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Paranoia
Tradução de
HAROLDO NETTO
Título original
PARANOIA
Copyright © 2004 by Joseph Finder
Todos os direitos reservados.
Revisão técnica
MAURO FIGUEIREDO
Preparação de originais
MONICA MARTINS FIGUEIREDO
Edição brasileira publicada mediante acordo com o autor, a/c Baror Internacional, Inc.,
Armonk, Nova York, EUA.
Agradecimento pela permissão de reproduzir o seguinte material:
Band on the Run. Letra e música de McCartney.
© 1974 Paul e Linda McCartney.
Administrado por MPL Communications, Inc.
Todos os direitos reservados.
O ARRANJO
Foi então que, da sombria extremidade mais distante da sala, ouvi uma
porta se abrir e o que me pareceram palmas. Palmas sonoras e lentas.
Era Nicholas Wyatt, fundador e presidente da Wyatt
Telecommunications. Ele foi se aproximando sem parar de bater palmas,
com um largo sorriso no rosto.
— Brilhante performance — disse ele. — Absolutamente brilhante.
Olhei para cima, assustado, e depois sacudi a cabeça, compungido.
Wyatt era um homem alto, com quase dois metros de altura, e um corpo de
lutador. Foi ficando cada vez maior à medida que se aproximava e, quando
parou a poucos centímetros de mim, parecia maior que a vida. Wyatt era
conhecido por se vestir bem e, de fato, estava usando um terno ao melhor
estilo Armani, cinza com riscas sutis. Não só era poderoso, parecia
poderoso.
— Sr. Cassidy, deixe que eu lhe faça uma pergunta.
Eu não sabia o que fazer, então me levantei e estendi a mão para
apertar a dele.
Wyatt ignorou minha mão.
— Qual é o primeiro nome de Jonesie?
Eu hesitei por um instante demasiadamente longo.
— Al — respondi, por fim.
— Al? Abreviatura de quê?
— Al — Alan — falei. — Albert — Merda.
Meacham me encarou, espantado.
— Detalhes, Cassidy — disse Wyatt. — Os detalhes ferram a gente o
tempo todo. Mas tenho que lhe dizer, você me comoveu... você realmente
me comoveu. A parte sobre o Exército da Salvação realmente me tocou
aqui — ele bateu no peito com o punho fechado. — Extraordinária.
Sorri timidamente, sentindo-me realmente como um idiota. — O cara
aqui disse para eu contar uma boa história. Wyatt sorriu.
— Você é um jovem extraordinariamente dotado, Cassidy, uma
Scheherazade dos diabos. E eu acho que devemos ter uma conversa.
4
Nicholas Wyatt era um sujeito assustador. Eu nunca tinha me
encontrado com ele antes, mas o vira na TV, no CNBC e no site da empresa,
nas videomensagens que gravava. Eu dera umas poucas olhadas nele ao
vivo, nos três anos em que trabalhava para a companhia que fundara. De
perto, era ainda mais intimidador. Tinha a pele bronzeada e o cabelo negro
penteado para trás e preso com gel.
Os dentes eram perfeitamente regulares e absurdamente brancos.
Tinha cinquenta e seis anos mas não parecia, seja qual for a aparência
que deva ter alguém nessa idade. De qualquer modo, não parecia com meu
pai aos cinquenta e seis, um velhote barrigudo e meio careca, mesmo que
estivesse em seu suposto apogeu. Este era outro tipo de cinquenta e seis
anos.
Eu não tinha ideia do motivo pelo qual ele estava ali. Com o que
poderia o presidente da companhia me ameaçar que Meacham já não
tivesse usado? Pena de morte a ser executada por mil cortadores de papel?
Ser comido vivo por um porco-do-mato?
Secretamente, eu fantasiava que ele ia me cumprimentar com uma
palmada na mão, braços levantados, ia me congratular por ter inventado
uma boa desculpa e dizer que gostava do meu espírito, minha coragem.
Mas este melancólico e pequeno devaneio murchou tão rapidamente
quanto pipocou na minha cabeça.
Nicholas Wyatt não era um padre que jogava basquete, e sim um filho
da mãe vingativo.
Eu ouvira histórias. Sabia que se você tivesse miolos ia fazer questão
absoluta de evitá-lo. Você mantinha a cabeça baixa, tentava não atrair a
atenção dele.
Wyatt era famoso pelas suas iras, explosões de raiva e berreiros. Era
conhecido por demitir gente na hora, mandar a segurança esvaziar as
mesas dos pobres coitados e fazer com que saíssem escoltados do prédio.
Nas suas reuniões de executivos, ele sempre escolhia uma pessoa para
humilhar o tempo todo. Não se ia procurá-lo com más notícias e não se
desperdiçava uma fração de segundo do seu tempo. Se você tivesse a má
sorte de ser obrigado a fazer para ele uma palestra usando PowerPoint,
tinha que ensaiar e ensaiar até ficar perfeito, mas, se houvesse uma única
falha, ele interrompia gritando: "Eu não acredito!"
Diziam que tinha suavizado um bocado com o passar do tempo, mas
não diziam como ele era antes. Nick Wyatt era ferozmente competitivo,
levantador de pesos e triatleta.
Os caras que se exercitavam com ele no ginásio da companhia diziam
que vivia desafiando os atletas sérios a competições na barra. Nunca
perdia, e, quando os outros desistiam, ele provocava: "Quer que eu
continue?" Diziam que tinha o corpo do Arnold Schwarzenegger, como
uma camisa de vênus marrom, estufada de nozes.
Não só era insano a respeito de ganhar, como também, para ele, a
vitória não era suficientemente doce a menos que também pudesse
ridicularizar o perdedor. Em uma festa de Natal da companhia, escreveu o
nome do seu principal competidor, Trion Systems, em uma garrafa de
vinho e esmagou-a, espatifou-a de encontro a uma parede, provocando um
bocado de gritos e vaias de bêbados.
Wyatt comandava um grupinho de alta testosterona. Seus amigos do
mais alto escalão se vestiam todos como ele, com ternos de sete mil
dólares de Armani, Prada ou Brioni ou Kiton ou outros estilistas dos quais
eu nunca ouvira falar. E aguentavam aquela merda porque eram
nojentamente bem pagos para isso. A piada a seu respeito que todo mundo
a essa altura já tinha ouvido: Qual a diferença entre Deus e Nicholas
Wyatt? Deus nem de longe pensa que é Nicholas Wyatt.
Nick Wyatt dormia três horas por noite, não parecia comer nada senão
barras energéticas no café da manhã e no almoço, era um reator nuclear de
energia nervosa e suava profusamente. As pessoas o chamavam de "O
Exterminador". Administrava pelo medo e nunca deixava passar um lapso.
Quando algum ex-amigo era destituído da função de presidente de alguma
grande empresa de tecnologia, ele enviava uma coroa de rosas negras —
seus assistentes sempre sabiam onde encontrar rosas negras.
A frase pela qual era famoso, a única coisa que repetia com tanta
frequência que devia ter sido gravada em granito acima da entrada
principal e transformada em protetor de tela do computador de todo
mundo, era:
"É claro que sou paranoico. Quero que todo mundo que trabalhe para
mim seja paranoico. O sucesso exige a paranoia."
Segui Wyatt pelo corredor da Segurança Corporativa até sua suíte
executiva, e foi difícil acompanhá-lo — ele andava tão depressa que eu
quase tive que correr.
Atrás de mim veio Meacham, brandindo um portfólio preto de couro
como uma batuta. Quando nos aproximamos da área executiva, as paredes
deixaram de ser placas de gesso pintadas de branco e passaram a ser
lambris de mogno, e o carpete passou a ser macio e fundo. Estávamos no
escritório dele, seu refúgio.
As duas assistentes ergueram a cabeça e sorriram para Wyatt quando
passamos em caravana entre elas. Uma loura, outra morena. Ele disse:
"Linda, Yvette", como se as estivesse legendando. Não me surpreendi que
ambas fossem tão lindas como modelos famosas — ali tudo era caríssimo,
como as paredes, o carpete e a mobília.
Gostaria de saber se as atribuições delas incluiriam responsabilidades
extraoficiais, como sexo oral no chefe. Era o boato que corria, de qualquer
maneira.
O escritório de Wyatt era imenso. Toda uma aldeia bósnia podia morar
ali dentro. Duas paredes eram de vidro, do teto ao chão, e a vista da cidade
era inacreditável. As outras eram de madeira escura sofisticada, cobertas
com coisas emolduradas, capas de revistas com sua cara, Fortune, Forbes,
Business Week. Admirei aquilo de olhos esbugalhados, enquanto meio que
andei, meio que corri ao lado. Uma foto dele e de alguns outros sujeitos
com a falecida princesa Diana. Nick Wyatt com ambos os Bush — o
George e o George W.
Ele nos conduziu a um "grupo de conversação" formado por poltronas
de couro preto e um sofá que pareciam pertencer ao MOMA, e arriou o
corpo numa ponta do sofá enorme.
Minha cabeça girava. Eu estava desorientado, em outro mundo. Não
conseguia imaginar por que me encontrava ali, no escritório de Nicholas
Wyatt. Talvez, quando menino, ele gostasse de arrancar as patas dos
insetos, uma por uma, com alicates, para depois os incendiar com uma
lente de aumento.
— Então esta foi uma trapaça muito elaborada de sua autoria —
comentou. — Impressionante.
Sorri e baixei os olhos, modestamente. Negar nem passou pela minha
cabeça. Graças a Deus, pensei. Parecia que a coisa se encaminhava para os
aplausos e louvores à minha coragem.
— Mas ninguém chuta o meu saco e sai ileso, você já deve saber disso
a esta altura. E é ninguém mesmo, porra!
Pronto, ele já apanhara o alicate e a lente de aumento.
— De que se trata, então? Você tem sido um gerente de linha aqui
nestes três anos, suas avaliações são uma bosta, você não conseguiu um
aumento ou promoção, o tempo todo funcionando no automático. Não
chega exatamente a ser um sujeito ambicioso, chega?
Ele falava ligeiro, o que me deixava mais nervoso ainda. Sorri de novo.
— Acho que não. Acho que tenho outras prioridades.
— Como?
Hesitei. Ele tinha me pegado. Encolhi os ombros.
— Toda pessoa tem que ser apaixonada por alguma coisa, senão ela
não vale merda nenhuma. Você obviamente não é apaixonado pelo seu
trabalho, então é apaixonado por quê?
Quase nunca fico sem ter o que dizer, mas daquela vez não consegui
imaginar nada inteligente. Meacham me observava também, com um
sorriso canalha e sádico na cara cortada à faca. Eu estava pensando nos
sujeitos que conhecia, na companhia, na minha divisão, que estavam
sempre montando esquemas para conseguir trinta segundos com Wyatt,
dentro do elevador ou durante o lançamento de um produto ou onde quer
que fosse. Eles, inclusive, chegavam a preparar um "papo de elevador". E
eu ali, no escritório do mandachuva, mais silencioso que um manequim.
— Você é ator ou algo semelhante no seu tempo livre?
Sacudi a cabeça.
— Bem, de qualquer forma você é bom. De repente, um Marlon
Brando. Pode ser uma bosta quando se trata de roteadores para empresas,
mas é um puta de um artista da mentira, nível olímpico.
— Se isso é um cumprimento, senhor, muito obrigado.
— Eu soube que você faz um Nick Wyatt danado de bom — é verdade?
Vamos ver.
Eu corei, sacudi a cabeça.
— De qualquer forma, indo logo aos finalmentes, você roubou meu
dinheiro e parece pensar que vai escapar impune.
Fiquei estarrecido.
— Não, senhor, não penso em escapar impune.
— Poupe-me. Não preciso de outra demonstração. Você me pegou
assim que disse olá.
Wyatt abanou a mão como um imperador romano, e Meacham passou-
lhe uma pasta. Ele deu uma olhada.
— Seus escores de aptidão estão no primeiro percentil. Você fez
faculdade se especializando em engenharia, de que tipo?
— Elétrica.
— Queria ser engenheiro quando crescesse?
— Papai queria que eu me especializasse em alguma coisa que me
pudesse render um emprego de verdade. Eu queria tocar guitarra com
Pearl Jam.
— Tocava bem?
— Não — admiti.
Ele meio que sorriu.
— Você fez a faculdade em cinco anos. O que aconteceu?
— Fui suspenso por um ano.
— Parabéns pela sinceridade. Pelo menos não tentou aquela bobagem
de "passar o primeiro ano no exterior". O que foi que aconteceu?
— Uma idiotice. Tive um semestre ruim e por isso invadi o sistema de
computadores da escola e mudei minhas notas. Do meu colega de quarto
também.
— Um velho truque.
Ele olhou para o relógio, deu uma espiada em Meacham e depois me
encarou de novo.
— Tenho uma ideia para você, Adam — não gostei do modo como ele
disse meu primeiro nome; assustador. — Uma ideia muito boa. De fato,
uma oferta extremamente generosa.
— Obrigado, senhor.
Eu não sabia de que ele estava falando, mas sabia que não podia ser
bom nem generoso.
— O que vou lhe dizer eu vou negar que disse um dia. Na verdade, não
só vou negar, como também vou foder você com um processo de
difamação se algum dia repetir, está claro? Acabo com a porra da sua raça.
Fosse o que fosse o que estivesse falando, ele tinha os recursos. Era um
bilionário, talvez o terceiro ou quarto homem mais rico dos Estados
Unidos, mas que já tinha sido número dois antes que o valor de nossas
ações caísse. Queria ser o mais rico — estava perseguindo Bill Gates —
mas isso não parecia provável.
Meu coração bateu com mais força.
— Claro.
— Percebe com clareza a sua situação? Atrás da porta número um você
tem a certeza — a porra da certeza — de pegar pelo menos vinte anos de
cadeia. Será isso, ou será o que quer que esteja atrás da cortina. Quer
brincar de Vamos Fazer Um Trato?
Engoli em seco.
— Claro.
— Deixa eu lhe contar o que está atrás da cortina, Adam. É um futuro
excelente para um cara que fez faculdade e se especializou em engenharia
como você, só que vai ter que obedecer às regras. Às minhas regras.
Senti meu rosto pegando fogo.
— Quero que você se encarregue de um projeto especial para mim.
Balancei a cabeça.
— Quero que você vá trabalhar na Trion.
— Trion Systems? — eu não entendi.
— Em Marketing de Novos Produtos. Eles têm duas vagas em lugares
estratégicos na companhia.
— Eles jamais me contratariam.
— Não, você tem razão, eles nunca vão contratá-lo. Não um
preguiçoso de merda como você. Mas um superastro da Wyatt, um jovem
bem-sucedido, a pique de ser transformado em estrela supernova, será
contratado numa fração de segundo.
— Não estou entendendo.
— Um cara sabido como você? Acaba de perder dois pontos no seu QI.
Vamos, seu idiota. O Lucid — era seu brinquedinho, certo?
Ele estava falando do principal produto da Wyatt Telecom, aquele PDA
tudo-em-um, uma espécie de Palm Pilot anabolizado. Um brinquedo
incrível. Só que eu não tinha nada a ver com ele. Nem sequer possuía um.
— Eles não vão acreditar — falei.
— Vê se me escuta, Adam. Tomo minhas grandes decisões de negócios
na base do instinto, e meu instinto diz que você tem a cara de pau, a
inteligência e o talento para fazer o que eu quero. Está dentro ou está fora?
— Vai querer que eu lhe faça relatórios, é isso?
Wyatt me lançou um olhar penetrante.
— Mais que isso. Quero que você consiga informações.
— Como um espião. Um agente duplo ou coisa parecida.
Ele virou as palmas das mãos para cima, como se quisesse perguntar se
eu era um débil mental ou o quê.
— Chame como quiser. Há uma propriedade intelectual valiosa dentro
da Trion em que eu quero botar as mãos, e a segurança deles é
praticamente impenetrável. Só uma pessoa de dentro pode conseguir o que
desejo, e não é qualquer pessoa. Tem que ser um sujeito cabeça. Ou a gente
recruta um, ou compra ou mete pela porta da frente. No seu caso,
dispomos de um jovem inteligente, bonito, altamente recomendado... acho
que temos uma chance bem decente.
— E se eu for apanhado?
— Não será — afirmou Wyatt.
— Mas e se eu for...?
— Se fizer o trabalho direito — disse Meacham — não será apanhado.
E, se por qualquer razão você fizer besteira e for pego, bem, aí nós
estaremos aqui para protegê-lo.
De algum modo, duvidei desta afirmativa.
— Eles não terão um pingo de mim.
— Por quê? — perguntou Wyatt. — Neste ramo as pessoas pulam de
companhia para companhia o tempo todo. Os mais talentosos sempre são
visados. Você acaba de ter uma grande vitória na Wyatt, talvez não tenha a
vitalidade que pensa que deveria ter, está procurando mais
responsabilidade, melhor oportunidade, mais dinheiro — esse papo de
sempre.
— Eles vão perceber que estou mentindo.
— Não se você fizer seu trabalho direito — retrucou Wyatt. — Você
vai ter que aprender marketing de produto, vai ter que ser estupidamente
brilhante, vai ter que dar mais duro do que jamais deu em toda a sua vida
lamentável. Realmente vai precisar fazer das tripas coração. Só um grande
ator vai conseguir o que quero. Tente encenar na Trion algo como o
número telefônico com que você desencadeou a festa e eles vão acabar
com você ou botá-lo para fora, e aí nossa pequena experiência termina. E
você se verá diante da porta número um.
— Pensei que todos os caras que trabalhassem com produtos novos
tivessem MBA.
— Nada disso, Goddard acha que esse negócio de MBA é bobagem...
uma das poucas coisas em que nós dois concordamos. Ele não tem. Acha
que é limitador. Por falar em limitador — ele estalou os dedos e Meacham
lhe passou uma latinha redonda, que pareceu familiar a Adam. Uma
latinha de Altoids. Wyatt abriu-a. Dentro havia algumas pílulas brancas
que pareciam aspirina mas não eram. Definitivamente familiares. — Você
vai ter que cortar esta merda — prosseguiu ele —, este Ecstasy ou sei lá
como se chama.
Eu guardava a lata de Altoids em casa, na minha mesinha de centro.
Gostaria de saber como e quando eles a tinham apanhado, mas eu estava
por demais confuso para ficar zangado. Ele largou a latinha dentro de uma
pequena cesta de lixo feita de couro preto ao lado do sofá. Fez um barulho
engraçado — tunk.
— Mesma coisa com maconha, álcool, toda essa merda. Você vai ter
que tomar jeito e andar direito, cara.
Aquilo parecia o menor dos problemas.
— E se eu não conseguir ser contratado?
— Porta número um — ele deu um sorriso feio. — E não ponha seus
sapatos de golfe na mala. Só a vaselina.
— Mesmo que eu me esforce ao máximo?
— O seu trabalho é não estragar tudo. Com as qualificações que vamos
lhe dar e tendo um treinador como eu, você não terá desculpa.
— De que tipo de dinheiro estamos falando?
— Que tipo de dinheiro? E eu sei? Acredite em mim, será muito mais
do que você recebe aqui. Seis dígitos, de qualquer maneira.
Tentei não engolir visivelmente.
— Mais meu salário aqui.
Ele virou o rosto tenso para mim e me encarou. Não tinha a menor
expressão em seus olhos. Botox? Perguntei-me.
— Você está brincando comigo — disse ele.
— Vou correr um risco enorme.
— Como? Sou eu quem vai correr o risco. Você é uma porra de uma
caixa-preta, um enorme e gordo ponto de interrogação.
— Se realmente pensasse assim não me pediria para fazer isso.
Ele se virou para Meacham.
— Não acredito nesta merda.
Meacham parecia ter engolido um cagalhão.
— Seu merdinha. Eu devia pegar o telefone neste instante... Wyatt
levantou uma mão imperial.
— Tudo bem. Ele é peitudo. Gosto de caras peitudos. Você é
contratado, faz seu trabalho direito, você arranca dinheiro dos dois lados.
Mas se esculhambar tudo...
— Já sei. Porta número um. Deixa eu pensar no caso. Dou a resposta
amanhã.
O queixo de Wyatt caiu, seus olhos ficaram inexpressivos. Fez uma
pausa e depois falou, em tom glacial: — Eu lhe dou até as nove. Quando o
ministro da Justiça entrar nesta sala.
— Eu o previno a não dizer uma palavra disso a nenhum de seus
amigos, seu pai, ninguém — interveio Meacham. — Ou, então, nem saberá
o que o atingiu.
— Eu entendo — repliquei. — Não precisa me ameaçar.
— Oh, não é uma ameaça — disse Nicholas Wyatt. — É uma
promessa.
5
Não parecia haver razão para voltar ao trabalho, por isso fui para casa.
Era estranho estar no metrô à uma da tarde, juntamente com os velhos e os
estudantes, as mamães e as crianças. Minha cabeça ainda girava, e eu me
sentia constrangido.
Meu apartamento ficava a uns bons dez minutos de caminhada da
estação do metrô. Era um dia claro, ridiculamente alegre.
Minha camisa ainda estava molhada e exalava um cheiro horrível de
suor. Duas garotas de macacão e múltiplos piercings puxavam um bando
de meninos pequenos de um lado para outro numa corda comprida. Os
meninos gritavam. Uns caras pretos, sem camisa, jogavam basquete em
um playground asfaltado atrás de uma cerca de arame.
Os tijolos que revestiam a calçada eram irregulares, e eu quase
tropecei. Nessa altura, senti aquela nauseante coisa escorregadia debaixo
do meu pé, quando pisei num cocô de cachorro. Simbolismo perfeito.
A entrada do meu apartamento cheirava fortemente a urina, ou de gato
ou de um vagabundo. A velha do apartamento em frente abriu um
pouquinho sua porta, o suficiente para me permitir ver a corrente do fecho
de segurança, e depois bateu; ela era baixinha demais para alcançar o olho
mágico. Acenei para ela amistosamente.
O quarto era escuro mesmo que todas as persianas estivessem abertas.
O ar sufocante, cheirava a cigarros velhos. Como o apartamento ficava no
nível da rua, eu não podia deixar as janelas abertas durante o dia para
arejá-lo.
Minha mobília era patética: o sofá-cama esverdeado, de padrão
escocês, encosto alto e com uma crosta de cerveja, dominava o único
cômodo. Em frente a ele ficava uma televisão Sanyo de dezenove
polegadas que não tinha controle remoto. Uma estante de pinho, alta,
estreita e inacabada, ficava sozinha num canto. Sentei-me no sofá e uma
nuvem de poeira se levantou no ar. A barra de aço por baixo do assento
machucou meu traseiro. Pensei no sofá de Nicholas Wyatt, forrado de
couro negro e me perguntei se algum dia ele teria vivido numa lixeira
assim. Constava que tinha vindo do nada, mas eu não acreditava. Não
conseguia imaginá-lo vivendo numa ratoeira como aquela. Encontrei o
isqueiro Bic debaixo da mesinha que ficava junto do sofá, acendi um
cigarro e contemplei a pilha de contas em cima da mesa. Nem sequer abri
os envelopes. Havia dois MasterCards e três Visas, todos com saldos
devedores colossais, e eu mal podia fazer frente aos pagamentos mínimos.
Já tinha me decidido, é claro.
6
— Você foi demitido?
Seth Marcus, meu melhor amigo desde os primeiros anos de escola
secundária, trabalhava como atendente de bar três noites por semana, em
uma espelunca yuppie chamada Gato de Rua. De dia era assistente jurídico
em uma firma de advocacia situada no centro da cidade. Dizia que
precisava do dinheiro, mas eu estava convencido de que secretamente ele
trabalhava no bar a fim de preservar algum vestígio de segurança, evitando
se transformar no tipo de imbecil corporativo de quem nós dois
gostávamos de debochar.
— Qual foi o motivo?
Quanto eu lhe tinha contado? Cheguei a lhe falar sobre ter sido
chamado por Meacham, o diretor de segurança? Esperava que não. Agora
não podia dizer uma única palavra sobre o aperto em que eles tinham me
metido.
— Sua festança — o ambiente era barulhento, eu não podia ouvi-lo
direito e alguém do outro lado do bar estava assobiando, dois dedos
enfiados na boca, um assobio alto e muito agudo. — Aquele cara está
assobiando para mim? Como se eu fosse a porra de um cachorro?
Ele ignorou o assobiador.
Eu sacudi a cabeça.
— Você se safou, hein? Conseguiu sair impune, espantoso. O que
posso trazer para celebrar?
— Brooklyn Brown?
Ele sacudiu a cabeça.
— Não.
— Newcastle? Guinness?
— Que tal um chope? Eles não controlam os chopes.
Dei de ombros.
— Claro.
Ele tirou um chope para mim, amarelo e espumoso; Seth era
nitidamente novo no ofício. O chope derramou no tampo de madeira
arranhada do bar. Ele era um cara alto, cabelos escuros, boa pinta — um
autêntico ímã de garotas — com uma barbicha ridícula e um brinco. Seth
era meio judeu, mas queria ser preto. Tocava e cantava em uma banda
chamada Slither, que eu ouvira algumas vezes; não eram muito bons, mas
ele falava muito sobre "assinar um contrato". Tinha uns dez esquemas
fraudulentos funcionando ao mesmo tempo só para não ter que admitir que
não gostava de trabalhar.
Seth era o único sujeito que eu conhecia mais cínico que eu.
Provavelmente era esta a razão pela qual éramos amigos. Isso aliado ao
fato dele não ligar a mínima para o meu pai, embora no secundário tivesse
jogado futebol no time treinado (e tiranizado) por Frank Cassidy. Na
sétima série éramos da mesma classe e simpatizamos um com o outro na
mesma hora porque fomos ambos escolhidos para sermos ridicularizados
pelo professor de matemática, o sr. Pasquale. Saí da escola pública e fui
para a Bartholomew Browning & Knightley, uma sofisticada escola
preparatória para a qual meu pai tinha acabado de ser contratado, como
técnico de futebol e hóquei, o que me possibilitou uma bolsa integral.
Durante dois anos eu raramente vi Seth, até que papai foi demitido por ter
quebrado dois ossos do antebraço direito de um garoto e um osso do
antebraço esquerdo. A mãe do garoto era presidente da junta de
supervisores da Bartholomew Browning. Assim, a torneira da bolsa
completa foi fechada e eu voltei para a escola pública. Para onde papai foi
contratado também, depois da Bartholomew Browning.
Nós dois trabalhamos no mesmo posto de gasolina da Gulf durante a
escola secundária, até que Seth se cansou dos assaltos e foi para a Dunkin'
Donuts fazer donuts de noite. Por dois verões, ele e eu trabalhamos
limpando janelas para uma companhia que se encarregava de muitos
arranha-céus do centro da cidade, até que chegamos à conclusão de que
ficar pendurados por cordas do lado de fora do vigésimo sétimo andar
parecia ser mais legal do que realmente era. Não só era tedioso, como
assustador como o diabo, uma combinação abominável. Talvez haja quem
considere ficar pendurado do lado de fora de um edifício, a centenas de
metros de altura, um tipo de esporte radical, mas, para mim, era como uma
tentativa de suicídio em câmera lenta.
O assobio ficou mais alto. As pessoas olhavam para o assobiador, um
careca gordinho de terno, e já tinha gente rindo. — Vou perder a porra da
paciência — disse Seth.
— Não perca — falei, mas era tarde, Seth já tinha se dirigido para o
outro lado. Peguei um cigarro e acendi enquanto o observava se debruçar
sobre o bar, encarando, furioso, o assobiador. Deu a impressão de que ia
agarrar a lapela do cara, mas deteve-se à última hora. Disse qualquer
coisa. Algumas pessoas que estavam por perto deram risada. Com um ar
tranquilo e relaxado, Seth voltou. No caminho, parou para falar com duas
mulheres lindas, uma loura e uma morena, e sorriu para elas.
— Pronto. Eu não acredito que você ainda fume — ele me disse. —
Um idiota de merda, como seu pai.
Ele pegou um cigarro do meu maço, acendeu, deu uma tragada e jogou
no cinzeiro.
— Obrigado por não me agradecer por não fumar — falei. — E então,
qual é a sua desculpa?
Ele exalou pelas narinas.
— Cara, eu gosto de ser multitarefa. Por outro lado, não há câncer na
minha família. Só insanidade.
— Ele não tem câncer.
— Enfisema. Seja o que for. Como vai o velho?
— Ótimo — dei de ombros. Eu não estava a fim de falar dele, e
tampouco Seth.
— Cara, uma daquelas bonitinhas quer um Cosmopolitan e a outra um
drinque gelado. Odeio isso.
— Por quê?
— Dão muito trabalho, e depois recebo uma gorjeta de um quarto de
dólar. As mulheres nunca dão gorjeta, por sinal. É uma coisa que aprendi.
Jesus, você abre duas Buds, ganha dois dólares. Drinques gelados! — ele
sacudiu a cabeça. — Cara.
Ele saiu por uns minutos, fez um barulhão com uma porção de coisas à
sua volta, o liquidificador gritando. Serviu os drinques das garotas com
um dos seus sorrisos excepcionais. Elas não iam lhe dar a gorjeta. As duas
se viraram para mim e sorriram.
Quando ele voltou, perguntou: — O que é que você vai fazer mais
tarde?
— Mais tarde?
Já eram quase dez horas, e eu tinha que me encontrar com um
engenheiro da Wyatt às sete e meia da manhã. Dois dias treinando com ele,
um cara importante do projeto Lucid, depois mais dois dias com um
gerente de marketing de novos produtos, além de sessões regulares com
um "treinador executivo". Eles tinham inventado um esquema assassino.
Campo de treinamento execrável para recrutas execráveis e puxa-sacos,
era como eu via aquilo. Nada mais de coçar o saco, chegar às nove ou dez.
Mas eu não podia contar a Seth; não podia contar a ninguém.
— Termino o serviço à uma hora — disse ele. — Aquelas duas garotas
perguntaram se eu queria ir ao Nightcrawler com elas depois. Falei que eu
tinha um amigo. Elas acabaram de avaliar você e toparam.
— Não posso.
— Hein?
— Tenho que trabalhar cedo. Chegando na hora, no duro.
Seth ficou alarmado, incrédulo.
— O quê? O que está acontecendo?
— O trabalho está ficando sério. O dia começa cedo amanhã. Grande
projeto.
— Isso é uma piada, certo?
— Lamentavelmente, não. Você não tem que trabalhar de manhã
também?
— Você está se tornando um Deles? Um dos Invasores?
Sorri.
— Hora de crescer. Chega de bancar a criança.
Seth pareceu enojado.
— Meu amigo, nunca é tarde para se ter uma infância feliz.
7
Após dez exaustivos dias de aulas particulares e doutrinação por
engenheiros que tinham estado envolvidos com o computador portátil
Lucid, minha cabeça transbordava de todo tipo de informação inútil.
Deram-me um minúsculo "escritório" na suíte executiva que antes era um
depósito de suprimentos, embora eu quase nunca fosse lá. Eu aparecia no
horário devido e não dava problema a ninguém.
Não sabia por quanto tempo seria capaz de continuar mantendo aquele
comportamento, mas a imagem do catre em uma cela da prisão de Marion
me mantinha motivado.
Então chegou o dia em que me mandaram comparecer a uma sala no
corredor executivo duas portas depois do escritório de Nicholas Wyatt. O
nome na placa de latão presa na porta indicava JUDITH BOLTON. A sala era
toda branca — tapete branco, estofamento branco, uma laje de mármore
branco que servia de mesa e até mesmo flores brancas.
Em um sofá de couro branco, Nicholas Wyatt estava sentado ao lado de
uma mulher atraente dos seus quarenta anos de idade que tagarelava
familiarmente com ele, tocando o braço dele de vez em quando, rindo.
Cabelo vermelho acobreado, longas pernas cruzadas na altura do joelho, o
corpo esbelto que ela, sem dúvida, exercitava duramente, vestido com um
costume azul-marinho. Tinha olhos azuis, lábios brilhantes em forma de
coração, sobrancelhas arqueadas provocadoramente. Estava na cara que
tinha sido deslumbrante, mas o tempo não a beneficiara.
Percebi que a tinha visto antes, na última semana talvez, ao lado de
Wyatt, quando ele fazia suas rápidas visitas às minhas sessões de
treinamento com os caras do marketing e os engenheiros. Sempre parecia
estar cochichando no ouvido dele, olhando para mim, mas nunca fomos
apresentados, e eu sempre tivera curiosidade de saber quem seria.
Sem se levantar do sofá, ela estendeu a mão quando me aproximei —
dedos longos, unhas pintadas de vermelho — e me concedeu um aperto
firme, estritamente de negócios.
— Judith Bolton.
— Adam Cassidy.
— Você está atrasado — disse ela.
— Eu me perdi — falei, tentando alegrar um pouco o ambiente. Ela
sacudiu a cabeça, sorriu e contraiu os lábios.
— Você tem um problema com pontualidade. Não quero que se atrase
nunca mais, estamos combinados?
Respondi com um sorriso, o mesmo sorriso que dirigia aos guardas
quando me perguntavam se eu sabia a que velocidade estava andando. A
dama era durona.
— Combinadíssimos — falei, sentando-me em frente a ela.
Wyatt se divertia apreciando o diálogo.
— Judith é uma de minhas auxiliares mais valiosas — disse ele. —
Minha consigliere, e sua Svengali. Sugiro que você ouça cada puta palavra
que ela diga.
Eu ouço.
Com isso, Wyatt se levantou e pediu licença. Ela lhe dirigiu um aceno
quando ele saiu.
Você não me teria reconhecido mais. Mudei por completo. Nada mais
de calhambeques; passei a dirigir um Audi A6 prateado, arrendado pela
companhia. Entrei na posse de um novo guarda-roupa também. Uma das
assistentes de Wyatt, a negra, que, como vim a descobrir, tinha sido
modelo nas Índias Ocidentais Britânicas, levou-me para fazer compras
numa tarde em uma loja caríssima onde eu nunca entrara e que era,
segundo me informou, o lugar onde comprava as roupas de Nick Wyatt.
Escolheu ternos, camisas, gravatas e sapatos e mandou debitar tudo num
cartão Amex da companhia. Comprou inclusive meias. Nada da porcaria
daquela Structure que eu estava acostumado a usar, e sim Armani e
Ermenegildo Zegna. Tinham sua aura: era possível dizer que eram feitas à
mão por viúvas italianas enquanto ouviam Verdi.
As costeletas — "maçanetas de sodomita", como dizia — tinham que
desaparecer, decidiu. Nada mais, tampouco, daquela cabeça que dava a
impressão de que eu tinha acabado de acordar. Levou-me a um salão grã-
fino, de onde saí parecendo um modelo da Ralph Lauren, só que não tão
bicha. Fiquei com medo da próxima vez em que Seth e eu nos
encontrássemos.
Uma justificativa foi inventada. Meus colegas e gerentes na antiga
seção de Roteadores para a Divisão Empresas foram informados de que eu
tinha sido "transferido".
Circularam boatos de que eu estava sendo mandado para a Sibéria
porque o gerente da minha divisão estava cansado de minha atitude. Outro
boato dizia que um dos vice-presidentes seniores da Wyatt admirara um
memorando que eu escrevera e "gostara da minha atitude", e por isso
estavam me dando mais responsabilidade, e não menos. Ninguém sabia a
verdade. Tudo o que todo mundo sabia era que um dia eu tinha sumido de
repente do meu cubículo.
Se alguém tivesse se dado ao trabalho de examinar o organograma da
firma no site da Wyatt, teria notado que meu título agora era Diretor de
Projetos Especiais, Gabinete do Presidente.
Uma trilha eletrônica e de papel estava sendo criada.
Judith virou-se para mim e continuou, como se Wyatt nunca tivesse
estado ali.
— Se você for contratado pela Trion, vai ter que chegar ao seu
cubículo com quarenta e cinco minutos de antecedência. Em nenhuma
circunstância tomará um drinque no almoço ou depois do trabalho. Nada
de happy hours, nem de coquetéis, ou "passar tempo" com "amigos" do
trabalho. Nada de festas. Se comparecer a uma festa relacionada ao
trabalho, beba club soda.
— Você me faz pensar que estou no AA.
— Embebedar-se é sinal de fraqueza.
— Presumo então que fumar esteja fora de questão.
— Errado. É um hábito imundo e nojento que indica falta de
autocontrole, mas há outras considerações. Circular num fumódromo é
uma excelente maneira de se ligar com gente de diferentes unidades e
obter inteligência útil. Agora, quanto ao seu aperto de mão — ela sacudiu
a cabeça. — Uma droga. Decisões de contratação são tomadas nos cinco
primeiros segundos — no aperto de mãos. Quem lhe disser outra coisa
estará mentindo para você. Você ganha o emprego com o aperto de mão, e
depois o resto da entrevista se destina a lutar para não perdê-lo. Como sou
mulher, você apertou minha mão com suavidade. Não faça isso. Seja
firme, aperte com força e segure...
Interrompia com um sorriso malicioso.
— A última mulher que me disse isso... — notei que ela se detivera no
meio da frase. — Desculpe.
Com a cabeça inclinada de lado, como um gatinho, ela sorriu, também
com malícia.
— Obrigada — uma pausa. — Sustente o aperto de mão por mais um
ou dois segundos. Olhe-me nos olhos e sorria. Jogue seu coração para
mim. Vamos fazer de novo.
Eu me levantei e apertei a mão de Judith Bolton de novo.
— Melhor — disse ela. — Você tem talento inato. Quando o
conhecerem, as pessoas vão pensar: puxa, há qualquer coisa a respeito
desse cara que eu gosto, não sei o que é.
Ela me dirigiu um olhar avaliador.
— Você quebrou seu nariz?
Balancei a cabeça.
— Deixe-me adivinhar: jogando futebol?
— Na verdade, foi hóquei.
— É bonito. Você é atleta, Adam?
