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A formação em Psicologia para

a atuação em contextos rurais


Jáder Ferreira Leite
João Paulo Sales Macedo
Magda Dimenstein
Cândida Dantas

H istoricamente, a Psicologia tem voltado seu olhar quase que


exclusivamente para a população urbana. Os habitantes
das grandes cidades têm sido alvo privilegiado da sua intervenção
profissional, além de tornarem-se objeto de estudos e pesquisas no
campo psicológico.
Embora estudos historiográficos de Antunes (2004) indi-
quem a existência de trabalhos isolados como o realizado por
Helena Antipoff, no ano de 1940, com educação de crianças na
zona rural, ou, mais particularmente, os do campo da Psicologia
Social Comunitária, a partir das décadas de 1960 e 1970, em assen-
tamentos sem-terra, tribos indígenas ou mutirões, a maioria das
pesquisas sobre o desenvolvimento da profissão no país explicita
a interdependência entre o processo de modernização brasileira e
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a expansão do campo profissional1. Considerando ser a urbaniza-


ção uma das principais características desse processo, justifica-se
em parte a centralização das ações da Psicologia em cidades com
características predominantemente urbanas, locais de circulação
do grande capital e polos de desenvolvimento industrial.
Nesse sentido, Mello (1975), em pesquisa sobre a atuação do
psicólogo no estado de São Paulo, afirma: “[...] a Psicologia só tem
encontrado aplicação nos grandes centros urbanos ou nas áreas
industrializadas, vale dizer, nas mais ricas, e do ponto de vista cul-
tural, mais próximas dos modelos que os países desenvolvidos ofe-
recem” (Mello, 1975, p. 35).
Em 1988, em um dos mais completos levantamentos nacio-
nais, organizado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), dos
58.277 psicólogos em atividade profissional, 75% estavam concen-
trados na região sudeste e 69% em grandes capitais, com exceção
dos estados do Maranhão e de Santa Catarina. Segundo os auto-
res do estudo, os fatores que explicariam a fixação dos psicólogos
nas capitais seriam o próprio mercado de trabalho, caracterizado
pela maior possibilidade de absorção profissional, e as condições
de vida favoráveis encontradas nessas cidades. Somado a isso, des-
tacam que a formação em Psicologia naquele momento acompa-
nhava a tendência de concentração das instituições de ensino na
região Sudeste e nas grades metrópoles nacionais. Diante desses
resultados, os autores indagam:

Somos – ou estamos sendo – profissionais urbanos,


metropolitanos. Por quê? Seriam os psicólogos desne-
cessários no interior? Seriam exclusivos dos habitan-
tes das capitais os problemas que levam as pessoas e

1 Antunes (1999; 2004) e Pessotti (1988) apontam para a importância da aplica-


ção de conhecimentos e técnicas psicológicas em questões relacionadas à orga-
nização do trabalho, em especial a com o processo de industrialização brasileiro
na década de 1930.
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organizações ao gabinete dos psicólogos? (Rosas, Rosas


& Xavier, 1988, p. 39).

Em seguida, indicam que a interiorização deverá ocorrer


como forma de aumentar a clientela atendida pelos profissionais,
ou mesmo como o intuito de ampliar e/ou renovar o mercado de
trabalho (Rosas et al., 1988). Assim, percebe-se que mesmo apre-
sentando o perfil urbano como característica predominante da
Psicologia, os autores consideram importante avançar para outros
espaços territoriais, tanto como forma de ampliar seu leque de
ações quanto como garantia de uma reserva de mercado impor-
tante para o futuro da profissão.
Mesmo com essas considerações, a formação e atuação dos
psicólogos continuaram voltadas para contextos eminentemente
urbanos. O processo de “interiorização da profissão” parece ser
impulsionado apenas posteriormente, com o ingresso de psicólo-
gos em campos não tradicionais e há pouco desenvolvidos, com
especial destaque para o setor do bem-estar social que impulsio-
nará de forma efetiva o processo de interiorização, além da expan-
são do sistema de ensino superior brasileiro em direção às cidades
de pequeno e médio porte. Diante disso, o presente texto trata
dos desafios da formação acadêmica e profissional para qualificar
a atuação dos psicólogos em cidades de pequeno e médio porte,
com características marcadamente rurais. Para tanto, estrutura-
mos o texto da seguinte forma: inicialmente, abordamos o pro-
cesso de interiorização da Psicologia, tanto nos termos de entrada
de profissionais em municípios de médio e pequeno porte quanto
da abertura de cursos de formação de psicólogo nesses espaços.
Num segundo momento, trataremos do processo histórico e social
vivido pelo Brasil no tocante ao conjunto de lutas sociais travadas
em torno da democratização da terra, aspecto de fundamental
importância para a compreensão do atual modelo de organização
do meio rural, dos grupos e atores sociais que nele vivem. Por fim,
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apresentaremos alguns eixos que consideramos importantes tanto


para a atuação profissional quanto para o processo de formação de
psicólogos para atuarem nesse contexto.

