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carne
título original: flesh
coleÇÃo asterÓide — 5
direção de JOSÉ SANZ
prelÚdio............................................................ ............................
um................................................................... ..............................
dois.................................................................................... ............
trÊs............................................................................. ...................
quatro............................................................... .............................
cinco................................................................................. .............
seis................................................................................................ .
sete..................................................................... ...........................
oito..................................................................... ...........................
nove...................................................................................... .........
dez.................................................................................. ...............
onze............................................................................... ................
doze............................................................................... ................
treze...................................................................................... .........
quatorze............................................................................. ............
quinze.............................................................................. ..............
dezesseis............................................................................... .........
dezessete...................................................................................... ..
poslÚdio........................................................................ ................
prelÚdio
MAESST
GAKAETI REA KESILAE
tradução:
MASCOTE
CAPTURADA NUMA INCURSÃO A CASEYLAND
— PETER, você parece um rei da cabeça aos pés — disse calthorp. — viva
peter o sexto!
calthorp, apesar do tom irônico, achava isso.
stagg tinha seis pés e seis polegadas de altura, pesava duzentas e trinta e
cinco libras e tinha quarenta e oito polegadas de tórax, trinta e duas de
cintura e trinta e seis de quadris. seu cabelo, louro-avermelhado, era
ondulado e longo. seu rosto era bonito, como uma águia é bonita. naquele
instante, parecia com uma águia na gaiola, andando de um lado para outro,
com as mãos atrás das costas como asas fechadas, com a cabeça inclinada
para a frente e com os olhos, de um azul-escuro, ferozes e concentrados.
encarava calthorp com a testa franzida.
o antropólogo estava afundado numa imensa poltrona dourada, com uma
longa piteira trabalhada pendente dos lábios. como stagg, havia perdido para
sempre os pêlos do rosto. um dia após o pouso, foi metido no chuveiro,
ensaboado e massageado. os criados os barbearam, aplicando simplesmente
um creme no rosto deles e depois retirando o creme com uma toalha. ambos
pensaram que aquela era uma fácil e deliciosa maneira de se barbear, até que
descobriram que o creme os privara para sempre do direito de usar costeletas
se tivessem vontade.
calthorp gostava da barba, mas não se opôs a ser barbeado porque os
nativos deixaram claro que consideravam a barba uma abominação e ura
fedor para as narinas da grande mãe branca. agora lamentava seu
desaparecimento. não só perdera o ar patriarcal como revelara a fraqueza do
seu queixo.
de repente, stagg parou de andar e postou-se diante do espelho que
cobria uma parede da enorme sala. olhou atentamente para sua imagem e
para a coroa que usava. era de ouro, com quatorze pontas, cada uma
encimada por um grande brilhante. olhou para o imponente colar de veludo
verde pendurado no pescoço e para o peito nu, onde havia, pintado, um sol
flamejante. olhou, com desgosto, para o largo cinto de pele de jaguar em
torno dos rins, para o saiote escarlate, para o enorme símbolo fálico preto
pendurado na frente dele, para as lustrosas botas de couro branco subindo até
os joelhos. olhou para o rei de deecee em todo seu esplendor e arreganhou os
lábios. arrancou a coroa e atirou-a brutalmente através do quarto. ela se
chocou com a parede mais afastada e rolou de volta pelo chão até os pés
dele.
— então fui coroado monarca de deecee! — gritou. — rei das filhas de
colúmbia. ou, como elas dizem no seu americano degenerado: ken-a dot uh
k'lumpaha.
"que espécie de rei sou eu? não me é permitido exercer nenhum dos
poderes e privilégios que um rei deve ter. venho reinando nesta terra
dominada por mulheres há já duas semanas e não pararam de dar toda a
espécie de recepções em minha honra. tive minhas qualidades cantadas,
literalmente, em todos os lugares onde fui com minha guarda de honra de um
seio só. fui iniciado no totem da fraternidade dos alces e, deixe-me repetir,
foram os ritos mais fantásticos que já ouvi. e fui escolhido o grande alce do
ano..."
— É natural que, se chamando stagg, você pertença aos alces — disse
calthorp. — foi ótimo que eles não tivessem descoberto que seu segundo
nome é leo. levariam um tempo dos diabos a decidir se você pertenceria aos
alces ou aos pumas. só...
franziu as sobrancelhas. stagg continuava encolerizado.
— eles me disseram que sou o pai do meu país. se é verdade, por que
não me dão a oportunidade de ser mesmo? não deixam sequer uma mulher
ficar sozinha comigo! quando me queixo disso, aquela encantadora puta, a
sacerdotisa-mor, responde que não tenho o direito de preferir nenhuma
mulher. sou o pai, o amante e o filho de cada mulher de deecee!
calthorp olhava, cada vez mais acabrunhado. levantou-se da poltrona e
dirigiu-se à ampla sacada no segundo andar da casa branca. os nativos
pensavam que a mansão real fora assim denominada em honra da grande
mãe branca. calthorp sabia que não, mas era esperto demais para discutir.
convidou stagg a se aproximar e olhar para fora.
stagg se aproximou mas fungou alto e fez uma careta.
calthorp apontou para a rua. vários homens estavam içando um enorme
tonel para a traseira de um carroção.
— bebedores de néctar, é como são chamados há muito tempo — disse
calthorp. — eles vêm diariamente apanhar os dejetos e levar para os campos.
este é um mundo onde cada troço, por menor que seja, é apanhado para a
glória da nação e para o enriquecimento do solo.
— a gente já devia estar acostumado com isso — disse stagg. — mas o
cheiro parece estar cada dia pior.
— ora, não é um cheiro novo nos arredores de washington. só que,
antigamente, era mais bovino que humano.
stagg riu e respondeu:
— quem havia de pensar que a américa, terra das casas com dois
banheiros, regredisse para a casinha com o crescente na porta? menos as
casinhas sem porta. e não é por nada saberem sobre canalização. temos água
corrente em nossos apartamentos.
— tudo o que sai da terra deve voltar à terra. não pecam contra a
natureza, drenando para o oceano milhões de toneladas de fosfatos e outros
produtos químicos, necessitados pelo solo. não são como éramos, cegos
estúpidos, matando nossa terra em nome da saúde pública.
— você não me chamou para dar esta aula — disse stagg.
— foi para isso, sim. quero lhe explicar as raízes desta cultura. ou tentar
explicar. estou em desvantagem porque gastei a maior parte do meu tempo
aprendendo a língua,
"falam inglês. mas tão longe do nosso quanto o nosso do anglo-saxão.
"degenerou, no sentido lingüístico, mais rapidamente do que era de
esperar. talvez por causa do isolamento em pequenos grupos depois da
desolação. e também porque o grosso da população era analfabeto. ler e
escrever são privilégios, exclusivos dos sacerdotes e dos diradah."
— diradah?
— os aristocratas. acho que a palavra era, originalmente, deer-riders. só
aos privilegiados era permitido cavalgar veados. diradah. análogo ao
caballero espanhol ou ao cavalier francês. ambos têm o significado original
de cavaleiro. tenho muitas coisas a lhe mostrar, mas vamos dar uma nova
olhada no mural.
andaram até a extremidade da grande sala e pararam defronte de um
enorme mural, brilhantemente colorido.
— este trabalho — disse calthorp — reproduz o grande mito básico de
deecee.
apontou para a figura da grande mãe branca, que se sobrepunha às
minúsculas planícies e montanhas e às ainda .mais minúsculas figuras
humanas.
— como você pode ver, ela está muito zangada. está ajudando seu filho,
o sol, a destruir as criaturas da terra. está enrolando o escudo azul que,
antigamente, havia estendido em torno da terra para protegê-la das ferozes
flechas do filho.
"o homem, na sua cegueira, cupidez e arrogância, corrompeu a terra que
lhe foi dada pela deusa. suas cidades, que pareciam formigueiros,
esvaziavam sua sujeira nos rios e mares, transformando-os em vastos
esgotos. envenenaram o ar com gases mortais. esses gases, suponho, não
eram apenas o produto da indústria, mas também o da radiatividade. deecee,
é claro, nada sabe a respeito de bombas atômicas.
"então colúmbia, cansada de aturar por mais tempo o homem
envenenando a terra, o qual havia também deixado de adorá-la, arrancou o
escudo protetor e permitiu ao sol desferir a força total dos seus raios sobre as
criaturas vivas."
— vejo toda essa gente e animais caindo sobre a terra inteira — disse
stagg. — nas ruas, nos campos, nos mares, no ar. os pastos secaram e as
árvores murcharam. só os homens e os animais que tiveram a sorte de estar
protegidos das flechas do sol sobreviveram.
— não tanta sorte — respondeu calthorp. — não morreram das
queimaduras solares, mas precisavam comer. os animais chegaram primeiro,
durante a noite, e comeram os cadáveres e uns aos outros. o homem, depois
de ter devorado todos os alimentos enlatados, comeu os animais. e depois o
homem comeu o homem.
"felizmente, os raios mortais duraram pouco tempo, talvez menos de
uma semana. então a deusa ficou com pena e tornou a colocar o escudo
protetor."
