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A pluralidade da pesquisa em Hannah Arendt


Revista de Ciências Humanas | v. 4, n. 23 | Dossiê Especial

O tesouro perdido das revoluções entre permanências e rupturas1

The lost treasure of revolutions between permanences and ruptures

Ana Luisa Lima Grein2

Resumo: Em On Revolution (2006), Hannah Arendt aponta dois aspectos


referentes ao fenômeno da revolução: aquilo que se perdeu e o que foi gerado
com ele. Esse fenômeno está ligado à capacidade humana de agir e, assim, a
revolução se trata de ação e criação. No âmbito político, isso remete à
reelaboração da estrutura do corpo político da sociedade. Nesse sentido, o
recurso às entidades como os conselhos são entendidos enquanto um modelo
aberto às rotações e transformações do tempo, que concomitantemente
almejam lidar com elas de maneira durável, para conferir estabilidade do corpo
político. Essas organizações de base tiveram papel essencial no seio das
revoluções modernas e são o seu tesouro. Porém, o espírito revolucionário que
leva à ação de criar algo novo se perdeu no transcorrer do fenômeno. Portanto,
refletiremos sobre o tesouro perdido das revoluções e sua relação com a criação
e durabilidade de novos corpos políticos.
Palavras-chave: Ação. Política. Revolução.

Abstract: In “On Revolution” (2006), Hannah Arendt indicates two aspects of the
phenomenon of revolution: what was lost and what was generated with it. This
phenomenon is linked to the human capacity to act and so, revolution is about
action and creation. In the political sphere, this refers to reworking the structure
of society's political body. In this, the use of organizations such as councils are
understood as a model open to the rotations and transformations of time that
concomitantly aim to deal with them durably, to provide stability to the political
body. These grassroots organizations played an essential role within modern
revolutions and are their treasure. However, the revolutionary spirit that leads to
the action of creating something new was lost in the course of the
phenomenon. Therefore, we’re going to reflect on the lost treasure of
revolutions and its relationship with the creation and durability of new political
bodies.
Keywords: Action. Politics. Revolution.

1
O artigo é fruto da pesquisa de mestrado finalizada em 2022 no Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da Universidade Federal de São João del-Rei, com suporte financeiro da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sob orientação do prof.
Dr. José Luiz de Oliveira, intitulada “Hannah Arendt e as revoluções: A fundação dos corpos
políticos nos dois lados do Atlântico”.
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Universidade Federal de São João del Rei. E-mail: analuisagrein@gmail.com.
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Introdução

A revolução é considerada por Arendt um fenômeno emblemático ao se


analisar as ações políticas e as transformações que as sociedades passaram. Ela
representa, ao mesmo tempo, o ápice do desmantelamento de todas as
estruturas políticas e sociais de onde se irrompe, e a abertura de um espaço de
tempo e lugar em que se pode experimentar a liberdade política. Podemos
compreender então que este é um fenômeno repleto de paradoxos e
acontecimentos imprevisíveis, nos quais experienciam-se momentos de
violência e terror, mas também de ações políticas espontâneas em prol da
reconstrução do tecido da sociedade.
Diante desses entremeios, discutiremos as considerações de Arendt em
relação ao tesouro perdido das revoluções modernas, a saber, Americana e
Francesa. Ambas compartilham aspectos que foram esquecidos e outros que
permaneceram desse fenômeno, e esses fatores estão diretamente
relacionados às concepções de organização política da sociedade ocidental
contemporânea. Portanto, faz-se relevante refletir sobre a revolução após o seu
fim, o que também nos leva a resgatar o esquecimento do que faz parte do
tesouro perdido, o espírito revolucionário de criar algo novo em meio ao coletivo
da sociedade.

O que restou do espírito revolucionário?

No que se refere ao conflito entre as necessárias transformações da


sociedade, Ana Paula Torres (2011, p. 150), com base em sua análise arendtiana,
afirma que “toda institucionalização é falha, que toda estabilidade é provisória,
que a permanência anda lado a lado com a inovação, que o passado
ressignificado é abertura de futuro, que ‘mortos’ e ‘vivos’, direito e política, se
pressupõem reciprocamente”. Dessa maneira, Arendt (2006, p. 214) concebe que
o ato de fundação de um novo corpo político é inspirado pelo espírito
revolucionário. Esse espírito, que está presente na condição humana da ação,

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possui dois elementos considerados como irreconciliáveis e contraditórios. Estes


são, por um lado, a qualidade ligada ao espírito do novo de trazer para a
realidade novas ideias e formulações e, por outro lado, a preocupação com a
estabilidade e durabilidade da nova estrutura.
Considerando a Revolução Americana e o corpo político que estava sendo
fundado e suas referências de Roma, tem-se que “ato de fundação gera,
inevitavelmente, sua própria estabilidade e permanência” (Arendt, 20063, p. 194)
de modo que a concepção romana de autoridade significa sua própria
expansão, para que todas as mudanças estejam ligadas a uma fundação
original. Trazendo para a experiência estadunidense, os homens da revolução
incorporaram tal acepção, possível de ser percebida por meio da ideia de
Harrington uma “continuidade de nações em contínua expansão” (2006, p. 194).
Isso refletiu na fundação de modo que as ementas desta Constituição apenas
aumentariam e ampliariam suas bases originais, fundamentadas na República
estadunidense. Com isso, a própria autoridade da Constituição repousaria em
sua “inerente capacidade de ser emendada e ampliada” (2006, p. 195). À vista
dessa construção, Arendt identifica que o fruto exclusivo dessa revolução teria
sido esse sistema de manutenção do poder da república, de maneira a evitar
que as múltiplas fontes de poder se acabem numa futura possível expansão por
outros membros, como é explicado a seguir:

Se fossemos entender o corpo político da república americana


exclusivamente nos termos de seus dois maiores documentos, a
Declaração da Independência e a Constituição dos Estados Unidos, o
preâmbulo da Declaração seria a única fonte de autoridade de onde a
Constituição, não como ato de constituir o governo, mas como lei da
terra, deriva sua legitimidade; pois a Constituição em si, tanto no
preâmbulo quanto nas emendas que formam a Declaração de Direitos,
curiosamente cala sobre essa questão da autoridade última (Arendt,
2006, p. 185).

É por essas razões que Arendt atribui certos méritos à Constituição


estadunidense, também apontado da seguinte maneira: “não é só pelo fato dela
ser um documento formal, imune assim à fúria de paixões momentâneas, mas
3
Por se tratar da versão original em inglês, todas as citações diretas da obra “On Revolution”
(2006) foram traduções livres da autoria do artigo.
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também por ser uma materialização de todo o ideário republicano subjacente à


revolução” (Torres, 2011, p. 148). No entanto, a própria pensadora reconhece que
foi a “erudição e o pensamento conceitual, de altíssimo nível” (Arendt, 2006, p.
211) que ergueram a estrutura da república, bem como que “esse interesse pela
teoria e pelo pensamento político desapareceu quase de imediato, depois de
concluída a tarefa” (2006, p. 211).
Isso se deu em virtude de uma maior preocupação com um problema
mais imediato. Este problema teria aparecido a partir da tentativa de diferenciar
a representação de poderes no modelo republicano da democracia como forma
de governo certamente representativo. Ao mesmo tempo, Arendt (2006, p. 228)
afirma que aqueles homens sabiam que a democracia direta não era exequível,
dado à impossibilidade de um espaço para todos os cidadãos, situação que é
exemplificada nos debates sobre o princípio de representação no Estado da
Filadélfia:

A representação deveria ser um mero substituto da ação política direta


por meio próprio do povo e os representantes que ele elegeu deveriam
agir de acordo com as instruções dadas por seus eleitores, e não tratar os
assuntos de acordo com as opiniões pessoais que poderiam ser formadas
durante o processo (Arendt, 2006, p. 228).

