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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

DISCURSOS SOBRE A DIVINA COMÉDIA OU TEMPORALIZAÇÕES DE


DANTE ALIGHIERI? A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE IDADE MÉDIA E
UMA ANÁLISE DECOLONIAL POR MEIO DA TEORIA DO MEDIEVALISMO

SPEECHES ABOUT THE DIVINE COMEDY OR DANTE ALIGHIERI’S


TEMPORALIZATIONS? THE CONSTRUCTION OF CONCEPT OF MIDDLE AGES AND
AN ANALYZE DECOLONIAL THROUGH THEORY OF MEDIEVALISM

Maria Eugenia Bertarelli


Universidade Unigranrio
mariaeugeniabertarelli@gmail.com

Clínio de Oliveira Amaral*


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
cliniodeamaral@yahoo.com.br

Resumo: Motivados pelas homenagens ao 7º Abstract: We were motived by the seventh


centenário de morte de Dante Alighieri, centenary of death of Dante Alighieri to analyze
buscamos refletir acerca da produção de um the construction of speech about the poet which
discurso sobre o poeta que mobiliza, no mobilizes, in the context Italian humanism, a
contexto do humanismo italiano, uma nova new perception about time and History.
percepção do tempo e da história. Por meio da Through the analysis of biographies and
análise de biografias e comentários sobre a comments on the Divine Comedy written by
Divina Comédia escritos por Giovanni Giovanni Boccaccio, Francis Petrarch, and
Boccaccio, por Francesco Petrarca e por Leonard Bruni, we demonstrate how Dante was
Leonardo Bruni, demonstramos como Dante foi temporalized and understood as an index of a
temporalizado – entendido como índice de um new time that was established between the
novo tempo que se estabelece entre os séculos 14th and 15th centuries. This process was at the
XIV e XV. Este processo estaria na origem da origin of the production of the concept of
produção do conceito de idade média, estudado Middle Ages, studied through a periodization
por intermédio de uma estratégia de strategy, as the antithesis of the modern world.
periodização, como a antítese do mundo Based on the theory of medievalism, we observe
moderno. Baseados na teoria do medievalismo, how the Middle Ages does not exist without a
observamos como a idade média não existe sem periodization policy with implications for the
uma política de periodização com implicação ideological appropriations that were made
nas apropriações ideológicas que foram feitas from the period from the 19th century onwards.
do período a partir do século XIX. A forma como The way history was temporalized contributed
a história foi temporalizada contribuiu para o to the discourse according to which societies
discurso segundo o qual as sociedades têm have different temporalities and should be
diferentes temporalidades e deveriam atrelar- linked to the time of the West.
se ao tempo do Ocidente.
Palavras-chave: Temporalização, Dante Keywords: temporization, Dante Alighieri,
Alighieri, medievalismo, idade média medievalism, Middle Ages

*Maria Eugênia Bertarelli é professora da Unigranrio, pesquisadora do Linhas (Núcleos de estudos


sobre narrativas e medievalismos) e coordenadora do projeto “Centro de memória e pesquisa do
Positivismo”. Clínio de Oliveira Amaral é professor associado de história medieval da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, pesquisador do Linhas (Núcleos de estudos sobre narrativas e
medievalismos) e coordenador do LABEP (Laboratório de estudos dos protestantismos).

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1 – Introdução
A idade média,1 mais do que um período histórico, é um conceito. E, como tal,
foi construída durante um longo processo até propriamente emergir no século XIX.
A partir daí, foi reelaborada e preenchida de sentido de acordo com determinado
contexto histórico. Com efeito, além de descrever uma “época da história universal”,
em um sentido historicista tradicional, o conceito de idade média pode também ser
entendido como uma estratégia de periodização realizada historicamente, uma
performance teórica, política e cultural de construção e de delimitação de fronteiras
cronológicas capazes de definir um “outro” temporal, com usos ideológicos e
políticos que podem ser observados na sua apropriação no século XIX ou mesmo nas
releituras dos séculos XX e XXI. Assim, o conceito de idade média foi criado,
apropriado e ressignificado por meio dos interesses em jogo em cada contexto.
Tal conceito forma-se ao longo de um lento processo, que se desenvolve
associado ao surgimento de um outro, o de tempos modernos. Essa relação implica
a construção de um terceiro conceito, o de renascimento, fundamental como ponto
de articulação entre o medievo e a modernidade. O renascimento foi capaz de
temporalizar2 o medievo e, ao mesmo tempo, contribuir para a construção da idade
média. Embora tais conceitos, entendidos como períodos históricos, apenas se
estabelecerão na historiografia a partir do século XIX, apoiam-se nas noções
surgidas no ambiente humanista que se entende como um momento da história em
que se volta a nascer, após um longo e tenebroso inverno.
Neste artigo, buscaremos demonstrar que a composição de um determinado
discurso sobre o poeta Dante Alighieri e sobre a sua relevância intelectual estaria
inserido dentro do movimento que, nos séculos XIV e XV, elabora algumas das
percepções e perspectivas que se encontram na gênese da criação do conceito de
idade média, o qual irá se impor mais adiante. Isto é, embora não seja possível
afirmar que idade média, como conceito, já circulasse no quatrocentto na península

1Neste artigo, optamos por grafar idade média, bem como todos os nomes dos períodos da história
com letra minúscula para sublinhar a nossa crítica à centralidade da temporalização europeia.
2 Cf. Sobre a noção de temporalização, cf. ALTSCHUL, Nadia R.. Politics of temporalization:

Medievalism and Orientalism in Nineteenth-Century South America. Philadelphia: University of


Pennsylvania Press, 2020.

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Itálica, é possível investigar como se mobilizam nesse contexto certas noções que
dariam sentido ao conceito a partir do século XIX. Com efeito, durante o humanismo,
aparecem, pela primeira vez, as noções que seriam atribuídas posteriormente à
idade média, grosso modo, como a antítese do mundo moderno.
Defendemos que a construção de um discurso sobre Dante e sua obra estaria
articulada à produção de uma nova ideia de tempo e de história. Os comentários à
Divina Comédia e a escrita de biografias sobre o poeta mobilizam um discurso que
contribuiu para inaugurar um modelo de referência da chegada de um “novo
tempo”. A construção em torno da figura de Dante torna-se significativa quando
analisamos o diálogo estabelecido entre Giovani Boccaccio, Francesco Petrarca e
Leonardo Bruni, alguns dos mais notáveis autores a escreverem biografias ou
comentários sobre a obra do poeta florentino no contexto do humanismo italiano.
Observaremos como esses autores foram os primeiros a temporalizar Dante
Alighieri e, por conseguinte, constituíram as bases das posteriores temporalizações
que, em conjunto, produziram, sobretudo, no contexto do século XIX, o conceito de
idade média como parte de uma “história universal”.
Iniciaremos nosso texto investigando a produção de um discurso sobre o
poeta Dante Alighieri no ambiente intelectual florentino durante as primeiras
décadas do movimento humanista. Em seguida, analisaremos a articulação deste
discurso com a teoria do medievalismo e sua proposta de análise sobre os
mecanismos de temporalização. Finalmente, abordaremos a relação do que
denominamos de temporalização do poeta florentino com o nascimento do conceito
de idade média.
Sustentamos que o discurso sobre Dante pode ser estudado como um
processo pelo qual o poeta florentino foi representado como um índice do tempo, ou
seja, ele foi temporalizado. Utilizamos como referência teórica os estudos de Nádia
Altschul que sublinha como alguns elementos da história servem a certos usos
ideológicos e políticos. Fundamentado em tal perspectiva, argumentamos que Dante
Alighieri passa por um processo de temporalização, iniciado no período logo
posterior ao fim de sua vida, e ligado a um discurso que mobiliza novas percepções
acerca do tempo.

