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JOSEPH FINDER

Paranoia
Tradução de
HAROLDO NETTO
Título original
PARANOIA
Copyright © 2004 by Joseph Finder
Todos os direitos reservados.
Revisão técnica
MAURO FIGUEIREDO
Preparação de originais
MONICA MARTINS FIGUEIREDO

Edição brasileira publicada mediante acordo com o autor, a/c Baror Internacional, Inc.,
Armonk, Nova York, EUA.
Agradecimento pela permissão de reproduzir o seguinte material:
Band on the Run. Letra e música de McCartney.
© 1974 Paul e Linda McCartney.
Administrado por MPL Communications, Inc.
Todos os direitos reservados.

CIP-Brasil. Catalogação na fonte.


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
F531p Finder, Joseph
Paranoia / Joseph Finder; tradução de Haroldo Netto.
Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
Tradução de: Paranoia
ISBN 85-325-1780-3
1. Romance norte-americano. I. Haroldo Netto. II. Título.

Direitos para a língua portuguesa reservados


com exclusividade para o Brasil à
EDITORA ROCCO LTDA.
Rua Rodrigo Silva, 26, 4° andar
20011-040 • Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (21) 2507-2000 • Fax: (21) 2507-2244
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Printed in Brazil / Impresso no Brasil
Este é para Henry: irmão e consigliere.
E, como sempre, para as duas garotas da minha vida:
minha mulher, Michele, e minha filha, Emma.
Parte Um

O ARRANJO

ARRANJO: expressão usada pela CIA, originada nos tempos da Guerra


Fria,
que traduz a manobra feita para colocar determinada pessoa em
posição tal
que possa ser comprometida ou chantageada a fazer o que a Agencia
ordenar.

— The Dictionary of Espionage


1
Até a hora em que tudo aconteceu, nunca acreditei no velho ditado que
diz que se deve ter cuidado com o que se deseja, porque pode ser que o
desejo seja atendido.
Agora acredito.
Acredito em todos os provérbios que aconselham cautela. Acredito que
a soberba precede a queda. Acredito que a maçã não cai longe da macieira,
que nem tudo o que reluz é ouro e que a mentira tem pernas curtas. Cara,
pode lembrar qualquer provérbio. Eu acredito.
Eu podia tentar dizer que o que deu início a tudo foi um ato de
generosidade, mas não seria suficientemente preciso. Foi mais uma
burrice. Seria possível chamar, talvez, de grito de socorro. Talvez mais
como um dedo médio esticado. Qualquer que seja o nome certo, foi mal.
Metade de mim esperava que eu fosse me safar numa boa, enquanto a
outra metade esperava que eu fosse despedido. Tenho que dizer, quando
rememoro como tudo começou, que fico espantado de ver como eu era um
sujeito arrogante. Não vou negar que tive o que mereci — mas quem ia
esperar algo assim?
Tudo o que fiz foi dar dois telefonemas. Imitando a voz do vice-
presidente para Eventos Corporativos, telefonei para o sofisticado bufê
que fornecia comidas e bebidas para todas as festas da Wyatt Telecom.
Pedi que repetissem exatamente o que tinham feito na semana anterior
para o prêmio do Vendedor do Ano. (Claro que eu não tinha ideia de quão
extravagante tinha sido a festança.) Informei os números corretos para o
desembolso e autorizei a transferência adiantada dos recursos.
A coisa toda foi surpreendentemente fácil.
O proprietário do bufê Refeições de Esplendor me informou nunca ter
realizado uma festa na plataforma de carga de uma companhia, que isso
apresentaria certos "desafios para a decoração", mas eu sabia que ele não
ia desprezar um vultuoso cheque da Wyatt Telecom.
De qualquer forma, duvido que o Refeições de Esplendor alguma vez
tenha fornecido os comes e bebes de uma festa de aposentadoria de um
supervisor-assistente.
Acho que foi isso que realmente enfureceu o Wyatt. Pagar pela festa de
aposentadoria de Jonesie — um cara que trabalhava na plataforma de
carga e descarga, pelo amor de Deus! — era uma violação da ordem
natural das coisas. Se eu tivesse usado o dinheiro para pagar a entrada de
uma Ferrari Modena 360 conversível, Nicholas Wyatt talvez fosse capaz
de compreender. Teria reconhecido minha ganância como evidência de
uma qualidade humana que compartilhávamos, como uma fraqueza por
álcool, ou pelas "minas", como ele chamava as mulheres.
Se eu soubesse como tudo ia terminar, eu teria feito de novo o que fiz?
Com os diabos, não.
Mesmo assim, devo confessar que foi bem legal. Ainda mais que a
festa de Jonesie estava sendo paga por uma verba destinada, entre outras
coisas, para um offsite para o presidente e seu vice-presidente sênior no
hotel-resort de Guanahani, ilha de St. Barthélemy, Caribe.
Também adorei ver os caras da plataforma de carga finalmente
sentindo o gosto de como os executivos viviam. A maioria deles e de suas
mulheres, cuja ideia de banquete era o festival de camarões do Red
Lobster ou as costelas grelhadas do Outback, não sabia o que fazer de
alguns daqueles pratos esquisitos, como o caviar osetra e o lombo de vitela
à provençal, mas devoraram o filé en croûte, as costelas de cordeiro, a
lagosta grelhada com ravióli. As esculturas em gelo foram um grande
sucesso. O Dom Pérignon voou, embora não tão depressa quanto a
Budweiser. (Resultado do pedido acertado que fiz, já que eu costumava me
demorar pela plataforma de carga nas tardes de sexta-feira, fumando,
quando alguém — geralmente Jonesie ou Jimmy Connolly, o supervisor —
trazia um isopor cheio de latinhas geladas para celebrar o fim de mais uma
semana.)
Jonesie, um velho com uma dessas caras de cachorro triste maltratadas
pelo tempo que fazem as pessoas gostar delas instantaneamente, ficou
aceso a noite toda. Esther, sua mulher havia quarenta e dois anos, a
princípio mostrou-se meio ressabiada, mas depois revelou-se uma incrível
dançarina. Eu tinha contratado um excelente grupo de reggae jamaicano, e
todo mundo acabou dançando, mesmo tipos que você nunca esperaria.
Isso aconteceu depois da grande fusão geral no setor tecnológico, é
claro; com as companhias em toda a parte demitindo gente e instituindo
políticas de "frugalidade", ou seja, fazendo com que você passasse a pagar
pelo café de quinta categoria e terminando com as Coca-Colas na sala de
descanso, coisas assim. Estava previsto que Jonesie deveria parar de
trabalhar em uma sexta-feira, passar umas horas no Recursos Humanos,
assinando formulários, e ir para casa pelo resto da vida, sem festa, sem
nada. Enquanto isso, o e-staff da Wyatt Telecom planejava dar um pulo em
St. Bart nos seus learjets, transar com as esposas ou namoradas em suas
villas privadas, se deixarem besuntar com óleo de coco pelas mãos de seus
amores e discutir políticas de frugalidade enquanto saboreavam obscenos
cafés da manhã de papaias com línguas de colibri. Jonesie e seus amigos
realmente não perguntaram quem estava pagando aquilo tudo. Mas senti
um certo prazer perverso.
Até por volta de uma e meia da manhã, quando o som das guitarras
elétricas e os gritos de uma dupla de caras mais jovens, totalmente de
porre, devem ter atraído a curiosidade de um guarda de segurança, um
sujeito contratado recentemente (o salário é uma miséria, a rotatividade é
inacreditável), que não conhecia nenhum de nós e não estava disposto a
tolerar coisa alguma.
Era um sujeito gorducho, com o rosto vermelho do Gaguinho — o
Porky Pig dos desenhos animados —, que devia ter pouco mais de trinta
anos. Ele pegou seu walkie-talkie, como se fosse uma Glock, e disse:
— Que diabos...?
E a minha vida, tal como eu a conhecia, acabou.
2
O recado na minha caixa postal de voz estava me esperando quando
cheguei ao trabalho, atrasado, como sempre.
Na verdade, mais atrasado que o usual. Eu me sentia enjoado, minha
cabeça latejava e meu coração batia depressa demais por causa da
gigantesca xícara de café que engoli no metrô. Uma onda ácida regou meu
estômago. Pensei em me ausentar por motivo de doença, mas aquela
vozinha da sanidade dentro da minha cabeça me disse que, tendo em vista
os eventos da noite anterior, o melhor a fazer seria aparecer para trabalhar
e enfrentar o tiroteio.
O negócio é que eu esperava ser despedido — esperava quase ansioso
para que isso acontecesse logo, do mesmo jeito que você ao mesmo tempo
receia e quer tratar de um dente doente. Quando saltei do elevador e
caminhei os quinhentos metros por entre os primeiros quarenta da fazenda
de baias até chegar à minha estação de trabalho, deu para ver as cabeças se
levantando, ao melhor estilo das marmotas, para dar uma espiada em mim.
Eu era uma celebridade; a notícia estava na rua. Sem dúvida, estavam
sendo trocados zilhões de e-mails.
Meus olhos estavam injetados, meu cabelo despenteado era um terror,
eu mais parecia um anúncio ambulante contra o serviço público escrito
BASTA DIZER NÃO.
A telinha do visor de cristal líquido do meu telefone IP dizia: "Você
tem onze mensagens." Liguei o alto-falante para ouvir rapidamente, mas
só de ouvi-las, frenéticas, sinceras e lisonjeiras, minha pressão ocular
aumentou. Peguei o vidro de Advil na gaveta de baixo da escrivaninha e
engoli dois comprimidos, em seco. Isto totalizava seis comprimidos
naquela manhã, quantidade que excedia a máxima recomendada. O que ia
me acontecer? Morrer de uma overdose de analgésico momentos antes de
ser despedido?
Eu era gerente de produtos júnior da linha de roteadores, na nossa
Divisão Empresas. Não importa que você saiba a tradução disso em língua
de gente; é por demais entediante. Passava meus dias ouvindo frases como
"serviço de emulação dinâmica em conexões de banda larga", "dispositivo
de acesso integrado", "backbones ATM" e "protocolo encapsulador de
segurança IP", e juro que não sabia o que metade dessa baboseira queria
dizer.
Uma mensagem de um sujeito de vendas chamado Griffin, me tratando
de "grande sujeito", orgulhoso por ter acabado de vender algumas dezenas
dos roteadores que eu gerenciava, graças ao fato de ter assegurado ao
comprador que os roteadores tinham uma característica especial —
protocolos extra de multitransmissão para vídeo ao vivo — que ele sabia
muito bem que não tinham. Seria bom, inclusive, que esse recurso fosse
acrescentado aos roteadores, talvez nas próximas duas semanas, antes que
fossem expedidos. É, continua sonhando, Griffin.
E a voz incisiva, importante, de um homem chamado Arnold
Meacham, que se identificou como diretor de Segurança Corporativa e me
pediu para, por favor, dar "um pulo" na sua sala no momento em que eu
entrasse na firma.
Eu não tinha ideia de quem fosse Arnold Meacham, a não ser pelo seu
título. Jamais ouvira aquele nome antes. Nem sequer sabia onde ficava a
Segurança Corporativa.
Quando ouvi a mensagem, me surpreendi que meu coração não
desatasse a bater mais depressa, como seria de esperar. Na verdade, chegou
a reduzir o ritmo, como se meu corpo soubesse que o espetáculo tinha
começado. Parecia mesmo que havia algo zen rolando, a serenidade
interior decorrente da percepção de que não há nada que você possa fazer.
Eu quase me deliciei com aquele momento.
Por uns poucos minutos fiquei contemplando as paredes da minha baia,
forradas com um tecido Avora áspero, cor de carvão, que parecia o carpete
do piso do apartamento do meu pai. Eu mantinha as minhas paredes livres
de qualquer indicativo de habitação humana — nada de fotos da mulher e
filhos (fácil, já que eu não tinha nem uma coisa nem outra), nenhum
cartum do Dilbert, nada inteligente ou irônico que indicasse que eu estava
ali sob protesto, porque, na verdade, eu estava muito além disso.
Eu tinha uma estante com um guia de referência de protocolos de
roteadores e quatro grossas pastas pretas contendo a "biblioteca das
características" para o roteador MG-50K. Eu não ia sentir falta daquela
baia.
Além disso, não era como se eu estivesse para ser liquidado; eu já
tinha sido alvejado, claro. Agora, bastava que se desfizessem do corpo e
limpassem as manchas de sangue. Lembro-me de ter lido uma vez na
faculdade um texto sobre a guilhotina na história francesa e de como,
fazendo-se passar por carrasco, um médico experimentou esse macabro
aparelho (cada um se estimula onde puder, acho eu). Poucos segundos
depois de a cabeça ter sido decapitada, ele observou os olhos e os lábios
tremerem com espasmos até que as pálpebras se fecharam e tudo parou. Aí
ele gritou o nome do homem morto e os olhos da cabeça fixaram-se
diretamente no carrasco. Poucos segundos mais, os olhos se fecharam, e,
então, o médico tornou a chamar o nome do homem e, mais uma vez, os
olhos da cabeça morta se abriram, arregalados. Legal. Quer dizer, então,
que trinta segundos depois de ter sido separada do corpo, a cabeça ainda
reagia. Era como eu me sentia. A lâmina já caíra, e eles continuavam a
chamar o meu nome.
Peguei o telefone, liguei para a sala de Arnold Meacham, informei ao
assistente dele que eu estava a caminho e perguntei como se chegava lá.
Minha garganta estava seca, por isso resolvi parar na sala de descanso
e pegar um dos refrigerantes antigamente-grátis-mas-que-agora-custavam-
cinquenta-centavos. Esta sala ficava nos fundos, no meio do andar e perto
dos elevadores, e, enquanto ia andando, numa espécie de estranho estado
de torpor, dois colegas me viram e se afastaram rapidamente,
envergonhados.
Examinei o suado recipiente de refrigerantes e me decidi contra minha
usual Diet Pepsi — eu realmente não precisava de mais cafeína naquele
momento — e peguei um Sprite. Só para bancar o rebelde, não deixei
dinheiro na jarra. Eles iam ver só. Abri o Sprite e fui para o elevador.
Eu detestava meu emprego, detestava mesmo, portanto a ideia de
perdê-lo não estava exatamente me irritando. Por outro lado, não era como
se eu dispusesse do dinheiro de um fundo, e certamente precisava do
dinheiro. Tudo se resumia nisso, não era mesmo? Eu tinha ido trabalhar ali
essencialmente para ajudar no plano de saúde do meu pai — meu pai, que
me considerava um incompetente. Em Manhattan, trabalhando atrás do
balcão de um bar, eu ganhava a metade do dinheiro, mas vivia melhor.
Estou falando de Manhattan! Aqui, eu morava em um apartamentinho
decadente no térreo de um prédio, na Pearl Street, empesteado pela fumaça
do escapamento dos carros e cujas janelas sacudiam quando os caminhões
passavam às cinco da manhã. É verdade que eu podia sair umas duas vezes
por semana com os amigos, mas geralmente acabava entrando no cheque
especial uma semana mais ou menos antes que meu pagamento aparecesse
magicamente no dia quinze.
Não que eu deixasse meu traseiro na reta. Eu ia levando. Trabalhava o
número mínimo de horas, entrava tarde e saía cedo, mas fazia meu
trabalho. Minha avaliação não era das melhores — eu era um "colaborador
essencial", a um passo apenas do "colaborador secundário", quando então
você deve começar a arrumar a trouxa.
Entrei no elevador, dei uma olhada em mim mesmo para ver o que
estava vestindo — jeans pretos, camisa polo cinza escuro, tênis — e
desejei ter ido de gravata.
3
Quando você trabalha em uma grande empresa, nunca sabe em que
acreditar. Há sempre muito papo de machão, para assustar os outros. Estão
sempre falando com você sobre "matar a competição", enfiar uma estaca
"no coração deles".
Dizem a você para "matar ou ser morto", "comer ou ser comido", para
"comer o almoço deles" e comer a sua "comida de cachorro" ou "comer os
seus filhotes".
Você é engenheiro de programação ou gerente de produto ou associado
de vendas, mas após algum tempo começa a pensar que, de algum modo,
passou a viver no meio de uma daquelas tribos aborígines na Nova Guiné
que usam presas de javali enfiadas no nariz e cascas de abóbora no pinto.
Quando a realidade é que, se você enviar um e-mail sem graça e
politicamente correto para seu amigo na Tecnologia da Informação (IT) —
que depois o encaminha dando conhecimento a um sujeito poucos
cubículos adiante —, você pode terminar trancado em uma encalorada sala
de reuniões do RH para uma semana cansativa de Treinamento de
Diversidade. Furte clipes de papel e você será golpeado pela estilhaçada
régua da vida.
O caso é que, claro, eu fizera algo um pouco mais sério que uma
incursão ao armário de suprimentos do escritório.
Eles me fizeram esperar numa saleta por meia hora, quarenta e cinco
minutos, mas pareceu mais tempo. Não havia nada para ler — só Security
Management, uns troços assim. A recepcionista usava o cabelo louro-cinza
num capacete e tinha olheiras amareladas de fumante. Ela atendia ao
telefone, digitava qualquer coisa em um teclado e me olhava furtivamente
de tempos em tempos, do modo como você talvez fica querendo dar uma
espiada em um acidente de carro pavoroso ao mesmo tempo que tenta
conservar os olhos na estrada à sua frente.
Fiquei sentado por tanto tempo que minha confiança começou a
desmoronar. Pode ter sido justamente este o ponto. O contracheque mensal
começou a parecer uma boa ideia. Talvez a atitude desafiadora não fosse a
melhor abordagem. Talvez eu devesse sofrer mesmo, comer o pão que o
diabo amassou. Talvez fosse muito além disso.
Arnold Meacham não se levantou quando a recepcionista me fez entrar.
Permaneceu sentado atrás da escrivaninha preta gigantesca que parecia ser
de granito polido.
Tinha por volta de quarenta anos e era magro e largo, um corpo que
lembrava o Gumby, com uma cabeça comprida quadrada, nariz comprido e
fino e sem lábios. O cabelo castanho já ia ficando grisalho e escasseando.
Vestia um blazer azul estilo jaquetão e gravata azul listrada, como o
presidente de um iate clube. Ele me olhou através de seus óculos de
armação de aço estilo aviador demasiado grande. Podia-se dizer que era
totalmente destituído de humor. Sentada em uma cadeira à direita da sua
mesa estava uma mulher poucos anos mais velha que eu que parecia estar
tomando notas. A sala era grande e sóbria, com montes de diplomas nas
paredes. No fundo, uma porta semiaberta dava para uma sala de reuniões
às escuras.
— Quer dizer então que você é o Adam Cassidy — disse ele. Tinha um
jeito de falar afetado, preciso. — Festa para baixo, hem, cara? — ele
comprimiu os lábios em um sorriso falso.
Meu Deus. Aquilo não ia terminar bem.
— O que posso fazer pelo senhor?
Tentei fazer uma cara de perplexo, preocupado.
— O que você pode fazer por mim? Que tal começar dizendo a
verdade? É o que poderia fazer por mim.
Ele falava com um quase imperceptível sotaque sulista.
Geralmente as pessoas gostam de mim. Sou muito bom para conquistá-
las — o professor de matemática furioso, o cliente cujo pedido está seis
semanas atrasado, qualquer pessoa. Mas pude ver de imediato que aquele
não era o momento adequado para pôr em prática os ensinamentos de Dale
Carnegie. As chances de salvar meu odioso emprego iam minguando a
cada segundo.
— Claro — disse. — A verdade a respeito de quê?
Ele achou tanta graça que chegou a bufar.
— Que tal os comes e bebes de ontem à noite?
Fiz uma pausa, pensei um pouco.
— Está falando daquela festinha de despedida do funcionário que se
aposentou?
Eu não sabia o quanto eles sabiam, porque eu tinha sido bem cauteloso
com a trilha deixada pelo dinheiro. Tinha que prestar atenção no que
falava. A mulher com o notebook, uma mulher pequena com cabelo
vermelho crespo e grandes olhos verdes, provavelmente estava ali para
servir de testemunha.
— Foi uma medida muito necessária destinada a reforçar o moral dos
empregados. Pode acreditar, senhor, vai operar maravilhas pela
produtividade departamental.
A boca sem lábios contraiu-se.
— "Moral dos empregados" — repetiu ele. — Suas digitais estão por
toda a parte no financiamento desse "reforço do moral".
— Financiamento?
— Ora, não enche o saco, Cassidy.
— Não sei ao certo se estou compreendendo, senhor.
— Acha que sou burro? — mesmo com quase dois metros de imitação
de granito a nos separar, algumas gotas da saliva dele me alcançaram.
— Acho que... não, senhor.
A sombra de um sorriso apareceu no canto de minha boca. Não pude
me controlar: orgulho de artesão. Um erro enorme. O rosto pálido de
Meacham ficou vermelho.
— Você acha que é engraçado, invadir os bancos de dados da
companhia a fim de obter os números confidenciais para desembolso?
Acha que é divertimento, que é inteligente? Que não tem importância?
— Não, senhor...
— Seu saco de bosta mentiroso, seu idiota, é a mesma coisa que roubar
a bolsa de uma velhinha na porra do metrô!
Tentei fazer cara de repreendido, mas podia ver para onde aquela
conversa estava indo, e pareceu-me inútil.
— Você roubou setenta e oito mil dólares da conta Eventos
Corporativos para uma maldita festa para seus amiguinhos da plataforma
de carga?
Engoli em seco. Merda. Setenta e oito mil dólares? Eu sabia que a
festa tinha sido muito cara, mas não tinha ideia de quanto. — Esse cara
está no negócio com você?
— Como assim? Acho que o senhor está confundindo...
— Jonesie? O velho, o nome no bolso?
— Jonesie não teve nada a ver com isso — retruquei.
Meacham recostou-se na cadeira, com ar de triunfo por finalmente ter
encontrado um ponto de apoio.
— Se quer me demitir, vá em frente, mas Jonesie é totalmente
inocente.
— Despedir você? — pela cara de Meacham, parecia que eu tinha dito
algo em servo-croata. — Pensa que estou falando em demitir você? Você é
um cara inteligente, bom em computadores e matemática, sabe somar,
certo? Assim, talvez consiga adicionar as seguintes parcelas: apropriação
indébita, isso dá cinco anos de cadeia e duzentos e cinquenta mil dólares
de multa; fraude pelo correio e por telefone, são mais cinco anos na prisão,
mas, espera — se a fraude afetar uma instituição financeira — e, para sua
sorte, você ferrou o nosso banco e o banco recipiente, o seu dia de sorte,
seu merdinha — isso lhe garante até trinta anos de prisão e uma multa de
um milhão de dólares. Está me acompanhando? Onde estamos, trinta e
cinco anos de cadeia? E ainda não chegamos nos crimes de falsificação e
nos de sistema, de colher informações em um computador protegido
contra furto de dados, o que resultará em qualquer coisa de um a vinte
anos de prisão, mais multas. O que temos mesmo até agora? Quarenta,
cinquenta, cinquenta e cinco anos de prisão? Você está com vinte e seis
agora, vejamos, terá oitenta e um quando sair.
Agora eu estava suando a ponto de molhar minha camisa polo, senti-
me frio e viscoso. Minhas pernas tremiam.
— Mas — comecei, com a voz rouca e depois pigarreei —, setenta e
oito mil dólares é um erro de aproximação em uma corporação de trinta
bilhões de dólares.
— Sugiro que você cale essa porra dessa sua boca — disse Meacham,
baixinho. — Consultamos nossos advogados e eles garantem que poderão
apresentar uma acusação de apropriação indébita em um tribunal. Além do
mais, você estava claramente em posição de fazer mais, e nós acreditamos
que o que aconteceu foi apenas um capítulo no esquema destinado a
fraudar a Wyatt Telecommunications, parte de um padrão de múltiplas
retiradas e operações destinadas a distrair a atenção. O que sabemos é só a
ponta do iceberg.
Pela primeira vez, ele se virou para a mulher tímida que tomava notas.
— Agora não é para registrar — disse. E voltou a dirigir-se a mim. —
O ministro da Justiça foi colega de quarto do nosso advogado na
faculdade, sr. Cassidy, e nós temos certeza absoluta de que ele tenciona
usar todos os dispositivos legais contra o senhor. Além disso, como talvez
tenha notado, a promotoria está em campanha contra crimes do colarinho-
branco e procurando um caso que possa servir de exemplo. Querem uma
pessoa que possa ser considerada representante perfeito dessa causa,
Cassidy.
Olhei para ele fixamente. Minha dor de cabeça voltou. Senti uma gota
de suor escorrer pelo lado de dentro da camisa, da axila à cintura.
— Tanto o Estado quanto os federais estão do nosso lado. No lado
oposto, você está sozinho, absolutamente só. Agora é só uma questão de
saber com que força vamos bater, que nível de destruição desejamos. E
não imagine que vai para alguma prisão tipo country clube. Nada disso.
Bonitinho e jovem como você é, vai dar o rabo num catre em algum lugar
na Penitenciária Federal de Marion. Vai sair de lá um velho desdentado. E,
para o caso de você não ter conhecimento de como andam as coisas no
nosso sistema de justiça criminal, permita que eu lhe diga que não há mais
liberdade condicional em nível federal. Sua vida acaba de mudar neste
instante. Você está ferrado, companheiro.
Ele voltou a olhar para a mulher com o bloco de notas.
— Voltamos a falar para os registros agora. Vamos ouvir o que você
tem a dizer, Cassidy, e é melhor que valha a pena.
Engoli, mas minha saliva tinha secado. Vi relâmpagos brancos na
periferia da minha visão. O homem não podia estar falando mais sério.

Em meus tempos de curso secundário e de faculdade, eu vivia sendo


parado por excesso de velocidade e conquistei uma reputação de virtuose
em me livrar de multas.
O truque é fazer com que o guarda sinta a sua dor. É pura guerra
psicológica. Esta é a razão pela qual eles usam óculos escuros espelhados:
para que você não possa ver seus olhos enquanto está implorando. Eles são
seres humanos também, mesmo sendo policiais. Eu costumava deixar dois
livros-textos relativos à aplicação da lei no banco da frente e dizia que
estava estudando para ser policial, e só me restava esperar que a multa não
prejudicasse minhas chances. Ou então mostrava um frasco de remédio e
dizia que estava com pressa porque precisava entregar o tal medicamento
de epilepsia à minha mãe, o mais depressa possível. Uma coisa básica que
aprendi é que se eu começasse, tinha que ir até o fim. Além disso, era
preciso pôr o coração totalmente no processo.
Já tínhamos ultrapassado o ponto em que seria possível salvar meu
emprego. Não conseguia me livrar da imagem do tal catre na Penitenciária
Federal de Marion.
Estava morrendo de medo.
Assim sendo, não me orgulho do que tinha de fazer, mas, você entende,
eu não tinha outra chance. Ou eu mergulhava fundo e desfiava o meu
melhor conto para aquele nojento, ou ia ser a fêmea de alguém na prisão.
Respirei fundo.
— Olha — falei —, vou ser sincero com você.
— Já era tempo.
— Acontece o seguinte. Jonesie... bem, Jonesie está com câncer.
Meacham forçou uma risadinha e recostou-se na cadeira, como se
quisesse me encorajar a distraí-lo.
Suspirei, masquei o lado de dentro da minha bochecha como se
estivesse revelando algo que eu realmente não quisesse contar.
— Câncer no pâncreas. Terminal. Ele recebeu o diagnóstico três
semanas atrás. Ou seja, não há nada que seja possível fazer, o cara está
morrendo. E Jonesie, você sabe... bem, você não o conhece, mas ele está
sempre de cara boa. Por exemplo, na hora do diagnóstico disse para o
oncologista: "Quer dizer então que vou poder parar de passar fio dental?"
Assim é o Jonesie.
A mulher que registrava a conversa parou por um momento, parecendo
realmente chocada, e depois voltou às suas anotações.
Meacham lambeu os lábios. Será que eu estava atingindo sua
sensibilidade? Não dava para dizer. Eu tinha que exagerar mais, mandar
ver mesmo.
— Não há razão para que você tome conhecimento dessas coisas —
prossegui. — Quero dizer, Jonesie não é exatamente um cara importante
por aqui. Não é um dos vice-presidentes nem nada, é só um cara da
plataforma de carga. Mas é importante para mim, porque...
Fechei os olhos por uns segundos, inspirei profundamente.
— O caso é... eu nunca quis contar isso a ninguém, era como um
segredo só nosso, mas Jonesie é meu pai.
A cadeira de Meacham andou para frente, devagar. Agora ele estava
prestando atenção.
— Nome diferente e tudo... fiquei só com o nome da minha mãe
quando ela deixou meu pai vinte anos atrás, me levando. Eu era criança,
não sabia de nada. Mas papai, ele... — mordi o lábio inferior. Tinha
lágrimas nos olhos agora. — Ele continuou nos sustentando, trabalhando
em dois, às vezes três empregos. Nunca pediu nada. Mamãe não queria que
ele me visse de jeito nenhum, mas no Natal...
Pausa para um hausto vigoroso, quase um soluço.
— Papai ia lá em casa todo Natal, às vezes tocava a campainha e
ficava esperando lá fora, num frio de congelar, até que mamãe o deixasse
entrar. Sempre tinha um presente para mim, alguma coisa grande e cara,
que na verdade ele não poderia comprar. Mais tarde, quando mamãe disse
que não poderia me mandar para a faculdade, não com seu salário de
enfermeira, papai começou a mandar dinheiro. Ele — ele disse que queria
que eu tivesse a vida que ele não pudera ter. Mamãe nunca o respeitou, e
de certa forma envenenou-me contra ele, sabe como é? Com isso, nunca
agradeci ao cara. Nem sequer o convidei para a formatura, porque mamãe
não ia se sentir à vontade com ele por perto, mas ele apareceu de qualquer
maneira, usando um terno velho horroroso — eu nunca o vira de terno
antes, ele deve ter ido buscar aquele no Exército da Salvação, porque
realmente queria ver minha formatura na faculdade, e não queria me
envergonhar.
Os olhos de Meacham pareciam estar ficando úmidos. A mulher parou
de tomar notas e ficou me olhando, lutando para conter as lágrimas.
Eu estava tendo sucesso. Meacham merecia o meu melhor, e era o que
estava tendo.
— Quando comecei a trabalhar aqui na Wyatt, nunca esperei encontrar
papai trabalhando na porra da plataforma de carga. Foi a maior
coincidência. Mamãe tinha morrido havia uns dois anos e aqui estava eu,
me ligando de novo com meu pai, aquele cara doce e maravilhoso que
nunca me pedira nada, nunca exigira nada, trabalhando como um mouro
para sustentar um maldito filho ingrato que nunca conseguia ver. O
destino, entende? E aí, quando recebe a notícia que tem um câncer
terminal no pâncreas, e começa a falar que vai se matar antes que o câncer
o leve, quer dizer...
A mulher das anotações pegou um Kleenex e assoou o nariz. Ela agora
passou a olhar com raiva para Arnold Meacham. Meacham estremeceu.
— Eu simplesmente tinha que demonstrar o que ele significava para
todos nós — continuei, num fio de voz. — Acho que foi uma espécie de
Fundação Diga-o-seu-desejo. Eu disse a ele — eu disse a ele que tinha
ganhado uma trifeta nas corridas, não queria que soubesse da verdade ou
se preocupasse com nada. Quer dizer, acredite em mim, o que fiz foi
errado, totalmente errado. Errado em uma centena de maneiras diferentes,
não vou mentir para você. Mas talvez sob um único aspecto, bem sutil,
tenha sido certo.
A mulher pegou outro lenço de papel e olhou para Meacham como se
ele fosse a escória da terra. Meacham estava olhando para baixo, o rosto
congestionado e incapaz de enfrentar meu olhar. Eu provocava calafrios
em mim mesmo.

Foi então que, da sombria extremidade mais distante da sala, ouvi uma
porta se abrir e o que me pareceram palmas. Palmas sonoras e lentas.
Era Nicholas Wyatt, fundador e presidente da Wyatt
Telecommunications. Ele foi se aproximando sem parar de bater palmas,
com um largo sorriso no rosto.
— Brilhante performance — disse ele. — Absolutamente brilhante.
Olhei para cima, assustado, e depois sacudi a cabeça, compungido.
Wyatt era um homem alto, com quase dois metros de altura, e um corpo de
lutador. Foi ficando cada vez maior à medida que se aproximava e, quando
parou a poucos centímetros de mim, parecia maior que a vida. Wyatt era
conhecido por se vestir bem e, de fato, estava usando um terno ao melhor
estilo Armani, cinza com riscas sutis. Não só era poderoso, parecia
poderoso.
— Sr. Cassidy, deixe que eu lhe faça uma pergunta.
Eu não sabia o que fazer, então me levantei e estendi a mão para
apertar a dele.
Wyatt ignorou minha mão.
— Qual é o primeiro nome de Jonesie?
Eu hesitei por um instante demasiadamente longo.
— Al — respondi, por fim.
— Al? Abreviatura de quê?
— Al — Alan — falei. — Albert — Merda.
Meacham me encarou, espantado.
— Detalhes, Cassidy — disse Wyatt. — Os detalhes ferram a gente o
tempo todo. Mas tenho que lhe dizer, você me comoveu... você realmente
me comoveu. A parte sobre o Exército da Salvação realmente me tocou
aqui — ele bateu no peito com o punho fechado. — Extraordinária.
Sorri timidamente, sentindo-me realmente como um idiota. — O cara
aqui disse para eu contar uma boa história. Wyatt sorriu.
— Você é um jovem extraordinariamente dotado, Cassidy, uma
Scheherazade dos diabos. E eu acho que devemos ter uma conversa.
4
Nicholas Wyatt era um sujeito assustador. Eu nunca tinha me
encontrado com ele antes, mas o vira na TV, no CNBC e no site da empresa,
nas videomensagens que gravava. Eu dera umas poucas olhadas nele ao
vivo, nos três anos em que trabalhava para a companhia que fundara. De
perto, era ainda mais intimidador. Tinha a pele bronzeada e o cabelo negro
penteado para trás e preso com gel.
Os dentes eram perfeitamente regulares e absurdamente brancos.
Tinha cinquenta e seis anos mas não parecia, seja qual for a aparência
que deva ter alguém nessa idade. De qualquer modo, não parecia com meu
pai aos cinquenta e seis, um velhote barrigudo e meio careca, mesmo que
estivesse em seu suposto apogeu. Este era outro tipo de cinquenta e seis
anos.
Eu não tinha ideia do motivo pelo qual ele estava ali. Com o que
poderia o presidente da companhia me ameaçar que Meacham já não
tivesse usado? Pena de morte a ser executada por mil cortadores de papel?
Ser comido vivo por um porco-do-mato?
Secretamente, eu fantasiava que ele ia me cumprimentar com uma
palmada na mão, braços levantados, ia me congratular por ter inventado
uma boa desculpa e dizer que gostava do meu espírito, minha coragem.
Mas este melancólico e pequeno devaneio murchou tão rapidamente
quanto pipocou na minha cabeça.
Nicholas Wyatt não era um padre que jogava basquete, e sim um filho
da mãe vingativo.
Eu ouvira histórias. Sabia que se você tivesse miolos ia fazer questão
absoluta de evitá-lo. Você mantinha a cabeça baixa, tentava não atrair a
atenção dele.
Wyatt era famoso pelas suas iras, explosões de raiva e berreiros. Era
conhecido por demitir gente na hora, mandar a segurança esvaziar as
mesas dos pobres coitados e fazer com que saíssem escoltados do prédio.
Nas suas reuniões de executivos, ele sempre escolhia uma pessoa para
humilhar o tempo todo. Não se ia procurá-lo com más notícias e não se
desperdiçava uma fração de segundo do seu tempo. Se você tivesse a má
sorte de ser obrigado a fazer para ele uma palestra usando PowerPoint,
tinha que ensaiar e ensaiar até ficar perfeito, mas, se houvesse uma única
falha, ele interrompia gritando: "Eu não acredito!"
Diziam que tinha suavizado um bocado com o passar do tempo, mas
não diziam como ele era antes. Nick Wyatt era ferozmente competitivo,
levantador de pesos e triatleta.
Os caras que se exercitavam com ele no ginásio da companhia diziam
que vivia desafiando os atletas sérios a competições na barra. Nunca
perdia, e, quando os outros desistiam, ele provocava: "Quer que eu
continue?" Diziam que tinha o corpo do Arnold Schwarzenegger, como
uma camisa de vênus marrom, estufada de nozes.
Não só era insano a respeito de ganhar, como também, para ele, a
vitória não era suficientemente doce a menos que também pudesse
ridicularizar o perdedor. Em uma festa de Natal da companhia, escreveu o
nome do seu principal competidor, Trion Systems, em uma garrafa de
vinho e esmagou-a, espatifou-a de encontro a uma parede, provocando um
bocado de gritos e vaias de bêbados.
Wyatt comandava um grupinho de alta testosterona. Seus amigos do
mais alto escalão se vestiam todos como ele, com ternos de sete mil
dólares de Armani, Prada ou Brioni ou Kiton ou outros estilistas dos quais
eu nunca ouvira falar. E aguentavam aquela merda porque eram
nojentamente bem pagos para isso. A piada a seu respeito que todo mundo
a essa altura já tinha ouvido: Qual a diferença entre Deus e Nicholas
Wyatt? Deus nem de longe pensa que é Nicholas Wyatt.
Nick Wyatt dormia três horas por noite, não parecia comer nada senão
barras energéticas no café da manhã e no almoço, era um reator nuclear de
energia nervosa e suava profusamente. As pessoas o chamavam de "O
Exterminador". Administrava pelo medo e nunca deixava passar um lapso.
Quando algum ex-amigo era destituído da função de presidente de alguma
grande empresa de tecnologia, ele enviava uma coroa de rosas negras —
seus assistentes sempre sabiam onde encontrar rosas negras.
A frase pela qual era famoso, a única coisa que repetia com tanta
frequência que devia ter sido gravada em granito acima da entrada
principal e transformada em protetor de tela do computador de todo
mundo, era:
"É claro que sou paranoico. Quero que todo mundo que trabalhe para
mim seja paranoico. O sucesso exige a paranoia."
Segui Wyatt pelo corredor da Segurança Corporativa até sua suíte
executiva, e foi difícil acompanhá-lo — ele andava tão depressa que eu
quase tive que correr.
Atrás de mim veio Meacham, brandindo um portfólio preto de couro
como uma batuta. Quando nos aproximamos da área executiva, as paredes
deixaram de ser placas de gesso pintadas de branco e passaram a ser
lambris de mogno, e o carpete passou a ser macio e fundo. Estávamos no
escritório dele, seu refúgio.
As duas assistentes ergueram a cabeça e sorriram para Wyatt quando
passamos em caravana entre elas. Uma loura, outra morena. Ele disse:
"Linda, Yvette", como se as estivesse legendando. Não me surpreendi que
ambas fossem tão lindas como modelos famosas — ali tudo era caríssimo,
como as paredes, o carpete e a mobília.
Gostaria de saber se as atribuições delas incluiriam responsabilidades
extraoficiais, como sexo oral no chefe. Era o boato que corria, de qualquer
maneira.
O escritório de Wyatt era imenso. Toda uma aldeia bósnia podia morar
ali dentro. Duas paredes eram de vidro, do teto ao chão, e a vista da cidade
era inacreditável. As outras eram de madeira escura sofisticada, cobertas
com coisas emolduradas, capas de revistas com sua cara, Fortune, Forbes,
Business Week. Admirei aquilo de olhos esbugalhados, enquanto meio que
andei, meio que corri ao lado. Uma foto dele e de alguns outros sujeitos
com a falecida princesa Diana. Nick Wyatt com ambos os Bush — o
George e o George W.
Ele nos conduziu a um "grupo de conversação" formado por poltronas
de couro preto e um sofá que pareciam pertencer ao MOMA, e arriou o
corpo numa ponta do sofá enorme.
Minha cabeça girava. Eu estava desorientado, em outro mundo. Não
conseguia imaginar por que me encontrava ali, no escritório de Nicholas
Wyatt. Talvez, quando menino, ele gostasse de arrancar as patas dos
insetos, uma por uma, com alicates, para depois os incendiar com uma
lente de aumento.
— Então esta foi uma trapaça muito elaborada de sua autoria —
comentou. — Impressionante.
Sorri e baixei os olhos, modestamente. Negar nem passou pela minha
cabeça. Graças a Deus, pensei. Parecia que a coisa se encaminhava para os
aplausos e louvores à minha coragem.
— Mas ninguém chuta o meu saco e sai ileso, você já deve saber disso
a esta altura. E é ninguém mesmo, porra!
Pronto, ele já apanhara o alicate e a lente de aumento.
— De que se trata, então? Você tem sido um gerente de linha aqui
nestes três anos, suas avaliações são uma bosta, você não conseguiu um
aumento ou promoção, o tempo todo funcionando no automático. Não
chega exatamente a ser um sujeito ambicioso, chega?
Ele falava ligeiro, o que me deixava mais nervoso ainda. Sorri de novo.
— Acho que não. Acho que tenho outras prioridades.
— Como?
Hesitei. Ele tinha me pegado. Encolhi os ombros.
— Toda pessoa tem que ser apaixonada por alguma coisa, senão ela
não vale merda nenhuma. Você obviamente não é apaixonado pelo seu
trabalho, então é apaixonado por quê?
Quase nunca fico sem ter o que dizer, mas daquela vez não consegui
imaginar nada inteligente. Meacham me observava também, com um
sorriso canalha e sádico na cara cortada à faca. Eu estava pensando nos
sujeitos que conhecia, na companhia, na minha divisão, que estavam
sempre montando esquemas para conseguir trinta segundos com Wyatt,
dentro do elevador ou durante o lançamento de um produto ou onde quer
que fosse. Eles, inclusive, chegavam a preparar um "papo de elevador". E
eu ali, no escritório do mandachuva, mais silencioso que um manequim.
— Você é ator ou algo semelhante no seu tempo livre?
Sacudi a cabeça.
— Bem, de qualquer forma você é bom. De repente, um Marlon
Brando. Pode ser uma bosta quando se trata de roteadores para empresas,
mas é um puta de um artista da mentira, nível olímpico.
— Se isso é um cumprimento, senhor, muito obrigado.
— Eu soube que você faz um Nick Wyatt danado de bom — é verdade?
Vamos ver.
Eu corei, sacudi a cabeça.
— De qualquer forma, indo logo aos finalmentes, você roubou meu
dinheiro e parece pensar que vai escapar impune.
Fiquei estarrecido.
— Não, senhor, não penso em escapar impune.
— Poupe-me. Não preciso de outra demonstração. Você me pegou
assim que disse olá.
Wyatt abanou a mão como um imperador romano, e Meacham passou-
lhe uma pasta. Ele deu uma olhada.
— Seus escores de aptidão estão no primeiro percentil. Você fez
faculdade se especializando em engenharia, de que tipo?
— Elétrica.
— Queria ser engenheiro quando crescesse?
— Papai queria que eu me especializasse em alguma coisa que me
pudesse render um emprego de verdade. Eu queria tocar guitarra com
Pearl Jam.
— Tocava bem?
— Não — admiti.
Ele meio que sorriu.
— Você fez a faculdade em cinco anos. O que aconteceu?
— Fui suspenso por um ano.
— Parabéns pela sinceridade. Pelo menos não tentou aquela bobagem
de "passar o primeiro ano no exterior". O que foi que aconteceu?
— Uma idiotice. Tive um semestre ruim e por isso invadi o sistema de
computadores da escola e mudei minhas notas. Do meu colega de quarto
também.
— Um velho truque.
Ele olhou para o relógio, deu uma espiada em Meacham e depois me
encarou de novo.
— Tenho uma ideia para você, Adam — não gostei do modo como ele
disse meu primeiro nome; assustador. — Uma ideia muito boa. De fato,
uma oferta extremamente generosa.
— Obrigado, senhor.
Eu não sabia de que ele estava falando, mas sabia que não podia ser
bom nem generoso.
— O que vou lhe dizer eu vou negar que disse um dia. Na verdade, não
só vou negar, como também vou foder você com um processo de
difamação se algum dia repetir, está claro? Acabo com a porra da sua raça.
Fosse o que fosse o que estivesse falando, ele tinha os recursos. Era um
bilionário, talvez o terceiro ou quarto homem mais rico dos Estados
Unidos, mas que já tinha sido número dois antes que o valor de nossas
ações caísse. Queria ser o mais rico — estava perseguindo Bill Gates —
mas isso não parecia provável.
Meu coração bateu com mais força.
— Claro.
— Percebe com clareza a sua situação? Atrás da porta número um você
tem a certeza — a porra da certeza — de pegar pelo menos vinte anos de
cadeia. Será isso, ou será o que quer que esteja atrás da cortina. Quer
brincar de Vamos Fazer Um Trato?
Engoli em seco.
— Claro.
— Deixa eu lhe contar o que está atrás da cortina, Adam. É um futuro
excelente para um cara que fez faculdade e se especializou em engenharia
como você, só que vai ter que obedecer às regras. Às minhas regras.
Senti meu rosto pegando fogo.
— Quero que você se encarregue de um projeto especial para mim.
Balancei a cabeça.
— Quero que você vá trabalhar na Trion.
— Trion Systems? — eu não entendi.
— Em Marketing de Novos Produtos. Eles têm duas vagas em lugares
estratégicos na companhia.
— Eles jamais me contratariam.
— Não, você tem razão, eles nunca vão contratá-lo. Não um
preguiçoso de merda como você. Mas um superastro da Wyatt, um jovem
bem-sucedido, a pique de ser transformado em estrela supernova, será
contratado numa fração de segundo.
— Não estou entendendo.
— Um cara sabido como você? Acaba de perder dois pontos no seu QI.
Vamos, seu idiota. O Lucid — era seu brinquedinho, certo?
Ele estava falando do principal produto da Wyatt Telecom, aquele PDA
tudo-em-um, uma espécie de Palm Pilot anabolizado. Um brinquedo
incrível. Só que eu não tinha nada a ver com ele. Nem sequer possuía um.
— Eles não vão acreditar — falei.
— Vê se me escuta, Adam. Tomo minhas grandes decisões de negócios
na base do instinto, e meu instinto diz que você tem a cara de pau, a
inteligência e o talento para fazer o que eu quero. Está dentro ou está fora?
— Vai querer que eu lhe faça relatórios, é isso?
Wyatt me lançou um olhar penetrante.
— Mais que isso. Quero que você consiga informações.
— Como um espião. Um agente duplo ou coisa parecida.
Ele virou as palmas das mãos para cima, como se quisesse perguntar se
eu era um débil mental ou o quê.
— Chame como quiser. Há uma propriedade intelectual valiosa dentro
da Trion em que eu quero botar as mãos, e a segurança deles é
praticamente impenetrável. Só uma pessoa de dentro pode conseguir o que
desejo, e não é qualquer pessoa. Tem que ser um sujeito cabeça. Ou a gente
recruta um, ou compra ou mete pela porta da frente. No seu caso,
dispomos de um jovem inteligente, bonito, altamente recomendado... acho
que temos uma chance bem decente.
— E se eu for apanhado?
— Não será — afirmou Wyatt.
— Mas e se eu for...?
— Se fizer o trabalho direito — disse Meacham — não será apanhado.
E, se por qualquer razão você fizer besteira e for pego, bem, aí nós
estaremos aqui para protegê-lo.
De algum modo, duvidei desta afirmativa.
— Eles não terão um pingo de mim.
— Por quê? — perguntou Wyatt. — Neste ramo as pessoas pulam de
companhia para companhia o tempo todo. Os mais talentosos sempre são
visados. Você acaba de ter uma grande vitória na Wyatt, talvez não tenha a
vitalidade que pensa que deveria ter, está procurando mais
responsabilidade, melhor oportunidade, mais dinheiro — esse papo de
sempre.
— Eles vão perceber que estou mentindo.
— Não se você fizer seu trabalho direito — retrucou Wyatt. — Você
vai ter que aprender marketing de produto, vai ter que ser estupidamente
brilhante, vai ter que dar mais duro do que jamais deu em toda a sua vida
lamentável. Realmente vai precisar fazer das tripas coração. Só um grande
ator vai conseguir o que quero. Tente encenar na Trion algo como o
número telefônico com que você desencadeou a festa e eles vão acabar
com você ou botá-lo para fora, e aí nossa pequena experiência termina. E
você se verá diante da porta número um.
— Pensei que todos os caras que trabalhassem com produtos novos
tivessem MBA.
— Nada disso, Goddard acha que esse negócio de MBA é bobagem...
uma das poucas coisas em que nós dois concordamos. Ele não tem. Acha
que é limitador. Por falar em limitador — ele estalou os dedos e Meacham
lhe passou uma latinha redonda, que pareceu familiar a Adam. Uma
latinha de Altoids. Wyatt abriu-a. Dentro havia algumas pílulas brancas
que pareciam aspirina mas não eram. Definitivamente familiares. — Você
vai ter que cortar esta merda — prosseguiu ele —, este Ecstasy ou sei lá
como se chama.
Eu guardava a lata de Altoids em casa, na minha mesinha de centro.
Gostaria de saber como e quando eles a tinham apanhado, mas eu estava
por demais confuso para ficar zangado. Ele largou a latinha dentro de uma
pequena cesta de lixo feita de couro preto ao lado do sofá. Fez um barulho
engraçado — tunk.
— Mesma coisa com maconha, álcool, toda essa merda. Você vai ter
que tomar jeito e andar direito, cara.
Aquilo parecia o menor dos problemas.
— E se eu não conseguir ser contratado?
— Porta número um — ele deu um sorriso feio. — E não ponha seus
sapatos de golfe na mala. Só a vaselina.
— Mesmo que eu me esforce ao máximo?
— O seu trabalho é não estragar tudo. Com as qualificações que vamos
lhe dar e tendo um treinador como eu, você não terá desculpa.
— De que tipo de dinheiro estamos falando?
— Que tipo de dinheiro? E eu sei? Acredite em mim, será muito mais
do que você recebe aqui. Seis dígitos, de qualquer maneira.
Tentei não engolir visivelmente.
— Mais meu salário aqui.
Ele virou o rosto tenso para mim e me encarou. Não tinha a menor
expressão em seus olhos. Botox? Perguntei-me.
— Você está brincando comigo — disse ele.
— Vou correr um risco enorme.
— Como? Sou eu quem vai correr o risco. Você é uma porra de uma
caixa-preta, um enorme e gordo ponto de interrogação.
— Se realmente pensasse assim não me pediria para fazer isso.
Ele se virou para Meacham.
— Não acredito nesta merda.
Meacham parecia ter engolido um cagalhão.
— Seu merdinha. Eu devia pegar o telefone neste instante... Wyatt
levantou uma mão imperial.
— Tudo bem. Ele é peitudo. Gosto de caras peitudos. Você é
contratado, faz seu trabalho direito, você arranca dinheiro dos dois lados.
Mas se esculhambar tudo...
— Já sei. Porta número um. Deixa eu pensar no caso. Dou a resposta
amanhã.
O queixo de Wyatt caiu, seus olhos ficaram inexpressivos. Fez uma
pausa e depois falou, em tom glacial: — Eu lhe dou até as nove. Quando o
ministro da Justiça entrar nesta sala.
— Eu o previno a não dizer uma palavra disso a nenhum de seus
amigos, seu pai, ninguém — interveio Meacham. — Ou, então, nem saberá
o que o atingiu.
— Eu entendo — repliquei. — Não precisa me ameaçar.
— Oh, não é uma ameaça — disse Nicholas Wyatt. — É uma
promessa.
5
Não parecia haver razão para voltar ao trabalho, por isso fui para casa.
Era estranho estar no metrô à uma da tarde, juntamente com os velhos e os
estudantes, as mamães e as crianças. Minha cabeça ainda girava, e eu me
sentia constrangido.
Meu apartamento ficava a uns bons dez minutos de caminhada da
estação do metrô. Era um dia claro, ridiculamente alegre.
Minha camisa ainda estava molhada e exalava um cheiro horrível de
suor. Duas garotas de macacão e múltiplos piercings puxavam um bando
de meninos pequenos de um lado para outro numa corda comprida. Os
meninos gritavam. Uns caras pretos, sem camisa, jogavam basquete em
um playground asfaltado atrás de uma cerca de arame.
Os tijolos que revestiam a calçada eram irregulares, e eu quase
tropecei. Nessa altura, senti aquela nauseante coisa escorregadia debaixo
do meu pé, quando pisei num cocô de cachorro. Simbolismo perfeito.
A entrada do meu apartamento cheirava fortemente a urina, ou de gato
ou de um vagabundo. A velha do apartamento em frente abriu um
pouquinho sua porta, o suficiente para me permitir ver a corrente do fecho
de segurança, e depois bateu; ela era baixinha demais para alcançar o olho
mágico. Acenei para ela amistosamente.
O quarto era escuro mesmo que todas as persianas estivessem abertas.
O ar sufocante, cheirava a cigarros velhos. Como o apartamento ficava no
nível da rua, eu não podia deixar as janelas abertas durante o dia para
arejá-lo.
Minha mobília era patética: o sofá-cama esverdeado, de padrão
escocês, encosto alto e com uma crosta de cerveja, dominava o único
cômodo. Em frente a ele ficava uma televisão Sanyo de dezenove
polegadas que não tinha controle remoto. Uma estante de pinho, alta,
estreita e inacabada, ficava sozinha num canto. Sentei-me no sofá e uma
nuvem de poeira se levantou no ar. A barra de aço por baixo do assento
machucou meu traseiro. Pensei no sofá de Nicholas Wyatt, forrado de
couro negro e me perguntei se algum dia ele teria vivido numa lixeira
assim. Constava que tinha vindo do nada, mas eu não acreditava. Não
conseguia imaginá-lo vivendo numa ratoeira como aquela. Encontrei o
isqueiro Bic debaixo da mesinha que ficava junto do sofá, acendi um
cigarro e contemplei a pilha de contas em cima da mesa. Nem sequer abri
os envelopes. Havia dois MasterCards e três Visas, todos com saldos
devedores colossais, e eu mal podia fazer frente aos pagamentos mínimos.
Já tinha me decidido, é claro.
6
— Você foi demitido?
Seth Marcus, meu melhor amigo desde os primeiros anos de escola
secundária, trabalhava como atendente de bar três noites por semana, em
uma espelunca yuppie chamada Gato de Rua. De dia era assistente jurídico
em uma firma de advocacia situada no centro da cidade. Dizia que
precisava do dinheiro, mas eu estava convencido de que secretamente ele
trabalhava no bar a fim de preservar algum vestígio de segurança, evitando
se transformar no tipo de imbecil corporativo de quem nós dois
gostávamos de debochar.
— Qual foi o motivo?
Quanto eu lhe tinha contado? Cheguei a lhe falar sobre ter sido
chamado por Meacham, o diretor de segurança? Esperava que não. Agora
não podia dizer uma única palavra sobre o aperto em que eles tinham me
metido.
— Sua festança — o ambiente era barulhento, eu não podia ouvi-lo
direito e alguém do outro lado do bar estava assobiando, dois dedos
enfiados na boca, um assobio alto e muito agudo. — Aquele cara está
assobiando para mim? Como se eu fosse a porra de um cachorro?
Ele ignorou o assobiador.
Eu sacudi a cabeça.
— Você se safou, hein? Conseguiu sair impune, espantoso. O que
posso trazer para celebrar?
— Brooklyn Brown?
Ele sacudiu a cabeça.
— Não.
— Newcastle? Guinness?
— Que tal um chope? Eles não controlam os chopes.
Dei de ombros.
— Claro.
Ele tirou um chope para mim, amarelo e espumoso; Seth era
nitidamente novo no ofício. O chope derramou no tampo de madeira
arranhada do bar. Ele era um cara alto, cabelos escuros, boa pinta — um
autêntico ímã de garotas — com uma barbicha ridícula e um brinco. Seth
era meio judeu, mas queria ser preto. Tocava e cantava em uma banda
chamada Slither, que eu ouvira algumas vezes; não eram muito bons, mas
ele falava muito sobre "assinar um contrato". Tinha uns dez esquemas
fraudulentos funcionando ao mesmo tempo só para não ter que admitir que
não gostava de trabalhar.
Seth era o único sujeito que eu conhecia mais cínico que eu.
Provavelmente era esta a razão pela qual éramos amigos. Isso aliado ao
fato dele não ligar a mínima para o meu pai, embora no secundário tivesse
jogado futebol no time treinado (e tiranizado) por Frank Cassidy. Na
sétima série éramos da mesma classe e simpatizamos um com o outro na
mesma hora porque fomos ambos escolhidos para sermos ridicularizados
pelo professor de matemática, o sr. Pasquale. Saí da escola pública e fui
para a Bartholomew Browning & Knightley, uma sofisticada escola
preparatória para a qual meu pai tinha acabado de ser contratado, como
técnico de futebol e hóquei, o que me possibilitou uma bolsa integral.
Durante dois anos eu raramente vi Seth, até que papai foi demitido por ter
quebrado dois ossos do antebraço direito de um garoto e um osso do
antebraço esquerdo. A mãe do garoto era presidente da junta de
supervisores da Bartholomew Browning. Assim, a torneira da bolsa
completa foi fechada e eu voltei para a escola pública. Para onde papai foi
contratado também, depois da Bartholomew Browning.
Nós dois trabalhamos no mesmo posto de gasolina da Gulf durante a
escola secundária, até que Seth se cansou dos assaltos e foi para a Dunkin'
Donuts fazer donuts de noite. Por dois verões, ele e eu trabalhamos
limpando janelas para uma companhia que se encarregava de muitos
arranha-céus do centro da cidade, até que chegamos à conclusão de que
ficar pendurados por cordas do lado de fora do vigésimo sétimo andar
parecia ser mais legal do que realmente era. Não só era tedioso, como
assustador como o diabo, uma combinação abominável. Talvez haja quem
considere ficar pendurado do lado de fora de um edifício, a centenas de
metros de altura, um tipo de esporte radical, mas, para mim, era como uma
tentativa de suicídio em câmera lenta.
O assobio ficou mais alto. As pessoas olhavam para o assobiador, um
careca gordinho de terno, e já tinha gente rindo. — Vou perder a porra da
paciência — disse Seth.
— Não perca — falei, mas era tarde, Seth já tinha se dirigido para o
outro lado. Peguei um cigarro e acendi enquanto o observava se debruçar
sobre o bar, encarando, furioso, o assobiador. Deu a impressão de que ia
agarrar a lapela do cara, mas deteve-se à última hora. Disse qualquer
coisa. Algumas pessoas que estavam por perto deram risada. Com um ar
tranquilo e relaxado, Seth voltou. No caminho, parou para falar com duas
mulheres lindas, uma loura e uma morena, e sorriu para elas.
— Pronto. Eu não acredito que você ainda fume — ele me disse. —
Um idiota de merda, como seu pai.
Ele pegou um cigarro do meu maço, acendeu, deu uma tragada e jogou
no cinzeiro.
— Obrigado por não me agradecer por não fumar — falei. — E então,
qual é a sua desculpa?
Ele exalou pelas narinas.
— Cara, eu gosto de ser multitarefa. Por outro lado, não há câncer na
minha família. Só insanidade.
— Ele não tem câncer.
— Enfisema. Seja o que for. Como vai o velho?
— Ótimo — dei de ombros. Eu não estava a fim de falar dele, e
tampouco Seth.
— Cara, uma daquelas bonitinhas quer um Cosmopolitan e a outra um
drinque gelado. Odeio isso.
— Por quê?
— Dão muito trabalho, e depois recebo uma gorjeta de um quarto de
dólar. As mulheres nunca dão gorjeta, por sinal. É uma coisa que aprendi.
Jesus, você abre duas Buds, ganha dois dólares. Drinques gelados! — ele
sacudiu a cabeça. — Cara.
Ele saiu por uns minutos, fez um barulhão com uma porção de coisas à
sua volta, o liquidificador gritando. Serviu os drinques das garotas com
um dos seus sorrisos excepcionais. Elas não iam lhe dar a gorjeta. As duas
se viraram para mim e sorriram.
Quando ele voltou, perguntou: — O que é que você vai fazer mais
tarde?
— Mais tarde?
Já eram quase dez horas, e eu tinha que me encontrar com um
engenheiro da Wyatt às sete e meia da manhã. Dois dias treinando com ele,
um cara importante do projeto Lucid, depois mais dois dias com um
gerente de marketing de novos produtos, além de sessões regulares com
um "treinador executivo". Eles tinham inventado um esquema assassino.
Campo de treinamento execrável para recrutas execráveis e puxa-sacos,
era como eu via aquilo. Nada mais de coçar o saco, chegar às nove ou dez.
Mas eu não podia contar a Seth; não podia contar a ninguém.
— Termino o serviço à uma hora — disse ele. — Aquelas duas garotas
perguntaram se eu queria ir ao Nightcrawler com elas depois. Falei que eu
tinha um amigo. Elas acabaram de avaliar você e toparam.
— Não posso.
— Hein?
— Tenho que trabalhar cedo. Chegando na hora, no duro.
Seth ficou alarmado, incrédulo.
— O quê? O que está acontecendo?
— O trabalho está ficando sério. O dia começa cedo amanhã. Grande
projeto.
— Isso é uma piada, certo?
— Lamentavelmente, não. Você não tem que trabalhar de manhã
também?
— Você está se tornando um Deles? Um dos Invasores?
Sorri.
— Hora de crescer. Chega de bancar a criança.
Seth pareceu enojado.
— Meu amigo, nunca é tarde para se ter uma infância feliz.
7
Após dez exaustivos dias de aulas particulares e doutrinação por
engenheiros que tinham estado envolvidos com o computador portátil
Lucid, minha cabeça transbordava de todo tipo de informação inútil.
Deram-me um minúsculo "escritório" na suíte executiva que antes era um
depósito de suprimentos, embora eu quase nunca fosse lá. Eu aparecia no
horário devido e não dava problema a ninguém.
Não sabia por quanto tempo seria capaz de continuar mantendo aquele
comportamento, mas a imagem do catre em uma cela da prisão de Marion
me mantinha motivado.
Então chegou o dia em que me mandaram comparecer a uma sala no
corredor executivo duas portas depois do escritório de Nicholas Wyatt. O
nome na placa de latão presa na porta indicava JUDITH BOLTON. A sala era
toda branca — tapete branco, estofamento branco, uma laje de mármore
branco que servia de mesa e até mesmo flores brancas.
Em um sofá de couro branco, Nicholas Wyatt estava sentado ao lado de
uma mulher atraente dos seus quarenta anos de idade que tagarelava
familiarmente com ele, tocando o braço dele de vez em quando, rindo.
Cabelo vermelho acobreado, longas pernas cruzadas na altura do joelho, o
corpo esbelto que ela, sem dúvida, exercitava duramente, vestido com um
costume azul-marinho. Tinha olhos azuis, lábios brilhantes em forma de
coração, sobrancelhas arqueadas provocadoramente. Estava na cara que
tinha sido deslumbrante, mas o tempo não a beneficiara.
Percebi que a tinha visto antes, na última semana talvez, ao lado de
Wyatt, quando ele fazia suas rápidas visitas às minhas sessões de
treinamento com os caras do marketing e os engenheiros. Sempre parecia
estar cochichando no ouvido dele, olhando para mim, mas nunca fomos
apresentados, e eu sempre tivera curiosidade de saber quem seria.
Sem se levantar do sofá, ela estendeu a mão quando me aproximei —
dedos longos, unhas pintadas de vermelho — e me concedeu um aperto
firme, estritamente de negócios.
— Judith Bolton.
— Adam Cassidy.
— Você está atrasado — disse ela.
— Eu me perdi — falei, tentando alegrar um pouco o ambiente. Ela
sacudiu a cabeça, sorriu e contraiu os lábios.
— Você tem um problema com pontualidade. Não quero que se atrase
nunca mais, estamos combinados?
Respondi com um sorriso, o mesmo sorriso que dirigia aos guardas
quando me perguntavam se eu sabia a que velocidade estava andando. A
dama era durona.
— Combinadíssimos — falei, sentando-me em frente a ela.
Wyatt se divertia apreciando o diálogo.
— Judith é uma de minhas auxiliares mais valiosas — disse ele. —
Minha consigliere, e sua Svengali. Sugiro que você ouça cada puta palavra
que ela diga.
Eu ouço.
Com isso, Wyatt se levantou e pediu licença. Ela lhe dirigiu um aceno
quando ele saiu.
Você não me teria reconhecido mais. Mudei por completo. Nada mais
de calhambeques; passei a dirigir um Audi A6 prateado, arrendado pela
companhia. Entrei na posse de um novo guarda-roupa também. Uma das
assistentes de Wyatt, a negra, que, como vim a descobrir, tinha sido
modelo nas Índias Ocidentais Britânicas, levou-me para fazer compras
numa tarde em uma loja caríssima onde eu nunca entrara e que era,
segundo me informou, o lugar onde comprava as roupas de Nick Wyatt.
Escolheu ternos, camisas, gravatas e sapatos e mandou debitar tudo num
cartão Amex da companhia. Comprou inclusive meias. Nada da porcaria
daquela Structure que eu estava acostumado a usar, e sim Armani e
Ermenegildo Zegna. Tinham sua aura: era possível dizer que eram feitas à
mão por viúvas italianas enquanto ouviam Verdi.
As costeletas — "maçanetas de sodomita", como dizia — tinham que
desaparecer, decidiu. Nada mais, tampouco, daquela cabeça que dava a
impressão de que eu tinha acabado de acordar. Levou-me a um salão grã-
fino, de onde saí parecendo um modelo da Ralph Lauren, só que não tão
bicha. Fiquei com medo da próxima vez em que Seth e eu nos
encontrássemos.
Uma justificativa foi inventada. Meus colegas e gerentes na antiga
seção de Roteadores para a Divisão Empresas foram informados de que eu
tinha sido "transferido".
Circularam boatos de que eu estava sendo mandado para a Sibéria
porque o gerente da minha divisão estava cansado de minha atitude. Outro
boato dizia que um dos vice-presidentes seniores da Wyatt admirara um
memorando que eu escrevera e "gostara da minha atitude", e por isso
estavam me dando mais responsabilidade, e não menos. Ninguém sabia a
verdade. Tudo o que todo mundo sabia era que um dia eu tinha sumido de
repente do meu cubículo.
Se alguém tivesse se dado ao trabalho de examinar o organograma da
firma no site da Wyatt, teria notado que meu título agora era Diretor de
Projetos Especiais, Gabinete do Presidente.
Uma trilha eletrônica e de papel estava sendo criada.
Judith virou-se para mim e continuou, como se Wyatt nunca tivesse
estado ali.
— Se você for contratado pela Trion, vai ter que chegar ao seu
cubículo com quarenta e cinco minutos de antecedência. Em nenhuma
circunstância tomará um drinque no almoço ou depois do trabalho. Nada
de happy hours, nem de coquetéis, ou "passar tempo" com "amigos" do
trabalho. Nada de festas. Se comparecer a uma festa relacionada ao
trabalho, beba club soda.
— Você me faz pensar que estou no AA.
— Embebedar-se é sinal de fraqueza.
— Presumo então que fumar esteja fora de questão.
— Errado. É um hábito imundo e nojento que indica falta de
autocontrole, mas há outras considerações. Circular num fumódromo é
uma excelente maneira de se ligar com gente de diferentes unidades e
obter inteligência útil. Agora, quanto ao seu aperto de mão — ela sacudiu
a cabeça. — Uma droga. Decisões de contratação são tomadas nos cinco
primeiros segundos — no aperto de mãos. Quem lhe disser outra coisa
estará mentindo para você. Você ganha o emprego com o aperto de mão, e
depois o resto da entrevista se destina a lutar para não perdê-lo. Como sou
mulher, você apertou minha mão com suavidade. Não faça isso. Seja
firme, aperte com força e segure...
Interrompia com um sorriso malicioso.
— A última mulher que me disse isso... — notei que ela se detivera no
meio da frase. — Desculpe.
Com a cabeça inclinada de lado, como um gatinho, ela sorriu, também
com malícia.
— Obrigada — uma pausa. — Sustente o aperto de mão por mais um
ou dois segundos. Olhe-me nos olhos e sorria. Jogue seu coração para
mim. Vamos fazer de novo.
Eu me levantei e apertei a mão de Judith Bolton de novo.
— Melhor — disse ela. — Você tem talento inato. Quando o
conhecerem, as pessoas vão pensar: puxa, há qualquer coisa a respeito
desse cara que eu gosto, não sei o que é.
Ela me dirigiu um olhar avaliador.
— Você quebrou seu nariz?
Balancei a cabeça.
— Deixe-me adivinhar: jogando futebol?
— Na verdade, foi hóquei.
— É bonito. Você é atleta, Adam?
— Fui — eu me sentei de novo.
Ela se inclinou para a frente na minha direção, o queixo descansando
na mão em concha, me examinando.
— Sei o que é. Está no modo como você anda, no modo como carrega
seu corpo. Eu gosto. Mas você não está sincronizando.
— Como?
— Você tem que sincronizar. Espelhar. Estou inclinada para a frente, e
você devia fazer o mesmo. Eu me inclino para trás, você se inclina para
trás. Cruzo as pernas, você cruza as pernas. Observe a inclinação da minha
cabeça, e me imite. Sincronize inclusive a sua respiração com a minha.
Apenas seja sutil, não dê na vista. Este é o modo como você se liga com as
pessoas em um nível subconsciente, fazendo com que se sintam
confortáveis na sua companhia. As pessoas gostam de pessoas parecidas
com elas próprias. Estamos entendidos?
Sorri de modo tranquilizador, ou pelo menos de um jeito que achei que
fosse tranquilizador.
— E, outra coisa — ela se inclinou mais até que seu rosto ficou apenas
a uns poucos centímetros do meu. — Você está usando loção pós-barba
demais — murmurou.
Meu rosto ardeu de vergonha.
— Deixa que eu adivinhe: Drakkar Noir — ela não esperou a minha
resposta porque sabia que estava certa. — Coisa de galã do ensino médio.
Aposto como fazia as garotas da torcida sentirem as pernas bambas.
Mais tarde eu vim a saber quem era Judith Bolton. Era uma vice-
presidente sênior que tinha sido trazida para a Wyatt Telecom alguns anos
antes, quando era uma poderosa consultora da McKinsey & Company, a
fim de assessorar Nicholas Wyatt pessoalmente em assuntos sensíveis de
pessoal, "resolução de conflitos" nos mais altos escalões da companhia e
em certos aspectos de operações psicológicas relativos a negócios,
aquisições e negociações. Tinha um Ph.D. em psicologia comportamental,
por isso era chamada dra. Bolton. Quer fosse chamada de "treinadora
executiva" ou "estrategista de liderança", era como se fosse a treinadora
olímpica pessoal de Wyatt. Aconselhava-o sobre quem tinha matéria-
prima aproveitável para ser executivo e quem não tinha, quem devia ser
demitido, quem estava montando esquemas nas costas dele. Tinha uma
visão de raios X de deslealdades. Sem dúvida, ele a tirara da McKinsey
pagando-lhe um salário astronômico. Ali, na Wyatt, era poderosa e segura
o bastante para contradizer Wyatt na cara e dizer coisas que ele não
aceitaria de mais ninguém.
— Agora, nossa primeira tarefa é aprender como fazer uma entrevista
para emprego — disse ela.
— Eu fui contratado aqui — retruquei, sem muita convicção.
— Estamos jogando agora em outra liga, Adam — disse ela, sorrindo.
— Você é um vencedor e tem que fazer uma entrevista como um vencedor,
como alguém que a Trion vá se virar pelo avesso para nos tirar. Gosta de
trabalhar para a Wyatt?
Olhei para ela, sentindo-me um imbecil.
— Bem, estou tentando sair daqui, não estou?
Ela rolou os olhos para cima e inspirou fundo.
— Não. Mantenha-se positivo.
Ela virou a cabeça de lado e fez uma imitação assombrosa da minha
voz.
— Adoro a Wyatt! É totalmente estimulante! Meus colegas são
maravilhosos!
A imitação foi tão boa que me deu uma expressão meio sobrenatural;
foi como ouvir minha própria voz em uma secretária eletrônica.
— Então por que estou fazendo uma entrevista na Trion?
— Oportunidades, Adam. Não há nada de errado com o seu emprego
na Wyatt. Você não está insatisfeito. Está apenas dando o próximo passo
lógico em sua carreira e há mais oportunidades na Trion para fazer coisas
ainda maiores e melhores. Qual é a sua maior fraqueza, Adam?
Pensei por um segundo.
— Na verdade, nenhuma — respondi. — Nunca admito uma fraqueza.
Ela fez uma careta.
— Ora, pelo amor de Deus. Eles vão pensar que você é delirante ou
burro.
— É uma pergunta capciosa.
— É claro que é uma pergunta capciosa. Entrevistas de emprego são
campos de minas. Você tem que admitir fraquezas, mas não contar a
ninguém algo que seja depreciativo. Assim você confessa ser um marido
fiel demais, um pai excessivamente amoroso. Ela imitou de novo a voz de
Adam.
— Às vezes eu gosto tanto de utilizar um programa que não exploro
outros programas. Ou: às vezes quando pequenos detalhes me irritam, eu
não reclamo, porque imagino que a maioria das coisas tende a ser
esquecida. Você não reclama o suficiente! Ou, que tal esta aqui: tendo a
ficar realmente absorto num projeto, de modo que às vezes exagero e fico
trabalhando tempo demais naquilo, porque adoro fazer aquela coisa, adoro
fazer com que tudo dê certo. Talvez eu trabalhe em algumas coisas mais
que o necessário. Entendeu? Eles vão salivar, Adam.
Eu sorri, balancei a cabeça. Puxa vida, em que eu fora me meter?
— Qual foi o maior erro que você já cometeu no trabalho?
— Obviamente tenho que admitir alguma coisa — falei, nervoso.
— Você aprende depressa — disse ela, secamente.
Talvez eu tenha assumido um encargo grande demais uma vez...
— E aí se ferrou todo? Provando que não conhece os limites da sua
própria incompetência? Acho que não. Você diz: "Oh, na verdade, nada de
importante. Uma vez eu estava trabalhando num relatório enorme para o
meu chefe, esqueci de fazer uma cópia de segurança e meu computador
congelou. Perdi tudo. Tive que ficar acordado até as três da madrugada,
recriando completamente o trabalho perdido. Puxa, aprendi minha lição —
agora sempre faço cópias de segurança." Entendeu? O maior erro que você
cometeu não foi por culpa sua. Além disso, você corrigiu tudo.
— Entendi.
O colarinho da minha camisa estava apertado demais e eu quis sair
dali.
— Você é talentoso, Adam — disse ela. — Nasceu talentoso e vai se
sair muito bem.
8
Na noite anterior à minha primeira entrevista na Trion, fui visitar meu
pai. Eu ia lá uma vez por semana, dependendo se ele me telefonava e pedia
para que eu fosse vê-lo. Ele me telefonava muito, primeiro porque é
solitário (mamãe morreu seis anos atrás), depois porque é paranoico
devido aos esteroides que tomava e estava convencido de que os
enfermeiros tentavam matá-lo. Assim, seus telefonemas nunca eram
amistosos, nunca meros bate-papos; eram sempre reclamações, desvarios e
acusações. Alguns de seus analgésicos estavam faltando, dizia, e ele estava
convencido de que Caryn, a enfermeira, os furtara. O oxigênio fornecido
pela companhia de oxigênio era da pior qualidade. Rhonda, a enfermeira,
vivia tropeçando na mangueira de ar e arrancando as cânulas de seu nariz,
quase lhe arrancando as orelhas.
Dizer que era difícil conservar as pessoas que cuidavam dele era uma
atenuação cômica da verdade. Raramente duravam mais que algumas
poucas semanas. Francis X. Cassidy, meu pai, era um homem mal-
humorado, sempre tinha sido mal-humorado, desde que eu era capaz de me
lembrar, e só tinha piorado ao ficar mais velho e mais doente. Sempre
fumara dois maços de cigarros por dia e tinha uma tosse alta e seca que
acabara por se transformar em bronquite. Assim, não foi surpresa alguma
quando o médico diagnosticou enfisema. O que ele esperava? Havia anos
que não conseguia soprar as velas do bolo de aniversário. O enfisema
agora estava no que os médicos chamavam de estágio final, significando
que poderia morrer em duas semanas, ou meses ou, quem sabe, dez anos.
Ninguém sabia.
Lamentavelmente, cabia a mim, único filho, providenciar o
tratamento. Ele ainda morava no apartamento térreo com porão, no
edifício de três andares onde eu fora criado, e não tinha mexido em nada
desde que mamãe morrera — a mesma geladeira amarelo-ouro que nunca
funcionava direito, o sofá arriado para um lado, as cortinas de renda
amareladas pelo tempo. Não economizara nada, e sua pensão era digna de
pena; mal ganhava o suficiente para cobrir as despesas médicas. Isto
significava que parte do meu contracheque ia para o seu aluguel, o salário
das pessoas que tratavam dele, o que fosse. Eu jamais esperara
agradecimentos e nunca os recebera. Nunca em um milhão de anos ele me
pediria dinheiro. Nós dois fingíamos que ele vivia de sua poupança ou algo
assim.
Quando cheguei, estava sentado na sua poltrona, uma Barcalounger, na
frente da imensa TV, sua principal ocupação. Permitia que se queixasse em
tempo real.
Com tubos no nariz (agora precisava respirar oxigênio vinte e quatro
horas por dia), assistia a um longo comercial na tevê a cabo.
— Oi, papai — cumprimentei.
Ele não levantou a cabeça por mais de um minuto, tão hipnotizado
estava pelo longo comercial, que devia ser mais interessante que a cena do
chuveiro em Psicose.
Ficara magro, embora ainda tivesse um tórax de barril, e o cabelo à
escovinha era branco. Quando me olhou, disse: — A vaca está indo
embora, sabe?
A "vaca" em questão era sua última acompanhante, uma irlandesa mal-
humorada com cinquenta e tantos anos e cabelo escandalosamente pintado
de vermelho. Ela entrou na sala de estar, como se obedecesse a um sinal,
mancando — tinha um problema no quadril —, com uma cesta plástica de
roupa na qual havia uma pilha de camisetas brancas cuidadosamente
dobradas e shorts, o amplo guarda-roupa do meu pai. A única surpresa
acerca da sua demissão era o fato de ter demorado tanto tempo. Ele tinha
uma pequena campainha sem fio comprada na Video Shack, presa na
mesinha ao lado da Barcalounger, que apertava para chamá-la sempre que
precisava de alguma coisa, o que parecia ser constantemente. O oxigênio
não funcionava, ou os tubinhos do nariz estavam secando suas narinas ou
ele precisava de ajuda para ir ao banheiro urinar. De vez em quando ela o
levava para dar umas voltas na cadeira motorizada para que ele pudesse
passear no shopping, reclamar dos punks e xingar mais um pouco.
Ele a acusou de tentar envenená-lo. Levaria uma pessoa normal à
loucura, e Maureen já parecia bem nervosa.
— Por que não conta a seu filho do que me chamou? — disse ela,
pondo a cesta de roupa em cima do sofá.
— Oh, pelo amor de Deus — disse ele. Papai falava entrecortado, em
sentenças curtas, já que estava sempre sem fôlego.
— Você vem pondo fluido anticongelante no meu café. Eu sinto o
gosto. Chamam isso de velhicídio, sabe. Assassinatos disfarçados.
— Se eu quisesse matar alguém usaria algo melhor que fluido
anticongelante — retrucou ela. Seu sotaque irlandês ainda era forte,
mesmo já morando há vinte e tantos anos nos Estados Unidos. Meu pai
inevitavelmente acusava as acompanhantes de tentarem matá-lo. Se fosse
verdade, quem poderia culpá-las?
— Ele me chamou de... uma palavra que nem posso repetir.
— Puta que me pariu, eu a chamei de babaca. Uma palavra polida para
o que ela é. Ela me agrediu. Fico aqui na cadeira preso nessa porra desses
tubos e essa vaca aí me batendo.
— Tirei o cigarro das mãos dele — disse Maureen. — Tentou fumar
um cigarro enquanto fui lá embaixo lavar a roupa. Como se eu não pudesse
sentir o cheiro em toda a casa — ela me olhou. — Ele não pode fumar!
Não sei onde esconde os cigarros, mas está escondendo em algum lugar,
eu sei!
Meu pai sorriu triunfantemente, mas nada disse.
— Seja como for, por que estou me incomodando? — disse ela,
amargurada. — Este é o meu último dia. Não aguento mais.
A audiência paga no comercial da televisão gritou e aplaudiu
loucamente.
— Como se eu fosse notar — disse papai. — Ela não faz merda
nenhuma. Olha só a poeira nesta casa. O que diabos faz esta vaca?
Maureen pegou a cesta de roupa.
— Eu devia ter ido embora um mês atrás. Nunca deveria ter aceitado
este emprego.
Ela deixou a sala com o seu estranho passo de pônei manco.
— Eu deveria tê-la despedido no minuto em que a conheci —
resmungou ele. — Dava para ver que ela era uma dessas mulheres que
assassinam velhos na calada da noite.
Ele respirou com os lábios contraídos, como se estivesse inspirando
através de um canudinho.
Eu não sabia o que ia fazer agora. O cara não podia ficar sozinho, não
podia sequer ir ao banheiro sem ajuda. Recusava-se a ir para um asilo;
dizia que se mataria antes.
Pus minha mão sobre a mão esquerda dele, em cujo dedo indicador
estava preso um indicador luminoso vermelho, oxímetro de pulso, acho
que é como se chama. Os números digitais do monitor diziam 88 por
cento.
— Arranjaremos alguém, pai, não se preocupe.
Ele levantou a mão, afastando a minha.
— Que raios de enfermeira ela é, afinal? Não liga a mínima para
ninguém.
Meu pai teve um longo acesso de tosse, pigarreou e cuspiu em um
lenço embolado que tirou de algum lugar da sua cadeira.
— Não sei por que diabos você não se muda para cá de novo. O que é
que tem para fazer, afinal? Tem um emprego desses que não levam o
sujeito a parte alguma.
Sacudi a cabeça.
— Não posso, papai — respondi, delicadamente. — Tenho
empréstimos de estudante para pagar.
Não me referi ao fato de que alguém tem que ganhar dinheiro para
pagar as acompanhantes que estavam sempre se demitindo.
— Que porcaria de faculdade você fez? — disse ele. — Desperdício de
dinheiro, mais nada. Eu não precisava gastar vinte mil dólares por ano
para você passar o tempo todo na bandalha com seus amiguinhos
extravagantes. Você podia ter se divertido sem sair de casa.
Sorri para que ele visse que eu não estava ofendido. Eu não sabia se
eram os esteroides, o corticoide chamado prednisona, que ele tomava para
manter as vias aéreas abertas, que faziam dele tamanho panaca, ou se era
apenas sua natureza doce e delicada.
— Sua mãe, que Deus a tenha, estragou você. Transformou o filho em
um gato grande e gordo — ele sorveu um hausto de ar. — Você está
desperdiçando a sua vida. Quando vai conseguir um emprego de verdade,
afinal?
Papai era perito em tocar nos pontos sensíveis. Deixei passar uma onda
de raiva. Não dava para levar o cara a sério, você ficava maluco. Tinha o
temperamento de um cão de ferro-velho. Sempre achei que sua fúria era
como raiva canina — ele não era realmente cônscio do que fazia, portanto
não dava para culpá-lo. Ele nunca fora capaz de controlar seu
temperamento. Quando eu era menino, pequeno demais para reagir, ele
puxava o cinto da calça à menor provocação e me dava uma surra. E
quando terminava, invariavelmente resmungava: "Viu o que me obrigou a
fazer?"
— Estou providenciando — falei.
— Eles são capazes de farejar um perdedor a um quilômetro de
distância, você sabe.
— Eles quem?
— Essas companhias. Ninguém quer um perdedor. Todo mundo só quer
vencedores. Vá pegar uma Coca pra mim, sim?
Aquele era seu mantra, que vinha dos seus tempos de treinador — que
eu era um "perdedor", que a única coisa que contava era vencer, que
chegar em segundo era perder.
Houve uma época em que esse papo me irritava. A esta altura, porém,
eu já estava acostumado e mal escutava o que ele dizia.
Fui até a cozinha, pensando no que iríamos fazer. Ele precisava de
assistência vinte e quatro horas por dia, sem dúvida. Mas nenhuma das
agências nos mandaria mais alguém. No princípio, tínhamos enfermeiras
de verdade, trabalhando além do emprego no hospital para ganhar um
dinheiro extra. Depois que ele acabou com elas, uma por uma,
conseguimos encontrar uma série de pessoas marginalmente qualificadas
que tinham passado por duas semanas de treinamento para obter um
certificado de auxiliar de enfermagem. Depois foi quem diabos
conseguíamos encontrar nos classificados dos jornais.
Maureen arrumara a geladeira Kenmore amarelo-ouro de um modo que
poderia passar por propriedade de um laboratório do governo. As Cocas
estavam, uma fileira atrás da outra, em uma estante de metal que ela
ajustara de modo a ficar da altura exata. Até mesmo os copos no armário,
geralmente embaçados e cheios de manchas, estavam cintilantes. Enchi
dois deles com gelo e servi o conteúdo de uma lata em cada um. Eu teria
que fazer Maureen se sentar, pedir desculpas em nome de papai, pedir e
suplicar, suborná-la se necessário. Ela podia ficar pelo menos até que eu
encontrasse uma substituta. Talvez eu pudesse apelar para o seu senso de
responsabilidade para com os idosos, embora imaginasse que tivesse sido
muito erodido pelo mau humor de meu pai. A verdade é que eu estava
desesperado. Se faltasse às entrevistas de amanhã teria todo o tempo do
mundo, mas estaria atrás das grades em algum lugar de Illinois. De nada
adiantaria.
Voltei com os copos, o gelo tilintando enquanto andava. O comercial
ainda estava sendo exibido. Quanto tempo essas coisas duravam? E quem
assistia, afinal? Quer dizer, sem ser meu pai?
— Papai, não se preocupe com nada — falei, mas ele já estava
inconsciente.
Fiquei a seu lado por uns segundos, para ver se respirava. Respirava. O
queixo encostado no peito e a cabeça torta, num ângulo esquisito. Mas
respirava. O oxigênio sibilava baixinho. Em algum ponto do porão,
Maureen trabalhava, provavelmente ensaiando o que dizer na hora da
partida. Coloquei as Cocas na mesinha cheia de remédios e controles
remotos.
Inclinei-me e beijei a testa manchada do velho.
— Arranjaremos alguém — falei baixinho.
9
A sede da Trion Systems parecia um Pentágono de aço escovado.
Cada um dos cinco lados era uma "ala" de sete andares. Tinha sido
projetada por um arquiteto famoso. Embaixo do prédio, ficava o
estacionamento cheio de BMWs e Range Rovers e uma porção de fuscas e
mais o que se possa imaginar, mas não havia vagas demarcadas, tanto
quanto pude observar.
Dei meu nome para a "embaixadora do saguão" da ala B, que era como
chamavam a recepcionista. Ela imprimiu um adesivo que dizia VISITANTE,
que colei no bolso da frente do meu paletó do terno Armani cinza, e
esperei no saguão que outra mulher chamada Stephanie viesse me buscar.
Stephanie era assistente do vice-presidente de contratações, Tom
Lundgren. Tentei me distrair, meditar, relaxar. Lembrei a mim mesmo que
não podia querer melhor arranjo. A Trion estava querendo preencher uma
vaga de gerente de marketing de produto — um sujeito tinha ido embora
de repente, e eu fora preparado para o lugar, modificado geneticamente e
digitalmente remasterizado. Nas últimas semanas, uns poucos
selecionados caçadores de talentos tinham sido informados a respeito de
um assombroso rapaz da Wyatt que estava maduro para ser colhido. Uma
fruta madura à beira da estrada. A notícia foi espalhada, em caráter casual,
durante uma convenção da indústria, por baixo dos panos. Comecei a
receber toda a espécie de recados no meu correio de voz.
Por minha vez, eu fizera o dever de casa sobre a Trion Systems.
Aprendera que era um gigante de produtos eletrônicos destinados a
consumidores, fundada em 1970 pelo lendário Augustine Goddard, cujo
apelido não era Gus e sim Jock. Jock era quase uma figura cult. Graduou-
se na Cal Tech, serviu na Marinha, foi trabalhar na Fairchild
Semiconductor e depois na Lockheed, e foi o responsável por um grande
aperfeiçoamento na tecnologia para fabricação de tubos de televisão em
cores.
Era geralmente considerado um gênio, mas, ao contrário de alguns dos
gênios que fundaram imensas corporações multinacionais, não parecia ser
um panaca. As pessoas gostavam dele, eram fervorosamente leais a ele.
Era uma presença distante, paternal. Os raros vislumbres que se tinha de
Jock Goddard eram chamados de "visões", como se ele fosse um objeto
voador não identificado.
Muito embora a Trion não fabricasse mais tubos de televisão, o tubo
Goddard fora licenciado para a Sony e a Mitsubishi e as outras
companhias japonesas que fabricam aparelhos de tevê nos Estados Unidos.
Mais tarde a Trion entrara para o ramo das comunicações eletrônicas,
alavancada pelo famoso modem Goddard. Atualmente fabricava telefones
celulares e pagers, componentes de computadores, impressoras laser
coloridas, PDA e todo esse tipo de coisa.
Uma mulher alta e delgada, de cabelo castanho encaracolado, emergiu
de uma porta que se abria no saguão.
— Você deve ser Adam.
Dei-lhe um belo e firme aperto de mão.
— Prazer em conhecê-la.
— Sou Stephanie — disse ela —, assistente de Tom Lundgren.
Ela me levou até o elevador e ao sexto andar. Conversamos sobre
banalidades. Tentava parecer entusiasmada, mas não tarada por
computadores, e parecia distraída.
O sexto andar era tipicamente dividido em módulos, com cubículos
que se espalhavam tanto quanto a vista alcançava, altos como um olho de
elefante. A rota pela qual me levou era um labirinto; eu não seria capaz de
voltar, mesmo que tivesse deixado cair migalhas de pão. Tudo ali era
padronizado, distribuído pela companhia, a não ser pela proteção de tela
de um monitor pelo qual passei e que era a imagem em 3-D da cabeça de
Jock Goddard, sorrindo e girando como a de Linda Blair em O exorcista.
Faça isso com Nick Wyatt — quer dizer, com a cabeça dele — e os
seguranças da Wyatt provavelmente quebram seus joelhos.
Chegamos a uma sala de reuniões em que havia, afixada na porta, uma
placa que dizia STUDEBAKER.
— Studebaker? — indaguei.
— É, todas as salas de reunião da firma levam os nomes de carros
americanos clássicos. Mustang, Thunderbird, Corvette, Camaro. Jock ama
carros americanos.
Ela disse Jock com uma entonação que funcionou quase como se a
palavra estivesse entre aspas, indicando, talvez, que na verdade não tivesse
intimidade com o homem para chamá-lo pelo primeiro nome, mas que era
assim que todos o chamavam.
— Posso lhe arranjar alguma coisa para beber?
A instrução que recebera de Judith Bolton era que sempre sim, porque
as pessoas gostam de fazer favores e todo mundo, mesmo as assistentes
administrativas, seriam instadas a dizer o que tinham achado de mim.
— Coca, Pepsi, o que tiver — respondi. Não quis parecer exigente
demais. — Obrigado.
Sentei-me na lateral da mesa, o lado que dava para a porta, e não na
cabeceira. Dois minutos depois, um cara compacto, usando calça de brim
cáqui e camisa polo azul-marinho com a logomarca da Trion, entrou na
sala com passos elásticos. Era Tom Lundgren: reconheci-o imediatamente
graças ao dossiê que a dra. Bolton tinha preparado. Vice-presidente do
Setor de Comunicações Pessoais. Quarenta e três anos, cinco filhos,
golfista entusiasmado. Logo atrás dele, veio Stephanie, com uma lata de
Coca-Cola e uma garrafa de Aquafina.
Ele me deu um aperto de mão de esmagar ossos.
— Adam, sou Tom Lundgren.
— Prazer em conhecê-lo.
— Prazer em conhecer você. Ouço coisas ótimas a seu respeito.
Sorri e encolhi os ombros modestamente. Lundgren não estava sequer
usando uma gravata, pensei, enquanto eu parecia um papa-defunto. Judith
Bolton me advertira que isso podia acontecer, mas disse também que era
melhor eu me vestir com apuro excessivo para as entrevistas do que
aparecer numa roupa casual demais. Sinal de respeito e tudo mais.
Ele se sentou ao meu lado e virou-se para me encarar. Stephanie fechou
a porta silenciosamente ao sair.
— Sou capaz de apostar como o trabalho lá na Wyatt anda bem intenso
— disse ele.
Tom Lundgren tinha lábios extremamente finos e um sorriso rápido
que aparecia e desaparecia em seguida. Seu rosto era irritado, vermelho,
como se jogasse golfe demais, tivesse rosácea ou algo assim. A mão
direita subia e descia como um êmbolo. Era um feixe de energia nervosa,
uma massa densa de células nervosas; parecia ter excesso de cafeína no
sangue e me fazia falar depressa. Então me lembrei de que era mórmon e
não ingeria cafeína. Odiaria vê-lo atrás de um bule de café. Provavelmente
entraria em órbita intergaláctica.
— Intenso é como eu gosto.
— Que bom ouvir isso. Nós também.
O sorriso dele acendeu e apagou.
— Acho que há mais gente do tipo A aqui do que em qualquer outro
lugar. O relógio de todo mundo anda mais depressa. Ele desatarraxou a
tampa de sua garrafa e tomou um gole.
— Sempre disse que a Trion é um grande lugar para se trabalhar...
quando se está de férias. Você pode responder e-mails, correios de voz,
fazer tudo quanto é tipo de coisa, mas cara, você paga um preço alto por se
afastar. Quando volta, sua caixa postal está lotada e você se sente mais
esmagado que uma uva.
Balancei a cabeça e dirigi-lhe um sorriso conspiratório. Em
corporações high-tech até mesmo os caras do marketing gostam de falar
como se fossem engenheiros, portanto eu tinha que dar o troco.
— Parece familiar. É que você tem tantos ciclos que precisa decidir em
que vai gastá-los.
Eu estava refletindo sua linguagem corporal, quase que o imitando,
mas ele não parecia perceber.
— Exatamente. Agora, nós não estamos atravessando uma fase de
contratações — hoje em dia ninguém está. Mas um dos nossos gerentes de
produtos novos foi transferido de repente.
Balancei a cabeça de novo.
— O Lucid é genial, realmente salvou o Wyatt em um trimestre que,
não fosse por isso, seria deplorável. A criança é sua, hein?
— Da minha equipe. Eu só era parte da equipe. Não dirigia o
espetáculo.
Ele pareceu gostar.
— Bem, pelo que soube você ocupava uma posição chave.
— Não sei disso. Eu trabalho duro e amo o que faço, e estava no lugar
certo na ocasião certa.
— Você é modesto demais.
— Talvez — eu sorri. E ele foi na onda, engolindo junto a falsa
modéstia e a franqueza.
— Como você conseguiu? Qual é o segredo?
Soltei uma baforada de ar pelos lábios contraídos, como se estivesse
me lembrando de ter corrido uma maratona.
— Nenhum segredo. Trabalho de equipe. Obtendo o consenso,
motivando as pessoas.
— Seja específico.
— A ideia básica foi um aparelho destinado a matar o Palm, para ser
sincero — eu estava falando a respeito do PDA [Assistente Pessoal
Digital] sem fio da Wyatt, que enterrara o Palm Pilot. — Nas primeiras
sessões de planejamento conceitual, organizamos um grupo
multifuncional — engenharia, marketing, nosso pessoal de ID, uma firma
externa de ID — ID é o jargão para desenho industrial. Eu estava
enrolando, conhecia a resposta de cor. — Examinamos a pesquisa de
mercado, quais eram as falhas no produto da Trion, no Palm, Handspring e
Blackberry.
— E qual era a falha no nosso produto?
— Velocidade. O sem fio não é satisfatório, mas você sabe disso.
Aquele era um comentário cuidadosamente planejado: Judith me
passara algumas observações sinceras que Lundgren fizera em
conferências da indústria. Ele sempre se mostrava furiosamente crítico a
respeito dos esforços da Trion quando fracassavam. Meu realismo era um
risco calculado da parte de Judith. Baseado na avaliação que ela fizera do
seu estilo de administrar, ela concluíra que ele desprezava adulações e se
ligava em conversas francas.
— Correto — disse ele. E, por um milésimo de segundo, exibiu um
sorriso. — Seja como for, examinamos uma gama de cenários. O que a
mãe de um garoto que joga futebol realmente ia querer, o executivo de
uma companhia, o capataz de uma construção. Falamos sobre a
configuração, formato, tudo. As discussões eram bem livres. Minha ênfase
era na elegância de desenho casada com simplicidade.
— Eu me pergunto se você talvez não tenha forçado muito o lado do
design, sacrificando a funcionalidade — interveio Lundgren.
— Como assim?
— Falta de um slot para flash. A única fraqueza séria do seu produto,
no meu entendimento.
A bola veio quicando na minha direção e eu não tive dúvida — chutei
com força.
— Concordo plenamente — eu estava tão bem preparado com as
estórias dos "meus" sucessos e pseudofracassos que conseguia lidar com
elas como se fossem vitórias nos campos de batalha. — Um grande erro.
Essa foi definitivamente a característica mais importante descartada.
Estava na definição original do produto, mas extrapolou os limites de
forma que queríamos e foi abandonada no meio do ciclo. — Engula essa.
— Fazendo algo a respeito na próxima geração?
Sacudi a cabeça.
— Desculpe, mas não posso dizer. É propriedade da Wyatt Telecom.
Isto não é um requinte legal, é uma coisa moral para mim... quando você
dá sua palavra, ela tem que significar alguma coisa. Se for um problema...
Ele me deu o que pareceu um sorriso genuíno de apreciação. Gol!
— Problema nenhum. Respeito sua posição. Quem quer que vaze
informações pertencentes a seu último empregador, fará o mesmo comigo.
Notei as palavras "último empregador": Lundgren já tinha assinado,
acabara de se entregar.
Ele pegou seu pager e rapidamente verificou a tela. Tinha recebido
diversos chamados, no modo vibração, enquanto conversávamos.
— Não preciso mais tomar seu tempo, Adam. Quero que você conheça
Nora.
10
Nora Sommers era loura, tinha cerca de cinquenta anos e os olhos
penetrantes eram bastante separados. Tinha a aparência carnívora de um
animal selvagem que andasse em matilhas. Talvez eu estivesse
influenciado pelo dossiê, que a descrevia como impiedosa e tirânica. Era
diretora, líder da equipe encarregada do projeto Maestro, uma espécie de
cópia barata e reduzida do Blackberry que ameaçava entrar pelo cano. Era
famosa por convocar reuniões às sete da manhã. Ninguém queria pertencer
à sua equipe, motivo pelo qual tinham problema para preencher a vaga
internamente.
— Então deve ser divertido trabalhar para Nick Wyatt, não é? — ela
começou.
Eu não precisava que Judith Bolton me dissesse que você nunca deve
se queixar do seu patrão anterior.
— Na verdade — respondi — ele é exigente, mas extraiu o que de
melhor havia em mim. É um perfeccionista. Não sinto outra coisa a não
ser admiração por ele.
Ela balançou a cabeça com uma expressão de sabedoria e sorriu como
se eu tivesse selecionado a resposta certa em um teste de múltipla escolha.
— Mantém o ímpeto vivo, hein?
O que esperava de mim, que eu dissesse a verdade sobre Nick Wyatt?
Que é um chato e um panaca? Acho que não. Improvisei um pouco mais.
— Trabalhar com Wyatt é como ganhar dez anos de experiência em um
ano, em vez de um ano de experiência dez vezes.
— Boa resposta — disse ela. — Gosto que o meu pessoal de marketing
tente me convencer. É um componente-chave dos talentos necessários à
função. Se você consegue me iludir, é capaz de fazer o mesmo com o
Journal.
Perigo, perigo. Cheguei a ouvir a voz metálica do robô de Perdidos no
espaço. Eu não ia me arriscar. Dava para ver os dentes daquela armadilha.
Limitei-me a encará-la inexpressivamente.
— Bem — prosseguiu Nora Sommers —, os comentários a seu
respeito certamente se espalharam. Qual foi a batalha mais difícil que teve
de lutar por conta do projeto Lucid?
Reprocessei a história que acabara de contar para Tom Lundgren, mas
ela não se mostrou impressionada.
— Não me parece ter sido grande coisa como batalha — contrapôs. —
Eu chamaria isso de escolhas difíceis.
— Talvez você tivesse que ter estado presente — falei. Passei em
revista meu CD-ROM mental de historinhas sobre o desenvolvimento do
Lucid. — Houve também uma grande discussão por causa do design do joy
pad. É um pad pentadirecional com o alto-falante embutido.
— Eu conheço. Qual foi a controvérsia?
— Bem, nosso pessoal de desenho industrial realmente se concentrou
nessa história do alto-falante como sendo o ponto focal do produto — ele
realmente atrai a atenção.
Mas tive a maior reação quanto a isso dos engenheiros, que disseram
que era quase impossível, muito arriscado; queriam separar o alto-falante
do pad direcional.
Os caras estavam convencidos de que, se fosse feita a separação, o
desenho ficaria confuso e assimétrico. Tenso. Por isso, tive que firmar
posição. Falei que se tratava de um princípio básico. O desenho não era
apenas uma declaração visual, mas representava também uma importante
declaração tecnológica — dizia ao mercado que éramos capazes de fazer
algo que nossos competidores não eram.
Ela havia fixado os olhos penetrantes em mim como se eu fosse uma
galinha aleijada.
— Engenheiros — disse, com um estremecimento. — Podem ser
realmente insuportáveis. Nenhum senso comercial.
Os dentes de metal da armadilha reluziam de sangue.
— Na verdade, nunca tive problemas com engenheiros — falei. —
Acredito, inclusive, que são o coração da empresa. Jamais os confronto; eu
os inspiro, ou, pelo menos, tento. Liderança judiciosa e participação
honesta, são essas as chaves. Trata-se de uma das coisas que mais me
atraem na Trion... os engenheiros reinam supremos aqui, que é como deve
ser. Uma verdadeira cultura de inovação.
Muito bem, eu estava papagueando uma entrevista que Jock Goddard
uma vez dera para Fast Company, mas achei que tinha funcionado. Os
engenheiros da Trion eram conhecidos por amarem Goddard, porque
Goddard era um deles. Consideravam a Trion um lugar legal para
trabalhar, já que grande parte dos recursos eram destinados a P & D.
Ela ficou sem voz por um segundo.
— No fim do dia, a inovação é indispensável.
Jesus, eu achava que eu era péssimo, mas aquela mulher falava os
clichês do mundo corporativo como segundo idioma, como se tivesse
aprendido num livro da Berlitz.
— Indubitavelmente — concordei.
— Então, diga-me, Adam — qual é a sua grande fraqueza?
Sorri, balancei a cabeça e, mentalmente, fiz uma prece de gratidão a
Judith Bolton.
Gol.
Cara, tudo me pareceu quase fácil demais.
11
Recebi a notícia de Nick Wyatt em pessoa. Quando fui introduzido na
sua sala por Yvette, encontrei-o exercitando-se em um Precor, colocado a
um canto da sala. Usava uma camiseta ensopada de suor, calção vermelho
tipo short e parecia meio pálido. Perguntei-me se não tomaria
anabolizantes.
Tinha um equipamento telefônico sem fio ajustado na cabeça, com
dois fones de ouvido, um microfone, e berrava ordens.
Mais de uma semana se passara desde a entrevista na Trion, e nada.
Silêncio absoluto. Eu sabia que tinha me saído bem e não tinha dúvidas de
que minhas referências eram espetaculares, mas quem sabe, tudo pode
acontecer.
Eu havia imaginado, erroneamente, que uma vez feitas minhas
entrevistas eu teria folga da escola da KGB, mas não tive tanta sorte. O
treinamento prosseguiu, com inclusive o que chamavam de "técnicas de
espionagem" — como furtar coisas sem ser apanhado, cópias de
documentos e de arquivos de computador, como pesquisar os bancos de
dados da Trion, como entrar em contato com eles se aparecesse alguma
coisa que não pudesse esperar por um encontro previamente marcado.
Meacham e outro veterano da equipe de segurança da Wyatt, que
trabalhara duas décadas no FBI, me ensinaram como entrar em contato
com eles por e-mail, usando um "anonimizador", um site com base na
Finlândia que apaga seu nome e endereço verdadeiros; como criptografar o
e-mail com um software poderosíssimo, de 1.024-bits, desenvolvido —
contrariando as leis dos EUA — em algum lugar do exterior. Ensinaram-
me coisas tradicionais de espionagem, como locais de entrega e sinais ou
como fazer com que soubessem que eu tinha documentos para lhes passar.
Ensinaram-me a fazer cópias dos crachás que a maioria das corporações
usa atualmente, do tipo que abre uma porta quando você o coloca diante de
um sensor. Parte desses troços era bem legal. Eu começava a me sentir
como um verdadeiro espião. Naquele tempo, de qualquer maneira, eu tinha
aderido inteiramente ao plano. Não sabia o que encontraria pela frente.
No entanto, após alguns dias de espera por alguma palavra da Trion,
senti-me apavorado. Meacham e Wyatt haviam sido bem claros a respeito
do que me aconteceria se não conseguisse o emprego lá.
Nick Wyatt sequer olhou para mim.
— Congratulações — falou. — Recebi notícias do caçador de talentos.
Você acaba de conseguir liberdade condicional.
— Tive uma proposta?
— Cento e setenta e cinco mil para começar, opções de ações, o pacote
todo. Você está sendo contratado como colaborador especial em nível de
gerência, mas sem subordinações diretas, grau dez.
Senti-me aliviado e assombrado com a quantia. Era cerca de três vezes
o que estava ganhando agora. Acrescentando meu salário na Wyatt, eu
ficaria com duzentos e trinta e cinco mil. Caramba.
— Legal — falei. — O que fazemos agora, negociamos?
— Está maluco? Eles entrevistaram mais oito sujeitos para o lugar.
Quem sabe se alguém não tem um candidato favorito, um amigão, o que
for. Não se arrisque, ainda não. Entre lá, mostre a eles o que você tem.
— O que eu tenho...
— Mostre como você é espantoso. Você já despertou o apetite deles
com alguns hors d'oeuvres. Agora acabe com eles. Se não conseguir
derrotá-los de goleada depois de se graduar na nossa escolinha de charme
e de ter a Judith e eu cochichando no seu ouvido, você é um perdedor
ainda maior do que eu pensava.
— Certo.
Percebi que estava mentalmente ensaiando minha louca fantasia de dar
uns bons berros com Wyatt quando saísse para trabalhar na Trion, até que
me lembrei de que não apenas Wyatt continuava sendo meu patrão, como
também me tinha preso pelo saco.
Wyatt saltou da máquina encharcado de suor, pegou uma toalha branca
que estava no guidom e passou no rosto, braços e axilas. Estava tão perto
de mim que eu podia sentir o odor da sua respiração, seu hálito azedo.
— Agora, escute cuidadosamente — disse ele, com um inegável tom
de ameaça. — Há cerca de dezesseis meses a junta de diretores da Trion
aprovou uma despesa extraordinária de quase quinhentos milhões de
dólares para financiar uma equipe de projetos de ponta.
— O quê?
Ele tomou fôlego.
— Um projeto interno top secret. De qualquer forma, é raríssimo que
uma diretoria aprove uma despesa tão grande sem muita informação.
Neste caso, eles aprovaram às cegas, com base apenas nas afirmativas do
presidente. Goddard é o fundador, portanto confiam nele. Goddard
também assegurou que a tecnologia que estavam desenvolvendo, seja o
que for, era um avanço monumental. Refiro-me a algo imenso, que muda
paradigmas, um salto quântico. Algo que vá além de desestabilizar o
estado de coisas atual. Ele afirmou que seria o maior acontecimento desde
o transistor, e quem não fizesse parte ficaria para trás.
— O que é?
— Se eu soubesse, você não estaria aqui, idiota. Minhas fontes me
asseguram de que vai transformar a indústria de telecomunicações, virar
tudo de cabeça para baixo. E não tenciono ficar para trás, está me
entendendo?
Eu não estava, mas balancei a cabeça assim mesmo.
— Investi demais nesta firma para deixar que ela desapareça como o
mastodonte ou o dodô. Assim, a sua missão, meu amigo, é descobrir tudo
o que puder sobre esse projeto, descobrir do que se trata, o que estão
desenvolvendo. Não me interessa se só estão desenvolvendo a merda de
um pula-pula eletrônico, o ponto é que não vou me arriscar de jeito
nenhum a ficar para trás. Entendido?
— Como?
— O problema é seu.
Ele se virou, atravessou a sala imensa na direção de uma saída que eu
não vira antes e abriu a porta, revelando um banheiro de mármore
cintilante com um chuveiro.
Fiquei ali parado meio sem graça, sem saber ao certo se devia esperar
por ele, ir embora ou o quê.
— Você vai receber o chamado ainda hoje, mais para o fim da manhã
— disse Wyatt, sem se virar. — Banque o surpreso.
Parte Dois

BARREIRA PROTETORA

BARREIRA PROTETORA: Conjunto de identidades


falsas expedidas
para um agente que resista a investigações muito
rigorosas.