O problema da representação já era evidente e, para demonstrar que os


homens da Revolução Americana tinham esse conhecimento, Arendt (2006, p.
228) traz posicionamentos de atores desta revolução afirmando que eles não
sabiam certamente quais eram as opiniões ou o sentimento do povo que
visavam representar. Por isso, ela trata a proposta de Benjamin Rush como
perigosa, na medida em que “todo o poder deriva do povo, (mas) o povo só o
possui no dia das eleições. Depois disso, ele é propriedade de seus governantes”
(Rush apud Arendt, 2006, p. 229, tradução nossa).
Frente aos acontecimentos que se decorreram, os resultados da
Revolução Americana, em comparação aos seus objetivos iniciais, foram
ambíguos, uma vez que a questão da finalidade do governo não foi sanada, de
maneira que “a questão se o fim do governo era a prosperidade ou a liberdade

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nunca foi resolvida” (Arendt, 2006, p. 127, tradução nossa)4. No caso desta
revolução, depreende-se que o direito à igualdade também passou a significar
que “todos os homens devem viver subordinados a um governo constitucional
‘limitado’” (2006, p. 140, tradução nossa). O que se passou a admirar, foi na
verdade “as bênçãos do ‘governo brando’ (mild government)” (2006, p. 138,
tradução nossa) e, a partir de então, seu desenvolvimento orgânico à parte da
história britânica. É possível identificar, a partir desse contexto, que apesar da
participação em maior escala da população, o processo de criação das leis
passou a ser realizado majoritariamente por especialistas.
Diante disso, a revolução pode ter até permitido o acesso à liberdade para
uma maior parte da população, mas “falhara em fornecer um espaço onde se
pudesse exercer essa liberdade” (Arendt, 2006, p. 230). Por esta razão, apenas os
representantes do povo e não eles propriamente estavam inseridos nas práticas
que condizem à liberdade política, que se traduz na expressão, discussão e
liberdade de fazer parte das decisões. Seguiu-se que o defeito da Confederação
era que não houve uma real divisão entre o poder do governo geral e os locais,
de modo que tal partição funcionava como um ponto central de ação da
aliança, e não como um modo de efetuar o governo. Além disso:

A experiência mostrara que havia nesta aliança de poderes uma


tendência perigosa de que os poderes aliados atuassem não para se
refrear, e sim para se anular mutuamente, ou seja, gerar impotência
(Arendt, 2006, p. 145).

À vista disso, para conceder caráter de permanência a um corpo político,


os instrumentos para a memória são importantes, uma vez que se relacionam
com a constante lembrança de uma fundação que teria ocorrido em um tempo
passado para orientar o presente. Isso se dá de modo que “as experiências e
mesmo as histórias do que são e do que sofrem os homens, dos acasos e
acontecimentos, recaem na futilidade intrínseca da palavra viva e do gesto vivo,

4
De certo modo, o que alguns homens da revolução como Jefferson e Adams temiam
aconteceu. Devido a esse fato, Arendt acaba por afirmar que “pode-se até concluir que havia
menos oportunidade para o exercício da liberdade pública e o gozo da felicidade pública na
república dos Estados Unidos do que existira antes nas colônias da América Britânica” (Arendt,
2006, p. 230).
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a menos que sejam comentadas constantemente” (Arendt, 2006, p. 212).


Considerando a importância da memória, a autora aponta uma falta de
memória por parte dos Estados Unidos em relação ao seu passado
revolucionário:

Menos clamorosas talvez, mas certamente não menos reais são as


consequências da contribuição americana para a ignorância do mundo,
sua omissão em lembrar que foi por uma revolução que deu origem aos
Estados Unidos e que a república nasceu não por “necessidade histórica”
nem por um desenvolvimento orgânico, e sim por um ato deliberado: a
fundação da liberdade (Arendt, 2006, p. 208).

Nessa perspectiva, Arendt (2006, p. 223) ressalta dois contribuintes para o


esquecimento dos princípios que viabilizaram a criação de algo novo: Primeiro,
diante dos conflitos gerados, não se forneceu uma instituição duradoura para a
presença espírito revolucionário, ligado à novidade e aberto à ação; Segundo,
como consequência do primeiro, houve uma falha do pensamento
pós-revolucionário em lembrar e buscar compreender o espírito revolucionário.
Em decorrência disso, e de uma maneira mais específica: “[...] os fundadores
nunca perceberam a importância política da municipalidade, e que a falha em a
incluir nas constituições dos estados ou da federação foi ‘uma das omissões
trágicas do desenvolvimento político pós-revolucionário’” (Arendt, 2006, p. 227).
Nas palavras de Drucker (2001, p. 201): “Nos EUA, o evento da fundação não foi
esquecido; mas o próprio poder humano de começar foi. Foi o princípio do
poder, ou seja, a faculdade humana de fundar comunidades, que foi esquecido”.
A partir dessas formulações, vejamos como se deu a participação política
decorrente na modernidade:

[...] Arendt nos relata que, na tradição do pensamento filosófico-político


ocidental, a práxis cedeu lugar à poièsis, à ação à fabricação, pois a
política passou a depender de um ‘saber-fazer’ anterior à execução, da
mesma forma que um produto, uma obra, pressupõe um planejamento,
um arquétipo ou modelo, o qual existe de antemão na mente do artesão
(Torres, 2011, p. 120).

De modo semelhante à substituição da política pela fabricação presente


no pensamento arendtiano, Torres (2011, p. 135) identifica uma “tendência
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moderna a reduzir o direito à lei positivada”. No que tange à caracterização


desta lei, a pesquisadora explica que a tradição do pensamento jurídico
ocidental é baseada na distinção entre “direito positivo” e direito “natural”,
“distinção que, quanto ao conteúdo conceitual, já se encontra no pensamento
grego e latino; o uso da expressão ‘direito positivo’ é, entretanto, relativamente
recente, de vez que se encontra apenas nos textos latinos medievais” (Torres
apud Bobbio, 2011, p. 136). Nessa perspectiva, as leis são criadas em um tempo
histórico específico e por pessoas que ocupassem os cargos de legisladores. Na
via deste raciocínio, temos a redução do direito à atividade do homo faber, que
foi constituído enquanto um artifício para evitar a instabilidade e fragilidade dos
assuntos humanos, “com o intuito de se criar estabilidade, pois se acredita que o
direito assim considerado nos traria certeza e segurança” (Torres, 2011, p. 136).
Por meio da análise da comentadora, é evidente o processo de
profissionalização da política que Arendt, ao final da obra “On Revolution”
(2006), aponta como um perigo para a viabilidade da liberdade política. Dessa
maneira, os cargos políticos são dominados pelos “especialistas”, os quais
estabeleceram as leis vigentes para os conflitos da sociedade. A possibilidade de
ação dos cidadãos é então limitada para a obediência, “ou seja, os ‘vivos’
deveriam silenciar-se” (Torres, 2011, p. 136). Esta realidade contemporânea às
revoluções modernas demonstra que as ideias de participação política ampla
possuíram dificuldade em se consolidarem dentro da estrutura do governo dos
atuais corpos políticos oriundos do fenômeno da revolução.
Entre os percalços dos acontecimentos, o que acabou se perdendo, sendo
esquecido, foram justamente as questões mais caras à Arendt: em, primeiro, a
importância da fundação de uma república e, segundo, que “o verdadeiro
conteúdo da constituição não deveria ser absolutamente a salvaguarda dos
direitos civis, mas o estabelecimento de um sistema de poder inteiramente
novo” (Arendt, 2006, p. 139). Nos termos arendtianos, o tesouro das revoluções
fora esquecido por aqueles que foram seus herdeiros.
Por sua vez, no contexto da Revolução Francesa, Arendt (2006, p. 123)
destaca que “a revolução devorou seus próprios filhos”, o que teria dificultado o