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Ainda como referencial teórico utilizamos o trabalho de Reinhart Koselleck3


acerca da construção do conceito de tempos modernos. De acordo com esse autor,
uma análise sobre os conceitos pode ocorrer na articulação de dois níveis;
investigando, por um lado, os conceitos que aparecem nas fontes examinadas pelos
historiadores, e, por outro, os conceitos incorporados pela historiografia, utilizados
pelos historiadores para tecer suas reflexões sobre o passado. Por meio dessa
perspectiva, articulamos a análise de um discurso sobre Dante Alighieri, encontrado
nas fontes dos séculos XIV e XV, à construção de noções que se tornaram essenciais
para a gênese do conceito de idade média, que será incorporado pela historiografia
em período posterior.

2 – A temporalização de Dante Alighieri e a construção de um discurso no


ambiente humanista nos séculos XIV e XV
Desafiados pela chamada para o dossiê da Signum em homenagem ao 7º
centenário de Dante, em 2021, que busca promover a reflexão “acerca da Divina
Commedia, uma das obras em versos das mais relevantes – e impactantes – já
produzidas no Ocidente, tanto pelos temas e pelas formas que mobiliza em sua
estruturação, quanto pela figura que assina sua autoria – identidade de um eu que
se desmembra em inúmeras faces, do texto à dimensão biográfica”4, iniciamos a
redação deste artigo sobre o poeta e uma das faces desse “eu”, que contribui para
pensarmos acerca do motivo para afirmarmos que sua obra é uma das mais
relevantes já produzidas no Ocidente.
Nesta primeira parte do artigo, centramos nossa análise no período pouco
posterior à morte de Dante ocorrida em 1321, tomando como referência inicial a
primeira biografia produzida sobre ele por Giovanni Boccaccio, em meados do
século XIV, até a primeira metade do século XV com a publicação da Vita di Dante,
por Leonardo Bruni, em 1436.

3 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto/Ed. PUC/Rio, 2006.
4 Texto da chamada para o Dossiê Visões dantescas: A Divina Comédia entre a Idade Média e a

Contemporaneidade, da revista Signum. Disponível em:


<http://www.abrem.org.br/revistas/index.php/signum>. Acesso em: 20 de setembro de2020.

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Giovani Boccaccio escreveu, respectivamente, em 1351-1355, em 1360 e em


1372, três versões de uma biografia sobre Dante Alighieri intitulada Tratatello in
laude di Dante.5 No início da obra, justifica seu trabalho de biógrafo citando uma
passagem de Sólon na qual cada república estaria sustentada em dois pés, o primeiro
seria o de não deixar nenhum defeito impune, o segundo o de recompensar todo o
bem realizado. Desse modo, afirma Boccaccio, os antigos “honravam os homens de
valor, por vezes os deificando, às vezes com estátua de mármore, frequentemente
com célebre sepultura (...) e, de quando em quando, coroando com louros”.6
Boccaccio assinalava que a relevância da biografia de Dante residia naquilo que ele
merecia “por sua virtude, por sua ciência e por suas obras”, uma vez que, em vida,
os florentinos haviam-lhe dado tratamento injusto, banimento perpétuo e alienação
de bens por falsa culpa imputada. No livro, encontram-se grande parte das
referências históricas sobre a biografia e a produção literária de Dante que
passaram para a história.
No tratatello, Boccaccio expõe o que considera os principais acontecimentos
da vida deste grande homem, que teria sido marcada, segundo os relatos, por
inúmeras adversidades contra as quais precisou lutar para conseguir produzir seus
escritos. Citando desde sua esposa, com os “aborrecimentos próprios das mulheres”,
até os “ímpios florentinos” que, não reconhecendo sua grandeza, o baniram da
cidade natal, foram inúmeras as dificuldades que, de acordo com Boccaccio, Dante
precisou superar. Com efeito, ao longo do tratatello sobram elogios à sua capacidade
de superação e à grandeza do poeta e de sua obra. Comentando, por exemplo, o
período de formação de Dante Boccaccio escreveu: “foi para Paris, aonde mostrou
em inúmeras ocasiões a altura de seu engenho em disputas, com grande glória para
ele, de tal forma que ainda hoje os ouvintes mostram admiração quando o
contam...”.7
Giovanni Boccaccio foi um dos primeiros e mais destacados estudiosos da

5 Na realidade, deveria chamar-se De vita studiis et moribus viri clarissimi, como se inicia a obra, mas
o próprio Boccaccio refere-se a ele como trattatello, no diminutivo.
6 AUBERT, Eduardo Henrik. Vidas de Dante: escritos biográficos dos séculos XIV e XV. Cotia, SP: Ateliê

Editorial, 2011, p. 119.


7 BOCCACCIO, Giovani. Vida de Dante. Madrid: Alianza Editorial, 1993, p.44

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Divina Comédia, além de copista da obra. Ao lado da atividade de biógrafo e copista,


foi convidado, em junho de 1373, por intermédio de um requerimento feito ao Prior
das artis e gonfalonieri de guistizia, para conduzir uma série de leituras públicas do
livro que “vulgarmente si chiama el Dante”. A “lectura Dantis” iniciou-se em outubro
do mesmo ano e teve lugar na igreja de Santo Stefano, em Florença, recebendo por
esta função um pagamento da Comuna. Na ocasião, Boccaccio começa a elaborar
seus comentários à Comédia, que precisaram ser interrompidos, junto com as
leituras, no canto XVII. A interrupção deveu-se à doença que o levou a renunciar ao
encargo em janeiro de 1374, um ano antes de seu falecimento. Neste sentido,
observamos como Boccaccio contribuiu para a divulgação da fama do autor da
Comédia, bem como para marcar sua própria relevância no novo contexto literário
do qual ele se compreende herdeiro. Com efeito, esta forma de temporalizar Dante
liga-se à própria legitimação de Boccaccio no ambiente intelectual florentino e aos
interesses em jogo no contexto urbano no qual se encontrava inserido.
Nestes comentários à Comédia, escritos para suas leituras públicas em
Florença, Boccaccio insere, no início, uma explicação acerca do título do poema, que
ele define como Comédia. Ele introduz, ainda, uma pequena biografia de Dante e uma
explicação sobre a parte da filosofia em que se insere o texto que, segundo ele, seria
a ética. Prossegue, a partir daí, explicando cada canto e cada trecho do poema,
detendo-se em diversos momentos para explicar personagens, lugares e teses
mencionadas por Dante. São abundantes as passagens em que Boccaccio alonga-se
a respeito de temas da antiguidade, discutindo sobre autores clássicos, citando
Platão, Virgílio, Homero ou a Odisséia, a Iliada, a Tebaida etc. A produção de um
discurso sobre Dante feito por Boccaccio contribuiu para estabelecer sua imagem
como destacado autor poético, elaborando um referencial com o qual se identifica
um novo espaço de produção intelectual, no qual a beleza poética e as referências à
antiguidade clássica destacam-se.
Sugerimos que, para além de difundir a obra de Dante entre o público letrado
de Florença, ao escrever uma biografia ou realizar a leitura pública da Comedia,
Boccaccio tentava delimitar um campo de atuação literária do qual Dante constitui-
se como um modelo de autor, de um tempo presente que se pretende inaugurar.