— Fui — eu me sentei de novo.
Ela se inclinou para a frente na minha direção, o queixo descansando
na mão em concha, me examinando.
— Sei o que é. Está no modo como você anda, no modo como carrega
seu corpo. Eu gosto. Mas você não está sincronizando.
— Como?
— Você tem que sincronizar. Espelhar. Estou inclinada para a frente, e
você devia fazer o mesmo. Eu me inclino para trás, você se inclina para
trás. Cruzo as pernas, você cruza as pernas. Observe a inclinação da minha
cabeça, e me imite. Sincronize inclusive a sua respiração com a minha.
Apenas seja sutil, não dê na vista. Este é o modo como você se liga com as
pessoas em um nível subconsciente, fazendo com que se sintam
confortáveis na sua companhia. As pessoas gostam de pessoas parecidas
com elas próprias. Estamos entendidos?
Sorri de modo tranquilizador, ou pelo menos de um jeito que achei que
fosse tranquilizador.
— E, outra coisa — ela se inclinou mais até que seu rosto ficou apenas
a uns poucos centímetros do meu. — Você está usando loção pós-barba
demais — murmurou.
Meu rosto ardeu de vergonha.
— Deixa que eu adivinhe: Drakkar Noir — ela não esperou a minha
resposta porque sabia que estava certa. — Coisa de galã do ensino médio.
Aposto como fazia as garotas da torcida sentirem as pernas bambas.
Mais tarde eu vim a saber quem era Judith Bolton. Era uma vice-
presidente sênior que tinha sido trazida para a Wyatt Telecom alguns anos
antes, quando era uma poderosa consultora da McKinsey & Company, a
fim de assessorar Nicholas Wyatt pessoalmente em assuntos sensíveis de
pessoal, "resolução de conflitos" nos mais altos escalões da companhia e
em certos aspectos de operações psicológicas relativos a negócios,
aquisições e negociações. Tinha um Ph.D. em psicologia comportamental,
por isso era chamada dra. Bolton. Quer fosse chamada de "treinadora
executiva" ou "estrategista de liderança", era como se fosse a treinadora
olímpica pessoal de Wyatt. Aconselhava-o sobre quem tinha matéria-
prima aproveitável para ser executivo e quem não tinha, quem devia ser
demitido, quem estava montando esquemas nas costas dele. Tinha uma
visão de raios X de deslealdades. Sem dúvida, ele a tirara da McKinsey
pagando-lhe um salário astronômico. Ali, na Wyatt, era poderosa e segura
o bastante para contradizer Wyatt na cara e dizer coisas que ele não
aceitaria de mais ninguém.
— Agora, nossa primeira tarefa é aprender como fazer uma entrevista
para emprego — disse ela.
— Eu fui contratado aqui — retruquei, sem muita convicção.
— Estamos jogando agora em outra liga, Adam — disse ela, sorrindo.
— Você é um vencedor e tem que fazer uma entrevista como um vencedor,
como alguém que a Trion vá se virar pelo avesso para nos tirar. Gosta de
trabalhar para a Wyatt?
Olhei para ela, sentindo-me um imbecil.
— Bem, estou tentando sair daqui, não estou?
Ela rolou os olhos para cima e inspirou fundo.
— Não. Mantenha-se positivo.
Ela virou a cabeça de lado e fez uma imitação assombrosa da minha
voz.
— Adoro a Wyatt! É totalmente estimulante! Meus colegas são
maravilhosos!
A imitação foi tão boa que me deu uma expressão meio sobrenatural;
foi como ouvir minha própria voz em uma secretária eletrônica.
— Então por que estou fazendo uma entrevista na Trion?
— Oportunidades, Adam. Não há nada de errado com o seu emprego
na Wyatt. Você não está insatisfeito. Está apenas dando o próximo passo
lógico em sua carreira e há mais oportunidades na Trion para fazer coisas
ainda maiores e melhores. Qual é a sua maior fraqueza, Adam?
Pensei por um segundo.
— Na verdade, nenhuma — respondi. — Nunca admito uma fraqueza.
Ela fez uma careta.
— Ora, pelo amor de Deus. Eles vão pensar que você é delirante ou
burro.
— É uma pergunta capciosa.
— É claro que é uma pergunta capciosa. Entrevistas de emprego são
campos de minas. Você tem que admitir fraquezas, mas não contar a
ninguém algo que seja depreciativo. Assim você confessa ser um marido
fiel demais, um pai excessivamente amoroso. Ela imitou de novo a voz de
Adam.
— Às vezes eu gosto tanto de utilizar um programa que não exploro
outros programas. Ou: às vezes quando pequenos detalhes me irritam, eu
não reclamo, porque imagino que a maioria das coisas tende a ser
esquecida. Você não reclama o suficiente! Ou, que tal esta aqui: tendo a
ficar realmente absorto num projeto, de modo que às vezes exagero e fico
trabalhando tempo demais naquilo, porque adoro fazer aquela coisa, adoro
fazer com que tudo dê certo. Talvez eu trabalhe em algumas coisas mais
que o necessário. Entendeu? Eles vão salivar, Adam.
Eu sorri, balancei a cabeça. Puxa vida, em que eu fora me meter?
— Qual foi o maior erro que você já cometeu no trabalho?
— Obviamente tenho que admitir alguma coisa — falei, nervoso.
— Você aprende depressa — disse ela, secamente.
Talvez eu tenha assumido um encargo grande demais uma vez...
— E aí se ferrou todo? Provando que não conhece os limites da sua
própria incompetência? Acho que não. Você diz: "Oh, na verdade, nada de
importante. Uma vez eu estava trabalhando num relatório enorme para o
meu chefe, esqueci de fazer uma cópia de segurança e meu computador
congelou. Perdi tudo. Tive que ficar acordado até as três da madrugada,
recriando completamente o trabalho perdido. Puxa, aprendi minha lição —
agora sempre faço cópias de segurança." Entendeu? O maior erro que você
cometeu não foi por culpa sua. Além disso, você corrigiu tudo.
— Entendi.
O colarinho da minha camisa estava apertado demais e eu quis sair
dali.
— Você é talentoso, Adam — disse ela. — Nasceu talentoso e vai se
sair muito bem.
8
Na noite anterior à minha primeira entrevista na Trion, fui visitar meu
pai. Eu ia lá uma vez por semana, dependendo se ele me telefonava e pedia
para que eu fosse vê-lo. Ele me telefonava muito, primeiro porque é
solitário (mamãe morreu seis anos atrás), depois porque é paranoico
devido aos esteroides que tomava e estava convencido de que os
enfermeiros tentavam matá-lo. Assim, seus telefonemas nunca eram
amistosos, nunca meros bate-papos; eram sempre reclamações, desvarios e
acusações. Alguns de seus analgésicos estavam faltando, dizia, e ele estava
convencido de que Caryn, a enfermeira, os furtara. O oxigênio fornecido
pela companhia de oxigênio era da pior qualidade. Rhonda, a enfermeira,
vivia tropeçando na mangueira de ar e arrancando as cânulas de seu nariz,
quase lhe arrancando as orelhas.
Dizer que era difícil conservar as pessoas que cuidavam dele era uma
atenuação cômica da verdade. Raramente duravam mais que algumas
poucas semanas. Francis X. Cassidy, meu pai, era um homem mal-
humorado, sempre tinha sido mal-humorado, desde que eu era capaz de me
lembrar, e só tinha piorado ao ficar mais velho e mais doente. Sempre
fumara dois maços de cigarros por dia e tinha uma tosse alta e seca que
acabara por se transformar em bronquite. Assim, não foi surpresa alguma
quando o médico diagnosticou enfisema. O que ele esperava? Havia anos
que não conseguia soprar as velas do bolo de aniversário. O enfisema
agora estava no que os médicos chamavam de estágio final, significando
que poderia morrer em duas semanas, ou meses ou, quem sabe, dez anos.
Ninguém sabia.
Lamentavelmente, cabia a mim, único filho, providenciar o
tratamento. Ele ainda morava no apartamento térreo com porão, no
edifício de três andares onde eu fora criado, e não tinha mexido em nada
desde que mamãe morrera — a mesma geladeira amarelo-ouro que nunca
funcionava direito, o sofá arriado para um lado, as cortinas de renda
amareladas pelo tempo. Não economizara nada, e sua pensão era digna de
pena; mal ganhava o suficiente para cobrir as despesas médicas. Isto
significava que parte do meu contracheque ia para o seu aluguel, o salário
das pessoas que tratavam dele, o que fosse. Eu jamais esperara
agradecimentos e nunca os recebera. Nunca em um milhão de anos ele me
pediria dinheiro. Nós dois fingíamos que ele vivia de sua poupança ou algo
assim.
Quando cheguei, estava sentado na sua poltrona, uma Barcalounger, na
frente da imensa TV, sua principal ocupação. Permitia que se queixasse em
tempo real.
Com tubos no nariz (agora precisava respirar oxigênio vinte e quatro
horas por dia), assistia a um longo comercial na tevê a cabo.
— Oi, papai — cumprimentei.
Ele não levantou a cabeça por mais de um minuto, tão hipnotizado
estava pelo longo comercial, que devia ser mais interessante que a cena do
chuveiro em Psicose.
Ficara magro, embora ainda tivesse um tórax de barril, e o cabelo à
escovinha era branco. Quando me olhou, disse: — A vaca está indo
embora, sabe?
A "vaca" em questão era sua última acompanhante, uma irlandesa mal-
humorada com cinquenta e tantos anos e cabelo escandalosamente pintado
de vermelho. Ela entrou na sala de estar, como se obedecesse a um sinal,
mancando — tinha um problema no quadril —, com uma cesta plástica de
roupa na qual havia uma pilha de camisetas brancas cuidadosamente
dobradas e shorts, o amplo guarda-roupa do meu pai. A única surpresa
acerca da sua demissão era o fato de ter demorado tanto tempo. Ele tinha
uma pequena campainha sem fio comprada na Video Shack, presa na
mesinha ao lado da Barcalounger, que apertava para chamá-la sempre que
precisava de alguma coisa, o que parecia ser constantemente. O oxigênio
não funcionava, ou os tubinhos do nariz estavam secando suas narinas ou
ele precisava de ajuda para ir ao banheiro urinar. De vez em quando ela o
levava para dar umas voltas na cadeira motorizada para que ele pudesse
passear no shopping, reclamar dos punks e xingar mais um pouco.
Ele a acusou de tentar envenená-lo. Levaria uma pessoa normal à
loucura, e Maureen já parecia bem nervosa.
— Por que não conta a seu filho do que me chamou? — disse ela,
pondo a cesta de roupa em cima do sofá.
— Oh, pelo amor de Deus — disse ele. Papai falava entrecortado, em
sentenças curtas, já que estava sempre sem fôlego.
— Você vem pondo fluido anticongelante no meu café. Eu sinto o
gosto. Chamam isso de velhicídio, sabe. Assassinatos disfarçados.
— Se eu quisesse matar alguém usaria algo melhor que fluido
anticongelante — retrucou ela. Seu sotaque irlandês ainda era forte,
mesmo já morando há vinte e tantos anos nos Estados Unidos. Meu pai
inevitavelmente acusava as acompanhantes de tentarem matá-lo. Se fosse
verdade, quem poderia culpá-las?
— Ele me chamou de... uma palavra que nem posso repetir.
— Puta que me pariu, eu a chamei de babaca. Uma palavra polida para
o que ela é. Ela me agrediu. Fico aqui na cadeira preso nessa porra desses
tubos e essa vaca aí me batendo.
— Tirei o cigarro das mãos dele — disse Maureen. — Tentou fumar
um cigarro enquanto fui lá embaixo lavar a roupa. Como se eu não pudesse
sentir o cheiro em toda a casa — ela me olhou. — Ele não pode fumar!
Não sei onde esconde os cigarros, mas está escondendo em algum lugar,
eu sei!
Meu pai sorriu triunfantemente, mas nada disse.
— Seja como for, por que estou me incomodando? — disse ela,
amargurada. — Este é o meu último dia. Não aguento mais.
A audiência paga no comercial da televisão gritou e aplaudiu
loucamente.
— Como se eu fosse notar — disse papai. — Ela não faz merda
nenhuma. Olha só a poeira nesta casa. O que diabos faz esta vaca?
Maureen pegou a cesta de roupa.
— Eu devia ter ido embora um mês atrás. Nunca deveria ter aceitado
este emprego.
Ela deixou a sala com o seu estranho passo de pônei manco.
— Eu deveria tê-la despedido no minuto em que a conheci —
resmungou ele. — Dava para ver que ela era uma dessas mulheres que
assassinam velhos na calada da noite.
Ele respirou com os lábios contraídos, como se estivesse inspirando
através de um canudinho.
Eu não sabia o que ia fazer agora. O cara não podia ficar sozinho, não
podia sequer ir ao banheiro sem ajuda. Recusava-se a ir para um asilo;
dizia que se mataria antes.
Pus minha mão sobre a mão esquerda dele, em cujo dedo indicador
estava preso um indicador luminoso vermelho, oxímetro de pulso, acho
que é como se chama. Os números digitais do monitor diziam 88 por
cento.
— Arranjaremos alguém, pai, não se preocupe.
Ele levantou a mão, afastando a minha.
— Que raios de enfermeira ela é, afinal? Não liga a mínima para
ninguém.
Meu pai teve um longo acesso de tosse, pigarreou e cuspiu em um
lenço embolado que tirou de algum lugar da sua cadeira.
— Não sei por que diabos você não se muda para cá de novo. O que é
que tem para fazer, afinal? Tem um emprego desses que não levam o
sujeito a parte alguma.
Sacudi a cabeça.
— Não posso, papai — respondi, delicadamente. — Tenho
empréstimos de estudante para pagar.
Não me referi ao fato de que alguém tem que ganhar dinheiro para
pagar as acompanhantes que estavam sempre se demitindo.
— Que porcaria de faculdade você fez? — disse ele. — Desperdício de
dinheiro, mais nada. Eu não precisava gastar vinte mil dólares por ano
para você passar o tempo todo na bandalha com seus amiguinhos
extravagantes. Você podia ter se divertido sem sair de casa.
Sorri para que ele visse que eu não estava ofendido. Eu não sabia se
eram os esteroides, o corticoide chamado prednisona, que ele tomava para
manter as vias aéreas abertas, que faziam dele tamanho panaca, ou se era
apenas sua natureza doce e delicada.
— Sua mãe, que Deus a tenha, estragou você. Transformou o filho em
um gato grande e gordo — ele sorveu um hausto de ar. — Você está
desperdiçando a sua vida. Quando vai conseguir um emprego de verdade,
afinal?
Papai era perito em tocar nos pontos sensíveis. Deixei passar uma onda
de raiva. Não dava para levar o cara a sério, você ficava maluco. Tinha o
temperamento de um cão de ferro-velho. Sempre achei que sua fúria era
como raiva canina — ele não era realmente cônscio do que fazia, portanto
não dava para culpá-lo. Ele nunca fora capaz de controlar seu
temperamento. Quando eu era menino, pequeno demais para reagir, ele
puxava o cinto da calça à menor provocação e me dava uma surra. E
quando terminava, invariavelmente resmungava: "Viu o que me obrigou a
fazer?"
— Estou providenciando — falei.
— Eles são capazes de farejar um perdedor a um quilômetro de
distância, você sabe.
— Eles quem?
— Essas companhias. Ninguém quer um perdedor. Todo mundo só quer
vencedores. Vá pegar uma Coca pra mim, sim?
Aquele era seu mantra, que vinha dos seus tempos de treinador — que
eu era um "perdedor", que a única coisa que contava era vencer, que
chegar em segundo era perder.
Houve uma época em que esse papo me irritava. A esta altura, porém,
eu já estava acostumado e mal escutava o que ele dizia.
Fui até a cozinha, pensando no que iríamos fazer. Ele precisava de
assistência vinte e quatro horas por dia, sem dúvida. Mas nenhuma das
agências nos mandaria mais alguém. No princípio, tínhamos enfermeiras
de verdade, trabalhando além do emprego no hospital para ganhar um
dinheiro extra. Depois que ele acabou com elas, uma por uma,
conseguimos encontrar uma série de pessoas marginalmente qualificadas
que tinham passado por duas semanas de treinamento para obter um
certificado de auxiliar de enfermagem. Depois foi quem diabos
conseguíamos encontrar nos classificados dos jornais.
Maureen arrumara a geladeira Kenmore amarelo-ouro de um modo que
poderia passar por propriedade de um laboratório do governo. As Cocas
estavam, uma fileira atrás da outra, em uma estante de metal que ela
ajustara de modo a ficar da altura exata. Até mesmo os copos no armário,
geralmente embaçados e cheios de manchas, estavam cintilantes. Enchi
dois deles com gelo e servi o conteúdo de uma lata em cada um. Eu teria
que fazer Maureen se sentar, pedir desculpas em nome de papai, pedir e
suplicar, suborná-la se necessário. Ela podia ficar pelo menos até que eu
encontrasse uma substituta. Talvez eu pudesse apelar para o seu senso de
responsabilidade para com os idosos, embora imaginasse que tivesse sido
muito erodido pelo mau humor de meu pai. A verdade é que eu estava
desesperado. Se faltasse às entrevistas de amanhã teria todo o tempo do
mundo, mas estaria atrás das grades em algum lugar de Illinois. De nada
adiantaria.
Voltei com os copos, o gelo tilintando enquanto andava. O comercial
ainda estava sendo exibido. Quanto tempo essas coisas duravam? E quem
assistia, afinal? Quer dizer, sem ser meu pai?
— Papai, não se preocupe com nada — falei, mas ele já estava
inconsciente.
Fiquei a seu lado por uns segundos, para ver se respirava. Respirava. O
queixo encostado no peito e a cabeça torta, num ângulo esquisito. Mas
respirava. O oxigênio sibilava baixinho. Em algum ponto do porão,
Maureen trabalhava, provavelmente ensaiando o que dizer na hora da
partida. Coloquei as Cocas na mesinha cheia de remédios e controles
remotos.
Inclinei-me e beijei a testa manchada do velho.
— Arranjaremos alguém — falei baixinho.
9
A sede da Trion Systems parecia um Pentágono de aço escovado.
Cada um dos cinco lados era uma "ala" de sete andares. Tinha sido
projetada por um arquiteto famoso. Embaixo do prédio, ficava o
estacionamento cheio de BMWs e Range Rovers e uma porção de fuscas e
mais o que se possa imaginar, mas não havia vagas demarcadas, tanto
quanto pude observar.
Dei meu nome para a "embaixadora do saguão" da ala B, que era como
chamavam a recepcionista. Ela imprimiu um adesivo que dizia VISITANTE,
que colei no bolso da frente do meu paletó do terno Armani cinza, e
esperei no saguão que outra mulher chamada Stephanie viesse me buscar.
Stephanie era assistente do vice-presidente de contratações, Tom
Lundgren. Tentei me distrair, meditar, relaxar. Lembrei a mim mesmo que
não podia querer melhor arranjo. A Trion estava querendo preencher uma
vaga de gerente de marketing de produto — um sujeito tinha ido embora
de repente, e eu fora preparado para o lugar, modificado geneticamente e
digitalmente remasterizado. Nas últimas semanas, uns poucos
selecionados caçadores de talentos tinham sido informados a respeito de
um assombroso rapaz da Wyatt que estava maduro para ser colhido. Uma
fruta madura à beira da estrada. A notícia foi espalhada, em caráter casual,
durante uma convenção da indústria, por baixo dos panos. Comecei a
receber toda a espécie de recados no meu correio de voz.
Por minha vez, eu fizera o dever de casa sobre a Trion Systems.
Aprendera que era um gigante de produtos eletrônicos destinados a
consumidores, fundada em 1970 pelo lendário Augustine Goddard, cujo
apelido não era Gus e sim Jock. Jock era quase uma figura cult. Graduou-
se na Cal Tech, serviu na Marinha, foi trabalhar na Fairchild
Semiconductor e depois na Lockheed, e foi o responsável por um grande
aperfeiçoamento na tecnologia para fabricação de tubos de televisão em
cores.
Era geralmente considerado um gênio, mas, ao contrário de alguns dos
gênios que fundaram imensas corporações multinacionais, não parecia ser
um panaca. As pessoas gostavam dele, eram fervorosamente leais a ele.
Era uma presença distante, paternal. Os raros vislumbres que se tinha de
Jock Goddard eram chamados de "visões", como se ele fosse um objeto
voador não identificado.
Muito embora a Trion não fabricasse mais tubos de televisão, o tubo
Goddard fora licenciado para a Sony e a Mitsubishi e as outras
companhias japonesas que fabricam aparelhos de tevê nos Estados Unidos.
Mais tarde a Trion entrara para o ramo das comunicações eletrônicas,
alavancada pelo famoso modem Goddard. Atualmente fabricava telefones
celulares e pagers, componentes de computadores, impressoras laser
coloridas, PDA e todo esse tipo de coisa.
Uma mulher alta e delgada, de cabelo castanho encaracolado, emergiu
de uma porta que se abria no saguão.
— Você deve ser Adam.
Dei-lhe um belo e firme aperto de mão.
— Prazer em conhecê-la.
— Sou Stephanie — disse ela —, assistente de Tom Lundgren.
Ela me levou até o elevador e ao sexto andar. Conversamos sobre
banalidades. Tentava parecer entusiasmada, mas não tarada por
computadores, e parecia distraída.
O sexto andar era tipicamente dividido em módulos, com cubículos
que se espalhavam tanto quanto a vista alcançava, altos como um olho de
elefante. A rota pela qual me levou era um labirinto; eu não seria capaz de
voltar, mesmo que tivesse deixado cair migalhas de pão. Tudo ali era
padronizado, distribuído pela companhia, a não ser pela proteção de tela
de um monitor pelo qual passei e que era a imagem em 3-D da cabeça de
Jock Goddard, sorrindo e girando como a de Linda Blair em O exorcista.
Faça isso com Nick Wyatt — quer dizer, com a cabeça dele — e os
seguranças da Wyatt provavelmente quebram seus joelhos.
Chegamos a uma sala de reuniões em que havia, afixada na porta, uma
placa que dizia STUDEBAKER.
— Studebaker? — indaguei.
— É, todas as salas de reunião da firma levam os nomes de carros
americanos clássicos. Mustang, Thunderbird, Corvette, Camaro. Jock ama
carros americanos.
Ela disse Jock com uma entonação que funcionou quase como se a
palavra estivesse entre aspas, indicando, talvez, que na verdade não tivesse
intimidade com o homem para chamá-lo pelo primeiro nome, mas que era
assim que todos o chamavam.
— Posso lhe arranjar alguma coisa para beber?
A instrução que recebera de Judith Bolton era que sempre sim, porque
as pessoas gostam de fazer favores e todo mundo, mesmo as assistentes
administrativas, seriam instadas a dizer o que tinham achado de mim.
— Coca, Pepsi, o que tiver — respondi. Não quis parecer exigente
demais. — Obrigado.
Sentei-me na lateral da mesa, o lado que dava para a porta, e não na
cabeceira. Dois minutos depois, um cara compacto, usando calça de brim
cáqui e camisa polo azul-marinho com a logomarca da Trion, entrou na
sala com passos elásticos. Era Tom Lundgren: reconheci-o imediatamente
graças ao dossiê que a dra. Bolton tinha preparado. Vice-presidente do
Setor de Comunicações Pessoais. Quarenta e três anos, cinco filhos,
golfista entusiasmado. Logo atrás dele, veio Stephanie, com uma lata de
Coca-Cola e uma garrafa de Aquafina.
Ele me deu um aperto de mão de esmagar ossos.
— Adam, sou Tom Lundgren.
— Prazer em conhecê-lo.
— Prazer em conhecer você. Ouço coisas ótimas a seu respeito.
Sorri e encolhi os ombros modestamente. Lundgren não estava sequer
usando uma gravata, pensei, enquanto eu parecia um papa-defunto. Judith
Bolton me advertira que isso podia acontecer, mas disse também que era
melhor eu me vestir com apuro excessivo para as entrevistas do que
aparecer numa roupa casual demais. Sinal de respeito e tudo mais.
Ele se sentou ao meu lado e virou-se para me encarar. Stephanie fechou
a porta silenciosamente ao sair.
— Sou capaz de apostar como o trabalho lá na Wyatt anda bem intenso
— disse ele.
Tom Lundgren tinha lábios extremamente finos e um sorriso rápido
que aparecia e desaparecia em seguida. Seu rosto era irritado, vermelho,
como se jogasse golfe demais, tivesse rosácea ou algo assim. A mão
direita subia e descia como um êmbolo. Era um feixe de energia nervosa,
uma massa densa de células nervosas; parecia ter excesso de cafeína no
sangue e me fazia falar depressa. Então me lembrei de que era mórmon e
não ingeria cafeína. Odiaria vê-lo atrás de um bule de café. Provavelmente
entraria em órbita intergaláctica.
— Intenso é como eu gosto.
— Que bom ouvir isso. Nós também.
O sorriso dele acendeu e apagou.
— Acho que há mais gente do tipo A aqui do que em qualquer outro
lugar. O relógio de todo mundo anda mais depressa. Ele desatarraxou a
tampa de sua garrafa e tomou um gole.
— Sempre disse que a Trion é um grande lugar para se trabalhar...
quando se está de férias. Você pode responder e-mails, correios de voz,
fazer tudo quanto é tipo de coisa, mas cara, você paga um preço alto por se
afastar. Quando volta, sua caixa postal está lotada e você se sente mais
esmagado que uma uva.
Balancei a cabeça e dirigi-lhe um sorriso conspiratório. Em
corporações high-tech até mesmo os caras do marketing gostam de falar
como se fossem engenheiros, portanto eu tinha que dar o troco.
— Parece familiar. É que você tem tantos ciclos que precisa decidir em
que vai gastá-los.
Eu estava refletindo sua linguagem corporal, quase que o imitando,
mas ele não parecia perceber.
— Exatamente. Agora, nós não estamos atravessando uma fase de
contratações — hoje em dia ninguém está. Mas um dos nossos gerentes de
produtos novos foi transferido de repente.
Balancei a cabeça de novo.
— O Lucid é genial, realmente salvou o Wyatt em um trimestre que,
não fosse por isso, seria deplorável. A criança é sua, hein?
— Da minha equipe. Eu só era parte da equipe. Não dirigia o
espetáculo.
Ele pareceu gostar.
— Bem, pelo que soube você ocupava uma posição chave.
— Não sei disso. Eu trabalho duro e amo o que faço, e estava no lugar
certo na ocasião certa.
— Você é modesto demais.
— Talvez — eu sorri. E ele foi na onda, engolindo junto a falsa
modéstia e a franqueza.
— Como você conseguiu? Qual é o segredo?
Soltei uma baforada de ar pelos lábios contraídos, como se estivesse
me lembrando de ter corrido uma maratona.
— Nenhum segredo. Trabalho de equipe. Obtendo o consenso,
motivando as pessoas.
— Seja específico.
— A ideia básica foi um aparelho destinado a matar o Palm, para ser
sincero — eu estava falando a respeito do PDA [Assistente Pessoal
Digital] sem fio da Wyatt, que enterrara o Palm Pilot. — Nas primeiras
sessões de planejamento conceitual, organizamos um grupo
multifuncional — engenharia, marketing, nosso pessoal de ID, uma firma
externa de ID — ID é o jargão para desenho industrial. Eu estava
enrolando, conhecia a resposta de cor. — Examinamos a pesquisa de
mercado, quais eram as falhas no produto da Trion, no Palm, Handspring e
Blackberry.
— E qual era a falha no nosso produto?
— Velocidade. O sem fio não é satisfatório, mas você sabe disso.
Aquele era um comentário cuidadosamente planejado: Judith me
passara algumas observações sinceras que Lundgren fizera em
conferências da indústria. Ele sempre se mostrava furiosamente crítico a
respeito dos esforços da Trion quando fracassavam. Meu realismo era um
risco calculado da parte de Judith. Baseado na avaliação que ela fizera do
seu estilo de administrar, ela concluíra que ele desprezava adulações e se
ligava em conversas francas.
— Correto — disse ele. E, por um milésimo de segundo, exibiu um
sorriso. — Seja como for, examinamos uma gama de cenários. O que a
mãe de um garoto que joga futebol realmente ia querer, o executivo de
uma companhia, o capataz de uma construção. Falamos sobre a
configuração, formato, tudo. As discussões eram bem livres. Minha ênfase
era na elegância de desenho casada com simplicidade.
— Eu me pergunto se você talvez não tenha forçado muito o lado do
design, sacrificando a funcionalidade — interveio Lundgren.
— Como assim?
— Falta de um slot para flash. A única fraqueza séria do seu produto,
no meu entendimento.
A bola veio quicando na minha direção e eu não tive dúvida — chutei
com força.
— Concordo plenamente — eu estava tão bem preparado com as
estórias dos "meus" sucessos e pseudofracassos que conseguia lidar com
elas como se fossem vitórias nos campos de batalha. — Um grande erro.
Essa foi definitivamente a característica mais importante descartada.
Estava na definição original do produto, mas extrapolou os limites de
forma que queríamos e foi abandonada no meio do ciclo. — Engula essa.
— Fazendo algo a respeito na próxima geração?
Sacudi a cabeça.
— Desculpe, mas não posso dizer. É propriedade da Wyatt Telecom.
Isto não é um requinte legal, é uma coisa moral para mim... quando você
dá sua palavra, ela tem que significar alguma coisa. Se for um problema...
Ele me deu o que pareceu um sorriso genuíno de apreciação. Gol!
— Problema nenhum. Respeito sua posição. Quem quer que vaze
informações pertencentes a seu último empregador, fará o mesmo comigo.
Notei as palavras "último empregador": Lundgren já tinha assinado,
acabara de se entregar.
Ele pegou seu pager e rapidamente verificou a tela. Tinha recebido
diversos chamados, no modo vibração, enquanto conversávamos.
— Não preciso mais tomar seu tempo, Adam. Quero que você conheça
Nora.
10
Nora Sommers era loura, tinha cerca de cinquenta anos e os olhos
penetrantes eram bastante separados. Tinha a aparência carnívora de um
animal selvagem que andasse em matilhas. Talvez eu estivesse
influenciado pelo dossiê, que a descrevia como impiedosa e tirânica. Era
diretora, líder da equipe encarregada do projeto Maestro, uma espécie de
cópia barata e reduzida do Blackberry que ameaçava entrar pelo cano. Era
famosa por convocar reuniões às sete da manhã. Ninguém queria pertencer
à sua equipe, motivo pelo qual tinham problema para preencher a vaga
internamente.
— Então deve ser divertido trabalhar para Nick Wyatt, não é? — ela
começou.
Eu não precisava que Judith Bolton me dissesse que você nunca deve
se queixar do seu patrão anterior.
— Na verdade — respondi — ele é exigente, mas extraiu o que de
melhor havia em mim. É um perfeccionista. Não sinto outra coisa a não
ser admiração por ele.
Ela balançou a cabeça com uma expressão de sabedoria e sorriu como
se eu tivesse selecionado a resposta certa em um teste de múltipla escolha.
— Mantém o ímpeto vivo, hein?
O que esperava de mim, que eu dissesse a verdade sobre Nick Wyatt?
Que é um chato e um panaca? Acho que não. Improvisei um pouco mais.
— Trabalhar com Wyatt é como ganhar dez anos de experiência em um
ano, em vez de um ano de experiência dez vezes.
— Boa resposta — disse ela. — Gosto que o meu pessoal de marketing
tente me convencer. É um componente-chave dos talentos necessários à
função. Se você consegue me iludir, é capaz de fazer o mesmo com o
Journal.
Perigo, perigo. Cheguei a ouvir a voz metálica do robô de Perdidos no
espaço. Eu não ia me arriscar. Dava para ver os dentes daquela armadilha.
Limitei-me a encará-la inexpressivamente.
— Bem — prosseguiu Nora Sommers —, os comentários a seu
respeito certamente se espalharam. Qual foi a batalha mais difícil que teve
de lutar por conta do projeto Lucid?
Reprocessei a história que acabara de contar para Tom Lundgren, mas
ela não se mostrou impressionada.
— Não me parece ter sido grande coisa como batalha — contrapôs. —
Eu chamaria isso de escolhas difíceis.
— Talvez você tivesse que ter estado presente — falei. Passei em
revista meu CD-ROM mental de historinhas sobre o desenvolvimento do
Lucid. — Houve também uma grande discussão por causa do design do joy
pad. É um pad pentadirecional com o alto-falante embutido.
— Eu conheço. Qual foi a controvérsia?
— Bem, nosso pessoal de desenho industrial realmente se concentrou
nessa história do alto-falante como sendo o ponto focal do produto — ele
realmente atrai a atenção.
Mas tive a maior reação quanto a isso dos engenheiros, que disseram
que era quase impossível, muito arriscado; queriam separar o alto-falante
do pad direcional.
Os caras estavam convencidos de que, se fosse feita a separação, o
desenho ficaria confuso e assimétrico. Tenso. Por isso, tive que firmar
posição. Falei que se tratava de um princípio básico. O desenho não era
apenas uma declaração visual, mas representava também uma importante
declaração tecnológica — dizia ao mercado que éramos capazes de fazer
algo que nossos competidores não eram.
Ela havia fixado os olhos penetrantes em mim como se eu fosse uma
galinha aleijada.
— Engenheiros — disse, com um estremecimento. — Podem ser
realmente insuportáveis. Nenhum senso comercial.
Os dentes de metal da armadilha reluziam de sangue.
— Na verdade, nunca tive problemas com engenheiros — falei. —
Acredito, inclusive, que são o coração da empresa. Jamais os confronto; eu
os inspiro, ou, pelo menos, tento. Liderança judiciosa e participação
honesta, são essas as chaves. Trata-se de uma das coisas que mais me
atraem na Trion... os engenheiros reinam supremos aqui, que é como deve
ser. Uma verdadeira cultura de inovação.
Muito bem, eu estava papagueando uma entrevista que Jock Goddard
uma vez dera para Fast Company, mas achei que tinha funcionado. Os
engenheiros da Trion eram conhecidos por amarem Goddard, porque
Goddard era um deles. Consideravam a Trion um lugar legal para
trabalhar, já que grande parte dos recursos eram destinados a P & D.
Ela ficou sem voz por um segundo.
— No fim do dia, a inovação é indispensável.
Jesus, eu achava que eu era péssimo, mas aquela mulher falava os
clichês do mundo corporativo como segundo idioma, como se tivesse
aprendido num livro da Berlitz.
— Indubitavelmente — concordei.
— Então, diga-me, Adam — qual é a sua grande fraqueza?
Sorri, balancei a cabeça e, mentalmente, fiz uma prece de gratidão a
Judith Bolton.
Gol.
Cara, tudo me pareceu quase fácil demais.
11
Recebi a notícia de Nick Wyatt em pessoa. Quando fui introduzido na
sua sala por Yvette, encontrei-o exercitando-se em um Precor, colocado a
um canto da sala. Usava uma camiseta ensopada de suor, calção vermelho
tipo short e parecia meio pálido. Perguntei-me se não tomaria
anabolizantes.
Tinha um equipamento telefônico sem fio ajustado na cabeça, com
dois fones de ouvido, um microfone, e berrava ordens.
Mais de uma semana se passara desde a entrevista na Trion, e nada.
Silêncio absoluto. Eu sabia que tinha me saído bem e não tinha dúvidas de
que minhas referências eram espetaculares, mas quem sabe, tudo pode
acontecer.
Eu havia imaginado, erroneamente, que uma vez feitas minhas
entrevistas eu teria folga da escola da KGB, mas não tive tanta sorte. O
treinamento prosseguiu, com inclusive o que chamavam de "técnicas de
espionagem" — como furtar coisas sem ser apanhado, cópias de
documentos e de arquivos de computador, como pesquisar os bancos de
dados da Trion, como entrar em contato com eles se aparecesse alguma
coisa que não pudesse esperar por um encontro previamente marcado.
Meacham e outro veterano da equipe de segurança da Wyatt, que
trabalhara duas décadas no FBI, me ensinaram como entrar em contato
com eles por e-mail, usando um "anonimizador", um site com base na
Finlândia que apaga seu nome e endereço verdadeiros; como criptografar o
e-mail com um software poderosíssimo, de 1.024-bits, desenvolvido —
contrariando as leis dos EUA — em algum lugar do exterior. Ensinaram-
me coisas tradicionais de espionagem, como locais de entrega e sinais ou
como fazer com que soubessem que eu tinha documentos para lhes passar.
Ensinaram-me a fazer cópias dos crachás que a maioria das corporações
usa atualmente, do tipo que abre uma porta quando você o coloca diante de
um sensor. Parte desses troços era bem legal. Eu começava a me sentir
como um verdadeiro espião. Naquele tempo, de qualquer maneira, eu tinha
aderido inteiramente ao plano. Não sabia o que encontraria pela frente.
No entanto, após alguns dias de espera por alguma palavra da Trion,
senti-me apavorado. Meacham e Wyatt haviam sido bem claros a respeito
do que me aconteceria se não conseguisse o emprego lá.
Nick Wyatt sequer olhou para mim.
— Congratulações — falou. — Recebi notícias do caçador de talentos.
Você acaba de conseguir liberdade condicional.
— Tive uma proposta?
— Cento e setenta e cinco mil para começar, opções de ações, o pacote
todo. Você está sendo contratado como colaborador especial em nível de
gerência, mas sem subordinações diretas, grau dez.
Senti-me aliviado e assombrado com a quantia. Era cerca de três vezes
o que estava ganhando agora. Acrescentando meu salário na Wyatt, eu
ficaria com duzentos e trinta e cinco mil. Caramba.
— Legal — falei. — O que fazemos agora, negociamos?
— Está maluco? Eles entrevistaram mais oito sujeitos para o lugar.