O processo de interiorização da
Psicologia e o meio rural
Dois aspectos marcaram a entrada da Psicologia no século
XXI, no contexto brasileiro: a interiorização da profissão e dos cur-
sos de formação em Psicologia por todo o território nacional.
Sobre o primeiro aspecto, registra-se que dos 236.100 psicó-
logos inscritos no Sistema Conselhos de Psicologia de todo o país,
48% atuam nas cidades do interior, destacando aquelas de médio
e pequeno porte, enquanto 32% estão localizados nas capitais
(Bastos, Gondim, & Rodrigues, 2010). Quanto ao funcionamento
da formação de psicólogos, observa-se que dos 510 cursos existen-
tes, 52% estão localizados nas cidades do interior enquanto 48%
estão nas capitais. Especificamente sobre os cursos localizados no
interior, pelo menos 105 funcionam em municípios de médio porte
(100 a 300 mil hab.), 59 cursos estão em municípios de médio-
-pequeno porte (50 a 100 mil hab.) e 35 cursos em municípios de
pequeno porte (menos de 50 mil hab.) (Macedo, 2012).
A tendência à interiorização do exercício profissional e das
agências formadoras em Psicologia é resultado tanto da estrutura-
ção de uma rede de serviços ligados ao campo do bem-estar social,
ou seja, fruto da municipalização das políticas de saúde e assistên-
cia social, quanto pela implantação de projetos e outros dispositivos
de reforma e expansão da educação superior, que no setor público
efetuou-se pelo REUNI e o PRONATEC e no setor privado advém
da busca por novos mercados, especialmente na região Nordeste,
com incentivos do PROUNI e o FIES.2

2 Quanto ao REUNI, trata-se do Programa de Apoio a Planos de Expansão


e Reestruturação das Universidades Federais, com vistas a expansão e
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Outro aspecto deve ser levado em conta em relação ao pro-


cesso de interiorização da educação superior no Brasil: o movi-
mento de transição e reestruturação urbana de vários municípios
brasileiros de médio porte (Macedo & Dimenstein, 2011). De acordo
com Sanches (1999) é cada vez mais presente no cenário brasileiro
a parceria de agentes públicos e privados com projetos de planeja-
mento urbano para promover localidades de menor porte popula-
cional como mais atrativas para investimentos no setor comercial,
empresarial e financeiro.
Assim, cidades que apresentam determinada vocação eco-
nômica e produtiva tornam-se alvo de investimentos e planeja-
mento urbano, na perspectiva de qualificar determinados espaços
como mais vantajosos, com exigências de maior segurança, incen-
tivos fiscais e maior rentabilidade para a instalação de grandes
empresas e demais investidores. O principal objetivo desses inves-
timentos é o trabalho de redefinição da imagem de cidade dessas
localidades, para que as mesmas se constituam em polos de desen-
volvimento local e regional no país, capazes de capitanear mais
recursos, investimentos em infraestrutura, criação de empregos,
atrair turistas e gerar novos negócios (Sanches, 1999).

interiorização da educação superior no Brasil, sendo que até o momento foram


criados 48 campi e 10 universidades federais em todo o território nacional. O
PRONATEC assemelha-se ao REUNI, no entanto seu foco é o ensino técnico.
Com relação ao PROUNI e o FIES, ambos são programas de acesso à educação
superior no setor privado, que prevê a concessão de bolsas de estudo integrais
e parciais, no caso do primeiro, e o financiamento das mensalidades dos cursos
de graduação e pós-graduação, a serem reembolsados pelos estudantes poste-
riormente ao seu término, no caso do segundo. Para muitos, esses quatro dis-
positivos de ampliação do acesso à educação superior compõem os pilares da
Contrarreforma universitária em curso no país, pois orquestra uma expansão
que beneficia diretamente o setor privado da educação, com isenções fiscais
e pagamento de dívidas públicas, enquanto no setor público aprofunda a pre-
carização já existente, devido à falta de financiamento e implantação de uma
lógica de gestão voltada para o mercado, com impactos no trabalho docente sob
a marca do produtivismo e captação de recursos externos para as universidades.
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As próprias Instituições de Ensino Superior (IES) (universi-


dades, centros de ensino e faculdades), no seu processo de interio-
rização, têm tido um papel importante na redefinição da imagem
das cidades. Em função disso, tal setor constitui hoje uma das prin-
cipais estratégias estruturantes do desenvolvimento local e regio-
nal de várias regiões do país, seja com a formação de profissionais
e mão de obra técnica e especializada, seja ainda pela transferência
de tecnologias para as novas localidades produtivas do país (Paula,
2006; Elias, 2007).
Com relação à Psicologia e ao movimento de aproximação
com a realidade dos municípios menor porte, indagamos por qual
direção essa participação tem se dado. Tal aproximação tem levado
em conta as novas dinâmicas espaciais e o surgimento de novas
formas de sociabilidade, como também as relações sociais que o
processo desenvolvimentista tem induzido nesses municípios?
Temos considerado as transformações nos modos de vida da popu-
lação, ou seja, nos processos de subjetivação, nas relações sociais e
de trabalho, e nas relações de pertencimento e de identidade com
o lugar, contribuindo com a produção de sujeitos mais participa-
tivos e reconhecedores dos seus direitos e aspirações, ou simples-
mente temos repetido nosso feito histórico de selecionar e adaptar
pessoas no objetivo de melhorar seu padrão de respostas frente ao
mundo do trabalho (este cada vez mais precarizado) e as exigências
e intempéries da vida?
Sabemos como se deu a primeira aliança entre a Psicologia
e o Estado brasileiro, ocorrida no início do processo de industria-
lização em 1930, em que nossa ciência inspirou confiança à nação
em diagnosticar e orientar a força de trabalho do país (Motta,
2004). A participação da Psicologia como elemento importante no
processo de desenvolvimento brasileiro, ocorrido desde o Estado
Novo, é fruto do abandono, pela burguesia industrial nascente
daquela época, “das normas tradicionais de dominação da classe
trabalhadora e adesão aos princípios da Psicotécnica da Psicologia
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Racional para intensificar o processo de modernização da relação


