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BERTARELLI, Maria Eugenia, AMARAL, Clinio de Oliveira. Discursos Sobre A Divina Comédia Ou Temporalizações de Dante Aligheri - A Construção Do Conceito de Idade Média
BERTARELLI, Maria Eugenia, AMARAL, Clinio de Oliveira. Discursos Sobre A Divina Comédia Ou Temporalizações de Dante Aligheri - A Construção Do Conceito de Idade Média
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1 – Introdução
A idade média,1 mais do que um período histórico, é um conceito. E, como tal,
foi construída durante um longo processo até propriamente emergir no século XIX.
A partir daí, foi reelaborada e preenchida de sentido de acordo com determinado
contexto histórico. Com efeito, além de descrever uma “época da história universal”,
em um sentido historicista tradicional, o conceito de idade média pode também ser
entendido como uma estratégia de periodização realizada historicamente, uma
performance teórica, política e cultural de construção e de delimitação de fronteiras
cronológicas capazes de definir um “outro” temporal, com usos ideológicos e
políticos que podem ser observados na sua apropriação no século XIX ou mesmo nas
releituras dos séculos XX e XXI. Assim, o conceito de idade média foi criado,
apropriado e ressignificado por meio dos interesses em jogo em cada contexto.
Tal conceito forma-se ao longo de um lento processo, que se desenvolve
associado ao surgimento de um outro, o de tempos modernos. Essa relação implica
a construção de um terceiro conceito, o de renascimento, fundamental como ponto
de articulação entre o medievo e a modernidade. O renascimento foi capaz de
temporalizar2 o medievo e, ao mesmo tempo, contribuir para a construção da idade
média. Embora tais conceitos, entendidos como períodos históricos, apenas se
estabelecerão na historiografia a partir do século XIX, apoiam-se nas noções
surgidas no ambiente humanista que se entende como um momento da história em
que se volta a nascer, após um longo e tenebroso inverno.
Neste artigo, buscaremos demonstrar que a composição de um determinado
discurso sobre o poeta Dante Alighieri e sobre a sua relevância intelectual estaria
inserido dentro do movimento que, nos séculos XIV e XV, elabora algumas das
percepções e perspectivas que se encontram na gênese da criação do conceito de
idade média, o qual irá se impor mais adiante. Isto é, embora não seja possível
afirmar que idade média, como conceito, já circulasse no quatrocentto na península
1Neste artigo, optamos por grafar idade média, bem como todos os nomes dos períodos da história
com letra minúscula para sublinhar a nossa crítica à centralidade da temporalização europeia.
2 Cf. Sobre a noção de temporalização, cf. ALTSCHUL, Nadia R.. Politics of temporalization:
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Itálica, é possível investigar como se mobilizam nesse contexto certas noções que
dariam sentido ao conceito a partir do século XIX. Com efeito, durante o humanismo,
aparecem, pela primeira vez, as noções que seriam atribuídas posteriormente à
idade média, grosso modo, como a antítese do mundo moderno.
Defendemos que a construção de um discurso sobre Dante e sua obra estaria
articulada à produção de uma nova ideia de tempo e de história. Os comentários à
Divina Comédia e a escrita de biografias sobre o poeta mobilizam um discurso que
contribuiu para inaugurar um modelo de referência da chegada de um “novo
tempo”. A construção em torno da figura de Dante torna-se significativa quando
analisamos o diálogo estabelecido entre Giovani Boccaccio, Francesco Petrarca e
Leonardo Bruni, alguns dos mais notáveis autores a escreverem biografias ou
comentários sobre a obra do poeta florentino no contexto do humanismo italiano.
Observaremos como esses autores foram os primeiros a temporalizar Dante
Alighieri e, por conseguinte, constituíram as bases das posteriores temporalizações
que, em conjunto, produziram, sobretudo, no contexto do século XIX, o conceito de
idade média como parte de uma “história universal”.
