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04/01/2022 21:03 Notas sobre o nacionalismo

Crítica
23 de Dezembro de 2015 Filosofia política

Notas sobre o nacionalismo


George Orwell
Tradução de Aluízio Couto

Byron usa algures a palavra francesa longueur e, de passagem, comenta que embora na
Inglaterra por acaso não tenhamos a palavra, temos a coisa em considerável profusão. Do
mesmo modo, existe agora um hábito mental tão disseminado que chega a afetar a nossa
maneira de pensar sobre quase todos os assuntos, mas para o qual nenhum nome ainda foi
dado. Como equivalente disponível mais próximo, escolhi a palavra “nacionalismo”, mas
logo será visto que não estou usando o termo em seu sentido mais comum, e isso talvez
porque a emoção sobre a qual estou falando nem sempre se vincula ao que é chamado de
nação — isto é, uma única raça ou área geográfica. Ela pode se vincular a uma igreja ou
classe, ou pode funcionar em um sentido meramente negativo, contra alguma coisa ou
outra, sem a necessidade de qualquer objeto positivo de lealdade.

Por “nacionalismo”, em primeiro lugar, entendo o hábito de assumir que humanos podem
ser classificados como insetos e que grupos inteiros de milhões ou dezenas de milhões de
pessoas podem com segurança ser rotulados como “bons” ou “maus”.1 Em segundo lugar
— e isto é o mais importante —, entendo o hábito de se identificar com uma única nação
ou outra unidade, colocando-a além do bem e do mal, sem reconhecer qualquer outro
dever que não seja o de promover os seus interesses. O nacionalismo não deve ser
confundido com o patriotismo. Ambas as palavras são normalmente usadas de uma
maneira tão vaga que qualquer definição é passível de ser disputada, mas é preciso
estabelecer uma distinção entre elas, uma vez que duas ideias diferentes e até mesmo
opostas estão envolvidas. Por “patriotismo” entendo a devoção a um lugar e um modo de
vida particulares, tidos por alguém como os melhores do mundo, mas sem o desejo de
impô-los às outras pessoas. A natureza do patriotismo é defensiva, tanto militar como
culturalmente. O nacionalismo, por outro lado, é inseparável do desejo de poder. O
propósito permanente de qualquer nacionalista é garantir mais poder e mais prestígio não
para si próprio, mas para a nação ou unidade em nome da qual escolheu anular a sua
individualidade.

Aplicado meramente aos movimentos nacionalistas mais notórios e identificáveis na


Alemanha, Japão e outros países, tudo isso é bastante óbvio. Confrontados com um
fenômeno como o nazismo, que podemos observar de fora, quase todos nós diríamos
sobre ele as mesmas coisas. Mas aqui devo repetir o que já disse: estou usando a palavra
“nacionalismo” por falta de uma melhor. Nacionalismo, no sentido estendido em que
estou usando a palavra, inclui movimentos e tendências como o comunismo, o
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catolicismo político, o sionismo, o antissemitismo, o trotskismo e o pacifismo. Não


significa necessariamente lealdade a um governo ou país, muito menos ao próprio país, e
também não é estritamente necessário que as unidades nas quais opera existam de fato.
Para indicar alguns exemplos óbvios, Judeus, Islã, Cristandade, Proletariado e a Raça
Branca são todos objetos de sentimentos nacionalistas apaixonados, mas a sua existência
pode ser seriamente questionada, e não há definição de qualquer uma dessas coisas que
seria universalmente aceita.

Vale também enfatizar mais uma vez que o sentimento nacionalista pode ser puramente
negativo. Há, por exemplo, trotskistas que se tornaram simplesmente inimigos da
U.R.S.S. sem desenvolver uma lealdade correspondente a qualquer outra unidade.
Quando se percebe as implicações disso, a natureza do que entendo por nacionalismo se
torna bastante mais clara. Um nacionalista é aquele que pensa apenas, ou principalmente,
em termos de competição de prestígio. Pode ser um nacionalista positivo ou negativo —
ou seja, pode usar a sua energia mental para promover ou para denegrir. Em todo caso,
sempre pensará em termos de vitórias, derrotas, triunfos e humilhações. Vê a história,
especialmente a história contemporânea, como um infinita ascensão e queda de grandes
unidades de poder, e cada acontecimento parece-lhe a demonstração de que seu lado está
por cima e de que o outro lado, odiado, está por baixo. Por fim, é importante não
confundir o nacionalismo com a mera adoração do sucesso. O nacionalista não subscreve
ao princípio de se aliar ao lado mais forte. Pelo contrário, tendo escolhido seu lado, se
convence de que este é o mais forte, e é capaz de manter-se fiel à sua crença mesmo
quando os fatos estão massivamente contra ele. O nacionalismo é fome de poder
temperada com auto-engano. Todo o nacionalista é capaz da mais flagrante
desonestidade, mas tem a certeza inabalável — uma vez que pensa estar servindo algo
maior do que si próprio — de estar do lado certo.

Uma vez oferecida essa longa definição, penso que será aceito que o hábito mental sobre
o qual estou falando é disseminado entre a intelligentsia inglesa, e mais disseminado aí do
que entre as massas. Para quem se importa profundamente com a política contemporânea,
alguns tópicos se tornaram tão infectados por considerações de prestígio que abordá-los
racionalmente é quase impossível. Das centenas de exemplos disponíveis, considere-se a
seguinte pergunta: qual dos três grandes aliados, U.R.S.S., Grã-Bretanha e EUA,
contribuiu mais para derrotar a Alemanha? Teoricamente, deveria ser possível oferecer
uma resposta fundamentada e quem sabe até conclusiva. Na prática, entretanto, os
cálculos necessários sequer podem ser feitos porque qualquer pessoa com alguma chance
de esquentar a cabeça com o assunto o veria inevitavelmente em termos de competição de
prestígio. Portanto, começaria por já decidir em favor da Rússia, Grã-Bretanha ou
América, dependendo do caso, e só depois disso começaria a buscar argumentos que
aparentemente suportassem a sua posição. E há grupos inteiros de perguntas da mesma
natureza para as quais só se consegue uma resposta honesta de alguém indiferente ao
assunto em causa, e cuja opinião é, em todo caso, provavelmente inútil. É em parte daí
que vem o notável fracasso da previsão política e militar nos nossos tempos. É curioso
perceber que de todos os “experts” de todas as escolas, não houve sequer um capaz de
prever um evento tão provável como o Pacto Germano-Soviético, de 1939.2 Quando as
notícias do Pacto surgiram, as explicações dadas divergiam ferozmente entre si e as
previsões subsequentes eram falseadas quase imediatamente, pois em quase todos os
casos estavam baseadas não em um estudo das probabilidades, mas em um desejo de
tornar a U.R.S.S. boa ou má, forte ou fraca. Comentaristas militares ou políticos, como
astrólogos, podem sobreviver a praticamente qualquer erro, uma vez que seus seguidores