— mas que foi a desolação?
— posso apenas imaginar. você se lembra de que, pouco antes de termos
deixado a terra, o governo encarregou uma empresa de pesquisas de
desenvolver um sistema de difundir energia sobre todo o planeta? um cabo
foi mergulhado até bem fundo para captar a radiação térmica do centro da
terra. o calor foi transformado em eletricidade e enviado para o mundo todo
através da utilização da ionosfera como meio de condução.
"teoricamente, cada sistema elétrico do planeta podia captar aquela
energia. isso significa, por exemplo, que a cidade de manhattan podia extrair
da ionosfera toda a energia de que necessitava para iluminar e aquecer todos
os edifícios, movimentar todos os aparelhos de tevê e, depois de instalados
os mecanismos, fazer andar todos os veículos.
"acho que essa idéia foi posta em prática mais ou menos vinte e cinco
anos depois de termos deixado a terra. acho também que as advertências de
alguns cientistas, especialmente as de cardon, foram justificadas. cardon
predisse que a primeira irradiação em escala total provocaria a destruição de
uma parte da camada de ozônio.
— meu deus! — disse stagg. — se uma grande quantidade de ozônio da
atmosfera for destruída...
— as ondas curtas dos raios ultravioleta, deixando de ser absorvidas pelo
ozônio, incidiram sobre as criaturas vivas expostas à luz solar. os animais —
incluindo os homens — morreram das queimaduras solares. as plantas,
suponho, agüentaram melhor. apesar disso, o efeito nelas deve ter sido
bastante devastador para explicar os grandes desertos que vimos pela terra
toda.
"e, como se isso não bastasse, a natureza — ou a deusa, se preferir —
atacou o homem até que ele caiu, trêmulo, a seus pés. o desequilíbrio do
ozônio deve ter durado pouquíssimo tempo. então os processos naturais
restauraram a taxa normal. mas, cerca de vinte anos mais tarde, exatamente
quando o homem começava a formar pequenos núcleos isolados, aqui e ali
— a população deve ter caído de dez bilhões para um milhão em um ano —
vulcões extintos, em toda a extensão da terra, entraram em erupção.
"não sei. talvez as sondagens no interior da terra tenham causado esse
segundo cataclisma — adiado durante vinte e cinco anos porque a terra
trabalha devagar mas seguramente.
"a maior parte do japão submergiu. krakatoa desapareceu. o havaí
explodiu. a sicília partiu-se em duas. manhattan afundou no mar alguns
metros e depois voltou à tona. o pacífico ficou rodeado de vulcões em
erupção. o mediterrâneo ficou pouco menos que um inferno. maremotos
rugiram pela terra adentro, somente se detendo nos sopés das montanhas.
estas foram abaladas e as que escaparam das ondas gigantescas foram
soterradas pelas avalanchas.
"resultado: o homem voltou à idade da pedra, a atmosfera ficou cheia de
poeira e de gás carbônico, responsáveis pelos magníficos ocasos e pelo clima
subtropical de nova york, derretendo as calotas polares...
— não admira que haja tão pouca continuidade entre nossa sociedade e a
dos sobreviventes da desolação — disse stagg. — ainda assim, podemos
imaginar que eles tenham redescoberto a pólvora.
— por quê?
— por quê? porque fazer pólvora é tão simples e óbvio!
— claro — respondeu calthorp. — tão simples e óbvio que a
humanidade só levou meio milhão de anos para aprender a misturar carvão
vegetal, enxofre e nitrato de potássio nas proporções adequadas a fim de que
resultassem numa mistura explosiva. só isso.
"tomemos, agora, um duplo cataclisma como a desolação. quase todos os
livros desapareceram. seguiu-se um período de mais de cem anos, durante o
qual os pouquíssimos sobreviventes ficaram tão ocupados em se manter
vivos que não tiveram tempo para ensinar aos mais moços ler, escrever e
contar. qual foi o resultado? uma ignorância total, uma quase completa perda
do conhecimento histórico. para aquela gente, o mundo foi criado novamente
em 2100 a.d. ou 1 d.d., ou seja, a época deles. d.d., depois da desolação. seus
mitos dizem que foi assim.
"vou-lhe dar um exemplo. o cultivo do algodão. quando deixamos a
terra, o algodão não era mais cultivado porque os plásticos substituíram as
fibras para fazer tecidos. sabe que o algodoeiro foi redescoberto há apenas
duzentos anos? o milho e o tabaco nunca desapareceram. mas até há
trezentos anos, os homens vestiam peles de animais ou nada. habitualmente
nada."
calthorp levou stagg do mural para a sacada,
— estou divagando, mas não há muito mais a fazer. olhe para fora, pete.
você está vendo uma washington, ou wazhtin, como é chamada agora, como
nunca vimos antes. washington foi demolida duas vezes desde que partimos
e a cidade atual foi construída há duzentos anos sobre os escombros das
cidades mortas. foi feito um esforço para reconstruí-la à maneira da antiga
metrópole. mas um zeitgeist diferente dominou os construtores. eles a
ergueram de acordo com os ditames de suas crenças e mitos.
apontou para o capitólio. parecia-se, em alguns aspectos, com o que
estava na memória deles. mas tinha duas cúpulas em vez de uma, e uma torre
vermelha no topo de cada cúpula.
— foi construído tendo como modelo os seios da grande mãe branca —
disse calthorp.
apontou para o monumento a washington, agora situado a cerca de cem
jardas à esquerda do capitólio. tinha trezentos pés de altura, uma torre de aço
e cimento, pintada como uma insígnia de barbeiro, com listas vermelhas,
brancas e azuis, e encimada por uma estrutura redonda, vermelha.
— não preciso lhe dizer o que isto procura representar. o mito diz que
pertence ao pai do seu país. dizem que o próprio washington está enterrado
ali. ouvi isso ontem à noite, contado com a maior devoção por john grão-de-
cevada em pessoa.
stagg atravessou o patamar da sacada e foi para a varanda do seu
apartamento no segundo andar. a varanda circundava o pavimento
totalmente, mas calthorp não passou da esquina. stagg, que se atrasara ao
segui-lo, encontrou-o debruçado no parapeito. este era composto de
pequenas cariátides de mármore que sustentavam grandes bandejas na
cabeça. calthorp apontou por cima do alto pomar nos fundos da casa branca.
— está vendo aquele edifício branco, com uma enorme estátua de
mulher no topo? ela é colúmbia, a grande mãe branca, vigiando e protegendo
seu povo. para nós, não passa de uma figura de uma religião paga. mas para
o povo dela — nossos descendentes — é uma força viva e vital, que dirige
esta nação ao encontro do seu destino. e usando de todos os meios. quem
ficar no seu caminho será esmagado... de uma maneira ou de outra.
— vi o templo quando vim a washington pela primeira vez — disse
stagg. — passa-se por ele no caminho da casa branca. lembra como sarvant
quase morreu de vergonha quando viu as figuras esculpidas nas paredes?
— que pensa delas? stagg corou e resmungou:
— eu pensei que era calejado, mas aquelas estátuas! nojentas, obscenas,
absolutamente pornográficas! e ainda por cima colocadas num lugar
destinado à adoração!
calthorp sacudiu a cabeça.
— nada disso. você compareceu a dois serviços. foram realizados com
grande dignidade e beleza. a religião oficial é um culto da fertilidade e suas
imagens são representações de vários mitos. conta histórias cuja moral óbvia
é que o homem, uma vez, quase destruiu a terra por causa do seu terrível
orgulho. ele e sua ciência e arrogância perturbaram o equilíbrio da natureza.
mas agora esse equilíbrio foi restaurado e cabe ao homem manter sua
humildade, trabalhar de braços dados com a natureza — que eles acreditam
ser uma deusa viva, cujas filhas casam com heróis. se você prestou atenção,
as deusas e os heróis reproduzidos nas paredes enfatizam, com sua postura, a
importância da adoração da natureza e da fertilidade.
— É? olhando certas posturas reproduzidas, garanto que algumas delas
não fertilizam nada.
calthorp sorriu.
— colúmbia é, também, a deusa do amor erótico.
