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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO

Departamento de Educação, Informação e Comunicação

Juliana Aparecida Possidônio

Os sentidos sobre família e o indício da subjetividade no discurso de sujeitos-alunos do


Ensino Fundamental

Ribeirão Preto

2011
Juliana Aparecida Possidônio

Os sentidos sobre família e o indício da subjetividade no discurso de sujeitos-alunos do


Ensino Fundamental

Monografia apresentada à Faculdade de


Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto,
da Universidade se São Paulo, como trabalho
de conclusão do curso de graduação em
Pedagogia.

Orientador (a): Profa. Dra. Soraya Maria Romano Pacífico

Ribeirão Preto

2011
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO OU PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Possidônio, Juliana Aparecida


Os sentidos sobre família e o indício da subjetividade no
discurso de sujeitos-alunos do Ensino Fundamenta / Juliana
Aparecida Possidônio. -- Ribeirão Preto: USP/ Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, 2011.
ix, 224 p. : il. ; 30 cm
Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia) – USP /
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto /
DEIC, 2011. Área de Concentração: Educação.
Orientador: Soraya Maria Romano Pacífico.
1. Linguagem. 2. Discurso. 3. Subjetividade. 4. Ensino.
Juliana Aparecida Possidônio

Os sentidos sobre família e o indício da subjetividade no discurso de sujeitos-alunos do


Ensino Fundamental

Monografia apresentada à Faculdade de


Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto,
da Universidade se São Paulo, como trabalho
de conclusão do curso de graduação em
Pedagogia, em caráter facultativo.

Aprovado: ___ /____ / ____

................................................................... ...................................................................
Prof.ª Dra. Elaine Sampaio Araújo Prof.ª Dra. Fabiana Cláudia Viana Borges

....................................................................
Prof.ª Dra. Soraya Maria Romano Pacífico
Orientador(a)
Antônio, Ivone e Rosana: pelo caminho, o qual a cada dia
eu enfeito com uma nova história.
Lucas, por nossas, sempre, inesquecíveis histórias!
Soraya, por trazer tantos sentidos a todas as minhas
histórias!
Agradecimentos

Aos meus pais, Antônio e Ivone: por todo o apoio, toda a confiança e toda a esperança
que, desde sempre, investem em mim e em minhas aspirações.

À minha irmã Rosana: pelo exemplo de convicção e luta que carrega consigo, e com o
qual me contagia.

Ao meu namorado Lucas: pelos sentidos tão lindos que enunciamos juntos. Pela
paciência e pela compreensão, além das trocas e discussões que muito enriqueceram esse
trabalho e que são tão caras a mim enquanto pessoa.

À minha orientadora Soraya: por despertar em mim o gosto e o entusiasmo pelas


questões do ensino da língua(gem), por me fazer querer sempre sentidos outros e, o mais
importante, por sua doce amizade.

Ao grupo de estudos em Análise do Discurso, ao CADEP e aos discentes da disciplina


“Argumentação e autoria: investigações sobre a aquisição da linguagem escrita”, do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia, da FFCLRP-USP: pelos momentos de reflexão, pelas
contribuições teóricas e pelas grandes amizades que em todos os espaços desenvolvi, nas
quais me espelho enquanto futura docente. Em especial, à professora Elídia Silva-Rodrigues,
com quem partilhamos muitos dos sentidos desta pesquisa.

Aos meus amigos Maria Cecília, Calima, William, Mariana Lima, Jaqueline de Araújo
e Mariana Morales: a alguns pelas partilhas teóricas, a outros pelos muitos momentos de
trabalho e conversa que passamos juntos, mas a todos eles, pelas mais lindas e sinceras
amizades.
No entardecer dos dias de verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...

(Poemas Completos, XLI. Alberto Caeiro.)


Resumo

Instigados por uma concepção de língua e de linguagem marcada pela heterogeneidade


e polissemia dos sujeitos e dos sentidos, cujas bases se encontram nos referenciais teóricos da
Análise do Discurso, de „linha francesa‟, e cujo maior expoente é o filósofo Michel Pêcheux
(1938-1983), é que surge em nós a preocupação com questões acerca do ensino da Língua
Portuguesa nas séries iniciais do Ensino Fundamental. No intuito de compreender os sentidos
que uma prática de ensino pautada no discurso polêmico (ORLANDI, 1996) como
metodologia coloca em movimento e, principalmente, das possibilidades de emergência da
subjetividade do sujeito e sua de identificação com a atividade de escrita que ela carrega, nos
debruçamos sobre um corpus constituído por produções textuais de alunos do 4º e 5º ano da
mesma modalidade de ensino, em que estes se acerca do tema família, o qual, para ser
discursivizado, possui como inerente a subjetividade do próprio sujeito enunciador. Os
sentidos colocados em curso por esses sujeitos apontam para compreensão de uma
subjetividade perpassada pela ideologia, para um sujeito que se identifica e que se constitui
por sentidos do Outro, confirmando a ideia, na qual nos sustentamos, de que a identidade se
constrói ininterruptamente em relação às representações sociais e históricas nas quais o sujeito
se insere. Em relação ao ensino, confirmam-se as nossas hipóteses de que o discurso
polêmico, como lugar para o novo, se funda como o espaço privilegiado para a emergência da
subjetividade dos sujeitos, e que um ensino, nele ancorado, abre lugar para o sujeito poder se
dizer e enunciar os sentidos que ele deseja ou com os quais ele se identifica. Além disso, uma
prática de ensino de língua(gem) que se despe da repetição e se dirige pela equivocidade da
língua, torna possível, como esta pesquisa pretende demonstrar, a identificação dos sujeitos
com o ler e o escrever, movida pela sempre possível disputa dos sentidos.

Palavras-chaves: Discurso; Subjetividade; Linguagem; Ensino.


Abstract

Prompted by a conception of language marked by polysemy and heterogeneity of the


subjects and the senses, whose bases are in the theoretical Discourse Analysis of 'French line',
and whose greatest exponent is the philosopher Michel Pêcheux (1938-1983), there arises in
us the concern with questions about the teaching of Portuguese in the early grades of
elementary school. In order to understand the meanings a guided teaching practice in polemic
discourse (ORLANDI, 1996) as a methodology and set in motion, especially, of the possible
emergence of subjectivity of the subject and his identification with the activity of writing that
she carries, we examine a corpus consisting of textual productions of students in the 4th and
5th year of the same education system, where they are on the topic of family, which, to be
enunciated, has as inherent subjectivity of the subject statements. The senses put in progress
by these subjects point to an understanding of subjectivity pervaded by ideology, for a guy
who identifies himself and is constituted by the other senses, confirming the idea, in which we
hold, that identity is constructed around the clock in relation to social and historical
representations in which the subject is inserted. Regarding education, it confirms our
hypothesis that the polemic discourse, as a place for the new, is founded as the privileged
space for the emergence of the subjectivity of the subject, and an education, anchored in it,
makes room for the subject able to say and spell out the way he wants to or with which he
identifies himself. In addition, a practice of language teaching that the repetition undresses
and goes by the equivocality of language makes possible, as this study aims to demonstrate
the identification of individuals with reading and writing, always driven by the possible
dispute senses.

Keywords: Discourse; Subjectivity; Language; Teaching.


Sumário

Introdução .......................................................................................................................... 10

1. Objetivos ........................................................................................................................ 13

2. Fundamentação teórica ................................................................................................ 15

2.1. Uma disciplina de entremeio: as condições de produção da teoria de Análise do


Discurso ............................................................................................................... 15

2.2. Sujeito, língua e história: os postulados teóricos da Análise do Discurso ........ 16

2.3. Tipologia discursiva e ensino: paráfrase e polissemia no processo constituição


do sujeito-aluno enquanto autor/leitor ............................................................. 21

2.4. Subjetividade e identidade: sobre os conceitos que integram nossos objetivos


............................................................................................................................... 24

3. Metodologia ................................................................................................................... 27

3.1. Sobre a constituição do corpus: a respeito das condições de produção ........... 27

3.2. A postura do analista e a ideia de recorte ........................................................... 28

4. Apresentação e análise dos dados ................................................................................ 31

4.1. “Para início de conversa”: uma reflexão sobre os sujeitos e os sentidos das
redações iniciais .................................................................................................. 31
4.1.1. “Toda família”, “minha família” ou ambas? O discurso polêmico e a
subjetividade ................................................................................................ 31

4.1.2. Os sentidos sobre família envoltos em subjetividade: entre o legal e o


silenciado ...................................................................................................... 42

4.1.3. Os papéis dos membros da família: sentidos sobre o ser pai e o ser mãe
........................................................................................................................ 58

4.1.4. Os sentidos do “presente”: efeito metafórico entre trabalho e passeio


........................................................................................................................ 64

4.1.5. Subjetividade e emoção: o desabafo e a voz do coração .......................... 68

4.2. A música e o poema: pensando o gênero, a proposta e os indícios da


subjetividade ....................................................................................................... 71

4.2.1. Música e família: refletindo sobre o gênero textual e os sentidos ............. 71

4.2.2. Descrever ou relacionar? Um discurso sobre um desejo de família ......... 75

Considerações Finais ........................................................................................................ 84

Referências Bibliográficas ................................................................................................ 88

ANEXOS ........................................................................................................................... 91
10

Introdução

Será sempre muito difícil elaborar uma introdução, cujo grande fim é a produção de
uma justificativa que, por meio de um texto coerente, apresente as nossas motivações para o
trabalho com determinado assunto e que, em consequência, convença nossos leitores a
respeito da relevância do mesmo, quando a temática que nos incita é exatamente a das várias
possibilidades de sentidos que perpassam um discurso.

Chama-nos a atenção este conflito em torno da língua, no qual de um lado estão a


unidade e a coerência, próprias às regras gramaticais e ortográficas, e, de outro, a
heterogeneidade e a imprevisibilidade que caracterizam os vários rumos interpretativos
plausíveis ao nosso dizer. Encanta-nos perceber que, apesar de todas as normas em que nossa
língua se apoia e, mais que isso, das quais ela necessita para ter existência e para ser um
objeto partilhado por diversos falantes, são muitos os sentidos que as palavras podem
alcançar, visto que o trabalho com o significado é algo subjetivo, inconstante e contextual, o
qual abrange tanto fatores linguísticos quanto extralinguísticos, isto é, aspectos sociais,
ideológicos e históricos que compõem todo dizer.

E será, portanto, este segundo enfoque que caracteriza nossa língua que direcionará o
nosso olhar: inspiramo-nos num trabalho de ensino e aprendizagem da língua escrita que toma
como base a polissemia, as várias possibilidades de significação que precisam, a cada dia, a
cada nova aula ou novo texto, a cada novo livro que pegamos em nossa mão, ser construídas e
não desvendadas pelos alunos – postura esta, como demonstram muitas de nossas
experiências, ainda bem distante da maioria das salas de aula brasileiras.

É de muito tempo a nossa imersão dentro das práticas de leitura e escrita e, nesse
processo, a instituição escolar foi aquela que exerceu a maior influência na nossa constituição
enquanto sujeitos do dizer. Todavia, quase que a totalidade de nossa escolarização esteve
calcada num ensino da língua materna marcado por uma relação dos sujeitos com a linguagem
caracterizada pela ilusão, ou tentativa de imposição da homogeneidade de interpretações.
Acostumamo-nos com uma figura docente como voz de autoridade, ditando-nos as
explanações possíveis, administrando os sentidos e as interpretações de acordo com sua
vontade, sob o apoio do maior legitimador de sentidos de nossa sala de aula, qual seja o livro
didático (GRIGOLETTO, 1999).
11

Nesse contexto, também não nos despertaram o gosto pela leitura e pela escrita, visto
que elas sempre foram concebidas como espaço de repetição de conteúdos cristalizados e não
como práticas sociais mediadoras de conhecimento, sendo que, portanto, não puderam se
estabelecer como experiências prazerosas. Na verdade, ler e escrever sempre foram sinônimos
de fixar e decorar conteúdos já dados, processo este que formou, e forma a cada dia, sujeitos
esquivos „ao papel, à caneta e aos livros‟, considerando-se incapazes de construir um texto
coerente e compreendendo a leitura como um ato maçante. É nesse sentido que Romão e
Pacífico (2006) apontam que:
a leitura se tornou ferramenta, cuja utilização cotidiana em sala de aula instrumentaliza a
mesmice, a padronização e a formação de um sujeito repetidor, capaz apenas de observar os
sentidos literais, exímio decodificador dos aspectos que “o autor quis dizer” (p. 17).

É, pois, marcado por uma leitura parafrástica, isto é, pela reprodução de sentidos, pela
busca incessante do significado único e verdadeiro dos textos, como se eles fossem
constituídos por uma mensagem a ser decodificada pelo leitor, que o ensino até hoje se
configura.

Foi durante nosso processo de formação como futuros pedagogos, entretanto, que em
nós se fundou uma nova concepção. O contato com os estudos a respeito da escrita, da
alfabetização e do letramento, além das metodologias de língua portuguesa, abriu nosso olhar
para novas práticas de ensino da leitura e da escrita perpassadas pela multiplicidade de
significados e pela subjetividade do educando, contato este que pôde modificar inclusive as
nossas experiências individuais com o falar, o ler e o escrever.

Foi com base nos referenciais da Análise do Discurso, teoria que se ocupa das práticas
de linguagem, sob o enfoque de um dizer e de um sujeito marcados pela polissemia e pela
incompletude, que desenvolvemos nossas propostas de estágio no Ensino Fundamental de
escolas públicas, junto à disciplina de Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa do curso
de Pedagogia, da FFCLRP/USP, as quais nos proporcionaram vislumbrar lindas experiências
de contato e produções com o ler e escrever, bem distintas daquelas supracitadas. E foi assim,
nesse encontro com os referenciais teóricos da teoria mencionada que, bem como Romão e
Pacífico (2006, p.10),

Descobrimos que nada está acabado, que os sentidos das coisas, dos textos, da vida é tecido
a cada momento a partir de vazios e também de discursos e de outros discursos, em um
processo contínuo de construção. E essa capacidade de tecer o novo é essencialmente do ser
humano, do ser que está “vivo”, aquele que não pára no tempo, aquele que questiona,
transforma, produz coisas novas e dá significados novos aos textos, à vida.
12

E é, pois, alicerçados nesta mesma perspectiva que, nesse momento, pretendemos


desenvolver nossas investigações, preocupando-nos especialmente com a questão da
subjetividade, ou seja, com as marcas do sujeito no processo de constituição de seu dizer, com
os sentidos produzidos pelo sujeito nas suas relações com a escrita. Seduzidos pelo
movimento dos sentidos, pela heterogeneidade dos discursos, pelo caráter, ao mesmo tempo,
integrado e diverso da linguagem, pela incerteza que compõe a nossa língua é que nos
propomos a investigar estudos, discussões e produções infantis, com o objetivo de
compreender os sujeitos e os sentidos por eles evocados acerca de uma temática
essencialmente subjetiva: a família.

Para tanto, apoiar-nos-emos nas contribuições teóricas da Análise do Discurso de


„linha francesa‟, cujo maior representante é o teórico Michel Pêcheux, tomando seus
conceitos como referenciais para o nosso trabalho de análise. A escolha por esta teoria deve-
se ao fato de que a concepção de linguagem e sujeito é oposta àquela primeira que
mencionávamos, na qual o gesto de interpretação é concebido como a mera decodificação de
uma mensagem; uma vez que tal teoria postula que o sujeito e o sentido se constroem junto
com o texto, e em determinado contexto sócio-histórico. Dessa forma, poderemos analisar o
discurso em funcionamento, não com aquela visão de linguagem fechada que criticamos, mas
com a possibilidade de o sentido poder vir a ser outro, como observamos quando os falantes
colocam a língua em uso.
13

1. Objetivos

As relações que estabelecemos, ocupando a posição discursiva de estagiários, durante


o curso de Pedagogia, com diferentes instituições de ensino têm demonstrado que,
tristemente, as práticas pedagógicas em Língua Portuguesa ainda se encontram bem distantes
daquela concepção de leitura e escrita que defendemos, ou seja, de experiências de língua e
linguagem pautadas numa atividade emancipadora, criativa e polêmica.

Nesse sentido, ler e escrever ainda são, para muitos sujeitos, uma tarefa complexa, às
vezes árdua e, outras vezes, impossível de ser realizada, isto porque, as atividades de
discussão, interpretação e escrita, bem como “os textos lidos pelos alunos da chamada escola
tradicional muitas vezes não têm relação com a realidade em que eles vivem” não deixando,
assim, que as práticas de linguagem aconteçam “de modo espontâneo” pelo fato de estarem
dissociadas “das experiências cotidianas” dos sujeitos-alunos (ROMÃO & PACÍFICO, 2006,
p. 32).

Contudo, é por acreditarmos que o trabalho com a língua pode e deve se constituir
como um exercício que, diferentemente da abordagem tradicional a que antes nos referimos,
“faça sentido”, tornando-se, assim, prazerosa a todo sujeito, que temos como objetivo deste
trabalho analisar como os sujeitos-escolares, que frequentam o primeiro ciclo do Ensino
Fundamental realizam as atividades de linguagem, tais como leitura, discussão e interpretação
de textos para, a partir disso, construírem seu próprio texto.

Desse modo, com base na produção escrita de sujeitos-alunos do 4º e do 5º ano do


Ensino Fundamental, objetivamos analisar se essa escrita apresenta marcas de subjetividade,
sendo que este conceito deve ser entendido como as marcas de inscrição do sujeito na
produção do seu dizer, como a possibilidade desse sujeito poder falar de si e dos sentidos com
os quais ele se identifica. Nesse processo, pretendemos investigar se o funcionamento
discursivo presente no contexto escolar no qual esse sujeito está inserido se constitui, ou não,
como um facilitador para a emergência da subjetividade, e ainda, se tal possibilidade de
emergência da subjetividade, se o “poder falar de si”, facilita ou não, a relação do sujeito com
a escrita.

Para isso, selecionamos textos cujo tema é a família, pois, para nós esse tema aborda
sentidos vividos por todo ser humano, uma vez que discursivizar sobre família afeta o sujeito
seja de qual maneira for, e isso, a nosso ver, pode promover a emergência da subjetividade na
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produção infantil, fase escolar marcada por encontros e desencontros, em que muitas crianças
demonstram ter medo de escrever, ou ainda, temos a hipótese de que muitas não escrevem
porque não estão familiarizadas (vale o trocadilho), com as temáticas propostas por seus
professores ou ainda, considerando o peso deste material no trabalho docente, com os
exercícios de língua, de produção escrita, presentes no livro didático.

Conforme aprofundaremos ao tratar das noções de subjetividade e de identidade, e do


conceito de sujeito nos quais nos baseamos, interessa-nos, ainda, nesse processo de análise da
escrita infantil, os sentidos de família evocados por esses sujeitos; isto porque, para nós, o
sujeito se mostra, fala de si, não apenas quando marca isto de forma explícita em seu dizer,
mas se manifesta quando sustém um ponto de vista sobre determinado tema, posicionando-se
e falando de sentidos com os quais ele se identifica e que, portanto, constituem sua identidade
e, do mesmo modo, sua subjetividade.

Por ser assim, objetivamos, em suma, por meio de um tema conhecido, analisar a
escrita do sujeito-aluno do Ensino Fundamental e como a escrita pode ser o lugar da
constituição do sujeito e dos sentidos.
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2. Fundamentação teórica

2.1. Uma disciplina de entremeio: as condições de produção da teoria de


Análise do Discurso

Tendo explicitado os postulados da Análise do Discurso como norteadores de nosso


trabalho, esclarecemos que tal teoria teve sua origem na década de 60 do século XX, a partir
da preocupação de estudiosos da leitura e da interpretação, os quais procuravam compreender
o que a atividade de leitura significava. Ocorre assim, por meio dos estudos mencionados,
uma desnaturalização de tal atividade, isto é, ler deixa de ser considerado como algo natural,
como uma prática possível apenas por meio do acesso ao “código” pelo qual ela se organiza,
sendo então questionada a afirmação positivista de linguagem de que, se eu conheço
determinada língua, se eu estou alfabetizado, eu consigo ler, interpretar ou compreender
qualquer coisa que nela esteja escrito, registrado.

É nesse contexto que surgem os postulados teóricos da Análise do Discurso, como um


dispositivo teórico necessário para sustentar este novo ponto de vista sobre as práticas de
leitura, qual seja, o de que ler e, também, escrever envolvem muito mais que a mera
codificação e decodificação da língua escrita: envolve, pois, determinações históricas e
ideológicas subjacentes à constituição dos processos de significação.

Michel Pêcheux (1938-1983), fundador da Escola Francesa de Análise do Discurso e


principal expoente da teoria na qual nos sustentamos, concebendo o discurso como um lugar
particular em que a relação entre ideologia e linguagem se manifesta, esteve preocupado em
transformar a prática das Ciências Sociais, interrogando a transparência da linguagem na qual
elas se ancoravam. Ele trabalha com as noções de relativa autonomia da língua e critica a
onipotência do sujeito, “des-centralizando o conceito de subjetividade e limitando a
autonomia do objeto linguístico” ao “criticar a evidência do sentido e o sujeito intencional que
estaria na origem do sentido” (ORLANDI, 2005b, p. 11).