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mais devotos não buscam neles uma avaliação dos fatos, mas sim o estímulo a lealdades
nacionalistas.3 E os juízos estéticos, especialmente os literários, são frequentemente
corrompidos do mesmo modo que os políticos. Seria difícil para um nacionalista indiano
apreciar a leitura de Kipling ou para um conservador ver mérito em Maiakovski, e há
sempre a tentação de afirmar que qualquer livro de cuja tendência se discorda tem de ser
um mau livro do ponto de vista literário. Pessoas com fortes perspectivas nacionalistas
praticam esse truque sem consciência da desonestidade.

Na Inglaterra, se considerarmos simplesmente o número de pessoas envolvidas, é


provável que a forma dominante de nacionalismo seja o antiquado jingoísmo britânico.
Está certamente ainda disseminado, e muito mais do que pensariam os observadores há
alguns anos. No entanto, neste ensaio estou preocupado principalmente com as reações da
intelligentsia, grupo para o qual o jingoísmo e mesmo o velho patriotismo estão
praticamente mortos — embora estejam, ao que parece, renascendo para uma minoria.
Entre a intelligentsia, nem é preciso dizer que a forma dominante de nacionalismo é o
comunismo — uso a palavra num sentido suficientemente amplo para incluir não apenas
os membros do Partido Comunista, mas também simpatizantes e russófilos em geral. Um
comunista, para os meus propósitos aqui, é alguém que olha para a U.R.S.S. como sua
pátria e sente que é seu dever justificar as políticas russas e promover os interesses russos
a todo custo. Obviamente, tais pessoas são hoje bastante numerosas na Inglaterra e sua
influência direta e indireta é enorme. Mas muitas outras formas de nacionalismo também
florescem, e é quando notamos as semelhanças entre correntes de pensamento diferentes
e aparentemente opostas que podemos ver melhor as coisas em perspectiva.

Há dez ou vinte anos, a forma de nacionalismo que mais se aproximava do comunismo de


hoje era o catolicismo político. O seu expoente mais notável — embora talvez fosse um
caso extremo, e não típico — foi G. K. Chesterton. Chesterton foi um escritor de
considerável talento que escolheu suprimir a sua sensibilidade e honestidade intelectual
em prol da propaganda católica romana. Durante os últimos vinte anos da sua vida,
aproximadamente, toda a sua produção foi na realidade uma repetição sem fim da mesma
coisa — a sua refinada inteligência sendo tão simples e enfadonha como “Great is Diana
of The Ephesians”. Todos os livros que escreveu, todos os parágrafos, todas as frases,
todos os incidentes de todas as histórias e todos os fragmentos de diálogo tinham de
demonstrar para lá da possibilidade de erro a superioridade do católico sobre o
protestante ou o pagão. Mas Chesterton não estava satisfeito em conceber a sua
superioridade como meramente intelectual ou espiritual: tinha de ser traduzida em termos
de prestígio nacional e poderio militar, o que implicava uma idealização ignorante dos
países latinos, especialmente da França. Chesterton não viveu muito tempo na França, e
sua imagem do país — como uma terra de camponeses católicos a cantar incessantemente
a Marselhesa regados a taças de vinho tinto — tinha tanta relação com a realidade quanto
Chu Chin Chow tem com a vida cotidiana de Bagdá. E isso foi acompanhado não apenas
de uma enorme sobrestimação do poderio militar francês (tanto antes como depois de
1914–18 sustentou que a França, por si só, era mais forte que a Alemanha), mas de uma
glorificação tola e vulgar do processo real da guerra. Os poemas de batalha de Chesterton,
como “Lepanto” ou “The Ballad of Saint Barbara”, fazem “The Charge of the Light
Brigade” soar como um tratado pacifista: são talvez o que há de mais pretensioso e
espalhafatoso na nossa língua. O ponto interessante é que se o entulho romântico que ele
habitualmente escrevia sobre a França ou o exército francês fosse escrito por outro sobre
a Grã-Bretanha ou o exército britânico, ele seria o primeiro a zombar. Em política
doméstica ele era um Little Englander, alguém que legitimamente odiava o jingoísmo e o

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imperialismo e, em harmonia consigo mesmo, um verdadeiro amigo da democracia. No


entanto, quando se voltava para a arena internacional, podia abandonar seus princípios
sem sequer notar que o fazia. Assim, a sua crença quase mística nas virtudes da
democracia não o impediram de admirar Mussolini. Mussolini havia destruído o regime
representativo e a liberdade de imprensa em prol dos quais Chesterton tanto lutou em
casa, mas Mussolini era italiano e tinha tornado a Itália forte, o que encerrava a questão.
Chesterton também jamais disse uma palavra contra o imperialismo e a conquista das
raças de cor quando praticadas por italianos ou franceses. O seu apego à realidade, o seu
gosto literário e até em alguma medida o seu sentido moral eram afastados mal as suas
lealdades nacionalistas entravam na história.