— tenho a impressão — disse stagg — de que você está tentando me
dizer alguma coisa. mas por linhas tortas. e também tenho a impressão de
que não vou gostar do que está tentando me dizer.
nesse momento, ouviram o soar de um gongo na sala que haviam
acabado de deixar. correram para ver o que era.
foram saudados por uma explosão de clarins e troar de tambores. uma
banda de músicos-sacerdotes da georgetown university, situada nos
arredores, desfilava pela sala. eram rapazes gordos e bem alimentados, que
se haviam castrado em homenagem à deusa — e, incidentalmente, se
garantido uma perpétua posição de prestígio e segurança. À maneira das
mulheres, estavam vestidos com blusas de golas altas e mangas compridas e
saias até os tornozelos.
atrás deles, marchava o homem conhecido como john grão-de-cevada.
stagg não sabia o nome dele; "john grão-de-cevada" era, evidentemente, um
título. e também não sabia qual era a exata posição de grão-de-cevada no
governo de deecee. ele vivia na casa branca, no terceiro andar, e parecia estar
muito ligado à administração do país. sua função era, provavelmente,
semelhante à do primeiro-ministro da antiga grã-bretanha.
os heróis solares, tal como o monarca inglês, eram mais figuras de proa,
exemplo de lealdade e tradição, que verdadeiros governantes. ou assim
parecia a stagg, que fora forçado a calcular o que significava a maioria dos
fenômenos que aconteciam em torno dele durante sua prisão.
john grão-de-cevada era um homem muito alto e magro, de trinta e cinco
anos mais ou menos. seu longo cabelo estava pintado de verde brilhante e
usava óculos verdes. seu longo nariz arrebitado e seu rosto estavam cobertos
por uma rede de veias vermelhas. usava uma enorme cartola verde. tinha no
pescoço um colar de espigas de cevada. seu torso estava nu. o saiote era
verde e a bolsa pendurada no cinto era feita de um tecido forte, cortado em
forma de folhas de cevada. usava sandálias amarelas.
carregava na mão direita o emblema do seu cargo, uma grande garrafa de
relâmpago branco.
— salve, homem e mito! — disse, dirigindo-se a stagg. — saudações ao
herói solar! saudações ao exuberante, extraordinário garanhão do totem do
alce! saudações ao pai do seu país e ao filho e amante da grande mãe branca!
tomou um grande gole pelo gargalo da garrafa, limpou os lábios e passou
a garrafa a stagg.
— chegou na hora — disse o capitão, virando uma talagada. logo a
seguir, depois de se ter sufocado, tossido e chorado copiosamente, devolveu
a garrafa.
grão-de-cevada ficou exultante. — o senhor foi formidável, nobre alce! o
senhor deve ter sido visitado pela potência especial da própria colúmbia,
para ser tão afetado pelo relâmpago branco. de fato, o senhor é divino! veja
eu; sou um pobre mortal e quando bebi pela primeira vez o relâmpago
branco, fui afetado. contudo, devo confessar que, quando assumi pela
primeira vez a função, ainda rapaz, tinha capacidade de sentir a sagrada
presença da deusa na garrafa e ser tão afetado quanto o senhor. mas um
homem torna-se calejado, mesmo diante da divindade, que ela me perdoe por
dizê-lo. já lhe contei como colúmbia liquidificou pela primeira vez um
relâmpago e o engarrafou? e como ela o deu ao primeiro, nem mais nem
menos, o próprio washington? e como desgraçadamente este se comportou e
incorreu por isso na ira da deusa?
"já lhe contei? então, passemos às obrigações. estou lhe trazendo uma
mensagem da própria sacerdotisa-chefe. amanhã é o aniversário do filho da
grande mãe branca. e o senhor, o filho de colúmbia, vai nascer amanhã. e
então vai começar tudo outra vez."
tomou outro gole, cambaleou para stagg, quase caiu em cima dele,
tornou a se equilibrar e atirou-se para fora da sala. stagg chamou-o.
— espere aí! quero saber o que aconteceu com minha tripulação!
grão-de-cevada piscou.
— eu lhe disse que eles estavam num edifício no campas da georgetown
university.
— quero sabor onde estão agora... neste instante!
— estão sendo muito bem tratados. têm tudo o que querem, menos a
liberdade. e, esta, vão tê-la amanhã de manhã.
— por que só então?
— porque também o senhor será libertado. claro, não poderá vê-los. o
senhor estará na grande marcha.
— o que é isso?
— o senhor saberá.
grão-de-cevada virou-se para sair, mas stagg disse: — diga-me quem é
aquela moça presa na jaula. sabe, aquela com o cartaz que diz: "mascote,
capturada numa incursão em caseyland".
— também saberá isso, herói solar. entretanto, acho que não fica bem a
um homem da sua importância diminuir-se fazendo perguntas. a grande mãe
branca explicará tudo oportunamente.
depois da saída de grão-de-cevada, stagg disse para calthorp:
— que maluquice estava ele tentando esconder? o homenzinho franziu o
cenho.
— também gostaria de saber. afinal de contas, minha chance de examinar
os mecanismos sociais desta cultura está se tornando um tanto limitada. e
justamente a esse respeito...
— o esse respeito, o quê? — perguntou stagg, agitado. calthorp estava
olhando soturnamente.
— amanhã é o solstício de inverno. solstício de inverno... quando o sol
fica mais fraco no hemisfério norte e atinge sua mais extrema posição ao sul.
no calendário que usávamos, era vinte e um ou vinte e dois de dezembro. até
onde posso me lembrar, era uma data muito importante nos tempos pré-
históricos e mesmo nos históricos. toda espécie de cerimônias relacionadas
com ela, como... ahhh!
foi mais um gemido que uma exclamação de subida recordação.
stagg ficou ainda mais assustado. ia começar a perguntar o que havia de
errado quando a banda explodiu novamente. os músicos e assistentes se
viraram para a porta e caíram de joelhos.
gritaram em coro:
— grande sacerdotisa, carne viva de virgínia, filha de colúmbia! donzela
sagrada! beleza ímpar! virgínia perderá, breve, sua santificada e suave prega
para o impetuoso garanhão... descuidado, selvagem e excitado macho!
sagrada e condenada virgínia!
uma moça alta, de dezoito anos, entrou sobranceira na sala. era bela,
embora tivesse nariz adunco e rosto lívido. seus lábios cheios eram
vermelhos como sangue. seus olhos azuis eram penetrantes e inflexíveis
como os de um gato. seus ondulados cabelos cor de mel caíam até os
quadris. era virgínia, formada pelo vassar college, sacerdotisa oracular e
filha encarnada de colúmbia.
— alô mortais — disse ela, em voz alta e clara. olhou para stagg.
— alô, imortal.
— alô, virgínia — respondeu ele.
sentiu o sangue circular violentamente pelo corpo e a dor crescer em seu
peito e quadris. cada vez que a encontrava, sentia aquele irreprimível desejo
de possuí-la. percebeu que, se estivesse sozinho com ela, a possuiria,
quaisquer que fossem as conseqüências.
virgínia não deu o menor sinal de ter percebido a impressão causada
nele. olhou-o com a inabalável fixidez de uma leoa.
virgínia, como todas as mascotes, estava vestida com uma túnica
comprida até os pés, de gola alta, mas sua vestimenta era coberta por
enormes pérolas. uma ampla abertura triangular na roupa expunha seus
grandes mas empinados seios. os mamilos haviam sido maquilados de
vermelho e cercados por dois anéis, um azul e outro branco.
— amanhã, imortal, você se tornará ao mesmo tempo filho e amante da
mãe. por isso, é necessário que se prepare.
— que devo exatamente fazer para me preparar? — perguntou stagg. —
e por que devo fazê-lo?
olhou para ela e sentiu o corpo inteiro doer.
ela moveu a mão. imediatamente john grão-de-cevada, que devia estar
esperando fora de vista, apareceu. trazia agora duas garrafas, o relâmpago
branco e um líquido escuro. um sacerdote-eunuco ofereceu-lhe uma taça. ele
a encheu com a matéria escura e entregou-a à sacerdotisa.
— só você, pai do seu país, pode beber isto — disse ela, dando a taça a
stagg. — isto é o máximo. feito com as águas dos sticks.
stagg apanhou a taça. olhou-a duvidosamente, mas procurou se mostrar
despreocupado.
— cachaça clandestina, hem? bom, vamos lá! ninguém poderá dizer que
peter stagg não quis beber o fino... aaourrwkoosh!
os clarins vibraram, os tambores troaram, os presentes bateram palmas e
gritaram.
foi então que ouviu calthorp protestando.
— capitão, o senhor se enganou! ela não disse stick. ela disse styx. Águas
do s-t-y-x! percebeu?
stagg percebera mas não podia fazer nada. a sala girou, vertiginosamente
e a escuridão caiu sobre ele como um enorme morcego negro.
entre as clarinadas e os gritos, ele caiu de cabeça no chão.
trÊs
PETER STAGG acordou. estava deitado de costas sobre alguma coisa macia,
tendo os galhos de um grande carvalho por teto. pôde ver, entre as folhas,
um brilhante céu sem nuvens. havia pássaros nos ramos, um pardal, um
tordo... e um enorme gaio, apoiado sobre o rabo, balançando pernas nuas e
humanas.
as pernas eram morenas, elegantes e lindamente torneadas. o resto do
corpo estava disfarçado por uma gigantesca fantasia de gaio. logo depois que
stagg abriu os olhos, o gaio retirou a máscara, revelando o belo rosto moreno
e de olhos grandes de uma moça. ela se inclinou para trás e apanhou um
clarim que estava pendurado numa corda, por trás e acima dela. antes que
stagg pudesse impedir, a moça emitiu um longo e modulado toque.
ouviu-se, imediatamente, um tumulto em algum lugar às costas dele.
stagg sentou-se e se voltou para identificar a fonte do barulho. este partia
de uma multidão parada do outro lado da estrada. a estrada era uma larga
rodovia de cimento, que atravessava os campos de pastagem das fazendas.
stagg estava sentado a poucos pés da beira dela, numa grossa pilha de
cobertores que alguém colocara cuidadosamente ao alcance dele.
o comandante não tinha a menor idéia de quando ou como chegara,
àquele lugar. ou onde ficava ele. lembrava apenas, muito vivamente, de
coisas acontecidas pouco antes da aurora; depois, o nada. a altura do sol
indicava ser, mais ou menos, onze da manhã.
a môça-gaio desceu do galho, ficou pendurada um instante e depois
pulou da altura de cinco pés para o chão. levantou-se e disse:
— bom-dia, nobre garanhão. como está passando? stagg resmungou e
respondeu:
— estou com tudo quanto é músculo dolorido e machucado. e tenho
uma, tremenda dor de cabeça.
