sorrir, mas não pôde. mesmo quando robin o abraçou
e beijou e depois começou a dançar alegremente em volta da sala, ele não
pôde sorrir.
— beba um cerveja gelada — disse a mãe de robin. — o senhor está com
o ar de quem recebeu notícias desagradáveis. espero que não. hoje deve ser
um dia de júbilo. eu sou filha de um herói solar, minha filha é filha de um
herói solar e meu neto será filho de um herói solar. esta casa será três vezes
abençoada por colúmbia. devemos recompensá-la com uma demonstração de
alegria.
churchill sentou e bebeu um enorme gole de cerveja preta gelada, na
caneca de pedra. limpou a espuma dos lábios e disse:
— peço-lhe que me desculpe. estive sabendo das complicações da minha
tripulação. isso, porém, não lhes diz respeito. o que eu quero saber é o que
robin vai fazer agora.
Ângela whitrow olhou-o maliciosamente, como se adivinhasse o que
estava se passando dentro dele.
— ora, ela aceitará algum rapaz bonito para marido. robin deve andar
meio confusa pois, afinal de contas, há dez homens seriamente interessados
nela.
— ela tem inclinação especial por algum? — perguntou
churchill, de uma forma que ele esperava parecesse ser indiferente.
— ela não me disse nada — respondeu a mãe de robin. — mas se eu
fosse o senhor, mr. churchill, perguntaria a ela agora mesmo... antes que os
outros o façam.
churchill estava espantado, mas se manteve impassível.
— como sabe que eu penso nisso?
— o senhor é homem, não é? e eu sei que robin prefere o senhor. sei que
será para ela o melhor dos maridos.
— obrigado — murmurou churchill.
sentou-se um instante, tamborilando com os dedos na mesa. depois,
levantou-se e caminhou para robin, que estava acariciando um dos gatos, e
pegou-a pelos ombros.
— robin, quer casar comigo?
— oh, quero! — disse ela e se atirou nos braços dele. e pronto.
logo que churchill se decidiu, agiu na presunção de que não havia campo
para guardar rancor do filho de stagg, ou de robin por concebê-lo. afinal de
contas, pensou, se robin tivesse casado com stagg e tido o filho e depois
stagg tivesse morrido, ele, churchill, não poderia se ressentir. e a situação,
efetivamente, dava na mesma. robin fora casada por uma noite cem seu
antigo comandante.
e embora stagg ainda não estivesse morto, breve estaria.
o fator perturbador havia sido ter ele reagido com um conjunto de
valores diante de uma situação em que eles não se aplicavam. churchill teria
gostado de que sua noiva fosse virgem. ela não o era e pronto.
todavia, sentiu mais de uma vez, por algum motivo, que havia sido
traído.
não havia muito tempo para pensar. mandaram chamar whitrow no
escritório. ele chorou e abraçou a filha e o futuro genro, embebedando-se a
seguir. nesse ínterim, churchill foi levado pelas criadas, que lhe lavaram a
cabeça e deram um banho. depois, fizeram-lhe uma massagem, passaram-lhe
óleo no corpo e o perfumaram. quando saiu do banheiro, encontrou angela
whitrow com algumas amigas, atarefadas no preparo de uma festa para
aquela noite.
os convidados começaram a chegar pouco depois do jantar. naquela hora,
whitrow e o noivo da filha já estavam bastante embriagados. os convidados
não se importaram. ao contrário, pareciam contar com isso e trataram de
alcançar os dois.
havia muita alegria, muito falatório, muito exibicionismo. só houve um
incidente feio. um dos homens que cortejavam kobin fez alusão ao sotaque
estrangeiro de churchill e o desafiou para um duelo. seria a faca, sob o poste
totêmico. os dois seriam amarrados ao poste pelo pulso e o vencedor
ganharia robin.
churchill deu um murro no queixo do rapaz. os amigos deste, rindo e
gritando, carregaram seu corpo inconsciente para o carro.
cerca de meia-noite, robin deixou as amigas e pegou churchill pela mão.
— vamos para a cama — sussurrou ela.
— onde? já?
— no meu quarto, bobo. e já, é claro.
— mas, robin, nem estamos casados. ou eu estava tão bêbedo que nem
me lembro?
— não; o casamento será realizado no templo, no próximo fim de
semana. mas o que tem isso que ver com nossa ida para a cama?
— nada — disse ele, encolhendo os ombros. — outros tempos, outros
costumes. vamos, macduff.
ela deu uma risadinha e disse:
— que é que você está resmungando?
— que faria você se eu quebrasse minha promessa antas de casarmos?
— você está brincando, não é?
— claro. mas você precisa se lembrar, querida robin, que eu quase nada
conheço a respeito dos costumes de deccee. É apenas curiosidade.
— ora, eu não faria nada. mas isso seria um insulto mortal a meu pai e a
meu irmão. eles teriam de matar você.
— era só para saber.
a semana seguinte foi atarefadíssima. além dos preparativos normais
para a cerimônia do casamento, churchill tinha de escolher a fraternidade em
que entraria. era impensável robin casar com um homem sem totem.
— sugiro-lhe meu próprio totem, o puma. mas será melhor para você
pertencer a uma fraternidade diretamente relacionada com seu trabalho e
uma que seja abençoada pelo espírito tutelar do animal com o qual você vai
ter contato.
— o senhor se refere à fraternidade dos peixes ou à fraternidade da
toninha?
— o quê? não, nada disso! refiro-me ao totem do porco.
não é inteligente estar criando porcos e ter ao mesmo tempo o puma
como totem, um animal que caça porcos.
— mas — protestou churchill — que é que eu tenho a ver com porcos?
foi a vez de whitrow se espantar.
— então você não discutiu isso com robin? não admira. ela teve tão
pouco tempo para conversar! embora vocês fiquem sozinhos todas as noites,
de meia-noite até ao amanhecer. mas suponho que vocês fiquem muito
ocupados, rolando um por cima do outro. oh, voltar a ser jovem! bom, meu
caro, a situação é esta. herdei de meu pai algumas granjas que necessitam
uma atenção permanente para poderem dar renda. preciso de você para
dirigi-las, por inúmeras razões.
"primeiro, não confio no atual administrador. acho que está me
roubando. prove-me que ele está e o enforcarei.
"segundo, os karelianos andaram fazendo incursões nas minhas granjas,
roubando o que havia de melhor do meu plantel e também as mulheres
bonitas. não queimaram as casas nem derrubaram os celeiros ou deixaram os
criados morrer de fome porque não querem matar a galinha dos ovos de
ouro. você acabará com essas incursões.
"terceiro, disseram-me que você é geneticista. portanto, você será capaz
de aumentar minha criação.
"quarto, quando eu voltar para o seio da grande mãe branca, você
herdará algumas granjas. a frota mercante fica para meus filhos.
churchill levantou-se.
— tenho de falar com robin a esse respeito.
— fale, meu filho. mas verá que ela concorda comigo. whitrow tinha
razão. robin não queria que seu marido
fosse comandante de navio. não podia ficar muito tempo longe dele.
churchill argumentou que ela podia viajar com ele.
robin respondeu que não era tão fácil assim. as mulheres dos marinheiros
não os podiam acompanhar. elas se metem em tudo, gastam demais e, o que
é pior, dão azar ao barco. mesmo quando os barcos levam passageiras
pagantes, necessitam uma bênção especialmente forte de um sacerdote,
contra o azar.
churchill replicou, afirmando que, se ela o amasse, se conformaria com
suas longas ausências.
robin repeliu o argumento, dizendo que se ele realmente a amasse, não
quereria abandoná-la um instante que fosse.
além disso, e a criança? todo mundo sabe que as crianças educadas numa
família em que o pai era fraco ou viajava freqüentemente, tinham tendência
para crescer fisicamente defeituosas. as crianças precisam de um pai austero,
sempre presente para dar amor ou castigo.
churchill refletiu durante dez minutos.
se quebrasse a promessa de casar com ela, teria de enfrentar whitrow e o
filho. alguém poderia ser morto e churchill tinha a desconfiança de que,
afinal de contas, poderia ser ele. mesmo se enfrentasse pai e filho e os
matasse, teria de lutar contra os parentes mais próximos, que eram
numerosíssimos.
claro, poderia forçar robin a rejeitá-lo. mas na verdade não queria perdê-
la.
acabou dizendo:
— está bem, querida. serei criador de porcos. mas só pergunto uma
coisa. quero fazer uma última viagem marítima antes de me estabelecer.
podemos pegar um barco para norfolk e depois viajar por terra para as
granjas?
robin enxugou as lágrimas, sorriu, beijou-q. e disse que seria, na
verdade, uma cadela desalmada se negasse isso a ele.
churchill foi dizer à tripulação que precisavam comprar passagem no
barco em que ele e robin viajariam. ele iria fazer os planos, pois tinham
bastante dinheiro para as passagens. depois que o barco não estivesse mais à
vista da terra, eles o capturariam. então navegariam através do atlântico, na
direção leste. era uma pena que não tivessem tido a oportunidade de
aprender navegação. teriam de aprender enquanto navegassem.
— sua mulher não ficará furiosa? — perguntou yastz-hembski.
— furiosíssima — respondeu churchill. — mas se ela realmente me
amar, irá comigo. se não, a desembarcaremos com a tripulação, antes de
partirmos.
a tripulação da terra nunca teve a oportunidade de capturar o barco. no
segundo dia de viagem, foram atacados por piratas karelianos.
onze