Obviamente, há semelhanças consideráveis entre o catolicismo político, exemplificado


por Chesterton, e o comunismo. Tal como há entre ambos e, por exemplo, o nacionalismo
escocês, o sionismo, o antissemitismo ou o trotskismo. Seria uma hipersimplificação
dizer que todas as formas de nacionalismo são — mesmo na sua atmosfera mental —
idênticas, mas há certas regras que valem para todos os casos. As principais
características do pensamento nacionalista são as seguintes:

Obsessão. Tanto quanto possível, nenhum nacionalista jamais pensa, fala ou escreve
sobre qualquer coisa que não seja a superioridade de sua própria unidade de poder. É
difícil e talvez impossível para qualquer nacionalista omitir sua filiação. A menor
reprovação direcionada à sua unidade ou qualquer elogio implícito a uma organização
rival o preenchem de um desconforto que ele só pode aliviar por meio de uma réplica
cortante. Se a unidade escolhida é um país como a Irlanda ou Índia, reivindicará
geralmente a sua superioridade não apenas no que diz respeito ao poderio militar ou às
virtudes políticas, mas também na arte, literatura, esporte, estrutura da linguagem, beleza
física dos habitantes e talvez até mesmo no clima, na paisagem e na culinária. Será muito
sensível a coisas como a correta exibição de bandeiras, o tamanho relativo das manchetes
e a ordem em que os nomes de diferentes países são dispostos.4 A nomenclatura tem um
papel muito importante no pensamento nacionalista. Países que conquistaram sua
independência ou passaram por um processo de revolução nacionalista usualmente
mudam de nome, e qualquer país ou outra unidade que suscite sentimentos fortes
provavelmente terá vários nomes, cada um deles com uma implicação diferente. Os dois
lados na Guerra Civil Espanhola tinham entre si nove ou dez nomes expressando
diferentes graus de amor e ódio. Alguns desses nomes (e.g. “Patriotas” para os apoiadores
de Franco ou “Legalistas” para os apoiadores do governo) eram claras petições de
princípio, e não havia sequer um nome que as duas facções rivais concordariam em usar.
Todos os nacionalistas consideram um dever a disseminação de sua própria linguagem em
detrimento de linguagens rivais, e entre os falantes do inglês esse conflito reaparece mais
sutilmente na forma do conflito entre dialetos. Os americanos anglófobos se recusarão a
usar uma gíria caso descubram a sua origem britânica, e o conflito entre latinistas e
germanistas frequentemente tem motivações de fundo que são nacionalistas. Os
nacionalistas escoceses insistem na superioridade das Terras Baixas escocesas e os
socialistas para quem o nacionalismo assume a forma de ódio de classe investem contra o
sotaque da BBC e até mesmo contra o broad A.5 Pode-se multiplicar os exemplos. O
pensamento nacionalista dá frequentemente a impressão de ser presa da crença em
influências místicas — crença que provavelmente se revela pelo costume bastante comum
de queimar efígies de inimigos políticos ou pelo uso das suas imagens como alvos em
clubes de tiro.

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Instabilidade. A intensidade com a qual são sustentadas não impede que as lealdades
nacionalistas sejam transferíveis. Para começar, como já fiz notar, podem estar e
frequentemente estão vinculadas a um país estrangeiro. É comum o fato de grandes
líderes nacionais ou fundadores de movimentos nacionalistas nem pertencerem ao país
que glorificavam. Às vezes são perfeitos estrangeiros ou, o que é mais comum, vêm de
áreas periféricas nas quais a nacionalidade é incerta. Exemplos são Stálin, Hitler,
Napoleão, de Valera, Disraeli, Poincaré e Beaverbrook. O movimento pangermânico foi
em parte criação de Houston Chamberlain, um inglês. Nos últimos cinquenta ou cem
anos, o nacionalismo transferido tem sido um fenômeno comum entre literatos. A
transferência de Lafcadio Hearne foi direcionada ao Japão, a de Carlyle e de muitos
outros à Alemanha e em nossa época é comum que seja direcionada à Rússia. Mas o fato
particularmente interessante é que a retransferência também é possível. Um país ou
unidade reverenciada por muito tempo pode repentinamente se tornar detestável e outro
objeto de afeição pode tomar seu lugar quase sem interregno. Na primeira versão de
Outline of History, de H. G. Wells, e noutros dos seus trabalhos do período, os Estados
Unidos são reverenciados de modo quase tão extravagante quanto a Rússia é hoje
reverenciada pelos comunistas: no entanto, em poucos anos essa admiração acrítica se
transformou em hostilidade. O comunista fanático que em semanas ou até mesmo dias se
torna um trotskista fanático é outro espetáculo comum. Na Europa Continental os
movimentos fascistas foram amplamente recrutados entre comunistas, e o processo
oposto pode muito bem ocorrer nos próximos anos. O que permanece constante no
nacionalista é o seu estado de espírito: o objeto de seus sentimentos é mutável e pode até
ser imaginário.

Mas, para um intelectual, a transferência tem uma importante função que foi brevemente
mencionada por mim em relação a Chesterton. Possibilita-lhe ser muito mais nacionalista
— mais vulgar, mais tolo, mais perverso, mais desonesto — do que poderia ser em prol
de seu país nativo ou de qualquer unidade da qual tenha conhecimento real. Quando se vê
o lixo servil e pretensioso que é escrito sobre Stálin, o Exército Vermelho, etc., por
pessoas verdadeiramente inteligentes e sensíveis, percebe-se que isso só é possível porque
alguma espécie de deslocamento está a atuar. Numa sociedade como a nossa não é usual
que qualquer pessoa descrita como um intelectual sinta uma vinculação muito forte ao
próprio país. A opinião pública — isto é, a parte da opinião pública da qual ele, como
intelectual, está ciente — não irá permitir-lhe fazer tal coisa. A maior parte das pessoas
que o rodeiam são céticas ou desiludidas, e ele pode adotar a mesma atitude por imitação
ou pura covardia: neste caso, terá abandonado a forma de nacionalismo mais à mão sem
se aproximar de uma perspectiva genuinamente internacionalista. Ainda sente a
necessidade de ter uma pátria e é natural procurar por alguma no exterior. Ao encontrá-la,
pode chafurdar irrestritamente nas mesmas emoções das quais achou que tinha se
emancipado. Deus, o Rei, o Império, A Union Jack — todos os ídolos caídos podem
reaparecer sob diferentes nomes, e uma vez que não são mais reconhecidos pelo que
efetivamente são, podem ser reverenciados em boa consciência. O nacionalismo
transferido, tal como o uso de bodes expiatórios, é um modo de atingir a salvação sem
mudar a própria conduta.