Nesse contexto, a Análise do Discurso compor-se-á pela articulação de três esferas do


conhecimento científico, sendo elas “o materialismo histórico, como teoria das formações
sociais e suas transformações; a linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos
processos de enunciação; e a teoria do discurso, como a teoria da determinação histórica dos
processos semânticos” (ORLANDI, 1993, p. 19).
16

As hipóteses teóricas elaboradas por Pêcheux sugerem ainda a existência de uma


relação entre a Análise do Discurso e a Psicanálise. Pêcheux se ancora, ao pensar a relação
entre sujeito, língua e história, na ideia de que o sujeito discursivo não é absoluto nem
universal, de que o mesmo não se constitui como o centro e a origem de seu dizer, mas que
ele, concordando com Lacan (1979 apud PÊCHEUX, 1979, p. 150), “só é sujeito pelo seu
assujeitamento ao campo do Outro”, (com letra maiúscula, designando aqui a exterioridade
constitutiva do dizer, o interdiscurso), sendo que tal assujeitamento se dá no campo do
inconsciente, o que significa que a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia não é
cônscia a ele próprio, pois apesar de produzir sentidos perpassados por sentidos outros, pré-
existentes ao seu dizer, o sujeito tem a ilusão de ser uno e homogêneo. Sua concepção de
sujeito, portanto, significará a relação, a ligação material, no campo da linguagem, “entre
inconsciente (no sentido freudiano) e ideologia (no sentido marxista)” (PÊCHEUX, 2009, p.
123). É nesse sentido que Orlandi aponta que

A prática de leitura proposta por Pêcheux, que constitui propriamente a Análise de


Discurso, expõe o olhar do leitor à opacidade (materialidade) do texto, objetivando a
compreensão do que o sujeito diz em relação a outros dizeres, ao que ele não diz.
Criticando a análise de conteúdo, o psicologismo e o sociologismo, Pêcheux é um herdeiro
subserviente do Marxismo, da Linguística e da Psicanálise na Análise de Discurso que
propõe e que trabalha as relações entre o sujeito, a língua e a história (2005b, p. 11).

Deste grande entrecruzamento teórico pelo qual a Análise do Discurso se funda,


decorre o fato de que, apesar de o sistema linguístico possuir caráter uno, isto é, do ponto de
vista das estruturas fonológicas, morfológicas e sintáticas, funcionar com certa autonomia,
sendo semelhante a todos os falantes, os discursos, apesar de tomarem como base um mesmo
sistema linguístico, não são os mesmos, de modo que não correspondem a uma legítima
expressão do pensamento, mas abarcam questões socioideológicas e históricas que constituem
todo dizer – e todo sujeito.

2.2. Sujeito, língua e história: os postulados teóricos da Análise do Discurso

A Análise do Discurso apresenta como objeto de estudo, como seu próprio nome já
indica, o discurso. O discurso pode ser caracterizado como o instrumento linguístico de
mediação entre o homem e a realidade. Ele engloba tanto os enunciados pertencentes a uma
mesma formação discursiva, conceito que explicaremos, quanto suas condições de produção,
17

sendo que estas dizem respeito aos contextos, imediato ou individual (contexto em sentido
estrito, significando o aqui e o agora do dizer), e histórico (contexto em sentido lato, mais
amplo que o primeiro, considerando os aspectos sociais, históricos e ideológicos do contexto
de enunciação), que possibilitam a produção do dizer. “Se separamos contexto imediato e
contexto em sentido amplo é para fins de explicação, na prática não podemos dissociar um do
outro, ou seja, em toda situação de linguagem esses contextos funcionam conjuntamente”
(ORLANDI, 2006, p. 15).

Nesse sentido, ao estudarmos o ensino de nossa língua materna por meio do contato
com o texto, dado que é nele que o discurso, nosso objeto de estudo, materializa-se, não
estaremos preocupados apenas com questões que dizem respeito à língua, à fala ou à
gramática, pois, apesar de o discurso carecer de tais subsídios linguísticos para ter existência
objetiva, ele carrega uma exterioridade à linguagem, sendo compreendido apenas no social,
isto é, ao se elucidar os aspectos históricos e ideológicos que o compõem.

Poder afirmar, igualmente, que, no âmbito do discurso, existem concepções sociais e


ideológicas impregnadas às palavras, visto que tais posições ostentadas pelo sujeito discursivo
são reveladas através de seu dizer. Assim, apesar de carecer da língua para ter existência, o
discurso se estabelece como um objeto que vai além dela, uma vez que revela posições
socioideológicas dos sujeitos implicados em determinado dizer. Desse modo, podemos
afirmar que esta teoria, como bem aponta Orlandi (2005 a, 15-16):

não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com
maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto
parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma determinada
forma de sociedade.

Como já mencionado, existe uma compreensão elementar, baseada nas teorias


positivistas, da atividade de comunicação, na qual esse gesto ocorre por meio das figuras de
um emissor e um receptor, de modo que o primeiro, utilizando-se de um código, que é a
própria língua, transmite uma mensagem ao segundo, o qual deve decodificá-la. A Análise do
Discurso, compreendendo a língua na sua relação com o sujeito, com a história e a ideologia,
trabalha com uma perspectiva distinta, pois, para ela, a comunicação vai muito além de uma
mera transmissão de conteúdos e, do mesmo modo, ela não pode ser caracterizada por tal
linearidade e, muito menos, pela separação entre emissor e receptor. Falante e ouvinte, em
nosso ponto de vista, estão realizando simultaneamente o processo de significação e, ao invés
18

de uma mensagem, eles possuem como objeto o próprio discurso, lugar em que sujeitos e
sentidos se edificam conjuntamente.

Desse modo, diremos que não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no
funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e
pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de
sentidos e não meramente transmissão de informação. São processos de identificação do
sujeito, de argumentação, de subjetivação, de construção da realidade etc. Por outro lado,
tampouco assentamos esse esquema na ideia de comunicação. A linguagem serve para
comunicar e para não comunicar. As relações de sujeitos e sentidos e seus efeitos são
múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito de sentidos entre
locutores (ORLANDI, 2005a, p. 21).

Imbricado ao conceito de discurso, desse modo, está o de sentido, o qual é entendido


como um efeito de sentidos entre sujeitos manifestando-se através do uso da linguagem, isto
é, a ideia de que das palavras emanam sentidos que vão muito além daqueles dicionarizados,
abarcando a compreensão da realidade própria aos sujeitos, a qual revela suas inscrições
sociais, históricas e ideológicas, as condições de produção daquele discurso. “Os sentidos são
produzidos face aos lugares ocupados pelos sujeitos em interlocução. Assim, uma mesma
palavra pode ter diferentes sentidos em conformidade com o lugar socioideológicos daqueles
que a empregam” (FERNANDES, 2005, p. 23). Nas palavras de Pêcheux (2009, p. 146):

o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe “em si
mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao
contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-
histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas).

Faz-se necessário apresentar a noção de sujeito discursivo, essencial ao que até aqui
explicitamos. Para a AD, o sujeito não diz respeito a um ser humano específico, mas a um ser
social, ou seja, que só tem existência a partir de determinado lugar social, que é interpelado
pela ideologia e só pode, assim, ser apreendido em determinado momento sócio-histórico e
ideológico. Nesse sentido, o sujeito é caracterizado por uma postura polifônica – constituído
de um conjunto de outras vozes – e heterogênea – constituído de distintos discursos, os quais
se negam, contradizem e convergem entre si. “A voz desse sujeito revela o lugar social; logo,
expressa um conjunto de outras vozes integrantes de dada realidade social; de sua voz ecoam
outras vozes constitutivas e/ou integrantes desse lugar sócio-histórico” (FERNANDES, 2005,
p. 34).

Dizemos, ainda, que o sujeito é constituído pelo atravessamento de várias formações


discursivas, isto é, ele é marcado por dizeres anteriores, que lhe dão a ilusão de ser o centro de
19

seu dizer. A formação discursiva corresponde a tudo aquilo que pode e deve ser dito em
determinado contexto sócio-histórico, sendo marcada por sentidos que sempre voltam, por
enunciados que se repetem, que retomam uma mesma escolha temática (FOCAULT, 2009).

Trata-se da possibilidade de explicitar como cada enunciado tem o seu lugar e sua regra de
aparição, e como as estratégias que o engendram derivam de um mesmo jogo de relações,
como um dizer tem espaço em um lugar e em uma época específica (FERNANDES, 2005,
p. 60).

Ao falar de determinada formação discursiva, o sujeito o realiza tendo em vista uma


formação imaginária estabelecida acerca do objeto do discurso, a qual diz respeito ao
conjunto de representações que o sujeito faz de si e dos outros, em especial de seu
interlocutor, imagens estas que serão determinantes, interferindo na construção dos sentidos,
nas relações do sujeito com o dizer. A respeito das formações imaginárias Pêcheux (GADET
& HAK, 1997, p. 82) menciona que:

[...] o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que
designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem
de seu próprio lugar e do lugar do outro. Se assim ocorre, existem nos mecanismos de
qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as relações entre as situações
(obviamente definíveis) e as posições (representações dessas situações).

Tal jogo imaginário é, portanto, um dos fatores que determina a construção de um


discurso: a ideia que sustento de meu sujeito-interlocutor, a ideia que este sustém sobre mim e
a ideia que fazemos de nosso objeto discursivo, afetam a construção do dizer.

Toda formação discursiva tem ainda subjacente uma formação ideológica, visto que
todo signo é marcado pela ideologia, esta, entendida como um mecanismo de naturalização
dos sentidos que constitui o sujeito e materializa-se por meio do discurso, sendo este,
conforme já dissemos, um processo inconsciente. É por meio da formação ideológica que o
indivíduo é interpelado em sujeito, que o indivíduo situa-se numa posição sujeito
determinada, de modo que ele só pode dizer aquilo que diz pelo fato de ocupar tal posição.
Assim,

as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições


sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido
em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas nas quais
essas posições se inscrevem (PÊCHEUX, 2009, p. 147, grifos do autor).
20

Essencial e complementar ao que até aqui expusemos é o conceito de memória


discursiva que é trabalhado pela noção de interdiscurso, o qual pode ser definido como o
“entrelaçamento de diferentes discursos, oriundos de diferentes momentos da história e de
diferentes lugares sociais” (FERNANDES, 2005, p. 49). A memória discursiva diz respeito
aos sentidos construídos sobre, a tudo aquilo que já foi dito em outro lugar e
independentemente, que influencia na produção discursiva do sujeito. Ela abarca distintos
sentidos acerca de um mesmo dizer, de modo que, diferentes sentidos podem ser evocados por
diversas pessoas em relação a um mesmo signo.

O interdiscurso, nesse sentido, tem a ver com a constituição, correspondendo àqueles


sentidos (o já-dito) que o sujeito acessa para a formulação de seu discurso e na interpretação
de outros dizeres. Acrescentamos, contudo, que tal sujeito não tem controle sobre a forma
como os sentidos lhe afetam, o que tem relação com a ideologia, que naturaliza os sentidos,
criando o efeito de sentido de evidência e fazendo parecer natural que seja assim.

É com base nos sentidos evocados pelo conceito de interdiscurso, isto é, os sentidos-
outros que todo sujeito acessa, inconscientemente, na constituição de seu dizer, que Pêcheux
(1997) nos fala a respeito daquilo que ele denomina como ilusões ou esquecimentos do
sujeito. O esquecimento nº 1, segundo o autor, diz respeito à crença do sujeito de que ele é a
origem do dizer, que o sentido de seu discurso principia nele. Na ilusão nº 1 “o sujeito não
reconhece a inclusão daquilo que ele diz em determinada formação discursiva e não em outra,
uma vez que é interpelado pela ideologia; logo, a ilusão nº 1 é inconsciente”. O esquecimento
nº 2, por sua vez, pode ser definido como a ilusão da literalidade, isto é, a certeza que o
sujeito tem em relação à ideia de que tudo aquilo que ele diz corresponde ao que ele pensa e
que seu discurso só pode ser enunciado daquela maneira. “No entanto, o que não foi
enunciado continua a existir, pode ser acessível ao sujeito, que fez a opção por determinado
dizer a fim de induzir o interlocutor a entender de um modo e não de outro o discurso
produzido, por isso, a ilusão nº 2 é pré-consciente/consciente” (PACÍFICO, 2002, p. 31).

Apresentamos, também, o conceito de arquivo que, completando as noções de


memória e interdiscurso explicitadas, faz referência a todo o campo de documentos
pertinentes a uma dada questão (PÊCHEUX, 1997), o qual se pode denominar como um
discurso documental, uma memória institucional, sendo mais amplo que a memória
discursiva, mas dependendo dela para que o sujeito tenha acesso a novos sentidos.
21

2.3. Tipologia discursiva e ensino: paráfrase e polissemia no processo


constituição do sujeito-aluno enquanto autor/leitor

Orlandi (1993), refletindo sobre o funcionamento da linguagem em seu contexto de


produção, corrobora a ideia de que a produção do discurso se realiza tendo em vista a
articulação de dois grandes processos, os quais são o alicerce da linguagem, são eles: o
processo parafrástico, “que é o que permite a produção do mesmo sentido sob várias de suas
formas”, e o processo polissêmico, que “é o responsável pelo fato de que são sempre possíveis
sentidos diferentes, múltiplos”. Segundo a mesma autora, a linguagem se constitui através da
articulação, do conflito entre esses dois processos, isto é, pela “tensão entre o mesmo e o
diferente”, sendo que é por ela que se torna possível que a linguagem se estabeleça como a
mesma, que ela seja contida, em termos institucionais, e que, ao mesmo tempo, tenha
intrínseca a si uma multiplicidade (p. 20).

É sobre esta mesma ambiguidade da língua que falávamos na introdução deste


trabalho: para que tenha existência social e histórica, sendo assim um objeto compartilhado
por um povo, uma sociedade, em determinado contexto sócio-histórico, a linguagem precisa
ter algo de parafrástico, isto é, precisa ter algo constante, mantendo-se a mesma sob tal ponto
de vista; entretanto, é pela mesma razão, isto é, é pelo fato de ser sócio-historicamente
constituída, que a linguagem se modifica, que ela se torna inconstante e múltipla.

Orlandi vai ainda dizer, aprofundando tais conceitos de paráfrase e polissemia, que é
tendo em vista tais processos que poderemos distinguir produtividade e criatividade, sendo
que esses conceitos se relacionam, respectivamente, com aqueles processos da seguinte
forma:

A produtividade se dá pela obtenção de elementos variados através de operações que são


sempre as mesmas, que incidem recorrentemente e que, dessa forma, procuram manter o
dizível no mesmo espaço do que já está instituído (o legítimo, a paráfrase); a criatividade
instaura o diferente na linguagem, na medida em que o uso pode romper com o processo de
produção dominante de sentidos e, na tensão da relação com o contexto histórico-social,
pode criar novas formas, novos sentidos (ORLANDI, 1993, p. 20).

É tendo em vista tais conceitos de paráfrase e polissemia que podemos abalizar uma
tipologia discursiva, isto é, modos distintos de estar no funcionamentos do dizer, os quais são
assinalados por Orlandi (1996a) como sendo três: o discurso lúdico, o discurso polêmico e o
22

discurso autoritário, sendo que para diferenciá-los devemos levar em conta o objeto discursivo
e os interlocutores de determinado dizer.

O primeiro deles pode ser caracterizado como aquele em que o “objeto se mantém
presente enquanto tal e os interlocutores se expõem a essa presença”, o que resulta numa
“polissemia aberta”, isto é, um lugar discursivo em que qualquer sentido se torna possível
(ORLANDI, 1996a, p. 15). Pensando uma situação em que essa tipologia discursiva se
manifesta, podemos pensar em uma festa ou um encontro entre amigos ou familiares, numa
situação coloquial, onde todos podem falar de tudo e em que não há um objeto discursivo
único determinado.

O discurso polêmico, por sua vez, é aquele em que acontece a disputa, uma tentativa
de domínio do referente por parte dos interlocutores, sendo, então, que o objeto discursivo se
mantém e a polissemia tende a ser controlada, ou seja, cada participante do discurso tem a
possibilidade de evocar sentidos próprios sobre o objeto discursivo, mas tais sentidos,
diferentemente do discurso lúdico, em que qualquer dizer é possível, independentemente do
referente, no discurso polêmico precisam ter relação com este último. Podemos pensar o
discurso polêmico como, por exemplo, um debate temático entre candidatos políticos, no qual
estes tentam, a partir de sua argumentação, que tende a ser distinta da de seus concorrentes,
convencer o eleitor a respeito de sua confiabilidade; outro exemplo, pode ser uma palestra,
um simpósio em que os interlocutores disputam o objeto discursivo, ou seja, todos podem
falar sobre ele.

O último tipo discursivo, qual seja, o discurso autoritário se diferencia


fundamentalmente dos dois acima explicitados: nele, o objeto se encontra camuflado pelo
dizer, não existindo interlocutores, mas apenas um agente que pode falar sobre tal objeto
discursivo, de modo que a polissemia é totalmente controlada, vigorando a repetição. O
discurso autoritário nos leva a pensar em tempos de ditadura política, momento este em que
todos os sentidos que não se enquadram na ordem vigente precisam ser contidos.

É de forma contrária a todos esses sentidos em que este último tipo discursivo se pauta
que Pêcheux (1990) já nos falava acerca da equivocidade da língua, isto é, ao fato de que as
palavras, em funcionamento, assumem possibilidades de sentidos outros, são calcadas na
polissemia, sendo que diferentes sujeitos podem evocar distintos sentidos sobre um mesmo
dizer.
23

Mas é tristemente que afirmamos, mais uma vez com Orlandi, que na escola,
instituição pela qual nosso estudo se interessa e, mais que isso, instituição que exerce maior
influência na relação entre sujeito e linguagem, é este último tipo discursivo, o autoritário, que
circula: “mais do que informar, explicar, influenciar ou mesmo persuadir, ensinar aparece
como inculcar” (ORLANDI, 1996a, p. 17). Isto, a nosso ver, pode ser percebido quando
pensamos que o ensino, na grande maioria das vezes, se estabelece a partir de uma figura
docente detentora do saber e por uma figura de aluno que precisa repetir os sentidos evocados
pelo primeiro. Sob o enfoque que aqui nos interessa, tal discurso autoritário pode ser
percebido em atividades de linguagem descontextualizadas, marcadas pela repetição do
sentido “único e verdadeiro” dos textos, por uma concepção de leitura, interpretação e escrita
“esperada”, isto é, em que os sentidos possíveis são pré-determinados pelo professor e, pior
ainda, em que sentidos outros são interditados.

Nesse sentido, concordamos com Pacífico e Romão (2007) quando apontam como se
faz necessário que o professor tenha contato com outras possibilidades de trabalho com a
linguagem, podendo, então, “dar início e continuidade a uma atividade” que se paute no
discurso polêmico, dando aos seus alunos a possibilidade de se posicionarem e defenderem
seus pontos de vista quando empenhados em atividades de leitura, interpretação e escrita. Para
as autoras (2007, p. 316), “o professor deveria estar preparado para lidar com o diferente,
duvidar da transparência da linguagem” e ensinando aos seus alunos que “a escrita está ligada
ao poder e, sendo assim, aqueles que a dominam, criam efeitos de sentidos desejados e
silenciam os sentidos que devem permanecer apagados”.

A nosso ver, tal postura docente contribuiria ainda para que os sujeitos-alunos
pudessem ocupar, no processo de leitura, aquilo que Pacífico (2002) denomina função-leitor
e, do mesmo modo, na atividade de escrita, a posição que Orlandi (1996b) nomeia, como
função-autor – sendo este último resultado de uma extensão à noção restrita, isto é,
relacionada à autoria original, que Foucault (1983) dá ao mesmo conceito.

A primeira delas corresponde a uma leitura sócio-histórica, que questiona os sentidos


naturalizados e sedimentados, sendo que quando, ao contrário, o sujeito se coloca a repetir tais
sentidos legitimados e esta posição não é assumida, dizemos que ele ocupa aquilo que
Pacífico (2002) nomeia fôrma-leitor: um lugar de repetição formal dos sentidos.

A função-autor, por sua vez, relaciona-se com a capacidade do sujeito produzir um


texto coerente, com progressão e sem contradição, competência esta muito difícil de ser
24

construída dado que, conforme concebemos, não há uma relação direta entre linguagem,
pensamento e mundo. Sob o referencial que nos inspira, posicionar-se como autor passa ainda
pela responsabilidade do sujeito “assumir um papel social na relação com a linguagem,
inserir-se na cultura e posicionar-se no contexto histórico-social”, de modo que podemos
afirmar, com convicção, que um trabalho pedagógico pautado discurso polêmico se constitui
como o verdadeiro local para que assunção da autoria possa acontecer.

Tendo em vista os objetivos a que este trabalho se propõe, torna-se fundamental ainda
fazermos relação entre eles e o que falamos nesse momento. Pensamos que da mesma forma
que o discurso polêmico – que é caracterizado pela polissemia, pela disputa do objeto
discursivo, pela possibilidade de assunção de sentidos outros, ou seja, pela criatividade – se
estabelece como o espaço por excelência para a assunção a autoria, ele também se constituirá
como tal em relação à emergência da subjetividade: a nosso ver, a subjetividade emerge
quando o sujeito tiver o espaço para poder se posicionar em relação a um objeto discursivo,
sustentando seu ponto de vista, ou ainda, defendendo os sentidos com os quais ele se
identifica, que ele se demonstrará, colocar-se-á a falar de si, fazendo circular sentidos que
sejam a sua expressão e não uma mera repetição das vozes do professor ou do livro didático.
Sendo assim, fazemos aqui uma ponte entre o referencial que nos norteia, os objetivos que nos
propomos e a metodologia escolhida para a consecução desta pesquisa.

2.4. Subjetividade e identidade: sobre os conceitos que integram nossos


objetivos

Para falarmos dos conceitos de subjetividade e de identidade faz-se necessário


retomarmos o próprio conceito de sujeito em que a Análise do Discurso se sustenta, o qual é
concebido como uma posição discursiva marcada pela heterogeneidade e pela polifonia,
sendo, pois, interpelado pela ideologia, isto é, sendo sócio-historicamente constituído e
atravessado por distintas formações discursivas, as quais se constituem pelos sentidos
plausíveis ao contexto no qual esse sujeito se insere. Por ser então constituído pela
heterogeneidade, sua autonomia é uma ilusão, já que ele não é dono incondicional daquilo que
diz, mas se insere na língua por meio de ilusões que Pêcheux aponta, sendo que, na verdade, o
controle sobre os efeitos de sentido de seu discurso lhe esquiva, uma vez que os sentidos são
sempre do outro: seu dizer é perpassado pelo já-dito, pelos sentidos Outro, do contexto social
25

e histórico do qual o sujeito fala. Ainda que tente dissimular tal heterogeneidade que lhe é
constitutiva, o sujeito é capturado pelo inconsciente e impossibilitado de controlá-lo, de modo
que também não é capaz de se reconhecer e de reconhecer o outro que lhe constitui.