— The Dictionary of Espionage


12
Coloquei um anúncio em três jornais locais procurando um
acompanhante para meu pai. O anúncio deixava claro que qualquer pessoa
seria bem-vinda, que as exigências não eram exatamente estritas. Eu
duvidava, porém, que ainda restasse algum interessado — já fora ao poço
um número demasiado grande de vezes.
Consegui exatamente sete respostas. Três de pessoas que tinham
entendido o anúncio errado, querendo elas próprias contratar alguém. Duas
outras mensagens telefônicas tinham um sotaque estrangeiro tão forte que
nem sei ao certo se estariam falando inglês. Uma delas era uma voz de
homem, que soava perfeitamente razoável e agradável, informando
chamar-se Antwoine Leonard.
Não que eu tivesse muito tempo livre, mas arranjei para me encontrar
com esse tal Antwoine para o café da manhã. Eu não queria que ele
conhecesse meu pai antes da hora. Queria contratá-lo primeiro, antes que
visse em que buraco ia se meter, para que não pudesse recuar com
facilidade.
Acabou que Antwoine era um negro enorme e assustador, com
tatuagens típicas de prisão e cabelo rastafári. Meu palpite estava certo:
assim que pôde, contou que acabara de sair da prisão, onde fora parar por
roubo de carro, e essa não tinha sido sua primeira sentença. Ele me deu o
nome de seu agente de condicional como referência.
Gostei de ele ter sido tão franco a respeito disso, de não ter tentado
esconder. Na verdade, eu simplesmente gostei do cara. Tinha uma voz
gentil, um sorriso surpreendentemente doce, um jeito discreto. Sei que eu
estava desesperado, mas também imaginei que se alguém era capaz de
controlar meu pai seria ele, e o contratei no ato.
— Escute, Antwoine — disse, quando me levantei para sair. — Sobre
essa história da prisão?
— É um problema para você, não é? — ele me encarou diretamente.
— Não, não é. Gostei de você ter sido tão direto.
Ele deu de ombros.
— Bem, quer dizer...
— Eu só acho que você não precisa ser totalmente sincero com meu
pai.
Na noite que antecedeu meu primeiro dia na Trion, fui me deitar cedo.
Seth tinha deixado um recado me convidando para sair com ele e alguns
amigos nossos, mas eu não aceitei o convite.
O despertador tocou às cinco e meia e foi como se estivesse enguiçado,
pois ainda estava escuro. Quando me lembrei, senti um choque de
adrenalina, uma estranha combinação de terror e empolgação. Eu ia entrar
no jogo principal, era isso, o tempo de preparação tinha terminado. Tomei
banho e me barbeei com uma lâmina nova, mas tão devagar que nem me
cortei. Eu tinha arrumado minhas roupas antes de dormir. Escolhi um terno
e uma gravata e dei um lustre nos sapatos. Imaginei que seria melhor
aparecer de terno no meu primeiro dia na Trion, mesmo que eu ficasse
diferente de todos; sempre poderia tirar o paletó e a gravata.
Era estranho — pela primeira vez na minha vida eu tinha um salário
com seis dígitos, mesmo que não tivesse recebido ainda nenhum
contracheque e continuasse morando naquela ratoeira. Bem, tudo isso logo
mudaria.
Quando entrei no Audi A6 prateado, que ainda tinha aquele cheirinho
de carro novo, senti que ingressara em um patamar superior de riqueza, e,
para celebrar meu novo estágio na vida, dei uma parada no Starbucks e
comprei um grande latte triplo. Quase quatro dólares pela porcaria de uma
caneca de café, mas, puxa vida, eu estava ganhando bem agora. Aumentei
ao máximo o volume do Rage Against the Machine o tempo todo até o
campus da Trion, e quando cheguei lá Zack de la Rocha berrava Bullet in
the Head e eu ia gritando No escape from the mass mind rape! juntamente
com ele, usando meu terno e gravata Zegna, perfeitos para quem
trabalhava em uma grande corporação, e sapatos Cole-Haan. Eu estava
empolgado.
Surpreendentemente, havia um bom número de carros na garagem
subterrânea, mesmo às sete e meia. Estacionei dois níveis abaixo do
térreo.
A recepcionista da ala B, a tal embaixadora do saguão, não conseguiu
encontrar meu nome na lista de visitantes nem na de novos empregados.
Eu não era ninguém.
Pedi-lhe para ligar para Stephanie, a auxiliar de Tom Lundgren, mas
ela ainda não tinha chegado. Finalmente conseguiu falar com alguém do
setor de RH, que lhe disse para me mandar para o terceiro andar da ala E,
uma longa caminhada.
Durante as duas horas seguintes, fiquei sentado na área de recepção
dos Recursos Humanos com uma prancheta, preenchendo formulário após
formulário: W-4, W-9, conta da união de crédito, seguro, depósito
automático na minha conta corrente, opções de ações, contas de
aposentadoria, acordos de confidencialidade... Tiraram meu retrato e me
deram uma identidade e dois outros cartões de plástico que coloquei no
meu porta-crachá. Neles liam-se frases como TRION — MUDA O SEU MUNDO E
ABRE COMUNICAÇÃO E DIVERSÃO E FRUGALIDADE. Meio soviético, mas não
me incomodei.
Uma das pessoas do RH me levou para um giro rápido pela Trion. O
que foi impressionante. Uma grande academia de ginástica, bancos vinte e
quatro horas, um lugar para você deixar a roupa para lavar, normal ou a
seco, salas de estar com refrigerantes grátis, garrafas de água, pipocas e
máquinas de cappuccino.
Nas salas de estar havia grandes pôsteres coloridos que mostravam
grupos de homens e mulheres de ombros largos (asiáticos, brancos e
pretos) posando triunfantes no topo do planeta Terra sob as palavras BEBA
COM RESPONSABILIDADE! BEBA FRUGALMENTE! "O típico empregado da Trion
consome cinco refrigerantes por dia." "Simplesmente por tomar menos
uma bebida gelada por dia, a Trion poderia economizar $2,4 milhões por
ano!"
Podia-se mandar lavar o carro; podia-se comprar com desconto
ingressos para cinemas, concertos e jogos de beisebol. Eles tinham um
programa de presentes para bebês ("um presente por casa, um presente por
ocorrência"). Notei que o elevador na ala D não parava no quinto andar —
"Projetos especiais", ela explicou. "Não há acesso." Tentei não demonstrar
nenhum interesse particular, mas gostaria de saber se não seriam os
projetos de ponta em que Wyatt estava tão interessado.
Finalmente, Stephanie apareceu para me levar para o sexto andar da
ala B. Tom estava ao telefone mas acenou para que eu entrasse. Sua sala
tinha muitas fotos de seus filhos — cinco meninos, notei —
individualmente e em grupos, além de desenhos feitos por eles, coisas
assim. Os livros na prateleira atrás da escrivaninha eram os suspeitos
usuais — Who Moved My Cheese?; First, Break All the Rules; How to Be
a CEO. Suas pernas balançavam loucamente e o rosto parecia ter sido
esfregado com palha de aço até ficar em carne viva.
— Steph — disse ele —, pode pedir à Nora para dar um pulo aqui?
Poucos minutos depois desligou o telefone, pôs-se de pé e apertou minha
mão. Sua aliança de casado era larga e reluzente.
— Ei, Adam, seja bem-vindo à equipe! — exclamou ele. — Cara,
estou feliz por termos conseguido pegar você! Senta, senta — sentei. —
Precisamos de você, companheiro. Muito. Todos nós estamos exaustos
aqui, realmente exaustos. Estamos cobrindo vinte e três produtos,
perdemos algumas pessoas importantes e estamos praticamente no limite
de nossas forças. A garota que você está substituindo foi transferida. Você
vai se integrar à equipe da Nora, para trabalhar no revigoramento da linha
Maestro que, como logo verá, está mergulhando em águas perigosas. Há
também uns incêndios sérios para serem apagados e — aqui está ela!
Nora Sommers estava parada na entrada da sala, uma das mãos no
batente da porta, posando como uma diva. Ela estendeu a outra mão
timidamente.
— Oi, Adam, bem-vindo! Que bom vê-lo aqui conosco.
— É bom estar aqui.
— Não foi uma contratação fácil, para ser franca. Tínhamos uma
porção de candidatos realmente fortes. Mas, como dizem por aí, o creme
sempre acaba subindo. Bem, vamos direto ao ponto?
Sua voz, que tinha uma cadência quase infantil, pareceu adquirir um
timbre mais grave no mesmo instante em que se distanciaram da sala de
Tom Lundgren. Ela passou a falar mais depressa, quase cuspindo as
palavras.
— Seu cubículo é logo aqui — ela disse, golpeando o ar com o dedo
indicador. — Usamos fones Web aqui — imagino que você saiba como.
— Não se preocupe.
— Computador, telefone... tudo seu deve estar pronto. Qualquer coisa,
basta ligar para Facility Services. Está bem, Adam, devo avisá-lo de que
não andamos por aí de mãos dadas. A curva do aprendizado na casa é um
bocado íngreme, mas não tenho dúvida de que você está à altura. Nós
jogamos você na piscina, e você afunda ou nada.
Ela olhou para mim desafiadoramente.
— Prefiro nadar — falei, com um sorriso.
— É bom ouvir isso — disse ela. — Gosto de sua atitude.
13
Tive um mau pressentimento a respeito de Nora. Ela era do tipo que
me calçaria botas de concreto, me colocaria na mala de um Cadillac e me
jogaria no East River. Afunde ou nade.
Ela me deixou no meu novo cubículo para terminar de ler os textos de
orientação e os codinomes para todos os projetos. Toda empresa de alta
tecnologia dá a seus produtos codinomes; na Trion eram tipos de
tempestades — Tornado, Tufão, Tsunami e assim por diante. Maestro
recebera o nome de código de Vortex. Era confuso, todos aqueles nomes
diferentes, e, além de tudo, eu tinha que avaliar as condições para Wyatt.
Lá pelo meio-dia, quando comecei a ficar realmente com fome, um cara
corpulento com seus quarenta anos, o cabelo preto, já ficando branco,
preso em um rabo-de-cavalo, usando uma camisa havaiana clássica e
óculos redondos de armação preta, apareceu no meu cubículo.
— Você deve ser a última vítima — disse ele. — A carne fresca atirada
na jaula do leão.
— E vocês todos parecem tão amáveis — falei. — Sou Adam Cassidy.
— Eu sei. Sou Noah Mordden. Engenheiro Eminente da Trion. É o seu
primeiro dia, você não sabe em quem confiar, com quem se alinhar. Quem
quer jogar a seu lado e quem quer que você caia e dê com a cara no chão.
Pois bem, estou aqui para responder a todas as suas perguntas. Gostaria de
pegar qualquer coisa para comer na cafeteria subsidiada dos empregados?
O cara era estranho, mas fiquei intrigado. Enquanto caminhávamos até
o elevador, ele disse: — Então lhe deram o emprego que ninguém mais
queria, hein?
— É mesmo?
Que maravilha!
— Nora queria preencher a vaga internamente, mas ninguém
qualificado queria trabalhar para ela. Alana, a mulher cuja vaga você veio
preencher, na verdade implorou para sair de sob as garras de Nora e então
a transferiram para outro buraco qualquer da casa. O que dizem por aí é
que o Maestro é uma ilusão.
Eu mal podia ouvi-lo; ele falava muito baixinho ao mesmo tempo que
se encaminhava para os elevadores.
— Eles estão sempre prontos a desligar o fio da eletricidade quando
alguma coisa vai mal. Por aqui, quando você pega uma gripe já tiram as
suas medidas para o caixão.
Balancei a cabeça.
— O Maestro é redundante.
— Uma merda. E também é azarado. Se a Trion estiver produzindo
também um telefone celular multifunção com o mesmo pacote para
mensagens de texto sem fio, para que servirá então o Maestro? Tinha mais
é que acabar com o sofrimento da coisa. Além do mais, não ajuda nada o
fato da Nora ser uma chata absoluta.
— Ela é?
— Se você não descobriu isso dez segundos após conhecê-la é porque
não é tão inteligente como sugere seu currículo. Mas não a subestime; ela
é faixa preta em política corporativa e tem seus lugares-tenentes, portanto
é melhor ter cuidado.
— Obrigado.
— Goddard gosta de automóveis americanos clássicos, e por isso ela
também gosta. Tem dois carros restaurados, embora eu nunca a tenha visto
dirigir qualquer um deles. Acho que a questão é fazer com que Jock
Goddard saiba que ela é feita do mesmo tecido. É esperta, essa Nora.
O elevador estava apinhado com outros empregados que desciam para
a cafeteria no terceiro andar. Um bom número deles usava camisa golf ou
polo com a logo da Trion. O elevador foi parando em todos os andares.
Um sujeito atrás de mim brincou: — Parece que pegamos o parador.
Acho que alguém solta essa piada em todos os elevadores das grandes
corporações no mundo inteiro a cada dia.
A cafeteria, ou restaurante dos empregados, como a chamavam, era
imensa e fervilhava com a eletricidade de centenas, talvez milhares de
empregados da Trion.
Ela lembrava a praça de alimentação de um shopping center elegante
— um sushi bar, com dois sushi-men, um balcão de pizza onde era
possível escolher a cobertura, um balcão de burritos, outro de comida
chinesa; bifes e hambúrgueres; um assombroso bufê de saladas e até
mesmo um balcão de comidas vegetarianas e naturais.
— Caraca! — exclamei.
— Dê ao povo pão e circo — disse Noah. — Juvenal. Mantenha os
camponeses bem alimentados e eles não notarão que são escravos.
— Acho que sim.
— Vacas felizes dão leite melhor.
— Seja o que for — falei, olhando em torno. — Que se dane a
austeridade, certo?
— Ah. Dê uma olhada nas máquinas das salas de estar — vinte e cinco
centavos para os espetos de frango satay com molho de amendoim, mas
um dólar para uma barra de sorvete Klondike. Líquidos e substâncias
cafeinadas são grátis. No ano passado, o diretor financeiro, um sujeito
chamado Paul Camilletti, tentou eliminar as festas semanais regadas a
cerveja, mas aí os gerentes começaram a gastar o próprio dinheiro para
comprar cerveja e alguém fez circular um e-mail defendendo a
manutenção das cervejadas. A cerveja custa X por ano, enquanto que
contratar e treinar novos empregados custa Y, e, tendo em vista o incentivo
do moral e também os custos para manutenção dos empregados, o retorno
do investimento, blablablá, você já entendeu. Camilletti, que é um homem
que acredita em números, cedeu. Ainda assim, sua campanha em prol da
frugalidade continua de pé.
— Mesma coisa na Wyatt.
— Inclusive nos voos para o exterior, os empregados devem viajar na
classe econômica. O próprio Camilletti se hospeda na rede Motel 6 quando
viaja pelo país. A Trion não tem um jato — quer dizer, para não deixar
dúvidas, a mulher de Jock Goddard lhe deu um no dia de seu aniversário.
Assim, não temos que sentir pena dele.
Peguei um hambúrguer e uma diet Pepsi e ele escolheu um troço
asiático misterioso, desses que são fritos e mexidos rapidamente. Foi
ridiculamente barato. Andamos pelo salão, segurando nossas bandejas,
mas, como Mordden não encontrou ninguém com quem quisesse se sentar,
acabamos sentando sozinhos. Eu tinha aquela sensação de primeiro dia de
aula, quando você ainda não conhece ninguém. Lembrou-me de quando
comecei a estudar na Bartholomew Browning.
— Goddard não se hospeda também em Motel 6, se hospeda?
— Duvido. Mas ele não é demasiadamente agressivo nessa questão do
seu dinheiro. Não anda de limusine. Dirige o próprio carro, mesmo que
tenha mais de dez, todos antigos que ele próprio restaurou. Ademais, dá a
seus cinquenta principais executivos o carro de luxo de sua preferência, e
todos ganham um caminhão de dinheiro, uma quantia realmente obscena.
Goddard é esperto, sabe que tem de pagar bem aos mais talentosos a fim
de retê-los na firma.
— E o que me diz de você, Engenheiro Eminente?
— Oh, eu ganhei uma quantidade de dinheiro realmente obscena aqui
na Trion. Em teoria, podia mandar todo mundo para o inferno e ainda teria
recursos suficientes para criar meus filhos, se tivesse filhos.
— Mas ainda está trabalhando.
Ele suspirou.
— Quando encontrei ouro, poucos anos depois que comecei a trabalhar
aqui, demiti-me e saí velejando ao redor do mundo, levando apenas
minhas roupas e diversas malas pesadas contendo o cânone ocidental.
— O cânone ocidental?
Ele sorriu.
— Os maiores sucessos da literatura ocidental.
— Tipo Louis L'Amour?
— Mais tipo Heródoto, Tucídides, Sófocles, Shakespeare, Cervantes,
Montaigne, Kafka, Freud, Dante, Milton, Burke...
— Cara, eu dormi nessa aula — falei.
Ele sorriu de novo. Obviamente pensava que eu era um débil mental.
— De qualquer modo — disse ele —, depois de ler tudo, concluí que
era constitucionalmente incapaz de não trabalhar, e retornei à Trion. Você
leu o Discurso sobre a servidão voluntária de Étienne de la Boétie?
— Étienne?
— O único poder que os tiranos têm é aquele que lhes é concedido por
suas vítimas.
— Esse é o poder de dar Pepsis sem cobrar nada — respondi,
inclinando minha lata na direção dele. — Então você é engenheiro.
Ele me deu um sorriso que era mais uma careta.
— Não apenas engenheiro, mas, como falei, um Engenheiro Eminente.
Isso significa que meu número de matrícula como empregado é baixo e
que posso fazer praticamente o que quiser. Se isso significa cravar um
espinho no flanco de Nora Sommers, tudo bem. Tratemos agora do elenco
de personagens do lado do marketing da sua unidade. Vejamos, você já
conheceu Nora, a venenosa. E Tom Lundgren, seu glorificado VP, que é
basicamente um sujeito franco que vive para a igreja, a família e o golfe.
Tem mais o Phil Bohjalian, da idade de Matusalém, mas que é quase tão
atualizado tecnologicamente quanto é velho; começou na Lockheed Martin
quando ela tinha um outro nome qualquer e os computadores eram grandes
como casas e funcionavam com cartões de perfurar da IBM. Seus dias
certamente estão contados. E — pasme, lá está Elvis em pessoa,
aventurando-se entre nós!
Virei-me para onde ele estava olhando. De pé, ao lado do balcão de
saladas, estava um sujeito de cabelos brancos e ombros encurvados com o
rosto muito enrugado, sobrancelhas grossas também brancas, orelhas
grandes e uma expressão que lembrava um duende. Vestia uma camisa de
gola rulê preta. Dava para sentir a energia do salão mudar, formando ondas
em torno dele, quando as pessoas se viravam para olhar, cochichando,
todos tentando parecer indiferentes e sutis.
Augustine Goddard, fundador e presidente da Trion, em carne e osso.
Ele parecia mais velho que nos retratos que eu vira. Um sujeito muito
mais moço e alto estava ao seu lado, dizendo alguma coisa. Teria uns
quarenta anos e era magro e realmente atlético, cabelo preto com mechas
brancas e ar de artista de cinema italiano, bonitão. Como um herói de
filmes de ação que estivesse envelhecendo bem, mas com a pele do rosto
profundamente marcada. A não ser pela pele ruim, fez com que me
lembrasse do Al Pacino dos primeiros dois filmes da série Godfather.
Trajava um terno cinza escuro que era simplesmente perfeito.
— Aquele é o Camilletti? — perguntei.
— Camilletti, o Degolador — disse Mordden, mergulhando os palitos
na sua tigela. — Nosso diretor financeiro. O czar da frugalidade. Passam
juntos muito tempo, aqueles dois.
Ele falou com a boca cheia de comida.
— Está vendo o rosto dele, aquelas cicatrizes de acne vulgaris? Dizem
que ali está escrito "Comam merda e morram", em Braille. De qualquer
modo, Goddard considera Camilletti a segunda vinda de Jesus Cristo, o
homem que vai cortar os custos operacionais, aumentar as margens de
lucro, lançar as ações da Trion de volta para a estratosfera. Alguns dizem
que Camilletti é o id de Jock Goddard, o lado ruim do Jock. Seu lago. O
demônio pousado sobre o seu ombro. Eu digo que ele é o policial malvado
que permite que Jock seja o policial bonzinho.
Terminei meu hambúrguer. Notei que o presidente e o diretor
financeiro estavam na fila, pagando suas saladas. Será que não podiam
simplesmente sair sem pagar? Ou dar o golpe na fila?
— Também é muito típico do Camilletti almoçar aqui junto com os
empregados — continuou —, a fim de demonstrar às massas seu
engajamento na campanha do corte de custos. Ele não corta custos, ele os
"degola". Não há um restaurante para executivos na Trion. Nenhum chef
pessoal para executivos. Nada de comida vinda de fora, nem para eles, oh,
não. Coma o seu pão junto com os camponeses.
Ele tomou um gole de Dr. Pepper.
— Onde estávamos mesmo na minha pequena Playbill, o meu Quem é
Quem no Elenco? Ah, sim, temos o Chad Pierson, o protégé de Nora com
seus cabelos dourados, garoto maravilha e puxa-saco profissional, MBA
diplomado pela Tuck, transferiu-se da escola de administração
diretamente para o marketing de produto da Trion, passou recentemente
uns tempos no campo de treinamento dos recrutas do marketing e sem
dúvida vai considerar você como uma ameaça a ser eliminada. E há
também, a Audrey Bethune, a única negra em...
Noah silenciou de repente e pôs mais comida na boca. Vi um cara
bonitão, louro, mais ou menos da minha idade, deslizando ligeiramente na
direção da nossa mesa, um tubarão no mar. Camisa azul de botão no
colarinho, elegante, um atleta. Um desses caras de cabelo quase branco de
tão louros que a gente vê em anúncios de revistas que se espalham por
várias páginas, socializando-se com outros espécimes da casta dos
senhores em um coquetel no gramado de sua mansão aristocrática.
Noah Mordden tomou apressadamente um gole da sua Dr. Pepper e se
levantou. Tinha manchas de gordura na frente da camisa havaiana.
— Com licença — disse, sem graça. — Tenho um encontro.
Ele deixou seus pratos espalhados na mesa e saiu ventando ao mesmo
tempo que o cara de cabelos quase brancos chegou, mão esticada.
— Ei cara, como vai? — cumprimentou. — Chad Pierson.
Dispus-me a apertar a mão de Chad, mas ele preferiu um desses gestos
hip-hop de quem é moderno demais para cumprimentar os outros
normalmente. Suas unhas pareciam manicuradas.
— Cara — disse ele —, ouvi muita coisa a seu respeito, seu garanhão!
— Tudo mentira — retruquei. — Marketing, sabe?
Ele riu com ar de conspiração.
— Nada disso, você vai ser O homem. Vou me grudar um pouco em
você, aprender um truque ou dois.
— Vou precisar de toda ajuda que puder ter. Me disseram que aqui é na
base do nada ou afunda, e definitivamente estou no lado mais fundo.
— E aí, o Mordden deu a você seu bostejo de intelectual cínico?
Apelei para um sorriso neutro.
— Deu sua versão.
— Tudo negativo. Ele pensa que está numa espécie de novela de
televisão, um troço maquiavélico. Pode ser até que esteja mesmo, mas eu
não lhe daria muita atenção.
Percebi que eu acabara de me sentar no meu primeiro dia com o garoto
mais impopular da escola, mas isso me fez ter vontade de defendê-lo.
— Gosto dele — falei.
— Ele é engenheiro. Todos os engenheiros são meio esquisitos. Você
joga basquete?
— Um pouco, claro.
— Todas as terças e quintas na hora do almoço, no ginásio há uma
pelada, temos que levar você para a quadra. Além disso, talvez você e eu
possamos sair um dia para beber qualquer coisa, ver um jogo ou sei lá.
— Beleza — aprovei.
— Já lhe falaram sobre as cervejadas dos Jogos Corporativos?
— Ainda não.
— Acho que não se trata exatamente de um tema que interesse ao
Mordden. De qualquer maneira, é um barato.
Ele estava animado, torcendo o corpo de um lado para outro, como um
jogador de basquete procurando espaço para se adiantar e dar uma bela de
uma enterrada.
— Então, companheiro, tem que aparecer às duas horas. — Não perco
de jeito nenhum.
— Legal. É bom tê-lo na nossa equipe, meu chapa.
Ele me deu um grande sorriso.
14
Chad Pierson estava de pé junto a um quadro branco, escrevendo a
pauta da reunião com canetas azul e vermelha, quando entrei na sala
Corvette. Era uma sala de reuniões igual a qualquer outra que eu já tinha
visto — a mesa grande (só que preta em desenho high-tech em vez de
nogueira), o console de viva-voz Polycom para audioconferências no meio
da mesa como uma viúva negra geométrica, uma cesta de frutas e o balde
gelado de refrigerantes e caixinhas de suco.
Ele me deu uma rápida piscadela quando me sentei em um dos lados
compridos da mesa. Já havia um par de outras pessoas. Nora Sommers
estava sentada à cabeceira, usando óculos de leitura pretos, presos numa
corrente em torno do pescoço, lendo um documento e ocasionalmente
resmungando alguma coisa com Chad, seu escriba. Não pareceu ter me
notado.
Sentado ao meu lado, estava um sujeito de cabelos grisalhos usando
uma camisa polo Trion azul, batucando em um Maestro, provavelmente
respondendo e-mails. Era magro mas tinha uma barriga protuberante,
braços finos e cotovelos nodosos se projetando para fora da camisa de
manga curta, uma mecha de cabelo grisalho e costeletas também grisalhas
inesperadamente compridas, ao lado das orelhas vermelhas e grandes.
Usava bifocais. Se estivesse com uma camisa diferente, provavelmente
teria um protetor plástico de bolso. Lembrava um engenheiro da velha
guarda, do tempo das calculadoras Hewlett-Packard. Seus dentes eram
pequenos e escuros, como se mascasse tabaco.
Tinha que ser Phil Bohjalian, o veterano, embora, pelo jeito como
Mordden falara dele, eu meio que esperara que estivesse usando uma pena
de pato e pergaminho.
Seguidamente me lançava olhares nervosos e furtivos.
Noah Mordden esgueirou-se silenciosamente para dentro da sala, não
deu sinal de ter me reconhecido nem qualquer outro sinal, aliás, e foi abrir
o seu notebook na ponta mais afastada da mesa. Mais pessoas foram
chegando, rindo e conversando. Havia agora mais de dez pessoas na sala.
Chad terminou com o quadro branco e pôs suas coisas no lugar vazio ao
meu lado. Deu um tapa no meu ombro.
— Muito bom você estar conosco — disse.
Nora Sommers pigarreou, levantou-se e caminhou até o quadro.
— Bem, por que não começamos? Tudo bem, gostaria de apresentar o
mais novo membro da nossa equipe àqueles de vocês que ainda não
tiveram o privilégio de conhecê-lo. Adam Cassidy, seja bem-vindo.
Ela agitou as unhas vermelhas na minha direção, eu sorri
modestamente e abaixei a cabeça.
— Tivemos sorte em conseguir roubar Adam da Wyatt, onde ele foi
um dos protagonistas do Lucid. Nossa esperança é aplicar um pouco da sua
magia ao Maestro.
Ela fechou a frase com um sorriso beatifico.
Em seguida foi Chad quem falou, olhando de um lado para outro, como
se estivesse compartilhando um segredo com o resto da turma.
— Este bad boy é um gênio. Conversei com ele, e tudo que vocês
ouviram falar é verdade.
Ele se virou para mim, os olhos azuis claros muito abertos, e apertou
minha mão.
Nora prosseguiu.
— Como todos nós sabemos bem demais, estamos enfrentando sérias
dificuldades com o Maestro. As espadas foram desembainhadas em toda a
Trion e eu não tenho que dar os nomes.
Risos baixos.
— Temos um prazo final bem generoso pela frente — uma palestra
perante o próprio sr. Goddard, onde defenderemos a ideia de manter a
linha de produtos Maestro.
Essa palestra será mais que uma atualização funcional do staff, mais
do que uma reunião para controle. É vida ou morte. Nossos inimigos
querem nos pôr na cadeira elétrica; nós estamos suplicando por um
adiamento da execução. Estamos entendidos a este respeito?
Ela olhou em torno ameaçadoramente e viu cabeças balançando em
sinal de obediência. Em seguida virou-se e cortou o primeiro item da pauta
com um marcador púrpura, um tanto violentamente demais. Mais uma
volta brusca e passou um maço de papéis grampeados a Chad, que
começou a distribuí-los à esquerda e à direita. Pareciam conter algum tipo
de especificações, definição ou protocolo de produto ou o que fosse, só
que o nome do produto, presumivelmente no topo da página, fora
removido.
— Agora — disse ela —, gostaria que todos nós fizéssemos um
exercício — uma demonstração, se preferirem. Alguns de vocês talvez
reconheçam este protocolo de produto, e, neste caso, guardem o que sabem
para si próprios. Como trabalhamos para revigorar o Maestro, quero que
todos nós pensemos com o máximo de liberdade por uns momentos, e
gostaria de pedir ao nosso mais novo astro para examinar isso e nos dar
suas ideias.
Toquei no meu peito e perguntei, com ar de idiota:
— Eu?
Ela sorriu.
— Você.
— Minhas ideias?
— Exatamente. Ir em frente/Não ir. Luz verde para este projeto ou não.
Você, Adam, é o porteiro do produto proposto. Diga-nos o que pensa. Você
é favorável a ele ou não?
Senti um nó no estômago. Meu coração começou a bater com força.
Tentei controlar a respiração, mas pude sentir o rosto congestionado
enquanto eu folheava os papéis que Chad me dera. Era quase inescrutável.
Eu realmente não sabia o que era aquilo. Podia ouvir barulhinhos nervosos
no silêncio — Nora clicando a tampa do marcador e girando-a com um
rangido. Alguém brincava com o canudinho flexível de plástico da
caixinha de suco de maçã, empurrando-o para dentro e puxando-o para
fora.
Balancei a cabeça vagarosamente, tentando não parecer um cervo
apanhado pelos faróis de um carro, que era como eu me sentia. Havia
algumas palavras incompreensíveis ali sobre "análise do segmento do
mercado" e "estimativa bruta do tamanho da oportunidade de mercado".
Meu Deus. A música irritante do Jeopardy tocava sem parar dentro da
minha cabeça.
Estalido, estalido. Rangido, rangido.
— Como é, Adam? Avançar ou parar?
Balancei a cabeça de novo, tentando parecer ao mesmo tempo
fascinado e bem-humorado.
— Eu gosto — falei. — É inteligente.
— Hmm — disse ela. Ouvi risadinhas ao fundo. Resposta errada, dava
para adivinhar, mas dificilmente poderia mudá-la agora.
— Olha — falei —, baseado unicamente na definição do produto,
claro, é muito difícil dizer mais que...
Ela me interrompeu:
— Certo? Sim ou não?
Dei uma folheada nos papéis.
— Sempre acreditei em ser ousado. Estou intrigado. Gosto do fator
forma, gosto das especificações de reconhecimento de caligrafia... Tendo
em vista o modelo de consumo e a oportunidade do mercado, eu
certamente perseguiria esta ideia até mais adiante, pelo menos até o
próximo ponto de controle.
— Aha — disse ela. Um dos lados da sua boca virou-se para cima em
um sorriso perverso. — E pensar que nossos amigos de Cupertino nem
precisaram da sabedoria de Adam para acender a luz verde para esta
bomba fedorenta. Adam, estas são as especificações do Newton da Apple.
Uma das maiores bombas que o pessoal de Cupertino já soltou. Custou-
lhes mais de quinhentos milhões de dólares para desenvolver e, quando
saiu, perderam sessenta milhões em um ano com ele.
Mais risadas.
— Mas certamente que proporcionou a Doonesbury e Jay Leno muito
material para piadas nos idos de 1993.
Todo mundo desviou os olhos de mim. Chad mordia a parte interna da
bochecha, muito sério. Mordden parecia se encontrar em outro mundo. Eu
tive vontade de arrancar a cara de Nora Sommers, mas banquei o bom
perdedor.
Ela percorreu com o olhar a mesa, de um rosto para o outro, as
sobrancelhas arqueadas.
— Há uma lição aqui. Vocês sempre têm que pesquisar, olhar além dos
exageros do marketing, espiar debaixo do capô. E, podem acreditar em
mim, quando nos apresentarmos a Jock Goddard dentro de duas semanas,
ele vai estar enfiado sob o capô. Não vamos nos esquecer disso.
Sorrisos polidos por toda a parte. Todo mundo sabia que Goddard era
doido por automóveis.
— Está bem — disse ela. — Acho que provei o que queria. Vamos
embora.
É, eu pensei. Vamos embora. Seja bem-vindo à Trion. Você provou o
que queria. Eu sinto um vazio na boca do estômago. Em que diabos de
lugar eu fora me meter?
15
O encontro entre meu pai e Antwoine Leonard não transcorreu
suavemente. Bem, na verdade foi um desastre total. Digamos assim:
Antwoine encontrou uma reação significativa.
Nenhuma sinergia. Nenhuma adequação estratégica.
Cheguei ao apartamento logo depois que terminei meu primeiro dia na
Trion. Estacionei o Audi na esquina, porque sabia que meu pai estava
sempre na janela, quando não estivesse assistindo à sua tevê de trinta e
seis polegadas, e eu não queria que ele me aborrecesse. Mesmo que eu lhe
dissesse que tinha ganhado um bom aumento ou alguma coisa parecida,
ele descobriria um jeito de reclamar.
Minha chegada foi bem a tempo de ver Maureen rebocando uma mala
grande de náilon preto até um táxi. Estava de cara fechada, usando sua
roupa mais "elegante", um terninho verde-limão com uma profusão de
flores e frutas tropicais espalhadas por toda a parte e um par de tênis
imaculadamente brancos. Consegui interceptá-la no momento em que
berrava com o taxista para que pusesse sua bagagem na mala do carro, e
entreguei-lhe um cheque final (onde incluí um bônus generoso pela dor e
sofrimento), agradeci-lhe profusamente pelo serviço leal e tentei,
inclusive, dar-lhe um beijinho cerimonial no rosto, mas ela virou a cabeça.
Depois bateu a porta, e o táxi foi embora.
Pobre mulher. Eu jamais gostara dela, mas não pude deixar de sentir
pena pela tortura que meu pai lhe havia imposto.
Papai estava assistindo ao noticiário, na verdade mais gritando com
Dan Rather do que assistindo a alguma coisa, na hora em que cheguei. Ele
desprezava igualmente todos os âncoras das redes de televisão, e não dava
para ficar perto quando começava a vociferar contra os "perdedores" das
estações a cabo. Os únicos programas da tevê a cabo de que ele gostava
eram aqueles em que os entrevistadores de direita encurralavam seus
convidados, tentavam enfurecê-los e chegavam a espumar de tanta raiva.
Era seu esporte atualmente.
Ele estava usando uma dessas camisetas de malha brancas sem manga
que são chamadas de camisetas regata, e que sempre me deixavam
nervoso. Faziam com que eu pensasse em coisas ruins — sempre que ele
me "disciplinava" nos tempos de criança parecia estar usando uma. Ainda
me lembro bem, com a nitidez de um retrato, da vez em que, quando eu
tinha oito anos, derramei acidentalmente um copo de Kool-Aid na cadeira
do papai e ele me deu uma surra de cinto, de pé sobre mim — camiseta
manchada, cara suarenta vermelha — urrando: "Viu só o que você me fez
fazer?" Não é a mais agradável das lembranças.
— Quando o novo cara vai chegar? — perguntou ele. — Já está
atrasado, não está?
— Ainda não — Maureen se recusara a ficar mais um minuto sequer
para explicar suas obrigações, portanto, lamentavelmente, não haveria
superposição.
— Por que você está todo vestido assim? Mais parece um papa-
defunto... está me deixando nervoso.
— Já falei, estou começando em um novo emprego hoje.
Ele se virou para Dan Rather, sacudindo a cabeça desolado.
— Você foi demitido, não foi?
— Da Wyatt? Não, eu saí.
— Você tentou ir levando sem trabalhar, como sempre faz, e eles o
despediram. Sei como essas coisas funcionam. Eles sentem o cheiro de um
perdedor a um quilômetro de distância.
Pausa para duas inspirações mais profundas.
— Sua mãe sempre estragou você. Como o hóquei... você poderia ter
sido profissional, se tivesse se aplicado.
— Eu não era tão bom assim, papai.
— Fácil dizer, não é? Fica mais fácil quando você simplesmente fala
isso. Foi quando eu realmente pus tudo a perder... quando o matriculei
naquela faculdade cara onde passou o tempo todo em festas com seus
amigos elegantes.
Ele estava apenas parcialmente certo, claro; eu tive que trabalhar para
pagar minha faculdade. Mas ele que se lembrasse do que quisesse se
lembrar. Ele virou-se para mim, os olhos injetados de sangue, pequenos e
brilhantes.
— E agora, onde estão todos os seus amigos grã-finos, hein?
— Estou bem, papai — ele estava em um de seus surtos, mas, por
sorte, a campainha tocou e eu saí correndo para atender.
Antwoine chegou na hora marcada. Vestia uniforme hospitalar azul-
claro o que o fazia parecer um auxiliar de enfermagem ou enfermeiro.
Tive vontade de saber onde arranjara aquela roupa, já que, pelo que eu
sabia, nunca trabalhara em hospital.
— Quem é? — gritou papai com a voz rouca.
— Antwoine — respondi.
— Antwoine? Que raio de nome é esse? Você contratou algum
pederasta francês?
Papai, porém, já tinha se virado para ver Antwoine parado junto da
porta da frente, e seu rosto ficou roxo. Estava meio estrábico, a boca
aberta de tanto horror.
— Jesus — Cristo! — exclamou, respirando com mais dificuldade que
o normal.
— Como vai? — disse Antwoine, esmagando os ossos de minha mão
com seu cumprimento. — Esse aí deve ser o famoso Francis Cassidy —
acrescentou, aproximando-se da Barcalounger de papai. — Eu sou
Antwoine Leonard. Prazer em conhecê-lo, senhor — ele falava em um tom
de barítono profundo, agradável.
Papai continuou encarando Antwoine, bufando ruidosamente. Até que
por fim disse: — Adam, quero falar com você, agora.
— Claro, papai.
— Não... você diga ao Antwoine, ou sei lá que diabo de nome esse
sujeito tenha, para dar o fora daqui e vamos conversar, eu e você.
Antwoine me olhou, intrigado, sem saber o que devia fazer.
— Por que não leva as suas coisas para o quarto? — falei. — É a
segunda porta à direita. Pode começar a desfazer as malas.
E lá se foi ele com as duas bolsas de náilon pelo corredor. Papai não
esperou que saísse para falar.
— Número um, não quero um homem tomando conta de mim,
entende? Encontre uma mulher para mim. Número dois, não quero um
preto por aqui. Eles não são confiáveis. O que é que você estava pensando?
Você vai sair e me deixar sozinho com esse cara? Quer dizer, dá uma boa
olhada no seu amiguinho, as tatuagens, os cachos. Não quero isso na
minha casa. Será que é pedir demais?
Ele resfolegava mais que nunca.
— Como é que você traz um cara preto para cá, depois de todo o
problema que tive com aqueles malditos garotos do conjunto habitacional
invadindo meu apartamento?
— É isso aí, sim, e eles sempre fazem meia-volta e dão o fora quando
imaginam que não há nada que valha a pena roubar. — Falei baixo, mas
estava enfurecido. — Número um, papai — continuei —, não temos
realmente uma escolha aqui, porque as agências não querem mais papo
conosco, tendo em vista o número de pessoas que você fez irem embora.
Número dois, eu não posso ficar com você, porque trabalho durante o dia,
lembra? E, número três, você nem deu uma chance para o cara.
Antwoine veio caminhando pelo corredor, em nossa direção.
Aproximou-se de meu pai e chegou tão perto que ficou uma coisa quase
ameaçadora, mas falou com uma voz suave e gentil.
— Senhor Cassidy, se o senhor quiser que eu vá embora, eu vou.
Droga, vou agora mesmo, não tenho problemas com isso. Não fico onde
não sou desejado. Não preciso tanto assim de um emprego. Desde que meu
oficial da condicional saiba que fiz uma tentativa séria para arranjar um
emprego, fico numa boa.
Papai estava assistindo à televisão, um anúncio de fraldas geriátricas,
com uma veia latejando sob o olho esquerdo. Eu já tinha visto aquela cara
antes, geralmente quando ele estava dando uma de suas terríveis broncas
em alguém, e dava um medo danado. Ele costumava fazer seus jogadores
de futebol correrem até que alguém vomitava, e se alguém se recusava a
prosseguir, ganhava aquela Cara. Só que ele já a usara tantas vezes que
perdera a força. Ele virou-se e usou-a sobre Antwoine, que, sem dúvida, já
vira coisas muito piores na cadeia.
— Você falou oficial da condicional?
— O senhor ouviu bem.
— Você é um presidiário?
— Ex-presidiário.
— Que merda é essa que você está querendo fazer comigo? — ele fez a
pergunta olhando para mim. — Está querendo me matar antes da doença?
Antwoine não pareceu estar sequer aborrecido.
— Como disse o seu filho, o senhor não tem nada que valha a pena
roubar, mesmo que eu quisesse — disse ele, calmamente, olhos
sonolentos. — Pelo menos dê-me um pouco de crédito. Se eu quisesse dar
algum tipo de golpe, não ia querer um emprego aqui.
— Ouviu isso? — bufou papai, enfurecido. — Você ouviu isso?
— Além do mais, se eu vou ficar, vamos ter que entrar em um acordo
sobre umas coisinhas, o senhor e eu.
Antwoine cheirou o ar.
— Posso sentir o cheiro de cigarro, e o senhor vai ter que cortar essa
merda agora mesmo. Foi essa porcaria que o colocou na situação em que
está hoje.
Ele estendeu a mão enorme e deu um tapa no braço da cadeira do
papai. Um compartimento — que eu nunca vira — abriu-se, e um maço
vermelho e branco de Marlboro pulou lá de dentro como um boneco de
mola que pula de dentro de uma caixa de surpresa.
— Como eu pensava — disse Antwoine. — Era onde meu pai escondia
os dele.
— Ei! — gritou meu pai. — Eu não acredito!
— E o senhor vai começar a fazer exercícios. Seus músculos estão se
atrofiando. Seu problema não está nos pulmões e sim nos músculos.
— Você está maluco?
— Se você tem doença respiratória, tem que fazer exercício. Não
podemos fazer nada quanto aos pulmões que já se foram, mas no que diz
respeito aos músculos, podemos fazer algo. Vamos começar com algumas
flexões de perna na cadeira, para fazer seus músculos trabalharem de
novo, e depois vamos caminhar por um minuto. Meu velho teve enfisema
e eu e meu irmão...
— Você diga a esse... esse... esse negrão tatuado — disse papai entre
um bufo e outro — para tirar suas coisas... daquele quarto... e dar o fora da
minha casa!
Quase perdi a parada. Eu tinha tido um dia absurdamente pavoroso,
minha calma estava no fim e por meses e meses eu me esforçara pacas
para encontrar acompanhantes para o velho, tendo que substituir uma
depois da outra quando ele as tocava de casa, uma sequência sem fim e
uma imensa perda de tempo. E aqui estava ele, demitindo sumariamente
Antwoine, que, mesmo não sendo o candidato ideal, o que eu reconhecia,
era a única solução que tínhamos em mãos. Tive vontade de deixá-lo com
ele e ir embora, mas não pude. Não podia gritar com meu pai, aquele velho
patético com um enfisema em estágio final. E fiquei quieto, correndo o
risco de explodir.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, Antwoine virou-se para
mim.
— Acredito que foi seu filho que me contratou, portanto só ele poderá
me despedir.
Sacudi a cabeça.
— Você não tem tanta sorte assim, Antwoine. Não vai sair daqui tão
facilmente. Por que não começa a trabalhar?
16
Eu precisava aliviar a pressão. Era muita coisa. O ridículo que Nora
Sommers me fizera passar sem que eu pudesse mandar que se fodesse, a
impossibilidade de sobreviver na Trion tempo suficiente para conseguir
roubar uma caneca de café que fosse, a sensação geral de que tudo estava
além do meu entendimento. Para culminar, a cereja em cima do bolo: meu
pai. Conter a raiva, não gritar com ele coisas como — seu filho-da-puta
preconceituoso e ingrato, morra logo — corroíam minhas entranhas.
Assim, eu simplesmente apareci no Gato de Rua, sabendo que Seth
deveria estar trabalhando naquela noite. Eu só queria me sentar no balcão
do bar e tomar um porre daqueles na base da bebida grátis.
— Ei, querido — disse Seth, deliciado por me ver — seu primeiro dia
no novo emprego, não foi?
— É isso aí.
— Foi tão ruim assim?
— Não quero falar a respeito.
— Muito ruim. Uau.
Ele me serviu um scotch como se eu fosse algum velho porrista, um
freguês antigo.
— Adorei o corte de cabelo, cara — Seth de novo. — Não me diga que
ficou de porre e acordou com esse corte de cabelo.
Ignorei-o. O scotch subiu imediatamente para a minha cabeça. Eu não
tinha comido nada no jantar e estava cansado. Foi ótimo.
— Até que ponto pode ter sido ruim, cara? Foi seu primeiro dia, eles
mostram onde fica o toalete, certo?
Ele levantou os olhos para o jogo de basquete na tevê e depois me
encarou de novo.
Contei a ele a historinha de Nora Sommers e do seu truque com o
Newton da Apple.
— Que filha da mãe, hein? Por que ela bateu em você com tanta força?
O que podia esperar — você é novo, não sabe nada, certo?
Sacudi a cabeça.
— Não, ela...
De repente me dei conta de que tinha omitido a parte mais importante
da história: aquela em que eu supostamente era um superastro da Wyatt
Telecom. Merda. A anedota só teria sentido se você soubesse que a dragoa
estava tentando me humilhar. Meu cérebro estava inutilizado. Tentar me
safar daquele deslize mínimo me pareceu um objetivo inalcançável, como
escalar o monte Everest ou atravessar o Atlântico a nado. Eu já fora
apanhado em uma mentira. Senti-me pegajoso por dentro e muito cansado.
Por sorte, alguém atraiu a atenção de Seth e fez um sinal, chamando-o.
— Sinto muito, cara, hoje é a noite do hambúrguer pela metade do
preço — anunciou ele, saindo para pegar duas cervejas para alguém.
Sozinho, fiquei pensando nas pessoas que conhecera, aquele "elenco de
personagens", como o bizarro Noah Mordden se referira a elas, e que
estavam agora desfilando pela minha cabeça, ficando cada vez mais
grotescas. Queria fazer uma espécie de relatório do que acontecera, mas
não podia. Acima de tudo, eu queria download, falar a respeito de Chad e
de Phil Não-Sei-O-Quê, o veterano. Queria falar com alguém a respeito da
Trion e descrever o que sentira ao ver Jock Goddard na cafeteria. Mas não
podia, porque não confiava em mim mesmo para lembrar de onde
exatamente a Grande Muralha passava, que parte ninguém deveria tomar
conhecimento.
O efeito causado pelo uísque começou a perder a força, e a ansiedade
que eu sentia, como se fosse uma nota grave sustentada ao fundo, foi
aumentando aos poucos e ficando cada vez mais aguda, como microfonia,
alucinantemente alta. Quando Seth voltou, já tinha esquecido sobre o que
estávamos falando. Seth, como a maior parte dos homens, tendia a se
concentrar mais nos seus próprios temas que nos dos outros. Salvo pelo
narcisismo masculino.
— Meu Deus, as mulheres adoram os caras que trabalham em bares —
disse ele. — Por que será?
— Não sei, Seth. Talvez seja você — empurrei meu copo vazio na
direção dele.
— Sem dúvida. Sem dúvida — ele serviu mais um pouco de scotch e
pôs mais gelo.
Em voz baixa e tom de confidência, quase inaudível acima da
algazarra das vozes altas e do estrondo do jogo de basquete na televisão,
ele disse: — Meu gerente diz que não gosta do modo como sirvo a bebida.
Vive me fazendo usar um medidor, me mandando praticar. Não satisfeito,
ele próprio vive me testando. "Sirva para mim! Foi demais! Você assim
está dando de graça nossa adega!"
— Acho você absolutamente perfeito, Seth — garanti.
— Na verdade eu teria que lançar este uísque em uma nota, você sabe.
— Vá em frente. Estou ganhando bem agora.
— Nada disso, eles nos deixam servir quatro drinques grátis por noite,
por isso você não precisa se preocupar. Quer dizer então que você acha que
seu trabalho foi ruim. Pois olha, aqui estão sempre me esculhambando se
chego dez minutos atrasado.
Sacudi a cabeça.
— Quer dizer, Shapiro não sabe usar a copiadora. Não sabe como
enviar um fax. Não sabe sequer fazer uma busca usando o Lexis-Nexis.
Estaria totalmente perdido sem mim.
— Talvez ele queira uma outra pessoa para fazer o trabalho sujo.
Seth pareceu não me ouvir.
— Já lhe contei minha última jogada?
— Conta.
— Escuta só... jingles!
— Como?
— Jingles! Ali, como aquilo ali!
Ele apontou para a televisão, onde se podia ver o anúncio barato de
uma companhia de colchões com uma canção idiota e chata e que passava
o tempo todo.
— Conheci um cara na firma de advocacia que trabalha para uma
agência de publicidade, e ele me contou tudo a esse respeito. Falou que
pode me conseguir uma audição para uma dessas companhias de jingles,
como a Megamusic, Crushing ou Rocket. Garantiu que a maneira mais
fácil de entrar nesse mercado é escrever um jingle.
— Você não sabe nem ler música, Seth.
— O Stevie Wonder também não lê. Olha, uma porção de caras
realmente talentosos não sabe ler música. Quer dizer, quanto tempo leva
para se aprender uma peça musical de trinta segundos? A garota que faz
todos aqueles anúncios do JCPenney, ele disse que mal sabe ler música,
mas tem a voz!
A mulher que estava ao meu lado no bar dirigiu-se a Seth: — Que tipo
de vinho você tem?
— Tinto, branco e rosado — respondeu ele. — Qual deles posso lhe
servir?
Ela respondeu branco, e ele serviu um pouco no copo de água. E voltou
a conversar comigo.
— O dinheiro está mesmo no canto, é claro. Só tenho que bolar uma
musiquinha, gravar num CD e muito em breve estarei na lista A. Você me
entendeu? Nada de trabalho, muito dinheiro!
— Parece ótimo — falei, sem muito entusiasmo.
— Tem algo contra?
— Não, parece ótimo mesmo, sinceramente — desta vez consegui
demonstrar um pouco mais de entusiasmo. — Grande lance.
Nos últimos dois anos, Seth e eu falamos muito sobre lances desse
tipo, sobre trabalhar o menos possível. Ele adorava ouvir as minhas
histórias de como eu matava tempo na Wyatt, como gastava horas na
Internet lendo as piadas do The Onion ou então visitando sites como
BoredAtWork.com ou IloveBacon.com ou ainda o FuckedCompany.com.
Eu gostava especialmente dos sites que tinham um botão chamado
"gerente", que você podia clicar quando o gerente passava, sumindo com a
página de piadas e fazendo voltar a chata da planilha Excel com que você
estava trabalhando. Nós dois tínhamos orgulho de ver como conseguíamos
nos safar com tão pouco trabalho. Por isso Seth adorava ser paralegal, ou
seja, assistente jurídico em uma firma de advocacia — ele assim podia ser
marginal, sem supervisão a maior parte do tempo, cínico e desligado do
mundo onde as pessoas trabalhavam.
Levantei para ir ao toalete e no caminho de volta comprei um maço de
Camel sem filtro na máquina.
— De novo com essa merda? — disse Seth, me olhando tirar o papel
da embalagem do maço.
— É sim — respondi, em um tom de me deixa em paz.
— Depois não me venha pedir ajuda para empurrar seu tanque de
oxigênio sobre rodas por aí.
Ele pegou um copo de Martini gelado na geladeira e serviu um
pouquinho de vermute.
— Olha só — ele jogou o vermute fora, por cima do ombro, e então
serviu uma dose de Bombay Sapphire. — Isso é que é um Martini perfeito.
Tomei um gole dos grandes do scotch quando ele foi registrar o
Martini na caixa do bar e entregar. Gostei de sentir o ardor no fundo da
garganta. Agora a coisa estava começando realmente a fazer efeito. Senti-
me um pouco instável em cima do banco. Estava me sentindo como o
operário da anedota com o contracheque no bolso.
Nora Sommers, Chad Pierson e todos os demais começaram a
encolher, a assumir uma aura inofensiva, ridícula, como de personagens de
cartum. Quer dizer então que eu tivera um dia horroroso. O que havia de
tão pouco costumeiro nisso? Todo mundo se sente um pouco fora do seu
elemento no primeiro dia de um trabalho novo. Eu era bom, tinha que
manter isto em mente. Se não fosse tão bom, Wyatt jamais teria me
escolhido para aquela missão. Obviamente que ele e sua consigliere Judith
não estariam perdendo tempo comigo se não achassem que eu podia dar
conta da tarefa. Teriam me despedido e me atirado às garras do sistema
legal. Eu estaria deitado no tal catre da penitenciária de Marion.
Comecei a sentir um agradável surto de autoconfiança embalado pelo
álcool e que beirava a megalomania. Eu tinha saltado de paraquedas na
Alemanha nazista, com pouco mais que rações K e um rádio de ondas
curtas, e o sucesso dos aliados dependia inteiramente de mim. Ou seja,
nada menos que o destino da civilização Ocidental.
— Vi Elliot Krause hoje no centro da cidade — disse Seth.
Olhei para ele, sem entender.
— Elliot Krause? Lembra? Elliot Port-O-San?
Meu tempo de reação fora reduzido. Precisei de alguns segundos para
cair na risada. Não ouvia o nome de Elliot Krause havia anos.
— Ele é sócio de alguma firma de direito, claro.
— Se especializando em... direito ambiental. Certo? — ao mesmo
tempo em que falei, caí no riso e tive que cuspir um gole de scotch inteiro.
— Você se lembra da cara dele?
— Esquece a cara, você se lembra das calças dele?
Era por isso que eu gostava de matar o tempo ao lado de Seth. Nós
falávamos em código Morse; tínhamos as referências um do outro, as
piadas que só nós entendíamos.
Nossa história em comum nos dava uma linguagem secreta, do modo
como gêmeos falam um com o outro quando são bebês. Em um verão,
quando estudávamos no curso secundário e Seth trabalhava em um clube
de tênis esnobe fazendo trabalhos de manutenção durante um grande
torneio internacional, ele me deixou assistir sem pagar. O clube alugou e
mandou instalar alguns daqueles toaletes portáteis para atender ao fluxo
maior de espectadores — Handy Houses ou Port-O-Sans ou Johnny On the
Job ou qualquer que seja o nome que tenham, não me lembro — aqueles
troços que parecem geladeiras gigantes. Lá pelo segundo ou terceiro dia
tudo ficou cheio e o pessoal da Handy House não se deu ao trabalho de ir
lá bombear a sujeira. O fedor ficou insuportável.
Havia um garoto da escola, um mauricinho chamado Elliot Krause, que
nós dois odiávamos, em parte porque ele roubara a namorada de Seth e em
parte porque bancava o importante para cima de nós, garotos da classe
trabalhadora. Ele apareceu para o torneio envergando uma suéter esportiva
branca, meio afrescalhada, e calças de algodão também brancas, com a
namorada de Seth pelo braço. Só que cometeu o erro de ir se aliviar num
dos toaletes portáteis. Seth, que naquela hora estava às voltas com o lixo,
viu e me dirigiu um sorriso perverso. Ele correu até o toalete, enfiou o
cabo do seu arpão de espetar lixo no fecho e eu e um amigo nosso, Flash
Flaherty, começamos a balançar a geringonça para trás e para a frente.
Podia-se ouvir Elliot lá dentro gritando: "Ei, ei! O que diabos está
acontecendo?" e podia-se ouvir também o derramamento do indescritível
conteúdo do toalete até que finalmente conseguimos virar a coisa de
cabeça para baixo com Elliot preso lá dentro. Não quero nem pensar onde
o pobre sujeito estava flutuando. Seth perdeu o emprego, mas insistiu em
afirmar que tinha valido a pena — ele teria pagado um bom dinheiro para
ver Elliot Krause emergir de dentro do toalete com sua roupa não mais
branca e fedendo, coberto de merda.
A esta altura, só de lembrar Elliot Krause pondo os óculos salpicados
de merda no rosto, igualmente coberto de merda, ao sair tropeçando da
Handy House, eu ria tanto que perdi o equilíbrio e caí no chão. Por uns
dois segundos fiquei deitado, incapaz de me levantar. As pessoas se
concentraram à minha volta, cabeças gigantes voltadas para baixo,
perguntando se eu estava bem. Eu me senti definitivamente embriagado.
Tudo perdeu a nitidez. Por alguma razão, focalizei uma imagem de meu
pai e Antwoine Leonard e, como isso também me pareceu tremendamente
hilariante, não pude parar de rir.
Senti que alguém me agarrou pelo ombro, enquanto outra pessoa me
amparava pelo cotovelo. Seth e outro cara estavam me ajudando a sair do
bar. Todo mundo parecia me olhar.
— Desculpe, cara — falei, sentindo uma onda de vergonha me invadir.
— Obrigado. Meu carro está aqui perto.
— Você não vai dirigir, amigo.
— Está aqui — insisti, meio sem forças.
— Não é o seu carro. Esse é um Audi ou algo parecido.
— É meu — falei firmemente, sublinhando a declaração com um
vigoroso balançar de cabeça. — Audi A6, acho eu.
— O que foi que aconteceu ao Amassadinho?
Sacudi a cabeça.
— Meu carro novo.
— Cara, este emprego novo, estão pagando tão mais assim?
— É — respondi. Mas acrescentei logo, enrolando a língua: — Nem
tanto.
Ele assobiou para chamar um táxi e, junto com o outro sujeito, me
colocou sentado.
— Você lembra de onde mora? — quis saber Seth.
— Deixa disso, Seth. Claro que me lembro.
— Quer um café para a viagem, a fim de ficar um pouco mais sóbrio?
— Nada disso. Tenho que dormir. Trabalho amanhã.
Seth riu.
— Não o invejo, homem.
17
No meio da noite, meu celular tocou insuportavelmente alto, só que
não era o meio da noite. Já dava para ver um raio de luz atrás da persiana.
O relógio marcava cinco e meia — da manhã? da tarde? Eu estava tão
desorientado que não fazia ideia. Peguei o telefone, arrependido por não
tê-lo deixado desligado.
— Hein?
— Você ainda está dormindo? — disse uma voz, incrédula.
— Quem fala?
— Você deixou o Audi numa zona de reboque — Arnold Meacham,
percebi imediatamente. O nazista encarregado da segurança da Wyatt. —
O carro não é seu, é arrendado pela Wyatt Telecommunications, e o
mínimo que você pode fazer é tomar conta dele decentemente, e não
deixá-lo para trás como uma camisinha descartada.
Eu me lembrei então: a noite passada, eu, chapadão no Gato de Rua, de
algum modo conseguindo chegar em casa, esquecendo de armar o
despertador... Trion!
— Que bosta! — exclamei, dando um pulo para a frente. Senti meu
estômago dando voltas. Minha cabeça latejava, e eu tinha a impressão de
que era enorme, como a cabeça de um daqueles alienígenas de Jornada nas
estrelas.
— Nós definimos quais eram as regras com toda a clareza — disse
Meacham. — Nada mais de se encher de álcool. Nem de festas. Espera-se
que você funcione no máximo de sua capacidade.
Ele estaria falando mais rápido e alto que o normal? Sem dúvida que
parecia. Eu mal podia acompanhá-lo.
— Eu sei — coaxei, de modo pouco convincente.
— Este não é um início auspicioso.
— Ontem foi... foi complicado. Meu primeiro dia, e meu pai...
— Não dou a mínima. Temos um acordo explicitado, ao qual se espera
que você obedeça. E o que foi que descobriu da equipe de projetos de
ponta?
— Equipe...?
Joguei minhas pernas para o chão, sentei na beirada da cama e
massageei as têmporas com a mão livre.
— De projetos confidenciais, rotulados com palavras código. Para que
diabos você pensa que está lá?
— Não, é cedo demais — falei. — Quer dizer, ainda não deu tempo
para nada — bem devagar o meu cérebro voltava a funcionar. — Ontem eu
andei escoltado por toda a parte. Não fiquei sozinho um minuto. Teria sido
arriscado fazer qualquer coisa que chamasse a atenção deles. Você não
quer que eu ponha tudo a perder logo no primeiro dia.
Meacham ficou em silêncio por uns segundos.
— Tudo bem. Mas você deverá ter uma oportunidade muito em breve,
e eu espero que tire vantagem dela. Quero um relatório no fim do
expediente de hoje, estamos entendidos?
18
Pela hora do almoço, comecei a me sentir menos aleijado e decidi
subir até o ginásio — a "academia de ginástica", perdão — para dar uma
rápida malhada. Academia ficava no telhado da ala E, em uma espécie de
bolha, com quadras de tênis e todo o tipo de equipamento cardiológico e
de aparelhos: esteiras comuns, StairMasters e vários outros, todos
providos com telas de TV/vídeo individuais. O vestiário tinha uma sauna a
vapor e outra seca, tão espaçosas quanto as de qualquer clube rico que eu
já vira.
Troquei de roupa e já me dirigia para as máquinas e os pesos quando
Chad Pierson entrou no vestiário.
— Aí está ele — disse Chad. — Como vai indo, cara? — ele abriu um
armário perto do meu. — Está aqui para o basquete?
— Na verdade eu ia...
— Deve estar rolando uma pelada, vai querer jogar?
Hesitei um segundo.
— Claro.
Não havia ninguém na quadra, e nós esperamos alguns minutos,
driblando e executando arremessos. Finalmente Chad disse: — Que tal um
contra um?
— Tudo bem.
— Partida de onze. Quem encestar sai com a bola?
— Ok.
— Escuta, que tal uma apostinha, hein? Não sou realmente um cara
competitivo... talvez assim o jogo esquente um pouco.
Está certo, pensei. Você não é muito competitivo.
— Tipo seis maços de cigarro ou algo assim?
— Deixa disso, cara. Uma nota de cem.
Uma nota de cem? Que negócio é esse, estávamos em Las Vegas? Foi
com relutância que respondi.
— Ok. Certo, como queira.
Um erro. Chad era muito bom, jogava agressivamente e eu estava de
ressaca. Ele foi até a linha dos três pontos, arremessou e encestou. Depois,
parecendo muito satisfeito consigo próprio, fez uma pistola com o dedo
indicador e o polegar e soprou a fumaça do cano.
Obrigando-me a recuar, ele acertou uns arremessos e imediatamente
tomou a dianteira. De tempos em tempos fazia o gesto típico do Alonzo
Mourning em que ele balança as duas mãos para trás e para a frente como
um atirador sacando os revólveres em um tiroteio. Era supinamente
aborrecido.
— Parece que você não trouxe seu melhor jogo, hein? — disse ele. Sua
expressão parecia benevolente, até mesmo preocupada, mas os olhos
brilhavam de superioridade.
— Acho que não — concordei. Eu estava tentando ser boa praça,
aproveitar o jogo, sem ir atrás dele como um cretino, mas Chad começava
a me irritar. Quando eu avançava quicando a bola, não estava em sincronia,
ainda não tinha pegado o jeito. Errei uns arremessos e ele bloqueou dois.
Consegui, no entanto, marcar uns pontos, e logo a contagem passou para
seis a três. Foi quando comecei a notar que ele avançava pela direita.
Ele se entusiasmou e repetiu a bobagem de fingir que atirava e soprava
a fumaça do dedo. Saiu driblando pela direita e acertou outra cesta.
— Dinheiro! — vociferou.
Foi nesse ponto que eu tive a sensação de ter acionado um interruptor
mental e deixei os fluidos competitivos jorrarem. Chad continuou
driblando e arremessando pela direita. Era óbvio que não sabia avançar
pela esquerda, que não tinha uma mão esquerda decente. Comecei, então, a
bloquear sua direita, forçando-o a avançar pela esquerda, e fiz uma cesta
usando a tabela.
Meu palpite estava certo. Chad não tinha mão esquerda. Errou alguns
arremessos indo pela esquerda, e por duas vezes interceptei a bola
facilmente quando tentava me driblar. Eu ficava na frente dele e aí pulava
de repente para trás e para frente, forçando-o a mudar de direção
rapidamente. O principal é que, quando peguei o ritmo do jogo, eu
basicamente progredia batendo a bola, e Chad deve ter imaginado que eu
não arremessava quando saltava. Olhou para mim atônito quando meus
arremessos em movimento começaram a cair.
— Você estava escondendo o jogo — disse ele, por entre os dentes
cerrados. — Você sabe arremessar em movimento, mas vou acabar com
isso já já.
Comecei a brincar um pouco com a cabeça dele. Fingi que ia saltar
para arremessar, forçando-o a saltar também para tentar me bloquear, e
passei direto. Funcionou tão bem que tentei de novo; Chad estava tão
nervoso que funcionou melhor ainda da segunda vez. Em muito pouco
tempo empatei o jogo.
Eu o estava irritando. Fingia que dava um passo, um movimento
mínimo, para a esquerda e ele pulava para a esquerda, dando-me espaço
para avançar pela direita.
A cada cesta dava para ver como ia ficando mais e mais perturbado.
Passei direto e marquei uma cesta com a ajuda da tabela e depois
acertei outra dessas que você arremessa depois de saltar, quando já está
voltando para o chão.
Passei a liderar o escore, e Chad estava ficando de cara vermelha,
respiração ofegante. Acabaram-se as tiradas arrogantes.
Eu estava na frente, dez a nove quando saí correndo, disparado, e parei
de repente. Chad cambaleou para trás e caiu sentado. Sem a menor pressa,
corrigi a posição dos pés e lancei a bola. Cesta. Sem tocar no aro ou na
tabela. De xuá. Fiz uma pistola com o polegar e o indicador e soprei a
fumaça com um largo sorriso.
Meio recuando, meio desabando de encontro à parede acolchoada do
ginásio, Chad arfava.
— Bem, você me surpreendeu, grandalhão. Tem mais jogo do que eu
pensava.
Ele respirou fundo.
— O jogo foi bom. Divertido. Mas vou lhe dar uma surra na próxima
vez, companheiro. Conheço seu jogo agora.
Ele sorriu como se estivesse só brincando, estendeu o braço e pôs a
mão suarenta e viscosa no meu ombro.
— Devo-lhe um Benjamin.
— Esquece. Não gosto de jogar por dinheiro.
— Não, sinceramente. Eu insisto. Compre uma gravata nova para você
ou qualquer outra coisa.
— Não adianta insistir, Chad. Não vou receber seu dinheiro.
— Eu lhe devo...
— Você não me deve nada, cara — pensei um momento. Não há nada
que as pessoas gostem mais de dar do que conselhos. — Exceto talvez
umas dicas sobre a Nora.
Os olhos dele se acenderam. Eu agora estava jogando no seu campo.
— Ah, ela faz aquilo com todos os novatos. É o seu modo pessoal de
dar trote, não significa nada mais que isso. Nada de pessoal, pode acreditar
em mim — tive o mesmo tratamento quando comecei aqui.
Reparei no que deixou de ser dito: E olha só para mim agora. Ele teve
o cuidado de não criticar Nora; sabia que devia desconfiar de mim, não se
abrir.
— Já estou bem grandinho — falei. — Dá para aguentar.
— Estou dizendo para nem pensar mais nisso, cara. Ela demonstrou o
que queria. Basta que você agora fique na ponta dos pés... e ela seguirá
adiante. Nora não teria feito o que fez se não considerasse você um al-po.
Alto Potencial, era o que ele queria dizer.
— Ela gosta de você. Se não gostasse, não teria lutado tanto para tê-lo
na sua equipe.
— Ok — eu não saberia dizer se ele estava me enrolando ou não.
— Quer dizer, se você quiser... Por exemplo, a reunião de hoje de
tarde... Tom Lundgren vai estar presente, revisando as especificações do
produto, certo? E há semanas que não conseguimos sair do mesmo lugar,
imobilizados em um debate idiota sobre se é preciso ou não acrescentar
funcionalidade ao GoldDust.
Ele rolou os olhos para cima.
— Puxa, dá um tempo. É terrível quando Nora começa com essa
chatice. De qualquer forma, provavelmente será uma boa ideia você ter
uma opinião qualquer sobre o GoldDust — não precisa concordar com ela
que seja uma imbecilidade completa e total e uma vasta perda de dinheiro.
O importante é ter uma opinião a respeito. Ela gosta de debates em que os
participantes saibam o que digam.
GoldDust, eu sabia, era a última grande novidade em produtos
eletrônicos voltados para o consumidor. GoldDust era o nome fantasia de
uma tecnologia para transmissão a curta distância, sem fio e com baixo
consumo de energia, destinada a conectar o seu Palm, ou Blackberry ou
Lucid, a um telefone, um laptop ou uma impressora, qualquer coisa. Curta
distância significava menos de seis metros, mais ou menos. Seu
computador pode falar com a sua impressora, tudo pode falar com tudo
sem que os antipáticos cabos fiquem à vista. Ia nos libertar a todos de
nossos fios, cabos e correntes. Claro que o que os gênios da indústria que
inventaram o GoldDust não imaginaram foi a explosão do WiFi — 802.11.
Mesmo antes de Wyatt me forçar a empreender aquela nova Marcha da
Morte de Bataan, eu tinha que ter conhecimento do WiFi. O GoldDust eu
aprendera com os engenheiros da Wyatt, que o ridicularizavam de cima a
baixo.
— É, havia sempre alguém na Wyatt tentando empurrar isso pela nossa
goela abaixo, mas a gente se segurava.
Ele sacudiu a cabeça.
— Os engenheiros querem acrescentar tudo em não importa que
aparelho, não interessa o custo. Que diferença faz se mais uma coisa na
engenhoca vai elevar o preço acima de quinhentas pratas? De qualquer
forma, isso vai aparecer, sem dúvida... e aposto como você realmente pode
atacá-lo.
— Tudo o que sei é o que leio, sabe?
— Eu levanto a bola para você na reunião, você pode fazer o gol.
Ganhar uns pontinhos estratégicos com a chefia não faz mal a ninguém,
faz?
Chad era como papel vegetal: tão transparente que você podia ver seus
motivos. O sujeito era uma cobra, e eu sabia que jamais poderia confiar
nele, mas estava obviamente tentando estabelecer uma aliança comigo,
provavelmente com base na teoria de que era melhor para ele alinhar-se
com o novo talento, ser meu chapa, do que dar a impressão de estar sendo
ameaçado por mim, o que, é claro, era o caso.
— Está certo, cara, obrigado.
— É o mínimo que posso fazer.
Quando cheguei à minha baia, ainda dispunha de meia hora antes do
início da reunião, portanto entrei na Internet e fiz uma rápida pesquisa sem
maiores profundidades sobre o GoldDust, a fim de dar a impressão de que
pelo menos sabia do que estava falando. Surfei por dezenas de sítios da
Web de qualidade variada, uns de promoção da indústria e outros (como o
GoldDustGeek.com) sob a responsabilidade de alguns malucos obcecados
por essa bosta. De repente, notei que havia alguém em pé atrás de mim,
olhando por cima do meu ombro. Era Phil Bohjalian, o veterano.
— Novato entusiasmado, hein? — ele se apresentou. — Ainda no seu
segundo dia e olhe só para você — Phil sacudiu a cabeça, admirado. —
Não trabalhe demais, o trabalho gasta. Além disso, você fará com que
todos nós façamos má figura.
Ele deu uma risadinha, como se aquilo fosse uma fala extraída de The
Producers, e saiu do palco pela esquerda.
19
O grupo de marketing encarregado do Maestro reuniu-se de novo na
sala Corvette, e todos ocupavam praticamente as mesmas posições, como
se houvesse lugares marcados.
Desta vez, porém, Tom Lundgren estava presente, sentado em uma
cadeira encostada na parede dos fundos, não à mesa. Então, imediatamente
antes de Nora dar a reunião por iniciada, entrou Paul Camilletti, o diretor
financeiro da Trion, todo elegante, como um ídolo das matinês saído de
Love Italian Style, usando um paletó Houndstooth de tecido áspero cinza
escuro sobre uma camisa preta de gola olímpica. Sentou-se ao lado de Tom
Lundgren e foi possível sentir a sala inteira ficar imobilizada, como se
tivesse recebido uma carga elétrica, como se alguém tivesse acionado um
interruptor.
Até mesmo Nora ficou um pouco abalada.
— Bem — disse ela —, por que não começamos? É com satisfação que
dou as boas-vindas a Paul Camilletti, nosso diretor financeiro. Bem-vindo,
Paul.
Ele abaixou a cabeça, o tipo de agradecimento que dizia: Não prestem
atenção em mim, só vou ficar aqui sentado incógnito, anônimo. Como um
elefante dentro da sala.
— Quem mais está conosco hoje? Via teleconferência, alguém?
Ouviu-se uma voz pelo viva-voz de audioconferência: — Ken Hsiao,
Cingapura.
E depois:
— Mike Matera, Bruxelas.
— Tudo bem — disse ela —, então a gangue está toda aqui.
Nora parecia empolgada, mas era difícil saber quanto daquilo era uma
demonstração de entusiasmo encenada em benefício de Tom Lundgren e
Paul Camilletti.
— Esta ocasião é tão boa quanto qualquer outra para dar uma olhada
nas perspectivas, detalhar tudo e sentir em que ponto nos encontramos.
Nenhum de nós quer ouvir aquele velho clichê, "marca moribunda", estou
certa? Maestro não é uma marca moribunda. Nós não vamos torpedear o
valor de marca que a Trion construiu nesta linha de produtos para
favorecer a novidade. Acho que estamos todos no mesmo barco quanto a
isso.
— Nora, aqui é o Ken, de Cingapura.
— Sim, Ken?
— Bem, por aqui estamos sentindo uma certa pressão, devo dizer, do
Palm, Sony e Blackberry, especialmente no segmento corporativo. As
encomendas do Maestro Gold na costa asiática do Pacífico estão
parecendo um pouco devagar.
— Muito obrigada, Ken — ela apressou-se a dizer, cortando um
possível prosseguimento. — Kimberly, como você vê a comunidade de
canais de vendas?
Kimberly Ziegler, pálida e aparentemente nervosa, com seus óculos de
aros grossos, levantou a cabeça coberta de cachos.
— Tenho que dizer que meu entendimento é muito diferente do de
Ken.
— É mesmo? Como assim?
— Estou vendo uma diferenciação de produto que, na verdade, nos está
beneficiando. Temos um preço melhor que o dos pagers avançados que
aceitam páginas de texto tanto da Blackberry quanto da Sony. É verdade
que há um pouco de desgaste na marca, mas o upgrade do processador e a
memória flash vão realmente agregar valor a ela. Assim, sou de opinião
que devemos nos sustentar, especialmente nos mercados verticais.
Puxa-saco, pensei.
— Excelente — aprovou Nora, radiante. — Foi bom ouvir isso. Estou
também interessada em ouvir qualquer outra opinião sobre o GoldDust —
ela viu Chad levantando o dedo no ar. — Sim, Chad?
— Adam talvez tenha uma ou duas ideias a respeito.
Ela se virou para mim.
— Excelente, vamos ouvi-lo — ela falou como se eu tivesse acabado
de me apresentar como voluntário para tocar piano.
— GoldDust? — falei, forçando um sorriso conhecedor. — Tipo, ficou
parado em 1999? É o Betamax do sem fio. Na mesma estante da Coca-
Cola de novo sabor, fusão a frio, a liga de futebol americano XFL e o carro
Yugo.
Houve alguns risinhos de aprovação. Nora me observava atentamente.
— Os problemas de compatibilidade são tão grandes — continuei —
que nem é preciso especificar muito... quer dizer, o modo como os
aparelhos GoldDust trabalham somente com aparelhos do mesmo
fabricante, a falta de qualquer código padronizado... A Philips vive
dizendo que vai produzir uma versão nova e padronizada do GoldDust...
isso mesmo, talvez quando todos nós estivermos falando esperanto.
Mais algumas risadas, embora eu tenha notado, de passagem, que
talvez metade das pessoas presentes ali na sala estivesse exibindo rostos
absolutamente inexpressivos.
Tom Lundgren me olhava com um sorriso engraçado, meio de lado, a
perna direita balançando.
Eu agora estava me deleitando com aquilo, e fui mais fundo.
— Puxa vida, a taxa de transferência é mesmo o quê? Menos de um
megabit por segundo? Realmente patético. Menos de um décimo do
padrão WiFi. É um troço do tempo das charretes. E isso sem falar na
facilidade de interceptação que oferece... não tem a menor segurança.
— Apoiado — disse alguém baixinho, sem que eu pudesse perceber
quem fora. Mordden sorria abertamente. Phil Bohjalian me observava
através dos olhos semicerrados, com uma expressão enigmática,
incompreensível. Foi só então que vi Nora. Seu rosto estava vermelho,
quer dizer, era possível ver uma onda de vermelho subindo do pescoço
para os olhos muito separados.
— Já terminou? — exclamou ela.
De repente senti-me nauseado. Não era aquela a reação que eu
esperava. O que foi, eu tinha me estendido demais?
— Claro — respondi, cautelosamente.
Um sujeito com cara de indiano resolveu intervir.
— Por que estamos revendo isso? — perguntou ele. — Pensei que você
tivesse tomado uma decisão final na semana passada, Nora. Você parecia
sentir muito fortemente que a funcionalidade acrescentada valia o custo.
Por que então vocês do marketing estão voltando ao velho debate? Esse
assunto já não está decidido?
Foi Chad, que estivera estudando a mesa, quem se manifestou.
— Como é que é, pessoal, vamos dar uma chance ao novato, certo?
Não se pode esperar que ele saiba tudo... o cara ainda nem sabe onde fica a
máquina de cappuccino.
— Acho que não precisamos perder mais tempo neste ponto — disse
Nora. — A questão está decidida. Vamos mudar o GoldDust.
O olhar que ela me dirigiu foi da mais negra das fúrias.
Quando a reunião terminou, depois de vinte minutos em que meu
estômago não parou de se revolver, e as pessoas começaram a sair da sala,
Mordden me deu um tapinha furtivo no ombro, o que deveria me ter dito o
que precisava. Eu estragara tudo de modo total e absoluto. O pessoal me
dirigia olhares curiosos de todos os tipos.
— Hum, Nora — disse Paul Camilletti, levantando um dedo —, você
se incomoda de ficar mais um segundinho? Quero repassar umas coisas.
Quando saí, Chad aproximou-se e cochichou:
— Parece que ela não aceitou bem o que você disse, mas foi um input
realmente valioso, cara.
Com certeza, seu filho da puta.
20
Talvez uns quinze minutos após o término da reunião, Mordden passou
no meu cubículo.
— Muito bem, estou impressionado — comentou.
— Sinceramente? — perguntei, sem grandes entusiasmos.
— Claro! Você tem mais coragem do que eu imaginava. Atacar sua
gerente, a temida Nora, no seu projeto favorito... — Ele sacudiu a cabeça.
— Pode ser que se tenha criado uma tensão criativa. Mas você deve ter
consciência das consequências do que fez. Nora não esquece deslizes. Não
se esqueça de que entre os guardas dos campos de concentração nazistas as
mulheres eram as mais impiedosas.
— Obrigado pelo conselho.
— Fique alerta para os sinais sutis de desagrado da Nora. Por exemplo,
caixas vazias empilhadas ao lado do seu cubículo. Ou, de repente, não
mais conseguir se logar no seu computador. Ou o RH exigindo que você
devolva seu crachá. Mas não tenha medo, eles lhe darão uma excelente
carta de recomendação e o seu encaminhamento para um novo emprego
será absolutamente grátis.
— Eu entendo. Obrigado.
Notei que havia uma mensagem na minha caixa postal de voz. Quando
Mordden saiu, levantei o telefone.
Era um recado de Nora Sommers, pedindo — não, mandando — que eu
fosse à sua sala imediatamente.
Ela estava digitando quando entrei. Dirigiu-me um olhar comprido, de
lado, como de um lagarto, e voltou ao computador. Ignorou-me
inteiramente por uns bons dois minutos. Fiquei ali parado, de pé, sem
graça. Seu rosto começou a ficar vermelho de novo — de certa forma, era
um azar para ela que sua pele a denunciasse com tanta facilidade.
Finalmente levantou a cabeça e girou na cadeira sobre rodinhas para
me encarar. Seus olhos brilhavam, mas não de tristeza. Algo diferente,
algo quase selvagem.
— Escute, Nora — falei, delicadamente —, quero pedir desculpas pela
minha...
Ela falou tão baixo que mal pude ouvi-la.
— Sugiro que você ouça, Adam. Você já falou demais hoje.
— Eu fui um idiota — comecei.
— E falar aquelas coisas na presença de Camilletti, o senhor Saldo, o
senhor Margem de Lucro... Preciso trabalhar muito em controle de danos
com ele, graças a você.
— Eu devia ter ficado com a boca...
— Se você tentar me solapar, não sabe onde é que vai se meter.
— Se eu soubesse... — tentei, em vão, apresentar meu argumento.
— Nem tente explicar nada. Phil Bohjalian me disse que passou pelo
seu cubículo e o viu fazendo febrilmente uma pesquisa sobre o GoldDust
antes da reunião, antes de descartar esta tecnologia vital com o seu
"imprevisto" parecer pronunciado de "improviso". Pois eu lhe asseguro
uma coisa, sr. Cassidy. Você pode pensar que é um grande merda por causa
da sua ficha na Wyatt, mas, no seu lugar, eu não ficaria à vontade demais
aqui na Trion. Se não pegar o ônibus vai ser atropelado. E pode escrever:
estarei ao volante!
Fiquei parado por alguns segundos enquanto ela me encarava com
aqueles olhos penetrantes de predadora. Olhei para o chão e depois
levantei a cabeça de novo.
— Estraguei tudo em grande estilo — falei — e lhe devo um imenso
pedido de desculpas. Obviamente eu avaliei mal a situação e
provavelmente trouxe comigo meus velhos preconceitos do tempo da
Wyatt Telecom, mas isso não é desculpa. Não acontecerá de novo.
— Não haverá oportunidade para que aconteça de novo — retrucou ela,
sem perder a calma. Era mais durona que qualquer patrulheiro rodoviário
de botas que já tinha me multado e mandado que eu parasse no
acostamento.
— Eu entendo — falei. — E se alguém tivesse me dito que a decisão já
tinha sido tomada, eu certamente teria ficado de boca calada. Acho que agi
pressupondo que vocês aqui na Trion já soubessem da Sony. Foi mal.
— Sony? Como assim, "já soubessem da Sony"?
O pessoal que trabalhava com informações da concorrência tinha
passado à Wyatt esta fofoca, que ele me confiara para que eu usasse em
um momento estratégico.
Concluí que salvar meu traseiro deveria ser considerado um desses
momentos.
— Você sabe, Nora, que eles estão jogando no lixo todos os planos
para incorporar o GoldDust nos novos handhelds fabricados pela Sony.
— Por quê? — ela perguntou, desconfiada.
— A última versão do Microsoft Office não vai rodar nele. A Sony
acha que se incorporarem o GoldDust vão perder milhões de dólares em
vendas para empresas, e por isso vão usar o BlackHawk, o protocolo
wireless local que serve para o Office.
— Vão mesmo?
— Sem dúvida.
— E você tem certeza disso? Suas fontes são completamente
confiáveis?
— Completamente, cem por cento confiáveis. Eu apostaria minha vida
nisso.
— Apostaria também sua carreira? — Seus olhos pareciam querer me
furar.
— Acho que foi o que acabei de fazer.
— Muito interessante — disse ela. — Extremamente interessante,
Adam. Muito obrigada.
21
Fiquei depois da hora naquela noite.
Lá pelas sete e meia, oito, ficou tudo vazio. Até porque os workaholics
duros de matar trabalhavam em casa, à noite, conectados à rede da Trion,
e, assim, não havia necessidade de ficar até tarde no escritório. Às nove
horas não havia ninguém à vista. As luzes fluorescentes do teto
continuavam acesas, sua luminosidade oscilando de maneira quase
imperceptível. As janelas que iam do chão ao teto pareciam pretas de
alguns ângulos; de outros, se podia ver a cidade espalhada lá embaixo, as
luzes piscando, os faróis dos carros circulando silenciosamente.
Se Trion queria saber quem tinha sido contratado para fazer algum tipo
de "projeto especial" que houvesse começado nos últimos dois anos, achei
que tinha que tentar descobrir quem a Trion havia contratado nos últimos
dois anos, mais ou menos. Seria um começo tão bom quanto qualquer
outro.
Havia todos os tipos de maneira para estudar a base de dados dos
empregados, mas o problema era que eu não sabia na verdade quem ou o
que eu estava procurando.
Após algum tempo, cheguei a uma conclusão — o número do
empregado. Todo empregado da Trion tem um número, uma espécie de
número de matrícula, quanto mais baixo, mais tempo faz que o empregado
entrou na firma. Assim, depois de dar uma olhada em diferentes biografias
escolhidas de forma aleatória, comecei a estudar o número das pessoas que
começaram a trabalhar dois anos antes. Felizmente (para os meus
propósitos, pelo menos), a Trion passava por um período de pouca
atividade, portanto não havia muita gente. Consegui uma lista de algumas
centenas de novas contratações — novas aí significando dentro dos
últimos dois anos — e transferi todos os nomes e biografias para um CD.
Era pelo menos um começo.
A Trion tinha o seu próprio serviço de mensagens instantâneas
chamado InstaMail. Funcionava exatamente como o MSN Messenger e o
ICQ — você pode organizar uma "lista de amigos" que lhe diz quando os
seus colegas estão online e quando não estão. Reparei que Nora Sommers
estava logada. Não estava presente, mas estava online, o que significava
que trabalhava em casa. O que era bom, porque significava que eu podia
agora invadir sua sala sem o risco de ela aparecer sem ser anunciada.
Só de pensar em fazer uma coisa dessas meu estômago se contraiu
como um punho, mas eu sabia que não tinha escolha. Arnold Meacham
queria resultados tangíveis.
Nora Sommers, eu sabia, trabalhava em diversos comitês de marketing
de produto da Trion. Talvez tivesse informações sobre novos produtos ou
nova tecnologia que a Trion estivesse secretamente desenvolvendo. No
mínimo valia a pena dar uma olhada.
O lugar mais provável em que ela guardaria uma informação dessas
seria no seu computador, dentro da sua sala.
A placa na porta dizia N. SOMMERS. Não sei como, reuni a coragem
necessária para testar a maçaneta da porta. Estava trancada. O que não
chegou a me surpreender, já que ela guardava ali relatórios de RH bastante
delicados. Dava para ver, através do vidro, sua sala às escuras, um
aposento de três metros por três. Não havia muita coisa nela, e era, claro,
fanaticamente arrumada.
Eu sabia que devia haver alguma chave na mesa da sua assistente.
Estritamente falando, sua assistente administrativa — uma mulher durona,
grande, de sorriso amplo e com cerca de trinta anos de idade, chamada
Lisa McAuliffe — não era somente dela. Para todos os fins, Lisa
trabalhava para todo o pessoal da unidade de Nora, inclusive para mim. Só
os VPs tinham suas próprias assistentes, era a política da Trion. Mas isso
não passava de uma formalidade. Eu já tinha me dado conta de que Lisa
McAuliffe trabalhava para Nora, e se ressentia com quem se metesse com
ela.
Lisa cortava o cabelo realmente curto, quase como de um recruta, e
usava macacões ou calças de pintor. Ninguém imaginaria que Nora, que
andava sempre na moda, e vestida de maneira feminina, teria uma
assistente como Lisa. Lisa, porém era ferozmente leal a Nora, para quem
reservava seus poucos sorrisos, ao mesmo tempo em que apavorava todos
os demais.
Lisa gostava de gatos. Seu cubículo era entulhado de dezenas de coisas
de gatos: bonecos do Garfield ou do Catbert, esse tipo de coisa. Olhei em
torno, não vi ninguém, comecei a abrir as gavetas da sua mesa. Após uns
minutos encontrei a chave escondida na terra de uma planta compatível
com iluminação fluorescente, protegida por um saquinho de plástico.
Respirei fundo, peguei o aro com cerca de vinte chaves, e comecei a
experimentá-las, uma a uma. A sexta chave abriu a porta de Nora.
Acendi a luz, sentei-me à mesa de Nora e liguei o computador.
Se alguém aparecesse inesperadamente, eu estava preparado.
Arnold Meacham me abastecera com montes de estratégias — assuma
a ofensiva, faça você as perguntas — mas quais eram as chances de uma
pessoa que trabalhasse na faxina, falando apenas português ou espanhol e
nenhum inglês, viesse a perceber que eu estava numa sala que não era a
minha? Por isso concentrei-me na minha tarefa.
A tarefa que eu tinha diante de mim, lamentavelmente, não era nada
fácil. NOME DO USUÁRIO/SENHA: a janela dupla surgiu na tela. Merda —
protegida por senha!
Digitei NSOMMERS, o que seria uma solução padrão. E repeti a mesma
coisa no espaço destinado à senha. Setenta por cento das pessoas, tinham
me ensinado, usam como senha o nome do usuário.
Não Nora.
Eu tinha a impressão de que Nora não era do tipo que escreve suas
senhas num papelzinho gomado Post-it e deixa em uma gaveta ou algo
assim, mas não custava verificar.
Chequei os lugares usuais: debaixo da almofada do mouse, debaixo do
teclado, na parte de trás do computador, nas gavetas da mesa, mas nada.
Portanto, eu tinha que improvisar.
Tentei apenas SOMMERS; depois passei para sua data do nascimento,
experimentei o primeiro e os últimos sete dígitos do seu número da
Previdência, seu número de matrícula na firma, nada. Toda uma série de
combinações resultou sempre na mesma resposta: DENIED. Acesso negado.
Após a décima tentativa, parei. Cada uma das minhas experiências ficava
registrada, eu tinha que presumir isso. Dez tentativas já era demais.
Ninguém se atrapalha mais de duas ou três vezes.
Aquilo não era nada bom.
Mas havia outros modos de ultrapassar a barreira da senha. Eu
recebera horas de treinamento nisso e tinham me fornecido um
equipamento que podia ser usado por qualquer idiota. Não podia me
considerar um hacker, mas era bem razoável no manejo de computadores
— o suficiente para ter me metido num monte de encrencas lá no Wyatt,
certo? E o troço que tinham me dado era ridiculamente simples de instalar.
Basicamente era uma coisa chamada de "registrador do teclado".
Registrava secretamente cada toque dado pelo usuário de um computador.
Esse "registrador" pode vir na forma de software, um programa de
computador, ou mesmo como equipamento físico. Mas é preciso que se
tenha cuidado quanto a instalar a versão software, porque nunca se sabe
quão de perto os sistemas de rede da corporação estão sendo monitorados.
É possível que haja uma defesa capaz de detectá-lo.
Por isso Arnold Meacham insistiu para que eu usasse a versão física.
Ele tinha me dado uma variedade de brinquedinhos. Um deles era um
cabo minúsculo ligado ao teclado do computador. Ninguém nota. Ele tem
um chip embutido que registra e armazena até dois milhões de toques.
Você simplesmente volta mais tarde e o retira do computador do alvo,
ficando com um registro de tudo o que foi digitado pelo usuário daquele
computador.
Em um tempo total de cerca de dez segundos, desliguei o teclado de
Nora, liguei-o ao pequeno Keyghost e depois pluguei o Keyghost no
computador. Ela nunca veria aquilo, e em mais dois dias eu voltaria para
tirar.
Mas eu não ia sair da sua sala de mãos abanando. Dei uma olhada no
que havia em cima de sua mesa. Não era muita coisa. Encontrei o rascunho
de um e-mail para a equipe do Maestro que ela ainda não havia mandado.
"Minha mais recente pesquisa de mercado", escrevera, "indica que,
embora o GoldDust seja indubitavelmente superior, a Microsoft apoiará a
tecnologia sem fio BlackHawk. Mesmo que isso possa representar um
contratempo para os nossos excelentes engenheiros, tenho certeza de que
todos concordarão que não será aconselhável remar contra a maré da
Microsoft..."
Trabalhou depressa, Nora, pensei. Esperava que Wyatt estivesse certo.
Havia também os armários. Mesmo em uma firma high-tech como a
Trion, arquivos importantes quase sempre existem também em papel, seja
como originais, seja como cópias de segurança. Esta é a grande verdade do
chamado escritório sem papel: quanto mais usamos os computadores, mais
resmas de papel parecemos acumular. Abri o primeiro armário que acabou
por se revelar não um armário de arquivos e sim uma estante de livros.
Por que alguns livros eram guardados ali, fora das vistas? Então,
examinei detidamente os títulos e deixei escapar uma exclamação em voz
alta.
Havia fileiras e mais fileiras de livros com títulos como: Mulheres que
correm com lobos, Jogo duro para mulheres, Jogue como homem e ganhe
como mulher. E mais: Por que as garotas boazinhas empacam, mas as
corajosas progridem e Os onze mandamentos das mulheres loucamente
bem-sucedidas.
Nora, Nora, você vai progredir, garota.
Quatro dos armários que serviam para arquivar papéis estavam
destrancados, e decidi atacá-los em primeiro lugar. Folheei a papelada
chatíssima que continham: análises operacionais, especificações de
produtos, relatórios de desenvolvimento de produtos, finanças... Pelo que
vi, ela documentava tudo, provavelmente imprimia uma cópia de cada e-
mail que enviava ou recebia. O que prestava devia se encontrar trancado.
Por que outro motivo alguma coisa ficaria trancada?
Rapidamente localizei a pequena chave do armário no chaveiro de
Lisa. Nas gavetas trancadas, encontrei uma porção de documentos do RH
sobre os subordinados de Nora, que poderia ser uma leitura interessante
caso eu tivesse tempo. Suas finanças pessoais indicavam que se
encontrava na Trion havia muito tempo, que todas as suas opções lhe
tinham sido praticamente concedidas e ela negociava ativamente, portanto
seu valor anual se media por um número de sete dígitos. Encontrei minha
pasta, que era fina e não continha nada assustador. Nada de interesse.
Depois examinei com mais cuidado e encontrei uns poucos pedaços de
papel, e-mails impressos que Nora recebera de alguém situado no escalão
mais alto da empresa.
Pelo que pude ver, a mulher chamada Alana Jennings, que
anteriormente ocupava minha função, tinha sido abruptamente transferida
para outro setor da companhia. E Nora ficara furiosa — tão furiosa, na
verdade, que importunara com suas reclamações toda a cadeia de
comando, indo parar em nível de vice-presidência, o que era um gesto bem
ousado:

ASSUNTO: Re: Transferência de Alana Jennings


DATA: Terça-feira, 8 de abril, 8:42:19 AM
DE: GAured
PARA: NSommers
Nora,
Recebi diversos e-mails seus protestando contra a
transferência de ALANA JENNINGS para outra divisão da
companhia. Compreendo seu aborrecimento, já que Alana é sua
empregada de mais elevada graduação, assim como um valioso
integrante de sua equipe. Lamento, contudo, que suas objeções
tenham sido rejeitadas por ordem superior. O conjunto de
qualificações de Alana é necessário com urgência no Projeto
AURORA.
Permita assegurar que você não ficará com o efetivo
reduzido. Foi lhe concedida uma requisição de reposição a fim
de que possa preencher a posição de Alana com qualquer
empregado qualificado e interessado da companhia. Por favor,
diga-me se posso fazer alguma coisa a mais para ajudar.
Tudo de bom,
Greg Alered
VP Sênior, Unidade de Recursos Avançados Trion Systems
Ajudando Você A Mudar o Futuro
E aí, dois dias depois, outro e-mail:
ASSUNTO: Re: Re: Transferência de Alana Jennings
DATA: Quinta-feira, 10 de abril, 2:13:07 PM
DE: GAured
PARA: NSommers
Nora,
No que diz respeito ao AURORA, minhas desculpas sinceras,
mas não tenho a liberdade de revelar a natureza exata deste
projeto exceto para dizer que é essencial ao futuro da Trion.
Como o AURORA é um projeto de P&D da maior sensibilidade,
venho, respeitosamente, pedir a você para não insistir mais com
este assunto.
Dito isto, compreendo sua dificuldade em preencher
internamente a vaga de Alana com alguém adequadamente
qualificado. Assim sendo, é com prazer que lhe digo que está
autorizada a desconsiderar a regra de não contratar gente de
fora.
Essa vaga pode ser considerada como sendo uma solução
perfeita para um problema difícil, o que a capacita a efetuar
uma contratação fora da Trion. Confio e espero que isto alivie
suas preocupações.
Não hesite em telefonar ou escrever com quaisquer
perguntas que tenha.
Tudo de bom,
Greg Alered
VP Sênior, Unidade de Recursos Avançados Trion Systems
Ajudando Você A Mudar o Futuro

Muito bem. De repente as coisas começavam a fazer um pouco mais de


sentido. Eu tinha sido contratado para substituir a tal de Alana, que fora
transferida para algo chamado Projeto AURORA.
Projeto este que era, claramente, qualquer coisa ultrassecreta — um
projeto de ponta. Pronto, eu tinha descoberto.
Não parecia ser uma boa ideia copiar os e-mails e levar para a máquina
copiadora, e por isso peguei um bloco de papel amarelo tamanho ofício em
uma pilha alta no armário de suprimentos de Nora, e comecei a tomar
notas.
Não sei quanto tempo fiquei sentado ali no piso acarpetado da sala
dela, escrevendo por uns bons quatro ou cinco minutos, mas de repente
tornei-me consciente de alguma coisa em minha visão periférica. Levantei
os olhos e vi um segurança de pé na porta aberta, me observando.
Apesar de todo o tempo que eu gastara mentalmente treinando o que
iria dizer se fosse apanhado, me deu um branco.
— Estou vendo o que você tem aí — disse o guarda, que não me
olhava; tinha os olhos fixos na direção da escrivaninha de Nora. No
computador — o Keyghost? Não, pelo amor de Deus, não.
Apavorei-me, o coração disparado. Jesus Cristo, pensei. Estou ferrado.
22
Ele piscou, mas continuou concentrado no mesmo ponto. Teria me
visto instalar a engenhoca? Depois me vi subitamente tomado por outro
pensamento igualmente aterrorizante: ele teria notado o nome de Nora na
porta? Não ia perguntar por que um homem estava na sala de uma mulher,
folheando os arquivos dela?
Dei uma olhada na placa presa na porta que estava aberta, bem atrás do
guarda. Dizia N. SOMMERS, e N. SOMMERS podia ser qualquer pessoa, homem
ou mulher. Só que, pelo jeito, ele devia estar patrulhando aqueles
corredores desde sempre, e podia muito bem conhecer Nora.
Ele continuava parado na porta, bloqueando a saída. O que diabo eu
deveria fazer? Podia tentar fugir, mas primeiro teria que passar pelo
homem, atracar-me com ele para derrubá-lo e abrir espaço. Era um
homem grande, mas velho, provavelmente lerdo. Podia dar certo. Mas em
que eu estava pensando, agressão e espancamento?
Contra um velhinho? Cristo.
Pensei depressa. Eu deveria dizer que era novo na casa? Examinei
várias explicações na minha cabeça. Uma: eu era o novo assistente de
Nora Sommers. Era subordinado direto dela — bem, isto era verdade, eu
era mesmo — trabalhando até tarde por ordem dela. O que é que aquele
cara podia saber? Puxa vida, ele era um maldito guarda de segurança.
Ele deu alguns passos dentro da sala e sacudiu a cabeça.
— Cara, eu pensava que já tinha visto tudo.
— Olha, temos um projeto imenso para fechar amanhã — comecei a
dizer, indignado.
— Você tem um Bullitt ali. Aquilo é um Bullitt genuíno.
Só então eu vi o que ele estivera admirando o tempo todo. A foto em
cores em uma moldura prateada pendurada na parede. Era a foto de um
carro clássico lindamente restaurado. O segurança continuou caminhando
em transe, como se estivesse se aproximando da Arca da Aliança.
— Puxa vida, cara, é um genuíno Mustang 68 GT três-noventa. Ele
ofegava, como se tivesse visto o semblante de Deus. A adrenalina entrou
na minha corrente sanguínea e o alívio transpirou pelos meus poros. Jesus!
— É isso aí — falei, orgulhosamente.
— Cara, olha só aquele Mustang. É um GT de fábrica?
O que diabos eu sabia? Não era capaz de distinguir um Mustang de um
Dodge Dart. No que me dizia respeito, podia ser a foto de um Gremlin da
AMC.
— Claro — respondi.
— Tem uma porção de falsificações por aí, você sabe. Você checou
embaixo do banco de trás, viu se tem todas aquelas placas de metal extras,
aqueles reforços do exaustor duplo?
— Oh, claro — respondi, de modo superficial. Levantei-me, estendi a
mão para ele.
— Nick Sommers — apresentei-me.
Seu aperto de mão era seco e a mão dele engolia a minha.
— Luther Stafford — disse ele. — Ainda não tinha visto você por aqui.
— É, eu nunca fico de noite. Este maldito projeto — é sempre a
mesma coisa: "Precisamos de tudo pronto às nove da manhã." Depois a
gente corre e corre mas termina esperando.
Tentei ser bem natural.
— É bom ver que não sou o único trabalhando a esta hora.
Mas ele queria continuar falando sobre carros.
— Cara, eu acho que nunca vi um fastback desses ao vivo em Highland
Green. Quer dizer, sem ser nos filmes. Esse aí é igualzinho ao que Steve
McQueen usou para empurrar o Dodge Charger preto do bandido para fora
da estrada e atirá-lo em cima do posto de gasolina. Calotas voando por
toda parte.
Ele deu uma risadinha, em que se podia reconhecer os sinais do cigarro
e do uísque.
— Bullitt. Meu filme favorito. Devo ter visto milhares de vezes.
— Também é o meu favorito — falei.
Ele se aproximou mais. De repente percebi que havia uma imensa
estatueta de ouro na prateleira ao lado da tal foto com moldura prateada.
Na base da estatueta, gravado em imensas letras pretas, MULHER DO ANO,
1999, HOMENAGEM A NORA SOMMERS. Meti-me rapidamente atrás da mesa de
Nora, bloqueando a visão do segurança, como se também eu estivesse
inspecionando a foto perto demais.
— Spoiler traseiro e tudo — continuou ele. — Escapamento duplo,
certo?
— Certíssimo.
— Bordas arredondadas e tudo?
— Com certeza.
Ele sacudiu a cabeça de novo.
— Cara. Foi você mesmo quem fez a restauração?
— Quem sou eu... Quisera ter tempo.
Ele riu de novo, um riso baixo, retumbante.
— Entendo o que você quer dizer.
— Comprei de um cara que o estava guardando no celeiro.
— Trezentos e vinte cavalos de força?
— Exatamente — afirmei, como se eu soubesse.
— Olha só o pisca embutido dessa criança. Uma vez eu tive um 68
capota rígida mas precisei me desfazer dele. A patroa exigiu, depois que
tivemos o primeiro filho.
Sou louco por um desses desde aquela época. Mas nem vou querer
olhar o novo Mustang GT Bullitt, não senhor.
Sacudi a cabeça.
— Não há como — eu não tinha a menor ideia do que ele estava
falando. Será que todo mundo naquela companhia era obcecado por
carros?
— Corrija-me se eu estiver enganado, mas parece que você tem ali
pneus GR-setenta em rodas quinze-por-sete da American Torque Thrust,
certo?
Jesus, será que não podíamos mudar de assunto?
— A verdade, Luther, é que não entendo porra nenhuma de Mustangs.
Nem merecia ter um. Minha mulher acaba de me dar um pelo meu
aniversário. Claro, sou eu quem vai pagar o empréstimo pelos próximos
setenta e cinco anos.
Ele deu mais uma risada.
— Estou sabendo. Já passei por isso.
Notei que ele estava olhando para cima da mesa e em seguida vi o que
era.
Tratava-se de um envelope grande de papel pardo com o nome de
Nora. Grandes letras maiúsculas vermelhas: NORA SOMMERS. Procurei por
perto, em cima da mesa, algo que desse para puxar e cobri-lo, para o caso
dele ainda não ter lido o nome, mas Nora mantinha sua mesa imaculada.
Tentando aparentar naturalidade, arranquei uma página do bloco que eu
estava usando, rasguei sem fazer barulho, deixei cair em cima do tampo da
mesa onde a empurrei para cima do envelope com a mão esquerda.
Legal, Adam. O papel amarelo tinha apenas algumas anotações com a
minha letra, mas nada daquilo faria sentido para qualquer pessoa.
— Quem é Nora Sommers? — indagou ele.
— É minha mulher.
— Nick e Nora, hein? — ele deu uma gargalhada.
— É, todo mundo sempre ri — confidenciei, com um sorriso largo. —
Esta foi a razão pela qual me casei com ela. Bem, me deixa voltar ao
trabalho, senão vou acabar passando aqui a noite inteira. Foi bom conhecer
você, Luther.
— Igualmente, Nick.
Quando o segurança foi embora eu estava tão nervoso que não fui
capaz de muito mais coisa que terminar de copiar os e-mails, desligar a
luz e trancar a sala de Nora. Quando me virei para recolocar o chaveiro no
cubículo de Lisa McAuliffe, notei alguém caminhando não muito longe.
Luther de novo, imaginei. O que aquele cara queria, bater mais papo sobre
Mustangs?
Mas não era ele e sim um sujeito barrigudo com óculos de chifre e
rabo-de-cavalo.
A última pessoa que eu esperava encontrar no escritório às dez da
noite, mas os engenheiros trabalham em horas estranhas. Noah Mordden.
Teria ele me visto trancando a sala de Nora, ou mesmo, entrando nela?
Ou sua vista não era boa? Talvez não estivesse prestando atenção. Talvez
estivesse em seu próprio mundo — mas o que fazia ali?
Ele não falou nada, não me reconheceu. Nem sei se teria chegado a me
ver. Mas eu era a única outra pessoa por perto, e ele não era cego.
Noah virou no primeiro corredor e deixou um folheto no cubículo de
alguém. Passei pelo cubículo de Lisa e depositei o chaveiro no vaso,
dentro da terra tal como o encontrara, tudo em um rápido movimento, e
continuei me movendo.
Eu estava a meio caminho dos elevadores quando o ouvi me chamar.
— Cassidy.
Virei-me.
— Eu achava que só os engenheiros eram criaturas noturnas —
comentou.
— Só estou tentando me atualizar — expliquei, pouco convincente.
— Entendo — o modo como Noah falou me fez gelar. Em seguida ele
perguntou: — Em quê?
— Como?
— Em que foi que você se meteu?
— Acho que não estou entendendo — falei, o coração aos saltos.
— Tente se lembrar disso.
— Como?
Mas Mordden já estava a caminho do elevador, e não respondeu.
Parte Três

INSTALAÇÕES HIDRÁULICAS

INSTALAÇÕES HIDRÁULICAS: jargão para vários recursos de apoio


como casas seguras, locais para troca clandestina de informações, et
al.
de uma agência de inteligência clandestina.