— vai melhorar depois que comer. permite que lhe diga que esteve
magnífico ontem à noite! nunca vi um herói solar igual a você. bom, preciso
ir embora. seu amigo calthorp disse que, quando você acordasse, iria querer
ficar a sós com ele durante algum tempo.
— calthorp! — disse stagg.
resmungou outra vez.
— Ê o último homem a quem quero ver.
mas a moça já havia atravessado a rodovia correndo e se misturado com
o povo.
a cabeça branca de calthorp surgiu por detrás de uma árvore. aproximou-
se, carregando uma grande bandeja coberta. sorria, mas estava claro que
procurava desesperadamente esconder a preocupação.
— como está se sentindo? — gritou. stagg respondeu:
— onde estamos?
— diria que estamos no que costumava ser a u.s. 1, mas que é agora
chamada mary's pike. estamos mais ou menos dez milhas fora dos limites
atuais de washington. duas milhas para baixo, na rodovia, fica a cidadezinha
agrícola chamada fair grace. sua população normal é de duas mil pessoas,
mas hoje tem cerca de quinze mil. os fazendeiros e suas filhas, vindos de
milhas ao redor, reuniram-se aqui. cada pessoa, em fair grace, está esperando
ansiosamente por você. mas você não está à disposição deles. você é o herói
solar, por isso pode descansar à vontade. quer dizer, até o pôr-do-sol. depois,
você tem de fazer o que fez na noite passada.
stagg baixou os olhos e notou pela primeira vez que continuava nu.
— você me viu ontem de noite?
olhou suplicante para e velho antropólogo. foi a vez de calthorp olhar
para o chão. depois disse:
— das primeiras filas... pelo menos durante um certo tempo. andei em
volta da multidão e entrei no edifício. então assisti à orgia, instalado num
balcão.
— você não tem a menor parcela de vergonha? — perguntou stagg,
furioso. — já era péssimo eu não poder me defender. e pior ainda você
testemunhar minha humilhação.
— que humilhação! claro, vi você. sou antropólogo. foi a primeira vez
que eu tive a chance de ver um rito de fertilidade tão de perto. como seu
amigo, também me preocupei. mas eu não precisava ter me preocupado;
você tomou conta de você. outros também tomaram.
stagg arregalou os olhos.
— você está zombando de mim?
— que deus não permita! não. eu não estava fazendo uma piada, estava
exprimindo meu espanto. talvez inveja. claro, foram os chifres que deram a
você o ardor e a capacidade. imagino se também me darão um pouquinho
daquela substância produzida pelos chifres.
calthorp colocou a bandeja na frente de stagg e retirou a cobertura.
— eis um café como você nunca tomou. stagg virou a cabeça para o
lado.
— leve isso daqui. estou me sentindo mal. estou doente do estômago e
da alma por causa do que fiz ontem à noite.
— você parecia estar gostando.
stagg rosnou com uma fúria repentina e calthorp estendeu a mão de
forma apaziguadora.
— não, não quis ofender. É que eu vi você e não pude fazer nada. vamos,
rapaz, coma. olhe o que trouxemos para você! pão recém-saído do forno.
manteiga fresca. e geléia. mel. ovos, bacon, presunto, truta, caça... e um jarro
de cerveja gelada. e poderá ter outros pratos do que quiser.
— já lhe disse que estou doente! não posso comer nada. stagg sentou-se
em silêncio durante alguns minutos, olhando para o outro lado da rodovia,
para as tendas brilhantemente coloridas e para o povo aglomerado em torno
delas. calthorp sentou-se ao lado dele e acendeu um enorme charuto verde.
subitamente, stagg apanhou o jarro e sorveu uma enorme golada de
cerveja. depositou o jarro, limpou a espuma dos lábios com as costas da
mão, arrotou e pegou um garfo e uma faca.
começou a comer como se fosse o primeiro alimento de sua vida... ou o
último.
— preciso comer — justificava-se, entre uma garfada e outra. — estou
fraco como um gatinho recém-nascido. veja como minhas mãos tremem.
— você deve comer o equivalente para alimentar cem homens — disse
calthorp. — afinal de contas, você fez o trabalho de cem... de duzentos!
stagg levantou uma das mãos e apalpou os chifres.
— ainda estão aqui. eh! não continuam eretos e duros como na noite
passada. estão flácidos. talvez encolham e sequem.
calthorp sacudiu a cabeça.
— não. quando você recuperar as forças e a sua pressão subir, voltarão a
ficar eretos. não são chifres verdadeiros. os de veado consistem em
protuberâncias ósseas sem cobertura de ceratina. os seus parecem ter uma
base óssea, mas a parte superior é principalmente cartilagem rodeada de
vasos sanguíneos e coberta de pele.
"não é de espantar que tenham murchado. mas é de espantar que você
não tenha rompido um vaso sangüíneo. ou outra coisa."
— o que quer que fosse que os cornos injetaram no meu corpo — disse
stagg — sumiu. exceto pelo fato de me sentir fraco e dolorido, estou normal.
se eu, ao menos, pudesse me livrar destes cornos! doutor, você pode cortá-
los?
calthorp sacudiu a cabeça tristemente. stagg ficou pálido.
— então tenho de passar por tudo aquilo outra vez?
— temo que sim, meu caro.
— esta noite, em fair grace? e na próxima noite, em outra cidade? e em
outra até... quando?
— lamento, peter, mas não tenho como saber até quando. calthorp berrou
de dor quando uma enorme mão apertou os ossos dos seus pulsos, uns contra
os outros.
stagg afrouxou o apertão.
— desculpe, doutor. fiquei nervoso.
— olhe — disse calthorp, esfregando suavemente o pulso — agora há
uma possibilidade. parece-me que, se todo esse negócio começou com o
solstício de inverno, deve findar com o solstício de verão. ou seja, em 21 ou
22 de junho. você é o símbolo do sol. na realidade, essa gente olha você,
muito provavelmente como sendo literalmente o próprio sol... especialmente
porque você chegou do céu num flamejante cavalo de ferro.
stagg pôs as mãos na cabeça. lágrimas escorreram entre seus dedos e
seus ombros nus estremeceram. calthorp dava tapinhas na cabeça loura dele,
enquanto lágrimas corriam de seus próprios olhos. compreendeu como seu
comandante devia estar sofrendo terrivelmente, uma vez que conseguiu
chorar, vencendo as defesas de suas inibições.
finalmente, stagg se levantou e começou a atravessar os campos, em
direção a um córrego próximo.
— preciso tomar um banho — murmurou. — estou imundo. se tenho de
ser um herói solar, ao menos serei um limpo.
— aí vêm eles — disse calthorp, apontando para a multidão que estivera
esperando, mais ou menos a cinqüenta jardas de distância. — seus fiéis
adoradores e sua escolta.
stagg fez uma careta.
— neste momento sinto nojo de mim. mas ontem à noite tive prazer em
fazer o que fiz. não tive inibições. vivi o sonho secreto de cada homem...
oportunidade sem limites e capacidade inexaurível. fui um deus!
parou e agarrou novamente o pulso de calthorp.
— vá até a nave! apanhe uma arma, mesmo que tenha de enganar os
guardas. volte e me dê um tiro na cabeça... assim não terei de passar por tudo
aquilo outra vez!
— lamento. em primeiro lugar, não sei onde achar uma arma. tom tabaco
me disse que todas as armas haviam sido retiradas da nave e recolhidas a um
lugar secreto. em segundo lugar, não posso matar você. enquanto há vida, há
esperança. vamos nos safar desta enrascada.