É preciso lembrar que partimos do pressuposto de que o sujeito se constitui pela e na


linguagem: é ela que o torna barrado, ser social; trata-se do sujeito psicanalítico: fraturado,
cindido, dividido, que transita num espaço em que as fronteiras entre o consciente e o
inconsciente são tênues e movediças, em que a possibilidade de (auto)controle esbarra a
todo momento com sua impossibilidade (CORACINI, 2007, p. 135).

Pensamos, pois, tomando parte da psicanálise, em um sujeito “neurótico”, que se


constitui conforme “os padrões sociais de normalidade”: “é o sujeito desejante, o sujeito
castrado, incompleto, a quem algo falta e que, por isso mesmo, busca preencher essa falta,
esse furo – no outro, com o outro, para o outro, através do outro – sem jamais conseguir”,
sendo que tal desejo insatisfeito é o que nos singulariza, já que ele é sempre distinto em cada
um (CORACINI, 2007, p. 135). É a presença do outro, portanto, que vai instituindo a
identidade do sujeito, que a caracteriza como heterogênea.

é pelo e no olhar do outro que me vejo como um, outro que eu internalizo como sendo o
“eu”, outro que me constitui como sujeito da linguagem, pelo discurso que diz o que e
quem sou, como e porque sou. É na medida em que assumo esse dizer, que a ele me
submeto (inconscientemente), que dele me aproprio, digerindo-o, tornando-o “carne”, que
me torno sujeito (CORACINI, 2007, p. 143).

Ao ouvimos falar a respeito do termo identidade ou da subjetividade é muito comum


nos vir à mente a busca de um sentido único, de algo uno e distinto, que possa, por exemplo,
definir traços característicos de um grupo ou indivíduo, como aquilo que o(s) diferencia dos
outros. Entretanto, a partir da concepção na qual nos sustentamos, é preciso entender tais
conceitos

não como resultado da plenitude ou da completude ilusória de um sujeito indiviso, mas de


uma “falta”: falta de inteireza que procuramos preencher (sem jamais conseguir), a partir de
nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser visto por outros: sei
quem sou em relação com o outro que eu não posso ser. Aliás, do desejo do outro é a
expressão do desejo de completude que nos habita e se manifesta na busca da verdade, do
controle de si e dos outros (CORACINI, 2003a, p. 243).

Um sujeito que se funda como múltiplo, constituindo-se por “crenças que fazem parte
do imaginário e da realidade da sociedade” (GHIRALDELO, 2003, p. 67), “pouco afeito ao
controle de si e do outro, já que é habitado por outros” e que manifesta seu inconsciente via
simbólico, por meio da linguagem, materializando-se na língua (CORACINI, 2003b, p. 150).
26

Um sujeito cuja identidade se erige a partir das representações sociais que se situam, que se
colocam nos discursos, que se edifica a partir de sentidos outros, isto é, dos outros e do Outro:
são estas ideias que nos guiam.

Desse modo, ao falarmos de identidade, nosso leitor deve compreender que esse
conceito relaciona-se aos sentidos com os quais os sujeitos se identificam – ou ainda
desidentifica, contra-identifica, trazendo a terminologia de Pêcheux (2009). Ao enunciar
determinados sentidos em seu dizer, o sujeito se inscreve em determinada formação
discursiva, passando a falar de um lugar que aprova aqueles sentidos, ou ainda, quando o
sujeito se posiciona contrariamente, se desidentificando com o dizer que expõe, passando a
enunciar de um lugar contrário àquele dizer, mas que nem por isso deixa de estar perpassados
pelos sentidos do que pode e deve ser dito naquele determinado contexto sócio-histórico, isto
é, pelas formações discursivas que lhe constituem.

A subjetividade, por sua vez, completamente imbricada ao que expomos sobre a


identidade, corresponde a uma inscrição do sujeito, isto é, ele passa a falar de si, de seus
desejos, de suas vontades. Partindo da ideia, que até aqui explicitamos, de que a imagem que
o sujeito faz de si, que os desejos que ele toma, inconscientemente, como seus, são resultados
da sua relação com o Outro, com sentidos da realidade que lhe é circundante, podemos
afirmar que, da mesma forma que o conceito de identidade, a ideia de subjetividade implica
uma identificação do sujeito com sentidos outros, isto é, que ao mesmo tempo lhe são alheios,
por pertencerem ao interdiscurso, também lhe são constitutivos.

Resta-nos falar das implicações dos conceitos, aqui apresentados, para a nossa
pesquisa. É por conta de tal concepção de um sujeito que para ter existência objetiva precisa
assujeitar-se, isto é, ser interpelado pela ideologia no processo de constituição de seu dizer e
que, por isso, carrega marcas do contexto sócio-histórico no qual ele está inserido, que, em
nosso processo de investigação das marcas de subjetividade produzidas pelos sujeitos-alunos
selecionados, interessar-nos-ão não apenas aquelas marcas explícitas em que o sujeito,
declaradamente, coloca-se a falar de si, usando pronomes pessoais (eu, me mim; nós, nos) ou
possessivos (meu, minha, nosso, nossa), nomeando-se e inserindo-se no decorrer de seu
discurso, mas queremos ainda conhecer os sentidos de família evocados por esses sujeitos,
pois a sua identificação ou des-identificação, contra-indicação com determinada formação
discursiva, isto é, com aquilo que pode e deve ser dito no contexto sócio-histórico no qual ele
se insere, dão-nos indicativos de sua constituição enquanto sujeito de seu dizer, de sua
subjetividade: um sujeito, como já dissemos e reiteramos, perpassado por sentidos outros.
27

3. Metodologia

3.1. Sobre a constituição do corpus: a respeito das condições de produção

O material que nos propomos a analisar neste trabalho teve sua origem num dos
grupos de estudo e pesquisa no qual estamos engajados e que faz uso dos referenciais teóricos
da Análise do Discurso. Formado por professores da educação básica, estudantes do curso de
pedagogia e docentes desta universidade, o grupo se propõe a investigar o ensino da língua
portuguesa sob um enfoque teórico-metodológico, ou, melhor dizendo, com vistas a contribuir
para o trabalho pedagógico dos membros que o compõem.

Foi num desses encontros que definimos, junto a uma das professoras do grupo, a
metodologia de nossa coleta de dados para a investigação da escrita de sujeitos-alunos do
ensino fundamental. Tendo já definido, orientadora e orientanda, em momento anterior, a
temática família como aquela que poderia melhor nos dar indícios sobre a subjetividade de
tais sujeitos-alunos, dado ser um tema com o qual todos nós, inevitavelmente, produzimos
sentidos, e tendo ainda selecionado, juntas, textos literários que pudessem dar subsídio à
reflexão e escrita dos alunos, solicitamos a esta professora que nos ajudasse com a coleta do
corpus, já que suas salas de aula eram constituídas pela faixa etária com a qual pretendíamos
trabalhar, isto é, crianças entre 9 e 11 anos, que estivessem no 4º ou 5º ano do ensino
fundamental. E sua resposta foi positiva.

Explicitar tais condições de produção se faz necessário pelo fato de que, dado o
engajamento desta professora com o mesmo referencial teórico no qual nos baseamos,
pensamos que o seu trabalho com a linguagem, em sala de aula, é desenvolvido tendo o
discurso polêmico sustentando sua metodologia: um trabalho de leitura e de escrita que busca,
para além de informar e levar os alunos a repetir determinados conteúdos, preza pela
discussão, pela disputa do objeto discursivo e pela possibilidade de seus alunos se inserirem
na constituição de seu dizer, constituindo-se como verdadeiros autores.

Voltemos ao nosso corpus: nosso material para análise é, pois, constituído por três
distintos momentos de escrita de duas turmas, uma do 5º ano, pertencente à rede pública
municipal de ensino, de Ribeirão Preto-SP, e outra, de 4º ano, pertencente à rede de escola da
indústria, considerada particular, também na cidade de Ribeirão Preto. O primeiro deles partiu
de uma discussão da professora com ambas as turmas sobre a temática família: após uma
28

conversa sobre o tema, ela pediu, então, para que as crianças escrevessem um texto cujo tema
fosse família – hipótese de trabalho de escrita essa que nós, orientadora e orientanda, não
havíamos pensado. Já o segundo e o terceiro, versaram sobre a leitura e análise de textos, por
nós selecionados, antes da produção das crianças: primeiro ouviram, leram e analisaram a
música “Família”, do grupo Titãs e, em outro dia, produziram a sua escrita tomando como
base o poema “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade1.

O nosso objetivo, nesses dois últimos momentos, era de que, pelo contato com os
textos que abordavam diferentes sentidos de família, os sujeitos-alunos pudessem estabelecer
um diálogo com seus próprios sentidos sobre o tema, funcionando os textos, então, como um
arquivo (PÊCHEUX, 1997), na intenção de favorecer a emergência de sentidos outros, a
identificação dos sujeitos, a manifestação da subjetividade.

Além disso, precisamos falar sobre as formações imaginárias que integram o nosso
corpus, isto é, a respeito das “regras de projeção”, da ideia de interlocutor que estas crianças
tiveram na elaboração de seus textos: além, é claro, de ter subjacente a ideia de uma escrita
que passaria pelos olhares da professora, o que em muito direciona esses dizeres. Desde o
início, essas crianças sabiam que suas produções seriam objeto de análise de pesquisadores e,
a nosso ver, é mais que necessário explicitar esta característica do contexto de produção das
redações que analisaremos.

Com as redações em mãos, o processo seguinte foi o de leitura e análise dos textos
buscando identificar os objetivos de nosso trabalho, tudo isso é, claro, imbricado a estudos e
leituras que realizamos em momentos individuais e, também, numa disciplina junto ao
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da FFCLRP-USP, denominada “Argumentação e
autoria: investigações sobre a aquisição da linguagem escrita”, ministrada pela orientadora
deste trabalho, a Prof.ª Dra. Soraya Maria Romano Pacífico, da qual a orientanda desta
pesquisa participou como ouvinte.

3.2. A postura do analista e a ideia de recorte

(...) para que o analista do discurso possa realizar sua análise, é necessário que ele também
ocupe diversos lugares, investigando o dado, não como um fato acessível e observável, mas

1
A música e a poesia utilizadas podem ser visualizadas entre os anexos deste trabalho, sendo, respectivamente,
ANEXO A e ANEXO B.
29

sim, como a possibilidade do vir a ser, do sentido que está para ser construído (Pacífico,
2002, p. 65).

Silva-Rodrigues e Pacífico (2007), ao se empenharem, como nós, em um processo de


análise de produções textuais infantis, apontam algumas considerações importantes acerca da
postura do analista do discurso, das quais partilhamos. As autoras afirmam que o analista não
pode “partir do texto como objeto de análise puro”, isto porque a concepção de língua e
sujeito perpassados pela história, na qual a Análise do Discurso se sustenta, traz consigo a
ideia de que a gênese de um texto é muito anterior à sua construção, de que o texto “é apenas
a materialidade discurso”, sobre a qual o analista se debruça a fim de interpretar “os processos
de produção dos sentidos e de constituição dos sujeitos em suas posições”. Nesse mesma
direção, elas ainda completam que “o texto não é definido pela extensão e, sim, pela unidade
de sentido” (p. 59-60).

Afirmamos então, nesse mesmo sentido, que ao analisar as produções textuais que
formam o nosso corpus, estaremos em busca, de indícios, modo pelo qual o homem sempre
analisa, e que, em nosso caso, podem ser compreendidos através de marcas discursivas: pistas,
marcas que o analista precisa capturar a fim entender os sentidos enunciados pelos sujeitos.
Nas palavras de Orlandi (2005a, p. 30):

Os dizeres não são, como dissemos, apenas mensagens a serem decodificadas. São efeitos
de sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma forma
presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem de
apreender. São pistas que ele aprende a seguir para compreender os sentidos aí produzidos,
pondo em relação o dizer com sua exterioridade, suas condições de produção. Esses
sentidos têm a ver com o que é dito ali, mas também em outros lugares, assim como o que
não é dito, e com o que poderia ser dito e não foi.

Esclarecendo, pois, que, em nosso trabalho, o nosso empenho se direcionará a


compreender os sentidos produzidos pelos sujeitos-alunos acerca do assunto família e a
relação do mesmo com a emergência da subjetividade, com os quais teremos contato,
portanto, meios das marcas linguísticas do texto, resta-nos ainda explicitar a ideia de recorte:
tal noção, que nos guiou durante a metodologia antes descrita, se relaciona fundamentalmente
com o conceito de marcas discursivas que falamos, visto que serão tais marcas, tais vestígios
do sujeito em seu dizer que pretendemos, por meio do recorte, apresentar ao leitor.

A ideia de recorte, segundo Orlandi (mais uma vez), dever ser compreendida como
“uma unidade discursiva”, como um “fragmento correlacionado de linguagem – e situação”,
de modo que “o texto é o todo que organiza os recortes”, tendo, pois, “compromisso com as
30

tais condições de produção, com a situação discursiva”. Além disso, a noção de recorte deve
remeter “à noção de polissemia e não de informação” (1996a, p. 139-140).

São ainda precisas e essenciais aqui, a nós, as palavras de Pacífico (2002, p. 64)
quando diz que os recortes “não devem ser compreendidos enquanto estrutura linear, mas sim,
como pedaços, “nacos” do discurso, onde estarão materializados linguisticamente os indícios
de um modo de funcionamento”.

Passemos, pois, para a apresentação e análise dos textos, sendo que o próximo
capítulo será dividido em seções, tendo em vista esses três momentos de produção, analisando
o conteúdo essencial de cada um deles para, nas considerações finais, correlacioná-los e trazer
à tona aspectos conclusivos, que retomem os objetivos deste trabalho.
31

4. Apresentação e análise dos dados

4.1. “Para início de conversa”: uma reflexão sobre os sujeitos e os sentidos das
redações iniciais

Nessa primeira parte do nosso capítulo de apresentação e análise dos dados nos
empenharemos em pensar, em refletir acerca dos sentidos enunciados pelos sujeitos-alunos
desta pesquisa e a sua inscrição subjetiva no dizer, na primeira produção por eles realizada.

Faz-se necessário explicitar ao leitor que nossas análises tomaram principalmente esta
primeira produção das crianças como seu objeto, e que isto se carece pela heterogeneidade
que lhe constitui, isto é, por seu caráter mais polissêmico com relação às outras duas
produções, as quais foram marcadas basicamente por um movimento de repetição ou
comparação do sujeito entre o seu dizer e o discurso do texto que tomavam como base, de
modo que os sentidos por eles evocados se inscreveram basicamente num mesmo lugar,
conforme retomaremos na segunda parte deste capítulo, em que nos dedicaremos na análise
dessas duas produções2.

4.1.1. “Toda família”, “minha família” ou ambas? O discurso polêmico e a


subjetividade

Antes das análises, apresentaremos a fala da professora que coletou os dados para nós,
a fim de que o leitor possa compreender a partir de qual enunciado os sujeitos iniciaram sua
escrita, e também, pela fala da professora, o leitor poderá interpretar indícios do discurso
polêmico que sustentou a conversa inicial da professora com seus alunos. Vejamos:

Professora: “Na primeira produção eu iniciei a conversa sobre o que eles entendiam como
família, batemos um papo e acabaram relatando fatos comuns de que família era tudo
igual, portanto dei a sugestão da primeira frase: "Toda família é assim", e pedi que
escrevessem como é sua família e as demais que eles conhecem. Alguns alunos pediram
para mudar a frase inicial, pois o texto ficaria sem sentido, ficaria incoerente. Deixei livre
para mudar. O objetivo da frase não foi formatar a ideia de família e sim, causar conflito;

2
Todas as redações produzidas pelos alunos, aqui analisadas diretamente ou não, encontram-se disponíveis entre
os anexos deste trabalho para a apreciação do leitor. Seguindo a ordem em que foram produzidas, elas se
organizam da seguinte forma: redação inicial (ANEXO C), redação com base na música “Família” do grupo
Titãs (ANEXO D) e redação com base no poema “Infância” de Carlos Drummond de Andrade (ANEXO E).
32

oralmente vi que eles perceberam que apesar de tantas semelhanças, cada família tem suas
especificidades”.

Com estas palavras da professora, o leitor pode, ainda, entender as marcas que
perpassam esta primeira parte do nosso corpus, isto é, concordará conosco que há traços das
produções que analisaremos advindos desse momento de discussão e, da mesma forma,
incitados pela heterogeneidade da temática e da própria proposta de redação, heterogeneidade
esta percebida, como vemos, pelos próprios alunos.

É nesse sentido que podemos afirmar, tomando como base os recortes que agora
trazemos, os quais nos dão um indicativo da maioria destas redações iniciais, que tal
“conflito”, bastante estimulado pela discussão e, especialmente, pela sugestão da professora,
estabeleceu-se no momento da escrita: os textos produzidos por tais sujeitos-alunos estiveram
calcados numa “crise” em que, pelo que se percebe, eles buscavam compreender os pontos em
comum ou de distinção entre as famílias que conheciam para poderem sustentar o seu dizer.
Observemos:

Recorte 1:

“A minha família é assim


Toda família é assim:
Todo mundo que eu conheso sempre tem um irmão mais
velho e mais novo na minha ocasião eu tenho trez irmão mais novo
mais novo mais agora só tenho um dois morreu [...]”.

Recorte 2:

“A minha família
Toda família é assim: como a minha talvez, como a
minha mãe que gosta de se vestir como uma dama se arruma todo
bonito só para ir no centro [...]”.

Recorte 3:

“As família não em igul


Toda família é assim:
bonita.
33

Legal deferente e quase todas as família uzão troga mas algumas


nao usão não não mas lingue da minha família usa [...]”.

Recorte 4:

“minha familia
Toda família é assim: inteligente amigavel junta ETC
bondosa Toda famili gosta di ir em um lugar: na praia, clube, festa,
churrascos ETC meu pai gosta de: ir churracos de amigos e ETC
minha mãe gosta de ir no rodeio que tem todo ano em guatarapa ETC"

Recorte 5:

“minha familia
Toda familia é assim:
mães e diferente de todas as mãe e
e us pai e difente de todas os pai e
o vô e de ferente do todos os vó e
a vovó de ferente de todos os vovó e
o tiu e diferente de todo os tiu e
a tia e diferente de todo os tia e
a madrinha e diferente de todo as madrinha
todo mudo e diferete e você e da sua
faminha e diferente de voce"

Os recortes3 selecionados demonstram como esse conflito entre as semelhanças e


diferenças do que denominamos família permeou a escrita desses sujeitos-alunos, o que pode
ser percebido, nos recortes 1, 2, 3 e 4, pela tentativa dos sujeitos de compararem sua família
com as demais que eles conhecem. Analisemos.

3
Explicamos que em alguns momentos de nosso trabalho de análise, como é o caso deste, o título das redações
nos interessa como parte daqueles sentidos e movimentos do sujeito que pretendemos analisar. Por isso, quando
trouxermos um recorte em que o título tenha esse papel, isto é, quando o próprio título fizer parte do recorte, nós
o faremos com a formatação que o leitor pôde agora observar, isto é, com o título centralizado, seguido do
restante do recorte. Entretanto, mais adiante, neste trabalho, quando nos utilizarmos apenas de recortes pequenos
discursos para sustentar a nossa análise, nos quais não houver relação direta com o título da redação do sujeito-
aluno, faremos a referência ao recorte diretamente e, em parênteses, traremos o título da respectiva redação, para
que o leitor do trabalho, se assim desejar, possa dirigir-se ao texto integral, entre os anexos deste trabalho.
34

No recorte 2 o sujeito inicia seu texto dando-lhe um título que sugere um grande
recorte em sua fala, isto é, parece que ele se colocará a falar apenas “de sua família”,
entretanto, ele introduz a chamada que a professora havia sugerido e traz o debate da
polissemia que a temática envolve ao utilizar a palavra “talvez” para designar a proximidade
entre “toda família” e a sua própria família que ele passa a descrever.

Já o sujeito do recorte 3, de modo contrário, dá ao seu texto o título “as famílias não
são iguais”, o qual indica que uma diversidade acompanhará o seu dizer. Trazendo a frase
“toda família é assim”, ele parece tomar outro rumo discursivo, enumerando algumas
qualidades que poderiam ser comuns a todas as famílias: “bonita”, “legal”; contudo, a
sequência do recorte demonstra que isso é quebrado, visto que a palavra “diferente” surge,
inaugurando um novo sentido que, de certa forma, contradiz os pontos comuns antes
enunciados, já que o sujeito-aluno demonstra-se, a partir daí, numa angústia – sentimento esse
passado pela palavra “não” que é repetida várias vezes – para diferenciar sua família
“daquelas que usam drogas”.

No primeiro e no quarto recorte que trazemos, de forma semelhante, os sentidos


tecidos pelo sujeito transitam entre o “toda” e o “minha”: título e chamada se contrapõem,
enquanto o restante dos recortes caminha de formas distintas. No recorte 1, reforçando este
conflito entre o “toda” e o “minha” , o sujeito se coloca a comparar, e com isso, diferencia sua
própria família daquelas que ele conhece, já que “todos têm irmãos mais velhos e ele não”; de
forma contrária, no recorte 4 o sujeito transita, passa do “toda” para o “minha”, sem
contrapor, mas reforçando os sentidos que ele atribui para todas as famílias ao falar de sua
própria, uma vez que “toda família gosta de ir em um lugar” e, por isso, se faz necessário falar
dos locais de passeio que seu pai e/ou sua mãe vão.