— The International Dictionary of Espionage


23
Quando cheguei em casa, estava um caco, pior ainda que antes.
Eu não era talhado para aquela linha de trabalho. Senti vontade de sair
e tomar outro porre, mas precisava deitar, dormir um pouco.
Meu apartamento me pareceu menor e mais sórdido que nunca. Eu
estava ganhando um belo de um salário, portanto já devia ter sido capaz de
pagar um apartamento em um dos novos edifícios altos no cais. Não havia
motivo para que eu permanecesse naquele buraco imundo, exceto por ser
meu, uma espécie de lembrete do vagabundo pobre e fracassado que eu na
verdade era, e não o poseur bem-vestido e eficiente em que me
transformara. Além do mais, não tinha tempo para procurar uma nova
casa.
Acionei o interruptor ao lado da porta e a sala continuou escura.
Aquilo significava que a lâmpada na luminária grande e feia ao lado do
sofá, a principal fonte de luz, tinha queimado. Eu mantinha sempre a
luminária ligada, para que pudesse acender ou apagar a luz ao entrar ou
sair de casa. Agora tive que sair tropeçando pelo apartamento às escuras
até o armário onde guardava lâmpadas sobressalentes e outros troços do
gênero. Por sorte, eu conhecia cada centímetro do apartamento,
literalmente de olhos fechados. Tateei a caixa de papelão corrugado
procurando uma lâmpada, na torcida para que fosse uma de cem watts e
não de vinte e cinco ou algo assim, depois naveguei de volta através da
sala até a mesa do sofá, desatarraxei a peça que sustenta o abajur, tirei a
lâmpada velha e coloquei a nova. Ainda assim, não acendeu. Merda — um
fim adequado para um dia podre. Encontrei o pequeno interruptor na base
da luminária e girei, iluminando toda a sala.
Já estava a meio caminho do banheiro quando me ocorreu: como
aquele interruptor fora desligado? Eu nunca o acionava — jamais. Estaria
ficando maluco?
Alguém teria estado no apartamento?
Foi uma sensação esquisita, uma centelha de paranoia. Alguém
estivera ali. De que outro jeito o interruptor na base da luminária poderia
ter sido desligado?
Eu não tinha companheiros de quarto ou namoradas, ninguém mais
tinha a chave. A desmazelada companhia que administrava o prédio para o
desmazelado e ausente explorador de cortiços nunca acessava as unidades.
Nem se você implorasse para que mandassem alguém ver os aquecedores.
Ninguém jamais estivera ali a não ser eu mesmo.
Examinando o telefone diretamente sob a luminária, um velho
Panasonic preto com secretária eletrônica, a qual eu não usava mais, agora
que tinha a caixa postal da companhia telefônica, vi que havia mais
alguma coisa diferente. O fio preto do telefone estava passando por cima
do teclado, em vez de enrodilhado ao lado do aparelho, como sempre.
Claro que essas coisas não passam de detalhes simples e tolos, mas a
verdade é que a pessoa observa tudo quando mora sozinha. Tentei lembrar
quando dera o último telefonema, onde estava, fazendo o quê. Estaria tão
distraído que desligara o telefone deixando-o daquele jeito? Mas tinha
certeza de que não estava assim de manhã, quando saí.
Definitivamente alguém estivera ali na minha ausência.
Olhei de novo o telefone e percebi que havia mais alguma coisa errada,
e que nada tinha de sutil. A secretária eletrônica que eu nunca usara era
dessas que têm um sistema de duas fitas: um microcassete para a
mensagem a ser ouvida por quem me telefonasse e outro onde ficavam
gravados os recados.
Justamente este tinha desaparecido. Alguém o removera. Alguém que,
presumidamente, queria uma cópia das minhas mensagens.
Ou — de repente esta ideia me veio à cabeça — que queria se
assegurar de que eu não usara a secretária eletrônica para gravar algum
telefonema recebido. Tinha que ser isso. Levantei-me e comecei a
procurar o único outro gravador de fita que eu tinha. Lembrava-me
vagamente de que o vira na última gaveta da minha cômoda algumas
semanas atrás, quando procurava um isqueiro. Abri a tal gaveta, remexi
tudo, mas ele não estava mais lá. Nem em nenhuma das outras gavetas da
cômoda. Quanto mais eu olhava, mais certeza tinha de que ele estava na
última gaveta. Quando a examinei de novo, encontrei o adaptador de
corrente contínua que o acompanhava, confirmando as minhas suspeitas. O
gravador também se fora.
Agora eu tinha certeza: quem quer que tivesse revistado meu
apartamento queria as gravações que eu pudesse ter feito. A questão era:
quem tinha revistado meu apartamento? Se fosse o pessoal do Wyatt e do
Meacham, aquilo era totalmente ultrajante.
Mas, e se não fosse essa gente? E se fosse até mesmo a própria Trion?
Era tão assustador que eu nem queria pensar. Lembrei-me da observação
feita por Mordden: Em que foi que você se meteu?
24
A casa de Nick Wyatt era no subúrbio mais elegante, um lugar de que
todo mundo ouvira falar, tão rico que havia uma série de piadas a respeito.
Era facilmente o lugar maior, mais requintado e mais escandalosamente
endinheirado de uma cidade conhecida por suas mansões grandes,
luxuosas e ultrajantemente ricas. Sem dúvida que era importante para
Wyatt morar em uma casa de que todo mundo falava, que saía na capa da
Architectural Digest e sobre a qual os jornalistas locais viviam tentando
encontrar desculpas para escrever a respeito. Eles adoravam fazer tomadas
sensacionais — deixar todo mundo boquiaberto — daquele castelo de San
Simeon construído com o dinheiro da informática. Gostavam daquele
ambiente japonês — a falsa serenidade zen e a austeridade e simplicidade
a contrastarem tão grotescamente com a frota de Bentleys conversíveis de
Wyatt e sua estridência totalmente não-zen.
No departamento de relações públicas da Wyatt Telecommunications
havia um sujeito cuja única responsabilidade era cuidar da publicidade
pessoal de Nick Wyatt, plantando notinhas na People e no USA Today ou
em qualquer outro jornal ou revista. De tempos em tempos, ele fazia com
que fossem publicadas matérias sobre a mansão de Wyatt, o que explicava
como eu sabia que ela havia custado cinquenta milhões de dólares, que era
maior e mais requintada que a casa do lago de Bill Gates perto de Seattle e
também que era uma réplica de um palácio japonês do século XIV que
Wyatt construíra em Osaka para depois remeter aos pedaços para os EUA.
Era cercada por quarenta acres de jardins japoneses cheios de espécies
raras de flor, jardins de pedra, uma cascata e laguinho artificial e pontes de
madeira antigas importadas do Japão. Até mesmo as pedras cortadas
irregularmente que pavimentavam a entrada para carros tinham sido
trazidas do Japão.
Claro que não vi nada disso enquanto subia de carro o interminável
acesso à mansão. Vi uma guarita de pedra e um portão de ferro alto que se
abriu automaticamente, algo que me pareceu como quilômetros e mais
quilômetros de bambus, um estacionamento coberto com seis Bentleys
conversíveis de cores diferentes, o que me fez pensar em um tubo de
Lifesavers (nada de clássicos americanos para esse cara) e uma casa de
madeira imensa de telhado rebaixado, atrás de um alto muro de pedra.
Eu recebera de Meacham a ordem de me apresentar para esta reunião
por meio de um e-mail seguro — uma mensagem enviada por "Arthur"
para o meu Hushmail por intermédio do anonimizador finlandês, o tal
endereço impossível de ser rastreado. O texto parecia a confirmação de um
pedido que eu fizera a algum comerciante online, mas, na verdade, me
dizia quando e aonde ir.
Meacham me dera instruções precisas. Eu tinha que ir até um
estacionamento da rede Denny's e esperar um Lincoln azul-escuro que me
levaria até a casa de Wyatt.
Acho que a ideia era garantir que eu não seria seguido. Eles eram um
pouco paranoicos, pensei, mas quem era eu para discutir? Afinal de contas,
era eu quem estava sentado na chapa quente.
Assim que saltei do carro, o Lincoln se afastou. Um filipino atendeu a
porta e me disse para tirar os sapatos. Depois me levou para uma sala de
espera com painéis shoji, tatames, uma mesa baixa laqueada em preto e
um sofá branco, também baixo, parecendo um colchão japonês colocado
diretamente no chão, meio quadrado.
Folheei as revistas arrumadas artisticamente em cima da mesa preta —
The Robb Report, Architectural Digest (inclusive, naturalmente, o número
que tinha a casa de Wyatt na capa), um catálogo da Sotheby's.
Finalmente, o caseiro — ou que outro nome tivesse — filipino
reapareceu e me fez um aceno com a cabeça. Segui-o por um corredor
comprido e andei até outro aposento quase vazio onde pude ver Wyatt
sentado à cabeceira de uma mesa preta comprida e baixa.
Quando nos aproximávamos da entrada, ouvi de repente um alarme
muito agudo disparar. Olhei em torno, perplexo, mas, antes que pudesse
descobrir o que estava acontecendo, fui agarrado pelo filipino e por outro
cara que surgiu do nada e os dois me atiraram no chão.
Gritei "que porra é essa" e lutei um pouco, mas aqueles sujeitos eram
fortes como lutadores de sumô. O segundo deles, então, me segurou
enquanto o filipino me revistava. O que estariam procurando, armas? O
filipino encontrou o meu iPod e o arrancou da minha bolsa de trabalho.
Olhou para o aparelho, disse qualquer coisa na língua estranha que falam
lá nas Filipinas, entregou para o seu parceiro, que o examinou e virou de
um lado para o outro e disse qualquer coisa áspera e indecifrável.
Eu me sentei.
— É assim que vocês recepcionam os convidados? — reclamei.
O caseiro pegou o iPod e, entrando na sala de jantar, entregou a Wyatt,
que vira tudo. Wyatt devolveu o aparelho ao filipino sem sequer olhar para
ele.
— Os seus caras nunca viram um iPod? Ou é porque não se pode ouvir
música aqui dentro?
— Eles só estão sendo meticulosos — disse Wyatt. Ele estava usando
uma camisa preta de mangas compridas, justa, que parecia feita de linho e
que provavelmente custara mais do que ganho por mês, mesmo agora na
Trion. Parecia mais bronzeado que o normal. Devia se bronzear
artificialmente, imaginei.
— Com medo de que eu pudesse estar armado? — perguntei.
— Não tenho medo de nada, Cassidy. Gosto que todo mundo aja de
acordo com as regras. Se você for esperto e não tentar alguma trapaça,
tudo irá bem. Nem sequer imagine algo como sair daqui com uma "apólice
de seguro", porque estamos muito na sua frente.
Engraçado, a ideia nunca me ocorrera até que ele a mencionou.
— Não entendi.
— O que estou dizendo é que se você planejar algo como gravar nossas
reuniões ou quaisquer telefonemas meus ou de pessoas associadas a mim,
as coisas não correrão bem para você. Você não precisa de seguro, Adam.
Eu sou o seu seguro.
Uma bela japonesa de quimono apareceu com uma bandeja e entregou-
lhe uma toalha quente enrolada com pinças de prata. Ele esfregou as mãos
e devolveu a toalha.
Ao observá-lo de perto, eu podia dizer que fizera uma plástica no rosto
para tirar as rugas. A pele era muito esticada, dava a seus olhos quase que
a aparência de olhos de esquimó.
— O telefone de sua casa não é seguro — continuou ele. — Nem
tampouco a caixa postal de voz da sua casa, seu computador ou o celular.
Você só tomará a iniciativa de entrar em contato conosco em caso de
emergência, a não ser em resposta a um pedido nosso. Em todas as outras
ocasiões, será contatado por um e-mail seguro e codificado. Agora, posso
ver o que tem aí?
Dei a ele o CD com todas as recentes contratações da Trion, que eu
baixara do site na Web, e algumas folhas de papel preenchidas com
anotações. Enquanto ele lia as minhas anotações, a japonesa voltou com
outra bandeja e começou a arrumar diante de Wyatt uma porção de
minúsculos, perfeitos e esculturais pedaços de sushi e sashimi em caixas
de mogno laqueado, com montinhos de arroz branco e wasabi verde-claro,
assim como fatias cor-de-rosa de gengibre em conserva. Wyatt não prestou
atenção na comida; estava absorto nas anotações que eu lhe trouxera.
Depois de alguns minutos, pegou um telefone preto pequenino que estava
em cima da mesa, e que eu não havia notado antes, e disse qualquer coisa
em voz baixa. Achei ter ouvido a palavra "fax".
Finalmente olhou para mim.
— Bom trabalho — falou. — Muito interessante.
Outra mulher apareceu, uma pessoa de meia-idade, formal, rosto
vincado de rugas, cabelos grisalhos, óculos de leitura pendurados numa
corrente em torno do pescoço.
Ela sorriu, pegou o maço de papéis da mão dele e saiu sem dizer uma
palavra. Será que ele mantinha uma secretária de sobreaviso a noite
inteira?
Wyatt pegou um par de pauzinhos, levou um pedaço de peixe cru à
boca e mastigou pensativamente, sem tirar os olhos de cima de mim.
— Você compreende a superioridade da dieta japonesa? Dei de
ombros.
— Gosto de tempura e coisas assim — declarei.
Ele demonstrou seu desdém com um muxoxo e sacudiu a cabeça.
— Não estou falando de tempura. Por que é que você pensa que os
japoneses lideram as estatísticas de longevidade? Uma dieta pobre em
gorduras, rica em altas proteínas e vegetais, rica também em
antioxidantes. Eles comem quarenta vezes mais soja do que nós. Há
séculos que se recusam a comer criaturas com quatro pernas.
— Ok — eu disse, pensando: e o que você realmente quer dizer é...
Ele pegou outra porção de peixe.
— Você devia levar realmente a sério a melhoria da qualidade de sua
vida. Você está com que, vinte e cinco anos?
— Vinte e seis.
— Tem muitas décadas à frente. Cuide do seu corpo. Fumo, bebida,
Big Macs e toda essa porcaria — isso tem que acabar. Durmo três horas
por noite, não preciso mais que isso. Você está se divertindo, Adam?
— Não.
— Ótimo. Você não está lá para se divertir. Está à vontade na Trion no
seu novo papel?
— Estou aprendendo a me movimentar. Minha chefe é uma pessoa
muito irritante...
— Não estou falando do seu disfarce. Estou falando do seu trabalho
verdadeiro — a penetração em território inimigo.
— À vontade? Não, ainda não.
— As apostas são muito altas. Entendo seu problema. Ainda vê seus
antigos amigos?
— Claro.
— Não espero que se livre deles. Pode levantar suspeitas. Mas é
melhor que tenha absoluta certeza de que é capaz de manter a boca
fechada, para não se meter num problemão do tamanho do mundo.
— Entendido.
— Presumo que não precise lembrá-lo das consequências de um
fracasso.
— Não é preciso.
— Ótimo. Seu trabalho é difícil, mas o fracasso será pior ainda.
— Na verdade, eu estou mais ou menos gostando de estar na Trion —
eu estava sendo sincero, mas também sabia que ele consideraria aquilo
como um golpe.
Ele levantou a cabeça e forçou um sorriso ao mesmo tempo que
mastigava.
— Fico satisfeito em saber disso.
— Minha equipe vai fazer uma palestra para Augustine Goddard
dentro em breve.
— O velho Jock Goddard... Bem, você vai ver logo que ele é um
sujeito pretensioso, que se faz de muito importante mas que só fala
bobagem. Acho que acredita mesmo em todos os perfis biográficos que
escrevem puxando o saco dele, aquela bobagem de "consciência da
indústria high-tech" que sempre se vê na Fortune. Ele realmente crê que
sua merda não fede.
Balancei a cabeça — o que poderia dizer? Não conhecia Goddard, não
tinha como concordar ou discordar. Mas a inveja de Wyatt não poderia ser
mais evidente.
— Quando será a tal palestra?
— Umas duas semanas.
— Talvez eu possa ajudar.
O telefone tocou e ele atendeu prontamente.
— Sim? — ele ficou ouvindo em silêncio por um minuto. — Está certo
— disse, já desligando. — Você descobriu algo. Dentro de uma ou duas
semanas receberá informações completas sobre essa Alana Jennings.
— Claro, como as que recebi sobre Tom Lundgren e Nora Sommers.
— Não, agora será com uma escala muito maior de detalhes. — Por
quê?
— Porque você vai querer ir em frente. Ela é a sua porta de entrada. E
agora que você tem um codinome, quero os nomes de todas as pessoas de
alguma maneira envolvidas com o projeto AURORA. Todo mundo, do
diretor do projeto até o último dos faxineiros.
— Como? — assim que abri a boca, me arrependi.
— Imagine um modo. É o seu trabalho, homem. E eu quero isso para
amanhã.
— Amanhã?
— Isso mesmo.
— Está certo — falei, com um toque de desafio transparecendo em
minha voz. — Mas aí você terá o que quer, certo? E nós poderemos dar
isto por terminado.
— Ah, não — disse ele.
Wyatt sorriu, exibindo os dentões brancos.
— Isto é só o começo, cara. Nós mal raspamos a superfície.
25
A essa altura, eu passara a trabalhar em horários absolutamente
insanos e vivia constantemente exausto. Além do meu período normal de
trabalho na Trion, passava longas horas, até bem tarde da noite, fazendo
pesquisas na Internet ou estudando as informações que Meacham e Wyatt
mandavam e que me faziam parecer muito inteligente. Umas duas vezes,
no longo e engarrafado caminho de casa, quase caí dormindo em cima do
volante. Abri os olhos de repente, assustado, e freei no último minuto,
escapando por muito pouco de entrar na pista oposta, ou de bater no carro
da frente. Depois do almoço, geralmente eu começava a cochilar, e era
preciso tomar maciças infusões de cafeína para não cruzar os braços e cair
desmaiado ali mesmo no meu cubículo. Minha fantasia era ir para casa
cedo e me meter embaixo das cobertas na minha cabana escura e dormir
no meio da tarde. Vivia de três coisas: café, Diet Pepsi e Red Bull. Eram
visíveis minhas olheiras. O pior é que, se os workaholics sentem algum
prazer com o que fazem, eu me sentia apenas morto de cansaço, como um
cavalo chicoteado em algum romance russo.
Viver de brisa, porém, não era meu maior problema. A grande questão
era que eu estava começando a perder a capacidade de distinguir o que era
o meu trabalho de verdade do meu trabalho de disfarce. Ficava tão
ocupado indo de uma reunião para outra, tentando ficar por dentro de tudo
para evitar que Nora sentisse cheiro de sangue na água e fosse atrás de
mim, que mal tinha tempo de me esgueirar pelas salas da Trion a fim de
reunir informações sobre o projeto AURORA.
De vez em quando via Mordden, nas reuniões do Maestro ou no
restaurante dos empregados, e ele parava para bater papo. Mas nunca
mencionava aquela noite quando me vira ou não me vira saindo da sala de
Nora. Talvez não tivesse me visto lá dentro. Ou talvez tivesse e, por
alguma razão, houvesse decidido não falar nada a respeito.
Além do mais, de duas em duas noites eu recebia um e-mail de
"Arthur" perguntando em que ponto da investigação eu me encontrava,
como iam as coisas e por que diabos eu estava demorando tanto.
Ficava depois da hora, até bem tarde, quase toda noite, e praticamente
não parava em casa. Seth deixou um monte de mensagens para mim e,
após uma semana, desistiu. A maior parte dos meus amigos desistiu de
mim também. Eu tentava arranjar uma meia hora aqui ou ali para dar uma
passada pelo apartamento de meu pai e ver como ele andava, mas sempre
que eu aparecia ele estava tão furioso comigo por evitá-lo que mal me
olhava. Uma espécie de armistício fora estabelecido entre papai e
Antwoine, uma espécie de Guerra Fria. Antwoine, pelo menos, não
ameaçava ir embora. Por enquanto.
Uma noite voltei à sala de Nora e removi o pequeno artefato que tinha
instalado no seu computador. Foi rápido e bem-feito. Meu amigo, o
segurança apaixonado por Mustangs, geralmente passava em suas rondas
entre dez e dez e vinte, por isso fiz o serviço antes dele aparecer. Levei
menos de um minuto, e Noah Mordden não deu o ar de sua graça.
O Keyghost tinha armazenado centenas de milhares de toques de Nora
no teclado, inclusive todas as suas senhas. Foi só uma questão de plugar a
engenhoca no meu computador e baixar o texto. Mas não me atrevi a fazer
isso no meu cubículo. Quem sabia que tipos de programas de detecção eles
rodavam na intranet da Trion? Não valia a pena correr o risco.
Resolvi, então, entrar no site da Trion. Digitei AURORA na caixa de
buscas, mas não apareceu nada. Mas tive outra ideia: digitei o nome de
Alana Jennings e puxei a página dela. Não havia foto — a maior parte das
pessoas tinha uma foto nessa página — mas havia algumas informações
básicas, como seu ramal, título funcional (Diretora de Marketing, Unidade
de Pesquisa de Tecnologias Disruptivas) e o seu número de departamento,
que era o mesmo da caixa postal.
Este pequeno número, eu sabia, era uma informação extremamente
útil. Na Trion, da mesma forma que na Wyatt, você recebe o mesmo
número de departamento que todas as outras pessoas que trabalham ali
com você recebem. Tudo o que precisei fazer foi digitar esse número no
banco de dados da corporação, e pronto — lá estava a lista de todos que
trabalhavam diretamente com Alana Jennings. Ou seja, das pessoas que
trabalhavam, todas elas, no projeto AURORA.
Isso não significava que eu tivesse uma lista completa dos empregados
designados para o AURORA, já que podia haver outros, em departamentos
separados, mas pelo menos eu tinha um bom número deles: quarenta e
sete. Imprimi a página da Web de cada pessoa e meti a papelada na minha
bolsa de trabalho. Imaginava que aquilo deveria manter o pessoal da Wyatt
feliz por algum tempo.
Quando cheguei em casa naquela noite, por volta das dez horas,
pretendendo me sentar no computador e fazer o download dos toques
digitados por Nora, uma outra coisa chamou minha atenção. Bem no meio
da minha mesa da "cozinha" — um troço com tampo de fórmica que eu
comprara por quarenta e cinco pratas numa casa de móveis usados —
havia um envelope de papel manilha, grosso e lacrado.
Aquilo não estava ali pela manhã. Mais uma vez, alguém subordinado
a Wyatt invadira meu apartamento, quase como se a intenção fosse deixar
estabelecido que podiam entrar em qualquer lugar. Ok, eu já estava
convencido. Talvez imaginassem que esse era o único meio de me entregar
qualquer coisa sem serem observados. Mas, para mim, parecia quase uma
ameaça.
O envelope continha um volumoso dossiê de Alana Jennings,
exatamente como Nick Wyatt prometera. Abri, vi um maço de fotos da
mulher e, de repente, perdi o interesse nos toques desfechados por Nora
Sommers no teclado do seu computador. Aquela Alana Jennings era, para
não ser muito preciso, lindíssima.
Sentei na cadeira de leitura e me absorvi no exame do dossiê.
Era óbvio que um bocado de tempo, trabalho e dinheiro tinham entrado
na confecção daquilo. Detetives particulares a tinham seguido por toda a
parte, anotado suas idas e vindas, seus hábitos, as pequenas incursões de
compras que fazia. Havia fotos dela entrando no prédio da Trion, em um
restaurante com duas amigas, em uma espécie de clube de tênis, se
exercitando numa dessas academias só para mulheres, saindo do seu
Mazda Miata azul. Tinha cabelo preto e lustroso, olhos azuis e um corpo
esbelto (plenamente demonstrado nas fotos em que estava com roupa de
ginástica de lycra). Às vezes usava óculos de aros grossos e pretos, do tipo
que as mulheres bonitas usam para sinalizar que são inteligentes e sérias e,
ainda assim, são tão bonitas que podem usar óculos feios. Na verdade, a
deixavam mais sexy. E talvez fosse esta a intenção.
Depois de uma hora lendo aquilo tudo, eu sabia mais a respeito dela do
que jamais soube a respeito de qualquer namorada. Não era só bonita, era
rica — uma ameaça dupla. Fora criada em Darien, Connecticut, estudara
na Miss Porter's School, em Farmington e depois fora para Yale, onde se
graduara em inglês, com especialização em literatura americana. Teve
aulas também de ciência da computação e engenharia elétrica. De acordo
com o currículo escolar, suas notas foram basicamente as maiores
possíveis e foi eleita para a Phi Beta Kappa no penúltimo ano. Tudo bem,
ela também era inteligente. O que tornava uma ameaça tripla.
O pessoal de Meacham tinha levantado a situação financeira dela e da
família. Alana Jennings tinha um fundo fiduciário de alguns milhões de
dólares, mas o pai, diretor-presidente de uma pequena companhia de
Stamford, era dono de um portfólio que valia muito mais. Alana tinha duas
irmãs mais moças, uma ainda na faculdade, em Wesleyan, e a outra
trabalhando na Sotheby's, em Manhattan.
Como telefonava para os pais diariamente, podia-se supor que era bem
ligada a eles. (Um ano de contas telefônicas tinha sido incluído na
documentação, mas, para minha sorte, alguém analisara tudo antes para
verificar as chamadas que fazia com mais frequência.) Era solteira,
parecia não estar vendo ninguém com regularidade e tinha apartamento
próprio em uma cidade muito aristocrática não muito longe da sede da
Trion.
Alana Jennings comprava mantimentos todos os domingos em um
supermercado de comida integral e parecia ser vegetariana, porque nunca
comprava frango ou peixe.
Comia como um passarinho, um passarinho de floresta úmida tropical
— muitas frutas e nozes. Não frequentava bares ou happy hours, mas de
vez em quando encomendava qualquer coisa em uma loja de bebidas
alcoólicas próxima a sua casa, de modo que pelo menos tinha um vício.
Em casa, sua vodca parecia ser a Grey Goose e o gim o Tanqueray
Malacca.
Ia a restaurantes uma ou duas vezes por semana, mas nada de Denny's,
Applebee's ou Hooter's; parecia gostar de lugares dispendiosos e com
chefs, tendo nomes como Chakra, Alto, Buzz e Om. Também ia muito a
restaurantes tailandeses.
Ia ao cinema pelo menos uma vez por semana, e geralmente comprava
o ingresso antecipadamente no Fandango; de vez em quando via um filme
tipicamente feminino, mas a maioria eram filmes estrangeiros. Tudo
indicava que se tratava de uma mulher que apreciava mais The Tree of
Wooden Clogs do que Porky's. Muito bem. Comprava muitos livros online,
tanto da Amazon quanto da Barnes and Noble, em sua maioria ficção séria
badalada, romances latino-americanos e um bom número de obras sobre
filmes. Comprara também, recentemente, livros sobre budismo e
sabedoria oriental e porcarias do gênero. Também comprara alguns filmes
em DVD, inclusive a caixa completa do Godfather, assim como alguns
clássicos do film noir dos anos 40, clássicos como Double Indemnity. Na
verdade, ela comprara Double Indemnity duas vezes, uma em vídeo, alguns
anos antes, e, mais recentemente, em DVD. Obviamente comprara um
aparelho de DVD nos últimos dois anos; e obviamente aquela velha fita de
Fred MacMurray e Barbara Stanwyck era uma de suas favoritas.
Aparentemente comprara todos os discos já feitos até hoje de Ani
DiFranco e Alanis Morissette.
Armazenei esses fatos em algum ponto da memória. Estava
começando a formar uma ideia de Alana Jennings. E começava a formular
um plano.
26
Na tarde de sábado, vestindo um uniforme de tênis branco (que eu
comprara naquela manhã — normalmente jogo tênis de calças jeans
cortadas e camiseta) e usando um relógio de mergulho italiano
ridiculamente caro que eu passara a exibir recentemente, cheguei a um
lugar pomposo e exclusivo chamado Tennis and Racquet Club. Alana
Jennings era sócia e, de acordo com o dossiê, jogava ali quase todos os
sábados. Confirmei a hora em que estaria na quadra telefonando na
véspera, dizendo que tínhamos um jogo marcado no dia seguinte e que
esquecera a hora, não conseguia telefonar para ela, quando era mesmo?
Fácil. Tinha um jogo de duplas às quatro e meia.
Meia hora antes do jogo de Alana tive um encontro com o diretor do
quadro social do clube. Isso me deu um pouco de trabalho porque era um
clube privado; você não pode abrir o portão e ir entrando. Fiz Arnold
Meacham pedir a Wyatt para arranjar um cara rico que fosse sócio —
amigo de um amigo de um amigo, uma pessoa que fosse bem distanciada
de Wyatt — e entrasse em contato para dizer que queria me convidar. O tal
sujeito fazia parte do comitê de ingresso e seu nome obviamente tinha
algum peso no clube, porque o diretor, Josh, pareceu-me empolgado ao me
guiar num giro pelas instalações. Chegou, inclusive, a me dar um passe de
convidado para aquele dia. Assim eu poderia dar uma espiada nas quadras
(saibro, indoor e rápida), e talvez, quem sabe, jogar uma partida.
O clube era instalado em uma mansão em que se destacava o telhado
de pequenas placas que lembrava um daqueles "bangalôs" tão comuns em
Newport. Ficava no meio de um gramado verde-esmeralda muitíssimo
bem tratado. Finalmente consegui me livrar de Josh no café, fingindo
acenar para um conhecido. Ele se ofereceu para me arranjar um jogo, mas
eu lhe disse que estava bem, que conhecia gente ali, que estaria ótimo.
Dois minutos mais tarde eu a vi. Não era possível deixar de ver aquela
boneca. Usava uma camisa Fred Perry e tinha (por alguma razão as fotos
da espionagem não mostravam realmente isto) um extraordinário par de
seios. Seus olhos azuis eram deslumbrantes. Entrou no café com outra
mulher mais ou menos da sua idade, e ambas pediram Pellegrinos.
Encontrei uma mesa perto da dela, mas não perto demais, e atrás de onde
estava fora de sua linha de visão.
A ideia era observar, ouvir e, acima de tudo, não ser visto. Se ela
notasse a minha presença, eu teria um problemão na próxima vez em que
tentasse me aproximar. Não é que eu seja um Brad Pitt, mas não sou
exatamente horroroso; na verdade, as mulheres tendem a reparar em mim.
Eu teria que ser cuidadoso.
Não dava para dizer se a mulher com quem Alana Jennings estava era
uma vizinha ou amiga dos tempos de faculdade ou o quê, mas elas
claramente não estavam falando de negócios. Era uma aposta razoável
dizer que não trabalhavam juntas no projeto AURORA. Uma pena — eu não
ia ouvir nada de interessante.
Mas aí o celular dela tocou.
— Alana — disse ela. Tinha uma voz aveludada, típica de aluna de
escola privada, culta sem ser afetada.
— É mesmo? Bem, então parece que você resolveu o problema.
Minhas orelhas ficaram de pé.
— Keith, você acaba de conseguir reduzir o tempo de fabricação pela
metade, é inacreditável.
Ela definitivamente estava falando de negócios. Cheguei um pouco
mais perto a fim de ouvir melhor. Havia muitos risos e retinir de copos e o
top-top das bolas de tênis, o que dificultava muito ouvir o que estava
falando. Alguém se espremeu para passar colado na minha mesa, um cara
grande com um barrigão que chegou a balançar meu copo de Coca-Cola.
Ele ria alto, obliterando a conversa de Alana. Sai daí, panaca.
Ele passou, se balançando como um pato, e eu ouvi outro trecho da
conversa. Agora Alana estava falando baixo e apenas pedaços de frases
voavam na minha direção, de forma aleatória. Ouvi-a dizer: "Bem, essa é a
pergunta de sessenta e quatro bilhões de dólares, não é? Quisera saber."
Depois, um pouco mais alto: "Obrigada por me contar — maravilha." Um
pequeno bip eletrônico, e ela encerrou a conversa.
— Trabalho — disse, em tom de desculpas, para sua amiga. —
Desculpe. Eu gostaria de poder afastar esse tipo de coisa, no período atual
devo estar disponível vinte e quatro horas por dia. Olha aí o Drew!
Um sujeito alto e forte aproximou-se dela — trinta e poucos anos,
bronzeado, o corpo largo típico de um remador — e deu-lhe um beijo no
rosto. Reparei que não beijou a outra mulher.
— Oi, garota — disse ele.
Ótimo, pensei. Quer dizer então que os pistoleiros de Wyatt não tinham
descoberto que afinal ela estava vendo alguém.
— Oi, Drew — disse ela. — Onde está o George?
— Ele não telefonou para você? — perguntou Drew. — Esqueceu-se de
que ia passar o fim de semana com a filha.
— Quer dizer então que não somos quatro? — quis saber a outra
mulher.
— Podemos arranjar alguém — disse Drew. — Não posso acreditar
que ele não tenha telefonado. Que panaca.
Uma lâmpada acesa apareceu em cima da minha cabeça. Descartando-
me de repente do meu tão elaborado plano de observação anônima, tomei
uma decisão ousada em uma fração de segundo.
— Com licença.
Os três me olharam.
— Vocês estão precisando de um jogador para completar as duplas?
Apresentei-me com o meu nome verdadeiro e disse que estava
visitando o clube, mas não mencionei a Trion. Eles pareceram aliviados
por eu estar ali. Acho que presumiram, pela minha raquete Yonex de
titânio profissional, que eu era realmente bom, embora eu tivesse
assegurado que só era regular e que assim mesmo não jogava havia muito
tempo. Basicamente verdade.
A nossa quadra ficava do lado de fora, ao ar livre. Era um dia quente,
ensolarado e um tanto ventoso. As duplas eram Alana e Drew e eu e a
outra mulher, cujo nome era Jody. Jody e Alana eram mais ou menos
equivalentes, mas Alana era de longe mais graciosa. Não chegava a ser
particularmente agressiva, mas tinha um bom backhand com efeito,
sempre devolvia os saques e alcançava a bola, e, da mesma forma, nunca
desperdiçava movimentos. Seu saque era simples e preciso; quase sempre
a bola entrava. Seu jogo era tão natural quanto respirar.
Para azar meu, subestimei o Zé Bonitinho. Drew era um jogador e
tanto. Comecei mal, inseguro, enferrujado e fiz uma dupla falta no meu
primeiro serviço, para o visível aborrecimento de Jody. Em pouco tempo,
contudo, meu jogo voltou. Enquanto isso, Drew seguia jogando como se
estivesse em Wimbledon. Quanto mais meu jogo voltava, mais agressivo
ele se tornava, até um ponto em que ficou ridículo. Começou a jogar a bola
no campo de Jody e atravessar a quadra para pegar bolas que eram
destinadas a Alana. Na verdade, queria jogar sozinho. Dava para ver as
caras feias que Alana fazia para ele. Comecei a perceber a existência de
alguma história entre os dois. Havia uma tensão muito séria ali. Havia
também outra coisa rolando naquela quadra — a batalha dos Machos Alfa.
Drew começou a servir em mim, batendo com muita força, às vezes
mandando bolas longas. Embora tivesse um saque muito veloz, não tinha
muito controle, então ele e Alana começaram a perder. Quanto a mim,
resolvi também pressioná-lo, antecipando-me quando ele ia botar a bola na
quadra de Jody, disfarçando meus golpes, jogando a bola atrás dele. Zé
Bonitinho pressionara o mesmo velho botão da competição que havia em
mim. Quis colocá-lo no devido lugar. Mim querer mulher outro homem
das cavernas. Em muito pouco tempo eu estava banhado de suor e me dei
conta de que estava me esforçando demais, sendo demasiado agressivo em
um jogo que era para ser social; não estava certo. Foi assim que recuei e
passei a jogar com mais paciência, mantendo a bola em jogo, deixando que
Drew cometesse seus erros.
Drew aproximou-se da rede e cumprimentou-me no fim do jogo.
Depois me deu um tapinha nas costas.
— Você é um bom jogador, bom em todos os fundamentos — disse
ele, com seu falso jeito amigável.
— Você também — retribuí.
Ele encolheu os ombros.
— Eu tinha muita área para defender.
Alana ouviu isso e seus olhos azuis faiscaram de raiva. Virou-se para
mim.
— Você tem tempo para um drinque?
Fomos só eu e ela para a "varanda" — um gigantesco deque de madeira
com vista para as quadras. Jody pediu desculpas e se afastou, tendo
percebido graças a algum tipo de comunicação tácita própria das
mulheres, que Alana não queria um grupo ao seu lado. Disse que tinha que
ir embora. Então Drew viu o que estava acontecendo e também pediu
licença e foi embora, embora não tão graciosamente quanto Jody.
A garçonete apareceu e Alana me disse para pedir, porque ela ainda
não decidira o que queria. Pedi um gim-tônica com Tanqueray Malacca.
Ela me dirigiu um olhar assustado por uma fração de segundo, antes de
recuperar o controle.
— Para mim também — pediu Alana.
— Preciso ver se temos — disse a garçonete, uma secundarista loura e
grandalhona. Poucos minutos depois voltou com as bebidas.
Conversamos um pouco, sobre os clubes, os sócios (esnobes, segundo
ela), as quadras (as melhores que há por aqui, disparado) mas ela era
sofisticada demais para enveredar pelo esquema do "o-que-é-que-você-
faz?" Não mencionou a Trion, nem eu tampouco. Comecei a recear
justamente essa parte, sem saber ao certo como resolveria a questão da
bizarra coincidência de ambos trabalharmos na Trion, e, ei, você
trabalhava exatamente no meu lugar! Eu não conseguia acreditar que
tivesse mesmo me apresentado como voluntário para entrar no jogo deles,
que tivesse me jogado bem no centro da sua órbita em vez de manter a
discrição. Era conveniente que nunca tivéssemos nos visto no trabalho.
Perguntei-me se o pessoal do AURORA usava uma porta à parte. O gim,
contudo, subiu rapidamente, e era um belo dia ensolarado, portanto a
conversa fluiu numa boa.
— Foi uma pena que Drew tenha perdido o controle — comentou ela.
— Ele é bom.
— Ele pode ser um chato. Viu você como uma ameaça. Deve ser uma
coisa própria dos machos. Combate com raquetes. Eu sorri.
— É como aquela música que a Ani DiFranco canta, você conhece?
"Porque cada ferramenta é uma arma se você segurá-la direito."
Os olhos dela se iluminaram.
— Exatamente! Você também gosta da Ani?
Dei de ombros antes de declamar:
— "A ciência corre atrás do dinheiro e o dinheiro corre atrás da própria
cauda..."
— "E as melhores cabeças da minha geração não podem ser libertadas"
— completou ela. — Não são muitos os homens que gostam de Ani.
— Sou um cara sensível, acho — declarei, na maior cara de pau.
— Também acho. Devíamos sair um dia desses — disse ela. Eu estava
ouvindo direito? Alana tinha acabado de me convidar para sair?
— Ótima ideia. Você gosta de comida tailandesa?
27
Cheguei ao apartamento de meu pai tão empolgado com o meu
miniencontro com Alana Jennings que me sentia como se estivesse
envergando uma armadura. Nada que ele fizesse ou dissesse poderia me
atingir.
Enquanto subia os velhos degraus de madeira da varandinha da frente,
ouvi os dois discutindo — a voz aguda e anasalada de meu pai, que soava
cada vez mais como o grasnar de um pássaro, e as respostas de Antwoine,
no seu timbre grave e ressonante. Encontrei-os no banheiro do andar de
baixo, cheio de vapor. Um vaporizador estava ligado. Papai, deitado de
bruços sobre um banco, havia uma porção de travesseiros sustentando-lhe
a cabeça e o peito. Antwoine, com seu uniforme azul-claro encharcado de
suor, batia nas costas nuas de papai com suas mãos imensas.
— Oi, Adam.
— Este filho da mãe está tentando me matar — guinchou papai.
— É assim que se faz para soltar o muco dos seus pulmões — disse
Antwoine. — Essa porcaria fica grudada aí dentro por causa dos seus
cílios vibráteis danificados — ele continuou com as batidas, produzindo
um som oco.
As costas de papai eram doentiamente brancas, da cor de uma folha de
papel. Recurvadas, pareciam não ter tônus muscular. Lembrei-me de como
elas eram antigamente, quando eu era menino: vigorosas, sólidas, quase
assustadoras. Aquela era uma pele de velho, e eu gostaria de não tê-la
visto.
— Esse safado mentiu para mim — disse papai, a voz abafada pelos
travesseiros. — Só disse que eu ia respirar no vapor. Não avisou que ia
quebrar a porra das minhas costelas. Meu Deus do céu, estou tomando
esteroides, meus ossos estão fracos, crioulo maldito!
— Ei, papai — gritei. — Chega!
— Não sou sua puta da cadeia, seu negro!
Antwoine não demonstrou reação. Continuou dando palmadas nas
costas de papai, firme e cadenciadamente.
— Papai, esse homem é muito maior e mais forte do que você. Não
creio que seja uma boa ideia fazer dele seu inimigo.
Antwoine olhou para mim com olhos sonolentos e divertidos.
— Olha, cara, eu tive que me ver com a Nação Ariana cada dia que
passei na prisão. Acredite em mim, um velho deficiente tagarela não chega
a me impressionar.
Eu não disse nada.
— Seu filho da mãe! — guinchou papai. Notei que ele não chamou
Antwoine de negro.
Mais tarde, papai estava estacionado diante da TV, enganchado no
borbulhador, tubo no nariz.
— Este sistema não está dando certo — disse ele, fazendo uma careta
para a TV. — Você já viu a porcaria de comida de coelho que ele tenta me
dar?
— O nome certo é frutas e verduras — disse Antwoine, sentado em
uma cadeira a uns poucos metros de distância. — Eu sei do que ele gosta...
posso ver o que há na despensa. Ensopado de carne Dinty Moore na lata
grande, salsichas de Viena e salsicha de fígado. Bem, nada disso enquanto
eu estiver aqui. Você precisa comer comida saudável, Frank, aumentar sua
imunidade. Se pegar um resfriado, termina tendo uma pneumonia, vai
parar no hospital e aí o que é que eu vou fazer? Você não vai precisar de
mim enquanto estiver lá.
— Cristo.
— E também nada mais de Coca-Cola. Fim. Você precisa de água para
afinar seu muco, e não um troço que tem cafeína. Você precisa de potássio
e cálcio por causa dos esteroides.
Ele batia com o dedo indicador na palma da mão como se fosse
treinador do campeão mundial dos pesos-pesados.
— Faça qualquer porcaria de comida de coelho que você quiser —
disse papai — que eu não como.
— Aí você vai estar se matando, Frank. Você precisa de dez vezes mais
energia que um sujeito normal, e por isso precisa comer, melhorar sua
força, sua massa muscular, tudo isso. Se vier a morrer sob os meus
cuidados, não serei eu o responsável.
— Como se você se importasse — retrucou papai.
— Você acha que estou aqui para ajudá-lo a morrer?
— É o que me parece.
— Se eu quisesse matá-lo, por que ia preferir o meio mais lento? A
menos que você ache que é divertido para mim. Tipo quem sabe, talvez eu
goste desta droga.
— Isso é uma droga, não é? — falei.
— Ei, vamos dar uma olhada no relógio desse homem? — disse
Antwoine de repente.
Eu tinha me esquecido de tirar o Panerai.
Talvez, no subconsciente, eu achasse que nem meu pai nem Antwoine
fossem reparar. — Deixa eu ver — ele se aproximou, examinou o relógio,
ficou maravilhado. — Cara, isso deve ser um relógio de cinco mil dólares
— ele quase acertou, e eu fiquei envergonhado. Era mais do que ele
ganhara em dois meses de trabalho. — É um daqueles relógios italianos de
mergulho?
— É — respondi rapidamente.
— Oh, você só pode estar me sacaneando — exclamou papai, sua voz
mais parecendo uma dobradiça enferrujada. — Eu me recuso a acreditar
nesta merda — ele também examinou o relógio. — Você gastou cinco mil
dólares na porra de um relógio? Que perdedor! Você tem ideia de como eu
me arrebentava de trabalhar por cinco mil dólares para pagar seus estudos?
E você gasta isso na porra de um relógio?
— O dinheiro é meu, papai — e acrescentei rapidamente —, e é um
investimento.
— Ora, pelo amor de Deus, você pensa que sou um idiota? Um
investimento?
— Papai, olha só, acabo de ter uma promoção maravilhosa. Estou
trabalhando na Trion Systems por qualquer coisa tipo duas vezes o que me
pagavam na Wyatt, ok?
Ele me lançou um olhar astuto.
— Que dinheirão é esse que estão pagando a você que lhe permite
jogar fora cinco mil... Jesus, nem sou capaz de falar isso em voz alta.
— Estão me pagando muito bem, papai. E se quero jogar meu dinheiro
fora, eu jogo. Fiz por merecer.
— "Fiz por merecer..." — ele repetiu, com sarcasmo. — A qualquer
hora que você queira me pagar pelas — ele parou para respirar — não sei
quantas dezenas de milhares de dólares que gastei com você, fique à
vontade.
Por muito pouco não lhe falei quanto dinheiro estava gastando com
ele, mas recuei a tempo. A vitória momentânea não valeria a pena. Em vez
disso, repeti para mim mesmo inúmeras vezes: este não é seu pai. É uma
versão malvada de seu pai, animada por Hanna-Barbera, difícil de ser
reconhecida por causa da prednisona e uma dezena de outras substâncias
que alteram a mente. Mas é claro que eu sabia que não era bem assim, que
aquele era o mesmo velho panaca de sempre, só que um pouco pior.
— Você está vivendo em um mundo de fantasia — prosseguiu papai.
Ele respirou ruidosamente antes de prosseguir. — Pensa que só porque
compra ternos de dois mil dólares, sapatos de quinhentos dólares e
relógios de cinco mil dólares vai se tornar um deles, não pensa? — outra
respiração. — Pois deixe que eu lhe diga uma coisa: você está usando uma
fantasia de Halloween, mais nada. Você está fantasiado. Enfeitado. Eu lhe
digo isso porque você é meu filho e nenhuma outra pessoa vai lhe dizer a
verdade. Você não passa de um macaco metido dentro da porcaria de um
smoking.
— O que é que você está querendo dizer? — balbuciei. Notei que
Antwoine, efetuava uma retirada diplomática. Meu rosto ficou vermelho.
Ele é um homem doente, disse a mim mesmo. Tem um enfisema em
estágio final. Está morrendo. Não sabe o que está dizendo.
— Você acha que vai conseguir ser um deles? Garoto, você gosta de
acreditar nisso, não é mesmo? Acha que aceitar você e deixar que entre
para seus clubes, coma suas filhas e jogue polo com eles — ele sorveu
uma diminuta quantidade de ar. — Mas eles sabem quem você é, meu
filho, e de onde você vem. Talvez deixem que brinque no caixão de areia
deles por algum tempo, mas assim que você começar a se esquecer quem é
na realidade, aparecerá alguém para fazer com que se lembre.
Não pude me conter mais. Ele estava me enlouquecendo.
— Não funciona assim no mundo dos negócios, pai — falei, paciente.
— Não é como um clube. Trata-se de fazer dinheiro. Se você puder ajudá-
los a fazer dinheiro, você preenche uma necessidade. Estou onde estou
porque precisam de mim.
— Oh, precisam de você — repetiu papai, enfatizando o "precisam" e
balançando a cabeça — essa é boa. Eles precisam de você do mesmo modo
que um cara dando uma cagada precisa de papel higiênico, está me
entendendo? Quando acabarem de se limpar, eles puxam a descarga. Deixe
eu lhe dizer uma coisa: tudo o que interessa a eles são os vitoriosos, e eles
sabem que você é um perdedor e não vão permitir que se esqueça disso.
Rolei os olhos para cima, sacudi a cabeça e não disse nada. Uma veia
latejou na minha têmpora.
Mais ar.
— E você é tão burro e tão cheio de si que não sabe disso. Vive num
maldito mundo da fantasia, exatamente como sua mãe. Ela sempre achou
que era boa demais para mim, mas não era merda nenhuma. Puro sonho.
Como você. Estudou dois anos numa escola particular sofisticada e tem
um diploma universitário caro e inútil, mas ainda assim, não é nada.
Ele respirou fundo e sua voz pareceu suavizar-se um pouco.
— Eu lhe digo essas coisas porque não quero que ferrem você do jeito
como sempre me ferraram, meu filho. Como naquela merda daquela
escola covarde, o modo como os pais ricos me olhavam, como se eu não
fosse um deles. Pois bem, adivinha só. Custei um pouco para entender,
mas eles estavam certos. Eu não era mesmo um deles. Nem tampouco
você, e quanto mais cedo perceber isso, em melhor situação ficará.
— Situação melhor, como a sua — escapou da minha boca. Ele me
encarou com um olhar penetrante.
— Pelo menos sei quem sou — disse ele. — Enquanto você não faz a
menor ideia de quem é.
28
O dia seguinte era um domingo, minha única chance de acordar tarde,
e, por isso mesmo, é claro que Arnold Meacham insistiu em se encontrar
comigo bem cedo. Eu respondera a seu e-mail usando o nome "Donnie",
que significava que eu tinha algo a entregar.
Ele me respondeu imediatamente, dizendo para que eu estivesse no
estacionamento de um certo Home Center às nove horas em ponto.
Já havia um bocado de gente ali — nem todo mundo dorme até tarde
aos domingos — comprando madeira serrada, telhas, ferramentas
motorizadas e sacos de semente de grama e fertilizantes. Esperei no Audi
uma boa meia hora.
Até que por fim, um BMW preto 745i parou na vaga ao lado da minha,
parecendo um pouco deslocado entre tantas picapes e veículos esportivos
utilitários. Arnold Meacham usava um cardigã azul-bebê e dava a
impressão de que ia jogar golfe. Fez um sinal para que eu entrasse em seu
carro, o que fiz e lhe passei um CD e uma pasta.
— E o que temos aqui? — perguntou.
— A lista dos empregados que trabalham no projeto AURORA —
respondi.
— Todos?
— Não sei. Pelo menos alguns.
— Por que não todos?
— São quarenta e sete nomes aí. Um começo decente.
— Precisamos da lista completa.
Suspirei.
— Verei o que posso fazer — silenciei por um segundo, dividido entre
a vontade de não dizer ao cara nada do que eu tinha — quanto mais eu
dissesse, mais exigências ele me faria — e a vontade de exibir o progresso
que eu alcançara.
— Tenho as senhas da chefia — falei, finalmente.
— De quem? Lundgren?
— Nora Sommers.
Ele balançou a cabeça.
— Usou o software?
— Não, o Keyghost.
— O que vai fazer com essas senhas?
— Vistoriar seus e-mails arquivados. Talvez entrar no seu
MeetingMaker e descobrir com quem se encontra.
— Isso é mixaria — disse Meacham. — Acho que está na hora de
penetrar no AURORA.
— Muito arriscado — falei, sacudindo a cabeça.
— Por quê?
Um sujeito empurrando um carrinho cheio de sacos verdes de
fertilizante Scott passou ao lado da janela de Meacham. Quatro ou cinco
garotinhos corriam ao redor dele. Meacham viu aquilo e acionou o
dispositivo elétrico que fazia subir o vidro.
— Por quê?
— O crachá de acesso do pessoal do AURORA é separado.
— Pelo amor de Deus, siga alguém, roube um crachá, faça qualquer
coisa. Será que vou ter que pôr você de volta no treinamento básico?
— Todas as entradas são controladas e em cada uma delas há uma
roleta pela qual se deve passar, de modo que não dá para a pessoa se
esgueirar lá para dentro.
— E o pessoal da faxina?
— Há também câmeras de TV viradas para cada ponto de acesso. Não
é fácil. Você não vai querer que me peguem, não agora. Ele pareceu recuar.
— Jesus, o local é bem defendido.
— Você provavelmente pode aprender um truque ou dois com eles.
— Vá à merda — retrucou ele. — E os arquivos do RH? — O RH
também é muito bem protegido.
— Não como o AURORA. Deve ser relativamente fácil. Arranje os
arquivos pessoais de todos os que forem associados de algum modo ao
projeto AURORA. No mínimo as pessoas que constam desta lista — ele
levantou o CD.
— Posso tentar na semana que vem.
— Faça hoje. A noite de domingo é ótima para essas coisas.
— Tenho um dia complicado amanhã. Vamos fazer uma palestra para o
Goddard.
Ele pareceu enojado.
— O que é, está trabalhando demais no seu trabalho de mentira?
Espero que não tenha esquecido para quem você realmente trabalha.
— Preciso me apressar. É importante.
— Mais razão ainda para você estar na sua sala trabalhando hoje à
noite — disse ele, girando a chave na ignição.
29
No começo da noite peguei o carro e fui para a sede da Trion. O
estacionamento estava quase inteiramente vazio, as únicas pessoas lá
presentes provavelmente eram as que guarneciam o centro de operações
vinte e quatro horas, o pessoal da segurança e um ou outro empregado
viciado em trabalho como eu fingia ser. Não reconheci a embaixadora do
saguão, uma hispânica que não parecia satisfeita por se encontrar ali. Ela
mal olhou para mim quando entrei, mas fez questão de dizer oi, parecendo
aborrecida ou encabulada ou qualquer outra coisa. Fui para o meu cubículo
e fiz um pouco de trabalho verdadeiro, umas planilhas que retratavam as
vendas do Maestro na região do mundo que chamavam de EOMA, as
iniciais de Europa/Oriente Médio/Ásia. As linhas indicativas das
tendências não eram boas, mas Nora queria que eu preparasse os números
de modo a ressaltar os dados encorajadores que pudesse encontrar.
O andar se encontrava quase todo às escuras. Tive, inclusive, que
acionar os interruptores para a minha área. Inquietante.
Meacham e Wyatt queriam os arquivos pessoais de todos os envolvidos
no AURORA. Queriam tomar conhecimento do histórico de cada pessoa, o
que lhes diria em quais companhias tinham trabalhado antes e o que
faziam em seus últimos empregos. Uma boa maneira de descobrir de que
se tratava o AURORA.
Só que não se tratava de simplesmente sair passeando, entrar em
Recursos Humanos, abrir uns armários, pegar as pastas que eu quisesse e
sair. O departamento de RH da Trion, diferentemente da maior parte do
resto da companhia, adotava medidas de segurança. Para começar, seus
computadores não podiam ser acessados pela base de dados principal da
corporação; era uma rede separada. Acho que isso fazia sentido, já que os
registros pessoais continham toda sorte de informações privadas como a
avaliação de desempenho dos empregados, o valor dos seus planos de
aposentadoria e opções de compra de ações, todas essas coisas. Talvez o
RH tivesse medo de que a plebe tomasse conhecimento de quanto os
principais executivos da Trion ganhavam mais que todo mundo e a revolta
explodisse em distúrbios em todos os cubículos.
O RH ficava no terceiro andar da ala E, uma longa caminhada desde o
Marketing de Novos Produtos. Havia uma porção de portas trancadas ao
longo do caminho, mas meu crachá provavelmente abriria todas.
Foi quando me lembrei de que, de algum modo, ficava registrado o
movimento e o horário de quem passava pelos checkpoints. A informação
ficava armazenada, o que não significava necessariamente que alguém a
examinasse ou fizesse alguma coisa a respeito. Mas, para o caso de haver
algum problema mais tarde, não seria bom que eu, em plena noite de
domingo, fosse do Marketing de Novos Produtos ao Pessoal deixando
migalhas de pão digitais pelo caminho.
Assim, deixei o prédio, tomei o elevador para baixo e aí entrei por um
dos acessos dos fundos. O problema desses sistemas de segurança é que só
rastreiam as entradas e não as saídas. Ao sair, você não usa seu crachá.
Pode ser que isso seja devido a alguma norma do Corpo de Bombeiros, não
sei dizer, mas o fato é que significava que eu podia sair do prédio sem que
ninguém soubesse.
Estava escuro do lado de fora. O prédio da Trion ficava iluminado, seu
revestimento de aço escovado reluzindo, os vidros das janelas azul-
escuros. A não ser pelo ruído ocasional de um carro que passava, fazia
silêncio.
Fui até a ala E, onde parecia estarem sediadas várias funções
administrativas — Central de Compras, Gerência de Sistemas, esse tipo de
coisa — e vi alguém saindo por uma porta de serviço.
— Ei, pode segurar a porta? — gritei. Balancei meu crachá da Trion na
direção do cara, que pelo jeito parecia fazer parte da equipe de faxina ou
algo assim.
— Essa droga desse crachá não está funcionando direito.
O homem segurou a porta para mim, nem olhou para minha cara e fui
entrando. Nada registrado. No que dizia respeito ao sistema central, eu
ainda estava lá em cima no meu cubículo.
Fui pela escada até o terceiro andar. A porta de acesso ao andar estava
destrancada. O que, também, devia-se a um regulamento qualquer do
Corpo de Bombeiros: em edifícios acima de certa altura você tem que ser
capaz de passar de um andar para o outro pelas escadas, em caso de
emergência. Provavelmente alguns andares tinham uma estação para
leitura de crachás na escada. Mas o terceiro andar não tinha. Entrei direto
na área de recepção externa dos Recursos Humanos.
A área de espera tinha exatamente o aspecto que se espera dos
Recursos Humanos — muito mogno, para atestar a seriedade do
departamento e da maneira como trata da carreira do empregado, e
poltronas confortáveis, coloridas e acolhedoras. Ou seja, a mesma coisa
que dizer que sempre que você fosse aos Recursos Humanos iria sentar o
rabo ali por um tempo impiedosamente longo.
Procurei câmeras de circuito fechado de televisão e não vi. Não que
esperasse ver alguma — afinal, aquilo não era um banco nem o local de
trabalho da equipe de projetos especiais — mas queria me certificar; ou,
pelo menos, sentir-me tão seguro quanto possível.
As luzes estavam reduzidas, o que tornava o lugar ainda mais
majestoso. Ou sinistro, eu não saberia dizer.
Por alguns segundos fiquei ali parado, pensando. Não havia ninguém
da faxina trabalhando no local para me deixar entrar; provavelmente seu
horário era muito tarde ou de manhã bem cedo. Esta seria a melhor
maneira de entrar. Em vez disso, eu teria que tentar meu velho truque do
crachá que não abria a porta, que já me levara até ali. Desci a escada e subi
para o saguão pela porta dos fundos. A embaixadora do saguão com uma
enorme cabeleira ruiva acobreada estava assistindo a uma reprise de The
Bachelor em um dos monitores da segurança.
— E eu que pensei que fosse o único que tinha que trabalhar no
domingo — falei. Ela levantou a cabeça, sorriu polidamente e voltou a
atenção para o monitor. Eu parecia ser da casa, tinha um crachá preso no
cinto e vinha pelo lado de dentro, de modo que eu era dali, certo? A moça
não era tagarela, mas isso era uma boa coisa — só queria ficar em paz para
assistir ao seu programa de televisão. Faria qualquer coisa para se livrar de
mim.
— Ei, escute — falei —, desculpe incomodar, mas você tem aquela
maquininha de consertar crachás? Não é que eu queira entrar na minha
sala, mas tenho que trabalhar, senão perco o emprego, e a droga do leitor
de crachás não quer me deixar entrar. É como se ele soubesse que eu devia
estar em casa assistindo ao jogo de futebol, entende?
Ela sorriu. Provavelmente não estava acostumada a ser notada pelos
empregados da Trion.
— Sei o que você quer dizer. Mas sinto muito, a senhora que faz isso
só estará aqui amanhã.
— Puxa vida! Como é que vou conseguir entrar? Não posso esperar até
amanhã. Estou totalmente ferrado.
Ela balançou a cabeça em sinal de assentimento e pegou o telefone.
— Stan — disse —, pode dar uma mãozinha aqui?
Stan, o guarda de segurança, apareceu uns dois minutos mais tarde. Era
um tipo pequeno, magro, moreno, com seus cinquenta anos e uma
peruquinha óbvia e negra enquanto que o cabelo verdadeiro que a rodeava
já começava a ficar branco. Nunca pude entender como é que uma pessoa
usa uma peruca se não a atualiza de vez em quando para torná-la pelo
menos mais ou menos convincente. Pegamos o elevador até o terceiro
andar. Puxei um papo complicado sobre o fato do RH ficar num sistema de
identificação de crachás hierarquicamente separado, mas ele não se
interessou. Queria falar sobre esportes, e isso eu podia fazer, sem o menor
problema. Era torcedor dos Broncos de Denver, e eu fingi ser também.
Quando chegamos no RH, pegou o seu crachá, que provavelmente
permitiria que ele entrasse em qualquer lugar daquela parte do prédio e o
passou diante do leitor.
— Não vá trabalhar demais — disse.
— Obrigado, irmão — agradeci.
Ele se virou para me olhar.
— É melhor você mandar consertar o seu crachá.
E eu entrei.
30
Uma vez ultrapassada a área de recepção, o RH parecia exatamente
igual a todos os outros departamentos da Trion, com o mesmo layout
genérico dos cubículos. Apenas as luzes de emergência se encontravam
acesas, não as fluorescentes do teto. Pelo que pude ver ao andar por lá,
todos os cubículos estavam vazios, da mesma forma que as salas. Não
precisou muito tempo para descobrir onde os arquivos eram guardados. No
centro do andar havia um imenso conjunto de arquivos horizontais na cor
bege.
Pensei em tentar fazer meu trabalho de espionagem totalmente online,
mas isso não funcionaria sem ter a senha do RH. Mas já que estava ali,
achei que seria bom deixar instalada uma daquelas engenhocas que
registravam os toques do teclado. Mais tarde voltaria para apanhar. Era a
Wyatt Telecom quem arcava com o preço desses brinquedinhos, não eu.
Escolhi um cubículo e instalei o troço.
Além disso, porém, tinha que fuçar os arquivos e descobrir o pessoal
do AURORA. E precisava andar depressa — quanto mais tempo ficasse ali,
maior a chance de ser apanhado.
A questão era, como a coisa estava organizada? Alfabeticamente, por
nome? Por ordem do número de matrícula do empregado? Quanto mais
olhava aquelas filas de gavetas etiquetadas, mais desencorajado ficava.
Não era possível simplesmente abrir uma gaveta e pegar esta ou aquela
ficha. Havia filas de gavetas intituladas ADMINISTRAÇÃO DE BENEFÍCIOS E
PENSÕES/ANUIDADES/APOSENTADORIA E REGISTROS DE LICENÇAS DE SAÚDE,
ANUAIS E OUTRAS; gavetas rotuladas com DEMANDAS JUDICIAIS, COMPENSAÇÕES DE
TRABALHO E PROCESSOS; uma área chamada REGISTROS DE IMIGRAÇÃO E
NATURALIZAÇÃO... e assim por diante. Qualquer um ficaria tonto.
Por alguma razão, uma canção animada e muito antiga soava dentro da
minha cabeça — Band on the Run, de Paul McCartney, no infortunado
período do Wings. Uma canção que realmente detesto, mais ainda do que
qualquer coisa cantada pela Celine Dion. A melodia é chata, mas pega,
como conjuntivite, e as palavras não fazem sentido: "Um sino tocava na
praça da aldeia para os coelhos em fuga!"
Experimentei uma das gavetas, mas é claro que estava trancada. Cada
armário tinha uma chave na parte superior e é claro que todas tinham que
estar igualmente trancadas. Procurei a mesa da assistente e, enquanto isso,
a danada da canção circulava dento da minha cabeça... "O juiz do
condado... guardava rancor"... Evidente que, ao encontrar a mesa da
assistente, logo vi a chave dos arquivos, em um chaveiro dentro da gaveta
central destrancada. Cara, Meacham tinha razão, a chave é sempre fácil de
achar.
Ataquei os arquivos de empregados organizados em ordem alfabética.
Escolhi um dos nomes da lista do AURORA — Yonah Oren —
procurando na letra O. Nada. Procurei outro nome — Sanjay Kumar — e
também não encontrei nada. Tentei Peter Daut: zero. Estranho. Para ser
meticuloso, procurei esses nomes nas gavetas sob o rótulo de APÓLICES DE
SEGURO, ACIDENTES. Nada ainda. Mesma coisa com os arquivos de pensões.
Na verdade, nada em nenhum dos arquivos, tanto quanto eu pudesse ver.
"O carcereiro e o Marinheiro Sam..." Aquilo era como a tortura chinesa
da gota d'água.
O estranho era que, nos lugares onde esses arquivos deveriam estar, às
vezes havia alguma folga, pequenas lacunas, como se tivessem sido
removidos. Ou era minha imaginação? Quando eu já estava prestes a
desistir, fiz mais um circuito em torno das filas de armários e então notei
uma alcova — um cômodo aberto, em separado, ao lado daquele primeiro
conjunto de armários. Um sinal na entrada da alcova dizia: ARQUIVOS DE
PESSOAL — RESERVADOS — ACESSO APENAS COM AUTORIZAÇÃO DIRETA DE JAMES
SPERLING OU LUCY CELANO.
Entrei na tal alcova e fiquei aliviado de ver que ali as coisas eram
simples: as gavetas tinham sido organizadas por número de departamento.
James Sperling era o diretor de RH e Lucy Celano sua assistente
administrativa. Precisei de alguns minutos para encontrar a mesa de Lucy
e talvez uns trinta segundos para encontrar seu chaveiro (gaveta de baixo
da direita).
Voltei, então, aos armários de acesso reservado e encontrei a gaveta
que tinha os números dos departamentos, inclusive do projeto AURORA.
Destranquei o armário e abri a gaveta. Ela fez um barulho metálico como
se algum rolamento tivesse, de certa maneira, caído. Com que frequência
abririam aquelas gavetas? Será que trabalhavam basicamente com tudo
online, guardando as cópias de papel apenas por motivos legais e de
auditoria?
Foi então que vi algo bizarro: todos os arquivos do departamento
AURORA tinham sumido. Quer dizer, havia uma falha de uns cinquenta
centímetros, talvez mais, entre o número anterior e o posterior. A gaveta
estava meio vazia.
Os arquivos do AURORA tinham sido removidos.
Por um segundo foi como se minha cabeça tivesse parado.
Senti-me aturdido.
Com o canto do olho, vi uma luz brilhante começar a piscar. Era uma
das lâmpadas estroboscópicas de xenônio, de emergência, montadas no
alto da parede, perto do teto, do lado de fora da alcova. Para que diabos
seria aquilo? Poucos segundos depois veio o incrivelmente alto e
inconfundível ru-á, ru-á de uma sirene.
Não sei como, eu havia disparado o sistema de detecção de intrusos
que sem dúvida protegia os arquivos reservados.
A sirene tocava tão alto que provavelmente era ouvida em toda a ala.
31
A qualquer segundo a segurança ia aparecer. Talvez a única razão pela
qual ninguém ainda tivesse aparecido era por ser fim de semana e o
número de agentes ser reduzido.
Corri até a porta, bati com o lado do corpo de encontro à tranca de
emergência e a porta não se moveu. O impacto doeu como o diabo.
Tentei de novo. A porta estava aparafusada. Tentei outra porta e ela
também estava trancada pelo lado de dentro.
Só então percebi o que tinha sido aquele barulho metálico esquisito
que eu tinha ouvido um ou dois minutos antes — ao abrir a gaveta eu
devia ter desencadeado algum tipo de mecanismo que trancara
automaticamente todas as portas de saída da área. Corri para o lado
contrário, onde havia outro conjunto de portas, mas tampouco elas
abriram. Até mesmo a porta de emergência da saída de incêndio que dava
em uma escadinha nos fundos estava trancada, e isso tinha que ser contra o
código dos Bombeiros.
Eu estava encurralado como um rato em um labirinto. A segurança
apareceria a qualquer instante e o lugar seria vasculhado.
Minha mente disparou. Eu poderia tentar alguma coisa em cima deles?
Stan, o guarda que me deixara entrar — talvez eu pudesse convencê-lo de
que tinha sido por acidente que eu entrara na área errada e abrira a gaveta
errada. Ele parecera ter gostado de mim, podia ser que funcionasse.
Mas e se ele resolvesse trabalhar direito, pedisse para ver meu crachá e
visse que eu não pertencia nem remotamente àquele departamento?
Não, eu não podia me arriscar. Não tinha alternativa. Precisava me
esconder. Estava preso ali dentro.
"Preso dentro daquelas quatro paredes", ouvi dentro da cabeça o
lamento repulsivo da música do Wings. Meu Deus!
A lâmpada estroboscópica continuava pulsando, ofuscantemente clara,
e o alarme prosseguia no seu ru-á ru-á, como se aquilo fosse um reator
atômico com o núcleo derretendo.
Mas onde eu poderia me esconder? Imaginei que a primeira coisa que
eu devia fazer seria criar um tipo qualquer de ação diversionária, uma
explicação inocente e plausível para o fato do alarme ter disparado. Droga,
não havia tempo!
Se eu fosse apanhado ali, estava tudo acabado. Tudo. Eu não perderia
apenas o meu emprego na Trion. Muito pior. Um desastre, um pesadelo
total.
Peguei a lata de lixo de metal mais próxima. Estava vazia, portanto
tive que pegar um pedaço de papel em uma das mesas. Amarrotei-o,
peguei meu isqueiro e toquei fogo. Corri de volta até a alcova dos arquivos
classificados e coloquei a cesta de encontro à parede. Depois peguei um
cigarro do meu maço e joguei-o na lata também.
O papel pegou fogo e o fogo gerou uma grande nuvem de fumaça.
Talvez, caso um resto de cigarro fosse encontrado, culpassem a ponta
acesa pelo incêndio. Talvez.
Ouvi vozes, gente falando alto que parecia estar se aproximando pela
escada de trás.
Não, por favor, meu Deus. Está tudo acabado. Fim.
Foi aí que vi uma porta que parecia de armário. Estava destrancada e
era mesmo de um armário de suprimentos, não muito largo, mas uns três
metros e meio de profundidade, entupido de estantes até em cima, com
resmas de papel e coisas assim.
Não tive coragem de acender a luz, e por isso era difícil de enxergar,
mas consegui um espaço entre duas prateleiras no fundo onde me enfiei,
espremido.
No instante em que fechei a porta ouvi a porta da sala ser aberta e
gritos abafados.
Fiquei imóvel. O alarme continuava a tocar. Gente corria de um lado
para o outro, gritando cada vez mais alto e mais perto. — Aqui! — berrou
alguém.
Meu coração batia com força. Contive a respiração. Quando me mexi
um quase nada, a prateleira nas minhas costas rangeu. Mudei o peso do
corpo de um pé para o outro e meu ombro raspou ruidosamente numa
caixa. Duvidei que alguém que passasse por perto pudesse ouvir os
barulhinhos que eu fazia, não com aquela confusão toda. Gritos, sirenes e
tudo mais. Obriguei-me, contudo, a ficar absolutamente imóvel.
— ... porra de um cigarro! — ouvi, para o meu alívio. — ... extintor!
— replicou alguém.
Por um longo, longo tempo — podem ter sido dez minutos ou meia
hora, não tenho ideia, já que não podia mexer o braço para ver a hora —
fiquei ali naquela posição desconfortável, quente e suarento, em estado de
animação suspensa, os pés dormentes por causa da posição esquisita em
que me encontrava.
Eu esperava que a qualquer momento a porta do armário fosse aberta, a
luz jorrasse e me descobrissem ali.
Eu não sabia o que diabos poderia dizer a eles. Na verdade, nada. Seria
apanhado e não tinha ideia de como poderia me explicar. Teria sorte se só
fosse demitido. Era bem provável que a Trion me processasse —
simplesmente não havia uma explicação boa para a minha presença ali.
Quanto a Wyatt, eu nem queria pensar no que ia fazer comigo.
Apesar de todo o meu trabalho, o que eu tinha lucrado ali? Nada. Os
registros do AURORA continuavam sumidos, de qualquer maneira.
Pude ouvir um barulho de um líquido sendo irrigado, obviamente um
extintor de incêndio sendo acionado, e a esta altura os gritos tinham
diminuído. Eu não poderia dizer se a segurança tinha chamado a brigada
de incêndio da casa ou o Corpo de Bombeiros local. Ou se o incêndio na
cesta de lixo teria explicado por si só o disparo do alarme. Será que
continuavam por ali, vasculhando o lugar?
Por não saber essas respostas, continuei imóvel do jeito como estava,
meus pés se transformando em blocos de gelo que não paravam de
formigar enquanto o suor escorria pela minha cara, e meus ombros e
costas iam sendo tomados de cãibras.
Esperei mais.
De vez em quando ouvia vozes, mas que pareciam mais calmas agora,
menos arrebatadas. Passos, sim, mas não mais frenéticos.
Após um interminável período de tempo, tudo ficou silencioso. Tentei
levantar o braço esquerdo para ver as horas, mas ele ficara adormecido.
Movi o direito para beliscar o esquerdo até que consegui mover o pulso na
direção do meu rosto e checar o mostrador iluminado. Passavam dez
minutos das dez horas, embora eu estivesse ali houvesse tanto tempo que
estava certo de que já passava de meia-noite.
Aos poucos, fui saindo daquela posição de contorcionista e me
desloquei silenciosamente na direção da porta. Fiquei ali parado por um
momento, ouvindo atentamente.
Não consegui ouvir um único som. Parecia uma aposta segura dizer
que tinham ido embora depois de apagar o fogo e concluir que não houvera
uma invasão afinal. Os seres humanos, especialmente guardas de
segurança que em algum nível devem se ressentir de todos os
computadores por terem quase acabado com os seus empregos, não
confiam em máquinas. Rapidamente culpam um defeito qualquer no
sistema de alarme. Talvez, se eu fosse realmente um cara de sorte,
ninguém sequer se perguntasse o motivo pelo qual o sistema de alarme
para detecção da presença de intrusos tinha disparado antes do detector de
fumaça.
Respirei fundo e abri lentamente a porta.
Olhei para um lado, olhei para o outro, olhei em frente e a área me
pareceu vazia. Ninguém. Dei uns poucos passos, parei, olhei de novo.
Era forte o cheiro de fumaça e de algum produto químico,
provavelmente o material lançado pelo extintor.
Sem fazer barulho, fui avançando pelo corredor, longe das janelas
externas e das portas de vidro, até que cheguei a um dos conjuntos de
portas de saída. Não as da recepção principal e tampouco as do fundo, por
onde os caras da segurança tinham vindo.
E estavam trancadas.
Ainda trancadas.
Pelo amor de Deus, não!
Eles não tinham desligado o sistema de trancamento automático.
Movendo-me um pouco mais depressa agora, a adrenalina começando a
entrar na corrente sanguínea de novo, fui até as portas da área de recepção
e vi que também estavam trancadas.
Eu ainda estava preso ali dentro.
E agora?
Eu não tinha escolha. Não havia como destrancar as portas pelo lado de
dentro, pelo menos nada que me tivesse sido ensinado. E eu não podia
exatamente chamar a segurança para pedir ajuda, especialmente depois do
que acontecera.
Não. Eu teria que ficar ali dentro até que alguém me deixasse sair. Que
podia ser apenas pela manhã, quando a turma da faxina entrasse. Ou pior,
quando os primeiros funcionários do RH chegassem. E aí então teria sérias
explicações a dar.
Eu estava absolutamente morto de cansaço. Precisava seriamente
dormir. E assim, cruzei os braços e, como um estudante esgotado na
biblioteca da faculdade, caí no sono.
32
Lá pelas cinco da manhã fui acordado por um barulho de vozes e
passos. Levantei a cabeça a jato. O pessoal da faxina tinha chegado,
empurrando grandes baldes plásticos amarelos sobre rodas e esfregões.
Além daqueles aspiradores de pá que você conduz como uma mochila.
Eram dois homens e uma mulher, falando rapidamente um com o outro em
português. Eu sabia um pouco de português: uma porção dos nossos
vizinhos eram brasileiros.
Eu tinha babado um pouco na mesa. Enxuguei com a manga, levantei-
me e saí andando na direção das portas de saída, que eles mantinham
abertas com um prendedor de borracha.
— Bom dia, como vai? — falei. Sacudi a cabeça, parecendo
envergonhado, e dei uma olhada ostensiva no relógio.
— Bem, obrigado, e o senhor? — respondeu a mulher. Ela sorriu,
expondo dois dentes de ouro. Tive a impressão de que ela entendeu a
mensagem que eu quis passar — pobre burocrata, trabalhando a noite toda,
ou talvez chegando ridiculamente cedo, ela não saberia dizer nem se
importaria.
Um dos homens estava examinando a cesta de metal chamuscada e
dizendo qualquer coisa para o outro cara, tipo, o que diabos terá
acontecido aqui?
— Cansado — falei para a mulher. — Estou cansado, é como me sinto.
Bom, até logo. Até a vista.
— Até logo, senhor — despediu-se a mulher quando saí porta afora.
Pensei por um segundo em ir até em casa, mudar de roupa e voltar
imediatamente para o trabalho. Mas, isso era mais do que eu podia
aguentar e, em vez disso, saí da ala E — a essa altura com gente
começando a chegar — e reentrei na ala B, subindo para o meu cubículo.
Ok, se alguém checasse os registros da entrada veria que eu chegara ao
edifício na noite de domingo por volta das sete horas e depois retornara às
cinco e meia da manhã da segunda-feira. Novato exageradamente ansioso.
Eu só não queria esbarrar em alguém que eu conhecesse, pois minha
aparência era de alguém que havia dormido vestido, o que, é claro,
acontecera. Por sorte, não vi ninguém. Peguei uma Diet Coke de baunilha
na sala de estar e tomei um gole grande. Achei o gosto detestável de
manhã tão cedo e resolvi fazer um bule de café no Bunn-O-Matic e fui
para o banheiro masculino me lavar. A camisa estava um pouco amassada,
mas o conjunto podia ser considerado apresentável, mesmo que me
sentisse péssimo. Hoje era um grande dia e eu tinha que estar na minha
melhor forma.
Uma hora antes da grande reunião com Augustine Goddard nós nos
reunimos na Packard, uma das maiores salas de reunião, para um ensaio
vestido. Nora trajava um bonito terninho azul e parecia ter feito o cabelo
especialmente para a ocasião. Estava a mil por hora; tão elétrica que a
energia nervosa chegava a estalar. Sorria muito, os olhos separados bem
brilhantes.
Ela e Chad estavam treinando quando o resto de nós chegou. Chad
fazia o papel do chefão, Jock. Passavam tudo em revista, como marido e
mulher casados há muito tempo que repetissem os argumentos de uma
discussão antiga, quando o celular de Chad tocou de repente. Ele tinha um
desses aparelhos Motorola que abrem e fecham, que eu estava convencido
de que era o seu tipo preferido justamente pela possibilidade de encerrar
uma ligação com um movimento brusco e ruidoso.
— Chad — disse ele. Seu tom de voz subitamente ficou mais cordial.
— Oi, Tony.
Chad levantou um dedo no ar para dizer a Nora que esperasse, e foi
para um canto da sala.
— Chad — exclamou Nora, aborrecida.
Ele se virou, balançou a cabeça para ela, e levantou de novo o dedo.
Mais ou menos um minuto mais tarde, ouvi-o fechar o telefone com um
estalo e ele se aproximou de Nora, falando baixinho. Estávamos todos
observando, atentos; eles estavam no centro da arena.
— Tenho um amigo no escritório do controller — disse ele, discreto e
sério. — A decisão do Maestro já foi tomada.
— Como você sabe? — perguntou Nora.
— O controller acaba de autorizar um débito extraordinário no valor
de cinquenta milhões de dólares para o Maestro. A decisão veio de cima.
A reunião com Goddard é somente pro forma.
O rosto de Nora ficou escarlate, e ela se virou. Caminhou até a janela e
ficou olhando para fora. Por todo um minuto nada disse.
33
O Executive Briefing Center — EBC — ficava no sétimo andar da ala
A, bem embaixo da sala de Goddard. Fomos para lá em grupo, todos bem
deprimidos. Nora disse que se uniria a nós em poucos minutos.
— Dead men walking! — entoou Chad, como no filme da Susan
Sarandon e do Sean Pen, enquanto andávamos. — Dead men walking!
Balancei a cabeça. Mordden viu Chad andando ao meu lado e manteve
distância, sem dúvida pensando tudo de mau ao meu respeito, tentando
imaginar por que eu não estaria sendo indiferente com Chad, e o que eu
estaria querendo. Ele não tinha passado pelo meu cubículo desde a noite
em que eu entrara na sala de Nora. Era difícil dizer se ele estava tendo ou
não um comportamento estranho, já que seu comportamento normal era
estranho. Por outro lado, eu também não queria sucumbir a uma paranoia
situacional — será que ele estaria me olhando de modo estranho, esse tipo
de coisa. Porém, não podia deixar de ficar me perguntando se eu não teria
posto toda a missão a perder com um único ato descuidado ou se Mordden
ia me causar problemas sérios.
— Agora, o local onde se senta é uma questão crucial, cara — Chad
murmurou para mim. — Goddard sempre fica no lugar do centro no lado
da mesa que fica perto da porta. E se quiser ficar invisível para ele, sente-
se à sua direita. Se quiser que ele preste atenção em você ou sente-se à sua
esquerda ou diretamente em frente a ele.
— Eu quero que ele preste atenção em mim?
— Não posso responder isso. Ele é o patrão.
— Você já esteve em muitas reuniões com ele?
— Não muitas — ele deu de ombros. Umas duas ou três.
Anotei mentalmente que devia me sentar em qualquer lugar que Chad
fosse contra. Na verdade, ele tinha me enganado uma vez e quem engana
uma vez...
O EBC era realmente impressionante. A imensa mesa feita de alguma
madeira tropical ocupava a maior parte da sala. Uma das paredes era uma
tela para apresentações.
As persianas acústicas pareciam muito pesadas e era possível dizer que
deslizavam eletricamente do teto, provavelmente não só para bloquear a
entrada da luz, como também para impedir que alguém do lado de fora
ouvisse o que era dito dentro da sala. Embutidos na mesa, havia alto-
falantes e microfones, assim como pequenas telas a frente de cada cadeira,
que apareciam quando um botão era apertado em algum lugar.
Por toda parte muitos cochichos, risadas nervosas e piadas
murmuradas. Eu estava mais ou menos ansioso para ver o famoso Jock
Goddard ao vivo e em cores, mesmo que nem sequer conseguisse lhe
apertar a mão. Eu não tinha que falar nem fazia parte da apresentação, mas
assim mesmo me sentia um pouco nervoso.
Aos cinco minutos para as dez horas, Nora ainda não tinha aparecido.
Teria pulado por uma janela? Estaria circulando pela Trion, tentando fazer
lobby, fazendo um esforço de última hora para salvar seu precioso produto,
puxando todas as cordinhas que ainda pudesse ter?
— Será que ela se perdeu? — brincou Phil.
Dois minutos antes das dez Nora entrou na sala, parecendo calma,
radiante e, de algum modo, ainda mais atraente. Dava a impressão de ter
retocado a pintura.
Talvez estivesse meditando ou algo assim, porque na verdade parecia
transformada.
Nessa altura, exatamente às dez horas, Jock Goddard e Paul Camilletti
entraram e todos ficaram quietos. Camilletti, o Degolador, de blazer preto
e camiseta de seda verde-oliva, o cabelo penteado para trás preso com gel,
parecia Gordon Gekko em Wall Street. Ele escolheu uma cadeira afastada,
a um canto da mesa imensa.
Goddard, com a sua costumeira camiseta de gola alta debaixo de um
paletó esporte marrom tipo tweed, aproximou-se de Nora e cochichou
qualquer coisa que a fez rir. Ele pôs a mão no seu ombro e ela, por sua vez,
cobriu a mão dele com a sua por alguns segundos. Parecia estar flertando,
como uma menina; um lado de Nora que eu não tinha visto ainda.
Goddard depois se sentou à cabeceira da mesa, de frente para a tela.
Obrigado, Chad, eu estava do outro lado da mesa e à sua direita, e
certamente que não me sentia invisível. Ele tinha ombros redondos, um
pouco recurvados. O cabelo branco, repartido de lado, era rebelde. As
sobrancelhas hirsutas também eram brancas e cada uma delas parecia o
pico de uma montanha coberta de neve. Sua testa era profundamente
vincada de rugas e ele tinha uma expressão travessa nos olhos.
Houve alguns segundos contrafeitos de silêncio e ele olhou em torno
da mesa.
— Vocês todos parecem tão nervosos — disse ele. — Relaxem! Eu não
mordo.
Sua voz era agradável e um tanto frágil, um barítono melodioso. Ele
deu uma olhada para Nora e piscou.
— Pelo menos, não frequentemente.
Ela riu e outras pessoas riram também, em sinal de polidez. Eu
também sorri, mais para dizer que lhe era reconhecido pelo esforço que
fazia para nos pôr à vontade.
— Só quando se sente ameaçado — disse ela. E sorriu, os lábios
formando um V. — Jock, você se incomoda se eu começar agora? — Por
favor.
— Jock, nós todos trabalhamos tão arduamente na renovação do
Maestro que às vezes é igualmente difícil nos afastarmos um pouco dele
para termos uma perspectiva real. Passei as últimas trinta e seis horas sem
pensar em mais nada. E é claro para mim que há diversas maneiras pelas
quais podemos atualizar, melhorar o Maestro, torná-lo mais atraente,
aumentar sua parcela do mercado, talvez mesmo de maneira significativa.
Goddard balançou a cabeça, assentindo, ao mesmo tempo em que fez
uma igreja com as mãos, unidas pelas pontas dos dedos, e consultou suas
anotações.
Ela bateu com a ponta dos dedos no notebook.
— Formulamos uma estratégia, por sinal muito boa, acrescentando
doze novas funções, atualizando o Maestro. Mas, para ser absolutamente
sincera, se estivesse sentada aí onde vocês estão, eu puxaria o fio da
tomada.
Goddard virou-se subitamente para olhar para Nora, suas grandes
sobrancelhas brancas erguidas. Todos nós a encaramos chocados. Eu não
podia acreditar que estava ouvindo aquilo. Ela estava incendiando toda a
sua equipe.
— Jock — prosseguiu —, se há uma coisa que você me ensinou, é que
às vezes um verdadeiro líder tem que sacrificar aquilo de que ele mais
gosta. Dizer isso me mata, mas simplesmente não posso ignorar os fatos.
Maestro foi ótimo para o seu tempo. Mas o tempo dele veio... e passou. É
a Regra de Goddard: se seu produto não tem o potencial para ser número
um ou número dois, você sai fora.
Goddard ficou em silêncio por uns poucos momentos. Parecia
surpreso, impressionado e, após uns segundos, balançou a cabeça com um
sorriso esperto de quem estava gostando do que ouvia.
— Nós estamos... todos estão de acordo?
Gradualmente as pessoas começaram a balançar a cabeça em sinal de
aprovação, pulando no trem em movimento que ia saindo da estação.
Chad, além do gesto de aprovação, mordia o lábio do modo como Bill
Clinton costumava fazer. Mordden balançava a cabeça vigorosamente,
como se finalmente fosse capaz de expressar sua verdadeira opinião.
Os outros engenheiros resmungaram "Sim" e "Eu concordo".
— Tenho que dizer que esta reação me surpreende — disse Goddard.
— Certamente não é o que eu esperava ver na manhã de hoje. Eu esperava
assistir à Batalha de Gettysburg. Estou impressionado.
— O que é bom para qualquer um de nós como indivíduos —
acrescentou Nora — não é necessariamente o melhor para a Trion.
Eu não podia acreditar no modo como Nora ia conduzindo sua própria
imolação, mas tinha que admirar sua astúcia, seu talento maquiavélico.
— Bem — disse Goddard —, antes que acionemos o gatilho, espere
um minuto. Você aí... não vi você balançar a cabeça.
Ele parecia estar olhando diretamente para mim.
Olhei em volta e depois para ele de novo. Definitivamente era para
mim que Goddard estava olhando.
— Você aí — ele repetiu. — Rapaz, não o vi balançando a cabeça junto
com o resto.
— Ele é novo — apressou-se a explicar Nora. — Começou a trabalhar
aqui agora.
— Qual é seu nome, rapaz?
— Adam — respondi. — Adam Cassidy — meu coração começou a
disparar. Que merda. Era como ser chamado para responder a uma
pergunta da professora na sala de aula.
Senti-me de novo na escola primária.
— Você tem algum problema com a decisão que estamos tomando
aqui, Adam? — quis saber Goddard.
— Eu? Não.
— Então você concorda em desligar o projeto da parede.
Encolhi os ombros.
— Você não... o quê?
— Eu certamente entendo a argumentação de Nora — falei.
— E se você estivesse sentado no meu lugar? — insistiu Goddard.
— Se eu estivesse no seu lugar — respirei fundo — não desligaria a
tomada.
— Não?
— E também não acrescentaria as doze funções novas.
— Não?
— Não. Só uma.
— E qual seria essa uma?
Dei uma olhada de relance na cara de Nora, que estava cor de
beterraba. Ela me olhava tão espantada quanto se um extraterrestre
estivesse saindo de dentro do meu peito. Virei-me de novo para Goddard.
— Um protocolo de segurança de dados.
As sobrancelhas de Goddard arriaram até onde foi possível.
— Segurança de dados? Por que diabos isso atrairia consumidores?
Chad pigarreou e interveio.
— Espere aí, Adam. Olhe só as pesquisas de mercado. Segurança é tipo
o quê? Setenta e cinco na lista das características desejadas pelos clientes
— pausa para um sorriso sarcástico. — A menos que você pense que o
consumidor médio seja o Austin Powers, O Homem Internacional do
Mistério.
Houve alguns risos dissimulados nos lugares mais afastados da mesa.
Sorri com bom humor.
— Não, Chad, você tem razão. O consumidor médio não tem interesse
em dados seguros. Mas não estou falando do consumidor médio. Estou
falando dos militares.
— Os militares — Goddard levantou uma das sobrancelhas.
— Adam — interrompeu Nora, com um tom de advertência na voz.
Goddard levantou a mão na direção dela.
— Não, Nora, quero ouvir isso. Os militares, é o que você diz?
Respirei fundo, tentando não aparentar o pânico que sentia.
— Olha só, os militares, a força aérea, os canadenses, os britânicos,
todo o sistema de defesa nos EUA, Reino Unido e Canadá, reformaram
recentemente seu sistema de comunicações globais, certo?
Puxei alguns recortes da Defense News e do Federal Computer Week
— revistas que, por acaso, sempre tinha no meu apartamento, claro — e os
levantei. Senti que minha mão tremia um pouco e torci para que ninguém
reparasse. Wyatt tinha me preparado para aquilo e eu esperava não estar
errando nos detalhes.
— Eles têm agora o que chamam de DMS, Defense Message System, o
sistema de correspondência segura para milhões de integrantes do sistema
de defesa desses países no mundo todo. Ele é inteiramente processado via
computadores pessoais, e o Pentágono está louco para adotar um sistema
sem fio. Imagine só que diferença faria... acesso remoto sem fio a dados e
comunicações sigilosas, com autenticação de remetentes e destinatários,
criptografia segura de ponta a ponta, proteção de dados, integridade das
mensagens. Este mercado não é de ninguém!
Goddard inclinou a cabeça, ouvindo atentamente.
— E o Maestro é o produto perfeito para esse nicho. Pequeno, robusto,
praticamente indestrutível e totalmente confiável. Deste modo, nós
transformaríamos uma qualidade negativa em uma característica positiva:
o fato de o Maestro ser datado, de usar uma tecnologia remanescente de
outra era, é um plus para os militares, já que é totalmente compatível com
seus protocolos de transferência com cinco anos de idade. Tudo o que
precisamos é acrescentar segurança. O custo é mínimo e o mercado
potencial é imenso... e estou dizendo imenso!
Goddard me encarava fixamente, embora eu não pudesse afirmar se
estava impressionado ou se achava que eu tinha perdido o juízo.
Prossegui.
— Então, em vez de enfeitar este produto velho e francamente inferior,
nós o comercializamos de novo. É envolvê-lo com uma capa de plástico
endurecido e resistente, jogar para dentro dele uma criptografia segura e
ficamos numa ótima. Seremos os donos desse nicho de mercado se nos
movermos depressa. E nunca mais vai ser preciso contar dinheiro, já que
estamos falando de centenas de milhões em rendimento a mais por ano.
— Jesus! — ouviu-se a voz de Camilletti do canto da mesa onde se
encontrava sentado. Ele fazia anotações em um bloco.
Goddard começou a balançar a cabeça afirmativamente, primeiro
devagar, depois vigorosamente.
— Muito interessante — disse ele. E depois, virando-se para Nora: —
Qual é o nome dele mesmo?
— Adam — respondeu Nora, rispidamente.
— Muito obrigado — disse ele. — Isso não é nada mau.
Não me agradeça, pensei. Agradeça a Nick Wyatt.
Nesse instante, surpreendi Nora me olhando com uma expressão de
ódio puro e indisfarçável.
34
A palavra oficial veio por e-mail antes do almoço: Goddard decretara o
adiamento da execução do Maestro. A equipe do Maestro recebeu ordens
para apresentar rapidamente uma proposta para uma pequena readaptação
e alteração da carcaça, de modo a fazer face às exigências dos militares.
Enquanto isso, o pessoal da Trion que trabalhava em Negócios com o
governo começaria a negociar um contrato com o Departamento de
Aquisição e Logística dos Sistemas de Informação da Defesa.
Tradução: uma enterrada. Não só o velho produto tinha se libertado
dos aparelhos que o mantinham vivo, como também ganhara um
transplante de coração e uma volumosa transfusão de sangue.
E a merda atingira o ventilador.
Eu estava no banheiro diante de um mictório e abrindo o zíper de
minha braguilha quando Chad entrou. Chad, eu já havia notado, parecia ter
um sexto sentido que permitia que ele soubesse que eu não conseguia
urinar diante de testemunhas. Vivia me seguindo no banheiro para falar
sobre trabalho ou esportes e sempre conseguia bloquear, com eficiência, o
meu jato. Desta vez veio direto se colocar no mictório ao lado do meu, o
rosto iluminado de contentamento, como se estivesse empolgado por me
ver. Ouvi o zíper dele sendo aberto. Minha bexiga ficou imobilizada.
Voltei a me concentrar no desenho dos azulejos acima do mictório.
— Ei — disse ele. — Grande trabalho. É assim que se sobem os
degraus da gerência. — A urina dele respingou ruidosamente no pequeno
losango no fundo do mictório. — Cristo — Chad destilava sarcasmo.
Tinha cruzado alguma linha, nem sequer fingia mais.
Pensei com meus botões: "Será que você pode ir embora para que eu
possa me aliviar? Por favor?"
— Salvei o produto — falei.
— Claro, e detonou a Nora no processo. Valeu a pena, para marcar uns
pontinhos com o presidente e ganhar mais uma entrevista cara a cara? Não
é assim que as coisas funcionam aqui, cara. Você acaba de cometer um
erro imenso.
Ele balançou, fechou o zíper e saiu do banheiro sem lavar as mãos.
Havia um recado de Nora no correio de voz me esperando, quando
retornei ao cubículo.
— Nora — falei, ao entrar na sala dela.
— Adam — a resposta veio em tom suave. — Sente-se, por favor —
ela sorria, um sorriso triste e gentil. Mau agouro.
— Nora, posso dizer...
— Adam, como você sabe, uma das coisas de que nos orgulhamos aqui
na Trion é de sempre nos esforçarmos para adequar o empregado à sua
função, a fim de nos assegurarmos de que nosso pessoal com potencial
mais elevado receba as responsabilidades que melhor se ajustem a eles.
Ela sorriu de novo e seus olhos brilharam.
— Este é o motivo pelo qual acabo de entrar com um pedido de
transferência que solicitei a Tom para despachar rapidamente.
— Transferência?
— Estamos todos incrivelmente impressionados com os seus talentos,
sua inventiva, a profundidade do seu conhecimento. A reunião desta
manhã ilustrou isto com perfeição.
Sentimos que alguém do seu calibre poderá fazer um bom trabalho nas
nossas instalações de RTP.
— RTP?
— Nosso pessoal que trabalha com o satélite. Research Triangle Park.
Fica em Raleigh-Durham, Carolina do Norte.
— Carolina do Norte? — eu estava ouvindo direito o que Nora falava?
— Você está dizendo que vai me transferir para a Carolina do Norte?
— Adam, do jeito como você fala fica parecendo que é a Sibéria. Você
já esteve lá? É uma região muito bonita.
— Mas eu não posso me mudar, tenho responsabilidades aqui, tenho
que...
— O pessoal da divisão de Relocação dos Empregados coordenará tudo
para você. Pagarão todas as suas despesas, tudo o que for razoável, claro.
Já tomei as primeiras providências com o RH. Qualquer mudança sempre
é algo um tanto perturbador, é óbvio, mas eles conseguem fazer com que
tudo seja surpreendentemente indolor.
O sorriso dela alargou-se.
— Você vai adorar aquilo lá, e eles também vão gostar muito de você.
— Nora — falei —, Goddard me perguntou o que eu achava
sinceramente. Além do mais, sou um grande fã de tudo que você fez com a
linha Maestro, não ia negar isso. A última coisa que eu queria era irritar
você.
— Irritar-me? Olha, Adam, pelo contrário, fiquei agradecida pelo seu
input. Só queria que você tivesse compartilhado suas ideias comigo antes
da reunião. Mas isso é água que já passou debaixo da ponte. Estamos nos
lançando em cima de coisas maiores e melhores. Da mesma forma que
você!
A transferência deveria ter lugar dentro das próximas três semanas.
Senti-me completamente apavorado. As instalações da Carolina do Norte
eram estritamente administrativas, sem contato com clientes. Um milhão
de quilômetros de distância da área de P&D. Eu seria inútil para Wyatt lá.
E ele me culparia por ter ferrado tudo. Eu praticamente já podia ouvir o
deslizar da lâmina da guilhotina nos seus trilhos.
O curioso, porém, foi que só pensei no meu pai quando saí da sala de
Nora e, nessa altura, a coisa me atingiu de verdade. Eu não podia me
transferir. Não podia deixar o velho ali sozinho. Mas como poderia recusar
a transferência arranjada por Nora? A menos que eu apelasse para agravar
a intensidade do conflito e voasse para cima dela, ou pelo menos tentasse,
o que certamente iria prejudicar a mim mesmo — que escolha eu tinha? Se
eu me recusasse a ir para a Carolina do Norte, teria que me demitir da
Trion e então a desgraça seria completa.
Era como se todo o edifício estivesse girando lentamente: eu tinha que
me sentar, que pensar. Quando passei pela sala de Noah Mordden, ele
acenou com o dedo para me chamar.
— Ah, Cassidy — disse ele. — O Julien Sorel da Trion. Seja bom com
madame de Renal.
— Como? — eu não tinha ideia do que ele estava falando.
Na sua típica camisa havaiana e de grandes óculos escuros, Noah
parecia cada vez mais uma caricatura de si mesmo. Seu telefone IP tocou,
mas naturalmente não se tratava de um toque comum. Era um arquivo
sonoro cortado de Suffragette City, de David Bowie: Oh wham bam thank
you ma'am!
— Suspeito que você tenha impressionado Goddard — disse ele. —
Mas, ao mesmo tempo, você também deve ter cuidado para não
antagonizar indevidamente seu superior imediato. Esqueça Stendahl. Pode
ser que você deva ler Sun Tzu — ele franziu a testa. — O rabo que você
vier a salvar pode ser o seu próprio.
A sala de Mordden era decorada com todo tipo de coisas estranhas.
Havia um tabuleiro de xadrez onde uma jogada fora cuidadosamente
representada, um pôster de H. P. Lovecraft e uma boneca grande com
cabelos louros cacheados. Apontei, curioso, para o tabuleiro.
— Tal-Botvinnik, 1960 — disse ele, como se tivesse algum significado
para mim. — Uma das maiores jogadas de xadrez de todos os tempos. De
qualquer modo, minha teoria é que não se fazem sítios contra cidades
protegidas por muralhas se esses sítios podem ser evitados. Além disso, e
agora não é Sun Tzu e sim a sabedoria de Domiciano, o imperador
romano, se você atacar um rei, deve matá-lo. Mas você desfechou um
ataque contra Nora sem providenciar antes o apoio aéreo necessário.
— Eu não tencionava atacar.
— Seja o que for que tentou, houve um sério erro de cálculo, meu
amigo. Ela certamente o destruirá. Lembre-se, Adam. O poder corrompe.
E o PowerPoint corrompe de modo absoluto.
— Ela está me transferindo para o Research Triangle.
Ele ergueu uma das sobrancelhas.
— Podia ter sido muito pior, você sabe. Já esteve em Jackson,
Mississippi?
Eu já havia estado e gostara de lá, mas me sentia na fossa e não me
atraía a ideia de uma longa conversa com aquele tipo estranho. Ele me
irritava profundamente.
Apontei a boneca feia na prateleira e perguntei:
— É sua?
— Love Me Lucille — respondeu ele. — Um imenso fracasso que foi,
tenho orgulho em dizer, da minha iniciativa.
— Você fabricou... bonecas?
Ele estendeu o braço e apertou a mão da boneca, que voltou à vida.
Seus olhos assustadores e realistas se abriram e ficaram semicerrados,
com movimentos bem parecidos com os de um ser humano. A boquinha de
arco de cupido abriu-se e transformou-se em uma expressão assustadora.
— Você nunca viu uma boneca igual a esta.
— E não sei se vou querer vê-la de novo — retruquei.
Mordden permitiu-se uma leve indicação de sorriso.
— Lucille dispõe de uma gama completa de expressões faciais
humanas. Ela é totalmente robótica e, na verdade, muito impressionante.
Choraminga, fica mal-humorada e aborrecida, como um bebê de verdade.
Tem que ser posta para arrotar. Ela dá golfadas, arrulha e até mesmo urina
na fralda. Exibe sinais alarmantes de cólica. Faz tudo exceto ter brotoeja.
Tem localização de fala, o que significa que olha para quem quer que lhe
dirija a palavra. E você a ensina a falar.
— Eu não sabia que você fazia bonecas.
— Ei, posso fazer o que bem entender. Sou um Engenheiro Eminente
da Trion. Inventei essa boneca para minha sobrinha, que se recusou a
brincar com ela. Disse que era assustadora.
— É um tanto feia — sugeri.
— A escultura foi mal feita — ele se virou para a boneca e falou
lentamente: — Lucille? Diga oi para o nosso presidente.
Lucille virou a cabeça vagarosamente para Mordden. Era audível,
embora baixo, o zumbido das engrenagens. Ela piscou, fez outra cara feia
e começou a falar com a voz grave do James Earl Jones: "Coma meu short,
Goddard."
— Nossa! — exclamei.
Lucille virou-se lentamente para mim, piscou de novo e sorriu
docemente.
— A tecnologia na barriga desse elfo pavoroso estava muito à frente
de seu tempo — disse Mordden. — Desenvolvi um sistema operacional
completamente multitarefa que opera com um processador de 8 bits.
Inteligência artificial no estado da arte usando um código minuciosamente
compilado. A arquitetura é bem engenhosa. Três ASICs independentes na
sua barriga gorda, desenhados por mim.
Eu sabia que um ASIC era um microchip para aplicação específica que
faz uma porção de coisas diferentes em computadores especialmente
desenhados.
— Lucille? — disse Mordden, e a boneca virou-se para ele,
pestanejando. — Vai se foder, Lucille.
Os olhos da boneca estreitaram-se, a boca virou para baixo e ela emitiu
um som angustiado. Uma única lágrima escorreu-lhe pela face. Mordden
tirou a parte de cima do seu pijama, expondo uma telinha retangular de
cristal líquido.
— Mamãe e papai podem programá-la e ver suas configurações nesta
janelinha aqui. Um dos ASICs comanda esta telinha, outro comanda o motor
e o terceiro opera a fala.
— Incrível. Tudo isso para uma boneca.
— Correto. E aí a companhia de brinquedos com que nos associamos
ferrou tudo na hora do lançamento. Que isso lhe sirva de lição. O
acondicionamento foi terrível. Eles não despacharam a boneca senão na
última semana de novembro, o que representava um atraso de pelo menos
oito semanas... mamãe e papai a essa altura já tinham feito sua lista de
Natal. Além disso, o preço era revoltante, e nesta economia mamãe e papai
não iam querer gastar mais de cem dólares com a porra de um brinquedo.
Claro que os gênios do marketing na divisão do Consumidor e Educacional
da Trion acharam que eu tinha inventado um sucesso igual ao da Beanie
Baby, de sorte que estocamos diversas centenas de milhares desses
microchips, fabricados por nós na China a um custo enorme, e que não
servem para mais nada. O que significa que a Trion ficou com um encalhe
de quase meio milhão de bonecas horrorosas que ninguém queria,
juntamente com trezentas mil partes extras esperando para serem
montadas, e que tudo isso se encontra, até o dia de hoje, em um armazém
situado em Van Nuys.
— Puxa vida...
— Não há problema. Ninguém pode tocar em mim. Tenho kriptonita.
Ele não explicou o que queria dizer com isso, mas eu não podia me
esquecer de que estava lidando com Noah Mordden, um sujeito no limite
da insanidade, e não insisti.
Retornei ao meu cubículo, onde descobri que tinha diversas
mensagens. Quando toquei a segunda, reconheci o dono da voz com um
sobressalto, antes mesmo de ele se identificar.
— Sr. Cassidy — disse a voz estridente. — Eu realmente... Oh, aqui
quem fala é Jock Goddard. Fiquei muito impressionado com suas
observações na reunião de hoje e gostaria de saber se pode dar uma
passada na minha sala. Acha que pode ligar para minha assistente, Flo, e
marcar alguma coisa?
Parte Quatro