Quem sabe se alguém não tem um candidato favorito, um amigão, o que
for. Não se arrisque, ainda não. Entre lá, mostre a eles o que você tem.
— O que eu tenho...
— Mostre como você é espantoso. Você já despertou o apetite deles
com alguns hors d'oeuvres. Agora acabe com eles. Se não conseguir
derrotá-los de goleada depois de se graduar na nossa escolinha de charme
e de ter a Judith e eu cochichando no seu ouvido, você é um perdedor
ainda maior do que eu pensava.
— Certo.
Percebi que estava mentalmente ensaiando minha louca fantasia de dar
uns bons berros com Wyatt quando saísse para trabalhar na Trion, até que
me lembrei de que não apenas Wyatt continuava sendo meu patrão, como
também me tinha preso pelo saco.
Wyatt saltou da máquina encharcado de suor, pegou uma toalha branca
que estava no guidom e passou no rosto, braços e axilas. Estava tão perto
de mim que eu podia sentir o odor da sua respiração, seu hálito azedo.
— Agora, escute cuidadosamente — disse ele, com um inegável tom
de ameaça. — Há cerca de dezesseis meses a junta de diretores da Trion
aprovou uma despesa extraordinária de quase quinhentos milhões de
dólares para financiar uma equipe de projetos de ponta.
— O quê?
Ele tomou fôlego.
— Um projeto interno top secret. De qualquer forma, é raríssimo que
uma diretoria aprove uma despesa tão grande sem muita informação.
Neste caso, eles aprovaram às cegas, com base apenas nas afirmativas do
presidente. Goddard é o fundador, portanto confiam nele. Goddard
também assegurou que a tecnologia que estavam desenvolvendo, seja o
que for, era um avanço monumental. Refiro-me a algo imenso, que muda
paradigmas, um salto quântico. Algo que vá além de desestabilizar o
estado de coisas atual. Ele afirmou que seria o maior acontecimento desde
o transistor, e quem não fizesse parte ficaria para trás.
— O que é?
— Se eu soubesse, você não estaria aqui, idiota. Minhas fontes me
asseguram de que vai transformar a indústria de telecomunicações, virar
tudo de cabeça para baixo. E não tenciono ficar para trás, está me
entendendo?
Eu não estava, mas balancei a cabeça assim mesmo.
— Investi demais nesta firma para deixar que ela desapareça como o
mastodonte ou o dodô. Assim, a sua missão, meu amigo, é descobrir tudo
o que puder sobre esse projeto, descobrir do que se trata, o que estão
desenvolvendo. Não me interessa se só estão desenvolvendo a merda de
um pula-pula eletrônico, o ponto é que não vou me arriscar de jeito
nenhum a ficar para trás. Entendido?
— Como?
— O problema é seu.
Ele se virou, atravessou a sala imensa na direção de uma saída que eu
não vira antes e abriu a porta, revelando um banheiro de mármore
cintilante com um chuveiro.
Fiquei ali parado meio sem graça, sem saber ao certo se devia esperar
por ele, ir embora ou o quê.
— Você vai receber o chamado ainda hoje, mais para o fim da manhã
— disse Wyatt, sem se virar. — Banque o surpreso.
Parte Dois
BARREIRA PROTETORA
INSTALAÇÕES HIDRÁULICAS
COMPROMETIMENTO
A mudança foi indolor, já que não guardei quase nada do meu antigo
apartamento. O Exército da Salvação e o pessoal da Legião da Boa
Vontade vieram e levaram embora o horrível sofá xadrez grande, a mesa
de fórmica da cozinha, o colchão de molas de suporte e o colchão
propriamente dito, e todo o resto do lixo que eu tinha, inclusive a mesa
velha e nojenta. Mil porcarias caíram do sofá quando o levaram — papéis
Zig-Zag, baratas, uma parafernália variada de drogas. Fiquei com o
computador, as roupas e a frigideira preta de ferro de minha mãe (por
razões sentimentais — não que eu jamais a tenha usado). Botei todas as
minhas coisas no Porsche, o que dá uma boa ideia de como eram poucas,
já que esse carro praticamente não tem espaço para bagagem. Comprei
toda a mobília numa loja elegante chamada Domicile (sugestão da agente)
— sofás grandes, macios, que engoliam você, poltronas combinando, jogo
de mesa e cadeiras de jantar que parecia ter vindo diretamente de
Versalhes e uma cama enorme de cabeceira de ferro. Tapetes persas.
Colchão Dux caríssimo. Tudo. Um caminhão de dinheiro, mas e daí — não
era eu que estava pagando.
Na verdade, a Domicile estava entregando a mobília quando o porteiro,
Carlos, me ligou para dizer que eu tinha visita lá embaixo, um sr. Seth
Marcus. Disse a ele para mandar Seth subir.
A porta da frente já estava aberta para o pessoal dos móveis, mas Seth
tocou a campainha e ficou parado ali no hall. Usava camiseta Sonic Youth
e uma calça jeans Diesel com rasgões. Seus olhos castanhos normalmente
cheios de vida, ar e meio frenéticos, pareciam mortos. Ele estava apagadão
— eu não saberia dizer se intimidado, invejoso, com raiva por eu ter
desaparecido sem mais aquela ou uma combinação dos três.
— Ei, cara — ele disse. — Segui sua pista.
— Ei, cara — respondi, dando-lhe um abraço. — Seja bem-vindo à
minha humilde morada.
Eu não sabia mais o que dizer. Por alguma razão, senti-me
envergonhado. Não queria que ele visse o apartamento. Ele permaneceu
onde estava no hall.
— Você não ia me contar que estava se mudando?
— Foi meio de repente — respondi. — Eu ia telefonar para você. Ele
pegou uma garrafa de champanhe barata New York State na sua bolsa de
lona de transportar na bicicleta e me entregou. — Estou aqui para celebrar.
Cheguei à conclusão de que você era bom demais para tomar cerveja.
— Excelente! — exclamei, pegando a garrafa e ignorando a farpa. —
Entre.
— Seu cachorrão. Isso é uma maravilha — ele pronunciou as palavras
num tom de voz desenxabido, sem entusiasmo. — Imenso, hein?
— Cento e oitenta metros quadrados. Venha ver.
Levei-o para um tour, durante o qual ele dizia coisas engraçadas e
cortantes como: "Se isso é uma biblioteca, você não precisa ter livros?" e
"Agora tudo do que você precisa para mobiliar seu quarto é uma
namorada." Disse que meu apartamento era "doente" e "sinistro", seu jeito
"pseudogangsterístico" de dizer que estava gostando.
Ele me ajudou a retirar o plástico que envolvia um dos enormes sofás
para que pudéssemos sentar. O sofá fora colocado no meio da sala de estar,
como se estivesse flutuando ali, de frente para o mar.
— Legal — disse Seth, afundando no sofá. Tive a impressão de que ele
queria pôr os pés em cima de alguma coisa, mas ainda não tinha trazido a
mesinha de centro, o que foi bom, porque eu não ia querer que ele
colocasse seus sapatos Doc Martens cheios de lama em cima dela.
— Você agora está fazendo as unhas? — perguntou ele, desconfiado.
— De vez em quando — admiti, num fio de voz. Não podia acreditar
que ele tivesse reparado em um detalhe tão mínimo como as minhas
unhas. — Tenho que parecer um executivo, você sabe.
— E o que é que houve com o corte do seu cabelo? Fala sério.
— O que é que tem?
— Você não acha que ficou, sei lá, meio boiola?
— Boiola?
— Enfeitado demais. Você não andou passando um troço qualquer no
cabelo, tipo gel, mousse ou similar?
— Um pouco de gel — falei, defensivamente. — O que é que tem?
Ele fechou os olhos e sacudiu a cabeça.
— Você passou colônia?
Eu queria mudar de assunto.
— Achei que você trabalhava hoje de noite — comentei.
— Você se refere àquele negócio de trabalhar servindo no bar? Não,
caí fora. Achei que aquilo era totalmente falso.
— Parecia um lugar legal.
— Não para quem trabalha lá, cara. Tratam você como se você fosse
um merda de um garçom.
Quase caí na gargalhada.
— Arranjei um troço muito mais legal. Estou na "equipe da energia
móvel" do Red Bull. Eles dão para você um carro legal para andar por aí e
você basicamente distribui amostras e conversa com as pessoas, esse tipo
de coisa. Horário totalmente flexível. Pode ser depois do trabalho como
paralegal.
— Parece perfeito.
— Absolutamente. Inclusive me dá tempo livre de sobra para trabalhar
no meu hino corporativo.
— Hino corporativo?
— Toda companhia grande tem um hino, tipo cheesy rock, rap ou algo
assim.
Ele cantou, pessimamente:
— Trion! Mude o seu mundo! Tipo isso. Se a Trion não tem um hino,
você talvez possa me indicar para o sujeito certo. Aposto como eu
receberia royalties cada vez que vocês cantassem o hino num piquenique
da firma ou em outro evento qualquer.
— Vou estudar o caso — falei. — Ei, não tenho copos. Estou
esperando que entreguem, mas ainda não chegaram. Dizem que o vidro foi
feito soprado pela boca na Itália, não sei se vai dar para sentir o cheiro de
alho.
— Não se preocupe com isso. O champanhe provavelmente lava tudo.
— Você continua trabalhando na firma de advocacia?
Ele pareceu envergonhado.
— É o meu único contracheque regular.
— Puxa, isso é importante.
— Acredite em mim, cara, trabalho o menos possível. Apenas o
suficiente para Shapiro não torrar meu saco — fax, cópias, esses troços —
e ainda tenho bastante tempo para navegar na Web.
— Legal.
— Ganho tipo vinte pratas por hora para jogar joguinhos da Web,
gravar CDs de música e fingir que trabalho.
— Excelente — aprovei. — Você realmente está levando vantagem —
na verdade, era patético.
— Você pegou o espírito da coisa.
Não sei o que foi que me deu na cabeça, mas o fato foi que perguntei:
— E então, quem você pensa que está enganando mais, eles ou você
mesmo?
Seth me dirigiu um olhar esquisito.
— Como assim?
— Quer dizer, você não faz porra nenhuma no trabalho, você dá o
golpe... já se perguntou para que está fazendo isso? Ou seja, de que
adianta?
Os olhos de Seth se estreitaram em sinal de hostilidade.
— O que é que há com você?
— Vai ter uma hora que você vai precisar se dedicar a alguma coisa,
sabe?
Ele fez uma pausa.
— Seja o que for. Ei, quer sair daqui, ir a algum lugar? Este troço aqui
é adulto demais para o meu gosto, está me dando urticária.
— Claro.
Eu estava justamente tentando decidir se mandava ou não buscar um
cozinheiro no hotel para nos preparar um jantar, porque achei que Seth
ficaria impressionado, mas recuperei o juízo. Não teria sido uma boa ideia.
Deixaria Seth maluco. Aliviado, liguei para o manobrista e mandei pegar
meu carro.
Estava esperando por mim quando chegamos lá embaixo.
— É seu? — ele perguntou, boquiaberto. — De jeito nenhum.
— Claro que é.
Seu comportamento cínico e distanciado finalmente rompeu-se.
— Esta maravilha deve custar algo como cem mil!
— Menos que isso. Bem menos. De qualquer modo, é a companhia que
faz o leasing dele para mim.
Ele se aproximou do Porsche bem devagar, maravilhado, reverente e,
ao mesmo tempo, temeroso, do mesmo modo como os macacos se
aproximaram do monólito em 2001, Uma odisseia no espaço, e fez um
carinho na reluzente porta em Basalt Black.
— Tudo bem, companheiro — ele exigiu —, qual é o seu golpe? Quero
um pouco também.
— Não é um golpe — retruquei, constrangido, quando entramos no
Porsche. — De certa forma caí nessa meio sem querer.
— Qual é, cara. Você está falando comigo, seu amigo Seth. Lembra de
mim? Você está vendendo drogas ou alguma coisa assim? Porque se
estiver, é melhor você me incluir na parada.
Dei uma risada sem graça. Ao sairmos com um ronco do Porsche, vi
um carro idiota, que deveria ser o dele, estacionado na rua. Uma imensa
lata vermelha e prata de Red Bull fora montada em cima de um carrinho
pequeno. Uma piada.
— O seu carro?
— Isso aí. Legal, não é? — ele não parecia tão entusiasmado.
— Legal — falei. Era ridículo.
— Sabe quanto me custou? Nada. Só tenho que andar com ele por aí.
— Bom negócio.
Seth se recostou no banco de couro macio.
— Que maravilha! — disse e inspirou fundo o cheirinho de carro novo.
— Cara, que maravilha! Quero a sua vida. Vamos trocar?
39
Era totalmente fora de questão, claro, eu me encontrar de novo com a
dra. Judith Bolton na sede da Wyatt, onde eu podia ser visto entrando ou
saindo. Mas, agora que eu estava lidando com as grandes feras da Trion,
precisava de uma sessão profunda e detalhada. Wyatt insistiu nisso e não
discordei.
Assim, nós nos encontramos no sábado seguinte no Marriott, em uma
suíte destinada a encontros de negócios. Recebi por email o número do
quarto. Ela já estava lá quando cheguei, o laptop ligado a um monitor.
Engraçado, ainda me deixava nervoso. No caminho, eu tinha parado para
um corte de cabelo de cem dólares. E estava com roupas decentes, não
meu costumeiro lixo de fim de semana.
Eu tinha me esquecido de como ela era intensa — os olhos azuis-
claros, o cabelo cor de cobre, os lábios vermelhos brilhosos e as unhas
combinando. Também tinha me esquecido de como era durona. Apertei sua
mão com firmeza.
— Chegou exatamente na hora marcada — disse ela, com um sorriso.
Dei de ombros e meio que sorri para dizer que tinha entendido, mas
não estava achando graça.
— Está ótimo. Parece que o sucesso combina com você.
Nós nos sentamos a uma mesa de reuniões elegante, que mais parecia
pertencer à sala de jantar de alguém — à minha, talvez —, e ela me
perguntou como eu estava indo. Contei tudo, as coisas boas e as ruins, sem
esquecer Chad e Nora.
— Você vai ter inimigos. Era previsível. Mas estes são ameaças —
você deixou uma ponta de cigarro ardendo no meio do mato e se não
apagar logo vai ter que apagar um incêndio na floresta.
— Como apago essas pontas de cigarro?
— Já vamos conversar sobre isto. Agora, porém, quero me concentrar
em Jock Goddard. E se você esquecer tudo o mais que for dito hoje, quero
que se lembre de uma coisa: ele é patologicamente sincero.
Não consegui conter um sorriso. Curioso que aquilo partisse da
principal conselheira de Nick Wyatt, um sujeito tão desonesto que roubava
até no exame de próstata.
Os olhos dela faiscaram, e ela se inclinou na minha direção.
— Não estou fazendo piada — disse, aborrecida. — Ele o escolheu não
porque gosta do seu jeito de pensar ou das suas ideias — que, é claro, não
são absolutamente suas — mas porque acha a sua sinceridade revigorante.
Você fala o que pensa. Ele gosta disso.
— Isso é "patológico"?
— A sinceridade é praticamente um fetiche para ele. Quanto mais
contundente você for, quanto menos calculista parecer, melhor você se
sairá.
Por um instante perguntei a mim mesmo se Judith enxergava a ironia
do que estava fazendo — aconselhando-me a enganar Jock Goddard
fingindo ser sincero. Uma sinceridade cem por cento artificial.
— Se ele começar a detectar qualquer coisa desonesta, obsequiosa ou
calculista no seu modo de ser — se ele pensar que você está tentando
ganhar suas graças por meios insinceros ou lisonjas — ele ficará
imediatamente indiferente a você. E, se perder a sua confiança, pode ser
que nunca mais a recupere.
— Entendido — falei, impaciente. — Daqui por diante, nada mais de
enganar o cara.
— Meu querido, em que planeta você vive? — disparou ela. — Claro
que vamos tapear o velho. Esta é a segunda lição na arte de "progredir na
carreira", me dá um tempo.
Você vai confundir a cabeça dele, mas vai ter que ser absolutamente
habilidoso. Nada de coisas óbvias, nada que ele possa sentir o cheiro.
Assim como os cães sentem o cheiro do medo, Goddard sente o da
mentira. Portanto, você vai ter que ser visto como a última das pessoas
francas e honestas. Contará a ele as más notícias que os outros tentarão
adoçar. Você lhe mostra um plano do qual ele gosta, e será você mesmo a
lhe apontar os pontos fracos do plano. A integridade é uma mercadoria
muito escassa neste mundo — uma vez que descubra como falsificá-la,
estará no bom navio Lollipop.
— Onde eu quero estar — falei, secamente.
Ela não dispunha de tempo para o meu sarcasmo.
— Todo mundo diz que ninguém gosta de puxa-sacos, mas a verdade é
que, em sua maioria, os diretores e gerentes mais graduados adoram,
mesmo quando sabem que estão sendo bajulados. Faz com que se sintam
poderosos, sentem-se mais seguros, fortalece seus frágeis egos. Jock
Goddard, ao contrário, não precisa. Acredite em mim, ele já se tem em alta
conta. Não se deixa cegar nem pela necessidade, nem pela vaidade. Não é
um Mussolini que precisa cercar-se de homens servis.
Tive vontade de perguntar: "como alguém que conhecemos?", mas
fiquei quieto. Ela continuou.
— Veja só o tipo de pessoas de quem ele se cerca — pessoas
inteligentes, de raciocínio rápido, que podem ser ásperas e que expressam
abertamente suas opiniões.
— Você está dizendo que ele não gosta de lisonjas.
— Não é isso que estou dizendo. Todo mundo gosta de ser lisonjeado.
Mas ele tem que sentir que se trata de algo verdadeiro. Uma historinha:
Napoleão uma vez foi caçar no Bois de Boulogne com Talleyrand, que
desejava desesperadamente impressionar o grande general. O bosque
estava cheio de coelhos e Napoleão ficou exultante porque matou
cinquenta. Mas, quando descobriu, mais tarde, que não eram coelhos
selvagens — que Talleyrand tinha mandado um de seus criados ao
mercado comprar dúzias deles, ficou furioso. Nunca mais confiou em
Talleyrand.
— Vou me lembrar disso na próxima vez em que Goddard me convidar
para caçar coelhos.
— A questão é — retrucou ela, irritada —, quando lisonjeá lo, faça-o
com sutileza.
— Eu não estou correndo com coelhos, Judith. São mais semelhantes a
lobos.
— Aí está. O que é que você sabe sobre lobos?
Suspirei.
— Estou ouvindo — falei.
— É tudo bem visível. Sempre há um macho número um, é claro, o
primeiro em importância na matilha. É o lobo Alfa. O que é interessante
ter em mente é que a hierarquia está sempre sendo testada. Ela é altamente
instável. Às vezes você vê o lobo Alfa largar um pedaço fresco de carne no
chão, bem na frente dos outros, afastar-se alguns metros e ficar olhando.
Só olhando. Trata-se de um desafio aberto — ele quer ver se algum lobo se
atreve até mesmo a farejar aquela carne.
— Quem se meter a besta vira jantar.
— Errado. O Alfa geralmente não precisa fazer outra coisa além de
olhar feio. Talvez caprichar um pouco na postura. Levantar a cauda e as
orelhas, rosnar, fazer-se de grande e feroz. No caso de ocorrer uma luta, o
Alfa atacará as partes menos vulneráveis do corpo do transgressor. Na
verdade, ele não quer mutilar um membro de sua matilha e, muito menos,
matá-lo. Você compreende, o Alfa precisa dos outros. Os lobos são
animais pequenos e nenhum lobo sozinho vai derrubar um alce, ou um
cervo, um caribu, sem a ajuda da matilha. O que interessa é que, eles
estejam sempre testando.
— Isso quer dizer que vou ser testado sempre.
É, eu não precisava de um MBA para trabalhar para o Goddard e sim, de
formação em veterinária.
Ela me olhou de lado.
— O ponto, Adam, é que o testar é sempre sutil. Mas ao mesmo tempo
o líder da matilha quer que sua equipe seja forte. É por isso que eventuais
atitudes agressivas são aceitáveis — elas demonstram a estâmina, a força,
a vitalidade de toda a matilha. Esta é a importância da honestidade, da
sinceridade estratégica. Quando você lisonjear, faça-o de maneira sutil e
indireta e assegure-se de que Goddard acredite que sempre obtém a
verdade simples e direta de você. Jock Goddard sabe o que muitos outros
presidentes de corporações não sabem — que a sinceridade de seus
auxiliares é vital se ele quiser saber o que ocorre dentro da sua companhia.
Porque se ele se afasta do que realmente acontece, vira história. E deixa
que eu lhe diga uma outra coisa que você precisa saber. Em todo
relacionamento masculino mentor-protégé há um elemento pai-filho, mas
suspeito que é ainda mais aplicável neste caso. É provável que você o faça
lembrar-se do filho, Elijah.
Goddard tinha me chamado de Elijah umas duas vezes por engano,
lembrei.
— Minha idade?
— Teria, se não tivesse morrido algum tempo atrás, com vinte e um
anos de idade. Há quem pense que desde essa tragédia Goddard nunca
mais foi o mesmo, que amoleceu um pouco. O ponto é que, assim como
você pode vir a idealizar Goddard como o pai que você gostaria de ter tido
— ela sorriu, ela sabia a respeito do meu pai, de alguma forma — você
pode muito bem fazer com que ele se lembre do filho que ele ainda queria
ter. Era preciso que você tomasse conhecimento disso, porque é algo que
pode ser capaz de usar. E é também uma coisa para a qual você deve ficar
atento — ele tanto pode lhe dar uma folga imerecida às vezes como, em
outras ocasiões, mostrar-se irracionalmente exigente.
Ela voltou-se para seu laptop e digitou umas teclas.
— Quero agora toda a sua atenção. Vamos assistir a algumas
entrevistas que Goddard deu para a televisão através dos anos — uma
antiga do programa Wall Street Week with Louis Rukeyser, diversas da
CNBC e uma com a Katie Couric em The Today Show.
Uma imagem em vídeo de um Jock Goddard muito mais jovem,
embora já lembrando um gnomo brincalhão — estava congelada na tela.
Judith virou-se na sua cadeira para me encarar.
— Adam, esta é uma oportunidade extraordinária que lhe deram. Mas
é também uma situação muito mais perigosa do que aquela anteriormente
na Trion, porque agora se sentirá muito mais constrangido, muito menos
capaz de se mover pela companhia sem ser notado ou de simplesmente
visitar pessoas comuns e entrar em rede com elas.
Paradoxalmente, sua missão de coletar inteligência passou a ser
imensamente mais difícil. Você vai precisar de toda munição que possa
reunir. Assim, antes de terminarmos hoje, quero que você conheça este
sujeito pelo avesso, está me entendendo?
— Estou te entendendo.
— Ótimo — disse ela, e me deu seu sorriso tenso e assustador. — Eu
sei quem você é — ela abaixou a voz até quase murmurar. — Escuta,
Adam. Tenho que lhe dizer — para o seu próprio bem — que Nick está
ficando muito impaciente por resultados. Você está na Trion há quantas
semanas? — e ele ainda não sabe de que tratam as equipes de projetos de
ponta.
— Há um limite — comecei — para ser agressivo...
— Adam — ela me interrompeu em voz baixa, mas com uma
inequívoca nota de ameaça. — Nick Wyatt não é uma pessoa a quem você
queira ferrar.
40
Alana Jennings morava em um apartamento duplex num prédio
revestido de tijolos vermelhos, não muito longe da sede da Trion.
Reconheci prontamente pela fotografia.
Sabe quando você começa a sair com uma garota e repara cada coisa a
seu respeito, onde mora, como se veste e o perfume que usa, e tudo parece
tão diferente e tão novo? Bem, o estranho era que eu sabia muito mais a
seu respeito do que alguns maridos sabem sobre as próprias mulheres e, no
entanto, não passara mais que uma ou duas horas com ela.
Parei em frente ao prédio com o meu Porsche — não é para isso que
servem os Porsches, impressionar as garotas? —, galguei os degraus e
toquei a campainha. Imediatamente ouvi sua voz pelo interfone, desceria
logo.
Vestia uma blusa de camponesa branca, bordada, e calças pretas de
malha muito justas, penteara o cabelo para cima e não estava usando os
óculos escuros assustadores.
Perguntei a mim mesmo se camponesas usariam realmente blusas de
camponesa, se ainda existiriam camponesas no mundo, e, caso houvesse,
se veriam a si próprias como camponesas. Ela estava espetacularmente
bonita. O perfume era muito bom, diferente da maioria das garotas com
quem eu geralmente saía. Uma fragrância floral chamada Fleurissimo;
lembro de ter lido que a comprava em uma casa chamada House of Creed
sempre que ia a Paris.
— Oi — falei.
— Oi, Adam — os lábios estavam cobertos por batom, vermelho e
brilhoso, e ela carregava no ombro uma minúscula bolsa quadrada preta.
— Meu carro está aqui — falei, tentando ser sutil a respeito do
Porsche preto novo em folha, que reluzia bem na nossa frente. Ela o
avaliou com um olhar, mas nada disse. Devia estar somando mentalmente
o carro ao meu paletó e minha calça Zegna e à camisa preta de colarinho
aberto em estilo casual, e possivelmente com o meu relógio italiano de
cinco mil dólares. E achando que eu era um exibido ou que estava me
esforçando demais. Ela vestia uma blusa de camponesa; eu, Ermenegildo
Zegna. Perfeito. Ela fingia ser pobre e eu tentava parecer rico,
provavelmente exagerando.
Abri a porta da direita para ela. Antes eu tinha puxado o banco para
trás, a fim de que houvesse bastante espaço para as pernas.
Do lado de dentro, o ar estava pesado com o cheiro de couro novo.
Havia um plástico de estacionamento da Trion no lado esquerdo do vidro
traseiro, que ela ainda não notara. Tampouco o veria de dentro do carro,
mas isso haveria de acontecer em breve, quando estivéssemos saindo do
restaurante. Tudo bem. De um jeito ou de outro ia descobrir em breve que
eu também trabalhava na Trion e que fora contratado para preencher sua
vaga. A coincidência seria um tanto estranha, uma vez que não tínhamos
nos visto no trabalho, e quanto mais cedo isso acontecesse, melhor. Na
verdade, eu tinha preparado uma fala idiota tipo: "Você está brincando!
Você trabalha lá?
Eu também! Que coincidência!"
Houve alguns momentos de silêncio contrafeito no percurso para o seu
restaurante tailandês favorito. Ela deu uma olhada no velocímetro e voltou
a observar a rua.
— Você provavelmente devia tomar cuidado aqui — disse ela. — Isto
é uma armadilha. O policial fica esperando você passar de oitenta e aí
aparece para multar.
Sorri, balancei a cabeça e me lembrei de uma cena de um dos seus
filmes favoritos, Double Indemnity, que eu alugara na véspera.
— Em que velocidade eu estava indo, policial? — falei, naquela voz
insípida de Fred MacMurray em filme noir.
Ela pegou imediatamente. Garota inteligente. E sorriu.
— Eu diria que por volta de cento e cinquenta — Alana imitou
perfeitamente a voz de mulher fatal de Bárbara Stanwyck.
— Suponha que você desça da moto e me multe.
— Suponha que desta vez eu deixe ficar por uma advertência — ela
seguiu com o jogo, os olhos animados com a travessura. Eu vacilei por uns
segundos, até que me lembrei da fala: — Suponha que não funcionasse.
— Suponha que eu tivesse que bater na sua mão.
Eu sorri. Ela era boa e estava por dentro.
— Suponha que eu começasse a chorar e pusesse a cabeça no seu
ombro.
— Suponha que você tentasse pôr a cabeça no ombro do seu marido.
— Termina aqui — falei. — Fim da cena. Corta, revela, fim da
tomada.
Ela riu, satisfeita.
— Como é que você sabe isso?
— Tempo demais assistindo a filmes antigos em preto e branco.
— Eu também! E Double Indemnity é um dos meus favoritos.
— Empata com Sunset Boulevard — falei.
Era outro dos favoritos dela.
— Exatamente. "Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos."
Eu quis bater em retirada enquanto a vantagem era minha, porque já
tinha esgotado o meu suprimento de trivia decorada de filmes noir. Mudei
o tema da conversa para tênis, que era seguro. Parei em frente ao
restaurante, e os olhos dela se iluminaram de novo.
— Você conhece este lugar? É o melhor!
— Para comida tailandesa, é o único, no que me diz respeito — um
manobrista estacionou o carro — não acreditei que estava entregando as
chaves do meu Porsche novo em folha para um garoto de dezoito anos que
provavelmente ia dar uma volta nele quando o movimento diminuísse —
assim, pelo menos, Alana não chegou a ver o adesivo da Trion.
Tudo correu muitíssimo bem por algum tempo. A brincadeira do
Double Indemnity parecia tê-la acalmado um pouco, feito com que
sentisse que estava na companhia de um espírito afim. Ainda mais um
sujeito que era fã de Ani DiFranco, o que mais podia querer? Talvez um
pouco de profundidade — as mulheres sempre parecem gostar de
profundidade nos homens, ou pelo menos um ocasional e rápido momento
de reflexão, mas eu já passara dessa hora.
Pedimos salada verde de papaia e rolinhos primavera vegetarianos.
Cheguei a pensar se devia dizer que era vegetariano, mas decidi que seria
um exagero e, além do mais, eu não sabia se podia aguentar o embuste por
mais de uma refeição. Assim, pedi frango ao curry Masaman e ela pediu
um curry vegetariano com leite de coco — lembrei de ter lido que era
alérgica a camarão — e nós dois bebemos cerveja tailandesa.
A conversa deslocou-se do jogo de tênis para o Tennis and Racquet
Club, mas eu rapidamente desviei o rumo para longe desses perigosos
bancos de areia, que poderiam resultar na pergunta de como e por que eu
estava lá naquele dia, e passei, então, para o golfe e depois para férias de
verão. Alana logo descobriu que tínhamos origens bem diferentes, mas não
houve problema. Ela não ia se casar comigo nem me apresentar ao seu pai,
e eu não queria ter que falsear o passado da minha família tampouco, o
que me daria um bocado de trabalho. Ademais, não me pareceu necessário
— achei que ela estava indo na minha conversa. Contei umas histórias
sobre trabalhar no clube de tênis e no turno da noite em um posto de
gasolina. Na verdade, ela deve ter se sentido um tanto sem graça por causa
do seu berço privilegiado, porque me contou uma mentirinha inofensiva
sobre como seus pais a forçavam a passar parte dos verões fazendo uns
trabalhos sem importância na companhia onde seu pai trabalhava, se
esquecendo de mencionar que o pai era o presidente da companhia.
Acontece também que eu sabia que Alana jamais trabalhara na companhia
do pai. Seus verões eram passados em um hotel-fazenda no Wyoming, ou
em safáris na Tanzânia, ou na companhia de duas amigas em um
apartamento pago pelo papai em Paris ou estudando no museu Peggy
Guggenheim, no Grande Canal de Veneza. Nunca abasteceu carros em
postos de gasolina.
Quando ela mencionou a companhia onde o pai "trabalhava" preparei-
me para o inevitável assunto o-que-você-faz, onde-você-trabalha. Mas não
aconteceu, senão muito tempo depois. Fiquei surpreso quando ela trouxe o
assunto à baila de um modo estranho, como se quisesse fazer uma
brincadeira sobre isso.
— Bem — disse ela, após um suspiro —, suponho que agora temos que
falar sobre o nosso trabalho, certo?
Senti um aperto no estômago.
— Você cria frangos.
Eu ri.
— Como foi que adivinhou?
— Fácil. Um criador de frangos que dirige um Porsche e usa Fendi.
— Zegna, na verdade.
— O que for. Desculpe, mas você é homem e provavelmente tudo o
que quer é falar sobre trabalho.
— Na verdade, não — modulei minha voz para alcançar um tom de
tímida sinceridade. — Eu realmente prefiro viver o momento presente, ser
tão consciente quanto puder. Você sabe, há um monge budista vietnamita
que mora na França, chamado Thich Nhat Hanh que diz...
— Oh, meu Deus! Isso é tão incrível! Não posso acreditar que você
conheça Thich Nhat Hanh!
Na verdade eu não lera nada que o monge escrevera, mas, depois de
ver quantos livros dele ela comprara na Amazon, fiz uma pesquisa nuns
sites budistas.
— Claro — falei, como se todo mundo já tivesse lido as obras
completas de Thich Nhat Hanh. — "O milagre não é caminhar em cima da
água, o milagre é caminhar sobre a terra verde."
Eu tinha certeza absoluta de ter acertado a citação, mas foi neste exato
momento que meu celular vibrou dentro do bolso do paletó.
— Com licença — falei, tirando o aparelho e dando uma olhada no
autor da ligação.
— Um segundinho — desculpei-me e atendi.
— Adam — a voz grave de Antwoine. — É melhor você vir aqui. É seu
pai.
41
Não tínhamos comido a metade dos nossos pratos. Levei-a para casa,
desculpando-me profusamente durante todo o trajeto. Ela não poderia ter
se mostrado mais compreensiva. Chegou, inclusive, a oferecer-se para ir
ao hospital comigo, mas eu não podia expô-la a meu pai, não tão cedo:
seria horrível.
Depois de deixá-la, levei o Porsche a cento e trinta por hora e cheguei
ao hospital em quinze minutos. Por sorte, sem ter sido parado por nenhum
policial. Entrei correndo na sala de emergência, sentindo que meu estado
de consciência estava alterado: hiperalerta, assustado e só enxergando o
que se encontrava na minha frente.
Eu só queria ver papai antes dele morrer. Convenci-me de que cada
maldito segundo de espera diante do balcão de atendimento da Emergência
poderia ser o instante em que meu pai morreria e eu não teria uma chance
para me despedir. Gritei o nome dele para a enfermeira da triagem e
quando ela me disse onde estava, saí correndo.
Lembro-me de ter pensado que se ele já estivesse morto ela teria dito
algo a respeito, portanto tinha que estar vivo.
Vi Antwoine primeiro, de pé do lado de fora das cortinas verdes. Por
alguma razão, seu rosto estava arranhado e ensanguentado e ele parecia
amedrontado.
— O que é que há? Onde ele está?
Antwoine apontou para as cortinas verdes, atrás das quais eu podia
ouvir vozes.
— De repente a respiração dele começou a ficar forçada. Aí seu rosto
foi escurecendo, pegando um tom meio azulado. Os dedos começaram a
ficar azuis. Foi quando chamei a ambulância — a voz de Antwoine soou
defensiva.
— Ele está...?
— Está, sim, ele está vivo. Cara, para um velho doente, ele tem um
bocado de força.
— Foi ele quem fez isso a você? — perguntei, indicando seu rosto.
Antwoine balançou a cabeça, sorrindo envergonhado.
— Ele se recusou a entrar na ambulância. Disse que estava bem. Passei
meia hora lutando com ele, quando deveria tê-lo posto no colo e jogado no
carro. Tomara que eu não tenha esperado tempo demais para chamar a
ambulância.
Um cara baixinho e moreno, de uniforme verde, se aproximou de mim.
— Você é o filho dele?
— Sou.
— Sou o dr. Patel — talvez tivesse a minha idade e fosse residente,
interno ou algo assim.
— Oi — cumprimentei e fiz uma pausa. — Hmm, ele vai se safar?
— Parece que sim. Seu pai tem um resfriado, mais nada. Mas ele não
tem qualquer reserva respiratória. Qualquer resfriadinho para ele
representa uma ameaça à sua vida.
— Posso vê-lo?
— Claro — ele virou-se para a cortina e abriu-a. Uma enfermeira
estava aplicando uma intravenosa no braço de papai. Ele me encarou por
detrás da máscara de plástico transparente que cobria-lhe a boca e o nariz.
Parecia basicamente o mesmo de sempre, só que menor e o rosto mais
pálido que o normal. Estava ligado a uma porção de monitores.
Ele arrancou a máscara.
— Olha só toda essa confusão — disse, a voz fraca.
— Como se sente, sr. Cassidy? — perguntou o dr. Patel.
— Maravilha — respondeu papai, sarcástico. — Não dá para ver?
— Acho que o senhor está melhor do que o seu acompanhante.
Antwoine tinha se aproximado meio de lado para dar uma olhada. De
repente, papai pareceu sentir-se culpado.
— Oh, isso aí. Desculpe pelo seu rosto, Antwoine.
Antwoine, que devia ter percebido que aquele era o pedido de
desculpas mais elaborado que ele ouviria de meu pai, pareceu aliviado.
— Aprendi minha lição. Da próxima vez luto com mais força. Papai
sorriu como um campeão de peso-pesado.
— Esse cavalheiro salvou-lhe a vida — afirmou o dr. Patel. — É
mesmo?
— Com absoluta certeza.
Papai inclinou a cabeça ligeiramente para encarar Antwoine.
— Por que você fez isso? — perguntou.
— Para não ter que procurar outro emprego tão depressa — foi a
pronta resposta de Antwoine.
O médico dirigiu-se a mim falando baixo.
— O raios X do tórax dele foi normal, para ele, e sua contagem de
leucócitos é oito ponto cinco, o que também é normal. Os gases do sangue
indicam que teria uma insuficiência respiratória, mas parece que
estabilizou agora. Temos que submetê-lo a uma série de antibióticos via
intravenosa, um pouco de oxigênio e esteroides também na veia.
— Para que é a máscara? — perguntei. — Oxigênio?
— É um nebulizador. Com Albuteral e Atrovent, que são dois
broncodilatadores.
Ele se debruçou sobre papai e colocou a máscara de novo.
— O senhor é um lutador de verdade, sr. Cassidy.
Papai limitou-se a piscar.
— Isso é que foi um eufemismo — disse Antwoine, com uma risada
rouca.
— Com licença — o dr. Patel fechou a cortina e deu alguns passos. Eu
o segui, enquanto Antwoine ficou com papai.