Iniciaremos nosso texto investigando a produção de um discurso sobre o
poeta Dante Alighieri no ambiente intelectual florentino durante as primeiras
décadas do movimento humanista. Em seguida, analisaremos a articulação deste
discurso com a teoria do medievalismo e sua proposta de análise sobre os
mecanismos de temporalização. Finalmente, abordaremos a relação do que
denominamos de temporalização do poeta florentino com o nascimento do conceito
de idade média.
Sustentamos que o discurso sobre Dante pode ser estudado como um
processo pelo qual o poeta florentino foi representado como um índice do tempo, ou
seja, ele foi temporalizado. Utilizamos como referência teórica os estudos de Nádia
Altschul que sublinha como alguns elementos da história servem a certos usos
ideológicos e políticos. Fundamentado em tal perspectiva, argumentamos que Dante
Alighieri passa por um processo de temporalização, iniciado no período logo
posterior ao fim de sua vida, e ligado a um discurso que mobiliza novas percepções
acerca do tempo.
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3 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto/Ed. PUC/Rio, 2006.
4 Texto da chamada para o Dossiê Visões dantescas: A Divina Comédia entre a Idade Média e a
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5 Na realidade, deveria chamar-se De vita studiis et moribus viri clarissimi, como se inicia a obra, mas
o próprio Boccaccio refere-se a ele como trattatello, no diminutivo.
6 AUBERT, Eduardo Henrik. Vidas de Dante: escritos biográficos dos séculos XIV e XV. Cotia, SP: Ateliê
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exterior. Contudo, tal ilusão juvenil havia ficado para trás. Hoje, afirma Petrarca,
“accolgo presso di me tutti gli altri poeti, e questo [Dante] prima di tutti”. De fato,
louva o estilo dantesco, evidenciando sua escrita em língua vulgar, em estilo elevado,
que merece “senza esitazione la palma della volgare eloquenza”.11
Petrarca, ainda nesta carta em que trava um diálogo com Boccaccio, admite
que deseja deixar clara sua admiração pelo poeta para que o “povo vulgar não o
julgue”, dizendo que ele desdenhou de Dante, “poiché molti mi acsusan d’invidia”.12
Como poderia ele invejar aquele homem que se dedicou a vida toda aos mais
elevados estudos, a “arte suprema”, pergunta Petrarca. Em virtude disso, indaga ao
amigo Boccaccio: “perché dovrei ividiarlo e non esaltarlo”?13 Tal como fizera
Boccaccio, Petrarca, aquele que, presumivelmente, foi o primeiro a cunhar a
expressão medium tempus ou media tempora, também temporalizou Dante de
modo a indicá-lo como um ponto de inflexão temporal.
No Cancioneiro, concluído por volta de 1370, Dante é mencionado por
Petrarca como pertencendo ao “grupo de poesia de amor em língua vernácula”.14
Referia-se ao Dolce Stil Nuovo, estilo poético que exalta o amor por uma donna, pura
e bela, do qual Dante foi um dos maiores expoentes, ao lado de Guido Guinezelli,
Guido Cavaltanti e Cino da Pistoia. É interessante observar como Petrarca não havia
estabelecido com a obra dantesca profunda relação durante os anos de juventude.
Contudo, na maturidade, possivelmente influenciado pelo diálogo com Boccaccio –
de quem teria recebido uma cópia da Comédia e do tratatello –, além do
reconhecimento da grandeza do poema buscou, com seus comentários, edificar a
imagem de Dante como referência de estilo poético, de temas e de personagens da
antiguidade clássica. Petrarca, além de temporalizar Dante, contribui para a
afirmação de um discurso sobre a volta à antiguidade como uma característica de
um novo tempo, que se contrapunha ao obscurantismo do, agora, já por ele
nomeado, tempo do meio. Embora ele não o utilize como um conceito, o
11 PETRARCA, Francesco. Familiares XXI. Biblioteca dei classici italiani di Giuseppe Bonghi.
Disponível em: <http://www.classicitaliani.it/>. Acesso em: 05 de dezembro de 2016.