COMPROMETIMENTO

COMPROMETIMENTO: a descoberta de um agente, casa segura


ou técnica de inteligência, por alguém do outro lado.

— The Dictionary of Espionage


35
A sala de Jock Goddard não era maior que a de Tom Lundgren ou de
Nora Sommers. Esta percepção me afetou intensamente. A droga da sala
do presidente da Trion talvez fosse um ou dois metros maior que o meu
patético cubículo.
Ia passando direto por ela, certo de que estava no lugar errado. Mas o
nome — AUGUSTINE GODDARD — em uma placa de bronze fixa na porta era
o dele, e o próprio Goddard estava do lado de fora, conversando com sua
assistente. Vestia uma de suas típicas camisetas de gola alta, sem paletó, e
usava óculos de leitura de aros negros.
A mulher com quem conversava, e que presumi ser Florence, era uma
negra imponente com um magnífico costume prata-acinzentado. Tinha
faixas brancas dos dois lados da cabeça e parecia temível.
Ambos levantaram a cabeça quando me aproximei. Ela não fazia ideia
de quem eu era, e Goddard precisou de um minuto para se lembrar de mim
— já se passara um dia depois da grande reunião — e disse:
— Oh, sr. Cassidy, que bom, muito obrigado por ter vindo. Posso lhe
servir alguma coisa para beber?
— Estou bem, obrigado — disse, mas me lembrei do conselho da dra.
Bolton e mudei de ideia.
— Bem, talvez um copo d'água.
De perto, ele parecia ainda menor, com os ombros mais recurvados.
Sua famosa cara de duende — os lábios finos, os olhos brilhantes —
parecia exatamente as máscaras que uma das unidades de negócios tinha
mandado fazer para a festa de Halloween da companhia no ano anterior. Eu
vira uma delas pendurada na parede do cubículo de alguém. Todo mundo
naquela unidade usava uma e recitava um texto satírico ou algo assim.
Flo entregou a Jock uma pasta de papel manilha — pude ver que era
minha ficha do RH — e ele lhe disse para não passar nenhum telefonema e
me fez entrar na sua sala. Eu não tinha ideia do que queria, e por isso
minha consciência culpada entrou em parafuso. Quer dizer, eu não podia
me esquecer de que andava me esgueirando pela corporação do cara,
fazendo trabalhos de espionagem. Tinha sido cuidadoso, claro, mas
deixara passar alguns erros palmares.
Ainda assim, poderia mesmo ser algo de ruim? O presidente nunca
brande o machado pessoalmente, sempre tem seus esbirros para fazer o
serviço. Só que eu não conseguia deixar de pensar. Sentia-me
ridiculamente nervoso e não conseguia disfarçar.
Ele abriu um frigobar escondido dentro de um armário e me passou
uma garrafa de Aquafina. Depois sentou-se à mesa e, imediatamente,
recostou-se na cadeira de espaldar alto forrada de couro. Fiquei com uma
das duas cadeiras do lado contrário da mesa. Olhei em torno e vi uma foto
de uma mulher de aparência nada glamourosa que presumi fosse sua
esposa, já que os dois eram mais ou menos da mesma idade. Era muito
branca, feia e incrivelmente enrugada (Mordden a chamava de shar-pei).
Usava um colar ao estilo de Bárbara Bush, com três fios de pérolas,
provavelmente para esconder as barbelas debaixo do queixo. Perguntei-me
se Nick Wyatt, tão consumido de inveja biliosa de Jock Goddard, teria
ideia da pessoa para a qual Augustine Goddard voltava para casa todas as
noites. As garotas de Wyatt eram trocadas ou submetidas a rodízio a cada
duas ou três noites e todas tinham que ter tetas como a dessas modelos das
páginas centrais das revistas masculinas; era uma das imposições para
serem admitidas no emprego.
Uma prateleira era inteiramente tomada por antigos modelos de carros
feitos de lata, conversíveis de rabo de peixe e alguns antigos caminhões de
leite da Divco. Modelos dos anos 40 e 50, provavelmente quando Jock
Goddard era menino ou rapaz.
Ele me viu olhando para os modelos e perguntou:
— Qual é o seu carro?
— Carro? — por um momento não entendi aonde ele queria chegar. —
Ah, sim, um Audi A6.
— Audi — ele repetiu, como se fosse uma palavra estrangeira. Ok,
talvez seja mesmo. — Você gosta?
— É ok.
— Eu diria que sua preferência seria por um Porsche 911 ou pelo
menos um Boxter, ou algo assim. Um sujeito como você.
— Na verdade, eu não sou fanático por carros — falei. Foi uma
resposta calculada, admito. Divergindo deliberadamente da maioria. A
consigliere de Wyatt, Judith Bolton, dedicara parte de uma de suas sessões
para falar a respeito de carros, para que eu pudesse me enquadrar na
cultura da Trion. Mas o meu instinto me dizia agora que em uma conversa
cara a cara era melhor evitar inteiramente o assunto.
— Pensei que todos na Trion gostassem de carros — disse Goddard.
Pude ver que estava sendo maliciosamente astuto, fazendo um comentário
sarcástico sobre a subserviência evidente dos seus seguidores no culto aos
automóveis. Gostei daquilo.
— Pelo menos os ambiciosos — comentei, sorrindo.
— Bem, você sabe, os carros são minha única extravagância e há uma
razão para isso. Lá pelos anos 70, quando a Trion passou a ser uma
empresa de capital aberto e eu comecei a ganhar tanto dinheiro que não
sabia o que fazer com ele, saí um dia e comprei um barco, de sessenta e
um pés, e fiquei satisfeitíssimo. Isto até o dia em que vi um de setenta pés
na marina. Nove malditos pés mais comprido. E senti aquela pontada, você
entende. Meus instintos competitivos foram estimulados. De repente
comecei a sentir... oh, eu sei que é infantil, mas não posso fazer nada,
preciso ter um barco maior. Sabe o que fiz então?
— Comprou um barco maior.
— Nada disso. Poderia ter comprado, claro, sem problema, mas
sempre haveria outro burro com um barco maior. E aí então, quem seria
realmente o burro? Eu. Não dá para ganhar desse modo.
Balancei a cabeça em sinal de aprovação.
— Assim, vendi o maldito barco. Quer dizer, no dia seguinte. A única
coisa que mantinha aquela embarcação à tona era fibra de vidro e ciúme.
Ele deu uma risada.
— Esta é a razão desta sala pequena. Imaginei que se o escritório do
chefe fosse igual ao de qualquer outro gerente, pelo menos não teríamos
muita inveja de metros quadrados aqui na companhia. As pessoas sempre
vão competir para ver quem é a maior — vamos nos concentrar em outra
coisa. Então, Elijah, você foi contratado recentemente.
— O nome é Adam.
— Droga, cometo o mesmo erro a toda hora. Desculpe, Adam. Adam.
Decorei.
Ele adiantou-se um pouco, pôs os óculos de leitura e deu uma olhada
na minha ficha.
— Contratamos você da Wyatt, onde salvou o Lucid.
— Não salvei o Lucid, senhor.
— Não precisa ter falsa modéstia aqui.
— Não estou sendo modesto e sim, preciso.
Ele sorriu, como se eu o divertisse.
— Como é a Trion comparada com a Wyatt? Oh, esqueça que
perguntei isso. De qualquer maneira, eu não ia querer que você
respondesse mesmo.
— Tudo bem. Tenho satisfação em responder a essa pergunta —
garanti, sem rodeios. — Gosto daqui. É empolgante. Gosto das pessoas.
Pensei por uma fração de segundo, me dando conta de como aquilo
parecera uma lisonja, uma mentira completa.
— Bem, da maioria delas — retifiquei.
Os olhos de duende se estreitaram.
— Você aceitou o primeiro pacote salarial que oferecemos. Um cara
jovem com as suas credenciais, o seu currículo, podia ter negociado para
ganhar mais.
Dei de ombros.
— A oportunidade me interessou.
— Talvez, mas isso me diz que você estava ansioso para dar o fora de
lá.
Aquilo estava me deixando nervoso e, de qualquer modo, eu sabia que
Goddard ia querer que eu fosse discreto.
— A Trion é mais do meu jeito, creio.
— Você está tendo aqui a oportunidade que queria?
— Claro.
— Paul, meu diretor financeiro, me falou sobre a sua intervenção no
GoldDust. Você obviamente tem suas fontes.
— Permaneço em ligação com meus amigos.
— Adam, gosto da sua ideia para aproveitar o Maestro, mas me
preocupo com o acréscimo de tempo para incluir nele o protocolo de
segurança de criptografia. O Pentágono vai querer para ontem protótipos
em condições de serem experimentados.
— Não é problema — afirmei. Os detalhes ainda estavam frescos na
minha cabeça, como se eu tivesse estudado para um exame final de
química orgânica. — A Kasten Chase já desenvolveu o RASP, protocolo de
segurança para acesso a dados. Eles já têm o cartão de criptografia
Fortezza e o modem seguro Palladium. As soluções de hardware e
software já foram desenvolvidas. Talvez isso represente dois meses a mais
para incorporar no Maestro. Muito antes de sermos contemplados com o
contrato, já teremos condições de fazer com que ele funcione.
Goddard sacudiu a cabeça, parecendo confuso.
— Essa droga de mercado mudou por completo. Tudo agora é e-isto e
i-aquilo, e todas as tecnologias são convergentes. É a era do tudo-em-um.
Os consumidores não querem uma TV e um VCR e um fax e um
computador e um estéreo e um telefone e o que mais for.
Ele me olhou com o canto do olho. Obviamente ia apresentar a ideia
para ver o que eu pensava.
— Convergência é o futuro, você não acha?
Fiz uma cara de cético, e respirei fundo antes de responder. — A
resposta completa é... não.
Após alguns segundos de silêncio, ele sorriu. Eu tinha feito o trabalho
de casa. Lera a transcrição de algumas observações informais que Goddard
fizera em uma dessas conferências sobre futuro da tecnologia, em Palo
Alto, um ano atrás. Ele desandara a vociferar contra a mania de complicar
cada vez mais um projeto com o acréscimo de mais e mais funções, coisa
que ele chamava de "exagero funcional", e que decorei, com a ideia de
usar quando estivesse na Trion.
— Como assim?
— É como se fosse uma inflamação do número de funções do projeto.
Reforçar os cromados às custas da simplicidade e da elegância. Acho que
todos nós já estamos cansados de apertar trinta e seis botões em sequência
em vinte e dois controles remotos só para assistir ao jornal das oito na
televisão. Acho que já existe um monte de pessoas de saco cheio por ter no
painel do carro um aviso de VERIFIQUE MOTOR. O cara não pode
simplesmente abrir o capô e dar uma olhada e ainda por cima vai ter que
levar seu carro a um mecânico especialista em alguma coisa que tem um
computador para dar diagnósticos e um grau de engenharia do MIT.
— Mesmo que você seja tarado por carros e motores — disse Goddard,
com um sorriso irônico.
— Mesmo assim. Além disso, toda essa coisa de convergência é um
mito, uma palavra clichê, que está na moda e que é perigosa se você levá-
la a sério. O faxfone da Canon foi um fracasso — um fax medíocre e um
telefone ainda pior. Você não vê a máquina de lavar roupa convergindo
com a de secar, ou o micro-ondas convergir com forno a gás. Não quero
uma combinação de micro-ondas-fogão-geladeira-fogão-elétrico-televisão
se quero apenas um troço para conservar meus refrigerantes gelados.
Cinquenta anos depois que o computador foi inventado, ele convergiu com
o quê? Nada. No meu modo de ver, essa bobagem de convergência vai
acabar sendo de novo a antílebre.
— O quê?
— Antílebre. Criação de um taxidermista louco, feita de um antílope
com uma lebre. Pode ser vista em cartões-postais em todo o Oeste.
— Você não mede as palavras, mede?
— Não, quando estou convencido de que tenho razão, senhor. — Ele
deixou a pasta em cima da mesa e recostou-se de novo. — O que me diz de
uma visão a três mil metros?
— Como?
— A Trion como um todo. Alguma opinião forte?
— Algumas, claro.
— Vamos ouvi-las.
Wyatt vivia encomendando análises competitivas da Trion e eu
guardara algumas na memória.
— Bem, Sistemas Médicos Trion é um portfólio bem robusto, com as
melhores tecnologias em ressonância magnética, medicina nuclear e
ultrassom, mas um pouco fraco em serviços como gerenciamento de
informações sobre os pacientes e administração de recursos.
Ele sorriu e balançou a cabeça.
— Concordo. Continue.
— Soluções de Negócios Trion é uma unidade que obviamente é uma
porcaria... eu não tenho que lhe dizer isso, mas você tem lá as peças
necessárias para algumas sérias penetrações no mercado, especialmente
em serviços de voz sobre IP e serviços de dados ethernet. Sim, eu sei que a
fibra ótica está no fundo do poço agora, mas os serviços de banda larga são
o futuro, de modo que nós temos que aguentar firme. A divisão
aeroespacial passou por dois anos péssimos, mas ainda tem um magnífico
portfólio de produtos com tecnologia embutida.
— E a eletrônica do consumidor?
— Obviamente é nossa competência básica, e também é o motivo pelo
qual me transferi para cá. Quer dizer, os nossos aparelhos de DVD topo de
linha batem os da Sony com os pés nas costas. Os telefones sem fio são
fortes, sempre foram. Nossos celulares são formidáveis — nós dominamos
o mercado. Temos uma marca forte — ao ponto que podemos cobrar trinta
por cento a mais por nossos produtos só porque exibem a marca Trion.
Mas há um número grande demais de pontos fracos.
— Quais?
— Bem, é uma maluquice não termos um verdadeiro adversário do
Blackberry. Aparelhos de comunicação sem fio deveriam ser nosso
playground. Em vez disso, é como se estivéssemos cedendo terreno para a
RIM, Handspring e Palm. Precisamos de alguns aparelhos sem fio
modernos e sofisticados.
— Estamos trabalhando nisso. Temos um produto bem interessante no
forno.
— É bom saber disso. Penso que estamos realmente perdendo a barca
da tecnologia e produtos para transmissão de música e vídeo digital pela
Internet. Precisamos realmente focalizar em P&D nessa parte, talvez
formando parcerias. Imenso potencial para geração de lucros.
— Acho que você está certo.
— E, peço desculpas por falar nisso, mas acho patético não termos
uma linha de produtos seriamente voltada para crianças. Olha só a Sony —
o console de jogos PlayStation deles pode fazer a diferença entre tinta
vermelha e tinta preta por muitos anos. A demanda por computadores e
aparelhos eletrônicos para o lar parece declinar a cada dois anos, certo?
Estamos lutando contra fabricantes sediados na Coreia do Sul e Taiwan,
empenhamo-nos em uma batalha de preços em torno de monitores de
cristal líquido, aparelhos de vídeo digital e telefones celulares — isto é um
fato da vida. Assim, deveríamos estar vendendo para crianças, porque
crianças não se incomodam com recessões. A Sony tem seu PlayStation, a
Microsoft o Xbox, a Nintendo o GameCube, mas o que é que nós temos
para videogames que funcionem na televisão? Nada vezes nada. É uma
falha importante em uma linha de produtos orientados para o consumidor.
Notei que ele tinha se sentado na vertical de novo, olhando para mim
com um sorriso enigmático no rosto enrugado.
— Como você se sentiria se tivesse que preparar a revisão do Maestro?
— Nora é responsável por isso. Para ser sincero, eu não me sentiria à
vontade.
— Você se reportaria a ela.
— Não sei se ela gostaria disso.
O sorriso dele ganhou um ar irônico.
— Nora se recupera. Ela sabe de que lado seu pão tem manteiga.
— É evidente que não vou lutar contra isso, senhor, mas pode ser que
prejudique o moral.
— Bem, então, você gostaria de trabalhar para mim?
— Já não trabalho?
— Quero dizer aqui, no sétimo andar. Assistente especial do presidente
para a estratégia de novos produtos. Subordinação indireta à unidade de
Tecnologia Avançada. Com direito a uma sala, logo ali no hall. Mas não
maior que a minha, você entende. Interessado?
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Achei que fosse
explodir de empolgação e nervosismo.
— Claro, claro. Ligando-me diretamente ao senhor?
— Exatamente. E então, fechamos negócio?
Abri um sorriso lento. Desgraça pouca é bobagem e essa coisa toda.
— Acho que mais responsabilidade pede mais dinheiro. O senhor não
acha?
Ele riu.
— Oh, é mesmo?
— Eu gostaria de ganhar os cinquenta mil adicionais que eu deveria ter
pedido quando vim trabalhar aqui. E gostaria também de mais quarenta
mil em opções de ações.
Ele riu de novo, um robusto ho-ho-ho digno de Papai Noel.
— Você tem coragem, cara.
— Muito obrigado.
— Vou lhe dizer uma coisa. Não vou lhe dar mais cinquenta mil. Não
acredito em mudanças graduais. Vou duplicar o seu salário. Mais os seus
quarenta mil de ações.
Desse modo você se sentirá pressionado de todos os modos para se
matar de trabalhar para mim.
Para não ficar boquiaberto, mordi o lado de dentro do lábio. Jesus.
— Onde você mora? — ele perguntou.
Eu falei.
Ele sacudiu a cabeça.
— Não é apropriado para alguém do seu nível. Além disso, com o
número de horas que vai trabalhar para mim, não o quero dirigindo
quarenta e cinco minutos de manhã e mais quarenta e cinco de noite. Vai
trabalhar até bem tarde, portanto o quero morando por perto. Por que não
se muda para um daqueles apartamentos no Harbor Suites? Você pode
fazer face à despesa agora. Temos uma senhora que trabalha com o e-staff
da Trion, especializada em locação corporativa. Ela vai aparecer com
alguma coisa boa.
Engoli em seco.
— Parece ok — disse, tentando conter o riso nervoso.
— Agora, eu sei que você disse que não é fanático por carros, mas esse
Audi... Tenho certeza de que é muito bom, mas por que não arranja algo
que seja também divertido? Eu acredito que um homem deve amar o seu
carro. Pense nisso, está bem? Quer dizer, não vá fazer uma loucura nem
nada, mas consiga algo divertido. Flo pode tomar as providências.
Ele estava dizendo que ia me dar um carro? Meu Deus do céu! Jock
Goddard levantou-se.
— Então, posso contar com você? — ele estendeu a mão. Apertei a
mão dele.
— Não sou idiota — respondi, afável.
— Não. Isto é óbvio. Bem-vindo à equipe, Adam. Estou ansioso para
trabalhar com você.
Saí cambaleando da sala e me dirigi para a bancada de elevadores, a
cabeça nas nuvens. Mal conseguia caminhar direito.
Foi só então que me dei conta do motivo pelo qual me encontrava na
Trion, e qual era o meu verdadeiro trabalho — como chegara ali, na sala
de Goddard. Eu acabara de ser promovido muito, mas muito além de
minha capacidade.
Não que eu ainda soubesse qual era a minha capacidade.
36
Não tive que dar a noticia para ninguém: o milagre do e-mail e da
mensagem instantânea já tinha cuidado de tudo para mim. Na hora em que
voltei para o meu cubículo, a notícia já havia se espalhado por todo o
departamento. Evidente que Goddard era um homem de ação imediata.
Nem bem eu tinha chegado ao banheiro para um xixi muito
necessitado, e Chad apareceu e ocupou o mictório ao meu lado.
— Quer dizer então que os boatos são verdadeiros, hem, cara?
Olhei impacientemente para os azulejos da parede. Eu estava
realmente apertado.
— Que boatos?
— Considero que esteja na hora das congratulações. — Oh, isso. Não,
congratulações agora seriam prematuras. Mas obrigado, assim mesmo.
Fixei os olhos na pequena descarga automática que vinha junto com o
mictório American Standard. Gostaria de saber quem teria inventado
aquilo, se essa pessoa havia ficado rica e se sua família fazia piadinhas a
respeito da fortuna da família ter começado no toalete. Eu só queria que
Chad fosse embora.
— Eu subestimei você — disse ele, liberando um jato vigoroso.
Enquanto isso meu rio Colorado interno ameaçava a represa de Hoover.
— É mesmo? — perguntei.
— Oh, sim. Eu sabia que você era bom, mas não sabia até que ponto.
Não lhe dei crédito.
— Tenho sorte — falei. — Ou talvez seja apenas um sujeito que fala
muito, e Goddard goste disso.
— Não, acho que não. Você tem algum tipo de ligação mental com o
velho. Tipo, você sabe que botões tem que apertar. Aposto como os dois
nem precisam falar. O que mostra como você é bom. Estou impressionado,
cara. Não sei como foi que fez, mas estou seriamente impressionado.
Ele fechou o zíper e deu um tapa no meu ombro.
— Vê se me conta o segredo, certo? — ele não esperou pela resposta.
Quando voltei ao meu cubículo, encontrei Noah Mordden lá dentro
inspecionando os livros em cima do armário. Tinha na mão um pacote
embrulhado para presente, que, pelo formato, devia ser um livro. —
Cassidy — disse ele. — Nosso Widmerpool esperto-demais-para-estudar.
— Como? — cara, o sujeito gostava de referências enigmáticas.
— Quero que você tenha isso.
Agradeci e desembrulhei o pacote. Era um livro, velho e cheirando a
mofo. O título, Sun Tzu sobre a arte da guerra, estava impresso na capa de
pano.
— É a tradução feita por Lionel Giles em 1910 — disse ele. — A
melhor, na minha opinião. Não é uma primeira edição, o que seria
impossível, mas pelo menos é uma edição bem antiga.
Fiquei comovido.
— Quando você teve tempo para comprar isso?
— Semana passada. Na verdade, foi uma compra online. Não tive a
intenção de que viesse a ser um presente de despedida, mas aí está você.
Pelo menos agora não terá desculpa.
— Muito obrigado. Vou ler.
— Leia mesmo, por favor. Suspeito de que precisará dele cada vez
mais. Lembre-se do kotowaza japonês: "O prego que fica com a cabeça de
fora vai ser enterrado com uma martelada." Você tem sorte por estar
saindo da órbita de Nora, mas há grande perigo em subir rápido demais em
qualquer organização. Os falcões podem voar alto, mas os esquilos não são
sugados pelos motores a jato.
Balancei a cabeça.
— Não vou me esquecer disso — falei.
— A ambição é uma qualidade útil, mas você deve cobrir seus rastros
— disse Noah Mordden.
Ele definitivamente estava dando uma indireta — claro que me vira
sair da sala de Nora — e aquilo me deixou morrendo de medo. Mordden
estava brincando comigo, sadicamente, como um gato com um rato.
Nora me chamou à sala dela por e-mail e eu me preparei para uma
esculhambação daquelas.
— Adam — exclamou ela quando me aproximei. — Acabo de saber da
notícia.
Ela estava sorrindo.
— Sente-se, sente-se. Sinto-me tão feliz por você. E talvez não devesse
revelar isso, mas estou deleitada com o fato deles terem levado a sério
meu entusiasmo por você. Porque, como você deve saber, nem sempre eles
ouvem.
— Eu sei.
— Mas eu assegurei a eles que se fizessem isso não iriam se
arrepender. Adam é perfeito, eu disse a eles, andará o quilômetro a mais
que tiver que andar. Vocês têm a minha palavra. Eu conheço Adam.
É sim, pensei, você pensa que me conhece. Não faz a menor ideia.
— Eu o vi preocupado com a transferência e por isso dei uns
telefonemas — disse ela. — Sinto-me tão feliz por ver que as coisas estão
dando certo para você.
Não respondi. Estava ocupado demais pensando no que Wyatt diria
quando soubesse.
37
— Putisgrila! — exclamou Nicholas Wyatt.
Por uma fração de segundo sua concha polida, contida e bronzeada de
arrogância abriu-se. Ele me dirigiu um olhar que parecia quase de respeito.
Quase. De qualquer forma, aquele era um Wyatt inteiramente novo, e eu
gostei de conhecê-lo.
— Você está me sacaneando — ele não tirou os olhos de cima de mim.
— É melhor que não seja brincadeira.
Finalmente ele desviou o olhar e foi um alívio.
— Isso é ab-so-lu-ta-men-te inacreditável.
Estávamos sentados em seu avião particular, mas o avião estava
parado. Aguardávamos que sua última namoradinha aparecesse para que
os dois levantassem voo para a Grande Ilha do Hawaii, onde ele tinha uma
casa no resort de Hualalai. Éramos três: eu, Wyatt e Arnold Meacham. Eu
nunca pusera o pé em um avião particular antes, e aquele era uma
maravilha, o Gulfstream G-IV, interior da cabine com quase quatro metros
de largura e vinte de comprimento. Nunca tinha visto tanto espaço vazio
em uma aeronave. Praticamente podia-se jogar futebol ali dentro. Não
mais que dez poltronas, uma sala de reuniões independente e dois imensos
banheiros com chuveiro.
Acredite em mim, eu não ia para o Hawaii. Aquilo era só uma
provocação. Meacham e eu saltaríamos antes que o avião fosse a algum
lugar. Wyatt usava uma camisa preta de seda. Torci para que ele tivesse
câncer de pele.
Meacham sorriu para Wyatt e disse baixinho:
— Brilhante ideia, Nick.
— Tenho que dar o crédito à Judith — disse Wyatt. — A ideia foi dela
— ele sacudiu a cabeça lentamente. — Mas duvido que até ela pudesse ter
antecipado isso.
Ele pegou o celular e digitou duas teclas.
— Judith, nosso rapaz está trabalhando diretamente para Mister Big
em pessoa. O Grande Kahuna. Assistente executivo especial para o
Presidente.
Ele parou e sorriu para Meacham.
— Não estou brincando com você.
Outra pausa.
— Judith, minha querida, quero que você dê um curso relâmpago para
o nosso jovem aqui.
Pausa.
— Certo, bem, obviamente ele é prioridade máxima. Quero que Adam
conheça aquele sujeito pelo avesso e pelo direito. Quero que ele seja o
melhor assistente especial que ele já teve. Certo.
Wyatt terminou a ligação com um bip.
Olhando de novo para mim, ele disse:
— Você acaba de tirar seu rabo da reta, meu amigo. Arnie?
Meacham parecia estar esperando sua deixa.
— Nós examinamos todos os nomes do AURORA que você nos deu —
disse ele, em tom sombrio. — Nem um único filho da puta acusou alguma
coisa.
— Como assim? — perguntei.
Meu Deus, como eu odiava aquele sujeito.
— Sem número da Previdência, sem nada. Não brinque com a gente,
camaradinha.
— Do que você está falando? Baixei aqueles nomes diretamente do
diretório da Trion no site.
— É, pode ser. Os nomes usados na divisão de pesquisa são
obviamente nomes de código. Para se ver como essa gente está bem
escondida... não usam nem mesmo os verdadeiros nomes no site da Trion.
Nunca ouvi falar de uma coisa dessas.
— Deve haver algo errado — falei, sacudindo a cabeça.
— Você está sendo sincero conosco? — perguntou Meacham. —
Porque se não estiver, que Deus me ajude, nós acabamos com você.
Ele olhou para Wyatt.
— Ele ferrou totalmente os registros de pessoal... não pegou nada.
Nada vezes nada.
— Os registros sumiram, Arnold — retruquei aos gritos. —
Removidos. Eles foram supercautelosos.
— O que é que você tem com a garota? — interveio Wyatt.
Sorri.
— Vou ver a garota na semana que vem.
— Tipo essas coisas de namorado e namorada?
Dei de ombros.
— A mulher está interessada em mim. Ela trabalha no projeto AURORA.
Trata-se de um link direto com o trabalho das unidades de recursos
especiais.
Para minha surpresa, Wyatt limitou-se a balançar a cabeça.
— Ótimo.
Meacham pareceu sentir para que lado o vento estava soprando. Até
então ele estava fixado naquela coisa de eu ter estragado a operação RH e
dos nomes constantes da rede interna da Trion Web serem, por algum
motivo, falsos. Quando seu patrão, no entanto, passou a se concentrar no
que estava dando certo, no surpreendente desenrolar dos acontecimentos,
Meacham não quis abandonar a rigidez.
— Você vai ter acesso agora ao escritório do Goddard — disse. — Há
inúmeros dispositivos de espionagem que vai poder plantar.
— Isso é tão absolutamente inacreditável — disse Wyatt, ainda
espantado.
— Não creio que devamos pagar a ele o salário que ganhava
antigamente aqui na Wyatt — disse Meacham. — Não com o que está
ganhando na Trion agora. Puxa vida, soltamos uma maldita pipa que está
ganhando mais do que eu.
Wyatt pareceu achar graça.
— Nada disso, nós temos um trato.
— De que foi que você me chamou? — perguntei a Meacham.
— Acho que há um risco de segurança ao transferirmos fundos
corporativos para uma conta desse garoto, não importa quantas conchas
ele consiga furar — Meacham disse a Wyatt.
— Você me chamou de pipa — insisti. — O que isso significa?
— Acho que é uma transferência impossível de ser rastreada —
respondeu Wyatt a Meacham.
— O que é uma pipa? — perguntei. Eu era como um cachorro com um
osso; não ia deixar o assunto cair, não importava o quanto me aborrecesse
com Meacham.
Meacham nem estava me ouvindo, mas Wyatt olhou para mim e
respondeu em voz baixa.
— É jargão de espionagem corporativa. "Pipa" é o "consultor especial"
que se infiltra em território inimigo e recolhe a inteligência necessária,
seja qual for. Faz o trabalho.
— Pipa?
— Você solta uma pipa e se ela ficar presa em uma árvore, você
simplesmente corta o fio — disse Wyatt. — Negativa plausível, já ouviu
falar?
— Corta o fio — repeti, lentamente. Por um lado, eu não me importava
nem um pouco, porque o fio, na realidade, era uma corrente. Eu sabia, no
entanto, que, quando falavam sobre cortar o fio, significava me deixarem
sozinho, por minha conta e risco.
— Se as coisas derem errado — disse Wyatt. — Não deixe que nada
saia errado e ninguém será obrigado a cortar o fio. Agora, onde diabos está
essa putinha? Se não aparecer em dois minutos, levanto voo sem ela.
38
Então eu fiz algo totalmente insano, mas que fez com que eu me
sentisse muito bem. Saí e comprei um Porsche de noventa mil dólares.
Houve tempo em que eu teria celebrado uma notícia excelente como
essa tomando um porre, talvez torrando dinheiro com champanhe ou com
dois CDs. Mas agora jogava numa liga inteiramente diferente. Gostei da
ideia de cortar os cordões do meu avental da Wyatt trocando o Audi por
um Porsche, arrendado por cortesia da Trion.
Já esteve em um concessionário Porsche? Não é como comprar um
Honda Accord, certo? Você não vai entrando na loja sem mais aquela e
pede para fazer um test drive. Tem que passar antes por uma porção de
carícias preliminares. Tem que preencher um formulário, eles querem
conversar a respeito do motivo que o levou ali, o que você faz na vida,
qual é o seu signo.
Há, também, um número de opcionais tão grande que você fica
maluco. Quer faróis bi-xenon? Painel de instrumentos Arctic Silver?
Prefere forração de couro ou de couro flexível? Quer rodas Sport Design,
Sport Classic II ou Turbo-Look I?
O que eu queria era um Porsche, e não queria ter que esperar de quatro
a seis meses para que fosse fabricado em Stuttgart-Zuffenhausen. Queria
sair dali dirigindo.
Queria agora. Eles só tinham dois Carrera 911 no pátio, um em um tom
de vermelho chamado Guards Red e outro em Basalt Black. A questão se
resumiu aos pontos na forração de couro. O carro vermelho tinha um couro
preto que parecia plástico e, pior ainda, era enfeitado por uns pontos
vermelhos, o que lhe dava uma aparência vulgar de carro de caubói. Ao
passo que o preto tinha um fantástico interior de uma espécie de pelica
castanho natural, com alavanca de marchas e volante forrados com a
mesma cor. Assim que voltei do test drive disse que fechava o negócio.
Talvez ele tivesse me avaliado como sendo o tipo do sujeito que só estava
olhando, ou que no fim de tudo não ia puxar o gatilho. Porém eu comprei e
ele me assegurou de que era a decisão correta. Chegou inclusive a me
oferecer para mandar alguém devolver o Audi à loja onde fora arrendado
— totalmente sem custos.
Era como pilotar um jato, e quando se metia o pé no acelerador até o
fim, chegava a fazer o mesmo barulho de um 767. Trezentos e vinte
cavalos de força no motor, de zero a noventa em cinco ponto zero
segundos, incrivelmente potente. Vibrava e rugia. Coloquei no aparelho de
som o mais recente CD que eu copiara, e botei a todo volume Clash, Pearl
Jam e Guns N' Roses enquanto o configurava. Fez com que eu sentisse que
tudo estava ocorrendo da forma perfeita.
Antes mesmo de me mudar para minha nova sala, Goddard queria que
eu encontrasse um novo lugar para morar, mais perto do prédio da Trion.
Eu não ia exatamente discutir; fazia muito tempo que já tinha passado o
tempo disso.
O pessoal dele facilitou a saída do cafofo onde eu morara por tanto
tempo, assim como a mudança para um apartamento novo, no vigésimo
nono andar da torre sul dos Harbor Suites. Cada uma das duas torres tinha
cento e cinquenta apartamentos em trinta e oito andares, variando de
conjugados a apartamentos de três quartos; as torres tinham sido
construídas no topo do hotel mais elegante da região, cujo restaurante era
qualificado como um dos melhores no Zagat's.
O apartamento parecia saído de uma das páginas da In Style. Tinha
cerca de cento e oitenta metros quadrados com pé-direito de 3,60m, pisos
de pedras e parquê. Havia uma "suíte principal", uma "biblioteca", que
podia ser usada como quarto de dormir sobressalente, e uma sala de jantar
formal. Havia janelas que iam do teto ao chão com as paisagens mais
fabulosas que eu já vira. A sala de estar dava para a cidade, espalhada em
uma direção, e para a água, na outra.
A copa-cozinha parecia o showroom de uma firma de design de artigos
para cozinha, todos caríssimos e com as marcas certas: geladeira Sub-
Zero, lava-louças Miele, forno e fogão Viking duplo combustível,
gabinetes Poggenpohl, bancadas de granito e até mesmo um grotto
embutido para vinho.
Não que eu fosse precisar da cozinha. Querendo comer em casa,
bastava pegar o telefone de parede na cozinha e apertar um botão, e pronto
— tinha-se uma refeição do serviço de quarto do hotel e até mesmo, se o
aviso fosse dado com alguma antecedência, um cozinheiro do restaurante
do hotel podia subir e preparar um jantar para você e seus convidados.
Havia um imenso clube de saúde com dez mil metros quadrados de
área, onde uma porção de gente rica que não morava ali se exercitava,
jogava squash ou fazia ioga taoista, seguido de saunas e beberagens
proteicas no café.
Você não precisava sequer estacionar o carro. Ao entrar na frente do
prédio, o manobrista sumia com ele e o estacionava em algum lugar. Para
tê-lo de volta, bastava um telefonema.
Os elevadores se deslocavam em tal velocidade supersônica que os
ouvidos estalavam. Eram revestidos de mogno e tinham pisos de mármore,
sendo mais ou menos do mesmo tamanho do meu velho apartamento.
A segurança ali também era muito melhor. Os capangas de Wyatt não
seriam capazes de invadir meu apartamento tão facilmente para revistar
minhas coisas. Gostei disso.
Nenhum dos apartamentos ali no Harbor Suites custava menos de um
milhão, e aquele meu passava de dois, mas era tudo de graça — inclusive
mobiliário — cortesia de Trion Systems, à guisa de bônus.

A mudança foi indolor, já que não guardei quase nada do meu antigo
apartamento. O Exército da Salvação e o pessoal da Legião da Boa
Vontade vieram e levaram embora o horrível sofá xadrez grande, a mesa
de fórmica da cozinha, o colchão de molas de suporte e o colchão
propriamente dito, e todo o resto do lixo que eu tinha, inclusive a mesa
velha e nojenta. Mil porcarias caíram do sofá quando o levaram — papéis
Zig-Zag, baratas, uma parafernália variada de drogas. Fiquei com o
computador, as roupas e a frigideira preta de ferro de minha mãe (por
razões sentimentais — não que eu jamais a tenha usado). Botei todas as
minhas coisas no Porsche, o que dá uma boa ideia de como eram poucas,
já que esse carro praticamente não tem espaço para bagagem. Comprei
toda a mobília numa loja elegante chamada Domicile (sugestão da agente)
— sofás grandes, macios, que engoliam você, poltronas combinando, jogo
de mesa e cadeiras de jantar que parecia ter vindo diretamente de
Versalhes e uma cama enorme de cabeceira de ferro. Tapetes persas.
Colchão Dux caríssimo. Tudo. Um caminhão de dinheiro, mas e daí — não
era eu que estava pagando.
Na verdade, a Domicile estava entregando a mobília quando o porteiro,
Carlos, me ligou para dizer que eu tinha visita lá embaixo, um sr. Seth
Marcus. Disse a ele para mandar Seth subir.
A porta da frente já estava aberta para o pessoal dos móveis, mas Seth
tocou a campainha e ficou parado ali no hall. Usava camiseta Sonic Youth
e uma calça jeans Diesel com rasgões. Seus olhos castanhos normalmente
cheios de vida, ar e meio frenéticos, pareciam mortos. Ele estava apagadão
— eu não saberia dizer se intimidado, invejoso, com raiva por eu ter
desaparecido sem mais aquela ou uma combinação dos três.
— Ei, cara — ele disse. — Segui sua pista.
— Ei, cara — respondi, dando-lhe um abraço. — Seja bem-vindo à
minha humilde morada.
Eu não sabia mais o que dizer. Por alguma razão, senti-me
envergonhado. Não queria que ele visse o apartamento. Ele permaneceu
onde estava no hall.
— Você não ia me contar que estava se mudando?
— Foi meio de repente — respondi. — Eu ia telefonar para você. Ele
pegou uma garrafa de champanhe barata New York State na sua bolsa de
lona de transportar na bicicleta e me entregou. — Estou aqui para celebrar.
Cheguei à conclusão de que você era bom demais para tomar cerveja.
— Excelente! — exclamei, pegando a garrafa e ignorando a farpa. —
Entre.
— Seu cachorrão. Isso é uma maravilha — ele pronunciou as palavras
num tom de voz desenxabido, sem entusiasmo. — Imenso, hein?
— Cento e oitenta metros quadrados. Venha ver.
Levei-o para um tour, durante o qual ele dizia coisas engraçadas e
cortantes como: "Se isso é uma biblioteca, você não precisa ter livros?" e
"Agora tudo do que você precisa para mobiliar seu quarto é uma
namorada." Disse que meu apartamento era "doente" e "sinistro", seu jeito
"pseudogangsterístico" de dizer que estava gostando.
Ele me ajudou a retirar o plástico que envolvia um dos enormes sofás
para que pudéssemos sentar. O sofá fora colocado no meio da sala de estar,
como se estivesse flutuando ali, de frente para o mar.
— Legal — disse Seth, afundando no sofá. Tive a impressão de que ele
queria pôr os pés em cima de alguma coisa, mas ainda não tinha trazido a
mesinha de centro, o que foi bom, porque eu não ia querer que ele
colocasse seus sapatos Doc Martens cheios de lama em cima dela.
— Você agora está fazendo as unhas? — perguntou ele, desconfiado.
— De vez em quando — admiti, num fio de voz. Não podia acreditar
que ele tivesse reparado em um detalhe tão mínimo como as minhas
unhas. — Tenho que parecer um executivo, você sabe.
— E o que é que houve com o corte do seu cabelo? Fala sério.
— O que é que tem?
— Você não acha que ficou, sei lá, meio boiola?
— Boiola?
— Enfeitado demais. Você não andou passando um troço qualquer no
cabelo, tipo gel, mousse ou similar?
— Um pouco de gel — falei, defensivamente. — O que é que tem?
Ele fechou os olhos e sacudiu a cabeça.
— Você passou colônia?
Eu queria mudar de assunto.
— Achei que você trabalhava hoje de noite — comentei.
— Você se refere àquele negócio de trabalhar servindo no bar? Não,
caí fora. Achei que aquilo era totalmente falso.
— Parecia um lugar legal.
— Não para quem trabalha lá, cara. Tratam você como se você fosse
um merda de um garçom.
Quase caí na gargalhada.
— Arranjei um troço muito mais legal. Estou na "equipe da energia
móvel" do Red Bull. Eles dão para você um carro legal para andar por aí e
você basicamente distribui amostras e conversa com as pessoas, esse tipo
de coisa. Horário totalmente flexível. Pode ser depois do trabalho como
paralegal.
— Parece perfeito.
— Absolutamente. Inclusive me dá tempo livre de sobra para trabalhar
no meu hino corporativo.
— Hino corporativo?
— Toda companhia grande tem um hino, tipo cheesy rock, rap ou algo
assim.
Ele cantou, pessimamente:
— Trion! Mude o seu mundo! Tipo isso. Se a Trion não tem um hino,
você talvez possa me indicar para o sujeito certo. Aposto como eu
receberia royalties cada vez que vocês cantassem o hino num piquenique
da firma ou em outro evento qualquer.
— Vou estudar o caso — falei. — Ei, não tenho copos. Estou
esperando que entreguem, mas ainda não chegaram. Dizem que o vidro foi
feito soprado pela boca na Itália, não sei se vai dar para sentir o cheiro de
alho.
— Não se preocupe com isso. O champanhe provavelmente lava tudo.
— Você continua trabalhando na firma de advocacia?
Ele pareceu envergonhado.
— É o meu único contracheque regular.
— Puxa, isso é importante.
— Acredite em mim, cara, trabalho o menos possível. Apenas o
suficiente para Shapiro não torrar meu saco — fax, cópias, esses troços —
e ainda tenho bastante tempo para navegar na Web.
— Legal.
— Ganho tipo vinte pratas por hora para jogar joguinhos da Web,
gravar CDs de música e fingir que trabalho.
— Excelente — aprovei. — Você realmente está levando vantagem —
na verdade, era patético.
— Você pegou o espírito da coisa.
Não sei o que foi que me deu na cabeça, mas o fato foi que perguntei:
— E então, quem você pensa que está enganando mais, eles ou você
mesmo?
Seth me dirigiu um olhar esquisito.
— Como assim?
— Quer dizer, você não faz porra nenhuma no trabalho, você dá o
golpe... já se perguntou para que está fazendo isso? Ou seja, de que
adianta?
Os olhos de Seth se estreitaram em sinal de hostilidade.
— O que é que há com você?
— Vai ter uma hora que você vai precisar se dedicar a alguma coisa,
sabe?
Ele fez uma pausa.
— Seja o que for. Ei, quer sair daqui, ir a algum lugar? Este troço aqui
é adulto demais para o meu gosto, está me dando urticária.
— Claro.
Eu estava justamente tentando decidir se mandava ou não buscar um
cozinheiro no hotel para nos preparar um jantar, porque achei que Seth
ficaria impressionado, mas recuperei o juízo. Não teria sido uma boa ideia.
Deixaria Seth maluco. Aliviado, liguei para o manobrista e mandei pegar
meu carro.
Estava esperando por mim quando chegamos lá embaixo.
— É seu? — ele perguntou, boquiaberto. — De jeito nenhum.
— Claro que é.
Seu comportamento cínico e distanciado finalmente rompeu-se.
— Esta maravilha deve custar algo como cem mil!
— Menos que isso. Bem menos. De qualquer modo, é a companhia que
faz o leasing dele para mim.
Ele se aproximou do Porsche bem devagar, maravilhado, reverente e,
ao mesmo tempo, temeroso, do mesmo modo como os macacos se
aproximaram do monólito em 2001, Uma odisseia no espaço, e fez um
carinho na reluzente porta em Basalt Black.
— Tudo bem, companheiro — ele exigiu —, qual é o seu golpe? Quero
um pouco também.
— Não é um golpe — retruquei, constrangido, quando entramos no
Porsche. — De certa forma caí nessa meio sem querer.
— Qual é, cara. Você está falando comigo, seu amigo Seth. Lembra de
mim? Você está vendendo drogas ou alguma coisa assim? Porque se
estiver, é melhor você me incluir na parada.
Dei uma risada sem graça. Ao sairmos com um ronco do Porsche, vi
um carro idiota, que deveria ser o dele, estacionado na rua. Uma imensa
lata vermelha e prata de Red Bull fora montada em cima de um carrinho
pequeno. Uma piada.
— O seu carro?
— Isso aí. Legal, não é? — ele não parecia tão entusiasmado.
— Legal — falei. Era ridículo.
— Sabe quanto me custou? Nada. Só tenho que andar com ele por aí.
— Bom negócio.
Seth se recostou no banco de couro macio.
— Que maravilha! — disse e inspirou fundo o cheirinho de carro novo.
— Cara, que maravilha! Quero a sua vida. Vamos trocar?
39
Era totalmente fora de questão, claro, eu me encontrar de novo com a
dra. Judith Bolton na sede da Wyatt, onde eu podia ser visto entrando ou
saindo. Mas, agora que eu estava lidando com as grandes feras da Trion,
precisava de uma sessão profunda e detalhada. Wyatt insistiu nisso e não
discordei.
Assim, nós nos encontramos no sábado seguinte no Marriott, em uma
suíte destinada a encontros de negócios. Recebi por email o número do
quarto. Ela já estava lá quando cheguei, o laptop ligado a um monitor.
Engraçado, ainda me deixava nervoso. No caminho, eu tinha parado para
um corte de cabelo de cem dólares. E estava com roupas decentes, não
meu costumeiro lixo de fim de semana.
Eu tinha me esquecido de como ela era intensa — os olhos azuis-
claros, o cabelo cor de cobre, os lábios vermelhos brilhosos e as unhas
combinando. Também tinha me esquecido de como era durona. Apertei sua
mão com firmeza.
— Chegou exatamente na hora marcada — disse ela, com um sorriso.
Dei de ombros e meio que sorri para dizer que tinha entendido, mas
não estava achando graça.
— Está ótimo. Parece que o sucesso combina com você.
Nós nos sentamos a uma mesa de reuniões elegante, que mais parecia
pertencer à sala de jantar de alguém — à minha, talvez —, e ela me
perguntou como eu estava indo. Contei tudo, as coisas boas e as ruins, sem
esquecer Chad e Nora.
— Você vai ter inimigos. Era previsível. Mas estes são ameaças —
você deixou uma ponta de cigarro ardendo no meio do mato e se não
apagar logo vai ter que apagar um incêndio na floresta.
— Como apago essas pontas de cigarro?
— Já vamos conversar sobre isto. Agora, porém, quero me concentrar
em Jock Goddard. E se você esquecer tudo o mais que for dito hoje, quero
que se lembre de uma coisa: ele é patologicamente sincero.
Não consegui conter um sorriso. Curioso que aquilo partisse da
principal conselheira de Nick Wyatt, um sujeito tão desonesto que roubava
até no exame de próstata.
Os olhos dela faiscaram, e ela se inclinou na minha direção.
— Não estou fazendo piada — disse, aborrecida. — Ele o escolheu não
porque gosta do seu jeito de pensar ou das suas ideias — que, é claro, não
são absolutamente suas — mas porque acha a sua sinceridade revigorante.
Você fala o que pensa. Ele gosta disso.
— Isso é "patológico"?
— A sinceridade é praticamente um fetiche para ele. Quanto mais
contundente você for, quanto menos calculista parecer, melhor você se
sairá.
Por um instante perguntei a mim mesmo se Judith enxergava a ironia
do que estava fazendo — aconselhando-me a enganar Jock Goddard
fingindo ser sincero. Uma sinceridade cem por cento artificial.
— Se ele começar a detectar qualquer coisa desonesta, obsequiosa ou
calculista no seu modo de ser — se ele pensar que você está tentando
ganhar suas graças por meios insinceros ou lisonjas — ele ficará
imediatamente indiferente a você. E, se perder a sua confiança, pode ser
que nunca mais a recupere.
— Entendido — falei, impaciente. — Daqui por diante, nada mais de
enganar o cara.
— Meu querido, em que planeta você vive? — disparou ela. — Claro
que vamos tapear o velho. Esta é a segunda lição na arte de "progredir na
carreira", me dá um tempo.
Você vai confundir a cabeça dele, mas vai ter que ser absolutamente
habilidoso. Nada de coisas óbvias, nada que ele possa sentir o cheiro.
Assim como os cães sentem o cheiro do medo, Goddard sente o da
mentira. Portanto, você vai ter que ser visto como a última das pessoas
francas e honestas. Contará a ele as más notícias que os outros tentarão
adoçar. Você lhe mostra um plano do qual ele gosta, e será você mesmo a
lhe apontar os pontos fracos do plano. A integridade é uma mercadoria
muito escassa neste mundo — uma vez que descubra como falsificá-la,
estará no bom navio Lollipop.
— Onde eu quero estar — falei, secamente.
Ela não dispunha de tempo para o meu sarcasmo.
— Todo mundo diz que ninguém gosta de puxa-sacos, mas a verdade é
que, em sua maioria, os diretores e gerentes mais graduados adoram,
mesmo quando sabem que estão sendo bajulados. Faz com que se sintam
poderosos, sentem-se mais seguros, fortalece seus frágeis egos. Jock
Goddard, ao contrário, não precisa. Acredite em mim, ele já se tem em alta
conta. Não se deixa cegar nem pela necessidade, nem pela vaidade. Não é
um Mussolini que precisa cercar-se de homens servis.
Tive vontade de perguntar: "como alguém que conhecemos?", mas
fiquei quieto. Ela continuou.
— Veja só o tipo de pessoas de quem ele se cerca — pessoas
inteligentes, de raciocínio rápido, que podem ser ásperas e que expressam
abertamente suas opiniões.
— Você está dizendo que ele não gosta de lisonjas.
— Não é isso que estou dizendo. Todo mundo gosta de ser lisonjeado.
Mas ele tem que sentir que se trata de algo verdadeiro. Uma historinha:
Napoleão uma vez foi caçar no Bois de Boulogne com Talleyrand, que
desejava desesperadamente impressionar o grande general. O bosque
estava cheio de coelhos e Napoleão ficou exultante porque matou
cinquenta. Mas, quando descobriu, mais tarde, que não eram coelhos
selvagens — que Talleyrand tinha mandado um de seus criados ao
mercado comprar dúzias deles, ficou furioso. Nunca mais confiou em
Talleyrand.
— Vou me lembrar disso na próxima vez em que Goddard me convidar
para caçar coelhos.
— A questão é — retrucou ela, irritada —, quando lisonjeá lo, faça-o
com sutileza.
— Eu não estou correndo com coelhos, Judith. São mais semelhantes a
lobos.
— Aí está. O que é que você sabe sobre lobos?
Suspirei.
— Estou ouvindo — falei.
— É tudo bem visível. Sempre há um macho número um, é claro, o
primeiro em importância na matilha. É o lobo Alfa. O que é interessante
ter em mente é que a hierarquia está sempre sendo testada. Ela é altamente
instável. Às vezes você vê o lobo Alfa largar um pedaço fresco de carne no
chão, bem na frente dos outros, afastar-se alguns metros e ficar olhando.
Só olhando. Trata-se de um desafio aberto — ele quer ver se algum lobo se
atreve até mesmo a farejar aquela carne.
— Quem se meter a besta vira jantar.
— Errado. O Alfa geralmente não precisa fazer outra coisa além de
olhar feio. Talvez caprichar um pouco na postura. Levantar a cauda e as
orelhas, rosnar, fazer-se de grande e feroz. No caso de ocorrer uma luta, o
Alfa atacará as partes menos vulneráveis do corpo do transgressor. Na
verdade, ele não quer mutilar um membro de sua matilha e, muito menos,
matá-lo. Você compreende, o Alfa precisa dos outros. Os lobos são
animais pequenos e nenhum lobo sozinho vai derrubar um alce, ou um
cervo, um caribu, sem a ajuda da matilha. O que interessa é que, eles
estejam sempre testando.
— Isso quer dizer que vou ser testado sempre.
É, eu não precisava de um MBA para trabalhar para o Goddard e sim, de
formação em veterinária.
Ela me olhou de lado.
— O ponto, Adam, é que o testar é sempre sutil. Mas ao mesmo tempo
o líder da matilha quer que sua equipe seja forte. É por isso que eventuais
atitudes agressivas são aceitáveis — elas demonstram a estâmina, a força,
a vitalidade de toda a matilha. Esta é a importância da honestidade, da
sinceridade estratégica. Quando você lisonjear, faça-o de maneira sutil e
indireta e assegure-se de que Goddard acredite que sempre obtém a
verdade simples e direta de você. Jock Goddard sabe o que muitos outros
presidentes de corporações não sabem — que a sinceridade de seus
auxiliares é vital se ele quiser saber o que ocorre dentro da sua companhia.
Porque se ele se afasta do que realmente acontece, vira história. E deixa
que eu lhe diga uma outra coisa que você precisa saber. Em todo
relacionamento masculino mentor-protégé há um elemento pai-filho, mas
suspeito que é ainda mais aplicável neste caso. É provável que você o faça
lembrar-se do filho, Elijah.
Goddard tinha me chamado de Elijah umas duas vezes por engano,
lembrei.
— Minha idade?
— Teria, se não tivesse morrido algum tempo atrás, com vinte e um
anos de idade. Há quem pense que desde essa tragédia Goddard nunca
mais foi o mesmo, que amoleceu um pouco. O ponto é que, assim como
você pode vir a idealizar Goddard como o pai que você gostaria de ter tido
— ela sorriu, ela sabia a respeito do meu pai, de alguma forma — você
pode muito bem fazer com que ele se lembre do filho que ele ainda queria
ter. Era preciso que você tomasse conhecimento disso, porque é algo que
pode ser capaz de usar. E é também uma coisa para a qual você deve ficar
atento — ele tanto pode lhe dar uma folga imerecida às vezes como, em
outras ocasiões, mostrar-se irracionalmente exigente.
Ela voltou-se para seu laptop e digitou umas teclas.
— Quero agora toda a sua atenção. Vamos assistir a algumas
entrevistas que Goddard deu para a televisão através dos anos — uma
antiga do programa Wall Street Week with Louis Rukeyser, diversas da
CNBC e uma com a Katie Couric em The Today Show.
Uma imagem em vídeo de um Jock Goddard muito mais jovem,
embora já lembrando um gnomo brincalhão — estava congelada na tela.
Judith virou-se na sua cadeira para me encarar.
— Adam, esta é uma oportunidade extraordinária que lhe deram. Mas
é também uma situação muito mais perigosa do que aquela anteriormente
na Trion, porque agora se sentirá muito mais constrangido, muito menos
capaz de se mover pela companhia sem ser notado ou de simplesmente
visitar pessoas comuns e entrar em rede com elas.
Paradoxalmente, sua missão de coletar inteligência passou a ser
imensamente mais difícil. Você vai precisar de toda munição que possa
reunir. Assim, antes de terminarmos hoje, quero que você conheça este
sujeito pelo avesso, está me entendendo?
— Estou te entendendo.
— Ótimo — disse ela, e me deu seu sorriso tenso e assustador. — Eu
sei quem você é — ela abaixou a voz até quase murmurar. — Escuta,
Adam. Tenho que lhe dizer — para o seu próprio bem — que Nick está
ficando muito impaciente por resultados. Você está na Trion há quantas
semanas? — e ele ainda não sabe de que tratam as equipes de projetos de
ponta.
— Há um limite — comecei — para ser agressivo...
— Adam — ela me interrompeu em voz baixa, mas com uma
inequívoca nota de ameaça. — Nick Wyatt não é uma pessoa a quem você
queira ferrar.
40
Alana Jennings morava em um apartamento duplex num prédio
revestido de tijolos vermelhos, não muito longe da sede da Trion.
Reconheci prontamente pela fotografia.
Sabe quando você começa a sair com uma garota e repara cada coisa a
seu respeito, onde mora, como se veste e o perfume que usa, e tudo parece
tão diferente e tão novo? Bem, o estranho era que eu sabia muito mais a
seu respeito do que alguns maridos sabem sobre as próprias mulheres e, no
entanto, não passara mais que uma ou duas horas com ela.
Parei em frente ao prédio com o meu Porsche — não é para isso que
servem os Porsches, impressionar as garotas? —, galguei os degraus e
toquei a campainha. Imediatamente ouvi sua voz pelo interfone, desceria
logo.
Vestia uma blusa de camponesa branca, bordada, e calças pretas de
malha muito justas, penteara o cabelo para cima e não estava usando os
óculos escuros assustadores.
Perguntei a mim mesmo se camponesas usariam realmente blusas de
camponesa, se ainda existiriam camponesas no mundo, e, caso houvesse,
se veriam a si próprias como camponesas. Ela estava espetacularmente
bonita. O perfume era muito bom, diferente da maioria das garotas com
quem eu geralmente saía. Uma fragrância floral chamada Fleurissimo;
lembro de ter lido que a comprava em uma casa chamada House of Creed
sempre que ia a Paris.
— Oi — falei.
— Oi, Adam — os lábios estavam cobertos por batom, vermelho e
brilhoso, e ela carregava no ombro uma minúscula bolsa quadrada preta.
— Meu carro está aqui — falei, tentando ser sutil a respeito do
Porsche preto novo em folha, que reluzia bem na nossa frente. Ela o
avaliou com um olhar, mas nada disse. Devia estar somando mentalmente
o carro ao meu paletó e minha calça Zegna e à camisa preta de colarinho
aberto em estilo casual, e possivelmente com o meu relógio italiano de
cinco mil dólares. E achando que eu era um exibido ou que estava me
esforçando demais. Ela vestia uma blusa de camponesa; eu, Ermenegildo
Zegna. Perfeito. Ela fingia ser pobre e eu tentava parecer rico,
provavelmente exagerando.
Abri a porta da direita para ela. Antes eu tinha puxado o banco para
trás, a fim de que houvesse bastante espaço para as pernas.
Do lado de dentro, o ar estava pesado com o cheiro de couro novo.
Havia um plástico de estacionamento da Trion no lado esquerdo do vidro
traseiro, que ela ainda não notara. Tampouco o veria de dentro do carro,
mas isso haveria de acontecer em breve, quando estivéssemos saindo do
restaurante. Tudo bem. De um jeito ou de outro ia descobrir em breve que
eu também trabalhava na Trion e que fora contratado para preencher sua
vaga. A coincidência seria um tanto estranha, uma vez que não tínhamos
nos visto no trabalho, e quanto mais cedo isso acontecesse, melhor. Na
verdade, eu tinha preparado uma fala idiota tipo: "Você está brincando!
Você trabalha lá?
Eu também! Que coincidência!"
Houve alguns momentos de silêncio contrafeito no percurso para o seu
restaurante tailandês favorito. Ela deu uma olhada no velocímetro e voltou
a observar a rua.
— Você provavelmente devia tomar cuidado aqui — disse ela. — Isto
é uma armadilha. O policial fica esperando você passar de oitenta e aí
aparece para multar.
Sorri, balancei a cabeça e me lembrei de uma cena de um dos seus
filmes favoritos, Double Indemnity, que eu alugara na véspera.
— Em que velocidade eu estava indo, policial? — falei, naquela voz
insípida de Fred MacMurray em filme noir.
Ela pegou imediatamente. Garota inteligente. E sorriu.
— Eu diria que por volta de cento e cinquenta — Alana imitou
perfeitamente a voz de mulher fatal de Bárbara Stanwyck.
— Suponha que você desça da moto e me multe.
— Suponha que desta vez eu deixe ficar por uma advertência — ela
seguiu com o jogo, os olhos animados com a travessura. Eu vacilei por uns
segundos, até que me lembrei da fala: — Suponha que não funcionasse.
— Suponha que eu tivesse que bater na sua mão.
Eu sorri. Ela era boa e estava por dentro.
— Suponha que eu começasse a chorar e pusesse a cabeça no seu
ombro.
— Suponha que você tentasse pôr a cabeça no ombro do seu marido.
— Termina aqui — falei. — Fim da cena. Corta, revela, fim da
tomada.
Ela riu, satisfeita.
— Como é que você sabe isso?
— Tempo demais assistindo a filmes antigos em preto e branco.
— Eu também! E Double Indemnity é um dos meus favoritos.
— Empata com Sunset Boulevard — falei.
Era outro dos favoritos dela.
— Exatamente. "Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos."
Eu quis bater em retirada enquanto a vantagem era minha, porque já
tinha esgotado o meu suprimento de trivia decorada de filmes noir. Mudei
o tema da conversa para tênis, que era seguro. Parei em frente ao
restaurante, e os olhos dela se iluminaram de novo.
— Você conhece este lugar? É o melhor!
— Para comida tailandesa, é o único, no que me diz respeito — um
manobrista estacionou o carro — não acreditei que estava entregando as
chaves do meu Porsche novo em folha para um garoto de dezoito anos que
provavelmente ia dar uma volta nele quando o movimento diminuísse —
assim, pelo menos, Alana não chegou a ver o adesivo da Trion.
Tudo correu muitíssimo bem por algum tempo. A brincadeira do
Double Indemnity parecia tê-la acalmado um pouco, feito com que
sentisse que estava na companhia de um espírito afim. Ainda mais um
sujeito que era fã de Ani DiFranco, o que mais podia querer? Talvez um
pouco de profundidade — as mulheres sempre parecem gostar de
profundidade nos homens, ou pelo menos um ocasional e rápido momento
de reflexão, mas eu já passara dessa hora.
Pedimos salada verde de papaia e rolinhos primavera vegetarianos.
Cheguei a pensar se devia dizer que era vegetariano, mas decidi que seria
um exagero e, além do mais, eu não sabia se podia aguentar o embuste por
mais de uma refeição. Assim, pedi frango ao curry Masaman e ela pediu
um curry vegetariano com leite de coco — lembrei de ter lido que era
alérgica a camarão — e nós dois bebemos cerveja tailandesa.
A conversa deslocou-se do jogo de tênis para o Tennis and Racquet
Club, mas eu rapidamente desviei o rumo para longe desses perigosos
bancos de areia, que poderiam resultar na pergunta de como e por que eu
estava lá naquele dia, e passei, então, para o golfe e depois para férias de
verão. Alana logo descobriu que tínhamos origens bem diferentes, mas não
houve problema. Ela não ia se casar comigo nem me apresentar ao seu pai,
e eu não queria ter que falsear o passado da minha família tampouco, o
que me daria um bocado de trabalho. Ademais, não me pareceu necessário
— achei que ela estava indo na minha conversa. Contei umas histórias
sobre trabalhar no clube de tênis e no turno da noite em um posto de
gasolina. Na verdade, ela deve ter se sentido um tanto sem graça por causa
do seu berço privilegiado, porque me contou uma mentirinha inofensiva
sobre como seus pais a forçavam a passar parte dos verões fazendo uns
trabalhos sem importância na companhia onde seu pai trabalhava, se
esquecendo de mencionar que o pai era o presidente da companhia.
Acontece também que eu sabia que Alana jamais trabalhara na companhia
do pai. Seus verões eram passados em um hotel-fazenda no Wyoming, ou
em safáris na Tanzânia, ou na companhia de duas amigas em um
apartamento pago pelo papai em Paris ou estudando no museu Peggy
Guggenheim, no Grande Canal de Veneza. Nunca abasteceu carros em
postos de gasolina.
Quando ela mencionou a companhia onde o pai "trabalhava" preparei-
me para o inevitável assunto o-que-você-faz, onde-você-trabalha. Mas não
aconteceu, senão muito tempo depois. Fiquei surpreso quando ela trouxe o
assunto à baila de um modo estranho, como se quisesse fazer uma
brincadeira sobre isso.
— Bem — disse ela, após um suspiro —, suponho que agora temos que
falar sobre o nosso trabalho, certo?
Senti um aperto no estômago.
— Você cria frangos.
Eu ri.
— Como foi que adivinhou?
— Fácil. Um criador de frangos que dirige um Porsche e usa Fendi.
— Zegna, na verdade.
— O que for. Desculpe, mas você é homem e provavelmente tudo o
que quer é falar sobre trabalho.
— Na verdade, não — modulei minha voz para alcançar um tom de
tímida sinceridade. — Eu realmente prefiro viver o momento presente, ser
tão consciente quanto puder. Você sabe, há um monge budista vietnamita
que mora na França, chamado Thich Nhat Hanh que diz...
— Oh, meu Deus! Isso é tão incrível! Não posso acreditar que você
conheça Thich Nhat Hanh!
Na verdade eu não lera nada que o monge escrevera, mas, depois de
ver quantos livros dele ela comprara na Amazon, fiz uma pesquisa nuns
sites budistas.
— Claro — falei, como se todo mundo já tivesse lido as obras
completas de Thich Nhat Hanh. — "O milagre não é caminhar em cima da
água, o milagre é caminhar sobre a terra verde."
Eu tinha certeza absoluta de ter acertado a citação, mas foi neste exato
momento que meu celular vibrou dentro do bolso do paletó.
— Com licença — falei, tirando o aparelho e dando uma olhada no
autor da ligação.
— Um segundinho — desculpei-me e atendi.
— Adam — a voz grave de Antwoine. — É melhor você vir aqui. É seu
pai.
41
Não tínhamos comido a metade dos nossos pratos. Levei-a para casa,
desculpando-me profusamente durante todo o trajeto. Ela não poderia ter
se mostrado mais compreensiva. Chegou, inclusive, a oferecer-se para ir
ao hospital comigo, mas eu não podia expô-la a meu pai, não tão cedo:
seria horrível.
Depois de deixá-la, levei o Porsche a cento e trinta por hora e cheguei
ao hospital em quinze minutos. Por sorte, sem ter sido parado por nenhum
policial. Entrei correndo na sala de emergência, sentindo que meu estado
de consciência estava alterado: hiperalerta, assustado e só enxergando o
que se encontrava na minha frente.
Eu só queria ver papai antes dele morrer. Convenci-me de que cada
maldito segundo de espera diante do balcão de atendimento da Emergência
poderia ser o instante em que meu pai morreria e eu não teria uma chance
para me despedir. Gritei o nome dele para a enfermeira da triagem e
quando ela me disse onde estava, saí correndo.
Lembro-me de ter pensado que se ele já estivesse morto ela teria dito
algo a respeito, portanto tinha que estar vivo.
Vi Antwoine primeiro, de pé do lado de fora das cortinas verdes. Por
alguma razão, seu rosto estava arranhado e ensanguentado e ele parecia
amedrontado.
— O que é que há? Onde ele está?
Antwoine apontou para as cortinas verdes, atrás das quais eu podia
ouvir vozes.
— De repente a respiração dele começou a ficar forçada. Aí seu rosto
foi escurecendo, pegando um tom meio azulado. Os dedos começaram a
ficar azuis. Foi quando chamei a ambulância — a voz de Antwoine soou
defensiva.
— Ele está...?
— Está, sim, ele está vivo. Cara, para um velho doente, ele tem um
bocado de força.
— Foi ele quem fez isso a você? — perguntei, indicando seu rosto.
Antwoine balançou a cabeça, sorrindo envergonhado.
— Ele se recusou a entrar na ambulância. Disse que estava bem. Passei
meia hora lutando com ele, quando deveria tê-lo posto no colo e jogado no
carro. Tomara que eu não tenha esperado tempo demais para chamar a
ambulância.
Um cara baixinho e moreno, de uniforme verde, se aproximou de mim.
— Você é o filho dele?
— Sou.
— Sou o dr. Patel — talvez tivesse a minha idade e fosse residente,
interno ou algo assim.
— Oi — cumprimentei e fiz uma pausa. — Hmm, ele vai se safar?
— Parece que sim. Seu pai tem um resfriado, mais nada. Mas ele não
tem qualquer reserva respiratória. Qualquer resfriadinho para ele
representa uma ameaça à sua vida.
— Posso vê-lo?
— Claro — ele virou-se para a cortina e abriu-a. Uma enfermeira
estava aplicando uma intravenosa no braço de papai. Ele me encarou por
detrás da máscara de plástico transparente que cobria-lhe a boca e o nariz.
Parecia basicamente o mesmo de sempre, só que menor e o rosto mais
pálido que o normal. Estava ligado a uma porção de monitores.
Ele arrancou a máscara.
— Olha só toda essa confusão — disse, a voz fraca.
— Como se sente, sr. Cassidy? — perguntou o dr. Patel.
— Maravilha — respondeu papai, sarcástico. — Não dá para ver?
— Acho que o senhor está melhor do que o seu acompanhante.
Antwoine tinha se aproximado meio de lado para dar uma olhada. De
repente, papai pareceu sentir-se culpado.
— Oh, isso aí. Desculpe pelo seu rosto, Antwoine.
Antwoine, que devia ter percebido que aquele era o pedido de
desculpas mais elaborado que ele ouviria de meu pai, pareceu aliviado.
— Aprendi minha lição. Da próxima vez luto com mais força. Papai
sorriu como um campeão de peso-pesado.
— Esse cavalheiro salvou-lhe a vida — afirmou o dr. Patel. — É
mesmo?
— Com absoluta certeza.
Papai inclinou a cabeça ligeiramente para encarar Antwoine.
— Por que você fez isso? — perguntou.
— Para não ter que procurar outro emprego tão depressa — foi a
pronta resposta de Antwoine.
O médico dirigiu-se a mim falando baixo.
— O raios X do tórax dele foi normal, para ele, e sua contagem de
leucócitos é oito ponto cinco, o que também é normal. Os gases do sangue
indicam que teria uma insuficiência respiratória, mas parece que
estabilizou agora. Temos que submetê-lo a uma série de antibióticos via
intravenosa, um pouco de oxigênio e esteroides também na veia.
— Para que é a máscara? — perguntei. — Oxigênio?
— É um nebulizador. Com Albuteral e Atrovent, que são dois
broncodilatadores.
Ele se debruçou sobre papai e colocou a máscara de novo.
— O senhor é um lutador de verdade, sr. Cassidy.
Papai limitou-se a piscar.
— Isso é que foi um eufemismo — disse Antwoine, com uma risada
rouca.
— Com licença — o dr. Patel fechou a cortina e deu alguns passos. Eu
o segui, enquanto Antwoine ficou com papai.
— Ele ainda fuma? — perguntou o médico, bruscamente. Dei de
ombros.
— Há manchas de nicotina nos dedos. O que é completamente insano,
você sabe.
— Eu sei.
— Ele está se matando.
— Ele vai morrer de um jeito ou de outro.
— Pois bem, mas ele está acelerando o processo.
— Talvez seja o que ele queira.
42
Comecei meu primeiro dia trabalhando oficialmente para Jock
Goddard depois de ter ficado acordado a noite inteira.
Eu saíra do hospital para o meu novo apartamento por volta das quatro
da manhã. Cheguei a pensar em dormir uma hora, mas desisti porque sabia
que ia perder a hora. E podia não ser a melhor maneira de começar com
Goddard. Portanto, tomei uma chuveirada, fiz a barba e gastei algum
tempo na Internet, lendo sobre os competidores da Trion, concentrando-
me nos sites News.com e Slashdot, para as últimas notícias tecnológicas.
Vesti um pulôver leve, preto (o negócio mais parecido que eu tinha com as
camisas pretas de gola alta características de Jock Goddard), calça cáqui e
uma jaqueta marrom Houndstooth, um dos poucos itens "casuais" da roupa
que a exótica assistente de Wyatt tinha comprado para mim. Agora eu
parecia um membro de pleno direito do grupo íntimo de Goddard. Depois
liguei para o manobrista e pedi o Porsche.
O porteiro, que parecia sempre estar de serviço de manhã cedo e de
noite, nos horários em que eu mais entrava e saía, era um cara hispânico
com seus quarenta e tantos anos, chamado Carlos Ávila. Tinha uma voz
estranha, estrangulada, como se tivesse engolido um objeto pontiagudo
que não conseguisse fazer descer. Ele gostava de mim — basicamente,
acho eu, porque eu não o ignorava como todos que moravam ali.
— Dando duro, Carlos? — falei ao passar por ele. Normalmente era o
que ele me dizia quando eu chegava em casa ridiculamente tarde,
parecendo arrasado.
— Nem um pouco, sr. Cassidy — disse ele, com um sorriso, e virou-se
para o noticiário da TV.
Andei dois quarteirões até o Starbucks, que acabava de abrir, e
comprei um grande latte triplo e, enquanto esperava que o garoto aspirante
a grunge e cheio de piercings vaporizasse um litro de leite a dois por
cento, peguei um Wall Street Journal que fez com que meu estômago
desse uma cambalhota.
O principal artigo da primeira página era sobre a Trion. Ou, como
tinham posto na manchete: "Os infortúnios da Trion". Havia um desenho
tipo gravura pontilhada de Goddard parecendo inadequadamente animado,
como se ele estivesse totalmente por fora de tudo, não tivesse nada a ver
com aquilo. Uma das manchetes menores dizia: "Estarão os dias do
fundador Augustine Goddard contados?" Tive que ler duas vezes. Meu
cérebro não estava funcionando à velocidade máxima, e eu precisava do
meu café com leite triplo, contra o qual o garoto grunge parecia estar
lutando. O artigo era um texto impactante e inteligente, escrito por um dos
redatores do Journal chamado William Bulkeley que, obviamente, tinha
bons contatos na Trion. A questão principal parecia ser o fato de que as
ações da Trion estavam caindo, seus produtos eram antiquados, a
companhia ("considerada geralmente líder em produtos eletrônicos de
telecomunicações") estava encrencada e ninguém conseguia entrar em
contato com Jock Goddard, fundador da Trion. O coração dele não estava
mais na firma. Havia um parágrafo inteiro sobre a "longa tradição" de
fundadores de companhias high-tech serem substituídos quando suas
companhias atingem determinado tamanho. O articulista perguntava se ele
não seria a pessoa errada para presidir a Trion no período de estabilidade
que se seguiu a uma época de crescimento explosivo. Havia muita coisa
sobre a filantropia de Goddard, suas obras de caridade, o seu hobby de
colecionar e reparar carros clássicos americanos e sobre como ele
reconstruíra completamente seu valiosíssimo Buick Roadmaster
conversível 1949. Goddard, segundo o artigo, parecia destinado a cair.
Ótimo, pensei. Se Goddard cai, adivinha quem cai com ele.
Aí então me lembrei: espera um segundo, Goddard não é o meu
verdadeiro empregador. Ele é o alvo. Meu patrão de verdade é Nick Wyatt.
Era fácil esquecer onde deveriam estar minhas verdadeiras lealdades, com
a excitação do primeiro dia e tudo mais.
Finalmente meu latte ficou pronto, e acrescentei a ele dois envelopes
de açúcar Turbinado, tomei um gole grande — que escaldou minha
garganta — e pus a tampa de plástico. Sentei-me a uma mesa para
terminar de ler o artigo. O jornalista parecia saber tudo sobre Goddard, o
pessoal da Trion falava com ele. Suas facas tinham sido desembainhadas
para o velho.
No drive in tentei ouvir um CD de Ani DiFranco que eu pegara na
Tower como parte do meu projeto de pesquisa Alana, mas, após alguns
segundos, tirei a coisa.
Não dava para aguentar. Duas das canções não eram canções e sim
falação. Se eu quisesse ouvir um troço falado, preferia Jay-Z ou Eminem.
Não, obrigado.
Pensei no artigo do Journal e tentei imaginar o que dizer para o caso
de alguém me perguntar a respeito. Que era um monte de mentiras
plantadas por um de nossos competidores para nos solapar? Ou que o
repórter deixara de lado a verdadeira história (qualquer que ela fosse)? Ou
ainda que tinham sido levantadas algumas boas perguntas que precisavam
ser respondidas? Decidi ficar com uma versão modificada desta última
ideia — que, qualquer que fosse a verdade das suas acusações, o que
contava era o que os acionistas pensavam, e quase todos eles liam o Wall
Street Journal, de modo que deveríamos levar o artigo a sério, verdade ou
mentira.
Eu gostaria de saber quem seriam os inimigos de Goddard que
pudessem estar fazendo aquilo, se a situação de Jock Goddard era mesmo
difícil, se eu estaria subindo a bordo de um navio que afundava ou, para
ser mais preciso, se Nick Wyatt tinha me posto em um navio fazendo água.
Pensei: o cara deve estar mesmo mal — ele me contratou, não foi?
Tomei um gole de café e, como a tampa não estava presa direito, o café
com leite cremoso espirrou no meu colo. Parecia que eu tinha tido um
"acidente". Que maneira de começar em um novo emprego. Devia tomar
aquilo como uma advertência.
43
Quando saí do banheiro, onde me esforcei ao máximo para limpar a
mancha de café, deixando a calça molhada e amarrotadas, passei pela
pequena banca de jornais no saguão da ala A, o prédio principal, onde
eram vendidos os jornais locais além do USA Today, o New York Times, o
cor de salmão Financial Times e o Wall Street Journal. A pilha
normalmente alta do Wall Street Journal já estava reduzida à metade e
ainda era pouco mais de sete da manhã. Obviamente todo mundo estava
lendo a matéria sobre a Trion. Imaginei que cópias da versão eletrônica do
jornal já estivessem sendo distribuídas por e-mail. Disse oi para a
embaixadora do saguão e peguei o elevador para o sétimo andar.
Flo, a assistente-chefe de Goddard, já mandara por e-mail os detalhes
do meu novo escritório. Isso mesmo, não era um cubículo e sim um
escritório de verdade, do mesmo tamanho que o de Jock Goddard, que, por
sinal, estava às escuras como todos os demais do corredor executivo. O
meu, contudo, tinha as luzes acesas. Sentada em sua sala, que ficava antes
da minha, estava minha nova assistente administrativa, Jocelyn Chang,
uma sino-americana com uns quarenta anos e ar de dominadora, trajando
um costume azul impecável. Jocelyn tinha as sobrancelhas arqueadas com
perfeição, cabelo preto curto e uma boquinha em feitio de arco, decorada
com um batom cor de pêssego que parecia úmido.
Quando me aproximei, fitou-me com a boca contraída e estendeu a
mão.
— O senhor deve ser o sr. Cassidy.
— Adam — falei. Eu não sabia, teria sido aquele o meu primeiro erro?
Será que eu deveria manter distância, ser formal? Parecia-me ridículo e
desnecessário. Afinal de contas, todos ali chamavam o presidente de
"Jock". E eu tinha metade da idade dela.
— Sou Jocelyn — disse ela. Tinha um sotaque suave e meio nasalado
que parecia de Boston, coisa que eu não esperava. — Prazer em conhecê-
lo.
— Igualmente. Flo me disse que você está aqui desde sempre.
Epa. As mulheres não gostam de ouvir coisas desse tipo.
— Quinze anos — disse ela, cautelosamente. — Os últimos três para
Michael Gilmore, seu predecessor imediato. Ele foi transferido para outra
função há duas semanas, mais ou menos, de modo que eu estava no ar.
— Quinze anos. Excelente. Vou precisar de todo auxílio possível.
Ela balançou a cabeça, sem sorriso, sem nada. Em seguida pareceu
notar o Journal que eu tinha debaixo do braço.
— Não vai falar sobre isso com o sr. Goddard, vai?
— Na verdade, eu ia pedir a você para recortar e mandar emoldurar.
Vou dar de presente a ele. Para o seu escritório.
Ela me dirigiu um longo olhar aterrorizado. Depois um sorriso lento.
— É uma piada — disse. — Certo?
— Certo.
— Desculpe. O sr. Gilmore não era conhecido pelo senso de humor.
— Tudo bem. Eu também não.
Ela balançou a cabeça, sem saber ao certo como reagir.
— Certo — repetiu, dando uma olhada no relógio. — Reunião às sete e
meia com o sr. Goddard.
— Ele ainda não chegou.
Ela consultou o relógio de novo.
— Chegará. Na verdade, aposto como acaba de entrar. O sr. Goddard
mantém uma programação muito regular. Oh, um momento — ela me
passou um documento muito sofisticado, que tinha facilmente mais de
cem páginas, encadernado em couro sintético azul, com as palavras BAIN &
COMPANY na capa.
— Flo disse que o sr. Goddard queria que você lesse isso antes da
reunião.
— A reunião... em dois minutos e meio.
Ela deu de ombros.
Seria o meu primeiro teste? Não havia como ler sequer uma página
daquela algaravia incompreensível antes da reunião, e eu com certeza não
ia me atrasar. Bain & Company é uma firma de consultoria de
administração global que cobra preços exorbitantes e que pega sujeitos da
minha idade, caras que sabem ainda menos que eu, e os treina até
transformá-los em idiotas de babar, e os faz visitar companhias e escrever
relatórios, cobrando centenas de milhares de dólares pela sua sabedoria
falsificada. Aquele documento trazia carimbado TRION SECRETO. Dei uma
folheada rápida e todos os clichês e palavras da moda saltaram aos meus
olhos — "administração aerodinâmica", "vantagem competitiva",
"excelência de operações", "relação custo-ineficiência", "deseconomias de
escala", "minimização do trabalho agregado sem valor", blablablá. Eu não
precisava ler para saber do que se tratava.
Demissões. Colheita de cabeças nas fazendas de cubículos.
Genial, pensei. Bem-vindo à vida no topo.
44
Goddard já estava sentado a uma mesa redonda na sala dos fundos com
Paul Camilletti e outro sujeito quando Flo me fez entrar.
O terceiro sujeito tinha seus cinquenta e cinco anos, era careca com
uma franja de cabelo grisalho, vestia um terno xadrez cinzento fora de
moda, camisa e gravata, tudo comprado em uma loja de roupas de homem
de algum shopping, e tinha um anel de formatura grandalhão na mão
direita. Reconheci-o: era Jim Colvin, diretor de operações da Trion.
A sala dos fundos de Goddard era do mesmo tamanho da sala da frente,
três por três e, mesmo só com quatro caras ali e a mesa redonda, parecia
apinhada. Eu gostaria de saber por que não estávamos nos encontrando em
alguma sala de reuniões, um lugar um pouco maior, mais de acordo com
executivos tão poderosos. Eu disse oi, sorri nervosamente, sentei-me em
uma cadeira ao lado de Goddard e pus na minha frente o documento da
Bain e a caneca da Trion com café que Flo me dera. Depois peguei um
bloco de papel amarelo e uma caneta e fiquei pronto para tomar notas.
Goddard e Camilletti estavam em mangas de camisa, sem paletó -e nada
de golas rulê pretas.
Goddard parecia ainda mais velho e cansado do que na última vez em
que eu o vira. Tinha um par de óculos de leitura, desses de meia lente,
pendurado no pescoço.
Espalhadas em cima da mesa havia diversas cópias do artigo do Wall
Street Journal, uma delas assinalada com as cores amarelo e verde.
Camilletti me olhou de cara feia quando me sentei.
— Quem é esse aí? — ele perguntou.
Nada de "Bem-vindo a bordo".
— Você se lembra do sr. Cassidy, não se lembra?
— Não.
— Da reunião sobre o Maestro? Aquela coisa dos militares?
— Seu novo assistente — disse ele, sem entusiasmo. — Certo. Seja
bem-vindo à central de controle de danos, Cassidy.
— Jim, este é Adam Cassidy — disse Goddard. — Adam, Jim Colvin,
nosso diretor de operações.
Colvin balançou a cabeça.
— Adam.
— Estávamos começando a falar sobre a porcaria desse artigo do
Journal — disse Goddard — e como lidar com ele.
— Bem — disse eu — é só um artigo. Será esquecido em dois dias,
sem dúvida.
— Nada disso — retrucou Camilletti bruscamente, me olhando com
uma expressão tão assustadora que eu pensei que ia me transformar em
pedra... — Estamos falando do Wall Street Journal. Primeira página. Todo
mundo lê. Membros de conselhos, investidores institucionais, analistas,
todo mundo. Isto é um choque de trens.
— Não é bom — concordei. E disse a mim mesmo para ficar de boca
fechada.
Goddard suspirou ruidosamente.
— A coisa pior a fazer é exagerar — disse Colvin. — Nada de
excessos ao girar o taco. Não queremos sinalizar para a indústria que
estamos em pânico.
Gostei da referência ao taco. Evidente que Jim Colvin jogava golfe.
— Quero Relações com o Investidor aqui agora, e também
Comunicações Corporativas e vamos redigir uma resposta, uma carta ao
editor — disse Camilletti.
— Esquece o Journal — disse Goddard. — Acho que eu gostaria de
sugerir ao New York Times uma entrevista exclusiva. Digo que será uma
oportunidade para tratar de assuntos que preocupam toda a indústria. Eles
vão querer.
— O que for — concordou Camilletti. — De qualquer modo, não
vamos protestar escandalosamente. Não queremos forçar o Journal a
publicar uma sequência, mexer mais ainda a lama.
— A impressão que tenho é de que o repórter do Journal deve ter
conversado com alguém daqui — falei, esquecendo a promessa de ficar
com a boca calada. — Temos alguma ideia de quem possa ser o
responsável pelo vazamento?
— Recebi um correio de voz do repórter há uns dois dias, mas eu
estava fora do país — disse Goddard. — Assim, estou indisponível para
comentários.
— O cara deve ter ligado para mim — não sei, posso checar meu
correio de voz — mas certamente não retornei seu telefonema — disse
Camilletti.
— Não posso imaginar uma pessoa da Trion tomando parte nisso
conscientemente.
— Um de nossos competidores — disse Camilletti. — Wyatt, talvez.
Ninguém olhou para mim. Perguntei-me se os outros dois sabiam que
eu tinha vindo da Wyatt.
Camilletti prosseguiu:
— Muitas coisas aqui são citações de alguns dos nossos revendedores
— British Tel, Vodafone, DoCoMo — a respeito de como os novos
celulares não estão vendendo. Os cães não estão comendo ração. Mas
como é que um repórter com uma coluna em Nova York consegue saber
ligar para a DoCoMo no Japão? Tem que ser a Motorola, a Wyatt ou a
Nokia — foi uma das três que deu a dica.
— De qualquer modo — disse Goddard —, isso é água que já passou
sob a ponte. Meu trabalho não é administrar a mídia e sim a droga desta
companhia. E este artigo idiota, por mais distorcido e injusto que seja —
bem, na verdade o quanto ele é terrível? A não ser pela manchete de anjo
da morte, o que há nesse artigo que seja tão novo? Costumávamos
confirmar o valor de nossas ações pontualmente a cada trimestre, nunca
falhávamos, podíamos melhorar um ou dois centavos. Éramos os
queridinhos de Wall Street. Ok, o crescimento da receita é zero, mas pelo
amor de Deus, a indústria toda está sofrendo! Não posso deixar de detectar
um pouco de satisfação com o sofrimento alheio neste artigo.
Schadenfreude. Mas se até Homero cochilava, qualquer um pode se
enganar.
— Homero? — perguntou Colvin, confuso.
— Mas toda essa bobagem de que talvez venhamos a enfrentar nosso
primeiro prejuízo em um trimestre nestes quinze anos — disse Goddard —
é pura invenção...
Camilletti sacudiu a cabeça.
— Não — disse ele baixinho —, é ainda pior do que isso.
— Do que você está falando? — perguntou Goddard. — Acabo de vir
de nossa reunião de vendas no Japão, onde tudo correu às mil maravilhas!
— Ontem à noite, quando recebi o e-mail de alerta sobre este artigo —
disse Camilletti —, soltei e-mails urgentíssimos para os VPs Financeiros
para a Europa e para Asia/Pacific dizendo que eu queria ver todos os
números da receita referentes a esta semana e as vendas deste trimestre até
esta data, especificadas por cliente.
— E? — instou Goddard.
— Covington, de Bruxelas, comunicou-se comigo uma hora atrás.
Brody, de Cingapura, no meio da noite, e os números de ambos são uma
porcaria. O sell-in foi forte, mas o sell-through foi terrível. Ou seja, o
varejo, sem demanda, pouco vende, mesmo que as vendas para os
varejistas ainda se aguentem. Asia/Pacific e EOMA — Europa, Oriente
Médio e África — constituem sessenta por cento de nossas vendas, e
estamos despencando de um penhasco. O fato, Jock, é que vamos ter
prejuízo neste trimestre, e um baita de um prejuízo. Um desastre que se
aproxima rapidamente.
Goddard olhou para mim.
— Você está, obviamente, ouvindo informações privilegiadas que não
podem ser tornadas públicas, Adam, vamos deixar isto bem claro. Nem
uma só palavra...
— Naturalmente.
— Nós temos — começou Goddard, mas sua voz falhou e ele teve que
começar de novo. — Pelo amor de Deus, nós temos o AURORA...
— O lucro a ser gerado pelo AURORA será realizado apenas ao longo de
diversos trimestres — disse Camilletti. — Temos que resolver o problema
de agora. Para as operações correntes. E vou lhe dizer uma coisa: quando
esses números vierem a público, nossas ações sofrerão um baque tremendo
— prosseguiu Camilletti, falando baixo. — Nossa receita do quarto
trimestre será menor vinte e cinco por cento. Vamos ter que arcar com um
ônus significativo por excesso de estoque.
Camilletti fez uma pausa e dirigiu um olhar significativo a Goddard.
— Estou estimando o prejuízo, antes dos impostos, em qualquer coisa
perto de meio bilhão de dólares — disse ele.
Goddard estremeceu.
— Meu Deus! — exclamou.
Camilletti continuou.
— Estou sabendo por acaso que o CS First Boston já está prestes a
diminuir nossa classificação de "sobrepeso" para "peso de mercado". É a
mesma coisa que dizer "espera"
em vez de "compra". E olha que é antes disso tudo ser divulgado.
— Meu Deus! — disse Goddard, suspirando e sacudindo a cabeça. —
É tão absurdo, tendo em vista o que sabemos que estamos preparando.
— Este é o motivo pelo qual temos que dar outra olhada nisso — disse
Camilletti, apontando seu exemplar do documento Bain azul com o dedo
indicador.
Os dedos de Goddard tamborilaram em cima do estudo. Seus dedos,
notei, eram gorduchos, e o dorso das mãos cheio de manchas escuras.
— Você nunca me disse quanto custou esse relatório tão lindamente
encadernado — disse ele.
— Você não quer saber — disse Camilletti.
— Não quero, não é mesmo? — ele fez uma careta, como se tivesse
comprovado o que queria dizer. — Paul, eu jurei que nunca faria isso. Dei
minha palavra.
— Meu Deus, Jock, se isto é sobre seu ego, sua vaidade...
— É sobre eu cumprir minha palavra. É sobre a minha credibilidade.
— Bem, você não deveria ter feito essa promessa. Nunca diga nunca.
Seja como for, você estava falando no contexto de uma economia diferente
— pré-histórica. Da era mesozoica, pelo amor de Deus. Nave espacial
Trion progredindo com a velocidade maior do que a da luz. Somos uma
das poucas companhias high-tech que ainda não dispensaram mão de obra.
— Adam — disse Goddard, virando-se para mim e olhando por cima
dos óculos —, você teve uma chance de dar uma olhada nesse palavrório?
Sacudi a cabeça.
— Recebi há poucos minutos. Só passei os olhos.
— Quero que examine cuidadosamente as projeções relativas aos
produtos eletrônicos dirigidos ao consumidor. Página oitenta e qualquer
coisa. Você tem uma certa familiaridade com isso.
— Agora? — perguntei.
— Agora. E me diga se esses números lhe parecem realistas.
— Jock — disse Jim Colvin. — É quase impossível conseguir
projeções honestas de qualquer um dos chefes de divisão. Todos protegem
seu efetivo, guardam seu território.
— É por isso que Adam está aqui — ele não tem território a proteger.
Folheei febrilmente o relatório, tentando dar a impressão de que eu
sabia o que estava fazendo.
— Paul — disse Goddard —, já passamos por tudo isso antes. Você vai
me dizer que temos de cortar oito mil posições se quisermos ser magros e
sovinas.
— Não, Jock. Se quisermos ter condições de pagar nossas contas. E o
número de cortes chega a dez mil.
— Certo. Então me diga uma coisa. Em nenhum lugar deste maldito
tratado diz que uma companhia que reduz seu tamanho ou acerta seu
tamanho ou como quer que você queira chamar os cortes de pessoal que
serão feitos vai melhorar em longo prazo. Só se ouve falar em curto prazo.
Camilletti deu a impressão de que ia responder, mas Goddard
prosseguiu.
— Oh, eu sei, todo mundo faz. É uma reação automática, instintiva. Os
negócios vão mal? Livre-se de parte da mão de obra. Jogue o lastro no mar
para não afundar o navio. Mas os cortes realmente levam a um aumento
sustentado no valor das ações, ou na participação no mercado? Com os
diabos, Paul, você sabe tão bem quanto eu que assim que o céu clarear nós
vamos contratar a maioria deles de volta. Vale realmente a pena toda essa
maldita confusão?
— Jock — disse Jim Colvin —, é o que chamamos de regra Oitenta-
Vinte — vinte por cento das pessoas fazem oitenta por cento do trabalho.
Só estamos cortando a gordura.
— A "gordura" são pessoas dedicadas à Trion — retrucou Goddard —
para quem expedimos aquelas plaquetas de identidade que falam de
lealdade e dedicação. Bem, é uma rua de mão dupla, não é? Esperamos
lealdade deles, mas eles não devem esperá-la de nós? No que me diz
respeito, se seguirmos por essa rua, perderemos mais do que o número de
empregados dispensados. Perderemos uma sensação de confiança que é
fundamental. Se nossos empregados cumprem a parte deles do contrato,
como não iremos cumprir a nossa? É uma maldita quebra de confiança.
— Jock — disse Colvin —, o fato é que você tornou uma porção de
empregados da Trion muito ricos nos últimos dez anos.
Enquanto isso eu consultava, o mais depressa que podia, as tabelas de
receitas projetadas, tentando compará-las com os números que tinha visto
nas últimas duas semanas.
— Não é hora de ser magnânimo, Jock — disse Camilletti. — Não
podemos nos dar a esse luxo.
— Oh, eu não estou sendo magnânimo — retrucou Goddard,
tamborilando mais um pouco no tampo da mesa. — Estou sendo, isto sim,
brutalmente prático. Não tenho problema em me livrar dos preguiçosos,
dos que não se esforçam, dos que só querem fazer passar o tempo que for
preciso para exercerem seus direitos acionários. Que se danem todos eles.
Mas dispensa de pessoal nessa escala só serve para aumentar o
absenteísmo, as licenças por motivo de saúde, os grupos reunidos em torno
dos bebedouros em que todos querem saber qual é o último boato.
Paralisia. Para usar uma expressão que você compreende, Paul, declínio de
produtividade.
— Jock — começou Colvin.
— Eu vou lhe dar a regra dos oitenta-vinte — interrompeu Goddard
—, se fizermos isso, oitenta por cento dos meus empregados
remanescentes não serão capazes de concentrar mais que vinte por cento
de sua capacidade mental no trabalho. Adam, o que você está achando das
previsões?
— Sr. Goddard...
— Eu demiti o último sujeito que me chamou de senhor.
Eu sorri.
— Jock, olha só, eu não vou dançar aqui para vocês verem. Não
conheço a maior parte dos números e não vou chutar de qualquer maneira.
Não em uma coisa tão importante. Mas eu conheço bem os números do
Maestro e posso lhe dizer que, com franqueza, são excessivamente
otimistas. Enquanto não começarmos a vender para o Pentágono...
presumindo que consigamos conquistar esse negócio, os números do
Maestro são altos demais.
— Significando que a situação pode ser ainda pior do que o nosso
consultor de cem mil dólares nos diz.
— Sim, senhor Pelo menos se os números do Maestro podem servir de
indicação.
Ele balançou a cabeça.
Camilletti disse:
— Jock, deixe que eu coloque isso para você em termos humanos. Meu
pai era um professor, um mestre, certo? Mandou seis filhos para a
faculdade com o salário de professor, não me pergunte como, mas foi o
que ele fez. Agora ele e mamãe vivem de suas economias ínfimas, as
quais, em sua maior parte, são atreladas às ações da Trion, porque eu disse
a eles que a Trion era uma grande companhia. Não é muito dinheiro, pelos
nossos padrões, mas eles já perderam vinte e seis por cento de sua
poupança e estão prestes a perder muito mais. Esquece essa coisa de
fidelidade e títulos de capital e fundos de investimento. A vasta maioria de
nossos acionistas é de Tony Camillettis, e o que é que nós vamos dizer
para essa gente?
Tive a nítida sensação de que Camilletti estava inventando aquilo, que
na realidade seu pai era um banqueiro de investimentos que vivia em uma
comunidade fechada em Boca e jogava muito de golfe, mas os olhos de
Goddard brilhavam intensamente.
— Adam — disse Goddard —, você entende o que quero dizer, não
entende?
Por um momento senti-me como um animal selvagem imobilizado
pelos faróis de um carro. Era óbvio o que Goddard queria ouvir de mim.
Mas, após um segundo, sacudi a cabeça.
— O que eu acho — falei lentamente — é que se o corte não for feito
agora, provavelmente terá que ser feito, em maior número, daqui a um
ano. Assim, tenho que lhe dizer que concordo com o sr. Camilletti... com
Paul.
Camilletti estendeu o braço e me deu um tapinha no ombro. Recuei um
pouco. Não queria que parecesse que eu estava tomando partido — contra
meu chefe. Não era uma boa maneira de começar em um novo emprego.
— Quais são os termos que você está propondo? — perguntou
Goddard, com um suspiro.
Camilletti sorriu.
— Indenização por afastamento no valor de quatro semanas de salário.
— Seja qual for o tempo que a pessoa trabalhe conosco? Não. Duas
semanas para cada ano de trabalho na Trion, mais um adicional de duas
semanas para cada ano além de dez anos.
— Isso é loucura, Jock! Em alguns casos você vai pagar uma
indenização no valor de um ano, talvez mais.
— Isso não é indenização — resmungou Jim Colvin. — É assistência
social.
Goddard encolheu os ombros.
— Ou nós fazemos os cortes nestes termos ou não fazemos cortes.
Ele me dirigiu um olhar pesaroso.
— Adam, se algum dia você for jantar fora com Paul, não deixe que
ele escolha o vinho.
Virou-se em seguida para o seu Financeiro.
— Você quer os cortes a partir de primeiro de junho, certo?
Camilletti aquiesceu, desconfiado.
— Em algum canto da minha memória — disse Goddard —, tenho
uma vaga lembrança de que assinamos um ano de contrato de indenização
com a divisão CableSign que adquirimos no ano passado, e esse prazo
expira no dia trinta e um de maio. Na véspera.
Foi a vez de Camilletti dar de ombros.
— Bem, Paul, são quase mil trabalhadores que receberiam um mês de
salário mais um mês de pagamento para cada ano trabalhado... se nós os
dispensarmos um dia antes. Um pacote decente. E que fará uma imensa
diferença para esse pessoal. Não sendo assim, eles receberão uma merreca
de duas semanas.
— Primeiro de junho é o primeiro dia do trimestre...
— Não farei isso. Sinto muito. Agende para trinta de maio. E quanto
aos empregados cujas opções foram muito desvalorizadas, daremos doze
meses para que exerçam seu direito. E vou fazer um corte voluntário para
um dólar. E você, Paul?
Camilletti sorriu nervosamente.
— Você tem muito mais opções do que eu.
— Nós vamos fazer isso uma vez — disse Goddard. — Fazendo uma
única vez e direito. Não vou cortar duas vezes.
— Entendido — disse Camilletti.
— Está bem — disse Goddard com um suspiro. — Como estou sempre
repetindo, às vezes você só tem que entrar no carro e tocar o programa.
Mas primeiro eu quero administrar isso junto a toda a equipe de gerentes,
me reunir com tantos deles quanto for possível. Também quero falar com
os nossos banqueiros de investimentos. Estou pensando também em
anunciar via Webcast o programa de cortes para toda a companhia por
meio de um tape que exibiremos amanhã, depois do fechamento da Bolsa.
O anúncio público sairá ao mesmo tempo. Não quero uma única palavra a
respeito disto vazando antes.
— Se você preferir, eu faço o anúncio — disse Camilletti. — Assim
você fica com as mãos limpas.
Goddard fulminou Camilletti com um olhar.
— Não vou transferir isto para você. Recuso-me. A decisão é minha —
eu fico com o crédito, a glória, as capas das revistas e também a culpa. É o
que é direito.
— Só falei porque você já fez muitos pronunciamentos. Vão jogar
você na fogueira...
Goddard fez um gesto para dizer que não se incomodava, mas sua
aparência era péssima.
— Com certeza vão começar a me chamar de Goddard Serra Elétrica
ou algo assim.
— Acho que Jock Bomba de Nêutrons pega melhor — sugeri, e
Goddard, pela primeira vez, sorriu.
45
Deixei a sala de Goddard sentindo-me ao mesmo tempo aliviado e
esmagado pelo peso de um novo fardo. Sobrevivera ao meu primeiro
encontro com o cara, não fizera papel de tolo. Agora, no entanto, estava
também de posse de um importante segredo da companhia, segredo este
que ia mudar as vidas de uma porção de pessoas.
O negócio é o seguinte: decidi que não ia contar nada daquilo a Wyatt e
companhia. Não fazia parte de minha missão, não correspondia à descrição
da minha função.
Não tinha nada a ver com projetos especiais secretos. Eu não tinha que
contar para os meus manipuladores. De qualquer modo, eles não sabiam
que eu sabia. Eles que tomassem conhecimento dos cortes na Trion quando
todo mundo tomasse.
Preocupado, saltei do elevador no terceiro andar da ala A para pegar
um almoço fora de hora no restaurante, quando vi um rosto familiar vindo
na minha direção.
Era um sujeito alto e magro, entre vinte e cinco e trinta anos, com um
péssimo corte de cabelo.
— Ei, Adam! — ele gritou, quando entrei no elevador.
Mesmo na fração de segundo antes de eu conseguir dar um nome
àquele rosto, meu estômago deu um nó. Meu cerebelo sentiu o perigo
antes que meu cérebro soubesse o que era.
Respondi com um gesto de cabeça e segui em frente. Senti o rosto
pegando fogo.
O nome dele era Kevin Griffin, um sujeito afável e com ar de pateta,
mas um jogador de basquetebol decente. Costumava jogar pelada com ele
na Wyatt Telecommunications.
Ele trabalhava na Divisão Empresas, roteadores. Lembrava-me dele
como uma pessoa muito esperta e ambiciosa por trás daquele jeito
tranquilão. Seu rendimento como vendedor sempre superava as metas, e
ele costumava brincar comigo, com o seu jeito bonachão, sobre minha
atitude, digamos, casual, em relação ao trabalho.
Em outras palavras, ele sabia quem era eu realmente.
— Adam! — ele insistiu. — Adam Cassidy! Ei, o que é que você está
fazendo aqui?
Eu não podia continuar ignorando-o e me virei. Ele tinha segurado a
porta do elevador para evitar que fechasse.
— Oh, ei, Kevin — falei. — Você trabalha aqui agora?
Trabalho, em vendas — ele parecia empolgado, como se fosse uma
reunião de colegas de secundário. Baixou a voz. — Eles não chutaram
você da Wyatt por causa daquela festa? — o jeito dele não era maldoso
nem nada, só meio conspiratório.
— Não, não — hesitei por um segundo, tentando soar despreocupado e
alegre. — Foi tudo um grande mal-entendido.
— Ah — disse ele, na dúvida. — Onde é que você está trabalhando
aqui?
— Mesma coisa de sempre — respondi. — Ei, foi bom rever você,
cara. Com licença, tenho que correr.
Ele ficou me olhando, com curiosidade, enquanto as portas do elevador
se fecharam.
Aquilo não fora bom.
Parte Cinco