Indiferença à Realidade. Todos os nacionalistas têm o poder de não perceber semelhanças


entre conjuntos similares de fatos. Um tory britânico defenderá a autodeterminação na
Europa e se oporá a ela na Índia sem qualquer sensação de inconsistência. As ações são
encaradas como boas ou más não segundo os seus próprios méritos, mas segundo quem
as pratica, e quase não há espécie de ultraje — tortura, o uso de reféns, trabalho forçado,

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deportação em massa, prisão sem julgamento, fraude, assassinato, bombardeio de civis —


que não mude o seu perfil moral quando é cometido pelo “nosso” lado. O progressista
News Chronicle publicou como exemplo de barbaridade chocante as fotografias de russos
enforcados pelos alemães, e após um ou dois anos publicou com calorosa aprovação
fotografias perfeitamente similares de alemães enforcados pelos russos.6 É a mesma coisa
com eventos históricos. A história é pensada em termos amplamente nacionalistas, e
coisas como a Inquisição, as torturas na Câmara Estrelada, as proezas dos corsários
ingleses (Sir Francis Drake, por exemplo, era dado a afogar os prisioneiros espanhóis), o
Reinado do Terror, os heróis da Insurreição despedaçando com o auxílio de canhões
centenas de indianos ou os soldados de Cromwell retalhando os rostos de mulheres
irlandesas com navalhas se tornam moralmente neutras ou até mesmo meritórias quando
se sente que foram praticadas em nome da causa “justa”. Ao olhar retrospectivamente
para o último quarto de século, percebe-se que dificilmente houve um ano em que
histórias de atrocidades não foram relatadas de alguma parte do mundo: e, no entanto, em
nenhum caso — Espanha, Rússia, China, Hungria, México, Amritsar, Smyrna — essas
atrocidades foram reconhecidas e reprovadas pela intelligentsia inglesa como um todo. Se
essas façanhas eram repreensíveis ou mesmo se chegaram a ocorrer foi algo sempre
decidido de acordo com a predileção política.

O nacionalista não se limita a não desaprovar as atrocidades cometidas pelo seu próprio
lado; é também dotado de uma notável capacidade de nem ouvir falar delas. Por seis anos
os admiradores ingleses de Hitler foram bem-sucedidos em não perceber a existência de
Dachau e Buchenwald. E aqueles que denunciam com mais veemência os campos de
concentração alemães são completamente ignorantes ou vagamente cientes de que
também há campos de concentração na Rússia. Acontecimentos gigantescos como a
Grande Fome da Ucrânia, que envolveu a morte de milhões de pessoas, escaparam à
atenção da maioria dos russófilos ingleses. Muitos ingleses não ouviram quase nada
acerca do extermínio de judeus alemães e poloneses durante a presente guerra. O seu
próprio antissemitismo fez esse vasto crime escapar das suas consciências. No
pensamento nacionalista há fatos que são ao mesmo tempo verdadeiros e falsos,
conhecidos e desconhecidos. Um fato conhecido pode ser tão intolerável que é
habitualmente colocado de lado, sem que se permita a sua entrada no processo lógico.
Ou, por outro lado, pode até ser admitido nos cálculos, mas jamais aceito pelo espírito
como um fato.

Todo o nacionalista é assombrado pela crença de que o passado pode ser alterado. Ele
passa parte do seu tempo num mundo de fantasia no qual as coisas acontecem como
deveriam — no qual, por exemplo, a Armada Espanhola foi um sucesso ou a Revolução
Russa foi esmagada em 1918 — e irá transferir fragmentos desse mundo para os livros de
história sempre que possível. Muito da escrita de propaganda de nossos tempos é pura e
simples fraude. Fatos materiais são suprimidos, datas alteradas, citações removidas do
contexto e adulteradas para que o sentido se altere. Acontecimentos que se sente que não
deveriam ter ocorrido, não são mencionados e são em última instância negados.7 Em
1927, Chiang Kai-Shek ferveu vivos centenas de comunistas, e mesmo assim em dez
anos tinha-se tornado um dos heróis da esquerda. O realinhamento da política mundial
trouxe-o para o campo antifascista, e então o sentimento foi que cozer os comunistas “não
contava” ou talvez não tivesse acontecido. O primeiro objetivo da propaganda é,
obviamente, influenciar a opinião contemporânea, mas aqueles que reescrevem a história
provavelmente acreditam com alguma parte dos seus espíritos que estão realmente
introduzindo fatos no passado. Ao se considerar as sofisticadas fraudes que têm sido
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cometidas com a finalidade de mostrar que Trotsky não desempenhou um papel valioso
na Guerra Civil Russa, é difícil pensar que estão apenas mentindo. É mais provável que
sintam que a sua própria versão foi o que aconteceu perante Deus e que têm assim
justificação para rearranjar as coisas em harmonia com ela.

A indiferença à realidade objetiva é encorajada pelo isolamento de uma parte do mundo


em relação à outra, o que torna mais e mais difícil descobrir o que realmente está
acontecendo. É comum que haja dúvida genuína sobre os acontecimentos mais
gigantescos. Por exemplo, é impossível calcular na casa dos milhões, talvez mesmo na de
dezenas de milhões, o número de mortes causadas pela presente guerra. As calamidades
constantemente relatadas — batalhas, massacres, fomes, revoluções — tendem a inspirar
na pessoa média um sentimento de irrealidade. Não há maneira de verificar os fatos, não
se está nem completamente certo de que eles aconteceram e sempre são apresentadas
interpretações totalmente diferentes da parte de fontes diferentes. Quem tinha razão e
quem não a tinha no levantamento de Varsóvia de agosto de 1944? É verdadeiro que há
câmaras de gás na Polônia? De quem é realmente a culpa pela Fome de Bengala?
Provavelmente, a verdade pode ser descoberta, mas os fatos serão apresentados de forma
tão desonesta em quase qualquer jornal que se pode perdoar ao leitor comum que engula
mentiras ou que não forme uma opinião. A incerteza geral sobre o que está realmente
acontecendo facilita a adoção de crenças lunáticas. Já que nada é realmente provado ou
refutado, o fato mais inequívoco pode ser negado desavergonhadamente. Além disso,
apesar da obsessão pelo poder, vitória, derrota e vingança, o nacionalista muitas vezes
não tem interesse com o que acontece no mundo real. O que ele quer é sentir que sua
unidade está levando a melhor sobre outra unidade, e pode fazer isso mais facilmente ao
rebaixar um adversário do que pelo exame dos fatos para ver se estes o apoiam. Todas as
polêmicas nacionalistas estão ao nível das associações de debates. São sempre
inconclusivas, uma vez que cada um dos debatedores invariavelmente pensa que venceu.
Alguns nacionalistas não estão muito longe da esquizofrenia, vivendo felizes entre sonhos
de poder e conquista sem conexão com o mundo físico.