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Apontamos um esforço para temporalizar o poeta, estimulando o discurso de um


tempo novo, capaz de retornar ao antigo, após longos séculos de sono profundo,
difundido entre os humanistas dos séculos XIV e XV. Acreditamos que essa noção foi
relevante, posteriormente, para a formação do conceito de renascimento.
De acordo com Koselleck, preocupado que estava em seu livro Futuro
passado com a gênese do conceito de tempos modernos: “O lento processo que levou
o Renascimento a libertar-se da metáfora de voltar a nascer, para chegar a um
conceito de período, só se completa nos séculos XVIII e XIX”.8 Se o processo se
completa apenas mais adiante, observamos, neste contexto das décadas seguintes
ao falecimento de Dante, a mobilização de noções e elementos que irão dar sentido
à criação do conceito de renascimento alguns séculos depois. O esforço de
temporalização, entretanto, não teria sido realizado por Boccaccio de modo isolado,
mas em um diálogo com outros intelectuais de Florença, como Francesco Petrarca,
sobre quem, aliás, escreveu também uma biografia em 1342.
Simon Gilson9 sugere a existência de um vínculo entre a redação do tratatello
e o interesse em dialogar com Petrarca a respeito da relevância da obra dantesca. O
historiador observa que Boccaccio teria escrito a biografia como forma de tornar
Dante atrativo para Petrarca, enquadrando-o aos moldes que agradariam seu
interlocutor. De acordo com Gilson, o Dante apresentado por Boccaccio adequa-se
ao gosto de Petrarca e, consequentemente, à emergência de valores humanistas.10
Após um encontro com Boccaccio em Milão, na primavera de 1359, Francesco
Petrarca recebeu dele uma carta, que respondeu na epístola Familiares XXI. Nela,
expressa sua opinião a respeito de Dante Alighieri e a influência da Comédia em sua
própria escritura. A carta de Boccaccio foi perdida; porém, é possível inferir seu
conteúdo pela resposta dada por Petrarca na qual rebate as insinuações que,
presumidamente, havia recebido de que não teria dado atenção devida à obra de
Dante. Petrarca admite na juventude ter tido a audácia de fiar-se apenas em seu
próprio talento para encontrar “um estilo próprio e original”, sem qualquer auxílio

8 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado... Op. Cit., p. 273.


9 GILSON, Simon A. Dante and Renaissance Florence. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
10 Ibidem. p. 27.

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exterior. Contudo, tal ilusão juvenil havia ficado para trás. Hoje, afirma Petrarca,
“accolgo presso di me tutti gli altri poeti, e questo [Dante] prima di tutti”. De fato,
louva o estilo dantesco, evidenciando sua escrita em língua vulgar, em estilo elevado,
que merece “senza esitazione la palma della volgare eloquenza”.11
Petrarca, ainda nesta carta em que trava um diálogo com Boccaccio, admite
que deseja deixar clara sua admiração pelo poeta para que o “povo vulgar não o
julgue”, dizendo que ele desdenhou de Dante, “poiché molti mi acsusan d’invidia”.12
Como poderia ele invejar aquele homem que se dedicou a vida toda aos mais
elevados estudos, a “arte suprema”, pergunta Petrarca. Em virtude disso, indaga ao
amigo Boccaccio: “perché dovrei ividiarlo e non esaltarlo”?13 Tal como fizera
Boccaccio, Petrarca, aquele que, presumivelmente, foi o primeiro a cunhar a
expressão medium tempus ou media tempora, também temporalizou Dante de
modo a indicá-lo como um ponto de inflexão temporal.
No Cancioneiro, concluído por volta de 1370, Dante é mencionado por
Petrarca como pertencendo ao “grupo de poesia de amor em língua vernácula”.14
Referia-se ao Dolce Stil Nuovo, estilo poético que exalta o amor por uma donna, pura
e bela, do qual Dante foi um dos maiores expoentes, ao lado de Guido Guinezelli,
Guido Cavaltanti e Cino da Pistoia. É interessante observar como Petrarca não havia
estabelecido com a obra dantesca profunda relação durante os anos de juventude.
Contudo, na maturidade, possivelmente influenciado pelo diálogo com Boccaccio –
de quem teria recebido uma cópia da Comédia e do tratatello –, além do
reconhecimento da grandeza do poema buscou, com seus comentários, edificar a
imagem de Dante como referência de estilo poético, de temas e de personagens da
antiguidade clássica. Petrarca, além de temporalizar Dante, contribui para a
afirmação de um discurso sobre a volta à antiguidade como uma característica de
um novo tempo, que se contrapunha ao obscurantismo do, agora, já por ele
nomeado, tempo do meio. Embora ele não o utilize como um conceito, o

11 PETRARCA, Francesco. Familiares XXI. Biblioteca dei classici italiani di Giuseppe Bonghi.
Disponível em: <http://www.classicitaliani.it/>. Acesso em: 05 de dezembro de 2016.
12 Ibidem.
13 Ibidem.
14 Ibidem. p. 38.

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temporalizou, ou seja, aqueles que não se enquadravam ao “brilho de luz” estariam


hierarquizados no tempo como pertencentes ao medievo.
Petrarca contrapunha à melancolia do tempo presente a grandeza da Roma
antiga. Segundo William Hamilton, Petrarca enfatizou a história romana como
nenhum outro havia feito anteriormente e, embora tenha dado pouca ênfase à
influência recebida de Dante, a perspectiva histórica do humanista teria sido afetada
pela insistência dantesca de que Roma foi o centro de uma sociedade secular
perfeita.15 Porém, Dante destacava, ao mesmo tempo, que Roma havia sido também
o berço da Igreja cristã. Neste ponto, contudo, Petrarca certamente não compartilha
da visão dantesca, posto que em sua perspectiva a grandeza romana teria entrado
em declínio precisamente a partir da ascensão cristã. O que Petrarca chama de época
antiga, período de esplendor da humanidade, terminaria precisamente com a
cristianização do império. A partir deste momento, tem início um período de
declínio, ao qual ele chamou moderno: “... dico antica quella che precede il culto in
Roma e l’adorazione del santo nome di Cristo, moderna l’altra da Cristo insino a
noi”.16
A respeito da consciência histórica de Petrarca, Theodore Mommsen ressalta
que ele pode ser considerado um dos primeiros a vislumbrar, em um tempo futuro,
uma visão tripartida da história.17 De fato, segundo Mommsen, Petrarca exalta a
antiguidade e a contrapõem ao tempo moderno, referido por ele como um período
de decadência, iniciado após o declínio do império romano. Um tempo de
degradação visto por Petrarca através de um olhar profundamente pessimista.
Contudo, afirma Mommsen, no final de África, o autor pretende que o poema sirva
para aqueles que viverão depois dele como uma esperança de tempos melhores.
As tenebrae iriam desaparecer e, assim, seus descendentes retornariam à era
do antigo “brilho puro”. De acordo com Mommsen, os versos de Africa esclarecem

15 HAMILTON, William B. Francesco Petrarca and the parameters of historical research Religions, 2012,

3, p. 699-709. Disponível em:


<https://www.researchgate.net/publication/276042301_Francesco_Petrarca_and_the_Parameters
_of_Historical_Research>. Acessado em: 20 de setembro de 2020.
16 PETRARCA, Familiare, Op. Cit., livro sexto, carta II, p. 117
17 MOMMSEN, Theodore. Petrarch’s conception of the Dark Ages. Speculum, vol. 17, nº 2, 1942, p. 226-

242, p. 241.