QUANDO STAGG entrou no campus de vassar, ouviu a mesma canção que


sempre ouvia, ou sua variante, quando lhe ofereciam as chaves da cidade ou,
como naquele caso, quando o faziam doutor honoris causa. ali, porém, não
havia uma enorme multidão para cantar as boas-vindas. um coro de calouras
o saudou. as mulheres idosas, as sacerdotisas e professoras vestiam-se de
vermelho ou azul e estavam postadas em meia-lua atrás do coro vestido de
branco, este colocado de maneira a formar um delta. enquanto as noviças
cantavam, as outras sacudiam a cabeça, aprovando a qualidade do
desempenho, ou batendo a parte inferior dos caduceus no chão, em sinal de
alegria pela presença de stagg.
a expedição guerreira dos pants-elf apanhou o colégio vassar para
sacerdotisas oraculares inteiramente de surpresa. de uma forma ou de outra,
os atacantes obtiveram a informação de que o herói solar iria comparecer a
uma solenidade particular à meia-noite no campus de vassar. tiveram
conhecimento de que o povo de poughkeepsie fora avisado para se manter
afastado. o único espécimen masculino nos domínios do colégio era stagg, e
as sacerdotisas atingiam, talvez, a cem.
os atacantes pularam das trevas para o meio das tochas. as mulheres
estavam demasiadamente entretidas cantando e olhando stagg e uma jovem
noviça, para notar os agressores. as sacerdotisas só viram que estavam sendo
atacadas quando os pants-elfs gritaram em coro e começaram a cortar as
cabeças das que estavam na fila exterior do semicírculo.
stagg não se lembrava do que aconteceu depois. levantou a cabeça
mesmo a tempo de ver um homem pular sobre ele e brandir a folha da
lâmina de um chanfalho contra sua cabeça.
ao acordar, viu que estava pendurado, como um veado escorchado, numa
vara que dois homens carregavam nos ombros. seus braços e pernas estavam
dormentes, com a circulação cortada pelas correias de couro cru que o
prendiam à vara. sua cabeça doía como se tivesse sido arrebentada; doía não
apenas por causa da pancada, mas pelo excesso de sangue que afluíra para
ela em virtude de estar virada para baixo.
o lua era cheia e estava alta no céu. sua claridade permitia a stagg ver as
pernas e o peito nu do homem atrás dele. virando a cabeça, pôde vislumbrar,
ao luar, as peles muito morenas dos homens e a túnica branca de uma
sacerdotisa.
de repente, deixaram-no cair brutalmente no chão.
— o velho cornudo está acordado — disse uma grave voz masculina.
— não podemos cortar as correias que prendem este bastardo, de
maneira a que ele possa andar? — perguntou outra voz. — estou cansado de
carregar este peso morto. esta vara fez um sulco de uma polegada no meu
ombro.
— está bem — disse uma terceira voz, que evidentemente pertencia a um
chefe. — desamarrem-no. mas prendam-lhe as mãos nas costas e ponham
um laço no pescoço dele. se tentar fugir, será estrangulado. e tenham muito
cuidado. ele parece ser forte como um touro!
— oh, tão forte, tão soberbamente constituído! — disse uma quarta voz,
mais aguda que as outras. — que rapaz encantador!
— você está querendo me enciumar? — perguntou um dos homens. —
porque se está, pombinha, está conseguindo. mas não force. arranco-lhe o
fígado e dou para sua mãe comer.
— deixe minha mãe de fora, sua coisa peluda! — disse a voz aguda. —
estou começando a deixar de gostar de você!
— em nome de colúmbia, nossa abençoada mãe! acabem com essa briga
de namorados. já estou cheio. isto é uma expedição de guerra e não um
passeio numa praça totêmica. andem, soltem o homem. mas fiquem de olho.
— não estou em condições de vigiá-lo — disse a voz aguda,
ansiosamente.
— você está tentando pôr os chifres dele na minha testa? — perguntou o
homem que havia ameaçado arrancar o fígado do amigo. — tente e
arrebentarei sua cara de tal maneira que nenhum outro homem olhará mais
para você!
— pela última vez, calem a boca! — disse o chefe, rangendo os dentes.
— do contrário, cortarei a garganta do primeiro que me der motivo.
entenderam? muito bem! vamos embora. temos ainda uma caminhada
infernal antes de sairmos do território inimigo e não vai demorar eles
mandarem os cachorros atrás de nós.
stagg pôde acompanhar a conversa com bastante facilidade. a língua era
parecida com a de deecee, provavelmente mais afim que o alemão do
holandês. ele a ouvira antes, em camden. um grupo de prisioneiros pants-
elfs, capturados numa incursão, tinha sido degolado numa cerimônia em
homenagem a ele. alguns deles foram muito corajosos, gesticulando para
stagg de maneira obscena até que a faca seccionou suas traquéias.
naquele momento, stagg gostaria que cada pants-elf tivesse a garganta
cortada. seus braços e pernas começavam a doer terrivelmente. teve vontade
de grilar, mas sabia que os pants-elfs iriam certamente bater-lhe novamente
para que ficasse calado. ele, por sua vez, não queria lhes dar a satisfação de
saberem que o haviam machucado.
os atacantes amarraram suas mãos atrás das costas, colocaram-lhe um
laço no pescoço e prometeram meter uma faca em suas costas se ele fizesse
qualquer movimento suspeito. depois o empurraram para diante.
no começo, stagg não foi capaz de andar depressa. passado certo tempo,
assim que o sangue voltou a circular normalmente e as dores desapareceram,
ficou em condições de acompanhar os outros. viu que assim era melhor. cada
vez que tropeçava, sentia o laço apertar sua garganta e perdia a respiração.
caminharam colina abaixo, num terreno escassamente arborizado. os
atacantes constituíam um grupo de quarenta homens, viajando cm fila dupla.
usavam chanfalhos, azagaias, porretes, arcos e flechas. não vestiam
couraças, provavelmente para desenvolverem maior velocidade. não usavam
os cabelos compridos como os homens de deecee, mas cortados bem curtos,
rente ao couro cabeludo. seus rostos tinham um aspecto estranho, pois todos
usavam grandes bigodes pretos. eles eram os primeiros homens com pêlos
no rosto que stagg vira desde que voltara à terra.
deixaram a área escassamente arborizada e se aproximaram da margem
do rio hudson. stagg pôde ver de mais perto e mais claramente os pants-elfs e
verificou que os bigodes haviam sido pintados ou tatuados.
além disso, cada um deles tinha tatuada no peito nu, em letras enormes, a
palavra mãe.
havia sete prisioneiros: ele, cinco sacerdotisas e — seu coração batia
acelerado — mary casey. elas também estavam com as mãos amarradas nas
costas, stagg tentou se aproximar de mary casey para raiar com ela em voz
baixa, mas o laço em seu pescoço não permitiu.
o grupo fez alto. alguns dos homens começaram a desfazer uma pilha de
arbustos. em pouco tempo, puseram à mostra algumas canoas grandes que
estavam amontoadas numa cavidade no chão. as canoas foram levadas para a
margem do rio.
obrigaram os prisioneiros a embarcar, um em cada canoa, e a frota
rumou para a outra margem.
atingida aquela, as canoas foram lançadas ao rio, para que a correnteza
as levasse, ü grupo partiu em marcha acelerada pelo bosque. de vez em
quando um prisioneiro tropeçava e caía de joelhos ou batia com o rosto no
chão. os pants-elfs os chutavam e ameaçavam cortar suas gargantas ali
mesmo se não parassem de se portar como vacas desajeitadas.
mary casey caiu uma vez. um homem lhe deu um pontapé nas costelas o
ela rolou de dor. stagg rosnou, furioso, e disse:
— se eu estivesse livre, pants-elf, arrancaria seus braços e os enrolaria
em seu pescoço!
o homem riu e respondeu:
— faça isso, queridinho. será um prazer ser machucado por gente como
você.
— pelo amor de deus, calem a boca! — disse rispidamente o chefe. —
estamos numa expedição de guerra ou numa sessão de galanteios?
pouco falaram o resto da noite. andaram velozmente durante um certo
tempo e a passo um outro período. ao amanhecer já haviam percorrido
muitas milhas, embora não tantas se contadas em linha reta. a estrada
atravessava inúmeras colinas.
logo depois que o horizonte, a leste, começou a clarear, o cheio
determinou uma parada.
— vamos acampar e dormir até o meio-dia. depois, se a vizinhança
estiver deserta, prosseguiremos. poderemos andar mais depressa de dia,
mesmo com a possibilidade de sermos vistos.
acharam uma caverna rasa, formada pela saliência de um rochedo. cada
homem estendeu seu cobertor na terra dura e se deitou. em poucos minutos,
estavam todos dormindo, exceto os quatro guardas, postados para vigiar os
prisioneiros o quem viesse do lado de deecee.
stagg era a outra exceção. baixinho, chamou um dos guardas:
— ei, não posso dormir! estou com fome!
— você comerá quando todos comerem — respondeu o guarda. — quer
dizer, se conseguir alguma coisa para comer.
— você não está compreendendo — continuou stagg. — em matéria de
alimentação não sou igual aos outros. se eu não comer de quatro em quatro
horas, e duas vezes mais que qualquer outro, meu corpo começa a se
devorar. estes cornos são os culpados. eles afetam meu corpo, por isso tenho
de comer como um cervo macho para me manter vivo.
— vou lhe arranjar um pouco de feno — disse o guarda e riu em
silêncio.
alguém por trás de stagg sussurrou:
— não se preocupe, doçura. vou conseguir alguma coisa para você
comer. não posso deixar um homem tão grandiosamente bonito como você
morrer de fome. seria um desperdício!
ouviu atrás dele o movimento de alguém abrindo uma mochila. os
guardas olharam com curiosidade e depois começavam a rir.
— parece que você deu sorte com abner — disse um dos guardas. —
mas luke, o amigo dele, quando acordar, não vai gostar nem um pouco. outro
disse:
— sorte sua é que não seja abner a estar com fome. ele poderia comer
você. ha, ha!
o que havia sussurrado, apareceu no campo de visão de stagg. era o
rapazinho que, na noite anterior, admirara stagg abertamente. trazia meio
pão, duas grandes fatias de presunto o um cantil.
— sente aqui, beleza. mamãe vai dar de comer ao grande cornudinho.
os guardas riram, embora não ruidosamente. stagg corou, mas estava
esfomeado demais para recusar comida. podia sentir o fogo que o consumia,
a carne devorando a carne.
o rapazinho devia andar pelos vinte anos, era baixo e de ancas estreitas.
ao contrário dos outros pants-elfs, seu cabelo não era cortado rente. era
castanho-claro e muito crespo. seu rosto seria classificado como "atraente"
por uma mulher, embora o bigode pintado lhe desse uma aparência estranha.
seus grandes olhos castanhos eram franjados por longas e escuras pestanas.
seus dentes eram tão brancos que pareciam falsos e tinha a língua muito
vermelha, provavelmente por causa de alguma substancia semelhante a
goma que ele estava mascando. stagg detestava ter que dever alguma coisa a
uma pessoa como abner, mas sua bota parecia se abrir automaticamente e
engolir a comida.
— isso — disse abner, acariciando os chifres de stagg e depois passando
seus longos e finos dedos pelo cabelo do comandante. — u cornudinho está
se sentindo melhor agora? que tal um grande beijo, como prova da gratidão
do cornudinho?
— o cornudinho vai arrancar a sua alma, se você chegar mais perto —
disse stagg.
os grandes olhos de abner se tornaram ainda maiores. deu uni passo para
iras, com o lábio inferior tremendo de raiva.
— e essa a maneira de tratar alguém que evitou que você morresse de
tome? — perguntou, num tom sentido.
— admito que não — respondeu stagg. — mas fique sabendo que, se
tentar fazer o que está pensando, matarei você.
abner sorriu e bateu os longos cílios.
— oh, você precisa perder esse preconceito absurdo, querido. além disso,
ouvi dizer que vocês, os cornudos, são hiper-sexuados e que quando
começam não conseguem parar. que fará você se não houver mulheres à sua
disposição?
seus lábios se arreganharam num sorriso, quando pronunciou mulheres.
"mulheres" é uma tradução livre da palavra que ele usou, uma palavra que,
no tempo de stagg, fora usada num aviltante e anatômico sentido. stagg
descobriu mais tarde que os pants-elfs do sexo masculino usavam aquela
palavra entre ces, embora na presença de suas mulheres se referissem a elas
como "anjos".
— veremos quando chegar a hora — respondeu stagg, que fechou os
olhos e tornou a adormecer.
pareceu a ele que havia passado apenas um minuto quando foi acordado,
mas o sol estava no ocaso. piscou e se sentou, olhando em volta à procura de
mary casey. ela estava com as mãos desamarradas, comendo, enquanto um
homem com uma espada montava guarda ao seu lado.
o nome do chefe era raf. era um homem enorme, de ombros largos e
cintura fina, de rosto belo e impressionante, mas frio, e de cabelos louros.
seus olhos azuis eram muito claros e gelados.
— esta mary casey me disse que você não é de deecee
— falou ele. — ela disse que você desceu dos céus numa ardente nave de
metal e que você saiu da terra há oitocentos anos, para explorar as estrelas. É
mentira dela?
stagg contou sua história em largas pinceladas, prestando muita atenção
em raí enquanto a contava. tinha esperança de que o pants-elf decidisse não
lhe dar o tratamento habitual que aquela nação costumava dar aos
prisioneiros deecee.
— olhe, você é mesmo um pão — disse raf entusiàsticamente, embora
seus pálidos olhos azuis estivessem mais frios que antes. — e esses cornos
são maravilhosos. dão-lhe um aspecto realmente masculino. ouvi dizer que
quando vocês, reis cornudos, estão acesos, têm a capacidade de cinqüenta
machos.
— todo mundo sabe disso — replicou stagg polidamente.
— eu gostaria de saber o que vai nos acontecer.
— isso será decidido quando tivermos saído do território deecee e
cruzado o rio delaware. temos pela frente dois dias de marcha difícil e só
estaremos completamente a salvo depois de atravessarmos as montanhas
shawangunk. além das shawangunk há uma terra de ninguém onde só
encontraremos expedições guerreiras amigas ou inimigas.
— e se você me desamarrasse? — propôs stagg. — não posso voltar para
deecee e vou ter de partilhar o destino de vocês.
— você está brincando? — respondeu raf. — prefiro deixar à solta um
alce doido! sou um ótimo sujeito, querido, mas não quero me meter com
você... isto é... não em combate, não, você continuará amarrado.
o grupo partiu velozmente. dois batedores seguiam na frente, para evitar
que caíssem em alguma emboscada. quando chegaram nas montanhas
shawangunk, aproximaram-se do desfiladeiro cautelosamente, escondendo-
se até que os batedores dessem o sinal de prosseguir. À meia-noite, o grupo
acampou atrás de uma alta saliência rochosa.
stagg tentou falar com mary casey, para levantar o moral dela. a moça
começava a dar demonstrações de um enorme cansaço. cada. vez que se
atrasava, era espancada e insultada. abner era especialmente duro com ela;
parecia odiá-la.
na tarde do terceiro dia, vadearam o rio delaware num baixio. dormiram,
levantaram de madrugada c prosseguiram viagem. pelas oito da manhã, os
expedicionários fizeram uma entrada triunfal na pequena cidade fronteiriça
de high queen.
high queen tinha uma população de cerca de cinqüenta pessoas, alojadas
em edifícios quadrados, de pedra. a cidade era cercada por um muro de pedra
e cimento de vinte e cinco pés de altura. os edifícios não tinham janelas para
a rua e suas portas pareciam enterradas nas paredes. as janelas ficavam
situadas nas paredes internas, que davam para o quintal. as casas não tinham
terreno na frente, pois começavam diretamente na beira da rua. apesar disso,
eram separadas umas das outras por terrenos baldios onde pastavam cabras e
bicavam galinhas e onde brincavam crianças nuas.
o aglomerado de pessoas que saudou a expedição era composto
principalmente de homens; as poucas mulheres presentes foram logo
mandadas embora pelos maridos. as mulheres usavam véus e vestiam roupas
que envolviam seus corpos dos ombros ao chão. evidentemente, as mulheres
tinham uma posição inferior na sociedade pants-elf, a despeito de o único
ídolo existente na cidade ser uma estátua de granito da grande mãe branca.
mais tarde, stagg descobriu que os pants-elfs adoravam colúmbia, mas a
gente de deecee os encarava como pertencentes a uma seita herege. na
teologia dos pants-elfs, cada mulher era a encarnação viva de colúmbia e,
conseqüentemente, o recipiente sagrado da maternidade. mas os homens de
pants-elf também sabiam que a carne era fraca. por isso, deram um jeito de
suas mulheres não terem oportunidade de macular sua pureza.
elas tinham de ser boas criadas e boas mães e mais nada; por isso, eram
mantidas, tanto quanto possível, afastadas dos olhares e também das
tentações. os homens tinham relações sexuais com suas mulheres apenas
com o objetivo de procriar, e o menos possível qualquer outro tipo de relação
social ou familiar. eram polígamos, baseados na teoria de que a poligamia
era uma excelente instituição para repovoar uma região escassamente
habitada.
as mulheres, excluídas pelos homens e confinadas entre elas,
freqüentemente se tornavam lésbicas. eram, mesmo, encorajadas a isso pelos
homens; mas iam para a cama com seus maridos pelo menos três vezes por
semana. isso era prescrito para maridos e mulheres como um dever sagrado,
por mais desagradável que fosse para cada um ou para ambos. o resultado
era uma quase perpétua gravidez.
esse estado de coisas agradava aos homens. de acordo com sua seita
herege, uma mulher grávida era ritualmente impura. não podia ser tocada, a
não ser por outras mulheres igualmente impuras ou por sacerdotes.
os prisioneiros foram confinados numa das maiores casas de pedra.
vieram mulheres trazendo comida, mas, primeiro, stagg teve de vestir um
saiote para não as escandalizar. após, o bando guerreiro e os habitantes da
cidade festejaram, tomando uma vasta bebedeira.
Às nove da noite, mais ou menos, invadiram a ceia e carregaram stagg,
mary casey e as sacerdotisas para a praça da cidade, onde havia a estatua de
columbia, no meio de um círculo de pilhas de lenha. do alto de cada pilha
surgia uma estaca.
amarraram uma sacerdotisa em cada estaca.
stagg e mary não haviam sido atados em estacas, mas foram obrigados a
ficar ali e olhar.
— É necessário purificar pelo fogo essas feiticeiras satânicas — disse
raf. — foi por isso que trouxemos essas mulheres conosco. sentimos pena
dos outros, sabe, os que matamos com as espadas. estão perdidos para
sempre, são almas penadas que perambularão pela eternidade. mas estas têm
de ser purificadas pelo fogo. irão para a terra das almas felizes.
— É uma pena — continuou — que high queen não tenha alguns ursos
sagrados, porque essa canalha ia lhes servir de alimento. como sabe, os ursos
são tão bons instrumentos de salvação quanto o fogo.
"não tenha medo de que lhe aconteça alguma coisa aqui. não vamos
desperdiçar você nesta cidade de matutos. você irá pata pheelee, onde ficará
sob os cuidados do governo."
— pheelee? philadélfia, a cidade do amor fraterna!? — perguntou stagg,
com seu último acesso de humor naquela noite.
as fogueiras foram ateadas e o ritual de purificação teve' início.
stagg olhou durante um instante e depois fechou os olhos. felizmente não
podia ouvir as mulheres gritando porque elas estavam amordaçadas. as
sacerdotisas que eram queimadas costumavam amaldiçoar os pants-elfs; as
mordaças eram postas para impedir essa prática.
o fedor da carne queimada não podia ser evitado. stagg e mary se
sentiram mal... e ainda tiveram de suportar o r:so de divertimento dos seus
captores.
finalmente, as fogueiras se extinguiram e os dois prisioneiros voltaram
para a cela. mary foi agarrada, para que dois homens a despissem,
colocassem nela um cinto de castidade e, sobre este, um saiote.
stagg protestou; os homens olharam para ele, espantados.
— o quê? — perguntou raf. — deixá-la à mercê da tentação? deixar o
puro vaso de colúmbia ser poluído? você deve estar louco! se ela ficar
sozinha com você, um rei cornudo, o resultado será inevitável. e,
conhecendo sua capacidade, provavelmente será fatal para ela. você deve
nos agradecer. você sabe o que iria fazer!
— a menos que me alimentem o máximo que puderem — disse stagg —
nada posso fazer. estou fraco por falta de alimentação.
em certo sentido, stagg não queria comer. sua parca dieta diminuíra
consideravelmente a ação dos chifres. ainda sofria de uma ereção que era de
uma evidência embaraçante e continuava sendo objeto de numerosos
comentários divertidos e de admiração por parte dos seus captores; mas isso
não era quase nada perto da satiríase que o acometera em deecee
agora tinha medo de atacar mary casey, se comesse... com cinto de
castidade ou não. mas também tinha medo, de se não comesse, amanhecer
morto no dia seguinte.
talvez, pensou, pudesse comer o suficiente para manter o corpo e os
chifres alimentados, mas não o bastante para que os impulsos se tornassem
incontroláveis.
— por que vocês não me levam para outro lugar, se têm tanta certeza de
que vou atacá-la? — perguntou.
raf fingiu espanto. mas exagerou e stagg percebeu que ele havia
manobrado de maneira a levá-lo a fazer aquela sugestão.
— claro! estou tão cansado! que estupidez a minha! — disse raf. —
vamos encerrá-lo em outro local.
o outro local estava situado no mesmo prédio, no lado oposto do pátio
interno. de sua janela, stagg podia ver a janela da cela de mary. embora
estivesse escuro, a lua lançava raios no pátio. eles iluminavam fracamente o
rosto pálido da moça, colado às grades de ferro.
stagg aguardou vinte minutos; então ouviu o som pelo qual estava
esperando: uma chave sendo introduzida na fechadura da porta de ferro.
a porta se abriu, com um ranger de gonzos não azeitados. abner entrou
com uma enorme bandeja. colocou-a sobre a mesa e disse ao guarda que o
chamaria quando precisasse dele. o guarda abriu a boca para protestar, mas
vendo o olhar que abner lhe atirou, recuou. era um nativo e por isso tinha
medo daquele guerreiro de filadélfia.
— está vendo, cornudinho? — perguntou abner. — olhe toda essa
quantidade de comida só para você! não acha que me deve alguma coisa em
troca?
— claro que devo — respondeu stagg. estava decidido a concordar com
tudo por um prato de comida.
— você trouxe mais que o suficiente. mas se eu, mais tarde, quiser mais,
você consegue com facilidade?
— consigo. a cozinha fica logo depois do hall. as mulheres já se
recolheram aos seus alojamentos, mas terei um enorme prazer em fazer um
trabalho de mulher para você. que tal você me dar um beijo de
agradecimento?
— sou incapaz de qualquer coisa antes de comer — replicou stagg,
forçando um sorriso para abner. — depois veremos.
— não seja tímido, cornudinho — respondeu abner. — e por favor,
beleza, por favor, coma depressa. não temos muito tempo. acho que aquela
grande puta do raf está planejando vir aqui esta noite. e também estou
preocupado com meu amigo luke. se ele souber que estou aqui sozinho com
você!...
— não posso comer com as mãos amarradas nas costas. — não sei o que
fazer — disse abner, hesitante. — você
é tão grande, tão forte! você pode me estraçalhar, usando só as mãos...
essas mãos tão grandes!
— seria burrice minha fazer isso — respondeu stagg. — aí não haveria
ninguém que roubasse comida para mm. eu morreria de fome.
— isso mesmo. além disso, você não quereria fazer ma' ao coitadinho de
mim, não é? sou tão pequenino e desamparado! e você gosta um pouquinho
de mim, não gosta? você não senta aquilo que disse na estrada, não é?
-— claro que não — respondeu stagg, mastigando ruidosamente
presunto frio, pão, manteiga e picles. — só disse aquilo para que seu amigo
luke não ficasse imaginando coisas a nosso respeito.
— você não é só devastadoramente bonito, é também esperto — disse
abner, que estava ligeiramente ofegante. — sente-se mais forte agora?
stagg quase disse que precisava comer tudo o que havia à vista para
sentir as forças voltarem, mas pensou melhor a respeito. não chegaria a dizer
nada, porque houve um tumulto do lado de fora da porta. colou o ouvido
contra ela.
— É o seu amigo luke. está dizendo ao guarda que sabe que você está
aqui comigo e pede a ele que o deixe entrar.
abner ficou pálido.
— oh, mãe! ele vai me matar e a você também! É uma puta tão
ciumenta!
— mande ele entrar. tomarei conta dele. não quero matá-lo; vou ser
apenas um pouco duro com ele. diga a ele o que há entre mim o você.
abner gritou de alegria.
— isso será divino!
apertou o braço de stagg e revirou os olhos para cima, em êxtase.
— mãe, que bíceps! tão grande e tão duro!
stagg esmurrou a porta e chamou o guarda.
— abner disse que ele pode entrar!
— disse, sim! — confirmou abner, atrás dele. — está tudo bem. deixe
luke entrar.
beijou stagg no cangote.
— só quero ver a cara dele quando você lhe falar de nós. já estou
começando a ficar cheio da onda de ciúme dele.
a porta foi escancarada. luke invadiu a cela, de espada na mão. o guarda
tornou a fechar a porta com um safanão, depois que luke entrou, e os três
ficaram fechados.
stagg não perdeu tempo. com o lado da mão espalmada, deu uma
cutilada no pescoço do luke. este caiu e sua espada ressoou contra o chão de
pedra.
abner deu um gritinho. depois abriu a boca para soltar um berro, quando
viu stagg pular para ele. antes que pudesse se safar, abner também desabou
no chão.
sua cabeça ficou numa posição grotesca. stagg devia tê-lo esmurrado
com tanta força, que lhe quebrara o pescoço.
stagg arrastou os corpos para um canto, a fim de que não fossem vistos
da porta. apanhou a espada de luke e com uma violenta cutilada decepou a
cabeça dele.
depois bateu na porta e falou com uma voz que ele esperava fosse uma
passável imitação da de abner.
— guarda! venha obrigar luke a deixar de abusar do prisioneiro!
a chave girou na fechadura e o guarda entrou. empunhava a espada, mas
stagg o atacou, saído de trás da porta. a cabeça do guarda rolou a uma
distância do um pé do corpo, com o pescoço jorrando uma torrente do
sangue.
stagg pôs a faca do guarda na cintura e saiu para o hall, que era estreito e
parcamente iluminado por uma tocha colocada no fundo. imaginou que a
cozinha estivesse situada no fundo do hall e caminhou para lá. a porca se
abriu para uma ampla dependência, bem provida de alimentos. achou um
saco de pano e encheu-o de comida e várias garrafas de vinho. depois
retornou ao hall.
nesse instante, raf abriu a porta do hall e entrou.
suas maneiras eram furtivas e foi provavelmente seu nervosismo que o
impediu de ver que o guarda havia sumido. não trazia outra arma além de
uma faca na bainha do cinto.
stagg desceu o hall correndo na direção dele. raf levantou os olhos e viu
o homem cornudo que se aproximava, empunhando, levantada numa das
mãos, uma espada sangrenta, e segurando, com a outra, um enorme saco
atirado sobre o ombro.
raf rodou nos calcanhares e procurou sair pela poria. a lâmina abriu
caminho no pescoço dele.
stagg passou por cima do cadáver ainda jorrando sangue e saiu para o
pátio. havia, neste, dois homens dormindo no chão. como a maioria dos
homens em high queen naquela noite, eles estavam esgotados. stagg não
perdeu tempo em evitar que eles lhe barrassem o caminho depois e, além
disse, queria matar todos os pants-elfs com quem cruzasse. deu duas rápidas
cutiladas nos pescoços deles e continuou a andar.
atravessou o pátio e entrou em outro hall, exatamente igual ao que
deixara. havia um guarda postado na frente da porta da cela de mary, com
uma garrafa empinada na boca.
não viu stagg até que este quase lhe caiu em cima. ficou, por um
segundo, tão assombrado que não pôde se mexer. era a pausa de que stagg
necessitava. deu uma estocada.
a ponta atingiu o guarda exatamente no "a" da palavra mãe, tatuada no
peito nu. o guarda recuou com o impacto, agarrando a lâmina com a mão.
coisa estranha, a outra mão não largou a garrafa.
o ponta não penetrou muito. stagg deixou o saco cair, seguiu o impulso
da espada, firmou-a e a empurrou até o cabo. a lâmina atravessou o esterno e
atingiu um órgão por trás dele.
mary casey quase desmaiou quando a porta se abriu e o homem cornudo
e ensangüentado entrou.
depois perguntou, ofegante:
— peter stagg! como?...
— mais tarde! — respondeu ele. — não temos tempo para falar!
correram juntos da sombra de um edifício para a de outro até atingirem o
muro e o alto portão por onde haviam entrado na cidade. dois guardas
estavam postados ao pé do portão e dois nas pequenas torres que o
encimavam.
felizmente, todos quatro estavam cozinhando a bebedeira. stagg não teve
a menor dificuldade em mergulhar a faca na garganta dos dois homens no
chão. depois se dirigiu suavemente para a escada que levava às torres e deu
aos outros dois o mesmo tratamento. não teve qualquer problema ao retirar a
grande tranca de carvalho que barrava as duas folhas do portão.
retornaram pelo caminho por onde chegaram. corriam cem passos,
andavam cem, depois tornavam a correr cem e voltavam a andar cem.
chegaram ao delaware e o atravessaram no mesmo baixio. mary pediu
para descansar, mas stagg disse que precisavam prosseguir.
— quando a cidade acordar e encontrar todos aqueles corpos
decapitados, vão se danar atrás de nós. não pararão até nos encontrarem, a
menos que atinjamos o território deecee antes deles. e então teremos também
de ficar de olho nos deecees. vamos ver se conseguimos ir para caseyland.
chegou um momento em que tiveram de diminuir a velocidade; mary não
conseguia manter o ritmo. cerca das nove da manhã, ela se sentou.
— não posso dar mais um passo sem antes dormir um pouco.
encontraram uma cavidade a uns cem metros da trilha. mary caiu logo no
sono. stagg, primeiro, comeu e bebeu e, depois, também adormeceu. Éle
gostaria de ficar de guarda, mas compreendeu que precisava descansar para
continuar a caminhada dali a algumas horas. precisava de todas as suas
forças porque poderia ter de carregar mary.
stagg acordou antes de mary e tornou a comer.
quando ela abriu os olhos, alguns minutos mais tarde, viu stagg inclinado
sobre ela.
— que está fazendo?
ele respondeu:
— fique quieta. estou tentando tirar seu cinto de castidade.
doze