— Ele ainda fuma? — perguntou o médico, bruscamente. Dei de
ombros.
— Há manchas de nicotina nos dedos. O que é completamente insano,
você sabe.
— Eu sei.
— Ele está se matando.
— Ele vai morrer de um jeito ou de outro.
— Pois bem, mas ele está acelerando o processo.
— Talvez seja o que ele queira.
42
Comecei meu primeiro dia trabalhando oficialmente para Jock
Goddard depois de ter ficado acordado a noite inteira.
Eu saíra do hospital para o meu novo apartamento por volta das quatro
da manhã. Cheguei a pensar em dormir uma hora, mas desisti porque sabia
que ia perder a hora. E podia não ser a melhor maneira de começar com
Goddard. Portanto, tomei uma chuveirada, fiz a barba e gastei algum
tempo na Internet, lendo sobre os competidores da Trion, concentrando-
me nos sites News.com e Slashdot, para as últimas notícias tecnológicas.
Vesti um pulôver leve, preto (o negócio mais parecido que eu tinha com as
camisas pretas de gola alta características de Jock Goddard), calça cáqui e
uma jaqueta marrom Houndstooth, um dos poucos itens "casuais" da roupa
que a exótica assistente de Wyatt tinha comprado para mim. Agora eu
parecia um membro de pleno direito do grupo íntimo de Goddard. Depois
liguei para o manobrista e pedi o Porsche.
O porteiro, que parecia sempre estar de serviço de manhã cedo e de
noite, nos horários em que eu mais entrava e saía, era um cara hispânico
com seus quarenta e tantos anos, chamado Carlos Ávila. Tinha uma voz
estranha, estrangulada, como se tivesse engolido um objeto pontiagudo
que não conseguisse fazer descer. Ele gostava de mim — basicamente,
acho eu, porque eu não o ignorava como todos que moravam ali.
— Dando duro, Carlos? — falei ao passar por ele. Normalmente era o
que ele me dizia quando eu chegava em casa ridiculamente tarde,
parecendo arrasado.
— Nem um pouco, sr. Cassidy — disse ele, com um sorriso, e virou-se
para o noticiário da TV.
Andei dois quarteirões até o Starbucks, que acabava de abrir, e
comprei um grande latte triplo e, enquanto esperava que o garoto aspirante
a grunge e cheio de piercings vaporizasse um litro de leite a dois por
cento, peguei um Wall Street Journal que fez com que meu estômago
desse uma cambalhota.
O principal artigo da primeira página era sobre a Trion. Ou, como
tinham posto na manchete: "Os infortúnios da Trion". Havia um desenho
tipo gravura pontilhada de Goddard parecendo inadequadamente animado,
como se ele estivesse totalmente por fora de tudo, não tivesse nada a ver
com aquilo. Uma das manchetes menores dizia: "Estarão os dias do
fundador Augustine Goddard contados?" Tive que ler duas vezes. Meu
cérebro não estava funcionando à velocidade máxima, e eu precisava do
meu café com leite triplo, contra o qual o garoto grunge parecia estar
lutando. O artigo era um texto impactante e inteligente, escrito por um dos
redatores do Journal chamado William Bulkeley que, obviamente, tinha
bons contatos na Trion. A questão principal parecia ser o fato de que as
ações da Trion estavam caindo, seus produtos eram antiquados, a
companhia ("considerada geralmente líder em produtos eletrônicos de
telecomunicações") estava encrencada e ninguém conseguia entrar em
contato com Jock Goddard, fundador da Trion. O coração dele não estava
mais na firma. Havia um parágrafo inteiro sobre a "longa tradição" de
fundadores de companhias high-tech serem substituídos quando suas
companhias atingem determinado tamanho. O articulista perguntava se ele
não seria a pessoa errada para presidir a Trion no período de estabilidade
que se seguiu a uma época de crescimento explosivo. Havia muita coisa
sobre a filantropia de Goddard, suas obras de caridade, o seu hobby de
colecionar e reparar carros clássicos americanos e sobre como ele
reconstruíra completamente seu valiosíssimo Buick Roadmaster
conversível 1949. Goddard, segundo o artigo, parecia destinado a cair.
Ótimo, pensei. Se Goddard cai, adivinha quem cai com ele.
Aí então me lembrei: espera um segundo, Goddard não é o meu
verdadeiro empregador. Ele é o alvo. Meu patrão de verdade é Nick Wyatt.
Era fácil esquecer onde deveriam estar minhas verdadeiras lealdades, com
a excitação do primeiro dia e tudo mais.
Finalmente meu latte ficou pronto, e acrescentei a ele dois envelopes
de açúcar Turbinado, tomei um gole grande — que escaldou minha
garganta — e pus a tampa de plástico. Sentei-me a uma mesa para
terminar de ler o artigo. O jornalista parecia saber tudo sobre Goddard, o
pessoal da Trion falava com ele. Suas facas tinham sido desembainhadas
para o velho.
No drive in tentei ouvir um CD de Ani DiFranco que eu pegara na
Tower como parte do meu projeto de pesquisa Alana, mas, após alguns
segundos, tirei a coisa.
Não dava para aguentar. Duas das canções não eram canções e sim
falação. Se eu quisesse ouvir um troço falado, preferia Jay-Z ou Eminem.
Não, obrigado.
Pensei no artigo do Journal e tentei imaginar o que dizer para o caso
de alguém me perguntar a respeito. Que era um monte de mentiras
plantadas por um de nossos competidores para nos solapar? Ou que o
repórter deixara de lado a verdadeira história (qualquer que ela fosse)? Ou
ainda que tinham sido levantadas algumas boas perguntas que precisavam
ser respondidas? Decidi ficar com uma versão modificada desta última
ideia — que, qualquer que fosse a verdade das suas acusações, o que
contava era o que os acionistas pensavam, e quase todos eles liam o Wall
Street Journal, de modo que deveríamos levar o artigo a sério, verdade ou
mentira.
Eu gostaria de saber quem seriam os inimigos de Goddard que
pudessem estar fazendo aquilo, se a situação de Jock Goddard era mesmo
difícil, se eu estaria subindo a bordo de um navio que afundava ou, para
ser mais preciso, se Nick Wyatt tinha me posto em um navio fazendo água.
Pensei: o cara deve estar mesmo mal — ele me contratou, não foi?
Tomei um gole de café e, como a tampa não estava presa direito, o café
com leite cremoso espirrou no meu colo. Parecia que eu tinha tido um
"acidente". Que maneira de começar em um novo emprego. Devia tomar
aquilo como uma advertência.
43
Quando saí do banheiro, onde me esforcei ao máximo para limpar a
mancha de café, deixando a calça molhada e amarrotadas, passei pela
pequena banca de jornais no saguão da ala A, o prédio principal, onde
eram vendidos os jornais locais além do USA Today, o New York Times, o
cor de salmão Financial Times e o Wall Street Journal. A pilha
normalmente alta do Wall Street Journal já estava reduzida à metade e
ainda era pouco mais de sete da manhã. Obviamente todo mundo estava
lendo a matéria sobre a Trion. Imaginei que cópias da versão eletrônica do
jornal já estivessem sendo distribuídas por e-mail. Disse oi para a
embaixadora do saguão e peguei o elevador para o sétimo andar.
Flo, a assistente-chefe de Goddard, já mandara por e-mail os detalhes
do meu novo escritório. Isso mesmo, não era um cubículo e sim um
escritório de verdade, do mesmo tamanho que o de Jock Goddard, que, por
sinal, estava às escuras como todos os demais do corredor executivo. O
meu, contudo, tinha as luzes acesas. Sentada em sua sala, que ficava antes
da minha, estava minha nova assistente administrativa, Jocelyn Chang,
uma sino-americana com uns quarenta anos e ar de dominadora, trajando
um costume azul impecável. Jocelyn tinha as sobrancelhas arqueadas com
perfeição, cabelo preto curto e uma boquinha em feitio de arco, decorada
com um batom cor de pêssego que parecia úmido.
Quando me aproximei, fitou-me com a boca contraída e estendeu a
mão.
— O senhor deve ser o sr. Cassidy.
— Adam — falei. Eu não sabia, teria sido aquele o meu primeiro erro?
Será que eu deveria manter distância, ser formal? Parecia-me ridículo e
desnecessário. Afinal de contas, todos ali chamavam o presidente de
"Jock". E eu tinha metade da idade dela.
— Sou Jocelyn — disse ela. Tinha um sotaque suave e meio nasalado
que parecia de Boston, coisa que eu não esperava. — Prazer em conhecê-
lo.
— Igualmente. Flo me disse que você está aqui desde sempre.
Epa. As mulheres não gostam de ouvir coisas desse tipo.
— Quinze anos — disse ela, cautelosamente. — Os últimos três para
Michael Gilmore, seu predecessor imediato. Ele foi transferido para outra
função há duas semanas, mais ou menos, de modo que eu estava no ar.
— Quinze anos. Excelente. Vou precisar de todo auxílio possível.
Ela balançou a cabeça, sem sorriso, sem nada. Em seguida pareceu
notar o Journal que eu tinha debaixo do braço.
— Não vai falar sobre isso com o sr. Goddard, vai?
— Na verdade, eu ia pedir a você para recortar e mandar emoldurar.
Vou dar de presente a ele. Para o seu escritório.
Ela me dirigiu um longo olhar aterrorizado. Depois um sorriso lento.
— É uma piada — disse. — Certo?
— Certo.
— Desculpe. O sr. Gilmore não era conhecido pelo senso de humor.
— Tudo bem. Eu também não.
Ela balançou a cabeça, sem saber ao certo como reagir.
— Certo — repetiu, dando uma olhada no relógio. — Reunião às sete e
meia com o sr. Goddard.
— Ele ainda não chegou.
Ela consultou o relógio de novo.
— Chegará. Na verdade, aposto como acaba de entrar. O sr. Goddard
mantém uma programação muito regular. Oh, um momento — ela me
passou um documento muito sofisticado, que tinha facilmente mais de
cem páginas, encadernado em couro sintético azul, com as palavras BAIN &
COMPANY na capa.
— Flo disse que o sr. Goddard queria que você lesse isso antes da
reunião.
— A reunião... em dois minutos e meio.
Ela deu de ombros.
Seria o meu primeiro teste? Não havia como ler sequer uma página
daquela algaravia incompreensível antes da reunião, e eu com certeza não
ia me atrasar. Bain & Company é uma firma de consultoria de
administração global que cobra preços exorbitantes e que pega sujeitos da
minha idade, caras que sabem ainda menos que eu, e os treina até
transformá-los em idiotas de babar, e os faz visitar companhias e escrever
relatórios, cobrando centenas de milhares de dólares pela sua sabedoria
falsificada. Aquele documento trazia carimbado TRION SECRETO. Dei uma
folheada rápida e todos os clichês e palavras da moda saltaram aos meus
olhos — "administração aerodinâmica", "vantagem competitiva",
"excelência de operações", "relação custo-ineficiência", "deseconomias de
escala", "minimização do trabalho agregado sem valor", blablablá. Eu não
precisava ler para saber do que se tratava.
Demissões. Colheita de cabeças nas fazendas de cubículos.
Genial, pensei. Bem-vindo à vida no topo.
44
Goddard já estava sentado a uma mesa redonda na sala dos fundos com
Paul Camilletti e outro sujeito quando Flo me fez entrar.
O terceiro sujeito tinha seus cinquenta e cinco anos, era careca com
uma franja de cabelo grisalho, vestia um terno xadrez cinzento fora de
moda, camisa e gravata, tudo comprado em uma loja de roupas de homem
de algum shopping, e tinha um anel de formatura grandalhão na mão
direita. Reconheci-o: era Jim Colvin, diretor de operações da Trion.
A sala dos fundos de Goddard era do mesmo tamanho da sala da frente,
três por três e, mesmo só com quatro caras ali e a mesa redonda, parecia
apinhada. Eu gostaria de saber por que não estávamos nos encontrando em
alguma sala de reuniões, um lugar um pouco maior, mais de acordo com
executivos tão poderosos. Eu disse oi, sorri nervosamente, sentei-me em
uma cadeira ao lado de Goddard e pus na minha frente o documento da
Bain e a caneca da Trion com café que Flo me dera. Depois peguei um
bloco de papel amarelo e uma caneta e fiquei pronto para tomar notas.
Goddard e Camilletti estavam em mangas de camisa, sem paletó -e nada
de golas rulê pretas.
Goddard parecia ainda mais velho e cansado do que na última vez em
que eu o vira. Tinha um par de óculos de leitura, desses de meia lente,
pendurado no pescoço.
Espalhadas em cima da mesa havia diversas cópias do artigo do Wall
Street Journal, uma delas assinalada com as cores amarelo e verde.
Camilletti me olhou de cara feia quando me sentei.
— Quem é esse aí? — ele perguntou.
Nada de "Bem-vindo a bordo".
— Você se lembra do sr. Cassidy, não se lembra?
— Não.
— Da reunião sobre o Maestro? Aquela coisa dos militares?
— Seu novo assistente — disse ele, sem entusiasmo. — Certo. Seja
bem-vindo à central de controle de danos, Cassidy.
— Jim, este é Adam Cassidy — disse Goddard. — Adam, Jim Colvin,
nosso diretor de operações.
Colvin balançou a cabeça.
— Adam.
— Estávamos começando a falar sobre a porcaria desse artigo do
Journal — disse Goddard — e como lidar com ele.
— Bem — disse eu — é só um artigo. Será esquecido em dois dias,
sem dúvida.
— Nada disso — retrucou Camilletti bruscamente, me olhando com
uma expressão tão assustadora que eu pensei que ia me transformar em
pedra... — Estamos falando do Wall Street Journal. Primeira página. Todo
mundo lê. Membros de conselhos, investidores institucionais, analistas,
todo mundo. Isto é um choque de trens.
— Não é bom — concordei. E disse a mim mesmo para ficar de boca
fechada.
Goddard suspirou ruidosamente.
— A coisa pior a fazer é exagerar — disse Colvin. — Nada de
excessos ao girar o taco. Não queremos sinalizar para a indústria que
estamos em pânico.
Gostei da referência ao taco. Evidente que Jim Colvin jogava golfe.
— Quero Relações com o Investidor aqui agora, e também
Comunicações Corporativas e vamos redigir uma resposta, uma carta ao
editor — disse Camilletti.
— Esquece o Journal — disse Goddard. — Acho que eu gostaria de
sugerir ao New York Times uma entrevista exclusiva. Digo que será uma
oportunidade para tratar de assuntos que preocupam toda a indústria. Eles
vão querer.
— O que for — concordou Camilletti. — De qualquer modo, não
vamos protestar escandalosamente. Não queremos forçar o Journal a
publicar uma sequência, mexer mais ainda a lama.
— A impressão que tenho é de que o repórter do Journal deve ter
conversado com alguém daqui — falei, esquecendo a promessa de ficar
com a boca calada. — Temos alguma ideia de quem possa ser o
responsável pelo vazamento?
— Recebi um correio de voz do repórter há uns dois dias, mas eu
estava fora do país — disse Goddard. — Assim, estou indisponível para
comentários.
— O cara deve ter ligado para mim — não sei, posso checar meu
correio de voz — mas certamente não retornei seu telefonema — disse
Camilletti.
— Não posso imaginar uma pessoa da Trion tomando parte nisso
conscientemente.
— Um de nossos competidores — disse Camilletti. — Wyatt, talvez.
Ninguém olhou para mim. Perguntei-me se os outros dois sabiam que
eu tinha vindo da Wyatt.
Camilletti prosseguiu:
— Muitas coisas aqui são citações de alguns dos nossos revendedores
— British Tel, Vodafone, DoCoMo — a respeito de como os novos
celulares não estão vendendo. Os cães não estão comendo ração. Mas
como é que um repórter com uma coluna em Nova York consegue saber
ligar para a DoCoMo no Japão? Tem que ser a Motorola, a Wyatt ou a
Nokia — foi uma das três que deu a dica.
— De qualquer modo — disse Goddard —, isso é água que já passou
sob a ponte. Meu trabalho não é administrar a mídia e sim a droga desta
companhia. E este artigo idiota, por mais distorcido e injusto que seja —
bem, na verdade o quanto ele é terrível? A não ser pela manchete de anjo
da morte, o que há nesse artigo que seja tão novo? Costumávamos
confirmar o valor de nossas ações pontualmente a cada trimestre, nunca
falhávamos, podíamos melhorar um ou dois centavos. Éramos os
queridinhos de Wall Street. Ok, o crescimento da receita é zero, mas pelo
amor de Deus, a indústria toda está sofrendo! Não posso deixar de detectar
um pouco de satisfação com o sofrimento alheio neste artigo.
Schadenfreude. Mas se até Homero cochilava, qualquer um pode se
enganar.
— Homero? — perguntou Colvin, confuso.
— Mas toda essa bobagem de que talvez venhamos a enfrentar nosso
primeiro prejuízo em um trimestre nestes quinze anos — disse Goddard —
é pura invenção...
Camilletti sacudiu a cabeça.
— Não — disse ele baixinho —, é ainda pior do que isso.
— Do que você está falando? — perguntou Goddard. — Acabo de vir
de nossa reunião de vendas no Japão, onde tudo correu às mil maravilhas!
— Ontem à noite, quando recebi o e-mail de alerta sobre este artigo —
disse Camilletti —, soltei e-mails urgentíssimos para os VPs Financeiros
para a Europa e para Asia/Pacific dizendo que eu queria ver todos os
números da receita referentes a esta semana e as vendas deste trimestre até
esta data, especificadas por cliente.
— E? — instou Goddard.
— Covington, de Bruxelas, comunicou-se comigo uma hora atrás.
Brody, de Cingapura, no meio da noite, e os números de ambos são uma
porcaria. O sell-in foi forte, mas o sell-through foi terrível. Ou seja, o
varejo, sem demanda, pouco vende, mesmo que as vendas para os
varejistas ainda se aguentem. Asia/Pacific e EOMA — Europa, Oriente
Médio e África — constituem sessenta por cento de nossas vendas, e
estamos despencando de um penhasco. O fato, Jock, é que vamos ter
prejuízo neste trimestre, e um baita de um prejuízo. Um desastre que se
aproxima rapidamente.
Goddard olhou para mim.
— Você está, obviamente, ouvindo informações privilegiadas que não
podem ser tornadas públicas, Adam, vamos deixar isto bem claro. Nem
uma só palavra...
— Naturalmente.
— Nós temos — começou Goddard, mas sua voz falhou e ele teve que
começar de novo. — Pelo amor de Deus, nós temos o AURORA...
— O lucro a ser gerado pelo AURORA será realizado apenas ao longo de
diversos trimestres — disse Camilletti. — Temos que resolver o problema
de agora. Para as operações correntes. E vou lhe dizer uma coisa: quando
esses números vierem a público, nossas ações sofrerão um baque tremendo
— prosseguiu Camilletti, falando baixo. — Nossa receita do quarto
trimestre será menor vinte e cinco por cento. Vamos ter que arcar com um
ônus significativo por excesso de estoque.
Camilletti fez uma pausa e dirigiu um olhar significativo a Goddard.
— Estou estimando o prejuízo, antes dos impostos, em qualquer coisa
perto de meio bilhão de dólares — disse ele.
Goddard estremeceu.
— Meu Deus! — exclamou.
Camilletti continuou.
— Estou sabendo por acaso que o CS First Boston já está prestes a
diminuir nossa classificação de "sobrepeso" para "peso de mercado". É a
mesma coisa que dizer "espera"
em vez de "compra". E olha que é antes disso tudo ser divulgado.
— Meu Deus! — disse Goddard, suspirando e sacudindo a cabeça. —
É tão absurdo, tendo em vista o que sabemos que estamos preparando.
— Este é o motivo pelo qual temos que dar outra olhada nisso — disse
Camilletti, apontando seu exemplar do documento Bain azul com o dedo
indicador.
Os dedos de Goddard tamborilaram em cima do estudo. Seus dedos,
notei, eram gorduchos, e o dorso das mãos cheio de manchas escuras.
— Você nunca me disse quanto custou esse relatório tão lindamente
encadernado — disse ele.
— Você não quer saber — disse Camilletti.
— Não quero, não é mesmo? — ele fez uma careta, como se tivesse
comprovado o que queria dizer. — Paul, eu jurei que nunca faria isso. Dei
minha palavra.
— Meu Deus, Jock, se isto é sobre seu ego, sua vaidade...
— É sobre eu cumprir minha palavra. É sobre a minha credibilidade.
— Bem, você não deveria ter feito essa promessa. Nunca diga nunca.
Seja como for, você estava falando no contexto de uma economia diferente
— pré-histórica. Da era mesozoica, pelo amor de Deus. Nave espacial
Trion progredindo com a velocidade maior do que a da luz. Somos uma
das poucas companhias high-tech que ainda não dispensaram mão de obra.
— Adam — disse Goddard, virando-se para mim e olhando por cima
dos óculos —, você teve uma chance de dar uma olhada nesse palavrório?
Sacudi a cabeça.
— Recebi há poucos minutos. Só passei os olhos.
— Quero que examine cuidadosamente as projeções relativas aos
produtos eletrônicos dirigidos ao consumidor. Página oitenta e qualquer
coisa. Você tem uma certa familiaridade com isso.
— Agora? — perguntei.
— Agora. E me diga se esses números lhe parecem realistas.
— Jock — disse Jim Colvin. — É quase impossível conseguir
projeções honestas de qualquer um dos chefes de divisão. Todos protegem
seu efetivo, guardam seu território.
— É por isso que Adam está aqui — ele não tem território a proteger.
Folheei febrilmente o relatório, tentando dar a impressão de que eu
sabia o que estava fazendo.
— Paul — disse Goddard —, já passamos por tudo isso antes. Você vai
me dizer que temos de cortar oito mil posições se quisermos ser magros e
sovinas.
— Não, Jock. Se quisermos ter condições de pagar nossas contas. E o
número de cortes chega a dez mil.
— Certo. Então me diga uma coisa. Em nenhum lugar deste maldito
tratado diz que uma companhia que reduz seu tamanho ou acerta seu
tamanho ou como quer que você queira chamar os cortes de pessoal que
serão feitos vai melhorar em longo prazo. Só se ouve falar em curto prazo.
Camilletti deu a impressão de que ia responder, mas Goddard
prosseguiu.
— Oh, eu sei, todo mundo faz. É uma reação automática, instintiva. Os
negócios vão mal? Livre-se de parte da mão de obra. Jogue o lastro no mar
para não afundar o navio. Mas os cortes realmente levam a um aumento
sustentado no valor das ações, ou na participação no mercado? Com os
diabos, Paul, você sabe tão bem quanto eu que assim que o céu clarear nós
vamos contratar a maioria deles de volta. Vale realmente a pena toda essa
maldita confusão?
— Jock — disse Jim Colvin —, é o que chamamos de regra Oitenta-
Vinte — vinte por cento das pessoas fazem oitenta por cento do trabalho.
Só estamos cortando a gordura.
— A "gordura" são pessoas dedicadas à Trion — retrucou Goddard —
para quem expedimos aquelas plaquetas de identidade que falam de
lealdade e dedicação. Bem, é uma rua de mão dupla, não é? Esperamos
lealdade deles, mas eles não devem esperá-la de nós? No que me diz
respeito, se seguirmos por essa rua, perderemos mais do que o número de
empregados dispensados. Perderemos uma sensação de confiança que é
fundamental. Se nossos empregados cumprem a parte deles do contrato,
como não iremos cumprir a nossa? É uma maldita quebra de confiança.
— Jock — disse Colvin —, o fato é que você tornou uma porção de
empregados da Trion muito ricos nos últimos dez anos.
Enquanto isso eu consultava, o mais depressa que podia, as tabelas de
receitas projetadas, tentando compará-las com os números que tinha visto
nas últimas duas semanas.
— Não é hora de ser magnânimo, Jock — disse Camilletti. — Não
podemos nos dar a esse luxo.
— Oh, eu não estou sendo magnânimo — retrucou Goddard,
tamborilando mais um pouco no tampo da mesa. — Estou sendo, isto sim,
brutalmente prático. Não tenho problema em me livrar dos preguiçosos,
dos que não se esforçam, dos que só querem fazer passar o tempo que for
preciso para exercerem seus direitos acionários. Que se danem todos eles.
Mas dispensa de pessoal nessa escala só serve para aumentar o
absenteísmo, as licenças por motivo de saúde, os grupos reunidos em torno
dos bebedouros em que todos querem saber qual é o último boato.
Paralisia. Para usar uma expressão que você compreende, Paul, declínio de
produtividade.
— Jock — começou Colvin.
— Eu vou lhe dar a regra dos oitenta-vinte — interrompeu Goddard
—, se fizermos isso, oitenta por cento dos meus empregados
remanescentes não serão capazes de concentrar mais que vinte por cento
de sua capacidade mental no trabalho. Adam, o que você está achando das
previsões?
— Sr. Goddard...
— Eu demiti o último sujeito que me chamou de senhor.
Eu sorri.
— Jock, olha só, eu não vou dançar aqui para vocês verem. Não
conheço a maior parte dos números e não vou chutar de qualquer maneira.
Não em uma coisa tão importante. Mas eu conheço bem os números do
Maestro e posso lhe dizer que, com franqueza, são excessivamente
otimistas. Enquanto não começarmos a vender para o Pentágono...
presumindo que consigamos conquistar esse negócio, os números do
Maestro são altos demais.
— Significando que a situação pode ser ainda pior do que o nosso
consultor de cem mil dólares nos diz.
— Sim, senhor Pelo menos se os números do Maestro podem servir de
indicação.
Ele balançou a cabeça.
Camilletti disse:
— Jock, deixe que eu coloque isso para você em termos humanos. Meu
pai era um professor, um mestre, certo? Mandou seis filhos para a
faculdade com o salário de professor, não me pergunte como, mas foi o
que ele fez. Agora ele e mamãe vivem de suas economias ínfimas, as
quais, em sua maior parte, são atreladas às ações da Trion, porque eu disse
a eles que a Trion era uma grande companhia. Não é muito dinheiro, pelos
nossos padrões, mas eles já perderam vinte e seis por cento de sua
poupança e estão prestes a perder muito mais. Esquece essa coisa de
fidelidade e títulos de capital e fundos de investimento. A vasta maioria de
nossos acionistas é de Tony Camillettis, e o que é que nós vamos dizer
para essa gente?
Tive a nítida sensação de que Camilletti estava inventando aquilo, que
na realidade seu pai era um banqueiro de investimentos que vivia em uma
comunidade fechada em Boca e jogava muito de golfe, mas os olhos de
Goddard brilhavam intensamente.
— Adam — disse Goddard —, você entende o que quero dizer, não
entende?
Por um momento senti-me como um animal selvagem imobilizado
pelos faróis de um carro. Era óbvio o que Goddard queria ouvir de mim.
Mas, após um segundo, sacudi a cabeça.
— O que eu acho — falei lentamente — é que se o corte não for feito
agora, provavelmente terá que ser feito, em maior número, daqui a um
ano. Assim, tenho que lhe dizer que concordo com o sr. Camilletti... com
Paul.
Camilletti estendeu o braço e me deu um tapinha no ombro. Recuei um
pouco. Não queria que parecesse que eu estava tomando partido — contra
meu chefe. Não era uma boa maneira de começar em um novo emprego.
— Quais são os termos que você está propondo? — perguntou
Goddard, com um suspiro.
Camilletti sorriu.
— Indenização por afastamento no valor de quatro semanas de salário.
— Seja qual for o tempo que a pessoa trabalhe conosco? Não. Duas
semanas para cada ano de trabalho na Trion, mais um adicional de duas
semanas para cada ano além de dez anos.
— Isso é loucura, Jock! Em alguns casos você vai pagar uma
indenização no valor de um ano, talvez mais.
— Isso não é indenização — resmungou Jim Colvin. — É assistência
social.
Goddard encolheu os ombros.
— Ou nós fazemos os cortes nestes termos ou não fazemos cortes.
Ele me dirigiu um olhar pesaroso.
— Adam, se algum dia você for jantar fora com Paul, não deixe que
ele escolha o vinho.
Virou-se em seguida para o seu Financeiro.
— Você quer os cortes a partir de primeiro de junho, certo?
Camilletti aquiesceu, desconfiado.
— Em algum canto da minha memória — disse Goddard —, tenho
uma vaga lembrança de que assinamos um ano de contrato de indenização
com a divisão CableSign que adquirimos no ano passado, e esse prazo
expira no dia trinta e um de maio. Na véspera.
Foi a vez de Camilletti dar de ombros.
— Bem, Paul, são quase mil trabalhadores que receberiam um mês de
salário mais um mês de pagamento para cada ano trabalhado... se nós os
dispensarmos um dia antes. Um pacote decente. E que fará uma imensa
diferença para esse pessoal. Não sendo assim, eles receberão uma merreca
de duas semanas.
— Primeiro de junho é o primeiro dia do trimestre...
— Não farei isso. Sinto muito. Agende para trinta de maio. E quanto
aos empregados cujas opções foram muito desvalorizadas, daremos doze
meses para que exerçam seu direito. E vou fazer um corte voluntário para
um dólar. E você, Paul?
Camilletti sorriu nervosamente.
— Você tem muito mais opções do que eu.
— Nós vamos fazer isso uma vez — disse Goddard. — Fazendo uma
única vez e direito. Não vou cortar duas vezes.
— Entendido — disse Camilletti.
— Está bem — disse Goddard com um suspiro. — Como estou sempre
repetindo, às vezes você só tem que entrar no carro e tocar o programa.
Mas primeiro eu quero administrar isso junto a toda a equipe de gerentes,
me reunir com tantos deles quanto for possível. Também quero falar com
os nossos banqueiros de investimentos. Estou pensando também em
anunciar via Webcast o programa de cortes para toda a companhia por
meio de um tape que exibiremos amanhã, depois do fechamento da Bolsa.
O anúncio público sairá ao mesmo tempo. Não quero uma única palavra a
respeito disto vazando antes.
— Se você preferir, eu faço o anúncio — disse Camilletti. — Assim
você fica com as mãos limpas.
Goddard fulminou Camilletti com um olhar.
— Não vou transferir isto para você. Recuso-me. A decisão é minha —
eu fico com o crédito, a glória, as capas das revistas e também a culpa. É o
que é direito.
— Só falei porque você já fez muitos pronunciamentos. Vão jogar
você na fogueira...
Goddard fez um gesto para dizer que não se incomodava, mas sua
aparência era péssima.
— Com certeza vão começar a me chamar de Goddard Serra Elétrica
ou algo assim.
— Acho que Jock Bomba de Nêutrons pega melhor — sugeri, e
Goddard, pela primeira vez, sorriu.
45
Deixei a sala de Goddard sentindo-me ao mesmo tempo aliviado e
esmagado pelo peso de um novo fardo. Sobrevivera ao meu primeiro
encontro com o cara, não fizera papel de tolo. Agora, no entanto, estava
também de posse de um importante segredo da companhia, segredo este
que ia mudar as vidas de uma porção de pessoas.
O negócio é o seguinte: decidi que não ia contar nada daquilo a Wyatt e
companhia. Não fazia parte de minha missão, não correspondia à descrição
da minha função.
Não tinha nada a ver com projetos especiais secretos. Eu não tinha que
contar para os meus manipuladores. De qualquer modo, eles não sabiam
que eu sabia. Eles que tomassem conhecimento dos cortes na Trion quando
todo mundo tomasse.
Preocupado, saltei do elevador no terceiro andar da ala A para pegar
um almoço fora de hora no restaurante, quando vi um rosto familiar vindo
na minha direção.
Era um sujeito alto e magro, entre vinte e cinco e trinta anos, com um
péssimo corte de cabelo.
— Ei, Adam! — ele gritou, quando entrei no elevador.
Mesmo na fração de segundo antes de eu conseguir dar um nome
àquele rosto, meu estômago deu um nó. Meu cerebelo sentiu o perigo
antes que meu cérebro soubesse o que era.
Respondi com um gesto de cabeça e segui em frente. Senti o rosto
pegando fogo.
O nome dele era Kevin Griffin, um sujeito afável e com ar de pateta,
mas um jogador de basquetebol decente. Costumava jogar pelada com ele
na Wyatt Telecommunications.
Ele trabalhava na Divisão Empresas, roteadores. Lembrava-me dele
como uma pessoa muito esperta e ambiciosa por trás daquele jeito
tranquilão. Seu rendimento como vendedor sempre superava as metas, e
ele costumava brincar comigo, com o seu jeito bonachão, sobre minha
atitude, digamos, casual, em relação ao trabalho.
Em outras palavras, ele sabia quem era eu realmente.
— Adam! — ele insistiu. — Adam Cassidy! Ei, o que é que você está
fazendo aqui?
Eu não podia continuar ignorando-o e me virei. Ele tinha segurado a
porta do elevador para evitar que fechasse.
— Oh, ei, Kevin — falei. — Você trabalha aqui agora?
Trabalho, em vendas — ele parecia empolgado, como se fosse uma
reunião de colegas de secundário. Baixou a voz. — Eles não chutaram
você da Wyatt por causa daquela festa? — o jeito dele não era maldoso
nem nada, só meio conspiratório.
— Não, não — hesitei por um segundo, tentando soar despreocupado e
alegre. — Foi tudo um grande mal-entendido.
— Ah — disse ele, na dúvida. — Onde é que você está trabalhando
aqui?
— Mesma coisa de sempre — respondi. — Ei, foi bom rever você,
cara. Com licença, tenho que correr.
Ele ficou me olhando, com curiosidade, enquanto as portas do elevador
se fecharam.
Aquilo não fora bom.
Parte Cinco
QUEIMADO
ASSUNTO: Você
DE: KGriffin
PARA: ACassidy
Cara! Maravilha rever você! Legal ver como está elegante e
se saindo tão bem — legal! Muito impressionado com sua
carreira aqui. É alguma coisa na água? Me dá um pouco!
Estou começando a conhecer gente por aqui na Trion &
adoraria levar você para almoço ou o que for. Dê notícias!
Key
Quando finalmente dei o dia por encerrado, minha cabeça estava a mil,
examinando todas as razões pelas quais Nora podia ter mudado de senha.
Talvez Luther, o guarda de segurança, houvesse aparecido em uma noite
em que Nora tivesse ficado trabalhando além do horário normal,
esperando me ver e puxar mais um papo sobre Mustangs ou algo assim,
mas encontrara Nora e não eu. Podia ter estranhado, e por isso mesmo —
embora absolutamente improvável — a houvesse interrogado. No final,
daria a ela a minha descrição e Nora não levaria muito tempo para deduzir
o que acontecera.
Mas se tivesse sido isso que acontecera, ela não se limitaria a mudar
de senha, certo? Faria mais. Ia querer saber o motivo pelo qual eu estivera
na sua sala, sem sua licença. Onde isso iria acabar, eu não queria nem
pensar...
Ou talvez fosse tudo inocente. Talvez ela tivesse simplesmente
mudado a senha rotineiramente, do mesmo modo como todo empregado da
Trion devia fazer a cada sessenta dias.
Provavelmente foi só isso.
Eu não dormi bem e, após algumas horas me revirando na cama, decidi
me levantar, tomar um banho de chuveiro e me vestir para o trabalho. O
que eu tinha que fazer para Goddard estava feito; o que faltava era o
trabalho do Wyatt, minha espionagem, que estava muito atrasada. Se eu
entrasse no trabalho bem cedo, talvez pudesse descobrir alguma coisa
sobre o AURORA.
Dei uma olhada no espelho ao sair. Minha aparência estava uma
porcaria.
— Já está de pé? — exclamou Carlos, o porteiro, quando trouxeram
meu Porsche. — Puxa vida, o senhor não pode trabalhar tanto assim, sr.
Cassidy. Vai ficar doente.
— Nada disso — falei. — Serve para me manter honesto.
49
Às cinco e pouco da manhã a garagem da Trion estava praticamente
vazia. Achei esquisito ver aquilo assim deserto. As luzes fluorescentes
banhavam tudo com uma espécie de bruma esverdeada, e o lugar cheirava
a gasolina e óleo de motor e o que mais pingasse dos carros: fluido de
freios, aditivo de radiador e provavelmente Mountain Dew. Meus passos
ecoavam.
Peguei o elevador dos fundos até o sétimo andar, que também estava
deserto, e percorri o corredor executivo às escuras até a minha sala,
passando pela sala de Colvin, pela de Camilletti e por outras salas, de
gente que eu ainda não conhecera, para chegar à minha. Todos os
escritórios estavam escuros e fechados; ninguém ainda chegara.
Mais que um escritório, a minha sala era uma possibilidade -não muito
mais que uma mesa nua, cadeiras e um computador, a almofada para o
mouse com a logomarca da Trion, um armário sem nada dentro e um
aparador com uns dois ou três livros. O escritório de um itinerante, um
nômade, um sujeito que pode se levantar e ir embora no meio da noite.
Precisava seriamente de um pouco de personalidade — porta-retratos,
coleção de itens desportivos, qualquer coisa divertida e curiosa, qualquer
coisa séria e inspiradora. Precisava de uma marca. Talvez, quando
conseguisse botar meu sono em dia, eu fizesse algo a esse respeito.
Entrei com minha senha, fiz o login e chequei de novo minha
correspondência. Em algum momento nas últimas horas depois da meia-
noite, um e-mail circular destinado a toda a companhia pedia que os
empregados visitassem o site da Trion mais tarde, às cinco horas da tarde,
Hora Padrão do Leste, a fim de tomarem conhecimento de "uma
importante declaração do presidente Augustine Goddard". Aviso este que
devia acionar as fábricas de boatos. Voariam e-mails. Eu gostaria de saber
quantas pessoas no topo — um grupo que, por estranho que parecesse,
agora me incluía — sabiam da verdade. Não muitas, eu era capaz de
apostar.