trabalhador-capital” (Motta, 2004, p. 139). Assim, foram criados
diversos institutos, laboratórios/núcleos de pesquisa e departa-
mentos de assessoria técnica, a exemplo do IDORT3 e do ISOP4,
ligados à administração pública, a educação básica e superior e a
federação das indústrias para a aplicação de serviços de orientação
vocacional e seleção de pessoal, com base no exame das aptidões e
do caráter, além de ações de treinamento e capacitação profissional
(Penna, 2004).
Tais iniciativas em torno da atividade psicotécnica, em con-
junto com outras atreladas às novas demandas do mercado como
o psicodiagnóstico e o atendimento clínico, constituíram as bases
para associar a presença da nossa profissão aos grandes centros
urbanos e capitais brasileiras. Assim, nossa profissão passou a ser
demanda em seus consultórios, organizações de trabalho, insti-
tuições escolares, e serviços de saúde mental e assistência social,
algumas vezes, para solucionar e dar suporte para as inabilidades
e desadaptações de indivíduos frente às condições e os modos
de vida nos grandes centros urbanos: desemprego, insegurança
no trabalho, recolocação e orientação profissional, concorrência
social, fragmentação e isolamento social, violência, criminalidade,
dentre outros.
Por outro lado, sabemos que os entrelaçamentos entre
Psicologia e Estado na atualidade são outros. A própria aproxi-
mação dos psicólogos com as políticas públicas a partir da década
de 1990 dão prova de que os espaços de exercício de sua prática

3 Instituto de Organização Racional do Trabalho – IDORT, criado em 1931 na ci-


dade de São Paulo. O IDORT corresponde a primeira instituição psicométrica
criada no país com a finalidade de acelerar a industrialização (Penna, 2004).
4 Instituto de Seleção e Orientação Profissional – ISOP, criado em 1947 na cida-
de do Rio de Janeiro. O ISOP foi criado pela Fundação Getúlio Vargas (1944)
que, mais tarde, tornou-se o primeiro curso de pós-graduação em Psicologia no
Brasil (Penna, 2004).
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profissional diversificaram-se. Passamos tanto a ser demandados


para intervir sobre indivíduos de outros extratos sociais quanto
a nos preocupar com a saúde e a organização social de grupos e
populações. Mas com que propósito, a serviço do quê, agenciado
com quais relações de poder?
Sabemos que as políticas públicas, especialmente aquelas de
cunho universalistas, foram estabelecidas, a partir da Constituição
de 1988, como resultado da luta pela garantia de direitos de gran-
des parcelas da população. Assim, as políticas públicas são muito
mais do que apenas a garantia de serviços e ações inclusivas pelos
aparelhos do Estado; seu princípio fundante é o fortalecimento das
instâncias de participação, movimento popular e controle social,
portanto, visa o processo de construção de cidadania e produção de
sujeitos políticos.
No entanto, o processo de implantação das políticas uni-
versalistas no Brasil é contemporâneo à instituição da agenda e do
Estado neoliberal. As ações da política neoliberal priorizam, basi-
camente, o corte dos gastos sociais e a desmontagem dos serviços
públicos em vários setores, além do aprofundamento da ação do
capital privado e financeiro na regulação dos mercados nacionais.
Na prática, isso significa tanto a diminuição do papel e da presença
do Estado frente aos problemas sociais que marcam a realidade bra-
sileira, resultando, como refere Yamamoto (2007), na oferta de ser-
viços desqualificados para uma população desqualificável; quanto
à imposição de uma agenda micropolítica aos operadores/trabalha-
dores das políticas públicas para serem postas em prática à popu-
lação em geral. Caracterizando melhor esse último aspecto, além
de desregulamentar o dever do Estado de ofertar bens e serviços
e minimizar direitos sociais e políticos, o neoliberalismo também
produz um modo hegemônico de subjetivação com formas de per-
cepção, modos de afecções/sensações e de pensar e agir no mundo,
profundamente, marcados por interesses privatizantes. Com isso,
de cidadão passamos a condição de consumidor; de sujeito da ação
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transformamo-nos em sujeitos empreendedores, ou seja, sujeitos


capazes de, por conta própria, resolver problemas, desobrigando o
Estado do seu dever (Carvalho, 2009).
Nesse caso, precisamos ter clareza de como operamos nosso
fazer técnico, no sentido de quais posturas ético-políticas coloca-
mos em prática ao ingressarmos no campo das políticas públicas.
A depender de como realizamos nossas ações profissionais, pode-
mos tanto exercer ações de garantia de direitos e cidadania, como
foco de resistência a lógica neoliberal, ou como formas de controle
da vida. Assim, precisamos estar atentos para que o ingresso dos
psicólogos nas políticas públicas não se reduza a apenas a amplia-
ção de mercado de trabalho para nossa profissão. É preciso ampliar
o debate sobre qual modelo de políticas públicas nos associamos
na atualidade. Não podemos perder de vista o risco imposto pela
lógica neoliberal de conformação das políticas públicas que, sob
a marca do progresso e do desenvolvimento, busca como solução
para a questão social do nosso país o gerenciamento da pobreza e
das comunidades.
Diferente da primeira aliança entre a Psicologia e o Estado
brasileiro em que se buscava contribuir com o desenvolvimento da
nação diagnosticando e orientando a força de trabalho do país, na
atualidade, tal aliança, pode facilmente capturar nossa ciência e
profissão, de modo a prestar relevante contribuição, efetivando a
estratégia biopolítica5 de gerenciamento da população para a pro-
dução de sujeitos ao mesmo tempo saudáveis, participativos, pro-
dutivos e autoempreendedores (Passetti, 2003).