o ROSTO de nephi sarvant revelava seu caráter. de perfil, parecia um


quebra-nozes ou as hastes curvas de um alicate. era fiel a essa imagem; uma
vez agarrado a alguma coisa, não a largava.
após deixar a casa de whitrow, jurou nunca mais pólos pés num lugar
onde vicejava tanta iniqüidade, jurou também dar sua vida, se necessário,
para levar a verdade aqueles gentios idolatras.
caminhou os cinco quilômetros que o separavam da casa das almas
perdidas e lá passou uma noite de insônia. saiu logo depois do amanhecer.
embora fosse ainda muito cedo, a rua estava cheia de carroças atulhadas de
mercadorias, de marinheiros, de comerciantes, de crianças e de mulheres
fazendo compras. examinou vários restaurantes, achou-os muito sujos e
decidiu fazer um refeição de frutas, compradas numa barraca de rua.
perguntou ao quitandeiro quais as possibilidades que tinha de conseguir um
emprego e aquele respondeu que havia uma vaga de porteiro no templo da
deusa gotew. o quitandeiro sabia disso porque seu cunhado fora despedido
do cargo na véspera.
— não é muito bem pago, mas terá casa e comida. e também outras
compensações, desde que o senhor seja um homem que fez muitos filhos —
acrescentou o comerciante.
deu uma piscada para sarvant.
— meu cunhado foi despedido porque se descuidou de espanar e limpar
em benefício das outras compensações.
sarvant não perguntou o que ele queria dizer com aquilo. pediu
informações sobre o caminho do templo e foi embora.
aquele emprego, se o conseguisse, seria um excelente posto de
observação da religião deecee. e proporcionava um campo de batalha de
primeira ordem para fazer proselitismo. oh, seria perigoso, mas que
missionário imbuído de sua fé consideraria isso um empecilho?
o caminho era complicado e sarvant se perdeu. foi parar longe, num rico
bairro residencial, sem ter a quem perguntar o caminho, a não ser uns raros
passantes em carruagens ou montados em veados. eles não o olhavam, como
se não quisessem se deter para falar com um pedestre, um homem das
classes inferiores.
achou melhor voltar para o porto e começou a andar. tinha acabado de
percorrer uma quadra, quando viu uma mulher saindo de uma grande casa.
estava vestida de maneira bizarra, coberta da cabeça aos pés com um manto
de capuz. a princípio, pensou que ela poderia ser uma criada; fora informado
de que uma aristocrata nunca andava a pé quando podia cavalgar. ao
aproximar-se dela, viu que o vestido era fino demais para pertencer a alguém
da classe baixa.
seguiu-a por vários quarteirões e correu o risco de a ofender tentando
falar com ela. finalmente disse:
— senhora, posso humildemente fazer uma pergunta?
ela se virou e olhou, arrogante, para ele. era uma mulher de estatura
elevada, com cerca de vinte e dois anos e rosto que seria belo se fosse menos
acerado. tinha grandes olhos azul-escuros e o cabelo que escapava ao capuz
era louro-brilhante.
sarvant repeliu a pergunta e ela acenou afirmativamente com a cabeça.
ele então lhe perguntou como ir ao templo de gotew.
ela o olhou, zangada, e perguntou:
— você está zombando de mim?
— não, não — respondeu sarvant. — por que faria uma coisa dessas?
não estou compreendendo.
— talvez você não esteja zombando — disse ela. — você fala como um
estrangeiro. você certamente não tem nenhum motivo para me insultar
deliberadamente. minha gente o mataria ... mesmo que eu não merecesse o
insulto.
— acredite-me, nunca tive essa intenção. se a ofendi, me desculpe.
ela esboçou um ligeiro sorriso e disse:
— está desculpado, estrangeiro. e agora me diga o que vai fazer no
templo de gotew. você tem uma mulher que é desgraçada e amaldiçoada
como eu?
— minha mulher morreu há muito tempo — respondeu sarvant. — e não
sei o que quer dizer quando fala de estar desgraçada e amaldiçoada. não,
estou procurando um emprego de porteiro no templo. sabe, sou um dos que
pousaram na terra...
e contou-lhe sua história, sem entrar, porém, em detalhes. ela então disse:
— acho que você pode me falar de igual para igual, embora seja penoso
imaginar um diradah varrendo o chão. um verdadeiro diradah preferiria
morrer de fome. e estou vendo que você não está usando um emblema
totêmico. se você pertencer a um dos grandes totens, poderá arranjar um
emprego digno de você. ou você não tem padrinho?
— totens são idolatrias supersticiosas! — disse ele. — nunca pertencerei
a um.
ela ergueu as sobrancelhas.
— você é uma pessoa esquisita! não sei como classificá-lo! como irmão
do herói solar, você é um diradah. mas não se parece com um nem age como
tal. aconselho-o a que se comporte como um diradah para que saibamos nos
comportar com relação a você.
— muito obrigado — respondeu sarvant, — mas preciso ser como sou.
agora diga-me, por favor, como faço para ir ao templo.
— basta me acompanhar — disse ela, começando a andar. perplexo,
seguiu-a durante alguns passos. ele teria gostado de esclarecer algumas
coisas ditas por ela, mas havia algo na atitude da mulher que desencorajava
perguntas.
o templo de gotew ficava no limite da área do porto com o bairro
residencial rico. era um edifício imponente, de blocos de concreto em forma
de concha de ostra semi-aberta e pintado de vermelho com listras brancas.
amplos degraus de lajes de granito partiam da base da concha e o interior era
fresco e pouco iluminado. a parte superior da concha era sustentada por
algumas colunas finas de pedra, esculpidas à semelhança da deusa gotew,
uma figura majestosa, de rosto grande e triste, tendo um orifício praticado no
lugar onde deveria estar o estômago.
no orifício, uma enorme reprodução em pedra de uma galinha rodeada de
ovos.
na base de cada cariátide da deusa, havia uma mulher sentada. todas
usavam indumentária semelhante à da mulher que sarvant acompanhara.
alguns vestidos eram ordinários, outros eram ricos. ricas e pobres sentavam-
se juntas.
a mulher se dirigiu, sem hesitação, para um grupo que estava sentado no
chão de cimento, na parte mais escura. eram cerca de doze em torno da
cariátide e deviam estar esperando a loura alta e magra, pois havia um lugar
reservado para ela.
sarvant encontrou um pálido sacerdote, que estava parado atrás de uma
fileira de barracas de pedra. perguntou pelo emprego de porteiro. para sua
surpresa, descobriu que estava talando com o funcionário principal do
templo; pensara que o encarregado fosse uma sacerdotisa.
o bispo andi ficou curioso a respeito do sotaque de sarvant e fez-lhe o
mesmo gênero de perguntas que outros já haviam feito. sarvant respondeu
com honestidade e deu um suspiro de alívio ao ver que o bispo deixara de
lhe perguntar se era devoto de colúmbia. o bispo encaminhou sarvant a um
sacerdote menor, que lhe informou quais deveriam ser suas atribuições,
quanto ganharia, onde e quando iria comer e dormir. terminou perguntando:
— o senhor é pai de muitos filhos?
— sete — respondeu sarvant, omitindo o fato de que estavam mortos
havia oito séculos.
era possível que o próprio sacerdote fosse um dos descendentes de
sarvant; na verdade, era perfeitamente possível imaginar que, sob aquele
teto, cada um poderia considerar sarvant corno seu avô, trinta e tantas
gerações passadas.
— sete? excelente! — disse o sacerdote. — nesse caso, terá os mesmos
privilégios dos outros homens de comprovada fertilidade. no entanto, deverá
passar por um exame médico, porque não aceitamos a palavra de ninguém
como suficiente para assumir tão grande responsabilidade. aviso-o, não
abuse do privilégio. seu predecessor foi despedido por se ter descuidado do
espanador.
sarvant começou limpando a parte do fundo do templo. tinha chegado
exatamente na coluna junto à qual a loura estava sentada, quando reparou
num homem falando com a mulher ao lado dela. não pôde ouvir o que
estavam dizendo, mas naquele instante a mulher se levantou e abriu o
vestido. não usava nada debaixo dele.
o homem, ao que parecia, gostou do que viu, pois abanou a cabeça em
sinal de aprovação. a mulher o pegou pela mão
e levou para uma das barracas situadas atrás. entraram e a mulher correu
a cortina, fechando a frente da barraca.
sarvant ficou estatelado. só passados alguns minutos foi capaz de
recomeçar a varrer. sabia agora que atividades semelhantes àquela eram
repetidas por todo o templo.
seu primeiro impulso foi atirar fora a vassoura e fugir do templo para
nunca mais voltar. mas refletiu que, onde quer que fosse em deecee,
encontraria a mesma maldade. podia muito bem ficar ali e ver se seria
possível fazer alguma coisa cm prol da verdade.
então foi testemunha de uma coisa que quase o fez vomitar. um enorme
marinheiro chegou perto da loura magra e começou a conversar com ela. a
moça se levantou, abriu o vestido e, logo depois, os dois entraram numa
barraca.
sarvant estremeceu de raiva. já lhe era bastante penoso que as outras
fizessem aquilo, mas ela, ela...
fez um esforço para se acalmar e pensar.
por que as atividades da mulher o ofendiam mais que as das outras?
porque, precisava admitir, sentia-se atraído por ela. muito atraído. havia
caído pela moça como nunca acontecera com relação a outra mulher, desde o
dia em que conhecera a esposa.
apanhou a escova, foi até a sala do sacerdote subalterno e pediu que lhe
dissessem o que significava tudo aquilo.
o sacerdote ficou espantado.
— você é tão neófito na nossa religião que não sabe que gotew é a
padroeira das mulheres estéreis?
— não, eu não sabia — respondeu sarvant, com voz trêmula. — que tem
isso a ver com esta...
parou porque deecee não tinha palavras, até onde podia saber, para
prostituição ou putaria. depois continuou:
— por que essas mulheres devem-se oferecer a estranhos? o que tem o
culto de gotew a ver com isso?
— ora, tem tudo a ver, é claro. são mulheres infelizes, carregando a
maldição de um útero estéril. vêm a nós, depois de anos de esforço para
engravidar dos maridos, e nós lhes fazemos um exame físico completo.
algumas delas têm perturbações que diagnosticamos e curamos, mas essas aí,
não. nada podemos fazer por elas.
"assim, quando a ciência falha, a fé deve substituí-la. essas infortunadas
mulheres vêm cá diariamente — exceto nos dias santificados, quando há
cerimônias a serem assistidas em outros locais — e rezam para que gotew
lhes mande um homem cujo sêmen seja capaz de reviver seus úteros mortos.
se, depois de um ano, não forem abençoadas com um filho, normalmente
entram para uma ordem onde podem dedicar a vida inteira ao serviço de sua
deusa e do seu povo."
— e quanto a arva linkon? — perguntou sarvant, designando a loura. —
É inconcebível que uma mulher com sua beleza e com família aristocrática,
vá para a cama com qualquer homem que apareça.
— bobagem, meu caro amigo! não com qualquer homem. talvez você
não tenha reparado que esses homens, antes de virem para aqui, passam por
aquela sala. meus queridos irmãos os examinam para lerem a certeza de que
eles são portadores de espermas saudáveis. se um deles, por isto ou por
aquilo, está doente ou não tem condições de ser pai, é recusado. não ligamos
a menor importância a feiúra ou beleza do macho; nosso desiderato e o
sêmen e o útero. personalidades e gosto pessoal não entram em conta. por
falar nisso, por que você também não se faz examinar? não há motivo para
que reserve sua progênie para uma só mulher. você deve isso a gotew, como
a qualquer outra personificação da grande mãe branca.
— preciso voltar para o trabalho — murmurou sarvant o se retirou
precipitadamente.
sarvant conseguiu terminar a limpeza do salão principal graças a um
tremendo esforço de vontade. não pôde, como desejava, ficar olhando arva
linkon o tempo todo. ela saiu ao meio-dia e não voltou à tarde.
naquela noite, sarvant não conseguiu dormir direito. sonhou que arva
entrava na barraca com aqueles homens... dez ao todo; ele os contara. e
embora soubesse que devia amar os pecadores e detestar o pecado, detestou
cada um dos dez pecadores.
quando amanheceu, jurou que não odiaria os homens que a procurassem
naquele dia. mas ao mesmo tempo em que jurava, sabia que não podia
cumprir o juramento.
naquele dia, contou sete homens. quando o sétimo saiu, teve de se
recolher ao seu alojamento para evitar correr atrás dele e o estrangular.
na terceira noite, rezou pedindo orientação.
deveria deixar o templo e procurar trabalho em outro lugar? se ficasse,
estaria indiretamente aprovando e diretamente incentivando aquela
abominação. além disso, poderia vir a ter o terrível pecado do assassinato na
consciência, o sangue de um homem manchando suas mãos. ele não queria
tal coisa. queria sim! mas não devia querer, não devia!
se fosse embora, nada teria feito para varrer o mal; teria fugido como um
covarde. além do mais, não teria feito arva perceber que estava esbofeteando
a face de deus ao prosseguir naquela detestável paródia de rito religioso.
queria tirá-la do templo mais do que quisera qualquer coisa na vida — mais
ainda do que quisera estar a bordo da terra, onde poderia levar a palavra aos
gentios ignorantes dos outros planetas.
nau fizera uma única conversão naqueles oitocentos anos. mas tentara.
esforçara-se ao máximo; nada podia fazer se os ouvidos deles estavam
fechados à palavra e seus olhos cegos à luz da verdade.
no dia seguinte, esperou que arva saísse do templo ao meio-dia. então
encostou a vassoura na parede e seguiu-a pelo sol, pelo zunzum e pelo
estrépito das ruas de deecee.
— lady arva! — gritou. — preciso falar com a senhora! ela parou. seu
rosto estava sombreado pelos galhos das árvores, mas a ele parecia que ela
estava profundamente envergonhada e triste. ou ela parecia assim porque ele
queria que ela parecesse?
— posso acompanhá-la até sua casa? — perguntou. ela mostrou-se
espantada.
— por quê?
— porque ficarei maluco se não a acompanhar.
— não sei — respondeu ela. — É verdade que você é irmão do herói
solar e por isso não perderei minha dignidade andando com você a meu lado.
mas, por outro lado, você não tem totem e faz o trabalho do mais baixo dos
criados.
— e quem é você, entre todos, para me falar sobre baixeza? — rosnou
ele. — você, que pega todos os que chegam!
os olhos dela se escancararam.
— que tem isso de errado? como se atreve a falar com uma linkon dessa
maneira?
— você é uma... uma puta! — gritou ele, usando a palavra inglesa,
embora sabendo que ela não a entenderia.
— que é isso? — perguntou arva.
— prostituta! uma mulher que se vende por dinheiro!
— nunca ouvi nada igual! — respondeu ela. — de que espécie de terra
vem você, onde um vaso da sagrada mãe pode ser tão ofendido?
ele procurou se acalmar. disse em voz baixa, mas tremula:
— arva linkon, só quero falar com você. tenho de lhe dizer uma coisa
que talvez seja a mais importante que você já ouviu em toda sua vida. na
verdade, a única coisa importante.
— não sei. acho que você é meio doido.
— juro que não pretendo lhe causar nenhum mal!
— jura pelo sagrado nome de colúmbia?
— não, não posso fazer isso. mas quero jurar pelo meu deus que não
tocarei com um dedo em você.
— meu deus! você é devoto do deus de caseyland?
— não, não o deles! o verdadeiro deus!
— agora sei que você é doido! do contrário, você não falaria desse deus
neste país e especialmente a mim. não quero ouvir a infame blasfêmia que
sairá de sua boca viciosa.
ela se afastou.
sarvant deu um passo na direção de arva. então percebeu que aquela não
era a hora de falar com ela e que não estava agindo como teria gostado. por
isso foi embora. mantinha os punhos cerrados e rangia os dentes. caminhava
como cego, esbarrando freqüentemente nas pessoas. estas protestavam, mas
ele não ligava.
voltou para o templo e apanhou a escova.
nessa noite tornou a dormir mal. ensaiou cem vezes como falar calma e
sensatamente com arva. queria apontar-lhe os erros da sua crença, de
maneira a que ela não pudesse refutar. conseqüentemente, seria sua primeira
convertida.
lado a lado, começariam o trabalho que tornaria o país limpo, como os
primitivos cristãos haviam limpado a velha roma.
no dia seguinte, no entanto, arva não compareceu ao templo. ele ficou
desesperado. talvez a moça nunca mais voltasse.
depois se lembrou de que aquela havia sido uma das coisas que ele
queria que arva fizesse. talvez estivesse fazendo progressos maiores do que
pensava.
mas como poderia vê-la outra vez?
na manhã do dia seguinte, arva, sempre vestida de mulher estéril, foi ao
templo. evitou o olhar dele e não respondeu quando sarvant a cumprimentou.
depois de rezar ao pé da cariátide sob a qual costumava sentar, arva foi ao
fundo do templo e pôs-se a falar seriamente com o bispo.
sarvant ficou com medo de que ela o estivesse denunciando.
seria razoável esperar que arva ficasse calada? afinal de contas, aos olhos
dela, sarvant havia blasfemado por se ter introduzido naquele — para ela —
recinto sagrado.
arva voltou para o seu lugar junto da cariátide. o bispo chamou sarvant.
o astronauta largou a escova e caminhou na direção do bispo, com as
pernas trêmulas de emoção. iria aquela missão terminar ali, antes que ele
tivesse conseguido plantar uma semente de fé que pudesse crescer depois
que ele fosse embora? se ele falhasse agora, a palavra estaria perdida para
sempre, pois sarvant era o último da sua seita.
— meu filho — disse o bispo — o fato de que você até agora não é um
crente, é do conhecimento apenas da hierarquia eclesiástica. você precisa se
lembrar de que obteve este grande privilégio por ser irmão do herói solar. se
você fosse qualquer outra pessoa, já teria sido enforcado há muito tempo.
mas você obteve uni mês para ver o caminho errado que vem seguindo e
voltar-se para a verdade. seu mês ainda não terminou; mas preciso avisá-lo
de que deve ficar de boca fechada e não falar sobre sua falsa crença. se não,
o tempo será diminuído. fiquei preocupado, pois esperei que seu pedido de
trabalhar aqui significasse que você iria anunciar seu desejo de se dedicar à
mãe de nós todos.
— então arva lhe contou?
— abençoada seja pelo seu verdadeiro devotamento. claro que me
contou! agora você me promete que não se repetirá o incidente de
anteontem?
— prometo — respondeu sarvant.
o bispo não lhe pedira para deixar de fazer proselitismo. apenas lhe
pedira para que não repelisse o incidente. dali por diante teria a aparência de
uma pomba e a astúcia de uma serpente.
cinco minutos depois, havia esquecido sua resolução.
viu um homem alto e bonito, um aristocrata pelo porte e pelas roupas
caras, se aproximar de arva. ela sorriu para ele, levantou-se e o levou para a
barraca.
foi o sorriso o causador de tudo.
arva nunca sorrira, antes, para os homens que a procuravam. seu rosto
era sempre tão inexpressivo como se fosse esculpido em mármore. naquele
instante, vendo o sorriso, sarvant sentiu uma coisa crescer dentro dele. aquilo
se expandiu pelos seus quadris, rugiu no seu peito, correu pela sua garganta,
cortou-lhe a respiração. encheu seu crânio até que explodiu; não conseguia
enxergar nada a não ser escuridão e não podia ouvir nada.
não soube quanto tempo ficou assim, mas quando recuperou
parcialmente os sentidos, estava parado na sala do sacerdote-médico.
— curve-se para que eu faça uma massagem na sua próstata e colha uma
amostra.
sarvant obedeceu automaticamente. enquanto o sacerdote examinava a
lâmina ao microscópio, sarvant ficou imóvel como um bloco de gelo. por
dentro queimava. estava possuído por uma alegria selvagem como nunca
sentira; sabia o que ia fazer e não se importava. naquele momento, desafiaria
qualquer ser ou ser que quisesse fazê-lo parar.
alguns minutos mais tarde, atirou-se para fora da sala. sem a menor
vacilação, caminhou para arva, que acabava de voltar da barraca e ia se
sentar.
— quero que venha comigo! — disse, em voz alta e clara.
— aonde? — perguntou a moça que, ao ver a expressão do rosto dele,
compreendeu.
depois continuou, zombeteira:
— que foi que você disse de mim, naquele dia?
— hoje é outro dia.
pegou-a pela mão e começou a arrastá-la para a barraca. ela não resistiu,
mas quando estavam na barraca e sarvant havia corrido a cortina, disse:
— agora percebo! você decidiu se sacrificar à deusa! despiu o vestido e
sorriu, em êxtase. mas estava olhando para cima e não para ele.
— grande deusa, agradeço-lhe por me ter permitido ser o instrumento de
conversão deste homem à verdadeira fé!
— não! — disse sarvant, com voz rouca, — não diga isso! não acredito
no seu ídolo! apenas — que deus me ajude! — desejo você! não posso ficar
vendo você vir para esta tenda com cada homem que a procura. arva, eu a
amo!
durante um instante, a moça o olhou, horrorizada.. depois apanhou o
vestido e cobriu o corpo com ele.
— pensa que vou permitir que você me macule com seu toque? um
pagão! e sob este teto sagrado!
virou-se para sair. sarvant pulou sobre ela e fê-la voltar-se. arva abriu a
boca para gritar e ele enfiou-lhe a barra do vestido na boca. enrolou o resto
do vestido na cabeça dela e empurrou-a para trás, fazendo com que caísse de
costas na cama, com ele por cima.
arva se debateu e contorceu para se livrar de suas garras, mas sarvant a
segurou com dedos que penetravam profundamente em sua carne. então ela
experimentou levantar os joelhos juntos. o astronauta saltou como um peixe
gigantesco, caindo violentamente de costas; isso a libertou da chave de
pernas.
arva procurou se arrastar para trás, como uma cobra tentando atacar
pelas costas dele, mas sua cabeça foi de encontro à parede. subitamente, a
moça deixou de reagir.
sarvant gemeu e agarrou os quadris com as mãos, esfregando o rosto no
vestido enrolado na cabeça dela. queria sentir seus lábios sobre os de arva,
mas a roupa estava dobrada onde ele a havia empurrado na boca da moça;
nada pôde sentir através da espessura.
veio-lhe uma centelha de juízo, o pensamento de que sempre detestara a
violência e especialmente o estupro. apesar disso, estava ali violentando
aquela mulher a quem amava. e pior, muito pior, ela havia se entregado,
voluntariamente, a, no mínimo, cem homens nos últimos dez dias, homens
que não lhe davam a menor importância, que só queriam saciar nela sua
lascívia. e ali estava ela resistindo a ele como uma virgem mártir da antiga
roma à mercê de um imperador pagão! aquilo não tinha sentido; nada tinha
sentido.
ele gritou com o súbito alívio de oitocentos anos.
sarvant não percebeu que havia gritado. não tinha a menor consciência
de onde se encontrava. quando o bispo e o sacerdote correram para lá, e arva,
chorando e soluçando, contou o que acontecera, ele não compreendeu nada.
só compreendeu quando o templo se encheu com um multidão de homens
furiosos, vindos da rua, e alguém apareceu com uma corda.
então era tarde.
muito tarde para tentar explicar a eles o que o impelira a agir assim.
muito tarde, mesmo se eles pudessem entender o que sarvant estava dizendo.
muito tarde, mesmo se não o tivessem derrubado e espancado até fazer seus
dentes saltar e seus lábios inchar a ponto de só poder murmurar.
o bispo procurou intervir, mas a multidão o empurrou para um lado e
carregou sarvant para a rua. arrastaram-no, puxando-o pelas pernas, fazendo
com que sua cabeça fosse batendo no cimento, até uma praça onde havia
uma folha. esta tinha o formato de uma velha deusa horrenda, alba, a
sufocadora. suas mãos de ferro, pintadas de branco-fosco, erguiam-se como
se quisessem agarrar cada passante.
a corda foi atirada por cima de uma das mãos e sua ponta amarrada no
pulso. alguns homens trouxeram uma mesa de uma casa e a colocaram sob a
corda pendente. içaram sarvant para cima da mesa e lhe amarraram as mãos
nas costas. dois homens o sustinham, enquanto um outro lhe passava a corda
no pescoço.
seguiu-se um instante de silêncio, quando cessaram os gritos dos homens
ultrajados e eles desistiram de pôr as mãos em sarvant e estraçalhar sua carne
ímpia.
sarvant olhou-os. não pôde ver claramente, porque seus olhos estavam
inchados e corria sobre eles o sangue dos ferimentos na cabeça. resmungou
qualquer coisa.
— o que é? — perguntou um dos homens que o seguravam. sarvant não
conseguiu repetir. estava pensando que sempre quisera ser mártir. aquele
desejo era um pecado terrível, o pecado do orgulho. mas havia desejado o
martírio. e sempre se imaginara caminhando para o fim com a dignidade e a
coragem dada a ele pela consciência de que seus discípulos continuariam e
finalmente triunfariam.
não ia acontecer assim. ele iria ser enforcado como um criminoso da pior
espécie. não por pregar a palavra, mas por estupro.
não fizera uma só conversão. iria morrer sem que o chorassem,
praticamente anônimo. seu corpo seria atirado aos porcos. não foi por causa
do seu corpo material; foi o pensamento de que seu nome e suas ações iriam
morrer, também, que o fez querer gritar aos céus. alguém, mesmo uma
simples alma, poderia continuar seu trabalho.
ele pensou: nenhuma nova religião tem sucesso a menos que a velha
primeiro enfraqueça. e esta gente acredita, sem a menor dúvida, em
incentivar a brilhante intensidade da convicção. eles acreditam com um vigor
que a gente do meu tempo não possuía.
resmungou outra vez. agora estava sozinho sobre a mesa, balançando
para a frente e para trás, mas determinado a não demonstrar qualquer medo.
— muito cedo — disse ele, numa língua que seus ouvintes poderiam não
ter entendido, mesmo se tivesse falado com clareza. — voltei muito cedo
para a terra. eu deveria ter esperado outros oitocentos anos, quando os
homens poderiam ter começado a perder a fé e a zombar em segredo. muito
cedo!
então a mesa foi retirada de debaixo dele.
treze