QUEIMADO

QUEIMADO: Exposição de pessoa, instalação (por exemplo, uma casa


segura)
ou de outros elementos de uma atividade ou organização clandestina.
Um agente queimado é aquele cuja identidade é conhecida da
oposição.

— Spy Book: The Encyclopedia of Espionage


46
Eu estava ferrado.
Kevin Griffin sabia que eu não tinha trabalhado no projeto Lucid no
meu tempo de Wyatt e sabia que eu tampouco era um superastro. Ele
conhecia a história verdadeira.
Provavelmente agora estava de volta ao seu cubículo me procurando na
intranet da Trion, assombrado de me ver listado como assistente executivo
do presidente. Quanto tempo levaria para ele começar a falar, contar
histórias, fazer perguntas? Cinco minutos? Cinco segundos?
Como diabos aquilo podia ter acontecido, depois de tanto
planejamento e de tantos trabalhos preparatórios pelo pessoal de Wyatt?
Como puderam permitir que a Trion contratasse uma pessoa que podia
sabotar todo o esquema?
Olhei em torno, aturdido. Lá estava o balcão da delicatessen da
cafeteria. De qualquer maneira, peguei um sanduíche de presunto com
queijo, porque precisava de proteínas, e uma Diet Pepsi, e voltei para o
meu novo escritório.
Jock Goddard estava no corredor perto da minha sala, conversando
com um outro sujeito com cara de executivo. Quando seu olhar cruzou
com o meu, levantou um dedo para que eu soubesse que queria falar
comigo, e eu fiquei, meio sem graça, guardando uma certa distância, à
espera de que ele terminasse a conversa.
Após uns dois minutos, Jock pôs a mão no ombro do homem, com ar
solene, e entrou na minha sala. Fui atrás dele.
— Você — disse Goddard ao se sentar na cadeira dos visitantes. O
único outro lugar para sentar era atrás da minha mesa, o que achei errado
— afinal ele era a droga do presidente! — mas não tive escolha. Sentei,
sorri para ele hesitante, sem saber o que esperar.
— Eu diria que você passou com nota dez com louvor — disse
Goddard. — Congratulações.
— É mesmo? Pensei que tinha sido reprovado — respondi. — Não me
senti exatamente confortável tomando o lado de outra pessoa.
— Foi para isso que o contratei. Oh, não para votar contra mim. Mas
para falar a verdade com os poderosos, como fez.
— Não era a verdade — retruquei. — Era só a opinião de um outro
sujeito.
Talvez eu agora tivesse exagerado.
Goddard esfregou os olhos com uma das mãos pequenas e gordas.
— A coisa mais fácil do mundo para o presidente de uma corporação
— e também a mais perigosa — é colocar-se fora do alcance das outras
pessoas. Ninguém quer realmente lhe dar a verdade nua e crua. Eles
querem manipular a informação que recebo. Todos têm seus próprios
interesses. Você gosta de história?
— Nunca pensei em história como alguma coisa de que pudesse
"gostar" — dei de ombros. — Certos episódios.
— Durante a Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill montou um
gabinete fora da cadeia de comando, cuja obrigação era lhe dizer a verdade
bruta. Sem disfarces.
Acho que o designou como Divisão Estatística ou algo assim. Seja
como for, o que interessa é que ninguém gostava de lhe dar más notícias,
mas ele sabia que se não as ouvisse seria incapaz de realizar seu trabalho.
Assenti com um movimento de cabeça.
— Você funda uma companhia, a fortuna sorri para você algumas
vezes, você se transforma quase em uma figura cult. Mas eu não preciso
de que, bem, beijem o meu anel. Preciso de sinceridade. Agora mais do
que nunca. Há um axioma neste ramo que diz que as companhias de
tecnologia inevitavelmente sobrevivem a seus fundadores. Aconteceu com
Rod Canion na Compaq, Al Shugart na Seagate. A Apple Computer,
inclusive, chutou Steve Jobs, se lembra, até que ele voltou galopando em
seu cavalo branco e salvou a firma. A verdade é que não há fundadores
velhos e ousados. Minha junta de diretores sempre teve muita fé em mim,
mas suspeito de que a fonte que alimenta essa fé está secando.
— Por que o senhor diz isso?
— Esse negócio de "senhor" tem que parar — disparou Goddard. — O
artigo do Journal foi uma advertência. Não me surpreenderia se tiver sido
obra de membros descontentes do conselho, gente que acha que está na
hora de eu me demitir, ir para minha casa de campo para lidar com meus
carros em regime de tempo integral.
— E você não quer isso, quer?
Ele fechou a cara.
— Farei o que for melhor para a Trion. Esta maldita companhia é a
minha vida. De qualquer modo, os carros são apenas um hobby — e se
você se dedica o dia inteiro a um hobby ele deixa de ser hobby.
Ele me entregou uma pasta grossa de papel manilha.
— Tem uma cópia em PDF Adobe disto aqui no seu e-mail. É o nosso
plano estratégico para os próximos dezoito meses — novos produtos,
upgrades, tudo, tudo. Quero que você me dê sua opinião simples e direta
— uma palestra, ou qualquer nome que queira dar, um voo de helicóptero.
— Para quando?
— O mais cedo possível. E se houver algum projeto em particular no
qual queira trabalhar, esteja à vontade. Verá que há todo tipo de coisas
interessantes sendo preparadas. Algumas das quais guardadas muito
estritamente. Meu Deus, uma delas, codinome projeto AURORA, pode
reverter inteiramente nossa sorte.
— AURORA? — repeti, engolindo em seco. — Você falou nisso na
reunião, não foi?
— Incumbi Paul de administrá-lo. É um troço verdadeiramente de
enlouquecer. Uns probleminhas no protótipo ainda precisam ser
solucionados, mas já está prestes a ser divulgado.
— Parece fascinante — falei, tentando parecer casual. — Adoraria
ajudar.
— Oh, você irá colaborar, não há dúvida. Mas no tempo devido. Não
quero desviá-lo agora de algumas dessas questões de acertos e faxinas na
casa, porque uma vez que se envolva com o AURORA... bem, não quero
mandar você seguir em muitas direções ao mesmo tempo, vai ficar como
massa de pizza, fino demais.
Ele levantou-se e juntou as mãos.
— Tenho que ir agora para o estúdio gravar o tape para a Webcast, o
que não é algo que eu esteja ansioso por fazer, posso lhe garantir.
Respondi com um sorriso compreensivo.
— De qualquer forma — disse Goddard —, desculpe ter jogado você
no fogo, mas tinha a impressão de que ia se sair bem.
47
Cheguei à casa de Wyatt junto com Meacham, que fez uma piada
qualquer sobre meu Porsche. Fomos levados para o requintado ginásio de
Wyatt. Era no porão, mas por causa do tratamento paisagístico, não ficava
abaixo do solo. Wyatt estava levantando pesos em um banco inclinado —
setenta e cinco quilos. Estava apenas de short, pequeno, por sinal, e os
músculos pareciam mais inchados do que nunca. Aquele cara era o próprio
Quadzilla.
Ele terminou a série antes de dizer uma palavra, levantou e enxugou-se
com uma toalha.
— Já foi demitido? — perguntou.
— Ainda não.
— Não, Goddard está com a cabeça cheia de outras coisas. Como o
fato de que sua companhia estar desmoronando.
Ele olhou para Meacham, e os dois homens gargalharam juntos.
— O que Santo Augustine tem a dizer a este respeito?
A pergunta não era inesperada, mas veio de modo tão abrupto que eu
não estava totalmente preparado.
— Não muito — respondi.
— Mentira — disse Wyatt, chegando mais perto de mim e me
encarando, numa tentativa de me intimidar com sua presença física. O ar
quente que se desprendia do seu corpo cheirava desagradavelmente, como
amônia: o cheiro de quem faz pesos e ingere proteína demais.
— Pelo menos não o que eu queria — emendei. — Quer dizer, acho
que o artigo realmente os assustou, houve um corre-corre. Mais confusão
do que o normal.
— O que é que você sabe sobre "normal"? — indagou Meacham. — É
seu primeiro dia no sétimo andar.
— Minha percepção — expliquei, sem convencer.
— Quanto do artigo é verdade?
— Quer dizer que não foram vocês que plantaram aquilo?
Wyatt me encarou, olho no olho.
— Eles vão ter prejuízo no trimestre ou não?
— Não tenho ideia — menti. — Não fico na sala de Goddard o dia
inteiro.
Não sei por que resisti tanto à ideia de revelar os números desastrosos
do trimestre ou a notícia dos próximos cortes. Talvez eu sentisse que
Goddard tinha me confiado um segredo e que seria errado eu quebrar a sua
confiança. Cristo, eu era um maldito espião, um informante — que
negócio era esse de me fazer passar por melhor que os outros? Por que de
repente começara a traçar linhas, isto eu conto, aquilo não conto? Quando
a notícia sobre os cortes saísse, amanhã, Wyatt ficaria uma fera comigo
por ter retido a informação. Não acreditaria que eu a desconhecesse.
Procurei enrolar um pouco.
— Mas está por acontecer algo — falei. — Coisa grande. Vai ser feito
um pronunciamento.
Entreguei a Wyatt uma cópia do plano estratégico que Goddard me
dera para analisar.
— O que é isso? — perguntou Wyatt.
Ele colocou a pasta em cima do banco, enfiou uma camisa regata pela
cabeça e começou a folhear o documento.
— É o planejamento estratégico da Trion para os próximos dezoito
meses. Inclusive com descrições detalhadas de todos os produtos novos a
serem lançados no mercado.
— Inclusive o AURORA?
Sacudi a cabeça negativamente.
— Mas Goddard falou nisso.
— Como?
— Só falou que havia um projeto importante de codinome AURORA e
que ia virar a companhia de cabeça para baixo. Disse que tinha dado a
administração do projeto a Camilletti.
— Hmm. Camilletti é o encarregado de todas as aquisições, e minhas
fontes dizem que o projeto AURORA foi formulado por uma série de firmas
que a Trion comprou secretamente no decurso dos últimos três anos.
Goddard falou o que era?
— Não.
— Você não perguntou?
— Claro que perguntei. Eu disse a ele que estava interessado em tomar
parte em algo tão significativo.
Wyatt, folheava o plano, empolgado. Silenciosamente, seus olhos
esquadrinhavam as páginas com extrema rapidez. Enquanto isso, passei
um pedaço de papel a Meacham.
— Número do celular pessoal de Jock.
— Jock? — perguntou Meacham, com repulsa.
— Todos o chamam de Jock. Não significa que tenhamos passado a ser
amigos de infância. De qualquer modo, de posse do número, você vai
conseguir rastrear suas ligações mais importantes.
Meacham embolsou o papel sem um agradecimento.
— Uma outra coisa — falei com Meacham, enquanto Wyatt
continuava fascinado com sua leitura. — Há um problema.
Meacham me olhou espantado.
— Não tente nos sacanear.
— Tem um novo contratado na Trion, um garoto chamado Kevin
Griffin, que trabalha em Vendas. Eles o tiraram de vocês... da Wyatt.
— E daí?
— E daí que éramos mais ou menos amigos.
— Amigos?
— Mais ou menos. Companheiros de pelada de basquete.
— Ele conhecia você na companhia?
— Conhecia.
— Merda — disse Meacham. — Isto é um problema.
Wyatt levantou os olhos do documento.
— Detone ele — disse.
Meacham balançou a cabeça, concordando.
— O que significa isso? — perguntei.
— Significa que cuidaremos dele — respondeu Meacham.
— Esta informação é valiosa — disse Wyatt finalmente. — Muito,
muito útil. O que ele quer que você faça com isso?
— Ele quer minha análise global do portfólio de produtos. O que é
promissor, o que não é, o que pode dar problema. O que for.
— Não é muito específico.
— Ele me disse que quer um voo de helicóptero.
— Pilotado por Adam Cassidy, o gênio do marketing — disse Wyatt,
achando graça. — Pois bem, pegue um bloco e uma caneta e comece a
tomar nota. Vou transformar você em uma estrela.
48
Fiquei acordado a maior parte da noite: para azar meu, estava
começando a me acostumar com isso.
O odioso Nick Wyatt passara mais que uma hora me dando a sua visão
da linha de produtos Trion, inclusive toda sorte de informações
privilegiadas, coisas que muito poucas pessoas saberiam. Era como tomar
conhecimento do que Rommel pensava de Montgomery. Obviamente ele
conhecia muito bem o mercado, já que era um dos principais competidores
da Trion, e dispunha de todo tipo de informação valiosa, o que estava
disposto a ceder, agora, a Goddard, com o único objetivo de fazer com que
Goddard se impressionasse comigo.
Suas perdas a curto prazo seriam seus lucros a longo prazo.
Corri de volta para Harbor Suites à meia-noite e fui trabalhar no
PowerPoint, organizando os slides para minha apresentação a Goddard.
Para ser sincero, senti-me um bocado elétrico. Sabia que eu não podia
enrolar; a palestra tinha que ser a melhor possível. Usando a informação
privilegiada vinda de Wyatt, eu impressionaria Goddard. Mas o que
aconteceria se não o impressionasse? E se ele me pedisse a opinião acerca
de algo e eu revelasse a minha verdadeira e ignorante pessoa? Como seria?
Quando não consegui mais trabalhar na palestra, fiz uma pausa e
verifiquei minha correspondências pessoal no Yahoo, Hotmail e Hushmail.
Os mesmos spam de sempre — "Viagra online COMPRE AQUI SEM RECEITA" e
"MELHOR SITE X!" ou ainda "APROVAÇÃO DE HIPOTECA!" Nada mais de
"Arthur". Então entrei na página da Trim para ver a correspondência via
Trion Web.
Um e-mail saltou diante dos meus olhos. Era de KGriffin@
trionsystems.com. Cliquei em cima.

ASSUNTO: Você
DE: KGriffin
PARA: ACassidy
Cara! Maravilha rever você! Legal ver como está elegante e
se saindo tão bem — legal! Muito impressionado com sua
carreira aqui. É alguma coisa na água? Me dá um pouco!
Estou começando a conhecer gente por aqui na Trion &
adoraria levar você para almoço ou o que for. Dê notícias!
Key

Não respondi — tinha primeiro que decidir como administrar aquilo. O


sujeito, evidentemente, ia procurar informações a meu respeito, vira meu
novo título e não entendera nada. O fato é que se queria sair comigo por
pura curiosidade ou apenas para puxar o saco, aquilo era uma grande
encrenca.
Meacham e Wyatt tinham dito que iriam "detoná-lo", fosse o que fosse
o que queriam dizer com isso, mas enquanto não agissem, eu precisava ter
muito cuidado. Kevin Griffin era uma pistola carregada perambulando,
pronta para atirar a qualquer instante. E eu não queria estar por perto.
Saí da Trion Web e entrei de novo, dessa vez usando o nome de usuário
de Nora e sua senha. Eram duas da manhã, e imaginei que ela deveria estar
desconectada.
Seria uma boa hora para entrar em sua correspondência arquivada,
examinar tudo e fazer o download do que tivesse a ver com o projeto
AURORA, se houvesse algo.
Tudo o que consegui foi SENHA INVÁLIDA, POR FAVOR TENTE DE NOVO.
Digitei novamente a senha dela, desta vez com mais cuidado e
consegui o mesmo resultado — SENHA INVÁLIDA. E desta vez eu tinha
certeza de que não havia cometido erros.
A senha dela tinha mudado.
Por quê?

Quando finalmente dei o dia por encerrado, minha cabeça estava a mil,
examinando todas as razões pelas quais Nora podia ter mudado de senha.
Talvez Luther, o guarda de segurança, houvesse aparecido em uma noite
em que Nora tivesse ficado trabalhando além do horário normal,
esperando me ver e puxar mais um papo sobre Mustangs ou algo assim,
mas encontrara Nora e não eu. Podia ter estranhado, e por isso mesmo —
embora absolutamente improvável — a houvesse interrogado. No final,
daria a ela a minha descrição e Nora não levaria muito tempo para deduzir
o que acontecera.
Mas se tivesse sido isso que acontecera, ela não se limitaria a mudar
de senha, certo? Faria mais. Ia querer saber o motivo pelo qual eu estivera
na sua sala, sem sua licença. Onde isso iria acabar, eu não queria nem
pensar...
Ou talvez fosse tudo inocente. Talvez ela tivesse simplesmente
mudado a senha rotineiramente, do mesmo modo como todo empregado da
Trion devia fazer a cada sessenta dias.
Provavelmente foi só isso.
Eu não dormi bem e, após algumas horas me revirando na cama, decidi
me levantar, tomar um banho de chuveiro e me vestir para o trabalho. O
que eu tinha que fazer para Goddard estava feito; o que faltava era o
trabalho do Wyatt, minha espionagem, que estava muito atrasada. Se eu
entrasse no trabalho bem cedo, talvez pudesse descobrir alguma coisa
sobre o AURORA.
Dei uma olhada no espelho ao sair. Minha aparência estava uma
porcaria.
— Já está de pé? — exclamou Carlos, o porteiro, quando trouxeram
meu Porsche. — Puxa vida, o senhor não pode trabalhar tanto assim, sr.
Cassidy. Vai ficar doente.
— Nada disso — falei. — Serve para me manter honesto.
49
Às cinco e pouco da manhã a garagem da Trion estava praticamente
vazia. Achei esquisito ver aquilo assim deserto. As luzes fluorescentes
banhavam tudo com uma espécie de bruma esverdeada, e o lugar cheirava
a gasolina e óleo de motor e o que mais pingasse dos carros: fluido de
freios, aditivo de radiador e provavelmente Mountain Dew. Meus passos
ecoavam.
Peguei o elevador dos fundos até o sétimo andar, que também estava
deserto, e percorri o corredor executivo às escuras até a minha sala,
passando pela sala de Colvin, pela de Camilletti e por outras salas, de
gente que eu ainda não conhecera, para chegar à minha. Todos os
escritórios estavam escuros e fechados; ninguém ainda chegara.
Mais que um escritório, a minha sala era uma possibilidade -não muito
mais que uma mesa nua, cadeiras e um computador, a almofada para o
mouse com a logomarca da Trion, um armário sem nada dentro e um
aparador com uns dois ou três livros. O escritório de um itinerante, um
nômade, um sujeito que pode se levantar e ir embora no meio da noite.
Precisava seriamente de um pouco de personalidade — porta-retratos,
coleção de itens desportivos, qualquer coisa divertida e curiosa, qualquer
coisa séria e inspiradora. Precisava de uma marca. Talvez, quando
conseguisse botar meu sono em dia, eu fizesse algo a esse respeito.
Entrei com minha senha, fiz o login e chequei de novo minha
correspondência. Em algum momento nas últimas horas depois da meia-
noite, um e-mail circular destinado a toda a companhia pedia que os
empregados visitassem o site da Trion mais tarde, às cinco horas da tarde,
Hora Padrão do Leste, a fim de tomarem conhecimento de "uma
importante declaração do presidente Augustine Goddard". Aviso este que
devia acionar as fábricas de boatos. Voariam e-mails. Eu gostaria de saber
quantas pessoas no topo — um grupo que, por estranho que parecesse,
agora me incluía — sabiam da verdade. Não muitas, eu era capaz de
apostar.
Goddard mencionara que o AURORA, o projeto fantástico sobre o qual
ele não queria falar, era da responsabilidade de Paul Camilletti. Querendo
saber se haveria alguma coisa em sua biografia oficial que pudesse lançar
alguma luz sobre o AURORA, fui ver o que dizia o diretório da junta de
diretores da companhia a seu respeito.
Lá estava a foto dele, carrancudo e sombrio e, no entanto, mais bonito
no retrato do que em pessoa. Uma minibiografia: nascido em Geneseo,
Nova York, estudou em escolas públicas no norte do estado de Nova York
— tradução, provavelmente a família não tinha dinheiro — Swarthmore,
Harvard Business School, ascensão meteórica em uma companhia de
produtos eletrônicos que foi grande rival da Trion e depois adquirida por
ela. Vice-Presidente Sênior da Trion por menos de um ano, antes de ser
nomeado Chefe de Operações. Um homem em movimento. Cliquei nos
hiperlinks para ver quem se reportava a ele, e apareceu uma janela com
todas as divisões e unidades sob suas ordens.
Uma das unidades era a Unidade de Pesquisa de Tecnologias
Disruptivas, que se reportava diretamente a ele, e da qual Alana Jennings
era a diretora de marketing.
Paul Camilletti supervisionava diretamente o projeto AURORA. De
repente, passava a ser um homem muito, mas muito importante.
Passei pelo escritório de Camilletti, o coração disparado e, é claro, não
vi sinal dele. Não às cinco e quinze da manhã. Notei também que a equipe
da faxina já passara por ali: havia um forro novo na lata de lixo de sua
assistente, era possível ver as marcas deixadas pelo aspirador no carpete e
ainda se podia sentir o cheiro de um líquido de limpeza.
Não havia ninguém no corredor, e, provavelmente, tampouco em todo
o andar.
Eu estava prestes a cruzar uma linha, a fazer algo arriscado em um
nível inteiramente novo.
Não me preocupava muito a possibilidade do aparecimento de um
segurança. Eu diria que era o novo assistente de Camilletti — o que é que
essa gente sabe?
Mas, e se a assistente do homem viesse mais cedo, para adiantar o
trabalho do dia? Ou, mais provável ainda, se o próprio Camilletti
aparecesse, querendo antecipar o começo da jornada? Tendo em vista o
grande pronunciamento de Goddard, era bem possível que ele tivesse que
dar telefonemas, escrever e-mails e mandar faxes para os escritórios
europeus da Trion, onde o relógio marcaria seis ou sete horas mais tarde.
Às cinco e meia da manhã, era meio-dia na Europa. Claro que ele podia
mandar os e-mails de casa mesmo, mas eu não podia deixar de lado a forte
possibilidade de que quisesse chegar ao escritório excepcionalmente cedo
hoje.
Dava para concluir que invadir a sala de Camilletti era insanamente
arriscado.
Mas, por algum motivo, decidi ir em frente de qualquer maneira.
50
A chave, no entanto, não podia ser encontrada em parte alguma.
Verifiquei em todos os lugares habituais — todas as gavetas da mesa
da sua assistente, dentro dos vasos de plantas e no depósito de clipes,
inclusive nos armários.
A mesa dela ficava aberta para o corredor, totalmente exposta, e eu
comecei a ficar nervoso por estar mexendo ali, um lugar a que eu
claramente não pertencia. Olhei debaixo do telefone, debaixo do teclado,
debaixo do computador dela. Estaria escondida sob as gavetas da
escrivaninha? Não. Debaixo da escrivaninha? Também não.
Havia uma pequena sala de espera ao lado da mesa — na realidade só
um sofá, uma mesinha de centro e duas cadeiras. Dei uma olhada lá
também. Nada de chave.
Bem, talvez não fosse exatamente irracional que o diretor financeiro
da companhia tomasse uma ou duas medidas de segurança destinadas a
dificultar o acesso indesejado ao seu escritório. A gente tem que admirar
uma coisa dessas, não tem?
Depois de dez minutos extremamente estressantes, decidi que não
estava escrito que eu fosse achar aquela chave, quando me lembrei de
repente, de um detalhezinho estranho acerca do meu próprio escritório
novo. Como todos os demais do andar executivo, ele era equipado com um
detector de movimentos, o que não é algo tão complicado quanto possa
parecer. Na verdade, é um equipamento comum de segurança nos
escritórios mais modernos — um modo de se ter certeza de que ninguém
fica trancado dentro da própria sala. Enquanto houver movimento do lado
de dentro, as portas não fecham (mais uma prova de que os escritórios do
sétimo andar eram mesmo um pouco mais iguais que os outros).
Se eu me movesse rapidamente poderia tirar vantagem daquilo...
A porta da sala de Camilletti era de mogno maciço, muito bem polida,
pesada. Não havia espaço entre a porta e o carpete felpudo. Não dava para
passar nem mesmo uma folha de papel por ali. O que tornava as coisas
mais complicadas — mas não impossíveis.
Eu precisava de uma cadeira para subir, mas não servia a da sua
assistente, que tinha rodinhas e não dava segurança. Encontrei uma cadeira
comum na sala de estar e a trouxe para junto da parede de vidro da sala de
Camilletti. Então voltei para a sala de estar. Lá estavam, espalhados em
cima da mesinha de centro, todos os costumeiros jornais e revistas —
Financial Times, Institutional Investor, CFO, Forbes, Fortune, Business 2.0,
Barron's...
Barron's. Resolvido. Era do tamanho e do peso de um tabloide. Peguei-
o — olhando mais uma vez em torno para me assegurar de que não ia ser
apanhado fazendo algo que não dava nem para começar a explicar —, subi
na cadeira e empurrei um dos painéis do revestimento acústico do teto.
Meti a mão no espaço vazio acima do teto suspenso, naquele lugar
escuro e poeirento cheio de fios, cabos e montes de troços, tateei até achar
o painel seguinte, que ficava diretamente sobre a sala de Camilletti e o
ergui, encostando-o na grade de metal.
Pegando o Barron's, passei a mão pelo buraco do meu lado e abaixei-a
bem devagar no buraco que ficava na sala de Camilletti, balançando-o.
Abaixei a mão o máximo que consegui, agitei o Barron's mais um pouco
— mas não aconteceu nada. Talvez o sensor de movimento não alcançasse
tão alto. Finalmente fiquei na ponta dos pés, estiquei o braço ao máximo
dobrando o cotovelo num ângulo impossível, e consegui abaixar o jornal
mais uns trinta centímetros, balançando-o de um lado para outro até forçar
alguns músculos.
Aí ouvi um clique.
Um clique quase inaudível, mas inquestionável.
Puxei o Barron's de volta, pus o painel acústico no lugar e fixei-o
firmemente. Depois desci da cadeira e coloquei-a no respectivo lugar.
Só então experimentei a maçaneta.
A porta abriu.
Eu pusera na bolsa de trabalho umas ferramentas, inclusive uma
lanterna Mag-Lite. Cerrei imediatamente as persianas, fechei a porta e só
então acendi a potente lanterna.
A sala de Camilletti era tão desprovida de personalidade quanto a de
todos os outros — a coleção genérica de fotos da família, as placas e
diplomas de prêmios e a mesma velha coleção de livros de administração
que todos fingem ler. Na verdade, o seu escritório era decepcionante. Não
era de esquina e não tinha janelas do teto ao chão, como na Wyatt
Telecomm. Não tinha absolutamente vista alguma. Eu gostaria de saber se
ele gostava de receber visitas importantes em uma sala tão humilde.
Podia ser o estilo de Goddard, mas certamente não era o de Camilletti.
Pão-duro ou não, ele dava a impressão de ser pretensioso. Eu ouvira dizer
que havia uma suíte elegantíssima destinada à recepção de visitas
importantes na cobertura do prédio executivo, ala A, mas ninguém que eu
conhecesse já estivera lá. Talvez fosse onde Camilletti recebesse os
figurões.
O computador dele ficara ligado, mas, quando acionei a barra de
espaços do teclado modernista preto e o monitor acendeu, apareceu a tela
ENTRE COM A SENHA, o cursor piscando. Sem a senha dele, claro, eu não
teria acesso aos arquivos.
Se ele tivesse escrito a senha em algum lugar, sem dúvida nenhuma eu
a acharia — gavetas, debaixo do teclado, colado na parte de trás do grande
monitor de cristal líquido. Nada. Só para testar, entrei com PCamilletti
@Trionsystems como nome de usuário e PCamilletti como senha.
Nada. Ele era realmente cauteloso para usar coisas tão fáceis, e eu
desisti depois de algumas tentativas.
Eu teria que conseguir sua senha pelo método antiquado: furtando.
Imaginei que provavelmente ele não notaria se eu instalasse um Keyghost
entre seu teclado e a torre, e foi o que fiz.
Admito que eu estava mais nervoso ali, na sala de Camilletti que na de
Nora. Seria de pensar que a esta altura eu já fosse um velho profissional
em invasão de escritórios, mas não, e havia uma vibração na sala de
Camilletti que me matava de medo. O sujeito em si já era aterrorizador e
não dava nem para imaginar as consequências de ser apanhado. Além do
mais, eu tinha que presumir que as precauções nos escritórios dos
executivos eram mais elaboradas que as do resto da Trion. Tinham que ser.
Claro, eu tinha sido treinado para vencer a maior parte das medidas-
padrão de segurança. Mas sempre há sistemas de detecção invisíveis, que
não disparam campainhas de alarme ou acendem luzes. Esta possibilidade
era a que me assustava mais.
Olhei em torno, procurando inspiração. Por alguma razão, a sala
parecia mais arrumada, mais espaçosa que as outras em que eu já estivera
na Trion. Aí percebi a razão: não havia armários. Por isso parecia tão
despojada. Pois bem, mas onde ficavam guardadas todas as pastas dele?
Quando finalmente me dei conta de onde elas tinham que estar, senti-
me um idiota. Claro. Não estavam ali porque não havia espaço, e não
estavam na área de sua assistente porque era aberta ao público,
insuficientemente segura.
Tinham que estar na sala dos fundos. Como Goddard, cada executivo
de alto nível da Trion tinha uma sala dupla, uma nos fundos, para reuniões,
do mesmo tamanho da sala da frente. Era assim que a Trion resolvera o
problema causado pela igualdade dos espaços de trabalho. Ei, o escritório
de todos era igual, só que os mandachuvas tinham dois escritórios.
A porta para a sala de reuniões estava aberta. Iluminei tudo com a
Mag-Lite, e vi uma copiadora pequena e arquivos de madeira — mogno,
por sinal — cobrindo duas paredes. No meio, havia uma mesa redonda,
como a de Goddard, mas menor. Cada gaveta era meticulosamente
etiquetada com uma letra que parecia de arquiteto.
A maior parte continha relatórios financeiros e contábeis, cujo
conteúdo deveria valer a pena estudar, se ao menos eu soubesse onde
procurar.
Mas quando vi as gavetas etiquetadas como DESENVOLVIMENTO
CORPORATIVO, perdi o interesse em tudo mais. DESENVOLVIMENTO
CORPORATIVO é uma palavra da moda para fusões e aquisições. A Trion era
conhecida por engolir vorazmente firmas novas ou pequenas e de tamanho
médio. Mais na época áurea do final da década de 1990 que hoje em dia,
embora ainda continuasse a adquirir diversas companhias por ano. Meu
palpite era de que aqueles arquivos estavam ali porque Camilletti
supervisionava as aquisições, concentrando-se na questão dos custos, valor
dos investimentos e coisas do gênero.
E, se Wyatt estivesse certo em sua teoria de que o projeto AURORA seria
implementado por um grupo de companhias que a Trion adquirira
secretamente, a solução do mistério AURORA tinha que estar ali.
Os armários também estavam destrancados por outro golpe de sorte.
Acho que a ideia era que, se você não conseguisse entrar na sala de
Camilletti, não ia nem chegar perto dos armários, por isso trancá-los seria
um trabalho desnecessário.
Havia montes de pastas sobre companhias que ou a Trion tinha
comprado inteiras ou parte ou que examinara mais detidamente e decidira
não se envolver. Alguns de seus nomes eu reconheci, mas a maioria não. Li
um folheto de cada uma delas para tentar adivinhar o que fazia, o que era
um trabalho bastante moroso, considerado que eu nem sabia ao certo o que
procurava. Como diabos eu ia saber que alguma pequena firma recém-
inaugurada era parte do AURORA quando não sabia de que se tratava este
projeto? Parecia totalmente impossível.
Mas então meus problemas foram resolvidos.
Uma das gavetas de DESENVOLVIMENTO CORPORATIVO estava rotulada
com PROJETO AURORA.
Lá estava. Simples assim.
51
Ofegante, abri a gaveta. Em verdade, meio que esperava que estivesse
vazia, como os arquivos do AURORA nos Recursos Humanos. Mas não.
Estava atulhada de folhetos, todos coloridos segundo um código que não
compreendi, com um carimbo de TRION CONFIDENCIAL em cada um.
Evidente que era o tesouro que eu procurava.
Pelo que era possível ver, aqueles arquivos eram sobre diversas firmas
novas — duas no vale do Silício, na Califórnia, e outras duas em
Cambridge, Massachusetts — estas adquiridas recentemente pela Trion
em condições do mais estrito sigilo. "Modo invisível ao radar", diziam as
pastas.
Eu sabia que aquilo era grande, algo muito importante, e meu pulso
começou a bater com mais força. Em cada página havia um carimbo de
SECRETO ou CONFIDENCIAL.
Mesmo sendo guardados na sala trancada do diretor financeiro, a
linguagem era obscura, velada. Havia frases como "Recomendo aquisição
o mais cedo possível" e "deve ser mantido abaixo do alcance do radar".
Assim, o segredo do AURORA estava ali.
Na verdade, não consegui entender muita coisa, apesar de ter lido tudo.
Uma companhia parecia ter desenvolvido uma maneira de combinar
componentes eletrônicos e óticos em um circuito integrado. Eu não sabia o
que isto significava. Uma anotação dizia que a companhia tinha resolvido
o problema do "baixo rendimento das bolachas".
Outra companhia tinha descoberto um modo de produzir em massa
circuitos fotônicos. Tudo bem, mas o que isto significava? Havia mais
algumas que eram especializadas em software, e eu não tinha ideia do que
faziam.
Uma companhia chamada Delphos Inc. — que por sinal parecia
interessante — descobrira um processo para refinar e manufaturar um
componente químico chamado fosfato de índio, feito de "cristais binários
de elementos metálicos e não-metálicos", fosse lá o que isto significasse.
Este material tinha "propriedades de transmissão e absorção ótica únicas",
afirmava um relatório para investidores. Aparentemente era usado para a
fabricação de certos tipos de laser. Pelo que eu podia dizer, a Delphos Inc.
conseguira encurralar o mercado. Eu tinha certeza de que mentes melhores
que a minha eram capazes de imaginar para que haveriam de servir
grandes quantidades de fosfito de índio. Quer dizer, quantos aparelhos de
laser alguém podia precisar?
Aqui, porém, estava a parte interessante: na pasta da Delphos havia
sido carimbada a expressão AQUISIÇÃO PENDENTE. A Trion, portanto, estava
em negociações para efetivar aquela compra. A pasta estava abarrotada
com a papelada financeira, que passou como um borrão diante de meus
olhos. Havia um documento de dez ou doze páginas referente à aquisição
da Delphos pela Trion. O resumo da ópera era uma oferta da Trion de
quinhentos milhões de dólares. Ao que parecia, tanto os cientistas de Palo
Alto, assim como a firma de Londres que era proprietária da maior parte
da Delphos, haviam concordado com os termos da proposta. É, quinhentos
milhões de dólares podem ajudar muito. Agora só faltava colocar os
pingos dos is. Um comunicado estava previsto, em princípio, para dentro
de uma semana.
Mas como é que eu ia copiar tudo aquilo? Levaria uma eternidade —
horas em pé junto a uma máquina de copiar. Já eram seis da manhã e, se
Jock Goddard entrava às sete e meia, era melhor acreditar que Paul
Camilletti chegava antes. Ou seja, eu precisava dar o fora. Não tinha
tempo para fazer as cópias.
Não consegui imaginar outra solução que não fosse levar tudo. Talvez
substituir por arquivos retirados de outro lugar, e...
E levantar todos os tipos de alarme no segundo em que Camilletti ou
sua assistente tentassem acessar os arquivos do AURORA.
Não. Má ideia.
Em vez disso, peguei uma página-chave de cada um dos oito arquivos
da companhia, meti na máquina e tirei uma cópia de cada. Em menos de
cinco minutos eu as tinha substituído nas respectivas pastas e posto as
cópias na minha pasta.
Tudo pronto, e era mais do que hora de dar o fora dali. Levantando
uma única régua das persianas da janela da sala da frente, dei uma espiada
para ver se não havia ninguém.
Às seis e quinze eu já estava de volta à minha sala. Pelo resto do
expediente teria que andar com aqueles documentos ultrassecretos do
AURORA, mas era melhor do que deixar numa gaveta e correr o risco de
Jocelyn descobri-los. Sei que talvez pareça paranoico, mas eu precisava
agir contando com a possibilidade de que ela examinaria as gavetas da
minha mesa. Jocelyn Chang podia ser "minha" assistente, mas seu
contracheque corria por conta de Trion Systems e não de mim.
Exatamente às sete ela chegou. Meteu a cabeça na minha sala, levantou
as sobrancelhas e disse "Bom dia" com um tom de surpresa bem
expressivo.
— Dia, Jocelyn.
— Chegou cedo.
— É, cheguei — resmunguei.
Ela me olhou de lado.
— Você... você já está aqui há muito tempo?
Deixei escapar um suspiro fundo.
— Você não vai querer saber — respondi.
52
Minha grande apresentação para Goddard foi sendo adiada e adiada.
Deveria ser às oito e meia, mas dez minutos antes recebi uma mensagem
InstaMail de Flo me dizendo que a reunião de Jock estava demorando mais
que o planejado, vamos passar para as nove. Logo em seguida outra
mensagem instantânea de Flo: a reunião não mostrava sinal de terminar,
vamos adiar para nove e meia.
Imaginei todos os gerentes de alto nível brigando para saber quem
suportaria o impacto maior dos cortes. Provavelmente todos eram a favor
dos cortes, de um modo geral, mas não nas divisões que chefiavam. A
Trion não era diferente de qualquer outra corporação: quanto mais gente
sob suas ordens no organograma, mais poder você tem. Ninguém quer
perder efetivo.
Eu estava morrendo de fome e devorei uma barra de proteínas.
Também me sentia exausto, mas ligado demais para fazer qualquer outra
coisa que não fosse trabalhar na minha apresentação em PowerPoint, a fim
de torná-la mais eficiente. Pus uma figura animada entre os slides, aquele
boneco desenhado com pauzinhos que coça a cabeça com um ponto de
interrogação em cima. E me empenhei em enxugar ao máximo o texto;
tinha lido não sei onde algo a respeito de uma Regra do Número Sete —
nada além de sete palavras por linha e de sete linhas por página. Ou seria
Regra do Cinco? Imaginei que Jock podia estar um pouco sem paciência e
atenção, tendo em vista o que estava passando, e por isso não parei de
encurtar o meu texto, torná-lo mais enérgico.
Quanto mais esperava, mais nervoso ficava e mais minimalistas meus
slides do PowerPoint se tornavam. E os efeitos especiais iam ficando cada
vez mais legais.
Descobri como fazer as barras dos gráficos encolherem e crescerem
diante dos olhos do espectador. Goddard ficaria impressionado.
Finalmente, às onze e meia, recebi uma mensagem de Flo dizendo que
eu podia me dirigir para o Centro de Reuniões Executivo, já que a reunião
estava acabando.
As pessoas já estavam saindo quando cheguei lá. Algumas eu
reconheci — Jim Colvin, o chefe de operações; Tom Lundgren; Jim
Sperling, o chefe do RH, uma dupla de mulheres que pareciam ser
poderosas. Nenhuma delas parecia muito feliz. Goddard estava cercado
por um bando de pessoas, todas mais altas que ele. Eu não tinha realmente
me dado conta antes de como era baixinho. E sua aparência também era
terrível — olhos injetados e vermelhos, as olheiras ainda maiores que o
normal. Camilletti estava ao lado dele, e os dois pareciam discutir.
Ouvi apenas trechos.
Camilletti — ... preciso aumentar o metabolismo deste lugar...
Goddard: — ... todos os tipos de resistência, desmoralização...
Camilletti: — O melhor modo de lidar com a resistência é o machado
sangrento.
Goddard, exausto: — Eu geralmente prefiro a velha e simples
persuasão.
Os outros se organizaram em círculo em torno dos dois, assistindo.
— É como disse Al Capone, consegue-se muito mais com uma palavra
bondosa e uma arma do que apenas com a palavra bondosa — disse
Camilletti, que sorriu.
— Suponho que agora você vá me dizer que é preciso quebrar os ovos
para se fazer uma omelete.
— Você está sempre um passo à minha frente — disse Camilletti,
dando um tapinha nas costas de Goddard ao se afastar.
Enquanto isso, eu ia ligando meu laptop ao projetor instalado na mesa
de reuniões. Comprimi o botão que abaixava as persianas eletricamente.
Agora éramos somente Goddard e eu na sala.
— O que é que vamos ter aqui, uma matinê?
— Sinto muito, só um show de slides.
— Não tenho certeza se será uma boa ideia apagar as luzes. É bem
provável que eu caia no sono — disse Goddard. — Passei quase que a
noite toda em claro, agonizando por causa de toda essa maluquice.
Considero esses cortes uma falha pessoal.
— Não são — falei, me arrependendo na mesma hora. Quem era eu
para tentar tranquilizar o presidente da companhia? — De qualquer modo
— apressei-me a acrescentar —, vou ser breve.
Comecei com um gráfico animado e muito legal do Maestro, com
todas as peças vindo de fora da tela voando e se ajustando perfeitamente.
Em seguida veio o bonequinho que coçava a cabeça com o ponto de
interrogação em cima.
Eu falei:
— A única coisa mais perigosa do que estar no mercado de eletrônica é
não estar no mercado.
Agora tomamos uma carona em um carro de corridas tipo Fórmula Um
deslocando-se a uma velocidade incrível.
— Porque se você não estiver dirigindo o carro, provavelmente será
atropelado por ele.
Neste ponto apareceu um slide que dizia TRION CONSUMER ELECTRONICS
— O BOM, O RUIM E O FEIO.
— Adam?
Virei-me.
— Senhor?
— Que diabo é isso?
Senti que minha nuca ficava molhada de suor.
— Era só a introdução. — Obviamente eu tinha exagerado. — Agora
vamos ao que interessa.
— Você contou a Flo o que estava planejando fazer, como diabos isso
se chama, Power... PowerPoint?
— Não, eu não disse...
Ele se levantou, caminhou até o interruptor e acendeu a luz.
— Ela teria lhe dito... odeio essa porcaria.
Senti o rosto pegando fogo.
— Desculpe, ninguém me disse nada.
— Meu Deus do céu, Adam, você é um rapaz inteligente, criativo e
dono de um pensamento original. Acha que quero que desperdice seu
tempo tentando decidir se o texto fica melhor com Arial dezoito ou Times
Roman vinte e quatro, pelo amor de Deus! Que tal simplesmente me dizer
o que pensa? Não sou criança. Não preciso ser alimentado com esse
maldito mingau informático.
— Desculpe — comecei de novo.
— Não, eu é que me desculpo. Não deveria ter sido tão brusco com
você. Taxa de açúcar no sangue baixa, talvez. É hora do almoço e estou
faminto.
— Posso descer e pegar uns sanduíches.
— Tenho uma ideia melhor — contrapôs Goddard.
53
O carro de Goddard era um Buick Roadmaster conversível 1949,
perfeitamente restaurado, marfim, com uma grade cromada que parecia
uma boca de crocodilo. Tinha pneus de banda branca, forração de couro
vermelho magnífica e reluzia como se você o estivesse vendo em um
filme. Ele recolheu a capota antes de sairmos da garagem ao sol da tarde.
— Ele realmente anda — comentei, surpreso, quando aceleramos na
estrada.
— Três litros e duzentos, oito cilindros em linha.
— Cara, é uma beleza.
— Eu o chamo de minha Nau de Teseu.
— Hmm — eu ri como se soubesse de que ele estava falando.
— Você devia ter visto quando o comprei, um verdadeiro monte de
lixo, meu Deus. Minha mulher pensou que eu tinha ficado maluco. Devo
ter gasto uns cinco anos de fins de semana e noites reconstruindo este
troço completamente. Ou seja, substituí cada peça. Tudo autêntico, claro,
mas acredito que hoje não tenha mais uma única coisa do carro original.
Sorri e me recostei. O couro do assento era macio como manteiga e
tinha um cheiro agradavelmente antigo. O sol banhava meu rosto e a
sensação causada pelo vento era maravilhosa. Ali estava eu sentado
naquele belo conversível antigo com o presidente da companhia que eu
espionava — e não pude decidir se me sentia ótimo, como se tivesse
chegado ao cume da montanha, ou se me sentia um canalha desonesto e
barato. Talvez ambos.
Goddard não era um desses colecionadores ricos, como Wyatt, com
seus aviões, barcos e Bentleys. Ou como Nora, com seu Mustang, ou ainda
como qualquer dos clones de Goddard na Trion, que compravam carros de
coleção em leilões. Ele era um genuíno e antiquado fanático por máquinas
que realmente sujava as mãos de graxa.
Ele perguntou:
— Você leu As vidas de Plutarco?
— Acho que nem cheguei a terminar O sol é para todos — admiti.
— Você não sabe de que raios estou falando quando chamo este carro
de meu navio de Teseu, sabe?
— Não, senhor, não sei.
— Bem, os antigos gregos gostavam muito de discutir questões de
identidade. Aparece primeiro em Plutarco. Pode ser que você reconheça o
nome Teseu, o grande herói que matou o Minotauro no Labirinto.
— Claro — eu me lembrava de qualquer coisa de um labirinto.
— Os atenienses decidiram preservar o navio de Teseu como um
monumento. Com o passar dos anos, é claro, ele começou a se decompor, e
eles foram substituindo cada viga podre por outra e outra e mais outra. Até
que chegou a hora em que todo o madeirame foi substituído. E a pergunta
que os gregos faziam, uma espécie de enigma favorito dos filósofos, era:
este ainda é o navio de Teseu?
— Ou só um upgrade? — falei.
Mas Goddard não estava mais brincando. Parecia estar em um estado
de espírito muito sério.
— Aposto como você conhece gente exatamente como o navio de
Teseu, não conhece, Adam?
Ele olhou para mim e voltou a se concentrar na direção.
— Pessoas que vão subindo na vida e começam a trocar tudo nelas
mesmas até o ponto em que você não mais reconhece o original?
Fiquei tenso. Jesus. Não estávamos mais conversando sobre Buicks.
— Você sabe como é, começa com jeans e tênis e vai passando para
ternos e sapatos elegantes. Você se torna mais refinado, mais apto
socialmente, dono de maneiras mais polidas. Você muda seu jeito de falar.
Adquire novos amigos. Costumava beber Budweiser e passa a preferir
Pauillac das melhores safras. Comia Big Macs sem sair do carro e agora...
passa a pedir cherne assado envolto numa capa de sal grosso. O modo
como você vê as coisas muda, até mesmo o seu modo de pensar.
Ele falava com uma intensidade assustadora, atento à estrada, quando
se virava para mim de vez em quando, os olhos cintilavam.
— Chega uma hora, Adam, em que você tem que se perguntar se você
é a mesma pessoa ou não. Sua roupa mudou, seus enfeites mudaram, você
passou a dirigir um carro sofisticado, passou a viver em uma mansão
sofisticada, vai a festas sofisticadas, tem amigos sofisticados. Mas se tiver
integridade, sabe que lá no fundo você é o mesmo navio que sempre foi.
Senti um, um não, vários nós no estômago. Ele estava falando a meu
respeito. Fui tomado por uma enjoativa sensação de vergonha e
constrangimento, como se tivesse sido apanhado fazendo algo que não
devia. Ele enxergava dentro de mim. Ou não? Quanto ele via? Quanto
sabia?
— Um homem tem que respeitar a pessoa que foi. O seu passado. Você
não pode ser prisioneiro do seu passado, mas tampouco pode descartá-lo.
Ele faz parte de você.
Eu estava tentando imaginar como responder quando ele anunciou:
— Bem, aqui estamos.
Era o vagão-restaurante de um trem de passageiros, antigo, com um
design aerodinâmico e revestido de aço inoxidável. Tinha um anúncio em
néon azul que dizia, em letras manuscritas: A COLHER AZUL. Um pouco
abaixo, letras vermelhas de néon diziam AR-CONDICIONADO. Outro
luminoso também vermelho dizia ABERTO e CAFÉ DA MANHÃ O DIA INTEIRO.
Ele estacionou e nós saltamos.
— Você nunca esteve aqui?
— Não, nunca estive.
— Oh, vai adorar. É autêntico. Não é uma dessas falsificações — a
porta do Buick bateu com um barulho grave característico e gratificante.
— Não muda desde 1952.
Sentamos em uma cabine que era forrada com vinil Naugahyde
vermelho. O tampo da mesa era de fórmica imitando mármore, com a
borda de aço inox, e havia um jukebox em cima. O bar era comprido, com
bancos giratórios aparafusados no chão, bolos e tortas protegidos por
cúpulas de vidro. Por sorte, nada de memorabilia dos anos 50; nada de
Sha-Na-Na tocando nos jukeboxes. Havia uma máquina de vender cigarros,
do tipo que você puxa uma alavanca para fazer o maço cair. Serviam café
da manhã o dia inteiro (Country: dois ovos, fritas, salsicha, bacon ou
presunto e bolos, tudo por $4,85), mas Jock pediu um sloppy joe, bife de
carne moída num pão, a uma garçonete que o conhecia e o chamava de
Jock. Pedi um cheeseburger com fritas e uma Diet Coke.
A comida era um pouco gordurosa, mas decente. Eu já comera melhor,
embora tenha feito todos os sons extasiados adequados. Em cima do
banco, bem do meu lado, estava minha pasta com os arquivos subtraídos
da sala de Paul Camilletti. E só a presença deles ali me deixava nervoso,
como se emanassem raios gama através do couro.
— Vamos então ouvir o que é que você acha — disse Goddard, com a
boca cheia. — Não me diga que não é capaz de pensar sem um laptop e um
projetor.
Eu sorri e tomei um gole de Coca.
— Bem, para começar, acho que estamos exportando um número
pequeno demais dessas televisões grandes de tela plana — falei.
— Pequeno? Nesta economia?
— Um amigo meu que trabalha na Sony me disse que estão tendo
sérios problemas. Basicamente, a NEC, que fabrica as telas de plasma para
a Sony, está tendo algum tipo de problema com a produção. Temos uma
dianteira considerável sobre eles. De seis a oito meses, fácil.
Ele fez uma pausa no seu sloppy joe e me deu toda sua atenção.
— Você confia nesse seu amigo?
— Totalmente.
— Não vou tomar uma decisão importante dessas com base em um
boato.
— Não posso culpá-lo. Embora a notícia deva vir a público em uma ou
duas semanas. Mas nós poderíamos querer firmar um acordo com outro
fabricante antes que o preço das telas de plasma dê um salto. E certamente
dará.
Ele levantou as sobrancelhas.
— Também — continuei —, Guru me parece importante. Jock sacudiu
a cabeça e voltou a se dedicar ao seu prato.
— Ah, bem, nós não somos os únicos a lançar um novo comunicador
— disse ele. —
A Nokia está planejando acabar conosco.
— Esquece a Nokia — falei. — É tudo fumaça, puro marketing. O
aparelho deles está enrolado no meio de batalhas de egos... não veremos
nada de novo com a assinatura deles senão depois de dezoito meses, se
tiverem sorte.
— E você sabe disso por intermédio do mesmo amigo seu? Ou é um
outro?
Ele me pareceu cético.
— Inteligência competitiva — menti. Fora Nick Wyatt, quem mais?
Mas ele me dera cobertura.
— Posso lhe mostrar o relatório, se quiser.
— Agora não. Você deveria saber que o Guru teve um problema de
produção tão sério que talvez nem possa ser embarcado.
— Que tipo de problema?
Ele suspirou.
— Complicado demais para tratar agora. Embora você talvez queira
começar a comparecer a algumas reuniões da equipe do Guru para ver se
pode ajudar.
— Claro — pensei em me candidatar de novo ao AURORA, mas desisti,
ia chamar muito a atenção.
— Oh, sim. Sábado é meu churrasco anual na casa do lago. Não vai
toda a companhia, claro, só umas setenta e cinco pessoas, no máximo cem.
Nos velhos tempos levávamos todo mundo para lá, mas não podemos mais
fazer isso. Assim, temos agora o pessoal da antiga, os mais graduados e
suas respectivas mulheres ou maridos. Acha que pode roubar um pouco do
tempo de suas fontes de informações competitivas?
— Eu adoraria — tentei bancar o indiferente, mas aquilo era bom
demais. O churrasco de Goddard representava realmente o círculo dos
eleitos. Tendo em vista o pequeno número de convidados, a festa era
objeto da maior competição dentro da empresa. Eu tinha ouvido: "Puxa,
Fred, sinto muito, mas sábado não vai dar, tenho... qualquer coisa tipo
churrasco. Você sabe."
— Infelizmente, nada de cherne assado dentro de uma crosta de sal
grosso ou vinho Pauillac — disse Goddard. — Mais tipo hambúrgueres,
cachorro-quente, salada de macarrão, nada de sofisticado. Leve seu calção
de banho. Passemos agora a questões mais importantes. Eles têm aqui a
melhor torta de passas que você já provou. A de maçã também é ótima.
Tudo feito em casa. A minha favorita, contudo, é a de merengue de
chocolate.
Ele despertou a atenção da garçonete, que estava por perto.
— Debby — disse —, traga para este rapaz uma fatia da de maçã, e eu
vou querer a de sempre.
Jock virou-se para mim.
— Se não se importa, não conte nada a seus amigos a respeito deste
lugar. Será nosso segredinho.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Você consegue guardar um segredo, não consegue?
54
Voltei para a Trion eufórico, ligadão por causa do almoço com
Goddard, e o motivo não fora a comida medíocre. Afinal, minhas ideias
não tinham fluído tão bem assim. Não, o fato puro e simples é que eu
tivera a atenção exclusiva do grande homem, talvez até mesmo a sua
admiração. Ok, talvez eu esteja exagerando um pouco. Mas o fato é que
ele me levou a sério. E já o desprezo de Nick Wyatt por mim parecia
interminável. Wyatt fazia com que eu me sentisse como um esquilo. Com
Goddard, eu sentia como se a sua decisão de me escolher para seu
assistente executivo pudesse realmente ser justificada e me fizesse querer
me matar de trabalhar pelo cara. Muito estranho.
Camilletti estava na sua sala, porta fechada, reunido com alguém que
parecia ser importante. Dei uma olhada nele pela janela: inclinado para a
frente, atento.
Perguntei-me se ele digitaria suas anotações depois que o visitante
fosse embora. Tudo o que registrasse no computador viria ter às minhas
mãos em pouco tempo, com senhas e tudo mais. Inclusive qualquer coisa
referente ao projeto AURORA.
Nessa altura, senti minha primeira pontada de — de quê? — De culpa,
talvez. O lendário Jock Goddard, um ser humano verdadeiramente decente,
acabara de se dar ao trabalho de me levar para comer fora, e, mesmo que
seu restaurante favorito não fosse grande coisa, ele ouvira minhas ideias
(na minha cabeça, as ideias eram minhas e não mais de Wyatt). Em troca,
eu entrava furtivamente nos escritórios dos seus executivos e plantava
equipamentos de vigilância para beneficiar o canalha do Nick Wyatt.
Alguma coisa estava seriamente errada nesse quadro. Jocelyn levantou
os olhos do que estava fazendo.
— Bom almoço? — perguntou. Sem dúvida a rede de fofocas das
assistentes sabia que eu acabara de almoçar com o presidente. Fiz que sim.
— Obrigado. E você?
— Só um sanduíche aqui mesmo. Muito que fazer.
Eu estava entrando na minha sala quando ela falou.
— Oh, um sujeito passou aqui para ver você.
— Deixou o nome?
— Não. Disse que era seu amigo. Na verdade, disse que era seu
"camarada". Cabelo louro, bonito?
— Acho que sei de quem você está falando.
O que Chad poderia estar querendo?
— Ele falou que você tinha deixado qualquer coisa para ele na sua
mesa, mas não deixei que entrasse na sua sala. Nunca se sabe. Espero que
não tenha problema. Ele pareceu ficar um pouco ofendido.
— Está ótimo, Jocelyn. Muito obrigado.
Era Chad, sem dúvida, mas o que ele estava tentando bisbilhotar na
minha sala?
Liguei o computador e fui ver minha correspondência. Um item saltou
diante dos meus olhos — uma notícia da Segurança Corporativa enviada
para "Nível C e Staff da Trion".

ALERTA DE SEGURANÇA
No final da semana passada, após um incêndio no
departamento de Recursos Humanos da Trion, uma investigação
de rotina descobriu a presença de um equipamento de vigilância
plantado ilegalmente. Uma tal quebra de segurança em uma
área tão sensível, é claro, preocupa enormemente a todos nós na
Trion. Assim sendo, a Segurança iniciou uma varredura
profilática de todas as áreas sensíveis da corporação, inclusive
escritórios e estações de trabalho, procurando sinais de intrusão
em instalações e equipamentos. Você será contactado em breve.
Agradecemos sua cooperação neste esforço de importância vital
para a segurança.
Imediatamente o suor molhou minha testa e axilas.

Tinham encontrado a engenhoca que eu imbecilmente plantara durante


minha abortada invasão do departamento de RH.
Oh, meu Deus, a Segurança agora ia examinar as salas e os
computadores de todas as áreas sensíveis da companhia, o que certamente
incluía o sétimo andar. E quanto tempo eles levariam para descobrir o
troço que eu instalara no computador de Camilletti? Aliás — e se
houvesse câmeras de vigilância no corredor diante do escritório de
Camilletti que tivessem gravado em vídeo a invasão?
Alguma coisa, no entanto, não parecia certa. Como a Segurança
encontrara o Keyghost?
Nenhuma "investigação de rotina" podia ter descoberto o cabo
alterado. Estava faltando algum fato; algum elo da cadeia não fora tornado
público.
Saí da minha sala e disse a Jocelyn:
— Você viu o e-mail da Segurança?
— Como? — ela levantou os olhos do seu computador.
— Vamos ser obrigados a começar a trancar tudo por aqui? Quer dizer,
qual é a verdadeira história aqui?
Ela sacudiu a cabeça, não muito interessada.
— Imaginei que você conhecia alguém na Segurança. Não?
— Querido — disse ela —, eu conheço gente em todos os
departamentos desta companhia.
— Hmm — murmurei. Dei de ombros e fui ao banheiro.
Quando voltei, Jocelyn estava ao telefone. Atraiu minha atenção,
sorriu e balançou a cabeça como se quisesse me dizer alguma coisa.
— Acho que está na hora de me despedir — disse, ao telefone. —
Querida, tenho que ir. Foi ótimo pôr as notícias em dia com você.
Ela me olhou.
— Uma bobagem típica da Segurança — disse, com uma expressão de
desprezo de quem sabia o que estava falando. — Estou lhe dizendo, a
Segurança ia dizer que é a responsável pela existência do sol e da lua se
pudesse se safar numa boa. É como eu pensava, estão se atribuindo o
crédito por algo que se deveu exclusivamente ao acaso. Um dos
computadores do RH não estava funcionando direito depois do incêndio e
por isso chamaram o Suporte Técnico. Um dos técnicos foi quem viu
alguma coisa esquisita presa no teclado ou algo assim, um fio extra, não
sei. Acredite em mim, aqueles caras da Segurança não são os mais
brilhantes da turma.
— Quer dizer então que a tal "quebra de segurança" é falsa?
— Bem, minha amiga Caitlin diz que eles realmente encontraram um
troço usado em atividades de espionagem, mas aqueles sherloques da
Segurança jamais teriam achado alguma coisa se não fosse por um golpe
de sorte.
Procurei dar a impressão de que achei aquilo engraçado, e voltei para a
minha sala. Por dentro, eu tinha virado um bloco de gelo. Minhas suspeitas
eram corretas — a Segurança dera sorte, sim — mas, fosse como fosse,
tinham descoberto o Keyghost. Eu precisava voltar à sala de Camilletti o
mais cedo possível e recuperar o pequeno cabo do Keyghost antes que
fosse descoberto.
Na tela do meu computador havia pipocado a janela de uma mensagem
instantânea enquanto eu estivera fora.
Senti-me como se as paredes estivessem se fechando em cima de mim.
A Segurança estava fazendo uma varredura no prédio — e ainda por cima
havia o Chad.
O tom de Chad era inegavelmente ameaçador, como se ele tivesse
acabado de saber exatamente o que eu não queria que ele soubesse. A parte
"muito interessante" era ruim, assim como a do "velho amigo seu", mas a
pior de todas era "Você talvez queira me dar um telefonema", que parecia
dizer, peguei você, seu panaca. Ele não ia me telefonar, não; queria que eu
sofresse, suasse, que ligasse para ele em pânico... E, ainda assim, como
poderia não ligar? Não seria absolutamente natural telefonar para ele por
simples curiosidade a respeito de um "velho amigo"? Eu tinha que ligar.
Mas, naquele instante, o que eu realmente precisava era fazer
ginástica. Não era como se eu dispusesse de tempo livre, mas precisava
clarear a cabeça para lidar com os últimos acontecimentos. Quando saía da
minha sala, Jocelyn disse: — Você pediu para que eu o lembrasse do
Webcast de Goddard às cinco horas.
— Oh, certo. Obrigado.
Dei uma olhada no meu relógio. Faltavam vinte minutos. Eu não
queria perder, mas podia assistir enquanto estivesse me exercitando, nos
pequenos monitores do equipamento. Dois coelhos e tal e coisa.
Lembrei-me então da minha pasta e de seu conteúdo radiativo. Ela
estava no chão da minha sala, ao lado da mesa, destrancada. Qualquer um
podia abri-la e ver os documentos que eu roubara da sala de Camilletti. E
agora? Trancá-la dentro de uma das minhas gavetas? Mas Jocelyn tinha a
chave. Na verdade, não havia um único lugar no qual ela não pudesse
pegá-la.
Retornando rapidamente ao meu escritório, sentei-me diante da minha
mesa, tirei os documentos Camilletti, coloquei-os numa outra pasta de
papel manilha e levei para o ginásio. Teria que carregar aquela maldição
por toda a parte até que fosse para casa, quando enviaria tudo por fax
seguro e depois destruiria. Não contei a Jocelyn aonde estava indo, e,
como tinha acesso ao meu MeetingMaker, ela sabia muito bem que eu não
tinha reunião marcada.
Mas era educada demais para perguntar aonde eu estava indo.
55
Faltando poucos minutos para as cinco, o ginásio da companhia ainda
não estava lotado. Peguei um aparelho e pus na cabeça os fones de ouvido.
Enquanto me aquecia, surfei pelos canais a cabo — MSNBC, CSPAN, CNN
e CNBC — e ainda peguei o fim do pregão. Tanto o Dow Jones quanto a
NASDAQ fecharam em baixa: outro dia péssimo. Às cinco em ponto, mudei
para o canal Trion, que normalmente transmitia troços chatos como
palestras, anúncios da Trion, essas coisas.
A logomarca da Trion apareceu e depois a imagem congelada de
Goddard no estúdio da Trion — usando uma camisa azul-escura aberta no
pescoço, a franja de cabelo branco, normalmente incontrolável, penteada
com cuidado. O fundo era preto com pontos azuis e parecia um pouco com
o do Larry King na CNN, exceto pela marca da Trion colocada em posição
proeminente acima do ombro direito de Goddard. Senti que estava ficando
nervoso, mas me perguntei qual seria a razão. Aquilo não era ao vivo, fora
gravado na véspera, e eu sabia exatamente o que ele ia dizer. Mas queria
que ele se saísse bem. Queria que apresentasse a decisão que tomara sobre
as dispensas de um modo que fosse ao mesmo tempo persuasivo e
vigoroso, porque sabia que muita gente na companhia ficaria furiosa.
Eu não tinha que me preocupar. Ele não era apenas bom, ele era
assombroso. Em todos os cinco minutos que durou o discurso não houve
uma única nota artificial.
Ele abriu com simplicidade: "Olá, eu sou Augustine Goddard,
presidente e diretor executivo da Trion Systems, e hoje tenho a tarefa
desagradável de dar algumas notícias difíceis." Ele falou sobre a indústria
e sobre os problemas recentes da Trion. Disse: "Não vou amenizar o que
tenho a dizer. Não vou chamar essas demissões de "desgaste involuntário"
ou de "rescisão voluntária". No nosso negócio, ninguém gosta de admitir
quando as coisas não estão indo bem, quando a liderança de uma
companhia calculou mal, fez asneiras e cometeu erros.
Pois bem, estou aqui para lhes dizer que cometemos erros estúpidos.
Nós erramos. Como diretor executivo da empresa, eu errei. Considero a
perda de empregados valiosos, membros de nossa família, um sinal de
doloroso fracasso." Ele continuou: "Dispensas são como um terrível
ferimento — doem no corpo todo."
Dava vontade de pegar o cara, abraçar e dizer que estava bem, que a
culpa não tinha sido dele, nós o perdoávamos.
Goddard continuou: "Quero lhes assegurar que assumo inteira
responsabilidade por este revés e que farei tudo ao meu alcance para
colocar esta companhia de volta à forte posição que ocupava."
Goddard falou que às vezes pensava na companhia como um grande
trenó puxado a cães, mas que ele era apenas o cão líder e não o cara que ia
sentado no trenó acionando o chicote. Disse que havia se oposto a
demissões por muitos anos, como todos sabiam, mas bem, às vezes, a
pessoa tem que tomar uma decisão difícil, entrar no carro. Assegurou que
a administração da empresa ia cuidar bem de cada uma das pessoas
afetadas pela dispensa; que acreditava que os pacotes de indenização que
estavam oferecendo eram os melhores em toda a indústria — e o mínimo
que podiam fazer para ajudar empregados tão leais. Terminou falando a
respeito de como a Trion fora fundada, como os veteranos da indústria
haviam previsto seu final inúmeras vezes e como ressurgira, cada vez mais
forte, de todas as crises que enfrentara.
Quando terminou, eu estava com os olhos cheios de lágrimas e tinha
me esquecido de mexer os pés. Estava parado ali na máquina olhando para
a telinha minúscula como um zumbi. Ouvi vozes por perto, olhei em torno
e vi grupos de pessoas reunidas, falando animadamente, parecendo
atônitas. Tirei os fones de ouvido e voltei ao meu exercício enquanto o
ginásio ia se enchendo.
Poucos minutos mais tarde alguém subiu na máquina ao lado da
minha, uma mulher com uniforme de lycra e um grande traseiro. Ela
conectou os fones de ouvido no monitor, mexeu nele por algum tempo e
por fim me deu um tapa no ombro.Tem som no seu aparelho? —
perguntou. Reconheci a voz antes mesmo de ver o rosto de Alana.
Seus olhos se arregalaram.
— O que é que você está fazendo aqui? — perguntou ela.
— Oh meu Deus — falei. Eu estava realmente assustado, não foi
preciso fingir. — Eu trabalho aqui.
— Você trabalha? Eu também. Isso é incrível.
— Uau.
— Você não me contou... bem, mas eu também não perguntei, não foi?
— Isto é inacreditável — falei. Agora eu estava fingindo, e talvez com
menos entusiasmo do que devia. Ela me pegara com a guarda baixa, muito
embora eu soubesse que aquilo podia acontecer e, ironicamente, eu estava
por demais perturbado para dar a impressão de que estava plausivelmente
surpreso.
— Que coincidência — disse ela. — Inacreditável.
56
— Há quanto tempo... há quanto tempo você trabalha aqui? —
perguntou ela, saindo da máquina. Não pude interpretar sua expressão.
Pareceu-me estar achando aquilo engraçado, sem maiores entusiasmos.
— Mal comecei. Tipo duas semanas atrás. E você?
— Anos... cinco anos. Onde você trabalha?
Eu não achava que meu estômago pudesse se contrair mais, mas foi
exatamente o que aconteceu.
— Hmm, fui contratado pela Divisão de Produtos do Consumidor,
marketing de novos produtos...
— Você está brincando — ela me encarou, espantadíssima.
— Não me diga que você é da mesma divisão que eu ou alguma coisa
assim. Eu teria sabido, teria visto você.
— Já fui de lá.
— Já foi? Onde está agora?
— Faço marketing para um negócio chamado Tecnologias Disruptivas
— disse ela, relutante.
— É mesmo? Legal. O que é isso?
— É chato — disse ela, mas não foi convincente. — Complicado,
assim meio especulativo.
— Hmm — eu não quis parecer interessado demais. — Você assistiu à
fala de Goddard?
Ela balançou a cabeça.
— Barra-pesada. Eu não tinha ideia de que estávamos tão mal. Quer
dizer, cortes — você meio que imagina que cortes é um recurso para os
outros, não para a Trion.
— Como acha que ele se saiu?
Eu queria prepará-la para o momento inevitável em que ela me
procurasse na intranet e descobrisse o que eu realmente fazia agora. Pelo
menos depois eu poderia dizer que não estava escondendo nada e sim
fazendo uma pesquisa de opinião para o meu chefe — como se eu tivesse
algo a ver com o discurso de Goddard.
— Fiquei chocada, claro. Mas fez sentido, do modo como ele
apresentou a questão. Claro que é fácil dizer isso, já que provavelmente
tenho alguma segurança no meu trabalho. Quanto a você, por outro lado,
tendo sido contratado recentemente...
— Eu não devo ter problema, mas nunca se sabe — minha verdadeira
intenção era mudar de assunto para não ter que falar no que eu realmente
fazia. — Ele foi bem direto.
— É o jeito dele. O cara é muito bom.
— Ele nasceu para isso — fiz uma pausa. — Ei, sinto muito pelo jeito
como nosso encontro terminou.
— Você não tem nada do que se desculpar — a voz dela ficou mais
suave. — Como ele está, o seu pai?
Eu tinha deixado uma mensagem para ela de manhã para dizer que
papai escapara.
— Está se aguentando. No hospital tem um novo elenco de
personagens para ameaçar e intimidar, de modo que agora tem uma nova
razão para viver.
Ela riu polidamente, sem querer se divertir às custas de um moribundo.
— Mas se você estiver a fim, eu adoraria ter uma nova chance.
— Eu também gostaria — ela voltou para a máquina e começou a
mexer os pés ao mesmo tempo em que ia digitando números no console.
— Você ainda tem o meu telefone?
Então Alana sorriu, um sorriso sincero, e seu rosto se transformou. Ela
era linda. Realmente maravilhosa.
— O que estou dizendo? Você pode achar meu telefone no site da
Trion.

Mesmo depois das sete horas, Camilletti continuava no escritório.


Obviamente era uma época em que havia muito o que fazer, mas eu queria
que o cara fosse para casa a fim de entrar na sua sala antes da Segurança.
Eu próprio também queria ir para casa e dormir um pouco, porque estava
exausto e irritado.
Eu estava tentando imaginar como poderia conseguir pôr o nome de
Camilletti na minha buddy list sem a permissão dele, para poder saber
quando ele estivesse online e quando tivesse desligado, quando uma janela
com uma mensagem instantânea de Chad pipocou na tela do meu
computador.
ChadP: Você não telefona e não escreve. Ficou importante demais
para seus velhos amigos?
Escrevi: Desculpe, Chad, tem sido uma loucura.
Houve uma pausa de cerca de meio minuto e ele voltou:
Você provavelmente soube dos cortes antes de todo mundo, hein? Sorte
sua ser imune.
Fiquei sem saber ao certo como responder e, por um minuto ou dois,
não escrevi nada. Então, o telefone tocou. Jocelyn tinha ido para casa, e os
telefonemas vinham bater direto na minha mesa. A identidade do autor da
chamada apareceu no visor, mas era um nome que não reconheci. Peguei o
aparelho.
— Cassidy.
— Eu sei que é você — veio a voz de Chad, pesada de sarcasmo. — Só
não sabia se você estava em casa ou no escritório. Devia ter imaginado que
um sujeito ambicioso como você entra cedo e fica até tarde, como todos os
livros de autoajuda aconselham.
— Como vai, Chad?
— Cheio de admiração, Adam. Por você. Mais que nunca, na verdade.
— Legal.
— Especialmente depois do meu almoço com o seu velho amigo Kevin
Griffin.
— Para falar a verdade, eu mal conhecia o cara.
— Não foi exatamente o que ele disse. Você sabe, é interessante, ele
não se mostrou muito impressionado com seu histórico na Wyatt. Disse
que você era um grande festeiro.
— Quando eu era jovem e irresponsável, eu era jovem e irresponsável
— falei fazendo a minha melhor imitação de George Bush o Jovem.
— Ele também não se lembra de você ter trabalhado no Lucid.
— Ele está em que mesmo? Em vendas não é?
Achei que se eu ia dar a entender que Kevin estava por fora era melhor
pelo menos tentar ser sutil.
— Ele estava. Hoje foi seu último dia. Para o caso de você não ter
sabido.
— Ele não se saiu bem? — havia um pequeno tremor na minha voz
que eu disfarcei pigarreando e depois tossindo.
— Três dias inteiros na Trion. Aí a Segurança recebeu um telefonema
de alguém da Wyatt dizendo que o pobre Kevin tinha o hábito detestável
de falsear as planilhas de despesas de viagem e entretenimento. Tinham
provas e tudo e mandaram por fax na mesma hora. Acharam que a Trion
devia saber. Claro que o largaram como uma batata quente. Ele negou, mas
você sabe como essas coisas funcionam... não é exatamente um tribunal,
certo?
— Jesus — falei. — Inacreditável. Eu não tinha ideia.
— Não tinha ideia de que iam dar esse telefonema?
— Não tinha ideia a respeito de Kevin. Quer dizer, como falei, eu não
o conhecia direito, mas ele me parecia um sujeito legal. Bem, acho que
não se pode fazer esse tipo de coisa com muita frequência e ter esperança
de escapar impune.
Chad riu tão alto que eu tive que afastar a orelha do receptor.
— Oh, essa foi boa. Você é realmente ótimo.
Ele riu mais um pouco, como se eu fosse o melhor comediante que
tivesse visto.
— Mas você tem razão. Não se pode fazer esse tipo de coisa toda hora
e esperar sair impune — com essa, Chad desligou.
Cinco minutos antes, eu queria recostar na minha cadeira e cochilar,
mas agora não conseguiria, tão nervoso me sentia. Minha boca estava seca,
e por isso fui à sala de estar e peguei uma garrafa de Aquafina. Preferi o
caminho mais longo, passando pela sala de Camilletti. Ele tinha ido
embora, sua sala estava às escuras, mas a assistente ainda permanecia
trabalhando. Quando voltei, meia hora depois, ambos já tinham ido
embora.
Passava um pouco das oito horas quando entrei rapidamente na sala de
Camilletti, desta vez sem dificuldade, depois de dominar a técnica. Não
parecia haver ninguém por perto. Fechei bem as persianas, recuperei o
cabo Keyghost e levantei uma lâmina da persiana para espiar. Não havia
ninguém, embora eu suponha que na verdade não devo ter sido um pouco
descuidado. Levantei as persianas e abri a porta devagar, olhando primeiro
para a direita e depois para a esquerda.
Encostado na parede da área de recepção de Camilletti, braços
cruzados, lá estava um homem corpulento metido numa camisa havaiana e
com óculos de aros grossos.
Noah Mordden.
Ele tinha um sorriso peculiar no rosto.
— Cassidy — disse ele. — Nosso trigésimo quarto Phineas Finn.
— Oi, Noah — cumprimentei. O pânico invadiu meu corpo, mas
mantive a expressão blasé. Eu não tinha ideia do que ele estava falando,
exceto que devia ser uma obscura citação literária. — Querendo alguma
coisa?
— Eu podia lhe perguntar o mesmo.
— Veio visitar?
— Devo ter me dirigido à sala errada. Fui para uma que tinha uma
placa onde se lia “ADAM CASSIDY”. — Bobagem minha.
— Eles me puseram trabalhando para todo mundo aqui — falei.
Foi a melhor coisa em que pude pensar, e foi horrível. Eu realmente
pensava que ele ia acreditar que eu deveria estar no escritório de
Camilletti? Às oito da noite? Mordden era esperto demais e desconfiado
demais para isso.
— Você tem muitos senhores — disse ele. — Deve perder a noção de
para quem trabalha realmente.
Meu sorriso foi tenso. Por dentro eu estava morrendo. Ele sabia. Tinha
me visto primeiro na sala de Nora, depois na de Camilletti e sabia.
Acabara. Mordden me descobrira. E agora? Para quem ele ia contar?
Assim que Camilletti soubesse que eu tinha estado no seu escritório, me
poria para fora da Trion e Goddard não o impediria.
— Noah — falei. Respirei fundo, mas meu cérebro continuou em
branco.
— Estou querendo cumprimentar você pela sua roupa — disse ele. —
Ela evidenciou uma ascensão social particularmente expressiva nesses
últimos dias.
— Obrigado. Acho.
— A camisa de malha preta e o paletó de tweed... muito Goddard. Cada
vez mais você se parece com nosso intrépido líder. Uma versão Beta, mais
elegante, mais veloz. Com uma porção de novidades que ainda não
funcionam direito.
Ele sorriu.
— Noto que você tem um Porsche novo.
— É.
— É difícil fugir da cultura automobilística aqui na Trion, não é? Mas
enquanto você acelera ao longo da autoestrada da vida, Adam, podia fazer
uma pausa e pensar. Quando tudo vem vindo na sua direção, você talvez
esteja na contramão.
— Vou me lembrar disso.
— Notícia interessante essa das dispensas.
— Mas você está a salvo.
— Isso é uma pergunta ou uma afirmativa? — havia alguma coisa em
mim que parecia diverti-lo. — Deixa para lá. Eu tenho kriptonita.
— O que isso quer dizer?
— Digamos apenas que não fui nomeado Engenheiro Eminente só por
causa de minha carreira eminente.
— De que tipo de kriptonita estamos falando? Dourada? Verde?
Vermelha?
— Finalmente um assunto do qual você sabe algo. Mas se eu lhe
mostrasse, Cassidy, ela perderia seu poder, não é mesmo?
— Perderia?
— Limite-se a disfarçar suas pegadas e a cuidar para que não o
surpreendam pelas costas, Cassidy — ele disse, e desapareceu no corredor.
Parte Seis

CAIXA MORTA

CAIXA MORTA: depósito, esconderijo. No jargão da espionagem,


local secreto usado para a comunicação entre um agente e um
mensageiro.