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prosseguimento de planejamentos e deliberações sobre a fundação de um


novo corpo político francês. O que ocorreu na França, que se tornou grande
tragédia: aqueles que precisavam de se libertar de seus senhores ou da
necessidade se juntaram àqueles que almejavam criar espaço para a liberdade
pública. Por conseguinte, um considerado “fracasso” desta revolução é
explicitado na “incapacidade de seus atores em fugir do círculo vicioso postos
pela ideia de criação de um conjunto de leis que, ao mesmo tempo que
reconhece sua origem humana, deve afirmar no plano do simbólico e do
imaginário sua independência do tempo presente” (Bignotto, 2011, p. 55).
Para interromper esse ciclo, no contexto da Revolução Francesa, seria
preciso acordar sobre a questão do absoluto. Robespierre, no entanto, não teve
sucesso ao buscar na ideia de “Legislador Imortal” uma fonte para a estabilidade
do corpo político, como explicado abaixo:

Nos termos da Revolução Francesa, ele precisava de uma fonte


transcendente e sempre presente de autoridade que não podia ser
identificada com a vontade geral, nem da nação ou da própria revolução,
de maneira que uma Soberania absoluta – ‘o poder despótico’ de
Blackstone – pudesse conceder soberania à nação, que uma imortalidade
absoluta pudesse garantir, se não a imortalidade, então pelo menos
alguma permanência e estabilidade à república e, finalmente, que
alguma Autoridade absoluta pudesse funcionar como a fonte original da
justiça, da qual as leis do novo corpo político pudessem derivar sua
legitimidade (Arendt, 2006, p. 177).

Por conseguinte, após a retirada de Robespierre do governo e


instabilidade do cenário francês como um todo, o que se decorreu foi uma
militarização dos assuntos políticos, culminando em uma ditadura. Nesse caso,
as ideias e experiências revolucionárias não teriam sido capazes de fundar um
novo corpo político, prejudicando também a efetivação da participação na
política. No entanto, Torres (2011, p. 227) ressalta, tomando como base as
explicações de Newton Bignotto, que Arendt não debruçou seus olhares mais
profundamente sobre as resoluções institucionais recorrentes da Revolução
Francesa no país. A ressalva do pensador brasileiro é a seguinte:

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Em certos aspectos, as análises de Arendt não fazem jus ao fato de que


desde Mirabeau, ainda na Assembleia Constituinte, passando por
Condorcet e outros membros do grupo dos girondinos, o desejo de
terminar a revolução, e de fixar nas leis os marcos da liberdade, faz parte
do discurso revolucionário francês tanto quanto a ideia de revolução
permanente do discurso dos jacobinos depois de 1792 (Bignotto, 2011, p.
12).

Diante da análise das revoluções dos dois lados do Atlântico, Arendt


destaca que um dos motivos pelos quais elas tiveram desfechos diversos foi a
diferença entre os corpos constituídos. No caso da França, “le peuple na
acepção revolucionária, não era organizado nem estava constituído” (Arendt,
2006, p. 171, grifos da autora), isto é, a população se encontrava dispersa e imersa
na invisibilidade e distanciamento dos assuntos políticos. A autora aponta ainda
que “nenhum dos parlamentos europeus era um corpo legislativo; tinham no
máximo o direito de dizer ‘sim’ ou ‘não’, mas não lhes cabia a iniciativa ou direito
de agir” (Arendt, 2009, p. 234).
Nos Estados Unidos, a frase “nada de tributação sem representação” ainda
até poderia se referir a uma “monarquia limitada”, dado que o princípio seria o
mesmo, uma espécie de “consentimento dos súditos” (Arendt, 2006, p. 171-172).
Em decorrência disso, no caso da república estadunidense, não teria havido
“nenhum espaço reservado para o exercício daquelas mesmas qualidades que
tinham sido úteis para construí-las” (2006, p. 224).

O tesouro perdido das revoluções

A criação e funcionamento de entidades como os conselhos são


entendidos como um modelo aberto às rotações necessárias e transformações
do tempo e que, concomitantemente, almeja lidar com elas de maneira durável,
a fim de proporcionar certa estabilidade para ser possível um corpo político.
Nesse sentido, os conselhos, as organizações municipais, tiveram papel
essencial no seio das revoluções dos dois lados do Atlântico e, fazem parte, para
Arendt, do tesouro das revoluções, pois evidenciaram a possibilidade prática de
uma organização que abrangeria a ampla participação política na sociedade.

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Sobre os órgãos de gestão própria, Arendt (2006) também menciona o caso dos
sovietes, bem como de Lênin, de sua capacidade em reconhecer o poder aos
sovietes. Mas, ao mesmo tempo, ele não reorientou suas formulações para
abarcar outros órgãos a não ser o que ideologicamente estava de acordo com
suas formulações. Em outras palavras, não foi almejada uma real pluralidade na
política.
Apesar disso, um ponto crucial para Arendt é que as organizações
populares de caráter espontâneo foram uma realidade insurgente nas duas
revoluções do século XVIII. Dessa maneira, nos dois lados do Atlântico, a
experiência da emergência dos órgãos populares trouxe à tona a possibilidade
de se criar uma estrutura política nova. Esses organismos de base surgidos no
contexto das Treze Colônias e da França naquele período tiveram forte
influência nas revoluções dos séculos XIX e XX. O plano de Jefferson dos
conselhos elementares, as sociétés revolutionaires e as comunas municipais são
considerados por Arendt como um prenúncio do que viria a aparecer nos
fenômenos considerados como genuínas revoluções ao longo dos séculos
seguintes. A esse respeito, salienta a pensadora:

Dito de outra maneira, foram os órgãos espontâneos que brotaram do


seio do próprio povo nos dois lados do Atlântico, que possibilitaram uma
concepção inteiramente nova de corpo político, ou seja, suas criações
foram inesperadas, devido ao caráter espontâneo da força política
residente no povo (Arendt, 2006, p. 255).

Nesse sentido, o surgimento dos conselhos refletiam a incorporação dos


indivíduos nos espaços públicos, decorrente do fenômeno revolucionário. O
estabelecimento dos indivíduos como parte do corpo político se relaciona
diretamente com o objetivo das revoluções. Isto, pois “eles sempre surgiam
como organismos espontâneos do povo, não apenas fora do âmbito de todos os
partidos políticos, mas inteiramente inesperado por eles e seus líderes” (Arendt,
2006, p. 241). Os conselhos então apareceram como espaços para a livre
expressão de opiniões e ideias em torno dos assuntos políticos.