Em especial naquele recorte que ainda não mencionamos, de número 5, – que


corresponde ao texto integral do aluno – esse lugar de “tumulto” no qual os dizeres dos
sujeitos-alunos se colocaram, isto é, a tensão constitutiva do corpus é mais que revelada:
parece-nos que o sujeito intitula seu texto de forma a tentar elaborar seu dizer a partir do
ponto de vista da sua própria família, mas ao mesmo tempo se confronta com a conversa antes
realizada, da qual a turma saiu convicta de que “toda família é igual”, e ainda com a proposta
da professora que, como bem sabemos, apesar da flexibilidade que esta proporcionou à escrita
das crianças, ela é uma figura que funciona como voz de autoridade, que direciona o olhar e a
escrita do sujeito-aluno. Assim, sem conseguir encontrar os “pontos de encontro”, as
semelhanças entre “sua família” e todas as outras famílias que conhece, o sujeito-aluno se
35

coloca a ressaltar as diferenças, diferenças estas que veem modificar o sentido da frase inicial
de seu texto, atribuindo à palavra “toda” um sentido peculiar, já que podemos concluir a partir
de seu texto que “toda família é diferente de toda família”.

Aqui se faz necessário discutirmos um de nossos objetivos, qual seja nossa pretensão
em analisar se o funcionamento discursivo presente no contexto escolar do qual esse sujeito-
alunos enunciam se funda, ou não, como um facilitador para a emergência da subjetividade.

Tais sujeitos-alunos, como já dissemos ao analisar o recorte 5, saíram convencidos, da


conversa que tiveram com a professora, de que “todas as famílias são iguais”, o que fez com
que a professora sugerisse a frase “toda família é assim” para o início das redações. Contudo,
a fala dela, logo na sequência em que insere a chamada, retoma a polissemia que a temática
envolve, pois, ao pedir que seus alunos falem “como é sua família e as demais que eles
conhecem”, ela faz com que tais sujeitos, pelo que demonstram os recortes, se coloquem a
pensar também nas diferenças que o assunto envolve, já que ela poderia simplesmente ter
proposto que eles falassem “da família” que eles tinham conversado, a qual não poderia
separar o “toda” e o “minha”, “a sua” e “as demais”, pois se calcava numa homogeneidade.

É aí, então, que o conflito do qual vínhamos falando se funda e que tais sujeitos-alunos
são impelidos a falarem da sua própria família, de sentidos outros sobre a temática. Pensamos
que isso se deve ao discurso polêmico no qual a postura da professora se sustentou, pois ela
poderia ter simplesmente introduzido a chamada e nada mais, ter “cobrado” – como muitas
experiências de estágios curriculares nos mostraram tal postura docente – aqueles mesmos
sentidos da discussão, sentidos esses unos, conformados e, provavelmente, dominantes sobre
a temática, isto é, ter feito com que seus alunos repetissem sentidos cristalizados, utilizando-
se do discurso autoritário que, necessariamente, não abre espaço para o sujeito se dizer: e é
exatamente o contrário que observamos.

Aqui já nos será possível também inferir algumas considerações importantes a respeito
da possibilidade (ou seria necessidade?) dos sujeitos falarem de si, isto é, sobre o conceito de
subjetividade que pretendemos investigar. Para visualizarmos então um pouco mais esse falar
de si, de sua família, dos sentidos com os quais o sujeito se identifica, que esta proposta
marcada pelo discurso polêmico proporcionou, traremos agora mais algumas redações ou
recortes. Neles perceberemos o mesmo movimento que até agora mostramos, isso é, um
sujeito que tenta falar desses dois lugares propostos pela professora, qual seja o da sua família
36

e da família do outro (ou seria do Outro?), mas que, contudo, é de si mesmo que fala desde
que começa a estruturar o seu dizer.

Recorte 6:

“Você acha a tua família chata?


U nas famílias são assim:
Algumas são chatas outras são legais
Você acha a tua família chata ou lega?
Eu acho a minha família legal eu amo a minha família mais as
vezes as coisas mudão assim: acaba uns afalecendo igual hoje hoje o
tio da minha amiga Aline morreu e o meu pai também morreu mais
não importa[...]”

Quando iniciamos a leitura do texto deste sujeito nos deparamos com um discurso que
pretende diferenciar, distinguir umas famílias das outras, para isto tomando como base os
adjetivos (opostos, por sinal) “chata e legal”, ou melhor dizendo, “chata ou legal”. Somos
levados a pensar, num primeiro momento, que é possível diferenciarmos então as famílias,
dividindo-as a partir de dois contrários sentidos e, mais que isso, que a família do sujeito-
aluno em questão faz parte daquelas denominadas como “legais” (“eu acho a minha família
legal, eu amo a minha família”). Entretanto, a metade deste parágrafo de seu texto vem
modificar substancialmente o que ele dizia: quando ao terminar de dizer que considera sua
família legal, insere um “mais” (o qual significa neste caso como um “mas”), o sujeito quebra,
rompe com a formação discursiva de família legal na qual a sua própria família se sustentava,
abrindo, com esta conjunção adversativa, a possibilidade do outro, isto é, de sua família
poder, ao mesmo tempo, ser chata também, isto porque “a morte” de um pai, ou de outro
membro da família, como o tio da amiga, faz com que as “coisas”, que eram “legais”, se
“modifiquem”.

A partir de tal análise podemos concluir, portanto, que é de si, de sua família que o
sujeito fala desde o início, isto porque seu título para a redação trará, nesse momento, um
outro sentido: não apenas aquele de que devemos sempre esquecer das coisas tristes e chatas e
pensar apenas nas alegres e legais, silêncio esse que o trecho “mais não importa”, ao final do
recorte, traz consigo, mas esse título “você acha a tua família chata?” parece uma reflexão do
sujeito sobre sua própria família, querendo, pelo que nos parece, dizer ao seu leitor que pense
37

bem antes de responder tal pergunta, pois talvez sua família não seja tão chata como o
sentimento que a morte do pai causou à família dela. E ainda: é quebrada aquela distinção que
o sujeito trazia ao inicio de seu texto, pois, diferente da separação, da distinção que a frase
“você acha sua família chata ou legal?” quer fundar, o sujeito responde no decorrer de seu
texto, sem perceber, inconscientemente, que é possível que uma família seja as duas coisas ao
mesmo tempo, como a dele é.

Recorte 7:

“minha familia
Toda família é assim: briga, sia ama mas tudo tudo e tão comum
só tem briga e amor como posso dizer a mãe sepre ama o fihos (a) e
alguns pais nunca estão pressente.
Mas o legal é o amor de pai ou mãe e como um belo trabalho em
equipe tudo da certo tudo é tão lindo.
Eu e minha mãe é tão lindo como eu amo ela de um a 10 eu dou
1000 e é o mesmo comigo eu sou 10.000 pra ela”

De maneira muito semelhante ao recorte 6, o sujeito que agora analisamos, tentando


falar sobre, diferenciar, ou ainda aproximar o “minha” com o “toda”, coloca-se a falar de si, a
mostrar seus sentidos, sua família, sua identificação subjetiva com o dizer, desde o início. Nos
dois primeiros parágrafos de seu texto, – o qual está totalmente acima transcrito – numa
primeira leitura, somos levados a pensar que ele fala toda e qualquer família e, em termos de
coerência e coesão, isto é, em termos de definição da autoria, poderíamos dizer o último
parágrafo de seu texto não possui ligação alguma com o que ele dizia até então, já que fala de
toda família e, como que num corte, numa ruptura, inaugura um parágrafo sobre si e sua mãe.

No entanto, devemos retomar os sentidos que são evocados e, a nosso ver, reiterados
pelo sujeito em seu texto. Parece sim que esse sujeito tenta falar de um modelo de família, no
qual a mãe ama os filhos e os pais, em seu ponto de vista, nem tanto, por não estarem ou não
poderem estar “presentes” (ou seria por não “pressentirem”, brincando com sua falha, que os
filhos os querem por perto?), por estarem relacionados com o sentido de “briga”. Tal dizer do
alunos nos remete, portanto, a uma formação discursiva de famílias cujos pais são separados
ou vivem em conflito e que, na sociedade que vivemos, poderia ser atribuído a pelo menos
uma parcela de “todas” as famílias.
38

Entretanto, o seu último parágrafo, ao contrário do que se poderia imaginar, vai


correlacionar esses sentidos abraçados pelo sujeito com a ideia de sua própria família: quando
retoma “tudo que é lindo” no “trabalho em equipe” pelo qual toda família se constitui, este
sujeito trata apenas de si e de sua mãe, dando nota “1000” para ela e recebendo da mesma a
nota “10.000”, sem se referir a uma figura de pai que, até então, vinha sendo discursivizada
exatamente como ausente; é aí que os sentidos de mãe que ama, que dá amor, e de pai que
está não está presente, como sinônimo de briga, que ele “tentava construir” e parecia
universalizar no primeiro parágrafo, são retomados. Do mesmo modo, quando, no segundo
parágrafo de seu texto, o sujeito-aluno diz ser legal “amor de pai ou de mãe”, esses sentidos
de separação e da possibilidade de apenas um dos dois corresponderem ao sentido de amor
são retomados: ele poderia ter escrito que o amor de pai “e” de mãe é legal, mas não. Para
nós, a escolha do conectivo “ou”, no lugar de “e”, cria o efeito de sentido de incerteza, o que
nos leva a pensar que só um dos dois, pai ou mãe, – e pelo que é exposto no último parágrafo,
a mãe – que lhe dá amor.

Tais características da redação analisada, assim como no recorte antes exposto, e, do


mesmo modo, quando na maioria daqueles primeiros recortes os sujeitos se colocavam num
conflito para distinguir os seus sentidos de família em meio a tantos outros possíveis, que
podemos afirmar, juntamente com Coracini (2007, p. 136), que ao “falar/escrever, o sujeito
mais se diz do que diz, isto é, o sujeito se inscreve na escritura (investindo-se nela) como
traços visíveis em seu corpo”, de modo que esse falar do outro, do “toda”, nada mais significa
do que investir-se na narrativa, na descrição de si, daquilo que lhe pertence.

O que acabamos dizer tem em vista destituir a ideia de que só falo de mim quando me
inscrevo visivelmente, demonstrando isso ao meu leitor, o que acontece quando escrevemos
em primeira pessoa, por exemplo. Mais ainda: depõe a ideia de que escrever em terceira
pessoa garante maior objetividade ao dizer do sujeito, excluindo assim de seu texto marcas de
subjetividade (CORACINI, 1991). Relembramos, segundo a concepção de sujeito que nos
sustém, que tal discussão sobre um sujeito que fala de si enquanto fala do outro tem como
válida, ainda, o seu inverso: isto é, a ideia um sujeito que fala do outro quando se propõe a
falar daquilo que é seu – reflexão esta que retomaremos no próximo tópico deste trabalho,
onde buscaremos compreender os sentidos evocados por estes sujeitos-alunos sobre o tema
família, nesta primeira proposta de redação.

É interessante observarmos como foi difícil aos sujeitos-alunos, nesta produção,


sustentarem um dizer em cuja construção apenas uma pessoa discursiva se fizesse presente.
39

Na maioria das redações analisadas, como os recortes mencionados já demonstraram, o


sujeito transita entre o “toda” e o “minha”, entre o “ele” e o “eu” numa ânsia de diferenciar-se
sem conseguir se distinguir, indo da terceira pessoa para a primeira e, às vezes, retornando
àquela.

São muito válidas ainda, para as considerações sobre subjetividade que vimos tecendo,
algumas redações, das quais vale a pena trazermos alguns recortes para o leitor. Nelas, da
mesma forma, o “toda” e o “minha” aparece; entretanto, ao invés de se investir naquele
conflito do qual tratávamos, o sujeito faz uma escolha. Em outras palavras, são redações em
que o sujeito até inicia seu texto com aquela chamada “toda família é assim” sugerida pela
professora, mas que para ela (a chamada) nem ligam, optando – ou podendo escolher, como
pensamos – por uma alternativa mais que subjetiva, qual seja, escrever apenas sobre a
“minha”, a sua própria família, ou ainda, de si, de seu próprio dia.

Recorte 8:

“A FAMÍLIA
Toda família é assim: minha mãe ela não gosta de casa
bagunsada quando ta bagunsada ela manda arumar meu quato meu
quanto é cheio de boneca e barbe meu Pai ele tem um fiestra ele
trabalha muito ele é predero [...]”.

Recorte 9:

“Família legal
Toda família é assim:
Minha familia é engraçada legal palhaça minha mãe tão
dirvetida ela sacomigu brinca com migu eu amo minha mãe ela esta
nomeu coração”.

Recorte 10:

“A minha família
Toda família é assim:
Olá meu nome é Vitória vou contar meu dia dia de segunda eu
agordo cedo pra toma meu café da manhã que minha mãe já prepara
40

terça feira acordo muito tarde e minha mãe faz o almoço pra mim e
pro meu pai e me troco pra ir na escola [...]”

É claro que podemos supor que o inicio proposto pela professora se encontra aí por
conta mesmo da postura desta como voz de autoridade no que diz respeito à produção textual,
de modo que para que pudesse escrever abertamente sobre si, seu dia, aquilo que lhe constitui,
o sujeito precisasse se inscrever naquele outro dizer, “disfarçando”, “adequando-se” à
proposta. Todavia, não é isto que pensamos.

Embora a análise do discurso não trabalhe com a quantidade, aqui se faz necessário
explicitar alguns números sobre os “caminhos” que esta primeira redação apontou, isso
porque tal quantidade vem significar como um indício da subjetividade, da escolha que esses
sujeitos-alunos puderam fazer para falar daquilo que era seu, que lhe interessava.

Vejamos: a maior parte do corpus, como já dissemos, esteve perpassada por um


conflito que buscou, ao mesmo tempo, falar de si e do outro, o que corresponde, em números,
a vinte e sete (27) redações. Até aqui já concordamos que, mesmo ao tentar escrever sobre
“toda” família, estes sujeitos não deixaram de falar daquilo que é seu. No entanto, cinco (5)
redações destas vinte e sete (27), as quais acabamos de mencionar, não retomam, em nenhuma
parte de seu texto o “toda”, o que demonstra mais ainda a dificuldade dos sujeitos em falar de
todos sem passar por si, em destituir do seu dizer, aquilo que lhe é subjetivo.

Mas o dado mais significativo para nós ainda está por vir: outros dezessete (17)
sujeitos-alunos, em sua escrita, optaram por não utilizar aquele início sugerido pela
professora, de modo que a chamada, ou o sentido de “toda família é assim” não aparece em
sua redação – explicitamente, devemos dizer, já que apesar de estarem falando de si, como já
foi dito e reiteramos, os sujeitos evocam sentidos do Outro, sentidos sociais e históricos que
os constitui, o que, sem dúvida alguma, está ligado à concepção de sujeito cindido e
heterogêneo na qual nos baseamos.

Mas para nós, neste momento, este dado vem confirmar a hipótese que abraçávamos
de que o discurso polêmico no qual o trabalho da professora se sustenta é o espaço necessário
para que os sujeitos, mesmo influenciados pela posição de autoridade que ela ocupa, possam
escolher e falar de si quando quiserem, isto é, possam fazer emergir a sua subjetividade.
Confirmemos isso, então, nos recortes que seguem. Para um deles, inclusive, trazemos,
41

scaneada, a redação da criança, já que o sujeito faz um desenho, texto visual que confirma a
nossa análise a respeito da sua vontade (necessidade) de falar de sua própria família e de si.

Recorte 11:

“familia unida
Minha família é assim: carinhosa, meiga, presiosa e legal a
minha avó tem uma casa que é muito grande que mora oito pessoa
minha avó, meu vô minha tia, meu tio, eu, meus dois subrinhos e
minha mãe nós somos um familia unida sempre ajudando.
É isso que é a minha familia”.

Recorte 12:

“família
Minha família e assim: meu Papai é legal e Bom ele trabalha de
dia ele Meleva Eu e a minha irmã Para a escola e a minha Mamãe faiz
a Marmita do Meu Papai Mais depois o Meu Papai Vai trabalhar e a
Minha mamãe Vai Para a igreja horar quando da 10:00 hora ela vai
para a minha casa [...]”.

Recorte 13:

“MINHA FAMÍLIA É ASSIM


Legal
Divertido
Engraçada
Bonita
Bondosa
Inteligente
Nos passeamos direto isso é legal
Nos se divertimos muito saimdo comendo Lanche comendo
saugado e á té sorvete
42

As vezes eu e a mamãe vamos ao sirco é divertido


Quando eu vou ao cabeleireiro fico bem bonita
Ele são bondosos e saimos
Eles são inteligentes”.

Recorte 14:

“Minha Família
Minha família é assim:
Minha mãe é carinhosa, especial, gentil com
as pessoas, legal, trabalhadora, ela me leva no
dentista e no médico, ela me dá algumas coisa,
calma e brincalhão etc...
Meu pai é legal, bravo, brincalhão, especial,
carinhoso, me dá o que eu quero, me leva nos lugar,
trabalhador etc...
Eu sou filha única, sou chocolatra, eu sou
um pouco respondona, sou crack em rendibol, gosto
muito da minha família, da minha professora, avó e
meu avô e os meus tio e tia, e em primeiro lugar
DEUS e etc...”.

Para finalizarmos essa primeira discussão sobre as redações iniciais, resta-nos dizer
que, do total destes textos analisados, apenas seis (6) sujeitos, três (3) de cada turma,
coincidentemente, não fizeram referência direta a si e a sua família de forma direta, usando
pronomes pessoais ou possessivos. É preciso ainda explicar sobre o conteúdo de tais redações,
pois são exatamente essas redações que estão perpassadas pelo reforço ou pela crítica a um
sentido de família dominante, sentido este que não esteve ausente, como o leitor já pode ter
percebido pelos recortes que antes trouxemos, de todas as outras redações, e sobre os quais
nos deteremos no tópico seguinte de nossas análises.

4.1.2. Os sentidos sobre família envoltos em subjetividade: entre o legal e o


silenciado
43

Mais do que confirmar a nossa hipótese de que o discurso polêmico se constitui, da


mesma forma que para a assunção da autoria, como um espaço privilegiado para possibilitar a
emergência da subjetividade, notamos que o conflito que os sujeitos deixam marcado, em
nosso corpus, vem nos dar indício, ainda, que eles se inscrevem em uma formação discursiva
legitimada socialmente, isto é, o lugar sócio-histórico no qual estes sujeitos se inserem e a
partir do qual enunciam, e dos sentidos que este lugar torna possível.

Este vai-e-vem entre o discurso acerca de todas as famílias, das quais o sujeito podia
falar, e de sua própria, trouxe para o nosso material de análise a ideia de que há um conflito
inerente à própria temática. O que acontece, a nosso ver, é um movimento dos sujeitos no
sentido de compreender o tema, para o qual eles sustentavam um sentido homogêneo ao final
do debate com a professora, mas que, ao se colocarem diante da atividade de escrita, puderam
perceber que é pela heterogeneidade que ele se caracteriza.

Ao realizar a leitura desta parte do corpus, como um todo, deparamo-nos com a


repetição de determinadas marcas linguísticas e, como já dissemos, embora a Análise do
Discurso não trabalhe com a quantidade, tal repetição, tal quantidade é interpretada como um
indício de um funcionamento discursivo. Observamos que, os sujeitos, ao se movimentarem
entre ter que escrever sobre sua família e as demais famílias que eles conhecem, parecem se
ancorar num modelo – como o leitor já pode ter percebido em alguns recortes que trouxemos
anteriormente – bem definido de família, que se constitui por uma configuração familiar que a
sociedade, na qual vivemos, aprova: uma família “ideal”, marcada pela união, pelo amor, pela
diversão, pela compreensão e carinho, pelo ser sempre “legal”. Observemos alguns recortes.

Recorte 1:

“Toda família e assim Brincalhona, amorosa, e um ajudano uns


aos outros. tudo é muito legal
Meu irmão é Legal e chato e ele é um pouto atentado, minha
irmã é muito legal ela é pequenininha e tem costumi de cigura a orelha
Minha mãe é muito Legal ela e Bunita, cuzinheira, amiga e
companheira minha mãe eu amo, meu pai é tudo também [...]”. (Sem
título)

Recorte 2:
44

“A Familia legal
Toda familia é assim:
Legal feliz interessante não é chata. é super legar famílias
gostam muito de sair ir ao shopping ir a muitas coisas mais e gostas
muito de andar de carro.
Minha vó é uma pessoa legal e o meu vô é tamben muito legal e
o meu irmão e também legal minha mãe é a pessoa que eu nas gosto e
os meus tios”.

Recorte 3:

“Uma familia legal


● Minha família é assim: meu pai é divertido que
parece até uma criança
●Minha mãe já é um pouco mais seria mais mesmo
assim ela é legal
● Minha irmã Anna Júlia é super legal, divertida, e
tem algumas coisas que ela faz que até parece gente
grande.
● O meu irmão Davi não é muito legal e também
não é muito chato mais mesmo assim eu gosto dele
● Eu gosto muito da minha familia minha mãe é
carinhosa e por incrivel que pareça a minha
irmãzinha que tem apenas 2 anos também é
carinhosa.

Recorte 4:

“FAMÍLIA FELIZ
Toda família feliz e assim:
Amor de Pai
Amor de irmão
Amor de Mãe no coração...
45

Se você é feliz
Minha família é sempre assim
Dando amor pra você e pra mim... [...]”.

Recorte 5:

“A minha família é diverente ela danca bem, ela come bem ela
sé vente bem ela brinca bem faz tudo muito bem.
Eu tenho muitos tios e tias eu tenho dois vovó e um vô eu
também tenho um brino um imão e pais.
A minha é diventida e a sua eu não sei” (Minha Familia).