— diga-me como — pediu stagg.
não tiveram tempo de continuar a conversa. a multidão atravessou o
campo e rodeou-os. tornara-se difícil uma conversa contínua, com os
tambores e clarins atroando nos ouvidos deles, as flautas trilando, os homens
e as mulheres tagarelando aos berros e um grupo de lindas moças insistindo
em banhar stagg e depois o enxugando e perfumando. em pouco tempo, a
pressão da multidão separou um do outro.
stagg começou a se sentir melhor.
com o concurso das mãos hábeis das moças, suas dores desapareceram
com massagens e, ao mesmo tempo em que o sol chegava ao apogeu, as
forças de stagg aumentavam. pelas duas horas, transbordava de vitalidade.
queria que chegasse a noite para poder agir.
infelizmente, era a hora da sesta. a massa se dispersou, à procura de
sombra onde descansar.
uns poucos fiéis continuaram em volta de stagg. pela expressão
sonolenta deles, stagg percebeu que também gostariam de se deitar. mas não
podiam; eram sua escolta, inflexíveis homens de confiança, armados de
lanças e facas. poucas jardas além, havia inúmeros arqueiros. estes usavam
estranhas flechas. as hastes eram terminadas por longas agulhas, em vez das
pontas de aço afiado. indubitavelmente, essas agulhas eram untadas com
uma droga que paralisaria temporariamente qualquer herói solar que tivesse
a coragem de fugir.
stagg pensou que era uma loucura eles porem uma escolta. agora, que se
sentia melhor, não tinha a menor intenção de fugir. na verdade, ele se
perguntava como poderia imaginar fazer tal coisa.
por que haveria de querer fugir e correr o risco de ser morto... quando
havia tanta vida a ser gerada?
refez o caminho através do campo, com a escolta o acompanhando a uma
distância respeitosa. havia cerca de quarenta tendas erguidas no prado e três
vezes mais gente espalhada, dormindo. stagg não estava, naquele instante,
interessado neles.
queria falar com a moça na jaula.
desde que fora transferido para a casa branca, ele ficara imaginando
quem ela era e por que era conservada presa. suas perguntas eram
invariavelmente respondidas com a enfurecida frase: o que será, será.
lembrou-se de tê-la visto quando se aproximou de virgínia, a sacerdotisa-
chefe. sentiu uma pontada ao lembrar da vergonha que tivera havia pouco,
mas esta foi logo esquecida.
a jaula sobre rodas estava à sombra de um plátano e o veado que a
puxava estava pastando perto. não havia guardas ao alcance da voz.
a moça estava sentada numa latrina instalada num dos cantos da jaula.
perto dela, havia um camponês fumando um charuto, enquanto esperava que
ela acabasse. quando ela acabou, ele começou a retirar o vaso de sob o
assento, pois iria levá-lo para sua granja, a fim de adubar o solo.
ela usava o boné de jóquei imitando um bico comprido, camisa cinzenta
e as calças até a barriga da perna, usadas por todas as mascotes, embora as
calças dela, naquele instante, estivessem arriadas até os tornozelos. tinha a
cabeça inclinada para baixo, mas stagg não julgou que fosse porque tivesse
vergonha de fazer suas necessidades em público. estava farto de ver aquela
atitude descuidada, animalesca — para ele — comum naquela gente. podiam
sentir vergonha e inibição por muitos motivos, mas defecar em público não
era um deles.
uma rede fora esticada presa ao teto. uma vassoura estava encostada num
canto e, no canto oposto havia um armário aparafusado no chão. continha,
provavelmente, artigos de toucador, uma vez que, numa saliência existente
ao lado desse armário, havia uma bacia de rosto e toalhas.
olhou mais uma vez para o cartaz, que se projetava do alto da jaula como
uma barbatana de tubarão.
MASCOTE
CAPTURADA NUMA INCURSÃO A CASEYLAND
PETER STAGG não acordou até a tarde do dia seguinte. foi novamente o
primeiro do seu grupo a levantar, com exceção de um. este era o doutor
calthorp, que se sentou na beira da cama do comandante.
— você está aqui há quanto tempo? — perguntou stagg..
— em baltimore? segui você de perto. vi você atirar aquele cervo contra
as sacerdotisas... e tudo o que aconteceu depois.
stagg sentou e gemeu.
— sinto-me como se cada músculo do meu corpo estivesse triturado.
— deve estar. você não foi dormir antes das dez da manhã. mas você
deve estar sentindo mais que uma dor muscular. suas costas não estão
doendo muito?
— um pouco. sinto como se tivesse uma pequena queimadura no fim das
costas.
— só isso?
as sobrancelhas brancas de calthorp se arquearam.
— bom, nesse caso só posso dizer que os chifres devem fazer mais que
injetar hormônios reprodutores na sua corrente sangüínea. devem, também,
ser condutores de reconstituintes celulares.
— que quer dizer com isso?
— quero dizer que, ontem à noite, um homem o golpeou nas costas com
uma faca. contudo, ele não deve ter atingido você muito profundamente,
porque o ferimento parece estar quase cicatrizado. É verdade que a faca não
entrou mais de uma polegada. você tem músculos fabulosamente firmes.
— lembro disso vagamente — respondeu stagg, estremecendo. — e que
aconteceu com o homem depois?
— as mulheres o estraçalharam. — mas por que ele me esfaqueou?
— parece que ele é desequilibrado mental. ficou ofendido pelo interesse
que você manifestou pela mulher dele e meteu-lhe a faca. ao fazer isso,
cometeu um horrível sacrilégio. as mulheres se serviram de dentes e unhas
para castigá-lo.
— corno você sabe que ele era desequilibrado mental?
— porque ele era... pelo menos do ponto de vista da cultura nativa.
ninguém, um estado normal, se opõe a que a mulher tenha relações sexuais
com um herói solar. aliás, isso seria uma grande honra, porque usualmente os
heróis solares dedicam seu tempo às virgens e a ninguém mais. contudo,
você ontem à noite abriu uma exceção... para toda a cidade. ou, pelo menos,
tentou.
stagg suspirou e disse:
— a noite de ontem foi a pior de todas. não houve mais estraçalhamentos
que os usuais?
— você dificilmente pode acusar os baltimoranos de serem culpados
disso. você deu início à coisa em grande escala quando esmagou aquela
sacerdotisa. por falar nisso, o que foi que inspirou aquele gesto?
— não sei. na hora me pareceu uma boa idéia. mas penso que pode ter
havido um comando do meu inconsciente para me vingar dos responsáveis
por isto.
apalpou os chifres. depois olhou calthorp fixamente.
— seu judas! por que você fez aquilo comigo? — quem lhe disse? aquela
moça?
— foi. deixe para lá. vamos, doutor, desembuche. mesmo que machuque,
desembuche. não vou lhe bater. meus chifres são o espelho de se estou ou
não no meu juízo perfeito. você pode ver como eles estão flácidos.
— comecei a suspeitar do verdadeiro caráter dos acontecimentos assim
que comecei a entender a língua — disse calthorp. — eu não tinha certeza,
no entanto, até que eles implantaram esses chifres em você. mas eu não
queria lhe dizer enquanto não tivesse esboçado um plano de fuga. pensei que
você poderia arranjar uma oportunidade e querer cair fora. vi imediatamente
que, se você fugir de manhã, estará de volta de tarde... ou mais cedo ainda.
esse mecanismo biológico na sua testa lhe dá mais que uma inexaurível
capacidade para espalhar seu sêmen; também lhe dá uma irresistível
compulsão a fazê-lo. envolve-o completamente... possui você inteiramente.
você é o maior caso de satiríase da história.
— sei como isso me afeta — disse stagg, impaciente. — quero saber
exatamente que espécie de papel estou desempenhando. com que objetivo. e
porque toda essa história de herói solar é necessária.
— você não quer um drinque antes?
— não! não quero afogar as mágoas em álcool. hoje vou realizar alguma
coisa. gostaria de um grande copo de água gelada. e estou morrendo de
vontade de tomar um banho, de tirar todo este suor e sujeira de cima de mim.
mas isso pode esperar. conte a história, por favor. e conte depressa!
— agora não tenho tempo para falar da lenda e da história de deecee —
disse calthorp. — faremos isso amanhã. mas posso lhe esclarecer bastante
sobre a posição de duvidosa honraria que você tem.
"em suma, você combina vários papéis religiosos com os de herói solar e
de rei-garanhão. o herói solar é o homem escolhido anualmente para
representar a passagem do sol em volta da terra, de forma simbólica. sim, eu
sei que a terra gira em torno do sol e as sacerdotisas e as massas analfabetas
de deecee também o sabem. mas, por motivos de ordem prática, o sol gira ao
redor da terra e é dessa mesma maneira que pensa o cientista, quando não
pensa cientificamente.
"portanto, o herói solar é escolhido e nasce simbolicamente durante a
cerimônia que tem lugar mais ou menos em 21 de dezembro. por que nessa
data? porque ela é a data do solstício de inverno, quando o sol está mais
fraco e atingiu sua posição mais ao sul.
"e é por isso que você está seguindo, agora, a estrada do norte. você está
destinado a viajar como viaja o sol depois do solstício de inverno: para o
norte. e como o sol, você fica cada vez mais forte. você notou como o efeito
dos chifres se torna cada vez mais poderoso? a prova disso foi a louca proeza
que você executou quando subjugou aquele veado e atacou as sacerdotisas."
— e que acontecerá quando eu atingir a posição mais ao norte? —
perguntou stagg.
sua voz estava calma e bem controlada, mas a pele, sob o bronzeado,
empalidecera.
— essa posição deve ser a cidade que conhecíamos como albany, no
estado de nova york. É agora o limite mais ao norte do território deecee. e é
também onde alba, a deusa-porca, vive. alba é columbia no seu disfarce de
deusa da morte. o porco é consagrado a ela porque, como a morte, é onívoro.
alba também é a deusa lua branca, outro símbolo da morte.
calthorp parou. seu ar era de quem não agüentava continuar aquela
conversa; seus olhos estavam úmidos.