— The International Dictionary of Intelligence


57
Era cedo ainda, para os meus padrões atuais — cheguei em casa às
nove e meia da noite, uma pilha de nervos, precisando de três dias de sono
ininterrupto.
Enquanto me afastava da Trion, fui revivendo a cena com Mordden na
minha cabeça, tentando repassar todos os detalhes. Gostaria de saber se ele
estava planejando contar a alguém, me entregar. Caso contrário, por que
não? Daria um jeito de manter essa ameaça sobre a minha cabeça? Eu não
sabia como lidar com isso; esta era a pior parte.
De repente me vi fantasiando sobre minha nova cama, tamanho grande
com colchão Dux, e como eu ia me jogar nela no segundo em que entrasse
em casa. Em que minha vida se transformara? Fantasias sobre sono.
Patético.
De qualquer modo eu não podia dormir logo, porque ainda tinha
trabalho para fazer. Tinha que pegar os papéis Camilletti e entregar para
Meacham e Wyatt. Não queria ficar com eles por perto um minuto mais
que o necessário.
Assim, usei o scanner que Meacham me dera, transformei tudo em
documentos PDF, criptografei e mandei por e-mail pelo serviço que
tornava o remetente anônimo.
Uma vez feito isso, peguei o Keyghost, conectei ao meu computador e
comecei a recuperar o que fora gravado. Quando abri o primeiro
documento, senti um acesso de irritação — era absolutamente
ininteligível. Obviamente eu tinha feito alguma bobagem. Olhei mais de
perto e vi que na verdade havia um padrão; talvez eu não tivesse estragado
tudo afinal. Dava para distinguir o nome do Camilletti, uma série de
números e letras e depois sentenças inteiras.
Páginas e páginas de texto. Tudo que o cara digitara no seu
computador naquele dia, e havia muita coisa.
As primeiras coisas em primeiro lugar: captei a senha dele. Seis
números terminando em 82 — talvez fosse a data de nascimento de um
dos seus filhos. Ou do casamento dele. Algo assim.
Muito mais interessante, contudo, foram os e-mails. Montes deles,
cheios de informações confidenciais sobre a companhia, sobre a aquisição
de uma firma que ele estava supervisionando. Essa companhia, a Delphos,
eu vira nos seus documentos. Uma que ele estava se preparando para pagar
um caminhão de dinheiro em espécie e ações por ela.
Havia uma troca de e-mails, marcados TRION CONFIDENTIAL, sobre um
novo método secreto de controle de inventário que eles tinham posto em
vigor alguns meses antes, para combater falsificações e pirataria,
particularmente na Ásia. Uma parte qualquer de cada aparelho produzido
pela Trion, fosse um telefone, um computador de mão ou um scanner
médico, vinha agora marcada a laser com a logomarca da Trion e um
número de série. Essas marcas de identificação só podiam ser vistas com a
ajuda de um microscópio: não podiam ser falsificadas e comprovavam que
a coisa tinha realmente sido fabricada pela Trion.
Havia muitas informações sobre indústrias de fabricação de chips em
Cingapura que a Trion comprara, quando não investira pesadamente nelas.
Interessante — a Trion ia entrar no negócio de fabricação de chips, ou pelo
menos estava comprando uma participação interessante.
Senti-me estranho lendo tudo aquilo. Era como se eu estivesse lendo o
diário de uma outra pessoa. Senti-me também realmente culpado — não
por causa de lealdade a Camilletti, obviamente, mas por causa de Goddard.
Eu quase podia ver sua cabeça de gnomo flutuando dentro de uma bolha à
minha volta, vendo com ar de desaprovação eu examinar os e-mails, a
correspondência e as anotações de Camilletti. Talvez fosse influência do
meu cansaço, mas o fato é que me sentia péssimo em fazer aquilo.
Parece estranho, eu sei, não tinha problema roubar as coisas do projeto
AURORA e passar para Wyatt, mas dar a ele troços que eu não tinha sido
designado para conseguir me fazia achar que eu estava traindo meus novos
empregadores.
As letras WSJ pularam na minha frente. Só podiam dizer respeito ao
Wall Street Journal. Eu queria ver qual tinha sido sua reação ao artigo do
Journal, e por isso me concentrei na sequência de palavras e quase caí da
cadeira.
Pelo que eu podia dizer, Camilletti usava diferentes contas de e-mail
além da da Trion — Hotmail, Yahoo e provedores locais de acesso à
Internet. Estes outros pareciam servir a negócios pessoais, como as
ligações com o seu corretor da Bolsa, recados para o irmão, irmã, pai,
coisas assim.
Mas foram os e-mails do Hotmail que chamaram a minha atenção. Um
deles era endereçado a BulkeleyW @WSJ.com e dizia:
Bill
Merda no ventilador por aqui. Haverá muita pressão sobre
você para denunciar sua fonte — aguente firme. Ligue para
minha casa de noite 9h30.
— Paul

Pronto, aí estava. Paul Camilletti fora — só podia ter sido ele — o


responsável pelo vazamento. Fora ele quem fornecera as informações
prejudiciais sobre a Trion e Goddard ao Journal.
Agora tudo fazia sentido, é bem verdade que um sentido assustador.
Camilletti estava ajudando o Wall Street Journal a causar sérios danos a
Jock Goddard, retratando o velho como acabado, ultrapassado. Goddard
tinha que cair fora. A junta de diretores da Trion, assim como qualquer
analista e corretor, veria isso nas páginas do Journal. E quem a junta de
diretores apontaria para substituir Goddard?
Estava na cara, não estava?
Muito embora eu estivesse exausto, levei longo tempo me revirando na
cama até finalmente cair no sono. E meu sono foi intermitente e
atormentado. Não podia deixar de pensar em Augustine Goddard com seus
ombros redondos, comendo uma torta naquele restaurante melancólico, ou
com uma expressão abatida e exausta enquanto seus auxiliares passavam
por ele ao saírem em fila da sala de reuniões. Sonhei com Wyatt e
Meacham me amedrontando, me ameaçando com toda aquela conversa de
prisão e, nos meus sonhos, eu os enfrentava, mandava embora, explodia
com eles. Sonhei também que invadia a sala de Camilletti, e Chad e Nora
juntos me pegavam.
Quando o despertador finalmente tocou às seis da manhã e levantei a
cabeça latejante do travesseiro, eu soube que precisava falar com Goddard
sobre Camilletti.
Então percebi que estava imobilizado. Como diabos ia contar a
Goddard o que Camilletti fizera se eu conseguira a prova invadindo a sala
de Camilletti?
E agora?
58
O fato de Camilletti, o Degolador — o imbecil que fingira ter ficado
tão chateado com o artigo publicado pelo Wall Street Journal —, estar por
trás daquilo me deixou furioso. O sujeito era pior que canalha: era desleal
com Goddard.
Talvez fosse um alívio ter uma convicção moral a respeito de alguma
coisa após semanas acreditando ser um canalha desprezível. Talvez o fato
de me ver mais ou menos como protetor de Goddard me fizesse sentir um
pouco melhor em relação a mim mesmo. Talvez a raiva da deslealdade de
Camilletti fizesse, convenientemente esquecer a minha própria. Ou talvez
eu simplesmente me sentisse grato a Goddard por ter me escolhido, ter me
reconhecido como sendo uma pessoa de alguma forma especial, melhor
que os demais. É difícil saber quanto da minha raiva de Camilletti era
realmente altruísta. As vezes eu era assaltado pela angústia de saber que
na realidade não era melhor que ele. Quer dizer, lá estava eu na Trion, uma
fraude que fingia ser capaz de fazer milagres, quando o tempo todo só
fazia invadir escritórios e roubar documentos, tentando arrancar o coração
da companhia de Jock Goddard, ao mesmo tempo que andava no seu Buick
1949...
Era demais. Essas sessões de transpiração abundante às quatro da
manhã estavam me deixando exausto. Eram perigosas para minha saúde
mental. Melhor não pensar, operar com o piloto automático ligado.
Assim, talvez eu realmente tivesse a consciência de uma sucuri. Ainda
assim, queria pegar aquele filho da mãe do Paul Camilletti.
Pelo menos eu não tinha escolha quanto ao que fazia. Fora obrigado a
isso. Enquanto que a traição de Camilletti era de uma espécie totalmente
diferente. Ele estava tramando ativamente contra Goddard, o sujeito que o
levara para a companhia, que depositara sua confiança nele.
Goddard precisava saber. Mas eu precisava de uma desculpa — uma
maneira plausível de ter descoberto a traição de Camilletti sem ser
obrigado a dizer que entrara indevidamente no seu escritório.
Durante todo o trajeto para o trabalho, enquanto me deleitava com a
força e o ronco de motor a jato do meu Porsche, meu cérebro ia
trabalhando para resolver esse problema e, ao chegar ao escritório, já tinha
imaginado uma ideia decente.
Trabalhar no escritório do presidente me dava uma influência enorme.
Se eu telefonasse para alguém que não conhecia e me identificasse
simplesmente como Adam Cassidy, era quase certo que meu telefonema
ficasse sem resposta. Mas Adam Cassidy, "falando do escritório do
Presidente" ou da "sala de Jock Goddard" — como se eu estivesse sentado
na sala ao lado da do velho e não a trinta metros corredor abaixo — teria
todos os telefonemas respondidos com a velocidade da luz.
Assim, quando telefonei para o departamento de Tecnologia da
Informação da Trion e disse que "nós" queríamos cópias de todos os e-
mails arquivados que tinham sido expedidos e remetidos pelo gabinete do
diretor financeiro nos últimos trinta dias, tive cooperação instantânea. Eu
não queria apontar um dedo para o Camilletti, por isso fiz parecer que
Goddard estava preocupado com vazamentos a partir do escritório dele.
Uma coisa intrigante que descobri foi que Camilletti tinha o hábito de
deletar cópias de certos e-mails mais delicados, recebidos ou expedidos
por ele. Obviamente não queria que ficassem arquivados no seu
computador. Mas devia saber, já que era um cara esperto, que havia cópias
de todos os e-mails armazenadas nos bancos de dados da companhia. Por
isso preferira usar um provedor de fora para a sua correspondência mais
sensível — inclusive a do Wall Street Journal. Eu gostaria de saber se ele
sabia que os computadores da Trion capturavam todos os e-mails que
transitavam pelos cabos de fibra ótica da companhia, qualquer que fosse o
provedor, Yahoo, Hotmail ou qualquer outro.
Meu novo amigo na TI, que parecia pensar que estivesse fazendo um
favor pessoal para o próprio Goddard, também me conseguiu a listagem de
todos os telefonemas que entraram ou saíram do gabinete do diretor
financeiro. Sem problema, me disse. A companhia obviamente não
gravava as conversas, mas é claro que mantinha um registro de todos os
números de telefone chamados ou autores de chamadas, o que é uma
prática padronizada em tudo quanto é corporação. Ele também podia me
conseguir cópias dos correios de voz de qualquer um. Mas para isso
levaria um pouco mais de tempo.
Os resultados chegaram às minhas mãos em menos de uma hora.
Estava tudo ali. Camilletti recebera inúmeros telefonemas do cara do
Journal nos últimos dez dias. Mas, o que era muito mais incriminador,
dera um monte de telefonemas para o cara.
Um ou dois ainda seria possível explicar como uma tentativa de
retornar os chamados do cara — muito embora houvesse afirmado, alto e
bom som, que nunca falara com ele. Mas doze telefonemas, alguns deles
com uma duração de cinco, sete minutos? Não parecia legal.
E depois vinham as cópias dos e-mails. "De agora em diante", escreveu
Camilletti, "ligue apenas para o telefone da minha casa. Não ligue para
mim, repito NÃO ligue mais para mim na Trion. E os e-mails devem ser
enviados apenas para este endereço Hotmail."
Explique isso, Degolador.
Cara, eu mal podia esperar a hora de mostrar o meu pequeno dossiê a
Goddard, mas ele ficou preso em uma reunião após outra desde a metade
da manhã até o fim da tarde — reuniões, eu reparei, para as quais ele, no
entanto, não me convidara.
Não foi senão quando vi Camilletti sair do gabinete de Goddard que
tive a minha chance.
59
Camilletti me viu ao se afastar, mas não pareceu reparar em mim;
como se eu fosse uma peça da mobília. Goddard atraiu meu olhar e
levantou as sobrancelhas, querendo saber do que se tratava. Flo começou a
falar com ele e eu fiz o gesto que Goddard sempre fazia de levantar o
indicador, querendo dizer que eu só precisava de um minuto do tempo
dele. Após um rápido sinal para Flo, ele fez com que eu entrasse.
— Como me saí? — ele perguntou.
— Como?
— Meu pequeno discurso para a companhia.
Ele se preocupava mesmo com o que eu achava?
— Você foi sensacional — respondi.
Ele sorriu, parecendo aliviado.
— Sempre agradeço ao meu antigo professor de teatro na faculdade.
Ajudou-me enormemente na carreira, entrevistas, falar em público, essas
coisas todas. Você já representou, Adam?
Senti o rosto pegando fogo. Já, é o que faço todos os dias. Jesus, o que
ele estava querendo dar a entender?
— Não, na verdade não.
— Realmente deixa o sujeito calmo. Oh, pelo amor de Deus, não é que
eu seja um Cícero nem nada, mas... de qualquer maneira, você tinha algo
em mente?
— É sobre o artigo do Wall Street Journal — respondi.
— Sim...? — ele ficou intrigado.
— Descobri de onde partiu o vazamento.
Ele me olhou como se não estivesse entendendo, e por isso eu
continuei: — Lembra que nós achamos que devia ser alguém da
companhia quem tinha vazado as informações para o Journal...
— Sim, sim — ele interrompeu, impaciente.
— Foi — bem, foi o Paul. Camilletti.
— Do que você está falando?
— Sei que é difícil de acreditar. Mas está tudo aqui, e não deixa a
menor margem a dúvidas.
Empurrei as folhas de papel impresso por cima de sua mesa. —
Verifique o e-mail de cima.
Ele pegou os óculos de leitura que usava pendurados em uma corrente
passada pelo pescoço e os ajeitou nos olhos. Com a testa franzida,
examinou os papéis. Quando levantou a cabeça, seu rosto estava vermelho.
— De onde veio isso?
Eu sorri.
— TI. Tecnologia da Informação.
Fiz uma pequena pausa.
— Pedi os registros de todos os telefonemas de qualquer pessoa da
Trion para o Wall Street Journal. Aí, quando vi todas essas ligações a
partir do telefone de Paul, achei que podia ser sua assistente ou qualquer
coisa e pedi cópias dos E-mails.
Goddard não parecia nada feliz, o que era compreensível. Na verdade,
estava bastante preocupado, motivo pelo qual acrescentei: — Sinto muito.
Sei que deve representar um choque e tanto. O clichê saiu quase que sem
querer da minha boca.
— Eu mesmo não compreendo.
— Bem, espero que você esteja satisfeito com o que fez — disse
Goddard.
Sacudi a cabeça.
— Satisfeito? Não, só quero chegar ao fundo...
— Porque estou enojado — disse ele, a voz trêmula. — O que diabos
você pensa que está fazendo? O que é que você pensa que isto aqui é, a
porcaria da Casa Branca de Nixon?
As últimas palavras foram praticamente gritadas, e perdigotos voaram
de sua boca.
A sala ruiu à minha volta; éramos só eu e ele, separados por pouco
mais de um metro da mesa. O sangue latejou ruidosamente em meus
ouvidos. Fiquei tão atônito que não pude dizer nada.
— Invadindo a privacidade das outras pessoas, tentando desenterrar
sujeiras, conseguindo registros de telefonemas e e-mails privados e pelo
que sei, abrindo envelopes com vapor! Acho essas atividades clandestinas
repreensíveis e quero que você nunca mais faça isso. Agora dê o fora
daqui.
Levantei-me, inseguro, a cabeça tonta, chocado. Parei na porta e me
virei.
— Quero me desculpar — falei, a voz rouca. — Pensei que estivesse
ajudando. — Vou — vou tirar as minhas coisas da sala.
— Oh, pelo amor de Deus, sente-se aqui — a tempestade parecia ter
passado. — Não vai ter tempo para recolher nada. Tenho muita coisa para
você fazer.
A voz dele ficou mais delicada.
— Compreendo que estivesse tentando me proteger. Entendo isso,
Adam, e agradeço. E não vou negar que estou estupefato com Paul. Mas há
um jeito certo e um jeito errado de fazer as coisas, e eu prefiro o jeito
certo. Você começa a monitorar e-mails e registros de telefonemas, e
daqui a pouco passa a grampear telefones e, no fim, está vivendo em um
estado policial, não numa corporação. E não se pode funcionar assim. Não
sei como faziam as coisas na Wyatt, mas não procedemos desta maneira
aqui na Trion.
Balancei a cabeça.
— Eu entendo. Desculpe.
Ele levantou as mãos.
— Não aconteceu nada. Esquece. E vou lhe dizer mais uma coisa — no
final das contas, nenhuma companhia jamais faliu porque um de seus
executivos contou segredos para a imprensa. Agora vou pensar em como
resolver isso. Do meu jeito.
Ele juntou as palmas das mãos, como que a dizer que a conversa
terminara.
— Não preciso de nada que seja desagradável agora. Temos algo muito
mais importante acontecendo. Agora, vou precisar de sua opinião em um
assunto absolutamente sigiloso.
Ele se sentou, pôs os óculos e pegou um caderninho de endereços
surrado, preto, de capa de couro. Olhou para mim severamente por cima
dos óculos.
— Nunca diga a ninguém que o fundador e diretor executivo da Trion
Systems não consegue lembrar as senhas do seu computador. E certamente
não conte a ninguém qual é o tipo de aparelho manual que uso para
guardá-las.
Consultando atentamente o caderninho preto, ele digitou algumas
teclas.
Em um minuto, a impressora voltou à vida e produziu algumas
páginas. Ele inclinou-se, pegou-as e passou para mim.
— Estamos nos estágios finais de uma aquisição de vulto, muito
importante — disse. — Provavelmente a mais dispendiosa na história da
Trion. Mas provavelmente será também o melhor investimento que já
fizemos. Ainda não posso lhe dar os detalhes, mas, supondo que as
negociações de Paul prossigam com sucesso, deveremos ter um negócio
para anunciar no fim da semana que vem.
Balancei a cabeça.
— Quero que tudo corra de maneira harmoniosa. Aqui estão as
especificações básicas da nova companhia — números de empregados,
requisitos de espaço e assim por diante.
Será integrada à Trion imediatamente e localizada aqui mesmo neste
prédio. É claro que isto significa que alguém terá que sair. Algumas das
divisões existentes vão precisar sair da sede e ser transferidas para o
campus de Yarborough, ou Triângulo das Pesquisas. Preciso saber que
divisão ou divisões podem ser transferidas com o menor prejuízo possível
a fim de abrir espaço para... para a nova aquisição. Ok? Examine o que
está escrito aí e, quando terminar, faça o favor de rasgar tudo.
E me dê sua opinião o mais cedo possível.
— Ok.
— Adam, sei que estou sobrecarregando você, mas não pode ser de
outro jeito. Preciso que me diga como vê essa questão. Estou contando
com sua visão estratégica.
Ele estendeu o braço e apertou meu ombro num gesto tranquilizador.
— E da sua honestidade — completou.
60
Jocelyn, graças a Deus, parecia tomar cada vez mais café, da mesma
forma que suas pequenas saídas para ir ao banheiro tornavam-se cada vez
mais frequentes com o passar do tempo que trabalhava para mim.
Despachei um e-mail para "Arthur" dizendo, em linguagem codificada,
que tinha novo material para entregar — que eu queria "devolver" a
"roupa" que comprara online.
Enviar um e-mail do trabalho era, eu sabia, um grande risco. Mesmo
usando o Hushmail, que criptografava o texto. Mas meu tempo era curto.
Não queria ter que esperar até voltar para casa e depois, talvez, ter que sair
de novo...
A resposta de Meacham foi quase instantânea. Ele me disse para não
mandar o item a que me referira para a caixa postal e sim para o endereço
comum. Tradução: ele não queria que eu estancasse os documentos e
mandasse por e-mail, queria ver os exemplares reais, embora não dissesse
o motivo. Será que queria se certificar de que eram originais? Isso
significava que não confiavam em mim?
Ele também queria tudo imediatamente e, por alguma razão, não
queria um encontro pessoal. Por quê? Estaria com medo de que eu
estivesse sendo seguido ou algo assim? Fosse qual fosse sua lógica, queria
que eu levasse os documentos usando uma das "caixas mortas" que
havíamos definido semanas antes.
Pouco depois das seis, eu saí do trabalho e fui até um McDonald's a
cerca de três quilômetros da sede da Trion. O banheiro dos homens ali era
pequeno, um de cada vez, e dava para trancar a porta. Foi o que fiz. Depois
peguei o depósito de toalhas de papel, abri, coloquei o envelope de papel
manilha dobrado ali dentro e fechei. Enquanto as toalhas não acabassem
ninguém abriria aquilo — exceto Meacham.
Na saída, comprei um quarteirão de queijo — não que eu quisesse, mas
para disfarçar, como tinham me ensinado. Cerca de um quilômetro adiante
ficava um 7-Eleven com uma mureta protegendo a parte da frente do
estacionamento. Estacionei, entrei na loja, comprei uma Diet Pepsi e bebi
tanto quanto pude. O resto derramei num bueiro do estacionamento.
Depois, introduzi na lata vazia um chumbo de pescaria que peguei no
porta-luvas e a coloquei em cima da mureta.
A lata de Pepsi era um sinal para Meacham, que passava por ali
sempre, que eu deixara alguma coisa na caixa morta número três, a do
McDonald's. Este truque tão simples da espionagem permitiria que
Meacham pegasse os documentos sem ser visto comigo.
A transferência decorreu tranquilamente, tanto quanto eu pudesse
dizer. Não tinha motivo para pensar de outra forma.
Tudo bem, então o que eu fazia estava me fazendo sentir sujo. Mas, ao
mesmo tempo, não podia deixar de me sentir um pouco orgulhoso: estava
ficando bom nessa coisa de espionagem.
61
Quando cheguei em casa havia um e-mail de "Arthur" na minha conta
do Hushmail. Meacham queria que eu fosse até um restaurante isolado, a
mais de meia hora de distância, imediatamente. Claro que considerava
aquilo urgente.
Acabou que se tratava de um luxuoso restaurante-spa, uma famosa
meca gastronômica chamada Auberge. As paredes do saguão eram
decoradas com artigos publicados a respeito do Auberge em revistas como
Gourmet e outras parecidas.
Dava para ver por que Wyatt queria que o encontro fosse ali, e não era
só pela comida. O restaurante era montado visando ao máximo de
discrição — para encontros privados, casos extraconjugais, o que fosse.
Além do salão principal de refeições, havia pequenas alcovas separadas
para jantares privados, onde se podia entrar e sair diretamente do
estacionamento sem ter que passar pela parte principal do restaurante. Fez
com que eu me lembrasse de um motel de alta classe.
Wyatt estava sentado a uma mesa de uma alcova privada com Judith
Bolton. Judith mostrou-se cordial e até mesmo Wyatt pareceu um pouco
menos hostil que o usual.
Talvez porque eu tivesse sido tão bem-sucedido em conseguir o que ele
queria. Talvez fosse o seu segundo copo de vinho ou talvez, ainda, Judith
exercesse realmente uma certa influência misteriosa sobre ele. Eu tinha
plena convicção de que não havia nada rolando entre Judith e Wyatt, pelo
menos com base na linguagem corporal dos dois. Mas eles obviamente
eram íntimos, e ele a ouvia de um modo como não ouvia mais ninguém.
Um garçom me trouxe um copo de sauvignon blanc. Wyatt pediu-lhe
que saísse e voltasse em quinze minutos, quando, então, faria o pedido.
Ficamos sozinhos: eu, Wyatt e Judith Bolton.
— Adam — disse Wyatt, mordiscando um pedaço de focaccia —
aqueles papéis que você conseguiu no escritório do presidente — foram
muito úteis.
— Ótimo — falei. Agora eu era Adam? E ganhava um elogio de
verdade? Aquilo me fez sentir enojado.
— Especialmente aquele documento sobre a companhia chamada
Delphos — ele continuou. — Obviamente trata-se de um elemento crítico,
uma aquisição crucial para a Trion.
Não é de admirar que estejam dispostos a pagar cinco milhões de
dólares em ações. De qualquer maneira, isso resolveu o mistério. Pôs a
última peça do quebra-cabeça no lugar. Já sabemos do que se trata o
AURORA.
Dirigi-lhe um olhar inexpressivo, querendo dizer que realmente eu não
me importava, e balancei a cabeça.
— Todo esse negócio valeu o que custou, valeu cada centavo — disse
ele. — Porque as apostas são imensas e eu quero que você entenda a
urgência. A Trion Systems parece ter conseguido obter o mais importante
avanço tecnológico desde o circuito integrado. Resolveram um problema
no qual muitos de nós trabalhamos há décadas.
Eles mudaram o rumo da história.
— Tem certeza de que quer me contar isso?
— Ora, não precisa tomar nota. Você é um garoto inteligente. Preste
bastante atenção. A era do chip de silício acabou. De algum modo, a Trion
conseguiu desenvolver um chip ótico.
— E daí?
Ele me encarou com infinito desprezo. Judith apressou-se a falar,
como que para disfarçar minha gafe.
— A Intel gastou bilhões tentando resolver isso sem conseguir. O
Pentágono trabalha há mais de uma década no chip ótico. Sabem que vai
revolucionar os sistemas de navegação das aeronaves e dos mísseis, e
pagarão qualquer coisa para pôr as mãos em um chip ótico que funcione.
— O opto-chip — disse Wyatt — trabalha com sinais óticos — luz —
em vez de sinais eletrônicos, usando uma substância chamada fosfito de
índio.
Lembrei de ter lido qualquer coisa sobre fosfito de índio na papelada
de Camilletti.
— É isso que usam para fabricar lasers.
— A Trion praticamente monopolizou essa porcaria. E isto foi a pista.
Eles precisam de fosfito de índio como semicondutor do chip — é capaz
de lidar com velocidades de transferência de dados muito mais altas do
que arsenieto de gálio.
— Não deu para acompanhar — falei. — O que há de tão especial
nele?
— O opto-chip tem um modulador capaz de processar cem gigabytes
por segundo.
Pisquei. Aquilo era urdu para mim. Judith o observava, extasiada. Eu
gostaria de saber se ela havia entendido.
— É o Santo Graal. Vou simplificar. Uma única partícula do opto-chip
com um centésimo do diâmetro de um fio de cabelo humano será capaz de
processar todo o tráfico telefônico, computadores, satélite e televisão ao
mesmo tempo. Ou talvez fique mais fácil para você entender com isso: o
chip ótico permite que você faça o download de um filme de duas horas
em formato digital em um vigésimo de segundo. Pegou agora? Isto é a
porcaria de um salto quântico na indústria, em computadores e
computadores de mão e satélites e transmissão de tevê a cabo, e o que
mais você quiser. O opto-chip vai possibilitar que troços como este — ele
levantou seu computador de mão Lucid da Wyatt — recebam imagens de
televisão sem chuvisco. É tão imensamente superior a qualquer tecnologia
existente — é capaz de velocidades mais altas, requer voltagem muito
menor, a perda de sinal é muito mais baixa, o nível de aquecimento
também... É assombroso. Uma verdadeira maravilha.
— Excelente — comentei, baixinho. Eu começava agora a avaliar a
importância do que tinha feito, e me sentia como um maldito traidor da
Trion — o próprio Benedict Arnold de Jock Goddard.
Eu acabara de dar ao abominável Nick Wyatt a mais valiosa mudança
de paradigma tecnológico desde a televisão colorida. — Sinto-me
satisfeito por poder ter sido útil.
— Quero agora todas as especificações — disse Wyatt. — Quero o
protótipo. Quero as aplicações da patente, as notas de laboratório, tudo o
que eles tiverem.
— Não sei o quanto mais posso conseguir — falei. — Quer dizer, a
não ser se forçar o acesso ao quinto andar...
— Oh, isso também, cara. Eu pus você numa posição supervantajosa.
Você está trabalhando com Goddard, é um dos seus lugares-tenentes, tem
acesso a praticamente tudo o que lhe dê na telha.
— Não é assim tão simples. Você sabe disso.
— Você se encontra em uma posição única de confiança, Adam disse
Judith. — Pode ter acesso a toda uma gama de projetos.
Wyatt interrompeu-a.
— Não quero você retendo porra nenhuma! — exclamou ele,
sacudindo o dedo para mim.
— Eu não estou retendo...
— Os cortes foram uma surpresa para você, não foram?
— Eu disse a você que estava para ser feito um pronunciamento
importante. Eu realmente não sabia mais que isto naquela ocasião.
— Naquela ocasião — ele repetiu, com repugnância. — Você soube
das dispensas antes da CNN, babaca. Onde estava essa informação? Tenho
que assistir à televisão para saber do corte de pessoal na Trion quando
tenho um espião na porra do gabinete do seu diretor executivo?
— Eu não...
— Você grampeou o escritório do diretor financeiro. O que aconteceu
com esse grampo?
O rosto excessivamente bronzeado dele estava mais escuro que o
normal, os olhos injetados. Dava para sentir seus perdigotos quando
berrava.
— Eu tive que tirar.
— Tirar'- ele repetiu, incrédulo. — Por quê?
— A Segurança encontrou o grampo que pus no departamento de
Recursos Humanos e deu início a uma varredura geral, portanto eu tive
que ter cuidado. Podia ter estragado tudo.
— Quanto tempo o grampo ficou na sala do Financeiro antes de você
tirar? — ele retrucou, aos berros.
— Não muito mais que um dia.
— Um dia dava para gerar um caminhão de informações.
— Não, ele... bem, aquele troço enguiçou — menti. — Não sei o que
aconteceu.
Para ser franco, eu não sabia ao certo por que estava escondendo o que
sabia. Acho que foi o fato do grampo ter revelado que tinha sido Camilletti
quem vazou a notícia para o Wall Street Journal e eu não queria que Wyatt
ficasse sabendo dos negócios privados de Goddard. Eu realmente não tinha
analisado a questão em detalhe.
— Enguiçou? Duvido muito. Quero esse grampo na mão de Arnie
Meacham amanhã até o fim do dia para os técnicos dele examinarem. E,
acredite em mim, aqueles sujeitos são capazes de dizer numa fração de
segundo se você fez alguma sabotagem no dispositivo ou se nunca o
instalou na sala do Financeiro. E se eu descobrir que mentiu para mim,
está fodido, está morto.
— Adam — disse Judith —, é crucial que sejamos totalmente francos
e honestos uns com os outros. Não esconda nada. Inúmeras coisas podem
dar errado. Você não tem como ver o quadro geral.
Sacudi a cabeça.
— Não tenho mais o grampo — falei. — Tive que me livrar dele.
— Como assim? — quis saber Wyatt.
— Eu estava... eu estava numa situação difícil, os caras da segurança
vasculhando tudo quanto era sala. Imaginei que o melhor seria tirar o tal
do keyghost do computador do Diretor Financeiro e jogar numa lixeira a
uns dois quarteirões de distância. Não queria pôr a perder toda a operação
por causa de um grampo descoberto pela segurança.
Ele ficou me encarando fixamente por alguns segundos.
— Nunca esconda nada de nós, está entendendo? Nunca. Agora, preste
atenção. Temos fontes excelentes nos dizendo que o pessoal do Goddard
está organizando uma importante entrevista coletiva na sede da Trion para
daqui a duas semanas. O que vale dizer que teremos notícias importantes.
O tráfico de e-mails que você nos passou sugere que eles estão prestes a
tornar pública a notícia do chip ótico.
— Eles não vão anunciar nada enquanto não tiverem assegurado a
propriedade das patentes, certo?
— Eu andei fazendo umas pesquisas na Internet tarde da noite. Tenho
certeza de que você mandou seus apaniguados verificarem todos os
pedidos de patente apresentados pela Trion no U.S. Patent Office.
— Estudando direito nas horas vagas? — retrucou Wyatt com um
sorriso irônico. — Você entra com o pedido de registro da patente no
último segundo possível, a fim de evitar uma divulgação prematura. O
registro da patente só é pedido pouco antes do pronunciamento. Até lá, a
propriedade intelectual é conservada como segredo comercial. Ou seja, até
que seja protocolado o pedido de registro de patente — o que poderá
acontecer em qualquer instante das próximas duas semanas — a estação de
caça está aberta para as especificações do projeto. O relógio está andando.
Não quero que você durma, ou que descanse por um minuto sequer
enquanto não estiver de posse do último detalhe do chip ótico, estamos
entendidos?
Balancei a cabeça, arrasado.
— Agora, se nos dá licença, gostaríamos de pedir nosso jantar.
Levantei-me da mesa e saí para ir ao banheiro antes de pegar o carro e
ir embora. Quando saí da sala reservada, um sujeito que estava passando
olhou para mim.
Entrei em pânico.
Fiz meia-volta e atravessei o salão privado para atingir o
estacionamento.
Não podia afirmar com certeza absoluta, mas o cara do corredor se
parecia um bocado com Paul Camilletti.
62
Havia gente na minha sala.
Quando cheguei ao trabalho na manhã seguinte, eu os vi a distância:
dois homens, um jovem, o outro mais velho — e gelei. Eram sete e meia,
e, por algum motivo, Jocelyn não estava sentada à mesa dela. Em um
instante passei mentalmente em revista um monte de possibilidades, cada
uma pior que a outra: a segurança tinha encontrado alguma coisa no meu
escritório. Ou eu tinha sido demitido e estavam limpando minha mesa. Ou
eu estava sendo preso.
Ao me aproximar do escritório, tentei ocultar meu nervosismo e disse,
jovialmente como se aqueles sujeitos fossem meus velhos camaradas e
tivessem aparecido para uma visita:
— O que está acontecendo?
O mais velho estava tomando notas em uma prancheta e o mais jovem
debruçado sobre o meu computador. O mais velho, cabelo grisalho, bigode
de morsa e óculos sem aros, disse:
— Segurança, senhor. Sua secretária, a senhorita Chang, nos deixou
entrar.
— O que há?
— Estamos fazendo uma inspeção em todos os escritórios do sétimo
andar, senhor. Não sei se recebeu a notícia sobre a violação de segurança
que ocorreu em Recursos Humanos.
Tanto esparramo só por causa daquilo? Senti-me aliviado, mas só por
alguns segundos. E se encontrassem alguma coisa na minha mesa? Será
que eu tinha deixado algum equipamento de espionagem trancado em uma
das gavetas da mesa ou dos armários? Eu adquirira o hábito de não deixar
nada para trás. Mas se tivesse esquecido?
Eu estava tão estressado e com os nervos tão à flor da pele que podia
ter esquecido alguma coisa por engano.
— Ótimo — falei. — Fico satisfeito porque vocês estão aqui. Vocês
não encontraram nada, encontraram?
Houve um momento de silêncio. O mais jovem levantou a cabeça do
computador e não respondeu. O mais velho:
— Não, senhor. Ainda não.
— Não penso que eu seja um alvo — acrescentei. — Puxa vida, não
sou tão importante. Refiro-me a alguma outra sala neste andar, nos
escritórios dos mandachuvas.
— Não devemos conversar sobre isso, senhor, mas não, não
encontramos nada. Mas isso não quer dizer que não venhamos a encontrar.
— Meu computador está legal? — perguntei ao cara mais jovem.
— Nenhum grampo ou nada parecido até agora. Mas vamos ter que
rodar uns programas para fazer diagnóstico. Pode ligá-lo para nós, por
favor?
— Claro.
Eu não tinha enviado e-mails incriminadores daquele computador,
tinha?
Bem, tinha, claro. Mandara um e-mail para Meacham na minha conta
Hushmail. Mas, ainda que a mensagem não tivesse sido criptografada, não
teria dito nada a eles.
Eu tinha certeza de que não salvara nenhum arquivo no meu
computador que não devesse ter salvado. Disso eu tinha certeza. Sentei-me
à minha mesa e digitei minha senha. Os dois caras da segurança,
educadamente, olharam para o outro lado.
— Quem tem acesso ao seu escritório? — perguntou o mais velho.
— Só eu. E Jocelyn.
— E a turma da faxina — insistiu ele.
— Acho que sim, mas nunca vi ninguém.
— Nunca viu ninguém da faxina? — ele repetiu, cético. — Mas você
trabalha até tarde da noite, não trabalha?
— Eles trabalham ainda mais tarde.
— E o que me diz do malote? Alguma pessoa já esteve aqui na sua
ausência, que você tenha conhecimento?
Sacudi a cabeça.
— Todas essas coisas vão para a mesa da Jocelyn. Eles nunca me
entregam nada diretamente.
— Alguém da Tecnologia da Informação já fez serviços no seu
computador ou telefone?
— Não que eu saiba.
Agora foi a vez do sujeito mais moço:
— Já recebeu e-mails estranhos?
— Estranhos...?
— De gente que você não conhece, com anexos ou qualquer coisa.
— Não que eu me lembre.
— Mas você usa outros serviços de e-mail, não usa? Quer dizer, outros
além da Trion.
— Claro.
— Já acessou esses serviços deste computador?
— Sim, suponho que sim.
— E em alguma dessas outras contas você já recebeu uma mensagem
com aparência esquisita?
— Bem, recebo spam o tempo todo, como todo mundo. Você sabe,
Viagra ou "Acrescente Cinco Centímetros" ou aqueles de garotas da roça.
Nenhum dos meus interlocutores parecia ter senso de humor. — Mas eu
deleto tudo.
— Isto aqui só vai levar uns cinco ou dez minutos, senhor — disse o
mais moço, inserindo um disco na bandeja do meu CD-ROM. — Quem
sabe não aproveita para tomar um café ou algo assim?
Na verdade eu tinha um encontro, portanto deixei os caras da
segurança na minha sala, não me sentindo muito satisfeito com isso, e fui
para a Plymouth, uma das menores salas de reunião.
Não gostei deles terem me perguntado sobre provedores de email
externos. Achei péssimo. Na verdade, me fez morrer de medo. E se eles
decidissem examinar todos os meus e-mails? Eu já vira como era fácil. E
se descobrissem que eu mandara fazer cópias do tráfico da
correspondência de Camilletti? Isso me faria suspeito de alguma forma?
Quando passei pela sala de Goddard, vi que tanto ele quanto Flo não
estavam — Jock fora a uma reunião, eu sabia. Depois passei por Jocelyn
carregando uma caneca de café onde havia escrito ENLOUQUECI — VOLTO EM
CINCO MINUTOS.
— Aqueles idiotas da segurança ainda estão na minha mesa? — ela
perguntou.
— Estão na minha sala agora — respondi, sem me deter. Ela me deu
um adeusinho.
63
Goddard e Camilletti estavam sentados em torno de uma mesinha
redonda, juntamente com Jim Colvin, o diretor de operações, outro Jim, o
Jim Sperling, diretor de Recursos Humanos e mais duas mulheres que não
reconheci.
Sperling, um negro de barba cortada bem rente e óculos de aro de
metal exageradamente grandes, falara a respeito de "alvos de
oportunidade", motivo pelo qual presumi que se referia ao pessoal do staff
que eles podiam demitir. Jim Sperling não seguia a moda de camiseta de
gola alta de Jock Goddard, mas chegava perto — paletó esporte com
camisa polo escura. Jim Colvin era o único que usava o convencional terno
e gravata.
A jovem loura assistente de Sperling me passou alguns papéis em que
tinham sido listados pobres candidatos ao machado, entre pessoas físicas e
departamentos.
Dei uma rápida passada de olhos e logo notei que a equipe do Maestro
não fora relacionada. Afinal de contas, tinham conseguido salvar seus
empregos.
Notei, então, que havia uma lista de nomes da Divisão de Marketing de
Novos Produtos, entre os quais estava o nome de Phil Bohjalian. O
veterano ia ser posto para fora. Nem Chad nem Nora estavam na lista, mas
Phil fora considerado um alvo. Por Nora, tinha que ser. Cada VP e diretor
recebera o pedido de classificar seus subordinados com a finalidade de
cortar pelo menos um em cada dez. Nora obviamente selecionara Phil para
a execução.
Aquilo parecia mais ou menos uma sessão de carimbagem de papéis.
Sperling apresentava a lista e justificava as "posições" que queria
eliminar, e havia pouca discussão. Goddard parecia deprimido; Camilletti
dava a impressão de estar concentrado, até mesmo um pouco animado.
Quando Sperling chegou à divisão de Marketing dos Novos Produtos,
Goddard virou-se para mim, pedindo, em silêncio, a minha opinião.
— Posso dizer uma coisa? — perguntei.
— Hum, claro — disse Sperling.
— Há um nome aqui, Phil Bohjalian. Ele está na companhia qualquer
coisa tipo vinte, vinte e um anos.
— Mas a classificação dele na lista não é boa; ele está lá embaixo —
disse Camilletti.
Eu gostaria de saber se Goddard falara a respeito do vazamento para o
Wall Street Journal. Não dava para adivinhar com base na atitude de
Camilletti, já que não se mostrava nem mais nem menos áspero em
relação a mim do que o usual.
— Além disso, tendo em vista o tempo de serviço dele, seus benefícios
vão nos custar muito caro.
— Bem, o que eu questiono é justamente a classificação dele — falei.
— Conheço o seu trabalho e acho que ela se deve mais a uma questão de
estilo interpessoal.
— Estilo — repetiu Camilletti. — Nora Sommers não gosta da
personalidade dele.
Sei que Phil não era exatamente meu colega de infância, mas não podia
me fazer mal e eu me sentia mal por sua causa.
— Bem, se é só um caso de choque de personalidades, trata-se de um
abuso do sistema classificatório — disse Jim Sperling. — Você está me
dizendo que Nora Sommers está se prevalecendo do sistema?
Vi claramente aonde aquilo podia me levar. Eu podia salvar Phil e
liquidar Nora ao mesmo tempo. Senti-me muito tentado a cortar a cabeça
de Nora. Naquela sala ninguém tinha interesse particular num ou noutro
nome. A solução seria transmitida a Tom Lundgren que provavelmente não
lutaria para salvá-la. Na verdade, se Goddard não tivesse me arrancado das
garras de Nora, com certeza seria o meu nome que estaria agora na lista e
não o de Phil.
Goddard me observava atentamente, do mesmo modo que Sperling. Os
demais estavam tomando notas.
— Não — falei por fim. — Não creio que ela esteja se prevalecendo do
sistema. É só uma coisa de química. Acho que os dois contribuem.
— Ótimo — disse Sperling. — Podemos prosseguir?
— Olha — disse Camilletti —, estamos cortando quatro mil
empregados. Não podemos examinar um por um.
Balancei a cabeça.
— Claro.
— Adam — disse Goddard —, me faz um favor. Dispensei Flo na
manhã de hoje — você se incomoda de ir pegar meu computador de mão
na minha sala? Acho que esqueci.
Seus olhos pareciam brilhar. Ele se referia ao caderninho preto e acho
que a piada foi para me divertir.
— Claro — respondi e engoli em seco. — Já volto.
A porta da sala de Goddard estava fechada, mas destrancada. O
caderninho preto ficara em cima da mesa, limpa, a não ser por ele e pelo
computador.
Sentei-me e dei uma olhada nas coisas dele, as fotografias da esposa de
cabeça branca e ar de avó, Margaret. Uma outra da casa no lago. Nenhuma
foto do filho, Elijah; provavelmente uma lembrança ainda muito dolorosa.
Eu estava sozinho na sala de Jock Goddard e Flo não vinha trabalhar
pela manhã. Quanto tempo eu poderia ficar ali sem Goddard desconfiar?
Haveria tempo para entrar no computador dele? E se Flo aparecesse
enquanto eu estava ali...?
Não. Loucamente arriscado. Aquele era o escritório do presidente da
empresa e provavelmente apareciam pessoas ali o tempo todo. E eu não
podia me arriscar mais que dois ou três minutos: Goddard ia querer saber
onde eu andara. Talvez eu fosse ao banheiro depois de pegar seu livro, com
o que poderia explicar cinco minutos, não mais.
Mas provavelmente eu nunca mais teria aquela oportunidade. Folheei
rapidamente o caderninho e vi números de telefone, anotações rabiscadas
aqui e ali e, na página interna da capa de trás, com uma caligrafia
caprichada, GODDARD e em baixo, "62858". Tinha que ser a senha dele.
Acima desses cinco números, riscada, havia outra anotação: JUN2858.
Examinei as duas séries de números e me dei conta de que ambas eram
datas, e a mesma data.
28 de junho de 1958. Obviamente uma data importante para Goddard.
Eu não sabia que data era. Talvez o dia de seu casamento. Mas sem dúvida
ambas as variantes eram obviamente senhas.
Peguei uma caneta e um pedaço de papel e copiei a identidade e a
senha. Mas por que não copiar o caderninho inteiro? Era bem possível que
houvesse outras informações importantes ali.
Fechando a porta da sala de Goddard atrás de mim, fui até a
fotocopiadora atrás da mesa de Flo.
— Tentando fazer meu trabalho, Adam? — veio a voz de Flo. Virei
rapidamente e vi Flo carregando uma sacola de compras da Saks Fifth
Avenue. Olhava para mim com uma expressão severa. — Bom dia, Flo —
cumprimentei, meio sem graça. — Não, não precisa ter medo. Eu só estava
pegando um negócio para Jock.
— Ainda bem, porque estou aqui há mais tempo que você e odiaria ter
que usar minha antiguidade para cima de você.
A expressão dela suavizou-se e um sorriso doce apareceu no seu rosto.
64
Quando a reunião terminou, Goddard colocou-se ao meu lado e pôs o
braço no meu ombro.
— Gostei do que você fez aqui — disse ele, baixinho.
— Como assim?
Seguimos pelo corredor até a sala dele.
— Estou me referindo ao seu comedimento no caso de Nora Sommers.
Eu sei como você se sente a respeito dela. E sei como Nora se sente a seu
respeito. Teria sido a coisa mais fácil do mundo para você se livrar dela. E,
para ser sincero, eu não teria me esforçado muito para defendê-la.
Senti-me um pouco sem graça com a afeição de Goddard, mas sorri e
abaixei a cabeça.
— Achei que era a coisa certa a fazer.
— "Aqueles que têm o poder para ferir e não o fazem" — disse
Goddard — "herdarão as graças dos céus." Shakespeare. Na linguagem de
hoje: quando você tem o poder para ferrar as outras pessoas e não o faz —
bem, é aí que você mostra quem realmente é.
— Suponho que sim.
— E quem é o tal sujeito mais velho que você salvou?
— Um cara que trabalha no marketing.
— Seu amigo?
— Não, e acho que ele nem gosta particularmente de mim. Só acho que
é um empregado leal, mais nada.
— Bom para você — Goddard apertou meu ombro, com força. Levou-
me para sua sala, mas antes parou por um instante diante da mesa de Flo.
— Bom dia, querida — disse. — Quero ver o vestido da crisma.
Flo abriu um amplo sorriso e tirou da sacola da Saks um vestido de
seda branco para menina, e o levantou orgulhosamente.
— Maravilhoso — disse ele. — Simplesmente maravilhoso.
Em seguida ele entrou na sua sala e fechou a porta.
— Ainda não falei nada com Paul — disse Goddard, acomodando-se
atrás de sua escrivaninha —, e ainda não decidi se falo ou não. Você não
comentou com ninguém, comentou? Sobre o negócio do Journal?
— Não comentei.
— Então não comente. Olha, Paul e eu temos algumas diferenças de
opinião e talvez este tenha sido o seu modo de me estimular. Talvez tenha
pensado que estava ajudando a companhia. Eu não sei — um longo
suspiro. — Se eu levantar esse assunto com ele — bem, não quero que a
notícia se espalhe. Não quero que aconteça nada de desagradável. Temos
coisas muito, mas muito mais importantes ocorrendo atualmente.
— Ok.
Ele me olhou de lado.
— Eu nunca estive no Auberge, mas ouvi dizer que a comida é
maravilhosa. O que é que você acha?
Senti um nó na boca do estômago. Meu rosto ficou pegando fogo.
Tinha sido mesmo Camilletti lá na noite passada, uma tremenda falta de
sorte.
— Eu só... eu só tomei um copo de vinho, na verdade.
— Você não vai conseguir adivinhar quem estava lá jantando na
mesma noite — disse Goddard. — Sua expressão era imperscrutável. —
Nicholas Wyatt.
Camilletti obviamente andara fazendo perguntas. Negar que eu
estivera com Wyatt seria suicídio.
— Oh, isso — falei, tentando parecer aborrecido. — Desde que
comecei a trabalhar na Trion que Wyatt tem andado atrás de mim para...
— Oh, é mesmo? — interrompeu Goddard. — Quer dizer então que
você não teve outra escolha senão aceitar o convite dele para jantar, hein?
— Não, senhor, não é bem assim — retruquei, engolindo em seco.
— Só porque você muda de emprego não quer dizer que abandona os
velhos amigos, suponho — disse ele.
Sacudi a cabeça, meio perdido. Meu rosto estava começando a ficar tão
vermelho quanto o de Nora.
— Na verdade não é uma questão de amizade...
— Oh, eu sei como é — interveio Goddard. — O outro cara faz você se
sentir culpado e o obriga a aceitar um encontro com ele, em homenagem
aos velhos tempos, e você vai porque não quer ser rude, mas quando chega
lá ele arranja as coisas de modo que...
— Sabe que eu não tinha intenção de...
— Claro que não, claro que não — murmurou Goddard. — Você não é
desse tipo de pessoa. Por favor. Eu conheço as pessoas. Gosto de pensar
que este é um dos meus pontos fortes.
Quando voltei para a sala e me sentei, estava trêmulo.

O fato de Camilletti ter contado a Goddard que me vira no Auberge ao


mesmo tempo que Wyatt significava que ele suspeitava dos meus motivos.
Devia ter pensado que eu, no mínimo dos mínimos, estava permitindo que
meu antigo patrão me cortejasse. Sendo ele quem era, contudo,
provavelmente tinha pensamentos mais sombrios que este.
Que desastre! Eu gostaria de saber, também, se Goddard realmente
pensava que a coisa fosse inocente. "Conheço as pessoas", dissera. Seria
mesmo tão inocente?
Eu não sabia o que pensar. A verdade é que eu ia ter que me cuidar
muito mais daqui para a frente.
Respirei fundo, comprimi as pontas dos dedos contra os olhos
fechados. Não importava o que acontecesse, eu tinha que persistir no meu
trabalho.
Após alguns minutos, fiz uma pesquisa rápida no site da Trion e
descobri o nome do sujeito encarregado da Divisão de Propriedade
Intelectual do Departamento Jurídico. Chamava-se Bob Frankenheimer,
tinha cinquenta e quatro anos, estava havia oito na Trion. Antes fora
advogado da Oracle e antes disso trabalhara na Wilson, Sonsini, uma
grande firma de direito do Vale do Silício. Pela foto ele parecia ter um
problema muito sério de obesidade, cabelo escuro encaracolado, sombra
azulada da barba e óculos de lentes grossas. A quintessência do sujeito
inteligente, obsessivo e inadaptado socialmente. O próprio nerd.
Telefonei para ele da minha mesa, porque eu queria que ele visse no
seu identificador de chamadas que eu estava ligando do gabinete do
presidente. Ele atendeu pessoalmente, com uma voz surpreendentemente
suave, como um desses DJs que trabalham de madrugada numa estação de
rádio especializada em rock leve.
— Sr. Frankenheimer, aqui é Adam Cassidy, do gabinete do presidente.
— O que posso fazer por você? — ele perguntou, soando
genuinamente cooperativo.
— Gostaríamos de rever todos os pedidos de patentes para o
departamento três vinte e dois.
Um gesto ousado e, definitivamente, arriscado. E se ele por acaso
mencionasse isso a Goddard? Seria praticamente impossível de explicar.
Uma longa pausa.
— O projeto AURORA.
— Certo — confirmei, casualmente. — Sei que devemos ter todas as
cópias arquivadas aqui, mas gastei as duas últimas horas procurando em
toda parte e não consegui encontrar. Jock está realmente uma fera por
causa disso.
Abaixei meu volume de voz.
— Sou novo aqui, mal comecei... e não quero meter os pés pelas mãos.
Outra pausa. A voz de Frankenheimer de repente pareceu mais fria,
menos cooperativa, como se eu tivesse apertado o botão errado.
— Por que você está ligando para mim?
Eu não sabia o que dizer, mas estava claro que eu tinha me metido
onde não devia.
— Porque achei que você fosse o cara que podia salvar meu emprego
— respondi, com uma risadinha sarcástica.
— Você acha que eu tenho cópias aqui? — perguntou ele, tenso.
— Bem, você sabe onde estão as cópias dos formulários, pelo menos?
— Sr. Cassidy, tenho uma equipe dos seis mais notáveis advogados
especializados em propriedade intelectual aqui comigo que são capazes de
lidar praticamente com qualquer coisa que deem a eles. Mas as patentes do
AURORA? Oh, não. Isso tem que ficar por conta de advogados de fora. Por
quê? Supostamente por razões de segurança.
Ele foi falando cada vez mais alto, parecendo realmente irritado.
— "Segurança corporativa." Porque presumivelmente advogados de
fora adotam procedimentos de segurança com mais competência que o
pessoal da Trion. Então eu pergunto a você: que tipo de mensagem você na
verdade está querendo me enviar?
Ele não tinha mais a menor suavidade na voz.
— Isso está errado — falei. — Então quem está com os documentos?
Frankenheimer bufou. Era um homem amargurado, furioso, um
candidato perfeito a um ataque de coração.
— Quisera poder lhe dizer. Mas obviamente também não merecemos
que nos confiem essa informação. O que é mesmo que dizem os nossos
crachás culturais? "Comunicação aberta?" Adoro isso. Acho que vou
mandar pintar nas nossas camisetas para os próximos Jogos Corporativos.
Quando desliguei, passei pelo escritório de Camilletti a caminho do
banheiro e olhei de novo, sem poder acreditar no que vira.
Sentado no escritório de Paul Camilletti, uma expressão grave na
fisionomia, lá estava meu velho amigo.
Chad Pierson.

Apressei o passo, sem querer ser visto por nenhum dos dois através das
paredes de vidro do escritório de Camilletti. Embora não tivesse a menor
ideia de por que eu não queria ser visto. Eu estava funcionando na base do
instinto.
Jesus Cristo, Chad conhecia Camilletti? Ele nunca dissera que o
conhecia e, tendo em vista o comportamento humilde e despretensioso de
Chad, era o tipo de coisa da qual teria se vangloriado comigo. Não
consegui imaginar nenhuma razão legítima — ou pelo menos inocente —
pela qual os dois pudessem estar conversando.
Certamente que o motivo não era social: Camilletti não perderia tempo
com um verme como Chad.
A única explicação plausível era o que eu mais temia: Chad resolvera
levar as suspeitas que tinha de mim à direção da Trion. Mas por que
Camilletti?
Sem dúvida que Chad não gostava de mim, e quando soube da
existência de um novo contratado da Wyatt Telecom, provavelmente
espremera Kevin Griffin ao máximo para descobrir sujeiras a meu
respeito. E tivera êxito.
Mas tivera mesmo?
Quer dizer, o que Kevin Griffin sabia realmente a meu respeito?
Boatos, fofocas; podia ter dito que sabia alguma coisa do meu passado na
Wyatt. No mais, ele era um cara cuja reputação era questionável. Fosse o
que fosse que a Segurança da Wyatt tivesse dito ao pessoal da Trion era
evidente que os caras da Trion tinham acreditado — caso contrário não
teriam se livrado dele tão depressa.
Será que Camilletti ia realmente acreditar em acusações de segunda
mão, vindas de uma fonte questionável, um possível trapaceiro, como
Kevin Griffin?
Por outro lado... agora que ele me vira com Wyatt num jantar, em um
restaurante reservado, talvez acreditasse.
Meu estômago começou a doer. Achei que podia estar sofrendo de uma
úlcera.
Mesmo que fosse, seria o menor dos meus problemas.
65
No dia seguinte, sábado, era o churrasco de Goddard. Levei uma hora e
meia para chegar à casa do lago, a maior parte do tempo em estradas
secundárias. No caminho, liguei para papai do meu celular, o que foi um
erro. Conversei um pouco com Antwoine e ele logo entrou na linha,
bufando e tossindo, com sua costumeira maneira encantadora de ser, e
exigiu que eu fosse vê-lo imediatamente.
— Não posso, papai — falei. — Tenho que resolver um problema do
trabalho.
Eu não queria dizer que ia a um churrasco na casa de campo do
presidente da Trion. Tentei passar em revista mentalmente as possíveis
reações de meu pai e desisti, tamanha foi a sobrecarga. Havia a arenga da
corrupção-dos-presidentes-das-firmas, a arenga do Adam-como-um-
patético-bajulador, a arenga do você-não-sabe-quem-é, a arenga dos ricos-
vão-esfregar-o-dinheiro-deles-na-sua-cara, a arenga do que-negócio-é-
esse-de-você-não-querer-passar-um-tempo-com-seu-pai-moribundo...
— Você precisa de alguma coisa? — perguntei, sabendo que ele jamais
admitiria precisar de algo.
— Não preciso de nada — disse ele, irritado. — Não se você estiver
muito ocupado.
— Então vou passar aí amanhã de manhã, ok?
Papai ficou em silêncio, para que eu soubesse que ele tinha ficado
furioso, e depois passou o telefone para Antwoine. O velho voltara a ser o
escroto que sempre fora.
Encerrei a ligação quando cheguei na casa. O lugar era marcado com
uma placa de madeira simples, presa a um poste, na qual estavam escritos
apenas GODDARD e um número. Em seguida, um caminho comprido de
terra, cheio de sulcos, que atravessava um mato fechado e que de repente
se alargava, tomando a forma de uma grande pista circular recoberta de
conchas esmagadas. Um garoto de camisa verde era o manobrista, e foi
com relutância que lhe entreguei as chaves do Porsche.
A casa era esparramada, com telhado cinzento, aspecto confortável e
dava a impressão de ter sido construída no final do século XIX. Ficava em
um promontório que dava para o lago, com quatro gordas chaminés de
pedra e hera subindo nas telhas. Na frente da casa havia um imenso
gramado suavemente ondulado que cheirava como se tivesse acabado de
ser cortado. Aqui e ali se viam gigantescos carvalhos e pinheiros
retorcidos.
Vinte ou trinta pessoas estavam de pé no gramado, de shorts e
camisetas, empunhando drinques. Um bando de garotos corria de um lado
para o outro, gritando e jogando bolas, brincando. Uma bonita jovem loura
estava sentada diante de uma mesinha desmontável na frente da varanda.
Ela sorriu, encontrou o crachá com meu nome e me entregou.
A ação principal parecia se desenrolar do outro lado da casa, onde o
gramado declinava suavemente até um deque de madeira sobre o lago. Ali
a multidão era mais densa. Procurei um rosto conhecido, não vi nenhum.
Uma mulher corpulenta, com cerca de sessenta anos, vestindo uma túnica
cor de vinho, com o rosto muito enrugado e o cabelo branco como a neve,
aproximou-se de mim.
— Você parece perdido — disse, bondosamente. A voz era grave e
rouca, e o rosto tão castigado pelo tempo e pitoresco quanto a casa.
Percebi na mesma hora que deveria ser a mulher de Goddard. Era, em
cada detalhe, tão feia quanto diziam. Mordden tinha razão; as rugas eram
tantas que parecia mesmo um filhote de shar-pei.
— Eu sou Margaret Goddard. E você deve ser o Adam.
Estendi a mão, lisonjeado por ter sido reconhecido, até que me lembrei
de que tinha um crachá com meu nome colado na frente da camisa.
— Prazer em conhecê-la, Sra. Goddard.
Ela não me corrigiu, não me disse para chamá-la de Margaret.
— Jock me falou muito a seu respeito — ela segurou minha mão por
longo tempo e balançou a cabeça, os olhinhos castanhos abrindo mais um
pouco. Pareceu impressionada, a menos que tenha sido minha imaginação.
Chegou mais perto de mim.
— Meu marido é um velho cínico e não se deixa impressionar com
facilidade. Por isso você deve ser muito bom.
Uma varanda telada envolvia a parte de trás da casa. Passei por uma
dupla de grandes churrasqueiras pretas de metal com nuvens de fumaça
saindo do carvão incandescente.
Uma dupla de garotas de uniforme branco preparava hambúrgueres,
bifes e frangos que chiavam no fogo. Um bar comprido fora armado por
perto, coberto por uma toalha branca. Nele uma dupla de garotos com ar
de universitários servia bebidas, refrigerantes e cerveja em copos de
plástico. Em outra mesa um sujeito abria ostras e as colocava sobre uma
camada de gelo.
Quando me aproximei da varanda, comecei a reconhecer as pessoas, a
maioria delas executivos da Trion altamente situados, com esposas e
filhos. Nancy Schwartz, vice-presidente sênior da Unidade de Soluções de
Negócios, uma mulher pequena, de cabelos escuros e ar de preocupada,
usando uma camiseta Trion fluorescente laranja dos Jogos Corporativos do
ano passado, jogava croque com Rick Durant, o chefe do marketing, alto,
esbelto, bronzeado e com o cabelo preto caprichosamente penteado.
Ambos pareciam um tanto deprimidos. Flo, a assistente de Goddard,
trajando uma bata havaiana, florida e impressionante, circulava
majestosamente como se fosse a verdadeira anfitriã.
Foi nesta hora que vi Alana, o short branco contrastando com o
bronzeado das pernas longas. Ela me viu no mesmo instante, e seus olhos
pareceram iluminar-se.
Pareceu surpresa. Dirigiu-me um aceno rápido e furtivo e um sorriso, e
afastou-se. Não fiz ideia do que aquilo poderia significar, se é que podia
significar alguma coisa. Talvez quisesse manter discrição a respeito do
nosso relacionamento, aquela velha história de não pescar na praia em que
se trabalha.
Passei pelo meu antigo chefe, Tom Lundgren, que vestia uma dessas
abomináveis camisas de golfe com listras cinzentas e rosa brilhante.
Segurava uma garrafa de água e retirava nervosamente o rótulo para
formar uma fita comprida e perfeita, ao mesmo tempo que ouvia, com um
sorriso fixo, uma negra atraente que provavelmente era Audrey Bethune,
vice-presidente e líder da equipe Guru. De pé, um pouco atrás de
Lundgren, estava uma mulher que com certeza era sua esposa, vestida com
um traje de golfe idêntico ao dele, e a pele do rosto quase tão vermelha e
irritada. Um garotinho desengonçado agarrava seu cotovelo e pedia
qualquer coisa numa voz esganiçada.
A uns quinze metros de distância mais ou menos, Goddard ria com um
grupinho de sujeitos que me pareceram familiares. Ele bebia cerveja direto
da garrafa e usava uma camisa azul de gola abotoada e mangas enroladas,
calças cáqui vincadas e bainha inglesa, cinto de pano azul-marinho com
baleias estampadas e mocassins marrons surrados. O suprassumo do barão
rural. Uma garotinha correu para ele, que se abaixou e, magicamente, tirou
uma moeda da sua orelha. A menina deu um grito, admirada, ele lhe deu a
moeda e ela saiu correndo, agitadíssima.
Goddard disse mais alguma coisa e sua audiência caiu na risada, como
se ele fosse Jay Leno, Eddie Murphy e Rodney Dangerfield numa mesma
pessoa. A um dos seus lados estava Paul Camilletti, com uma calça jeans
délavé muito bem passada, uma camisa branca de gola abotoada e as
mangas também enroladas. Ele recebera o memorando sobre o traje
apropriado que eu não recebera — fui de bermuda cáqui e camisa polo.
Diante de Goddard estava Jim Colvin, o diretor de operações, as pernas
brancas e finas como as de um passarinho aparecendo sob a bermuda
cinza. Um verdadeiro show de moda. Goddard levantou a cabeça, percebeu
minha presença e fez um gesto para que eu me aproximasse.
Quando comecei a andar em sua direção, alguém surgiu do nada e
agarrou meu braço. Nora Sommers, vestindo uma camisa de malha cor-de-
rosa e bermuda cáqui exageradamente grande, pareceu empolgada por me
ver.
— Adam! — ela exclamou. — Que bom vê-lo aqui! Não é um lugar
maravilhoso?
Balancei a cabeça, sorrindo polidamente.
— Sua filha veio?
De repente ela pareceu pouco à vontade.
— Megan está passando por uma fase difícil, pobrezinha. Nunca quer
passar seu tempo livre comigo.
Engraçado, pensei, estou atravessando também a mesma fase.
— Ela prefere ir montar com o pai do que perder uma tarde com a mãe
e seus chatos colegas de trabalho.
— Com licença...
— Você já teve uma chance de ver a coleção de carros de Jock? Está
naquela garagem ali — ela apontou uma construção que parecia um
celeiro a uma centena de metros, cruzando o gramado. — Você tem que
ver os carros. São gloriosos!
— Vou ver, obrigado — falei, dando um passo na direção do grupinho
que cercava Goddard.
Nora agarrou meu braço com mais força.
— Adam, tenho querido lhe dizer que estou muito feliz com seu
sucesso. O fato de Jock estar disposto a apostar em você diz alguma coisa
a favor dele, não é mesmo? Confiar em você? Sinto-me tão feliz por sua
causa!
Agradeci calorosamente e consegui me livrar da sua garra.
Alcancei Goddard e permaneci polidamente de lado até que ele me viu
e acenou para que me aproximasse. Apresentou-me a Stuart Lurie, o
executivo responsável pela Enterprise Solutions, que disse "Como vai,
cara?" e me deu um vigoroso aperto de mão. Era um sujeito de excelente
aparência, com cerca de quarenta anos, prematuramente calvo e com a
cabeça raspada dos lados, o que lhe dava um ar cauteloso e frio.
— Adam é o futuro da Trion — disse Goddard.
— Ora, ora, é um prazer conhecer o futuro! — disse Lurie, com um
toque quase imperceptível de sarcasmo. — Você não vai tirar uma moeda
da orelha dele, vai, Jock?
— Não precisa — respondeu Jock. — Adam está sempre tirando
coelhos de cartolas, não é mesmo, Adam?
Goddard passou o braço pelo meu ombro, um gesto meio desajeitado,
já que eu era bem mais alto do que ele.
— Venha comigo — disse ele, baixinho.
Ele me conduziu para varanda telada.
— Daqui a pouco vou dar início a minha tradicional pequena
cerimônia — disse ele, enquanto subíamos os degraus de madeira. Segurei
a porta de tela para Goddard passar. — Faço uma distribuição de
presentinhos, pequenas bobagens... mais brincadeiras que presentes, na
verdade.
Eu sorri, querendo saber por que ele estaria me contando aquilo.
Atravessamos a varanda, com sua velha mobília de vime, entramos em
uma pequena área de serviço e depois na parte principal da casa. O
assoalho era de largas tábuas de pinho que rangiam quando a gente pisava
nelas. As paredes eram todas pintadas de creme, quase branco, e tudo era
belo, alegre e aconchegante. E havia aquele indescritível cheiro de casa
antiga. Tudo parecia confortável, vivido e real. Aquela era a casa de um
homem rico despretensioso, pensei. Seguimos por um corredor largo, uma
sala de estar com uma grande lareira de pedra e viramos em um corredor
mais estreito com piso de cerâmica. Nos dois lados das paredes havia
estantes com troféus e outras coisas do gênero. Por fim entramos em uma
sala pequena com as paredes revestidas de estantes de livros e uma
comprida mesa de biblioteca no meio, com um computador e uma
impressora em cima, assim como diversas caixas de papelão de bom
tamanho. Obviamente era o escritório de Goddard.
— A velha bursite anda atacando de novo — desculpou-se ele,
indicando as caixas em cima da mesa, que estavam abarrotadas do que
pareciam ser os tais presentes de que ele falara. — Você é um rapaz forte.
Se não se incomodar de carregar essas caixas para junto do pódio, perto do
bar...
— Em absoluto — falei, desapontado, mas não demonstrando meu
desapontamento. Ergui uma das caixas enormes, que não só era pesada,
com o peso distribuído irregularmente, como também tão volumosa que eu
mal podia ver por onde andava. Ela raspava nas prateleiras dos dois lados
do corredor e eu tinha que virá-la de lado para poder passar.
Em dado instante, senti que a caixa encostava em alguma coisa. Logo
em seguida ouviu-se o barulho de vidro quebrando.
— Merda! — exclamei.
Girei a caixa para enxergar o que tinha ocorrido. Eu devia ter batido
em um troféu de uma das prateleiras. Lá estava ele, dividido em muitos
cacos dourados espalhados pelo piso de cerâmica.
Era desses troféus que parecem de ouro maciço mas que na verdade
são feitos de cerâmica pintada ou algo assim.
— Oh, meu Deus, sinto muito — desculpei-me, largando a caixa e me
ajoelhando para recolher os pedaços. Eu tinha tido tanto cuidado que não
sei como aquilo tinha acontecido.
Goddard deu uma olhada rápida e empalideceu.
— Esquece — disse, com a voz tensa.
Recolhi tantos fragmentos quantos pude. Era — tinha sido — uma
estatueta dourada de um jogador de futebol americano correndo. Havia um
fragmento do capacete, um punho, uma bola pequenina. A base era de
madeira com uma placa de metal dourado que dizia CAMPEÕES 1995 —
ESCOLA LAKEWOOD — ELIJAH GODDARD — ZAGUEIRO.
Elijah Goddard, segundo Judith Bolton, era o filho falecido de
Goddard.
— Jock — falei —, me desculpe — um dos pedaços cortou
doloridamente a palma da minha mão.
— Já falei para esquecer — disse Goddard, endurecendo a voz. — Não
é nada. Agora vamos, temos que chegar lá.
Eu não sabia o que fazer, tão mal me sentia por ter destruído uma
lembrança de seu filho morto. Tive vontade de limpar a sujeira que fizera,
mas também não quis irritá-lo ainda mais. E assim terminava toda a boa
vontade que eu conquistara com o velho. O corte da minha mão sangrava.
— A sra. Walsh vai limpar isso — disse ele, em tom cortante. —
Vamos, por favor, leve esses presentes lá para fora.
Ele seguiu pelo corredor e desapareceu em algum lugar. Aproveitei
para pegar a caixa e, com todo o cuidado, carregá-la ao longo do corredor
estreito. Quando a deixei perto do pódio, vi que deixara uma marca de
sangue no papelão.
Quando voltei para pegar a segunda caixa, vi Goddard sentado a um
canto de seu escritório. Estava recurvado, a cabeça na sombra, e segurava
a base de madeira do troféu quebrado. Hesitei, sem saber ao certo o que
fazer, se dava o fora dali e o deixava em paz ou se continuava carregando
as caixas e fingia não tê-lo visto.
— Ele era um menino doce — disse Goddard subitamente, tão baixo
que a princípio pensei que tinha imaginado. Parei onde estava. Ele falava
baixo e com a voz rouca, não muito mais alto que um murmúrio. — Um
atleta, alto e com o peito largo, como você. E tinha o dom de ser feliz, o
dom para a felicidade. Quando entrava em qualquer ambiente, você sentia
a melhora do astral. Fazia as pessoas se sentirem bem. Era bonito e era
bom, e havia uma... uma centelha nos seus olhos.
Goddard levantou lentamente a cabeça e ficou olhando fixamente um
ponto qualquer, a meia distância.
— Mesmo quando bebê, quase nunca chorava ou perturbava ou...
A voz de Goddard falhou e eu fiquei ali, parado, no meio da sala,
imóvel, apenas ouvindo. Estava segurando um guardanapo embolado por
causa do corte e senti que ele estava ficando encharcado.
— Você teria gostado dele — disse Goddard. Ele estava olhando na
minha direção, mas não para mim, como se visse o filho no meu lugar. —
É verdade. Vocês teriam sido amigos.
— Sinto muito não ter chegado a conhecê-lo.
— Todo mundo o amava. Ali estava um garoto que fora posto na Terra
para fazer todas as pessoas felizes... tinha uma centelha, tinha o melhor
sor... — sua voz falhou — o melhor sorriso...
Goddard abaixou a cabeça e seus ombros se sacudiram.
— Um dia — prosseguiu ele, após um minuto — recebi um telefonema
da Margaret no trabalho. Ela gritava... Ela o encontrara em seu quarto. Fui
para casa. Não conseguia pensar direito... Elijah saíra de Haverford no
penúltimo ano, na verdade o puseram para fora, passou a tirar notas que
eram uma vergonha e começou a faltar às aulas. Mas não consegui fazer
com que falasse disso comigo. Imaginei que estivesse usando drogas,
claro, e tentei conversar com ele, mas foi como conversar com uma parede
de pedra. Voltou para casa e passava a maior parte do tempo trancado no
quarto ou saindo com garotos que eu não conhecia. Mais tarde vim a saber
por um de seus amigos que ele se viciara em heroína no início do ano
letivo. Não era nenhum delinquente juvenil, pelo contrário, um sujeito de
natureza boa, inteligente, um bom garoto... mas em algum ponto ele
começou a... qual é a expressão, tomar pico? E isso o mudou. A luz de seus
olhos se foi. Começou a mentir o tempo todo. Era como se estivesse
tentando fazer com que desaparecesse a pessoa que ele era. Entende o que
eu digo?
Goddard olhou para mim de novo. As lágrimas escorriam pelo seu
rosto.
Balancei a cabeça.
Passaram-se alguns segundos antes de ele continuar.
— Ele estava procurando algo, acho. Precisava de alguma coisa que o
mundo não podia lhe dar. Ou talvez se incomodasse muito com o que via e
tivesse decidido matar essa sua parte.
A voz dele ficou novamente embargada.
— E o resto dele foi junto.
— Jock — comecei, querendo que ele parasse.
— O legista atestou a morte por overdose. Disse que não havia dúvida
de que tinha sido deliberado, que Elijah sabia o que estava fazendo.
Ele cobriu os olhos com uma das mãos gordas.
— Aí você se pergunta, o que eu deveria ter feito diferente? Como foi
que estraguei meu filho? Uma vez cheguei inclusive ameaçá-lo com a
polícia. Tentamos fazer com que entrasse numa clínica de reabilitação.
Estive prestes a obrigá-lo a ir, mas nunca tive a chance. E perguntava a
mim mesmo sem parar: Fui exigente demais com ele, muito severo? Ou
não fui duro o suficiente? Deixei-me envolver demais pelo meu trabalho?
Acho que sim. Eu não parava um segundo naquele tempo. Estava por
demais atarefado com a construção da Trion para ser um pai de verdade
para ele.
Goddard me encarou diretamente e eu pude ver a angústia em seus
olhos. Foi como uma punhalada na minha barriga. Fiquei com os olhos
marejados.
— Você sai para trabalhar e construir seu pequeno reino — disse ele —
e perde a noção do que realmente importa — ele pestanejou com força. —
Não quero que você jamais se esqueça do que tem valor, Adam. Nunca.
A cada instante Goddard parecia menor e mais sábio, com cem anos de
idade.
— Ele estava deitado na sua cama coberto de baba e urina, como um
bebê, e eu o aninhei em meus braços. Você sabe o que é ver seu próprio
filho dentro de um caixão? — murmurou ele.
Senti arrepios e tive que desviar os olhos.
— Pensei que nunca mais fosse trabalhar de novo. Que não ia me
recuperar. Margaret diz que nunca me recuperei. Por quase dois meses
fiquei em casa, sem poder descobrir a razão pela qual ainda estava vivo.
Acontece uma coisa dessas e você... você questiona o valor de tudo.
Ele pareceu se lembrar de que tinha um lenço no bolso e enxugou o
rosto.
— Puxa vida, olha só para mim — disse, com um suspiro fundo e
dando um risinho inesperado. — Olha só para o velho bobo. Quando eu
tinha a sua idade, imaginava que quando ficasse velho como sou hoje em
dia, teria descoberto o sentido da vida — ele fez uma pausa, com um
sorriso triste. — E não estou mais próximo de descobrir o sentido da vida
do que já estive algum dia. Ora, eu sei o que não é. Por eliminação. Tive
que perder um filho para aprender. Você consegue a sua casa grandona e
seu carro bacana, e talvez saia na capa da Fortune, e você pensa que
conseguiu tudo o que queria, não é? Até a hora em que Deus manda um
telegrama dizendo: "Oh, esqueci de dizer que nada disso tem realmente
significado. E que aquilo que você ama na Terra... na verdade você não
tem nada, é tudo emprestado. É melhor você amar essas coisas enquanto
pode."
Uma lágrima rolou vagarosamente pelo seu rosto.
— Até hoje pergunto a mim mesmo, será que cheguei a conhecer
Elijah? Talvez não. Eu achava que o conhecia. Sei, com toda a certeza, que
o amei, mais do que pensei que fosse capaz de amar alguém. Mas será que
conheci realmente o meu filho? Não sei lhe dizer.
Ele sacudiu a cabeça lentamente e pude ver que começava a se
recompor.
— Seu pai, quem quer que ele seja, é um sujeito com muita sorte, mas
com muita sorte mesmo, só que nunca saberá disso. Tem um filho como
você, um filho que ainda está com ele. Sei que ele tem que sentir orgulho
de você.
— Não tenho tanta certeza disso — falei, baixinho.
— Mas eu tenho — afirmou Goddard. — Porque eu estaria.
Parte Sete

CONTROLE

CONTROLE: poder exercido sobre um agente ou agente duplo


a fim de impedir sua defecção ou nova mudança de lado.

— The International Dictionary of Espionage


66
Na manhã seguinte, chequei meus e-mails em casa e encontrei uma
mensagem de "Arthur":
Chefe muito impressionado com sua palestra & quer ver você
imediatamente.
Olhei para aquilo por um minuto e decidi não responder.
Pouco mais tarde eu aparecia, sem aviso, no apartamento de meu pai,
com uma caixa de donuts Krispy Kreme. Estacionei em uma vaga bem na
frente do seu prédio de três andares. Eu sabia que papai passava o tempo
todo na janela, quando não estava assistindo à televisão. Não perdia nada
do que acontecia na rua.
Eu tinha vindo direto do lavador de carros e o Porsche, reluzente, mais
parecia uma pedra preciosa, uma beleza verdadeira. Eu estava empolgado.
Papai ainda não o vira. Seu filho "perdedor", não mais um perdedor,
chegava em grande estilo — numa carruagem puxada a 450 cavalos.
Meu pai estava estacionado em seu local de sempre, na frente da TV,
assistindo a um desses programas investigativos baratos sobre escândalos
corporativos. Sentado ao seu lado, na poltrona menos confortável,
Antwoine lia um desses tabloides coloridos vendidos em supermercados
que parecem todos iguais. Acho que era o Star.
Papai levantou os olhos, viu a caixa de donuts com que eu acenava
para ele e sacudiu a cabeça.
— Não — disse.
— Tenho certeza de que elas têm cobertura de chocolate. Suas
favoritas.
— Não posso comer mais essa porcaria. O Mandinga aqui tem uma
pistola apontada para a minha cabeça. Por que não lhe oferece uma?
Antwoine também sacudiu a cabeça.
— Não, obrigado, estou tentando perder uns quilos. Você é o demônio.
— O que é isso aqui, uma filial dos Vigilantes do Peso?
Coloquei a caixa de donuts em cima da mesinha de centro que ficava
perto de Antwoine. Papai ainda não tinha dito nada a respeito do carro,
mas imaginei que ele provavelmente estava absorto na televisão. Além do
mais, sua vista não era lá essas coisas.
— Assim que você sair, esse sujeito vai começar a estalar o chicote,
fazendo com que eu dê pulos pela sala — disse papai.
— Ele não para, não é mesmo? — respondi.
A expressão do rosto de meu pai era mais divertida que zangada.
— Ele adora — disse. — Embora nada pareça deixá-lo mais satisfeito
do que me impedir de fumar meus cigarrinhos.
A tensão entre os dois parecia ter sido reduzida a uma espécie de
impasse resignado.
— Ei, você parece muito melhor, pai — menti.
— Mentira — disse ele, os olhos pregados na história
pseudoinvestigativa da tevê. — Você ainda está trabalhando no novo
emprego?
— Estou — respondi. Dirigi-lhe um sorriso tímido, e imaginei que
estava na hora de contar as grandes notícias. — Na verdade...
— Deixe que eu lhe diga uma coisa — ele falou, finalmente desviando
os olhos da tela da televisão e se virando para mim. — Esses f.d.p.... esses
filhos da mãe... ele apontou para o aparelho de tevê sem olhar para ele —
vão tirar toda a porra do seu dinheiro se você permitir.
— Quem, as corporações?
— As corporações, seus diretores-executivos, com suas opções de
compra de ações e suas pensões gordas e seus negócios entre-amigos. Eles
só estão lá para se favorecerem, todos eles, e você não pode se esquecer
disso.
Abaixei os olhos para o carpete.
— Bem, nem todos — falei, baixinho.
— Ora, não se iluda.
— Ouça seu pai — disse Antwoine, sem levantar os olhos do Star.
Havia quase um pouco de afeição em sua voz. — O homem é uma fonte de
sabedoria.
— Na verdade, pai, acontece que sei alguma coisa a respeito de
presidentes de corporações. Acabo de receber uma senhora promoção.
Passei a ser assistente-executivo do presidente da Trion.
Seguiu-se apenas silêncio. Achei que ele não tinha me ouvido, já que
estava grudado de novo na tela da tevê. Talvez eu tivesse sido um pouco
arrogante e dei uma amaciada.
— É mesmo uma coisa importante, pai.
Mais silêncio.
Eu já ia repetir, quando ele perguntou:
— Assistente-executivo? O que é isso, como uma secretária?
— Não, não. É uma, coisa de alto nível. Brainstorming e tudo.
— Então você faz exatamente o que, o dia inteiro?
O cara tinha enfisema, mas sabia exatamente como me deixar sem
respirar.
— Esquece, pai — falei. — Sinto muito ter tocado neste assunto.
Era a pura verdade. Por que diabos eu me importava com o que ele
pensava?
— Não, não. Eu só estava curioso para saber o que você faz para estar
montado nesse belo carro estacionado aí na frente.
Então ele notara, afinal. Sorri.
— Bem legal, hein?
— Quanto custou esse veículo?
— Bem, na verdade...
— Estou falando em pagamento mensal — ele respirou o mais fundo
que pôde.
— Nada.
— Nada — ele repetiu, como se não tivesse entendido.
— Nada. A Trion paga o leasing. É um dos bônus do meu emprego.
Ele sugou oxigênio de novo.
— Um bônus.
— Que nem o meu apartamento.
— Você se mudou?
— Achei que eu tinha lhe dito. Cento e oitenta metros quadrados
naquele prédio novo, o Harbor Suites. A Trion paga.
Outro hausto de oxigênio.
— Você está orgulhoso?
Fiquei atônito. Acho que nunca o ouvira dizer essa palavra.
— Estou — respondi, corando.
— Orgulhoso do fato deles agora serem seus donos?
Eu devia ter imaginado a punhalada escondida no seu interesse.
— Ninguém é dono de mim, pai — falei, laconicamente. — Acredito
que isso se chama "fazer sucesso". Veja no dicionário. Vai ver as ligações
dessa expressão com outras como "subir na vida", "suíte executiva" e
"indivíduos de alto valor na rede".
Eu não podia acreditar nas palavras que estavam saindo de minha boca.
Depois de todo aquele tempo reclamando de ser um macaco amestrado,
agora me vangloriava por ser obediente. Viu o que você me obrigou a
fazer?
Antwoine largou o jornal e pediu licença, diplomaticamente, fingindo
que tinha algo a fazer na cozinha.
Papai deu uma risada e virou-se para me olhar.
— Deixa ver se entendi direito — disse ele, sugando mais oxigênio. —
Você não é o dono nem do carro nem do apartamento, certo? E chama isso
de bônus?
Uma respiração.
— Eu vou lhe dizer o significado dessa coisa. Tudo o que eles lhe dão
eles podem tirar, e vão tirar. Você dirige um carro da droga da companhia,
você vive numa casa da companhia, você usa um uniforme da companhia e
nada disso é seu. Toda a sua vida não é sua.
Mordi o lábio. Eu não ia ganhar nada se respondesse o que estava
pensando. O velho estava morrendo, eu disse para mim mesmo pela
milionésima vez. Estava tomando esteroides. Era um sujeito infeliz e
amargurado. Mas assim mesmo eu falei:
— Não sei se você sabe, mas alguns pais não conseguem sentir orgulho
do sucesso de seus filhos, compreende?
Ele engoliu em seco, os olhos miúdos faiscando.
— Sucesso, é assim que você chama isso, hum? Adam, você me faz
lembrar de sua mãe cada vez mais.
— Oh, é mesmo?
Eu disse a mim mesmo: fica firme, controle sua raiva, não se exalte
senão ele sai ganhando.
— Exatamente. Você se parece com ela. Tem o mesmo tipo de
personalidade sociável — todo mundo gostava dela, se adaptava em
qualquer lugar, podia ter se casado com um cara mais rico, podia ter se
dado muito melhor. E não pense você que ela não me disse isso com todas
as letras. Em todas aquelas noites dos pais na Bartholomew Browning,
você podia vê-la se fazendo de muito amiga daqueles ricos filhos da mãe,
toda embonecada, praticamente empurrando as tetas na cara deles. Pensa
que eu não notava?
— Oh, muito bom, papai, realmente é muito bom. Pena que eu não seja
mais parecido com você, sabia?
Ele se limitou a me olhar.
— Você sabe, amargo, desagradável. Com raiva do mundo. Você queria
que eu ficasse igual a você quando crescesse, não queria?
Ele bufou, o rosto ficando mais vermelho.
Eu continuei. Meu coração batia cem vezes por minuto, minha voz saía
cada vez mais alta e eu já estava quase gritando.
— Quando eu era duro e ficava na farra o tempo todo, você me
considerava um fracassado. Ok, agora sou um sucesso pela definição de
qualquer pessoa e você não tem nada a me oferecer senão desprezo. Talvez
haja uma razão pela qual você não pode sentir orgulho de mim não
importa o que eu faça, pai.
Ele me fulminou com um olhar, resfolegou e disse: — É mesmo?
— Olhe só para você mesmo. Olhe para sua vida.
Dentro de mim havia como que um trem de carga desgovernado,
impossível de ser freado.
— Você está sempre dizendo que o mundo é dividido em vencedores e
perdedores.
Eu me dirigi para a porta no vácuo da raiva que libertara. As palavras
já haviam sido pronunciadas e não podiam ser engolidas, e eu me sentia
mais angustiado que nunca. Saí do apartamento antes que pudesse agravar
a situação. A última coisa que vi, a imagem de despedida do velho, foi seu
rosto grande e vermelho, bufando e resmungando, os olhos vidrados e
fixos em uma expressão de descrença, fúria ou dor, não sei qual.
67
— Quer dizer então que você trabalha para Jock Goddard em pessoa,
hum? — disse Alana. — Meu Deus, espero nunca ter dito nada negativo a
respeito dele. Eu disse?
Estávamos no elevador para o meu apartamento. Ela passara na sua
casa depois do trabalho para mudar de roupa e estava linda — blusa preta
com decote canoa, calças justas pretas, sapatos também pretos, grossos.
Usava o mesmo perfume delicioso floral do nosso último encontro. Seu
cabelo negro era longo e brilhante e contrastava lindamente com os olhos
azuis luminosos.
— É, você realmente falou o diabo dele, o que participei
imediatamente.
Ela sorriu, um rápido clarão de dentes perfeitos.
— Este elevador é mais ou menos do tamanho do meu apartamento —
comentou.
Eu sabia que não era verdade, mas dei uma risada.
— Pois ele é realmente maior que o meu último apartamento — falei.
Quando contei que acabara de mudar para os Harbor Suites, ela disse que
tinha ouvido falar a respeito e pareceu intrigada, motivo pelo qual
convidei-a para dar uma olhada. Poderíamos jantar no restaurante do hotel,
onde eu ainda não tivera chance de comer.
— Rapaz, que vista e tanto — disse ela assim que entrou. Um CD de
Alanis Morissette tocava baixinho. — Isto é fantástico. Mas —
acrescentou brincando, ao ver que os sofás e uma das poltronas ainda
estavam cobertos por um plástico — quando é que você muda?
— Assim que eu tiver uma ou duas horas livres. Posso lhe preparar
uma bebida?
— Hum. Claro, seria legal.
— Cosmopolitan? Também faço um gim-tônica fantástico.
— Gim-tônica parece perfeito, obrigada. Então você começou a
trabalhar para ele, certo?
Ela ergueu os olhos para mim, claro. Fui até o armário de bebidas que
acabara de ser abastecido e peguei uma garrafa de gim Tanqueray
Malacca.
— Esta semana — falei. Alana me seguiu até a cozinha. Peguei um
punhado de limões na geladeira praticamente vazia e comecei a cortá-los
ao meio.
— Mas você já estava na Trion há qualquer coisa como um mês — ela
inclinou a cabeça de lado, tentando apreender o significado da minha
promoção repentina. — Belas instalações. Você cozinha?
— Os utensílios são apenas para exibição — respondi. Comecei a
espremer as metades dos limões no espremedor de frutas. — De qualquer
modo, fui contratado para trabalhar no marketing de novos produtos, mas
depois Goddard meio que se envolveu em um projeto no qual eu estava
trabalhando e acho que gostou de minha abordagem, minhas ideias, sei lá
o quê.
— Estamos falando de um golpe de sorte — disse ela, erguendo a voz
para fazer-se ouvir acima do motor elétrico do espremedor. Dei de ombros.
— Isso é o que veremos.
Enchi dois copos sem pé, estilo bistrô francês, com gelo, uma dose de
gim, uma boa quantidade de água tônica que peguei na geladeira e uma
dose generosa de suco de limão. Entreguei o drinque a ela.
Tom Lundgren então deve ter contratado você para a equipe de Nora
Sommers. Ei, isto é delicioso. Todo aquele limão faz a diferença.
— Obrigado. Foi isso mesmo, foi o Tom que me contratou — eu me
fingi de surpreso com o fato dela saber daquilo.
— Sabe que você foi contratado para preencher minha vaga?
— Como assim?
— A vaga aberta quando fui transferida para o AURORA.
— É mesmo?
— Incrível.
— Uau, mundo pequeno. Mas o que é "Aurora"?
— Oh, achei que você sabia — ela me deu uma olhada por cima dos
óculos, um olhar que me pareceu um tanto casual demais. Sacudi a cabeça
inocentemente.
— Não...?
— Imaginei que você tinha procurado o meu nome também. Fui
mandada trabalhar no marketing do grupo de Tecnologias Disruptivas.
— Chamado AURORA?
— Não, AURORA é o nome do projeto para onde fui designada — ela
hesitou um segundo. — Acho que pensei que, por trabalhar para Goddard,
você de certa forma estaria metido em tudo.
Um deslize tático da minha parte. Eu queria que ela pensasse que
podíamos conversar livremente sobre seu trabalho.
— Teoricamente eu tenho acesso a tudo, mas ainda não sei nem onde
fica a copiadora.
Ela balançou a cabeça, em sinal de compreensão.
— Você gosta do Goddard? — perguntou.
O que eu ia responder?
— Ele é um sujeito impressionante.
— No churrasco, vocês dois pareciam bem íntimos. Vi que ele chamou
você para conhecer os amigos dele, que carregou as coisas para ele e tudo
mais.
— É, muito íntimos — falei, sarcástico. — Sou o seu office-boy, seus
músculos. Você gostou do churrasco?
— Achei meio estranho, quando me vi no meio de toda aquela gente
poderosa, mas depois de duas cervejas tudo ficou mais fácil. Era a
primeira vez que eu ia lá.
Por ter sido designada para o projeto favorito dele, pensei. Mas como
eu queria ser sutil a este respeito, deixei passar por ora.
— Vou telefonar para que aprontem a nossa mesa no restaurante.
— Sabe de uma coisa, achei que a Trion não estivesse contratando
gente de fora — disse ela, examinando o menu. — Devem ter querido
mesmo você, para terem feito isso.
— Acho que eles encararam a coisa como se estivessem me aliciando.
Só que eu não era nada de especial.
Passamos de gim tônica para Sancerre, que pedi porque tinha visto nas
contas de bebidas de Alana que era seu vinho favorito. Ela pareceu
surpresa e deliciada quando me viu fazer o pedido. Uma reação com que
eu já estava começando a ficar acostumado.
— Duvido — disse ela. — O que é que você fazia na Wyatt?
Dei-lhe a versão que usara na entrevista para ser contratado, mas não
foi o suficiente. Ela queria os detalhes do projeto Lucid.
— Na verdade não é para eu falar sobre o que fazia na Wyatt, se você
não se incomoda — falei, tentando não parecer demasiado escrupuloso.
Ela pareceu envergonhada.
— Oh, meu Deus, claro, entendo isso totalmente — disse. O garçom
apareceu.
— Já querem fazer seus pedidos?
— Você primeiro — me disse Alana, enquanto estudava mais um
pouco o cardápio.
Pedi uma paella.
— Eu estava pensando em pedir isso — ela disse. Tudo bem, então ela
não era vegetariana.
— Podemos fazer o mesmo pedido.
— Então eu também vou querer a paella — ela disse ao garçom. —
Mas se houver carne ou salsicha, dá para retirarem?
— Claro — disse o garçom, tomando nota.
— Adoro paella — quase nunca como peixe ou frutos do mar em casa.
Isso é uma delícia.
— Quer ficar com o Sancerre? — perguntei.
— Claro.
Quando o garçom virou-se para ir embora eu me lembrei de repente de
que Alana era alérgica a camarão e disse: — Espere um segundo, tem
camarão na paella?
— Sim, tem — disse o garçom.
— Isso pode ser um problema.
Alana me olhou espantada.
— Como você sabia...? — começou, os olhos semicerrados.
Seguiu-se um momento interminável de tensão excruciante enquanto
eu me torturava atrás de uma solução. Não podia acreditar que tinha feito
uma burrice daquelas.
Engoli seco e o sangue fugiu do meu rosto. Finalmente tive uma ideia.
— Você também é alérgica?
Uma pausa antes que ela respondesse.
— Sou sim. Sinto muito. Que engraçado.
A nuvem de suspeita tinha se desfeito. Nós dois passamos para a
entrada de vieiras grelhadas.
— De qualquer maneira — eu disse —, chega de falar de mim. Quero
ouvir mais coisas sobre o AURORA.
— Bem, isso é para ser mantido em sigilo — ela desculpou-se.
Sorri para ela.
— Não, nada de olho por olho com este assunto, eu juro — ela
protestou. — Palavra!
— Ok — respondi, cético. — Mas agora que você despertou minha
curiosidade, vai realmente me fazer fuçar por aí e descobrir tudo sozinho?
— Não é tão interessante.
— Não acredito. Você não pode me dar pelo menos uma ideia geral?
Ela olhou para o teto e deixou escapar um suspiro.
— Bem, lá vai. Você já ouviu falar da Haloid Company?
— Não — respondi, lentamente.
— Claro que não. Nem tinha motivo. Mas a Haloid é uma pequena
companhia que fabrica papel fotográfico e que, no final da década de 1940,
comprou os direitos de uma nova tecnologia que tinha sido recusada por
todas as grandes companhias — IBM, RCA, GE. A invenção era uma coisa
chamada xerografia, ok? Assim, em dez, quinze anos, a Haloid
transformou-se na Xerox Corporation, deixando de ser uma pequena
empresa familiar para transformar-se em uma corporação gigantesca.
Tudo por ter querido se arriscar com uma tecnologia nova em que mais
ninguém se interessou.
— Ok.
— Ou o modo como a Galvin Manufacturing Corporation, de Chicago,
que fabricava os rádios Motorola para automóveis, um dia passou para
semicondutores e telefones celulares. Ou ainda uma pequena companhia
de exploração de petróleo chamada Geophysical Service, que começou a
se expandir, passou a trabalhar com transistores e tornou-se a Texas
Instruments. Você já viu aonde quero chegar. A história da tecnologia está
cheia de exemplos de companhias que se transformaram por terem se
apropriado da tecnologia certa na hora certa e deixaram os competidores
comendo a poeira da distância. É o que Jock Goddard está tentando fazer
com o projeto AURORA. Ele pensa que o AURORA vai mudar o planeta e a
face do mundo dos negócios americanos, do mesmo modo como os
transistores, os semicondutores ou a tecnologia da fotocópia fizeram no
passado.
— Tecnologia disruptiva.
— Exatamente.
— Mas o Wall Street Journal parece pensar que Jock está no buraco.
— Nós sabemos que não é nada disso. Ele está tão na frente que já fez
a curva. Dê uma olhada na história da companhia. Houve três ou quatro
oportunidades em que todo mundo pensou que a Trion estava encostada
nas cordas, a um passo da bancarrota, e ela surpreendeu todo mundo e
voltou mais forte do que nunca.
— Você pensa que vivemos um momento parecido, hum?
— Quando o AURORA estiver pronto, ele vai anunciar. E então veremos
o que o Wall Street Journal dirá. O AURORA tornará todos estes últimos
problemas atravessados pela Trion praticamente irrelevantes.
— Assombroso! — focalizei o olhar na taça de vinho e perguntei da
forma mais casual que pude. — E qual é a tecnologia?
Ela sorriu e sacudiu a cabeça.
— Eu provavelmente não devia ter falado tudo que falei — inclinou a
cabeça de lado e disse, brincalhona: — Você está fazendo algum teste de
segurança comigo?
68
No momento em que ela me disse que queria jantar no restaurante do
Harbor Suites, eu soube que íamos dormir juntos naquela noite. Já tive
encontros com mulheres em que o clima erótico provinha da dúvida se ela
toparia ou não. Com Alana, o caso era diferente, claro, mas a voltagem era
ainda mais alta. Estava ali presente entre nós o tempo todo, lembrando
uma linha invisível que ambos tínhamos certeza de que iríamos cruzar, a
linha que nos separava da condição de amigos em que algo mais íntimo
havia entre nós. A questão era como e quando o cruzamento seria feito,
quem faria o primeiro movimento e como seria. Voltamos ao meu
apartamento depois do jantar, ambos um tanto inseguros por causa do
excesso de vinho depois dos gins-tônicas. Eu tinha o braço passado pela
sua cintura estreita. Queria sentir a pele suave da sua barriga, dos seus
seios. Da parte de cima das nádegas. Eu queria ver suas partes mais
privadas. Queria testemunhar o momento em que se rachasse a concha que
a protegia, com sua beleza impossível e sofisticada; quando ela tremesse,
cedesse, desistisse, quando aqueles olhos azuis-claros se perdessem de
tanto prazer.
Andamos meio sem rumo pelo apartamento, admirando a vista da
água, e eu preparei dois Martinis, de que definitivamente não
precisávamos. Ela disse: — Não posso acreditar que tenho que ir a Palo
Alto amanhã. — O que vai haver lá?
Ela sacudiu a cabeça.
— Nada de interessante — Alana tinha passado o braço pela minha
cintura, mas, "acidentalmente-de-propósito", deixou a mão escorregar para
o meu traseiro e fez uma piada sobre se eu terminara de desembalar a
cama.
No minuto seguinte eu tinha meus lábios sobre os dela, as pontas dos
meus dedos apalpavam delicadamente seus seios e ela enfiou a mão muito
quente por dentro da minha calça. Nós dois ficamos rapidamente excitados
e caímos em cima do sofá, o tal que estava sem a forração plástica. Nós
nos beijamos e juntamos os quadris.
Ela gemeu. E, gulosamente, me tirou de dentro das calças. Estava
usando um corpete branco por baixo da camisa preta. Seus seios eram
amplos, redondos, perfeitos.
Ela gozou gritando, com surpreendente desibinição.
Derrubei o meu Martini. Percorremos o longo corredor até o meu
quarto de dormir e repetimos a dose, desta vez mais devagar.
— Alana — falei, quando estávamos aninhados nos braços um do
outro.
— Hum?
— Alana — repeti. — Seu nome quer dizer "bonita" em gaélico ou
algo assim?
— Em celta, eu acho.
Ela estava coçando meu peito. Eu acariciava um dos seus seios.
— Alana, eu tenho que confessar uma coisa.
— Você é casado — ela gemeu.
— Não.
Ela se virou para mim, um lampejo de aborrecimento nos olhos.
— Você está envolvido com alguém.
— Não, definitivamente não. Eu tenho que confessar — que, não gosto
de Ani DiFranco.
— Mas você — você não cantou um pedaço de uma música dela... —
ela parecia intrigada.
— Tive uma antiga namorada que a ouvia o tempo todo, e agora isso
representa uma péssima associação de ideias.
— Então por que tem um dos CDs dela do lado de fora?
Ela vira o maldito disco perto do CD player.
— Eu estava tentando aprender a gostar dela.
— Por quê?
— Por sua causa.
Ela pensou por um momento, a testa franzida.
— Você não tem que gostar de tudo o que gosto. Eu não gosto de
Porsches.
— Não? — eu me virei para ela, espantado.
— Eles são pênis sobre rodas.
— É verdade.
— Talvez alguns caras precisem disso, mas você definitivamente não.
— Ninguém "precisa" de um Porsche. Só achei legal.
— Surpreende-me que o seu não seja vermelho.
— Nada disso. Vermelho é isca de tira — os tiras veem um Porsche
vermelho e ligam o radar.
— Seu pai tinha um Porsche? O meu tinha — ela rolou os olhos para
cima. — Ridículo. Tipo andropausa, o carro da crise da meia-idade.
— Para falar a verdade, na maior parte da minha infância não tínhamos
sequer um carro.
— Vocês não tinham carro?
— Usávamos o transporte público.
— Oh.
Agora ela pareceu sem jeito, e só falou depois de um minuto.
— Quer dizer então que tudo isto aqui deve ter sido um troço muito
emocionante — ela acenou com a mão para indicar o apartamento e tudo
mais.
— É verdade.
— Hum.
Outro minuto se passou.
— Posso visitá-la no trabalho um dia? — perguntei.
— Não pode. O acesso ao quinto andar é muito restrito. De qualquer
maneira, acho que é melhor que as pessoas do trabalho não saibam, não
acha?
— É, você tem razão.
Fiquei surpreso quando ela se encolheu do meu lado e preparou-se para
dormir. Eu tinha pensado que ia se levantar, voltar para casa e acordar em
sua própria cama, mas parecia querer passar a noite comigo.
O relógio da mesinha de cabeceira marcava três e trinta e cinco quando
me levantei. Alana continuava dormindo, ressonando baixinho. O piso era
acarpetado, e foi em absoluto silêncio que saí e fechei a porta.
Abri meu programa de e-mail e vi o usual sortimento de spam e lixo,
uns troços do trabalho que não me pareceram urgentes e uma mensagem
do Hushmail assinada por "Arthur", cuja linha de assunto dizia: "re:
dispositivos de consumidores." Meacham parecia supinamente furioso:
Chefe extremamente desapontado com ausência de sua resposta. Quer
material extra de palestra amanhã 6 pm ou trato corre perigo.
Acionei o botão de "Responder" e digitei "incapaz de localizar material
extra, sinto muito" e assinei "Donnie". Depois li tudo e deletei a minha
mensagem. Nada disso. Não ia responder coisa nenhuma. Era mais simples
assim. Eu já tinha feito muito por eles.
Notei que a bolsinha preta quadrada de Alana ainda estava no mesmo
lugar em que a deixara, no bar de granito. Ela não trouxera seu
computador ou a bolsa de trabalho, já que parara em casa para trocar de
roupa.
Na bolsa estavam seu crachá, um batom, umas pastilhas de hortelã, um
chaveiro e seu Maestro da Trion. As chaves provavelmente eram do
apartamento e do carro e talvez da caixa postal da sua casa. O Maestro
provavelmente conteria números de telefone e endereços, assim também
como uma agenda de compromissos. O que poderia ser muito útil para
Wyatt e Meacham.
Mas eu ainda estava trabalhando para eles?
Talvez não.
O que aconteceria se eu simplesmente caísse fora? Eu mantivera
minha parte da barganha, lhes dera quase tudo o que queriam sobre o
AURORA — bem, a maior parte, de qualquer modo. Era bem provável que
achassem que não valia a pena continuarem a me amolar. Não interessava
me desmascararem, não enquanto eu lhes pudesse ser, potencialmente,
útil. E não iam apresentar uma denúncia anônima ao FBI porque isso
simplesmente levaria as autoridades de volta a eles.
O que podiam fazer comigo?
Só então percebi: eu já deixara de trabalhar para eles. Tomara a decisão
naquela tarde no estúdio da casa do lago de Jock Goddard. Eu não ia
continuar traindo o cara. Meacham e Wyatt que se ferrassem.
Teria sido realmente muito fácil para mim naquele momento pegar o
computador de mão de Alana, colocá-lo no carregador ligado ao meu
computador de mesa e importar tudo o que tivesse em seu interior. Claro,
havia o risco dela acordar, afinal estava numa cama estranha, ver que eu
tinha me levantado e sair andando pelo apartamento para ver se me
encontrava. No que poderia me ver fazendo o download do conteúdo do
seu Maestro no meu computador. Talvez não notasse. Mas, sendo
inteligente e de raciocínio rápido, era bem provável que viesse a descobrir
a verdade.
E, não importava o quão depressa eu pensasse, nem com quanta
esperteza eu manobrasse, ela saberia minha verdadeira intenção.
Eu seria apanhado e o nosso relacionamento estaria terminado.
De repente, isto tinha uma enorme importância para mim. Eu estava
apaixonado por Alana, e isso depois de apenas dois encontros e uma noite
juntos. Começava a descobrir seu lado simples, expansivo, meio selvagem.
Amava sua risada descontrolada e incontida, sua ousadia, seu senso de
humor seco. Não queria perdê-la por algo que o nojento do Nick Wyatt
estivesse me forçando a fazer.
Eu já tinha passado a Wyatt todos os tipos de informações valiosas
sobre o projeto AURORA. Já fizera minha parte. Tinha terminado com
aqueles idiotas.
E não conseguia esquecer a visão de Jock Goddard encolhido no canto
escuro do seu estúdio, os ombros sacudindo. Aquele momento de
revelação. A confiança que depositara em mim. Eu ia violar essa confiança
para beneficiar o puto do Nick Wyatt?
Não, eu achava que não. Não mais.
E, assim, pus o Maestro de Alana no lugar. Servi-me de um copo
d'água no dispenser da porta do Sub Zero, bebi e voltei para minha cama
quente ao lado de Alana.
Ela resmungou qualquer coisa no seu sono, e eu me acomodei melhor
junto ao seu corpo e, pela primeira vez em semanas, senti-me em paz
comigo mesmo.
69
Goddard andava tão depressa que tive que fazer força para acompanhá-
lo sem correr. Seguíamos pelo corredor na direção do Executive Briefing
Center, e o velho se movia mais depressa que uma tartaruga entupida de
metanfetamina.
— Esta maldita reunião vai ser um circo — ele resmungou. — Chamei
a equipe do Guru aqui para uma atualização de status assim que soube que
vão perder a data de expedição para o Natal. Eles sabem que estou
extremamente irritado e vão ter que fazer mais piruetas que uma trupe de
bailarinas russas na Dança das Fadinhas. Você vai ver um lado meu que
não é tão atraente.
Eu não disse nada — o que poderia dizer? Eu já tinha visto algumas
manifestações suas de raiva e não se comparavam com que eu vira do
único outro presidente de empresa que eu conhecera. Perto de Nick Wyatt,
ele era um Papai Noel. E na verdade eu ainda estava abalado, comovido
por aquela cena íntima no estúdio da sua casa do lago, inclusive porque eu
nunca vira outro ser humano se desnudar àquele ponto. Até aquele
momento havia uma parte de mim que não entendia bem por que Goddard
me escolhera, por que se sentira atraído por mim. Depois daquela cena,
que balançara meu mundo, eu não queria mais impressionar o velho;
queria sua aprovação, talvez algo mais profundo.
Por que, perguntava a mim mesmo, angustiado, Goddard resolvera
estragar tudo sendo um sujeito tão decente? Já era bastante desagradável
ter que funcionar como espião de Nick Wyatt sem essa complicação.
Agora, trabalhar contra Goddard era o mesmo que trabalhar contra o pai
que eu nunca tivera, e isso estava perturbando demais a minha cabeça.
— A líder do Guru é uma jovem muito inteligente chamada Audrey
Bethune, uma pessoa com um futuro realmente promissor — resmungou
Goddard. — Mas este desastre pode descarrilar sua carreira. Não tenho
paciência com desastres nesta escala.
Quando nos aproximamos da sala, ele diminuiu o ritmo.
— Veja bem — ele me disse —, se você tiver alguma ideia, não hesite
em falar. Mas, cuidado, este é um grupo dinâmico e obstinado, e ninguém
vai respeitar você só porque eu o trouxe para o baile.
A equipe do Guru estava reunida em torno da grande mesa de reuniões,
aguardando, tensa. Levantaram os olhos quando entramos. Alguns
sorriram dizendo: "Oi, Jock" ou "Olá, sr. Goddard." Pareciam coelhos
assustados. Lembrei-me de ter sentado ali há relativamente pouco tempo.
Houve alguns olhares intrigados na minha direção, alguns cochichos.
Goddard sentou-se à cabeceira. Ao seu lado, ficou uma mulher negra de
trinta e muitos anos, a mesma que eu vira conversando com Tom Lundgren
e sua mulher no churrasco. Ele bateu com a mão em cima da mesa para
indicar que eu sentasse ao seu lado. Meu celular vibrava dentro do meu
bolso nos últimos minutos e por isso peguei-o dissimuladamente para dar
uma olhada no visor. Um monte de ligações oriundas de um número que
não reconheci. Desliguei o aparelho.
— Boa tarde — cumprimentou Goddard. — Este é meu assistente,
Adam Cassidy.
Diversos sorrisos polidos, e foi só então que me dei conta de que um
daqueles rostos pertencia à minha velha amiga Nora Sommers. Que droga,
ela estava também no Guru? Nora vestia uma blusa de listras pretas e
brancas e estava com sua maquiagem de executiva. Quando nossos olhares
cruzaram, ela sorriu como se tivesse acabado de reencontrar um amigo de
infância. Retribuí com um sorriso educado, saboreando o momento.
Audrey Bethune, a gerente do programa, estava lindamente vestida
com um costume azul-marinho, blusa branca e brinquinhos de ouro. Tinha
a pele bem escura e seu cabelo era uma bolha laqueada absolutamente
perfeita. Eu já fizera uma pesquisa do seu background e sabia que ela
vinha de uma família de classe média alta. O pai era médico, assim como
o avô, e ela passava todos os verões na propriedade da família em Oak
Bluffs, Martha's Vineyard. Sorriu para mim, revelando um espaço entre
seus dentes da frente. Estendeu o braço por trás das costas de Jock para me
cumprimentar. A palma de sua mão estava seca e fria, o que me deixou
impressionado, já que a carreira dela corria risco.
O Guru — o codinome do projeto era TSUNAMI — era um assistente
digital portátil, poderoso, possuidor de uma tecnologia realmente
formidável e que era o único aparelho de convergência da Trion. Era ao
mesmo tempo um PDA — Assistente Pessoal Digital —, comunicador e
telefone celular. Tinha o poder de um laptop em um aparelho de 226
gramas. Enviava e recebia e-mails, mensagens instantâneas, planilhas
eletrônicas, podia navegar com HTML na Internet e tinha uma grande tela
colorida TFT matriz ativa.
Goddard pigarreou.
— Quer dizer então que temos um pequeno desafio — disse.
— É um modo de colocar a coisa, Jock — disse Audrey, suavemente.
— Tivemos ontem o resultado da auditoria interna, que indicou que temos
um componente defeituoso. O visor de cristal líquido, LCD, está
completamente morto.
— Hum — disse Goddard, com o que vi ser calma forçada. — O LCD
está com defeito, é isso?
Audrey sacudiu a cabeça.
— Aparentemente é o driver do LCD que está com defeito.
— Em todos?
— Duzentos e cinquenta mil unidades estão com o driver do LCD
defeituoso — disse Goddard.
— Entendo. Qual é a data de expedição? Em três semanas. Segundo me
lembro, corrijam-me se estiver enganado, seu plano era despachar essa
leva antes do final do trimestre, reforçando assim a receita do terceiro
trimestre e dando a todos nós treze semanas do trimestre de Natal para
ganhar uma boa soma de dinheiro da qual estamos seriamente
necessitados.
Ela concordou.
— Audrey, acredito que estejamos de acordo quanto à importância do
Guru. E, como todos nós sabemos, a Trion está experimentando sérias
dificuldades no mercado. O que é o mesmo que dizer que é ainda mais
crucial que o Guru seja enviado dentro do prazo programado.
Notei que Goddard estava falando de um modo exageradamente
deliberado, e vi que estava tentando conter seu grande aborrecimento.
O chefe do grupo de marketing, Rick Durant, interveio em tom
pesaroso.
— É um grande constrangimento. Já lançamos uma ampla campanha
de divulgação, com anúncios espalhados por toda parte. "O assistente
digital para a próxima geração."
Ele rolou os olhos para cima.
— É — resmungou Goddard. — E parece que não vai ser despachado
senão na próxima geração.
Ele se virou para o engenheiro-chefe, Eddie Cabral, um sujeito moreno
de cara redonda, com corte de cabelo antigo, bem curto e reto em cima.
— O problema é com a máscara?
— Quisera que fosse — respondeu Cabral. — Não, é a porcaria do chip
que vai ter que ser refeito, senhor.
— O fabricante contratado é na Malásia?
— Nós sempre temos tido sorte com eles — disse Cabral. —
Tolerâncias respeitadas e qualidade muito boa. Mas este é um ASIC
complicado. Ele tem que fazer funcionar a tela de LCD, que por sinal é
Trion, e a coisa não tem saído como se esperava. Ou, como se costuma
dizer por aí, os biscoitos não têm saído retos forno direitos...
— Que tal substituir a tela?
— Não, senhor — respondeu Cabral. — Não sem fabricar de novo todo
o estojo, o que significa seis meses, fácil.
De repente eu me endireitei na cadeira. As palavras saltaram na minha
direção. ASIC... tela de LCD da Trion...
— Isso é da natureza das ASIC — disse Goddard. — Sempre há alguns
biscoitos que queimam. Qual é a taxa de aproveitamento, quarenta,
cinquenta por cento?
A expressão de Cabral era de absoluto desolamento.
— Zero. Um tipo qualquer de problema na linha de montagem.
Goddard comprimiu a boca. Parecia que estava prestes a perdê-la.
— Quanto tempo será preciso para refazer os ASIC?
Cabral hesitou.
— Três meses. Se tivermos sorte.
— Se tivermos sorte — repetiu Goddard. — É, se tivermos sorte. Três
meses pospõe a data do embarque para dezembro. Não vai funcionar, vai?
— Não, senhor — respondeu Cabral.
Dei um tapinha no braço de Goddard, mas ele me ignorou.
— O México não pode fabricar para nós mais depressa?
A encarregada do setor de fabricação, uma mulher chamada Kathy
Gornick, foi quem respondeu.
— Talvez uma semana ou duas mais depressa, o que não nos ajuda em
nada. E a qualidade será abaixo do padrão, na melhor das hipóteses.
— Estamos metidos mesmo numa maldita confusão — disse Goddard.
Foi a primeira vez que o ouvi praguejar.
Peguei uma folha de especificações de produto e bati no braço de
Goddard de novo.
— Pode me desculpar por um instante? — pedi.
Saí correndo da sala e assim que pisei na área de estar abri meu celular.
Noah Mordden não estava sentado à sua mesa, e por isso tentei seu
celular. Ele atendeu ao primeiro toque.
— O quê?
— Sou eu, Adam.
— Eu atendi o telefone, não foi?
— Sabe aquela boneca feia que você tem na sua sala? A que diz "Coma
meu short, Goddard"?
— Love Me Lucille. Você não pode pegar aquela. Tem que comprar a
sua.
— Ela não tem uma tela de LCD na barriga?
— O que você está querendo, Cassidy?
— Escuta, preciso de uma informação sobre o driver do LCD. O ASIC.
Quando retornei à sala de reuniões uns poucos minutos mais tarde,
encontrei o chefe da engenharia e a encarregada da fabricação engajados
em um debate acalorado sobre se outra tela de LCD poderia ser espremida
no minúsculo estojo do Guru. Sentei-me em silêncio e fiquei aguardando a
primeira brecha. Finalmente consegui minha chance.
— Com licença — falei, mas ninguém prestou atenção.
— Está vendo só — estava dizendo Eddie Cabral. — É exatamente por
isso que temos que adiar o lançamento.
— Bem, não podemos nos dar ao luxo de adiar o lançamento do Guru
— disparou Goddard de volta.
Limpei a garganta.
— Com licença por um segundo?
— Adam — disse Goddard.
— Sei que isso vai parecer maluquice — falei —, mas vocês se
lembram daquela boneca robótica chamada Love Me Lucille?
— O que é que nós estamos fazendo aqui? — lamentou-se Rick
Durant, o homem do marketing. — Não me faça lembrar daquele desastre.
Despachamos meio milhão daquelas bonecas horrorosas e as recebemos
todas de volta.
— Exatamente — concordei. — É exatamente por isso que temos
trezentos mil ASIC fabricados especialmente para a tela de LCD da Trion,
armazenados num depósito em Van Nuys.
Umas poucas risadas, algumas gargalhadas indisfarçadas. Um dos
engenheiros disse a outro, alto o bastante para que todos ouvissem:
— Ele sabe alguma coisa de conectores?
Uma outra pessoa disse:
— Hilariante.
Nora olhou para mim, contraindo o rosto com falsa compaixão e deu
de ombros.
— Eu gostaria que fosse fácil assim, Adam — disse Eddie Cabral. —
Mas os ASIC não são intercambiáveis. Precisaria haver compatibilidade dos
pinos.
Aquiesci.
— O layout dos pinos do ASIC da Lucille é SOLC-68. Não é o mesmo do
Guru?
Goddard me encarou fixamente.
Houve outra pausa, em que só se ouviu o barulho dos papéis que
estavam sendo consultados.
— SOLC-68 — disse um dos engenheiros. — É, pode funcionar.
Goddard deu uma olhada em torno e bateu com a palma da mão na
mesa.
— Está certo, então — disse ele. — O que estamos esperando?
Nora me dirigiu um sorriso úmido, acompanhado pelo gesto do polegar
para cima.