As produções, de forma geral, indicam, como o leitor pode observar por meio dos
recortes acima, um sujeito-aluno preocupado em definir as qualidades de sua família, em que
os pontos positivos dela – como retomaremos mais adiante – precisam sempre ser maiores e
superar os negativos: uma família unida, em que os pais dão amor e carinho aos filhos, em
que há brincadeira e diversão, em que tudo se demonstra como legal.

E aqui há algo que nos interessa, particularmente: a recorrência, que parece indicar
uma necessidade, desses sujeitos em denominar, em definir sua família como “legal”. Os
recortes 1, 2 e 3, demonstram muito bem isso que tentamos dizer, pois todos os membros da
família, coincidentemente (ou não!) são discursivizados pelos sujeitos como legais.

Interessante observar que no terceiro recorte, de título “Uma família legal”,


encontramos um sujeito que usa muito esse significante, constrói seu texto com o uso de
“legal”, já que tem uma mãe que, apesar de se mais séria que o pai, “é legal”, e uma irmã, do
mesmo sexo, que “é super legal”, enquanto o irmão, do sexo oposto, não o é. Além disso, ele
desenha o símbolo desta família, qual seja uma casa – como se pode observar na imagem ao
lado do recorte – e que enfatiza a importância da felicidade também por meio do desenho.

A recorrência da palavra “legal”, reiteramos, algum sentido está querendo indicar. O


leitor concordará conosco que esta é uma palavra utilizada no senso comum para definir que
as coisas estão agradáveis, que elas andam bem – o que faz a ponte entre os recortes de que já
falamos e o de número 5, no qual somos levados pelo autor a ter plena convicção de que na
família dele tudo vai muito “bem” – e, no caso de estar falando de uma família, o leitor
também concordará que, para que ela seja considerada “legal”, “boa”, na sociedade em que
46

vivemos, ela precisa ser “feliz”, precisa ter “um pai”, “uma mãe” e “irmão(s)”, mas que, para
além disso, devem “dar amor” para todos, “amor pra você e para mim”, como sugere o nosso
recorte 4.

E é exatamente aí, junto aos sentidos de uma família que tem pai, mãe e filhos que se
amam e divertem sempre, que encontramos o outro lado, o outro sentido que a palavra legal
toma em nosso corpus: parece que a família legal é uma família, na verdade, legalizada;
contudo, não legalizada pela lei, mas sim, pela sociedade, por um discurso social que tenta
abafar, silenciar as mazelas, as situações que estão fora de ordem. Indicam ainda que esses
sujeitos-alunos sabem qual modelo de família é valorizado, qual modelo de família é ideal
(legal) para a sociedade em que ele vive.

Vale a pena apreciarmos mais um recorte que confirma esse sentido de legal, pautado
naquilo que precisa seguir moldes e perdurar como intacto numa sociedade. Escolhendo como
gênero textual para sua escrita, a poesia, um dos sujeitos-alunos desta pesquisa escreve um
texto que toma como base os dias da semana. No decorrer de seu texto, chamado “Uma
família espetacular”, o sujeito parece ser dominado pela necessidade da rima e traz ao seu
texto um sentido de brincadeira. Sem mencionar membro nenhum de sua família, o sujeito
não faz nenhuma referência, ao longo do texto, aos sentidos que vimos até aqui falando. Mas
a conclusão de sua produção, entretanto, interessa-nos:

Recorte 6:

“Na quinta nós vamos sair para comer e meu pai gas 30R$
Na quarta nós vamos na fazenda e tiramos leite da vaca
Na terça nós jogamos um jogo que se chama Travessa
Na segunda nós fazemos uma bagunça!
Em tudo isto eu minha familia que é legal e tradicional
Hó, minha família é uma so!” (Uma familia espetacular)

Tal desfecho do texto vem confirmar o que dissemos a respeito da captura dessas
crianças, desses sujeitos-alunos pelos sentidos de família que vínhamos tecendo, pois, apesar
dos sentidos anteriormente trazidos pelo sujeito do recorte não fazerem correlação com a ideia
de família legal, com o modelo de família dominante, na conclusão de seu texto esta palavra,
este sentido aparece e, mais que isso, aparece correlacionado com a palavra tradicional, que
vem mesmo indicar que é a família deve ser algo clássico: que é algo habitual (com o sentido
47

de seguir um hábito) à sociedade em que ele vive uma família ter de ser “espetacular”. No
último verso, ainda, o sujeito faz referência a um verso de uma cantiga popular, uma cantiga
infantil e tradicional, isto é, que é/foi passada de geração em geração e que se mantém a
mesma, tal como o modelo de família, pelo que até aqui analisamos.

Queremos enfatizar que tudo que analisamos só se torna possível por estarmos
trabalhando com um funcionamento discursivo, ou seja, com o já dito, o que faz com que, por
exemplo, tal sentido da cantiga possa ser aqui retomado.

Construindo sentidos em direção oposta à da família ideal encontramos pistas de um


sujeito que reconhece a existência da separação e se posiciona a respeito dela: um sujeito que
não quer sua família separada, que não aceita a separação dos pais, ou da família, mesmo
quando esta já aconteceu, sentidos muito recorrentes em nosso corpus, como podemos
observar nos recortes abaixo:

Recorte 7:

“Tem família que é muito harmoniosa, tem familia que é muito


separada.
A minha familia é inseparavel graças a deus meu pai nunca se
separou da minha mãe (...)
A minha família é feita de muito amor, não a nada que faça ela
sentir dor por favor oussa o meu conselho fassa com que sua familia
seja harmoniosa também” (Familia Harmoniosa).

Recorte 8:

“Minha familia é assim:


Ela é muito simpatica legal tem um pouco de feito mas tem
gente, que nem tem pais mais eu tenho uma Uma familia compreta
[...]” (A Familia legal).

Recorte 9:

“Como é toda família


Toda família é assim: 90% unidas e 10% separações.
48

Eu vou te contar. É que a minha família é assim, era feliz só que


ai meu pai e minha mãe se separaram aí meu pai arrumou uma
namorada e minha mãe também. Á já ia me esquecendo meu pai é
cabeleireiro e minha mãe é tecnicade enfermagem e também meu pai
terminou com a namorada dele!
Eba!!!

Recorte 10:

“FAMILIA AMOR ♥
Toda familia é assim: tem mamãe papai irma e irmão eles se
ama tem familia que so é a mãe o filio não é. tanbem familia que é do
mesmo jeito que a minha pai separados minha familia e legal eu tenho
2 casas a do meu pai e da minha mãe. meu pai antes de ter eu tinha 5
ja mas ele separo e conseguiu a minha mãe eles namoro e teve eu ai o
meu pai ficou com 6. minha mãe ja tinha 2 meninos ela fico com 3
então quando eu fiquei um pou mas grande ele se separaro então eu
fiquei com a minha mãe mas a minha familia e muito legal.
A tenho certeza de que a su a familia e legal tanbem do mesmo
jeito que a minha é XAU!!!

Recorte 9 Recorte 10
49

Nos recortes 7 e 8, encontramos um sujeito preocupado com a questão da separação


de pais, pois ele tem acesso aos sentidos sobre separação que estão acontecendo na sociedade,
mas com a qual ele não concorda, já que “dá graças a Deus por seus pais nunca terem se
separado” ou se vangloria pelo fato de que apesar dos defeitos, a sua família possui a
qualidade mais importante que, ao lermos o recorte, concluímos que é “ser um família
completa”. O recorte 7, em especial, vem retomar aqueles sentidos de família legal, que
precisa estar sempre bem, em harmonia, que para ser feliz precisa ficar longe da “dor”: vemos
um sujeito tão capturado pela ideologia, que faz parecer evidente que para a família ser feliz
ela precisa ser unida, que faz um apelo, que pede “por favor”, para que todos “façam a sua
família ser harmoniosa como a dele”.

E é produzindo sentidos opostos aos produzidos pelos sujeitos acima que se encontra o
sujeito do recorte 9. Iniciando seu texto com dados estatísticos – poderíamos assim chamar
suas porcentagens sobre as famílias – este sujeito traz à tona o debate da separação. Se no
detivermos apenas aos seus dados inicias, isto é, que 90% das famílias são unidas enquanto
apenas 10% delas são separadas, poderíamos pensar que esse sujeito fala de todas as famílias
da sociedade em que ele vive, mas ao continuar a leitura de sua produção compreenderemos
que é de si, de sua família, que ele tenta falar. Com o enunciado “eu vou te contar”, uma
marca que nos remete ao discurso da oralidade, o sujeito parece se aproximar de seu leitor
para explicar suas estatísticas, querendo dizer-lhe “chega aqui que eu vou explicar por que
estou falando isso”.

É nesse momento que o sujeito sai do “toda família” e caminha em direção à sua
própria: ao dizer que sua família deixou de ser feliz por conta a separação de seus pais (“é que
a minha família é assim, era feliz só que ai meu pai e minha mãe se separaram”), ele inaugura
sentidos para aquelas porcentagens que trouxe no início de seu discurso, de modo que
podemos entender que estar entre os 90% unidos é sinônimo de ser feliz, enquanto os 10% de
separação, que é onde esse sujeito se insere, entre a minoria, não o é. Por ter, então, sua
família entre uma minoria que ele não aceita e que este sujeito expressa seu desejo, a sua
esperança de que seus pais retomem os laços, o que é reiterado pelo “Eba!!!” que ele
pronuncia após contar-nos que seu pai terminou o relacionamento com sua namorada; e não é
qualquer comemoração não: como se pode ver pela imagem acima, é um “Eba” em letras
muito maiores que seu texto e ainda seguido de três pontos de exclamação! Concluímos que,
como seu dizer gira em torno apenas desse sentido negativo da separação, sentido esse muito
importante para si, de modo que ele até “ia se esquecendo” de contar outras coisas, o seu
50

desejo é de que sua família seja “como é toda família”, retomando aqui o título de sua
redação, ou melhor dizendo, que sua família seja igual à maioria das famílias, isto é, a 90%
delas.

A produção que trazemos no recorte 10 também se mostra muito interessante para a


nossa análise acerca do sentido de separação que permeou o nosso corpus. Numa primeira
leitura dessa produção fomos levados, pelo dizer do sujeito, a pensar que ele gostava do fato
de seus pais serem separados, já que parece muito interessante o fato de, por isso, ele ter duas
casas, “a do seu pai e a da sua mãe”. Entretanto, olhando o recorte com os olhos do analista,
nós nos deparamos com sentidos outros. Já no início de sua produção percebemos um sujeito
preso àqueles sentidos de família que falamos quando analisamos os sentidos de uma família
legal: um modelo de família ideal é retomado exatamente por um sujeito que possui uma
família em que esse modelo não se instaura. E repare o leitor: quando o sujeito escreve sobre
esse modelo de família ele ainda o faz enfaticamente por meio dos desenhos que sempre
acompanham os membros da família: para a mãe e a irmã há desenho de meninas, e para o pai
e o irmão há o desenho de meninos. E mais ainda: a descrição desse modelo de família é
seguida da frase “eles se amam”, sentido esse muito importante para o sujeito em questão, já
que é exatamente o título “FAMILIA AMOR”, seguido inclusive do desenho de um coração,
como ele também faz para o modelo descrito, que ele dá ao seu texto.

Observando o desenrolar de sua produção, constataremos que a partir do momento em


que sua família é inserida em seu dizer, isto é, a partir do momento em que ele começa a
discursivizar que seus pais são separados, esse sentido de amor, tão importante, não é mais
retomado.

E tudo isso se confirma com os sentidos que vão sendo inaugurados na sequência:
temos um sujeito-aluno que se refere ao fato de seus pais terem outros dois ou cinco filhos
como algo que não é normal, ou melhor dizendo, que não é bem aceito pela sociedade: “meu
pai, antes de ter eu, tinha 5 já” e “minha mãe já tinha 2 meninos”, ele nos diz, onde a palavra
já vem indicar tal consciência de que sua família está “fora de ordem” (ou “de uma ordem”,
como demonstram os sentidos antes explorados). Além disso, esse sujeito se refere de uma
forma muito peculiar ao relacionamento inicial de seus pais, dizendo que seu pai “conseguiu”
a sua, palavra que vem indicar sentidos de disputa, como num jogo, em que você “consegue”
ganhar ou conquistar algum objeto: isso mesmo, dá-nos a impressão de um relacionamento
em que as pessoas se veem como objetos, o que vem confirmar os sentidos já enunciados por
esse sujeito com a palavra “já”.
51

Mas há algo, em especial, que se faz necessário analisar, já que vem reiterar todos
esses sentidos de um sujeito não satisfeito com sua família separada, de um sujeito que não é
tão feliz assim por ter “duas casas”: ao final do primeiro parágrafo de seu texto, logo após
contar como foi a separação de seus pais, o sujeito-aluno nos diz o seguinte, “mas a minha
família é muito legal”, em que a conjunção adversativa vem marcar a oposição entre os dois
modelos de família que o sujeito denuncia em seu texto, vem marcar uma oposição entre a
separação e a possibilidade de uma família ser legal. Pensamos que se sua família fosse
mesmo legal, que se uma família pode ser legal ao mesmo tempo em que os pais são
separados, era um “e” e não um “mas” que deveria estar ali, ligando e não opondo os sentidos
de separação e legalidade.

Como se pode notar, apesar de caminharem numa direção oposta àquela da


necessidade da família caracterizar-se como unida, demonstrando que outras configurações
familiares são comuns na sociedade em que vivemos, os sentidos sustentados pelos sujeitos-
alunos a este respeito só vêm reiterar, confirmar aquele modelo de que já se falava, já que
percebemos que, inclusive aqueles alunos que possuem pais separados não se identificam com
tal sentido, com esta forma de ser de sua família, colocando-se, então, a “torcer para que seu
pai retome os laços com a sua mãe”, ou ainda tendo que explicar ao leitor “apesar de ter duas
casas, pois seus pais não vivem juntos, sua família ainda é legal”.

Caminhando ainda nesta mesma direção de se valorizar um modelo ideal de família


em contraposição a outras configurações, encontramos a recorrência e, ao mesmo tempo, a
necessidade de silenciamento de formações discursivas que se remetem a sentidos negativos
sobre a família, tais como as brigas, as reclamações e a morte, além de um sujeito que tenta
distanciar sua família dos sentidos relacionados às drogas, de modo que essa também passa a
significar, bem como quando há brigas ou morte, a destruição daquele modelo de família.
Apreciemos alguns recortes.

Recorte 11:

“[...] meu Pai ele tem um fiestra ele trabalha muito ele é predero
ele minha mãe brigam mas minha irmã chama yasmin ela não gosta
que Meu pai e minha mãe eles são muito legal eles me deu um
notebuko [...]” (A FAMÍLIA).

Recorte 12:
52

“[...] eu amo minha familia. minha vida não é tão facio com
minha familia mas familia é familia poriço eu aguento todas as
reclamações. (minha familia).

Recorte 13:

“Eu acho a minha família legal eu amo a minha família mais as


vezes as coisas mudão assim: acaba uns afalecendo igual hoje hoje o
tio da minha amiga Aline morreu e o meu pai também morreu mais
não inporta.
Inporta amalo o teu tio a tua tia o teu vó a tua vó e o mais
importando os teus pais” (Você acha a tua família chata?).

Recorte 14:

“[...] quase todas as família uzão troga mas augumas nao usão
não não mas lingue da minha faília usa Não e as bebidas e o sigarro
então quedo quedo das famílias que uzão” (As família não em igul).

Como já adiantamos, os recortes acima fazem referência a sentidos de família que são
interpretados como negativos, mas que ao mesmo tempo precisam ser silenciados ou
distanciados do sujeito, visto que a presença de tais sentidos significa o rompimento com
aquele modelo de família que a sociedade, na qual ele vive, aprova, sentidos que, quando
colocados em discurso, vêm significar que sua família não está mais legal, que sua família
não corresponde ao modelo de família correto, valorizado.

É assim que o sujeito, no recorte 11, silencia, insistentemente, o sentido de briga dos
seus pais: primeiro ele escreve que seus pais brigam, mas logo em seguida silencia isso
começando a falar de sua irmã; a sequência ainda sugere que a irmã denunciará tais sentidos,
já que começa a dizer que sua irmã “não gosta que seu pai e sua mãe”... Pensamos, então, que
é da briga que ela não gosta, mas isso também é silenciado, pois o sujeito, logo após colocar
em discurso as brigas, interrompe a construção do enunciado e escreve que seus pais “são
muito legais”.

Algo semelhante acontece no recorte 12, já que nele o sujeito diz ter que aguentar
todas as relações, as quais fazem com que “sua vida, na sua família, não seja tão fácil”,
53

porque “família é família”, o que para nós significa que todo e qualquer sacrifício precisa
existir, por parte de todos os sujeitos de uma família, para que ela seja sempre legal, feliz,
harmoniosa, apesar de todas as dificuldades existentes.

No recorte 13, por sua vez, já trazido por nós em outro momento, é o sentido de morte
que precisa ser silenciado: apesar de o sujeito admitir que sua família não é mais tão legal
como antes de seu pai morrer (“Eu acho a minha família legal eu amo a minha família mais as
vezes as coisas mudão assim: acaba uns afalecendo”), ele precisa deixar isso pra lá, fazer de
conta que isso “não importa” mais e continuar a vida, amando os que ainda estão vivos –
discurso esse muito circulante em nossa sociedade para tentar silenciar os sentimentos que
uma morte geralmente provoca.

Por último, vemos um sujeito, no recorte 15, também já analisado sob outro ponto de
vista, que procura colocar sua família bem longe daquelas que usam droga, que se envolvem
com bebidas e com cigarro, que precisa diferenciar sua família daquelas que se envolvem com
questões não aceitas pela sociedade em que vivemos, para definir, então, sua família como
legal, diferenciação essa coerente com sua convicção, demonstrada pelo título de seu texto, de
que “as famílias não são iguais”.

Essa temática que transita de uma família legal, unida, até as famílias que, deixando-se
permear pelos sentidos negativos, acima analisados, perdem a “chance” de serem ideais, pode
ser analisada no recorte que se segue.

Recorte 15:

“Casos de Famílias
Toda Família é assim: Legal, unida, bonita.
Quase toda família almoça e janta toda unida.
Mas tem família que é destruída pelas drogas e pela bebida.
Também tem pessoas que tem chanse de ter uma família unida
mas acaba perdendo ela.
Tem família que é separada pelas brigas.

Nesta produção, o sujeito desenvolve seu dizer deslocando-se da formação discursiva


que sustentava no início, isto é, há uma migração de “toda”, quando ele escreve que as
famílias eram legais e unidas, para o “quase”, quando ele se coloca a escrever sobre os
momentos de refeição que são feitos em família e, por fim, para o “mas”, que vem indicar que
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os sentidos caminharão em outro curso quando o sujeito dá espaço para as coisas negativas a
respeito das famílias, uma oposição em relação ao que vinha sendo dito antes. Assim, sentidos
sobre drogas, bebidas e brigas, mais uma vez, são apresentados, tal como até aqui vinha sendo
dito, como opostos ao modelo ideal de que falávamos no início deste tópico e que o autor do
recorte 15 marca, também, no início de sua produção.

Outra análise ainda se faz possível a este recorte, tomando como base o título que este
sujeito dá a seu texto, qual seja “Casos de famílias”. O nome de sua produção faz menção,
coincidentemente ou não, a um programa de TV do canal SBT, intitulado “Casos de família”
e cujo desenrolar pode ser também correlacionado ao recorte: o programa se desenvolve com
uma temática do dia e vários casais ou outros membros de uma família que tenham alguma
história relacionada com o tema são chamados para falar da mesma e escutar a dos outros. E
geralmente são temas que giram em torno de problemas familiares, de aspectos negativos da
família, tais como os que até aqui foram levantados, como drogas, bebidas, separações,
traições ou outras coisas que fazem com que a família “perca a chance ser unida”. No fim do
programa, entretanto, observamos que aquela primeira formação discursiva retorna, visto que
há sempre um psicólogo que finaliza com uma mensagem pacificadora, já que muitas
discussões e até brigas acontecem no programa, tratando, geralmente, desse amor, dessa união
que as famílias, apesar das brigas, dos desafetos, das desavenças, precisam ter. E não só a esse
programa de TV, perguntamo-nos: a qual família mais esse texto se refere? Que família é essa
que, apesar de estar perpassada pelas brigas, pelas drogas, pelo sofrimento, deve se amar e
esquecer todos os seus problemas? E estas não são tão poucas, pelo que nossa análise indica.

Para completar essa reflexão acerca dos sentidos sobre família e a subjetividade que
permearam o discurso dos sujeitos-alunos aqui analisados, faz-se necessário o diálogo com
Guerra e Trannin (2006, p. 157), autoras que, ao analisarem os discursos midiáticos sobre
“meninos de rua”, afirmam que

Os discursos produzidos e veiculados pela mídia transmitem valores e crenças de uma


sociedade por meio de enunciados estabilizados e, desta forma, contribui para a formação
do imaginário e da subjetividade dos indivíduos. A identidade, assim, é um conceito
construído continuamente em relação às representações que nos rodeiam.

E é a ideia de um imaginário, de uma subjetividade ou de uma identidade do sujeito


como “um conceito que é construído continuamente em relação às representações sociais que
nos rodeiam”, que para nós se torna importante, visto que nosso corpus também demonstra
que são exatamente aqueles “enunciados estabilizados”, aqueles “valores e crenças” bem
55

definidos socialmente sobre o que é uma família que constituem o discurso, o imaginário, a
subjetividade dos sujeitos-alunos, que aqui nós analisamos.