Examinei tão bem quanto consigo os hábitos mentais comuns a todas as formas de
nacionalismo. O próximo passo é classificá-las. Obviamente, isso não pode ser feito de
modo abrangente. O nacionalismo é um assunto enorme. O mundo é atormentado por
inúmeras ilusões e ódios que se entrecruzam de um modo extremamente complexo, e
alguns dos mais sinistros sequer se imiscuíram na consciência europeia. Neste ensaio
estou preocupado com o nacionalismo tal como ocorre entre a intelligentsia inglesa. Nela,
com muito mais frequência do que com os ingleses comuns, não se mistura com o
patriotismo e pode, assim, ser estudado na sua forma pura. Abaixo faz-se a lista das
variedades de nacionalismo emergente entre os intelectuais ingleses e, caso pareça
necessário, alguns comentários. É conveniente usar três tópicos — Positivo, Transferido e
Negativo —, embora algumas variantes irão se encaixar em mais de uma categoria:

Nacionalismo Positivo
1. Neo-torysmo. Exemplificado por pessoas como Lord Elton, A. P. Herbert, G. M. Young,
professor Pickthorn, pela literatura do Comitê de Reforma Tory e por revistas como New
English Review e Nineteenth Century and After. A força motivacional real do neo-torysmo,
que lhe dá o seu caráter nacionalista e que o diferencia dos conservadores comuns é o desejo
de não reconhecer que a influência e o poder britânicos declinaram. Mesmo os que são
suficientemente realistas para perceber que a posição do poder militar britânico não é mais o

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que era tendem a defender que as “ideias inglesas” (geralmente deixadas sem definição) têm
de dominar o mundo. Todos os neo-tories são anti-russos, mas às vezes a ênfase é
antiamericana. O aspecto interessante é que essa escola de pensamento parece estar
ganhando espaço entre jovens intelectuais, às vezes ex-comunistas que passaram pelo
processo de desilusão e se tornaram desiludidos com isso. O anglófobo que subitamente se
torna pró-britânico é uma figura bem comum. Escritores que ilustram essa tendência são F.
A. Voigt, Malcolm Muggeridge, Evelyn Waugh, Hugh Kingsmill, e um desenvolvimento
psicológico similar pode ser observado em T. S. Eliot, Wyndham Lewis e vários de seus
seguidores.
2. Nacionalismo Celta. Os nacionalismos galês, irlandês e escocês têm diferenças, mas são
idênticos na sua orientação anti-inglesa. Membros dos três movimentos se opuseram à
guerra enquanto continuavam a descrever-se como pró-russos, e os mais lunáticos
conseguiram ainda ser pró-russos e pró-nazistas simultaneamente. Mas o nacionalismo celta
não é a mesma coisa do que a anglofobia. A sua força motivadora é a crença na grandeza
passada e futura dos povos celtas, e tem uma forte matiz racialista. Supõe-se que o celta é
espiritualmente superior ao saxão — mais simples, mais criativo, menos vulgar, menos
esnobe, etc. — mas a fome de poder usual está lá, sob a superfície. Um sintoma disso é a
ilusão de que o Eire, a Escócia e mesmo o País de Gales poderiam preservar a sua
independência e de que nada devem à proteção britânica. Entre escritores, bons exemplos
dessa escola de pensamento são Hugh MacDiarmid e Sean O’Casey. Nenhum escritor
irlandês moderno, mesmo da estatura de Yeats ou Joyce, está completamente livre de traços
de nacionalismo.
3. Sionismo. Tem as características usuais de um movimento nacionalista, mas sua variante
americana parece mais violenta e perniciosa do que a britânica. Classifico-o como Direto e
não como Transferido porque floresce quase exclusivamente entre os próprios judeus. Na
Inglaterra, por várias razões incongruentes, a intelligentsia é majoritariamente pró-judeus na
Questão Palestina, mas não tem sentimentos muito fortes sobre isso. Todos os ingleses de
boa vontade são também pró-judeus no sentido de reprovarem a perseguição nazista. Mas
qualquer lealdade nacionalista real ou crença na superioridade inata dos judeus dificilmente
se encontra entre os gentios.

Nacionalismo Transferido
1. Comunismo.
2. Catolicismo político.
3. Sentimento de cor. A velha atitude de desprezo pelos “nativos” tem-se enfraquecido muito na
Inglaterra e várias teorias pseudocientíficas enfatizando a superioridade da raça branca vêm
sendo abandonadas.8 Entre a intelligentsia, o sentimento de cor ocorre apenas na sua forma
transposta, isto é, como uma crença na superioridade inata das raças de cor. Isso é cada vez
mais comum entre intelectuais ingleses, sendo provavelmente com mais frequência resultado
de masoquismo ou frustração sexual do que do contato com movimentos nacionalistas
orientais e negros. Mesmo entre quem não tem sentimentos muito fortes a respeito da
questão racial, o esnobismo e a imitação têm uma influência poderosa. Quase qualquer
intelectual inglês ficaria escandalizado com a afirmação de que as raças brancas são
superiores às de cor, ao passo que a afirmação oposta lhe pareceria inatacável mesmo que
discordasse dela. A vinculação nacionalista às raças de cor está usualmente misturada com a
crença de que suas vidas sexuais são superiores, e há uma vasta lenda sobre a vitalidade
sexual dos negros.
4. Sentimento de classe. Entre intelectuais das classes alta e média, ocorre apenas na forma
transposta — i.e. como a crença na superioridade do proletariado. Mais uma vez, na
intelligentsia, a pressão da opinião pública é esmagadora. A lealdade nacionalista ao
proletariado e o ódio teórico mais vicioso à burguesia podem coexistir e frequentemente
coexistem com o esnobismo comum da vida diária.