— continue — disse stagg. — posso agüentar. calthorp respirou fundo e
prosseguiu:
— o norte, de acordo com a lenda de deecee, é o lugar onde a deusa lua
aprisiona o herói solar. maneira indireta de dizer que ele...
— morre — terminou stagg, pelo doutor. calthorp engoliu em seco.
— isso. o herói solar está destinado a completar a grande marcha a
tempo do solstício de verão... mais ou menos em 22 de junho.
— e quanto ao grande garanhão, o rei cornudo?
— deecee não seria nada se não fosse uma nação econômica. por isso,
combinaram o papel de herói solar com o de rei-garanhão. É o símbolo do
homem. nasce como uma criança fraca e desamparada, cresce para se tornar
um macho viril e sensual, amante e pai. mas também ele completa a grande
marcha e deve, quer queira, quer não, enfrentar a morte. quando ele a
encontrar, estará cego, careca, fraco e impotente. e... lutando pelo último
alento mas... alba, implacavelmente, arranca do peito dele esse último alento.
— não use linguagem figurada, doutor — falou stagg. — diga as coisas
em inglês claro.
— haverá uma fabulosa cerimônia em albany, a cerimônia final. lá você
possuirá não as suaves jovens virgens, mas a velha sacerdotisa de cabelos
brancos e seios de porca, servidora da deusa-porca. e sua natural repugnância
pela velha fará com que eles o prendam numa jaula até que você chegue a tal
ponto de sensualidade que aceite qualquer mulher, mesmo uma avó de cem
anos. depois...
— depois?
— depois você será cegado, escalpado, castrado e, finalmente,
enforcado. haverá uma semana de luto nacional por você. então você será
enterrado em posição fetal sob um dólmen, uma arcada de grandes lajes de
pedra. e serão ditas orações em homenagem a você e veados serão
sacrificados sobre seu túmulo.
— É um grande consolo — disse stagg. — olhe, doutor, por que fui
escolhido para esse papel? não é verdade que os heróis solares são, em geral,
voluntários?
— os homens lutam por essa honra, como as virgens lutam para se
tornarem a noiva do garanhão. o homem escolhido é o mais forte, o mais
bonito, o mais viril rapaz da nação. foi azar seu ser não só tudo isso mas o
chefe de homens que realmente subiram aos céus num cavalo de fogo e
voltaram. eles têm uma lenda sobre um herói solar que fez isso. acho que o
governo de deecee decidiu que, se se livrassem de você, conseguiriam
desfazer a união da tripulação. e assim fazendo, nos neutralizariam,
diminuindo qualquer perigo de que trouxéssemos de volta a velha e
abominada ciência.
"estou vendo mary casey acenando para você. acho que ela quer lhe
falar."
nove
— NÃO! — respondeu ela. — não entendo. mesmo que fosse, você não
está vendo o perigo a que vai nos expor, voltando lá? aquelas mulheres irão
contar aos homens, quando eles voltarem, e as sacerdotisas de vassar serão
avisadas. e os teremos todos nas nossas costas. podemos ter a certeza de que
seremos enforcados se eles souberem que andamos pelas redondezas.
— sei que você tem razão. mas não posso evitar. comi demais. ou
aquelas duas mulheres ou eu.
mary ficou de pé. tinha a expressão de quem ia fazer alguma coisa
desagradável, mas obrigatória.
— se você ficar de costas um instante — disse a moça, com voz trêmula
— acho que poderei resolver seu problema.
assombrado, stagg respondeu:
— mary, você quer mesmo? você não sabe o que é isso para mim!
virou-se e, a despeito de sua quase insuportável e devoradora
expectativa, teve de sorrir. como era bom ela ser tão modesta ao tirar a roupa
logo antes de ir para a cama com ele!
ouviu-a mexer-se atrás dele.
— já posso me virar?
— ainda não. não estou pronta. ouviu-a aproximar-se e disse,
impaciente: —. posso me virar agora?
— ainda não — respondeu mary, chegando bem atrás dele.
— não posso ficar esperando muito tempo...
alguma coisa bateu violentamente na base do seu crânio. stagg desmaiou.
quando recobrou os sentidos, estava deitado de lado, com os braços
amarrados para trás e as pernas ligadas uma à outra pelos tornozelos. mary
havia dividido em duas a corda que ele pusera no saco quando fugiram dos
pants-elfs. viu, perto dele, uma enorme pedra, que ele imaginou ter sido
usada por mary para derrubá-lo.
vendo que o comandante abria os olhos, a moça disse:
— sinto muitíssimo, peter. era preciso. se você pusesse os deecees atrás
de nós, talvez não escapássemos.
— há duas garrafas de uísque no saco — respondeu stagg. — encoste-me
ao tronco de uma árvore e ponha uma garrafa na minha boca. quero bebê-la
toda. primeiro, porque preciso de alguma coisa que acabe com a dor na
minha cabeça. segundo, porque a menos que eu beba até ficar inconsciente,
ficarei doente de raiva. terceiro, porque preciso esquecer a cadela escrota que
você é!
ela não respondeu, mas obedeceu, mantendo a garrafa inclinada
enquanto ele bebia.
— desculpe, peter.
— vá para o inferno! por que tive de gamar por você? por que não fugi
com uma mulher de verdade! continue me dando uísque.
duas horas depois, havia bebido dois terços da garrafa. sentou-se e ficou
imóvel por alguns segundos, com os olhos fixos. então resmungou e
adormeceu.
quando acordou, na manhã seguinte, estava desamarrado. não reclamou
da ressaca, nem falou com mary. apenas a olhou quando ela colocou as
rações na sua frente. depois da refeição, durante a qual bebeu muita água,
começaram a andar para leste, em silêncio.
pelo meio-dia, mary falou.
— nenhuma granja durante esta caminhada de duas horas. as árvores
estão ficando esparsas e o chão pedregoso. estamos chegando às terras
devastadas entre deecee e caseyland. temos de ter mais cuidado que nunca
porque, provavelmente, estamos cercados de expedições guerreiras das duas
nações.
— que é que tem encontrarmos sua gente? — perguntou stagg. — são as
pessoas que procuramos, não são?
— podem atirar primeiro e conversar depois — disse mary, nervosa.
— está bem — respondeu stagg, asperamente. — gritaremos de longe
para eles. diga, mary, você tem certeza de que não serei tratado como um
deecee cativo? afinal de contas, este corno pode predispô-los contra mim.
— não depois de eu dizer que você salvou minha vida. e você não tem
culpa de ser um herói solar. É claro...
— É claro o quê?
— você vai ter de ser operado. não sei se minha gente tem uma técnica
cirúrgica bastante adiantada para remover seu corno sem matá-lo, mas é
preciso que você se arrisque. se não, será metido na cadeia. e você sabe que
isso o enlouquecerá. não é possível deixá-lo solto nessas condições. e,
naturalmente, nem penso em casar com você enquanto você exibir esse
corno. oh! e antes você também precisa se batizar na nossa religião. não
quero casar com um pagão. não poderia, nem que quisesse; nós matamos os
pagãos.
stagg não sabia se rugia de raiva, berrava de alegria ou chorava de
tristeza. assim, não revelou nenhuma emoção. em lugar disso, falou
francamente:
— não me lembro de ter pedido a você para casar comigo.
— oh, não precisa pedir! — replicou mary. — basta termos passado uma
noite juntos, sem companhia. na minha terra, isso quer dizer que um homem
e uma mulher têm de casar. esta é, freqüentemente, a única maneira de
anunciar um casamento.
— mas você não fez nada para justificar um casamento forçado —
respondeu stagg. — você continua virgem. isto é, até onde posso saber.
— continuo e muito! mas isso não quer dizer nada. ficou estabelecido
que um homem e uma mulher que passam a noite juntos podem sucumbir ao
apelo da carne por maior que seja a força de vontade. quer dizer, a menos
que sejam santos. e se são santos, não permitem que se produza uma situação
dessas.
— então por que, em nome do céu azul e de toda essa maluquice. você se
manteve tão obstinadamente na posição do mocinha direita? — gritou ele. —
se ia ter de acontecer, a gente podia fazer logo.
— porque não fui educada assim. porque — acrescentou, um tanto
pedante — não interessa como o povo pensa. o que a mãe vê é o que
interessa.
— Às vezes você é tão carola que me dá vontade de esganá-la! cá estava
eu sofrendo as piores agonias, como você nunca poderá imaginar, e você aí o
tempo todo podendo aliviar meu sofrimento sem nenhum problema moral...
ainda por cima passando por momentos só gozados por poucas mulheres!