Para concluir esse momento de reflexão a respeito da heterogeneidade que constituiu


essa parte do corpus, e que na verdade funda a própria ideia de família, julgamos importante
trazer um texto que demonstra, além da compreensão do assunto família como um lugar
perpassado pela diversidade, uma magnífica identificação do sujeito-aluno com a atividade de
escrita, o que podemos, inclusive, correlacionar aos nossos objetivos de compreender a
relação entre subjetividade, discurso polêmico e identificação com a escrita.

Recorte 16:

“Muitas famílias muitos jeitos


Muitas famílias são assim:
 Elas compartilham cada coisa que aconteceu
 fazem uma festa surpresa
 falam o quanto o ama
 te dão coisas que você sempre quis
 te fala coisas que te agrada na hora da dor
 A onde que que você vá eles vão junto com você

Muitas famílias são o lado ao contrário disso assim:


 Não compartilham nada
 Não te dão surpresa
 tem vergonha de te dizer o quanto o ama
 As veses não tem dinheiro para te dar uma coisa mais tem amor para te
dar mais muitas vezes não dão
 Te falam coisas te apavorão na hora da dor

Muitas famílias fazem coisas que você ama como:


 fazem chocolate na hora da dor
 na hora da compatilhação dolorosa fazem uma comida gostosa
 na sua festa surpresa fazem um Bolo espetacular.

Agora eu te digo familia pra mim é tudo na vida


56

Até amigo pra mim é família


Mais conheço uma história que é mais ou menos assim:

Era uma vez um menino que se chamava Vinicios ele não


acretava em família feliz.
Um dia ele encontrou um velho amigo da escola, e os dois
conversou horas e horas com ele, até que ele disse ao Vinicios:
- Você acredita em familia?
Vinicius pensativo disse:
- Não muito! Porque?
O amigo de Vinicios suspirou e disse:
- Eu também não acretitava muito, mais quando fiz 17 comecei a
acreditar, e o porque ... Porque quase toda a minha familia morreu.
Quando o sol se escondeu Vinicios foi Para sua casa, no
Caminho foi pensando em tudo que seu amigo disse sobre familia.
Quando chegou em casa aproveitou mais a sua familia.

Mais essa história ainda não teve fim...”

Duas páginas inteiras falando sobre família e com uma emoção que prende o leitor a
cada novo argumento, a cada novo tópico do seu dizer. Uma contação de história que
emociona e que traz elementos linguísticos que constroem esse efeito de emoção (“disse
pensativo”, “suspirou e disse”). Vemos um sujeito completamente identificado com a
atividade de escrita sobre família, o que pensamos ser fruto de um trabalho pautado no
discurso polêmico que a professora realiza, e realizou neste momento. Um sujeito que
demonstra gostar daquilo que está escrevendo e o faz com muita organização: de sua família,
das famílias que são legais, das que não são tão boas, das que ajudam na dor, das que não
ajudam, das que fazem surpresa e das que não fazem.

Coerentemente, esse sujeito termina seu texto com uma linda história que, além de nos
emocionar, reitera os sentidos de que há muitas coisas que as famílias podem fazer para serem
felizes, para aliviar a dor e os sentimentos tristes da morte, e que isso deve ser feito antes que
seja tarde. A frase final de sua história inaugura ainda o novo, o sentido que pode vir a ser, e o
mais interessante: ela desenha um coração com a palavra família, coincidentemente ou não,
57

bem debaixo de onde escreveu história, de modo que conseguimos também interpretar que
“essa família ainda não teve fim...”, que a família de que ela fala, a qual possui “muitos
jeitos” de ser, pode a cada dia ser nova, diferente.

Permita-nos leitor, ainda, agora sim, finalizando esse tópico, trazer mais uma redação
que reforça nossa defesa de que um trabalho de leitura e escrita, isto é, um trabalho de
língua(gem), baseado no discurso polêmico é local por excelência para a identificação dos
sujeitos com a escrita e, por conseguinte, para a emergência da subjetividade.

Recorte 17:

“Familhão

Minha família é assim:


♥ Amorosa, carinhosa é minha mãe, me ajuda me ama
e compriende, esse é o resumo de uma super mãe.
♥ Carinhoso, legal e amigo um pai maravilhoso,
dizem que pai assim é só em sonho mais meu pai é
assim e não é sonho, meu pai não é só isso mais isso é
o que discobri.
♥ Bom minha irmã é legal e gente boa ela tem só 5
anos e não tenho muito o que dizer porque minha irmã
adora brincar e eu sou mais estudar.
♥ Minha familia é assim, carinhosa, legal e minha,
porque cada um tem sua família.

Vale a pena nos determos aos sentidos construídos por esse sujeito a respeito de sua
família a fim de compreendermos a questão do discurso polêmico e da subjetividade.
Podemos observar neste recorte 17, um sujeito que discursiviza sua família de uma forma que
parece prazerosa, para si próprio, trazendo-nos a convicção de que é com muito gosto que ele
fala de seu pai, de sua mãe e de sua irmã, sentimento esse que ele reforça, ao final da
produção, com a palavra “minha”, marcando que é sua e apenas sua, de mais ninguém, essa
família tão boa.

Encontramos um texto totalmente costurado por uma necessidade do sujeito em


ressaltar as qualidades de sua família, ou pelo menos aquelas qualidades que ele já
58

“descobriu”, expressão que também inaugura a possibilidade de novos sentidos para o seu
dizer. E por falar em inaugurar novos sentidos, é exatamente isso o que este sujeito faz no
título de seu texto, “Familhão”: o final “ão” comumente designa, em nossa língua, algo que
atrapalha, como no caso das palavras “problemão” ou “confusão”, por exemplo; entretanto, é
um sentido totalmente diverso que ele constrói para essa palavra, de modo que, de algo que
incomoda, que atrapalha, o final “ão”, dado para sua família, passa a designar uma família
ótima, que ele gosta demais e, quem sabe, uma família perfeita.

É aqui que retomamos as questões acerca de um trabalho com a língua pautado no


discurso polêmico e com a identificação do sujeito com a escrita, promovendo, dessa forma, a
expressão de sua subjetividade: é com plena convicção que afirmamos, tendo em vista nossas
experiências com várias práticas pedagógicas bem longe da concepção de polissemia que aqui
defendemos, que um professor que se pauta na ilusão de sentido único não poderia perceber
esses significados que esse sujeito construiu para a expressão “Familhão” e, como em muitos
casos conhecidos, simplesmente ignoraria a interpretação de tais sentidos, ou, ainda,
silenciaria, desaprovando e pedindo ao sujeito reformulasse sua escrita. Pensamos assim, caro
leitor, que este gosto pela escrita, pelo falar, pelo deixar-se emergir no seu dizer, não pode
estabelecer-se fora de um lugar que possibilite a circulação do sujeito entre as várias
possibilidades de sentido, que permita a disputa do objeto discursivo, que se paute na
polissemia, ou seja, de um trabalho pautado no discurso polêmico.

4.1.3. Os papéis dos membros da família: sentidos sobre o ser pai e o ser mãe

Mais uma vez aqui, ao trazermos os sentidos produzidos pelos sujeitos-alunos acerca
das figuras de pai e mãe, percebemos um conflito do qual falamos no tópico passado, já que é
naquele mesmo movimento de aprovação social, isto é, em que os sentidos dominantes sobre
ser família, e aqui, sobre o imaginário social que determina os papéis para cada membro da
família, são resgatados, num movimento de tensão entre o sedimentado e a disputa dos
sentidos que podem ser outros, dado que o contexto sócio-histórico o determina, conforme
podemos observar nos recortes abaixo:

Recorte 1:
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“Toda família e assim: O pai sai de manha toma um café e vai


trabalhar a mãe cuida da casa da gente com carinho e amor [...]” (A
minha família).

Recorte 2:

“A mãe e cuidadosa, carinhosa sempre preucupada com a


chente.
O pai sempre trabalhando para não deixar faltar nada e quando a
chega emcasa anda brinca com a gente” (Sem título).

Recorte 3:

“cada um tem sua função em casa meu pai tem de:


● não deixar faltar a coisas dentro de casa, a minha mãe te a função
de:
● cuidar bem de mim e minha irmã Iasmim [...]” (minha familia).

Os recortes são tecidos pela formação discursiva que, por longo tempo sustentou, de
modo hegemônico, os sentidos sobre pai e mãe, ou seja, sentidos de um pai que precisa todos
os dias sair de casa e trabalhar para não deixar faltar nada em casa, e de uma mãe que deve
estar dentro de casa, cuidando da casa e dos filhos, são apontados por esses sujeitos e os são,
como bem ilustra o recorte 3, na forma de uma “função”, como algo que não pode ser
modificado, que precisa ser cumprido para que a família esteja em “ordem”.

Tal recorrência a formações discursivas sobre o ser homem e se mulher nos fazem
questionar alguns sentidos que a sociedade em que vivemos vem, há algum tempo,
reiterando. Nossa sociedade contemporânea prega que o papel da família, especialmente o da
mulher, foi modificado: ouvimos dizer que as mulheres conquistaram sua liberdade, sua
independência, podendo estudar, trabalhar, investir em sua carreira profissional e que as
responsabilidades do lar tornaram-se atividades a serem dividas com os homens. Mas não é
bem isso que encontramos nos discursos produzidos pelos sujeitos-alunos desta pesquisa.
Vejamos:

Recorte 4:
60

“A mãe tem o dever de cozinhar, limpar, cuidar do Marido e dos


filhos, mas as vezes ela tem que trabalhar para sustentar os filhos
sozinha.
O pai trabalha para o sustento da casa, pagar as contas e comprar
comida” (Nem toda família é igual).

É como um “dever” que as atividades de “cozinhar e limpar”, bem como cuidar dos
filhos e do “Marido” – significante escrito com letras maiúsculas, o que nos indica um poder
deste em relação à mulher e nos remete àquela ideia antiga (será?) de uma mulher submissa
ao homem – são discursivizadas. Além disso, tal construção cria o efeito de sentido de que a
mulher só é “autorizada” a sair do lar quando isso for mesmo preciso, isto é, quando for ela a
responsável por “sustentar os filhos”, na ausência do pai, mas que mesmo assim isso se opõe
(o que o conectivo “mas” vem indicar) ao seu verdadeiro dever, antes explicitado.

De modo algum, ainda, são relacionados ao homem aqueles sentidos de cuidado com o
lar e com os filhos: os sujeitos-alunos bem demostram em seus dizeres que, apesar de
trabalhar fora, quando ela está no lar, a mulher ainda trabalha sozinha enquanto o homem
trabalha fora de casa, ou ainda, “trabalha no sofá” – como um sujeito escreveu sobre seu pai.
Disso decorre um questionamento: será mesmo que as mulheres conquistaram sua liberdade?
Será que a figura feminina já pode mesmo ser relacionada a algo mais que “somente à vida
privada” (PACÍFICO & ROMÃO, 2006)?

Recorte 5:

“[...] minha mãe se chama Valeria trabalha de dia ate anoite de


dia no serviso de noite em casa.
meu pai se chama Carlos trabalha de dia e denoite trabalha no
sofá [...]” (familia feliz).

Recorte 6:

"Se meu pai diga Thcal!


Minha mãe pega o avental
Se eu do um grito
Minha mãe vira um zumbido!” (FAMÍLIA FELIZ).
61

Um pai que diz “tchau” para os trabalhos domésticos, que não está presente no lar da
mesma forma que a mãe, a qual precisa, sempre prontamente, “pegar o avental” e ainda ficar
de olho no filho, fazendo com que ele seja educado e obediente: tais sentidos apontam para
um lugar bem definido do que é ser pai e ser mãe; eles nos dão indícios de que os sentidos
dominantes, que circularam sobre os papéis do homem e da mulher na constituição familiar,
há muito tempo em nossa sociedade, ainda permeiam o imaginário dos sujeitos, embora haja,
hoje, uma formação discursiva que sustenta que tais sentidos já foram destituídos, dando lugar
para novos sentidos de homem/mulher, pai/mãe.

Observemos ainda o recorte que segue:

Recorte 7:

“[...] meu Pai ele e avisiado no jogo de futebol do corinthans.


Minha mãe não vou nem comtar ela sufica assistindo a novela
de briga a novela jama vale tudo” (Como é a sua família).

O recorte acima vem confirmar a nossa hipótese de que os sentidos sobre ser homem e
ser mulher, ligados aos de ser pai e ser mãe, encontram-se muito longe de escapar de um
estereótipo social, há tempos proclamado. Assim como ao se falar de pai retomam-se os
sentidos de trabalho e sustento da família, e para a mãe os de cuidado da casa e dos filhos, a
mulher continua sendo aquela que adora assistir a novelas enquanto o homem é o “viciado”
em futebol ou no “jornal”, como outros recortes demonstraram, de modo que retomamos um
lugar de mãe preso à fantasia do lar, representado pela novela, e de um pai ligado ao “mundo
real” da notícia e do “jogo”, já que seu lugar é lá fora, no trabalho, ganhando dinheiro e
pagando as contas, o que lhe exige, pelo efeito da ideologia, estar a par das “notícias”.

Todos os sentidos levantados até aqui nos fazem crer que colocar em discurso sentidos
de pai e de mãe, de homem e de mulher, é algo ligado a discursos sociais, a formações
discursivas determinadas socialmente e, por isso mesmo, sentidos partilhados e aceitos por
determinada sociedade. Apesar disso, alguns sentidos dominantes sobre família são
considerados como proibidos pelos próprios sujeitos da pesquisa, como podemos interpretar
pelo recorte abaixo:

Recorte 8:
62

“A família e suas fantasias


Toda familia é assim: mãe, pai e irmãos todos
tem as suas manias e fantasias.
● Mãe são aquelas que sempre querem ver a
novela mas qual e o nome da novela é a das 8, 6, 9
ETC...
● Pai sempre são aqueles que estão ocupados,
mas não para o jornal da tarde mas sabem o que querem
de verdade ser criança sem maldade.
● Irmão um chato de galocha ele vai tarde sorte
de quem e filho único mas que sorte
● Em fim terminamos esta conversinha mas
cuidado ao ler isso perto da sua familia.

Ao trazer uma crítica aos sentidos de pai e mãe, de homem e mulher que nossa
sociedade bem conhece, além do de irmão, este sujeito cria o efeito de sentido de
descontentamento com o modo como essa família se relaciona. Entretanto, ao reclamar da
falta de tempo dos pais, já que a mãe precisa ver todas as novelas e o pai se recusa a estar com
os filhos para poder ver o jornal, e do fato de que ter um irmão é algo “chato” e que,
pensamos, deve tomar mais ainda o tempo de seus pais, o sujeito traz indícios de que sabe
estar colocando em curso sentidos que deveriam permanecer em silêncio, uma vez que a
sociedade critica os filhos que questionam os pais; os alunos que questionam os professores, e
por aí vai.

Por ser assim, o sujeito resume os sentidos por ele evocados como uma “conversinha”
e avisa ao leitor que ele precisa ter cuidado ao falar estas coisas perto da sua família,
indiciando que tudo isso que ele denuncia corresponde a algo proibido, a sentidos que, a
nosso ver, contradizem aquela legalidade da família que outros sujeitos explicitaram. E isso
que falamos relaciona-se com o desenho com o qual o sujeito finaliza a sua produção, já que
mesmo sem parecer estar tão contente assim com as “manias e fantasias” de sua família, é
exatamente com um lindo coração com a palavra “família” dentro, como podemos observar
no desenho ao lado do recorte, que este sujeito encerra seu texto: é porque não pode evocar os
sentidos acima descritos que o sujeito precisa, coerentemente, finalizar sua escrita com tal
63

desenho, o qual vem indicar o amor, a unidade, a harmonia que deve constituir toda família a
fim de que ela seja feliz.

E sentidos semelhantes podem ser percebidos no recorte abaixo, quando o sujeito,


convicto de que as famílias são iguais, “só mudando de endereço”, põe-se a descrever um
papel de mãe muito comum ao que até aqui muitos sujeitos vinham construindo, isto é, “cheio
de mimos e cuidado” com o filho e com o lar, mas que ao se propor a escrever sobre a figura
de pai, o faz a partir de seu próprio pai, e o precisa fazê-lo de forma oculta, cuidadosa, como
numa conversa informal e bem íntima, o que é sugerido pelo “cá entre nós” que inicia seu
discurso sobre um pai ausente, enunciado este que constrói, aqui, o mesmo efeito de sentido
que a palavra “cuidado” construiu na produção anterior.

Recorte 8:

“Toda familia é igual só muda o endereço


Toda família é assim: cheia de mimos, mãe toda cuidadosa
sempre dis assim:
- Tá frio menina vai por uma blusa, você fez a lição, come tudo
direitinho, toma banho, escova os dentes e vai pra cama, que Deus te
abençõe e sonha com os anjos.
E cá entre nó meu pai quase não para em casa pra sustentar a
familia [...]”.

Como se pode ver, é mais uma vez entre o conflito de ser uma família unida e
harmoniosa, o que depende de papéis de pai e mãe bem definidos, e de ser uma família
separada, marcada por figuras maternas e paternas distintas do modelo dominante, que esses
sujeitos-alunos se colocam. É mais uma vez pelo falar de si perpassado pelo Outro, pelo olhar
social que aprova ou que exclui (ou pelo menos tenta excluir) determinados sentidos, que o
dizer esses sujeitos caminham: um eu que não se desvincula dos sentidos sociais, um sujeito
perpassado pela ideologia e por dizeres naturalizados sobre si e, no caso, sobre sua família;
um sujeito que, para compreendermos seus discursos, precisamos entender os sentidos que ele
enuncia – são estes os referenciais sobre sujeito e sobre uma subjetividade marcada pela
identificação ou desidentificação (PÊCHEUX, 2009) do sujeito, que nos impulsionam e que
estão sendo até aqui confirmados.
64

4.1.4. Os sentidos do “presente”: efeito metafórico entre trabalho e passeio

É ainda importante e muito significativa, em nosso corpus a recorrência aos sentidos


sobre passeios e presentes, isto é, sobre ganhar ou fazer algo que os sujeitos gostam, com os
pais, como algo frequente e importante.

Pela análise dos discursos podemos fazer mais uma vez uma relação com os sentidos
de legal e compreender a formação discursiva na qual tais sentidos se inscrevem: o que é ser
legal (no sentido de aprovação social mesmo) na sociedade em que vivemos? É
principalmente consumir; logo, sair, comprar, ganhar presentes. Podemos dizer que, a
recorrência desses verbos aponta para uma necessidade, para uma „exigência social‟ que o
sistema capitalista impõe ao sujeito, isto é, “ter, consumir, ganhar”, sentidos que ficam bem
marcados nas redações analisadas e afetam o modo como o sujeito contemporâneo constrói
sua identidade.

Encontramos, aqui, desse modo, um discurso arrojado, que valoriza uma vida pós-
moderna, sendo partidário das exigências de uma sociedade capitalista, em contraposição
àquela anterior identificação dos sujeitos com sentidos tradicionais sobre o ser pai e o ser
mãe, sobre ser homem e ser mulher. Vejamos alguns recortes:

Recorte 1:

“Nos passeamos direto isso é legal


Nos se divertimos muito saindo comendo Lanche comendo
saugado e á té sorvete
As vezes eu e a mamãe vamos ao sirco
Quando eu vou ao cabeleireiro fico bem bonita
Eles são bondosos e saímos” (Sem título).

Recorte 2:

“[...] Umas são interessantes, as outras nem tanto, outras são


bem divertidas e algumas não são divertidas e tem até familhas que
não saem de casa nunca” (Assim....).

Recorte 3:
65

“Toda família é assim: boa, da presentes, sai com você, vai para
o parque com você, compram uma bake pra você, comem com você,
levam você para a escola, viajam comvoce, andam com você, seu
irmão joga bola com você, seu irmão vai no estádio com você, seu
irmão vai na sorveteria, sua irmã vai com você na loucadora, sua irmã
vai no mq lanc feliz. Seu pai voa de avião com você, seu pai joga
vídeo-game com você, seu pai fais um moicano em você, seu pai dida
dez reais, minha mãe vei de são Paulo, meu pai vei de minas minas
gerais, meu pai gosta dei no mauriho Biages e minha mãe gosta dei no
teatro, minha irmã gosta dei na Cidade, eu gosto dei no estadio” (A
Familha).

Especialmente o enunciado do segundo recorte, em que sujeito compara as famílias


que são legais e as que não são, segundo seu ponto de vista, concluindo espantosamente que
“tem até famílias que não saem de casa nunca”, podemos perceber o quanto essa exigência do
consumir, do ir a todos os lugares, do ter que passear para ser “legal” – recorte 1 – permeia o
imaginário desses sujeitos-alunos.

Parece significar status ganhar uma “bike”, conforme aponta o sujeito do terceiro
recorte, que está além de se ter uma bicicleta, uma vez que tal influência do inglês vem
marcar, mais uma vez, a necessidade do consumo que nos é imposta, funcionando no mesmo
sentido o “Mc Lanche Feliz”, grande símbolo do Mc Donald‟s para as crianças, empresa que
bem representa o que é esse consumir pautado no modelo norte-americano.

Entretanto, se prestarmos atenção ao recorte 3 veremos que, para além de consumir,


de ganhar algo e de ter como resultado disso um status, os presentes dos pais para os filhos e
os passeios que estes fazem junto querem significar algo de outra natureza: no recorte
mencionado, o que mais nos chama a atenção é um sujeito que não cansa de repetir o “com
você, o “para você, o “junto com você”, o que nos dá indícios escancarados da subjetividade
deste sujeito que reclama por um desejo de estar junto com sua família.

Nesse momento, colocamo-nos a perguntar: por que será que estes sujeitos reclamam
por tais sentidos? Será que as famílias estão conseguindo ficar juntas? E se não, por que isso
não está acontecendo? É nesse momento que nos deparamos com os sentidos sobre trabalho,
66

que “consome”, fazendo um trocadilho com o consumismo de que já falamos, o tempo da


maioria dessas famílias.