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acerca da periodização da história de Petrarca. Ele acredita em uma era de puro


brilho no passado, na antiguidade, à qual se segue uma era de escuridão, que duraria
até os dias do próprio Petrarca. Existiria, desta forma, até seu presente, uma divisão
em apenas dois períodos. Contudo, na expressão de esperança da chegada de tempos
melhores, de retorno ao brilho antigo, manifesta a concepção de uma tríplice divisão
da história, ou ao menos a deixa implícita, observa Mommsen, com o advento de um
tempo que se inaugura precisamente a partir dele. E, ao mesmo tempo, também
rompe com a coetaneidade do seu próprio tempo, pois se apresenta em uma
temporalidade diferente daquela vivida por seus contemporâneos. Constituía uma
divisão da história hierarquizada por um conjunto de valores segundo os quais o seu
momento de vida representava um ponto de inflexão temporal e cultural. Aqueles
que não se juntassem a ele estariam condenados ao obscurantismo medieval.
Segundo essa forma de narrar a história, criava-se uma possível identidade com esse
“novo” momento, ao qual Petrarca buscava vincular-se. Além disso, estabelecia-se
um discurso temporalizado e hierarquizado que se opunha à época de trevas que se
seguiu à decadência do império, engendrando, por consequência, um tempo do meio
que já se desgarrava das trevas, embora Petrarca não o definisse, o vislumbrou.
Em vista disso, escrever sobre Dante Alighieri, exaltar a elegância de sua
poesia e do refinamento da sua escrita em língua vulgar não significam apenas uma
forma de apropriação de sua obra, mas uma tentativa de fundar a origem de um
estilo do qual Petrarca se sente herdeiro, na esperança de inaugurar uma era de
brilho capaz de retomar a glória antiga. Ou seja, revelam-se a intencionalidade em
se vincular a um “novo” movimento e a busca por uma “origem” capaz de legitimá-
lo e, ao mesmo tempo, romper com a coetaneidade de sua época. Esse movimento
de Petrarca demonstra como o seu discurso foi marcado pela busca por uma origem
e por uma crítica ao seu presente, pois, na visão desse autor, ele e os seus não faziam
parte da mesma temporalidade de sua sociedade. Em suas narrativas revelou a
consciência de pertencer a um movimento que se fundava e para o qual seria
importante criar origens.
Ainda na epístola familiares XXI, dirigida a Boccaccio, Petrarca afirma que
não poderia desdenhar de um homem que viu apenas uma única vez, na infância,

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acompanhado de seu avô e de seu pai, no dia em que uma “tempesta civile” baniu
ambos da cidade. Comentando a amizade nascida entre o seu pai e o grande poeta
escreveu: “tra compagni di sventura nascono grandi amicizie”, pois tinham em comum
além da fortuna, “l’ingegno e gli studi”. Simon Gilson observa que tal relação
sublinhada por Petrarca teria o propósito de definir uma geração que inauguraria um
período histórico definido, uma sequência precisa na qual destaca “his own
proeminent place in what he regarded as a moment of cultural and literary renewal”.18
Entendemos, assim, a sua ambição de oferecer um modelo e de estabelecer a
herança de um movimento que desejava inventar, ao passo que se sentia parte dele.
Petrarca, neste sentido, enfatiza a utilização da língua vernácula, a presença de
temas e figuras da antiguidade além da criação poética dentro deste estilo original
do qual Dante seria um dos precursores em sua narrativa.
Reforçamos o argumento de que, embora o conceito de renascimento como
período histórico não estivesse definido no século XIV, os temas mobilizados por
Boccaccio e por Petrarca por meio da temporalização de Dante Alighieri são
essenciais para a criação do renascimento no século XIX, particularmente, por
intermédio dos estudos de Jacob Burckhardt,19 que irá enfatizar a noção de
retomada da antiguidade e a oposição ao período medieval, como veremos adiante.
Dentre os que se dedicaram à crítica dantesca destacamos, por fim, um
terceiro nome proeminente: Leonardo Bruni. Embora nunca tenha chegado a
conhecer Boccaccio ou Petrarca pessoalmente fê-lo por via de Coluccio Salutati,
chanceler de Florença, interlocutor dos dois e mestre e guia de Bruni nos estudos
humanísticos.
Stephen Greenblatt20 insiste neste ambiente intelectual dos primórdios do
renascimento no qual Coluccio Salutati teria sido uma figura notável para a
promoção dos estudos de grego e da cultura antiga. O chanceler florentino era, de
fato, ressalta Greenblatt, alguém excepcional, “dotado não apenas de conhecimentos
jurídicos, astúcia política e habilidade diplomática, mas também talento para as

18 GILSON, Simon A. Dante and… p. 33.


19 BURKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
20 GREENBLATT, Stephen. A virada: o nascimento do mundo moderno. São Paulo: Companhia das

Letras, 2012.

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relações públicas e habilidade literária incomum”.21 Segundo Greenblatt, como


“Petrarca, com quem havia trocado cartas, Salutati sentia a força concentrada do
passado sepulto e havia embarcado em uma busca erudita pelos vestígios da cultura
clássica”.22 Foi ele, precisamente, quem convidou o erudito bizantino Manuel
Chrysoloras a morar em Florença, em 1397, e a lecionar o grego, cujas aulas foram
decisivas para que Bruni deixasse os estudos de direito e se dedicasse com ardor ao
conhecimento do grego e da antiguidade, lembra Greenblatt.
Neste contexto, Leonardo Bruni destacou-se como humanista e chanceler
florentino e, dentre suas obras, escreveu uma biografia de Dante intitulada Della vita
studi e costumi di Dante, em 1436, além de uma vita di Petrarca, do mesmo ano.
Segundo Bruni, a inspiração para escrever a biografia de Dante surge por causa da
leitura do tratatello: “mi venne alle mani um’opereta del Boccaccio intitolata: Della
vita, costumi e studii del claríssimo poeta Dante”.23 Ele admite que já havia lido com
atenção o livreto anteriormente, mas, desta vez, nota uma escrita “cheia de amor”,
“lágrimas” e “suspiros” em excesso. Em virtude disso, afirma que sua biografia
dantesca serviria para complementar àquela redigida anteriormente; “com maggior
notizia dele cose estimabili”. Segundo Lorenzo Bartoli, em oposição ao Dante
romanceado e sentimental de Boccaccio, Bruni compõe um mais político e civil.24
Ressaltamos que a questão de fundo permaneceu, ou seja, Dante como um ponto de
inflexão temporal, um agente cuja ação política colocava-o como aquele que une
reflexão intelectual e atuação no espaço público.
Quase setenta anos após a redação da última versão do tratatello de
Bocccaccio, Leonardo Bruni busca complementá-la acentuando a atuação pública de
Dante na Comuna florentina. Deste modo, acrescenta ao modelo de poeta e exímio
escritor em língua vulgar a biografia de sua participação política “nella respublica”.
Bruni exaltava a brava participação de Dante na batalha de Campaldino, o cargo de
Prior de Florença, que ocupou ao ter sido eleito e não “per sorte, come s’usa al

21 Ibidem. p. 107.
22 Ibidem.
23 Disponível em: <www.classicititaliani.it>. Consultado em: 16 de dezembro 2016.
24 BARTOLI, Lorenzo. Bruni e Boccacio biografia di Dante: appunti filologici. Madrid: Universidad

Autónoma de Madrid, 2003, p. 1.