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Esse momento é crucial pois seria a partir dele que poderia se perceber as
pessoas mais dispostas a “[...] apresentar nossos pontos de vista diante do
conselho” (Arendt, 2015, p. 200). No que tange a essas escolhas sobre as
maneiras de participação, elas seriam “de tal forma que os que não desejam
participar dos assuntos públicos não são forçados a fazê-lo. Essa elite se
distribuiria pelas fileiras das mais diversas instâncias federativas, sempre através
da auto escolha” (Duarte, 2003, p. 312). Essa tópica é assim esmiuçada:

No momento em que uma pessoa era eleita e, consequentemente,


enviada a um conselho superior imediato, esta pessoa, como
representante, se encontrava novamente entre os seus pares. O escolhido
apresentava-se diante de outras pessoas que, como ele, deveriam falar
em nome daqueles que o elegeram no âmbito das organizações
elementares. Configurava-se um sistema em que todos os escolhidos
para o conselho superior haviam recebido um voto especial de confiança
(Oliveira, 2009, p. 276).

Para compreender melhor os conselhos, Arendt os compara com os


partidos, a começar pelas suas gêneses. Os partidos teriam surgido na
Assembleia, por parte dos jacobinos cujo objetivo seria de dominar as
sociedades populares para então centralizar um grande contingente de poder e
definir que: “somente as sociedades filiadas a eles eram confiáveis e todas as
outras eram ‘sociedades bastardas’”5 (Arendt, 2006, p. 239). Na verdade, para
além desse grupo, devido às tantas discordâncias e impasses “entre as facções
parlamentares, para cada uma tornou-se questão de vida ou morte dominar
todas as demais” (2006, p. 239). As estratégias utilizadas foram a organização das
massas fora dos espaços de decisão, bem como os atos de aterrorizar a
Assembleia com uma pressão externa. Nos partidos:

Acostumamo-nos tanto a pensar na política interna em termos de


política partidária que tendemos a esquecer que o conflito entre os dois
sistemas sempre foi, na verdade, um conflito entre o Parlamento, fonte e
sede do poder do sistema partidário, e o povo, que entregou o poder a
seus representantes; por mais que um partido, ao decidir tomar o poder e
instaurar uma ditadura monopartidária, possa se aliar às massas nas ruas
e se volte contra o sistema parlamentar, ele nunca pode negar que sua

5
“Aqui podemos ver, já desde o início do sistema partidário como um sistema pluripartidário veio
a dar origem a uma ditadura monopartidária” (Arendt, 2006, p. 239).
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origem está na luta de facções do Parlamento e, portanto, continua a ser


um corpo que aborda o povo a partir de fora e de cima (Arendt, 2006, p.
239-240).

Devido às características de monopólio de indicações, ideias, os partidos


não seriam considerados somente como órgãos populares, pelo contrário,
poderiam ser “instrumentos muito eficientes para restringir e controlar o poder
do povo” (Arendt, 2006, p. 264). Carlos Brito evidencia uma compreensão do
pensamento arendtiano sobre essa tópica: “nesses partidos nem mesmo a
questão da representação é uma causa verdadeira, o que nos ajuda a perceber
que opor-se aos partidos não significa necessariamente opor-se a políticas de
representação” (Brito, 2021, p. 124). Em decorrência destes fatores, Arendt (2018,
p. 83) destaca que “é notável a grande flexibilidade inerente ao sistema, que
parece não precisar de condições especiais para seu estabelecimento, exceto da
reunião e ação conjunta de certo número de pessoas de modo não temporário”.
Dessa maneira, os conselhos, diferente dos partidos, surgiram do próprio
decorrer do fenômeno revolucionário e emergiam da população enquanto
órgãos espontâneos para reivindicar ordem e ação (Arendt, 2006).
No caso dos partidos, eles não teriam surgido durante uma revolução, de
modo que “ou são anteriores, como no século XX ou se desenvolveram com a
ampliação do voto popular” (Arendt, 2006, p. 263). Nesse sentido, eles são
interpretados como uma instituição que viabiliza o apoio popular ao governo
parlamentar por meio do voto, “enquanto a ação se mantinha como
prerrogativa do governo” (2006, p. 263). E mais, se esses grupos decidem ocupar
o campo da ação política, eles violariam o próprio princípio e objetivo de sua
existência num governo parlamentar.
Por conseguinte, o conflito entre partidos e conselhos se deu de tal
maneira que o que estes últimos contestavam “[...] era o sistema partidário em
si, em todas as suas formas, e esse conflito se acentuava sempre que os
conselhos, nascidos da revolução, se voltavam contra o partido [...]” (Arendt,
2006, p. 257). O que a pensadora aponta como admirável dos conselhos não era
somente a existência da pluralidade, mas também o fato de que “vários partidos
se sentavam juntos nos mesmos conselhos” (2006, p. 255), indicando que “a
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filiação partidária não desempenhava absolutamente nenhum papel” (2006, p.


255). Eles não pertenciam aos partidos, e o que mais os diferenciavam destes
seriam os programas partidários, pois eles, para Arendt, por mais revolucionário
que pudessem parecer, ainda seriam “fórmulas prontas”. E, por aparecem como
prontas, elas não requeriam ação, somente execução de tarefas.
Dessa maneira, é possível compreender, com Rubiano (2022, p. 85), que “o
sistema de conselhos compartilha a mesma essência do governo republicano,
isto é, do poder residir no povo. No entanto, o princípio parece ser a liberdade. A
liberdade aqui é entendida em dois sentidos: participação no governo e
novidade”. Considerando esse contexto, o sistema de conselhos teria se
confrontado com duas tarefas que eram as principais questões das revoluções
no geral: uma primeira, política, “deveria promover a liberdade de debater,
deliberar e agir” (Rubiano, 2022, p. 85); e a segunda, social, deveria “promover o
bem-estar social, solucionar o problema da miséria” (2022, p. 85).
No entanto, a questão social na política representou um problema sem
resolução para Arendt. Consequentemente, a partir dessas duas funções, o
corpo político moderno acabou por se dedicar mais à parte administrativa e,
“com isso, emergiu um conflito entre ação e administração” (Rubiano, 2022, p.
85). Assim sendo, os conselhos tiveram seu fim no momento em que a
felicidade se confundiu com um bem privado com urgência a ser alcançado, e,
por isso, foram elencadas “estruturas menos políticas, porém, de poder de
reação mais rápido” (Brito, 2021, p. 126).
Nesse sentido, a pensadora afirma que o governo representativo acabou
por se tornar oligárquico, não no sentido usual de um governo para poucos, mas
em um governo que poucos governam em nome do interesse “pelo menos
supostamente, da maioria” (Arendt, 2006, p. 261). O caráter de oligarquia se
expressa na medida em que “a felicidade pública e a liberdade pública voltaram
a ser privilégios de uma minoria” (2006, p. 261).