DUAS ESCUNAS de grandes mastros, surgindo de dentro da bruma da


madrugada, atacaram o bergantim de deecee, antes que o vigia tivesse tempo
de dar o alarme. os tripulantes de the divine dolphin, porém, não tiveram
dúvidas sobre a identidade dos atacantes. gritaram cm coro: os karelianos!
depois, houve uma contusão total.
uma das naves piratas abordou the divine dolphin. ganchos atirados do
barco kareliano mantiveram as duas naves ligadas. num espaço de tempo
incrivelmente curto, os piratas trocaram de bordo.
eram homens altos, que usavam apenas calções muito coloridos e largos
cintos de couro, cheios de armas. eram tatuados da cabeça aos pés e usavam
alfanjes e grandes porretes de ponta ferrada. gritavam ferozmente em língua
finlandesa e brandiam os alfanjes e porretes com o ardor frenético de
guerreiros nórdicos, às vezes derrubando seus próprios companheiros.
os homens de deecee foram apanhados de surpresa, mas lutaram
corajosamente. nem pensaram em se render; a rendição significava serem
vendidos come escravos e trabalhar at.'- morrer.
a tripulação da terra estava entre os defensores. embora nada
entendessem de esgrima, atacaram da melhor maneira possível. até robin
apanhou uma espada e lutou ao lado de churchill.
a segunda escuna se aproximou pelo outro lado. os karelianos subiram
para bordo e atacaram os deecees antes que estes pudessem enfrentá-los.
gbwe-hun, o daomeiano, foi a primeira baixa entre os astronautas. havia
matado um pirata com uma feliz estocada e ferira um outro, até que um
alfanje, brandido às costas dele, cortou-lhe o braço que manejava a espada e
depois a cabeça. yastzhembski foi o segundo, sangrando de uma cutilada na
testa.
de repente, robin e churchill se viram às voltas com as malhas de uma
rede, atirada sobre eles de uma verga. foram postos fora de ação a socos.
churchill acordou e verificou que suas mãos estavam amarradas nas
costas. robin estava no tombadilho superior, também manietada. o chocar
das lâminas cessara e até os lamentos dos feridos deixaram de ser ouvidos.
os deecees gravemente atingidos haviam sido atirados pela amurada e os
karelianos nas mesmas condições não se lamentavam.
o comandante dos piratas, um certo kirsti ainundila, parou em frente aos
cativos. era um homem alto e moreno, com uma venda num dos olhos e uma
cicatriz atravessando a face esquerda. falou em deecee, mas com forte
sotaque.
— vi o diário de bordo e sei quem vocês são. por isso, não adianta
mentir. vamos! vocês dois — apontou para churchill e robin — valem um
grande resgate. acho que esse tal whitrow pagará bastante para ter de volta,
ilesos, a filha e o genro. quanto aos outros, darão um preço justo no leilão,
quando voltarmos a aino.
aino era, como disseram a churchill, uma cidade-fortaleza da karélia,
situada na cosia do antigo estado da carolina do norte.
kirsti mandou levar todos os prisioneiros para o porão c acorrentá-los ao
casco. yastzhembski estava entre eles, pois foi considerado capaz de se
recuperar do ferimento.
depois de acorrentados, e dos piratas terem ido embora, lin começou a
falar.
— agora estou vendo que foi uma loucura pensar que poderíamos voltar
para casa. não porque fomos capturados, mas porque não temos mais casa.
tanto faz estar lá como aqui. descobriremos que nossos descendentes são tão
estranhos e hostis quanto os de churchill.
"ora, venho pensando já há algum tempo uma coisa que esquecemos por
causa do nosso desejo de voltar para a terra. essa coisa é: que aconteceu com
os terrestres que colonizaram marte?"
— não sei — respondeu churchill — mas me parece que se os marcianos
não tivessem sido extintos, por este ou por aquele motivo, já teriam enviado
naves espaciais à terra há muito tempo. afinal, eles eram auto-suficientes.
tinham suas próprias naves.
— evidentemente, alguma coisa os impediu — disse chandra. — mas
acho que se: o que lin está imaginando. há minerais radioativos em marte. o
equipamento para extrair minério deve continuar lá, mesmo se o pessoal não
está mais.
— vamos falar claro — replicou churchill. — você está propondo que
tomemos a terra'! deveremos ter bastante combustível para chegar a marte,
mas não o suficiente para voltarmos. sua idéia é que usemos o equipamento
existente nas cúpulas marcianas e fabriquemos mais combustível? e depois
viajemos novamente para as estrelas?
— encontramos um planeta onde os nativos não estavam suficientemente
adiantados tecnologicamente para lutar contra nós — disse lin. — estou me
referindo ao segundo planeta de vega. tem quatro grandes continentes, todos
do tamanho aproximado da austrália e separados uns dos outros por enorme
volume dágua. uma dessas grandes áreas de terra é habitada por humanóides
que estão, tecnològicamente falando, ao nível dos gregos antigos. duas são
habitadas por povos neolíticos. a quarta está desabitada. se atingirmos vega,
poderemos colonizar o quarto continente.
durante um certo tempo, nenhum deles falou.
churchill percebeu que a proposta de lin tinha suas vantagens, a maior
objeção era que eles não tinham meios de executá-la. primeiro, precisavam
estar soltos. depois, teriam de capturar a terra. a nave estava tão severamente
vigiada que os astronautas, ao discutirem o assunto quando deixaram a
prisão em washington, haviam desistido da idéia.
— mesmo se nos apoderarmos da nave — disse churchill — e este é um
se enorme, precisamos atingir marte. esta é a maior cartada. e que condições
haverá lá, no caso de não conseguirmos combustível?
— aí nós nos instalamos e começamos a fabricar equipamento — disse
al-masyuni.
— de acordo. mas, admitindo que marte nos forneça o de que precisamos
e alcancemos vega, necessitaremos ter mulheres. do contrário, a raça se
extingue. isso significa que levarei robin, quer ela queira ou não. e também
significa que teremos de seqüestrar mulheres em deecee.
— uma vez saídas do congelamento profundo, em vega, de nada
adiantará a elas reclamar — disse steinborg.
— violência, seqüestro, estupro — falou churchill. — que maneira de se
começar um admirável mundo novo!
— há alguma outra maneira? — perguntou wang.
— não esqueça o rapto das sabinas — disse steinborg. churchill deixou
steinborg sem resposta, mas fez outra objeção.
— somos tão poucos que, breve, nossos descendentes serão totalmente
congênitos. não vamos querer fundar uma raça de idiotas.
— seqüestraremos crianças também e as levaremos em congelamento
profundo.
churchill franziu a testa. parecia não haver jeito de evitar a violência.
mas isso era uma constante na história do homem.
— se levarmos crianças pequenas demais para falar e que por isso não se
lembrarão da terra, teremos de levar também mulheres em número suficiente
para criá-las. e isso nos traz outro problema. poligamia. não sei o que
pensarão as outras mulheres, mas sei que robin protestará energicamente.
yastzhembski disse:
— diga a ela que a poligamia será temporária. aliás, você pode ser a
exceção, o único monógamo, se quiser. deixe todo o prazer para nós. sugiro
que assaltemos uma aldeia pants-elf. me disseram que as mulheres pants-elfs
estão acostumadas com a poligamia e, segundo ouvi contar, elas ficarão
felizes com maridos que se ocupem delas. tão certo quanto existe inferno,
elas não estão contentes com os pseudo-homens que têm agora.
— está bem — respondeu churchill. — estou de acordo. mas há uma
coisa que, realmente, me preocupa.
— o que é?
— como sair já desta enrascada. houve um silêncio triste. yastzhembski
disse:
— você acha que whitrow pagará o resgate de todos nós? — não. já vai
ser duro para ele pagar para tirar robin e eu das mãos destes piratas
gananciosos.
—. bom — respondeu steinborg — pelo menos você tem uma saída. e
nós?
churchill se levantou e começou a bater com as algemas uma na outra e a
chamar o comandante aos berros.
— por que você está fazendo isso? — perguntou robin.
ela só entendera umas poucas palavras porque a conversa se desenrolara
em americano do século xxi.
— estou vendo se consigo falar com o comandante para propor um
negocio — respondeu churchill, em deecee. — acho que encontrei uma
saída. mas depende da minha lábia e da receptividade que ela tiver.
um marinheiro meteu a cabeça pela escotilha e perguntou que diabo
estava acontecendo.
— diga ao seu comandante que tenho uma maneira de ele ganhar mil
vezes mais dinheiro do que espera — respondeu churchill. — e glória
bastante para fazer dele um herói.
a cabeça sumiu. dentro de cinco minutos, dois marinheiros desceram ao
porão e soltaram churchill.
— até — disse ele aos outros, quando saiu. — mas não fiquem
acordados a minha espera.
ele não podia imaginar como aquela piada ia ser verdadeira.
o dia findou e ele não voltou. robin estava quase histérica. imaginava que
o comandante havia ficado zangado com o marido e o teria mandado matar.
os outros procuravam acalmá-la, usando o argumento racional de que um
bom negociante, como o kareliano, não iria destruir material tão valioso.
todavia, apesar dessa confiança, estavam apreensivos, churchill poderia ter,
inadvertidamente, insultado o comandante e, por essa razão, o forçado a
matá-lo para manter o prestígio. ou poderia ter sido abatido ao tentar fugir.
alguns deles adormeceram. robin continuou acordada, murmurando
preces a colúmbia.
finalmente, próximo ao amanhecer, a escotilha foi aberta. churchill
desceu a escada acompanhado de dois marinheiros. estava cambaleando,
quase caiu e soluçou ruidosamente. depois de ter sido novamente
acorrentado, os outros puderam compreender o seu comportamento. seu
hálito fedia a cerveja e ele engolia as palavras.
— estive bebendo como um camelo prestes a sair numa caravana —
disse churchill. — o dia inteiro e a noite inteira. fui mais tagarela que kirsti,
mas acho que ele me embebedou. descobri uma porção de coisas sobre esses
finlandeses. foram mais poupados que qualquer outro povo durante a
desolação. depois se espalharam pela europa, exatamente como antigos
vikings. se misturaram com os remanescentes dos escandinavos, dos alemães
e dos povos bálticos. possuem atualmente o noroeste da rússia, o extremo
leste da inglaterra, a maior parte do norte da frança, a região costeira da
espanha e África do norte, sicília, África do sul, islândia, groenlândia, nova
escócia, labrador e carolina do norte. deus sabe mais o que, pois eles
enviaram expedições à índia e à china...
— É muito interessante, mas falemos sobre isso depois — disse
steinborg. — como foi que você se saiu com o comandante? chegaram a um
acordo?
— ele é um cara muito esperto e danadamente desconfiado. levei um
tempo dos diabos a convencê-lo.
— que aconteceu? — perguntou robin.
churchill disse a ela, em deecee, para não se preocupar, pois breve
estariam livres. depois voltou a falar na língua materna.
— vocês já experimentaram explicar o que são geradores de
antigravidade e propulsão de antimatéria a um homem que nem sabe o que
são moléculas ou elétrons? entre outras coisas, muitas outras coisas, tive de
dar uma aula básica de teoria atômica e...
sua voz foi se tornando arrastada e a cabeça descaiu. havia adormecido.
exasperada, robin o sacudiu até quo ele acordou da bebedeira.
— oh, é você, robin — gaguejou. — robin, você não vai gostar do
negócio que eu planejei. você vai me odiar...
voltou a dormir. dessa vez, todos os esforços para o acordar foram em
vão.
quatorze

— eu GOSTARIA de poder tirar o cinto — disse mary casey.