Recorte 4:

“Mas todas familia tem pai e mãe que trabalha isso é muito
legal.
Porque com o trabalho deles eles ganha dinheiro, todas familia
passeião com felicida e alegria isso é bonito demais”

Percebemos aí o sentido do trabalho dos pais que são evocados pelos sujeitos-crianças
desta pesquisa: um trabalho que deve depois servir para trazer momentos de “felicidade e
alegria” em família, pois é estar com a família que o mais “bonito”. E o inverso a este sentido
também é verdadeiro, já que encontramos sujeitos que enunciam sentido que nos dão indícios
de que quando esse trabalho excede a relação entre família deixa ser tão bonita.

Recorte 5:

“O meu pai chega do serviço só 21:00 da noite em tão eu e a


minha mãe ficamos sozinhos.
De sábado eu vou na catequese e de sábado meu pai chega mais
e ele leva eu no treino.
(...) Meu pai traba no correios e a minha mãe trabalha pra minha
tia” (Familha legal).

Recorte 6:

“E a minha mãe não para de trabalhar todos os dis não para de


trabalha e o meu pai então e o dia enteirinho ai tadinho do pais que
não tem tenpo para fazer nada” (As família em igul).

Analisando os enunciados em que o sujeito do recorte 5 se refere ao seu pai,


observamos que a construção dos enunciados é muito significativa. Expliquemos: ao escrever
que aos sábados seu pai “chega mais” e o leva para o treino, o sujeito omite a palavra “cedo”,
indiciando que é tão pouco esse tempo que ele possui para ficar com o pai que, quando este
67

chega mais cedo, ele precisa aproveitar o mais rápido possível, o que não lhe dá tempo de
completar o seu dizer.

Interpretamos que os sujeitos são muito afetados pelo trabalho dos pais, trabalho que
lhes rouba o tempo que poderiam desfrutar da sua companhia. Essa relação conflituosa fica
marcada na língua, pois o mesmo sujeito, ao escrever sobre o trabalho de seu pai e de sua
mãe, não completa a palavra “trabalha” para seu pai, mas somente para sua mãe. Tais falhas
do dizer, para nós, significam muito: entendemos que a falta das letras pode representar a falta
de tempo dos pais para com seus filhos, ou seja, tocar nesse assunto é difícil e essa dificuldade
se materializa na escrita, indiciando as marcas da subjetividade.

Da mesma forma, o recorte 6 nos dá indício de um sujeito-aluno que apela pelo tempo
aos seus pais. Com certeza, tendo uma mãe que “trabalha todos os dias” e um pai “então, que
trabalha o dia inteirinho”, não é apenas deles, podemos pensar, que esse sujeito sente dó,
como podemos ler em “tadinho”: se esses pais não têm tempo para fazer nada, provavelmente,
não têm também tempo para “fazer nada” com ele, seu filho.

E aqui chegamos ao que nos propomos pensar nesse tópico, pois entendemos que há
um efeito metafórico no dizer desses sujeitos-alunos, ao tocarem na questão do trabalho
excessivo de seus pais. Com isso, entendemos que há uma “função persuasiva” da metáfora
em funcionamento nesta formação discursiva que encontramos, isto é, há um uso da metáfora
como forma de se impor ou, melhor dizendo, demonstrar, de forma sutil, de maneira não
explícita, uma opinião (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2002 apud CAMARGOS,
s.d.). Encontramos no dizer desses sujeitos-crianças uma queixa aos pais para que lhes
dediquem um tempo maior; porém, isso se dá através de um olhar condescendente dos
sujeitos, os quais, capturados pela ideologia capitalista, tentam discursivizar o trabalho como
algo importante e necessário, mesmo que, na costura dos sentidos ouçamos uma voz que
lamenta tudo isso.

Recorte 7

“Todo mundo tem pai ou teve, tem pai que chega do trabalho
mesmo que esteja cansado sempre tem uma hora extra para brincar
com o filho, e tem pai que chega do trabalho e nem lembra que tem
filho, e tem pai que sempre coloca você para dormir e lê uma história
para você, e tem pai que só coloca você dentro do quarto e tranca a
porta você que tem que se virar” (A minha família é assim).
68

Estão aí grandes indícios da subjetividade dos sujeitos-alunos, dessas crianças que se


expressam por meio desse falar de si que o discurso polêmico, no qual a prática docente de
língua(gem) se sustenta, proporciona-lhes: é o desejo de estar com os pais, de que estes lhes
dediquem ao menos uma “hora extra” do dia deles, é a vontade de tê-los perto para contar-
lhes “uma história” e lhes fazer “dormir” à noite, sem que precisem “se virar” sozinhos o
tempo todo. Um pai e uma mãe que deem tanto valor à família quanto ao trabalho, ao jogo de
futebol ou à novela, como antes reclamavam também esses sujeitos: é, pois, esse desejo deles
que aqui encontramos, em seus escritos que extrapolam as tarefas escolares.

4.1.5. Subjetividade e emoção: o desabafo e a voz do coração

Para concluirmos essa primeira parte de nossas análises que, como já dissemos, é a
que compõe a maioria das análises deste capítulo de apresentação dos dados de nosso corpus,
dada a sua grande heterogeneidade, traremos agora alguns escritos que para nosso objetivo de
encontrar indícios da subjetividade são extremamente importantes. Vejamos duas produções:

Recorte 1:

“Eu sou uma impregada


Toda família é assim:
menos a minha porque a minha eles fação como uma impregada
e isso é chato e quando eles falam para eu fazer uma coisa eles falam
para fazer outra e quando ei como comida eles mechama é uma
chatice!!! O lha so falta eu colocar uma roupa de inpreguada e quando
a minha irmã crita comigo eu grito com ela e quando a minhima irmã
bate em mim eu bato nela também e eu penso que eu quero ter asa
para eu ir embora e a minha família é assim. Fim”.

Recorte 2:

“O som do coracão
Cuado tinhs um ano meu vó murel ele cantava opera não
conhesi Ele mas uma coisa fes eu senti que a Vos dele me ispiro
69

quando tinha 5 anos eu estrei no pré uer eu comecei tucar opera mas
era curau eles me levou au pedro segundo me senti que algum dia eu
ia estar la cuando fis 6 anos entrei no projeto guri aliprendis a cantar
menhor conhesi varus amigos que tinha vos perfeita
sei que mas e mas vou lutar
Opera e Minha Vida”.

Recorte 1 Recorte 2

Esses escritos, a nosso ver, são muito importantes para o que pretendemos investigar
sobre a utilização da escrita como um espaço para o sujeito poder dizer, poder falar de si.
Produzindo efeitos de sentidos bem distintos, já que o sujeito do primeiro recorte enuncia
sentidos negativos sobre si e sua família, enquanto, no segundo, o sujeito nos apresenta
sentidos que lhe “tocam ao coração”, que fazem parte de “sua vida”, de seus “sentimentos”,
ambos os sujeitos parecem utilizar a escrita com uma mesma finalidade, visto que o falar de
sua família articula-se ao falar de si, das coisas de que ele gosta ou não, dos sentimentos que a
sua família lhe provoca.

No primeiro recorte temos um sujeito que se discursiviza como uma empregada dentro
de seu lar, de modo que não tem o seu tempo e a sua privacidade respeitados. Este sujeito não
consegue encontrar, a nosso ver, aqueles sentimentos positivos, de uma família unida e
“legal”, que era unanimidade na discussão inicial entre a turma e a professora e, por isso,
inicia seu texto exatamente com uma crítica àquilo tudo: “toda família é assim: menos a
70

minha”, discursiviza o sujeito, recusando os sentidos homogêneos que a conversa com a sala
sustentava sobre as famílias. Ao dizer que gostaria de “ter asa para poder ir embora”,
encontramo-nos com o desejo desse sujeito, o qual ele pode expressar neste espaço da escrita,
um lugar que parece lhe dar conforto, já que o sujeito anuncia, pela escrita, o seu desejo de
estar longe da sua família, de ter sua liberdade.

De maneira semelhante, no segundo recorte encontramos um sujeito que utiliza a sua


escrita para falar de si, de seus sentimentos com relação à sua família, sentimentos esse bons,
que lhe inspiram, especialmente, a figura de seu avô. Faz-se muito interessante para nós essa
certeza, essa convicção do sujeito de que nasceu para a “ópera”, de que “sente sempre alguma
coisa” e de que precisa “lutar” nessa direção.

Embebidos em subjetividade, isto é, de seus desejos mais íntimos, de suas vontades,


dos sentidos que lhes constituem e que lhes movimentam, esses textos indicam-nos o quanto
esse usar a escrita para falar de si se faz importante em um ensino da língua materna.
Funcionando como um desabafo, como um lugar de partilha de emoções, de mostrar-se
identificado ou contra-identificado (PÊCHEUX, 2009) com os sentidos que lhes são caros, a
escrita desses sujeitos demonstra-nos um lugar de confiança, um espaço de poder se expressar
sem medo, de poder dizer-se; ambiente esse, a nosso ver, essencial quando queremos
construir uma boa relação, no sentido de prazerosa e engrandecedora ao sujeito, entre este
último e a escrita: lugar este em que os sentimentos passam a ter existência, e com isto
queremos dizer que é na e pela linguagem que sujeito e sentidos se constituem.

Finalizando essa reflexão sobre o falar de si, pensamos ser pertinente a apreciação de
três pequenos recortes que também apontam na direção da necessidade do sujeito usar a
escrita para falar de si, algo que também acreditamos decorrer do assunto família, de modo
que, para poder dizer sobre a temática, o sujeito necessariamente precisa pensar em si, na sua
relação com a família e, assim, inscrever-se no seu discurso.

Recorte 3:

“Há esqueci de falar de mim eu estudo, brinco arrumo casa jogo


várias coisas” (A família unida).

Recorte 4:

“Estavo esquecendo de mim então eu vou falar um pouco de


mim
71

Eu gosto de jogar bola sou bão no futebol, tambem gosto muito


de ir na escola [...]” (A minha familia).

Recorte 5:

“A isquesi de falar de mim a gosto de jogar bola de pater no


vitor da quinta B e de zoar esta e meu texto [...]” (familia reunida).

É, pois, a possibilidade de falar de si que percebemos ao longo do discurso de todos


esses sujeitos: uma escrita, como já dissemos, que lhes proporciona um espaço para se
inserirem, para se expressarem sem receio, ambiente este tão caro ao ensino de língua que
aqui propomos.

4.2. A música e o poema: pensando o gênero, a proposta e os indícios da


subjetividade

Nesta segunda e última parte de nossas análises, pretendemos apresentar os sentidos e


os indícios de subjetividade que encontramos com a leitura e análise das duas produções
textuais seguintes à já analisada, as quais tomaram como base, a música “Família”, do grupo
Titãs e o poema “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade, respectivamente, conforme já
explicitado.

Esclarecemos que esse momento de reflexão será mais breve que o anterior, no qual
nos debruçamos sobre as redações iniciais dos sujeitos-alunos desta pesquisa, e isto se deve,
mais uma vez dizemos, ao caráter mais heterogêneo, isto é, ao cruzamento de várias
formações discursivas que sustentaram a construção das produções iniciais, o que não foi
observado nas que analisaremos, agora.

4.2.1. Música e família: refletindo sobre o gênero textual e os sentidos


72

Tomando como base a leitura e escuta da música “Família”, do grupo Titãs, além de
uma discussão entre a professora e as turmas, esse segundo momento de escrita teve a
seguinte proposta como norte às crianças: “A música do grupo Titãs traz o tema: Família.
Que relação você pode fazer da família descrita na música, com sua família e as famílias que
você conhecer?”.

Conhecer essa proposta inicial da professora se faz importante por conta dos sentidos
que permearam a totalidades deste momento de escrita, visto que a produção desses sujeitos
esteve calcada numa necessidade de “relacionar”, ou melhor, de comparar a família da música
e a sua, buscando pontos em comum entre os sentidos de família enunciados na canção e os
sentidos próprios à sua família.

Desse modo, será basicamente pela repetição dos discursos sobre família, construídos
na música, dos sentidos que a canção torna possível – os quais giram em torno de
acontecimentos cotidianos, de episódios coloquiais, como um almoço com todos os membros
da família juntos ou um momento para se assistir à TV, por exemplo – que as famílias desses
sujeitos-alunos serão, em seus textos, discursivizadas. Os recortes que trazemos abaixo nos
dão indícios dessa escrita bem homogênea e, podemos até dizer, parafrástica, que constitui
essa parte de nosso corpus.

Recorte 1:

● “A minha família tem algumas coisas emcomum ploresemplo:


papai, mamãe, titia, vovô, vovó, sobrinhas.
● Janta junto todo dia, nunca perde essa mania.
● Mas quando o nenêm fica doente procura uma farmácia de
plantão.
● Vive junto todo dia, nunca perde essa mania.
● E botão cadeado no portão” (família).

Recorte 2:

“O que a música tem de igual a minha família é isso:


Papai, mamãe, janta junto todo dia, nunca perde essa mania,
procura uma farmácia de plantão, vive junto todo dia, nunca perde
essa mania, a mãe morre de medo de barata, jogaram inseticida pela
73

casa, botaram cadeado no portão. E é isso tudo igual” (A minha


família).

Recorte 3:

“Minha familia é quase igual a da música.


Minha família tem papai, mamãe, cachorro e galinha.
Nós jantamos e almoçamos todos os dias.
Vamos na farmácia de plantão e etc...” (Minha família).

Recorte 4:

“A minha familia é muito dificil almoçar e jantar junto, mais de


vez em quando a gente almoça junto.
Eu não tenho animais porque a minha mãe não gosta, mais eu já
tive um coelho, mas ele fugiu.
Na minha casa é muito difícil dormi na minha casa porque a
minha irmã ela fica pulando pensando que a cama é um pula-pula.
A minha mãe não tem medo de barata, já o meu pai sei lá se tem
medo de ladrão [...]” (A minha familia).

Recorte 5:

“A minha familia e super contraria de uma musica.


Não almoçamos juntos e nem jantamos juntos.
Os cachorros fasem parte da familia os postos de saúde estão
presente.
Não vemos muita televisão [...]” (Familia).

Recorte 6:

“Minha familia não almoça junto todo dia porque meu pai esta
trabalhando nós tambem não jantamos junto mas sim nós vamos a
farmacia e ao SUS minha mãe e eu temos medo de barata e teamos
gato e temos galinha e cachorro.
74

E acho que não somos muito parecidos com as famílias da


música” (A Família).

Recorte 7:

“Comparação da família
A família da música fala do pai, da mãe, da tia e avós.
Minha família é eu, meu pai, minha mãe e a minha irmã.
Nem todo dia nós almoçamos juntos, porque minha irmã e o
meu pai trabalham e aí só fica eu e a minha mãe em casa [...]”.

Recorte 8:

“A relação da musica familia e da minha familia é que almoça


junto todo dia e nunca perde essa mania e meu cachorro que faz parte
da minha família e a mãe que morre de medo de barata e o pai que
vive com medo de ladão jogaram inseticida pela casa e botaram
cadeado no portão” (Famílha).

Pela leitura dos recortes acima, podemos compreender o quanto o retorno constante ao
texto e a repetição daqueles sentidos da música constituíram o movimento de escrita desses
sujeitos. Foi uma preocupação em “relacionar”, em “comparar”, em encontrar junto aos
sentidos possíveis à sua família aquilo que é “parecido”, “comum”, “igual”, “quase igual” ou
ainda “contrário” ao discurso de família que circula na música, que esteve presente nos
dizeres desta parte do corpus.

Percebemos uma proximidade entre os sentidos evocados por todos os sujeitos, em


todas as produções, os quais se empenham em discursivizar sua família sob o ponto de vista
do texto-base, escrevendo, portanto, se ela “almoça junto ou não todos os dias”, se “o pai tem
medo de ladrão e a mãe de barata”, se “há animais de estimação ou irmãos pequenos
chorando”, se “vão à farmácia” ou se “colocam cadeado no portão”, enfim, repetindo ou
excluindo-se em relação ao sentidos já trazidos pelo texto, de modo que o novo, que sentidos
outros, independentes do arquivo que lhes é disponível, isto é, da música, não são evocados.

Temos a suposição de que tal característica dessas produções se deve, em grande


parte, à proposta da professora que previa mesmo esse movimento de retorno dos sujeitos às
75

suas famílias com o “olhar do texto”, que solicitava tal relação entre a música e a família de
cada um. Entretanto, trazemos conosco a hipótese de que tal homogeneidade constitutiva
deste momento de escrita dos sujeitos se deve também ao gênero do texto ao qual foram
apresentados, qual seja, uma música.

Lendo, novamente, o texto, escutando novamente a canção e levando em consideração


o seu gênero, percebemos, em sua composição, certa monotonia, uma homogeneidade em seu
desenrolar, o que podemos visualizar nos versos e expressões que se repetem e no próprio
ritmo dela, que permanece praticamente o mesmo do começo ao fim. Além disso, os sentidos
que a compõem caminham nesta mesma direção, já que podemos concordar que falam de
acontecimentos ou atitudes consideradas comuns, como, por exemplo, um almoço e um jantar
que precisam ser sempre em família, simbolizando aqueles sentidos de harmonia e união já
enunciados como dominantes pelos sujeitos desta pesquisa em momento anterior.

Um último dado desta parte do corpus que muito nos interessa diz respeito à
correlação entre a proposta de redação da professora e a efetivação da escrita dos alunos.

Retomando a indicação da docente, veremos que ela solicita, sim, uma relação entre
aquilo que eles deveriam produzir e a música; contudo, é para além da família dos próprios
sujeitos que a professora os impulsiona: muito mais que apenas uma relação da família
descrita na música com a família do sujeito, a proposta é a de que as outras famílias que o
sujeito conhece se tornem também objeto de discussão de seu dizer.

Mas isso não acontece em nenhuma das produções analisadas: é apenas da sua família
que esses sujeitos falam, com mais nenhuma eles comparam os sentidos advindos do poema.
Isso nos faz pensar que tal proposta de escrita que toma como base a relação, isto é, que traz
consigo um espaço para a comparação, e que torna possível ao sujeito falar de si e do outro,
dos sentidos que lhes são próximos, com os quais ele convive, e daqueles que ele apenas
observa ou „já ouviu falar‟, constitui-se como um lugar possível à emergência da
subjetividade, visto que ao poderem discursivizar tanto sobre sua família quanto a respeito das
outras que ele conhece, todos os sujeitos optaram pela primeira possibilidade de escrita,
fechando-se naquilo que lhes é mais próximo.

4.2.2. Descrever ou relacionar? Um discurso sobre um desejo de família


76

Como é a família descrita no poema? Foi com esta proposta de escrita parafrástica,
isto é, que solicitava dos alunos um texto em que apenas os sentidos do poema fossem
resgatados, que esse terceiro momento de redação começou. Surpreendeu-nos, muito, deparar-
nos com essa orientação da professora para a produção textual dos alunos, uma vez que tal
indicação para a escrita nos faz pensar num ensino de língua(gem), como a maioria das
experiências escolares que tivemos nos demonstraram, que se pauta na repetição de sentidos
do texto, que “treina” os sujeitos-alunos a serem meros repetidores do “o que o autor quis
dizer”.

Entretanto, a leitura das produções textuais nos faz perceber que esse momento de
escrita esteve perpassado por sentidos outros, isto é, por uma polissemia. Isso significa que os
sujeitos puderam ir além daqueles sentidos enunciados pelo poema “Infância”, de Carlos
Drummond de Andrade. Os sujeitos-alunos, desse modo, evocaram suas próprias impressões
sobre o texto e, de maneira muito semelhante à produção que eles fizeram com base na
música, antes por nós analisada, eles utilizaram-se da relação entre os sentidos de família do
texto e os sentidos de sua própria família, o que não era previsto pela proposta de redação da
professora, que, aparentemente, não abria espaço para a emergência da subjetividade.

E esse “escape” dos sujeitos, esse discursivizar sobre sua família (e de seus desejos de
família, como veremos), que não estava previsto no texto, interessa-nos muito, já que indicia,
mais uma vez, a necessidade desses sujeitos usarem a escrita para falarem de si. Além disso,
esse movimento de escrita dos sujeitos vem confirmar, uma vez mais, a nossa proposição de
que um trabalho pautado no discurso polêmico abre sempre o espaço necessário para a
assunção da autoria e para a emergência da subjetividade: mesmo que, em algum momento, a
situação de escrita se ancore numa proposta parafrástica, como foi o caso dessa produção,
quando os sujeitos já estão acostumados com um trabalho de língua(gem) que possibilita o
novo, que traz sempre a discussão, a crítica e a heterogeneidade como metodologia, o
ambiente polissêmico é o que perpetua.

Trazemos, agora, alguns recortes dessas produções, os quais bem demonstram esse
movimento do sujeito entre escrever sobre a família do texto e a sua, e que ainda nos dá
indícios dos sentidos aos quais os sujeitos têm acesso sobre o tema família: a família do
poema denominada como “antiga”, “rural” ou “do campo”, e a família do sujeito
caracterizada pelos sentidos de “atual”, “da cidade” ou “urbana”, além de inserida em um
contexto que se sustenta na “tecnologia”.
77

Recorte 1:

“Eu vi uma familia em um poema um pouco diferente da minha


vou explicar porque.
Porque a familia dele é rural e a minha é urbana e as
semelhanças é que meu pai também monta a cavalo e a familia deles é
simples igual a minha e tem uma pessoa que faz café bom na familia
deles que eu não sei quem é. e na minha familia eu sei quem faz café
bom e é OBVIO que é minha vó.
E essa é as diferenças e semelhanças entre famílias”
(Semelhanças e diferenças entre famílias).

Recorte 2:

“Minha familia não é Rural


Minha familia é urbano
Ela é pequena igual a do Texto.

Meu pai não munta em cavalo


Ele dirige o carro,
Mas aveses ele munta cavalo
Só quando a gente vai no sitil

Mas tambem minha mãe


e tambem me fala:
- Não grita seu irmão
Vai acordar [...]”