Para Arendt, são várias as razões para que os sistema de conselhos, que
desempenharam papel decisivo nas revoluções, não tenham ainda se
convertido em uma nova forma de governo consolidada: o falso
antagonismo entre representação e participação; o eventual conflito dos

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conselhos com a busca por estabilidade; a obsessão com a questão social


e o correspondente descuido com questões de Estado e governo; a
aberta contestação do sistema partidário; a interpretação da felicidade
pública em termos de bem-estar privado ou social (Correia, 2014, p. 203).

Apesar disso, para Arendt, interessa trazer para nossa memória a


relevância do espírito dos conselhos, estes que podem viabilizar mais espaços
públicos para os assuntos políticos. A pensadora retrata a mensagem passada
por eles: “os conselhos dizem: queremos participar, queremos debater,
queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público e queremos ter uma
possibilidade de determinar o rumo político de nosso país” (Arendt, 1977, p. 232).
Ao considerar o contexto estadunidense de onde havia se tornado cidadã,
Arendt ressaltava que o tamanho do país seria mais um motivo para possuir
mais espaços públicos, de modo que, ironicamente, lamenta:

As cabines em que depositamos nossas cédulas são, sem sombra de


dúvida, muito pequenas, pois só têm lugar para um. Os partidos são nada
mais que o eleitorado manipulado. Mais se apenas dez de nós estivermos
sentados em volta de uma mesa, cada um expressando sua opinião, cada
um ouvindo as opiniões dos outros, então uma formação racional de
opinião pode ocorrer por meio da troca de opinões (Arendt, 1977, p.
232-233).

Por fim, ao analisar as formas de governo, Arendt não delineia uma


estrutura que considere “ideal”, mas faz um elogio ao sistema de conselhos, por
apresentar a vantagem de possuir uma “forma piramidal em que os conselhos
locais se ligam, articulam e sustentam os conselhos superiores” (Rubiano, 2022,
p. 85). Acrescentamos que o que ela buscava evidenciar era na possibilidade de
trazer à tona “pérolas e corais das ruínas e fragmentos do passado que possam
lançar luz sobre o que a política fora outrora – e que ainda pode novamente vir a
ser” (Berstein, 2021, p. 98). É nesse sentido que menciona que um
“estado-conselho”, sem fundamentar em princípios da soberania, poderia se
ajustar às diferentes variações de federações, dado que o poder seria constituído
horizontal e não verticalmente (Arendt, 2013). Aqui, contudo, a comentadora de
Arendt realiza uma ressalva importante nas distinções que tangem às formas
dos governos elaboradas pela pensadora:

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É estranho pensar que a grande novidade revolucionária tem o mesmo


formato que a ditadura e que a diferença seria que na ditadura a
autoridade está no topo, já no sistema de conselhos a autoridade está no
início, na fundação; e o poder está na base da pirâmide, isto é, no povo. Ao
meu ver parece inadequado usar a mesma forma estrutural para os dois
(Rubiano, 2022, p. 85-86).

Nessa perspectiva, Rubiano continua a argumentar lembrando os


próprios pontos fundamentais no pensamento arendtiano: que nos momentos
em que a ação política aparece como principal atividade humana, “as
faculdades do espírito deveriam auxiliar no diálogo, na formação de expressão
de opiniões, na persuasão, na intersubjetividade e na responsabilidade por fazer
e cumprir promessas mútuas, os compromissos públicos” (Rubiano, 2022, p. 86).
As contribuições de cada uma das capacidades humanas são citadas pela
comentadora a fim de detalhar sua fundamentação: o diálogo contribui para o
exercício do questionamento e permite à faculdade de julgar a formulação de
“novos conceitos e juízos”; o querer, expressado pela vontade, corrobora para a
formação de promessas mútuas, vislumbrando a preservação das atitudes para
o futuro. Isto, pois, “não são as capacidades do homem, mas é a constelação que
ordena seu mútuo relacionamento o que pode mudar e muda historicamente”
(Arendt, 2011, p. 94).
O tesouro do espírito revolucionário, aquele de criar algo novo na política,
materializado em órgãos coletivos de autogoverno, foi perdido por meio da
falha em fundar instituições duradouras para sua efetivação, que corroborou
para seu esquecimento. No entanto, Arendt destaca apontamentos sobre a
Revolução Húngara6, ocorrida em 1956 que, apesar de ter perdurado por
questão de poucos meses, trouxe aos olhares do século XX a experiência que a
pensadora havia considerado como esquecida, os conselhos. Para nossa autora,
tal revolução foi de grande importância para sua confiança na dignidade da
política, na medida que “uma vez que um evento como o levante espontâneo

6
Sobre essa revolução, ver: Arendt, Hannah. Imperialismo totalitário: reflexões sobre a Revolução
Húngara. In: Arendt, Hannah. Ação e a Busca da Felicidade. Tradução Virginia Starling. Rio de
Janeiro: Bazar do Tempo, 2018a.
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na Hungria ocorreu, toda política, teoria e previsão de futuras potencialidades


devem ser reexaminadas” (Arendt, 2018a, p. 31).

O legado político das revoluções modernas

A relevância de estudar sobre os fenômenos revolucionários repousa na


demonstração arendtiana de que foi sob essa experiência política que se deram
das bases fundacionais do modelo republicano moderno. Claude Lefort salienta
que para Arendt o fenômeno da revolução “não era um objetivo de curiosidade.
Para ela, foi o momento do início, ou de começar algo novamente” (Lefort, 1988,
p. 45). Por conseguinte, analisar esses fenômenos é também “relembrar o que
uma revolução significa na vida das nações” (Arendt, 2018, p. 44), posto que eles
precederam os princípios que culminaram na formação dos Estados nacionais.
Independentemente do que se decorreu a partir desses acontecimentos, não se
pode negar a transformação que trouxeram para o âmbito da política.
Nesse sentido, as contribuições de Arendt no que se referem ao pensar as
revoluções, fundações e corpos políticos, são assim elucidadas por Bignotto
(2003, p. 57): “Situando-se em terreno muito próximo ao da tradição
republicana, Arendt acabou carregando para o centro de sua obra a
consciência da importância dos momentos iniciais de fundação de novos
regimes”. Suas obras contribuem para pensar sobre regimes livres, seus
fundamentos, bem como os aspectos que são empecilhos para sua existência.
Para este autor, “Arendt renovou o pensamento republicano” (Bignotto, 2003, p.
57), na medida em que possibilitou sua fundamentação nas “aspirações
libertárias das revoluções do século XVIII” (2003, p. 57). Portanto, o problema
discutido por Arendt na década de 1960 permanece atual, a saber, “como
conferir maior participação às pessoas, pela ação e palavra, na vida republicana
e abrir a possibilidade para experimentá-la com um sentimento de prazer, não
como um fardo” (Duarte, 2018, p. 11).
Na Revolução Americana, a ação, embora iniciada individualmente,
necessitou de um esforço em conjunto para ser exercitada, assim, a motivação