— É muito incômodo e irritante. esfola minha pele e mal posso andar.
também não é muito saudável. tem dois escoadouros pequenos e tenho de
jogar água através deles para me lavar.
— eu sei — disse stagg, com impaciência. — não é isso que está me
preocupando.
mary olhou para ele e disse: —. oh, não!
os chifres de stagg haviam perdido a flacidez e estavam duros e eretos.
— peter — disse ela., tentando falar com voz calma — por favor não
faça isso. não deve fazer isso. você me matará.
— não, não matarei — respondeu ele, quase soluçando.
mas a moça não saberia dizer se aquele soluço era o resultado do desejo
dele ou do sofrimento de não ser capaz de se controlar.
— serei tão delicado quanto possível. prometo que não será demais para
você.
— uma vez é demais — respondeu ela. — não fomos casados por um
sacerdote. será pecado.
— não será pecado se você aceitar de boa vontade — respondeu ele, com
voz rouca. — e você não tem saída. acredite, não tem saída!
— não quero fazer isso — disse ela. — não quero! não quero!
ela continuou protestando, mas stagg não se incomodou. estava ocupado
demais tentando abrir o cinto. este apresentava um obstáculo que só uma
chave ou uma lima poderiam superar; uma vez que ambas não estavam à
mão, parecia que ele não iria ter êxito.
mas stagg estava sob a ação de uma coisa que não contribuía para um
comportamento racional.
o cinto era composto de três partes. as duas partes que circundavam os
quadris eram feitas de aço. o cinto tinha uma dobradiça atrás e era fechado,
na frente, por um cadeado. a terceira parte era feita de inúmeras pequenas
argolas, fixadas ao cinto por um segundo cadeado. essa espécie de cota de
malhas permitia uma certa flexibilidade. como a parte em torno dos rins,
estava forrada com um tecido grosso, para evitar esfoladuras e cortes.
todavia, o dispositivo inteiro era obrigatoriamente justo. a não ser assim, a
roupa poderia ser tirada de dentro dele com um pouco de força e alguma
perda de pele. aquele cinto era muito bem ajustado, tão bem que mary tinha
dificuldade em respirar.
stagg deu um jeito de meter as mãos na parte da frente do cinto, embora
mary reclamasse que ele a estava machucando muito. o comandante não
respondeu e começou a trabalhar nas duas extremidades do cinto, para trás e
para a frente, com a intenção de soltá-las do cadeado.
— oh, deus! — gritou mary. — chega! chega! você está espremendo
minhas entranhas' você está me matando! pare! pare!
inesperadamente, stagg largou-a. por um instante, pareceu ter recuperado
o autocontrole. estava respirando com dificuldade.
— desculpe, mary — disse ele. — não sei o que fazer. talvez deva fugir
daqui o mais depressa possível, enquanto esta coisa dentro de mim não volta
a agir e me obrigue a pensar em você outra vez.
— poderemos nunca ma's nos encontrar — respondeu mary.
parecia triste e depois continuou, suavemente:
— eu perderia você, peter. gosto muito de você, quando não está sob a
influência dos chifres. mas não adianta fingir. mesmo que você tenha se
controlado hoje, poderá não se controlar amanhã.
— É melhor que eu vá enquanto ainda posso me conter. que dilema! se
eu a abandonar aqui, você certamente morrerá, mas se eu ficar, você poderá
morrer!
— você não pode fazer mais nada — disse ela.
— só uma coisa — respondeu stagg lentamente, hesitando. — esse cinto
não significa, absolutamente, que eu não possa conseguir o que desejo. há
mais de um meio...
ela ficou pálida e gritou:
— não, não!
stagg virou-se e saiu correndo velozmente pela trilha.
depois, ocorreu-lhe que ela poderia tomar o mesmo caminho. deixou a
trilha e se internou na floresta. não era muito densa, pois a região continuava
bastante devastada no lento processo de recuperação dos danos da desolação.
a terra não havia sido semeada e a água ainda não fora desviada para ela,
tanto como fora para a terra de deecee. as árvores eram relativamente
escassas; a maior parte da vegetação era composta de ervas daninhas e
arbustos, havendo menor quantidade destes. todavia, onde existia água em
qualquer época do ano, a floresta era mais espessa. stagg não havia corrido
até muito longe quando encontrou um riacho. atirou-se nele, esperando que o
choque da água fria acalmasse o fogo de suas entranhas, mas a água estava
quente.
levantou-se, atravessou o riacho e continuou correndo. contornou uma
árvore e deu de cara com um urso.
desde que ele e mary haviam saído de high queen, esperava encontrar
esse animal.
sabia que os ursos eram relativamente numerosos naquela região por
causa do costume dos pants-elfs de amarrar os prisioneiros e as mulheres
rebeldes e deixarem que fossem comidos pelos ursos sagrados.
o urso era um enorme macho preto. podia estar ou não com fome. talvez
estivesse tão assustado com a súbita aparição de stagg, quanto este com a
presença dele. se tivesse tido uma oportunidade, teria fugido. stagg chegara
até junto dele tão silenciosamente que o urso deve ter pensado que estava
sendo atacado... e ser atacado significava contra-atacar.
levantou-se nas patas traseiras, como estava acostumado a fazer quando
agarrava suas indefesas presas humanas. estendeu a enorme pata para a
cabeça de stagg. se tivesse coordenado o movimento, poderia ter
esparramado no chão o crânio do homem, como se fosse um quebra-cabeças.
isso não aconteceu, embora a pata tivesse se aproximado o bastante para
que as garras fizessem um sulco no couro cabeludo de stagg. este foi ao
chão, em parte pela força da pancada e em parte porque seu próprio impulso
o desequilibrara.
o urso caiu sobre as quatro patas e saiu atrás de stagg. este pulou sobre
os pés. puxou a espada e gritou para o urso. u animal, a quem o grito não
abalara, ergueu-se outra vez sobre as patas traseiras. stagg fez um molinete
com a espada, cujo fio cortou a pata estendida.
não obstante rugir de dor, o urso avançou. stagg deu uma nova cutilada.
desta vez, a pata bateu com força tão surpreendente contra a lâmina, que a
arrancou da mão do astronauta, fazendo-a voar para o meio dos arbustos.
stagg correu atrás dela, curvou-se para apanhá-la... e foi soterrado pelo
enorme corpo do urso. sua cabeça foi empurrada contra o chão e sentiu como
se seu corpo estivesse sendo passado por um ferro monstruoso.
houve um momento em que até o urso ficou atrapalhado. dera um bote
muito impetuoso e o homem ficou encoberto apenas pela sua parte traseira.
rolou rapidamente para longe e voltou-se. stagg, por sua vez, pulou e tentou
fugir. antes que pudesse dar dois passos, o urso ficara de pé e o abraçara com
as patas da frente.
stagg sabia que não era verdade que os ursos apertavam a vítima até
matá-la, mas naquele momento pensou ter encontrado um urso que não
conhecia sua própria história natural. todavia, o urso estava tentando manter
stagg preso, enquanto se inclinava sobre o peito descoberto do comandante.
não conseguiu, porque stagg se livrou do abraço. não teve tempo de
admirar sua hercúlea façanha de afastar as patas do urso. se tivesse,
compreenderia que a força supra-humana lhe fora dada pelos chifres.
pulou para a frente e voltou-se para enfrentar o animal. por mais veloz
que fosse, estava perto demais para fugir. numa distância de cinqüenta
metros, um urso podia vencer até um campeão olímpico.
o urso estava em cima dele. stagg fez a única coisa que lhe veio à cabeça.
socou o animal no focinho preto, com tanta força quanto pôde.
a violência do soco teria quebrado o queixo de um homem. o urso fez
"uf!" e parou a perseguição. o sangue começou a correr de suas ventas e os
olhos envesgaram.
stagg não parou para admirar o trabalho do seu punho. passou pelo
animal atordoado e tratou de apanhar a espada. sua mão direita não
conseguiu se fechar sobre o punho dela. estava entorpecida, paralisada pelo
soco que dera no urso.
estendeu a mão esquerda, apanhou a espada e se voltou. mesmo a tempo.
o urso se recuperava o suficiente para dar outro bote, embora tivesse perdido
muito de sua primitiva velocidade.
cuidadosamente, stagg ergueu a espada e assim que o urso se aproximou,
desfechou uma estocada no pescoço curto e grosso.
a última coisa que viu foi a lâmina mergulhando profundamente no pêlo
preto e o jato vermelho que se seguiu.
acordou algum tempo depois, sentindo dores enormes, coro o urso morto
a seu lado e mary chorando em cima dele.
então a dor se tornou cruciante e ele desmaiou.
quando voltou a si, estava com a cabeça no colo de mary e caía água de
um cantil em sua boca aberta. a cabeça ainda lhe doía de maneira atroz.
apalpando-a para saber por quê, encontrou-a coberta de curativos.
o chifre do lado direito havia desaparecido.
mary disse:
— o urso deve tê-lo arrancado. ouvi a luta de longe. pude ouvir o urso
rosnando e você gritando. vim o mais depressa possível, embora estivesse
com medo.
— se você não viesse — disse stagg — eu teria morrido.
— acho que sim — respondeu ela, com simplicidade. — você estava
sangrando barbaramente pelo buraco do chifre arrancado. rasguei um pedaço
do meu saiote e procurei estancar o sangue.
inesperadamente, enormes lágrimas começaram a correr pelo rosto dela.
— já passou — disse ele. — agora você pode chorar à vontade. mas foi
ótimo você ter sido tão corajosa. eu não teria ficado zangado se você tivesse
saído correndo.
— eu não poderia correr — disse mary, soluçando. — eu... eu acho que
amo você. claro, não deixaria ninguém morrer daquela maneira. além disso,
estava com medo de ficar sozinha.
— ouvi o que você disse no começo — replicou stagg. — não
compreendo como você pode amar a um monstro como eu. mas se isso lhe
ajuda a se sentir melhor e não pior, também amo você... mesmo se ainda há
pouco não parecesse.
apalpou a base quebrada do chifre arrancado e estremeceu.
— você acha que isto reduzirá minha... minha compulsão à metade?
— não sei. bem que eu gostaria. só que... acho que se lhe removerem os
chifres, você morrerá do choque.
— também acho. talvez as sacerdotisas tenham mentido. ou talvez o
conjunto todo tenha de ser retirado antes que haja um choque fatal. afinal de
contas, a base óssea continua intata e um dos chifres está ainda operando.
não sei.
— você precisa deixar de pensar nisso — disse mary. — acha que pode
comer? preparei um bife de urso.
— É dele que estou sentindo o cheiro? — perguntou stagg, fungando.
olhou para a carcaça.
— quanto tempo fiquei desmaiado?
— você esteve inconsciente o dia e a noite inteiros e parte da manhã de
hoje — respondeu a moça. — e não se preocupe com a fumaça da fogueira.
sei como fazer uma pequena fogueira sem fumaça.
— acho que agora estou bem. os cornos têm grande poder regenerador.
não me surpreenderia se este crescesse de novo.
— vou rezar para que não aconteça — afirmou ela. foi até a fogueira e
apanhou duas fatias de carne do urso, que estavam num espeto. pouco
depois, ele estava comendo um pedaço de pão e os bifes.
— preciso arranjar mais. de repente, fiquei com uma fome capaz de
comer um urso.
dois dias depois ele se lembrou do que dissera e riu porque havia comido
o urso. sobraram apenas a pele, os ossos e as entranhas; até os miolos foram
cozinhados e devorados.
após, sentiu-se novamente capaz de prosseguir. o curativo fora retirado
do ferimento, aparecendo uma cicatriz em vias de cura.
— pelo menos, parece que não vai crescer mais — disse stagg.
olhou para mary.
— bem, cá estamos nós, exatamente como começamos, quando fugi de
você. estou sentindo a necessidade outra vez.
— você acha que vamos ter de nos separar de novo? pelo tom, era
impossível dizer se ela queria que ele fosse embora ou não.
— pensei muito, durante o período da minha convalescença —
respondeu stagg. — uma coisa em que pensei foi que, quando os pants-efs
estavam nos levando para high queen, senti uma nítida diminuição de
energia. acho que foi porque estava subalimentado. proponho que
continuemos juntos, mas que eu faça um regime de fome. vou comer apenas
o suficiente para me manter, mas não o bastante para estimular este... este
desejo. vai ser duro, mas conseguirei.
— magnífico — disse ela.
hesitou, corou e acrescentou:
— porém, vamos ter de fazer uma coisa. preciso me livrar deste cinto.
não, não pelo motivo que você deve estar imaginando. ele me deixa fora de
mim. me corta e esfola e me aperta tanto na cintura que mal posso respirar.
— assim que chegarmos ao território deecee e acharmos uma granja —
prometeu stagg. — roubarei uma lima. tiraremos esse invento diabólico.
— está bem. só quero que não interprete meus motivos de outra maneira.
ele pegou o saco e recomeçaram a andar.
avançaram o mais silenciosamente possível, considerando a
desvantagem representada pelo cinto de mary. procediam cautelosamente,
atentos a qualquer barulho estranho. havia não só a possibilidade de caírem
em cima do grupo de high queen, que andava à procura deles, mas também a
de encontrarem deecees hostis.
atravessaram as montanhas shawangunk. assim que penetraram numa
clareira onde a trilha ia dar, viram os homens vindos de high queen pra
vingar a morte dos companheiros.
deviam estar tão concentrados na caça aos dois fugitivos, que foram
inteiramente surpreendidos por uma emboscada dos deecees. agora estavam
pendurados nos galhos das árvores onde haviam sido amarrados antes de
terem as gargantas cortadas, ou seus ossos jaziam pelo chão. o que os ursos
não comeram, as raposas devoraram : o mie as raposas desdenharam, os
corvos estavam agora aproveitando.
— devemos ser mais cautelosos que nunca — disse stagg. — não sei se
os deecees ainda estão nos procurando.
não falou com seu costumeiro vigor. tinha perdido peso e seus olhos
estavam orlados de preto. o chifre balançava, ao menor movimento de sua
cabeça. quando sentou para comer, tão logo terminou sua ração ficou
olhando, cobiçoso, a porção de mary. Às vezes, afastava-se o ia se deitar
onde não pudesse vê-la comendo.
o pior é que não conseguia esquecer a comida nem dormindo. sonhava
com mesas arqueando ao peso de centenas de iguarias saborosas e enormes
jarros de pedra de cerveja preta gelada. e quando não era perturbado por
essas visões, sonhava novamente com as donzelas que conhecera durante a
grande marcha. embora seu vigor estivesse consideravelmente diminuído
pela falta de alimentação, ainda era mais forte que a maioria dos homens.
houve momentos em que, depois de mary adormecer, teve de ir para o mato
aliviar a terrível tensão. sentiu-se, mais tarde, profundamente envergonhado,
mas isso era preferível, a pegar mary à força.
não se atrevia a beijar mary. ela parecia compreender, pois nada fez para
beijá-lo. nem se referiu outra vez a ter-lhe dito que o amava. talvez, pensou,
ela não o amasse. tinha sido dominada pela emoção de ele não ter sido
morto; aquelas palavras representariam uma forma de alívio.
pulando por cima dos esqueletos dos pants-elfs, afastaram-se da trilha e
atalharam pelo bosque. sua rapidez era menor, mas se sentiam mais seguros.
atingiram as margens do hudson. naquela noite, stagg arrombou um
celeiro e conseguiu uma lima. teve de matar o cão de guarda, o que fez por
estrangulamento, antes que ladrasse duas vezes. voltaram para o bosque,
onde stagg levou quatro horas para limar o cinto. o aço era duro e precisava
ter cuidado para não ferir mary. depois, deu a ela um ungüento achado no
celeiro e ela se meteu entre os arbustos para esfregá-lo nos arranhões e
lugares infeccionados. stagg sacudiu os ombros diante de tal recato. já se
tinham visto sem roupas inúmeras vezes. mas, é claro, ela não tinha, antes,
como controlar a situação.
quando mary voltou, andaram pela margem até encontrar um bote
amarrado a um embarcadouro de madeira. desamarraram-no e remaram para
longe da margem. stagg levou a embarcação para o meio da corrente e
começou a se dirigir para leste. viajaram duas noites, escondendo-se e
dormindo durante o dia. stagg roubou mais comida de uma casa nos
arredores da cidade de poughkeepsie. quando voltou para junto de mary, no
bosque, sentou-se e devorou três vezes mais comida do que devia. mary
ficou alarmada. mas stagg lhe disse que era obrigado a isso porque podia
sentir suas células se tornando canibais.
depois de ter comido metade do que trouxera e também bebido toda uma
garrafa de vinho, ficou sentado, imóvel, durante algum tempo. depois disse:
— desculpe, mas não posso agüentar mais. tenho de voltar à granja.
— por quê? — perguntou mary, alarmada.
— porque os homens não estão lá. estão provavelmente na cidade. e há
naquela casa três mulheres, duas das quais muito bonitas. mary, você
entende?
quinze