— não precisa ficar zangado — disse mary. — afinal de contas as coisas
não se passaram como se tivessem acontecido na minha terra, onde
poderíamos ser mortos antes de casarmos. e então eu teria pecado. além
disso, você não pertence à categoria comum. tem esse corno. isso o coloca
numa categoria especial. tenho certeza de que será preciso um sacerdote
muito culto para examinar todas as implicações.
stagg tremeu de raiva e disse:
— ainda não chegamos a caseyland!
meio-dia. stagg comeu muito além da sua capacidade normal. mary nada
disse a respeito, mas ficou de olho nele. cada vez que o astronauta se
aproximava, ela recuava. arrumaram o saco e continuaram a andar. o
comandante estava, evidentemente, começando a sentir os resultados da
alimentação. a parte carnuda superior do chifre começou a aumentar e
enrijecer. seus olhos faiscaram e ele dava pulinhos no ar, grunhindo com
alegria contida.
mary começou a ficar para trás. stagg estava tão atacado pela onda de
desejo que se aproximava, que não reparou. quando ela ficou a cerca de vinte
jardas atrás dele, correu para as moitas. stagg ainda andou outras vinte jardas
antes de se virar e ver que ela desaparecera. aí deu um rugido e atirou-se em
sua perseguição pelo mato, perdendo todo o senso de cautela e gritando por
ela.
achou sinais de mary num monte de ervas esmagadas, seguiu-os até o
leito quase seco de um pequeno regato, atravessou-o e entrou num bosque de
carvalhos, onde perdeu suas pegadas. saindo pelo outro lado, viu-se numa
campina aberta.
viu-se, também, frente a frente com doze ou mais espadas, tendo o rosto
inflexível de um casey por trás de cada ponta em riste.
viu, mais afastada, uma moça de uns vinte anos.
a moça usava um vestido igual ao de mary quando ele a vira pela
primeira vez na jaula. era uma mascote. os homens usavam o uniforme de
perneiras vermelhas do time de baseball campeão de caseyland. mas havia
uma coisa incongruente na indumentária deles. em lugar dos capacetes
pontudos, usavam chapéus de plumas, como os dos almirantes.
mais atrás havia veados, dezenove para o primeiro time í os reservas, um
para a mascote e quatro para carregar o material e mantimentos.
o líder dos caseys, chamado "mighty", como todos os capitães caseys,
era um homem alto e sólido, com um comprido rosto magro, tendo uma das
bochechas inflada por um pedaço de fumo. riu brutalmente para stagg.
— então, velho cornudo! esperava encontrar carnes jovens, arredondadas
e macias? e em vez disso encontrou a dura e mordente lâmina de uma
espada! está desapontado, monstro? pois não fique. vamos oferecer-lhe o
abraço de uma mulher... mas seus braços são magros e ossudos, seus peitos
são flácidos e enrugados e seu hálito fede a túmulo.
— não seja tão melodramático assim, mighty — reclamou um dos
homens. — vamos enforcá-lo e cair fora. ainda temos um jogo a disputar em
poughkeepsie.
stagg soube então, o que eles estavam fazendo ali. não era uma
expedição guerreira e sim o clube que fora convidado a jogar em deecee.
como tal, deviam ter um salvo-conduto que os protegia de emboscadas.
além disso, o salvo-conduto continha a promessa de que os caseys não
molestariam nenhum deecee que encontrassem nas terras devastadas.
— não falemos de enforcamento — disse stagg a mighty. — de acordo
com as regras, vocês não podem fazer nada a um deecee, a menos que este
os ataque.
— É verdade — respondeu mighty. — mas acontece que sabemos, por
nossos espiões, quem você é. você não é natural de deecee; portanto, nosso
compromisso não o inclui.
— então, por que me enforcar? — perguntou stagg. — se não sou de
deecee, não sou inimigo de vocês. diga-me, não viu uma mulher correndo na
minha frente? chama-se mary casey. ela poderá lhe dizer que eu devo ser
tratado como amigo!
— a história de sempre — disse o homem que insistira em enforcar
stagg. — você é um desses homens cornudos possuídos pelo demônio! para
nós é o suficiente.
— cale a boca, lonzo! — gritou mighty. — quem manda aqui sou eu!
virou-se para stagg.
— gostaria de tê-lo liquidado antes de você abrir a boca. assim você não
seria um problema. mas agora quero saber mais sobre essa mary casey.
inesperadamente, perguntou:
— como é o sobrenome dela?
— de-viagem-para-o-paraíso.
— É, é o nome da minha prima. mas acho que o fato de você saber isso
não prova nada. mary foi arrastada, junto com
você, na grande marcha. temos um bom sistema de espionagem e
sabemos que você e ela desapareceram depois que as bichas atacaram vassar.
mas as feiticeiras arranjaram outro rei cornudo e depois mandaram
secretamente destacamentos armados procurar você.
— mary está por aqui, nestes matos — disse stagg. — ache-a e ela
confirmará que eu a estava ajudando a fugir para a terra dela.
— mas o que fez vocês se separarem? — perguntou mighty, desconfiado.
— por que você estava correndo?
stagg não respondeu. mighty continuou:
— já sei. basta olhar para você e qualquer pessoa saberá porque a estava
perseguindo. vou lhe dizer uma coisa, rei cornudo. vou lhe dar uma chance.
normalmente, eu o assaria primeiro em fogo brando, depois arrancaria seus
olhos e os empurrava por sua goela abaixo. mas temos de ir jogar e não
podemos perder tempo. por isso, vou lhe dar uma morte rápida. rapazes,
amarrem as mãos dele e o enforquem!
jogaram uma corda por cima de um ramo de carvalho e passaram um
laço no pescoço dele. dois homens lhe agarraram os braços, enquanto um
terceiro se preparava para o amarrar. stagg não resistiu, embora pudesse
atirá-los facilmente a distância.
o comandante disse:
— espere! desafio você para um jogo, de acordo com as regras do um
contra cinco e tomo deus por testemunha de quo o desafiei!
— o quê? — perguntou mighty, incrédulo, — pelo amor de columbus,
homem, já estamos atrasados! além disso, por que devemos aceitar esse
desafio? não sabemos se você é de nossa classe. somos todos diradah e o
desafio de um shet hed não pode ser aceito. de fato, é um absurdo pensar
nisso.
— não sou um shet hed — respondeu stagg, também usando a expressão
que servia para designar os camponeses. — já ouviu dizer alguma vez que
um herói solar tenha sido escolhido fora das fileiras aristocráticas?
— É verdade — disse mighty. cocou a cabeça.
— bom, vamos dar um jeito. talvez o jogo não demore muito. soltem-no,
rapazes.
nem por um instante passou-lhe pela cabeça ignorar o desafio de stagg e
enforcá-lo. tinha um código de honra e jamais pensaria em rompê-lo.
especialmente quando stagg o invocara em nome da sua deidade.
os caseys que deviam constituir os primeiros cinco, tiraram os chapéus
de almirante e colocaram na cabeça os capacetes pontudos. apanharam o
equipamento nos sacos pendentes dos lombos dos veados e começaram a
traçar um losango de baseball no prado ao lado. tiraram de um saco de couro
um espesso pó branco para marcar as linhas paralelas que iam de base a base
e de cada base para o lugar do batedor. desenharam um pequeno quadrado
em torno de cada base, uma vez que, peias regras do um contra cinco, stagg
podia ter de bater a bola de cada uma das bases no decorrer do jogo.
desenharam um quadrado maior para o arremessador.
— você topa que nossa mascote seja o juiz? — perguntou mighty. — ela
jurará em nome do pai, da mãe e do filho que não nos beneficiará. se ela não
agir direito, um raio a derrubará. pior que isso, ela ficará estéril.
— não tenho muita escolha — respondeu stagg, sopesando o bastão
recoberto de metal que lhe deram. — quando quiserem, estou à disposição
de vocês.
seu desejo de mulher havia desaparecido, sublimado na ânsia de
derramar o sangue daqueles homens.
a mascote, usando uma máscara de tela metálica e um grosso uniforme
acolchoado, caminhou, rebolando, para seu lugar atrás do pegador.
— bater!
stagg esperou pelo arremesso de mighty. este estava a apenas trinta e
nove metros de distância, segurando a dura bola de couro de quatro pontas
de aço. olhou para stagg, deu impulso ao braço e deixou a bola partir.
a bola, veloz como a bala de um canhão, seguiu em linha reta contra a
cabeça de stagg. ia tão rápida e com tanta precisão que parecia duvidoso que
um homem de reflexos normais pudesse se esquivar. stagg no entanto,
curvou os joelhos. a bola passou uma polegada acima de sua cabeça.
— primeira bola! — gritou a mascote, com voz clara.
o pegador não fez qualquer esforço para agarrar a bola. naquele jogo, sua
obrigação era correr atrás dela e devolvê-la ao arremessador. claro, ele
também defendia a base e procuraria pegar a bola com sua imensa luva
acolchoada, se stagg tentasse alguma vez atingir a base.
mighty casey girou novamente o braço e mirou o diafragma de stagg.
stagg bateu. o bastão produziu um som cavo, que contrastava
bizarramente com o fino estrépido esperado automaticamente por ele.
a bola desviou-se para a esquerda de stagg e rolou para fora do losango,
ultrapassando a linha penal.