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presente” e os episódios que o levaram ao exílio, aos quais Boccaccio teria dado
pouco relevo. Sugerimos a possibilidade de que Dante Alighieri representasse para
ele um referencial da jovem Florença, de um tempo que se inaugurava, no qual a
participação na vida pública é um elemento prestigioso. Bruni estaria preocupado
em temporalizar Dante por meio de sua ação política. Observamos como, segundo
cada contexto de temporalização, apesar do discurso sobre o novo, a temporalização
sempre atende às necessidades imediatas. Segundo Nadia Altschul, esses “ruídos”
do passado são, na verdade, “ruídos” do presente que nós identificamos como
“passado”.
Leonardo Bruni se destacou como autor da História do povo florentino, cujo
primeiro livro começou a circular em 1416 e os demais foram sendo escritos ao
longo de três décadas. A percepção de ser protagonista de um tempo novo
evidencia-se nesta obra, que abrange um período de quatorze séculos de história,
desde a fundação romana até a morte de Guiangaleazzo Visconti (1402). De acordo
com Francisco Murari Pires, uma temporalidade entendida como presente histórico
florentino revela-se no marco escolhido para iniciar o segundo livro da obra: os
acontecimentos do ano 1250. O ano marcaria, para Bruni, um momento em que os
florentinos, após alguns acontecimentos que se precipitam na cidade, insurgem-se
tomando as rédeas do governo, em defesa da liberdade.25 Em virtude disso, Murari
observa: “A temporalidade presente, enquanto curso da história atual da cidade, que
Bruni assim distingue, tem ‘o povo florentino’ por sujeito da história”.26
Embora Leonardo Bruni não explicite a relação, sabemos que Dante teria
nascido precisamente durante a segunda metade do século XIII. Isto é, durante o
tempo presente florentino ao qual se dedica no segundo livro de sua História. A
trajetória pública de Dante permite pensar que ele faria parte deste “povo
florentino” exaltado e temporalizado por Bruni, que passa a ser sujeito da história

25 Sobre o ano de 1250 escreve Bruni: “Após a morte de Frederico, cujos terríveis crimes já foram por
nós descritos, o povo florentino, há muito tomado de ódio contra a arrogância e ferocidade daqueles
que haviam se apossado dos destinos da comunidade (“res-publica”), insurgiu-se tomando as rédeas
do governo em defesa da liberdade e condução dos negócios públicos de acordo com a vontade
popular”. PIRES, Francisco Murari. Leonardo Bruni: História e Retórica. Modernidades tucidideanas.
São Paulo: Edusp-Fapesp, 2007, p.17.
26 Ibidem.

49
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

ao não aceitar a dominação imperial sobre a cidade. Por intermédio da perspectiva


de pertencimento a um tempo presente, o humanista reverencia Dante como
exemplar de uma geração que participou dos primórdios da construção política da
Comuna.
De acordo com Eduardo Aubert,27 as biografias e comentários à obra de
Dante não serviriam apenas como mapas que informam sobre sua vida e atuação –
fornecendo dados que a crítica dantesca se esmerou por confirmar ou descartar no
interesse pela abordagem mais fiel de sua trajetória –, o estudo sobre o ambiente de
produção das “vidas de Dante”, bem como as intenções em jogo quando foram
produzidas constituem ricos objetos de estudo. Para Aubert, devemos estudar a
biografia como “um testemunho relevante do tipo de ato enunciativo que ela
constitui e de suas múltiplas funções para além da pura referencialidade”.28
Em virtude do que escrevemos até aqui, é possível observar a produção de
um discurso pautado nas biografias e nos comentários sobre o poeta florentino
escritos por aqueles que teriam sido identificados ao primeiro humanismo e
escolhidos para análise neste artigo. Constatamos um diálogo entre Boccaccio,
Petrarca e Bruni em que a figura de Dante Alighieri se insere em meio ao esforço de
criar novas referências para o que entendiam ser um modelo de autor, um novo
estilo de literatura, de escrita vulgar e de temas, além de um novo ator da história e
da vida pública florentina. Distintas faces de um referencial e de um movimento do
qual se percebem parte, ao passo em que buscam fundar seus paradigmas e marcos
temporais. O conceito de renascimento surge de um esforço intelectual para
articular uma percepção de um tempo novo, um tempo que é inteiramente diferente
e mesmo melhor, e que se opõe ao tempo intermédio.

2.1 – A temporalização medieval/moderno e a quebra da coetaneidade


A premissa sobre a existência do humanismo, além de ser uma construção
historiográfica, está assentada em uma forte noção de temporalização. Segundo essa
ideia, existiriam temporalidades diferentes coexistindo simultaneamente. Aqui,

27 AUBERT, Eduardo Henrik. Vidas de Dante... Op. Cit.


28 Ibidem. p. 23.

50
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

utilizamos um índice desse problema, ou melhor, a forma como Dante e sua Divina
Comédia foram temporalizados e as suas implicações para a posterior construção do
conceito de idade média.
Dante Alighieri, em diversos momentos, aparece como um marco do
humanismo. Assim, apesar do florentino viver na passagem do século XIII para o XIV,
ele, devido à sua obra, teria engendrado uma “aceleração” temporal que teria sido
capaz de gerar uma inflexão do tempo e, por conseguinte, criar uma temporalidade,
rompendo a coetaneidade de sua época. Como implicação prática disso, a
historiografia, sobretudo, a partir do século XIX construirá, por exemplo, uma
dessincronia temporal entre a península Itálica e a península Ibérica, a primeira a
caminho das luzes do humanismo e do renascimento e a segunda a caminho da
perpetuação das trevas medievais e do feudalismo, inclusive, com a sua chegada à
América.29 Assim, o uso da obra do Dante como um marco para os humanistas traz
consigo uma questão, que teria sua origem no século XIV; o da negação da
coetaneidade e, por conseguinte, a afirmação de uma hierarquização temporal entre
moderno e medieval.
Embora Altschul não esteja preocupada com o contexto do chamado
humanismo italiano, concordamos com ela no que diz respeito à necessidade de
defender a ideia de coetaneidade, pois a sua negação implicaria, necessariamente,
em admitir a existência de diversas temporalidades coexistindo ao mesmo tempo,
bem como todos os seus desdobramentos colonialistas. Além de defendermos a
coetaneidade, pressupomos que o passado é uma construção feita por relações de
temporalização. A questão de fundo dessa autora, com a qual concordamos, é que
todo discurso sobre o passado perpassa por escolhas, ou seja, determinados objetos
nós o alçamos à condição de passado/monumento, ao passo que outros são,
simplesmente, esquecidos. No caso da idade média, nós medievalizamos os objetos,

29Sobre a tese segundo a qual a colonização da América perpetuou o medievo no Novo Mundo, cf.
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo,
2006. Reafirmamos as nossas críticas segundo as quais tal tese estaria amparada em uma visão
colonialista da história por parte da historiografia francesa. Sobre a crítica, cf. AMARAL, Clínio de
Oliveira e BERTARELLI, Maria Eugência. Long Middle Ages or appropriations of the medieval? A
reflection on how to decolonize the Middle Ages through the theory of Medievalism. História da
Historiografia. Ouro Preto, v. 33, n. 33, p. 97-130, março-agosto, 2020.

51
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

vejamos como a própria autora construiu os seus argumentos.

This book investigates how, why, and by whom certain elements of


the contemporaneous were named as pertaining to the ‘past’.
Because elements have to be associated with ‘the past’ before they
can be identified as lingering manifestations that buzz like living in
the now. The notion that we inhabit the past or that time is non
contemporaneous with itself is predicated on a previous
acceptance that – instead of full coevalness – the now is made up of
different past and present temporalities that can coexist with one
another. As I will argue in this book in terms of medievalization,
however, any supposedly medieval practices are medieval only
through our temporalizing of these elements as belonging to the
medieval past.30

Não existe um tempo ou lugar no passado independentes das narrativas do


presente. Mesmo que admitamos a existência de algo, por nós construídos, como
passado, e que esse “algo” faça parte do “nosso” passado, os processos de
temporalização e suas relações com as construções de narrativa devem ser
questionados. Logo, o passado vive em nós porque nós o transformamos em
“passado” e, quando escrevemos ou falamos sobre isso, ele não se perde.31 Segundo
Altschul, um grande exemplo disso é a forma como o passado continua presente em
nós como contemporaneidade da Europa medieval. Vejamos um exemplo prático
disso por meio de alguns objetos e da nossa relação com eles.