— NÃO! — respondeu ela. — não entendo. mesmo que fosse, você não
está vendo o perigo a que vai nos expor, voltando lá? aquelas mulheres irão
contar aos homens, quando eles voltarem, e as sacerdotisas de vassar serão
avisadas. e os teremos todos nas nossas costas. podemos ter a certeza de que
seremos enforcados se eles souberem que andamos pelas redondezas.
— sei que você tem razão. mas não posso evitar. comi demais. ou
aquelas duas mulheres ou eu.
mary ficou de pé. tinha a expressão de quem ia fazer alguma coisa
desagradável, mas obrigatória.
— se você ficar de costas um instante — disse a moça, com voz trêmula
— acho que poderei resolver seu problema.
assombrado, stagg respondeu:
— mary, você quer mesmo? você não sabe o que é isso para mim!
virou-se e, a despeito de sua quase insuportável e devoradora
expectativa, teve de sorrir. como era bom ela ser tão modesta ao tirar a roupa
logo antes de ir para a cama com ele!
ouviu-a mexer-se atrás dele.
— já posso me virar?
— ainda não. não estou pronta. ouviu-a aproximar-se e disse,
impaciente: —. posso me virar agora?
— ainda não — respondeu mary, chegando bem atrás dele.
— não posso ficar esperando muito tempo...
alguma coisa bateu violentamente na base do seu crânio. stagg desmaiou.
quando recobrou os sentidos, estava deitado de lado, com os braços
amarrados para trás e as pernas ligadas uma à outra pelos tornozelos. mary
havia dividido em duas a corda que ele pusera no saco quando fugiram dos
pants-elfs. viu, perto dele, uma enorme pedra, que ele imaginou ter sido
usada por mary para derrubá-lo.
vendo que o comandante abria os olhos, a moça disse:
— sinto muitíssimo, peter. era preciso. se você pusesse os deecees atrás
de nós, talvez não escapássemos.
— há duas garrafas de uísque no saco — respondeu stagg. — encoste-me
ao tronco de uma árvore e ponha uma garrafa na minha boca. quero bebê-la
toda. primeiro, porque preciso de alguma coisa que acabe com a dor na
minha cabeça. segundo, porque a menos que eu beba até ficar inconsciente,
ficarei doente de raiva. terceiro, porque preciso esquecer a cadela escrota que
você é!
ela não respondeu, mas obedeceu, mantendo a garrafa inclinada
enquanto ele bebia.
— desculpe, peter.
— vá para o inferno! por que tive de gamar por você? por que não fugi
com uma mulher de verdade! continue me dando uísque.
duas horas depois, havia bebido dois terços da garrafa. sentou-se e ficou
imóvel por alguns segundos, com os olhos fixos. então resmungou e
adormeceu.
quando acordou, na manhã seguinte, estava desamarrado. não reclamou
da ressaca, nem falou com mary. apenas a olhou quando ela colocou as
rações na sua frente. depois da refeição, durante a qual bebeu muita água,
começaram a andar para leste, em silêncio.
pelo meio-dia, mary falou.
— nenhuma granja durante esta caminhada de duas horas. as árvores
estão ficando esparsas e o chão pedregoso. estamos chegando às terras
devastadas entre deecee e caseyland. temos de ter mais cuidado que nunca
porque, provavelmente, estamos cercados de expedições guerreiras das duas
nações.
— que é que tem encontrarmos sua gente? — perguntou stagg. — são as
pessoas que procuramos, não são?
— podem atirar primeiro e conversar depois — disse mary, nervosa.
— está bem — respondeu stagg, asperamente. — gritaremos de longe
para eles. diga, mary, você tem certeza de que não serei tratado como um
deecee cativo? afinal de contas, este corno pode predispô-los contra mim.
— não depois de eu dizer que você salvou minha vida. e você não tem
culpa de ser um herói solar. É claro...
— É claro o quê?
— você vai ter de ser operado. não sei se minha gente tem uma técnica
cirúrgica bastante adiantada para remover seu corno sem matá-lo, mas é
preciso que você se arrisque. se não, será metido na cadeia. e você sabe que
isso o enlouquecerá. não é possível deixá-lo solto nessas condições. e,
naturalmente, nem penso em casar com você enquanto você exibir esse
corno. oh! e antes você também precisa se batizar na nossa religião. não
quero casar com um pagão. não poderia, nem que quisesse; nós matamos os
pagãos.
stagg não sabia se rugia de raiva, berrava de alegria ou chorava de
tristeza. assim, não revelou nenhuma emoção. em lugar disso, falou
francamente:
— não me lembro de ter pedido a você para casar comigo.
— oh, não precisa pedir! — replicou mary. — basta termos passado uma
noite juntos, sem companhia. na minha terra, isso quer dizer que um homem
e uma mulher têm de casar. esta é, freqüentemente, a única maneira de
anunciar um casamento.
— mas você não fez nada para justificar um casamento forçado —
respondeu stagg. — você continua virgem. isto é, até onde posso saber.
— continuo e muito! mas isso não quer dizer nada. ficou estabelecido
que um homem e uma mulher que passam a noite juntos podem sucumbir ao
apelo da carne por maior que seja a força de vontade. quer dizer, a menos
que sejam santos. e se são santos, não permitem que se produza uma situação
dessas.
— então por que, em nome do céu azul e de toda essa maluquice. você se
manteve tão obstinadamente na posição do mocinha direita? — gritou ele. —
se ia ter de acontecer, a gente podia fazer logo.
— porque não fui educada assim. porque — acrescentou, um tanto
pedante — não interessa como o povo pensa. o que a mãe vê é o que
interessa.
— Às vezes você é tão carola que me dá vontade de esganá-la! cá estava
eu sofrendo as piores agonias, como você nunca poderá imaginar, e você aí o
tempo todo podendo aliviar meu sofrimento sem nenhum problema moral...
ainda por cima passando por momentos só gozados por poucas mulheres!
— não precisa ficar zangado — disse mary. — afinal de contas as coisas
não se passaram como se tivessem acontecido na minha terra, onde
poderíamos ser mortos antes de casarmos. e então eu teria pecado. além
disso, você não pertence à categoria comum. tem esse corno. isso o coloca
numa categoria especial. tenho certeza de que será preciso um sacerdote
muito culto para examinar todas as implicações.
stagg tremeu de raiva e disse:
— ainda não chegamos a caseyland!
meio-dia. stagg comeu muito além da sua capacidade normal. mary nada
disse a respeito, mas ficou de olho nele. cada vez que o astronauta se
aproximava, ela recuava. arrumaram o saco e continuaram a andar. o
comandante estava, evidentemente, começando a sentir os resultados da
alimentação. a parte carnuda superior do chifre começou a aumentar e
enrijecer. seus olhos faiscaram e ele dava pulinhos no ar, grunhindo com
alegria contida.
mary começou a ficar para trás. stagg estava tão atacado pela onda de
desejo que se aproximava, que não reparou. quando ela ficou a cerca de vinte
jardas atrás dele, correu para as moitas. stagg ainda andou outras vinte jardas
antes de se virar e ver que ela desaparecera. aí deu um rugido e atirou-se em
sua perseguição pelo mato, perdendo todo o senso de cautela e gritando por
ela.
achou sinais de mary num monte de ervas esmagadas, seguiu-os até o
leito quase seco de um pequeno regato, atravessou-o e entrou num bosque de
carvalhos, onde perdeu suas pegadas. saindo pelo outro lado, viu-se numa
campina aberta.
viu-se, também, frente a frente com doze ou mais espadas, tendo o rosto
inflexível de um casey por trás de cada ponta em riste.
viu, mais afastada, uma moça de uns vinte anos.
a moça usava um vestido igual ao de mary quando ele a vira pela
primeira vez na jaula. era uma mascote. os homens usavam o uniforme de
perneiras vermelhas do time de baseball campeão de caseyland. mas havia
uma coisa incongruente na indumentária deles. em lugar dos capacetes
pontudos, usavam chapéus de plumas, como os dos almirantes.
mais atrás havia veados, dezenove para o primeiro time í os reservas, um
para a mascote e quatro para carregar o material e mantimentos.
o líder dos caseys, chamado "mighty", como todos os capitães caseys,
era um homem alto e sólido, com um comprido rosto magro, tendo uma das
bochechas inflada por um pedaço de fumo. riu brutalmente para stagg.
— então, velho cornudo! esperava encontrar carnes jovens, arredondadas
e macias? e em vez disso encontrou a dura e mordente lâmina de uma
espada! está desapontado, monstro? pois não fique. vamos oferecer-lhe o
abraço de uma mulher... mas seus braços são magros e ossudos, seus peitos
são flácidos e enrugados e seu hálito fede a túmulo.
— não seja tão melodramático assim, mighty — reclamou um dos
homens. — vamos enforcá-lo e cair fora. ainda temos um jogo a disputar em
poughkeepsie.
stagg soube então, o que eles estavam fazendo ali. não era uma
expedição guerreira e sim o clube que fora convidado a jogar em deecee.
como tal, deviam ter um salvo-conduto que os protegia de emboscadas.
além disso, o salvo-conduto continha a promessa de que os caseys não
molestariam nenhum deecee que encontrassem nas terras devastadas.
— não falemos de enforcamento — disse stagg a mighty. — de acordo
com as regras, vocês não podem fazer nada a um deecee, a menos que este
os ataque.
— É verdade — respondeu mighty. — mas acontece que sabemos, por
nossos espiões, quem você é. você não é natural de deecee; portanto, nosso
compromisso não o inclui.
— então, por que me enforcar? — perguntou stagg. — se não sou de
deecee, não sou inimigo de vocês. diga-me, não viu uma mulher correndo na
minha frente? chama-se mary casey. ela poderá lhe dizer que eu devo ser
tratado como amigo!
— a história de sempre — disse o homem que insistira em enforcar
stagg. — você é um desses homens cornudos possuídos pelo demônio! para
nós é o suficiente.
— cale a boca, lonzo! — gritou mighty. — quem manda aqui sou eu!
virou-se para stagg.
— gostaria de tê-lo liquidado antes de você abrir a boca. assim você não
seria um problema. mas agora quero saber mais sobre essa mary casey.
inesperadamente, perguntou:
— como é o sobrenome dela?
— de-viagem-para-o-paraíso.
— É, é o nome da minha prima. mas acho que o fato de você saber isso
não prova nada. mary foi arrastada, junto com
você, na grande marcha. temos um bom sistema de espionagem e
sabemos que você e ela desapareceram depois que as bichas atacaram vassar.
mas as feiticeiras arranjaram outro rei cornudo e depois mandaram
secretamente destacamentos armados procurar você.
— mary está por aqui, nestes matos — disse stagg. — ache-a e ela
confirmará que eu a estava ajudando a fugir para a terra dela.
— mas o que fez vocês se separarem? — perguntou mighty, desconfiado.
— por que você estava correndo?
stagg não respondeu. mighty continuou:
— já sei. basta olhar para você e qualquer pessoa saberá porque a estava
perseguindo. vou lhe dizer uma coisa, rei cornudo. vou lhe dar uma chance.
normalmente, eu o assaria primeiro em fogo brando, depois arrancaria seus
olhos e os empurrava por sua goela abaixo. mas temos de ir jogar e não
podemos perder tempo. por isso, vou lhe dar uma morte rápida. rapazes,
amarrem as mãos dele e o enforquem!
jogaram uma corda por cima de um ramo de carvalho e passaram um
laço no pescoço dele. dois homens lhe agarraram os braços, enquanto um
terceiro se preparava para o amarrar. stagg não resistiu, embora pudesse
atirá-los facilmente a distância.
o comandante disse:
— espere! desafio você para um jogo, de acordo com as regras do um
contra cinco e tomo deus por testemunha de quo o desafiei!
— o quê? — perguntou mighty, incrédulo, — pelo amor de columbus,
homem, já estamos atrasados! além disso, por que devemos aceitar esse
desafio? não sabemos se você é de nossa classe. somos todos diradah e o
desafio de um shet hed não pode ser aceito. de fato, é um absurdo pensar
nisso.
— não sou um shet hed — respondeu stagg, também usando a expressão
que servia para designar os camponeses. — já ouviu dizer alguma vez que
um herói solar tenha sido escolhido fora das fileiras aristocráticas?
— É verdade — disse mighty. cocou a cabeça.
— bom, vamos dar um jeito. talvez o jogo não demore muito. soltem-no,
rapazes.
nem por um instante passou-lhe pela cabeça ignorar o desafio de stagg e
enforcá-lo. tinha um código de honra e jamais pensaria em rompê-lo.
especialmente quando stagg o invocara em nome da sua deidade.
os caseys que deviam constituir os primeiros cinco, tiraram os chapéus
de almirante e colocaram na cabeça os capacetes pontudos. apanharam o
equipamento nos sacos pendentes dos lombos dos veados e começaram a
traçar um losango de baseball no prado ao lado. tiraram de um saco de couro
um espesso pó branco para marcar as linhas paralelas que iam de base a base
e de cada base para o lugar do batedor. desenharam um pequeno quadrado
em torno de cada base, uma vez que, peias regras do um contra cinco, stagg
podia ter de bater a bola de cada uma das bases no decorrer do jogo.
desenharam um quadrado maior para o arremessador.
— você topa que nossa mascote seja o juiz? — perguntou mighty. — ela
jurará em nome do pai, da mãe e do filho que não nos beneficiará. se ela não
agir direito, um raio a derrubará. pior que isso, ela ficará estéril.
— não tenho muita escolha — respondeu stagg, sopesando o bastão
recoberto de metal que lhe deram. — quando quiserem, estou à disposição
de vocês.
seu desejo de mulher havia desaparecido, sublimado na ânsia de
derramar o sangue daqueles homens.
a mascote, usando uma máscara de tela metálica e um grosso uniforme
acolchoado, caminhou, rebolando, para seu lugar atrás do pegador.
— bater!
stagg esperou pelo arremesso de mighty. este estava a apenas trinta e
nove metros de distância, segurando a dura bola de couro de quatro pontas
de aço. olhou para stagg, deu impulso ao braço e deixou a bola partir.
a bola, veloz como a bala de um canhão, seguiu em linha reta contra a
cabeça de stagg. ia tão rápida e com tanta precisão que parecia duvidoso que
um homem de reflexos normais pudesse se esquivar. stagg no entanto,
curvou os joelhos. a bola passou uma polegada acima de sua cabeça.
— primeira bola! — gritou a mascote, com voz clara.
o pegador não fez qualquer esforço para agarrar a bola. naquele jogo, sua
obrigação era correr atrás dela e devolvê-la ao arremessador. claro, ele
também defendia a base e procuraria pegar a bola com sua imensa luva
acolchoada, se stagg tentasse alguma vez atingir a base.
mighty casey girou novamente o braço e mirou o diafragma de stagg.
stagg bateu. o bastão produziu um som cavo, que contrastava
bizarramente com o fino estrépido esperado automaticamente por ele.
a bola desviou-se para a esquerda de stagg e rolou para fora do losango,
ultrapassando a linha penal.
— primeira batida!
o pegador devolveu a bola. mighty casey fingiu girar o braço e depois
arremessou repentinamente a bola, com um gesto suave.
stagg quase foi atingido. não teve tempo de se mexer e pôde mal e mal
estender o bastão. a bola bateu no lado do bastão e ficou pendurada durante
um momento, em virtude de uma das pontas ter-se enterrado no metal.
stagg correu na frente, agarrado ao seu bastão, pois as regras permitiam
isso se a bola batesse nele. mighty casey correu atrás dele, esperando que a
bola caísse na corrida. em caso contrário, se stagg chegasse à primeira base
com a bola em seu poder, se tornaria arremessador e mighty casey batedor.
na metade do caminho, a bola caiu.
stagg corria como o veado com quem se parecia, lançando-se de cabeça
para a frente e deslizando na grama até dentro da base. o bastão, que
conservava afastado dele, na ponta do braço estendido, atingiu o primeiro
guardião da base na canela, derrubando-o.
alguma coisa atingiu stagg nas costas. rosnou de dor quando sentiu a
ponta mergulhando em sua carne. mas levantou-se de um salto, alcançou a
ponta e a arrancou, pouco se incomodando com o jorro quente que lhe descia
pelas costas.
agora, de acordo com as regras, se tivesse sobrevivido ao impacto da
bola e tivesse força bastante, poderia atirá-la para o arremessador ou para o
primeiro guardião.
o primeiro guardião procurou se esquivar, mas estava tão machucado
pelo bastão de stagg que nem podia andar. teve de tirar seu bastão da bainha
que levava pendurada nas costas e ficou preparado para rebater a bola, se
stagg a atirasse nele.
stagg atirou e o primeiro guardião, com o rosto contorcido pela dor na
perna, golpeou a bola com violência.
ouviu-se um som surdo. o primeiro guardião balançou para a frente e
para trás e depois desabou, com a ponta enterrada na garganta.
stagg podia agora escolher entre permanecer a salvo na primeira base ou
ganhar a segunda. preferiu correr e novamente teve de deslizar de cabeça. o
segundo guardião, ao contrário do primeiro, ficou de lado. assim, a
velocidade de stagg era grande quando ultrapassou a base. imediatamente fez
meia-volta e rolou para tocar na segunda base.
houve um estalo quando a bola foi agarrada pela enorme e grossa luva
acolchoada do segundo guardião.
stagg estava — teoricamente — fora de perigo na segunda base. mas não
se acalmou por causa do olhar de fúria do segundo guardião. levantou-se de
um pulo, com o bastão pronto para bater na cabeça do sujeito se ele
esquecesse as regras o suficiente para tentar atingir stagg com a bola.
o segundo, vendo o bastão em riste, deixou a bola cair no chão. saía
sangue dos seus dedos, que ele devia ter cortado nas pontas, na ânsia de
arrancar a bola da luva.
foi pedido um intervalo, durante o qual o primeiro guardião, coberto por
um cobertor, foi objeto de algumas preces rápidas.
stagg pediu mais comida o água porque estava começando a desmaiar de
fome. tinha esse direito se o outro lado pedisse um intervalo.
comeu. assim que acabou, a mascote gritou:
— atirar bola!
stagg, agora parado dentro do exíguo quadrado existente em torno da
segunda base, era novamente o batedor. mighty girou o braço e arremessou.
stagg atingiu a bola pela esquerda, bem dentro da linha penal. começou a
correr mas, daquela vez, o camarada que substituiu o primeiro guardião
morto atirou-se sobre a bola assim que ela caiu e ficou espetada no chão.
stagg interrompeu a corrida por uma fração de segundo, não sabendo se
corria para a terceira base ou se voltava para a segunda.
o primeiro guardião arremessou a bola por baixo para mighty que,
naquele instante, estava agachado junto às linhas paralelas entre a segunda e
a terceira base, quase no caminho de stagg. a retaguarda deste ficaria
desprotegida se ele continuasse. stagg girou o corpo; seus pés descalços
escorregaram na grama e ele caiu de costas.
durante um terrível momento, stagg pensou que estava liquidado. mighty
estava muito perto e voltou-se para atingir seu alvo caído.
mas stagg agarrava o bastão. desesperadamente, levantou-» à sua frente.
a bola tocou o bastão de relance, arrancando-o da mão de stagg e fazendo-o
rolar até uma marca a alguns pés de distância.
stagg rugiu, triunfal, pulou sobre os pés e apanhou o bastão, que ficou
balançando precavidamente. a menos que fosse realmente atingido pela bola
entre bases, não poderia apanhá-la e arremessá-la contra seus oponentes.
nem poderia abandonar o terreno limitado pela linha branca para ameaçar
quem quer tentasse apanhá-la. todavia, se a bola caída no chão estivesse
bastante próxima, de maneira a que ele pudesse atingir com o bastão quem
procurasse agarrá-la, poderia fazê-lo.
a foz feminina do juiz fez-se ouvir, estridente, através do campo, quando
começou a contar até dez. o antagonista de stagg tinha dez segundos para
decidir se tentaria apanhar a bola ou deixaria o herói solar caminhar, livre,
para a terceira base.
— dez! — gritou a mascote e mighty afastou-se do bastão que stagg
balançava.
mighty arremessou novamente. stagg movimentou o bastão e errou.
mighty sorriu e atirou na direção da cabeça de stagg. este girou o bastão e
errou a bola, mas esta não o atingiu.
mighty riu com ferocidade porque, se stagg batesse, teria le atirar fora o
bastão e ficar imóvel enquanto mighty tentaria acertar a bola bem entre os
olhos dele.
todavia, se stagg conseguisse atingir a base, se tornaria arremessador.
continuaria a ficar em desvantagem porque não tinha companheiros para
ajudá-lo; mas, por outro lado, sua grande velocidade e vigor o
transformavam num time de um homem só.
houve um silêncio durante o qual só se ouviu o murmúrio ias preces dos
caseys. depois, mighty arremessou.
a bola voou direta na direção da barriga de stagg, permitindo-lhe
escolher entre tentar rebatê-la de leve ou então desviar-se para um lado,
mantendo os pés no exíguo quadrado. se desse um passo ou caísse fora dele,
tinha uma batida contra.
stagg preferiu desviar-se.
a bola passou por sua encolhida carne. tão perto que a extremidade de
uma das pontas fez-lhe um fino lanho. começou a pingar sangue do
estômago dele.
— primeira bola!
mighty arremessou na barriga outra vez. para stagg, a bola parecia
dilatar-se enormemente, grávida de destruição, um planeta contra o qual
estava caindo.
fez um violento movimento com o bastão, descrevendo um arco veloz,
paralelo ao chão. bateu na bola com a ponta do bastão, que caiu, quebrando-
se com o choque. a bola voou de volta para mighty.
o arremessado!' foi apanhado desprevenido. não podia acreditar que a
pesada bola voasse tanto. então, como stagg corresse para a base, mighty se
adiantou e apanhou a bola com a luva. ao mesmo tempo, os outros
jogadores, livres do paralisante espanto em que se encontravam, fizeram o
cerco para a matança.
dois homens se interpuseram entre stagg e a base, um de cada lado das
linhas brancas paralelas. ambos pediam que mighty lhes atirasse a bola. mas
este escolheu a honra de, ele mesmo, pegar stagg.
desesperadamente, stagg rebateu a bola com o cabo do bastão, a parte de
madeira separada da metálica. a bola não repicou, mas afundou no chão, a
seus pés.
um casey mergulhou sobre ela.
stagg esmigalhou o capacete e o crânio dentro dele.
os outros pararam de correr.
a mascote colocou as mãos sobre a máscara, protegendo os olhos da
visão do homem morto. mas logo depois deixou cair os braços c olhou,
suplicante, para mighty. este vacilou um momento, como se fosse dar o sinal
de atacar stagg e liquidá-lo, mandando as regras às favas.
depois, respirou fundo e gritou:
— está bem, katie, comece a contar. somos diradah. não trapaceamos.
— um! — disse a mascote, com voz trêmula.
os outros jogadores olhavam para mighty. este riu e disse:
— está bem. todos atrás de mim. tentarei primeiro. não peço a ninguém
que faça a minha obrigação.
um dos homens disse:
— podíamos deixá-lo ir embora.
— o quê? — gritou mighty. — e deixar cada capão, cada usador de
saiote, cada adorador de ídolos de deecee rir de nós? não! se devemos morrer
— e um dia isso acontecerá — morramos como homens!
— cinco! — gritou a mascote, com a voz soando como se tivesse o
coração partido.
— não temos chance! — rosnou um casey. — ele é duas vezes mais
rápido que qualquer de nós. seremos como carneiros no matadouro.
— não sou carneiro! — berrou mighty. — sou um casey! não tenho
medo de morrer. irei para o céu, enquanto esse cara será assado no inferno!
— sete!
— venham! — gritou stagg, sacudindo a metade quebrada do bastão. —
um passo à frente, senhores, e tentem a sorte!
— oito!
mighty agachou-se para dar o pulo, com os lábios fazendo uma prece
silenciosa.
— nove!
— parem!
dezesseis