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5. Pacifismo. A maior parte dos pacifistas pertence a uma facção religiosa obscura ou são
simplesmente humanitários que se opõem a que se tire a vida e preferem não seguir as suas
ideias muito além desse ponto. Mas há uma minoria de intelectuais pacifistas cuja motivação
real, porém não admitida, parece ser o ódio à democracia ocidental e a admiração do
totalitarismo. A propaganda pacifista frequentemente se resume a dizer que um lado é tão
ruim quanto o outro, mas ao se reparar detidamente nos escritos de jovens intelectuais
pacifistas, percebe-se que eles de maneira alguma expressam uma reprovação imparcial;
antes a direcionam quase somente à Inglaterra e aos Estados Unidos. Além disso, não
condenam a violência enquanto tal, mas apenas a violência usada em defesa dos países
ocidentais. Os russos, diferentemente dos britânicos, não são culpados por se defenderem
por meios bélicos, e de fato toda propaganda pacifista desse tipo evita mencionar a Rússia ou
a China. Mais uma vez, não se defende que os indianos deveriam renunciar à violência na
sua luta contra os britânicos. Os livros pacifistas abundam em comentários equivocados que,
caso digam algo, parecem querer dizer que estadistas como Hitler são preferíveis a estadistas
como Churchill, e que a violência talvez seja desculpável caso seja suficientemente violenta.
Após a queda da França, os pacifistas franceses, perante uma escolha real que os seus
colegas britânicos não tiveram de fazer, passaram a apoiar os nazistas, e na Inglaterra parece
ter havido uma ligeira justaposição entre os filiados da Peace Pledge Union e os Camisas
Negras. Escritores pacifistas têm escrito em louvor de Carlyle, um dos pais intelectuais do
fascismo. No fim, é difícil não ter a sensação de que o pacifismo, tal como surge numa parte
da intelligentsia, é secretamente inspirado por uma admiração do poder e da crueldade bem-
sucedida. Cometeu-se o erro de fixar esse sentimento em Hitler, mas é fácil retransferi-lo.

Nacionalismo Negativo
1. Anglofobia. Na intelligentsia, uma atitude pejorativa e levemente hostil em relação à Grã-
Bretanha é mais ou menos obrigatória, mas em muitos casos é uma emoção genuína.
Durante a guerra era manifesta no derrotismo da intelligentsia, que persistiu por muito tempo
depois de se tornar claro que o Eixo não poderia vencer. Muitas pessoas ficaram
indisfarçavelmente felizes quando Singapura caiu ou quando os britânicos foram expulsos da
Grécia, e havia uma indisposição notável para acreditar em boas notícias, e. g. El Alamein
ou o número de aviões alemães derrubados na Batalha da Grã-Bretanha. Os intelectuais de
esquerda ingleses, é claro, não queriam que os alemães ou os japoneses vencessem a guerra,
mas muitos não conseguiram conter uma certa alegria em ver o seu próprio país humilhado e
queriam sentir que a vitória final seria graças à Rússia ou aos Estados Unidos, e não à Grã-
Bretanha. Em política externa muitos intelectuais seguem o princípio segundo o qual
qualquer lado apoiado pela Grã-Bretanha tem de estar errado. Em resultado disso, a opinião
“esclarecida” é em grande parte uma imagem de espelho da política conservadora. A
anglofobia é quase sempre passível de reversão, daí o espetáculo comum de o pacifista de
uma guerra ser o belicista da seguinte.
2. Anti-semitismo. Há poucos indícios dele no presente porque os perseguidores nazistas
tornaram uma necessidade para qualquer pessoa pensante colocar-se ao lado dos judeus
contra os seus opressores. Qualquer pessoa suficientemente educada para ter ouvido a
palavra “anti-semitismo” tem por rotina dizer-se acima disso, e os comentários anti-semitas
são cuidadosamente eliminados de todas as classes de literatura. De fato, o anti-semitismo
parece estar disseminado mesmo entre os intelectuais, e a conspiração geral de silêncio
provavelmente ajuda a exacerbá-lo. Pessoas com opiniões de esquerda não lhe são imunes, e
a sua atitude é por vezes afetada pelo fato de os trotskistas e os anarquistas tenderem a ser
judeus. Mas o anti-semitismo surge mais naturalmente em pessoas de tendência
conservadora, pois suspeitam que os judeus enfraquecem a moral nacional e diluem a cultura
nacional. Neo-tories e católicos políticos sempre são suscetíveis de sucumbir ao anti-
semitismo, pelo menos intermitentemente.
3. Trotskismo. A palavra é usada de modo amplo para incluir anarquistas, socialistas
democráticos e até mesmo liberais. Uso-a aqui para me referir ao marxista doutrinário cuja

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principal motivação é a hostilidade ao regime de Stálin. O trotskismo pode ser mais bem
estudado em panfletos obscuros ou em jornais como o Socialist Appeal do que a partir dos
trabalhos do próprio Trotsky, que de modo algum era homem de uma ideia só. Embora em
alguns lugares como, por exemplo, os Estados Unidos, o trotskismo seja capaz de atrair um
grande número de partidários e se desenvolver como um movimento organizado
relativamente autônomo dotado de um insignificante führer próprio, sua inspiração é
essencialmente negativa. O trotskista é contra Stálin tal como o comunista lhe é favorável e,
como a maioria dos comunistas, não quer tanto mudar o mundo externo, mas sim sentir que
a batalha pelo prestígio está a seu favor. Em cada caso há a mesma fixação obsessiva por um
mesmo assunto, a mesma incapacidade para formar uma opinião racional baseada em
probabilidades. O fato de os trotskistas serem uma minoria perseguida em todos os lugares e
de a acusação habitualmente feita contra eles, i.e. colaborar com os fascistas, ser
absolutamente falsa, cria a impressão de que o trotskismo é moralmente superior ao
comunismo. Mas é discutível se há muita diferença. Os trotskistas mais típicos, de qualquer
maneira, são ex-comunistas, e ninguém chega ao trotskismo exceto por meio de algum dos
movimentos de esquerda. Nenhum comunista, a menos que esteja acorrentado ao seu partido
por anos de hábito, está livre de cair subitamente no trotskismo. O processo contrário não
parece ocorrer com a mesma frequência, embora não seja claro o porquê.

Na classificação que esbocei irá parecer que muitas vezes exagerei, hiper-simplifiquei,
aceitei coisas sem justificação e deixei de fora a existência de motivações comuns
decentes. Isso foi inevitável, pois neste ensaio estou tentando isolar e identificar
tendências que existem nos espíritos de todos nós e pervertem o nosso pensamento sem
necessariamente ocorrerem em estado puro ou operarem continuamente. É importante
nesta altura corrigir a perspectiva hiper-simplificada que fui obrigado a oferecer. Para
começar, não se tem o direito de pressupor que todos, ou mesmo todos os intelectuais,
estão infectados com o nacionalismo. Em segundo lugar, o nacionalismo pode ser
intermitente e limitado. Um homem inteligente pode sucumbir parcialmente a uma crença
que o atrai mas que sabe ser absurda, e pode mantê-la longe do espírito por longos
períodos, voltando a cair nela apenas em momentos de raiva ou de sentimentalismo, ou
quando tem a certeza de que nenhum assunto importante está envolvido. Em terceiro
lugar, um credo nacionalista pode ser adotado de boa-fé por motivações não-
nacionalistas. Em quarto lugar, vários tipos de nacionalismo, mesmo tipos que se anulam,
podem coexistir na mesma pessoa.

