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Resumo.
No extremo sudeste do estado do Rio de Janeiro, pertencendo ao
município de Paraty, localiza-se um dos últimos redutos de uma população
tradicional de pescadores artesanais e agricultores e artesãos, o Saco do
Mamanguá. A região não possui acesso rodoviário, sendo acessível somente por
barco e/ou por longas caminhadas a partir de Paraty-Mirim.
O Saco do Mamanguá é uma reentrância do mar, inserida no domínio da
Mata Atlântica, que possui aproximadamente 8 km de comprimento e 1 km de
largura e que se encerra em um vasto sistema de manguezal. Esta região
apresentar uma grande biodiversidade característica da Mata Atlântica e sua
zona aquática é tida como uma das mais importante áreas de criação e
reprodução de organismos marinhos da Baia da Ilha Grande. O Mamanguá
também abriga uma comunidade caiçara de 120 famílias que dependem dos
recursos naturais do local para a sua subsistência.
A singularidade da relação existente entre a população local e o meio
ambiente foi determinante à criação, em 1992, da Reserva Ecológica da
Juatinga – R.E.J, sob administração do Instituto Estadual de Florestas (IEF) do
Rio de Janeiro. Logo após criação da REJ a Universidade de São Paulo,
representada pelo NUPAUB/USP1 começou a realizar uma série de estudos na
região objetivando um melhor conhecimento do Saco do Mamanguá.
Parte dos estudos foram publicados no livro “O nosso lugar virou parque:
Estudo Sócio-Ambiental do Saco de Mamanguá-Paraty-RJ” (Diegues e Nogara,
1999. NUPAUB-USP, São Paulo). A obra enfatizou o conhecimento e a
dependência da população local com relação ao meio ambiente, apoiando seu
direito de permanecer na terra e a contribuição que poderia dar para o plano de
manejo da Reserva Ecológica da Juatinga.
Eis o cenário da época: 119 famílias caiçaras com 527 habitantes (218
crianças), 26 propriedades de veranistas, quatro igrejas, três escolas, e um
posto de saúde. Entre os chefes de família, 36,75% trabalhavam com pesca;
25,7% com atividades agricolas; 11,4% faziam artesanato e 25,6 % prestavam
serviços. Mais de 60 % dos chefes de família indicaram a pesca ilegal de arrasto
no fundo do mar como o maior problema, queixando-se também do posto de
saúde, educação precária, acúmulo de lixo, falta de comunicação e transporte e
de trabalho.
1
Núcleo de Apoio à Pesquisas sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras
Já que o poder público não se fazia presente, moradores e donos de
sítios se mobilizaram em torno da AMAM - Associação de Moradores e Amigos
do Mamangua. Em janeiro de 1998, começou o Projeto de Gestão Integrada do
Saco do Mamanguá, seguindo as diretrizes recomendadas em conferências e
convenções sobre ambientes costeiro-marinhos que procuram integrar questões
sociais e ambientais em busca de um desenvolvimento comunitário sustentável.
Dentre os resultados alcançados cabe citar o projeto de Proteção dos
recursos pesqueiros do Saco do Mamangua, as ações de manejo florestal
participativo por populações tradicionais e o projeto Fazeres de Paraty, o
processo de instauração de ação civil publica para conter a construção de infra-
estrutura de apoio náutico e o projeto de engorda de ostras nativas.
As ações desenvolvidas no Saco do Mamangua, tem grande valor
ilustrativo e metodológico enquanto ferramenta de conservação sócio-ambiental
podendo servir como modelo para a gestão ambiental de outras regiões
brasileiras que apresentam características semelhantes.
Projetos e ações.
O manejo do caixetal
Em 1998, também foi criada a disciplina “Manejo florestal participativo
por populações tradicionais” pelo Laboratório de Silvicultura Tropical do
Departamento de Ciências Florestais da Escola de Agricultura Luiz de Queiroz
(ESALQ). Em 1999, por meio de uma parceria Ibama/ESALQ/USP/AMAM, foi
dado um curso de manejo comunitário de caixeta para quase 70% dos artesãos
do Mamanguá e feito um diagnóstico que apontou as áreas e a intensidade de
exploração, além da necessidade de envolver os artesãos na discussão sobre o
manejo: sabendo usar, não vai faltar.
Da cooperação entre saber tradicional e conhecimento científico sobre a
biologia e ecologia da caixeta, surgiu um sistema sustentável adequado à
pequena escala de produção, procurando reduzir o desperdício, evitar a morte
das árvores no período mais chuvoso e facilitar a colheita.
Navegar é preciso: barcos do Mamanguá
A semente plantada pelo manejo dos caixetais serviu de base para o
“Fazeres de Paraty”, parceria entre a Associação de Amigos do Museu de
Folclore Edison Carneiro e a AMAM, em 2002.