MARY CASEY saiu correndo do mato, com as mãos levantadas em sinal de


protesto. atirou-se n s braços de mighty, beijando-o e chorando o tempo todo.
— oh, primo, primo, pensei que nunca mais veria você! — graças à mãe,
você está salva! — disse ele. — então era verdade o que este cornudo dizia,
hem? afastou mary e olhou-a cuidadosamente. — ou ele fez algum mal a
você?
— não, não! nem me tocou. foi sempre um verdadeiro diradah —
respondeu ela. — e não é devoto de colúmbia. ele jura por deus e pelo filho.
ouvi várias vezes! e você sabe que nenhum deecee faz isso.
— que pena não ter sabido antes! — comentou mighty. —- não teríamos
perdido dois homens à toa.
virou-se para stagg.
— se o que ela diz é verdade, amigo, não há mais motivo para
continuarmos o jogo. claro, se você insistir podemos continuar.
stagg atirou ao chão o pedaço de bastão e respondeu:
— meu objetivo era ir para caseyland e viver lá o resto da minha vida.
— chega de conversa! — disse mary. — temos de ir embora! depressa!
subi numa árvore para dar uma olhadela em volta e vi uma matilha de
mastins e um grupo de homens e mulheres montados em veados, seguindo a
matilha. e os porcos-mortais!
os caseys ficaram pálidos.
— porcos-mortais! — repetiu mighty. — alba está cavalgando! mas que
vem ela fazer aqui?
mary apontou para stagg.
— devem saber que ele está por estas bandas e devem ter farejado a pista
dele. vieram depressa demais para terem dúvidas.
— estamos num tremendo dilema — disse mighty. — ela não quererá
nos molestar porque temos o salvo-conduto. mas nunca se sabe, quando se
trata de alba. ela está acima dessas bobagens de tratados.
— É — disse mary — mas mesmo que não incomodem você, que
acontecerá com peter... e comigo? não estou incluída no salvo-conduto.
— posso dar a vocês dois um par de veados sobressalentes. vocês podem
fugir para o rio housatonic; depois de o atravessarem, estarão em segurança.
há um forte lá. mas até chegarem lá, alba ainda pode pegar vocês.
seu rosto se transformou numa máscara de intensa concentração. depois
disse:
— só há uma coisa decente a fazer. não podemos permitir que dois
crentes em deus caiam nas mãos infames de alba. especialmente quando um
deles é minha prima!
— então, amigos? — gritou. — que acham? desistimos do salvo-conduto
e lutamos em defesa destes dois? ou viramos galinhas diante do gavião e nos
escondemos no mato?
— vivemos como caseys e morreremos como caseys! — urrou o time
inteiro.
— então vamos lutar — disse mighty. — mas, primeiro, vamos correr.
vamos fazê-los suar para conseguir nos pegar.
nesse momento ouviram o ladrar dos mastins.
— montem! vamos embora!
mary e stagg desataram os fardos dos veados que lhes foram dados,
montaram nos lombos nus dos animais e pegaram as rédeas.
— vocês, mulheres, na frente — disse stagg. — nós iremos um pouco
atrás.
mary olhou, aflita, para stagg.
— se ele ficar para trás, ficarei com ele.
— não podemos discutir — respondeu mighty. — cavalgaremos juntos.
lançaram-se a galope pela trilha sinuosa e acidentada. os latidos
aumentaram atrás deles, quando os mastins sentiram o cheiro de muitos
homens e veados. os fugitivos mal tinham deixado o prado quando o
primeiro mastim pulou do mato. stagg, olhando para trás, viu um enorme
cão, uma mistura de galgo com lobo. seu corpo era branco como neve e suas
orelhas lupinas eram ruivas. surgiu logo em seguida uma matilha de mais de
vinte idênticos a ele.
stagg ficou muito ocupado em guiar seu veado pela trilha acidentada, no
momento seguinte, para atirar novos olhares para trás. não precisou incitar o
apavorado animal a correr.
após meio quilômetro de corrida daqueles cascos voadores, stagg deu
outra rápida olhada para trás. viu, então, cerca de vinte veados e cavaleiros.
à frente deles, cavalgando um macho branco com chifres pintados de
escarlate, ia uma velha que usava apenas um chapéu preto, alto e cônico, e
uma cobra viva enrolada no pescoço. seus longos cabelos brancos pendiam
para trás e seus flácidos e pendurados peitos pulavam ao menor movimento
do animal em que ela estava montada.
a velha era capaz de assustar qualquer homem. lado a lado com os
cavaleiros, correndo tão velozmente quanto os veados, seguia uma vara de
porcos. eram animais altos, de pernas longas, esguios, feitos para correr.
pretos, de presas compridas pintadas de escarlate, guinchavam
pavorosamente enquanto corriam.
stagg havia apenas virado a cabeça, quando ouviu um barulho e um
veado berrando de dor à sua frente.
olhou. havia dois veados caídos e, ao lado deles, seus montadores. não
podia ser pior. o veado da mascote pisara mim buraco c caíra.
mary, que estava logo atrás dela, não foi capaz de se desviar com
bastante rapidez.
stagg puxou as rédeas do seu veado e saltou.
— você está bem? — gritou para a moça.
— apenas um susto — respondeu mary. — mas acho que o veado de
katie quebrou uma pata. e o meu disparou para o mato.
— monte na garupa do meu — disse ele. — um dos outros levará katie.
mighty levantou-se do lado de katie, caminhou para stagg e disse:
— ela não pode mexer as pernas. acho que partiu a espinha.
katie deve ter ouvido a conversa. começou a gritar:
— me matem, por favor! não quero cometer o pecado de me matar! mas
se vocês me matarem, garanto que serão perdoados. mesmo a mãe não
quererá que eu caia nas mãos de alba!
— ninguém vai matar você, katie — assegurou mighty.
— não, enquanto houver um de nós vivo para defender você.
berrou ordens e o resto dos caseys desmontou.
— formar duas linhas. os cães deverão atacar primeiro; vamos usar as
espadas contra eles. depois pequem as lanças porque ou os porcos ou a
cavalaria farão uma carga em seguida.
seus homens mal tiveram tempo de se enfileirar na frente das duas
mulheres quando os mastins chegaram. eram animais brutais, treinados para
matar. rosnando, saltaram à garganta dos defensores.
houve uma momentânea confusão quando os cães caíram sobre alguns
dos homens. mas, em dois minutos, a despeito da rosnadura, gritaria,
ganidos, berraria, estava tudo acabado. quatro cães mortalmente feridos,
entraram mancando no bosque pra morrer. o resto estava morto, com as
cabeças meio esborrachadas ou as pernas decepadas.
um casey estava caído de costas, com os olhos esbugalhados e a garganta
estraçalhada. cinco haviam sido bastante mordidos em vários lugares, mas
ainda podiam manejar as espadas.
— aí vêm os outros! — gritou mighty. — refaçam as linhas e estejam
prontos a usar as lanças!
os deecees estavam controlados. a megera de cabelos brancos fez
evoluções com sua montaria na frente deles, gritando com voz estridente:
— homens de caseyland! não queremos vocês! entreguem o rei cornudo
e todos vocês, mesmo essa moça que era nossa prisioneira, poderão voltar a
salvo para sua terra. se não, soltarei meus porcos-mortais em cima de
vocês... e morrerão todos!
— vá se encher! — gritou mighty. — só mesmo você terá estômago para
isso, sua cabra velha e fedorenta!
alba guinchou de raiva. virou-se para seus sacerdotes e sacerdotisas e
acenou com a mão.
eles retiraram os açaimos dos grandes animais.
— usem suas lanças como se estivessem caçando javalis! — gritou
mighty. — vocês vêm caçando porcos selvagens desde que tiveram idade
bastante para empunhar uma lança! não fiquem em pânico!
virando-se para stagg, disse:
— use sua espada. vi você lutar com os cães. você é mais rápido e mais
forte que nós... rápido bastante para manejar uma espada contra um animal
de grandes presas... muito bem, homens, firmes! aí vêm eles!
mighty mergulhou a espada no pescoço de um enorme varrão. este
desabou no chão; uma porca imensa atacou mighty por detrás. stagg pulou
por cima da carcaça do varrão morto e deu uma chanfalhada com tanta força
que cortou a espinha da porca logo abaixo do toutiço.
repetiu a façanha com outra porca que derrubara um homem e estava
estraçalhando as pernas dele com os dentes.
ouviu mary gritar e viu que ela estava mantendo na ponta da sua lança a
cabeça trespassada de um varrão. este não estava muito ferido, mas furioso e
tentando atingir mary. ela se firmou no cabo da lança e começou a andar
num círculo, tendo o varrão como centro.
stagg gritou e pulou. aterrissou de pé nas costas do porco e suas pernas
dobraram com a batida. stagg rolou para o chão. o varrão voltou a ficar sobre
os cascos com a velocidade do raio e virou-se para o comandante. este deu
uma estocada; a lâmina penetrou na boca do animal e foi até a garganta.
stagg levantou-se, procurando ver se mary, apesar de apavorada, estava
ferida. depois viu que um porco havia apanhado katie. o casey que a
defendera também estava caído, gritando, porque suas pernas tinham sido
dilaceradas e suas costelas estavam à mostra.
stagg chegou tarde para ajudar katie. enquanto ele decepava uma perna
traseira do porco e seccionava sua jugular, katie morria.
fez um rápido exame da situação.
era má. os dezesseis caseys que ficaram vivos, depois do ataque dos
cães, haviam sido reduzidos a dez pelos porcos. e dos dez, só cinco estavam
de pé.
stagg ajudou os caseys a liquidar mais três porcos. os remanescentes dos
vinte animais iniciais, quatro feridos, fugiram para o mato, guinchando.
mighty estava ofegante.
— alba vai atacar agora e faremos o que pudermos. mas quero lhe dizer,
stagg, que esta luta vai ser cantada durante muito tempo nos salões de
caseyland!
— eles não apanharão mary! — gritou stagg.
seus olhos estavam desvairados, seu rosto sem expressão humana. estava
possuído... mas queria sangue e não mulheres.
voltou-se para as hostes de alba. estavam dispostas em filas de cinco
pessoas, com as longas lanças refulgindo ao sol.
— alba! — berrou stagg, correndo para ela.
a princípio, a bruxa não o viu; mas quando seus partidários a avisaram,
ela movimentou o macho branco para enfrentar stagg.
— vou matá-la, sua puta velha sanguinária! — gritou ele. começou a
voltear a espada sobre a cabeça.
— vou matar vocês todos!
então aconteceu uma coisa estranha.
os sacerdotes e sacerdotisas haviam sido condicionados desde a infância
para olhar o herói solar como um semideus. agora estavam numa situação
anômala e incômoda. estavam sendo guiados pela deusa-morte, que era
invencível. mas também estavam sendo chamados a combater um homem a
quem sua religião considerava igualmente invencível. cada lenda sobre o
herói solar enfatizava seu inevitável triunfo sobre os inimigos. uma das
lendas chegava até a contar sua vitória sobre a morte.
além disso, eles haviam presenciado o herói solar massacrar os mastins e
porcos-mortais, animais sagrados de alba, e haviam visto sua sobre-humana
velocidade e sua terrível habilidade de esgrimista. por isso, quando a
encarnação da deusa-morte ordenou-lhes pegar lanças e atacar o rei cornudo,
eles vacilaram.
sua hesitação durou apenas uns poucos segundos, mas foi o suficiente
para stagg atacar alba.
acutilou a lança dela junta à ponta de metal, fazendo com que esta
tombasse. no mesmo tempo, o veado montado por alba empinou.
ela deu uma cambalhota.
alba caiu sobre os pés, como os gatos. por um momento, teve a
oportunidade de se juntar aos seus partidários, pois seu veado estava entre
ela e stagg.
stagg atacou o animal, que fugiu a galope.
durante um segundo, o capitão fixou nela seus olhos azul-claros. viu uma
mulher velha, muito velha, alta e curvada. parecia ter duzentos anos, de tal
maneira seu rosto estava cheio de marcas, rugas e cicatrizes. finos e longos
fios brancos surgiam do seu queixo e outros fios de cabelo formavam uma
espécie de película leitosa sobre seu lábio superior. seus olhos pareciam ter
visto gerações de homens chegarem e partirem e sua fisionomia pétrea fazia
prever que ela ainda veria muitas mais. ela era a própria morte!
stagg ficou gelado, como se estivesse encarando a inevitável destruidora.
a víbora enrolada no pescoço dela, sibilando e se contorcendo,
acrescentava a nota extra de fatalidade.
stagg se libertou ao lembrar que ela era, no fim de contas apenas
humana. então atacou.
nunca chegou a tocá-la.
o rosto de megera se contorceu de dor, ela cravou as unhas no peito e
caiu, mortalmente atingida por um ataque cardíaco.
houve pânico entre seus seguidores, pânico do qual stagg tirou partido.
correndo para o meio deles, espaldeirou à esquerda e à direita. estava
furioso, pouco se incomodando com os ferimentos causados nele pela ponta
das lanças ou pelos sabres dos deecees.
atacou indiferentemente cavaleiros e montarias. os veados empinavam,
atirando homens e mulheres ao chão, e stagg os liquidava antes que
pudessem se levantar.
durante um certo tempo, pareceu que ele havia derrotado o bando todo.
devia ter matado e ferido pelo menos seis cavaleiros e derrubado e abatido
mais quatro. então uma cavaleira, que se mantivera calma, impeliu sua
montada para a frente. galopou diretamente sobre stagg, que ergueu os olhos
exatamente a tempo de vê-la inclinar-se para ele.
viu o rosto encantador de virgínia, a ex-virgem-chefe de washington, a
mulher de longos cabelos cor de mel, de nariz como o de um delicado
gavião, de lábios vermelhos como sangue e seios empinados. seu peito,
naquele instante, estava coberto porque tinha a barriga intumescida por um
filho. restava-lhe, apenas, quatro meses para a criança nascer... e ainda
continuava a montar veados.
stagg levantou a espada para matá-la.
nesse instante a reconheceu... e compreendeu que o filho que ela
carregava no ventre era o dele. ficou imóvel.
para ela foi o bastante. com o belo rosto frio e inexpressivo,
desembainhou sua arma, um sabre leve de lâmina afiada. o gume zuniu no ar
e bateu violentamente no chifre dele.
e esse foi o fim de peter stagg.
dezessete

o PLANO necessitou de meses de cuidadosa preparação.