Durante todo o percurso disse “O nacionalismo faz isso” ou “O nacionalista faz aquilo”,
usando para propósitos de ilustração um tipo extremo e pouco sensato de nacionalista —
que não tem áreas mentais neutras e nenhum interesse distinto da luta por poder. Essas
pessoas são realmente bem comuns, mas não valem sequer pólvora e chumbo. Na vida
real Lord Elton, D. N. Pritt, Lady Houston, Erza Pound, Lord Vansittart, padre Coughlin e
todo o resto de sua tribo sombria devem ser combatidos, mas as suas deficiências
intelectuais praticamente não precisam ser apontadas. A monomania não é interessante, e
o fato de nenhum nacionalista do tipo mais fanático poder escrever um livro que ainda
pareça digno de leitura após alguns anos tem um certo efeito desinfetante. Mas quando se
admite que o nacionalismo não triunfou em todos os lugares, que ainda há pessoas cujos
juízos não estão à mercê dos próprios desejos, permanece o fato de que os problemas
urgentes — Índia, Polônia, Palestina, a Guerra Civil Espanhola, os julgamentos de
Moscou, os negros americanos, o Pacto Germano-Soviético ou o que você pensar — não
podem ser, ou pelo menos nunca são, discutidos num nível razoável. Os Eltons e os Pritts
e os Coughlins, cada um dos quais simplesmente uma enorme boca mugindo mais e mais
vezes a mesma mentira, são casos obviamente extremos, mas nos enganamos se não nos
damos conta de que podemos ser semelhantes a eles quando nos distraímos. Assopre uma

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determinada opinião, pise neste ou naquele calo — e pode ser um calo de cuja existência
nem se desconfiava até então — e a pessoa mais razoável e tranquila pode
repentinamente ser transformada num partidário vicioso, cuja única ansiedade é “marcar
pontos” contra o adversário, sendo indiferente a quantas mentiras diz ou a quantos erros
lógicos comete. Quando Lloyd George, que era um oponente da Guerra dos Bôeres,
anunciou na Câmara dos Comuns que os comunicados oficiais, caso fossem colocados
juntos, reivindicavam a morte de mais Bôeres do que a nação Bôer continha, há o registro
de que Arthur Balfour se levantou e gritou “mulherengo!”. Poucas pessoas mantêm a
calma depois de deslizes desse tipo. O negro esnobado por uma mulher branca, o inglês
que ouve a Inglaterra ser criticada de modo ignorante por um americano, o católico
espanhol recordado da Armada Espanhola: todos irão reagir quase da mesma forma.
Basta espetar o nervo do nacionalismo para que a decência intelectual desapareça, o
passado seja alterado e os fatos mais óbvios negados.

Ao abrigar em algum lugar do espírito uma lealdade ou ódio nacionalista, alguns fatos,
embora de certa maneira reconhecidos como verdadeiros, são inadmissíveis. Aqui vão
alguns poucos exemplos. Faço abaixo a lista de cinco tipos de nacionalista, e contra cada
um deles acrescento um fato que é impossível para este tipo de nacionalista aceitar
mesmo nos seus pensamentos mais secretos:

Tory britânico. A Grã-Bretanha irá sair dessa guerra com poder e prestígio reduzidos.
Comunista. Se não tivesse sido ajudada pela Grã-Bretanha e pela América, a Rússia jamais
teria vencido a Alemanha.
Nacionalista irlandês. O Eire somente pode se manter independente devido à proteção
britânica.
Trotskista. O regime de Stálin é aceito pelas massas russas.
Pacifista. Aqueles que “renunciam” à violência só podem fazê-lo porque há alguém
praticando violência por eles.

Todos esses fatos são grosseiramente óbvios se a emoção não estiver envolvida: mas para
as pessoas nomeadas em cada caso são também intoleráveis, e assim é preciso que sejam
negados e que se construa teorias falsas para acomodar a sua negação. Volto à assombrosa
falha da previsão militar na presente guerra. Penso que é verdadeiro dizer que a
intelligentsia tem errado mais sobre o progresso da guerra do que as pessoas comuns, e
que foi mais seduzida por sentimentos sectários. O intelectual médio de esquerda
acreditava, por exemplo, que a guerra foi perdida em 1940, que os alemães certamente
dominariam o Egito em 1942, que os japoneses jamais seriam expulsos das terras que
conquistaram e que a ofensiva anglo-americana de bombardeamentos não
impressionavam a Alemanha. Podia acreditar nessas coisas porque o seu ódio à classe
dirigente britânica o proibia de admitir que os planos britânicos poderiam ter sucesso.
Não há limite para as tolices que podem ser engolidas caso se esteja sob sentimentos
desse tipo. Tenho ouvido dizer com confiança, por exemplo, que as tropas americanas
foram trazidas à Europa não para lutar contra os alemães, mas para esmagar uma
revolução inglesa. É preciso pertencer à intelligentsia para acreditar em coisas assim:
nenhum homem comum poderia ser tão tolo. Quando Hitler invadiu a Rússia, os oficiais
do Ministério da Informação expediram “como informação de fundo” a advertência de
que se previa que a Rússia cairia em seis semanas. Por outro lado, os comunistas
consideraram cada fase da guerra uma vitória russa mesmo quando os russos foram
empurrados de volta quase até ao Mar Cáspio e tinham perdido vários milhões de
prisioneiros. Não há necessidade de multiplicar os exemplos. O ponto é que tão logo
medo, ódio, inveja e adoração ao poder estão envolvidos, o sentido de realidade degenera.

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E, como já fiz notar, a noção do bem e do mal também degenera. Não há crime,
absolutamente nenhum, que não possa ser perdoado quando o “nosso” lado o comete.
Mesmo que não se negue que o crime aconteceu, mesmo que se saiba que é exatamente o
mesmo tipo de crime que se condenou noutro caso, mesmo que se admita num sentido
intelectual que o ato é injustificado — ainda assim não se sente que é errado. A lealdade
está envolvida e assim a piedade deixa de operar.