As I will argue in this book in terms of medievalization, however,


any supposedly medieval practices are medieval only through our
temporalizing of these elements as belonging the medieval past.
Our ability to stratify the contemporary into different hierarchical
time slots based on origins comes from the application of the tool
of historical consciousness to our surroundings. It is by applying
historical consciousness that when one gets a mobile call while
visiting a ‘medieval’ building, one is able to identify the phone as
belonging to the now and the building as belonging to the
premodern past. The definition of traits and elements according
their origins has been the dominant paradigm of thought in the
industrialized west for at least two centuries, as can be attested by
search for national origins that inaugurated the philological study
of medieval texts in the late eighteenth and early nineteenth
centuries. Shifting away from ontologically defining origins, as
main point made here about coevalness it that practices, traits, or

30 ALTSCHUL, Nadia R. Politics of… Op. Cit., p. 8.


31 Cf. Ibidem. p. 4.

52
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

objects are not defined by their first moment of existence – their


origin – but instead by their presence in whatever chronological
times they have existed. Historians of science like Bruno Latour
have usefully identified this apparent problematic in discussing
tools in We Have Never Been Modern. Because many may consider
Notre Dame of Paris a medieval building (although greatly restored
in the nineteenth century and, soon again, after the 2019 fire) and
a cell phone a modern device, but we will not identify a hammer as
Neolithic. As Latour points out in the context of history of science,
however, hammers were first used in Neolithic times. ‘I may use an
electric drill, but I also use a hammer. He former is thirty-five years
old, the latter hundreds of thousands’. We, however, do not
temporalize hammers; to us, they are no more ‘prehistoric’ than
mobile phones or laptop computers. Hammers are functioning vital
element of the now – whether the twelfth century now or the
twenty-first century now – regardless of the fact that they were first
used hundreds of thousands of years ago. Once we approach
temporal divisions as stratifying tools, we enter a changed
landscape.32

O argumento a ser considerado é que qualquer coisa só é medieval porque foi


temporalizada como tal. O caso de Dante é paradigmático, porque ele foi
temporalizado, por alguns dos seus comentadores, sendo visto ao mesmo tempo
como síntese de boa parte do pensamento medieval, mas também como um dos
primeiros humanistas. Assim, determinados aspectos de sua obra foram usados
para definir e conceitualizar o humanismo. Os mecanismos de temporalização
utilizados para classificar Dante como um “brilho e luz” em meio às trevas podem
ser usados como indícios da forma como o conceito de idade média está ligado aos
sucessivos processos de temporalização, realizados desde o século XIV, os quais,
sobretudo, ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, contribuíram para fabricar uma
concepção de tempo hierarquizada que tomou como referência a temporalização
europeia sobre o seu próprio passado medieval e, ao mesmo tempo, criar categorias,
tão colonizadoras e eurocêntricas, como as de história universal e de literatura
universal.
Cabe destacarmos que por trás dessas categorias “universais” estão noções
imperialistas atreladas aos conceitos de tempo e espaço europeus. Não é obra do
acaso Dante ser um autor tão amplamente traduzido em diversas línguas e estar

32 Ibidem. p. 8-9.

53
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

presente em diferentes coleções de literatura universal.33 Ou, mesmo, em 2020, ser


tema de um dossiê de uma revista brasileira. Talvez, seja interessante refletir o
motivo de estarmos escrevendo e pensando sobre Dante Alighieri no Brasil
contemporâneo e fazendo um dossiê em homenagem ao sétimo centenário de sua
morte.
Subjacente a esta forma de temporalizar, considerando o contexto dos
séculos XIX e XX, está uma ficção acerca da trajetória histórica das sociedades, vindo
da infância bucólica e romântica do medievo à maturidade contemporânea. A forma
como pensamos a história e, sobretudo, a forma como a temporalizamos estão
coligadas ao historicismo e ao positivismo que, se pensados, considerando o
desenvolvimento do capitalismo, chegamos à seguinte conclusão.

According to the core’s fictional trajectory of itself, then, while


peripheries were underdeveloped or plagued by their own inability
to resolve internal temporalities, the chore had no struggles with
developmental unevenness. At the economic core, the storyline
goes, all were living or able to live the capitalist promise, and even
when some developmental differences existed, all were living in a
modern world, a temporally homogeneous world that was not
divided by the coordinates of time.34

A forma como a história ocidental foi temporalizada teria contribuído para o


discurso segundo o qual as sociedades têm diferentes temporalidades e deveriam
atrelar-se ao tempo do Ocidente. Entre os argumentos de Altschul, com o qual
concordamos, está a ideia de como a idade média foi e é pensada/instrumentalizada
não pode ser dissociada do ímpeto colonialista, inclusive, em sua versão do século
XXI por intermédio da “idade média global”.

The global Middle Ages looks at connections that had been


disregarded and has opened the field by investigating topics and
locations that had been denied their place in traditional
historiography. Nevertheless, the core politics of a Middle Ages that
is now global cannot be separated from a colonialist impetus. The
globalization of ‘the medieval’ is not an example of full coevalness
but is making the world conform to a Eurocentric perspective. The

33 Dentre tantas referências é possível citar os estudos de Ernest Curtius, Benedetto Croce, Eric
Auerbach, Ezra Pound e Jorge Luis Borges.
34 ALTSCHUL, Nadia R. Politics of… Op. Cit., p. 7.

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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

Middle Ages is not a global historical time but a local European time
span. The ‘global’ Middle Ages therefore exports a European time
frame into parts of the world that could have maintained their own
established periodizations.35

O aspecto interessante do argumento da autora diz respeito ao fato de como


categorias europeias foram transportadas, por sucessivas temporalizações, às
regiões, como, exemplo, o Brasil onde, sem grandes reservas críticas, classificamos
Dante como um autor “universal”. Ou seja, europeu equivaleria a universal.

3 – O conceito de idade média e sua relação com as temporalizações


colonialistas dos séculos XIX, XX e XXI
De acordo com Reinhart Koselleck, o surgimento do conceito de tempos
modernos encontra-se articulado ao de idade média, pois com a gestação desse
tempo do meio “percebeu-se a necessidade de designações para os outros tempos,
o tempo anterior ou mais velho, e o tempo mais tardio ou moderno”.36 Segundo
Koselleck: “O conceito de Idade Média generalizou-se no século XVIII – quase
sempre em sentido pejorativo – para transformar-se, no século XIX, em um topos
fixo da periodização histórica”.37
Neste sentido, Koselleck adverte que, para compreender a gestação do
conceito de um novo tempo ou uma nova história, seria preciso ocupar-se com as
expressões que surgem como pontos de articulação que unem os tempos médios aos
tempos modernos. Esses seriam, para ele, o renascimento e a reforma. De início,
eram expressões concretas e não representavam um lugar no esquema historicista
da periodização do tempo. O conceito de reforma manteve-se, durante muito tempo,
com um significado geral, não cronológico, circunscrito à vida religiosa, para, aos
poucos, assumir uma noção de limítrofe, de época, até chegar a um conceito de
período. Da mesma forma, o renascimento também não se impôs como um período
logo no início: “O lento processo que levou o Renascimento a libertar-se da metáfora
de voltar a nascer, para chegar a um conceito de período, só se completa nos séculos