Goddard mencionara que o AURORA, o projeto fantástico sobre o qual
ele não queria falar, era da responsabilidade de Paul Camilletti. Querendo
saber se haveria alguma coisa em sua biografia oficial que pudesse lançar
alguma luz sobre o AURORA, fui ver o que dizia o diretório da junta de
diretores da companhia a seu respeito.
Lá estava a foto dele, carrancudo e sombrio e, no entanto, mais bonito
no retrato do que em pessoa. Uma minibiografia: nascido em Geneseo,
Nova York, estudou em escolas públicas no norte do estado de Nova York
— tradução, provavelmente a família não tinha dinheiro — Swarthmore,
Harvard Business School, ascensão meteórica em uma companhia de
produtos eletrônicos que foi grande rival da Trion e depois adquirida por
ela. Vice-Presidente Sênior da Trion por menos de um ano, antes de ser
nomeado Chefe de Operações. Um homem em movimento. Cliquei nos
hiperlinks para ver quem se reportava a ele, e apareceu uma janela com
todas as divisões e unidades sob suas ordens.
Uma das unidades era a Unidade de Pesquisa de Tecnologias
Disruptivas, que se reportava diretamente a ele, e da qual Alana Jennings
era a diretora de marketing.
Paul Camilletti supervisionava diretamente o projeto AURORA. De
repente, passava a ser um homem muito, mas muito importante.
Passei pelo escritório de Camilletti, o coração disparado e, é claro, não
vi sinal dele. Não às cinco e quinze da manhã. Notei também que a equipe
da faxina já passara por ali: havia um forro novo na lata de lixo de sua
assistente, era possível ver as marcas deixadas pelo aspirador no carpete e
ainda se podia sentir o cheiro de um líquido de limpeza.
Não havia ninguém no corredor, e, provavelmente, tampouco em todo
o andar.
Eu estava prestes a cruzar uma linha, a fazer algo arriscado em um
nível inteiramente novo.
Não me preocupava muito a possibilidade do aparecimento de um
segurança. Eu diria que era o novo assistente de Camilletti — o que é que
essa gente sabe?
Mas, e se a assistente do homem viesse mais cedo, para adiantar o
trabalho do dia? Ou, mais provável ainda, se o próprio Camilletti
aparecesse, querendo antecipar o começo da jornada? Tendo em vista o
grande pronunciamento de Goddard, era bem possível que ele tivesse que
dar telefonemas, escrever e-mails e mandar faxes para os escritórios
europeus da Trion, onde o relógio marcaria seis ou sete horas mais tarde.
Às cinco e meia da manhã, era meio-dia na Europa. Claro que ele podia
mandar os e-mails de casa mesmo, mas eu não podia deixar de lado a forte
possibilidade de que quisesse chegar ao escritório excepcionalmente cedo
hoje.
Dava para concluir que invadir a sala de Camilletti era insanamente
arriscado.
Mas, por algum motivo, decidi ir em frente de qualquer maneira.
50
A chave, no entanto, não podia ser encontrada em parte alguma.
Verifiquei em todos os lugares habituais — todas as gavetas da mesa
da sua assistente, dentro dos vasos de plantas e no depósito de clipes,
inclusive nos armários.
A mesa dela ficava aberta para o corredor, totalmente exposta, e eu
comecei a ficar nervoso por estar mexendo ali, um lugar a que eu
claramente não pertencia. Olhei debaixo do telefone, debaixo do teclado,
debaixo do computador dela. Estaria escondida sob as gavetas da
escrivaninha? Não. Debaixo da escrivaninha? Também não.
Havia uma pequena sala de espera ao lado da mesa — na realidade só
um sofá, uma mesinha de centro e duas cadeiras. Dei uma olhada lá
também. Nada de chave.
Bem, talvez não fosse exatamente irracional que o diretor financeiro
da companhia tomasse uma ou duas medidas de segurança destinadas a
dificultar o acesso indesejado ao seu escritório. A gente tem que admirar
uma coisa dessas, não tem?
Depois de dez minutos extremamente estressantes, decidi que não
estava escrito que eu fosse achar aquela chave, quando me lembrei de
repente, de um detalhezinho estranho acerca do meu próprio escritório
novo. Como todos os demais do andar executivo, ele era equipado com um
detector de movimentos, o que não é algo tão complicado quanto possa
parecer. Na verdade, é um equipamento comum de segurança nos
escritórios mais modernos — um modo de se ter certeza de que ninguém
fica trancado dentro da própria sala. Enquanto houver movimento do lado
de dentro, as portas não fecham (mais uma prova de que os escritórios do
sétimo andar eram mesmo um pouco mais iguais que os outros).
Se eu me movesse rapidamente poderia tirar vantagem daquilo...
A porta da sala de Camilletti era de mogno maciço, muito bem polida,
pesada. Não havia espaço entre a porta e o carpete felpudo. Não dava para
passar nem mesmo uma folha de papel por ali. O que tornava as coisas
mais complicadas — mas não impossíveis.
Eu precisava de uma cadeira para subir, mas não servia a da sua
assistente, que tinha rodinhas e não dava segurança. Encontrei uma cadeira
comum na sala de estar e a trouxe para junto da parede de vidro da sala de
Camilletti. Então voltei para a sala de estar. Lá estavam, espalhados em
cima da mesinha de centro, todos os costumeiros jornais e revistas —
Financial Times, Institutional Investor, CFO, Forbes, Fortune, Business 2.0,
Barron's...
Barron's. Resolvido. Era do tamanho e do peso de um tabloide. Peguei-
o — olhando mais uma vez em torno para me assegurar de que não ia ser
apanhado fazendo algo que não dava nem para começar a explicar —, subi
na cadeira e empurrei um dos painéis do revestimento acústico do teto.
Meti a mão no espaço vazio acima do teto suspenso, naquele lugar
escuro e poeirento cheio de fios, cabos e montes de troços, tateei até achar
o painel seguinte, que ficava diretamente sobre a sala de Camilletti e o
ergui, encostando-o na grade de metal.
Pegando o Barron's, passei a mão pelo buraco do meu lado e abaixei-a
bem devagar no buraco que ficava na sala de Camilletti, balançando-o.
Abaixei a mão o máximo que consegui, agitei o Barron's mais um pouco
— mas não aconteceu nada. Talvez o sensor de movimento não alcançasse
tão alto. Finalmente fiquei na ponta dos pés, estiquei o braço ao máximo
dobrando o cotovelo num ângulo impossível, e consegui abaixar o jornal
mais uns trinta centímetros, balançando-o de um lado para outro até forçar
alguns músculos.
Aí ouvi um clique.
Um clique quase inaudível, mas inquestionável.
Puxei o Barron's de volta, pus o painel acústico no lugar e fixei-o
firmemente. Depois desci da cadeira e coloquei-a no respectivo lugar.
Só então experimentei a maçaneta.
A porta abriu.
Eu pusera na bolsa de trabalho umas ferramentas, inclusive uma
lanterna Mag-Lite. Cerrei imediatamente as persianas, fechei a porta e só
então acendi a potente lanterna.
A sala de Camilletti era tão desprovida de personalidade quanto a de
todos os outros — a coleção genérica de fotos da família, as placas e
diplomas de prêmios e a mesma velha coleção de livros de administração
que todos fingem ler. Na verdade, o seu escritório era decepcionante. Não
era de esquina e não tinha janelas do teto ao chão, como na Wyatt
Telecomm. Não tinha absolutamente vista alguma. Eu gostaria de saber se
ele gostava de receber visitas importantes em uma sala tão humilde.
Podia ser o estilo de Goddard, mas certamente não era o de Camilletti.
Pão-duro ou não, ele dava a impressão de ser pretensioso. Eu ouvira dizer
que havia uma suíte elegantíssima destinada à recepção de visitas
importantes na cobertura do prédio executivo, ala A, mas ninguém que eu
conhecesse já estivera lá. Talvez fosse onde Camilletti recebesse os
figurões.
O computador dele ficara ligado, mas, quando acionei a barra de
espaços do teclado modernista preto e o monitor acendeu, apareceu a tela
ENTRE COM A SENHA, o cursor piscando. Sem a senha dele, claro, eu não
teria acesso aos arquivos.
Se ele tivesse escrito a senha em algum lugar, sem dúvida nenhuma eu
a acharia — gavetas, debaixo do teclado, colado na parte de trás do grande
monitor de cristal líquido. Nada. Só para testar, entrei com PCamilletti
@Trionsystems como nome de usuário e PCamilletti como senha.
Nada. Ele era realmente cauteloso para usar coisas tão fáceis, e eu
desisti depois de algumas tentativas.
Eu teria que conseguir sua senha pelo método antiquado: furtando.
Imaginei que provavelmente ele não notaria se eu instalasse um Keyghost
entre seu teclado e a torre, e foi o que fiz.
Admito que eu estava mais nervoso ali, na sala de Camilletti que na de
Nora. Seria de pensar que a esta altura eu já fosse um velho profissional
em invasão de escritórios, mas não, e havia uma vibração na sala de
Camilletti que me matava de medo. O sujeito em si já era aterrorizador e
não dava nem para imaginar as consequências de ser apanhado. Além do
mais, eu tinha que presumir que as precauções nos escritórios dos
executivos eram mais elaboradas que as do resto da Trion. Tinham que ser.
Claro, eu tinha sido treinado para vencer a maior parte das medidas-
padrão de segurança. Mas sempre há sistemas de detecção invisíveis, que
não disparam campainhas de alarme ou acendem luzes. Esta possibilidade
era a que me assustava mais.
Olhei em torno, procurando inspiração. Por alguma razão, a sala
parecia mais arrumada, mais espaçosa que as outras em que eu já estivera
na Trion. Aí percebi a razão: não havia armários. Por isso parecia tão
despojada. Pois bem, mas onde ficavam guardadas todas as pastas dele?
Quando finalmente me dei conta de onde elas tinham que estar, senti-
me um idiota. Claro. Não estavam ali porque não havia espaço, e não
estavam na área de sua assistente porque era aberta ao público,
insuficientemente segura.
Tinham que estar na sala dos fundos. Como Goddard, cada executivo
de alto nível da Trion tinha uma sala dupla, uma nos fundos, para reuniões,
do mesmo tamanho da sala da frente. Era assim que a Trion resolvera o
problema causado pela igualdade dos espaços de trabalho. Ei, o escritório
de todos era igual, só que os mandachuvas tinham dois escritórios.
A porta para a sala de reuniões estava aberta. Iluminei tudo com a
Mag-Lite, e vi uma copiadora pequena e arquivos de madeira — mogno,
por sinal — cobrindo duas paredes. No meio, havia uma mesa redonda,
como a de Goddard, mas menor. Cada gaveta era meticulosamente
etiquetada com uma letra que parecia de arquiteto.
A maior parte continha relatórios financeiros e contábeis, cujo
conteúdo deveria valer a pena estudar, se ao menos eu soubesse onde
procurar.
Mas quando vi as gavetas etiquetadas como DESENVOLVIMENTO
CORPORATIVO, perdi o interesse em tudo mais. DESENVOLVIMENTO
CORPORATIVO é uma palavra da moda para fusões e aquisições. A Trion era
conhecida por engolir vorazmente firmas novas ou pequenas e de tamanho
médio. Mais na época áurea do final da década de 1990 que hoje em dia,
embora ainda continuasse a adquirir diversas companhias por ano. Meu
palpite era de que aqueles arquivos estavam ali porque Camilletti
supervisionava as aquisições, concentrando-se na questão dos custos, valor
dos investimentos e coisas do gênero.
E, se Wyatt estivesse certo em sua teoria de que o projeto AURORA seria
implementado por um grupo de companhias que a Trion adquirira
secretamente, a solução do mistério AURORA tinha que estar ali.
Os armários também estavam destrancados por outro golpe de sorte.
Acho que a ideia era que, se você não conseguisse entrar na sala de
Camilletti, não ia nem chegar perto dos armários, por isso trancá-los seria
um trabalho desnecessário.
Havia montes de pastas sobre companhias que ou a Trion tinha
comprado inteiras ou parte ou que examinara mais detidamente e decidira
não se envolver. Alguns de seus nomes eu reconheci, mas a maioria não. Li
um folheto de cada uma delas para tentar adivinhar o que fazia, o que era
um trabalho bastante moroso, considerado que eu nem sabia ao certo o que
procurava. Como diabos eu ia saber que alguma pequena firma recém-
inaugurada era parte do AURORA quando não sabia de que se tratava este
projeto? Parecia totalmente impossível.
Mas então meus problemas foram resolvidos.
Uma das gavetas de DESENVOLVIMENTO CORPORATIVO estava rotulada
com PROJETO AURORA.
Lá estava. Simples assim.
51
Ofegante, abri a gaveta. Em verdade, meio que esperava que estivesse
vazia, como os arquivos do AURORA nos Recursos Humanos. Mas não.
Estava atulhada de folhetos, todos coloridos segundo um código que não
compreendi, com um carimbo de TRION CONFIDENCIAL em cada um.
Evidente que era o tesouro que eu procurava.
Pelo que era possível ver, aqueles arquivos eram sobre diversas firmas
novas — duas no vale do Silício, na Califórnia, e outras duas em
Cambridge, Massachusetts — estas adquiridas recentemente pela Trion
em condições do mais estrito sigilo. "Modo invisível ao radar", diziam as
pastas.
Eu sabia que aquilo era grande, algo muito importante, e meu pulso
começou a bater com mais força. Em cada página havia um carimbo de
SECRETO ou CONFIDENCIAL.
Mesmo sendo guardados na sala trancada do diretor financeiro, a
linguagem era obscura, velada. Havia frases como "Recomendo aquisição
o mais cedo possível" e "deve ser mantido abaixo do alcance do radar".
Assim, o segredo do AURORA estava ali.
Na verdade, não consegui entender muita coisa, apesar de ter lido tudo.
Uma companhia parecia ter desenvolvido uma maneira de combinar
componentes eletrônicos e óticos em um circuito integrado. Eu não sabia o
que isto significava. Uma anotação dizia que a companhia tinha resolvido
o problema do "baixo rendimento das bolachas".
Outra companhia tinha descoberto um modo de produzir em massa
circuitos fotônicos. Tudo bem, mas o que isto significava? Havia mais
algumas que eram especializadas em software, e eu não tinha ideia do que
faziam.
Uma companhia chamada Delphos Inc. — que por sinal parecia
interessante — descobrira um processo para refinar e manufaturar um
componente químico chamado fosfato de índio, feito de "cristais binários
de elementos metálicos e não-metálicos", fosse lá o que isto significasse.
Este material tinha "propriedades de transmissão e absorção ótica únicas",
afirmava um relatório para investidores. Aparentemente era usado para a
fabricação de certos tipos de laser. Pelo que eu podia dizer, a Delphos Inc.
conseguira encurralar o mercado. Eu tinha certeza de que mentes melhores
que a minha eram capazes de imaginar para que haveriam de servir
grandes quantidades de fosfito de índio. Quer dizer, quantos aparelhos de
laser alguém podia precisar?
Aqui, porém, estava a parte interessante: na pasta da Delphos havia
sido carimbada a expressão AQUISIÇÃO PENDENTE. A Trion, portanto, estava
em negociações para efetivar aquela compra. A pasta estava abarrotada
com a papelada financeira, que passou como um borrão diante de meus
olhos. Havia um documento de dez ou doze páginas referente à aquisição
da Delphos pela Trion. O resumo da ópera era uma oferta da Trion de
quinhentos milhões de dólares. Ao que parecia, tanto os cientistas de Palo
Alto, assim como a firma de Londres que era proprietária da maior parte
da Delphos, haviam concordado com os termos da proposta. É, quinhentos
milhões de dólares podem ajudar muito. Agora só faltava colocar os
pingos dos is. Um comunicado estava previsto, em princípio, para dentro
de uma semana.
Mas como é que eu ia copiar tudo aquilo? Levaria uma eternidade —
horas em pé junto a uma máquina de copiar. Já eram seis da manhã e, se
Jock Goddard entrava às sete e meia, era melhor acreditar que Paul
Camilletti chegava antes. Ou seja, eu precisava dar o fora. Não tinha
tempo para fazer as cópias.
Não consegui imaginar outra solução que não fosse levar tudo. Talvez
substituir por arquivos retirados de outro lugar, e...
E levantar todos os tipos de alarme no segundo em que Camilletti ou
sua assistente tentassem acessar os arquivos do AURORA.
Não. Má ideia.
Em vez disso, peguei uma página-chave de cada um dos oito arquivos
da companhia, meti na máquina e tirei uma cópia de cada. Em menos de
cinco minutos eu as tinha substituído nas respectivas pastas e posto as
cópias na minha pasta.
Tudo pronto, e era mais do que hora de dar o fora dali. Levantando
uma única régua das persianas da janela da sala da frente, dei uma espiada
para ver se não havia ninguém.
Às seis e quinze eu já estava de volta à minha sala. Pelo resto do
expediente teria que andar com aqueles documentos ultrassecretos do
AURORA, mas era melhor do que deixar numa gaveta e correr o risco de
Jocelyn descobri-los. Sei que talvez pareça paranoico, mas eu precisava
agir contando com a possibilidade de que ela examinaria as gavetas da
minha mesa. Jocelyn Chang podia ser "minha" assistente, mas seu
contracheque corria por conta de Trion Systems e não de mim.
Exatamente às sete ela chegou. Meteu a cabeça na minha sala, levantou
as sobrancelhas e disse "Bom dia" com um tom de surpresa bem
expressivo.
— Dia, Jocelyn.
— Chegou cedo.
— É, cheguei — resmunguei.
Ela me olhou de lado.
— Você... você já está aqui há muito tempo?
Deixei escapar um suspiro fundo.
— Você não vai querer saber — respondi.
52
Minha grande apresentação para Goddard foi sendo adiada e adiada.
Deveria ser às oito e meia, mas dez minutos antes recebi uma mensagem
InstaMail de Flo me dizendo que a reunião de Jock estava demorando mais
que o planejado, vamos passar para as nove. Logo em seguida outra
mensagem instantânea de Flo: a reunião não mostrava sinal de terminar,
vamos adiar para nove e meia.
Imaginei todos os gerentes de alto nível brigando para saber quem
suportaria o impacto maior dos cortes. Provavelmente todos eram a favor
dos cortes, de um modo geral, mas não nas divisões que chefiavam. A
Trion não era diferente de qualquer outra corporação: quanto mais gente
sob suas ordens no organograma, mais poder você tem. Ninguém quer
perder efetivo.
Eu estava morrendo de fome e devorei uma barra de proteínas.
Também me sentia exausto, mas ligado demais para fazer qualquer outra
coisa que não fosse trabalhar na minha apresentação em PowerPoint, a fim
de torná-la mais eficiente. Pus uma figura animada entre os slides, aquele
boneco desenhado com pauzinhos que coça a cabeça com um ponto de
interrogação em cima. E me empenhei em enxugar ao máximo o texto;
tinha lido não sei onde algo a respeito de uma Regra do Número Sete —
nada além de sete palavras por linha e de sete linhas por página. Ou seria
Regra do Cinco? Imaginei que Jock podia estar um pouco sem paciência e
atenção, tendo em vista o que estava passando, e por isso não parei de
encurtar o meu texto, torná-lo mais enérgico.
Quanto mais esperava, mais nervoso ficava e mais minimalistas meus
slides do PowerPoint se tornavam. E os efeitos especiais iam ficando cada
vez mais legais.
Descobri como fazer as barras dos gráficos encolherem e crescerem
diante dos olhos do espectador. Goddard ficaria impressionado.
Finalmente, às onze e meia, recebi uma mensagem de Flo dizendo que
eu podia me dirigir para o Centro de Reuniões Executivo, já que a reunião
estava acabando.
As pessoas já estavam saindo quando cheguei lá. Algumas eu
reconheci — Jim Colvin, o chefe de operações; Tom Lundgren; Jim
Sperling, o chefe do RH, uma dupla de mulheres que pareciam ser
poderosas. Nenhuma delas parecia muito feliz. Goddard estava cercado
por um bando de pessoas, todas mais altas que ele. Eu não tinha realmente
me dado conta antes de como era baixinho. E sua aparência também era
terrível — olhos injetados e vermelhos, as olheiras ainda maiores que o
normal. Camilletti estava ao lado dele, e os dois pareciam discutir.
Ouvi apenas trechos.
Camilletti — ... preciso aumentar o metabolismo deste lugar...
Goddard: — ... todos os tipos de resistência, desmoralização...
Camilletti: — O melhor modo de lidar com a resistência é o machado
sangrento.
Goddard, exausto: — Eu geralmente prefiro a velha e simples
persuasão.
Os outros se organizaram em círculo em torno dos dois, assistindo.
— É como disse Al Capone, consegue-se muito mais com uma palavra
bondosa e uma arma do que apenas com a palavra bondosa — disse
Camilletti, que sorriu.
— Suponho que agora você vá me dizer que é preciso quebrar os ovos
para se fazer uma omelete.
— Você está sempre um passo à minha frente — disse Camilletti,
dando um tapinha nas costas de Goddard ao se afastar.
Enquanto isso, eu ia ligando meu laptop ao projetor instalado na mesa
de reuniões. Comprimi o botão que abaixava as persianas eletricamente.
Agora éramos somente Goddard e eu na sala.
— O que é que vamos ter aqui, uma matinê?
— Sinto muito, só um show de slides.
— Não tenho certeza se será uma boa ideia apagar as luzes. É bem
provável que eu caia no sono — disse Goddard. — Passei quase que a
noite toda em claro, agonizando por causa de toda essa maluquice.
Considero esses cortes uma falha pessoal.
— Não são — falei, me arrependendo na mesma hora. Quem era eu
para tentar tranquilizar o presidente da companhia? — De qualquer modo
— apressei-me a acrescentar —, vou ser breve.
Comecei com um gráfico animado e muito legal do Maestro, com
todas as peças vindo de fora da tela voando e se ajustando perfeitamente.
Em seguida veio o bonequinho que coçava a cabeça com o ponto de
interrogação em cima.
Eu falei:
— A única coisa mais perigosa do que estar no mercado de eletrônica é
não estar no mercado.
Agora tomamos uma carona em um carro de corridas tipo Fórmula Um
deslocando-se a uma velocidade incrível.
— Porque se você não estiver dirigindo o carro, provavelmente será
atropelado por ele.
Neste ponto apareceu um slide que dizia TRION CONSUMER ELECTRONICS
— O BOM, O RUIM E O FEIO.
— Adam?
Virei-me.
— Senhor?
— Que diabo é isso?
Senti que minha nuca ficava molhada de suor.
— Era só a introdução. — Obviamente eu tinha exagerado. — Agora
vamos ao que interessa.
— Você contou a Flo o que estava planejando fazer, como diabos isso
se chama, Power... PowerPoint?
— Não, eu não disse...
Ele se levantou, caminhou até o interruptor e acendeu a luz.
— Ela teria lhe dito... odeio essa porcaria.
Senti o rosto pegando fogo.
— Desculpe, ninguém me disse nada.
— Meu Deus do céu, Adam, você é um rapaz inteligente, criativo e
dono de um pensamento original. Acha que quero que desperdice seu
tempo tentando decidir se o texto fica melhor com Arial dezoito ou Times
Roman vinte e quatro, pelo amor de Deus! Que tal simplesmente me dizer
o que pensa? Não sou criança. Não preciso ser alimentado com esse
maldito mingau informático.
— Desculpe — comecei de novo.
— Não, eu é que me desculpo. Não deveria ter sido tão brusco com
você. Taxa de açúcar no sangue baixa, talvez. É hora do almoço e estou
faminto.
— Posso descer e pegar uns sanduíches.
— Tenho uma ideia melhor — contrapôs Goddard.
53
O carro de Goddard era um Buick Roadmaster conversível 1949,
perfeitamente restaurado, marfim, com uma grade cromada que parecia
uma boca de crocodilo. Tinha pneus de banda branca, forração de couro
vermelho magnífica e reluzia como se você o estivesse vendo em um
filme. Ele recolheu a capota antes de sairmos da garagem ao sol da tarde.
— Ele realmente anda — comentei, surpreso, quando aceleramos na
estrada.
— Três litros e duzentos, oito cilindros em linha.
— Cara, é uma beleza.
— Eu o chamo de minha Nau de Teseu.
— Hmm — eu ri como se soubesse de que ele estava falando.
— Você devia ter visto quando o comprei, um verdadeiro monte de
lixo, meu Deus. Minha mulher pensou que eu tinha ficado maluco. Devo
ter gasto uns cinco anos de fins de semana e noites reconstruindo este
troço completamente. Ou seja, substituí cada peça. Tudo autêntico, claro,
mas acredito que hoje não tenha mais uma única coisa do carro original.
Sorri e me recostei. O couro do assento era macio como manteiga e
tinha um cheiro agradavelmente antigo. O sol banhava meu rosto e a
sensação causada pelo vento era maravilhosa. Ali estava eu sentado
naquele belo conversível antigo com o presidente da companhia que eu
espionava — e não pude decidir se me sentia ótimo, como se tivesse
chegado ao cume da montanha, ou se me sentia um canalha desonesto e
barato. Talvez ambos.
Goddard não era um desses colecionadores ricos, como Wyatt, com
seus aviões, barcos e Bentleys. Ou como Nora, com seu Mustang, ou ainda
como qualquer dos clones de Goddard na Trion, que compravam carros de
coleção em leilões. Ele era um genuíno e antiquado fanático por máquinas
que realmente sujava as mãos de graxa.
Ele perguntou:
— Você leu As vidas de Plutarco?
— Acho que nem cheguei a terminar O sol é para todos — admiti.
— Você não sabe de que raios estou falando quando chamo este carro
de meu navio de Teseu, sabe?
— Não, senhor, não sei.
— Bem, os antigos gregos gostavam muito de discutir questões de
identidade. Aparece primeiro em Plutarco. Pode ser que você reconheça o
nome Teseu, o grande herói que matou o Minotauro no Labirinto.
— Claro — eu me lembrava de qualquer coisa de um labirinto.
— Os atenienses decidiram preservar o navio de Teseu como um
monumento. Com o passar dos anos, é claro, ele começou a se decompor, e
eles foram substituindo cada viga podre por outra e outra e mais outra. Até
que chegou a hora em que todo o madeirame foi substituído. E a pergunta
que os gregos faziam, uma espécie de enigma favorito dos filósofos, era:
este ainda é o navio de Teseu?
— Ou só um upgrade? — falei.
Mas Goddard não estava mais brincando. Parecia estar em um estado
de espírito muito sério.
— Aposto como você conhece gente exatamente como o navio de
Teseu, não conhece, Adam?
Ele olhou para mim e voltou a se concentrar na direção.
— Pessoas que vão subindo na vida e começam a trocar tudo nelas
mesmas até o ponto em que você não mais reconhece o original?
Fiquei tenso. Jesus. Não estávamos mais conversando sobre Buicks.
— Você sabe como é, começa com jeans e tênis e vai passando para
ternos e sapatos elegantes. Você se torna mais refinado, mais apto
socialmente, dono de maneiras mais polidas. Você muda seu jeito de falar.
Adquire novos amigos. Costumava beber Budweiser e passa a preferir
Pauillac das melhores safras. Comia Big Macs sem sair do carro e agora...
passa a pedir cherne assado envolto numa capa de sal grosso. O modo
como você vê as coisas muda, até mesmo o seu modo de pensar.
Ele falava com uma intensidade assustadora, atento à estrada, quando
se virava para mim de vez em quando, os olhos cintilavam.
— Chega uma hora, Adam, em que você tem que se perguntar se você
é a mesma pessoa ou não. Sua roupa mudou, seus enfeites mudaram, você
passou a dirigir um carro sofisticado, passou a viver em uma mansão
sofisticada, vai a festas sofisticadas, tem amigos sofisticados. Mas se tiver
integridade, sabe que lá no fundo você é o mesmo navio que sempre foi.
Senti um, um não, vários nós no estômago. Ele estava falando a meu
respeito. Fui tomado por uma enjoativa sensação de vergonha e
constrangimento, como se tivesse sido apanhado fazendo algo que não
devia. Ele enxergava dentro de mim. Ou não? Quanto ele via? Quanto
sabia?
— Um homem tem que respeitar a pessoa que foi. O seu passado. Você
não pode ser prisioneiro do seu passado, mas tampouco pode descartá-lo.
Ele faz parte de você.
Eu estava tentando imaginar como responder quando ele anunciou:
— Bem, aqui estamos.
Era o vagão-restaurante de um trem de passageiros, antigo, com um
design aerodinâmico e revestido de aço inoxidável. Tinha um anúncio em
néon azul que dizia, em letras manuscritas: A COLHER AZUL. Um pouco
abaixo, letras vermelhas de néon diziam AR-CONDICIONADO. Outro
luminoso também vermelho dizia ABERTO e CAFÉ DA MANHÃ O DIA INTEIRO.
Ele estacionou e nós saltamos.
— Você nunca esteve aqui?
— Não, nunca estive.
— Oh, vai adorar. É autêntico. Não é uma dessas falsificações — a
porta do Buick bateu com um barulho grave característico e gratificante.
— Não muda desde 1952.
Sentamos em uma cabine que era forrada com vinil Naugahyde
vermelho. O tampo da mesa era de fórmica imitando mármore, com a
borda de aço inox, e havia um jukebox em cima. O bar era comprido, com
bancos giratórios aparafusados no chão, bolos e tortas protegidos por
cúpulas de vidro. Por sorte, nada de memorabilia dos anos 50; nada de
Sha-Na-Na tocando nos jukeboxes. Havia uma máquina de vender cigarros,
do tipo que você puxa uma alavanca para fazer o maço cair. Serviam café
da manhã o dia inteiro (Country: dois ovos, fritas, salsicha, bacon ou
presunto e bolos, tudo por $4,85), mas Jock pediu um sloppy joe, bife de
carne moída num pão, a uma garçonete que o conhecia e o chamava de
Jock. Pedi um cheeseburger com fritas e uma Diet Coke.
A comida era um pouco gordurosa, mas decente. Eu já comera melhor,
embora tenha feito todos os sons extasiados adequados. Em cima do
banco, bem do meu lado, estava minha pasta com os arquivos subtraídos
da sala de Paul Camilletti. E só a presença deles ali me deixava nervoso,
como se emanassem raios gama através do couro.
— Vamos então ouvir o que é que você acha — disse Goddard, com a
boca cheia. — Não me diga que não é capaz de pensar sem um laptop e um
projetor.
Eu sorri e tomei um gole de Coca.
— Bem, para começar, acho que estamos exportando um número
pequeno demais dessas televisões grandes de tela plana — falei.
— Pequeno? Nesta economia?
— Um amigo meu que trabalha na Sony me disse que estão tendo
sérios problemas. Basicamente, a NEC, que fabrica as telas de plasma para
a Sony, está tendo algum tipo de problema com a produção. Temos uma
dianteira considerável sobre eles. De seis a oito meses, fácil.
Ele fez uma pausa no seu sloppy joe e me deu toda sua atenção.
— Você confia nesse seu amigo?
— Totalmente.
— Não vou tomar uma decisão importante dessas com base em um
boato.
— Não posso culpá-lo. Embora a notícia deva vir a público em uma ou
duas semanas. Mas nós poderíamos querer firmar um acordo com outro
fabricante antes que o preço das telas de plasma dê um salto. E certamente
dará.
Ele levantou as sobrancelhas.
— Também — continuei —, Guru me parece importante. Jock sacudiu
a cabeça e voltou a se dedicar ao seu prato.
— Ah, bem, nós não somos os únicos a lançar um novo comunicador
— disse ele. —
A Nokia está planejando acabar conosco.
— Esquece a Nokia — falei. — É tudo fumaça, puro marketing. O
aparelho deles está enrolado no meio de batalhas de egos... não veremos
nada de novo com a assinatura deles senão depois de dezoito meses, se
tiverem sorte.
— E você sabe disso por intermédio do mesmo amigo seu? Ou é um
outro?
Ele me pareceu cético.
— Inteligência competitiva — menti. Fora Nick Wyatt, quem mais?
Mas ele me dera cobertura.
— Posso lhe mostrar o relatório, se quiser.
— Agora não. Você deveria saber que o Guru teve um problema de
produção tão sério que talvez nem possa ser embarcado.
— Que tipo de problema?
Ele suspirou.
— Complicado demais para tratar agora. Embora você talvez queira
começar a comparecer a algumas reuniões da equipe do Guru para ver se
pode ajudar.
— Claro — pensei em me candidatar de novo ao AURORA, mas desisti,
ia chamar muito a atenção.
— Oh, sim. Sábado é meu churrasco anual na casa do lago. Não vai
toda a companhia, claro, só umas setenta e cinco pessoas, no máximo cem.
Nos velhos tempos levávamos todo mundo para lá, mas não podemos mais
fazer isso. Assim, temos agora o pessoal da antiga, os mais graduados e
suas respectivas mulheres ou maridos. Acha que pode roubar um pouco do
tempo de suas fontes de informações competitivas?
— Eu adoraria — tentei bancar o indiferente, mas aquilo era bom
demais. O churrasco de Goddard representava realmente o círculo dos
eleitos. Tendo em vista o pequeno número de convidados, a festa era
objeto da maior competição dentro da empresa. Eu tinha ouvido: "Puxa,
Fred, sinto muito, mas sábado não vai dar, tenho... qualquer coisa tipo
churrasco. Você sabe."
— Infelizmente, nada de cherne assado dentro de uma crosta de sal
grosso ou vinho Pauillac — disse Goddard. — Mais tipo hambúrgueres,
cachorro-quente, salada de macarrão, nada de sofisticado. Leve seu calção
de banho. Passemos agora a questões mais importantes. Eles têm aqui a
melhor torta de passas que você já provou. A de maçã também é ótima.
Tudo feito em casa. A minha favorita, contudo, é a de merengue de
chocolate.
Ele despertou a atenção da garçonete, que estava por perto.
— Debby — disse —, traga para este rapaz uma fatia da de maçã, e eu
vou querer a de sempre.
Jock virou-se para mim.
— Se não se importa, não conte nada a seus amigos a respeito deste
lugar. Será nosso segredinho.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Você consegue guardar um segredo, não consegue?
54
Voltei para a Trion eufórico, ligadão por causa do almoço com
Goddard, e o motivo não fora a comida medíocre. Afinal, minhas ideias
não tinham fluído tão bem assim. Não, o fato puro e simples é que eu
tivera a atenção exclusiva do grande homem, talvez até mesmo a sua
admiração. Ok, talvez eu esteja exagerando um pouco. Mas o fato é que
ele me levou a sério. E já o desprezo de Nick Wyatt por mim parecia
interminável. Wyatt fazia com que eu me sentisse como um esquilo. Com
Goddard, eu sentia como se a sua decisão de me escolher para seu
assistente executivo pudesse realmente ser justificada e me fizesse querer
me matar de trabalhar pelo cara. Muito estranho.
Camilletti estava na sua sala, porta fechada, reunido com alguém que
parecia ser importante. Dei uma olhada nele pela janela: inclinado para a
frente, atento.
Perguntei-me se ele digitaria suas anotações depois que o visitante
fosse embora. Tudo o que registrasse no computador viria ter às minhas
mãos em pouco tempo, com senhas e tudo mais. Inclusive qualquer coisa
referente ao projeto AURORA.
Nessa altura, senti minha primeira pontada de — de quê? — De culpa,
talvez. O lendário Jock Goddard, um ser humano verdadeiramente decente,
acabara de se dar ao trabalho de me levar para comer fora, e, mesmo que
seu restaurante favorito não fosse grande coisa, ele ouvira minhas ideias
(na minha cabeça, as ideias eram minhas e não mais de Wyatt). Em troca,
eu entrava furtivamente nos escritórios dos seus executivos e plantava
equipamentos de vigilância para beneficiar o canalha do Nick Wyatt.
Alguma coisa estava seriamente errada nesse quadro. Jocelyn levantou
os olhos do que estava fazendo.
— Bom almoço? — perguntou. Sem dúvida a rede de fofocas das
assistentes sabia que eu acabara de almoçar com o presidente. Fiz que sim.
— Obrigado. E você?
— Só um sanduíche aqui mesmo. Muito que fazer.
Eu estava entrando na minha sala quando ela falou.
— Oh, um sujeito passou aqui para ver você.
— Deixou o nome?
— Não. Disse que era seu amigo. Na verdade, disse que era seu
"camarada". Cabelo louro, bonito?
— Acho que sei de quem você está falando.
O que Chad poderia estar querendo?
— Ele falou que você tinha deixado qualquer coisa para ele na sua
mesa, mas não deixei que entrasse na sua sala. Nunca se sabe. Espero que
não tenha problema. Ele pareceu ficar um pouco ofendido.
— Está ótimo, Jocelyn. Muito obrigado.
Era Chad, sem dúvida, mas o que ele estava tentando bisbilhotar na
minha sala?
Liguei o computador e fui ver minha correspondência. Um item saltou
diante dos meus olhos — uma notícia da Segurança Corporativa enviada
para "Nível C e Staff da Trion".
ALERTA DE SEGURANÇA
No final da semana passada, após um incêndio no
departamento de Recursos Humanos da Trion, uma investigação
de rotina descobriu a presença de um equipamento de vigilância
plantado ilegalmente. Uma tal quebra de segurança em uma
área tão sensível, é claro, preocupa enormemente a todos nós na
Trion. Assim sendo, a Segurança iniciou uma varredura
profilática de todas as áreas sensíveis da corporação, inclusive
escritórios e estações de trabalho, procurando sinais de intrusão
em instalações e equipamentos. Você será contactado em breve.
Agradecemos sua cooperação neste esforço de importância vital
para a segurança.
Imediatamente o suor molhou minha testa e axilas.