5 Conceito criado por Michel Foucault para dar visibilidade ao regime político
que toma a vida em seu aspecto biológico, subjetivo e social como objeto de
intervenção. Com a biopolítica não apenas os indivíduos tornam-se foco de in-
tervenção dos diversos aparelhos do Estado, mas também as populações, por
meio de mecanismos de regulação e controle, ou seja, de gestão e governo de
condutas e subjetividades (Foucault, 2008).
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Tais questões tornam-se ainda mais urgentes, meio ao cená-


rio de interiorização da profissão e da formação de psicólogos em
todo o país. Na verdade, a aproximação dos psicólogos com os muni-
cípios de médio e pequeno porte, em que a sede desses municípios
tem estreita relação com seu meio rural, fez com que entrássemos
em contato com uma realidade nova para nossa categoria profis-
sional. No geral, são localidades que apresentam: a) alto índice
de população rural (44,93%), cuja atividade produtiva principal é
a agricultura familiar, destacando-se ainda a pecuária familiar e a
atividade pesqueira, ou o extrativismo vegetal e mineral; b) fragili-
dade econômica e administrativa, resultando na dependência das
ações e programas do governo federal; c) respostas insuficientes às
necessidades da população, devido às práticas de gestão de base
centralizadora, autoritária e clientelista; e d) uma realidade popu-
lacional que concentra problemas sociais básicos, como: mortali-
dade infantil, analfabetismo, trabalho infantil, desnutrição, fome,
pobreza, dificuldades de transportes, especialmente de desloca-
mento das comunidades rurais à sede do município e desemprego;
e ainda convive com problemas típicos de grandes centros urbanos,
como: aumento da criminalidade e violência, aumento do índice de
doenças crônico-degenerativas, gravidez na adolescência, mortes
no trânsito (motociclistas), prostituição, consumo e tráfico de dro-
gas (Macedo & Dimenstein, 2011).
Quanto ao meio rural propriamente dito, especificamente
nas áreas de assentamentos e ocupações de terra, comunidades
ribeirinhas, quilombolas, reservas indígenas, as dificuldades não
são diferentes. Pelo contrário, os problemas sociais básicos referi-
dos a pouco se agravam bem mais, isso sem falar da dificuldade de
acesso aos serviços de saúde e educação, além da insegurança fun-
diária e o convívio com inúmeras situações de conflitos e violên-
cia no campo, a exemplo da exploração da mão de obra, o trabalho
escravo, a violação de direitos e a exploração no trabalho, a violên-
cia contra a ocupação e posse de terras, as situações de expulsões e
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despejos e demais conflitos em tempos de seca e estiagem por con-


trole e posse de água, e em áreas de garimpo, mineração, reservas
indígenas, extração de madeira e preservação ambiental.
Muitos desses conflitos resultam em violência direta con-
tra as famílias e comunidades, com roubos, agressões e ameaças de
morte, além de prisões, torturas e assassinatos, como temos visto
em várias regiões do país, em especial no Norte. Para o ano de 2012,
a Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabilizou 1.364 conflitos no
campo e 36 assassinatos. Já em 2011, os dados são de 1.363 conflitos
e 29 assassinatos (CPT, 2013). Para a compilação desses dados, a
CPT considera as situações de luta por terra, água e direitos tra-
balhistas. É preocupante o fato de que há um crescimento, desde
2008, tanto dos conflitos quanto dos assassinatos.
Mesmo que não haja uma política que advogue ou demar-
que a participação do profissional de Psicologia nessas questões,
especialmente no tocante ao tema da terra, enxergamos uma
variada gama de oportunidades para seu exercício profissional que
vem se dando por um amplo campo: equipamentos institucionais
de educação, saúde, assistência social, assistência técnica e exten-
são rural, Organizações Não Governamentais (ONGs), cooperati-
vas de prestação de serviços com os trabalhadores da agricultura
familiar, movimentos sociais do campo, a exemplo do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Movimento dos
Pequenos Agricultores – MPA, Comissão Pastoral da Terra – CPT e
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB etc.
No entanto, tem sido por meio da Política de Saúde, com
a implantação de serviços da atenção primária em saúde e saúde
mental (Unidades Básicas de Saúde/UBS, Núcleos de Apoio a
Saúde da Família/NASF e Centros de Atenção Psicossocial/CAPS),
e da Política de Assistência Social, com os Centros de Referência
em Assistência Social (CRAS), nos municípios de médio e pequeno
porte, que a população do campo tem tido acesso de maneira mais
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efetiva aos serviços dos psicólogos. Assim, os profissionais da


Psicologia vêm sendo confrontados com novos sujeitos e realida-
des que passam a demandar sua atuação. Por isso a urgência de
pensarmos como temos nos filiado as políticas públicas no Brasil,
principalmente envolvendo as lutas sociais e a questão da terra no
contexto rural.

Lutas sociais, democratização


da terra e contextos rurais no
Brasil: percurso inacabado?
Enquanto muitos países optaram pelo modelo da agricul-
tura familiar através da realização de uma política de reforma agrá-
ria, o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro deu-se
pela manutenção de sua estrutura fundiária, conservando o lati-
fúndio e modernizando-o com pesados investimentos com vis-
tas ao aumento de produtividade garantida com a introdução de
novas tecnologias, créditos e insumos e baseado na monocultura
de exportação.
Graziano da Silva (1994) apresenta duas características fun-
damentais do que nomeia de modernização dolorosa do campo
brasileiro: a primeira, que aconteceu de forma bastante desigual,
permitindo uma forte concentração na aquisição de créditos e de
insumos aos grandes proprietários de terra, como também bene-
ficiou empresas urbanas a se tornarem proprietárias de terra. A
segunda característica foi a geração de uma forte exclusão. Se de
um lado promoveu a concentração de riquezas nas mãos de uma
elite agrária e uma consequente industrialização do campo, por
outro lado inviabilizou o projeto de inúmeros trabalhadores rurais,
lançando-os numa miséria profunda e num êxodo rural sem pre-
cedentes, fato que promoveu quase uma inversão entre a popula-
ção urbana e rural no país. Linhares e Silva (1999) destacam que
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na década de 1940 a população urbana no Brasil era de 31,2% e na