35 Ibidem. p. 13.
36 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado... Op. Cit., p. 271.
37 Ibidem.

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XVIII e XIX”.38
Sugerimos que um dos maiores responsáveis por este processo foi Jacob
Burckhardt, quem escreveu, em 1860, A cultura do Renascimento na Itália.39 Nesse
estudo, o autor organiza o período por intermédio da ideia de unidade cultural do
renascimento. Ele faz o retrato de uma época, enfatizando o que lhe é recorrente,
constante e típico. Para Burckhardt, o renascimento definia-se em oposição à idade
média, pois, segundo ele, a importância histórica da Itália reside no fato de que ali,
pela primeira vez, “o véu medieval dispersou-se ao vento”:

Na Idade Média o homem reconhecia-se a si próprio apenas como


raça, povo, partido, corporação, família ou sob qualquer outra das
demais formas do coletivo. Na Itália, pela primeira vez, tal véu
dispersa-se ao vento; desperta ali uma contemplação e um
tratamento objetivo do Estado e de todas as coisas deste mundo.40

Ainda, Burckhardt articulou o renascimento ao despertar da antiguidade.


Segundo ele, o “Renascimento não significa imitação ou compilação e sim o nascer
do novo...”. Ele situa a “grande e geral tomada de partido dos italianos pela
Antiguidade”41 a partir do século XIV. Neste contexto, Dante é para ele uma figura de
destaque. Com efeito, em seu Cultura do Renascimento na Itália fez mais de 40
referências ao poeta florentino.
Defendemos que foram mobilizados, durante o humanismo, alguns dos
elementos que se tornariam centrais do processo que concebeu a idade média como
um mundo que é a antítese da modernidade. Argumentamos que a temporalização
de Dante, ainda nos séculos XIV e XV, fez parte deste movimento que organizará um
discurso sobre uma nova percepção do tempo e da história que aparece em
Burckhardt. Dante foi temporalizado por meio da quebra da coetaneidade, ou seja,
é como se ele fosse colocado em uma temporalidade diferente da dos seus
contemporâneos. O renascimento estaria na articulação entre tempos médios e
tempos modernos, mesmo que os conceitos como tais somente se consolidariam

38 Ibidem. p. 273.
39 BURKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
40 Ibidem. p. 44.
41 Ibidem. p. 180.

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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

mais adiante:

A questão de saber se os tempos intermédios engendram, por


negação, um novo tempo foi levantada pelos pensadores e artistas
do Renascimento e pelos fiéis da Reforma, mas o novo tempo não
aparece neles como conceito integrante da teoria da história. A
descoberta de um novo tempo é, pelo contrário, um processo de
longo prazo, que se estende pelos séculos seguintes e cujos traços
se tornam claros com a progressiva consolidação de “Idade Média”,
depois de “Renascimento” e, finalmente, de “Reforma” como
conceitos que descrevem períodos.42

De acordo com Koselleck, a percepção de um novo tempo, como algo


radicalmente diferente, isto é, a modernidade em oposição à história passada
precisou de uma atitude diferente não apenas em relação ao passado, mais
especialmente em relação ao futuro. “Enquanto se acreditasse que nos
encontrávamos na última era, o realmente novo do tempo não poderia ser senão o
Último Dia, que poria um fim a todo tempo anterior”.43
Ele defende que apenas um giro em relação ao futuro, quando as expectativas
cristãs do fim deixassem de ser uma iminência é que o tempo pôde se abrir para o
novo. É apenas depois das guerras civis religiosas, que consumiram as expectativas
cristãs, ao mesmo tempo que a ciência anunciava mais descobertas por vir, que uma
promessa de progresso e a chegada do europeu ao Novo Mundo fundaram uma
perspectiva que abre o tempo para o futuro e ajuda a criar uma consciência da
história universal. Isto é, apenas a partir do século XIX é que o novo tempo e o tempo
intermediário impõem-se definitivamente no campo da historiografia, como
conceitos de período.
Em suas interrogações sobre o conceito de “tempos modernos”, Koselleck
questiona-se sobre o fato de que esse conceito seria uma maneira formal de
distinguir um período histórico. Além disso,

Indicaria o conceito de modernidade algo como um novo tempo?


Em segundo lugar, nos interrogamos sobre as expressões que,
empregadas como neologismos ou por terem seu significado
incrementado, levaram ao conceito de movimento da história, ou à

42 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado... Op. Cit., p. 273-274.


43 Ibidem. p. 278.

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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

sua temporalização.44

Segundo esse autor, apesar da historiografia mencionar, cada vez mais, uma
“época contemporânea” a partir do século XVIII, o conceito, propriamente dito de
“tempos modernos” só começou a ser documentado no século XIX. Contudo, o que
torna o conceito de modernidade particular é sua relação com a temporalização,
embora, em nossa opinião, Koselleck explore pouco isso. Segundo ele, a expressão
“tempos modernos” apenas estaria vinculada à ideia de um novo tempo. Na verdade,
são as temporalizações que dão sentido ao termo, ou seja, é sempre empregado
como um contraste ao tempo anterior e, ao se selecionar autores, obras e
autoridades, como Dante, por exemplo, essa antítese ganha um sentido de
rompimento de coetaneidade.
Já como conceito, no século XIX, a idade média associa-se ao cientificismo, ao
nacionalismo e à ideologia colonial, que atravessa todo o século XX e chega ao XXI,
por meio da ideia de “idade média global”, anteriormente mencionada. Como
demostrou Richard Utz,45 os medievalistas, inclusive, muitos dos colegas dos dias de
hoje, têm as suas bases epistemológicas assentadas no conceito de idade média. Ou
melhor, é como se, depois que o conceito de idade média passou a ser visto como um
período, a idade média tivesse vida própria e a necessidade de pensarmos sobre as
suas origens e toda as implicações da existência deste “período” histórico fossem
colocadas à parte. Como demonstramos, a idade média não existe sem uma política
de temporalização, aqui, usamos a obra de Dante para observamos esse fenômeno.
Ela também não existe fora dos parâmetros discursivos de ciência, aliás, ela se
tornou uma disciplina por meio de tais parâmetros, ou melhor, como nos lembrou
Utz, tornamo-nos snobes com eles.

We medievalists have had a pretty good run in academe. We were


admitted in the final third of the 19th century after we proved that
our subject was complex (read: science-like) enough to warrant
professionalized study. European nations’ desire for origins, to use
the title phrase in Allen J. Frantzen’s influential book, helped

44Ibidem. 269.
45 UTZ, Richard. Don’t Be Snobs, Medievalists! Disponível em:
<https://www.chronicle.com/article/dont-be-snobs-medievalists/>. Acessado em 20 de setembro
de 2020.