A razão da ascensão e disseminação do nacionalismo é uma questão demasiado vasta


para ser levantada aqui. É suficiente dizer que, nas formas em que surge entre os
intelectuais ingleses, trata-se de um reflexo distorcido das batalhas terríveis que estão
acontecendo no mundo externo, e as suas piores tolices foram possíveis devido ao
colapso do patriotismo e da crença religiosa. Ao seguir essa linha de raciocínio, há o
perigo de ser levado a uma espécie de conservadorismo ou a um quietismo político. É
possível argumentar plausivelmente, por exemplo — e é provavelmente verdadeiro —,
que o patriotismo é uma inoculação contra o nacionalismo, que a monarquia é uma
segurança contra a ditadura e que a religião organizada é uma proteção contra a
superstição. Ou, mais uma vez, pode-se argumentar que nenhuma perspectiva não-
tendenciosa é possível, que todos os credos e causas envolvem as mesmas mentiras,
tolices e barbaridades; e isso é frequentemente defendido como uma razão para nos
mantermos à parte da política. Não aceito esse argumento talvez pela única razão de que
no mundo moderno ninguém que se descreva como pode se manter-se à parte da política
no sentido de não se importar com ela. Penso que é um dever envolver-se na política —
usando a palavra num sentido amplo — e que deve-se ter preferências: isto é, deve-se
reconhecer que algumas causas são objetivamente melhores do que outras mesmo que
sejam defendidas por meios igualmente maus. Sobre os amores e ódios nacionalistas de
que falei, são constitutivos da maior parte de nós, gostemos disso ou não. Não sei se é
possível livrar-mo-nos deles, mas acredito que é possível lutar contra eles e que isso é
essencialmente um esforço moral. É uma questão de, em primeiro lugar, descobrir o que
se é, os sentimentos que realmente se tem e por fim levar em consideração o
tendenciosismo inevitável. Se odiamos e tememos a Rússia, se temos inveja da riqueza e
poder da América, se desprezamos os judeus, se temos um sentimento de inferioridade
perante a classe dirigente britânica, não podemos livrar-nos desses sentimentos
simplesmente pela força do pensamento. Mas podemos ao menos reconhecer que os
temos e impedi-los de contaminar o nosso processo mental. Os impulsos emocionais
inelutáveis, e que são talvez até mesmo necessários para a ação política, devem existir
lado a lado com a aceitação da realidade. Mas isso, repito, requer esforço moral, e a
literatura britânica contemporânea, na medida em que está atenta aos temas mais
importantes da nossa época, mostra como poucos de nós estão preparados para fazê-lo.

George Orwell
Polemic (Outubro de 1945).

Notas
1. Nações, e mesmo entidades ainda mais vagas como a igreja católica ou o proletariado, são
comumente tidas como indivíduos e frequentemente referidas como “ele/a”. Comentários
patentemente absurdos como “A Alemanha é naturalmente traiçoeira” encontram-se em
qualquer jornal que se abra, e generalizações imprudentes sobre o caráter nacional (“O
espanhol é um aristocrata natural” ou “Todo o inglês é um hipócrita”) são enunciadas por

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quase todos. Por vezes, percebe-se que essas generalizações são infundadas, mas o hábito de
fazê-las persiste e pessoas internacionalmente reconhecidas, como Tolstói ou Bernard Shaw,
com frequência as cometem. ↩︎

2. Uns poucos autores de tendência conservadora, como Peter Drucker, previram um acordo
entre a Alemanha e a Rússia, mas esperavam uma aliança ou uma fusão permanente.
Nenhum marxista ou qualquer outro autor de esquerda de qualquer matiz chegou perto de
prever o Pacto. ↩︎

3. Os comentaristas de assuntos militares da imprensa popular podem majoritariamente ser


classificados como pró-russos ou anti-russos, pró-Blimp ou anti-Blimp. Erros como acreditar
que a Linha Maginot é inconquistável ou prever que a Rússia conquistaria a Alemanha em
três meses não conseguiram abalar a sua reputação porque estavam sempre dizendo o que
sua audiência particular queria ouvir. Os dois críticos militares mais bem quistos pela
intelligentsia são o Capitão Liddell Hart e o Major-General Fuller, o primeiro dos quais
ensina que a defesa é mais forte do que o ataque. Já o segundo que o ataque é mais forte que
a defesa. Essa contradição não impediu que os dois fossem tidos pelo mesmo público como
autoridades. A razão secreta para a sua voga em círculos de esquerda é que nenhum se alinha
pelo Departamento de Guerra. ↩︎

4. Alguns americanos tem expressado insatisfação porque “anglo-americano” é a forma normal


de combinar essas duas palavras. Propôs-se a sua substituição por “américo-britânico”. ↩︎

5. Trata-se da expressão bastante marcada do fonema /ɑː/. (N. do T.) ↩︎

6. O News Chronicle recomendou que seus leitores assistam à filmagem em que a execução
inteira pode ser testemunhada em grande plano. O Star publicou com aparente aprovação
fotografias de mulheres colaboracionistas praticamente nuas sendo espancadas pela turba em
Paris. Estas fotografias tinham uma marcante semelhança com as fotografias nazistas de
judeus sendo espancados pela turba em Berlim. ↩︎

7. Um exemplo é o Pacto Germano-Soviético, que está sendo apagado tão rapidamente quanto
possível da memória pública. Um correspondente russo me informa que a menção ao Pacto
já está sendo omitida dos anuários russos de eventos políticos recentes. ↩︎

8. Um bom exemplo é a superstição sobre a intermação. Até recentemente acreditava-se que as


raças brancas eram muito mais passíveis de intermação do que as de cor, e que um homem
branco não poderia andar em segurança sob o sol tropical sem chapéu. Não havia qualquer
prova em favor dessa teoria, mas serviu o propósito de acentuar as diferenças entre “nativos”
e europeus. Durante a presente guerra, a teoria foi silenciosamente abandonada e exércitos
inteiros manobram nos trópicos sem chapéu. Enquanto a superstição sobreviveu, os médicos
ingleses na Índia parecem ter acreditado nela tão firmemente quanto os leigos. ↩︎

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