em primeiro lugar, espiões, disfarçados de deecees de várias classes,
vaguearam por washington. investigaram cada fonte capaz de informar sobre
o equipamento deixado na terra. também utilizaram seus vários recursos
para descobrir o que acontecera ao herói solar. durante as investigações,
descobriram que o doutor calthorp estava de volta a washington.
não demorou muito a entrarem em contato com ele e, alguns dias depois,
o médico descia o potomac de barco até a baía de chesapeake e depois até o
oceano, onde um brigue kareliano o apanhou e levou para o porto de aino.
foi um encontro alegre, o dele com churchill e os outros, só empanado
pela notícia da morte de sarvant e gbwe-hun, e das dúvidas sobre o paradeiro
de stagg.
churchill contou-lhe o acordo que fizera com os karelianos. calthorp riu e
achou que poderia dar resultado. e se não desse, pelo menos haviam tentado.
o próprio doutor era a fonte de informação mais proveitosa a respeito das
condições da terra. sabia exatamente o que iriam encontrar nela e o que
precisavam ter em outros lugares.
finalmente, ficaram prontos.
saíram de aino levando o capitão kirsti ainundila e três karelianos para
cada tripulante da terra. os karelianos estavam armados de facas, que
usariam ao primeiro movimento suspeito dos astronautas.
partiram num veloz bergantim, seguido por uma enorme frota. esta era
composta de barcos manobrados por karelianos nativos das colônias ao sul
de deecee e das situadas nas antigas labrador e nova escócia.
o bergantim arriou velas corajosamente na baía de chesapeake e
desembarcou um pequeno destacamento de invasores num bote à vela na foz
do potomac. disfarçado em pesqueiro de deecee, o veleiro atracou de noite
num cais perto de washington.
À meia-noite, o destacamento atacou o edifício onde as armas da terra
estavam guardadas.
os poucos guardas foram postos fora de ação silenciosamente, com as
gargantas cortadas. arrebentaram o arsenal e os astronautas apanharam os
rifles automáticos, passando as outras armas aos karelianos. estes nunca
haviam manejado aquelas armas, mas haviam treinado, em aino, com
modelos feitos por churchill.
churchill também equipou os homens das estrelas com granadas de
hélice.
caminharam sem obstáculos até o grande estádio de baseball, agora
transformado em santuário dedicado ao herói solar. dentro, a terra,
continuava apontando o nariz para as estrelas que ela deixara.
o grupo foi interpelado pelas sentinelas; houve luta... ou, melhor,
matança. trinta arqueiros foram mortos pelos rifles automáticos e outros
quarenta gravemente feridos. os invasores, sem um arranhão, arrombaram o
portão do estádio.
a astronave fora desenhada de maneira a permitir que um só homem
pudesse manobrá-la. churchill sentou na cadeira do piloto, com kirsti e dois
karelianos a seu lado, de facas nas mãos.
— vocês verão do que esta nave é capaz — disse churchill. — pode
destruir washington apenas largando seu peso sobre os edifícios. a frota
kareliana não terá a menor dificuldade em saquear a cidade. e podemos voar
para camden, baltimore e nova york, repetindo a mesma coisa. se não
tivéssemos deixado os deecees agirem primeiro, nunca teríamos sido
capturados. mas fomos naquela conversa mole de sair da nave, depois que
eles fizeram stagg rei.
testou os controles, verificou os registros e viu que tudo funcionava.
fechou a abertura central e olhou para o relógio do painel.
— É tempo de entrar em ação — disse, alto.
essa frase era uma ordem em código para que cada astronauta prendesse
a respiração.
churchill apertou um botão. sessenta segundos depois, os karelianos
jaziam desmaiados. churchill apertou outro botão e o ar vindo do exterior
varreu o gás.
eles já haviam usado aquele truque para se livrarem dos aviântropos do
planeta vixa, quando se encontravam numa situação semelhante.
— devemos colocá-los em congelamento profundo? — perguntou
steinborg.
— É o jeito — respondeu churchill. — mais tarde os desembarcaremos.
se os levarmos para voga ii, podem nos matar.
segurou os comandos, puxou uma alavanca para baixo e a tora se ergueu,
arrebatada por seus antigravs, que sustinham com facilidade suas cinqüenta
mil toneladas.
— por causa da resistência atmosférica — disse churchill — vamos levar
quase quinze minutos até aino. lá pegaremos minha mulher e as de vocês... e
então, rumo a poughkeepsie!
as mulheres a que ele se referia eram as karelianas com quem
yastzhembski e al-masyuni haviam casado durante a estada em aino.
— elas não sabem de nada. que farão quando estiverem a bordo?
— dêem-lhes gás e depois as ponham em congelamento profundo —
disse churchill. — É um truque sujo, mas não podemos perder tempo
discutindo com elas.
— não quero nem pensar no que elas vão dizer quando forem
descongeladas em vega.
— não vão poder fazer muita coisa — respondeu churchill.
mas franziu a testa, pensando na língua acerada de robin.
todavia, pelo menos por enquanto, não havia problemas. robin e as duas
outras mulheres foram postas a bordo e a astronave decolou. os karelianos
que ficaram no solo descobriram o seqüestro muito tarde e começaram a
berrar inofensivos insultos contra eles, insultos, aliás, que os astronautas não
podiam ouvir. o gás foi novamente espalhado. as mulheres foram levadas
para os tanques.
a caminho de poughkeepsie, churchill disse a calthorp:
— segundo o que os espiões nos informaram, stagg foi visto, há alguns
dias, numa aldeia da margem leste do hudson. isso significa que ele escapou
dos pants-elfs. não sei onde estará agora.
— deve estar tentando ir para caseyland — respondeu calthorp. — mas
isso é como pular do fogo para a frigideira. o que eu não entendo é onde
arranjou a força de vontade que o impediu de voltar para a grande marcha.
aquele homem está possuído por alguma coisa à qual ninguém pode dizer
não.
— vamos pousar fora de poughkeepsie — disse churchill. — perto de
vassar. há, lá, um grande asilo para órfãos, dirigido por sacerdotisas. os
órfãos ficam naquele asilo até encontrarem famílias que os adotem.
apanharemos os menorzinhos c os congelaremos. e seqüestraremos uma
sacerdotisa, a hipnotizaremos e faremos com que nos diga o que sabe sobre o
paradeiro de stagg.
pairaram, naquela noite, sobre o asilo. havia um vento suave e a nave
ficou girando um pouco antes de soltar o anestésico.
a instalação das sessenta crianças adormecidas no congelador levou uma
hora. depois, acordaram a diretora do asilo, uma sacerdotisa de cerca de
cinqüenta anos de idade.
não se deram ao trabalho de tentar fazê-la falar voluntariamente.
injetaram-lhe uma droga. dentro de poucos minutos, souberam que alba e seu
grupo de caça haviam deixado poughkeepsie na noite anterior, nas pegadas
de stagg.
levaram-na de volta para a casa e a colocaram na cama.
— quando amanhecer — disse churchill — voaremos pelos locais onde
ele talvez esteja. podemos usar luz negra, mas nossas chances de encontrar
alguém que esteja escondido sob as árvores são bem remotas.
a astronave levantou vôo, logo depois da aurora, do pequeno vale onde
se escondera. navegou a uma altura de trinta metros do solo, na direção leste.
quando atingiram o rio housatonic, churchill guinou para oeste. calculou que
stagg poderia não ter ainda atingido o rio e continuaria em algum lugar das
terras devastadas.
na volta, foram retardados uma dezena de vezes porque viram gente nos
bosques e desceram para investigar. numa das vezes, um homem e uma
mulher desapareceram numa caverna e os astronautas foram atrás deles, para
os interrogar. custaram muito a tirá-los dos túneis sinuosos, que pertenciam a
uma mina abandonada. quando conseguiram interrogá-los e descobriram que
eles nada sabiam sobre o paradeiro de stagg, haviam perdido muito tempo.
tornando a atingir o hudson, a astronave se dirigiu, du-
rante algumas milhas, para o norte, depois, começou sua ronda para
leste.
— se stagg vir a terra, sairá do esconderijo — disse calthorp.
— vamos subir mais alguns metros e aumentar a potência do visor —
disse churchill. — temos de achá-lo!
estavam a cerca de cinco quilômetros do rio housatonic quando viram
um grupo de pessoas, montando veados, galopando desordenadamente por
uma trilha. desceram mais, vendo uma figura solitária a pé, puxando um
veado, mais ou menos a um quilômetro de distância dos outros, decidiram
interrogar o desgarrado.
era virgínia, a ex-chefe das sacerdotisas-donzelas de washington. grávida
de uma criança, incapaz de agüentar mais tempo a cavalgada, teve de
desmontar. tentou fugir para o mato, mas a nave despejou uma nuvem de gás
em torno dela e a ex-donzela desmaiou. acordada logo depois por uma
injeção de antídoto, mostrou-se bastante disposta a falar.
— sim, eu sei onde o pseudo herói solar está — disse ela, com ar
maligno. — jaz na estrada a uns dois quilômetros e meio daqui. mas não
precisam se apressar. ele esperará por vocês. está morto.
— morto! — disse churchill, ofegante.
churchill pensou: tão perto do sucesso. meia hora mais cedo e
poderíamos tê-lo salvo!
— sim, morto! — cuspiu virgínia. — eu o matei. decepei seu chifre
restante e ele se esvaiu em sangue. e estou contente! não era um verdadeiro
herói solar. era um traidor e hereje e matou alba.
olhou, suplicante, para churchill e disse:
— dê-me uma faca, para que eu possa me matar. eu tinha orgulho, antes,
porque carregava o filho do herói solar. mas não quero o rebento de um falso
deus! e não quero ter a vergonha de carregá-lo.
— você quer dizer que, se nós a deixarmos ir, você se matará e também à
criança por nascer?
— juro pelo sagrado nome de colúmbia que farei isso!
churchill fez um sinal de cabeça para calthorp, que encostou a seringa no
braço dela e apertou o embolo. o corpo dela recebeu uma carga de
anestésico. ela adormeceu e os dois homens a levaram para o tanque de
congelamento profundo.
— claro que não podemos deixá-la matar o filho de stagg — disse
calthorp. — se ele morreu, o filho deve viver.
— se eu fosse você, não me preocuparia muito com a descendência de
stagg. — disse churchill.
não deu maiores explicações, mas pensou em robin, congelada no
tanque. em mais ou menos cinqüenta anos, ela daria à luz o filho de stagg.
ora, ele nada podia fazer para modificar a situação, por isso deixou de
pensar no assunto. o problema imediato era stagg.
ergueu a nave e a dirigiu diretamente para leste. embaixo, a estrada era
uma fina linha curva marrom, orlada de verde. circundou uma pequena
montanha, uma colina e depois outra; então apareceu o campo de batalha.
corpos de cães, veados e porcos. e só algumas formas humanas. onde
estavam os inúmeros mortos?
a nave tocou o solo, ocupou a estrada e esmagou várias árvores de ambos
os lados. os homens, armados de rifles, saltaram pela abertura principal e
examinaram o local. steinborg ficou atrás da cadeira do piloto.
— acho — disse churchill — que os caseys mortos devem ter sido
retirados da estrada e levados para o mato. provavelmente, foram enterrados.
você pode ver que todos os corpos que estão aqui, usam roupas deecees.
— talvez tenham enterrado stagg — disse calthorp.
— espero que não — respondeu churchill.
estava triste porque seu comandante, que o guiara com sucesso através
de inúmeros perigos, havia morrido. mas viu logo a razão pela qual não
podia chorá-lo muito. se stagg estivesse vivo, que complicações iriam surgir
quando chegassem a vega? stagg em nada iria ajudar, se se interessasse pelo
filho de robin. cada vez que churchill acarinhasse ou punisse o menino, stagg
iria querer interferir. e ele, churchill, iria ficar pensando se robin ainda
olharia stagg como mais que humano.
que aconteceria, se ela quisesse manter viva sua religião?
os homens se separaram, procurando o local do túmulo.
imediatamente soou um apito. não podia ser ouvido pelos caseys porque
fora emitido num tom muito agudo. os astronautas usavam num dos ouvidos
um dispositivo, que baixava a freqüência do apito a um nível audível, sem
atrapalhar os sons normais.
furtivamente, correram rapidamente para o local do chamado e se
reuniram a al-masyuni, que havia apitado. lá, no meio das árvores, viram o
que mais temiam: uma moça e quatro homens nivelando a terra do que era,
indubitavelmente, um túmulo coletivo.
churchill saiu de entre as árvores e disse:
— não se assustem. somos amigos de stagg.
os caseys estavam tensos mas, ouvindo churchill repetir a declaração
tranqüilizadora, se acalmaram. não obstante, continuaram segurando as
armas.
churchill deu alguns passos, parou e explicou quem ele era e por que
estava ali.
os olhos da moça estavam orlados de vermelho e seu rosto riscado de
lágrimas. depois de ouvir churchill fazer perguntas sobre stagg, recomeçou a
chorar convulsivamente.
— ele está morto! — soluçou. — se ao menos vocês tivessem chegado
mais cedo!
— há quanto tempo está morto? um dos caseys olhou para o sol.
— há cerca de meia hora. sangrou muito durante um tempo enorme e
não fugiu da luta.
— atenção, steinborg! — disse churchill no transmissor-receptor portátil.
— traga a nave para cá e mande um par de pás mecânicas. temos de
desenterrar stagg depressa. calthorp, você acha que ainda há uma chance?
— de o ressurcitarmos? uma boa chance. de ele não ter o cérebro
danificado? nenhuma. mas poderemos reconstituir o tecido e ver o que
acontece.
não disseram aos caseys qual o verdadeiro motivo de quererem exumar
stagg. sabiam que mary o amava e não queriam despertar falsas esperanças.
disseram-lhe que queriam levar o comandante de volta para as estrelas, onde
ele gostaria de ser enterrado.
os outros cadáveres foram deixados no túmulo; estavam muito
destroçados e tinham morrido fazia muito tempo.
dentro da nave, calthorp, orientando o delicado cirurgião-robô, tirou fora
a base óssea dos chifres e removeu a parte superior do crânio de stagg.
seu peito foi mantido aberto, com eletrodos implantados no coração, o
mesmo acontecendo com o cérebro. um aparelho de bombear o sangue foi
ligado ao seu sistema circulatório. depois, o corpo foi erguido pela máquina
e colocado num tanque de ressurreição.
o tanque foi enchido de biogel, um fluido que alimentava as células que
fervilhavam nele. havia duas espécies de células. uma, que comia as células
afetadas ou em decomposição do cadáver. e a outra, nascida de células
provindas do próprio corpo de stagg. estas se expandiam e se ligavam às
matrizes, substituindo as que tinham sido expulsas do corpo.
o coração de stagg começou a bater sob o estímulo elétrico. a
temperatura começou a subir. gradualmente, a cor acinzentada da pele foi
sendo substituída por um róseo saudável.
passaram-se cinco horas enquanto o biogel fazia seu trabalho. calthorp
examinou pela milésima vez os medidores e as ondas dos osciloscópios.
finalmente disse:
— não é preciso mantê-lo mais aí.
girou um dial no painel de instrumentos do cirurgião-robô e stagg foi
tirado lentamente do tanque.
a máquina o colocou numa mesa, onde o lavou completamente e lhe
retirou as agulhas do coração e do cérebro. depois fechou o peito de stagg e
colocou-lhe um crânio de metal, que recobriu com o couro cabeludo e
suturou.
a partir daí, os homens se ocuparam dele. levaram stagg para a cama.
adormeceu como uma criança recém-nascida.
churchill voltou para junto dos caseys e ficou esperando. os nativos
haviam recusado entrar na nave porque estavam cheios de medo e respeito
supersticiosos.
os homens falavam em voz baixa. mary casey estava arrasada, encostada
ao tronco de uma árvore, com a máscara grega da tragédia estampada no
rosto.
ouvindo churchill se aproximar, levantou a cabeça e disse, sem emoção:
— podemos ir embora? quero voltar para o meu povo.
— mary — respondeu churchill — você pode ir para onde quiser. mas,
primeiro, preciso lhe dizer por que pedi que esperasse este tempo todo.
mary ouviu seus planos de irem para marte apanhar ou fabricar
combustível e depois seguirem para vega ii e lá se instalarem. a moça
perdeu, a princípio, um pouco daquele ar pesaroso mas, logo depois, tornou
a afundar na apatia.
— fico contente de saber que vocês têm um objetivo — disse ela. —
apesar de que, de certa maneira, isso soe a blasfêmia. todavia, não tenho
nada com isso. por que está me dizendo estas coisas?
— mary, quando deixamos a terra, em 2050 a.d., era comum trazer as
pessoas de volta da morte. não era magia-
negra nem feitiçaria, mas utilização de conhecimentos que permitiam...
ela deu um pulo, ficou de pé e pegou as mãos dele.
— quer dizer que vocês fizeram peter viver outra vez? —. fizemos —
respondeu. — ele agora está dormindo.
só...
— só o quê?
— quando um homem ficou morto durante o tempo em que ele ficou,
sofre uma certa quantidade de desarranjos cerebrais inevitáveis.
normalmente, podem ser curados. mas, às vezes, o homem fica idiota.
ela perdeu o sorriso.
— quer dizer que só vamos saber amanhã de manhã? por que esperou até
agora para me dizer?
— porque você teria voltado para sua terra se eu não lhe dissesse. e tem
mais. todos os homens a bordo da terra sabem o que pode lhes acontecer se
morrerem e ressuscitarem. todos nós, menos sarvant, concordamos em ser
mortos novamente se sairmos idiotas dos tanques de ressuscitar. ninguém
quer viver sem mente.
— matá-lo seria um pecado terrível! — disse ela. — seria assassinato!
— não quero perder tempo discutindo com você — respondeu ele. — só
quero que saiba o que poderá acontecer. todavia, se isso puder animar você,
posso dizer que, quando estivemos no planeta vixa, al-masyuni foi morto.
uma planta venenosa, que expelia dardos por um sistema de ar comprimido,
atingiu-o duas vezes. morreu imediatamente e então a planta se abriu e cerca
de vinte insetos semelhantes a centopéias correram para fora. eram enormes
para se tratar de insetos, com dois pés de comprimento e armados de grandes
pinças. pareciam ter a intenção de arrastar o corpo de al-masyuni para dentro
da planta, onde todos — inclusive o vegetal — podiam participar do
banquete.
"ficamos fora do alcance dos dardos e liquidamos os insetos a tiros de
rifle e a planta com granadas. aí levamos o corpo de al-masyuni para a nave
e o revivemos, depois de termos extraído o alcalóide do corpo dele. al não
teve nenhum problema físico ou mental em conseqüência da morte. mas o
caso de stagg é um tanto diferente."
— posso vê-lo, amanhã de manhã? — perguntou mary.
— pode, qualquer que seja o resultado do trabalho.
a noite chegou lentamente. nem os astronautas nem mary dormiram,
embora os caseys se tivessem espalhado pelo bosque, onde roncaram
sensualmente. alguns da tripulação perguntaram a churchill por que não
prosseguiam com os planos enquanto esperavam que stagg acordasse.
poderiam lançar gás em uma ou duas aldeias, colocar mais crianças e
mulheres no congelador profundo e partir para marte.
— por causa dessa moça — disse churchill. — stagg poderá querer levá-
la conosco.
— por que não a pomos simplesmente no tanque, também? — perguntou
yastzhembski. este é um comportamento muito esquisito, não é? temos a
maior cerimônia com os sentimentos dela, mas seqüestramos calmamente
dúzias de crianças e mulheres!
— essas não são nossas conhecidas. e estamos fazendo um favor às
crianças e mulheres pants-elfs, livrando-as deste mundo selvagem. a moça,
porém, nós conhecemos e sabemos que ela e stagg poderão se casar. vamos
esperar e ver o que stagg tem a dizer a esse respeito.
finalmente amanheceu. os homens comeram e realizaram algumas
tarefas até que calthorp os chamou.
— chegou a hora — disse ele.
encheu uma seringa hipodérmica, mergulhou-a no grande bíceps de
stagg, limpou a invisível picada e depois saiu.
churchill procurou mary casey e disse-lhe que stagg acordaria logo. o
fato de ela ter vencido o medo e entrado na nave dava uma idéia do seu amor
a stagg. não olhou para os lados quando foi levada pelos corredores que, para
ela, estavam cheios de truques fantásticos e diabólicos. mantinha a cabeça
firme, com os olhos pregados nas largas costas de churchill.
quando chegou ao lado de stagg, começou a chorar.
stagg resmungou qualquer coisa. suas pálpebras se agitaram e tornaram a
ficar imóveis.
sua respiração começou a se tornar mais profunda.
calthorp disse, alto:
— acorda, pete!
e bateu de leve no rosto do comandante.
stagg descerrou as pálpebras. olhou em volta, para calthorp, churchill,
steinborg, al-masyuni, lin, yastzhembski e chandra, e pareceu confuso.
quando viu mary casey, ficou espantado.
— que diabo aconteceu? — perguntou, tentando rugir, mas só
conseguindo grasnar. — eu desmaiei? estamos na terra? devemos estar. se
não, esta mulher não estaria a bordo. a menos que vocês, dons juans, a
tivessem mantido como clandestina o tempo todo.
churchill foi o primeiro a perceber o que acontecera com stagg.
— comandante — perguntou — qual é a última coisa de que você se
lembra?
— de que eu me lembro? ora, você sabe a ordem que eu dei, logo antes
de desmaiar! pousar na terra, é claro!
mary casey ficou histérica. churchill e calthorp a retiraram da cabina e
calthorp deu-lhe um sedativo. ela adormeceu em dois minutos. depois
calthorp e o primeiro-imediato foram para a sala de comando.
— É. muito cedo para afirmar — disse calthorp — mas não acho que ele
tenha sofrido qualquer perda de q. i. stagg não ficou idiota; mas a parte do
seu cérebro que acondiciona a memória dos últimos cinco meses e meio, foi
destruída. o cérebro foi reconstituído e está tão bom quanto antes, mas a
memória se foi. para ele, acabamos de voltar de vixa e estamos nos
preparando para pousar na terra.
— acho que você tem razão — disse churchill. — e agora, que vamos
fazer com mary casey?
— explicar-lhe a situação e deixar que ela decida como quiser. ela pode
querer fazer com que ele se apaixone por ela.
— devemos contar-lhe a respeito de virgínia. e de robin. mary pode não
gostar da história, quando souber, mais tarde.
— então é melhor dizer logo — respondeu calthorp. — vou dar-lhe uma
injeção para que acorde. depois contarei tudo a ela. mary poderá mudar de
idéia agora. não temos tempo a perder.
calthorp saiu.
churchill sentou, pensativo, na cadeira do piloto. imaginava o que lhe
reservaria o futuro. certos acontecimentos não seriam desagradáveis. ele já
tinha bastantes problemas, mas não queria, por nada, estar na pele de stagg.
haver gerado centenas de filhos na maior e mais selvagem orgia jamais
sonhada por um homem e estar, no entanto, completamente ignorante do
fato! ir para vega e ser presenteado com dois filhos de duas mulheres
diversas e talvez com um terceiro, se mary casey viajar com ele. ser
informado do que aconteceu... e também ser absolutamente incapaz de
visualizar o acontecimento, talvez não acreditar nele, nem mesmo quando
uma dúzia de testemunhas jurar que aconteceu! ter incidentes, dos quais
absolutamente não se lembraria, jogados à cara durante as inevitáveis rusgas
conjugais.
não, pensou churchill, não queria ser stagg. bastava-lhe ser churchill,
embora isso pudesse se tornar bastante desagradável quando robin acordasse.
levantou os olhos. calthorp havia voltado.
— qual o veredito? — perguntou churchill.
— não sei se rio ou se choro — respondeu calthorp. — mary vai
conosco.
poslÚdio

TROVÃO, relâmpago e chuva.


uma pequena taverna situada na terra de ninguém da fronteira de
deecee com caseyland. três mulheres estão sentadas a uma mesa, numa sala,
situada no fundo da taverna. seus pesados mantos com capuz estão
pendurados em cabides na parede. as três usam chapéus pretos de grandes
copas cônicas.
uma é virgínia, irmã caçula, da mulher que está na terra. agora, como a
irmã mais velha quando stagg chegou a washington, donzela-sacerdotisa da
cidade sagrada. alta, bela, cabelos cor de mel, olhos azul-escuros, nariz
curvo como o de um gavião gracioso, lábios como um ferida, seios expostos,
arredondados e empinados.
uma é a abadessa da grande irmandade de caseyland. trinta e cinco
anos, cabelos grisalhos, seios fartos, estômago saliente e, sob o vestido,
varizes nas pernas, indício de partos, embora tenha feito voto de castidade.
em público, reza a columbus, ao pai, ao filho c à mãe. em particular, reza a
colúmbia, a deusa, a grande mãe branca.
uma é alba, de cabelos brancos, desdentada, bruxa mirrada, sucessora
de alba, assassinada, por stagg.
bebem vinho vermelho, em copos altos. será mesmo vinho?
virgínia, a donzela, pergunta se elas perderam. os astronautas
conseguiram fugir, levando o herói solar e sua querida irmã, grávida do
filho dele.
a matrona grisalha responde que elas nunca perdem. pensa a outra que
a irmã deixará que a presença da deusa morra na mente do filho? nunca!
mas stagg, protesta a donzela, também levou com ele uma devota
donzela de caseyland, uma adoradora do pai.
alba, a velha bruxa, cacareja e diz que mesmo que ele tenha adotado a
religião dos caseys, minha jovem e bela, mas ignorante mocinha, você não
sabe que a deusa já venceu em caseyland? o povo oferece sacrifícios
aguados ao pai e ao filho no sábado, mas é à mãe que eles rezam com mais
fervor. É a sua estátua que enche a terra, é ela que enche os pensamentos.
que importância tem se a deusa é chamada de columbia ou de outro nome
qualquer? se ela, não pode entrar pela porta da frente, entra pela dos
fundos.
mas stagg nos escapou, protesta a donzela.
não, responde a matrona, ele não nos escapou nem escapou à grande
marcha. ele 'nasceu no sul e veio para, o norte e conheceu alba e foi morto.
não importa que ele tenha assassinado um ser humano chamado alba, uma
vez que alba vive hoje nesta velha, carne sentada aqui conosco. e ele foi
morto, enterrado e tomou a, se erguer, como foi dito. e ele é como um
recém-nascido, pois ouvi dizer que não tem lembrança da vida que viveu na.
grande marcha.
presta atenção ao que alba, diz sobre a deusa vencer sempre, mesmo
quando ela perde! não importa, se ele recusar virgínia e ficar com mary. ele
é nosso. a mãe terra vai com ele para as estrelas.
falo;: de outras coisas e fazem planos. então, embora, o trovão e o
relâmpago estejam terríveis e a chuva caia, elas saem da taverna. seus
rostos estão cobertos pelos capuzes e 'por isso ninguém sabe, quem são elas.
detém-se um instante antes de cada uma, seguir o seu, caminho, uma, para o
sul, outra para, o norte e a outra entre os dois.
a donzela diz quando vamos nos encontrar outra vez?
o matrona responde quando o homem nasce e morre e nasce.
a bruxa responde quando a batalha, é perdida e ganha.

fim

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