CAIXA MORTA
Apressei o passo, sem querer ser visto por nenhum dos dois através das
paredes de vidro do escritório de Camilletti. Embora não tivesse a menor
ideia de por que eu não queria ser visto. Eu estava funcionando na base do
instinto.
Jesus Cristo, Chad conhecia Camilletti? Ele nunca dissera que o
conhecia e, tendo em vista o comportamento humilde e despretensioso de
Chad, era o tipo de coisa da qual teria se vangloriado comigo. Não
consegui imaginar nenhuma razão legítima — ou pelo menos inocente —
pela qual os dois pudessem estar conversando.
Certamente que o motivo não era social: Camilletti não perderia tempo
com um verme como Chad.
A única explicação plausível era o que eu mais temia: Chad resolvera
levar as suspeitas que tinha de mim à direção da Trion. Mas por que
Camilletti?
Sem dúvida que Chad não gostava de mim, e quando soube da
existência de um novo contratado da Wyatt Telecom, provavelmente
espremera Kevin Griffin ao máximo para descobrir sujeiras a meu
respeito. E tivera êxito.
Mas tivera mesmo?
Quer dizer, o que Kevin Griffin sabia realmente a meu respeito?
Boatos, fofocas; podia ter dito que sabia alguma coisa do meu passado na
Wyatt. No mais, ele era um cara cuja reputação era questionável. Fosse o
que fosse que a Segurança da Wyatt tivesse dito ao pessoal da Trion era
evidente que os caras da Trion tinham acreditado — caso contrário não
teriam se livrado dele tão depressa.
Será que Camilletti ia realmente acreditar em acusações de segunda
mão, vindas de uma fonte questionável, um possível trapaceiro, como
Kevin Griffin?
Por outro lado... agora que ele me vira com Wyatt num jantar, em um
restaurante reservado, talvez acreditasse.
Meu estômago começou a doer. Achei que podia estar sofrendo de uma
úlcera.
Mesmo que fosse, seria o menor dos meus problemas.
65
No dia seguinte, sábado, era o churrasco de Goddard. Levei uma hora e
meia para chegar à casa do lago, a maior parte do tempo em estradas
secundárias. No caminho, liguei para papai do meu celular, o que foi um
erro. Conversei um pouco com Antwoine e ele logo entrou na linha,
bufando e tossindo, com sua costumeira maneira encantadora de ser, e
exigiu que eu fosse vê-lo imediatamente.
— Não posso, papai — falei. — Tenho que resolver um problema do
trabalho.
Eu não queria dizer que ia a um churrasco na casa de campo do
presidente da Trion. Tentei passar em revista mentalmente as possíveis
reações de meu pai e desisti, tamanha foi a sobrecarga. Havia a arenga da
corrupção-dos-presidentes-das-firmas, a arenga do Adam-como-um-
patético-bajulador, a arenga do você-não-sabe-quem-é, a arenga dos ricos-
vão-esfregar-o-dinheiro-deles-na-sua-cara, a arenga do que-negócio-é-
esse-de-você-não-querer-passar-um-tempo-com-seu-pai-moribundo...
— Você precisa de alguma coisa? — perguntei, sabendo que ele jamais
admitiria precisar de algo.
— Não preciso de nada — disse ele, irritado. — Não se você estiver
muito ocupado.
— Então vou passar aí amanhã de manhã, ok?
Papai ficou em silêncio, para que eu soubesse que ele tinha ficado
furioso, e depois passou o telefone para Antwoine. O velho voltara a ser o
escroto que sempre fora.
Encerrei a ligação quando cheguei na casa. O lugar era marcado com
uma placa de madeira simples, presa a um poste, na qual estavam escritos
apenas GODDARD e um número. Em seguida, um caminho comprido de
terra, cheio de sulcos, que atravessava um mato fechado e que de repente
se alargava, tomando a forma de uma grande pista circular recoberta de
conchas esmagadas. Um garoto de camisa verde era o manobrista, e foi
com relutância que lhe entreguei as chaves do Porsche.
A casa era esparramada, com telhado cinzento, aspecto confortável e
dava a impressão de ter sido construída no final do século XIX. Ficava em
um promontório que dava para o lago, com quatro gordas chaminés de
pedra e hera subindo nas telhas. Na frente da casa havia um imenso
gramado suavemente ondulado que cheirava como se tivesse acabado de
ser cortado. Aqui e ali se viam gigantescos carvalhos e pinheiros
retorcidos.
Vinte ou trinta pessoas estavam de pé no gramado, de shorts e
camisetas, empunhando drinques. Um bando de garotos corria de um lado
para o outro, gritando e jogando bolas, brincando. Uma bonita jovem loura
estava sentada diante de uma mesinha desmontável na frente da varanda.
Ela sorriu, encontrou o crachá com meu nome e me entregou.
A ação principal parecia se desenrolar do outro lado da casa, onde o
gramado declinava suavemente até um deque de madeira sobre o lago. Ali
a multidão era mais densa. Procurei um rosto conhecido, não vi nenhum.
Uma mulher corpulenta, com cerca de sessenta anos, vestindo uma túnica
cor de vinho, com o rosto muito enrugado e o cabelo branco como a neve,
aproximou-se de mim.
— Você parece perdido — disse, bondosamente. A voz era grave e
rouca, e o rosto tão castigado pelo tempo e pitoresco quanto a casa.
Percebi na mesma hora que deveria ser a mulher de Goddard. Era, em
cada detalhe, tão feia quanto diziam. Mordden tinha razão; as rugas eram
tantas que parecia mesmo um filhote de shar-pei.
— Eu sou Margaret Goddard. E você deve ser o Adam.
Estendi a mão, lisonjeado por ter sido reconhecido, até que me lembrei
de que tinha um crachá com meu nome colado na frente da camisa.
— Prazer em conhecê-la, Sra. Goddard.
Ela não me corrigiu, não me disse para chamá-la de Margaret.
— Jock me falou muito a seu respeito — ela segurou minha mão por
longo tempo e balançou a cabeça, os olhinhos castanhos abrindo mais um
pouco. Pareceu impressionada, a menos que tenha sido minha imaginação.
Chegou mais perto de mim.
— Meu marido é um velho cínico e não se deixa impressionar com
facilidade. Por isso você deve ser muito bom.
Uma varanda telada envolvia a parte de trás da casa. Passei por uma
dupla de grandes churrasqueiras pretas de metal com nuvens de fumaça
saindo do carvão incandescente.
Uma dupla de garotas de uniforme branco preparava hambúrgueres,
bifes e frangos que chiavam no fogo. Um bar comprido fora armado por
perto, coberto por uma toalha branca. Nele uma dupla de garotos com ar
de universitários servia bebidas, refrigerantes e cerveja em copos de
plástico. Em outra mesa um sujeito abria ostras e as colocava sobre uma
camada de gelo.
Quando me aproximei da varanda, comecei a reconhecer as pessoas, a
maioria delas executivos da Trion altamente situados, com esposas e
filhos. Nancy Schwartz, vice-presidente sênior da Unidade de Soluções de
Negócios, uma mulher pequena, de cabelos escuros e ar de preocupada,
usando uma camiseta Trion fluorescente laranja dos Jogos Corporativos do
ano passado, jogava croque com Rick Durant, o chefe do marketing, alto,
esbelto, bronzeado e com o cabelo preto caprichosamente penteado.
Ambos pareciam um tanto deprimidos. Flo, a assistente de Goddard,
trajando uma bata havaiana, florida e impressionante, circulava
majestosamente como se fosse a verdadeira anfitriã.
Foi nesta hora que vi Alana, o short branco contrastando com o
bronzeado das pernas longas. Ela me viu no mesmo instante, e seus olhos
pareceram iluminar-se.
Pareceu surpresa. Dirigiu-me um aceno rápido e furtivo e um sorriso, e
afastou-se. Não fiz ideia do que aquilo poderia significar, se é que podia
significar alguma coisa. Talvez quisesse manter discrição a respeito do
nosso relacionamento, aquela velha história de não pescar na praia em que
se trabalha.
Passei pelo meu antigo chefe, Tom Lundgren, que vestia uma dessas
abomináveis camisas de golfe com listras cinzentas e rosa brilhante.
Segurava uma garrafa de água e retirava nervosamente o rótulo para
formar uma fita comprida e perfeita, ao mesmo tempo que ouvia, com um
sorriso fixo, uma negra atraente que provavelmente era Audrey Bethune,
vice-presidente e líder da equipe Guru. De pé, um pouco atrás de
Lundgren, estava uma mulher que com certeza era sua esposa, vestida com
um traje de golfe idêntico ao dele, e a pele do rosto quase tão vermelha e
irritada. Um garotinho desengonçado agarrava seu cotovelo e pedia
qualquer coisa numa voz esganiçada.
A uns quinze metros de distância mais ou menos, Goddard ria com um
grupinho de sujeitos que me pareceram familiares. Ele bebia cerveja direto
da garrafa e usava uma camisa azul de gola abotoada e mangas enroladas,
calças cáqui vincadas e bainha inglesa, cinto de pano azul-marinho com
baleias estampadas e mocassins marrons surrados. O suprassumo do barão
rural. Uma garotinha correu para ele, que se abaixou e, magicamente, tirou
uma moeda da sua orelha. A menina deu um grito, admirada, ele lhe deu a
moeda e ela saiu correndo, agitadíssima.
Goddard disse mais alguma coisa e sua audiência caiu na risada, como
se ele fosse Jay Leno, Eddie Murphy e Rodney Dangerfield numa mesma
pessoa. A um dos seus lados estava Paul Camilletti, com uma calça jeans
délavé muito bem passada, uma camisa branca de gola abotoada e as
mangas também enroladas. Ele recebera o memorando sobre o traje
apropriado que eu não recebera — fui de bermuda cáqui e camisa polo.
Diante de Goddard estava Jim Colvin, o diretor de operações, as pernas
brancas e finas como as de um passarinho aparecendo sob a bermuda
cinza. Um verdadeiro show de moda. Goddard levantou a cabeça, percebeu
minha presença e fez um gesto para que eu me aproximasse.
Quando comecei a andar em sua direção, alguém surgiu do nada e
agarrou meu braço. Nora Sommers, vestindo uma camisa de malha cor-de-
rosa e bermuda cáqui exageradamente grande, pareceu empolgada por me
ver.
— Adam! — ela exclamou. — Que bom vê-lo aqui! Não é um lugar
maravilhoso?
Balancei a cabeça, sorrindo polidamente.
— Sua filha veio?
De repente ela pareceu pouco à vontade.
— Megan está passando por uma fase difícil, pobrezinha. Nunca quer
passar seu tempo livre comigo.
Engraçado, pensei, estou atravessando também a mesma fase.
— Ela prefere ir montar com o pai do que perder uma tarde com a mãe
e seus chatos colegas de trabalho.
— Com licença...
— Você já teve uma chance de ver a coleção de carros de Jock? Está
naquela garagem ali — ela apontou uma construção que parecia um
celeiro a uma centena de metros, cruzando o gramado. — Você tem que
ver os carros. São gloriosos!
— Vou ver, obrigado — falei, dando um passo na direção do grupinho
que cercava Goddard.
Nora agarrou meu braço com mais força.
— Adam, tenho querido lhe dizer que estou muito feliz com seu
sucesso. O fato de Jock estar disposto a apostar em você diz alguma coisa
a favor dele, não é mesmo? Confiar em você? Sinto-me tão feliz por sua
causa!
Agradeci calorosamente e consegui me livrar da sua garra.
Alcancei Goddard e permaneci polidamente de lado até que ele me viu
e acenou para que me aproximasse. Apresentou-me a Stuart Lurie, o
executivo responsável pela Enterprise Solutions, que disse "Como vai,
cara?" e me deu um vigoroso aperto de mão. Era um sujeito de excelente
aparência, com cerca de quarenta anos, prematuramente calvo e com a
cabeça raspada dos lados, o que lhe dava um ar cauteloso e frio.
— Adam é o futuro da Trion — disse Goddard.
— Ora, ora, é um prazer conhecer o futuro! — disse Lurie, com um
toque quase imperceptível de sarcasmo. — Você não vai tirar uma moeda
da orelha dele, vai, Jock?
— Não precisa — respondeu Jock. — Adam está sempre tirando
coelhos de cartolas, não é mesmo, Adam?
Goddard passou o braço pelo meu ombro, um gesto meio desajeitado,
já que eu era bem mais alto do que ele.
— Venha comigo — disse ele, baixinho.
Ele me conduziu para varanda telada.
— Daqui a pouco vou dar início a minha tradicional pequena
cerimônia — disse ele, enquanto subíamos os degraus de madeira. Segurei
a porta de tela para Goddard passar. — Faço uma distribuição de
presentinhos, pequenas bobagens... mais brincadeiras que presentes, na
verdade.
Eu sorri, querendo saber por que ele estaria me contando aquilo.
Atravessamos a varanda, com sua velha mobília de vime, entramos em
uma pequena área de serviço e depois na parte principal da casa. O
assoalho era de largas tábuas de pinho que rangiam quando a gente pisava
nelas. As paredes eram todas pintadas de creme, quase branco, e tudo era
belo, alegre e aconchegante. E havia aquele indescritível cheiro de casa
antiga. Tudo parecia confortável, vivido e real. Aquela era a casa de um
homem rico despretensioso, pensei. Seguimos por um corredor largo, uma
sala de estar com uma grande lareira de pedra e viramos em um corredor
mais estreito com piso de cerâmica. Nos dois lados das paredes havia
estantes com troféus e outras coisas do gênero. Por fim entramos em uma
sala pequena com as paredes revestidas de estantes de livros e uma
comprida mesa de biblioteca no meio, com um computador e uma
impressora em cima, assim como diversas caixas de papelão de bom
tamanho. Obviamente era o escritório de Goddard.
— A velha bursite anda atacando de novo — desculpou-se ele,
indicando as caixas em cima da mesa, que estavam abarrotadas do que
pareciam ser os tais presentes de que ele falara. — Você é um rapaz forte.
Se não se incomodar de carregar essas caixas para junto do pódio, perto do
bar...
— Em absoluto — falei, desapontado, mas não demonstrando meu
desapontamento. Ergui uma das caixas enormes, que não só era pesada,
com o peso distribuído irregularmente, como também tão volumosa que eu
mal podia ver por onde andava. Ela raspava nas prateleiras dos dois lados
do corredor e eu tinha que virá-la de lado para poder passar.
Em dado instante, senti que a caixa encostava em alguma coisa. Logo
em seguida ouviu-se o barulho de vidro quebrando.
— Merda! — exclamei.
Girei a caixa para enxergar o que tinha ocorrido. Eu devia ter batido
em um troféu de uma das prateleiras. Lá estava ele, dividido em muitos
cacos dourados espalhados pelo piso de cerâmica.
Era desses troféus que parecem de ouro maciço mas que na verdade
são feitos de cerâmica pintada ou algo assim.
— Oh, meu Deus, sinto muito — desculpei-me, largando a caixa e me
ajoelhando para recolher os pedaços. Eu tinha tido tanto cuidado que não
sei como aquilo tinha acontecido.
Goddard deu uma olhada rápida e empalideceu.
— Esquece — disse, com a voz tensa.
Recolhi tantos fragmentos quantos pude. Era — tinha sido — uma
estatueta dourada de um jogador de futebol americano correndo. Havia um
fragmento do capacete, um punho, uma bola pequenina. A base era de
madeira com uma placa de metal dourado que dizia CAMPEÕES 1995 —
ESCOLA LAKEWOOD — ELIJAH GODDARD — ZAGUEIRO.
Elijah Goddard, segundo Judith Bolton, era o filho falecido de
Goddard.
— Jock — falei —, me desculpe — um dos pedaços cortou
doloridamente a palma da minha mão.
— Já falei para esquecer — disse Goddard, endurecendo a voz. — Não
é nada. Agora vamos, temos que chegar lá.
Eu não sabia o que fazer, tão mal me sentia por ter destruído uma
lembrança de seu filho morto. Tive vontade de limpar a sujeira que fizera,
mas também não quis irritá-lo ainda mais. E assim terminava toda a boa
vontade que eu conquistara com o velho. O corte da minha mão sangrava.
— A sra. Walsh vai limpar isso — disse ele, em tom cortante. —
Vamos, por favor, leve esses presentes lá para fora.
Ele seguiu pelo corredor e desapareceu em algum lugar. Aproveitei
para pegar a caixa e, com todo o cuidado, carregá-la ao longo do corredor
estreito. Quando a deixei perto do pódio, vi que deixara uma marca de
sangue no papelão.
Quando voltei para pegar a segunda caixa, vi Goddard sentado a um
canto de seu escritório. Estava recurvado, a cabeça na sombra, e segurava
a base de madeira do troféu quebrado. Hesitei, sem saber ao certo o que
fazer, se dava o fora dali e o deixava em paz ou se continuava carregando
as caixas e fingia não tê-lo visto.
— Ele era um menino doce — disse Goddard subitamente, tão baixo
que a princípio pensei que tinha imaginado. Parei onde estava. Ele falava
baixo e com a voz rouca, não muito mais alto que um murmúrio. — Um
atleta, alto e com o peito largo, como você. E tinha o dom de ser feliz, o
dom para a felicidade. Quando entrava em qualquer ambiente, você sentia
a melhora do astral. Fazia as pessoas se sentirem bem. Era bonito e era
bom, e havia uma... uma centelha nos seus olhos.
Goddard levantou lentamente a cabeça e ficou olhando fixamente um
ponto qualquer, a meia distância.
— Mesmo quando bebê, quase nunca chorava ou perturbava ou...
A voz de Goddard falhou e eu fiquei ali, parado, no meio da sala,
imóvel, apenas ouvindo. Estava segurando um guardanapo embolado por
causa do corte e senti que ele estava ficando encharcado.
— Você teria gostado dele — disse Goddard. Ele estava olhando na
minha direção, mas não para mim, como se visse o filho no meu lugar. —
É verdade. Vocês teriam sido amigos.
— Sinto muito não ter chegado a conhecê-lo.
— Todo mundo o amava. Ali estava um garoto que fora posto na Terra
para fazer todas as pessoas felizes... tinha uma centelha, tinha o melhor
sor... — sua voz falhou — o melhor sorriso...
Goddard abaixou a cabeça e seus ombros se sacudiram.
— Um dia — prosseguiu ele, após um minuto — recebi um telefonema
da Margaret no trabalho. Ela gritava... Ela o encontrara em seu quarto. Fui
para casa. Não conseguia pensar direito... Elijah saíra de Haverford no
penúltimo ano, na verdade o puseram para fora, passou a tirar notas que
eram uma vergonha e começou a faltar às aulas. Mas não consegui fazer
com que falasse disso comigo. Imaginei que estivesse usando drogas,
claro, e tentei conversar com ele, mas foi como conversar com uma parede
de pedra. Voltou para casa e passava a maior parte do tempo trancado no
quarto ou saindo com garotos que eu não conhecia. Mais tarde vim a saber
por um de seus amigos que ele se viciara em heroína no início do ano
letivo. Não era nenhum delinquente juvenil, pelo contrário, um sujeito de
natureza boa, inteligente, um bom garoto... mas em algum ponto ele
começou a... qual é a expressão, tomar pico? E isso o mudou. A luz de seus
olhos se foi. Começou a mentir o tempo todo. Era como se estivesse
tentando fazer com que desaparecesse a pessoa que ele era. Entende o que
eu digo?
Goddard olhou para mim de novo. As lágrimas escorriam pelo seu
rosto.
Balancei a cabeça.
Passaram-se alguns segundos antes de ele continuar.
— Ele estava procurando algo, acho. Precisava de alguma coisa que o
mundo não podia lhe dar. Ou talvez se incomodasse muito com o que via e
tivesse decidido matar essa sua parte.
A voz dele ficou novamente embargada.
— E o resto dele foi junto.
— Jock — comecei, querendo que ele parasse.
— O legista atestou a morte por overdose. Disse que não havia dúvida
de que tinha sido deliberado, que Elijah sabia o que estava fazendo.
Ele cobriu os olhos com uma das mãos gordas.
— Aí você se pergunta, o que eu deveria ter feito diferente? Como foi
que estraguei meu filho? Uma vez cheguei inclusive ameaçá-lo com a
polícia. Tentamos fazer com que entrasse numa clínica de reabilitação.
Estive prestes a obrigá-lo a ir, mas nunca tive a chance. E perguntava a
mim mesmo sem parar: Fui exigente demais com ele, muito severo? Ou
não fui duro o suficiente? Deixei-me envolver demais pelo meu trabalho?
Acho que sim. Eu não parava um segundo naquele tempo. Estava por
demais atarefado com a construção da Trion para ser um pai de verdade
para ele.
Goddard me encarou diretamente e eu pude ver a angústia em seus
olhos. Foi como uma punhalada na minha barriga. Fiquei com os olhos
marejados.
— Você sai para trabalhar e construir seu pequeno reino — disse ele —
e perde a noção do que realmente importa — ele pestanejou com força. —
Não quero que você jamais se esqueça do que tem valor, Adam. Nunca.
A cada instante Goddard parecia menor e mais sábio, com cem anos de
idade.
— Ele estava deitado na sua cama coberto de baba e urina, como um
bebê, e eu o aninhei em meus braços. Você sabe o que é ver seu próprio
filho dentro de um caixão? — murmurou ele.
Senti arrepios e tive que desviar os olhos.
— Pensei que nunca mais fosse trabalhar de novo. Que não ia me
recuperar. Margaret diz que nunca me recuperei. Por quase dois meses
fiquei em casa, sem poder descobrir a razão pela qual ainda estava vivo.
Acontece uma coisa dessas e você... você questiona o valor de tudo.
Ele pareceu se lembrar de que tinha um lenço no bolso e enxugou o
rosto.
— Puxa vida, olha só para mim — disse, com um suspiro fundo e
dando um risinho inesperado. — Olha só para o velho bobo. Quando eu
tinha a sua idade, imaginava que quando ficasse velho como sou hoje em
dia, teria descoberto o sentido da vida — ele fez uma pausa, com um
sorriso triste. — E não estou mais próximo de descobrir o sentido da vida
do que já estive algum dia. Ora, eu sei o que não é. Por eliminação. Tive
que perder um filho para aprender. Você consegue a sua casa grandona e
seu carro bacana, e talvez saia na capa da Fortune, e você pensa que
conseguiu tudo o que queria, não é? Até a hora em que Deus manda um
telegrama dizendo: "Oh, esqueci de dizer que nada disso tem realmente
significado. E que aquilo que você ama na Terra... na verdade você não
tem nada, é tudo emprestado. É melhor você amar essas coisas enquanto
pode."
Uma lágrima rolou vagarosamente pelo seu rosto.
— Até hoje pergunto a mim mesmo, será que cheguei a conhecer
Elijah? Talvez não. Eu achava que o conhecia. Sei, com toda a certeza, que
o amei, mais do que pensei que fosse capaz de amar alguém. Mas será que
conheci realmente o meu filho? Não sei lhe dizer.
Ele sacudiu a cabeça lentamente e pude ver que começava a se
recompor.
— Seu pai, quem quer que ele seja, é um sujeito com muita sorte, mas
com muita sorte mesmo, só que nunca saberá disso. Tem um filho como
você, um filho que ainda está com ele. Sei que ele tem que sentir orgulho
de você.
— Não tenho tanta certeza disso — falei, baixinho.
— Mas eu tenho — afirmou Goddard. — Porque eu estaria.
Parte Sete
CONTROLE
MALA PRETA
Uma por uma, comprimi cada chave num retângulo de cera. Tinha
praticado isso algumas vezes com um dos homens de Meacham, e foi bom
que tivesse; era preciso alguma prática para pegar o jeito da coisa. Na tela
do laptop, o aviso para digitar a senha estava piscando para mim.
Merda. Nem todo mundo protege seus laptops com senhas. Tudo bem:
de qualquer modo, aquela não seria uma incursão perdida. Peguei na
mochila uma miniatura de leitor de pcProx que Meacham me dera e
conectei no meu computador de mão. Pressionei start e passei o crachá de
Alana no leitor.
Pronto, a maquininha captara tudo o que havia no cartão de Alana e
armazenara no meu computador de mão.
Talvez fosse até bom que seu laptop estivesse protegido por uma
senha. Havia um limite para o tempo que eu podia gastar ali no
estacionamento sem que ela ficasse curiosa para saber onde diabos eu me
metera. Mas, antes de fechar o laptop, só de brincadeira, decidi digitar
uma das senhas que as pessoas geralmente usam — a data do nascimento,
que eu memorizara, e os primeiros seis dígitos do seu número de matrícula
na Trion. Nada aconteceu. Digitei ALANA e o aviso desapareceu, surgindo
em seu lugar uma tela comum.
Puxa vida, fora fácil demais. Eu tinha entrado.
Jesus. E agora? Quanto tempo eu podia arriscar? Mas como deixar
passar aquela oportunidade? Podia nunca mais acontecer de novo.
Alana era uma pessoa extremamente organizada. Seu computador era
configurado de um jeito claro e lógico. Um dos diretórios chamava-se
AURORA.
Estava tudo ali. Bem, talvez não tudo, mas eu tinha diante de mim uma
mina de ouro de especificações técnicas do chip ótico, memorandos de
marketing, cópias de e-mails enviados e recebidos, agendas de reuniões,
relações de pessoal com códigos de acesso e até mesmo a planta baixa do
andar...
Havia tanta coisa que não tive tempo de ler os nomes dos arquivos. O
laptop tinha um drive de CD; eu tinha um pino de CDs virgens na mochila.
Peguei um deles e coloquei na gaveta de CD.
Mesmo em um computador super-rápido como o de Alana, foram
precisos uns bons cinco minutos para copiar todos os arquivos do AURORA
em um CD. Dada a quantidade existente.
— Por que demorou tanto? — perguntou ela, fazendo beicinho, quando
voltei.
Alana estava sob as cobertas, os seios nus visíveis, e parecia sonolenta.
Uma balada de Stevie Wonder — Love's in Need of Love Today — tocava
baixinho em um pequeno CD player que ela devia ter trazido.
— Não consegui descobrir qual era a chave da mala.
— Um cara com mania de carro como você? Achei que tivesse ido
embora e me deixado aqui sozinha.
— Tenho cara de burro?
— As aparências enganam — disse ela. — Venha para cama.
— Nunca imaginei que você fosse fã do Stevie Wonder — falei. Era
verdade mesmo, eu nunca teria imaginado, tendo em vista sua coleção de
cantoras folk zangadas.
— Você ainda não me conhece realmente — replicou ela.
— Não, mas dê-me um pouco de tempo — falei. Sei tudo sobre você,
pensei, e no entanto nada sei. Não sou o único que guarda segredos. Pus o
laptop em cima da mesinha de carvalho ao lado do banheiro.
— Aí está — falei, retornando ao quarto e tirando a roupa — para o
caso de você ter alguma inspiração brilhante, um brainstorming incrível
no meio da noite.
Nu, eu me aproximei da cama. Aquela bela mulher nua ali deitada,
desempenhando o papel de sedutora, quando na realidade era eu o sedutor.
Alana não tinha ideia do tipo de jogo que eu estava jogando, e por isso
senti uma pontada de vergonha, misturada, estranhamente, com um toque
de excitação.
— Venha para cá — disse ela, num sussurro dramático, sem tirar os
olhos de mim. — Acabei de ter um brainstorm.
Nós dois acordamos depois das oito — excepcionalmente tarde para
duas pessoas hiperativas, workaholics do tipo A — e ficamos algum tempo
brincando na cama antes de tomarmos banho e descermos para um café da
manhã do campo. Duvido que os moradores do campo realmente comam
daquele jeito, a menos que queiram pesar duzentos quilos: fatias de bacon
(só em pousadas campestres é que o bacon vem em "fatias"), montes de
cereais, bolinhos ainda quentes do forno com recheio de uma frutinha
quase preta, ovos, torrada francesa, café com creme de verdade... Alana
realmente regalou-se, o que me surpreendeu, sendo magra como era.
Gostei de vê-la comendo tão vorazmente. Era uma mulher de apetites, o
que eu gostava.
Voltamos para o quarto, brincamos mais um pouco na cama e
conversamos. Fiz questão absoluta de não falar sobre procedimentos de
segurança ou crachás de acesso.
Ela quis falar sobre a morte de meu pai e o funeral e, embora o assunto
me deprimisse, conversamos um pouco. Lá pelas onze horas fomos,
relutantemente, embora. O encontro estava terminado.
Acho que tanto eu quanto ela desejávamos continuar ali, mas também
precisávamos ir para casa por algum tempo, tomar umas providências,
voltar às minas de sal e compensar aquela noite deliciosa longe do
trabalho.
Na estrada, enquanto seguíamos por entre as árvores matizadas pela
luz do sol, não pude deixar de pensar que acabara de passar a noite com a
mulher mais espetacular, linda, engraçada e sexy que eu já conhecera.
Cara, que diabo de coisa eu estava fazendo?
82
Ao meio-dia eu estava de volta ao meu apartamento e telefonei
imediatamente para Seth.
— Vou precisar de mais um pouco de dinheiro — disse ele.
Eu já lhe dera alguns milhares de dólares, da minha conta suprida pela
Wyatt, ou de onde quer que viesse realmente o dinheiro. Fiquei surpreso
por ver que ele já tinha gastado tudo.
— Eu não quis fazer besteira, comprar troços baratos — ele explicou.
— Só comprei equipamento profissional.
— Acho que tem que ser assim mesmo — concordei. — Muito embora
seja para usar uma única vez.
— Quer que eu pegue uniformes?
— É bom.
— E os crachás?
— Estou trabalhando nisso — falei.
— Você não está nervoso, Adam?
Hesitei por um momento, pensando em mentir só para estimular a
coragem dele, mas não consegui.
— Totalmente — respondi.
Eu não queria pensar no que podia acontecer se as coisas saíssem
erradas. Uma área nobre do meu cérebro estava sendo colonizada agora
pela preocupação, trabalhando obsessivamente no plano que formulara
depois da entrevista com o patrão de Seth.
Havia, porém, uma outra parte do meu cérebro que só queria escapar
da realidade embarcando em uma fantasia. Queria pensar em Alana.
Pensei na ironia da situação — como aquele esquema calculado de
sedução me levara a seguir um rumo totalmente inesperado e como eu me
sentia agora recompensado — erradamente — pela minha traição.
Eu alternava entre me sentir um canalha, culpado pelo que estava
fazendo a ela, e me sentir esmagado pela minha ligação sentimental a ela,
algo que eu realmente nunca tinha sentido antes. Pequenos detalhes
pipocavam a toda hora em minha mente: o modo como escovava os
dentes, juntando água da torneira com a mão em concha, em vez de usar
um copo, a depressão graciosa da sua coluna logo acima das nádegas, o
modo incrivelmente sexy com que passava batom... Eu pensava na sua voz
aveludada, na sua risada maluca, seu senso de humor, sua doçura.
E eu também pensava — sendo este o detalhe mais estranho de todos
— sobre o nosso futuro juntos, um pensamento geralmente assustador para
um cara que está na casa dos vinte anos, só que, de algum modo, não me
assustava nem um pouco. Eu não queria perder aquela mulher. Eu me
sentia como se tivesse parado em um 7-Eleven para comprar uma
embalagem com seis cervejas e um bilhete de loteria, e o bilhete estivesse
premiado.
E, por causa disso, eu não queria que ela jamais descobrisse o que eu
estava realmente querendo. Esse pensamento horrível e sombrio insistia
em aparecer a todo instante, interrompendo minha tola fantasia, como um
desses brinquedos de criança com a base pesada e que sempre pulam para
cima — sproing — quando você os derruba.
Uma imagem pouco nítida em preto e branco aparecia inserida no meu
carretel colorido de fantasia — um fotograma da câmera de vigilância: eu
sentado no meu carro no estacionamento às escuras, passando o conteúdo
do laptop dela para um CD, comprimindo suas chaves em cera, copiando
seu crachá.
Eu dava um tapa derrubando o palhacinho malvado e aparecia o dia do
nosso casamento, Alana avançando pela nave da igreja, linda e recatada,
de braço com o pai, um sujeito de cabelos cor de prata e queixo quadrado
metido numa roupa formal.
A cerimônia é realizada por Jock Goddard atuando como juiz de paz. A
família de Alana toda comparece, sua mãe parece Diane Keaton em O Pai
da Noiva, sua irmã não tão bonita quanto Alana mas meiga, e todos estão
empolgados — isto é uma fantasia, lembrem-se — por ela estar se casando
comigo.
Nossa primeira casa, uma casa de verdade e não um apartamento,
como em uma velha cidadezinha muito arborizada do Meio-Oeste; eu
imaginava a casa enorme em que a família de Steve Martin vive em O Pai
da Noiva. Nós dois, afinal, somos executivos ricos e poderosos. Ouve-se
em algum ponto no fundo, Nina Simone cantando The Folks Who Live on
the Hill. Carrego Alana sem o menor esforço pela soleira da porta, e ela ri
de como estou sendo brega, e depois transamos em cada um dos cômodos
para batizar a casa, inclusive o banheiro e o closet. Assistimos aos filmes
que alugamos juntos sentados na cama, comendo comida chinesa direto
das caixas de papelão com palitos de madeira, e de vez em quando arrisco
um olhar para ela, sem conseguir acreditar que estou realmente casado
com uma coisinha tão inacreditavelmente linda.
Os brutamontes de Meacham tinham trazido de volta meus
computadores, o que foi uma sorte, porque eu precisava deles.
Introduzi o CD no meu computador com tudo o que eu tinha copiado
do laptop de Alana. Havia um bom número de e-mails referentes ao vasto
potencial de marketing do AURORA. Como a Trion estava pronta para ser
dona do "espaço", como dizem na linguagem técnica de marketing. O
gigantesco aumento em poder de computação que viria com ele, como o
chip AURORA realmente mudaria o mundo.
Um dos documentos mais interessantes era o programa da
demonstração pública do AURORA. Ia acontecer na quarta-feira, dentro de
quatro dias, no Centro de Visitantes da sede da Trion, um auditório
gigantesco e supermoderno. E-mails de alerta, faxes e telefonemas seriam
enviados apenas na véspera para toda a mídia. Obviamente seria um
imenso evento público. Imprimi esse programa.
Mas fiquei intrigado, acima de tudo, com a planta baixa do andar e os
procedimentos de segurança que todos os membros da equipe AURORA
tinham recebido.
Em seguida abri uma das gavetas de lixo da cozinha. Embrulhados em
um saco de lixo havia alguns objetos que eu guardara dentro de plásticos
Zip-Loc. Um era o CD da Ani DiFranco que eu deixara no meu
apartamento na esperança de que ela o pegasse, como pegou. O outro era o
cálice de vinho que usara.
Meacham tinha me dado um kit de levantamento de impressões
digitais Sirchie, contendo frascos de pó de grafite, fita adesiva
transparente e um pincel de fibra de vidro. Calçando um par de luvas de
látex, espalhei tanto no CD quando no cálice de vinho um pouco do pó de
grafite.
A melhor impressão estava, disparado, no CD. Recolhia
cuidadosamente num pedaço da fita adesiva e pus em um estojo plástico
estéril.
Em seguida escrevi um e-mail para Nick Wyatt. Endereçado, é claro, a
"Arthur": Segunda de noite/terça de manhã missão será terminada &
amostras obtidas. Terça de manhã entrega será feita em hora e local a
serem especificados por você. Com fim da missão encerrarei todos os
contatos.
A minha intenção era deixar registrada a nota exata de ressentimento.
Não queria que suspeitassem de nada.
Mas Wyatt apareceria pessoalmente?
Acho que esta era a grande pergunta sem resposta. Não era crucial que
Wyatt aparecesse, embora eu certamente quisesse que ele fosse. No
entanto, não havia como obrigá-lo. Na verdade, insistir nesse ponto
provavelmente só serviria para não ir. A esta altura, contudo, eu conhecia
bastante bem a psicologia de Wyatt para ter quase certeza de que ele não
confiaria em mais ninguém.
O caso é que eu ia dar a Nick Wyatt o que ele queria.
Eu ia lhe dar o protótipo do chip AURORA, que eu ia furtar, com a ajuda
de Seth, do quinto andar da ala D. Tinha que ser o chip verdadeiro, o
protótipo do AURORA. Por inúmeras razões não era possível fraudar esse
tipo de coisa. Wyatt, sendo engenheiro, provavelmente saberia reconhecer
prontamente se o artigo era ou não genuíno.
Mas a principal razão era, como eu descobrira lendo os e-mails de
Camilletti e os arquivos de Alana, que, por razões de segurança, o
protótipo era identificado através de uma inscrição com o número de série
e a logo da Trion, gravada a laser e visível apenas sob um microscópio.
Era por isso que eu queria que ele tivesse em seu poder o chip roubado.
O chip verdadeiro. Porque no momento em que Wyatt — ou Meacham, se
fosse o caso — levasse o chip furtado, ele estaria em minhas mãos. O FBI
seria notificado com antecedência suficiente para coordenar a ação de uma
equipe da SWAT, mas só saberia nomes e locais no último minuto. Eu
estaria em completo controle disso.
Howard Shapiro, o patrão de Seth, tinha feito a ligação para mim.
— Esquece essa ideia de lidar diretamente com o escritório do
Procurador — ele me disse. — Um assunto arriscado como este, ele vai
para Washington e aí vai levar uma eternidade. Esquece. Vamos
diretamente ao FBI — eles são os únicos capazes de topar uma jogada
nesse nível.
Sem citar nomes, ele fizera um acordo com o FBI. Se tudo desse certo
e eu entregasse Nick Wyatt a eles, minha punição seria apenas um período
de liberdade vigiada.
Nada mais.
Bem, eu ia entregar Wyatt a eles. Mas ia ser do meu jeito.
83
Fui trabalhar cedo na manhã de segunda-feira, perguntando a mim
mesmo se aquele não seria o meu último dia na Trion.
