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RESUMO
O Estado de São Paulo, maior produtor de cana-de-açúcar do Brasil, possui mais de 80% das áreas
destinadas à cultura canavieira mecanizadas, tendo reduzido substancialmente a prática da queima da
palha da cana. Esse avanço da mecanização nos canaviais paulistas foi fortemente incentivado pelo
“Protocolo Agroambiental do Setor Sucroalcooleiro Paulista”, cuja finalidade era a adoção de ações
destinadas a consolidar o desenvolvimento sustentável da indústria da cana-de-açúcar do Estado de São
Paulo. No entanto, em que pese o escopo de promoção da sustentabilidade, e apesar de dispor sobre
medidas protetivas do meio ambiente, o Protocolo foi omisso em relação ao trabalhador do setor
sucroalcooleiro. Considerando este contexto, o objetivo deste artigo é analisar o “Protocolo
Agroambiental do Setor Sucroalcooleiro Paulista”, em si mesmo e na comparação com acordo similar
do mesmo segmento econômico, refletindo sobre a omissão em relação à proteção social do trabalhador,
tanto em relação àquele que permanece no corte manual, quanto àquele que foi substituído pela
máquina.
PALAVRAS-CHAVE: CANA-DE-AÇÚCAR; SETOR SUCROALCOOLEIRO; MECANIZAÇÃO;
PROTOCOLO AGROAMBIENTAL; TRABALHADOR.
ABSTRACT
The State of São Paulo is the largest producer of sugarcane in Brazil and more than 80% of its lands
intended for sugar cane plantation are mechanized, which substantially reduced the practice of straw
burning. This advance of mechanization in São Paulo was strongly encouraged by the “Protocolo
Agroambiental do Setor Sucroalcooleiro Paulista” (“Agro-Environmental Paulista Sugarcane Industry
Protocol”), whose purpose was the adoption of actions aimed at strengthening the sustainable
development of sugarcane industry in the State of São Paulo. However, despite the scope of promoting
sustainability, and despite having protective environment provisions, the Protocol was silent on the
workers of this sector. Considering this context, the aim of this article is to analyze the “Protocolo
Agroambiental do Setor Sucroalcooleiro Paulista”, by itself and in comparison to similar agreement in
the same economic sector, reflecting on the omission about workers' social protection, both in relation
to the one who stays in manual cutting, as one who has been replaced by the machine.
KEY-WORDS: SUGAR CANE; SUGAR AND ALCOHOL SECTOR; MECHANIZATION; AGRO-
ENVIRONMENTAL PROTOCOL; WORKER.
Guilherme Guimarães Feliciano1
Introdução
O cultivo dessa matéria prima envolve diferentes estágios produtivos, que vão
desde o seu plantio até o corte e colheita. E é para esta fase final da produção que se
voltam maiores atenções. O corte da cana é tema que gera ampla preocupação,
especialmente sob as perspectivas ambiental e social, já que envolve a queima da palha da
cana e submete o cortador a condições penosas de trabalho.
1 Livre-Docente em Direito do Trabalho e Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP. Doutor em
Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa (ULISBOA). Extensão Universitária em
Economia Social e do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor associado do
Departamento de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP. Juiz do Trabalho Titular da 1ª Vara do Trabalho
de Taubaté. Coordenador do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho da
Universidade de Taubaté (UNITAU). Presidente da ANAMATRA (biênio 2017/2019).
2
Doutoranda e Mestra em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD/USP).
Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP). Bolsista
de Doutorado do programa “The Ryoichi Sasakawa Young Leaders Fellowship Fund” (Sylff) em 2019. Advogada.
Professora universitária.
A queima da palha da cana (ou coivara) é uma estratégia utilizada pela indústria
canavieira para otimizar as operações de corte e colheita. Esta técnica consiste em atear
fogo no canavial, promovendo a limpeza das folhas secas e verdes, que são inutilizadas
pela indústria, e facilitando o corte. No entanto, apesar de ser útil à produção de cana, a
queimada é extremamente prejudicial ao meio ambiente e à saúde do trabalhador, pois
promove emissões de gases do efeito estufa na atmosfera, como o gás carbônico, o
monóxido de carbono, óxido nitroso, metano, e aumenta a poluição do ar atmosférico. A
fumaça e fuligem, oriundas da queima, espraiam-se para além do perímetro do canavial,
provocando o aumento de temperatura da região, doenças respiratórias, dermatológicas,
cardiovasculares, dentre outros prejuízos.
Tem-se, por essa via, a exata dimensão da natureza holística e poliédrica do que se
denomina “desenvolvimento sustentável”. E, já por isso, desconsiderar a proteção social do
trabalhador que desenvolve suas atividades no setor sucroenergético – e, bem assim,
daquele que foi substituído pela máquina - não permite considerar a iniciativa do Protocolo
como realmente “sustentável” (conquanto tenha sido assim caracterizada no texto do
documento), notadamente após 2015, mercê da ODS n. 8.
De fato,
[...]
“Esse fenômeno é evidenciado pela análise do DIESSE (2007), que mostra que no
corte de cana, apesar do aumento na formalização do emprego em São Paulo,
chegando a 90%, a produtividade cresceu 236,8%, enquanto que o salário caiu
5,5%, chegando, em 2006, à morte de 450 trabalhadores na atividade. De acordo
com Silva (2011), há no setor a prevalência da utilização da mão de obra migrante
temporária de regiões empobrecidas, o que facilita a maior exploração do
trabalhador. Esses fatores favorecem o esgotamento prematuro do trabalhador, já
que, conforme Silva (2005), com o aumento de produtividade dos cortadores de
cana, a vida útil desses trabalhadores é menor que a dos escravos africanos do
século XIX.”
Admitidos esses dados e as suas conclusões — como admitimos —, resulta que, afinal,
o “Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-
Açúcar” cumpriu basicamente uma função político-simbólica. No mundo-do-ser, não
preordenou transformações efetivas na realidade social a que se destinou (agravando,
portanto, o quadro de desproteção social observado nas iniciativas público-privadas de
autorregulação do setor — já que, neste caso, a “resposta simbólica” tem o condão de
arrefecer demandas sociais legítimas).
Conviria associar a tais mecanismos, nesses e noutros casos futuros, cláusulas que
dispusessem, no âmbito do consenso criado, mecanismos mínimos de convolação
procedimental que reportassem instrumentos de hard law. O envolvimento do Ministério
Público do Trabalho, p.ex., poderia assegurar a criação dessa dimensão adicional,
associando aos protocolos e compromissos termos de ajustamento de conduta sob a
regência da Lei n. 7.347/1985. Outros instrumentos acessórios de similar utilidade
poderiam ser imaginados e sucessivamente elencados. Assim, por exemplo:
Considerações finais
Aconteceu em Cancun.
Os instrumentos de soft law nem sempre são eficazes para reconfigurar hábitos
econômicos (sobretudo em contextos sociopolíticos nos quais instâncias federativas não se
reconhecem e dialogam mal — como amiúde se dá no Brasil). A própria Organização
Internacional do Trabalho passou a assimilar esta lição, resgatando os pressupostos
históricos da hard law, nos anos seguintes à aprovação da Declaração dos Princípios e
Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998 (ela própria, originalmente, um típico
instrumento de soft law). No segmento sucroalcooleiro nacional, é ingente produzir a
mesma inflexão, com ou sem os parceiros sociais que subscrevem protocolos de intenções.
E há bons caminhos para infletir.
Referências
GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. 3ª ed. Trad. Eric Nepomuceno. Porto
Alegre: L&PM, 2014.
SOARES, Cf. Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público. São
Paulo: Atlas, 2002.