— primeira batida!
o pegador devolveu a bola. mighty casey fingiu girar o braço e depois
arremessou repentinamente a bola, com um gesto suave.
stagg quase foi atingido. não teve tempo de se mexer e pôde mal e mal
estender o bastão. a bola bateu no lado do bastão e ficou pendurada durante
um momento, em virtude de uma das pontas ter-se enterrado no metal.
stagg correu na frente, agarrado ao seu bastão, pois as regras permitiam
isso se a bola batesse nele. mighty casey correu atrás dele, esperando que a
bola caísse na corrida. em caso contrário, se stagg chegasse à primeira base
com a bola em seu poder, se tornaria arremessador e mighty casey batedor.
na metade do caminho, a bola caiu.
stagg corria como o veado com quem se parecia, lançando-se de cabeça
para a frente e deslizando na grama até dentro da base. o bastão, que
conservava afastado dele, na ponta do braço estendido, atingiu o primeiro
guardião da base na canela, derrubando-o.
alguma coisa atingiu stagg nas costas. rosnou de dor quando sentiu a
ponta mergulhando em sua carne. mas levantou-se de um salto, alcançou a
ponta e a arrancou, pouco se incomodando com o jorro quente que lhe descia
pelas costas.
agora, de acordo com as regras, se tivesse sobrevivido ao impacto da
bola e tivesse força bastante, poderia atirá-la para o arremessador ou para o
primeiro guardião.
o primeiro guardião procurou se esquivar, mas estava tão machucado
pelo bastão de stagg que nem podia andar. teve de tirar seu bastão da bainha
que levava pendurada nas costas e ficou preparado para rebater a bola, se
stagg a atirasse nele.
stagg atirou e o primeiro guardião, com o rosto contorcido pela dor na
perna, golpeou a bola com violência.
ouviu-se um som surdo. o primeiro guardião balançou para a frente e
para trás e depois desabou, com a ponta enterrada na garganta.
stagg podia agora escolher entre permanecer a salvo na primeira base ou
ganhar a segunda. preferiu correr e novamente teve de deslizar de cabeça. o
segundo guardião, ao contrário do primeiro, ficou de lado. assim, a
velocidade de stagg era grande quando ultrapassou a base. imediatamente fez
meia-volta e rolou para tocar na segunda base.
houve um estalo quando a bola foi agarrada pela enorme e grossa luva
acolchoada do segundo guardião.
stagg estava — teoricamente — fora de perigo na segunda base. mas não
se acalmou por causa do olhar de fúria do segundo guardião. levantou-se de
um pulo, com o bastão pronto para bater na cabeça do sujeito se ele
esquecesse as regras o suficiente para tentar atingir stagg com a bola.
o segundo, vendo o bastão em riste, deixou a bola cair no chão. saía
sangue dos seus dedos, que ele devia ter cortado nas pontas, na ânsia de
arrancar a bola da luva.
foi pedido um intervalo, durante o qual o primeiro guardião, coberto por
um cobertor, foi objeto de algumas preces rápidas.
stagg pediu mais comida o água porque estava começando a desmaiar de
fome. tinha esse direito se o outro lado pedisse um intervalo.
comeu. assim que acabou, a mascote gritou:
— atirar bola!
stagg, agora parado dentro do exíguo quadrado existente em torno da
segunda base, era novamente o batedor. mighty girou o braço e arremessou.
stagg atingiu a bola pela esquerda, bem dentro da linha penal. começou a
correr mas, daquela vez, o camarada que substituiu o primeiro guardião
morto atirou-se sobre a bola assim que ela caiu e ficou espetada no chão.
stagg interrompeu a corrida por uma fração de segundo, não sabendo se
corria para a terceira base ou se voltava para a segunda.
o primeiro guardião arremessou a bola por baixo para mighty que,
naquele instante, estava agachado junto às linhas paralelas entre a segunda e
a terceira base, quase no caminho de stagg. a retaguarda deste ficaria
desprotegida se ele continuasse. stagg girou o corpo; seus pés descalços
escorregaram na grama e ele caiu de costas.
durante um terrível momento, stagg pensou que estava liquidado. mighty
estava muito perto e voltou-se para atingir seu alvo caído.
mas stagg agarrava o bastão. desesperadamente, levantou-» à sua frente.
a bola tocou o bastão de relance, arrancando-o da mão de stagg e fazendo-o
rolar até uma marca a alguns pés de distância.
stagg rugiu, triunfal, pulou sobre os pés e apanhou o bastão, que ficou
balançando precavidamente. a menos que fosse realmente atingido pela bola
entre bases, não poderia apanhá-la e arremessá-la contra seus oponentes.
nem poderia abandonar o terreno limitado pela linha branca para ameaçar
quem quer tentasse apanhá-la. todavia, se a bola caída no chão estivesse
bastante próxima, de maneira a que ele pudesse atingir com o bastão quem
procurasse agarrá-la, poderia fazê-lo.
a foz feminina do juiz fez-se ouvir, estridente, através do campo, quando
começou a contar até dez. o antagonista de stagg tinha dez segundos para
decidir se tentaria apanhar a bola ou deixaria o herói solar caminhar, livre,
para a terceira base.
— dez! — gritou a mascote e mighty afastou-se do bastão que stagg
balançava.
mighty arremessou novamente. stagg movimentou o bastão e errou.
mighty sorriu e atirou na direção da cabeça de stagg. este girou o bastão e
errou a bola, mas esta não o atingiu.
mighty riu com ferocidade porque, se stagg batesse, teria le atirar fora o
bastão e ficar imóvel enquanto mighty tentaria acertar a bola bem entre os
olhos dele.
todavia, se stagg conseguisse atingir a base, se tornaria arremessador.
continuaria a ficar em desvantagem porque não tinha companheiros para
ajudá-lo; mas, por outro lado, sua grande velocidade e vigor o
transformavam num time de um homem só.
houve um silêncio durante o qual só se ouviu o murmúrio ias preces dos
caseys. depois, mighty arremessou.
a bola voou direta na direção da barriga de stagg, permitindo-lhe
escolher entre tentar rebatê-la de leve ou então desviar-se para um lado,
mantendo os pés no exíguo quadrado. se desse um passo ou caísse fora dele,
tinha uma batida contra.
stagg preferiu desviar-se.
a bola passou por sua encolhida carne. tão perto que a extremidade de
uma das pontas fez-lhe um fino lanho. começou a pingar sangue do
estômago dele.
— primeira bola!
mighty arremessou na barriga outra vez. para stagg, a bola parecia
dilatar-se enormemente, grávida de destruição, um planeta contra o qual
estava caindo.
fez um violento movimento com o bastão, descrevendo um arco veloz,
paralelo ao chão. bateu na bola com a ponta do bastão, que caiu, quebrando-
se com o choque. a bola voou de volta para mighty.
o arremessado!' foi apanhado desprevenido. não podia acreditar que a
pesada bola voasse tanto. então, como stagg corresse para a base, mighty se
adiantou e apanhou a bola com a luva. ao mesmo tempo, os outros
jogadores, livres do paralisante espanto em que se encontravam, fizeram o
cerco para a matança.
dois homens se interpuseram entre stagg e a base, um de cada lado das
linhas brancas paralelas. ambos pediam que mighty lhes atirasse a bola. mas
este escolheu a honra de, ele mesmo, pegar stagg.
desesperadamente, stagg rebateu a bola com o cabo do bastão, a parte de
madeira separada da metálica. a bola não repicou, mas afundou no chão, a
seus pés.
um casey mergulhou sobre ela.
stagg esmigalhou o capacete e o crânio dentro dele.
os outros pararam de correr.
a mascote colocou as mãos sobre a máscara, protegendo os olhos da
visão do homem morto. mas logo depois deixou cair os braços c olhou,
suplicante, para mighty. este vacilou um momento, como se fosse dar o sinal
de atacar stagg e liquidá-lo, mandando as regras às favas.
depois, respirou fundo e gritou:
— está bem, katie, comece a contar. somos diradah. não trapaceamos.
— um! — disse a mascote, com voz trêmula.
os outros jogadores olhavam para mighty. este riu e disse:
— está bem. todos atrás de mim. tentarei primeiro. não peço a ninguém
que faça a minha obrigação.
um dos homens disse:
— podíamos deixá-lo ir embora.
— o quê? — gritou mighty. — e deixar cada capão, cada usador de
saiote, cada adorador de ídolos de deecee rir de nós? não! se devemos morrer
— e um dia isso acontecerá — morramos como homens!
— cinco! — gritou a mascote, com a voz soando como se tivesse o
coração partido.
— não temos chance! — rosnou um casey. — ele é duas vezes mais
rápido que qualquer de nós. seremos como carneiros no matadouro.
— não sou carneiro! — berrou mighty. — sou um casey! não tenho
medo de morrer. irei para o céu, enquanto esse cara será assado no inferno!
— sete!
— venham! — gritou stagg, sacudindo a metade quebrada do bastão. —
um passo à frente, senhores, e tentem a sorte!
— oito!
mighty agachou-se para dar o pulo, com os lábios fazendo uma prece
silenciosa.
— nove!
— parem!
dezesseis
fim