Claro que, se tudo corresse bem, aquele seria apenas um outro dia, uma
interrupção insignificante em uma carreira longa e bem-sucedida.
Mas eram muito pequenas as chances de que aquele esquema
incrivelmente complicado desse certo, e eu sabia disso.
No domingo fiz duas cópias do crachá de acesso de Alana, usando uma
maquininha que Meacham me dera chamada ProxProgrammer e os dados
que eu tinha capturado do seu cartão de identidade.
Encontrei também entre os arquivos de Alana uma planta baixa do
quinto andar, ala D. Quase metade do andar estava marcada com hachuras
e as palavras "Instalação de Segurança C".
Instalação de Segurança C era onde o protótipo estava sendo testado.
Lamentavelmente, eu não tinha ideia do que havia exatamente na tal
instalação segura, onde nessa área o protótipo era guardado. Uma vez que
eu conseguisse entrar lá, eu teria que improvisar.
Fui até o apartamento do meu pai pegar minhas luvas de trabalho
industriais, que eu usara quando trabalhei como lavador de janelas com
Seth. Tinha uma certa esperança de ver Antwoine, mas ele devia ter saído.
O fato foi que, enquanto estava lá, tive a estranha sensação de estar sendo
observado. Procurei não me deixar impressionar, atribuindo aquilo à
minha natural ansiedade.
O resto do domingo gastei fazendo um monte de pesquisas no site da
Trion. Era, sinceramente, espantosa a quantidade de informações
disponíveis aos empregados da Trion — desde as plantas baixas dos
andares da sede aos procedimentos referentes à identificação de segurança
nos cartões de identidade e crachás de acesso, e até mesmo o inventário do
equipamento de segurança instalado no quinto andar da ala D. Graças a
Meacham, eu sabia a frequência que os guardas de segurança da Trion
usavam em seus aparelhos de rádio.
Eu não sabia tudo que precisava saber sobre os procedimentos de
segurança — longe disso —, mas descobri algumas coisas interessantes,
que confirmavam o que Alana me dissera no jantar na pousada.
Havia duas vias de acesso para entrar ou sair do quinto andar, ambas
guarnecidas. Você colocava o crachá diante de um leitor de cartões para
passar pela primeira porta, mas depois tinha que mostrar o rosto para um
guarda instalado atrás de um vidro à prova de bala. Este guarda comparava
seu nome e retrato com o que tinha na tela do seu computador e acionava
um botão que lhe dava acesso ao andar.
Mesmo então, você ainda não estava nem perto da Instalação de
Segurança C. Era preciso percorrer corredores equipados com câmeras de
vídeo em circuito fechado, depois entrar em outro local dotado não só com
câmeras de segurança como também com sensores de movimento, antes de
atingir a entrada da área de segurança. Esta não era guarnecida, mas a fim
de destrancar a porta era preciso ativar um sensor biométrico.
Assim, chegar perto do protótipo do AURORA ia ser absurdamente
difícil, se não impossível. Eu não ia conseguir sequer passar pelo primeiro
posto guarnecido.
Não podia usar o cartão de Alana, claro — ninguém ia me confundir
com ela. Seu cartão, porém, poderia ser útil de outras maneiras, uma vez
que eu chegasse ao quinto andar.
O sensor biométrico era ainda mais difícil. A Trion estava na
vanguarda da maior parte das tecnologias, e o reconhecimento biométrico
— leitores de impressões digitais, leitores de mãos, identificação
automática da geometria facial, identificação de voz, mapeamento de íris e
de retina — tudo isso estava na crista da onda no ramo da segurança.
Todas essas tecnologias têm seus pontos fortes e seus pontos fracos, mas o
exame dos dedos é considerado geralmente a melhor delas — confiável,
não muito invasora ou complicada e com uma taxa de falsas rejeições e
falsas aceitações não muito alta.
Montado na parede do lado de fora da instalação de segurança C havia
um aparelho de identificação de impressões digitais Identix.
No final da tarde liguei do meu celular para o diretor-assistente da
central de segurança da ala D.
— Ei, George — falei. — - Aqui é Ken Romero, da Infraestrutura de
Redes, está enrolando?
Ken Romero era um nome verdadeiro, um gerente sênior. Para o caso
de George decidir investigar.
— Que posso fazer por você? — perguntou o sujeito. Pela voz dele tive
a impressão de que tinha acabado de encontrar um pedaço de cocô na sua
caixa de pipocas Cracker Jack.
— Só um telefonema de cortesia. Bob me pediu que avisasse a vocês
que vamos fazer um novo roteamento e modernização do cabo de fibra no
D-Cinco amanhã de manhã bem cedo.
— Hum-hum.
Tipo: por que está me contando isso?
— Eu não sei por que eles acham que precisam dessa fibra de 50 micro
otimizada a laser nem de um servidor blade ultradenso, mas o dinheiro
não vai sair do meu bolso, sabe como é? Acho que eles têm uns aplicativos
correndo por lá que consomem uma parte exageradamente grande dos
recursos do sistema e...
— O que é que eu posso fazer para ajudar, senhor?...
— Romero. Bem, o fato é que eu acho que os caras do quinto andar não
querem interrupções durante o expediente, por isso pediram para que o
serviço fosse feito de madrugada. Não tem problema, mas a gente queria
que vocês ficassem por dentro porque o trabalho vai disparar detectores de
presença e de movimento, mais ou menos entre as quatro e as seis da
manhã.
O assistente do chefe da segurança pareceu aliviado quando concluiu
que não precisaria fazer nada.
— Você está falando de todo o maldito quinto andar? Não posso fechar
o andar inteiro sem...
— Não, não, não — interrompi. — Teremos sorte se o meu pessoal
conseguir avançar por dois, talvez três compartimentos de cabos da rede,
do jeito que eles interrompem o trabalho para tomar café. Não, estamos
falando de duas áreas, vejamos, áreas vinte e dois A e B, certo? Só as
seções internas. De qualquer modo, suas placas de controle deverão se
iluminar como árvores de Natal, provavelmente levando você aí à loucura,
mas eu queria alertar...
George deixou escapar um suspiro fundo.
— Se são só as áreas vinte e dois A e B, acho que posso desligar...
— Faça o que for mais conveniente para você. Quer dizer, a gente só
não quer é enlouquecer vocês por aí.
— Vou dar três horas para vocês, se precisarem.
— Não devemos precisar de três horas, mas acho que é melhor
prevenir do que remediar, não é? De qualquer modo, agradeço muito sua
cooperação.
84
Por volta das sete daquela noite eu saí do prédio da Trion, como fazia
normalmente, e fui para casa. Tive uma inquieta noite de sono.
Pouco antes das quatro da madrugada, peguei o carro e voltei para a
Trion, só que parei na rua e não na garagem, para que não houvesse
registro da minha volta.
Dez minutos depois, um furgão onde se lia J.J. RANKENBERG & CIA —
LIMPEZA PROFISSIONAL DE JANELAS, EQUIPAMENTOS E PRODUTOS QUÍMICOS
DESDE 1963 parou perto de mim.
Seth estava ao volante, vestindo um uniforme azul com uma etiqueta
da J.J. Rankenberg no bolso esquerdo.
— E aí, caubói — disse ele.
— Foi o próprio J.J. quem emprestou o furgão a você?
— O velho morreu — disse Seth. Como ele estava fumando, pude
avaliar o quanto devia se sentir nervoso. — Tive que resolver com o
Júnior.
Ele me passou um macacão azul, dobrado, que vesti por cima da calça
de brim e da camisa polo, o que não foi nada fácil, dentro da cabina do
velho furgão Isuzu, que exalava a gasolina derramada.
— Eu achava que o Júnior odiasse você.
Seth levantou a mão esquerda e esfregou o polegar no indicador,
representando grana.
— Locação de curto prazo para um servicinho que vou fazer para a
companhia do pai da minha namorada.
— Você não tem namorada.
— Tudo o que interessou a ele foi não ter que escriturar a entrada
desse dinheiro. Pronto para começar o baile, meu chapa?
— Aperte no Send, garoto — respondi, apontando para a entrada de
serviço da ala D para o estacionamento interno, e Seth seguiu para lá. O
funcionário de serviço na cabine deu uma olhada em uma folha de papel,
encontrou o nome da companhia J.J. Rankenberg e deixou entrar.
Seth estacionou perto da plataforma de carga do andar inferior e nós
tiramos as grandes sacolas de náilon atulhadas de ferramentas, os rodos de
borracha profissionais Ettore e os grandes baldes verdes, os cabos de
extensão de quase quatro metros, os galões de plástico cheios de um
líquido de limpeza de vidros, amarelo como xixi, as cordas e ganchos, o
Ski Genie, a cadeira para trabalhar pendurado e os elevadores Jumar. Eu
tinha me esquecido da quantidade de tralha que o serviço requeria.
Apertei o grande botão de aço que ficava ao lado da porta da garagem,
também de aço, e poucos segundos depois a porta começou a abrir,
rolando. O guarda de segurança, um sujeito barrigudo e pálido com um
bigode hirsuto, apareceu com uma prancheta.
— Vocês precisam de alguma ajuda? — perguntou ele, sem realmente
querer uma resposta.
— Estamos com tudo pronto — falei. — Se você puder nos mostrar o
elevador de carga que vai até o telhado...
— Sem problema — disse ele.
Ficou ali parado com a sua prancheta — não parecia estar escrevendo
nada nela, mas a segurava daquele jeito apenas para que soubéssemos
quem mandava no pedaço — assistindo a nossa luta com o equipamento.
— Vocês conseguem realmente lavar as janelas quando está escuro? —
perguntou, ao nos conduzir para o elevador.
— Com os caras pagando o preço normal mais a metade a gente lava
melhor quando está escuro — disse Seth.
— Não sei por que não gostam que a gente olhe para suas salas quando
estão trabalhando — falei.
— É, essa é a nossa maior fonte de diversão — disse Seth. — -
Apavorar as pessoas. Provocar um ataque do coração nos burocratas.
O segurança riu.
— Basta apertar o T de telhado — disse. — Se a porta de acesso ao
telhado estiver trancada, deve ter um cara lá em cima, acho que é o Oscar.
— Legal — falei.
Quando chegamos ao telhado, eu me lembrei por que odiava lavar
janelas em andares altos. A sede da Trion ficava em um prédio de apenas
oito andares, pouco mais de trinta metros, mas lá em cima, no meio da
noite, era como se fosse o Empire State. O vento fustigava de todos os
lados, era frio e úmido e ouvia-se ao longe o barulho do tráfego, mesmo
àquela hora da noite.
O guarda de segurança, Oscar Fernandez (segundo seu crachá), era um
sujeito baixo, com um uniforme azul-marinho e um rádio
transmissor/receptor preso no cinto, emitindo o tempo todo estática e
vozes distorcidas. Ele veio se encontrar conosco no elevador de carga,
mudando o peso desajeitadamente de um pé para o outro enquanto
descarregávamos nossos bagulhos, e depois nos mostrou a escada de
acesso ao telhado.
Subimos os degraus atrás dele que, enquanto abria a porta, disse:
— É, eu soube que vocês vinham, mas fiquei espantado. Não sabia que
trabalhavam tão cedo.
Não pareceu desconfiado; parecia estar apenas querendo bater papo.
Seth repetiu seu comentário sobre ganhar uma vez e meia o salário
normal para trabalhar de noite e nós apresentamos de novo o nosso diálogo
sobre provocar ataques do coração nos burocratas, e ele também riu. Disse
que achava que fazia sentido as pessoas não gostarem que atrapalhássemos
seu trabalho durante as horas normais do expediente. Parecíamos
lavadores de janelas, tínhamos todo o equipamento e uniformes, e quem
mais seria louco o bastante para subir no telhado de um edifício com oito
andares carregando toda aquela tralha?
— Bem, de qualquer maneira só trabalhei de noite aqui umas duas
semanas — disse ele. — Vocês já estiveram aqui no prédio antes? Sabem
onde tudo se encontra?
Respondemos que ainda não tínhamos trabalhado no prédio e ele,
então, nos mostrou o básico — tomadas de força, registros de água,
âncoras de segurança. Todos os edifícios construídos recentemente eram
obrigados a ter âncoras de segurança no telhado montadas a cada três ou
quatro metros, a cerca de dois metros da borda lateral, âncoras essas fortes
o bastante para suportar uma carga de duas toneladas e meia. Essas
âncoras geralmente lembram canos de ventilação, só que com uma barra
de ferro em forma de U em cima.
Oscar interessou-se um pouco demais em como nós instalávamos
nosso equipamento. Ficou por perto, observando a gente prender os
mosquetões de aço. A corda de escalada, uma corda de náilon kernmantle
com mais de um centímetro de grossura, passava por eles e era conectada
às âncoras de segurança.
— Legal — disse ele. — Vocês provavelmente são alpinistas nas horas
de folga, hein?
Seth olhou para mim e disse:
— Você funciona como guarda de segurança nas suas folgas?
— De jeito nenhum — disse ele, e soltou uma risada. — Eu só quis
dizer que vocês devem gostar de subir em locais altos e coisas assim. Isso
me mataria de medo.
— Você acaba se acostumando — garanti.
Cada um de nós tinha duas cordas separadas, uma para ir descendo por
ela, a outra para servir de segurança, para o caso da primeira partir. Eu
queria fazer tudo direito, e não só pela questão da aparência. Nenhum de
nós estava a fim de morrer por cair de cima do prédio da Trion. Durante
dois desagradáveis verões em que trabalhamos para a companhia de
lavagem de janelas ouvíamos sempre que a média de fatalidades da
indústria era dez por ano, só que nunca nos disseram se eram dez no
mundo, no estado ou o quê, e nós nunca perguntamos tampouco.
Eu sabia que o que estávamos fazendo era perigoso. Só não sabia de
onde viria o perigo.
Depois de mais ou menos uns cinco minutos, Oscar finalmente ficou
entediado, principalmente porque paramos de lhe dirigir a palavra, e ele
voltou ao seu posto.
A corda de escalada fica presa numa coisa chamada Sky Genie, uma
espécie de tubo de metal comprido dentro do qual há uma haste de
alumínio forjado em que você enrola a corda. O Sky Genie — adoro esse
nome, gênio do céu — é um mecanismo de controle da descida que
funciona pela fricção e vai libertando a corda lentamente.
Aqueles Sky Genies estavam arranhados e pareciam já ter sido usados.
Levantei um deles e perguntei: — Você não podia ter comprado novos?
— Ei, eles vieram com o furgão, o que é que você queria? Está
preocupado com o quê? Esses bichinhos sustentam dois mil e quinhentos
quilos. A propósito, acho que você ganhou uns quilinhos nos últimos
meses.
— Vá se foder.
— Você jantou? Espero que não.
— Isto não é engraçado. Você algum dia leu a etiqueta de advertência
que vem nesse troço?
— Eu sei, o uso impróprio pode causar sérios ferimentos ou mesmo a
morte. Não ligue para isso. Você provavelmente também vai sentir medo
se remover etiquetas de colchões.
— Gosto do slogan — "Gênio do Céu — deposita você na terra". Seth
nem pareceu me ouvir.
— Oito andares não é nada, cara — disse ele. — Lembra do tempo em
que lavamos as janelas do Centro Cívico...
— Não me lembre — interrompi. Eu não queria passar por covarde,
mas também não estava sintonizado na sua onda de humor negro, não ali,
de pé no telhado do prédio da Trion.
O Sky Genie fica enganchado no equipamento de segurança de náilon
que é preso a um cinturão e a uma tábua acolchoada. Tudo no ramo da
lavagem de janelas tem nome em que aparece a palavra "segurança" ou a
expressão "proteção contra quedas", o que faz com que você lembre que,
se alguma coisa sair minimamente errada, você estará ferrado.
A única coisa que usávamos ligeiramente fora do comum era um par
de ascensores Jumar, com que poderíamos subir. A maior parte do tempo
quando você está lavando janelas não há razão para subir — você vai
trabalhando de cima para baixo até chegar ao chão.
Mas eles representariam nossa possibilidade de fuga.
Seth montou o guincho elétrico em uma das âncoras do telhado com
um anel em D e ligou-o numa tomada. Era um modelo de cento e quinze
volts com uma polia com capacidade de erguer quinhentos quilos. Depois,
ele conectou o guincho a cada uma de nossas linhas, verificando a
existência de folga suficiente para não nos impedir de descer.
Puxei a corda com força, para verificar se tudo estava bem preso, e nós
dois fomos até a beirada do telhado para dar uma espiada. Depois nos
entreolhamos, e Seth deu um sorriso como se me perguntasse que-porra-é-
essa-que-estamos-fazendo-aqui.
— Já estamos nos divertindo? — perguntou ele.
— Oh, sem dúvida.
— Está pronto, companheiro?
— Tão pronto — respondi — quanto Elliot Krause no toalete portátil.
Nenhum de nós riu. Galgamos a amurada lentamente e passamos para
o outro lado.
85
Tivemos que descer apenas dois andares na base do rapel, mas não foi
fácil. Estávamos ambos destreinados, carregávamos ferramentas pesadas e
tínhamos que ser extremamente cuidadosos para não balançar demais nem
para um lado nem para o outro. Havia câmeras de vigilância em circuito
fechado de TV montadas na fachada do prédio: Eu sabia, graças às plantas,
exatamente onde estavam montadas. Conhecia também as especificações
das câmeras, tamanho das lentes, distância focal e tudo mais.
Em outras palavras, eu sabia onde ficavam os pontos cegos.
E estávamos descendo por um deles. Eu não estava preocupado que a
segurança do prédio nos visse descendo pela fachada lateral, já que eles
estavam esperando lavadores de vidraças de manhã bem cedo. Minha
preocupação era que, se alguém olhasse, percebesse que, na verdade, não
estávamos lavando nada. Essa pessoa nos veria descendo, devagar e com
segurança, direto até o quinto andar. E também veria que não nos
posicionávamos em frente a uma janela.
Estávamos pendurados diante de uma grade de ventilação de aço.
Desde que não balançássemos demais em uma direção ou outra,
estaríamos fora do alcance da câmera. Isso era importante.
Firmando nossos pés contra um peitoril, pegamos nossas ferramentas
elétricas e demos início ao trabalho com os parafusos hexagonais. Eles
estavam bem fixados passando pelo aço e entrando no concreto, e havia
muitos. Seth e eu trabalhamos em silêncio, o suor escorrendo pelos nossos
rostos. Era possível que alguém que passasse por perto, um guarda de
segurança ou quem quer que fosse, nos visse removendo os parafusos que
fixavam a grade de ventilação e ficasse curioso. Lavadores de janelas
trabalham com rodos e baldes, não com ferramentas elétricas de impacto
sem fio.
Àquela hora da manhã, no entanto, não havia muita gente andando por
ali. E quem quer que por acaso nos visse provavelmente ia imaginar que
estávamos fazendo manutenção de rotina.
Pelo menos era o que eu esperava.
Gastamos uns bons quinze minutos para soltar e remover cada
parafuso. Alguns deles estavam tão enferrujados que exigiram um jato de
WD-40.
Aí então, a um sinal meu, Seth afrouxou o último parafuso e nós dois
levantamos a grade cuidadosamente para longe do revestimento de aço do
prédio. Era superpesada, um trabalho no mínimo para dois homens.
Tínhamos que pegá-la pelas bordas afiadas — por sorte eu trouxera luvas,
um par para cada um de nós — e incliná-la de modo que descansasse no
peitoril da janela. Uma vez atingido este ponto, Seth apoiou-se nela e
conseguiu balançar as pernas para dentro da sala. Ele caiu no chão da sala
de equipamento mecânico com um gemido.
— Sua vez — disse ele. — Cuidado.
Apoiado na grade, joguei as pernas para dentro do túnel de ventilação e
caí no chão, olhando rapidamente à minha volta.
A sala era entulhada de equipamentos imensos e barulhentos, quase
todos escuros, iluminados apenas pela luz distante dos projetores
montados no teto. Ali dentro, havia todo tipo de máquina de aquecimento,
ventilação e ar-condicionado — bombas de aquecimento, ventiladores
centrífugos, imensos refrigeradores e compressores, além de outros
equipamentos de filtragem e condicionamento do ar.
Ficamos por algum tempo parados ali, presos aos nossos
equipamentos, ainda ligados às cordas duplas, que balançavam através do
túnel de ventilação, até que soltamos os cintos. Obviamente não podíamos
deixar aquilo tudo solto no ar, mas tínhamos providenciado uma solução.
Seth puxou um controle remoto de abrir porta de garagem, um aparelho
pequeno e preto, e apertou o botão. Mesmo de onde estávamos, pudemos
ouvir o barulho do motor elétrico, ao mesmo tempo que víamos as cordas
e o nosso equipamento começando a subir lentamente, puxados pela polia.
— Espero que possamos trazer tudo de volta quando precisarmos —
disse Seth, que eu mal pude ouvir, por causa do barulho de fundo
ensurdecedor.
Não pude deixar de pensar que aquilo tudo era pouco mais que uma
brincadeira para Seth. Se ele fosse apanhado, não teria grande importância.
Ele estaria bem.
Era eu quem ia me meter numa merda de fazer gosto.
Em seguida puxamos a grade para que, do lado de fora, ela parecesse
estar no lugar certo. Depois peguei um pedaço extra da corda de náilon,
passei através dos suportes e amarrei a outra ponta em um cano vertical,
para amarrá-la.
A sala ficara escura de novo e tive que pegar minha lanterna e acender.
Aproximei-me da porta de aço que parecia ser muito pesada e
experimentei a alavanca.
Ela abriu. Eu sabia que as portas das salas de equipamentos mecânicos
têm de ser destrancadas pelo lado de dentro, a fim de que ninguém possa
ficar preso sem querer, mas, ainda assim, foi um alívio saber que
podíamos sair.
Nesse meio tempo, Seth pegou um par de walkie-talkies Motorola e
me passou um. Depois retirou do estojo um rádio compacto preto de ondas
curtas, que captava a frequência da polícia, com trezentos canais.
— Você se lembra da frequência da segurança? Alguma coisa em torno
dos quatrocentos UHF, não era?
Peguei um caderninho espiral de notas, no bolso da minha camisa, e li
o número da frequência. Seth começou a digitá-lo, e eu desdobrei a planta
baixa do andar para estudar minha rota.
Eu me sentia ainda mais nervoso agora do que quando estava do lado
de fora do prédio. Tínhamos formulado um plano bastante sólido, mas um
número muito grande de coisas podia sair errado.
Para começar, podia haver gente no meu caminho, mesmo assim tão
cedo. AURORA tinha prioridade máxima na programação da Trion, e sua
data final seria apenas dali a dois dias. Engenheiros costumam trabalhar
em horas estranhas. Às cinco da manhã provavelmente não deveria haver
ninguém, mas nunca se sabe. Melhor permanecer com o uniforme de
lavador de vidraças, carregando um balde e um rodo — o pessoal da faxina
sempre é invisível. Não seria provável que alguém me parasse para
perguntar o que eu estava fazendo ali.
Havia também a horrível possibilidade de esbarrar em alguém que me
reconhecesse. A Trion tinha dezenas de milhares de empregados e eu já
conhecera, não sei, talvez uns cinquenta. Por tanto, as chances me eram
favoráveis. Principalmente às cinco da manhã. Ainda assim... Por isso eu
trouxera um capacete amarelo, muito embora lavadores de janelas nunca
os usem. Enterrei o capacete na cabeça e completei a obra com um par de
óculos de segurança.
Uma vez do lado de fora da pequena sala escura, eu teria que percorrer
muitos metros de corredor com as câmeras de segurança apontadas para
mim o tempo todo.
Claro, havia uma dupla de caras da segurança no centro de comando
instalado no porão, mas eles tinham que olhar para dúzias de monitores, e
provavelmente estariam assistindo à televisão, tomando café e contando
lorotas. Eu não achava que alguém fosse prestar muita atenção em mim.
Isso até eu chegar à Instalação de Segurança C, onde a coisa ia ficar
definitivamente complicada.
— Peguei — disse Seth olhando fixamente para o painel do rádio. —
Acabo de ouvir "Segurança da Trion" e alguma outra coisa Trion.
— Ok — falei. — Continue ouvindo e me avise se houver algo que eu
deva saber.
— Quanto tempo você calcula que vai durar?
Contive a respiração.
— Pode ser meia hora. Ou dez minutos. Depende do andamento das
coisas.
— Tenha cuidado, Cas.
Balancei a cabeça.
— Espere — ele tinha visto um grande balde amarelo sobre rodas, da
limpeza, e o rolou na minha direção —, leve este balde.
— Boa ideia.
Olhei por um instante para o meu velho amigo, querendo dizer algo
como "deseje-me sorte", mas concluí que ia parecer muito nervoso e
piegas. Em vez disso, levantei o polegar, como se eu estivesse calmo
apesar de tudo aquilo.
— Vejo você aqui — falei.
— Ei, não se esquece de ligar o rádio — disse ele, apontando meu
Motorola.
Sacudi a cabeça ante o meu esquecimento e sorri.
Abri a porta lentamente, dei uma olhada, não vi ninguém e saí,
fechando a porta atrás de mim.
86
Quinze metros adiante, havia uma câmera de segurança montada na
parede, perto do teto. E sua minúscula lâmpada vermelha piscava.
Wyatt disse que eu era um bom ator, e agora eu realmente precisava
ser. Precisava parecer à vontade, um tanto entediado, ocupado e, acima de
tudo, calmo. O que exigia uma certa capacidade de representar.
Continue assistindo ao canal meteorológico ou seja o que for que
esteja vendo agora, desejei mentalmente, com o pensamento em quem
estivesse no centro de comando.
Beba o seu café, coma seus donuts. Discuta futebol ou basquete. Não
preste atenção ao homem atrás da cortina.
Minhas botas de trabalho rinchavam baixinho enquanto eu descia o
corredor acarpetado, empurrando o balde sobre rodas. Ninguém por perto.
Um alívio.
Não, pensei, na verdade seria melhor se houvesse gente andando por
perto. Tirava o foco de cima de mim. É, talvez. É melhor aceitar as coisas
como são. Tomara que ninguém pergunte aonde estou indo.
Virei numa área grande com uma fazenda de cubículos. Exceto por
algumas luzes de emergência, tudo às escuras.
Empurrando o balde por um corredor bem no meio da sala, pude ver
mais câmeras de segurança. As placas nos cubículos, os pôsteres estranhos
e sem graça, tudo indicava que eram engenheiros que trabalhavam ali. Em
uma prateleira acima de um dos cubículos, havia uma boneca Love Me
Lucille, olhando com malevolência para mim.
Só eu estou fazendo meu trabalho, lembrei a mim mesmo.
Do outro lado daquela área aberta, eu sabia — por ter visto no mapa —
que um corredorzinho dava diretamente na metade fechada do andar. Um
cartaz na parede (INSTALAÇÃO DE SEGURANÇA C — ADMISSÃO APENAS DO
PESSOAL AUTORIZADO, e uma seta) confirmaram o que eu pensava.
Aquilo ia ser muito mais mole do que eu esperara. Claro que havia
sensores de movimento e câmeras de vigilância espalhados em toda a
volta da entrada da área.
Mas se o telefonema que eu dera para a segurança na véspera tivesse
funcionado, os sensores de movimento estariam desligados.
Evidentemente, eu não podia ter certeza disso. Saberia em poucos
segundos, quando chegasse mais perto.
As câmeras quase certamente estariam funcionando, mas eu tinha um
plano para isso.
De repente um barulho alto me assustou, um trinado agudo produzido
pelo meu Motorola.
— Jesus — murmurei, o coração disparado.
— Adam — veio a voz de Seth, ofegante.
Comprimi o botão do lado do aparelho para falar:
— Eu.
— Temos um problema.
— Como assim?
— Volte aqui.
— Por quê?
— Volte aqui, porra!
Que merda.
Dei meia-volta, larguei o balde e comecei a correr até que me lembrei
de que estava sendo observado. Obriguei-me a caminhar lentamente. O
que diabo poderia ter acontecido? Será que as cordas nos denunciaram? A
grade de ventilação teria caído? Ou alguém teria entrado na sala dos
aparelhos e encontrado Seth?
O caminho de volta levou uma eternidade. A porta de uma sala logo à
minha frente abriu-se e por ela saiu um homem de meia-idade. Vestia uma
calça marrom de malha dupla de poliéster e uma camisa amarela de manga
curta. Devia ser um engenheiro mecânico veterano. Ou tinha começado a
trabalhar muito cedo ou talvez tivesse passado a noite toda em claro. Ele
me deu uma espiada e depois olhou para o carpete sem dizer nada.
Eu era um faxineiro. Eu era invisível.
Mais de vinte câmeras de vigilância tinham capturado minha imagem,
mas eu não ia atrair a atenção de ninguém. Eu era um cara da limpeza, um
sujeito da manutenção.
Devia mesmo estar ali onde estava. Ninguém me olharia duas vezes.
Cheguei finalmente à sala dos aparelhos onde Seth ficara. Parei diante
da porta, atento para ouvir vozes, preparado para sair correndo se fosse
preciso, se alguém estivesse lá dentro com Seth, mesmo que eu não
quisesse deixá-lo ali. A única coisa que ouvi foi o rádio que pegava a
frequência da polícia, mais nada.
Abri a porta com um empurrão. Seth estava em pé logo do outro lado,
com o rádio perto do ouvido.
Ele parecia em pânico.
— Temos que dar o fora daqui — murmurou.
— O que...
— O cara do telhado. No sétimo andar, aliás. O cara da segurança que
nos levou ao telhado.
— O que é que tem ele?
— Deve ter voltado ao telhado. Por curiosidade, qualquer coisa. Olhou
para baixo, não nos viu. Viu as cordas e os equipamentos e não viu os
lavadores de janelas. Entrou em pânico. Não sei, deve ter ficado com medo
de que tivesse acontecido alguma coisa conosco, quem sabe.
— O quê?
— Escute!
No meio da confusão que saía do rádio da polícia, entendi quatro
palavras:
— Andar por andar, câmbio!
E, em seguida:
— Unidade Bravo, cadê você?
— Aqui Bravo, câmbio.
— Bravo, suspeita de entrada ilegal no prédio, ala D. Aparentemente
lavadores de janelas... equipamento abandonado no telhado, nenhum sinal
dos operários. Quero uma busca andar por andar de todo o prédio. Isto é
um Código Dois. Bravo, seus homens cobrem o primeiro andar, câmbio.
— Entendido.
Olhei para Seth.
— Acho que Código Dois significa urgente.
— Eles estão vasculhando o prédio — murmurou Seth, sua voz
escassamente audível sobre o ronco das máquinas. — Temos que dar o
fora desta merda!
— Como? — sussurrei de volta. — Não podemos lançar as cordas,
mesmo que elas ainda estivessem nos respectivos lugares! E com certeza
absoluta não conseguiremos passar pela segurança deste andar!
— O que diabos nós vamos fazer?
Inalei fundo, exalei, tentei pensar com clareza. Tive vontade de fumar
um cigarro.
— Está certo. Encontre um computador, qualquer computador. Entre
na página de procedimentos de segurança da companhia, veja onde são os
pontos de saída. Estou falando de elevadores de carga, escadas de
incêndio, o que for. Qualquer jeito de sairmos daqui, mesmo que tenhamos
que pular.
— Eu? E o que é que você vai fazer?
— Vou voltar lá.
— O quê? Você está querendo me sacanear. Este prédio está pululando
de guardas de segurança, seu débil mental!
— Eles não sabem onde nós estamos. Tudo o que sabem é que há
alguém na ala D — que tem sete andares.
— Jesus, Adam!
— Nunca mais terei esta chance — falei, correndo para a porta. Sacudi
meu Motorola Talkabout para ele.
— Diga-me quando encontrar uma saída. Vou para a Instalação de
Segurança C. Vou pegar aquilo que nós viemos buscar.
87
Não corra.
Eu tinha que ficar me lembrando a toda hora para não correr. Fique
calmo. Segui pelo corredor tentando parecer blasé, quando, na verdade,
minha cabeça estava prestes a explodir. Não olhe para as câmeras.
Estava a meio caminho da grande área aberta com cubículos quando
meu walkie-talkie chamou, dois rápidos toques. — hein?
— Escuta, cara, estão me pedindo uma identificação. O computador,
para entrar na página da segurança.
— Que merda, sim, claro.
— Quer que eu me identifique como você?
— Meu Deus, do céu, não! Use... — Peguei o bloquinho de espiral. —
Use CPierson — soletrei para ele enquanto continuava a andar.
— Senha? Tem uma senha?
— MJ vinte e três — li.
— MJ...?
— Deve ser por causa do Michael Jordan.
— Oh, certo, certo. Vinte e três é o número do Michael Jordan. Esse
cara é um desses jogadores infernais de basquete?
Por que Seth estaria tagarelando sem parar? Ele devia estar
completamente apavorado.
— Não — falei, distraído, quando entrei na área dos cubículos. Tirei o
capacete amarelo e os óculos de segurança, de que não precisava mais, e
guardei debaixo de uma mesa ao passar. — Não, é só arrogante, como o
Michael Jordan. Ambos pensam que são os melhores. E só um deles está
certo.
— Tudo bem, já entrei — disse ele. — Você falou na página da
segurança, não foi?
— Procedimentos de segurança da companhia. Veja o que consegue
encontrar sobre a plataforma de carga, se é possível ter acesso a ela usando
o elevador de carga.
Pode ser que seja a nossa melhor rota de fuga. Preciso ir.
— Anda depressa — disse ele.
Diante de mim havia uma porta de aço pintada de cinza com uma
janelinha em forma de losango reforçada por uma grade de arame. Um
cartaz na porta dizia SOMENTE PESSOAL AUTORIZADO.
Aproximei-me lentamente, meio de lado, e olhei pela janelinha. Do
outro lado havia uma sala de espera pequena e de aparência industrial. O
piso era de concreto.
Contei duas câmeras de circuito fechado de televisão montadas bem
alto na parede, perto do teto. Com as luzes vermelhas piscando. Estavam
ligadas. Vi também os dois pequenos botões brancos em cada canto da
sala: deviam ser os detectores de movimentos que funcionavam com raios
infravermelhos. Não havia, contudo, luzinhas de LED acesas nos sensores
de movimento, pensei. Não tinha certeza, mas podiam estar desligadas.
Podia ser que a segurança tivesse mesmo desligado os sensores por
algumas horas.
Com uma das mãos eu segurava uma prancheta, tentando parecer
oficial, como se estivesse obedecendo a instruções escritas. Com a outra
mão, tentei a maçaneta.
Estava trancada. Montado na parede à esquerda da moldura da porta
havia um pequeno sensor de proximidade, exatamente como os demais que
podiam ser vistos em todo o prédio. Será que o cartão de Alana o abriria?
Peguei a cópia que eu fizera e agitei-a diante do sensor, torcendo para que
a luz vermelha passasse a verde.
Aí ouvi uma voz.
— Ei, você!
Virei-me lentamente. Um guarda de segurança da Trion corria na
minha direção, com outro guarda imediatamente atrás.
— Imóvel! — gritou o primeiro homem.
Puxa vida, que merda! Meu coração pulava dentro do peito. Apanhado.
E agora, Adam?
Olhei para os guardas, minha expressão passando de assustada para
arrogante. Respirei fundo. E, falando baixo, perguntei:
— Já encontrou?
— Hein? — perguntou o primeiro guarda, parando.
— O seu maldito intruso! — respondi, minha voz mais alta. — O
alarme tocou cinco minutos atrás e vocês ainda estão correndo por aí de
um lado para o outro como idiotas, coçando os rabos!
Você pode fazer isso, eu disse a mim mesmo. Isso é o que você sabe
fazer.
— Senhor? — exclamou o segundo guarda. Os dois ficaram imóveis,
olhando para mim, perplexos.
— Seus débeis mentais, vocês têm ideia de onde foi o ponto de
entrada? — Eu gritava como um sargento dando instruções. — Vocês
acham que nós poderíamos ter facilitado as coisas para vocês? Pelo amor
de Deus, primeiro façam uma verificação no perímetro exterior, essa é a
primeira coisa. Página vinte e três do maldito manual! Façam isso e
encontrarão uma grade de ventilação fora do lugar.
— Grade de ventilação? — indagou o primeiro.
— Vamos ter que pintar com tinta fluorescente a nossa trilha?
Deveríamos ter dado a vocês convites para uma auditoria de surpresa de
segurança Bendix? Realizamos este exercício em três áreas deste prédio na
semana passada, e vocês são o pior bando de amadores que já vi.
Peguei a prancheta e a caneta presa nela e comecei a escrever.
— Ok, quero nomes e números de matrícula, os números que estão nos
crachás. Vocês! — os dois guardas tinham começado a bater em retirada,
retraindo lentamente. — Voltem aqui para perto de mim, porra! Pensam
que segurança da corporação é só ficar comendo Krispy Kremes? Cabeças
vão rolar, prometo a vocês, quando entregarmos o nosso relatório.
— McNamara — disse o segundo guarda, relutantemente.
— Valenti — informou o primeiro.
Escrevi os dois nomes.
— Números do crachá? Puxa vida, Cristo meu — olha só, um de vocês
abra esta maldita porta e depois os dois deem o fora.
O primeiro se aproximou do leitor de cartões e balançou o cartão de
identidade na frente dele. Ouviu-se um clique e a luz virou verde.
Eu estava sacudindo a cabeça com uma expressão de nojo quando abri
a porta. Os dois guardas se viraram e começaram a percorrer o corredor.
Ouvi o primeiro dizer para o outro, emburrado:
— Vou entrar em contato com o despachante agora mesmo. Não estou
gostando nem um pouco de nada disso.