No caminho de volta para a minha sala, eu puxei meu celular de novo.


Cinco mensagens, todas do mesmo número e marcadas "Particular".
Disquei minha caixa postal e ouvi a voz inconfundível de Meacham: "Aqui
é Arthur. Não tenho notícias suas há três dias. Isso não é aceitável. Envie
um e-mail até o meio-dia ou enfrente as consequências."
Senti um choque. O fato de ele ter telefonado para mim comprovava o
quanto estava levando a sério o meu sumiço.
Ele tinha razão. Eu estivera fora de alcance. Só que eu não tinha planos
para voltar ao que era antes. Sinto muito, camarada.
A próxima mensagem era de Antwoine, com a voz aguda e tensa.
— Adam, você precisa vir ao hospital — disse ele, na primeira
mensagem. A segunda, terceira, quarta e quinta — todas de Antwoine. Seu
tom de voz ficava cada vez mais desesperado.
— Adam, onde diabos está você? Anda, cara. Apareça já.
Passei na sala de Goddard — ele ainda estava batendo papo com
alguns integrantes da equipe Guru. — E disse a Flo:
— Pode dizer a Jock que tive uma emergência? É meu pai.
70
Eu sabia do que se tratava antes de chegar lá, mas ainda assim fui
dirigindo como um louco. Todo sinal vermelho, todo veículo que ia virar à
esquerda, todos os sinais de redução da velocidade para trinta e dois
quilômetros por hora em horário escolar — tudo conspirou para me
atrasar, me impedir de chegar ao hospital a tempo de ver papai antes que
ele morresse.
Estacionei ilegalmente porque não tinha tempo para ficar circulando
pela garagem do hospital atrás de uma vaga, entrei correndo pela
emergência, batendo nas duas portas para abri-las do jeito como os
paramédicos fazem quando entram com uma maca e voei até a mesa de
triagem. A atendente estava ao telefone, falando e rindo, no que,
obviamente, era uma ligação pessoal.
— Frank Cassidy? — perguntei.
Ela me deu uma olhada e continuou tagarelando.
— Francis Cassidy! — berrei. — Onde ele está?
Ressentida, ela descansou o telefone e deu uma olhada na tela do seu
computador.
— Quarto três.
Atravessei correndo a sala de espera, puxei as duas portas pesadas que
davam na enfermaria e vi Antwoine sentado em uma cadeira perto de uma
cortina verde.
Quando me viu, ele não disse nada e limitou-se a virar para mim com o
rosto inexpressivo e os olhos congestionados. Sacudiu a cabeça
vagarosamente quando me aproximei e disse:
— Sinto muito, Adam.
Abri a cortina com um puxão forte e lá estava meu pai sentado na
cama, com os olhos abertos e eu pensei: Veja só, Antwoine, engano seu,
você não viu direito, ele ainda se encontra entre nós, o filho da mãe, até
que caiu a ficha e eu vi que o amarelo da pele do rosto dele não era a cor
normal, e que sua boca estava aberta, era essa a coisa horrível. Por alguma
razão, foi nisso que me fixei; a boca dele aberta de um modo como eu
nunca vira quando ele estava vivo. Imobilizada num hausto sofrido, uma
última e desesperada inspiração, furiosa, quase um rosnado.
— Oh, não — eu me lamentei.
Antwoine permaneceu em pé atrás de mim, com a mão no meu ombro.
— Eles o declararam morto dez minutos atrás — disse ele. Toquei o
rosto de papai, sua face de cera estava fria. Nem gelada, nem quente. Fria.
Uns poucos graus mais fria do que deveria estar, uma temperatura que
nunca se sente nos vivos. A pele parecia argila de modelagem, inanimada.
Não consegui respirar; era como se estivesse num vácuo. As luzes
começaram a piscar. De repente, eu exclamei:
— Não, papai. Não.
Fixei nele os olhos cheios de lágrimas, passei a mão na sua testa, no
rosto, a pele vermelha e áspera do nariz com pelinhos pretos saindo dos
poros e me inclinei e beijei seu rosto zangado. Durante anos beijei a testa
dele ou o lado do seu rosto e ele mal respondera, embora eu sempre tivesse
certeza de ver um brilho ínfimo de secreta satisfação em seus olhos. Agora
não reagiu, é claro, e isso me deixou aturdido.
— Eu queria que você tivesse uma chance para se despedir dele —
disse Antwoine.
Ouvi o que ele disse, senti o ressoar de sua voz grave, mas não pude
me virar para olhar para Antwoine.
— Ele começou de novo a respirar com muita dificuldade e desta vez
eu nem perdi tempo discutindo. Chamei a ambulância. Estava realmente
arquejante. Disseram que era pneumonia, provavelmente instalada há
algum tempo. Discutiram um pouco sobre intubá-lo ou não, mas não
tiveram oportunidade. Telefonei um monte de vezes para você.
— Eu sei — falei.
— Havia algum tempo... Eu queria que você se despedisse dele.
— Eu sei. Está tudo bem.
Engoli em seco. Não queria olhar para Antwoine, não queria ver seu
rosto, porque parecia que ele tinha chorado, e eu não ia saber lidar com
isso. E não queria também que me visse chorando. O que eu sabia que era
bobagem. Quer dizer, se você não chora quando seu pai morre, alguma
coisa está errada.
— Ele... disse alguma coisa?
— A maior parte do tempo só fez praguejar.
— Quero dizer, ele...
— Não — disse Antwoine, falando muito devagar. — Ele não
perguntou por você. Mas você sabe, ele não estava realmente dizendo
coisa com coisa, ele...
— Eu sei — eu queria que Antwoine se calasse.
— Ele xingava os médicos e...
— É — interrompi, olhando fixamente para o rosto de meu pai. — Não
é de espantar.
A testa dele ficara imobilizada com as rugas. Estendi o braço e toquei
nas rugas, tentando alisá-las, mas não consegui.
— Papai — falei —, sinto muito.
Não sei o que eu queria dizer com aquele pedido de desculpas. Por que
eu sentia muito? Já passara muito tempo da sua hora de morrer, e ele
estava muito melhor morto do que vivendo em um estado de agonia
constante.
A cortina do outro lado da cama foi puxada e entrou um sujeito de pele
morena, uniforme cirúrgico e estetoscópio. Reconheci-o como sendo o dr.
Patel, da última vez.
— Adam — disse ele. — Sinto muito.
Ele parecia genuinamente triste.
Balancei a cabeça.
— Ele desenvolveu uma pneumonia nos dois pulmões — disse o
médico. — Deve ter ficado incubada por algum tempo, embora em sua
última hospitalização a contagem de leucócitos não tenha mostrado nada
de anormal.
— Claro.
— Foi demais para ele, no seu estado. Finalmente teve um infarto
antes que pudéssemos decidir se deveríamos intubá-lo. Seu organismo não
foi capaz de resistir à agressão da doença.
Balancei a cabeça mais uma vez. Eu não queria saber dos detalhes. De
que adiantava?
— Foi, na verdade, o melhor. Ele podia ter ficado respirando
artificialmente por meses. Você não ia querer uma coisa dessas.
— Eu sei. Obrigado. Eu sei que vocês fizeram o máximo que puderam.
— Era só... era só ele, certo? Seu pai era viúvo, não? Você não tem
irmãos ou irmãs?
— Certo.
— Vocês dois devem ter sido muito ligados.
É mesmo? E como você sabe disso...? Esta é sua opinião profissional,
de médico? Mas eu me limitei a balançar a cabeça uma terceira vez.
— Adam, existe alguma funerária que você gostaria que
chamássemos?
Tentei me lembrar do nome da casa funerária que havia tratado do
enterro de minha mãe. Após alguns segundos consegui.
— Diga se há mais alguma coisa que possamos fazer por você — disse
o dr. Patel.
Olhei para o corpo de meu pai, os punhos crispados, a expressão
furiosa, os olhos pequenos e redondos esgazeados, a boca aberta. Depois
levantei a cabeça para o dr. Patel e pedi:
— Acha que poderia fechar os olhos dele?
71
Os caras da casa funerária apareceram em menos de uma hora e
colocaram o corpo de meu pai dentro de um saco plástico fechado por um
zíper, e o conduziram em uma maca. Eram dois sujeitos corpulentos,
amáveis, cabelo cortado curto. Um deles disse: "Sinto muito pela sua
perda." Liguei para o diretor da casa pelo meu celular, e foi meio
desnorteado que conversei com ele sobre o que aconteceria a seguir. Ele
também me disse: "Sinto muito pela sua perda." Quis saber se haveria
algum parente idoso vindo para o enterro de fora da cidade, para quando
eu queria marcar o funeral, se meu pai frequentava alguma igreja em que
eu quisesse que fosse realizado o serviço religioso. Perguntou também se a
família tinha jazigo. Eu lhe falei onde mamãe estava enterrada, disse que
estava certo de que papai comprara duas sepulturas, uma para mamãe e
outra para ele. Ele me disse que ia verificar no cemitério e me perguntou
quando eu queria ir tratar pessoalmente dos arranjos finais.
Fui me sentar na área da sala de emergência para telefonar para o
escritório. Jocelyn já tinha ouvido dizer que tinha acontecido alguma
espécie de emergência com meu pai e perguntou:
— Como está seu pai?
— Acaba de falecer — respondi. Era como meu pai falava: as pessoas
"faleciam", não morriam.
Pedi a ela para cancelar meus compromissos pelos dois dias seguintes
e em seguida que transferisse a ligação para Goddard.
Flo atendeu.
— Olá. O chefe está fora da sala... ele vai para Tóquio hoje à noite... —
e, com a voz contida: — Como está seu pai?
— Acaba de falecer — respondi, prosseguindo rápido. — É claro que
vou ficar fora uns dois dias, e queria que você pedisse desculpas a Jock de
antemão...
— É evidente — disse ela. — É evidente. Minhas condolências. Tenho
certeza de que ele ainda vai me ligar antes de entrar no avião, mas eu sei
que ele vai compreender, não precisa se preocupar.
Antwoine apareceu na sala de espera, parecendo deslocado, meio
perdido.
— O que você quer que eu faça? — perguntou ele, gentilmente.
— Nada, Antwoine.
Ele hesitou.
— Quer que eu tire as minhas coisas de lá?
— Não, nada disso. Gaste o tempo que for preciso.
— É que isso aconteceu tão de repente, e eu não tenho para onde ir...
— Fique no apartamento tanto tempo quanto quiser.
Ele mudou o peso do corpo de um pé para o outro.
— Sabe, ele falou a seu respeito.
— Oh, claro — falei.
Claro que Antwoine estava se sentindo culpado por ter me dito que
papai não perguntara por mim no final.
— Eu sei.
Uma risada comedida, suave.
— Nem sempre do jeito mais positivo, mas acho que era assim que ele
demonstrava seu amor, sabe?
— Eu sei.
— Ele era um filho da mãe durão, o seu pai.
— É verdade.
— Levou algum tempo para que nós dois conseguíssemos acertar as
coisas, você sabe.
— Ele foi bem desagradável com você.
— Era só o jeito dele, você sabe como é. Eu não permitia que nada
daquilo me ofendesse.
— Você cuidou de meu pai, Antwoine — falei. — Isso era muito
importante, mesmo que ele não fosse capaz de dizer.
— Eu sei, eu sei. Mais para o fim a gente tinha estabelecido um
relacionamento legal.
— Ele gostava de você.
— Quanto a isso eu não sei, mas é fato que desenvolvemos um
relacionamento amigo.
— Não, eu acho que ele gostava de você. Sei que gostava.
Antwoine fez uma pausa.
— Ele era um homem bom, você sabe.
Fiquei sem saber o que responder a isso.
— Você foi realmente maravilhoso com meu pai, Antwoine — disse,
por fim. — Sei o quanto isto significou para ele.
Engraçado: depois da primeira vez que chorei junto ao leito de hospital
onde meu pai morreu, alguma coisa dentro de mim se fechou. Não chorei
de novo, por muito tempo. Eu me sentia como quando a gente fica com um
braço dormente, sem energia e com uma sensação de alfinetadas depois de
ter ficado imobilizado a noite inteira.
No caminho para a casa funerária, liguei para Alana no trabalho e ouvi
a mensagem do seu correio de voz, dizendo que estava "fora do escritório"
mas que verificaria com frequência suas mensagens. Lembrei-me de que
fora para Palo Alto. Telefonei para o seu celular e ela atendeu ao primeiro
toque.
— Alana — disse. Eu adorava sua voz: tinha a suavidade do veludo e
apenas um leve indício de rouquidão. — É Adam.
— Ei, idiota.
— O que foi que eu fiz?
— Você não acha que deve telefonar para a garota na manhã seguinte à
noite em que dormiu com ela, para fazer com que se sinta menos infeliz
por ter transado?
— Meu Deus, Alana, eu...
— Alguns caras inclusive mandam flores — prosseguiu ela, em tom
formal. — Não que tenha me acontecido pessoalmente, mas já li a esse
respeito na Cosmo.
Alana tinha razão, claro: eu não telefonara para ela, o que era
absolutamente rude. Mas o que eu deveria dizer-lhe, a verdade? Que não
telefonara porque estava imobilizado como um inseto preso no âmbar e
não sabia o que fazer? Que eu não podia acreditar na sorte que tivera de
encontrar uma mulher igual a ela — por quem eu tinha caído de quatro —
e que no entanto me sentia como uma fraude total e completa? Pois é,
pensei, você leu na Cosmo como os homens são capazes de usar as
pessoas, baby, mas não tem ideia do ponto a que a coisa chega.
— Como está Palo Alto?
— Palo Alto é bonitinha, mas você não vai mudar de assunto assim tão
facilmente.
— Alana — falei —, escute. Eu queria falar com você, tenho uma
notícia ruim. Meu pai acaba de morrer.
— Oh, Adam. Oh, sinto muito. Meu Deus, eu queria ter estado aí com
você.
— Eu também.
— O que é que eu posso fazer?
— Não se preocupe, nada.
— Você já sabe... quando vai ser o funeral?
— Dois dias.
— Vou ficar aqui até quinta-feira. Adam, sinto muito mesmo.
Telefonei em seguida para Seth, que disse basicamente a mesma coisa.
— Oh, cara, amigão, sinto muito. O que é que eu posso fazer?
As pessoas sempre dizem isso, e é legal, mas você começa a pensar, o
que é que há para fazer, certo? Não era como se eu quisesse uma casserole.
Eu não sabia o que queria.
— Nada, na verdade.
— Deixa disso, eu posso sair daqui da firma sem problema. Não se
preocupe.
— Não, está tudo bem, obrigado, cara.
— Vai haver um funeral e tudo mais?
— Claro, claro. Eu aviso.
— Vê se te cuida, cara, hein?
Em seguida o telefone celular tocou na minha mão. Meacham não
disse alô nem nada. Suas primeiras palavras foram: — Por onde você tem
andado, porra!
— Meu pai acaba de morrer. Cerca de uma hora atrás.
Um longo silêncio.
— Jesus — disse ele, acrescentando tensamente, como se só tivesse se
lembrado depois. — Lamento.
— É.
— Péssima hora.
— É — falei, furioso. — Eu disse a ele para esperar. E apertei o botão
END.
72
O responsável pela casa funerária era o mesmo sujeito que cuidara de
tudo na morte de mamãe. Era um tipo caloroso e amável, com o cabelo
exageradamente preto e um grande bigode eriçado. Seu nome era Frank —
"igual a seu pai" — ele fez questão de ressaltar. Levou-me para ver a
câmara-ardente, com tapetes orientais e mobília escura. O escritório era
pequeno e sombrio, com uns arquivos de aço antiquados e estampas de
barcos e paisagens nas paredes. Não havia nada de falso no cara, que
parecia realmente se entender comigo. Ele falou um pouco sobre a morte
de seu pai, seis anos antes, e como tinha sido difícil. Ofereceu-me lenços
de papel, mas eu não precisava. Anotou as informações de que necessitava
para preparar o anúncio fúnebre — perguntei-me mentalmente quem leria
esse anúncio, quem realmente se importaria — e preparamos o texto. Lutei
para me lembrar do nome da irmã mais velha de papai, já falecida, e
mesmo dos pais dele, a quem eu vira menos de dez vezes na minha vida, e
mesmo assim só chamava de "Vovô" e "Vovó". Papai tivera um
relacionamento tenso com os pais, portanto raramente os víamos. Fiquei
meio incerto quanto à longa e complicada história dos empregos de papai,
e posso ter deixado de fora uma ou outra escola onde trabalhou, mas as
importantes estavam lá.
Frank perguntou sobre o passado militar de papai, e eu só me lembrei
de que ele fizera treinamento básico em alguma unidade do Exército,
nunca combatera e odiava o Exército. Ele perguntou se eu queria uma
bandeira em cima do caixão, algo a que papai tinha direito como veterano,
mas eu disse que não, papai não teria desejado uma bandeira em cima do
seu caixão. Pelo contrário, teria protestado, dito algo como: "Quem é que
você pensa que eu sou, porra, John F. Kennedy?" Frank também perguntou
se eu queria que fosse ouvido o toque de silêncio, a que papai também
tinha direito, explicando que atualmente não era mais tocado por um
corneteiro, e sim por uma fita acionada ao lado da sepultura. Eu disse que
não, que papai também não ia querer o toque de silêncio. E falei que eu
queria que ele providenciasse o funeral, e tudo mais, tão cedo quanto fosse
possível. Queria terminar logo com aquilo.
Frank ligou para a igreja católica onde tinha sido a cerimônia fúnebre
de mamãe e marcou uma missa para dali a dois dias. Não havia parentes
de fora da cidade, pelo que eu soubesse; os únicos sobreviventes eram dois
primos e uma tia que ele nunca via. Havia dois sujeitos que podiam ser
considerados amigos dele, muito embora não se tivessem falado por
muitos anos. Todos moravam perto. Ele perguntou se papai tinha um terno
com o qual eu queria que ele fosse enterrado. Eu disse que achava que sim,
que ia verificar.
Em seguida Frank me levou a um conjunto de salas onde havia caixões
em exposição. Todos pareciam grandes e enfeitados, o tipo de coisa de que
papai teria debochado.
Eu me lembro dele vociferando, na época em que mamãe morreu,
contra a indústria dos funerais, afirmando que não passava de um furto
monumental o modo como cobravam preços ridiculamente inflacionados
por caixões que de qualquer maneira iam mesmo para debaixo da terra, e
por isso mesmo de que adiantava serem caros ou baratos, e falando que
ouvira dizer que geralmente substituíam os caixões caros por outros
baratinhos quando não havia ninguém olhando. Eu sabia que isso não era
verdade, porque vira o caixão de mamãe sendo baixado com toda aquela
terra jogada por cima, e não pensava que fosse possível qualquer tipo de
fraude, a não ser que fossem ao cemitério no meio da noite e escavassem a
cova, do que eu duvidava.
Por causa dessa suspeita — foi a desculpa dele, pelo menos —, papai
escolhera um dos caixões mais baratos para mamãe, de pinho vagabundo
pintado para parecer mogno. "Acredite em mim", ele me disse na casa
funerária, eu me acabando de chorar por causa da morte de mamãe, "sua
mãe não acreditava em desperdício de dinheiro."
Mas eu não ia fazer isso com ele, mesmo que estivesse morto e não
pudesse tomar conhecimento da diferença. Eu andava num Porsche,
morava em um apartamento imenso no Harbor Suites e podia me dar ao
luxo de comprar um caixão de boa qualidade para o meu pai. Com o
dinheiro que ganhava no emprego contra o qual ele vivia discursando,
escolhi um de mogno com aparência elegante, que tinha um troço
chamado "cofre da memória", uma gaveta onde você podia guardar
pertences do falecido.
Umas duas horas mais tarde fui para casa, me atirei na cama jamais
arrumada e caí no sono. Quando acordei, fui até o apartamento de papai e
examinei seu armário, que claramente não era aberto havia muito tempo, e
encontrei um terno azul barato, que eu nunca o vira usar. Havia uma
camada de poeira em cima dos ombros. Achei uma camisa, mas não
consegui encontrar uma gravata — acho que ele nunca usou uma na vida
—, portanto decidi pegar uma das minhas. Procurei no apartamento
alguma coisa com a qual ele gostaria de ser enterrado. Um maço de
cigarros, talvez.
Eu tivera medo daquela ida ao apartamento, achando que ia ser difícil,
que eu ia começar a chorar de novo. Mas só me senti profundamente triste
ao ver o que o pobre velho deixara — o resto do fedor dos cigarros, a
cadeira de rodas, o tubo de respirar, a poltrona reclinável. Depois de uma
excruciante meia hora examinando seus pertences, desisti e decidi que não
ia pôr nada no tal "cofre da memória". Ficaria simbolicamente vazio, por
que não?
Quando voltei para casa, escolhi uma das gravatas de que eu gostava
menos, uma azul e branca que parecia séria o bastante e que eu não me
importava de perder.
Não estava disposto a voltar dirigindo até a casa funerária e por isso
levei-a até a portaria e pedi para que a mandassem levar.
No dia seguinte seria o velório. Cheguei à casa funerária cerca de vinte
minutos antes da hora prevista. O ar-condicionado, ligado ao máximo,
deixou o ambiente muito frio e com o cheiro desses purificadores de
ambientes. Frank perguntou se eu queria "apresentar meus respeitos" a
papai em particular, e eu disse que sim, claro. Ele indicou com um gesto
uma das portas do hall central. Quando entrei na sala e vi o caixão aberto
tive um choque. Lá estava papai, usando seu terno azul barato e a minha
gravata listrada, as mãos cruzadas sobre o peito. Senti um nó na garganta,
mas logo desapareceu, e não tive vontade de chorar, o que achei estranho.
Senti-me apenas vazio.
Ele não parecia, de jeito nenhum, verdadeiro, mas eles nunca parecem.
Frank, ou quem quer que tenha feito o serviço, não realizara um mau
trabalho — não exagerara na pintura nem nada — mas, ainda assim, ele
parecia um dos bonecos do museu de cera de Madame Tussaud, mesmo
que fosse um dos melhores. Depois que o espírito vai embora não há nada
que o profissional que prepara o corpo possa fazer para recuperar a
aparência natural. Sua pele tinha um "tom de carne" de aparência falsa.
Era perceptível um toque sutil de batom castanho nos lábios. Não estava
mais tão enfurecido quanto no hospital, mas de qualquer forma não tinham
conseguido dar-lhe uma aparência pacífica, apesar da redução das rugas da
testa. Sua pele agora estava fria e parecendo ser muito mais de cera que no
hospital. Hesitei um momento antes de beijar-lhe o rosto; parecia
estranho, artificial, sujo.
Fiquei ali parado olhando para aquele recipiente de carne, aquele
invólucro descartado, aquela casca que um dia contivera a alma misteriosa
e assustadora de meu pai. E comecei a falar com ele, como imagino que
todo filho fala com o pai morto.
— Bem, papai — falei —, você finalmente saltou fora. Se existe
realmente uma outra vida depois desta, espero que esteja mais feliz lá do
que foi aqui.
Senti pena dele nesta hora, algo que acho que nunca fui capaz de sentir
quando estava vivo. Relembrei umas duas ocasiões em que ele realmente
parecera sentir-se feliz, quando eu era muito mais moço e ele me
carregava nos seus ombros. Uma vez em que um dos seus times ganhou
um campeonato. O dia em que ele foi contratado pela Bartholomew
Browning. Uns poucos momentos assim. Mas ele raramente sorria — era
mais comum sua risada amargurada. Talvez ele precisasse de
antidepressivos, seu problema talvez fosse esse, mas eu duvidava.
— Não entendi você direito, pai — acrescentei. — Mas, sinceramente,
eu tentei.
Quase ninguém apareceu no período de três horas. Alguns colegas
meus do curso secundário e dois colegas de faculdade. Tia Irene apareceu
por algum tempo e disse: "Seu pai teve muita sorte em ter você." Já idosa,
tinha um leve sotaque irlandês e usava um perfume exageradamente forte,
típico de senhoras idosas. Seth foi cedo e saiu tarde, fazendo-me
companhia. Contou histórias sobre papai numa tentativa de me fazer rir,
anedotas famosas dos tempos em que ele era treinador e que tinham se
tornado lendárias entre meus amigos e na Bartholomew Browning. Houve
uma vez em que ele pegou um pincel atômico e desenhou uma linha que
descia pelo meio da máscara de um garoto — um imbecil gigantesco
chamado Pelly —, desceu pelo seu uniforme e chuteiras e seguiu pela
grama, embora o pincel não deixasse marcas na grama, quando disse:
"Você corre nessa direção, Pelly, deu para entender? É nesta direção que
você vai correr."
Teve outra vez também em que ele interrompeu um jogo, aproximou-
se de um jogador chamado Steve, agarrou a máscara que cobria o rosto
dele e disse: "Você é burro, Steve?" E aí, sem esperar pela resposta de
Steve, puxou a máscara para cima e para baixo, fazendo com que sua
cabeça balançasse como a de um boneco. "Sim, eu sou burro, treinador",
disse ele, numa cômica imitação da voz de Steve. O resto do time achou
engraçado e a maioria deu risada. "Sim, eu sou burro."
Houve também o dia em que ele pediu tempo durante um jogo de
hóquei e começou a gritar com um garoto chamado Resnick por estar
exagerando no jogo bruto. Pegou o bastão do garoto e disse: "Se algum dia
eu vir o senhor usar o bastão como lança — e aí enfiou o bastão na barriga
de Resnick, o que fez com que na mesma hora ele vomitasse — "ou
batendo com o cabo" — neste ponto, nova batida do bastão na barriga —
"eu o liquido." Resnick vomitou sangue e depois teve ânsias em seco.
Ninguém riu.
— É — falei —, ele era um cara engraçado, não é mesmo?
Àquela altura, eu já estava querendo que Seth parasse com aquelas
histórias e, para minha sorte, ele parou mesmo.
No funeral, na manhã seguinte, Seth sentou-se ao meu lado no banco, e
Antwoine sentou-se do outro. O padre, um sujeito distinto, de cabelos cor
de prata, e que mais parecia um pastor de televisão, era o padre Joseph
Iannucci. Antes da missa ele me puxou para um lado e me fez algumas
perguntas sobre papai — sua "fé", como ele era, como ganhava a vida, se
tinha algum hobby, esse tipo de coisa.
Havia cerca de vinte pessoas na igreja, algumas delas paroquianos que
tinham ido à missa sem sequer terem conhecido meu pai. Os outros eram
antigos colegas meus de curso secundário e de faculdade, uns dois amigos
do bairro e uma senhora idosa que morava ao lado. Havia um dos amigos
de papai, um sujeito que estivera no Kiwanis com ele alguns anos antes de
papai ter se demitido por alguma questão menor. Ele nem sequer tinha
sabido da doença de papai. Havia também dois primos idosos que só
reconheci vagamente.
Seth e eu carregamos o caixão juntamente com alguns outros sujeitos
da igreja e da casa funerária. Na frente da igreja havia flores — que eu não
tinha ideia de como tinham ido parar ali, se alguém as remetera ou se
haviam sido providenciadas pela funerária.
A missa foi uma dessas funções religiosas incrivelmente longas que
fazem com que a pessoa a toda hora tenha que se levantar, sentar ou
ajoelhar, provavelmente para não cair no sono. Eu me sentia esvaziado,
confuso, ainda meio em estado de choque. Padre Iannucci chamou papai
de "Francis" e diversas vezes disse seu nome completo, "Francis Xavier",
como se quisesse indicar que ele era um católico praticante e devoto, em
vez de um sujeito infiel cuja única ligação com o senhor era tomar Seu
santo nome em vão. Ele disse:
— Estamos tristes com a partida de Francis, nós nos enlutamos com o
seu passamento, mas acreditamos que ele tenha ido para junto de Deus,
que esteja agora em um lugar melhor, vivendo uma nova vida graças à
ressurreição de Jesus.
Disse mais:
— A morte de Francis não significa o fim. Podemos estar unidos em
espírito com ele.
Perguntou:
— Por que Francis teve que sofrer tanto nos seus últimos meses?
Ele mesmo respondeu, dizendo qualquer coisa sobre o sofrimento de
Jesus e afirmando que "Jesus não foi subjugado ou vencido pelo
sofrimento".
Não consegui entender direito o que ele queria dizer, mas, na verdade,
não escutava direito suas palavras. Eu estava saindo do ar.
Quando terminou, Seth me deu um abraço e depois foi a vez de
Antwoine, que também me abraçou e apertou minha mão quase ao ponto
de esmagá-la. Fiquei surpreso ao ver uma lágrima escorrendo pelo rosto
do gigante. Quanto a mim, não chorei durante toda a missa, da mesma
forma que não chorei durante todo aquele dia. Sentia-me anestesiado.
Tia Irene aproximou-se no seu passinho inseguro e segurou minha mão
com suas mãos macias cheias de manchas senis. Seu batom vermelho
brilhante tinha sido aplicado com mão trêmula, e o perfume era tão forte
que tive que conter a respiração.
— Seu pai era um bom homem — comentou ela.
Ela deve ter lido alguma coisa na expressão do meu rosto, um
ceticismo que eu não tencionara demonstrar, e acrescentou: — Ele era um
homem que não ficava à vontade com os próprios sentimentos, eu sei. Ele
não ficava à vontade quando era o caso de expressá-los, mas sei que o
amava, Adam.
Ok, já que você insiste, pensei, sorri e agradeci. O amigo do Kiwanis
de papai, um sujeito volumoso que deveria ter mais ou menos a mesma
idade dele mas que aparentava vinte anos menos, apertou a minha mão
dizendo:
— Sinto muito pela sua perda.
Até mesmo Jonesie, o cara da plataforma de carga e descarga na Wyatt
Telecom, apareceu com a mulher, Esther. Ambos disseram que sentiam
muito pela minha perda.
Eu já ia saindo da igreja para pegar a limusine que seguiria o carro
fúnebre até o cemitério, quando vi um homem sentado na fileira de trás da
igreja. Ele entrara algum tempo depois da missa ter começado, mas eu não
conseguira distinguir seu rosto a tamanha distância, na luz escassa do
interior da igreja.
O homem levantou-se e atraiu meu olhar.
Era Goddard.
Não pude acreditar. Atônito e comovido, encaminhei-me para ele
vagarosamente. Sorri, grato pela sua presença. Ele sacudiu a cabeça,
dispensando os agradecimentos.
— Pensei que você estivesse em Tóquio — falei.
— Puxa vida, até parece que a divisão Asia Pacific não me faz esperar
a toda hora.
— Eu não... — eu gaguejei, incrédulo —, você reprogramou a viagem?
— Uma das poucas coisas que aprendi na vida foi a importância de
estabelecer corretamente minhas prioridades.
Fiquei sem fala por um momento.
— Vou trabalhar amanhã — afirmei. — Talvez chegue um pouco
atrasado, porque devo ter que resolver uns troços antes...
— Não — ele interveio. — Use o tempo que precisar. Vá com calma. .
— Estarei bem, sinceramente.
— Seja bom com você mesmo, Adam. De algum modo conseguiremos
sobreviver sem você por algum tempo.
— Não é como... não é como o que aconteceu com seu filho, Jock.
Quer dizer, meu pai estava muito doente com enfisema há muito tempo e...
realmente foi melhor assim. Ele queria ir embora.
— Eu conheço o sentimento — disse ele, falando muito baixo.
— O que eu quero dizer é que nós não éramos muito ligados, na
verdade.
Dei uma olhada na igreja, as filas dos bancos de madeira, a tinta
dourada e vermelha nas paredes. Dois amigos esperavam perto da porta
para falar comigo.
— Eu provavelmente não devia dizer isso, ainda mais aqui dentro,
sabe? — fiz uma pausa para um sorriso triste. — Mas ele era um sujeito
difícil, um cara durão, o que torna mais fácil aceitar seu falecimento. Não
é como se eu estivesse agora totalmente devastado ou coisa assim.
— Oh, não, mas é justamente isso que dificulta ainda mais as coisas,
Adam. Quando os seus sentimentos são assim tão complicados.
Suspirei.
— Não penso que meus sentimentos sejam... tenham sido... assim tão
complicados.
— Você só percebe depois. As oportunidades perdidas. Tudo que
poderia ter sido e que não foi. Mas você tem que manter algo em mente:
seu pai teve sorte em ter você como filho.
— Não penso que ele se considerasse...
— Sinceramente. Era um homem de sorte, o seu pai.
— Não sei, não sei — eu disse, e, de repente, sem aviso, a válvula que
havia dentro de mim cedeu, a represa ruiu e as lágrimas começaram a
escorrer pelo meu rosto e falei sem pensar:
— Sinto muito, Jock.
Ele levantou as mãos e colocou-as nos meus ombros.
— Se você não pode chorar, você não está vivo — disse Goddard, com
os olhos úmidos.
Desandei a chorar como um bebê, sentindo-me ao mesmo tempo
mortificado e aliviado. Goddard me envolveu com os seus braços e me
prendeu num grande abraço enquanto eu chorava como um idiota.
— Quero que você saiba de uma coisa, filho — disse ele, num fio de
voz. — Você não está sozinho.
73
No dia seguinte ao funeral voltei ao trabalho. O que é que eu ia fazer,
faxina no apartamento? Eu não estava realmente deprimido, embora me
sentisse esfolado, como se uma camada de minha pele tivesse sido
raspada. Precisava de gente à minha volta. E talvez, agora que papai
morrera, houvesse algum conforto em estar próximo a Goddard, que
começava a me parecer a coisa mais parecida com um pai que eu já tivera.
Não a ponto de me fazer procurar o sofá de um analista ou coisa
semelhante, mas alguma coisa mudou dentro de mim depois que ele
apareceu no funeral. Não nutria mais sentimentos conflitantes ou
ambivalentes a respeito da minha suposta missão verdadeira na Trion, do
"real motivo" de minha presença lá — porque esse motivo agora era outro.
Pelo menos segundo a minha perspectiva, eu fizera o meu serviço,
pagara a minha dívida e merecia um novo começo. Não trabalhava mais
para Nick Wyatt. Parei de responder aos telefonemas e e-mails de
Meacham. Uma vez recebi uma mensagem, na caixa postal do meu
celular, de Judith Bolton. Ela não deixou o nome, mas sua voz era
prontamente reconhecível.
"Adam", disse ela, "sei que você está passando tempos muito difíceis.
Todos nós sentimos terrivelmente a morte do seu pai, e, por favor, aceite
as nossas mais sinceras condolências."
Eu podia imaginar a sessão de estratégia realizada por Judith,
Meacham e Wyatt, todos desesperados e furiosos porque a pipa que
soltavam tinha fugido da linha.
Judith diria algo sobre irem com calma, o cara afinal acabara de perder
o pai, e Wyatt, após um palavrão afirmaria que não ligava a mínima, que o
tempo estava passando enquanto Meacham tentaria se fazer de mais durão
que o chefe, falando sobre como me incendiaria e ia me ferrar. Judith
depois diria que não, que seria melhor que usassem uma abordagem mais
sensível e pediria que eles a deixassem se aproximar de mim...
A mensagem dela, contudo, não terminava ali. "Mas é extremamente
importante", prosseguia, "mesmo nestes tempos tumultuados, que você
permaneça em contato permanente. Quero que nosso relacionamento
continue positivo e cordial, Adam, mas preciso que você entre em contato
hoje."
Deletei a mensagem dela, da mesma forma que a de Meacham. Eles
entenderiam. Com o tempo eu enviaria a Meacham um e-mail desfazendo
oficialmente o relacionamento, mas por ora preferia deixá-los na dúvida,
enquanto a realidade da nova situação ia sendo entendida. Eu não era mais
uma pipa que Nick Wyatt soltava.
Eu lhes dera aquilo de que precisavam. Podiam ameaçar, mas não
podiam me forçar a continuar trabalhando para eles. Desde que eu
mantivesse presente na minha cabeça que não havia nada realmente que
eles pudessem fazer, eu podia simplesmente cair fora.
Eu só não podia esquecer de que não havia nada que eles pudessem
fazer. Eu podia simplesmente cair fora.
74
Meu celular tocou antes mesmo que eu entrasse na garagem da Trion
na manhã seguinte. Era Flo.
— Jock quer ver você — disse ela, com urgência. — Agora.
Goddard estava na sala dos fundos com Camilletti, Colvin e Stuart
Lurie, o VP sênior de Desenvolvimento Corporativo que eu conhecera no
churrasco de Jock.
Era Camilletti quem falava quando entrei.
— ... Não, pelo que ouvi dizer, o filho da mãe acabou de chegar a Palo
Alto ontem com uma proposta já rascunhada. Almoçou com Hillman, o
presidente, e na hora do jantar já tinham assinado o contrato. A proposta
dele foi exatamente igual à nossa, dólar por dólar, ou melhor, centavo por
centavo, só que em espécie!
— Como diabos isso pôde acontecer! — explodiu Goddard. Eu nunca o
tinha visto tão furioso. — A Delphos tinha assinado um documento se
comprometendo a não negociar antes de resolver conosco, pelo amor de
Deus!
— Só que esse documento tinha a data de amanhã e ainda não tinha
sido assinado. É por isso que ele agiu tão depressa, para fechar o negócio
antes que pudéssemos fazer qualquer coisa.
— Do quem estamos falando? — murmurei, ao me sentar.
— Nicholas Wyatt — respondeu Stuart Lurie. — Acaba de comprar a
Delphos debaixo do nosso nariz por quinhentos milhões em dinheiro.
Senti um nó no estômago. Reconheci o nome Delphos, mas me lembrei
que não devia. Wyatt comprou a Delphos?
Virei-me para Goddard com um olhar de indagação.
— É a companhia que estávamos em processo de adquirir, eu lhe falei
deles — disse, impaciente. — Nossos advogados estavam terminando de
redigir o acordo definitivo de compra...
A voz dele falhou, e voltou depois com maior volume.
— Eu nem podia imaginar que Wyatt tivesse tanto dinheiro em caixa!
— Eles tinham pouco abaixo de um bilhão — disse Jim Colvin. —
Oitocentos milhões, para ser mais exato. Assim, quinhentos milhões quase
esvazia o cofrinho, porque eles têm uma dívida de três bilhões e o serviço
dessa dívida é duzentos milhões por ano, fácil.
Goddard deu um tapa violento na mesa.
— Mas que porcaria! — berrou. — E o que é que Wyatt vai fazer de
uma companhia como a Delphos? Ele não tem o AURORA... Não faz o
menor sentido Wyatt arriscar o destino de sua companhia desse jeito, a
menos que só esteja querendo nos ferrar.
— O que ele acaba de conseguir — disse Camilletti.
— Pelo amor de Deus, sem AURORA a Delphos não serve de nada! —
disse Goddard.
— Sem a Delphos o AURORA está liquidado — afirmou Camilletti.
— Talvez ele saiba do AURORA — sugeriu Colvin.
— Impossível! — exclamou Goddard. — E mesmo que saiba, ele não
tem o projeto em si.
— E se tiver? — sugeriu Stuart Lurie.
Houve um longo silêncio.
Foi Camilletti quem falou, devagar, mas intensamente.
— Estamos protegendo o AURORA com as mesmas medidas de
segurança determinadas pelo Departamento de Defesa para os
empreiteiros do governo que lidam com informação compartimentada
sensível — o tempo todo em que falou ele se manteve encarando Goddard
intensamente. — Estou me referindo a firewalls, certificados de
segurança, proteção de rede, acesso seguro multinível... todas as malditas
salvaguardas conhecidas atualmente. AURORA está guardado dentro de um
maldito cone de silêncio. Não há como Wyatt ter esse projeto!
— Bem — disse Goddard —, Wyatt de algum modo descobriu os
detalhes de nossas negociações...
— A menos — interrompeu Camilletti — que ele tenha alguém do
lado de dentro.
Uma ideia pareceu lhe ocorrer, e ele se virou para mim. — Você
trabalhava para o Wyatt, não trabalhava?
Senti todo o sangue do meu corpo subindo para a minha cabeça e, para
disfarçar, fingi-me de ultrajado.
— Eu trabalhava na Wyatt — retruquei.
— Você mantém contato com ele? — seus olhos pareciam perfurar os
meus.
— O que você está querendo sugerir? — eu me levantei.
— Estou fazendo uma pergunta simples, para ser respondida com um
sim ou não — você mantém contato com Wyatt? — gritou Camilletti. —
Você jantou com ele no Auberge não faz muito tempo, correto?
— Paul, chega — interveio Goddard. — Adam, senta aí agora. Adam
não teve qualquer acesso ao AURORA. Ou aos detalhes da negociação com a
Delphos. Acredito que hoje seja a primeira vez em que ele está ouvindo
esse nome.
Balancei a cabeça, confirmando.
— Vamos seguir adiante — disse Goddard, que parecia ter se acalmado
um pouco. — Paul, quero que você converse com nossos advogados, para
ver de que recursos dispomos. Veja se podemos deter Wyatt. Agora, o
lançamento do AURORA está previsto para daqui a quatro dias. Assim que o
mundo souber o que acabamos de fazer, haverá uma tremenda confusão
para comprar materiais e fabricantes acima ou abaixo da maldita cadeia de
suprimentos. Ou adiamos o lançamento ou... eu não quero fazer parte
dessa confusão. Vamos ter que pôr nossas cabeças para funcionar juntas e
procurar alguma outra aquisição comparável...
— Ninguém tem aquela tecnologia a não ser a Delphos — disse
Camilletti.
— Nós somos pessoas inteligentes — disse Goddard. — Sempre há
outras possibilidades.
Ele se apoiou nos braços da cadeira e se levantou.
— Vocês sabem, há uma história que o Ronald Reagan costumava
contar sobre o garoto que encontrou uma pilha enorme de estrume e disse:
"Deve haver um cavalo aqui por perto em algum lugar."
Ele riu e os outros também riram, polidamente. Como se tivessem
ficado agradecidos pela sua frágil tentativa de neutralizar a tensão.
— Vamos voltar ao trabalho. Encontrar o cavalo.
75
Eu sabia o que tinha acontecido.
Fui pensando nessas coisas no carro ao voltar para casa naquela noite,
e quanto mais pensava mais furioso ficava, e quanto mais furioso ficava,
mais depressa e erraticamente dirigia.
Se não tivesse sido pelo documento que eu pegara nos arquivos de
Camilletti, Wyatt não teria sabido da existência da Delphos, a companhia
que a Trion estava prestes a comprar. Quanto mais eu me lembrava disso,
pior me sentia.
Que droga, já estava na hora de fazer com que Wyatt soubesse que
estava acabado. Eu não estava mais trabalhando para eles.
Abri as portas do meu apartamento, acendi as luzes e fui direto para o
computador a fim de passar um e-mail.
Não consegui.
Arnold Meacham estava sentado diante do meu computador, enquanto
uma dupla de sujeitos com cara de durões e cabelos raspados
desmontavam o apartamento. Minhas coisas estavam espalhadas por toda
a parte. Todos os meus livros haviam sido retirados das prateleiras, meus
aparelhos de CD e DVD desmontados, até mesmo o aparelho de televisão
fora desmontado. A impressão que dava era de que alguém tivera um
ataque de fúria e jogara tudo pelos ares, destruindo tudo que fosse
possível, tentando causar o máximo de danos.
— Que porra...? — falei.
Meacham levantou os olhos calmamente da tela do meu monitor.
— Nunca mais me ignore — disse ele.
Eu tinha que dar o fora dali. Exatamente, porém, no momento em que
pulei na direção da porta, um dos outros brutamontes de cabelo raspado
bateu com a porta, trancando-a, e ficou na frente dela, observando-me
cautelosamente.
Não havia outra saída, a menos que se levasse em conta as janelas,
uma queda de vinte e sete andares que não parecia ser uma boa ideia.
— O que você quer? — perguntei a Meacham, olhando dele para a
porta.
— Você acha que pode esconder alguma merda de mim? — disse
Meacham. — Pois eu não acho. Você não tem uma caixa segura ou um
cubículo que não possamos acessar. Estou vendo aqui que você andou
guardando todos os meus e-mails. Não sabia que se importava a esse
ponto.
— Claro que salvo tudo — retruquei, indignado. — Faço cópias de
segurança de tudo.
— Aquele programa de criptografia que você usa para suas anotações
das reuniões com Wyatt, Judith e eu... não sei se você sabe, mas já foi
decifrado há mais de um ano. Há outros agora muito mais poderosos.
— É bom saber, obrigado — respondi, exagerando no sarcasmo. Tentei
parecer tranquilo. — Agora, por que você e seus rapazes não dão o fora
daqui antes que eu chame a polícia?
Meacham bufou e fez com a mão um sinal que achei que era para que
eu me aproximasse.
— Não — eu sacudi a cabeça. — O que falei foi porque você e seus
amiguinhos...
Houve um movimento súbito que pude ver com o canto do olho, rápido
como um relâmpago, e alguma coisa me acertou na parte de trás da
cabeça. Caí de joelhos, com gosto de sangue na boca. Tudo ficou tingido
de vermelho escuro. Levantei a mão para agarrar meu atacante, mas
enquanto minha mão se debatia nas minhas costas, um chute me acertou
no rim direito. Um relâmpago de dor subiu e desceu pelo meu torso,
deixando-me estirado em cima do tapete persa.
— Não — arfei.
Outro chute, desta vez na minha nuca, incrivelmente doloroso.
Pontinhos de luz cintilaram diante de meus olhos.
— Tire esses caras de cima de mim — gemi. — Faça seu amiguinho
parar. Se eu ficar muito tonto posso falar demais.
Não pude pensar em mais nada. Os cúmplices de Meacham
provavelmente não sabiam em que Meacham e eu estávamos envolvidos.
Eram só músculos. Meacham não devia ter contado nada a eles, não ia
querer que soubessem. Talvez soubessem um pouco, somente o bastante
para saber o que procurar. Mas Meacham ia querer mantê-los por fora
tanto quanto fosse possível.
Eu contraí o corpo, me preparei para outro chute na cabeça,
enxergando tudo branco e cintilante e sentindo um gosto metálico na boca.
Por um momento houve silêncio; Meacham devia ter feito um sinal para
que eles parassem.
— O que diabos você quer de mim? — perguntei.
— Vamos sair para dar uma volta — disse Meacham.
76
Meacham e seus brutamontes me arrastaram para fora do apartamento
até o elevador. Descemos até a garagem e depois saímos por uma porta de
serviço que dava na rua.
Eu morria de medo. Uma Suburban preta com vidros escuros estava
estacionada perto da entrada. Meacham ia na frente, enquanto os três
brutamontes se mantinham junto de mim, à minha volta, provavelmente
para se assegurarem de que eu não fugiria ou tentaria pular em cima de
Meacham ou teria qualquer reação semelhante. Um deles carregava meu
laptop; o outro, o meu computador de mesa.
Minha cabeça latejava e a parte de baixo das minhas costas e o peito
doíam demais. Eu devia estar com uma aparência horrível, ferido e
arranhado.
"Vamos dar uma volta" geralmente significa, pelo menos nos filmes de
máfia, botas de cimento e um mergulho no East River. Mas se eles
queriam me matar, por que não o tinham feito lá no apartamento?
Os tais brutamontes eram ex-policiais, concluí após algum tempo,
empregados pela Segurança Corporativa da Wyatt. Deviam ter sido
contratados exclusivamente pela força bruta. Eram instrumentos
insensíveis.
Um deles foi dirigindo, enquanto Meacham, sentado ao seu lado no
banco da frente, separado de mim por um vidro à prova de balas, falava ao
telefone o tempo todo.
Tudo indicava que cumprira sua obrigação. Fizera com que eu me
sentisse apavorado e, junto com sua equipe, achara a evidência que eu
estava guardando contra Wyatt.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, a Suburban parou na comprida
entrada de automóveis pavimentada com pedras da casa de Nick Wyatt.
Dois dos bandidos me revistaram em busca de armas ou sei lá o quê,
como se de algum modo, entre o meu apartamento e a casa de Wyatt eu
pudesse ter arranjado uma Glock. Tiraram meu celular e me empurraram
para dentro da casa. Passei pelo detector de metais, que disparou. Tiraram
meu relógio, cinto e chaves.
Wyatt estava sentado diante de uma imensa TV de tela plana em um
aposento espaçoso e escassamente mobiliado, assistindo à CNBC sem som,
ao mesmo tempo em que falava a um celular. Dei uma olhada em um
espelho quando entrei com meus acompanhantes de cabelo raspado. Estava
com uma aparência péssima.
Ficamos todos ali parados, em pé.
Após alguns minutos, Wyatt terminou seu telefonema, pôs o telefone
em cima da mesa e olhou para mim.
— Muito tempo sem ver você — falou.
— É, muito tempo.
— Olha só como você está. Bateu numa porta? Caiu da escada?
— Algo assim.
— Sinto muito pela morte de seu pai. Mas pelo amor de Deus, respirar
através de um tubo, tanques de oxigênio, toda aquela porcaria, quer dizer,
pode me dar um tiro se algum dia eu ficar assim.
— O prazer será meu — murmurei, mas não creio que ele tenha me
ouvido.
— Melhor assim, que esteja morto, hein? Fim de todo aquele puto
sofrimento dele, não?
Tive vontade de pular em cima dele e esmagá-lo.
— Obrigado pela sua preocupação — falei.
— Quero agradecer a você — disse ele — pela informação sobre a
Delphos.
— Parece que você teve que esvaziar seu cofrinho para realizar a
compra.
— É preciso pensar sempre três lances na frente. Como é que você
pensa que estou onde me encontro agora? Quando anunciarmos que temos
o chip ótico, o valor das nossas ações vai disparar e entrar em órbita.
— Excelente. Você já tem tudo planejado. Não precisa mais de mim.
— Oh, você está longe de ter terminado, amigo. Não enquanto não me
der as especificações do chip. E o protótipo.
— Não — retruquei, falando muito baixo. — Chega.
— Você acha mesmo que terminou sua participação? Cara, você está
alucinado — ele deu uma risada.
Respirei fundo. Podia sentir o sangue latejando na base da garganta.
Minha cabeça doía.
— A lei é bem clara em relação a isso — falei, limpando a garganta.
Eu tinha lido uma porção de sites legais na Internet. — Você na verdade
está mais atolado do que eu, porque supervisionou todo o esquema. Eu fui
apenas um peão. Você dirigiu o jogo.
— A lei — repetiu Wyatt com um sorriso incrédulo. — Você está
falando comigo sobre a porra da lei? É por isso que andou salvando e-
mails, memorandos e uma porção de merdas, tentando montar um caso
legal contra mim? Cara, quase sinto pena de você. Acho que, na verdade,
você não se dá conta, não é mesmo? Pensa que vou deixá-lo ir embora
antes que termine?
— Você recebeu todo tipo de inteligência valiosa de mim — falei. —
Seu plano funcionou. Está acabado. De agora em diante, não entre mais em
contato comigo. Fim da transação. No que diz respeito a qualquer outra
pessoa, nada disso aconteceu.
O pavor que eu sentia deu lugar a uma confiança delirante. Eu
finalmente cruzara a linha. Saltara de cima do penhasco e estava voando.
Ia aproveitar o voo até bater no chão.
— Pense um pouco — prossegui. — Você tem muito mais a perder do
que eu. Sua companhia. E sua fortuna. Eu, não. Sou nada. Sou peixinho
pequeno. Não, sou plâncton.
O sorriso dele se alargou.
— O que é que você vai fazer, procurar Jock Goddard e dizer a ele que
não passa de um bisbilhoteiro de merda cujas ideias brilhantes foram
fornecidas pelo seu principal competidor? E aí o que é que você acha que
ele vai fazer? Agradecer, levar você para lanchar no seu pequeno vagão-
restaurante e brindar a você com um copo de Ovomaltine? Acho que não.
Sacudi a cabeça, o coração disparado.
— Você na verdade não quer que Goddard saiba como tomou
conhecimento dos detalhes da negociação da Trion com a Delphos —
falei.
— Ou talvez você ache que pode ir ao FBI, é isso? Dizer a eles que você
era um espião contratado pela Wyatt? Oh, eles vão adorar. Você sabe o
quão compreensivo o FBI pode ser, não sabe? Vão espremer você como
uma porra de uma barata, e eu vou negar tudo e eles não vão ter outra
escolha senão acreditar em mim, e você sabe por quê? Porque você é um
vigaristazinho de merda. Você está registrado como trapaceiro, meu
amigo. Demiti você da minha companhia quando você me deu um
desfalque e tenho tudo documentado.
— Aí então você vai ter dificuldade para explicar por que todos na
Wyatt me recomendaram tão entusiasticamente.
— Mas ninguém recomendou, entende? Nós jamais recomendaríamos
um trapaceiro como você. Você, mentiroso compulsivo que é, falsificou
nosso papel timbrado para forjar sua própria recomendação quando quis
trabalhar na Trion. Aquelas cartas não foram expedidas por nós. A análise
do papel e o exame dos documentos em laboratório estabelecerão isso sem
sombra de dúvida. Você usou outra impressora, cartuchos de tinta
diferentes. Você falsificou as assinaturas, seu puto doente.
Uma pausa.
— Você pensa mesmo que não íamos nos proteger?
Tentei sorrir, mas não pude fazer com que os músculos trêmulos de
minha boca cooperassem.
— Sinto muito isso não explicar os telefonemas dos executivos da
Wyatt para a Trion — falei. — De qualquer modo, Goddard saberá
enxergar a verdade. Ele me conhece.
A risada de Wyatt mais pareceu um latido.
— Ele conhece você! Isso é uma piada. Cara, você realmente não sabe
com quem está lidando, sabe? Pensa que alguém vai acreditar que o nosso
departamento de recursos humanos telefonou para a Trion e recomendou
seu nome, depois de termos posto você para fora com um chute na bunda?
Pois bem, seu imbecil, investigue um pouco e verá que cada um dos
telefonemas dados pelo nosso departamento de RH foi redirecionado. Os
registros indicam que todos foram dados do seu apartamento. Você deu
todos os telefonemas, imitando a voz dos seus supervisores na Wyatt,
inventando todas aquelas recomendações entusiásticas. Você é um doente,
um maluco. Você é patológico. Inventou uma porra de uma história
maluca sobre ter sido um grande nome no projeto Lucid, que é
provavelmente falsa. Vê se entende, idiota, o meu pessoal de segurança e o
deles vai se reunir e comparar anotações.
Minha cabeça girava lentamente e eu me sentia nauseado.
— E talvez você devesse checar aquela conta bancária secreta de que
tanto se orgulha, aquela em que você tem tanta certeza de que estamos
depositando fundos retirados de uma conta de um paraíso fiscal? Por que
não rastreia a fonte verdadeira desses fundos?
Olhei para ele.
— Aquele dinheiro — explicou Wyatt — saiu diretamente de diversas
contas da Trion. Com suas malditas impressões digitais nele — os olhos
de Wyatt estavam esbugalhados.
— Sua cabeça está metida dentro de uma armadilha, seu patético saco
de merda. Na próxima vez em que eu me encontrar com você, é melhor ter
todas as especificações técnicas do chip ótico de Jock Goddard, ou sua
vida estará terminada. Agora suma da minha casa.
Parte Oito

MALA PRETA

MALA PRETA: Trabalho da mala preta é o que implica


entrada clandestina em escritório ou casa visando
obtenção ilegal de arquivos ou outros materiais.

— Spy Book: The Encyclopedia of Espionage


77
— É melhor que seja importante, meu chapa — disse Seth. — Já passa
de meia-noite.
— É importante. Juro que é.
— É, mas você só liga quando quer mais alguma coisa. Ou quando
morre um parente. Esse tipo de coisa.
Ele estava brincando, e ao mesmo tempo não estava. A verdade é que
Seth tinha o direito de estar furioso comigo. Eu não tinha exatamente
entrado em contato com ele desde que começara na Trion. E ele estivera
comigo quando papai morrera, o funeral todo. Tinha sido um amigo muito
melhor que eu.
Encontramo-nos uma hora depois em uma loja 24 horas da Dunkin'
Donuts que ficava perto do apartamento de Seth. O lugar estava quase
deserto, exceto por uns mendigos. Ele vestia seu mesmo jeans velho
Diesel e uma camiseta da turnê mundial do Dr. Dre.
Seth me encarou.
— O que diabos aconteceu com você?
Não escondi nenhum dos detalhes sórdidos — de que adiantaria?
A princípio Seth pensou que era invenção minha, mas aos poucos viu
que eu estava falando a verdade, e sua expressão foi mudando de ceticismo
divertido para fascinação horrorizada e terminou em total simpatia.
— Puxa vida, Adam — disse, quando terminei de desenrolar o fio de
minha história —, você está tão perdido...
Sorri melancolicamente enquanto balançava a cabeça.
— Estou ferrado — falei.
— Não é isso que eu quis dizer — ele me pareceu meio irritado. —
Você cooperou com essa porra toda.
— Não cooperei nada.
— Não, idiota, você não viu que tinha uma alternativa.
— Alternativa? Tipo o quê? Prisão?
— Você aceitou o acordo que eles ofereceram, cara. Eles puseram seus
ovos num torno e você cedeu.
— Que outra opção eu tinha?
— É para isso que servem os advogados, panaca. Você podia ter me
contado e eu teria falado com um dos caras para quem trabalho e pedido
ajuda.
— Que tipo de ajuda? Para começar, eu peguei o dinheiro da Wyatt.
— Você podia ter levado um dos advogados na firma, deixar aqueles
caras apavorados, ameaçar tornar tudo público.
Fiquei em silêncio por um momento. Duvidava que pudesse ter sido
tão simples.
— É, cara, é tarde para isso agora. De qualquer modo eles teriam
negado tudo. Mesmo que um dos advogados da sua firma tivesse
concordado em me representar, Wyatt teria posto toda a maldita Ordem
dos Advogados em cima de mim.
— Pode ser. Ou talvez ele tivesse preferido que a coisa toda ficasse
encoberta. Você podia ter conseguido.
— Acho que não.
— Eu entendo — retrucou Seth, destilando sarcasmo. — Assim, em
vez de tentar outra coisa, você cedeu e aceitou a proposta deles. Seguiu em
frente com um esquema ilegal, concordou em tornar-se um espião,
garantiu para si próprio uma prisão...
— Como assim, garanti uma prisão?
— ... E depois, só para alimentar sua ambição insana, aqui está agora,
ferrando o único empresário deste país que já lhe deu uma chance.
— Obrigado — agradeci, amargurado, sabendo que ele estava certo.
— Você merece tudo o que está lhe acontecendo.
— Agradeço sua ajuda e apoio moral, amigão.
— Veja a coisa do seguinte modo, Adam: do seu ponto de vista eu
posso ser um perdedor patético, mas pelo menos eu consigo minhas
derrotas honestamente. E você, o que é? Uma fraude total. Você não passa
de uma outra Rosie Ruiz.
— Hein?
— Rosie Ruiz é uma mulher que ganhou a maratona de Boston uns
vinte anos atrás, estabelecendo um recorde feminino, lembra?
Praticamente sem suar. Acontece que ela começou a correr a quinhentos
metros da linha de chegada. Foi de metrô até lá! É você, cara. Você é a
Rosie Ruiz da América corporativa.
Fiquei ali sentado, sentindo o rosto cada vez mais vermelho e quente,
sentindo-me mais e mais desesperado. Por fim, eu perguntei se ele já tinha
acabado.
— Por ora, sim.
— Ótimo. Porque preciso da sua ajuda.
78
Eu nunca estivera na firma onde Seth trabalhava, ou fingia trabalhar.
Ocupava quatro andares de um daqueles arranha-céus do centro da cidade
e tinha toda a parafernália que as pessoas querem encontrar em uma firma
de direito luxuosa: lambris de mogno, tapetes Aubusson, telas gigantescas
de arte moderna, muito vidro.
Ele conseguiu para nós uma entrevista no primeiro horário da manhã
com seu chefe, um sócio sênior chamado Howard Shapiro, especializado
em defender criminosos e que já tinha sido procurador federal. Shapiro era
baixo, gorducho. Careca, óculos redondos de aros pretos, voz aguda e
falando em rajadas, dono de uma energia frenética. Ele me interrompia a
toda hora, me estimulando para acabar com a história, olhando para o seu
relógio. Tomava notas em um bloco de papel amarelo. De vez em quando
me dirigia olhares cautelosos, intrigados, como se estivesse tentando
entender alguma coisa, mas na maior parte do tempo não reagia. Seth,
caprichando no bom comportamento, ficou basicamente sentado,
observando.
— Quem bateu em você? — perguntou Shapiro.
— Os caras da segurança dele.
Shapiro tomou nota.
— Quando você disse a ele que estava caindo fora?
— Antes. Parei de responder a seus e-mails.
— Ensinar uma lição a você, hein?
— Eu acho.
— Deixe-me perguntar uma coisa. Responda com sinceridade.
Digamos que você consiga o que Wyatt deseja, o chip ou o que for. Você
acha que ele o deixará em paz?
— Duvido.
— Acha que vão continuar pressionando você?
— Provavelmente.
— Você não tem medo de que toda essa coisa possa explodir em sua
cara e você pague o pato?
— Já pensei nisso. Sei que o pessoal da Trion está furioso porque a
aquisição da Delphos não será mais possível. Provavelmente haverá
alguma investigação, e quem sabe o que acontecerá.
— Bem, eu tenho outras notícias ruins para você, Adam. Detesto dizer-
lhe, mas você é um instrumento.
Seth sorriu.
— Eu sei disso.
— Significa que você tem que atacar primeiro, ou estará liquidado.
— Como?
— Digamos que tudo isso exploda e você seja apanhado. Não é
improvável. Você fica à mercê do tribunal, sem cooperar, e vai para
cadeia. Simples assim. Eu garanto.
— Então eu coopero.
— Tarde demais. Ninguém vai lhe propor nenhum acordo. Acontece
também que você é a única prova contra Wyatt — embora deva haver
montes de provas contra você, aposto.
— O que você sugere então?
— Ou eles pegam você ou você os pega. Tenho um amigo na
Procuradoria, um cara em quem confio. Wyatt é um peixe grande. Você
pode servi-lo numa bandeja de prata. Eles vão se interessar muito.
— Como sei se não vão me prender, me jogar na cadeia também?
— Eu faço uma proposta. Telefono para ele, digo que tenho algo que
acho que vai interessá-lo. Digo que não vou dar nomes de ninguém. Digo
que se ele não formular um acordo com o meu cara ele não vai vê-lo. Se
quiser negociar, vai ter que lhe dar o rainha por um dia.
— O que é esse rainha por um dia?
— Nós vamos lá, sentamos com o promotor e um agente. Nada do que
for dito nessa reunião poderá ser usado diretamente contra você.
Olhei para Seth, levantei as sobrancelhas e voltei-me outra vez para
Shapiro.
— Você está querendo dizer que eu posso me safar?
Shapiro sacudiu a cabeça.
— Por conta da peça que você pregou no Wyatt, a festa de
aposentadoria do cara que trabalhava na plataforma de carga, teremos que
apresentar uma declaração de culpa de alguma coisa. Você é uma
testemunha culpada, o promotor vai precisar demonstrar que você não sai
impune. Não vai lhe dar um salvo-conduto total.
— Acima de contravenção penal?
— Pode chegar a uma sentença suspensa com sursis, sursis e mais
crime grave, ou crime grave e mais seis meses.
— Prisão — falei.
Shapiro concordou.
— Se eles estiverem dispostos a negociar — falei.
— Correto. Olha, vamos falar com franqueza, você está debaixo de um
temporal de merda. A Lei de Espionagem Econômica de 1996 fez do furto
de segredos comerciais crime federal. Você pode pegar dez anos de cadeia.
— E Wyatt?
— Se o pegarem? De acordo com as Diretrizes Federais para
Aplicação de Sentenças, o juiz tem que levar em conta o papel do réu no
crime. Se você é o chefe dos criminosos, o nível da ofensa sofre dois
agravamentos.
— Quer dizer então que vão bater nele com mais força.
— Exatamente. Além disso, você não se beneficiou materialmente
com a espionagem, certo?
— Certo — respondi. — Quer dizer, eu fui pago.
— Você só recebeu seu salário da Trion que era referente ao trabalho
que fazia para a Trion.
Hesitei.
— Bem, o pessoal da Wyatt continuou a me pagar, em uma conta
secreta.
Shapiro me encarou fixamente.
— Isso é ruim, certo?
— Isso é ruim — ele confirmou.
— Não admira que tenham concordado tão facilmente — gemi, mais
para mim mesmo que para ele.
— É — fez Shapiro —, você passou a forca no seu próprio pescoço. E
então, quer que eu dê o telefonema ou não?
Olhei para Seth, que balançou a cabeça. Não parecia haver outra
chance.
— Por que vocês dois não esperam lá fora? — sugeriu Shapiro.
79
Nós nos sentamos na área de espera do lado de fora da sala de Shapiro,
em silêncio. Telefonei para o meu escritório e pedi a Jocelyn para
reprogramar dois compromissos.
Em seguida fiquei ali sentado por alguns minutos, só pensando.
— Sabe de uma coisa? — falei com Seth. — O pior nisso tudo é que
fui eu que dei a Wyatt as chaves para que ele pudesse nos roubar. Ele já
conseguiu impedir a nossa grande aquisição e agora vai nos ferrar.
totalmente — e tudo por culpa minha.
Seth ficou olhando para mim por longo tempo.
— Quem é "nós"?
— Trion.
Ele sacudiu a cabeça.
— Você não é Trion. Mas fica aí repetindo "nós" e "nosso" quando se
refere à Trion.
— Lapso.
— Acho que não. Quero que você pegue o sabonete que está usando
agora, sei lá de que marca mas com certeza francês e custando dez dólares
cada e escreva com ele no espelho do banheiro: "Eu não sou Trion e a
Trion não sou eu."
— Chega, Seth. Você agora está falando como meu pai.
— Já lhe ocorreu que talvez seu pai não estivesse errado a respeito de
todas as coisas? Tipo o relógio parado que duas vezes por dia mostra as
horas certas?
— Vá se foder.
Nesta hora a porta se abriu e Howard Shapiro apareceu.
— Sentem-se — disse ele.
Eu podia dizer pela sua cara que as coisas não tinham ido bem.
— Meu amigo foi transferido para Washington. E o cara que o
substituiu é um perfeito calhorda.
— Até que ponto? — eu quis saber.
— Ele disse: "você entra com a petição e a gente vê o que pode fazer..."
— O que significa isso?
— Que você confessa sua culpa no escritório dele e ninguém fica
sabendo.
— Não entendi.
— Significa que se você lhe der um grande caso, ele se disporá a lhe
escrever um grande Cinco-K. Cinco-K é uma carta que o promotor escreve
para o juiz pedindo que ele se afaste das diretrizes para promulgação de
sentenças.
— O juiz tem que fazer o que o promotor deseja?
— Claro que não. E também não há garantia de que esse calhorda
escreverá uma Cinco-K decente para você. Para ser franco, não confio
nele.
— Qual é a definição dele de "grande caso"?
— Ele quer que Adam apresente uma espécie de agente secreto.
— Um agente secreto? Isso é loucura! Wyatt jamais engoliria uma
coisa dessas. Não se encontrará com nenhuma outra pessoa que não eu. Ele
não é idiota.
— Que tal usar um grampo? — perguntou Seth. — Ele concordaria
com isso?
— Sou eu quem não concorda — falei. — Sou escaneado em busca de
dispositivos eletrônicos todas as vezes que vou falar com Wyatt. Eu seria
apanhado com toda a certeza.
— Tudo bem — disse Shapiro. — O nosso amigo do gabinete do
procurador também não concordaria. A única maneira que ele topa fazer
um acordo é se você fizer o que ele sugere.
— Não vou fazer mesmo — falei. — Wyatt jamais engolirá uma coisa
dessas. E que garantia há de que não vou preso, mesmo que faça o que o
seu amigo quer?
— Nenhuma — admitiu Shapiro. Nenhum promotor federal vai lhe dar
cem por cento de certeza de que um juiz vai lhe dar sursis. O juiz pode não
querer. Mas seja o que for que você decida, ele vai lhe dar setenta e duas
horas para resolver.
— Ou o quê?
— Ou os fragmentos cairão onde tiverem que cair. Ele não lhe dará o
rainha por um dia se você não jogar segundo as suas regras. Olha, ele não
confia em você. Não pensa que você será capaz de fazer isso por sua
própria conta e risco. E, vamos e venhamos, eles estão com a bola da vez.
— Não preciso de setenta e duas horas — falei. — Já decidi. Estou
fora do jogo.
Shapiro me lançou um olhar estranho.- Você vai continuar trabalhando
para a Wyatt?
— Não. Vou lidar com isso à minha maneira.
Foi a vez dele sorrir.
— Como assim?
— Digamos que eu tenha alguma prova realmente concreta contra
Wyatt — falei. — Uma prova séria, barra-pesada, da sua criminalidade.
Poderíamos levar direto para o FBI e fazer um acordo melhor?
— Teoricamente, sim.
— Ótimo. Acho que quero fazer isso sozinho. A única pessoa que pode
me tirar dessa sou eu mesmo.
Seth esboçou um sorriso, estendeu o braço e pôs a mão em cima do
meu ombro.
— Esse "me tirar" aí quer dizer só você ou quer dizer nós dois?
80
Recebi um e-mail de Alana dizendo que tinha voltado, que sua viagem
a Palo Alto fora interrompida — não explicou o motivo, mas eu sabia qual
era — e que adoraria me ver. Telefonei para a casa dela, falamos um pouco
sobre o funeral e como eu estava indo, essas coisas todas. Eu lhe disse que
não me sentia muito disposto a falar sobre meu pai e então ela disse:
— Você tem consciência de que está metido numa encrenca séria com
o departamento de RH?
— É mesmo? — perguntei, com o coração na boca.
— Puxa vida. O manual de Política de Pessoal da Trion proíbe
expressamente romances no local de trabalho. Comportamento sexual
inadequado no local de trabalho compromete a efetividade organizacional
pelo impacto negativo que provoca sobre seus participantes e colegas.
Deixei escapar lentamente o ar dos pulmões.
— Você não faz parte da minha cadeia administrativa. De qualquer
modo, senti que fomos organizacionalmente muito eficazes. E considero
também que nosso comportamento sexual foi muito apropriado. Nós
praticamos integração horizontal. — Ela riu e eu disse:
— Sei que nenhum de nós tem tempo, mas você não acha que seremos
melhores empregados da Trion se cairmos fora à noite? Estou falando em
sair realmente da cidade. Sermos espontâneos.
— É, esta sua ideia parece ser intrigante — disse ela. — Sim, acho que
eu definitivamente podia aumentar a produtividade.
— Excelente. Reservei um quarto para nós amanhã à noite.
— Onde?
— Você verá.
— Hum-hum. Diga-me onde — insistiu ela.
— De jeito nenhum. Será uma surpresa. Como nosso intrépido líder
gosta de dizer, às vezes é preciso simplesmente entrar no carro.
Ela me pegou em seu conversível azul Mazda Miata e foi dirigindo
para o campo enquanto eu dava as instruções. Nos períodos de silêncio eu
pensava, obcecado, no que estava por fazer. Estava apaixonado por ela, e
isso era um problema. Ali estava eu, usando-a para tentar salvar minha
pele. Indo para o inferno.
O percurso de carro levou quarenta e cinco minutos, em uma estrada
cheia de sinais e uma sequência de shoppings idênticos e postos de
gasolina e lanchonetes, até que pegamos uma outra estrada estreita e muito
sinuosa pelo meio da floresta. Em dado instante ela me deu uma olhada e
reparou no machucado perto do olho.
— O que foi que aconteceu? Você se meteu em alguma briga?
— Basquete — respondi.
— Achei que você não fosse mais jogar com Chad.
Sorri, mas não falei nada.
Finalmente chegamos a uma grande pousada rural, forrada de tábuas
brancas e com persianas verde-escuras. O ar era fresco e perfumado,
podiam-se ouvir passarinhos chilreando, nada de tráfego.
— Ei — disse ela, removendo os óculos de sol. — Legal. Tem todo o
jeito de ser excelente.
Fiz que sim.
— Trás para cá todas as suas namoradas?
— Nunca estive aqui antes — falei. — Li a respeito e me pareceu ser o
esconderijo perfeito.
Passei o braço em torno de sua cintura estreita e dei-lhe um beijo.
— Deixa que levo suas malas — ofereci-me.
— É só uma — ela corrigiu. — Viajo com pouca coisa.
Levei nossas malas pela porta da frente. O interior do lugar cheirava a
lareira acesa e xarope de bordo. Os donos da pousada, um casal muito
simpático, nos cumprimentou como se fôssemos amigos de infância.
Nosso quarto era excelente, tipicamente rural. Havia uma enorme
cama de quatro postes e dossel, tapetes tecidos à mão e cortinas de chintz.
A cama ficava diante de uma imensa velha lareira de tijolos que,
claramente, era muito usada. Todas as peças da mobília eram antigas, do
tipo frágil que me deixa nervoso. Ao pé da cama havia uma arca. O
banheiro era enorme, com uma velha banheira de pés de ferro no meio do
caminho — o que parece ótimo, mas se você quiser tomar um banho de
chuveiro vai ter que ficar em pé ali dentro segurando um aparelhinho de
onde sai a água, para você se molhar do mesmo jeito que molha o
cachorro, tentando não lavar o chão junto. O banheiro dava para uma
pequena área de estar ao lado do quarto de dormir, onde havia uma
escrivaninha de carvalho e um telefone antigo em cima de uma mesa
oscilante.
A cama guinchava e gemia, como descobrimos quando pulamos em
cima dela ao mesmo tempo, assim que o dono da pousada saiu.
— Meu Deus, imagine o que esta cama já viu — falei.
— Muito chintz — disse Alana. — Lembra a casa da minha avó.
— A casa da sua avó é assim tão grande?
Ela balançou a cabeça uma vez.
— Isto aqui é acolhedor. Grande ideia, Adam.
Ela enfiou a mão fria por baixo da minha camisa, esfregou minha
barriga e seguiu rumo ao sul.
— O que é que você estava dizendo sobre integração horizontal?

Um fogo forte crepitava na lareira do salão de refeições quando


descemos para jantar. Havia talvez uns dez ou doze casais já sentados, a
maioria mais velhos que nós.
Pedi um Bordeaux bem caro, e na mesma hora ouvi as palavras de Jock
Goddard ecoando na minha cabeça: Você costumava beber Budweiser,
agora só bebe Pauillac de primeira.
O serviço era vagaroso — parecia haver um único garçom para toda a
sala, um levantino que mal falava inglês — mas não me incomodei.
Estávamos mais ou menos em êxtase, flutuando numa atmosfera pós-
coito.
— Notei que você trouxe seu computador — falei — na mala do carro.
Ela sorriu timidamente.
— Não vou a parte alguma sem ele.
— Você é daquelas que ficam presas ao escritório? — perguntei. —
Pager, celular, e-mail, tudo?
— E você, não?
— A boa coisa de ter um único chefe — falei — é que se pode cortar
um bocado disso.
— Bem, você tem sorte. Eu tenho de me reportar diretamente a seis
caras, além de um bando de engenheiros arrogantes com quem tenho de
lidar. Mais uma desgraça de um prazo final.
— Que tipo de prazo final?
Ela fez uma pausa, mas só por um instante.
— O lançamento na semana que vem.
— Você vai despachar um produto?
Ela sacudiu a cabeça.
— É uma demonstração, um grande anúncio público, a demonstração
de um protótipo em operação do produto que estamos desenvolvendo. O
que quero dizer é que é realmente um negócio muito importante. Goddard
não lhe falou disso?
— Pode ser que tenha falado, não sei. Ele me fala todo tipo de coisa.
— Não é do tipo que você esqueceria. Seja como for, está tomando
todo o meu tempo. Consome tempo demais. Dia e noite.
— Não totalmente — falei. — Você teve tempo para sair duas vezes
comigo, e vai tirar folga na noite de hoje.
— Só que vou descontar amanhã e domingo.
O extenuado garçom finalmente apareceu com uma garrafa de vinho
branco. Falei que tinha errado, ele pediu desculpas profusamente e foi
buscar o vinho certo.
— Por que você não quis falar comigo no churrasco do Goddard? —
perguntei.
Ela se virou para mim com uma expressão de incredulidade no rosto,
os olhos azuis cor de safira muito abertos.
— Falei sério sobre o manual de RH, não sei se você sabe. Quer dizer,
romances no local de trabalho são realmente desencorajados, por isso
precisamos ser discretos. As pessoas falam. Todo mundo gosta de fofocar
sobre quem está transando com quem. E aí, se alguma coisa acontecer...
— Como um rompimento ou qualquer coisa.
— O que for. E fica desagradável para todos os envolvidos.
A conversa estava começando a tomar um rumo errado. Tentei corrigir.
— Quer dizer então que não posso aparecer no seu trabalho um dia.
Aparecer no quinto andar, sem avisar, com um buquê de lírios na mão.
— Eu já disse que não iam permitir que você entrasse.
— Embora meu crachá me garanta a entrada em qualquer lugar do
prédio.
— Talvez na maior parte dos lugares, mas não no quinto andar.
— Quer dizer então que você pode entrar no andar executivo mas eu
não posso entrar no seu?
Ela deu de ombros.
— Você está com o crachá aí?
— Fui treinada para não ir ao banheiro sem ele — ela puxou a bolsinha
preta e me mostrou o crachá. Estava preso a um chaveiro com uma porção
de chaves.
Peguei o crachá de Alana com jeito de quem estava brincando.
— Não é tão ruim quanto uma foto de passaporte — falei —, mas eu
não submeteria este retrato a uma agência de modelos.
Aproveitei para examiná-lo já que o tinha em mãos. Tinha os mesmos
troços que o meu, o selo holográfico Trion que mudava de cor com a luz, o
mesmo azul-claro no fundo com as palavras TRION SYSTEMS impressas por
cima em minúsculas letras brancas. A principal diferença parecia ser que o
dela tinha uma faixa vermelha e branca atravessada na frente.
— Mostro o meu a você se você me mostrar o seu — brincou ela.
Tirei meu crachá do bolso e passei para Alana. A diferença básica
residia no pequeno chip transponder que havia dentro dele. Esse chip tinha
em código a informação que abria ou não abria uma determinada porta. O
cartão dela permitia que entrasse no quinto andar além de todas as
entradas principais, garagem etc.
— Você está parecendo um coelho assustado — ela riu. — Acho que
era assim que eu me sentia no primeiro dia.
— Eu não sabia que o número de matrícula dos empregados já estava
tão alto.
A faixa vermelha e branca do cartão dela deveria servir para rápida
identificação visual. O que significava que tinha que haver um outro ponto
de controle além dos pontos de leitura eletrônica dos cartões. Uma pessoa
examinava quem estava entrando. O que tornava tudo muito mais difícil.
— Quando você desce para almoçar ou sobe para a academia... deve
ser uma encrenca.
Ela deu de ombros, desinteressada.
— Eles acabam conhecendo você.
Certo, pensei. E era este justamente o problema. Você não pode entrar
a menos que o chip dentro do seu cartão de identidade tenha sido
codificado direito e, mesmo assim, uma vez no andar, você ainda tem que
passar por um guarda para confirmação facial.
— Pelo menos não obrigam você a passar por aquele troço biométrico
— falei. — Como lá na Wyatt. Você sabe, exame das digitais. Um amigo
meu da Intel tinha que passar por um exame de retina todos os dias, e de
repente começou a precisar de óculos.
Aquilo era uma mentira total, mas consegui captar sua atenção. Alana
me olhou com um sorriso curioso, sem saber ao certo se eu estava
brincando.
— Esse negócio dos óculos é brincadeira, mas ele estava convencido
de que ia acabar arruinando a vista.
— Bem, há uma área interna com verificação biométrica, mas só os
engenheiros vão lá. É onde trabalham com o protótipo. Mas eu só tenho
que enfrentar Barney ou Chet, os pobres seguranças que ficam sentados
dentro da cabine.
— Não pode ser tão ridículo como era na Wyatt nos estágios iniciais
do Lucid — falei. — Eles faziam com que tivéssemos que passar por
aquele ritual de troca de crachás, quando você entrega o seu ao guarda e
ele lhe dá um outro para usar enquanto estiver ali no andar.
Eu estava mentindo, repetindo algo que Meacham tinha falado.
— Digamos que você se dê conta de que deixou os faróis acesos ou
esqueceu alguma coisa na mala do carro, ou quer dar uma descida na
cafeteria para pegar um bagel ou algo assim...
Ela sacudiu a cabeça, distraidamente, e chegou a suspirar baixinho.
Acabara o pouco interesse que poderia ter nas complicações do sistema de
crachás no trabalho.
Eu queria arrancar mais algumas informações dela — tipo, você tem
que entregar sua identidade ao guarda, ou apenas mostra a ele? Se tivesse
que entregar o risco era muito maior do guarda descobrir uma fraude. O
exame fica mais relaxado à noite? De manhã?
— Ei — disse ela —, você nem tocou no seu vinho. Não gosta?
Mergulhei a ponta de dois dedos no meu copo de vinho.
— Delicioso — falei.
Aquele ato de estupidez juvenil masculina fez com que ela risse, alto e
entusiasticamente, os olhos transformados em dois riscos. Algumas
mulheres — está certo, a maioria das mulheres — poderia ter pedido a
conta neste ponto. Não Alana.
Eu gostava dela.
81
Tanto eu quanto ela estávamos satisfeitos com o jantar e um pouco
tontos de tanto vinho. Na verdade, Alana parecia um pouco mais tocada do
que eu. Ela caiu de costas na cama barulhenta, os braços abertos como se
fosse abraçar o quarto, a pousada, a noite, o que fosse. Aquele era o
momento em que eu deveria segui-la na cama. Mas não podia, ainda.
— Ei, você quer que eu pegue o seu laptop no carro? Ela gemeu.
— Oh, eu gostaria que você não tivesse falado nisso. Você tem falado
demais em trabalho.
— Por que você simplesmente não admite que também é uma
workaholic e acaba logo com isso? "Oi, meu nome é Alana, e eu sou uma
workaholic. "Oi, Alana!"
Ela sacudiu a cabeça e rolou os olhos.
— O primeiro passo é sempre admitir que você não tem poder sobre o
workaholismo. De qualquer forma, eu deixei um troço no seu carro e vou
ter que descer de qualquer maneira.
Levantei a mão.
— Chaves?
Ela estava recostada na cama, parecendo confortável demais para se
mover.
— Hum... Está bem, claro — disse, relutante. — Obrigada. Ela rolou o
corpo para a beirada da cama, pescou as chaves do carro dentro da bolsa e
me deu o chaveiro com um gesto dramático.
— Volte logo, sim?
O estacionamento estava escuro e deserto àquela hora. Olhei para a
pousada, atrás de mim uns trinta metros, para me certificar de que nosso
quarto não dava para o estacionamento. Ela não podia me ver.
Abri a mala do Miata de Alana e encontrei a bolsa do seu computador,
uma bolsa de náilon imitando flanela cinza com textura de mohair. Eu não
estava brincando: tinha deixado mesmo uma pequena mochila lá dentro.
Como não havia mais nada que interessasse na mala, joguei a bolsa do
laptop e a minha mochila em cima do ombro e entrei no carro.
Olhei mais uma vez para a pousada. Ninguém se aproximava.
Ainda assim, mantive a luz de dentro do carro apagada e esperei que
meus olhos se acostumassem ao escuro. Atrairia menos atenção assim.
Sentia-me um crápula, mas tinha que ser realista a respeito de minha
situação. Eu realmente não tinha alternativa. Alana era o meu melhor
caminho para chegar ao projeto AURORA, e agora eu tinha que chegar lá.
Era a única maneira pela qual podia me salvar.
Abri rapidamente a bolsa e tirei o laptop. Quando acendi, o interior do
carro ficou azul por causa da tela do monitor. Enquanto esperava que se
inicializasse, peguei na minha mochila um estojo de primeiros socorros de
plástico azul.
No seu interior, em vez de Band-Aids e coisas semelhantes, havia
alguns estojos de plástico, cada um deles contendo uma cera macia.
Ao clarão da luz azul, examinei as chaves do chaveiro de Alana. Umas
poucas pareciam promissoras. Talvez uma delas abrisse os armários do
piso onde ficava o projeto AURORA.

