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Dindinha tinha razão.

No inverno de 66 fiz o caminho de volta pro Aye, cheguei com a força e determinação de
uma guerreira.

Eu não atinava com o porquê da necessidade, do querer dela em ver o


mundo ali à sua volta. Tudo era tão sem graça. Grandes mundos!...
Uma bitaquinha que vendia pão, cigarro, cachaça e pedaços de
rapadura. A bitaquinha era do filho dela. Ninguém gostava de comprar
nada ali, o movimento era raro. Vendia também sabão, água sanitária
e anil. E, fora a cachaça, estes eram os produtos que mais saíam
Trouxe comigo os compromissos assumidos com minha ancestralidade que ficaram
adormecidos no caminhar do tempo.

Na jornada até aqui andei por mil caminhos e me perdi muitas e muitas vezes nas estradas
da vida, mas a ancestralidade nunca me perdeu na jornada, sempre me deu caminhos e
vitórias que sozinha eu jamais teria alcançado.
Eu tenho maior fama de brava: sina que persegue toda mulher preta que se coloca mais
firme. Se branca fosse eu seria autêntica, enérgica, ou uma líder nata. Mas não, sou lida
como grossa, difícil e áspera. Essa fotinha é símbolo de uma Giovana que bem pouca gente
se permite conhecer, de uma Giovana pela qual tenho levantado bem a defesa: a que quer
sossego, deboche e leveza

Rezo por um mundo mais bonito, mais colorido, mais bonito assim, bonito como esse Santo
Antônio do Categeró que veio lá da Bahia escondido na minha mala. Que a gente possa
voltar a sonhar com um mundo mais divertido, mais festivo, mais milagreiro é meu desejo
pra todos nós: crentes e incrédulos. Viva Santo Antônio!

Quando eu era criança o acesso à verduras envolvia um misto de rituais profundamente


simbólicos e cerimoniais. Quase todas as casas tinham suas hortas e o cotidiano era
atravessado por trocas de mudas, coleta e preparo de estercos e dicas sobre como combater
pragas. Minha mãe plantou de quase tudo com relativo sucesso: morango, mostarda,
almeirão, abóbora, salsa e cebolinha. Mas nada, nada a desafiou mais que a couve manteiga.
Foram anos de mudas,

Desde criança eu sempre quis ser coisas, muitas coisas. Quis ser escritora, aeromoça,
carnavalesca, autora de novelas, detetive, desenhista de moda. Eu sempre quis, muito, ser
muitas coisas ao mesmo tempo. E o mais poético disso é que a gente vai crescendo e
cruzando caminho com gente que deixa a gente ser tanta coisa que tem hora que a gente se
pergunta se é a gente que é ou são os outros que fizeram a gente se

Eu sou pobre, vinda de uma família pobre. Nunca passei fome ou vontade de nada alimentar
mas sou parte de uma geração que viveu à base de ki suco, groselha e pipoca ( inclusive nas
festas era esse o buffet). Muitas famílias usavam o fogão a gás apenas em ocasiões raras,
para pratos especiais ou pra esquentar a comida que era colocada na estufa enrolada num
pano de prato para manter o calor. Aproveitava- se pó de café secando no sol, roupa se
lavava com sabão em pedra( o em pó era só pra molho), calcinha a gente trocava o elástico ,
absorvente descartável era pra sair ( pra ficar em casa os feitos de pano de fralda e algodão).
Cotonetes trocava se o algodão e aproveitava a haste ( na falta o algodão ia parar no grampo
). Fralda era só de pano, fervida coarada e seca ao sol para evitar "cobrero". Táxi era sinal
de doença grave. Soutiens passavam de geração em geração, assim como as roupas das
grávidas e dos bebês. Pro cabelo tinha xampu e creme rinse. Duas marcas, 05 " sabores'
com a mesma fórmula, mudavam os corantes e
os aromatizantes. Chopp era só em casamento. Sapato trocava se a capinha, o salto, o
solado, quase tudo qdo precisava reformar. Perfume era Avon, maquiagem também. Meia
keeper, pacote com 6 tinha que durar o ano inteiro. Fazia se bolinho de arroz com a sobra
do arroz, tutu com o resto do feijão, croquete com a carne cansada de ser requentada. Livros
escolares a cada ano tinham um dono cujas mães se esmeravam em apagar os exercícios pra
criança não copiar resposta dos outros. Hidratante era vaselina, pra muitos óleo de soja .
Enfeite era vidro de perfume vazio, papel higiênico era o colorido: mais barato( contra a luz
se via tudo do outro lado). Embalagem de presente guardada embaixo do colchão para
aproveitar nas próximas festas. Kits da Coty com sabonete , colônia e desodorantes viravam
três presentes: um pra cada professora. Unha se fazia em casa, depilação também com o
aparelho de barbear perfeito e gilete nova. Carvão virava giz, lata de massa de tomate virava
panelinha, canudo de mamona um sistema sofisticado de bolhas de sabão. Passando pelo
insta hoje eh isso que vejo: gente ensinando a cozinhar casca de banana, a limpar a casa
com limão e bicarbonato, a fazer 2 k de mussarela com queijo , água e farinha. Há uma
normalização da falta numa plataforma que o faça você mesmo virou sinônimo de auto
gerência e liberdade quase meritocrática. Tu é livre para resolver sua própria falta de
recursos e dinheiro . Me dá uma agonia isso porque a gente lembra dessas coisas e ri:
porque passaram pra nós. Vê las voltando sob o signo da proatividade, da resiliência, do self
made sei lá o que me dá mais desespero que quando a gente perdia o elástico da calcinha na
volta final. Ou do café que minha vó fazia com pó reaproveitado

Em 2018 encontrei o caminho de volta pra casa, na chegada ganhei Pais, Mães e irmãos e
uma grande família Ancestral.

Na última semana minha família me banhou com ervas sagradas, entoou Orikis sagradas,
cuidou do meu corpo e do meu Ori. Recebi cuidados e carinhos que esquecemos que temos
direito no dia a dia. Foi ótimo me sentir amada e abraçada por eles, foi importante
descobrir-se amada.
Renasci, nos braços de Ya Mi Oya no último dia 15/09.
Eparrei Ya Mi

Ir diluindo na memória das pessoas a ponto da lembrança ser atravessada só pelas honrarias
sem os deméritos e ficar assim, fixada no apego de quem vai se pegar, daqui a trinta anos,
cantarolando uma música sua no ônibus e dizer: minina, ceis lembram da Elza? . Aí alguém
vai responder: como não? Adoro aquela dela que começa assim, cantarola outra
atravessando o tom.

Centro Virtual da Memoria Negra a recebeu como signo do prêmio "Amigos do

Patrimônio" em 2021

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