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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

expand the field into the second half of the 20th century. Even in
America, although her very existence was predicated on leaving
‘old’ Europe behind, academic work on various medieval heritages
thrived to the point where every humanities department boasted
at least one medieval specialist.46

A pujança acadêmica dos estudos medievais está atrelada ao postulado


cientificista do século XIX, o qual está indissociavelmente vinculado ao colonialismo
evidenciado por Koselleck

[...] o teorema nascido da experiência da anacronia das histórias


diferentes, mas cronologicamente simultâneas, comprova até que
ponto o tempo interno das diversas histórias individuais veio a
organizar toda a história. Com o descobrimento do globo terrestre
apareceram muitos graus distintos de civilização vivendo em um
espaço contíguo, sendo ordenados diacronicamente por uma
comparação sincrônica. Olhando-se para a América selvagem a
partir da Europa civilizada, olhava-se também para trás [...]. As
comparações ordenaram a história do mundo, que passava a fazer
parte da experiência, interpretada como um progresso para
objetivos cada vez mais avançados. Um impulso constante para a
comparação progressiva proveio da observação de que povos,
estados, continentes, ciências, corporações ou classes estavam
adiantados uns em relação aos outros, de modo que por fim – desde
o século XVIII – pôde ser formulado o postulado da aceleração ou –
por parte dos que haviam ficado para trás – o do alcançar ou
ultrapassar. Esta experiência básica do ‘progresso’, que pôde ser
concebida por volta de 1800, tem raízes no conhecimento do
anacrônico que ocorre em um tempo cronologicamente idêntico.47

O aspecto interessante sobre todas as questões levantadas por intermédio


das temporalizações de Dante e de sua obra é como a idade média, mesmo com todas
as mudanças do último quartel do século XX, ainda não conseguiu desvincular-se do
cientificismo historicista.

We are no longer protected by our involvement in preserving


European heritages, an involvement often joined up with
primordialist, jingoist, and colonialist mentalities discredited in the
Western world by the 1970s. And we are as endangered as the rest
of our humanities colleagues by the advent of new areas of
scholarship, the intimidating popularity of the STEM disciplines,
and politically motivated cuts to the liberal arts.48

46 Ibidem.
47 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado... Op. Cit., p. 284-285
48 UTZ, Richard. Don’t Be… Op. Cit.

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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

Observações como a citada ainda são raras entre os especialistas nesse


“período”. Embora estejam ameaçados, os medievalistas, em sua grande maioria,
ainda não se desvincularam das perspectivas colonialistas presentes nos estudos de
idade média. Sobretudo, entre alguns pesquisadores brasileiros, ainda predomina a
ideia de que a idade média é um período histórico e, por isso, não a problematizam
como um conceito construído com temporalizações ocorridas desde o século XIV.
Por aqui, no máximo, notamos a reafirmação de “cinquenta tons de historicismo”
feita pela reprodução acrítica da historiografia francesa.
Não é obra do acaso que o Dicionário temático do Ocidente medieval49 ainda
hoje seja referência incontestável nos programas de curso de história medieval
Brasil afora. Entre os diversos verbetes desse dicionário, destacamos o escrito por
Christian Amalvi50 no qual, apesar de citar as diversas formas de se apropriar e usar
a idade média, não a problematiza como um conceito construído por
temporalizações. E, ao final do texto, o autor insinua que a historiografia francesa
teria resolvido o problema acerca de como se deve estudar a idade média. Segundo
ele, das novas possibilidades trazidas pelos Annales três foram, especialmente,
inovadoras.

[…] 1) o dos sistema de parentesco, no qual se sobressai a influência


de Antropologia estrutural de Claude Lévi-Straus, e da história das
mulheres, continente por muito tempo injustamente ignorado e ao
qual Georges Duby consagrou suas últimas publicações; 2) a
história dos corpos, cujas principais orientações articulam-se em
torno dos comportamentos alimentares e vestimentais, as relações
amorosas, as atitudes face à doença, ao sofrimento e à morte; 3) os
sistemas de representações, enfim, que constituem o coração, o
‘núcleo duro’ da história das mentalidades, deste imaginário
medieval que Jacques Le Goff foi um dos primeiros a explorar,
enquanto Jean-Claude Schmitt propunha uma Idade Média dos
gestos e das imagens.51

Amalvi vai além, adentra o campo da cronologia e sustenta que, desde os

49 LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente medieval. 2 vols.


Bauru/São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial, 2002.
50 AMALVI, Christian. Idade Média. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário

temático... Op. Cit., p. 537-551.


51 Ibidem. p. 548.

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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

românticos, apontava-se para uma ruptura abissal entre a antiguidade romana e o


início da idade média. A historiografia recente, leia-se a francesa, negou a ruptura e
defendeu que a transição foi lenta. Ainda, a partir do conceito de “Antiguidade
Tardia”, por meio do qual Henri-Irénée Marrou e Peter Brown substituíram o de
“Baixo Império”, Jacques Le Goff propôs uma cronologia, baseada no conceito de
Braudel de longa duração.
Ou seja, em sua conclusão, Amalvi além de revisitar a produção dos Annales,
defende, de forma implícita, que a nova história contribuiu para a eliminação dos
clichês relativos à idade média. Destacamos que aquilo que esse autor entende como
denunciar os clichês sobre a idade média não é mais do que permanecer no campo
dos usos e as apropriações que foram feitas deste “período”. A chamada nova
história, com os seus “tons de novo cientificismo”, reafirmou e continua a reafirmar,
ainda no século XXI, uma série de postulados colonialistas da historiografia francesa.
Observamos que no verbete sobre idade média do Dicionário temático Amalvi
fez um autoelogio à produção francesa do século XX. Ainda, termina com a premissa
da longa idade média, a qual, ao estender o período para além dos marcos
cronológicos tradicionais criou a possibilidade de pensar a sociedade medieval para
fora do continente europeu. A perspectiva de uma sociedade medieval que se
estende para além do século XV e da Europa possibilitou pesquisas como as de Luis
Weckmann e Jérôme Baschet que buscam reminiscências medievais nas sociedades
construídas nas Américas, criando para as colônias uma identidade ao passado
europeu. Com efeito, o estudo de Amalvi reafirma a centralidade europeia para
temporalizar a história humana.

4 – Conclusão
Na contramão desta visão cientificista e colonialista da história medieval,
está a reflexão feita pela teoria do medievalismo segundo a qual não se estuda o
medievo propriamente dito, aliás, ele apenas existe como uma construção e, deste
modo, estudamos a sua recriação, apropriação e usos ao longo do tempo. No caso
deste artigo, demonstramos como Dante Alighieri e sua obra foram medievalizados
e temporalizados, e, deste modo, o vinculamos ao longo processo de construção do

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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

conceito de idade média.


Desejamos ter demonstrado com este texto como Dante esteve associado à
fabricação de uma nova ideia de tempo e de história da mesma forma como, por
meio dele, seria possível compreender as diferentes temporalizações produzidas
por seus biógrafos e comentadores. O poeta florentino, à revelia da vontade dos seus
intérpretes, foi coetâneo a uma série de outros autores, conhecidos e anônimos.
Revisitar Dante, às vésperas do seu sétimo centenário, contribui para
refletirmos sobre os seus usos e apropriações, quer de sua obra, quer do seu tempo,
isto é, quais são as bases que temos para pensar o fazer histórico. Assim, surgem
algumas perguntas, cujas respostas são difíceis e ainda estão em aberto. Por que
Dante faz parte da “história universal”? Por que a centralidade da história europeia
na formação dos historiadores em diversas partes do mundo? Por que
hierarquizamos o tempo e os espaços? Por que os historiadores, em especial, os
medievalistas, muitas vezes, negam a premissa da coetaneidade? Embora não
tenhamos como responder tais indagações, apenas levantamos as questões, cujas
respostas, em nossa opinião, passam por descolonizar a idade média e reconhecer
as suas políticas de temporalização eurocêntricas. Inclusive, sustentamos o uso da
teoria do medievalismo, com as devidas reservas críticas, para mantermos a nossa
independência e refletir sobre a nossa forma de fazer história medieval.

Artigo recebido em 08/10/2020


Artigo aceito em 23/12/2020

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