Uma por uma, comprimi cada chave num retângulo de cera. Tinha
praticado isso algumas vezes com um dos homens de Meacham, e foi bom
que tivesse; era preciso alguma prática para pegar o jeito da coisa. Na tela
do laptop, o aviso para digitar a senha estava piscando para mim.
Merda. Nem todo mundo protege seus laptops com senhas. Tudo bem:
de qualquer modo, aquela não seria uma incursão perdida. Peguei na
mochila uma miniatura de leitor de pcProx que Meacham me dera e
conectei no meu computador de mão. Pressionei start e passei o crachá de
Alana no leitor.
Pronto, a maquininha captara tudo o que havia no cartão de Alana e
armazenara no meu computador de mão.
Talvez fosse até bom que seu laptop estivesse protegido por uma
senha. Havia um limite para o tempo que eu podia gastar ali no
estacionamento sem que ela ficasse curiosa para saber onde diabos eu me
metera. Mas, antes de fechar o laptop, só de brincadeira, decidi digitar
uma das senhas que as pessoas geralmente usam — a data do nascimento,
que eu memorizara, e os primeiros seis dígitos do seu número de matrícula
na Trion. Nada aconteceu. Digitei ALANA e o aviso desapareceu, surgindo
em seu lugar uma tela comum.
Puxa vida, fora fácil demais. Eu tinha entrado.
Jesus. E agora? Quanto tempo eu podia arriscar? Mas como deixar
passar aquela oportunidade? Podia nunca mais acontecer de novo.
Alana era uma pessoa extremamente organizada. Seu computador era
configurado de um jeito claro e lógico. Um dos diretórios chamava-se
AURORA.
Estava tudo ali. Bem, talvez não tudo, mas eu tinha diante de mim uma
mina de ouro de especificações técnicas do chip ótico, memorandos de
marketing, cópias de e-mails enviados e recebidos, agendas de reuniões,
relações de pessoal com códigos de acesso e até mesmo a planta baixa do
andar...
Havia tanta coisa que não tive tempo de ler os nomes dos arquivos. O
laptop tinha um drive de CD; eu tinha um pino de CDs virgens na mochila.
Peguei um deles e coloquei na gaveta de CD.
Mesmo em um computador super-rápido como o de Alana, foram
precisos uns bons cinco minutos para copiar todos os arquivos do AURORA
em um CD. Dada a quantidade existente.
— Por que demorou tanto? — perguntou ela, fazendo beicinho, quando
voltei.
Alana estava sob as cobertas, os seios nus visíveis, e parecia sonolenta.
Uma balada de Stevie Wonder — Love's in Need of Love Today — tocava
baixinho em um pequeno CD player que ela devia ter trazido.
— Não consegui descobrir qual era a chave da mala.
— Um cara com mania de carro como você? Achei que tivesse ido
embora e me deixado aqui sozinha.
— Tenho cara de burro?
— As aparências enganam — disse ela. — Venha para cama.
— Nunca imaginei que você fosse fã do Stevie Wonder — falei. Era
verdade mesmo, eu nunca teria imaginado, tendo em vista sua coleção de
cantoras folk zangadas.
— Você ainda não me conhece realmente — replicou ela.
— Não, mas dê-me um pouco de tempo — falei. Sei tudo sobre você,
pensei, e no entanto nada sei. Não sou o único que guarda segredos. Pus o
laptop em cima da mesinha de carvalho ao lado do banheiro.
— Aí está — falei, retornando ao quarto e tirando a roupa — para o
caso de você ter alguma inspiração brilhante, um brainstorming incrível
no meio da noite.
Nu, eu me aproximei da cama. Aquela bela mulher nua ali deitada,
desempenhando o papel de sedutora, quando na realidade era eu o sedutor.
Alana não tinha ideia do tipo de jogo que eu estava jogando, e por isso
senti uma pontada de vergonha, misturada, estranhamente, com um toque
de excitação.
— Venha para cá — disse ela, num sussurro dramático, sem tirar os
olhos de mim. — Acabei de ter um brainstorm.
Nós dois acordamos depois das oito — excepcionalmente tarde para
duas pessoas hiperativas, workaholics do tipo A — e ficamos algum tempo
brincando na cama antes de tomarmos banho e descermos para um café da
manhã do campo. Duvido que os moradores do campo realmente comam
daquele jeito, a menos que queiram pesar duzentos quilos: fatias de bacon
(só em pousadas campestres é que o bacon vem em "fatias"), montes de
cereais, bolinhos ainda quentes do forno com recheio de uma frutinha
quase preta, ovos, torrada francesa, café com creme de verdade... Alana
realmente regalou-se, o que me surpreendeu, sendo magra como era.
Gostei de vê-la comendo tão vorazmente. Era uma mulher de apetites, o
que eu gostava.
Voltamos para o quarto, brincamos mais um pouco na cama e
conversamos. Fiz questão absoluta de não falar sobre procedimentos de
segurança ou crachás de acesso.
Ela quis falar sobre a morte de meu pai e o funeral e, embora o assunto
me deprimisse, conversamos um pouco. Lá pelas onze horas fomos,
relutantemente, embora. O encontro estava terminado.
Acho que tanto eu quanto ela desejávamos continuar ali, mas também
precisávamos ir para casa por algum tempo, tomar umas providências,
voltar às minas de sal e compensar aquela noite deliciosa longe do
trabalho.
Na estrada, enquanto seguíamos por entre as árvores matizadas pela
luz do sol, não pude deixar de pensar que acabara de passar a noite com a
mulher mais espetacular, linda, engraçada e sexy que eu já conhecera.
Cara, que diabo de coisa eu estava fazendo?
82
Ao meio-dia eu estava de volta ao meu apartamento e telefonei
imediatamente para Seth.
— Vou precisar de mais um pouco de dinheiro — disse ele.
Eu já lhe dera alguns milhares de dólares, da minha conta suprida pela
Wyatt, ou de onde quer que viesse realmente o dinheiro. Fiquei surpreso
por ver que ele já tinha gastado tudo.
— Eu não quis fazer besteira, comprar troços baratos — ele explicou.
— Só comprei equipamento profissional.
— Acho que tem que ser assim mesmo — concordei. — Muito embora
seja para usar uma única vez.
— Quer que eu pegue uniformes?
— É bom.
— E os crachás?
— Estou trabalhando nisso — falei.
— Você não está nervoso, Adam?
Hesitei por um momento, pensando em mentir só para estimular a
coragem dele, mas não consegui.
— Totalmente — respondi.
Eu não queria pensar no que podia acontecer se as coisas saíssem
erradas. Uma área nobre do meu cérebro estava sendo colonizada agora
pela preocupação, trabalhando obsessivamente no plano que formulara
depois da entrevista com o patrão de Seth.
Havia, porém, uma outra parte do meu cérebro que só queria escapar
da realidade embarcando em uma fantasia. Queria pensar em Alana.
Pensei na ironia da situação — como aquele esquema calculado de
sedução me levara a seguir um rumo totalmente inesperado e como eu me
sentia agora recompensado — erradamente — pela minha traição.
Eu alternava entre me sentir um canalha, culpado pelo que estava
fazendo a ela, e me sentir esmagado pela minha ligação sentimental a ela,
algo que eu realmente nunca tinha sentido antes. Pequenos detalhes
pipocavam a toda hora em minha mente: o modo como escovava os
dentes, juntando água da torneira com a mão em concha, em vez de usar
um copo, a depressão graciosa da sua coluna logo acima das nádegas, o
modo incrivelmente sexy com que passava batom... Eu pensava na sua voz
aveludada, na sua risada maluca, seu senso de humor, sua doçura.
E eu também pensava — sendo este o detalhe mais estranho de todos
— sobre o nosso futuro juntos, um pensamento geralmente assustador para
um cara que está na casa dos vinte anos, só que, de algum modo, não me
assustava nem um pouco. Eu não queria perder aquela mulher. Eu me
sentia como se tivesse parado em um 7-Eleven para comprar uma
embalagem com seis cervejas e um bilhete de loteria, e o bilhete estivesse
premiado.
E, por causa disso, eu não queria que ela jamais descobrisse o que eu
estava realmente querendo. Esse pensamento horrível e sombrio insistia
em aparecer a todo instante, interrompendo minha tola fantasia, como um
desses brinquedos de criança com a base pesada e que sempre pulam para
cima — sproing — quando você os derruba.
Uma imagem pouco nítida em preto e branco aparecia inserida no meu
carretel colorido de fantasia — um fotograma da câmera de vigilância: eu
sentado no meu carro no estacionamento às escuras, passando o conteúdo
do laptop dela para um CD, comprimindo suas chaves em cera, copiando
seu crachá.
Eu dava um tapa derrubando o palhacinho malvado e aparecia o dia do
nosso casamento, Alana avançando pela nave da igreja, linda e recatada,
de braço com o pai, um sujeito de cabelos cor de prata e queixo quadrado
metido numa roupa formal.
A cerimônia é realizada por Jock Goddard atuando como juiz de paz. A
família de Alana toda comparece, sua mãe parece Diane Keaton em O Pai
da Noiva, sua irmã não tão bonita quanto Alana mas meiga, e todos estão
empolgados — isto é uma fantasia, lembrem-se — por ela estar se casando
comigo.
Nossa primeira casa, uma casa de verdade e não um apartamento,
como em uma velha cidadezinha muito arborizada do Meio-Oeste; eu
imaginava a casa enorme em que a família de Steve Martin vive em O Pai
da Noiva. Nós dois, afinal, somos executivos ricos e poderosos. Ouve-se
em algum ponto no fundo, Nina Simone cantando The Folks Who Live on
the Hill. Carrego Alana sem o menor esforço pela soleira da porta, e ela ri
de como estou sendo brega, e depois transamos em cada um dos cômodos
para batizar a casa, inclusive o banheiro e o closet. Assistimos aos filmes
que alugamos juntos sentados na cama, comendo comida chinesa direto
das caixas de papelão com palitos de madeira, e de vez em quando arrisco
um olhar para ela, sem conseguir acreditar que estou realmente casado
com uma coisinha tão inacreditavelmente linda.
Os brutamontes de Meacham tinham trazido de volta meus
computadores, o que foi uma sorte, porque eu precisava deles.
Introduzi o CD no meu computador com tudo o que eu tinha copiado
do laptop de Alana. Havia um bom número de e-mails referentes ao vasto
potencial de marketing do AURORA. Como a Trion estava pronta para ser
dona do "espaço", como dizem na linguagem técnica de marketing. O
gigantesco aumento em poder de computação que viria com ele, como o
chip AURORA realmente mudaria o mundo.
Um dos documentos mais interessantes era o programa da
demonstração pública do AURORA. Ia acontecer na quarta-feira, dentro de
quatro dias, no Centro de Visitantes da sede da Trion, um auditório
gigantesco e supermoderno. E-mails de alerta, faxes e telefonemas seriam
enviados apenas na véspera para toda a mídia. Obviamente seria um
imenso evento público. Imprimi esse programa.
Mas fiquei intrigado, acima de tudo, com a planta baixa do andar e os
procedimentos de segurança que todos os membros da equipe AURORA
tinham recebido.
Em seguida abri uma das gavetas de lixo da cozinha. Embrulhados em
um saco de lixo havia alguns objetos que eu guardara dentro de plásticos
Zip-Loc. Um era o CD da Ani DiFranco que eu deixara no meu
apartamento na esperança de que ela o pegasse, como pegou. O outro era o
cálice de vinho que usara.
Meacham tinha me dado um kit de levantamento de impressões
digitais Sirchie, contendo frascos de pó de grafite, fita adesiva
transparente e um pincel de fibra de vidro. Calçando um par de luvas de
látex, espalhei tanto no CD quando no cálice de vinho um pouco do pó de
grafite.
A melhor impressão estava, disparado, no CD. Recolhia
cuidadosamente num pedaço da fita adesiva e pus em um estojo plástico
estéril.
Em seguida escrevi um e-mail para Nick Wyatt. Endereçado, é claro, a
"Arthur": Segunda de noite/terça de manhã missão será terminada &
amostras obtidas. Terça de manhã entrega será feita em hora e local a
serem especificados por você. Com fim da missão encerrarei todos os
contatos.
A minha intenção era deixar registrada a nota exata de ressentimento.
Não queria que suspeitassem de nada.
Mas Wyatt apareceria pessoalmente?
Acho que esta era a grande pergunta sem resposta. Não era crucial que
Wyatt aparecesse, embora eu certamente quisesse que ele fosse. No
entanto, não havia como obrigá-lo. Na verdade, insistir nesse ponto
provavelmente só serviria para não ir. A esta altura, contudo, eu conhecia
bastante bem a psicologia de Wyatt para ter quase certeza de que ele não
confiaria em mais ninguém.
O caso é que eu ia dar a Nick Wyatt o que ele queria.
Eu ia lhe dar o protótipo do chip AURORA, que eu ia furtar, com a ajuda
de Seth, do quinto andar da ala D. Tinha que ser o chip verdadeiro, o
protótipo do AURORA. Por inúmeras razões não era possível fraudar esse
tipo de coisa. Wyatt, sendo engenheiro, provavelmente saberia reconhecer
prontamente se o artigo era ou não genuíno.
Mas a principal razão era, como eu descobrira lendo os e-mails de
Camilletti e os arquivos de Alana, que, por razões de segurança, o
protótipo era identificado através de uma inscrição com o número de série
e a logo da Trion, gravada a laser e visível apenas sob um microscópio.
Era por isso que eu queria que ele tivesse em seu poder o chip roubado.
O chip verdadeiro. Porque no momento em que Wyatt — ou Meacham, se
fosse o caso — levasse o chip furtado, ele estaria em minhas mãos. O FBI
seria notificado com antecedência suficiente para coordenar a ação de uma
equipe da SWAT, mas só saberia nomes e locais no último minuto. Eu
estaria em completo controle disso.
Howard Shapiro, o patrão de Seth, tinha feito a ligação para mim.
— Esquece essa ideia de lidar diretamente com o escritório do
Procurador — ele me disse. — Um assunto arriscado como este, ele vai
para Washington e aí vai levar uma eternidade. Esquece. Vamos
diretamente ao FBI — eles são os únicos capazes de topar uma jogada
nesse nível.
Sem citar nomes, ele fizera um acordo com o FBI. Se tudo desse certo
e eu entregasse Nick Wyatt a eles, minha punição seria apenas um período
de liberdade vigiada.
Nada mais.
Bem, eu ia entregar Wyatt a eles. Mas ia ser do meu jeito.
83
Fui trabalhar cedo na manhã de segunda-feira, perguntando a mim
mesmo se aquele não seria o meu último dia na Trion.
Claro que, se tudo corresse bem, aquele seria apenas um outro dia, uma
interrupção insignificante em uma carreira longa e bem-sucedida.
Mas eram muito pequenas as chances de que aquele esquema
incrivelmente complicado desse certo, e eu sabia disso.
No domingo fiz duas cópias do crachá de acesso de Alana, usando uma
maquininha que Meacham me dera chamada ProxProgrammer e os dados
que eu tinha capturado do seu cartão de identidade.
Encontrei também entre os arquivos de Alana uma planta baixa do
quinto andar, ala D. Quase metade do andar estava marcada com hachuras
e as palavras "Instalação de Segurança C".
Instalação de Segurança C era onde o protótipo estava sendo testado.
Lamentavelmente, eu não tinha ideia do que havia exatamente na tal
instalação segura, onde nessa área o protótipo era guardado. Uma vez que
eu conseguisse entrar lá, eu teria que improvisar.
Fui até o apartamento do meu pai pegar minhas luvas de trabalho
industriais, que eu usara quando trabalhei como lavador de janelas com
Seth. Tinha uma certa esperança de ver Antwoine, mas ele devia ter saído.
O fato foi que, enquanto estava lá, tive a estranha sensação de estar sendo
observado. Procurei não me deixar impressionar, atribuindo aquilo à
minha natural ansiedade.
O resto do domingo gastei fazendo um monte de pesquisas no site da
Trion. Era, sinceramente, espantosa a quantidade de informações
disponíveis aos empregados da Trion — desde as plantas baixas dos
andares da sede aos procedimentos referentes à identificação de segurança
nos cartões de identidade e crachás de acesso, e até mesmo o inventário do
equipamento de segurança instalado no quinto andar da ala D. Graças a
Meacham, eu sabia a frequência que os guardas de segurança da Trion
usavam em seus aparelhos de rádio.
Eu não sabia tudo que precisava saber sobre os procedimentos de
segurança — longe disso —, mas descobri algumas coisas interessantes,
que confirmavam o que Alana me dissera no jantar na pousada.
Havia duas vias de acesso para entrar ou sair do quinto andar, ambas
guarnecidas. Você colocava o crachá diante de um leitor de cartões para
passar pela primeira porta, mas depois tinha que mostrar o rosto para um
guarda instalado atrás de um vidro à prova de bala. Este guarda comparava
seu nome e retrato com o que tinha na tela do seu computador e acionava
um botão que lhe dava acesso ao andar.
Mesmo então, você ainda não estava nem perto da Instalação de
Segurança C. Era preciso percorrer corredores equipados com câmeras de
vídeo em circuito fechado, depois entrar em outro local dotado não só com
câmeras de segurança como também com sensores de movimento, antes de
atingir a entrada da área de segurança. Esta não era guarnecida, mas a fim
de destrancar a porta era preciso ativar um sensor biométrico.
Assim, chegar perto do protótipo do AURORA ia ser absurdamente
difícil, se não impossível. Eu não ia conseguir sequer passar pelo primeiro
posto guarnecido.
Não podia usar o cartão de Alana, claro — ninguém ia me confundir
com ela. Seu cartão, porém, poderia ser útil de outras maneiras, uma vez
que eu chegasse ao quinto andar.
O sensor biométrico era ainda mais difícil. A Trion estava na
vanguarda da maior parte das tecnologias, e o reconhecimento biométrico
— leitores de impressões digitais, leitores de mãos, identificação
automática da geometria facial, identificação de voz, mapeamento de íris e
de retina — tudo isso estava na crista da onda no ramo da segurança.
Todas essas tecnologias têm seus pontos fortes e seus pontos fracos, mas o
exame dos dedos é considerado geralmente a melhor delas — confiável,
não muito invasora ou complicada e com uma taxa de falsas rejeições e
falsas aceitações não muito alta.
Montado na parede do lado de fora da instalação de segurança C havia
um aparelho de identificação de impressões digitais Identix.
No final da tarde liguei do meu celular para o diretor-assistente da
central de segurança da ala D.
— Ei, George — falei. — - Aqui é Ken Romero, da Infraestrutura de
Redes, está enrolando?
Ken Romero era um nome verdadeiro, um gerente sênior. Para o caso
de George decidir investigar.
— Que posso fazer por você? — perguntou o sujeito. Pela voz dele tive
a impressão de que tinha acabado de encontrar um pedaço de cocô na sua
caixa de pipocas Cracker Jack.
— Só um telefonema de cortesia. Bob me pediu que avisasse a vocês
que vamos fazer um novo roteamento e modernização do cabo de fibra no
D-Cinco amanhã de manhã bem cedo.
— Hum-hum.
Tipo: por que está me contando isso?
— Eu não sei por que eles acham que precisam dessa fibra de 50 micro
otimizada a laser nem de um servidor blade ultradenso, mas o dinheiro
não vai sair do meu bolso, sabe como é? Acho que eles têm uns aplicativos
correndo por lá que consomem uma parte exageradamente grande dos
recursos do sistema e...
— O que é que eu posso fazer para ajudar, senhor?...
— Romero. Bem, o fato é que eu acho que os caras do quinto andar não
querem interrupções durante o expediente, por isso pediram para que o
serviço fosse feito de madrugada. Não tem problema, mas a gente queria
que vocês ficassem por dentro porque o trabalho vai disparar detectores de
presença e de movimento, mais ou menos entre as quatro e as seis da
manhã.
O assistente do chefe da segurança pareceu aliviado quando concluiu
que não precisaria fazer nada.
— Você está falando de todo o maldito quinto andar? Não posso fechar
o andar inteiro sem...
— Não, não, não — interrompi. — Teremos sorte se o meu pessoal
conseguir avançar por dois, talvez três compartimentos de cabos da rede,
do jeito que eles interrompem o trabalho para tomar café. Não, estamos
falando de duas áreas, vejamos, áreas vinte e dois A e B, certo? Só as
seções internas. De qualquer modo, suas placas de controle deverão se
iluminar como árvores de Natal, provavelmente levando você aí à loucura,
mas eu queria alertar...
George deixou escapar um suspiro fundo.
— Se são só as áreas vinte e dois A e B, acho que posso desligar...
— Faça o que for mais conveniente para você. Quer dizer, a gente só
não quer é enlouquecer vocês por aí.
— Vou dar três horas para vocês, se precisarem.
— Não devemos precisar de três horas, mas acho que é melhor
prevenir do que remediar, não é? De qualquer modo, agradeço muito sua
cooperação.
84
Por volta das sete daquela noite eu saí do prédio da Trion, como fazia
normalmente, e fui para casa. Tive uma inquieta noite de sono.
Pouco antes das quatro da madrugada, peguei o carro e voltei para a
Trion, só que parei na rua e não na garagem, para que não houvesse
registro da minha volta.
Dez minutos depois, um furgão onde se lia J.J. RANKENBERG & CIA —
LIMPEZA PROFISSIONAL DE JANELAS, EQUIPAMENTOS E PRODUTOS QUÍMICOS
DESDE 1963 parou perto de mim.
Seth estava ao volante, vestindo um uniforme azul com uma etiqueta
da J.J. Rankenberg no bolso esquerdo.
— E aí, caubói — disse ele.
— Foi o próprio J.J. quem emprestou o furgão a você?
— O velho morreu — disse Seth. Como ele estava fumando, pude
avaliar o quanto devia se sentir nervoso. — Tive que resolver com o
Júnior.
Ele me passou um macacão azul, dobrado, que vesti por cima da calça
de brim e da camisa polo, o que não foi nada fácil, dentro da cabina do
velho furgão Isuzu, que exalava a gasolina derramada.
— Eu achava que o Júnior odiasse você.
Seth levantou a mão esquerda e esfregou o polegar no indicador,
representando grana.
— Locação de curto prazo para um servicinho que vou fazer para a
companhia do pai da minha namorada.
— Você não tem namorada.
— Tudo o que interessou a ele foi não ter que escriturar a entrada
desse dinheiro. Pronto para começar o baile, meu chapa?
— Aperte no Send, garoto — respondi, apontando para a entrada de
serviço da ala D para o estacionamento interno, e Seth seguiu para lá. O
funcionário de serviço na cabine deu uma olhada em uma folha de papel,
encontrou o nome da companhia J.J. Rankenberg e deixou entrar.
Seth estacionou perto da plataforma de carga do andar inferior e nós
tiramos as grandes sacolas de náilon atulhadas de ferramentas, os rodos de
borracha profissionais Ettore e os grandes baldes verdes, os cabos de
extensão de quase quatro metros, os galões de plástico cheios de um
líquido de limpeza de vidros, amarelo como xixi, as cordas e ganchos, o
Ski Genie, a cadeira para trabalhar pendurado e os elevadores Jumar. Eu
tinha me esquecido da quantidade de tralha que o serviço requeria.
Apertei o grande botão de aço que ficava ao lado da porta da garagem,
também de aço, e poucos segundos depois a porta começou a abrir,
rolando. O guarda de segurança, um sujeito barrigudo e pálido com um
bigode hirsuto, apareceu com uma prancheta.
— Vocês precisam de alguma ajuda? — perguntou ele, sem realmente
querer uma resposta.
— Estamos com tudo pronto — falei. — Se você puder nos mostrar o
elevador de carga que vai até o telhado...
— Sem problema — disse ele.
Ficou ali parado com a sua prancheta — não parecia estar escrevendo
nada nela, mas a segurava daquele jeito apenas para que soubéssemos
quem mandava no pedaço — assistindo a nossa luta com o equipamento.
— Vocês conseguem realmente lavar as janelas quando está escuro? —
perguntou, ao nos conduzir para o elevador.
— Com os caras pagando o preço normal mais a metade a gente lava
melhor quando está escuro — disse Seth.
— Não sei por que não gostam que a gente olhe para suas salas quando
estão trabalhando — falei.
— É, essa é a nossa maior fonte de diversão — disse Seth. — -
Apavorar as pessoas. Provocar um ataque do coração nos burocratas.
O segurança riu.
— Basta apertar o T de telhado — disse. — Se a porta de acesso ao
telhado estiver trancada, deve ter um cara lá em cima, acho que é o Oscar.
— Legal — falei.
Quando chegamos ao telhado, eu me lembrei por que odiava lavar
janelas em andares altos. A sede da Trion ficava em um prédio de apenas
oito andares, pouco mais de trinta metros, mas lá em cima, no meio da
noite, era como se fosse o Empire State. O vento fustigava de todos os
lados, era frio e úmido e ouvia-se ao longe o barulho do tráfego, mesmo
àquela hora da noite.
O guarda de segurança, Oscar Fernandez (segundo seu crachá), era um
sujeito baixo, com um uniforme azul-marinho e um rádio
transmissor/receptor preso no cinto, emitindo o tempo todo estática e
vozes distorcidas. Ele veio se encontrar conosco no elevador de carga,
mudando o peso desajeitadamente de um pé para o outro enquanto
descarregávamos nossos bagulhos, e depois nos mostrou a escada de
acesso ao telhado.
Subimos os degraus atrás dele que, enquanto abria a porta, disse:
— É, eu soube que vocês vinham, mas fiquei espantado. Não sabia que
trabalhavam tão cedo.
Não pareceu desconfiado; parecia estar apenas querendo bater papo.
Seth repetiu seu comentário sobre ganhar uma vez e meia o salário
normal para trabalhar de noite e nós apresentamos de novo o nosso diálogo
sobre provocar ataques do coração nos burocratas, e ele também riu. Disse
que achava que fazia sentido as pessoas não gostarem que atrapalhássemos
seu trabalho durante as horas normais do expediente. Parecíamos
lavadores de janelas, tínhamos todo o equipamento e uniformes, e quem
mais seria louco o bastante para subir no telhado de um edifício com oito
andares carregando toda aquela tralha?
— Bem, de qualquer maneira só trabalhei de noite aqui umas duas
semanas — disse ele. — Vocês já estiveram aqui no prédio antes? Sabem
onde tudo se encontra?
Respondemos que ainda não tínhamos trabalhado no prédio e ele,
então, nos mostrou o básico — tomadas de força, registros de água,
âncoras de segurança. Todos os edifícios construídos recentemente eram
obrigados a ter âncoras de segurança no telhado montadas a cada três ou
quatro metros, a cerca de dois metros da borda lateral, âncoras essas fortes
o bastante para suportar uma carga de duas toneladas e meia. Essas
âncoras geralmente lembram canos de ventilação, só que com uma barra
de ferro em forma de U em cima.
Oscar interessou-se um pouco demais em como nós instalávamos
nosso equipamento. Ficou por perto, observando a gente prender os
mosquetões de aço. A corda de escalada, uma corda de náilon kernmantle
com mais de um centímetro de grossura, passava por eles e era conectada
às âncoras de segurança.
— Legal — disse ele. — Vocês provavelmente são alpinistas nas horas
de folga, hein?
Seth olhou para mim e disse:
— Você funciona como guarda de segurança nas suas folgas?
— De jeito nenhum — disse ele, e soltou uma risada. — Eu só quis
dizer que vocês devem gostar de subir em locais altos e coisas assim. Isso
me mataria de medo.
— Você acaba se acostumando — garanti.
Cada um de nós tinha duas cordas separadas, uma para ir descendo por
ela, a outra para servir de segurança, para o caso da primeira partir. Eu
queria fazer tudo direito, e não só pela questão da aparência. Nenhum de
nós estava a fim de morrer por cair de cima do prédio da Trion. Durante
dois desagradáveis verões em que trabalhamos para a companhia de
lavagem de janelas ouvíamos sempre que a média de fatalidades da
indústria era dez por ano, só que nunca nos disseram se eram dez no
mundo, no estado ou o quê, e nós nunca perguntamos tampouco.
Eu sabia que o que estávamos fazendo era perigoso. Só não sabia de
onde viria o perigo.
Depois de mais ou menos uns cinco minutos, Oscar finalmente ficou
entediado, principalmente porque paramos de lhe dirigir a palavra, e ele
voltou ao seu posto.
A corda de escalada fica presa numa coisa chamada Sky Genie, uma
espécie de tubo de metal comprido dentro do qual há uma haste de
alumínio forjado em que você enrola a corda. O Sky Genie — adoro esse
nome, gênio do céu — é um mecanismo de controle da descida que
funciona pela fricção e vai libertando a corda lentamente.
Aqueles Sky Genies estavam arranhados e pareciam já ter sido usados.
Levantei um deles e perguntei: — Você não podia ter comprado novos?
— Ei, eles vieram com o furgão, o que é que você queria? Está
preocupado com o quê? Esses bichinhos sustentam dois mil e quinhentos
quilos. A propósito, acho que você ganhou uns quilinhos nos últimos
meses.
— Vá se foder.
— Você jantou? Espero que não.
— Isto não é engraçado. Você algum dia leu a etiqueta de advertência
que vem nesse troço?
— Eu sei, o uso impróprio pode causar sérios ferimentos ou mesmo a
morte. Não ligue para isso. Você provavelmente também vai sentir medo
se remover etiquetas de colchões.
— Gosto do slogan — "Gênio do Céu — deposita você na terra". Seth
nem pareceu me ouvir.
— Oito andares não é nada, cara — disse ele. — Lembra do tempo em
que lavamos as janelas do Centro Cívico...
— Não me lembre — interrompi. Eu não queria passar por covarde,
mas também não estava sintonizado na sua onda de humor negro, não ali,
de pé no telhado do prédio da Trion.
O Sky Genie fica enganchado no equipamento de segurança de náilon
que é preso a um cinturão e a uma tábua acolchoada. Tudo no ramo da
lavagem de janelas tem nome em que aparece a palavra "segurança" ou a
expressão "proteção contra quedas", o que faz com que você lembre que,
se alguma coisa sair minimamente errada, você estará ferrado.
A única coisa que usávamos ligeiramente fora do comum era um par
de ascensores Jumar, com que poderíamos subir. A maior parte do tempo
quando você está lavando janelas não há razão para subir — você vai
trabalhando de cima para baixo até chegar ao chão.
Mas eles representariam nossa possibilidade de fuga.
Seth montou o guincho elétrico em uma das âncoras do telhado com
um anel em D e ligou-o numa tomada. Era um modelo de cento e quinze
volts com uma polia com capacidade de erguer quinhentos quilos. Depois,
ele conectou o guincho a cada uma de nossas linhas, verificando a
existência de folga suficiente para não nos impedir de descer.
Puxei a corda com força, para verificar se tudo estava bem preso, e nós
dois fomos até a beirada do telhado para dar uma espiada. Depois nos
entreolhamos, e Seth deu um sorriso como se me perguntasse que-porra-é-
essa-que-estamos-fazendo-aqui.
— Já estamos nos divertindo? — perguntou ele.
— Oh, sem dúvida.
— Está pronto, companheiro?
— Tão pronto — respondi — quanto Elliot Krause no toalete portátil.
Nenhum de nós riu. Galgamos a amurada lentamente e passamos para
o outro lado.
85
Tivemos que descer apenas dois andares na base do rapel, mas não foi
fácil. Estávamos ambos destreinados, carregávamos ferramentas pesadas e
tínhamos que ser extremamente cuidadosos para não balançar demais nem
para um lado nem para o outro. Havia câmeras de vigilância em circuito
fechado de TV montadas na fachada do prédio: Eu sabia, graças às plantas,
exatamente onde estavam montadas. Conhecia também as especificações
das câmeras, tamanho das lentes, distância focal e tudo mais.
Em outras palavras, eu sabia onde ficavam os pontos cegos.
E estávamos descendo por um deles. Eu não estava preocupado que a
segurança do prédio nos visse descendo pela fachada lateral, já que eles
estavam esperando lavadores de vidraças de manhã bem cedo. Minha
preocupação era que, se alguém olhasse, percebesse que, na verdade, não
estávamos lavando nada. Essa pessoa nos veria descendo, devagar e com
segurança, direto até o quinto andar. E também veria que não nos
posicionávamos em frente a uma janela.
Estávamos pendurados diante de uma grade de ventilação de aço.
Desde que não balançássemos demais em uma direção ou outra,
estaríamos fora do alcance da câmera. Isso era importante.
Firmando nossos pés contra um peitoril, pegamos nossas ferramentas
elétricas e demos início ao trabalho com os parafusos hexagonais. Eles
estavam bem fixados passando pelo aço e entrando no concreto, e havia
muitos. Seth e eu trabalhamos em silêncio, o suor escorrendo pelos nossos
rostos. Era possível que alguém que passasse por perto, um guarda de
segurança ou quem quer que fosse, nos visse removendo os parafusos que
fixavam a grade de ventilação e ficasse curioso. Lavadores de janelas
trabalham com rodos e baldes, não com ferramentas elétricas de impacto
sem fio.
Àquela hora da manhã, no entanto, não havia muita gente andando por
ali. E quem quer que por acaso nos visse provavelmente ia imaginar que
estávamos fazendo manutenção de rotina.
Pelo menos era o que eu esperava.
Gastamos uns bons quinze minutos para soltar e remover cada
parafuso. Alguns deles estavam tão enferrujados que exigiram um jato de
WD-40.
Aí então, a um sinal meu, Seth afrouxou o último parafuso e nós dois
levantamos a grade cuidadosamente para longe do revestimento de aço do
prédio. Era superpesada, um trabalho no mínimo para dois homens.
Tínhamos que pegá-la pelas bordas afiadas — por sorte eu trouxera luvas,
um par para cada um de nós — e incliná-la de modo que descansasse no
peitoril da janela. Uma vez atingido este ponto, Seth apoiou-se nela e
conseguiu balançar as pernas para dentro da sala. Ele caiu no chão da sala
de equipamento mecânico com um gemido.
— Sua vez — disse ele. — Cuidado.
Apoiado na grade, joguei as pernas para dentro do túnel de ventilação e
caí no chão, olhando rapidamente à minha volta.
A sala era entulhada de equipamentos imensos e barulhentos, quase
todos escuros, iluminados apenas pela luz distante dos projetores
montados no teto. Ali dentro, havia todo tipo de máquina de aquecimento,
ventilação e ar-condicionado — bombas de aquecimento, ventiladores
centrífugos, imensos refrigeradores e compressores, além de outros
equipamentos de filtragem e condicionamento do ar.
Ficamos por algum tempo parados ali, presos aos nossos
equipamentos, ainda ligados às cordas duplas, que balançavam através do
túnel de ventilação, até que soltamos os cintos. Obviamente não podíamos
deixar aquilo tudo solto no ar, mas tínhamos providenciado uma solução.
Seth puxou um controle remoto de abrir porta de garagem, um aparelho
pequeno e preto, e apertou o botão. Mesmo de onde estávamos, pudemos
ouvir o barulho do motor elétrico, ao mesmo tempo que víamos as cordas
e o nosso equipamento começando a subir lentamente, puxados pela polia.
— Espero que possamos trazer tudo de volta quando precisarmos —
disse Seth, que eu mal pude ouvir, por causa do barulho de fundo
ensurdecedor.
Não pude deixar de pensar que aquilo tudo era pouco mais que uma
brincadeira para Seth. Se ele fosse apanhado, não teria grande importância.
Ele estaria bem.
Era eu quem ia me meter numa merda de fazer gosto.
Em seguida puxamos a grade para que, do lado de fora, ela parecesse
estar no lugar certo. Depois peguei um pedaço extra da corda de náilon,
passei através dos suportes e amarrei a outra ponta em um cano vertical,
para amarrá-la.
A sala ficara escura de novo e tive que pegar minha lanterna e acender.
Aproximei-me da porta de aço que parecia ser muito pesada e
experimentei a alavanca.
Ela abriu. Eu sabia que as portas das salas de equipamentos mecânicos
têm de ser destrancadas pelo lado de dentro, a fim de que ninguém possa
ficar preso sem querer, mas, ainda assim, foi um alívio saber que
podíamos sair.
Nesse meio tempo, Seth pegou um par de walkie-talkies Motorola e
me passou um. Depois retirou do estojo um rádio compacto preto de ondas
curtas, que captava a frequência da polícia, com trezentos canais.
— Você se lembra da frequência da segurança? Alguma coisa em torno
dos quatrocentos UHF, não era?
Peguei um caderninho espiral de notas, no bolso da minha camisa, e li
o número da frequência. Seth começou a digitá-lo, e eu desdobrei a planta
baixa do andar para estudar minha rota.
Eu me sentia ainda mais nervoso agora do que quando estava do lado
de fora do prédio. Tínhamos formulado um plano bastante sólido, mas um
número muito grande de coisas podia sair errado.
Para começar, podia haver gente no meu caminho, mesmo assim tão
cedo. AURORA tinha prioridade máxima na programação da Trion, e sua
data final seria apenas dali a dois dias. Engenheiros costumam trabalhar
em horas estranhas. Às cinco da manhã provavelmente não deveria haver
ninguém, mas nunca se sabe. Melhor permanecer com o uniforme de
lavador de vidraças, carregando um balde e um rodo — o pessoal da faxina
sempre é invisível. Não seria provável que alguém me parasse para
perguntar o que eu estava fazendo ali.
Havia também a horrível possibilidade de esbarrar em alguém que me
reconhecesse. A Trion tinha dezenas de milhares de empregados e eu já
conhecera, não sei, talvez uns cinquenta. Por tanto, as chances me eram
favoráveis. Principalmente às cinco da manhã. Ainda assim... Por isso eu
trouxera um capacete amarelo, muito embora lavadores de janelas nunca
os usem. Enterrei o capacete na cabeça e completei a obra com um par de
óculos de segurança.
Uma vez do lado de fora da pequena sala escura, eu teria que percorrer
muitos metros de corredor com as câmeras de segurança apontadas para
mim o tempo todo.
Claro, havia uma dupla de caras da segurança no centro de comando
instalado no porão, mas eles tinham que olhar para dúzias de monitores, e
provavelmente estariam assistindo à televisão, tomando café e contando
lorotas. Eu não achava que alguém fosse prestar muita atenção em mim.
Isso até eu chegar à Instalação de Segurança C, onde a coisa ia ficar
definitivamente complicada.
— Peguei — disse Seth olhando fixamente para o painel do rádio. —
Acabo de ouvir "Segurança da Trion" e alguma outra coisa Trion.
— Ok — falei. — Continue ouvindo e me avise se houver algo que eu
deva saber.
— Quanto tempo você calcula que vai durar?
Contive a respiração.
— Pode ser meia hora. Ou dez minutos. Depende do andamento das
coisas.
— Tenha cuidado, Cas.
Balancei a cabeça.
— Espere — ele tinha visto um grande balde amarelo sobre rodas, da
limpeza, e o rolou na minha direção —, leve este balde.
— Boa ideia.
Olhei por um instante para o meu velho amigo, querendo dizer algo
como "deseje-me sorte", mas concluí que ia parecer muito nervoso e
piegas. Em vez disso, levantei o polegar, como se eu estivesse calmo
apesar de tudo aquilo.
— Vejo você aqui — falei.
— Ei, não se esquece de ligar o rádio — disse ele, apontando meu
Motorola.
Sacudi a cabeça ante o meu esquecimento e sorri.
Abri a porta lentamente, dei uma olhada, não vi ninguém e saí,
fechando a porta atrás de mim.
86
Quinze metros adiante, havia uma câmera de segurança montada na
parede, perto do teto. E sua minúscula lâmpada vermelha piscava.
Wyatt disse que eu era um bom ator, e agora eu realmente precisava
ser. Precisava parecer à vontade, um tanto entediado, ocupado e, acima de
tudo, calmo. O que exigia uma certa capacidade de representar.
Continue assistindo ao canal meteorológico ou seja o que for que
esteja vendo agora, desejei mentalmente, com o pensamento em quem
estivesse no centro de comando.
Beba o seu café, coma seus donuts. Discuta futebol ou basquete. Não
preste atenção ao homem atrás da cortina.
Minhas botas de trabalho rinchavam baixinho enquanto eu descia o
corredor acarpetado, empurrando o balde sobre rodas. Ninguém por perto.
Um alívio.
Não, pensei, na verdade seria melhor se houvesse gente andando por
perto. Tirava o foco de cima de mim. É, talvez. É melhor aceitar as coisas
como são. Tomara que ninguém pergunte aonde estou indo.
Virei numa área grande com uma fazenda de cubículos. Exceto por
algumas luzes de emergência, tudo às escuras.
Empurrando o balde por um corredor bem no meio da sala, pude ver
mais câmeras de segurança. As placas nos cubículos, os pôsteres estranhos
e sem graça, tudo indicava que eram engenheiros que trabalhavam ali. Em
uma prateleira acima de um dos cubículos, havia uma boneca Love Me
Lucille, olhando com malevolência para mim.
Só eu estou fazendo meu trabalho, lembrei a mim mesmo.
Do outro lado daquela área aberta, eu sabia — por ter visto no mapa —
que um corredorzinho dava diretamente na metade fechada do andar. Um
cartaz na parede (INSTALAÇÃO DE SEGURANÇA C — ADMISSÃO APENAS DO
PESSOAL AUTORIZADO, e uma seta) confirmaram o que eu pensava.
Aquilo ia ser muito mais mole do que eu esperara. Claro que havia
sensores de movimento e câmeras de vigilância espalhados em toda a
volta da entrada da área.
Mas se o telefonema que eu dera para a segurança na véspera tivesse
funcionado, os sensores de movimento estariam desligados.
Evidentemente, eu não podia ter certeza disso. Saberia em poucos
segundos, quando chegasse mais perto.
As câmeras quase certamente estariam funcionando, mas eu tinha um
plano para isso.
De repente um barulho alto me assustou, um trinado agudo produzido
pelo meu Motorola.
— Jesus — murmurei, o coração disparado.
— Adam — veio a voz de Seth, ofegante.
Comprimi o botão do lado do aparelho para falar:
— Eu.
— Temos um problema.
— Como assim?
— Volte aqui.
— Por quê?
— Volte aqui, porra!
Que merda.
Dei meia-volta, larguei o balde e comecei a correr até que me lembrei
de que estava sendo observado. Obriguei-me a caminhar lentamente. O
que diabo poderia ter acontecido? Será que as cordas nos denunciaram? A
grade de ventilação teria caído? Ou alguém teria entrado na sala dos
aparelhos e encontrado Seth?
O caminho de volta levou uma eternidade. A porta de uma sala logo à
minha frente abriu-se e por ela saiu um homem de meia-idade. Vestia uma
calça marrom de malha dupla de poliéster e uma camisa amarela de manga
curta. Devia ser um engenheiro mecânico veterano. Ou tinha começado a
trabalhar muito cedo ou talvez tivesse passado a noite toda em claro. Ele
me deu uma espiada e depois olhou para o carpete sem dizer nada.
Eu era um faxineiro. Eu era invisível.
Mais de vinte câmeras de vigilância tinham capturado minha imagem,
mas eu não ia atrair a atenção de ninguém. Eu era um cara da limpeza, um
sujeito da manutenção.
Devia mesmo estar ali onde estava. Ninguém me olharia duas vezes.
Cheguei finalmente à sala dos aparelhos onde Seth ficara. Parei diante
da porta, atento para ouvir vozes, preparado para sair correndo se fosse
preciso, se alguém estivesse lá dentro com Seth, mesmo que eu não
quisesse deixá-lo ali. A única coisa que ouvi foi o rádio que pegava a
frequência da polícia, mais nada.
Abri a porta com um empurrão. Seth estava em pé logo do outro lado,
com o rádio perto do ouvido.
Ele parecia em pânico.
— Temos que dar o fora daqui — murmurou.
— O que...
— O cara do telhado. No sétimo andar, aliás. O cara da segurança que
nos levou ao telhado.
— O que é que tem ele?
— Deve ter voltado ao telhado. Por curiosidade, qualquer coisa. Olhou
para baixo, não nos viu. Viu as cordas e os equipamentos e não viu os
lavadores de janelas. Entrou em pânico. Não sei, deve ter ficado com medo
de que tivesse acontecido alguma coisa conosco, quem sabe.
— O quê?
— Escute!
No meio da confusão que saía do rádio da polícia, entendi quatro
palavras:
— Andar por andar, câmbio!
E, em seguida:
— Unidade Bravo, cadê você?
— Aqui Bravo, câmbio.
— Bravo, suspeita de entrada ilegal no prédio, ala D. Aparentemente
lavadores de janelas... equipamento abandonado no telhado, nenhum sinal
dos operários. Quero uma busca andar por andar de todo o prédio. Isto é
um Código Dois. Bravo, seus homens cobrem o primeiro andar, câmbio.
— Entendido.
Olhei para Seth.
— Acho que Código Dois significa urgente.
— Eles estão vasculhando o prédio — murmurou Seth, sua voz
escassamente audível sobre o ronco das máquinas. — Temos que dar o
fora desta merda!
— Como? — sussurrei de volta. — Não podemos lançar as cordas,
mesmo que elas ainda estivessem nos respectivos lugares! E com certeza
absoluta não conseguiremos passar pela segurança deste andar!
— O que diabos nós vamos fazer?
Inalei fundo, exalei, tentei pensar com clareza. Tive vontade de fumar
um cigarro.
— Está certo. Encontre um computador, qualquer computador. Entre
na página de procedimentos de segurança da companhia, veja onde são os
pontos de saída. Estou falando de elevadores de carga, escadas de
incêndio, o que for. Qualquer jeito de sairmos daqui, mesmo que tenhamos
que pular.
— Eu? E o que é que você vai fazer?
— Vou voltar lá.
— O quê? Você está querendo me sacanear. Este prédio está pululando
de guardas de segurança, seu débil mental!
— Eles não sabem onde nós estamos. Tudo o que sabem é que há
alguém na ala D — que tem sete andares.
— Jesus, Adam!
— Nunca mais terei esta chance — falei, correndo para a porta. Sacudi
meu Motorola Talkabout para ele.
— Diga-me quando encontrar uma saída. Vou para a Instalação de
Segurança C. Vou pegar aquilo que nós viemos buscar.
87
Não corra.
Eu tinha que ficar me lembrando a toda hora para não correr. Fique
calmo. Segui pelo corredor tentando parecer blasé, quando, na verdade,
minha cabeça estava prestes a explodir. Não olhe para as câmeras.
Estava a meio caminho da grande área aberta com cubículos quando
meu walkie-talkie chamou, dois rápidos toques. — hein?
— Escuta, cara, estão me pedindo uma identificação. O computador,
para entrar na página da segurança.
— Que merda, sim, claro.
— Quer que eu me identifique como você?
— Meu Deus, do céu, não! Use... — Peguei o bloquinho de espiral. —
Use CPierson — soletrei para ele enquanto continuava a andar.
— Senha? Tem uma senha?
— MJ vinte e três — li.
— MJ...?
— Deve ser por causa do Michael Jordan.
— Oh, certo, certo. Vinte e três é o número do Michael Jordan. Esse
cara é um desses jogadores infernais de basquete?
Por que Seth estaria tagarelando sem parar? Ele devia estar
completamente apavorado.
— Não — falei, distraído, quando entrei na área dos cubículos. Tirei o
capacete amarelo e os óculos de segurança, de que não precisava mais, e
guardei debaixo de uma mesa ao passar. — Não, é só arrogante, como o
Michael Jordan. Ambos pensam que são os melhores. E só um deles está
certo.
— Tudo bem, já entrei — disse ele. — Você falou na página da
segurança, não foi?
— Procedimentos de segurança da companhia. Veja o que consegue
encontrar sobre a plataforma de carga, se é possível ter acesso a ela usando
o elevador de carga.
Pode ser que seja a nossa melhor rota de fuga. Preciso ir.
— Anda depressa — disse ele.
Diante de mim havia uma porta de aço pintada de cinza com uma
janelinha em forma de losango reforçada por uma grade de arame. Um
cartaz na porta dizia SOMENTE PESSOAL AUTORIZADO.
Aproximei-me lentamente, meio de lado, e olhei pela janelinha. Do
outro lado havia uma sala de espera pequena e de aparência industrial. O
piso era de concreto.
Contei duas câmeras de circuito fechado de televisão montadas bem
alto na parede, perto do teto. Com as luzes vermelhas piscando. Estavam
ligadas. Vi também os dois pequenos botões brancos em cada canto da
sala: deviam ser os detectores de movimentos que funcionavam com raios
infravermelhos. Não havia, contudo, luzinhas de LED acesas nos sensores
de movimento, pensei. Não tinha certeza, mas podiam estar desligadas.
Podia ser que a segurança tivesse mesmo desligado os sensores por
algumas horas.
Com uma das mãos eu segurava uma prancheta, tentando parecer
oficial, como se estivesse obedecendo a instruções escritas. Com a outra
mão, tentei a maçaneta.
Estava trancada. Montado na parede à esquerda da moldura da porta
havia um pequeno sensor de proximidade, exatamente como os demais que
podiam ser vistos em todo o prédio. Será que o cartão de Alana o abriria?
Peguei a cópia que eu fizera e agitei-a diante do sensor, torcendo para que
a luz vermelha passasse a verde.
Aí ouvi uma voz.
— Ei, você!
Virei-me lentamente. Um guarda de segurança da Trion corria na
minha direção, com outro guarda imediatamente atrás.
— Imóvel! — gritou o primeiro homem.
Puxa vida, que merda! Meu coração pulava dentro do peito. Apanhado.
E agora, Adam?
Olhei para os guardas, minha expressão passando de assustada para
arrogante. Respirei fundo. E, falando baixo, perguntei:
— Já encontrou?
— Hein? — perguntou o primeiro guarda, parando.
— O seu maldito intruso! — respondi, minha voz mais alta. — O
alarme tocou cinco minutos atrás e vocês ainda estão correndo por aí de
um lado para o outro como idiotas, coçando os rabos!
Você pode fazer isso, eu disse a mim mesmo. Isso é o que você sabe
fazer.
— Senhor? — exclamou o segundo guarda. Os dois ficaram imóveis,
olhando para mim, perplexos.
— Seus débeis mentais, vocês têm ideia de onde foi o ponto de
entrada? — Eu gritava como um sargento dando instruções. — Vocês
acham que nós poderíamos ter facilitado as coisas para vocês? Pelo amor
de Deus, primeiro façam uma verificação no perímetro exterior, essa é a
primeira coisa. Página vinte e três do maldito manual! Façam isso e
encontrarão uma grade de ventilação fora do lugar.
— Grade de ventilação? — indagou o primeiro.
— Vamos ter que pintar com tinta fluorescente a nossa trilha?
Deveríamos ter dado a vocês convites para uma auditoria de surpresa de
segurança Bendix? Realizamos este exercício em três áreas deste prédio na
semana passada, e vocês são o pior bando de amadores que já vi.
Peguei a prancheta e a caneta presa nela e comecei a escrever.
— Ok, quero nomes e números de matrícula, os números que estão nos
crachás. Vocês! — os dois guardas tinham começado a bater em retirada,
retraindo lentamente. — Voltem aqui para perto de mim, porra! Pensam
que segurança da corporação é só ficar comendo Krispy Kremes? Cabeças
vão rolar, prometo a vocês, quando entregarmos o nosso relatório.
— McNamara — disse o segundo guarda, relutantemente.
— Valenti — informou o primeiro.
Escrevi os dois nomes.
— Números do crachá? Puxa vida, Cristo meu — olha só, um de vocês
abra esta maldita porta e depois os dois deem o fora.
O primeiro se aproximou do leitor de cartões e balançou o cartão de
identidade na frente dele. Ouviu-se um clique e a luz virou verde.
Eu estava sacudindo a cabeça com uma expressão de nojo quando abri
a porta. Os dois guardas se viraram e começaram a percorrer o corredor.
Ouvi o primeiro dizer para o outro, emburrado:
— Vou entrar em contato com o despachante agora mesmo. Não estou
gostando nem um pouco de nada disso.
Com o coração batendo com tanta força que todo mundo devia estar
ouvindo, eu tinha conseguido abrir caminho à base de mentiras, mas sabia
que tudo o que conseguira fora comprar dois minutinhos. Os guardas
entrariam em contato com o despachante que os controlava e descobririam
imediatamente a verdade. Não havia nenhuma "auditoria de surpresa de
segurança" sendo levada a efeito. E voltariam para se vingar.
Observei o sensor de movimento montado no alto da parede do
pequeno vestíbulo, esperando ver uma luz acender, mas não houve nada.
Quando os sensores de movimento são ligados eles disparam as
câmeras e as orientam na direção de qualquer objeto semovente. Só que os
sensores estavam desligados. O que significava que as câmeras não se
moveriam. Engraçado. Meacham e seu cara tinham me treinado para
vencer sistemas de segurança muito mais sofisticados. Talvez Meacham
tivesse razão — esquece os filmes, na vida real a segurança das
corporações sempre tende a ser mais primitiva.
Agora eu podia entrar no pequeno saguão sem ser visto pelas câmeras,
que ficavam apontadas para a porta que abria diretamente dentro da
Instalação de Segurança C. Dei alguns passos experimentais para dentro,
colando as costas na parede. Andei de lado furtivamente para cima de uma
das câmeras, vindo de trás. Eu estava no ponto cego da câmera, sabia
disso. Ela não podia me ver.
Foi então que o Talkabout Motorola gritou de volta à vida.
— Dê o fora daqui! — guinchou a voz de Seth. — Todos já receberam
ordens de se dirigir para o quinto andar. Acabo de ouvir!
— Não posso, estou quase lá dentro! — gritei de volta.
— Mexa-se! Jesus do céu, dê o fora daí!
— Não... não posso! Ainda não!
— Cassidy...
— Seth, vê se me escuta. Você tem que dar o fora daqui do prédio...
escadas, elevador de carga, o que for. Espere por mim no furgão do lado de
fora.
— Cassidy...
— Vai! — berrei e desliguei o rádio.
Uma explosão sonora me sacudiu — um hoo-ah gutural e mecânico
trombeteado por uma buzina de alarme em algum ponto muito próximo.
Agora o quê? Eu não podia parar ali, a tão poucos metros da entrada do
projeto AURORA! Não assim tão perto!
O alarme continuou, hoo-ah, hoo-ah, ensurdecedoramente alto, como
uma sirene de ataque aéreo.
Puxei uma lata de spray que trouxera num dos bolsos do macacão...
uma lata de Pam, aquele aerossol de óleo de cozinha — levantei na direção
da câmera e apertei o gatilho, recobrindo a lente de óleo. Dava para ver a
mancha em cima da lente. Feito.
A sirene continuou a berrar.
Agora a câmera estava cega, seu sistema ótico derrotado — mas não de
um modo que obrigatoriamente chamasse a atenção. Quem quer que
estivesse olhando a televisão veria a imagem subitamente ficar borrada.
Talvez culpassem o upgrade da rede interna de que tinham sido avisados.
A imagem borrada provavelmente não chamaria muita atenção numa
bancada de monitores de TV. Era essa a ideia, de qualquer modo.
Agora, porém, o planejamento cuidadoso que eu formulara parecia
quase inútil, porque eles estavam vindo, eu podia ouvi-los. Os mesmos
guardas que eu acabara e tapear? Outros? Eu não tinha ideia, claro, mas
eles estavam vindo.
Talvez eu ainda conseguisse.
Se me apressasse. Uma vez dentro do laboratório do AURORA, eles
provavelmente não iriam atrás de mim, ou pelo menos não seria tão fácil.
A menos que dispusessem de algum tipo de autorização para passar por
cima de tudo, o que parecia improvável.
Talvez nem soubessem que eu estava ali.
Quer dizer, se eu conseguisse entrar.
Circulei a saleta, mantendo-me fora do alcance da câmera até chegar
diante da outra. Parado em um ponto cego, estiquei-me e espalhei mais um
pouco de óleo na lente.
Agora a Segurança não poderia me ver com a ajuda dos monitores, não
poderiam ver o que eu estava prestes a tentar. Quase. Mais alguns
segundos — eu esperava — e estaria no interior do AURORA.
Sair seria outra história. Eu sabia que havia um elevador de carga ali
perto, elevador esse que não podia ser acessado pelo lado de fora. Será que
o crachá de Alana o ativaria? Eu com certeza esperava que sim. Era minha
única oportunidade.
Droga, eu mal podia pensar direito com aquela sirene tocando, as
vozes ficando cada vez mais altas, os passos mais próximos. Minha mente
disparou loucamente.
Será que os guardas de segurança teriam conhecimento da existência
do AURORA? Qual era o nível do sigilo com que aquele segredo fora
guardado? Se não soubessem do AURORA talvez não conseguissem
entender o que eu queria. Podia ser que estivessem percorrendo os
corredores, numa espécie de busca louca e descoordenada, à procura do
segundo intruso.
Montado na parede, imediatamente à esquerda de uma reluzente porta
de aço, havia uma caixinha bege: um aparelho Identix para identificação
de digitais.
Do bolso da frente do macacão, tirei o estojo de plástico claro e de
dentro dele removi, com os dedos trêmulos, a fita com a impressão do
polegar de Alana, com suas espirais capturadas em trações de pó de
grafite.
Comprimi gentilmente a fita sobre o scanner, no local onde
normalmente a pessoa colocaria o polegar, e esperei que o LED trocasse de
vermelho para verde.
E nada aconteceu.
Não, por favor, meu Deus, pensei desesperado, meu cérebro
desorientado pelo terror e pelo insuportavelmente alto hoo-ah do alarme.
Faça com que funcione. Por favor, Deus.
A luz continuou vermelha, teimosamente vermelha. Nada aconteceu.
Meacham me dera uma longa lição sobre como derrotar scanners
biométricos, e eu praticara um número incontável de vezes até me
convencer de que já sabia. Alguns leitores eram mais difíceis de vencer
que outros, dependendo da tecnologia que usassem. Aquele era um dos
tipos mais comuns, com um sensor ótico interno. E o que eu devia fazer
costumava funcionar, segundo as estatísticas, noventa por cento das vezes
em que se tentasse. Em noventa por cento das vezes aquele maldito truque
funcionava!
Claro, há também os outros dez por cento, pensei, quando ouvi as
passadas estrondarem mais perto. Eles estavam próximos de mim, sem
dúvida. Talvez a poucos metros de distância, na fazenda dos cubículos.
Merda, não estava funcionando!
Quais eram os outros truques que tinham me ensinado?
Alguma coisa acerca de um saco plástico cheio de água... mas eu não
tinha nada parecido com um saco plástico comigo... Como era mesmo? As
impressões antigas permaneciam na superfície do sensor como impressões
em um espelho, o resíduo oleoso da pele de quem tinha sido admitido. As
impressões antigas podiam ser reativadas com umidade... Sim, parece
estrambótico, mas não mais que usar um pedaço de fita adesiva com uma
impressão digital colada nela. Inclinei-me, pus as mãos em concha em
torno do sensor e bafejei em cima. Meu bafo condensou imediatamente, ao
atingir o vidro. Desapareceu num segundo, mas demorou-se o suficiente...
Um bip, que soou quase como um chilrear de um passarinho. Um som
feliz.
Surgiu uma luz verde na caixa.
Eu passei. A umidade do meu bafo tinha ativado uma impressão velha.
Enganei o sensor.
A reluzente porta de aço que dava para a Instalação de Segurança C
deslizou lentamente sobre seus trilhos ao mesmo tempo que a outra porta
atrás de mim se abria, e eu ouvi:
— Pare aí!
E de novo:
— Pare aí!
Fiquei olhando fixamente para o imenso espaço que era a Instalação de
Segurança C, e não pude acreditar no que estava vendo. Meus olhos não
conseguiram fazer sentido do que viam.
Eu tinha que ter cometido um erro.
Aquele não podia ser o local certo.
Eu estava olhando para a área marcada como Instalação de Segurança
C. Esperava ver equipamentos de laboratórios e bancadas de microscópios
eletrônicos, salas limpíssimas, supercomputadores e rolos de cabos de
fibras óticas...
Em vez disso, o que vi foram paredes nuas de concreto, vigas de aço,
pó de gesso e restos de construção.
Um imenso espaço cujo conteúdo tinha sido removido. Não havia nada
aqui.
Onde estava o projeto AURORA? Eu estava no lugar certo, mas não
havia nada ali.
Só então me veio à cabeça um pensamento que fez o chão debaixo dos
meus pés ceder e balançar: haveria de fato um projeto AURORA, afinal de
contas?
— Não mexa um puto de um músculo! — alguém gritou atrás de mim.
Obedeci.
Não me virei para encarar os guardas. Fiquei imóvel. Eu não poderia
me mover mesmo se quisesse.
88
Boquiaberto e zonzo, eu me virei lentamente e vi um bando de
guardas, cinco ou seis, e, em meio deles, alguns rostos conhecidos. Dois
deles eram os caras que eu tinha posto para correr, que estavam de volta,
furiosos.
O guarda de segurança, o preto que me pegara na sala de Nora... qual
era mesmo o nome dele? O cara que tinha um Mustang? Estava apontando
uma pistola para mim.
— Senhor... Sr. Sommers? — ele indagou, espantado.
Ao lado dele, de jeans e camiseta que parecia ter vestido um segundo
atrás, o cabelo louro despenteado, estava Chad, com o telefone celular na
mão. Eu soube na mesma hora por que ele estava ali: devia ter tentado
entrar na rede, descobrira que já estava conectado e telefonara...
— É Cassidy o nome dele. Chame Goddard! — Chad berrou para o
guarda. — Chame a porra do diretor-presidente!
— Não, cara, não é assim que a gente trabalha — disse o guarda ainda
com a arma apontada para mim. — Recua!- ele gritou. Dois outros guardas
estavam se separando para cada um dos lados. — Não se telefona para o
presidente, cara. Você telefona para o diretor de segurança. Depois espera
a polícia. São as ordens que eu tenho.
— Ligue para a porra do presidente! — Chad gritou de novo,
balançando o celular. — Tenho aqui o número da casa dele. Não me
interessa que horas são. Quero que Goddard saiba o que o seu maldito
assistente executivo, esse vigarista de merda, fez!
Chad apertou uns botões no telefone e o levou ao ouvido.
— Seu panaca — disse ele para mim. — Você está completamente
fodido.
Passou-se longo tempo antes que alguém respondesse.
— Sr. Goddard — disse Chad, falando baixo, em tom respeitoso. —
Sinto muito ligar a esta hora da manhã, mas é extremamente importante.
Meu nome é Chad Pierson e eu trabalho na Trion.
Chad falou por mais alguns minutos e, lentamente, seu sorriso maligno
começou a desaparecer.
— Sim, senhor — disse ele.
Ele empurrou o telefone na minha direção, parecendo ter perdido o
entusiasmo.
— Ele disse que quer falar com você.
Parte Nove

MEDIDAS ATIVAS

MEDIDAS ATIVAS: Expressão russa para operações de inteligência que


afetam
políticas ou ações de outra nação. Podem ser secretas ou descobertas
e incluem uma enorme variedade de atividades, inclusive assassinatos.

— Spy Book: The Encyclopedia of Espionage


89
Já eram quase seis da manhã quando os seguranças me trancaram em
uma sala de reuniões do quinto andar sem janelas, apenas com uma porta.
A mesa estava literalmente apinhada de blocos de anotações cobertos de
garatujas e garrafas de Snapple vazias. Havia um projetor de
transparências, um quadro branco que não tinha sido apagado e, por sorte,
um computador.
Goddard — parecendo estranhamente calmo — dissera que queria
falar comigo quando chegasse para trabalhar. Não quis ouvir nada, o que
foi bom, porque eu também não sabia o que dizer.
Mais tarde eu soube que Seth tinha conseguido dar o fora do prédio,
mesmo que sem o furgão. Tentei mandar um e-mail para Jock. Como ainda
não sabia como poderia me explicar, escrevi apenas:

Jock
Preciso falar. Quero explicar.
Adam

Mas não houve resposta.


Lembrei-me, de repente, que ainda tinha meu celular — eu o enfiara
em um dos meus bolsos e eles não o tinham visto. Liguei. Havia cinco
mensagens, mas antes que pudesse checar meu correio de voz, o telefone
tocou.
— Adam. Oh, que merda, cara — era Antwoine. Parecia desesperado.
Quase histérico. — Oh, cara. Oh, merda. Não quero voltar para a cadeia.
Merda, não quero voltar para a cadeia.
— Antwoine, de que você está falando? Comece do princípio.
— Uns caras tentaram invadir o apartamento do seu pai. Devem ter
pensado que estava vazio.
Senti uma onda de irritação. Será que os garotos do bairro ainda não
tinham se dado conta de que não havia nada naquela merda do
apartamento de meu pai que valesse a pena um arrombamento?
— Jesus, você está bem?
— Oh, eu estou bem. Dois deles fugiram, mas eu agarrei o mais mole.
Oh, que merda! Puxa vida, cara, eu não quero me meter em encrenca
agora. Você tem que me ajudar.
Aquela era uma conversa que eu realmente não estava querendo ter,
não naquela hora. Podia ouvir uma espécie de ruído animal no fundo, um
gemido, barulho de briga ou coisa que o valha.
— Acalme-se, homem. Respire fundo e sente-se.
— Estou sentado em cima do filho da puta. O que está me assustando
nele é que diz que conhece você.
— Me conhece? — de repente eu tive um estranho pressentimento. —
Descreva ele, é possível?
— Não sei, ele é um cara branco...
— A cara dele, Antwoine.
Antwoine pareceu sem graça.
— Neste exato instante? Vermelha e empastada. Meio mal. Acho que
quebrei o nariz dele.
Suspirei.
— Oh, Antwoine, pergunte qual é o nome dele.
Antwoine largou o telefone. Ouvi o ressoar grave da voz dele, seguido
imediatamente por um grito. Ele voltou para o telefone.
— O cara diz que se chama Meacham.
Visualizei a imagem de Meacham, quebrado e sangrando, deitado no
chão da cozinha do meu pai debaixo dos cento e cinquenta quilos de
Antwoine Leonard e senti um breve e abençoado espasmo de prazer.
Talvez eu tivesse sido seguido quando fui ao apartamento de meu pai.
Talvez Meacham e seus brutamontes imaginassem que eu tinha escondido
alguma coisa lá.
— Oh, eu não me preocuparia com isso — falei. — Garanto que esse
idiota não vai lhe causar mais nenhum problema.
Pensei com os meus botões, se eu fosse Meacham ia procurar o
programa de proteção de testemunhas.
Antwoine pareceu aliviado.
— Olha, eu realmente sinto pelo que houve, cara.
— Sente? Não se desculpe, Antwoine. Pode acreditar no que lhe digo,
esta foi a primeira boa notícia que ouço em muito tempo.
E provavelmente seria a última.
Imaginei que tinha algumas horas para morrer antes de Goddard
aparecer, e vi que não ia ser possível ficar ali me angustiando com o que
tinha feito ou com o que fariam comigo. E assim, fiz o que sempre faço
para passar o tempo: entrei na Internet.
Foi como comecei a colocar os pingos nos is.
90
A porta da sala de conferência abriu-se. Era um dos guardas de
segurança de antes.
— O Sr. Goddard está lá embaixo na entrevista coletiva — disse o
guarda. Era um homem alto, com cerca de quarenta anos, óculos de aros
metálicos. Seu uniforme azul da Trion caía-lhe muito mal. — Ele disse
para o senhor descer para o Centro de Visitantes.
Balancei a cabeça.
O saguão principal do Prédio A estava uma loucura de tanta gente,
vozes altas, fotógrafos e repórteres por toda a parte. Saltei do elevador
direto naquele caos, sentindo-me desorientado. Não consegui realmente
distinguir o que qualquer pessoa estivesse dizendo naquela algazarra; para
mim era tudo barulho de fundo. Uma das portas que dava no imenso
auditório construído em estilo futurista se abria e fechava a toda hora. E
assim eu podia vislumbrar a imagem gigantesca de Jock Goddard
projetada em uma tela e ouvir sua voz amplificada.
Abri caminho a cotoveladas por entre a multidão. Pensei ter ouvido
alguém chamar meu nome, mas continuei em frente, deslocando-me
vagarosamente, como um zumbi.
O piso do auditório ia descendo até a base cintilante de um palco, onde
Goddard estava iluminado por um spotlight, usando sua camisa preta de
gola alta e um paletó de tweed marrom. Parecia um professor de literatura
em uma pequena faculdade da Nova Inglaterra, exceto pela maquiagem
alaranjada no rosto. Atrás dele era projetada sua cabeça com quase um
metro e oitenta de altura.
O lugar estava atulhado de jornalistas e deslumbrantemente brilhante
com as luzes da televisão.
— ... Esta aquisição — ele estava dizendo — duplicará o tamanho de
nossa força de venda e duplicará também, sendo que em alguns setores
triplicará, a nossa penetração no mercado.
Eu não sabia do que ele estava falando, e fiquei parado lá no fundo do
teatro, ouvindo.
— Ao juntar duas grandes companhias, estamos criando uma líder da
tecnologia em escala mundial. A Trion Systems é agora, sem questão, uma
das principais companhias eletrônicas destinadas a atender ao mercado
consumidor.
"E eu gostaria também de fazer uma outra declaração — prosseguiu
Goddard, com um de seus sorrisos de duende travesso. — Sempre
acreditei na importância de retribuir.
Assim, na manhã de hoje, a Trion tem a imensa satisfação de anunciar
o estabelecimento de uma nova fundação de caridade que é, no mínimo,
empolgante. Começando com a semente de uma doação de cinco milhões
de dólares, esta nova fundação espera, no decurso dos próximos anos,
colocar computadores em milhares de escolas públicas nos Estados
Unidos, nos distritos escolares que não dispuserem de recursos para
proporcioná-los a seus alunos. Nós pensamos que este é o melhor meio de
terminar com a exclusão digital. Trata-se de uma empreitada que sempre
acompanhou tudo o que fizemos aqui na Trion. Nós a chamamos de
Projeto AURORA — em homenagem a AURORA, a deusa grega da
madrugada. Acreditamos que o AURORA representará a madrugada de um
brilhante e novo futuro para todos nós neste grande país.
Houve um salva de aplausos polidos.
— Finalmente, permitam-me desejar calorosas boas-vindas para os
quase trinta mil talentosos e trabalhadores empregados da Wyatt
Communications que agora passam a fazer parte da família Trion. Muito
obrigado.
Goddard inclinou a cabeça ligeiramente e desceu do palco. Mais
aplausos, que gradualmente foram se transformando em uma ovação
entusiástica.
A gigantesca projeção do rosto de Jock Goddard dissolveu-se, cedendo
lugar a um noticiário da televisão — o programa financeiro matinal da
CNBC, Squawk Box.
Em metade da tela, Maria Bartiromo transmitia ao vivo da Bolsa de
Valores de Nova York. Na outra metade via-se a logomarca da Trion e um
gráfico do valor de suas ações nos últimos minutos — uma linha que subia
ininterruptamente.
— Enquanto as negociações com as ações da Trion Systems atingiram
um volume recorde — ela estava dizendo —, as ações da Trion já quase
dobraram de preço e não dão mostras de reduzir o ritmo de sua
valorização, depois do anúncio feito diante do sino nesta manhã pelo
fundador da Trion e seu principal executivo, Augustine Goddard, de estar
adquirindo um de seus principais competidores, a atribulada Wyatt
Telecommunications.
Senti um tapinha no ombro. Era Flo, elegante, uma expressão grave no
rosto. Usava um fone de ouvido sem fio.
— Adam, quer fazer o favor de ir à Suíte Executiva de Recepções da
Cobertura? Jock quer falar com você.
Balancei a cabeça afirmativamente mas continuei de olho na televisão.
Na verdade era incapaz de pensar claramente.
Agora a imagem da tela gigantesca mostrava Nick Wyatt sendo
escoltado para fora da sede da Wyatt por uma dupla de guardas. A tomada
feita com uma lente grande angular pegou os vidros espelhados do prédio,
a grama cor de esmeralda do lado de fora, onde se espalhava um bando de
jornalistas. Podia-se ver que ele estava ao mesmo tempo furioso e
humilhado enquanto fazia sua caminhada de quem cometera um crime.
— A Wyatt Telecommunications era uma companhia perseguida por
dívidas, em um total de quase três bilhões de dólares, quando vazou a
surpreendente notícia no final da tarde de ontem que o extravagante
fundador da companhia, Nicholas Wyatt, tinha assinado um acordo secreto
e desautorizado, sem o voto ou mesmo o conhecimento de sua junta de
diretores, para adquirir uma pequena firma com base na Califórnia
chamada Delphos, uma companhia minúscula sem qualquer receita, por
quinhentos milhões de dólares em dinheiro vivo — estava dizendo Maria
Bartiromo.
A câmera deu um zoom para mostrar o homem mais de perto. Alto e
corpulento, o cabelo rebrilhando como esmalte preto, pele cor de cobre.
Nick Wyatt em pessoa.
A câmera se aproximou mais ainda. Sua camisa justa de seda cinza
estava manchada de suor. Ele foi colocado em um carro grande. "Que foi
que fizeram comigo?", dizia a expressão do seu rosto. Eu conhecia o
sentimento.
— Essa compra deixou a Wyatt sem recursos suficientes para cobrir o
pagamento dos seus débitos. A junta de diretores da companhia se reuniu
ontem à tarde e anunciou a despedida do sr. Wyatt por grosseiras violações
das normas de administração da empresa, momentos antes dos acionistas
forçarem a venda da Wyatt Telecommunications para a Trion Systems a
um preço de liquidação de dez centavos de dólar. Não conseguimos ouvir
diretamente o sr. Wyatt, mas um porta-voz da empresa disse que ele
resignava para passar mais tempo com sua família. Nick Wyatt é solteiro e
não tem filhos. David?
Outro tapinha no meu ombro.
— Desculpe, Adam, mas ele quer ver você agora.
91
Na subida para a cobertura, o elevador parou na cafeteria e um homem
de camisa estampada havaiana e rabo-de-cavalo entrou.
— Cassidy — disse Mordden. Ele segurava um pãozinho de canela e
um café, e não pareceu surpreso por me ver. — O Sammy Glick1 do
microchip. Consta que as asas de Ícaro derreteram.
Balancei a cabeça, concordando.
Ele fez uma espécie de reverência.
— É verdade o que dizem — prosseguiu Mordden. — A experiência é
algo que não se consegue senão depois de se precisar dela.
— É.
Ele apertou um botão e guardou silêncio enquanto as portas se
fecharam e a cabine começou a subir. Éramos agora só ele e eu.
— Estou vendo que você está indo para a cobertura. A Suíte Executiva
de Recepções. Imagino que não esteja recebendo dignitários ou executivos
japoneses.
Limitei-me a ficar olhando para ele.
— Agora você talvez finalmente compreenda a verdade sobre o nosso
intrépido líder.
— Não, não acredito que eu vá entender. Para falar a verdade, não
entendo nem mesmo você. Por alguma razão, você é a única pessoa aqui
que tem o maior desprezo por Goddard, todo mundo sabe disso. Você é
rico. Não precisa trabalhar. E, no entanto, ainda está aqui.
Ele deu de ombros.
— Por livre escolha minha. Já lhe falei, sou à prova de fogo.
— O que diabos isso significa, afinal? Olha, você nunca mais vai me
ver de novo. Pode me contar agora. Já estou fora daqui. Estou morto.
— Sim, atropelado na estrada, acredito que seja a expressão usada por
aqui — ele piscou uma vez. — Na verdade, vou sentir falta de você.
Milhões não sentirão.
Ele estava fazendo piada, mas eu sabia que no fundo estava tentando
dizer algo sincero. Por alguma razão, ele realmente gostara de mim. Ou
talvez fosse apenas piedade. Com um sujeito como Mordden era difícil
dizer.
— Chega de charadas — falei. — Quer me fazer o favor de explicar de
que diabos você está falando?
Mordden forçou um sorriso e fez uma imitação passável de Ernst
Stavro Blofeld.
— Já que o senhor está prestes a morrer, Mr. Bond — ele se
interrompeu. — Oh, eu gostaria de poder lhe explicar tudo, mas não posso
violar o acordo de sigilo que assinei dezoito anos atrás.
— Incomoda-se de colocar tudo em termos que minha insignificante
mente terráquea possa compreender?
O elevador parou, as portas se abriram e Mordden saltou. Ele pôs a
mão sobre uma das portas para mantê-la aberta.
— O acordo de sigilo vale agora para mim dez milhões de dólares em
ações da Trion. Talvez até duas vezes isso, aos preços de hoje. Certamente
que não será do meu interesse pôr em risco esse arranjo quebrando o
silêncio a que sou contratualmente obrigado.
— Que tipo de acordo de sigilo?
— Como já falei, não quero pôr em risco meu lucrativo arranjo com
Augustine Goddard, dizendo a você que o famoso modem foi inventado
não por Jock Goddard, um engenheiro medíocre, não obstante ser um
brilhante homem de negócios, mas pelo locutor que vos fala. Por que eu
quereria arriscar dez milhões de dólares revelando que o avanço
tecnológico que transformou esta companhia em uma usina geradora da
revolução das comunicações foi uma ideia original não do grande
empresário, mas de um de seus primeiros contratados, um engenheiro
humilde? Goddard podia ter ficado com o modem para ele de graça, como
estipulava meu contrato, mas queria o crédito todo para si. O que lhe valeu
uma boa quantidade de dinheiro. Por que eu revelaria uma coisa dessas e,
desta forma, empanaria a lenda, a excelente reputação daquele que a
Newsweek uma vez chamou de "Homem de Estado Sênior da América
Empresarial"? Certamente que não seria político da minha parte apontar o
vazio do jeito simples ao modo de Will Rogers adotado por Jock Goddard,
aquela imagem de homem do campo prático que oculta tanta brutalidade.
Pelo amor de Deus, isso seria a mesma coisa que contar a você que não há
Papai Noel. Por que eu haveria de querer desiludi-lo... e arriscar minha
excelente vida financeira?
— Você está me dizendo a verdade? — foi tudo o que pude pensar em
dizer.
— Eu não estou lhe dizendo nada — respondeu Mordden. — Não seria
do meu interesse. Adieu, Cassidy.

________________
1 Sammy Glick é o personagem principal do romance What Makes
Sammy Run? (1941), de Budd Schulberg's (1914), que narra a ascensão e
queda de Shmelka Glickstein, garoto judeu nascido no baixo East Side de
Nova York, que muito cedo na vida se decide a fugir do gueto e galgar a
ladeira do sucesso. (N. do T.)
92
Eu nunca vira nada parecido com a cobertura da ala A do prédio da
Trion.
Não tinha nada a ver com todo o resto da Trion — nada de escritórios
comprimidos ou cubículos apinhados, nada de carpete industrial
recobrindo todo o piso ou de luzes fluorescentes.
No lugar disso, havia um vasto espaço aberto com janelas que iam do
chão ao teto, através das quais rebrilhava a luz do sol. O piso era de
granito negro, havia tapetes orientais aqui e ali, as paredes eram revestidas
de um tipo qualquer de madeira tropical reluzente. O espaço era
interrompido por jardineiras, grupos de poltronas e sofás parecendo ter
sido projetados especialmente, e, bem no centro do salão, uma gigantesca
cascata livre — a água se lançava de alguma fonte oculta sobre as pedras
rosadas irregulares.
A Suíte Executiva de Recepções para receber visitas importantes:
ministros de Estado, senadores e congressistas, presidentes de grandes
corporações, chefes de Estado. Eu nunca a vira antes e não conhecia quem
tivesse visto, o que não era de admirar. Não parecia muito com o estilo
Trion. Não muito democrático. Dramático, intimidante, grandioso.
Uma mesinha redonda estava sendo posta na área entre a cascata e uma
lareira onde as chamas de gás rugiam em meio aos troncos de cerâmica.
Dois jovens latinos, um homem e uma mulher de uniforme marrom,
conversavam baixinho em espanhol enquanto arrumavam os bules de café
e de chá de prata, as cestas de folheados, jarras de suco de laranja. Mesa
para três.
Frustrado, olhei em torno, mas não havia ninguém mais. Ninguém
esperando por mim. De repente ouvi um bing e as portas de aço escovado
de um elevador de pequeno porte, situado no outro lado da sala, se
abriram.
Jock Goddard e Paul Camilletti.
Eles riam alto, ambos tontos, altos como pipas. Goddard me viu de
relance, parou no meio de uma risada e disse: — Bem, aqui está ele. Com
licença, Paul — você compreende.
Camilletti sorriu, deu uma palmadinha no ombro de Goddard e
permaneceu no elevador, enquanto o homem mais velho saía, as portas se
fechando atrás dele. Goddard atravessou o grande espaço aberto em
passadas tão largas que foi quase um trote.
— Me acompanhe até o banheiro, sim? — ele me disse. — Tenho que
me livrar desta maldita maquiagem.
Silenciosamente, segui-o até uma porta preta brilhante marcada com
pequenas silhuetas prateadas de um homem e uma mulher. As luzes se
acenderam quando entramos.
Era um aposento espaçoso, elegante, todo de vidro e mármore preto.
Goddard olhou-se no espelho. De algum modo, ele parecia mais alto.
Talvez fosse sua postura: não estava tão arqueado quanto o normal.
— Cristo, estou parecendo o Liberace — disse ele, fazendo espuma nas
mãos e começando a lavar o rosto. — Você nunca esteve aqui em cima, já?
Sacudi a cabeça, observando-o através do espelho a mergulhar o rosto
na direção da pia e levantar de novo. Sentia uma estranha mistura de
emoções — medo, raiva, choque — tão complexa que, na verdade, eu não
sabia o que sentia.
— Bem, você conhece o mundo dos negócios — ele prosseguiu. Era
quase como se pedisse desculpas. — A importância da teatralidade...
fausto, pompa e circunstância, toda essa droga. Eu dificilmente poderia ter
um encontro com o presidente da Rússia ou com o príncipe herdeiro da
Arábia Saudita em meu pobre cubículo lá de baixo.
— Parabéns — cumprimentei baixinho. — Foi uma manhã e tanto.
Ele passou a toalha no rosto.
— Mais teatro — disse, diminuindo o valor dos eventos.
— Você sabia que Wyatt ia comprar a Delphos, custasse o que custasse
— falei. — Mesmo que significasse a própria falência.
— Ele não podia resistir — confirmou Goddard. Ele jogou a toalha,
agora manchada de laranja escuro, em cima da bancada de mármore.
— Não — falei, percebendo que as batidas do meu coração
começavam a acelerar. — Não enquanto acreditasse que você estava
prestes a anunciar a grande e emocionante vitória tecnológica do chip
ótico. Mas nunca houve um chip ótico, houve?
Goddard sorriu seu sorriso de duende. Virou-se e eu o segui, saindo do
banheiro. Continuei falando: — Era este o motivo pelo qual não havia
pedido de registro de patentes, arquivos na divisão de recursos humanos...
— O chip ótico — disse Jock, quase disparando sobre os tapetes
orientais colocados entre nós e a mesa de jantar — existe apenas nas
mentes febris e nos cadernos de anotações de um punhado de profissionais
de terceira categoria de uma companhia minúscula situada em Palo Alto e
condenada à ruína. Correndo atrás de uma fantasia, que pode ou não
acontecer em dias de sua vida. Não na minha.
Ele sentou-se à mesa e fez um sinal para que eu me sentasse ao seu
lado.
Sentei-me, e os dois garçons uniformizados, que tinham se conservado
a uma distância discreta, adiantaram-se e nos serviram café. Eu me sentia
mais que assustado, furioso e confuso: eu estava profundamente exausto.
— Eles podem ser de terceira — falei —, mas você comprou a
companhia deles há mais de três anos.
Era, admito, uma simples conjectura — o principal investidor da
Delphos, de acordo com a pesquisa que eu fizera na Internet, era um fundo
de capital de risco baseado em Londres cujo dinheiro era canalizado por
intermédio de um mecanismo de investimento das Ilhas Caymán. O que
indicava que a Delphos, na verdade, era propriedade — não se levando em
conta cerca de cinco companhias que serviam de cobertura e diversos
"laranjas" — de uma empresa realmente importante.
— Você é um sujeito inteligente — disse Goddard, pegando um
pãozinho doce e atacando-o gulosamente. — A verdadeira cadeia de
propriedades é uma coisa muito difícil de se desvendar. Sirva-se de um
folheado, Adam. Esses negócios de framboesa, creme e queijo são de
matar.
Agora eu compreendia por que Paul Camilletti, um homem que cortava
todos os T e não esquecia do pingo de nenhum i, tinha convenientemente
se "esquecido" de assinar uma cláusula de proibição de venda na papelada.
Quando Wyatt viu isto, soube que tinha menos de vinte e quatro horas para
"roubar" a Delphos da Trion — sem tempo para conseguir a aprovação da
junta, o que provavelmente não teria mesmo acontecido.
Reparei na terceira cadeira vazia, e perguntei-me a quem estaria
destinada. Eu não tinha apetite, não tinha vontade de tomar café.
— Mas o único modo de fazer com que Wyatt engolisse o anzol —
falei — era a informação ter vindo de um espião que ele pensara ter
plantado dentro da Trion.
Minha voz tremia e agora o que eu sentia acima de tudo era raiva.
— Nick Wyatt é um homem muito desconfiado — disse Goddard. —
Eu o compreendo, sou igual. Ele é mais ou menos como a CIA — jamais
acredita em qualquer informação que não tenha sido obtida por intermédio
de um subterfúgio.
Tomei um gole de água, que estava tão gelada que fez minha garganta
doer. O único barulho no vasto espaço era o borbulhar e o espadanar da
cascata. A claridade machucava meus olhos. Eu me sentia animado ali
dentro, estranhamente animado. A garçonete aproximou-se com um jarro
de cristal para encher de novo meu copo de água, mas Goddard a
dispensou com um gesto.
— Muchas gracias. Vocês dois estão dispensados. Acho que temos
tudo o que precisamos aqui. Poderiam pedir aos outros convidados para se
juntar a nós, por favor?
— Não é a primeira vez que você faz isso, certo? — perguntei. —
Quem foi que me disse que sempre que a Trion esteve prestes a falir, um
de seus competidores cometia um erro desastroso e a Trion voltava mais
forte do que nunca?
Goddard me olhou de lado.
— A prática conduz à perfeição.
Minha cabeça boiava. Foi o resumé e a biografia de Paul Camilletti
que me deram a chave. Goddard o contratara tirando-o de uma companhia
chamada Celadon Data, que, na época, era a maior ameaça à existência da
Trion. Logo depois a Celadon cometeu uma gafe tecnológica lendária —
algo do tipo Betamax versus VHS — e pediu falência pouco antes da Trion
adquiri-la.
— Antes de mim, houve Camilletti — falei.
— E outros antes dele — Goddard tomou um gole de café. — Não,
você não foi o primeiro. Mas eu diria que foi o melhor.
O cumprimento doeu.
— Não entendo como você convenceu Wyatt de que a ideia de plantar
um espião na Trion podia dar certo — falei.
Goddard levantou os olhos quando o elevador chegou e as portas se
abriram, o mesmo elevador em que ele viera.
Judith Bolton. Meu coração parou.
Ela vestia um costume azul e blusa branca, e parecia muito enérgica e
muito integrante da alta direção da empresa. Seus lábios e unhas estavam
pintados de coral.
Ela se aproximou de Goddard e deu-lhe um rápido beijo nos lábios.
Depois veio para junto de mim e apertou minha mão com ambas as suas.
Deu para sentir seu suave perfume herbal e que estavam frias.
Judith sentou-se do outro lado de Goddard e desdobrou no colo um
guardanapo de linho.
— Adam está curioso para saber como você convenceu Wyatt — disse
Goddard.
— Oh, na verdade eu não tive que torcer o braço de Nick — disse ela,
com uma risada gutural.
— Você é muito mais sutil do que isso — disse Goddard.
Olhei para Judith.
— Por que eu? — perguntei, finalmente.
— Surpreende-me que você pergunte — disse ela. — Olhe só o que
fez. Você tem um dom natural. Nasceu para isso.
— Isso e o fato de vocês me terem prendido pelas bolas por causa do
dinheiro.
— Muita gente nas corporações faz o que você fez, Adam — disse ela,
inclinando-se na minha direção. — Tínhamos muitas escolhas, mas você
se destacou da multidão. Você era de longe o mais qualificado. O dom da
lisonja no tom perfeito, mais as questões do pai.
Senti-me tão furioso que não consegui continuar sentado. Levantei-me
e me virei para Goddard.
— Deixe que lhe pergunte uma coisa. O que acha que Elijah pensaria
de você agora?
Goddard me dirigiu um olhar inexpressivo.
— Elijah — repeti —, seu filho.
— Oh, meu Deus, certo, Elijah — disse Goddard, seu ar de
perplexidade lentamente se transformando em irônica alegria —, isso aí.
Certo. Bem, isso foi inspiração da Judith — ele deu uma risada.
Tive a impressão de que a sala rodava devagar e ficava cada vez mais
brilhante e com as cores mais esbranquiçadas. Goddard fitou-me com os
olhos cintilantes.
— Adam — disse Judith, toda preocupação e empatia —, sente-se, por
favor.
Permaneci em pé, olhar fixo.
— Estávamos preocupados — continuou ela — que você pudesse
começar a ficar desconfiado de tudo se resolvendo facilmente demais.
Você é um jovem extremamente intuitivo e inteligente. Tudo tinha que
fazer sentido, caso contrário começaria a mostrar do que realmente se
tratava. Não podíamos correr este risco.
Voltou-me à memória o estúdio de Goddard na casa do lago, os troféus
que eu agora sabia serem falsos. O talento de prestidigitador de Goddard, o
modo como o troféu de algum modo caíra no chão...
— Oh, você entende — disse Goddard —, o velho tem uma queda por
mim, eu faço com que se lembre do filho morto, todas essas bobagens?
Faz sentido, certo?
— Não se pode deixar essas coisas por conta do azar — falei, com a
voz inexpressiva.
— Precisamente — confirmou Goddard.
— Muito, mas muito poucas pessoas teriam sido capazes de fazer o
que você fez — disse Judith, sorrindo. — A maioria não teria sido capaz
de suportar a duplicidade e manter-se sobre uma linha dupla do modo
como você fez. Você é uma pessoa notável, espero que saiba disso. Foi por
isso que o escolhemos, antes de mais nada. E você mais que provou que
estávamos com a razão.
— Eu não acredito — murmurei. Senti as pernas bambas, os pés pouco
firmes. Tinha que dar o fora dali. — Não acredito em porra nenhuma
disso.
— Adam, eu sei como isso deve ser difícil para você — disse Judith,
gentilmente.
Minha cabeça latejava como uma ferida aberta.
— Vou tirar minhas coisas da sala.
— Não vai fazer nada disso — exclamou Goddard, incisivo. — Você
não vai se demitir. Não permitirei. Rapazes inteligentes como você são
raros demais. Preciso de você no sétimo andar.
Um raio de sol me cegou. Não consegui mais ver seus rostos.
— E você confia em mim? — perguntei, amargurado, mudando de
posição para tirar o sol da minha cara.
Goddard deixou escapar um suspiro.
— Espionagem industrial, ou entre empresas, meu rapaz, é tão
americana quanto torta de maçã e o Chevrolet. Porra, como é que você
acha que os Estados Unidos se tornaram uma superpotência econômica?
Em 1811, um ianque chamado Francis Lowell Cabot velejou para a Grã-
Bretanha e lá roubou o mais precioso segredo da Inglaterra: o tear
Cartright, pedra fundamental de toda a maldita indústria têxtil. Com isso,
ele trouxe a Revolução Industrial para cá e nos transformou num colosso.
Tudo graças a um único ato de espionagem industrial.
Eu me virei e comecei a atravessar o piso de granito. As solas de
borracha de minhas botas de trabalho rincharam.
— Chega de ser manobrado para todos os lados — falei.
— Adam — disse Goddard —, você está agindo como um perdedor
ressentido. Como seu pai. E você sabe que não é o seu caso... você é um
vencedor, Adam. Você é brilhante. Tem todas as qualidades necessárias.
Eu sorri e depois dei uma risada silenciosa.
— Querendo com isso dizer que sou um canalha mentiroso,
basicamente. Um mentiroso. Um mentiroso de primeira classe.
— Acredite em mim, você não fez nada que não seja feito todo dia em
corporações mundo afora. Olha, você tem um exemplar do Sun Tzu na sua
sala — chegou a ler? A guerra é baseada em simulações, fraudes, ardis, é o
que ele diz. E os negócios são uma guerra, todo mundo sabe disso. Os
negócios, em seu nível mais alto, não passam de estratagemas. Ninguém
vai admitir isso publicamente, mas é a verdade.
A voz dele abrandou.
— O jogo é o mesmo em toda parte. Você simplesmente tem que jogar
melhor que os outros. Não, Adam, você não é um mentiroso. Você é um
mestre estrategista de primeira qualidade.
Rolei os olhos para cima, sacudi a cabeça enojado e voltei a tomar a
direção do elevador.
Ouvi de novo a voz de Goddard, falando muito baixo.
— Você sabe quanto dinheiro Paul Camilletti ganhou no ano passado?
— Vinte e oito milhões — respondi, sem olhar para trás.
— Você poderia estar fazendo a mesma coisa em mais uns anos. Você
vale isso para mim, Adam. É realista e determinado, imaginativo e
inteligente pra cacete.
Bufei baixinho, mas não creio que ele tenha me ouvido.
— Eu já lhe disse quão grato fiquei a você por ter salvado o nosso
dinheiro no projeto Guru? Isso e mais uma dezena de coisas. Permita-me
ser específico sobre a minha gratidão. Estou lhe dando um aumento —
para um milhão por ano. Com as opções de compra de ações, tendo em
vista a valorização que nossas ações começam a ter, é bem possível que no
ano que vem você consiga lucrar cinco ou seis milhões. E dobrar isso no
ano seguinte. Você será multimilionário, Adam.
Fiquei imóvel. Não sabia o que fazer, como reagir. Se eu me virasse,
eles pensariam que eu estava aceitando. Se eu continuasse andando,
pensariam que eu estava recusando.
— Este é o círculo secreto do ouro — disse Judith. — Está lhe sendo
oferecido algo pelo qual qualquer pessoa seria capaz de matar. Mas
lembre-se: não lhe está sendo dado, você fez por merecer. Você é talhado
para essa linha de trabalho. Você é dos melhores que conheci no ramo.
Nesses últimos dois meses, sabe o que você esteve vendendo? Não
comunicadores portáteis, ou telefones celulares ou aparelhos de MP3, mas
você mesmo. Vendendo um produto chamado Adam Cassidy. E nós somos
compradores.
— Não estou à venda! — ouvi minha própria voz dizer, e me senti
instantaneamente envergonhado.
— Adam, vire-se — disse Goddard, irritado. — Vire-se, agora.
Obedeci, ressentido.
— Você sabe exatamente o que acontecerá se você for embora?
Sorri.
— Claro. Você vai me entregar. À polícia, ao FBI, ou sei lá.
— Não vou fazer nada disso — afirmou Goddard. — Não quero que
uma única palavra sobre isso venha a público. Mas sem seu carro, sem seu
apartamento, seu salário, você não terá recursos. Você não terá nada. Que
tipo de vida restará para um sujeito talentoso como você?
Eles são seus donos... Você dirige um carro da companhia, você mora
em um apartamento da companhia... A sua vida não é mais sua... Meu pai,
o relógio parado, estava certo.
Judith levantou-se e veio para bem perto de mim.
— Adam, eu compreendo o que está sentindo — disse, num murmúrio.
Tinha os olhos úmidos. — Você está magoado, está furioso. Sente-se
traído, manipulado. Quer retirar-se para a raiva protetora, segura e
reconfortante de um garotinho. É totalmente compreensível, nós todos nos
sentimos assim às vezes. Mas agora é hora de pôr de lado as coisas
infantis. Você compreende, você não caiu em nada. Você se encontrou. É
tudo muito bom, Adam. Muito bom.
Goddard estava reclinado em sua cadeira, braços cruzados. Eu podia
ver fragmentos do seu rosto refletidos no bule de prata do café, no
açucareiro.
Ele sorriu benevolente.
— Não jogue tudo fora, filho. Eu sei que você fará o que é certo.
93
Meu Porsche, apropriadamente, tinha sido rebocado. Eu estacionara
ilegalmente na noite passada, o que podia esperar?
Assim, saí do prédio da Trion e procurei um táxi, mas não consegui
achar. Suponho que podia ter usado um telefone no saguão para chamar
um, mas eu sentia uma necessidade esmagadora, quase física, de sair de lá.
Carregando a caixa de papelão branca contendo as poucas coisas da minha
sala, fui caminhando ao longo da calçada.
Poucos minutos depois um carro vermelho brilhante encostou no meio-
fio e parou a meu lado. Era um Austin Mini Cooper, mais ou menos do
tamanho de uma torradeira de pão. O vidro do lado do passageiro baixou e
eu pude sentir o exuberante perfume floral de Alana suspenso no ar da
cidade.
— Como é — ela exclamou para mim —, gostou? Acabo de comprar.
Não é fabuloso?
Balancei a cabeça e tentei um sorriso misterioso.
— Vermelho é isca para tira — falei.
— Eu nunca ultrapasso o limite de velocidade.
Limitei-me a balançar a cabeça.
Ela disse:
— Suponho que você salte de sua motocicleta e me dê uma multa?
Mais uma vez balancei a cabeça em silêncio e continuei andando, sem
disposição para brincar.
Ela chegou o carro um dedo mais para perto.
— Ei, o que foi que aconteceu com o seu Porsche?
— Rebocado.
— Droga. Para onde está indo?
— Casa. Harbor Suites.
Não seria minha casa por muito tempo, pensei, com um sobressalto. Eu
não era dono dela.
— Bem, você não vai até lá andando. Não com essa caixa. Vamos,
entra aí, eu lhe dou uma carona.
— Não, obrigado.
Ela continuou a me acompanhar, dirigindo lentamente junto ao meio-
fio.
— Oh, vamos, Adam, deixa disso, não seja maluco.
Parei, aproximei-me do Mini Cooper, larguei a caixa e pus as duas
mãos em cima do teto do carro. Não seja maluco? O tempo todo eu me
torturando por achar que a estava manipulando, e ela só estava fazendo seu
serviço.
— Você... eles lhe disseram para dormir comigo, não foi?
— Adam — ela respondeu, ponderadamente. — Caia na real. Aquilo
não fazia parte da descrição de minhas atribuições. Foi o que Relações
Humanas chamaria de benefícios complementares, certo?
Ela deu uma de suas risadas descontroladas e aquilo me gelou.
— Eles só queriam que eu orientasse, passasse algumas dicas, esse tipo
de coisa. Mas aí você deu em cima de mim...
— Eles só queriam que eu o orientasse — repeti. — Puxa vida. Puxa
vida, isso me deixa doente — peguei a caixa e voltei a caminhar.
— Adam, eu só fiz o que me disseram para fazer. Você, de todas as
pessoas deste mundo, devia entender isso.
— Vamos conseguir ser capazes de confiar de novo um no outro?
Neste exato momento — você só está fazendo o que eles querem que você
faça, não é mesmo?
— Oh, por favor — disse Alana. — Adam, querido, não seja tão
loucamente paranoico.
— E eu que cheguei a pensar que tínhamos um belo relacionamento.
— Foi engraçado. Nós nos divertimos de montão.
— É mesmo.
— Meu Deus, Adam, não leve tudo tão a sério! É só sexo. E negócios.
O que é que há de errado com você? Acredite em mim, eu não fingi!
Continuei andando, procurando um táxi, mas não havia nenhum à
vista. Eu nem sequer conhecia aquela parte da cidade. Estava perdido.
— Vamos, Adam — disse ela, encostando o Mini ainda mais um
pouco. — Entre no carro.
Continuei andando.
— Ora, deixa disso — ela falou, e sua voz era como veludo, sugerindo
tudo, prometendo nada. — Você quer entrar no carro?
Agradecimentos
Hora de rolar os créditos. Vai ser algo lamentavelmente longo, mas
este livro vem sendo desenvolvido e produzido há muito tempo.
A pesquisa para meus outros trabalhos me levou por esse mundo afora
e a lugares como a sede da KGB em Moscou, mas nada me preparou para
como eu acharia estranho e fascinante o mundo das corporações
americanas de alta tecnologia. Ninguém abriu mais portas para mim, ou
me cedeu com mais generosidade o seu tempo do que o meu velho amigo
David Hsiao da Cisco Systems, onde também fui imensamente ajudado
por Tom Fallon, Dixie Garr, Pete Long, Richard Henkus, Gene Choy, Katie
Foster, Bill LePage, Armen Hovanessian, Sue Zanner e Molly Tschang. Na
Apple Computer, Kae Lepow foi enormemente solícita. Na Nortel, o meu
amigo Carter Kersh foi um guia ponderado e sábio, arranjando para que eu
conhecesse seus colegas, inclusive Martin McNarney, Alyene McLennan,
Matt Portoni, Raj Raman, Guyves Achtari e Alison Steel.
Também tive conversas interessantes com Matt Zanner, da Hewlett
Packard, Ted Sprague da Ciena, Rich Wyckoff da Marimba, Rich
Rothschild da Ariba, Bob Scordino da EMC, Adam Stein da Juniper
Networks e Colin Angle da iRobot.
Alguns amigos muito inteligentes me ajudaram a imaginar as
peripécias e táticas clandestinas que fazem parte do pano de fundo da
história. Incluo aí Roger McNamee, Jeff Bone, Glover Lawrence e
especialmente meu amigo Giles McNamee, que com um brainstorming me
fez entrar no espírito de um verdadeiro parceiro não indiciado de uma
conspiração. Nell Minow da Corporate Library em Washington me ajudou
a compreender a política do conselho administrativo e a administração de
uma corporação.
Na área da segurança e das informações, obtive ajuda
incalculavelmente valiosa de alguns dos grandes no setor, inclusive
Leonard Fuld, Arthur Hulnick, George K. Campbell, Mark H. Beaudry,
Dan Geer e o perito em espionagem corporativa Ira Winkler. O pano de
fundo legal de Paranoia beneficiou-se grandemente da orientação do meu
grande amigo Joe Teig; Jackie Nakamura de Day Casebeer Madrid &
Batchelder (e obrigado a Alex Beam por nos ter apresentado); e Robert
Stein da firma Pryor Cashman Sherman & Flynn; assim como dois de seus
colegas, Jeffrey Johnson e particularmente Jay Shapiro. A perícia de Adam
em novos produtos tecnológicos veio de Jim Mann da Compaq, o
projetista principal da iPaq; Bert Keely da Microsoft; Henry Holtzmon do
MIT's Media Lab; Simson Garfinkel; Joel Evans da Geek.com; Wes Salmon
da PDABuzz.com; e, especialmente, Greg Joswiak, vice-presidente de
marketing de produtos de hardware da Apple Computer.
Algumas das façanhas juvenis de Adam foram inspiradas nas estórias
de Keith McGrath, Jim Galvin da polícia de Boston e Emily Bindinger. Na
questão da condição médica de Francis X. Cassidy, fui ajudado pelo meu
irmão, dr. Jonathan Finder e Karen Heraty, uma enfermeira que é um anjo.
Jack McGeorge do Public Safety Group ajudou-me, como sempre, com
muitos dados técnicos. Meu grande amigo Rick Weissbourd contribuiu em
todos os tipos de maneiras. Tive a sorte de dispor de excelentes assistentes
de pesquisa como John H. Romero, Michael Lane e o grande Kevin Biehl.
E minha assistente, Rachel Pomerantz, realmente a melhor.
Registro aqui o meu profundo respeito pelo enorme entusiasmo e apoio
de toda a talentosa equipe da editora St. Martin's Press, com os nomes de
John Sargent, Sally Richardson, Matthew Shear e John Cunningham; em
marketing, Matthew Baldacci, Jim DiMiero e Nancy Trypuc; em
publicidade, John Murphy, Gregg Sullivan, Mike Storrings, Christina
Harcar, Mary Beth Roche, Joe McNeely, Laura Wilson, Tom Süno, Tom
Leigh e Andy LeCount. Ter toda uma editora trabalhando para você é uma
coisa rara na vida de qualquer escritor e eu lhes dirijo os meus mais
profundos agradecimentos.
Howie Sanders da United Talent Agency foi um apoiador entusiástico
deste livro desde o início. Minha agente literária, Molly Friedrich, é
indescritível — inabalavelmente leal, inteligente, judiciosa e, acima de
tudo, boa pessoa.
Meu irmão, Henry Finder, diretor editorial da The New Yorker, é um
editor notável. Por sorte foi também meu primeiro leitor, editor e
colaborador; sua contribuição a este trabalho é realmente incomensurável.
E Keith Kahla é não apenas um editor maravilhoso, como também um
diplomata, lobista, advogado incansável e um generalíssimo trás das
cenas, mas armado da paciência de um santo. Sou grato a ele mais do que
consigo me exprimir e certamente mais do que ele me permitiria dizer
aqui.
Digitalização e correção: Vera Lúcia Figueiredo.

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