Você está na página 1de 2

O Nascimento de Antónia Rodrigues

Conhecida como a “Heroína de Mazagão”, Antónia Rodrigues é uma figura que faz parte da
memória colectiva aveirense sendo passada de geração em geração. Desde sempre apontada
como natural de Aveiro, a sua vida e figura tem sido objecto de atenção por parte de gente de
letras e artistas. Destacam-se aqui somente dois textos: o primeiro da autoria de Rangel de
Quadros (XXIV – Duas Heroínas, in Rangel de Quadros, Aveirenses Notáveis, 2000, Aveiro,
Câmara Municipal de Aveiro, pp. 113-118) e de Paula Cristina Duarte (Antónia Rodrigues, uma
aveirense nos descobrimentos, in AAVV, Aveiro e a Expansão marítima portuguesa (1400-1800)
– actas das 8ª jornadas de História Local e Património Documental, 2014, ed. 2017, Aveiro,
Câmara Municipal de Aveiro e Ancora Editora, pp. 229-249). O primeiro ganha realce por ter
sido o texto mais consistente sobre o tema e que serviria de apoio a escritos posteriores; o
segundo por apresentar uma bibliografia bastante alargada da matéria; qualquer um deles se
encontra facilmente acessível ao leitor mais interessado em aprofundar o assunto.

Foi Rangel de Quadros quem deu maior crédito à data de 31 de Março de 1580 como tendo sido
aquela que, aparentemente, reunia maiores consensos. Todavia não apresentou em seu favor
qualquer documento que demonstrasse a validade dessa opção. Menciona um hipotético
documento de Filipe II de Portugal que em 1619 terá concedido uma tença de 10 000 reis anuais
à heroína de Mazagão, então já viúva, e terá dado ao filho desta a categoria de moço da Real
Câmara. Verdadeiramente não se conhece tal documento.

Sabendo que Antónia era natural de Aveiro e, admitindo que a filiação avançada era correcta, e
existindo livro de baptismos seria à partida fácil descobrir o documento referente ao seu
baptismo, uma vez que a recomendação tridentina de assento dos baptismos já deixara a
categoria de simples recomendação para passar a obrigatoriedade do acto. Todavia o passar do
tempo fez desencaminhar parte dos livros que deveriam existir nas então 4 paróquias da vila de
Aveiro: S. Miguel, Vera-Cruz, Apresentação e Espírito Santo. Destas quatro apenas as duas
primeiras ainda conservam os livros referentes ao ano de 1580. E, não se encontrando o
respectivo assento nos livros existentes (embora Rangel admitisse desde início que Antónia teria
nascido na freguesia da Apresentação) dar-se-ia por perdido tal documento e, seguramente, a
heroína aveirense cairia nas páginas dos mitos da história de Aveiro.

Quis o acaso que ao analisar os assentos de baptismo anteriores à fragmentação da primitiva


freguesia de S. Miguel nas quatro subsequentes freguesias se desse com um assento cujos
elementos coincidem em pleno com os dados existentes para a “mulher-soldado” aveirense. Os
nomes dos progenitores são aqueles que sempre foram apontados e o registo diz respeito a
Aveiro terra que sempre se afirmou como sendo a de naturalidade de Antónia. Apenas a data
não coincidia com aquela que frequentemente foram apregoada.

O documento em apreço e respectiva transcrição é este que de seguida se apresenta; encontra-


se no 1º livro de baptismos da freguesia de S. Miguel que abrange um curto período anterior à
divisão da freguesia em quatro:
PT-ADAVR-PAVR17-1-1_m0056

“Aos cinco dias do mês de Janeiro [de 1572] baptizou o padre Pedro Ferreira a Antónia filha de
Simão Rodrigues e de sua mulher Leonor Dias; foi padrinho Francisco d Bargas e madrinha Maria
Marques moça solteira

Frei Petrus Ferrreira, coadjutor”

(grafia actualizada e abreviaturas desdobradas)

Por este documento autêntico e assento fica fixada a data de nascimento de Antónia. Pode,
eventualmente, equacionar-se a possibilidade de se tratarem de homónimos, tão frequentes
que eles eram naquele tempo. No entanto é pouco provável uma vez que o nome do pai não é
assim tão frequente e a inequívoca associação com o nome da mãe ainda o é menos. O par
Simão + Leonor forma uma associação muito difícil de repetir num burgo com a dimensão que
Aveiro tinha à época. É por tal, quase 100 % certo e seguro que se está na presença do assento
original do baptismo de Antónia Rodrigues.

Pela data – 5 de Janeiro de 1572, fica-se obrigado a reconsiderar a idade de Antónia no momento
em que terá partido para Mazagão e/ou recebido a tença de Filipe II. Talvez a procura desses
documentos enferme do mesmo mal que inquinou a pesquisa do assento de baptismo. Mas
também se reforça a ideia de não se tecerem afirmações sem se possuir uma sólida base de
sustentação. Sem ela os erros suceder-se-ão em catadupa. E a História, enquanto ciência, não
pode ser baseada em “achismos” ou estados de alma.

Você também pode gostar