12 Ibidem.
13 Ibidem.
14 Ibidem. p. 38.
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15 HAMILTON, William B. Francesco Petrarca and the parameters of historical research Religions, 2012,
242, p. 241.
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acompanhado de seu avô e de seu pai, no dia em que uma “tempesta civile” baniu
ambos da cidade. Comentando a amizade nascida entre o seu pai e o grande poeta
escreveu: “tra compagni di sventura nascono grandi amicizie”, pois tinham em comum
além da fortuna, “l’ingegno e gli studi”. Simon Gilson observa que tal relação
sublinhada por Petrarca teria o propósito de definir uma geração que inauguraria um
período histórico definido, uma sequência precisa na qual destaca “his own
proeminent place in what he regarded as a moment of cultural and literary renewal”.18
Entendemos, assim, a sua ambição de oferecer um modelo e de estabelecer a
herança de um movimento que desejava inventar, ao passo que se sentia parte dele.
Petrarca, neste sentido, enfatiza a utilização da língua vernácula, a presença de
temas e figuras da antiguidade além da criação poética dentro deste estilo original
do qual Dante seria um dos precursores em sua narrativa.
Reforçamos o argumento de que, embora o conceito de renascimento como
período histórico não estivesse definido no século XIV, os temas mobilizados por
Boccaccio e por Petrarca por meio da temporalização de Dante Alighieri são
essenciais para a criação do renascimento no século XIX, particularmente, por
intermédio dos estudos de Jacob Burckhardt,19 que irá enfatizar a noção de
retomada da antiguidade e a oposição ao período medieval, como veremos adiante.
Dentre os que se dedicaram à crítica dantesca destacamos, por fim, um
terceiro nome proeminente: Leonardo Bruni. Embora nunca tenha chegado a
conhecer Boccaccio ou Petrarca pessoalmente fê-lo por via de Coluccio Salutati,
chanceler de Florença, interlocutor dos dois e mestre e guia de Bruni nos estudos
humanísticos.
Stephen Greenblatt20 insiste neste ambiente intelectual dos primórdios do
renascimento no qual Coluccio Salutati teria sido uma figura notável para a
promoção dos estudos de grego e da cultura antiga. O chanceler florentino era, de
fato, ressalta Greenblatt, alguém excepcional, “dotado não apenas de conhecimentos
jurídicos, astúcia política e habilidade diplomática, mas também talento para as
Letras, 2012.
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21 Ibidem. p. 107.
22 Ibidem.
23 Disponível em: <www.classicititaliani.it>. Consultado em: 16 de dezembro 2016.
24 BARTOLI, Lorenzo. Bruni e Boccacio biografia di Dante: appunti filologici. Madrid: Universidad
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presente” e os episódios que o levaram ao exílio, aos quais Boccaccio teria dado
pouco relevo. Sugerimos a possibilidade de que Dante Alighieri representasse para
ele um referencial da jovem Florença, de um tempo que se inaugurava, no qual a
participação na vida pública é um elemento prestigioso. Bruni estaria preocupado
em temporalizar Dante por meio de sua ação política. Observamos como, segundo
cada contexto de temporalização, apesar do discurso sobre o novo, a temporalização
sempre atende às necessidades imediatas. Segundo Nadia Altschul, esses “ruídos”
do passado são, na verdade, “ruídos” do presente que nós identificamos como
“passado”.