década de 90 passou para 75,4% do total de habitantes.
Apesar de sermos o quinto país do mundo em extensão ter-
ritorial, temos 170 milhões hectares de terras que deveriam per-
tencer ao Estado e à União, portanto, terras públicas que poderiam
ser utilizadas para a reforma agrária. De acordo com o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), dos 850,2
milhões de hectares que perfazem a área total do país, 102,1 milhões
são de unidades de conservação ambiental, 128,5 milhões são de
terras indígenas, 420,4 milhões de área total dos imóveis cadastra-
dos no INCRA e 29,2 milhões de área ocupada por águas territoriais
internas, áreas urbanas e ocupadas por rodovias, além de posses a
serem regularizadas. Somando tudo dá um total de 680,2 milhões
de hectares, restando 170 milhões de terras devolutas, ocupadas ile-
galmente por “proprietários”: grandes latifundiários que possuem
áreas maiores do que seus títulos legais indicam (Oliveira, 2004).
Nesses termos, convivemos com uma estrutura fundiária6
em que somente “1% dos proprietários detêm 46% de todas as ter-
ras do país” (Mauro & Pericás, 2001, p. 70). Essa alta concentração
resulta também na concentração de poder econômico, político e
simbólico, criando estruturas de sujeição da população rural, con-
sequentemente, institui uma “dinâmica perversa que bloqueia
tanto o esforço para aumentar a produção e a produtividade no
campo, quanto as tentativas de melhorar o nível de vida da popula-
ção rural, e, sobretudo, seu grau de participação no processo polí-
tico democrático” (Mendonça, 2006, p. 78).
Com o período do milagre econômico, em meio à ditadura
militar, a economia brasileira cresceu de forma surpreendente, ao
mesmo tempo que a política de arroxo salarial foi intensificada.

6 Por estrutura fundiária compreende-se a maneira como as propriedades agrá-


rias estão organizadas, em termos do número, tamanho e distribuição social,
além da forma de acesso da propriedade sobre a terra (Hoffmann & Ney, 2010).
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Entre as principais distorções desse período estava o aumento da


concentração fundiária em escalas até então não verificadas, com
a “mancha dos latifúndios se expandindo para a Amazônia e todo
o Norte do Brasil” (Nakatani, Faleiros & Vargas, 2012, p. 228). Os
grandes proprietários, que já não tinham interesse na produção de
alimentos para o mercado interno, acabaram por optar pela expor-
tação de uma produção especializada e subsidiada pelo governo
militar: celulose e papel, álcool, carne de aves, suco de laranja e
derivados de soja (Belik, 2007).
Outra grande distorção que marcou fortemente esse perí-
odo foi o empreendimento de uma aceleração da industrialização
sem a realização de reformas estruturais que respondessem à ques-
tão social. Ou seja, pretendia-se avançar na acumulação capitalista
sem realizar qualquer mudança social. Isso sem dúvida aprofun-
dou os problemas sociais nas grandes cidades e, principalmente,
no campo (Fernandes, 2008).
Para Nakatani et al. (2012, p. 227), convivemos nos anos
de 1960 e 1970 com um doloroso processo de modernização,
cujo resultado foi a “derrota de qualquer proposta de uma efetiva
reforma agrária, optando-se por um desenvolvimento capitalista
no campo com a manutenção de uma estrutura fundiária pretérita”.
É nesse contexto que surge o agronegócio com um pesado com-
plexo industrial voltado para a agricultura. O agronegócio ganhou
força no Brasil justamente com a crise na década de 1980 e a eco-
nomia nacional buscou nesse setor soluções para reequilibrar sua
balança financeira.
O agronegócio se constitui pela entrada de empresas
transnacionais financiadas pelo sistema financeiro na agricul-
tura, fazendo das diversas empresas do setor um bloco que passou
a interferir e alterar o modo de produção agrícola no país (MST,
2007).
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Com esse incentivo, as áreas colhidas de cana-de-açúcar


foram ampliadas de 2.607.628ha para 4.272.602ha, a área destinada
à soja de 8.774.023 para 11.487.303, e o número de bovinos abatidos
de 9.572.534 para 13.374.663, entre 1980 e 1990.7 Assim, reverteu-se
o saldo comercial brasileiro que estava negativo, porém, com drás-
ticos efeitos para a industrialização e a própria agricultura, pois o
dinheiro foi destinado apenas para pagamento e rolagem da dívida
externa, indicando o esgotamento do padrão de financiamento da
agroindústria com base nos recursos do tesouro nacional, além de
intensificar ainda mais a estrutura fundiária predatória (Nakatani
et al., 2012; Belik, 2007).
Com a retomada do crescimento econômico nos anos 1990
e 2000 assistiu-se ao quadro de retomada do desenvolvimento
agrícola, impulsionado pelo agronegócio, com a reestruturação
do setor. Inicialmente, fortaleceu-se a distribuição e a organização
da produção, com base em padrões de qualidade internacionais, e
posteriormente, houve a adoção de tecnologias e investimentos no
acesso de novos mercados (Belik, 2007). O resultado foi o aumento
da produção e das áreas destinadas à soja, que saiu de 11.487.303ha
para 23.327.296ha, de cana-de-açúcar, que foi de 4.272.602 para
9.076.706ha, do número de cabeças de gado abatidas, de 13.374.663
para 29.278,095, e aves, que foi de 962.029.422 para 4.776.233.239,
no período de 1990 e 2010.8 O aumento da produção do setor foi
acompanhado de mudanças nas relações com demais elos da
cadeia, refletindo no crescimento de fusões e internacionalização
dos mercados com a participação em commodities9 (Nakatani et
al., 2012).