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particular não seria considerada a mais relevante. Nesse sentido, os homens da


revolução como Jefferson e Adams teriam desfrutrado do sentimeto da
felicidade pública e evidenciado o gosto pela vida no espaço público (Arendt,
2006). Aqui, a pensadora cita o exemplo da percepção de Jefferson sobre a
principal conquista da Declaração da Independência, que foi “a maneira perfeita
para que uma ação apareça em palavras” (2006, p. 124); e também o exemplo
das discussões de Jefferson e Adams sobre a vida após a morte, que exprimem,
para além das religiosidades, “vários ideais da felicidade humana” (2006, p. 125),
o desejo de estar em conjunto. No entanto, nos momentos de decisão sobre a
fundação do corpo político, a interpretação sobre o objetivo do corpo político
acabou por desviar a palavra “felicidade” não para seu sentido público, mas
privado. A Constituição, por exemplo, foi ratificada por aqueles que “tinham
muito a perder em termos de interesse privado” (2006, p. 126).
Ao discutir a relação conturbada entre privado e político, é possível
perceber que a autora as exemplifica por meio do exemplo da Revolução
Americana, cuja diferença entre os próprios ditos Pais Fundadores revelou o
conflito entre a felicidade pública de ser um participante nas atividades comuns
em um “espaço onde somos vistos e podemos agir” (Arendt, 2006, p. 126) e o
desejo “fundamentalmente antipolítico de estar desobrigado de qualquer dever
e cuidado público” (2006, p. 126), que para a pensadora fez parte dos princípios
da criação de um corpo político “por meio do qual os homens possam controlar
os governantes e, ao mesmo tempo, gozar das vantagens do governo
monárquico, ser ‘governado sem precisar agir’” (2006, p. 126). Nesse sentido, há
um lamento que a liberdade pública, a felicidade pública e o espírito público
foram transformados em liberdade civil, bem-estar individual da maioria e uma
fome de opinião pública. Por sua vez, a esfera política, que carrega seus valores
políticos, foi reduzida a valores sociais traduzidos em uma Constituição com
direitos negativos.
Como lição da experiência da Revolução Americana, Arendt (2006, p. 149)
compreende que “o problema do absoluto é intrínseco ao próprio
acontecimento revolucionário”. Nesse sentido, ele não teria sido um princípio

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reivindicado somente pela religião, na verdade ele teria acobertado os desafios


concernentes aos assuntos políticos por meio da solução de uma “instituição da
realeza” (2006, p. 150). Contudo, as revoluções teriam mostrado que esta não foi
uma solução, e apenas deixou nebuloso “o problema mais elementar de todos
os corpos políticos modernos: sua profunda instabilidade decorrente de
alguma falta elementar de autoridade” (2006, p. 150).
No que se refere ao contexto revolucionário francês, Arendt (2018, p. 35)
afirma que uma de suas principais consequências foi “pela primeira vez na
história, trazer le peuple para as ruas e torná-lo visível”. No entanto, a Revolução
Francesa apenas libertou os pobres de sua obscuridade, mas não de sua
visibilidade. Isto posto, o processo revolucionário não se direcionou para a
fundação de instâncias em que suas vozes fossem ouvidas, caracterizando uma
efetiva participação popular.
Entretanto, a pensadora também ressalta que a própria “existência de um
soberano absoluto cuja vontade é a fonte do poder e da lei, era um fenômeno
relativamente novo” (Arendt, 2006, p. 151) nas concepções sobre o absolutismo
europeu. Como consequência do uso das pautas da necessidade para se manter
no poder, le peuple teria se virado contra esses líderes e que tiveram seus fins
igualmente àqueles do Ancien Regime, “cuja queda eles conseguiram provocar”
(Arendt, 2018, p. 194).
Diante disso, o que se pode compreender de lição é que o curso desta
revolução definiu que o fim da pobreza seria um pré-requisito para a fundação
da liberdade. Porém, é importante ressaltar que, a partir da mesma experiência
revolucionária, “é que não se pode lidar com a pobreza e a necessidade da
mesma forma com que se lida com a violência, a violação dos direitos e as
liberdades” (Arendt, 2018, p. 195). Sendo assim, um equívoco dos homens de
ação da Revolução Francesa foi acentuar o confronto entre a violência e a
necessidade. E só foi percebido como um caminho equivocado depois de
utilizarem da necessidade enquanto uma “força poderosa da carência e da
miséria e da privação, em sua luta contra a tirania, isto é, quando esperaram

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acrescentar seus próprios esforços naquela ‘ponta de diamante’ que os tornaria


irresistíveis” (2018, p. 195).
A principal questão interpretada por Arendt nessa revolução é
centralizada no debate sobre liberdade e necessidade. No final, Arendt acaba
por também afirmar que “o começo do fim da Revolução Francesa” (Arendt,
2018, p. 195) teria se apresentado quando seus agentes explicitaram que, a partir
de então, o objetivo da revolução passaria a ser “a felicidade do povo”. Essa
felicidade, contudo, não estava relacionada com a felicidade pública possível de
ser experienciada no espaço público. Mas, assim como o resultado da Revolução
Americana, prevalecia o sentido de buscar garantir uma felicidade privada,
nesse caso, sanando as necessidades físicas da população invisibilizada.
Sobre os apontamentos de Arendt relativos à Revolução Francesa,
Bignotto realiza algumas ressalvas, nos ajudando a compreender as
contribuições da pensadora: ele afirma que é questionável subentender a
presença de uma identidade entre revolução e terror, bem como a ideia de que
“a Revolução Francesa estivesse comprometida desde o início com esse
destino” (Bignotto, 2011, p. 48), e também a visão de que essa seria o principal
fruto do que se iniciou em 1789 com o desmantelamento do Antigo Regime.
Portanto, para Bignotto, a Revolução Francesa deixou sua contribuição no
sentido de “compreender que a liberdade, esteio dos governos republicanos, na
linguagem de Arendt, precisa ser vinculada à questão da igualdade, e talvez
também da fraternidade” (Bignotto, 2011, p. 48). Além desse legado, também se
atesta outro:

Só a partir da Revolução Francesa que uma renovatio ex parte populi ab


imis fundamentis, de natureza interna, passou a ser encarada como
evento matriz, transformador e instaurador da autoridade, deixando de
ser vista como revolta e rebeldia desagregadoras da ordem (Lafer, 1997, p.
60).

Tomando como base essas reflexões, o filme La Marseillaise (1972)


expressa muitos sentidos em que é possível ilustrar o contexto revolucionário na
França, sua ruptura com tradições, a crise política, a participação popular. O

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diretor tem sucesso ao colocar de maneira simples os aspectos que fazem


referência a complexidade do processo revolucionário francês. Nesse enredo,
uma cena que merece destaque por retratar as pequenas pistas de que
estavam todos sob efeito da revolução, no momento em que o Rei aceita se
refugiar imediatamente, ele utiliza a palavra “marchemos”, parte do vocabulário
revolucionário integrante do hino da revolução.
À vista disso, François Furet afirma, reforçando que as palavras e seus
sentidos trazidos pela revolução foram uma conquista daqueles revolucionários,
que não somente mudou o dicionário, mas todo o entendimento sobre a
sociedade. Em decorrência disso, “a revolução não é somente o ‘salto’ de uma
sociedade a outra; é também o conjunto das modalidades através das quais
uma sociedade civil, subitamente ‘aberta’ pela crise do poder, libera todas as
palavras das quais é portadora” (Furet, 1989, p. 145).
Por sua vez, a inspiração na Antiguidade romana e grega possuiu um
papel fundamental nas revoluções posto que “sem esse exemplo clássico e
cintilar através dos séculos, nenhum dos homens das revoluções, em ambos os
lados do Atlântico, teriam tido a coragem de empreender aquilo que resultou
ser um fato sem precedentes” (Arendt, 2006, p. 188). O “conservadorismo
romântico” foi uma das consequências da revolução na Europa, e estes se
voltaram para a Antiguidade não pelos seus costumes, tradições e pensamentos
ocidentais, mas pela própria semelhança de experiência, como uma “república
romana e o esplendor de sua história” (2006, p. 189). Diante dessa influência,
Arendt salienta que o vocabulário político atual remonta à Antiguidade Clássica
devido ao evento revolucionário que possibilitou tal resgate.
Como legado direto das revoluções, Arendt (2006, p. 215) ressalta ainda
que sua característica principal seria ter sua decorrência por meio de pares de
opostos, como direita e esquerda, reacionário e progressista, conservador e
liberal. Há também o desenvolvimento das relações de modelos já existentes,
como o contraste entre aristocracia e democracia, que não existia antes das
revoluções. Por conseguinte, “na medida em que nossa terminologia política é