Leonardo Bruni se destacou como autor da História do povo florentino, cujo
primeiro livro começou a circular em 1416 e os demais foram sendo escritos ao
longo de três décadas. A percepção de ser protagonista de um tempo novo
evidencia-se nesta obra, que abrange um período de quatorze séculos de história,
desde a fundação romana até a morte de Guiangaleazzo Visconti (1402). De acordo
com Francisco Murari Pires, uma temporalidade entendida como presente histórico
florentino revela-se no marco escolhido para iniciar o segundo livro da obra: os
acontecimentos do ano 1250. O ano marcaria, para Bruni, um momento em que os
florentinos, após alguns acontecimentos que se precipitam na cidade, insurgem-se
tomando as rédeas do governo, em defesa da liberdade.25 Em virtude disso, Murari
observa: “A temporalidade presente, enquanto curso da história atual da cidade, que
Bruni assim distingue, tem ‘o povo florentino’ por sujeito da história”.26
Embora Leonardo Bruni não explicite a relação, sabemos que Dante teria
nascido precisamente durante a segunda metade do século XIII. Isto é, durante o
tempo presente florentino ao qual se dedica no segundo livro de sua História. A
trajetória pública de Dante permite pensar que ele faria parte deste “povo
florentino” exaltado e temporalizado por Bruni, que passa a ser sujeito da história
25 Sobre o ano de 1250 escreve Bruni: “Após a morte de Frederico, cujos terríveis crimes já foram por
nós descritos, o povo florentino, há muito tomado de ódio contra a arrogância e ferocidade daqueles
que haviam se apossado dos destinos da comunidade (“res-publica”), insurgiu-se tomando as rédeas
do governo em defesa da liberdade e condução dos negócios públicos de acordo com a vontade
popular”. PIRES, Francisco Murari. Leonardo Bruni: História e Retórica. Modernidades tucidideanas.
São Paulo: Edusp-Fapesp, 2007, p.17.
26 Ibidem.
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utilizamos um índice desse problema, ou melhor, a forma como Dante e sua Divina
Comédia foram temporalizados e as suas implicações para a posterior construção do
conceito de idade média.
Dante Alighieri, em diversos momentos, aparece como um marco do
humanismo. Assim, apesar do florentino viver na passagem do século XIII para o XIV,
ele, devido à sua obra, teria engendrado uma “aceleração” temporal que teria sido
capaz de gerar uma inflexão do tempo e, por conseguinte, criar uma temporalidade,
rompendo a coetaneidade de sua época. Como implicação prática disso, a
historiografia, sobretudo, a partir do século XIX construirá, por exemplo, uma
dessincronia temporal entre a península Itálica e a península Ibérica, a primeira a
caminho das luzes do humanismo e do renascimento e a segunda a caminho da
perpetuação das trevas medievais e do feudalismo, inclusive, com a sua chegada à
América.29 Assim, o uso da obra do Dante como um marco para os humanistas traz
consigo uma questão, que teria sua origem no século XIV; o da negação da
coetaneidade e, por conseguinte, a afirmação de uma hierarquização temporal entre
moderno e medieval.
Embora Altschul não esteja preocupada com o contexto do chamado
humanismo italiano, concordamos com ela no que diz respeito à necessidade de
defender a ideia de coetaneidade, pois a sua negação implicaria, necessariamente,
em admitir a existência de diversas temporalidades coexistindo ao mesmo tempo,
bem como todos os seus desdobramentos colonialistas. Além de defendermos a
coetaneidade, pressupomos que o passado é uma construção feita por relações de
temporalização. A questão de fundo dessa autora, com a qual concordamos, é que
todo discurso sobre o passado perpassa por escolhas, ou seja, determinados objetos
nós o alçamos à condição de passado/monumento, ao passo que outros são,
simplesmente, esquecidos. No caso da idade média, nós medievalizamos os objetos,
29Sobre a tese segundo a qual a colonização da América perpetuou o medievo no Novo Mundo, cf.
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo,
2006. Reafirmamos as nossas críticas segundo as quais tal tese estaria amparada em uma visão
colonialista da história por parte da historiografia francesa. Sobre a crítica, cf. AMARAL, Clínio de
Oliveira e BERTARELLI, Maria Eugência. Long Middle Ages or appropriations of the medieval? A
reflection on how to decolonize the Middle Ages through the theory of Medievalism. História da
Historiografia. Ouro Preto, v. 33, n. 33, p. 97-130, março-agosto, 2020.
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32 Ibidem. p. 8-9.
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33 Dentre tantas referências é possível citar os estudos de Ernest Curtius, Benedetto Croce, Eric
Auerbach, Ezra Pound e Jorge Luis Borges.