7 Recuperado em 10 dezembro 2012, de www.ipeadata.gov.br.


8 Recuperado em 10 dezembro 2012, de www.ipeadata.gov.br.
9 São produtos provenientes de cultivo ou de extração e por serem mercadorias de
nível primário, propensas à transformação em etapas de produção, apresentam
nível de negociação global, ou seja, são reguladas pelo mercado internacional
com base no capital financeiro mundial (Sraffa, 1977).
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Nesse caso, salvaguardado as devidas possibilidades de


desenvolvimento sustentável no setor agrícola e sua importância
na economia nacional, em vez de avançarmos sob um processo de
reforma agrária, no objetivo de permitir um movimento de demo-
cratização da terra, por meio do seu acesso e constituição dos
assentamentos rurais – espaço esses que podem, de acordo com
Ieno (2007), oportunizar uma melhoria na qualidade de vida da
população rural, historicamente excluída em nosso país –, aumen-
tamos a concentração fundiária no Brasil na última década, espe-
cialmente no âmbito da reprimarização da economia, demandado
por um mercado crescente por combustíveis (biodiesel), minérios
(especialmente o ferro) e alimentos, enquanto na produção mais
diretamente voltada ao mercado interno (milho, arroz, feijão e
trigo), a área de cultivo pouco se ampliou.
Por outro lado, surgiu nos últimos anos outra importante
questão geradora de novas tensões no setor agrário brasileiro: a
entrada do capital estrangeiro na aquisição de terras para agroe-
nergias, alimentos e matérias-primas. Trata-se de uma nova fase
da mundialização da economia em que a especulação imobiliária
no campo fortalece o problema da questão agrária no país, consti-
tuindo assim um novo obstáculo para a política de desapropriação
de terras com vistas a uma reforma agrária que atende à necessi-
dade da população brasileira (Nakatani et al., 2012).
Não de outra forma, o agronegócio e a estratégia de expansão
das exportações primárias estabelecidos pelo Governo transformou
a política agrária brasileira em mera peça acessória da política eco-
nômica. Essa opção fortaleceu a centralidade e o poder do latifún-
dio, aprofundando a exclusão social e os conflitos no campo, além
de provocar graves problemas ambientais. Nesse caso, percebe-
-se a política de assentamentos rurais como “um corpo estranho,
como também o são várias normas setoriais de proteção ao meio
ambiente (código florestal), proteção à saúde (não contaminação
Psicologia e contextos rurais | 43

dos agrotóxicos e demais poluentes) e ações de proteção ao traba-


lho etc.” (Delgado, 2011, p. 32).
Se não fosse a luta e resistência dos trabalhadores sem-
-terra, ribeirinhos, castanheiros, indígenas e quilombolas, entre
outros tantos, teríamos a presença bem mais agressiva por parte
do capital e os representantes que compõem os grandes projetos
da agroindústria atingindo não somente os povos tradicionais
que vivem nessas áreas, como assim tem acontecido por décadas e
décadas, mas também se “articulando com diversas formas de inte-
resses econômicos locais, por vezes predatórios, potencializando
situações de conflito e ameaças” (Alarcon & Guerrero, 2012, p. 27).
Ademais, não podemos esquecer que o papel do Estado tem
sido por demais tímido em relação à proteção dos povos tradicio-
nais, posseiros e trabalhadores rurais em geral, que são quem têm
resistido frente à nova ordem global de fazer do país uma superpo-
tência econômica, à custa de muita exploração, assédio, violência e
expulsões de pessoas do campo, do seu local de vida e de trabalho,
com os quais constituem a história e a memória do seu povo e cos-
tumes (Moreira, 2005). Como exemplo, Alarcon e Guerrero (2012,
p. 28) reporta-nos ao debate do próprio modo como muitos pro-
gramas e políticas setoriais governamentais, em especial àquelas
executadas pelo INCRA, entendem a população do campo “como
obsolescências históricas que precisam ser trabalhadas para ascen-
der à modernidade”.
Desse confronto entre, de um lado a busca de industriali-
zação e modernização do meio rural e, do outro, a resistência de
atores do campo por meio de seus movimentos sociais, torna-se
importante considerar que o tema da luta pela terra não caducou
nem representa um atraso em relação ao processo de capitalização
de todas as esferas da vida no nosso país. Para sustentar tal argu-
mento, Sauer (2010) apresenta, pelo menos, três pontos: primeiro,
que é preciso entender o rural não em sua relação dicotômica ou
44 | Psicologia e contextos rurais