Com o coração batendo com tanta força que todo mundo devia estar
ouvindo, eu tinha conseguido abrir caminho à base de mentiras, mas sabia
que tudo o que conseguira fora comprar dois minutinhos. Os guardas
entrariam em contato com o despachante que os controlava e descobririam
imediatamente a verdade. Não havia nenhuma "auditoria de surpresa de
segurança" sendo levada a efeito. E voltariam para se vingar.
Observei o sensor de movimento montado no alto da parede do
pequeno vestíbulo, esperando ver uma luz acender, mas não houve nada.
Quando os sensores de movimento são ligados eles disparam as
câmeras e as orientam na direção de qualquer objeto semovente. Só que os
sensores estavam desligados. O que significava que as câmeras não se
moveriam. Engraçado. Meacham e seu cara tinham me treinado para
vencer sistemas de segurança muito mais sofisticados. Talvez Meacham
tivesse razão — esquece os filmes, na vida real a segurança das
corporações sempre tende a ser mais primitiva.
Agora eu podia entrar no pequeno saguão sem ser visto pelas câmeras,
que ficavam apontadas para a porta que abria diretamente dentro da
Instalação de Segurança C. Dei alguns passos experimentais para dentro,
colando as costas na parede. Andei de lado furtivamente para cima de uma
das câmeras, vindo de trás. Eu estava no ponto cego da câmera, sabia
disso. Ela não podia me ver.
Foi então que o Talkabout Motorola gritou de volta à vida.
— Dê o fora daqui! — guinchou a voz de Seth. — Todos já receberam
ordens de se dirigir para o quinto andar. Acabo de ouvir!
— Não posso, estou quase lá dentro! — gritei de volta.
— Mexa-se! Jesus do céu, dê o fora daí!
— Não... não posso! Ainda não!
— Cassidy...
— Seth, vê se me escuta. Você tem que dar o fora daqui do prédio...
escadas, elevador de carga, o que for. Espere por mim no furgão do lado de
fora.
— Cassidy...
— Vai! — berrei e desliguei o rádio.
Uma explosão sonora me sacudiu — um hoo-ah gutural e mecânico
trombeteado por uma buzina de alarme em algum ponto muito próximo.
Agora o quê? Eu não podia parar ali, a tão poucos metros da entrada do
projeto AURORA! Não assim tão perto!
O alarme continuou, hoo-ah, hoo-ah, ensurdecedoramente alto, como
uma sirene de ataque aéreo.
Puxei uma lata de spray que trouxera num dos bolsos do macacão...
uma lata de Pam, aquele aerossol de óleo de cozinha — levantei na direção
da câmera e apertei o gatilho, recobrindo a lente de óleo. Dava para ver a
mancha em cima da lente. Feito.
A sirene continuou a berrar.
Agora a câmera estava cega, seu sistema ótico derrotado — mas não de
um modo que obrigatoriamente chamasse a atenção. Quem quer que
estivesse olhando a televisão veria a imagem subitamente ficar borrada.
Talvez culpassem o upgrade da rede interna de que tinham sido avisados.
A imagem borrada provavelmente não chamaria muita atenção numa
bancada de monitores de TV. Era essa a ideia, de qualquer modo.
Agora, porém, o planejamento cuidadoso que eu formulara parecia
quase inútil, porque eles estavam vindo, eu podia ouvi-los. Os mesmos
guardas que eu acabara e tapear? Outros? Eu não tinha ideia, claro, mas
eles estavam vindo.
Talvez eu ainda conseguisse.
Se me apressasse. Uma vez dentro do laboratório do AURORA, eles
provavelmente não iriam atrás de mim, ou pelo menos não seria tão fácil.
A menos que dispusessem de algum tipo de autorização para passar por
cima de tudo, o que parecia improvável.
Talvez nem soubessem que eu estava ali.
Quer dizer, se eu conseguisse entrar.
Circulei a saleta, mantendo-me fora do alcance da câmera até chegar
diante da outra. Parado em um ponto cego, estiquei-me e espalhei mais um
pouco de óleo na lente.
Agora a Segurança não poderia me ver com a ajuda dos monitores, não
poderiam ver o que eu estava prestes a tentar. Quase. Mais alguns
segundos — eu esperava — e estaria no interior do AURORA.
Sair seria outra história. Eu sabia que havia um elevador de carga ali
perto, elevador esse que não podia ser acessado pelo lado de fora. Será que
o crachá de Alana o ativaria? Eu com certeza esperava que sim. Era minha
única oportunidade.
Droga, eu mal podia pensar direito com aquela sirene tocando, as
vozes ficando cada vez mais altas, os passos mais próximos. Minha mente
disparou loucamente.
Será que os guardas de segurança teriam conhecimento da existência
do AURORA? Qual era o nível do sigilo com que aquele segredo fora
guardado? Se não soubessem do AURORA talvez não conseguissem
entender o que eu queria. Podia ser que estivessem percorrendo os
corredores, numa espécie de busca louca e descoordenada, à procura do
segundo intruso.
Montado na parede, imediatamente à esquerda de uma reluzente porta
de aço, havia uma caixinha bege: um aparelho Identix para identificação
de digitais.
Do bolso da frente do macacão, tirei o estojo de plástico claro e de
dentro dele removi, com os dedos trêmulos, a fita com a impressão do
polegar de Alana, com suas espirais capturadas em trações de pó de
grafite.
Comprimi gentilmente a fita sobre o scanner, no local onde
normalmente a pessoa colocaria o polegar, e esperei que o LED trocasse de
vermelho para verde.
E nada aconteceu.
Não, por favor, meu Deus, pensei desesperado, meu cérebro
desorientado pelo terror e pelo insuportavelmente alto hoo-ah do alarme.
Faça com que funcione. Por favor, Deus.
A luz continuou vermelha, teimosamente vermelha. Nada aconteceu.
Meacham me dera uma longa lição sobre como derrotar scanners
biométricos, e eu praticara um número incontável de vezes até me
convencer de que já sabia. Alguns leitores eram mais difíceis de vencer
que outros, dependendo da tecnologia que usassem. Aquele era um dos
tipos mais comuns, com um sensor ótico interno. E o que eu devia fazer
costumava funcionar, segundo as estatísticas, noventa por cento das vezes
em que se tentasse. Em noventa por cento das vezes aquele maldito truque
funcionava!
Claro, há também os outros dez por cento, pensei, quando ouvi as
passadas estrondarem mais perto. Eles estavam próximos de mim, sem
dúvida. Talvez a poucos metros de distância, na fazenda dos cubículos.
Merda, não estava funcionando!
Quais eram os outros truques que tinham me ensinado?
Alguma coisa acerca de um saco plástico cheio de água... mas eu não
tinha nada parecido com um saco plástico comigo... Como era mesmo? As
impressões antigas permaneciam na superfície do sensor como impressões
em um espelho, o resíduo oleoso da pele de quem tinha sido admitido. As
impressões antigas podiam ser reativadas com umidade... Sim, parece
estrambótico, mas não mais que usar um pedaço de fita adesiva com uma
impressão digital colada nela. Inclinei-me, pus as mãos em concha em
torno do sensor e bafejei em cima. Meu bafo condensou imediatamente, ao
atingir o vidro. Desapareceu num segundo, mas demorou-se o suficiente...
Um bip, que soou quase como um chilrear de um passarinho. Um som
feliz.
Surgiu uma luz verde na caixa.
Eu passei. A umidade do meu bafo tinha ativado uma impressão velha.
Enganei o sensor.
A reluzente porta de aço que dava para a Instalação de Segurança C
deslizou lentamente sobre seus trilhos ao mesmo tempo que a outra porta
atrás de mim se abria, e eu ouvi:
— Pare aí!
E de novo:
— Pare aí!
Fiquei olhando fixamente para o imenso espaço que era a Instalação de
Segurança C, e não pude acreditar no que estava vendo. Meus olhos não
conseguiram fazer sentido do que viam.
Eu tinha que ter cometido um erro.
Aquele não podia ser o local certo.
Eu estava olhando para a área marcada como Instalação de Segurança
C. Esperava ver equipamentos de laboratórios e bancadas de microscópios
eletrônicos, salas limpíssimas, supercomputadores e rolos de cabos de
fibras óticas...
Em vez disso, o que vi foram paredes nuas de concreto, vigas de aço,
pó de gesso e restos de construção.
Um imenso espaço cujo conteúdo tinha sido removido. Não havia nada
aqui.
Onde estava o projeto AURORA? Eu estava no lugar certo, mas não
havia nada ali.
Só então me veio à cabeça um pensamento que fez o chão debaixo dos
meus pés ceder e balançar: haveria de fato um projeto AURORA, afinal de
contas?
— Não mexa um puto de um músculo! — alguém gritou atrás de mim.
Obedeci.
Não me virei para encarar os guardas. Fiquei imóvel. Eu não poderia
me mover mesmo se quisesse.
88
Boquiaberto e zonzo, eu me virei lentamente e vi um bando de
guardas, cinco ou seis, e, em meio deles, alguns rostos conhecidos. Dois
deles eram os caras que eu tinha posto para correr, que estavam de volta,
furiosos.
O guarda de segurança, o preto que me pegara na sala de Nora... qual
era mesmo o nome dele? O cara que tinha um Mustang? Estava apontando
uma pistola para mim.
— Senhor... Sr. Sommers? — ele indagou, espantado.
Ao lado dele, de jeans e camiseta que parecia ter vestido um segundo
atrás, o cabelo louro despenteado, estava Chad, com o telefone celular na
mão. Eu soube na mesma hora por que ele estava ali: devia ter tentado
entrar na rede, descobrira que já estava conectado e telefonara...
— É Cassidy o nome dele. Chame Goddard! — Chad berrou para o
guarda. — Chame a porra do diretor-presidente!
— Não, cara, não é assim que a gente trabalha — disse o guarda ainda
com a arma apontada para mim. — Recua!- ele gritou. Dois outros guardas
estavam se separando para cada um dos lados. — Não se telefona para o
presidente, cara. Você telefona para o diretor de segurança. Depois espera
a polícia. São as ordens que eu tenho.
— Ligue para a porra do presidente! — Chad gritou de novo,
balançando o celular. — Tenho aqui o número da casa dele. Não me
interessa que horas são. Quero que Goddard saiba o que o seu maldito
assistente executivo, esse vigarista de merda, fez!
Chad apertou uns botões no telefone e o levou ao ouvido.
— Seu panaca — disse ele para mim. — Você está completamente
fodido.
Passou-se longo tempo antes que alguém respondesse.
— Sr. Goddard — disse Chad, falando baixo, em tom respeitoso. —
Sinto muito ligar a esta hora da manhã, mas é extremamente importante.
Meu nome é Chad Pierson e eu trabalho na Trion.
Chad falou por mais alguns minutos e, lentamente, seu sorriso maligno
começou a desaparecer.
— Sim, senhor — disse ele.
Ele empurrou o telefone na minha direção, parecendo ter perdido o
entusiasmo.
— Ele disse que quer falar com você.
Parte Nove
MEDIDAS ATIVAS
Jock
Preciso falar. Quero explicar.
Adam
________________
1 Sammy Glick é o personagem principal do romance What Makes
Sammy Run? (1941), de Budd Schulberg's (1914), que narra a ascensão e
queda de Shmelka Glickstein, garoto judeu nascido no baixo East Side de
Nova York, que muito cedo na vida se decide a fugir do gueto e galgar a
ladeira do sucesso. (N. do T.)
92
Eu nunca vira nada parecido com a cobertura da ala A do prédio da
Trion.
Não tinha nada a ver com todo o resto da Trion — nada de escritórios
comprimidos ou cubículos apinhados, nada de carpete industrial
recobrindo todo o piso ou de luzes fluorescentes.
No lugar disso, havia um vasto espaço aberto com janelas que iam do
chão ao teto, através das quais rebrilhava a luz do sol. O piso era de
granito negro, havia tapetes orientais aqui e ali, as paredes eram revestidas
de um tipo qualquer de madeira tropical reluzente. O espaço era
interrompido por jardineiras, grupos de poltronas e sofás parecendo ter
sido projetados especialmente, e, bem no centro do salão, uma gigantesca
cascata livre — a água se lançava de alguma fonte oculta sobre as pedras
rosadas irregulares.
A Suíte Executiva de Recepções para receber visitas importantes:
ministros de Estado, senadores e congressistas, presidentes de grandes
corporações, chefes de Estado. Eu nunca a vira antes e não conhecia quem
tivesse visto, o que não era de admirar. Não parecia muito com o estilo
Trion. Não muito democrático. Dramático, intimidante, grandioso.
Uma mesinha redonda estava sendo posta na área entre a cascata e uma
lareira onde as chamas de gás rugiam em meio aos troncos de cerâmica.
Dois jovens latinos, um homem e uma mulher de uniforme marrom,
conversavam baixinho em espanhol enquanto arrumavam os bules de café
e de chá de prata, as cestas de folheados, jarras de suco de laranja. Mesa
para três.
Frustrado, olhei em torno, mas não havia ninguém mais. Ninguém
esperando por mim. De repente ouvi um bing e as portas de aço escovado
de um elevador de pequeno porte, situado no outro lado da sala, se
abriram.
Jock Goddard e Paul Camilletti.
Eles riam alto, ambos tontos, altos como pipas. Goddard me viu de
relance, parou no meio de uma risada e disse: — Bem, aqui está ele. Com
licença, Paul — você compreende.
Camilletti sorriu, deu uma palmadinha no ombro de Goddard e
permaneceu no elevador, enquanto o homem mais velho saía, as portas se
fechando atrás dele. Goddard atravessou o grande espaço aberto em
passadas tão largas que foi quase um trote.
— Me acompanhe até o banheiro, sim? — ele me disse. — Tenho que
me livrar desta maldita maquiagem.
Silenciosamente, segui-o até uma porta preta brilhante marcada com
pequenas silhuetas prateadas de um homem e uma mulher. As luzes se
acenderam quando entramos.
Era um aposento espaçoso, elegante, todo de vidro e mármore preto.
Goddard olhou-se no espelho. De algum modo, ele parecia mais alto.
Talvez fosse sua postura: não estava tão arqueado quanto o normal.
— Cristo, estou parecendo o Liberace — disse ele, fazendo espuma nas
mãos e começando a lavar o rosto. — Você nunca esteve aqui em cima, já?
Sacudi a cabeça, observando-o através do espelho a mergulhar o rosto
na direção da pia e levantar de novo. Sentia uma estranha mistura de
emoções — medo, raiva, choque — tão complexa que, na verdade, eu não
sabia o que sentia.
— Bem, você conhece o mundo dos negócios — ele prosseguiu. Era
quase como se pedisse desculpas. — A importância da teatralidade...
fausto, pompa e circunstância, toda essa droga. Eu dificilmente poderia ter
um encontro com o presidente da Rússia ou com o príncipe herdeiro da
Arábia Saudita em meu pobre cubículo lá de baixo.
— Parabéns — cumprimentei baixinho. — Foi uma manhã e tanto.
Ele passou a toalha no rosto.
— Mais teatro — disse, diminuindo o valor dos eventos.
— Você sabia que Wyatt ia comprar a Delphos, custasse o que custasse
— falei. — Mesmo que significasse a própria falência.
— Ele não podia resistir — confirmou Goddard. Ele jogou a toalha,
agora manchada de laranja escuro, em cima da bancada de mármore.
— Não — falei, percebendo que as batidas do meu coração
começavam a acelerar. — Não enquanto acreditasse que você estava
prestes a anunciar a grande e emocionante vitória tecnológica do chip
ótico. Mas nunca houve um chip ótico, houve?
Goddard sorriu seu sorriso de duende. Virou-se e eu o segui, saindo do
banheiro. Continuei falando: — Era este o motivo pelo qual não havia
pedido de registro de patentes, arquivos na divisão de recursos humanos...
— O chip ótico — disse Jock, quase disparando sobre os tapetes
orientais colocados entre nós e a mesa de jantar — existe apenas nas
mentes febris e nos cadernos de anotações de um punhado de profissionais
de terceira categoria de uma companhia minúscula situada em Palo Alto e
condenada à ruína. Correndo atrás de uma fantasia, que pode ou não
acontecer em dias de sua vida. Não na minha.
Ele sentou-se à mesa e fez um sinal para que eu me sentasse ao seu
lado.
Sentei-me, e os dois garçons uniformizados, que tinham se conservado
a uma distância discreta, adiantaram-se e nos serviram café. Eu me sentia
mais que assustado, furioso e confuso: eu estava profundamente exausto.
— Eles podem ser de terceira — falei —, mas você comprou a
companhia deles há mais de três anos.
Era, admito, uma simples conjectura — o principal investidor da
Delphos, de acordo com a pesquisa que eu fizera na Internet, era um fundo
de capital de risco baseado em Londres cujo dinheiro era canalizado por
intermédio de um mecanismo de investimento das Ilhas Caymán. O que
indicava que a Delphos, na verdade, era propriedade — não se levando em
conta cerca de cinco companhias que serviam de cobertura e diversos
"laranjas" — de uma empresa realmente importante.
— Você é um sujeito inteligente — disse Goddard, pegando um
pãozinho doce e atacando-o gulosamente. — A verdadeira cadeia de
propriedades é uma coisa muito difícil de se desvendar. Sirva-se de um
folheado, Adam. Esses negócios de framboesa, creme e queijo são de
matar.
Agora eu compreendia por que Paul Camilletti, um homem que cortava
todos os T e não esquecia do pingo de nenhum i, tinha convenientemente
se "esquecido" de assinar uma cláusula de proibição de venda na papelada.
Quando Wyatt viu isto, soube que tinha menos de vinte e quatro horas para
"roubar" a Delphos da Trion — sem tempo para conseguir a aprovação da
junta, o que provavelmente não teria mesmo acontecido.
Reparei na terceira cadeira vazia, e perguntei-me a quem estaria
destinada. Eu não tinha apetite, não tinha vontade de tomar café.
— Mas o único modo de fazer com que Wyatt engolisse o anzol —
falei — era a informação ter vindo de um espião que ele pensara ter
plantado dentro da Trion.
Minha voz tremia e agora o que eu sentia acima de tudo era raiva.
— Nick Wyatt é um homem muito desconfiado — disse Goddard. —
Eu o compreendo, sou igual. Ele é mais ou menos como a CIA — jamais
acredita em qualquer informação que não tenha sido obtida por intermédio
de um subterfúgio.
Tomei um gole de água, que estava tão gelada que fez minha garganta
doer. O único barulho no vasto espaço era o borbulhar e o espadanar da
cascata. A claridade machucava meus olhos. Eu me sentia animado ali
dentro, estranhamente animado. A garçonete aproximou-se com um jarro
de cristal para encher de novo meu copo de água, mas Goddard a
dispensou com um gesto.
— Muchas gracias. Vocês dois estão dispensados. Acho que temos
tudo o que precisamos aqui. Poderiam pedir aos outros convidados para se
juntar a nós, por favor?
— Não é a primeira vez que você faz isso, certo? — perguntei. —
Quem foi que me disse que sempre que a Trion esteve prestes a falir, um
de seus competidores cometia um erro desastroso e a Trion voltava mais
forte do que nunca?
Goddard me olhou de lado.
— A prática conduz à perfeição.
Minha cabeça boiava. Foi o resumé e a biografia de Paul Camilletti
que me deram a chave. Goddard o contratara tirando-o de uma companhia
chamada Celadon Data, que, na época, era a maior ameaça à existência da
Trion. Logo depois a Celadon cometeu uma gafe tecnológica lendária —
algo do tipo Betamax versus VHS — e pediu falência pouco antes da Trion
adquiri-la.
— Antes de mim, houve Camilletti — falei.
— E outros antes dele — Goddard tomou um gole de café. — Não,
você não foi o primeiro. Mas eu diria que foi o melhor.
O cumprimento doeu.
— Não entendo como você convenceu Wyatt de que a ideia de plantar
um espião na Trion podia dar certo — falei.
Goddard levantou os olhos quando o elevador chegou e as portas se
abriram, o mesmo elevador em que ele viera.
Judith Bolton. Meu coração parou.
Ela vestia um costume azul e blusa branca, e parecia muito enérgica e
muito integrante da alta direção da empresa. Seus lábios e unhas estavam
pintados de coral.
Ela se aproximou de Goddard e deu-lhe um rápido beijo nos lábios.
Depois veio para junto de mim e apertou minha mão com ambas as suas.
Deu para sentir seu suave perfume herbal e que estavam frias.
Judith sentou-se do outro lado de Goddard e desdobrou no colo um
guardanapo de linho.
— Adam está curioso para saber como você convenceu Wyatt — disse
Goddard.
— Oh, na verdade eu não tive que torcer o braço de Nick — disse ela,
com uma risada gutural.
— Você é muito mais sutil do que isso — disse Goddard.
Olhei para Judith.
— Por que eu? — perguntei, finalmente.
— Surpreende-me que você pergunte — disse ela. — Olhe só o que
fez. Você tem um dom natural. Nasceu para isso.
— Isso e o fato de vocês me terem prendido pelas bolas por causa do
dinheiro.
— Muita gente nas corporações faz o que você fez, Adam — disse ela,
inclinando-se na minha direção. — Tínhamos muitas escolhas, mas você
se destacou da multidão. Você era de longe o mais qualificado. O dom da
lisonja no tom perfeito, mais as questões do pai.
Senti-me tão furioso que não consegui continuar sentado. Levantei-me
e me virei para Goddard.
— Deixe que lhe pergunte uma coisa. O que acha que Elijah pensaria
de você agora?
Goddard me dirigiu um olhar inexpressivo.
— Elijah — repeti —, seu filho.
— Oh, meu Deus, certo, Elijah — disse Goddard, seu ar de
perplexidade lentamente se transformando em irônica alegria —, isso aí.
Certo. Bem, isso foi inspiração da Judith — ele deu uma risada.
Tive a impressão de que a sala rodava devagar e ficava cada vez mais
brilhante e com as cores mais esbranquiçadas. Goddard fitou-me com os
olhos cintilantes.
— Adam — disse Judith, toda preocupação e empatia —, sente-se, por
favor.
Permaneci em pé, olhar fixo.
— Estávamos preocupados — continuou ela — que você pudesse
começar a ficar desconfiado de tudo se resolvendo facilmente demais.
Você é um jovem extremamente intuitivo e inteligente. Tudo tinha que
fazer sentido, caso contrário começaria a mostrar do que realmente se
tratava. Não podíamos correr este risco.
Voltou-me à memória o estúdio de Goddard na casa do lago, os troféus
que eu agora sabia serem falsos. O talento de prestidigitador de Goddard, o
modo como o troféu de algum modo caíra no chão...
— Oh, você entende — disse Goddard —, o velho tem uma queda por
mim, eu faço com que se lembre do filho morto, todas essas bobagens?
Faz sentido, certo?
— Não se pode deixar essas coisas por conta do azar — falei, com a
voz inexpressiva.
— Precisamente — confirmou Goddard.
— Muito, mas muito poucas pessoas teriam sido capazes de fazer o
que você fez — disse Judith, sorrindo. — A maioria não teria sido capaz
de suportar a duplicidade e manter-se sobre uma linha dupla do modo
como você fez. Você é uma pessoa notável, espero que saiba disso. Foi por
isso que o escolhemos, antes de mais nada. E você mais que provou que
estávamos com a razão.
— Eu não acredito — murmurei. Senti as pernas bambas, os pés pouco
firmes. Tinha que dar o fora dali. — Não acredito em porra nenhuma
disso.
— Adam, eu sei como isso deve ser difícil para você — disse Judith,
gentilmente.
Minha cabeça latejava como uma ferida aberta.
— Vou tirar minhas coisas da sala.
— Não vai fazer nada disso — exclamou Goddard, incisivo. — Você
não vai se demitir. Não permitirei. Rapazes inteligentes como você são
raros demais. Preciso de você no sétimo andar.
Um raio de sol me cegou. Não consegui mais ver seus rostos.
— E você confia em mim? — perguntei, amargurado, mudando de
posição para tirar o sol da minha cara.
Goddard deixou escapar um suspiro.
— Espionagem industrial, ou entre empresas, meu rapaz, é tão
americana quanto torta de maçã e o Chevrolet. Porra, como é que você
acha que os Estados Unidos se tornaram uma superpotência econômica?
Em 1811, um ianque chamado Francis Lowell Cabot velejou para a Grã-
Bretanha e lá roubou o mais precioso segredo da Inglaterra: o tear
Cartright, pedra fundamental de toda a maldita indústria têxtil. Com isso,
ele trouxe a Revolução Industrial para cá e nos transformou num colosso.
Tudo graças a um único ato de espionagem industrial.
Eu me virei e comecei a atravessar o piso de granito. As solas de
borracha de minhas botas de trabalho rincharam.
— Chega de ser manobrado para todos os lados — falei.
— Adam — disse Goddard —, você está agindo como um perdedor
ressentido. Como seu pai. E você sabe que não é o seu caso... você é um
vencedor, Adam. Você é brilhante. Tem todas as qualidades necessárias.
Eu sorri e depois dei uma risada silenciosa.
— Querendo com isso dizer que sou um canalha mentiroso,
basicamente. Um mentiroso. Um mentiroso de primeira classe.
— Acredite em mim, você não fez nada que não seja feito todo dia em
corporações mundo afora. Olha, você tem um exemplar do Sun Tzu na sua
sala — chegou a ler? A guerra é baseada em simulações, fraudes, ardis, é o
que ele diz. E os negócios são uma guerra, todo mundo sabe disso. Os
negócios, em seu nível mais alto, não passam de estratagemas. Ninguém
vai admitir isso publicamente, mas é a verdade.
A voz dele abrandou.
— O jogo é o mesmo em toda parte. Você simplesmente tem que jogar
melhor que os outros. Não, Adam, você não é um mentiroso. Você é um
mestre estrategista de primeira qualidade.
Rolei os olhos para cima, sacudi a cabeça enojado e voltei a tomar a
direção do elevador.
Ouvi de novo a voz de Goddard, falando muito baixo.
— Você sabe quanto dinheiro Paul Camilletti ganhou no ano passado?
— Vinte e oito milhões — respondi, sem olhar para trás.
— Você poderia estar fazendo a mesma coisa em mais uns anos. Você
vale isso para mim, Adam. É realista e determinado, imaginativo e
inteligente pra cacete.
Bufei baixinho, mas não creio que ele tenha me ouvido.
— Eu já lhe disse quão grato fiquei a você por ter salvado o nosso
dinheiro no projeto Guru? Isso e mais uma dezena de coisas. Permita-me
ser específico sobre a minha gratidão. Estou lhe dando um aumento —
para um milhão por ano. Com as opções de compra de ações, tendo em
vista a valorização que nossas ações começam a ter, é bem possível que no
ano que vem você consiga lucrar cinco ou seis milhões. E dobrar isso no
ano seguinte. Você será multimilionário, Adam.
Fiquei imóvel. Não sabia o que fazer, como reagir. Se eu me virasse,
eles pensariam que eu estava aceitando. Se eu continuasse andando,
pensariam que eu estava recusando.
— Este é o círculo secreto do ouro — disse Judith. — Está lhe sendo
oferecido algo pelo qual qualquer pessoa seria capaz de matar. Mas
lembre-se: não lhe está sendo dado, você fez por merecer. Você é talhado
para essa linha de trabalho. Você é dos melhores que conheci no ramo.
Nesses últimos dois meses, sabe o que você esteve vendendo? Não
comunicadores portáteis, ou telefones celulares ou aparelhos de MP3, mas
você mesmo. Vendendo um produto chamado Adam Cassidy. E nós somos
compradores.
— Não estou à venda! — ouvi minha própria voz dizer, e me senti
instantaneamente envergonhado.
— Adam, vire-se — disse Goddard, irritado. — Vire-se, agora.
Obedeci, ressentido.
— Você sabe exatamente o que acontecerá se você for embora?
Sorri.
— Claro. Você vai me entregar. À polícia, ao FBI, ou sei lá.
— Não vou fazer nada disso — afirmou Goddard. — Não quero que
uma única palavra sobre isso venha a público. Mas sem seu carro, sem seu
apartamento, seu salário, você não terá recursos. Você não terá nada. Que
tipo de vida restará para um sujeito talentoso como você?
Eles são seus donos... Você dirige um carro da companhia, você mora
em um apartamento da companhia... A sua vida não é mais sua... Meu pai,
o relógio parado, estava certo.
Judith levantou-se e veio para bem perto de mim.
— Adam, eu compreendo o que está sentindo — disse, num murmúrio.
Tinha os olhos úmidos. — Você está magoado, está furioso. Sente-se
traído, manipulado. Quer retirar-se para a raiva protetora, segura e
reconfortante de um garotinho. É totalmente compreensível, nós todos nos
sentimos assim às vezes. Mas agora é hora de pôr de lado as coisas
infantis. Você compreende, você não caiu em nada. Você se encontrou. É
tudo muito bom, Adam. Muito bom.
Goddard estava reclinado em sua cadeira, braços cruzados. Eu podia
ver fragmentos do seu rosto refletidos no bule de prata do café, no
açucareiro.
Ele sorriu benevolente.
— Não jogue tudo fora, filho. Eu sei que você fará o que é certo.
93
Meu Porsche, apropriadamente, tinha sido rebocado. Eu estacionara
ilegalmente na noite passada, o que podia esperar?
Assim, saí do prédio da Trion e procurei um táxi, mas não consegui
achar. Suponho que podia ter usado um telefone no saguão para chamar
um, mas eu sentia uma necessidade esmagadora, quase física, de sair de lá.
Carregando a caixa de papelão branca contendo as poucas coisas da minha
sala, fui caminhando ao longo da calçada.
Poucos minutos depois um carro vermelho brilhante encostou no meio-
fio e parou a meu lado. Era um Austin Mini Cooper, mais ou menos do
tamanho de uma torradeira de pão. O vidro do lado do passageiro baixou e
eu pude sentir o exuberante perfume floral de Alana suspenso no ar da
cidade.
— Como é — ela exclamou para mim —, gostou? Acabo de comprar.
Não é fabuloso?
Balancei a cabeça e tentei um sorriso misterioso.
— Vermelho é isca para tira — falei.
— Eu nunca ultrapasso o limite de velocidade.
Limitei-me a balançar a cabeça.
Ela disse:
— Suponho que você salte de sua motocicleta e me dê uma multa?
Mais uma vez balancei a cabeça em silêncio e continuei andando, sem
disposição para brincar.
Ela chegou o carro um dedo mais para perto.
— Ei, o que foi que aconteceu com o seu Porsche?
— Rebocado.
— Droga. Para onde está indo?
— Casa. Harbor Suites.
Não seria minha casa por muito tempo, pensei, com um sobressalto. Eu
não era dono dela.
— Bem, você não vai até lá andando. Não com essa caixa. Vamos,
entra aí, eu lhe dou uma carona.
— Não, obrigado.
Ela continuou a me acompanhar, dirigindo lentamente junto ao meio-
fio.
— Oh, vamos, Adam, deixa disso, não seja maluco.
Parei, aproximei-me do Mini Cooper, larguei a caixa e pus as duas
mãos em cima do teto do carro. Não seja maluco? O tempo todo eu me
torturando por achar que a estava manipulando, e ela só estava fazendo seu
serviço.
— Você... eles lhe disseram para dormir comigo, não foi?
— Adam — ela respondeu, ponderadamente. — Caia na real. Aquilo
não fazia parte da descrição de minhas atribuições. Foi o que Relações
Humanas chamaria de benefícios complementares, certo?
Ela deu uma de suas risadas descontroladas e aquilo me gelou.
— Eles só queriam que eu orientasse, passasse algumas dicas, esse tipo
de coisa. Mas aí você deu em cima de mim...
— Eles só queriam que eu o orientasse — repeti. — Puxa vida. Puxa
vida, isso me deixa doente — peguei a caixa e voltei a caminhar.
— Adam, eu só fiz o que me disseram para fazer. Você, de todas as
pessoas deste mundo, devia entender isso.
— Vamos conseguir ser capazes de confiar de novo um no outro?
Neste exato momento — você só está fazendo o que eles querem que você
faça, não é mesmo?
— Oh, por favor — disse Alana. — Adam, querido, não seja tão
loucamente paranoico.
— E eu que cheguei a pensar que tínhamos um belo relacionamento.
— Foi engraçado. Nós nos divertimos de montão.
— É mesmo.
— Meu Deus, Adam, não leve tudo tão a sério! É só sexo. E negócios.
O que é que há de errado com você? Acredite em mim, eu não fingi!
Continuei andando, procurando um táxi, mas não havia nenhum à
vista. Eu nem sequer conhecia aquela parte da cidade. Estava perdido.
— Vamos, Adam — disse ela, encostando o Mini ainda mais um
pouco. — Entre no carro.
Continuei andando.
— Ora, deixa disso — ela falou, e sua voz era como veludo, sugerindo
tudo, prometendo nada. — Você quer entrar no carro?
Agradecimentos
Hora de rolar os créditos. Vai ser algo lamentavelmente longo, mas
este livro vem sendo desenvolvido e produzido há muito tempo.
A pesquisa para meus outros trabalhos me levou por esse mundo afora
e a lugares como a sede da KGB em Moscou, mas nada me preparou para
como eu acharia estranho e fascinante o mundo das corporações
americanas de alta tecnologia. Ninguém abriu mais portas para mim, ou
me cedeu com mais generosidade o seu tempo do que o meu velho amigo
David Hsiao da Cisco Systems, onde também fui imensamente ajudado
por Tom Fallon, Dixie Garr, Pete Long, Richard Henkus, Gene Choy, Katie
Foster, Bill LePage, Armen Hovanessian, Sue Zanner e Molly Tschang. Na
Apple Computer, Kae Lepow foi enormemente solícita. Na Nortel, o meu
amigo Carter Kersh foi um guia ponderado e sábio, arranjando para que eu
conhecesse seus colegas, inclusive Martin McNarney, Alyene McLennan,
Matt Portoni, Raj Raman, Guyves Achtari e Alison Steel.
Também tive conversas interessantes com Matt Zanner, da Hewlett
Packard, Ted Sprague da Ciena, Rich Wyckoff da Marimba, Rich
Rothschild da Ariba, Bob Scordino da EMC, Adam Stein da Juniper
Networks e Colin Angle da iRobot.
Alguns amigos muito inteligentes me ajudaram a imaginar as
peripécias e táticas clandestinas que fazem parte do pano de fundo da
história. Incluo aí Roger McNamee, Jeff Bone, Glover Lawrence e
especialmente meu amigo Giles McNamee, que com um brainstorming me
fez entrar no espírito de um verdadeiro parceiro não indiciado de uma
conspiração. Nell Minow da Corporate Library em Washington me ajudou
a compreender a política do conselho administrativo e a administração de
uma corporação.
Na área da segurança e das informações, obtive ajuda
incalculavelmente valiosa de alguns dos grandes no setor, inclusive
Leonard Fuld, Arthur Hulnick, George K. Campbell, Mark H. Beaudry,
Dan Geer e o perito em espionagem corporativa Ira Winkler. O pano de
fundo legal de Paranoia beneficiou-se grandemente da orientação do meu
grande amigo Joe Teig; Jackie Nakamura de Day Casebeer Madrid &
Batchelder (e obrigado a Alex Beam por nos ter apresentado); e Robert
Stein da firma Pryor Cashman Sherman & Flynn; assim como dois de seus
colegas, Jeffrey Johnson e particularmente Jay Shapiro. A perícia de Adam
em novos produtos tecnológicos veio de Jim Mann da Compaq, o
projetista principal da iPaq; Bert Keely da Microsoft; Henry Holtzmon do
MIT's Media Lab; Simson Garfinkel; Joel Evans da Geek.com; Wes Salmon
da PDABuzz.com; e, especialmente, Greg Joswiak, vice-presidente de
marketing de produtos de hardware da Apple Computer.
Algumas das façanhas juvenis de Adam foram inspiradas nas estórias
de Keith McGrath, Jim Galvin da polícia de Boston e Emily Bindinger. Na
questão da condição médica de Francis X. Cassidy, fui ajudado pelo meu
irmão, dr. Jonathan Finder e Karen Heraty, uma enfermeira que é um anjo.
Jack McGeorge do Public Safety Group ajudou-me, como sempre, com
muitos dados técnicos. Meu grande amigo Rick Weissbourd contribuiu em
todos os tipos de maneiras. Tive a sorte de dispor de excelentes assistentes
de pesquisa como John H. Romero, Michael Lane e o grande Kevin Biehl.
E minha assistente, Rachel Pomerantz, realmente a melhor.
Registro aqui o meu profundo respeito pelo enorme entusiasmo e apoio
de toda a talentosa equipe da editora St. Martin's Press, com os nomes de
John Sargent, Sally Richardson, Matthew Shear e John Cunningham; em
marketing, Matthew Baldacci, Jim DiMiero e Nancy Trypuc; em
publicidade, John Murphy, Gregg Sullivan, Mike Storrings, Christina
Harcar, Mary Beth Roche, Joe McNeely, Laura Wilson, Tom Süno, Tom
Leigh e Andy LeCount. Ter toda uma editora trabalhando para você é uma
coisa rara na vida de qualquer escritor e eu lhes dirijo os meus mais
profundos agradecimentos.
Howie Sanders da United Talent Agency foi um apoiador entusiástico
deste livro desde o início. Minha agente literária, Molly Friedrich, é
indescritível — inabalavelmente leal, inteligente, judiciosa e, acima de
tudo, boa pessoa.
Meu irmão, Henry Finder, diretor editorial da The New Yorker, é um
editor notável. Por sorte foi também meu primeiro leitor, editor e
colaborador; sua contribuição a este trabalho é realmente incomensurável.
E Keith Kahla é não apenas um editor maravilhoso, como também um
diplomata, lobista, advogado incansável e um generalíssimo trás das
cenas, mas armado da paciência de um santo. Sou grato a ele mais do que
consigo me exprimir e certamente mais do que ele me permitiria dizer
aqui.
Digitalização e correção: Vera Lúcia Figueiredo.