34 ALTSCHUL, Nadia R. Politics of… Op. Cit., p. 7.
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Middle Ages is not a global historical time but a local European time
span. The ‘global’ Middle Ages therefore exports a European time
frame into parts of the world that could have maintained their own
established periodizations.35
35 Ibidem. p. 13.
36 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado... Op. Cit., p. 271.
37 Ibidem.
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XVIII e XIX”.38
Sugerimos que um dos maiores responsáveis por este processo foi Jacob
Burckhardt, quem escreveu, em 1860, A cultura do Renascimento na Itália.39 Nesse
estudo, o autor organiza o período por intermédio da ideia de unidade cultural do
renascimento. Ele faz o retrato de uma época, enfatizando o que lhe é recorrente,
constante e típico. Para Burckhardt, o renascimento definia-se em oposição à idade
média, pois, segundo ele, a importância histórica da Itália reside no fato de que ali,
pela primeira vez, “o véu medieval dispersou-se ao vento”:
38 Ibidem. p. 273.
39 BURKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
40 Ibidem. p. 44.
41 Ibidem. p. 180.
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mais adiante:
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sua temporalização.44
Segundo esse autor, apesar da historiografia mencionar, cada vez mais, uma
“época contemporânea” a partir do século XVIII, o conceito, propriamente dito de
“tempos modernos” só começou a ser documentado no século XIX. Contudo, o que
torna o conceito de modernidade particular é sua relação com a temporalização,
embora, em nossa opinião, Koselleck explore pouco isso. Segundo ele, a expressão
“tempos modernos” apenas estaria vinculada à ideia de um novo tempo. Na verdade,
são as temporalizações que dão sentido ao termo, ou seja, é sempre empregado
como um contraste ao tempo anterior e, ao se selecionar autores, obras e
autoridades, como Dante, por exemplo, essa antítese ganha um sentido de
rompimento de coetaneidade.
Já como conceito, no século XIX, a idade média associa-se ao cientificismo, ao
nacionalismo e à ideologia colonial, que atravessa todo o século XX e chega ao XXI,
por meio da ideia de “idade média global”, anteriormente mencionada. Como
demostrou Richard Utz,45 os medievalistas, inclusive, muitos dos colegas dos dias de
hoje, têm as suas bases epistemológicas assentadas no conceito de idade média. Ou
melhor, é como se, depois que o conceito de idade média passou a ser visto como um
período, a idade média tivesse vida própria e a necessidade de pensarmos sobre as
suas origens e toda as implicações da existência deste “período” histórico fossem
colocadas à parte. Como demonstramos, a idade média não existe sem uma política
de temporalização, aqui, usamos a obra de Dante para observamos esse fenômeno.
Ela também não existe fora dos parâmetros discursivos de ciência, aliás, ela se
tornou uma disciplina por meio de tais parâmetros, ou melhor, como nos lembrou
Utz, tornamo-nos snobes com eles.
44Ibidem. 269.
45 UTZ, Richard. Don’t Be Snobs, Medievalists! Disponível em:
<https://www.chronicle.com/article/dont-be-snobs-medievalists/>. Acessado em 20 de setembro
de 2020.
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expand the field into the second half of the 20th century. Even in
America, although her very existence was predicated on leaving
‘old’ Europe behind, academic work on various medieval heritages
thrived to the point where every humanities department boasted
at least one medieval specialist.46
46 Ibidem.
47 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado... Op. Cit., p. 284-285
48 UTZ, Richard. Don’t Be… Op. Cit.
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4 – Conclusão
Na contramão desta visão cientificista e colonialista da história medieval,
está a reflexão feita pela teoria do medievalismo segundo a qual não se estuda o
medievo propriamente dito, aliás, ele apenas existe como uma construção e, deste
modo, estudamos a sua recriação, apropriação e usos ao longo do tempo. No caso
deste artigo, demonstramos como Dante Alighieri e sua obra foram medievalizados
e temporalizados, e, deste modo, o vinculamos ao longo processo de construção do
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