oposta ao urbano, mas como espaço de interações, tensões e inter-


câmbios; em segundo lugar, que os atores participantes dessa luta
revestem-se de uma ação política que está para além da conquista
da terra. Nas palavras do autor: “transcendem à luta pelo acesso
aos meios de produção e se transformam em um processo de cons-
trução de sujeitos políticos, recriando relações sociais e transfor-
mando o espaço rural na constituição de uma nova ruralidade”
(Sauer, 2010, p. 36). Por fim, que a terra conquistada pode se tornar
espaço de trabalho, portanto de identidade, assim como um lugar
de reconstrução de vida, cidadania e dignidade.
Além disso, o meio rural tem se convertido num espaço
extremamente diversificado em seu modo de configuração, pas-
sando a incorporar uma série de transformações a depender de
contextos sociais, culturais e regionais, de modo a apreender novas
ruralidades em curso. Tais transformações não ocorrem em opo-
sição aos contextos urbanos, mas estão em franca interação com
os mesmos. Carneiro (2012), a partir da realidade por ela estu-
dada, destaca que novos elementos vêm sendo incorporados pelo
meio rural, tais como o desenvolvimento de atividades não agríco-
las, a exemplo do turismo, da sua definição como espaço de resi-
dência alternativo aos inúmeros problemas dos centros urbanos,
bem como de sua defesa por meio da constituição de um ideário
ambientalista.
Trata-se, portanto, de uma discussão sobre o tipo de ação
desenvolvimentista que está em curso no contexto rural brasileiro e
latino-americano. Ainda mais se considerarmos o contexto de inte-
riorização da educação superior e o papel que ela tem desempe-
nhado na redefinição da imagem das cidades de médio e pequeno
porte, bem como da realidade do campo. Inseridas nessas locali-
dades, em meio as suas especificidades e problemas, apoiamo-nos
em Sousa Filho (2006) com suas reflexões sobre a universidade
e sua missão, para pensarmos de que maneira as Instituições de
Ensino Superior têm indagado sobre as carências, potencialidades
Psicologia e contextos rurais | 45

e situações-limites vividos no contexto rural: que contribuições,


ações e estratégias a universidade tem oferecido à realidade do
campo para o enfrentamento da questão agrária e de luta pela terra?
Que sugestões têm sido apresentadas à sociedade e aos poderes
públicos? Que diálogos as instituições de ensino podem sustentar
com os diversos segmentos sociais, discutindo questões relevantes
para a população local, sobre os projetos de assentamentos rurais,
a agricultura familiar, a educação e saúde no campo, o agronegócio
e os conflitos no campo?

Psicologia e contextos rurais


Circunscrevendo esses questionamentos em torno da
Psicologia e sua relação com o contexto rural e a questão agrária,
buscamos em Martín-Baró (2009) suas indagações sobre como
temos contribuído com os problemas cruciais de nossos povos,
com a bagagem teórica e experiência prático-profissional que dis-
pomos hoje.
De que maneira nossas teorias e práticas psicológicas têm se
preocupado (ou mesmo se ocupado em suas intervenções) com o
rural? Partimos da compreensão do rural como espaço idealizado e
bucólico, com atraso e modos de vida a serem superados pelo pro-
gresso, ou como um espaço conflitivo, marcado por dinâmicas e
processos variados, diversos, permeado por situações de exploração
e de desapropriação de direitos? Daí a importância de nossa cate-
goria profissional e dos cursos de formação de psicólogos, especial-
mente aqueles localizados nas cidades de médio e pequeno porte,
se envolverem com o contexto das ruralidades, para que possamos
avançar na proposição de uma Psicologia mais próxima e compro-
metida com a realidade e as necessidades em que vive nossos povos.
Desde que deu início o debate sobre o compromisso social
da Psicologia, com diversos questionamentos sobre a função e rele-
vância do seu trabalho em relação ao compromisso com a sociedade
46 | Psicologia e contextos rurais

brasileira, pesquisadores, agências formadoras, sistema conselhos,


sindicatos e demais entidades da profissão propõem atividades
acadêmico-científicas e de intercâmbio profissional para qualificar
a atuação dos psicólogos diante das mais diversas situações de desi-
gualdade e iniquidade que sofre a população.
Foi assim que avançamos com articulações importantes
entre a Psicologia e os setores progressistas da saúde (movimento
de reformas psiquiátrica e sanitária), educação, assistência social,
segurança pública e demais grupos de militância voltados para a
proteção da criança e do adolescente, da mulher e do idoso, diversi-
dade sexual, direitos humanos e movimento sindical. Isso resultou
não só num maior entendimento da nossa categoria profissio-
nal frente ao campo das políticas públicas, como contribuiu para
uma maior empregabilidade para os psicólogos no setor público
(Vasconcelos, 2009).
Porém, cabe o registro de que o envolvimento da Psicologia
com as chamadas áreas emergentes e as necessidades da grande
maioria da população brasileira, apesar dos avanços, esteve vol-
tada, quase que exclusivamente, para o contexto urbano. E mesmo
com o desenvolvimento de Determinadas pesquisas e experiências
de intervenção refletindo sobre as possíveis contribuições dos psi-
cólogos às populações do campo, ainda assim é tímida a presença
da Psicologia no contexto das ruralidades (Martins et al., 2010).
Apesar dessa timidez, podemos identificar algumas expe-
riências acumuladas de trabalho desenvolvidos por psicólogos na
questão da terra, em que comparecem um conjunto de aportes teó-
ricos e metodológicos que se tornaram essenciais para a garantia
de uma atuação comprometida com a transformação da realidade
de opressão vivida pelos trabalhadores e trabalhadoras do campo,
pelos povos indígenas e remanescentes de quilombos.
Tais aportes vêm, em grande medida, do campo da Psicologia
Social e da Psicologia Comunitária (Lane, 1994; Martín-Baró,
Psicologia e contextos rurais | 47