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moderna, ela se mostra revolucionária em sua origem”7 (Arendt, 2006, p. 214,


tradução nossa). Na via deste raciocínio, pensando ainda pela via da
terminologia, a tentativa de recuperar o espírito revolucionário perdido deve, em
certo ponto, se dedicar à tentativa de pensar em conjunto e combinar o
vocabulário existente no presente com os termos opostos e contraditórios.
Como o espírito revolucionário é fruto das revoluções propriamente,
devemos procurar nelas e não antes o que possibilitou seu aparecimento.
Arendt associa essas ideias e identifica uma espécie de “espírito político da era
moderna” (Arendt, 2006, p. 216), que prioriza o começo, bem como a
durabilidade e estabilidade dos corpos políticos, em outras palavras, o ato de
fundação. Nesse sentido, portanto, a revolução não é como uma teoria ou uma
tradição, mas um acontecimento “da maior magnitude e significação para o
futuro” (2006, p. 164). Ela é desencadeada sob influência do tempo e das
circunstâncias e, por isso, deve ser analisada com cuidado e circunspecção. A
partir dessa afirmação, a pensadora retira das experiências das revoluções o
objetivo de “determinar, com algum grau de certeza, o caráter essencial do
espírito revolucionário” (2006, p. 165).
Os sistemas de conselhos, na mesma medida em que apareceram
espontaneamente sem rebuscados planejamentos anteriores, desapareceram
perante às instituições duradouras criadas. Contudo, deles, podemos tirar a lição
de que “por se tratar de uma experiência que surgiu em vários lugares, são
vários tipos de órgãos populares que se caracterizam como fenômenos
importantes a ponto de merecerem atenção de análises vindas da filosofia
política e das ciências sociais” (Oliveira, 2007, p. 223). A seguinte compreensão
reforça a qualidade desse sistema: “[...] os conselhos seriam a melhor forma de
7
“O próprio fato de que esses dois elementos, a preocupação com a estabilidade e o espírito do
novo, vieram a se opor na reflexão e na terminologia política – a primeira identificada com o
conservadorismo e o segundo apresentado como monopólio do liberalismo progressista – talvez
tenha de ser reconhecido como um dos sintomas de nossa perda. Afinal, hoje em dia, nada
compromete mais seriamente o entendimento e o debate significativo das questões políticas do
que os reflexos mentais automáticos e condicionados pelas trilhas batidas das ideologias
nascidas, todas elas, nas pegadas e na esteira da revolução. Pois não é absolutamente
insignificante que nosso vocabulário político ou remonte à Antiguidade clássica, grega e romana,
ou possa ser rastreado inequivocamente até as revoluções setecentistas. Em outras palavras, se
há algo de moderno em nossa terminologia política, é de origem revolucionária” (Arendt, 2006, p.
214).
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‘fragmentar’ e politizar as grandes ‘massas’ que povoam as sociedades


modernas, impedindo que fossem arregimentadas e organizadas pelos partidos
políticos demagógicos em movimentos de massa ‘pseudopolíticos’” (Duarte,
2000, p. 313).
Assim, é possível atestar que além de corroborar para a derrocada dos
regimes aristocráticos, aqueles homens da revolução também trouxeram à tona
ideias sobre novas formas de governo. E isso ocorreu de maneira que ambas as
revoluções “logo foram levadas a insistir na instauração de governos
republicanos, e essa insistência, junto com o novo antagonismo violento entre
monarquistas e republicanos, brotou diretamente das próprias revoluções”
(Arendt, 2006, p. 125).
No que tange ao espírito revolucionário, tesouro perdido das revoluções,
Arendt ressalta suas poucas reaparições em alguns momentos revolucionários
nos séculos seguintes. Além disso, a autora afirma que “existem, na verdade,
muito boas razões para acreditar que o tesouro nunca foi uma realidade, e sim
uma miragem; que não lidamos aqui com nada de substancial, mas com um
espectro; e a melhor dessas razões é ter o tesouro permanecido até hoje sem
nome” (Arendt, 2011, p. 30).
No entanto, logo contrapõe que, se analisarmos o início da era moderna, é
possível identificar nomes para esse tesouro que, nas Treze Colônias era a
“felicidade pública”, e na França era a “liberdade pública”. Nesse sentido, a
dificuldade contemporânea em compreender a relação desses nomes com o
que seria o tesouro, “para nós está em que, em ambos os casos, a ênfase recaía
sobre o ‘público’” (Arendt, 2011, p. 30-31). De qualquer maneira, o fato de, no
século XX não ter um nome para esse tesouro perdido é o que o poeta René
Char ressalta, “ao dizer que nossa herança foi deixada sem testamento algum”
(2011, p. 31).
Diante disso, nos deparamos com o fato de que “a conversão do cidadão
das revoluções no indivíduo particular da sociedade do século XIX tem sido
muitas vezes descrita em termos da Revolução Francesa, que falava de citoyens
e bourgeois” (Arendt, 2006, p. 131). Esse processo é tido no pensamento

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arendtiano como determinante na fisiologia dos séculos XIX e parte do XX.


Deste fenômeno, surgiu o que a autora chama de esfera social, uma espécie de
hibridismo, na qual “constituiu uma característica específica da modernidade
que foi a resolução e o empenho dos homens em se desfazerem de uma vez do
constrangimento que a dimensão da reprodução biológica impõe a todos”
(Aguiar, 2001, p. 10). E a política foi reduzida ao objetivo de “elaborar e
administrar estratégias para o livre desenvolvimento do progresso” (2001, p. 11).
Nesta sociedade, o homem não passaria de um meio para o progresso da
civilização e, assim, como seres singulares, se tornam supérfluos. Para Rubiano
(2022, p. 88), o que se identifica do cenário político interpretado por Arendt é
uma constante diminuição do espaço de ação no governo: “primeiro, a
representação se tornou mais importante do que a participação nos assuntos
públicos, depois, a burocracia se tornou mais relevante do que a representação”.
Na perspectiva de Arendt, que empreende uma análise do que
podemos apontar como aspectos positivos e negativos, a tradição
revolucionária possibilitou reavivar o princípio da pluralidade humana e o
poder que ela pode gerar para formar novas instituições legítimas baseadas
nas manifestações das opiniões comuns. No entanto, ao decorrer do processo
essa tradição se perdeu na procura de uma explicação mundana para a fonte
de poder e lei. Nesse tocante, a tradição revolucionária não resolveu “a
perplexidade do começo”, que não foi auto justificado e, logo, não justificou
suas invenções. Cláudia Drucker (2003, p. 205) afirma que Arendt interpretou
a falha como um problema de “auto incompreensão” do próprio movimento.
Este, para a pensadora, seria um problema aparentemente solucionável, na
medida em que se buscar uma consciência do “novo princípio de
organização” (2003, p. 205) liberado pelos revolucionários.
Isso significa realizar o processo de construção da Constituição de
maneira devida e baseada em princípios mundanos. O que podemos
enxergar com essas análises é que o fenômeno da revolução seria uma
“experiência de um tempo diferente” (Drucker, 2003, p. 208), uma vez que
Arendt defende o ser humano como possuidor de um potencial de sair da