O artista Luís Pontual, radicado em Paraty, deu cursos de pintura de
artesanato em caixeta e foi realizada a exposição "Navegar é preciso: barcos do
Mamanguá", na Sala do Artista Popular no Museu de Folclore Édison Carneiro,
no Rio de Janeiro. Algumas famílias de artesãos passaram a vender diretamente
para lojas de São Paulo e Rio de Janeiro, evitando os atravessadores e
valorizando seus produtos através da pintura.
Os caiçaras do Mamangua.
Os caiçaras do Mamanguá são o resultado da mescla de portugueses,
índios e descendentes de escravos. A proporção destes últimos é mais elevada
do que na maioria das comunidades caiçaras do Litoral Sudeste devido à
importância dos escravos africanos na região de Paraty, onde foram a mão-de-
obra principal em diversos ciclos econômicos, particularmente na monocultura
da cana-de-açúcar.
Apesar de os caiçaras terem coexistido com esses ciclos que
empregavam a mão-de-obra escrava, muitas dessas comunidades litorâneas
foram formadas a partir de meados do século XIX, com o final da escravatura, a
libertação dos escravos, a dissolução de muitas grandes propriedades e o
aparecimento da produção em pequena escala, própria das comunidades
tradicionais, como a caiçara.
O Saco do Mamanguá conta hoje com cerca de 120 famílias, em torno de
600 pessoas espalhadas por praias ou pequenas aglomerações como o Baixio e
Cruzeiro, com mais de 100 moradores cada, seguidas por Ponta da Romana,
Curupira, Regato, Pontal, Praia Grande, Ponta do Leão, além de outras praias
com pequeno número de moradores.
A partir de 1990, o Saco do Mamanguá sofreu uma série de mudanças,
sendo uma das mais importantes à diminuição drástica das atividades agrícolas
que desapareceram na maioria dos povoados e praias, circunscrevendo-se a
lugares mais distantes no interior do Saco, onde ainda alguns caiçaras cultivam
a mandioca e produzem farinha. A venda das posses aos turistas, aliada às
dificuldades impostas pela legislação ambiental, fez com que as roças ficassem
cada vez mais distantes dos locais de moradia.
Ao abandono gradativo da lavoura correspondeu um aumento das
atividades pesqueiras, sobretudo a pesca artesanal do camarão branco, de alto
valor de mercado, o incremento da renda gerada pelo transporte de turistas e a
intensificação do artesanato feito de caixeta. Essas novas atividades,
principalmente o turismo e o artesanato, são sazonais, exercidas principalmente
nos poucos meses de verão e durante os feriados, gerando alguma renda que
acaba quando termina a estação dos turistas ou a construção da casa do
veranista.
Mesmo com tantas mudanças, os moradores de Mamanguá continuam
sendo membros de comunidades, em grande parte dependentes do
conhecimento que mantêm sobre a grande biodiversidade da mata e do mar.
Podem ser considerados parte de uma natureza que, como sua cultura, está em
constante transformação e cuja continuidade também depende de seu interesse
e empenho em conservá-la.
O futuro
O futuro da comunidade caiçara do Mamanguá tem como pano de fundo
a sobrevivência das populações tradicionais em todo o mundo. Nos países
pobres ou ricos, nos trópicos ou na imensidão gelada das estepes, povos que
sempre estiveram por ali, ligados à terra, às árvores, cultivando o solo árido e
cultuando os rios, são massacrados a partir da chegada de representantes de
uma sociedade mais estruturada tecnológica, ambiental e militarmente. Os
recém-chegados disputam com os moradores tradicionais os recursos naturais,
as terras e a paisagem.
Hoje, a maioria das pessoas concorda que é preciso conservar a
natureza, mas não será a diversidade cultural tão importante quanto a
biodiversidade? Cada homem que morre é uma biblioteca que se vai, diz um
provérbio africano. Cada caiçara que se descaracteriza deixa também uma
lacuna na própria sociedade nacional.
Quem defende esse raciocínio, acredita que, enquanto houver famílias
morando no Mamanguá, independentemente do nível de modernidade em que
vivam, a cultura local sobreviverá. “O caiçara tem um conhecimento “anfíbio”
sobre recursos e ciclos naturais das florestas e do mar que determina sua vida e
serve para transmitir saberes tradicionais. Enquanto houver peixes, caixeta,
árvores do mangue para serem usados em pesca, artesanato, construção de
casas, este conhecimento será transmitido e perpetuado”.
Algumas atividades vão mesmo ser substituídas, o que faz parte de um
processo natural de co-evolução. Conservar a cultura caiçara, depende de
manter as casas, as localidades e bairros, que sempre demandarão uma
tecnologia própria para o cotidiano, para ir até a cidade (que exige conhecimento
do tempo e do mar) para pescar e fazer extrativismo vegetal e animal, ou para o
lazer. E, as funções e serviços ecológicos, que muitas vezes são até mais
importantes dos que os interesses particulares da comunidade deverão ser
protegidas e o uso dos recursos naturais renováveis regulados caso a caso.