1996; Campos, 1999; Góis, 2005; Brandão & Bonfim, 1999; Ieno
Neto, 2007), com trabalhos em torno das categorias de estudo da
Psicologia Social, tais como identidade, atividade e consciência,
bem como dos processos comunitários de organização participa-
tiva e emancipação (Lane, 1994; Lane & Sawaia, 1995; Ieno Neto et
al., 1985).
Outro campo marcadamente presente são as contribuições
advindas da Educação Popular (Freire, 1987, 2005), com as ações
de alfabetização de jovens e adultos, dos círculos de cultura, com
vistas a um processo de tomada de consciência dos mecanismos de
exploração vividos pelos agricultores familiares na sua relação de
trabalho com a terra.
Um terceiro campo tem relação com os Direitos Humanos
(Zenaide, 2006) na busca pela garantia do direito de acesso à terra,
nas denúncias de violação de direitos sofridos por trabalhadores
que lutam por terra, em busca da permanência no seu território ou
do seu reconhecimento.
Entendemos que na atuação do profissional de Psicologia,
bem como no seu processo de formação, algumas diretrizes neces-
sitam ser perseguidas para que possamos avançar no compromisso
social dessa ciência e profissão:
1. Conhecer a dinâmica histórica, social e política do nosso pais
no que tange ao conjunto de lutas sociais deflagradas em torno
da democratização e do acesso à terra. O Brasil se configura
mundialmente como um dos países de maior concentração
fundiária do mundo e isso impacta diretamente na produção
da existência de inúmeros trabalhadores e trabalhadoras que
vivem no campo. Aqui, entendemos ser fundamental apreender
a heterogeneidade que se formou no meio rural brasileiro por
meio dos variados modos de relação com a terra, bem como dos
processos sociais gerados nesse contexto.
48 | Psicologia e contextos rurais

2. Considerar que os trabalhadores e trabalhadoras do campo são


portadores de uma diversidade cultural, econômica e regional
nesses modos de relação com a terra e o meio rural, fato que
reverbera também em diferentes modos de subjetivação, cons-
tituídas em meio às particularidades históricas e culturais das
quais são portadores. Leite e Dimenstein (2011, 2010) apontam
como muitos dos trabalhadores envolvidos nas lutas dos movi-
mentos sociais, a exemplo do MST, acabam por incorporar, não
raro de modo conflitivo, novas modalidades subjetivas quando
de seu contato com o processo de formação política mediado
por essas agências de luta, ou seja, novos modos de subjetivação
são forjados no encontro entre a trajetória de vida desses atores
e sua entrada na militância política.

3. Contribuir com o debate sobre os processos sociais do campo,


os movimentos sociais rurais e as novas ruralidades, bem como
sobre o campo das políticas públicas relativas ao meio rural, a
exemplo da reforma agrária e da assistência técnica e extensão
rural. Nesse debate, cabe um posicionamento de que a política
de reforma agrária, longe de representar um retrocesso face ao
modelo dominante do agronegócio ou de que seja vista como
mera medida compensatória, consiste em uma conquista fun-
damental àqueles que da terra precisam para poder construir
novas possibilidades de vida no meio rural. Nesses termos, con-
cordamos com Sauer (2010, p. 38): “A luta social pela realização
de uma reforma agrária está, portanto, baseada, em primeiro
lugar, na busca de instrumentos que gerem emprego e renda,
criando melhores condições de vida no meio rural”.

4. Reconhecer a necessidade de uma articulação com outras áreas


do conhecimento, numa postura dialógica com os variados cam-
pos do saber direcionados para o meio rural. Há uma gama de
reflexões advindas do campo científico e profissional que tem
auxiliado na compreensão dos processos sociais, culturais,
políticos e econômicos do campo. Notadamente, podemos
citar diversos ramos da Sociologia e Antropologia, das Ciências
Agrárias, Economia, Direitos Humanos, Educação popular
Psicologia e contextos rurais | 49

entre outros. É imprescindível, nessa articulação, considerar os


saberes da tradição e da cultura na qual estão imersas as pessoas
do campo, sob pena de termos uma visão distorcida e descolada
de sua realidade e de suas visões de mundo.

5. Apostar numa atuação generalista do psicólogo. Se a atuação


com o meio rural nos impele a um exercício inter e multidis-
ciplinar, do mesmo modo, um conjunto de demandas que se
voltará para o profissional de Psicologia terá natureza bastante
heterogênea (demandas no campo da saúde, educação, orga-
nização social das famílias, gestão da produção, cultura, lazer,
arte etc.). Assim, torna-se fundamental fortalecer um processo
de formação desse profissional pautado numa concepção gene-
ralista que orienta o campo da Psicologia.

Considerações finais
Sem dúvida alguma que estamos diante de um campo de
discussões recente na Psicologia, embora possamos dizer que as
contribuições até aqui produzidas são inquestionáveis.
É forçoso reconhecer, dado o cenário atual, que nossas
agendas de pesquisa, ações de extensão e atuação profissional
necessitam incorporar as questões levantadas no presente capítulo,
a exemplo do processo de interiorização da formação e atuação em
Psicologia, das novas ruralidades que se desenham no campo bra-
sileiro e da diversidade de atores sociais e dos processos de subjeti-
vação inaugurados.
As possibilidades de atuação do psicólogo no que diz
respeito ao meio rural e toda diversidade que ele se reveste são
múltiplas. O cotidiano de vida das pessoas dota-se de uma hetero-
geneidade e intensidade que permite uma variedade de interlocu-
ções com tal riqueza. O que se apontou, até aqui, pode ser tomado
como ponto de partida ou de reflexão para proposições outras.
Desdobramentos podem surgir e o convívio com as comunidades
50 | Psicologia e contextos rurais

pode suscitar inúmeras ideias de aproximação e de diálogo com o


saber e o fazer psicológico. Para tanto, não podemos perder de vista
a proposição de que esse saber e fazer não estão desarticulados de
concepções políticas que podem estancar ou potencializar a eman-
cipação dos atores envolvidos.

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