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linha do contínuo e provocar uma interrupção repentina. Como explica


Bignotto (2011, p. 54):

O fato de que ela escolha a questão da Constituição para levar a cabo


a comparação entre as revoluções mostram que ela soube perceber
que a grande virada da modernidade ocorreu a partir do momento
em que os homens perceberam que só uma obra humana, produto
de ações livres e por vezes contingentes, seria capaz de dar forma ao
sonho de viver em liberdade no interior de formas políticas que eram
o produto de um artifício.

Assim sendo, as formulações de Arendt tornam possível compreender


“a questão da fundação a partir da aproximação entre o desejo de liberdade
e a necessidade de dar forma institucional a esse desejo” (Bignotto, 2011, p.
54). Nesse sentido, depreendemos que a questão da fundação de um corpo
político se refere não somente em ressaltar a relevância das leis, “mas de
colocar o problema de suas origens de um ponto de vista totalmente
diferente do que guiara a experiência política até então” (Arendt, 2011, p. 54).
E, considerando esse fator, o fracasso do contexto revolucionário francês traz
lições mais importantes do que o sucesso dos estadunidenses, pois “desvela
o papel do texto constitucional na luta pela criação de uma forma de
governo, que não podia recorrer a nenhuma forma estabilizadora
proveniente e uma longa tradição” (Bignotto, 2011, p. 54).
Tendo como base os estudos do historiador Reinhart Koselleck, é
possível encontrar semelhanças em sua interpretação quanto à visão
arendtiana. Para o autor, a Revolução torna-se um “coletivo singular”, ou seja,
a unificação de outras experiências revolucionárias: “separando-se
completamente de sua origem natural e passando a ter por objetivo ordenar
historicamente as experiências de convulsão social” (Koselleck, 2006, p. 69). A
palavra revolução perde a particularidade da origem e torna-se conjunto de
todas as particularidades das revoluções: a revolução é o que orienta a
reflexão e a ação revolucionária. É perceptível também transformações na
própria compreensão do tempo, na medida em que acontecem mudanças
em curto espaço de tempo, o que antigamente não ocorria.

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Dessa maneira, esse novo sentido que a Revolução Francesa trouxe


rompe com o sentido antigo do conceito atrelado ao tempo cíclico. Nessa
perspectiva, consolida-se também a revolução como a novidade, graças a
aceleração temporal pela qual as mudanças são perceptíveis. O historiador
aponta também uma passagem da revolução política à revolução social, na
medida em que as desordens políticas implicam em certo momento em
desordens sociais. A novidade, porém, residia na possibilidade de
emancipação social implícita no sentido de revolução política, já que esta
seria a via para a mudança da estrutura social naquele contexto: “É inédita, no
entanto, a ideia de que o objetivo de uma revolução política seja a
emancipação de todos os homens e a transformação da estrutura social”
(Koselleck, 2006, p. 71). Para tanto, o autor explica que:

O grau de coincidência e interdependência entre as revoluções


políticas e as revoluções sociais é uma das questões fundamentais da
história moderna. A emancipação das antigas colônias, praticamente
terminada do ponto de vista político, não escapa à pressão de
continuar como um processo social, para que assim seja possível
recuperar a liberdade política (Koselleck, 2006, p. 71).

A revolução é interpretada por Arendt, bem como por Koselleck, como


um conceito universal, em prol de toda a humanidade. Esse novo sentido é
influência direta da passagem da revolução política à revolução social,
confirmada com as Declarações de Independência dos Estados Unidos e a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França, que, mesmo com
as diferenças abordadas, apresentam um caráter universal. Assim, o historiador
salienta que a partir dessa nova concepção, o processo revolucionário orienta-se
a ser de impacto universal.
Além disso, a pensadora evidencia um legado desse fenômeno que
contribui para a continuidade dos estudos sobre a Filosofia Política e os
assuntos humanos: “A partir das fases da Revolução Francesa, até as revoluções
de nossa própria época, pareceu aos revolucionários ser mais importante mudar
a tessitura da sociedade, tal como foi mudado na América antes da revolução,
do que mudar a estrutura do domínio político” (Arendt, 2011, p. 185). Em relação

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às mudanças, Berstein elenca uma rede de aspectos empregados por Arendt


para “tecer o significado e a dignidade da política” (Berstein, 2021, p. 100). Seriam
eles: a ação, a pluralidade, a natalidade, o discurso, a aparência, o espaço
público, a liberdade política, o poder, a persuasão e o juízo crítico.

Considerações finais

Diante dos passos percorridos para tratar da revolução, da política e do


espírito revolucionário, ressaltamos a concepção de Arendt sobre o significado
de “compreensão”, que não se limita à dedução e generalizações, e sim
“examinar e suportar conscientemente o fardo que nosso século colocou sobre
nós – nem negando sua existência nem submetendo-se mansamente a seu
peso” (Arendt, 1976, p. VIII, tradução nossa). Assim, a compreensão se refere ao
ato de “enfrentar a realidade de modo impremeditado e atento, resistir a ela –
seja ela qual for” (1976, p. VIII, tradução nossa).
Portanto, podemos compreender que, como a manutenção da vida é um
fator ligado à própria duração desta, os interesses ligados à estabilidade
parecem sempre se sobressair frente à novidade. Isso reflete na consolidação
das relações humanas na forma de um corpo político, que é estruturado como
um dos artifícios humanos. Diante das problematizações, a questão não se dá
pela defesa de uma impermanência, posto que a essência de um corpo político
já subjaz o elemento da permanência. Finalizamos então com uma indagação, a
partir deste ponto, de como lidar com o elemento da novidade dentro do corpo
e dos assuntos políticos, refletido na possibilidade do nascimento do novo a
todo instante, interligado ao corpo político pela via da experiência da liberdade.
Depreende-se também que a obra arendtiana estabelece as condições da
fundação de um corpo político que permitem a possibilidade de impedir que a
violência supere a experiência da liberdade nos espaços públicos. Por fim,
pensando no legado que podemos levar do pensamento arendtiano, é o de se
basear nos princípios acima para pensar a dignidade na política. Nessa via,
Berstein ressalta que a questão da responsabilidade percorre a vida e obra de

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Arendt: “o tema mais profundo sobre a responsabilidade que percorre todo o


seu pensamento – e é tão relevante hoje – é a necessidade de assumir a
responsabilidade por nossas vidas políticas” (Berstein, 2021, p. 129).

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TORRES, Ana Paula Repolês. A relação entre Direito e Política em Hannah


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