Recorte 3:

“Era uma familia muito simples eles não era muito moderno
igual é agora que tem tecnologia eles morava em fazenda eles eram
rurais [...]
78

Agora vou falar da minha familia é unida igual há daquele


poema só que não escrevi minha familia é urbana moramos na cidade
[...]” (Minha familia é diferente da sua!).

Recorte 4:

“A familia dele e rural a minha e urbana a familia é pequena


igual a deles.
Meu pai trabalha em um colégio o pai do menino trabalha na
pecuaria minha mãe trabalha no HC a mãe dele não trabalha ele e
costureirae faz crochê.
Os filhos não trabalham os meus irmãos sim essa é a diferença
da minha família para a dele” (A família).

Recorte 5:

“Essa Familia não e iguau a minha porque o meu papai não


nanda a cavalo so que a minha mamãe costura e eu tenho irmão eu
tenho irmã eu moro na cidade eles mora na rossa e a minha familia de
ferente FIM” (A “Infância”).

Recorte 6:

“Familia Moderna
A minha familia é deferente que essa familia de hoje em dia é
assim o pai não ada de cavalo os filho não brinca em arvores a mãe
não custura Por ogem é moderno as criaça meche e coputador a mãe
trabalha, o pai anda de carro”.

Uma família rural ou do campo, simples, antiga, que não tem contato com a
tecnologia: são esses os sentidos advindos da família descrita no poema para esses sujeitos-
alunos. De forma distinta, uma família urbana, em que os pais trabalham, têm carro, uma
família que vive na cidade e que se utiliza muito da tecnologia, como a TV e o computador: é
assim que são discursivizadas as famílias “atuais”. É, pois, junto a essa formação discursiva
que distingue o rural e do urbano, o novo ou atual daquilo que é velho ou antigo, que os
79

discursos desses sujeitos-alunos se constroem. Ilustra muito bem o que dizemos o recorte que
apresentamos abaixo, no qual o sujeito constrói uma parte de seu texto, tomando como base a
estrutura do poema, que “atualiza”, podemos assim dizer, os sentidos do poema infância,
trazendo traços característicos das famílias que estes sujeitos denominam “atuais”.

Recorte 7:

“[...] Familia tecnologica

O pai no jornal nacional


A mãe na novela
A irmã nos filmes
O irmão nos desenhos animados

A vó no fuxico
O vô no canal gado
O primo no X-Box
A prima no computador

O tio no playstaytion
A tia no nootbok
A madrinha no Nintendo 64
O padrinho no celular” (O meu pé de laranja lima).

Concordamos com que o discurso dominante que circula na sociedade em que


vivemos, tão marcada por essa necessidade de utilizar o novo, de consumir o atual, de viver
sempre em contato com a tecnologia, a qual a cada dia inova e se faz mais sofisticada, tende a
levar os sujeitos a, cada vez mais, concordar com a importância desse mundo moderno,
deixando de lado aqueles sentidos de simplicidade, antiguidade e, algumas vezes, caretice,
que são atribuídos à vida do campo, ao ambiente rural. Mas não é dessa forma que os sujeitos-
alunos dessa pesquisa se inserem nessa formação discursiva: é de uma maneira bem distinta
desse discurso dominante, que opõe o rural ao urbano, trazendo sempre o segundo como o
melhor, que as famílias são, por esses sujeitos-alunos, discursivizadas.

Recorte 8:
80

“A familia de agora é muito diferente é video game computador tudo


moderno na historia mora no campo a familia dele e a minha na
cidade mas antigamente era mais tranquilo” (A familia).

Recorte 9:

“Esta familia e uma Fora de tequenologia as das antigas anda o pai a


cavalo e a mãe cosendo e então o irmãozinho esta sonhando, mas a
preta velha faz um cafezinho gostoso e tanto.
Viver a vida no campo e assim mas que pena que minha familia não é
assim” (Familia fora de tequinologia).

Quando nos deparamos com os sentidos iniciais da fala desses sujeitos-alunos, somos
levados, num primeiro momento, a pensar que o discurso da pós-modernidade, representado
pelo “videogame”, pelo “computador”, pela “modernidade” e por um estar “dentro da
tecnologia”, seriam os sentidos que mais agradam às crianças, de modo que nossa posterior
expectativa seria a de encontrar um discurso que valorizasse estes aspectos da
contemporaneidade, sentidos esses que confirmariam serem as famílias atuais mais felizes.
Entretanto, é exatamente um efeito de sentido de desejo por uma vida mais tranquila,
representada pelo campo, pelo rural, em que “viver fora de tecnologia” é sinônimo de “paz”,
de “não ter problemas” como na cidade, o que os recortes abaixo também nos demonstram.

Recorte 10:

“Essa familia é diferente das outras. Elas vivem no campo. Essa


familia não tem problemas a familia de Hoje em dia são muitas
agitadas, mas aquela familia não fica nervosa é só susego. E toda a
familia é simples e todos são umiudes.
Eu queria que minha familia tivesse essa mesma vida mas
infelizmente não da mais” (Familia).

Recorte 11:

“[...] As familias da cidade não é calma assim, é agitada, teimosa já a


familia rural e calma e quieta” (Familia rural).
81

Recorte 12:

“A família do poema é bem simples, mais é bem mais feliz que a


gente porque é tudo calmo e quase não tem ladrão os vizinhos não
falam mal das outros pessoas, é cada um na sua, é igual o ditado
popular que é assim: vamos brincar de vida, cada um cuida da sua.
[...] Eu gostaria de morar ne algum sitio ou ne algum lugar que
seja susegado e quieto, que só escute o barulho dos animais, ai deve
ser tão bom morar ne um lugar desse” (Cada familia tem seu jeito de
ser).

Um desejo de morar em lugar mais “tranquilo”, mais “calmo” e “quieto”, em que as


pessoas não sejam “teimosas” e nem fiquem “nervosas”, como são “as famílias da cidade”.
Viver longe da “agitação” da cidade, dos problemas que esse lugar traz consigo, tais como “os
roubos”, “a fofoca” e, principalmente, como podemos ver abaixo, “a falta de tempo”, é o que
discusivizam esses sujeitos: uma identificação com “o sossego e a calmaria do campo”, com
um tempo maior para a brincadeira e uma liberdade que a cidade, “tomada pela tecnologia”,
como diz um sujeito, e pela correria, não torna possível.

Recorte 12:

“[...] E essa família é muito susegada mas a minha é corrida de mais.


[...] Eles só brincão eu vasso lição vou na escola faço bastante lição”
(Uma família pequena).

Recorte 13:

“Essa familia é uma familia das outras modas das modas dos
campos que se andava de cavalo, que se sentava na varanda e
costurava, a vó fazia um café pretinho, o bebê que dormia a tarde para
deixar os outros em paz e um menino que brincava em volta dos pés
de manga.
Minha família é uma familia das novas modas das modas da
cidade que se anda de carro, que se costura em uma empresa, a vó é
aposentada mas porem andava atraz de trabalho, o bebê fica na creche
82

atormentando as educadoras e uma menina que ficava na escola ou


estudando sem tempo pra brinca [...]” (Minha familia e outra).

Recorte 14:

“[...]
Essa familia vive livre no campo
A minha familia vive trabalhado

Cada familia tem seu jeito


Cada familia tem sua mania

Essa familia não é igual a minha


Mas a minha familia pode ser igual
a essa para poder viver mas livre” (Essa familia é...).

Recorte 15:

“O mundo não está mais como era, a anos atrás ninguém


precisava ter medo de nada porque não tinha perigo de nada. E as
pessoas costumavam morar em sítios e fazenda, e hoje moram em
prédios isoladas do campo.
Hoje são tomadas pelos aparelhos eletrônicos e esquecem das
brincadeiras do tempo antigo” (Descrevendo a família).

Recorte 16:

“Minha familia e agitada como todas da cidade.


As familias do campo é calma tranquila claro no campo não tem
armas bandidos ou loucos lá é só tem mato plantação” (Familia Rural
não Familia Urbana).

Recorte 17:
83

“Esta familia vendo é uma familia feliz calma a mãe costura


fazendo crochê um filio dormindo e bom e os outro filio entre as
mangueras e bom isso as familia de agora não é “assim” tipo: as mãe
de agora não fica muito em casa, os pai não vam para o campo vam
para o trabalho” (Uma família feliz).

Uma sociedade em que as crianças precisam estudar muito e acabam sem muito tempo
para a brincadeira, ou ainda em que as brincadeiras antigas são esquecidas porque as pessoas
não conseguem mais viver longe da tecnologia. Um lugar em que os pais precisam trabalhar
muito e que, por conta dessa vida corrida, não ficam muito em casa, mas presos à agitação do
dia a dia – ao contrário da liberdade do campo, sugerida na primeira estrofe do recorte 14. Um
modo de viver em sociedade marcado pelo medo do assalto e por um isolamento das pessoas:
são esses os discursos a respeito da diferença entre o rural e o urbano, que criam um efeito de
sentido negativo a essa segunda forma de viver em sociedade, que os sujeitos crianças dessa
pesquisa enunciam, marcando que eles se posicionam e sabem usar a escrita a fim de fazer
uma análise crítica da realidade.

Um desejo de viver numa sociedade mais tranquila, mais sossegada, em que haja
maior tempo para a brincadeira, em que os pais trabalhem menos e possam estar mais com
seus filhos, – o que retoma sentidos que já fizeram parte do discurso desses sujeitos-alunos
nas redações iniciais – em que as pessoas sejam verdadeiramente livres: indícios, mais uma
vez, da inscrição subjetiva desses sujeitos, que reclamam por, que querem uma vida em
família diferente.
84

Considerações Finais

Da mesma forma que na introdução deste trabalho, o presente momento de retomada e


conclusão desta pesquisa representa, pois, uma tarefa muito árdua para nós, dada a
heterogeneidade do dizer à qual nos filiamos e, mais que isso, à polissemia que constituiu o
nosso corpus, a qual buscamos apresentar e refletir ao longo desse trabalho.

É importante dizer nesse momento que, bem longe de findar as discussões que aqui
realizamos, essas considerações trazem consigo outro propósito: nosso intuito, aqui, é o de
retomar aqueles aspectos que, ao longo de nossa investida de análise vieram responder os
questionamentos de nossos objetivos, confirmando ou mesmo destituindo as nossas hipóteses
acerca do ensino do papel e do lugar da subjetividade no ensino de língua(gem). Isso porque,
a nosso ver, sentidos outros ainda se tornam (e sempre serão) passíveis de enunciação por
meio de nosso corpus, visto o ideal de um dizer que é sempre perpassado pelo já-dito, pelo
contexto sócio-histórico e pelo próprio sujeito, pelo qual a nossa posição de analistas do
discurso se engendra, o que torna cada novo olhar para o discurso um novo desvendar de
sentidos.

O primeiro aspecto de nossas investigações que retomaremos, diz respeito aos sentidos
discursivizados pelos sujeitos desta pesquisa acerca do tema família, seja sobre um modelo
dominante de família em que a harmonia e a união, a legalidade e o silenciamentos dos
problemas se fazem exigências, ou acerca dos sentidos, também dominantes, sobre pai e sobre
mãe, sobre homens e mulheres, como muito discutimos, são indicativos de algo muito
importante para nós: eles vêm reiterar os nossos suportes teóricos, a nossa identificação com a
concepção de um sujeito, como afirma Coracini (2007), que tem sua identidade, sua
subjetividade fundado a partir da presença do Outro, por um discurso social que a institui
como heterogênea e que o edifica como um sujeito cindido, perpassado pela ideologia, que se
submete, inconscientemente, e assume como seu um discurso da sociedade.

Foi, pois, um sujeito que fala de si a todo o momento, por meio da voz dos outros e do
Outro, por meio do olhar social e ideológico que o constitui, que nesta pesquisa encontramos:
sujeito esse que ao se posicionar e se identificar ou desidentificar (PÊCHEUX, 2009) com
determinados sentidos, o faz por meio de sentidos que não apenas seus; um sujeito, como já
dissemos na fundamentação deste trabalho, que se institui como múltiplo, fundando-se por
“crenças que fazem parte do imaginário e da realidade da sociedade” (GHIRALDELO, 2003,
85

p. 67), sendo “pouco afeito ao controle de si e do outro, já que é habitado por outros” e se
revelando por meio da linguagem (CORACINI, 2003b, p. 150).

Outra questão relevante em nosso processo de pesquisa diz respeito à nossa ideia
inicial, descrita em nossa metodologia, de que os textos selecionados para as produções das
crianças, qual seja a música e o poema, funcionando como um arquivo (PÊCHEUX, 1997),
pudessem favorecer a emergência da subjetividade. Nossas análises demonstraram que, de
forma contrária ao previsto, foram estas duas produções baseadas em textos, pautas nestes
arquivos, me menos estiveram marcadas pela polissemia de sentidos. Disso nos fica a
reflexão: como a escola está trabalhando com o arquivo? Ou a falta desse trabalho faz com
que o ambiente mais aberto que a primeira proposta, partindo apenas de um tema e de uma
discussão, pareça ser o espaço ideal para a emergência da subjetividade?

O ponto central de nossas investigações, porém, diz respeito à nossa intenção em


compreender se os sujeitos-alunos do ensino fundamental encontram lugar na sua escrita que
lhes possibilitam inscrever-se subjetivamente, isto é, se esse lugar de sujeitos-autores lhes
proporciona um poder falar de si e dos sentidos com os quais ele se identifica, objetivo
essencial deste trabalho. Para esta nossa proposição, nosso corpus, como um todo, demonstra
uma resposta afirmativa: ao longo da leitura e das análises das produções textuais desses
alunos, ficou-nos um grande indício da necessidade que o sujeito criança tem para usar a
escrita para falar de si.

Percebemos, no decorrer desse texto, um sujeito-aluno que escolhe falar de sua família
quando tem como proposta da docente falar de “todas as famílias”, quando pode escolher
relacionar os sentidos da música “com sua família e com outras que ele conhece”, ou ainda,
quando não tem uma proposta de escrita parafrástica, que não prevê uma comparação e muito
menos um resgate de si, mas apenas a descrição dos sentidos da família do poema.
Encontramos um sujeito que se marca na escrita, evidenciando que “agora vai falar de si” e,
mais ainda, um sujeito que encontra na escrita um lugar para demonstrar seus sentimentos e
desejos mais íntimos, que “desabafa” e que discursiviza a partir de sua fala mais íntima, a
partir da voz de seu “coração”. Um sujeito que enuncia sentidos que refletem sua vontade de,
muito mais que presentes, ele quer seus pais presentes (vale o trocadilho), sua vontade de que
esses lhe dediquem mais tempo do que “para o trabalho”, “para o jornal”, “para a novela”.
Sujeito esse que, mesmo vivendo no mundo contemporâneo, perpassado pela tecnologia,
deseja a tranquilidade do campo, o aconchego da vida simples.
86

Vemos, então, por todo o nosso corpus que a criança quer falar de si, do que gosta, do
que deseja, daquilo que ela quer e que lhe é necessário. Contudo, a escola, na maioria das
vezes, está presa a outros sentidos, especialmente a um ensino de língua pautado na repetição
de sentidos cristalizados, na cópia como atividade de exercício da escrita, na paráfrase como
único modo de “expressão” do sujeito e nas correções ortográficas e gramaticais como único
modo de um professor olhar para a produção textual de seu aluno. Assim vamos produzindo,
como já falávamos na introdução deste trabalho, sujeitos cada vez mais esquivos “ao papel, à
caneta e aos livros”, para os quais a escrita representa um ato massivo e desprovido de
sentidos.

Mas o movimento que visualizamos em nosso trabalho foi totalmente inverso ao que
acabamos de dizer. Tal espaço do sujeito para poder falar de si e, do mesmo modo, a
identificação desses sujeitos com a atividade de escrita, o que percebemos quando eles se
inserem e enunciam sentidos que lhes constituem, é decorrente, a nosso ver, do discurso
polêmico (ORLANDI, 1996a) no qual todo o trabalho da professora se pauta, o qual vem
confirmar a nossa hipótese de que ele se torna, assim como para a assunção da autoria, lugar
privilegiado para a emergência da subjetividade, do desejo, da vontade, do falar de si. A
disputa dos sentidos se torna lugar essencial para que esse sujeito de demonstre, fale de si e
dos sentidos com os quais ele se identifica ou desidentifica, e isso acontece, como já
dissemos, mesmo que em algum momento a proposta a situação de escrita se oriente de forma
parafrástica, visto que, como nosso corpus demonstrou e como nós defendemos, quando os
sujeitos já estão habituados a um ensino da língua materna que abre espaço à polissemia e à
crítica, é desse lugar heterogêneo que eles escolhem falar.

Embora, mais uma vez, não trabalhamos em Análise do Discurso com a quantidade, a
extensão das redações desses alunos, como o leitor poderá perceber pelos anexos deste
trabalho, funcionam discursivamente e nos dão indícios também de algo que queríamos
investigar, isto é, se essa relação dos sujeitos-alunos com a escrita baseada no discurso
polêmico e na possibilidade de emergência da subjetividade, constitui-se como um lugar de
identificação dos sujeitos com a escrita. E a resposta é positiva: encontramos sujeitos-alunos
que não têm medo de usar a escrita para falar dos sentidos que lhes são caros e que o fazem de
uma forma, parece-nos, tão natural, tão gostosa, que nos faz acreditar que é com muito prazer
que eles o fazem.

Finalmente, resta-nos inferir acerca das contribuições desta pesquisa para nós, como
futuros docentes de língua e linguagem. É, pois, reiterando as nossas concepções de um
87

ensino da Língua Portuguesa que precisa estar pautado numa metodologia que se interesse
pelos sentidos que os sujeitos-alunos enunciam, que lhes dê a possibilidade de discursivizar
acerca dos sentidos com os quais eles se identificam, que lhes permita criar, criticar, discutir,
questionar e defender pontos de vista, que concluímos essas nossas reflexões. Um ensino que
se destitua de um modo de ver a língua, de compreender os sentidos e os sujeitos de forma
parafrástica, e que faça do sujeito-aluno do ensino fundamental muito mais que um “exímio
decodificador dos aspectos que “o autor quis dizer”” (ROMÃO E PACÍFICO, 2006, p.17).
Um ambiente escolar de leitura e de escrita que encante esse sujeito pelo movimento dos
sentidos, pela heterogeneidade dos discursos, pelo modo, ao mesmo tempo, integrado e
distinto da linguagem, tal como pudemos perceber aqui, por meio dos sentidos que os sujeitos
desta pesquisa colocaram em funcionamento.
88

Referências Bibliográficas

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90

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PACÍFICO, S. M. R.; ROMÃO, L. M. S. Da cartilha ao e-mail e à peça publicitária: os


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PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento?. Campinas, SP: Pontes,


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Eni Puccinelli Orlandi et al. 4ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.

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interpretação na sala de aula. São Paulo: Editora DCL, 2006.

SILVA-RODRIGUES, E. S.; PACÍFICO, S.M.R Investigações sobre autoria em


textos produzidos por alunos de 4ª série do Ensino Fundamental. In: PACÍFICO, S. M.
R.; ROMÃO, L. M. S. Leitura e escrita: no caminho das linguagens. 1ª ed. Ribeirão
Preto, SP: Alphabeto Editoria, 2007.
91

ANEXOS
92

ANEXO A – Música utilizada como base para a produção da segunda redação

“Família”
Titãs

Composição: Arnaldo Antunes / Toni Bellotto

Família! Família! O choro do nenêm é estridente


Papai, mamãe, titia Uô! Uô!
Família! Família! Assim não dá pra ver televisão...
Almoça junto todo dia
Nunca perde essa mania... Família êh! Família ah!
Família! oh! êh! êh! êh!
Mas quando a filha Família êh! Família ah!
Quer fugir de casa Família! hiá! hiá! hiá!...
Precisa descolar um ganha-pão
Filha de família se não casa Família! Família!
Papai, mamãe Cachorro, gato, galinha
Não dão nem um tostão... Família! Família!
Vive junto todo dia
Família êh! Família ah! Nunca perde essa mania...
Família! oh! êh! êh! êh!
Família êh! Família ah! A mãe morre de medo de barata
Família!... Uô! Uô!
O pai vive com medo de ladrão
Família! Família! Jogaram inseticida pela casa
Vovô, vovó, sobrinha Uô! Uô!
Família! Família! Botaram cadeado no portão...
Janta junto todo dia
Nunca perde essa mania... Família êh! Família ah!
Família!
Mas quando o nenêm Família êh! Familia ah!
Fica doente Família! oh! êh! êh! êh!
Uô! Uô! Família êh! Família ah!
Procura uma farmácia de plantão Família! hiá! hiá! hiá!...
93

ANEXO B – Poema estudado para a produção da terceira redação

Infância

Carlos Drummond de Andrade

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.


Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu


a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo


olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava


no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história


era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
94

ANEXO C – Redações iniciais – scaneadas e sem identificação dos autores

4º ANO

I
95

II
96

III

IV
97

V
98

VI

VII
99

VIII

IX
100

XI
101

XII
102

XIII
103

XIV
104

XV
105

XVI
106

XVII
107

XVIII
108

XIX
109

XX
110

XXI
111

XXII
112

XXIII

XXIV
113

XXV
114

XXVI
115
116

XXVII
117

XXVIII
118
119

XXIX
120
121

XXX
122
123

XXXI
124

5º ANO

I
125

II

III
126

IV
127

V
128

VI
129

VII
130

VIII
131

IX
132

X
133

XI
134

XII
135

XIII

XIV
136

XV
137

XVI
138

XVII
139

XVIII

XIX
140

XX
141

XXI
142

XXII
143

XXIII
144

XXIV
145

XXV
146

XXVI
147

XXVII
148

ANEXO D – Redações com base na música Família do grupo Titãs – scaneadas e sem
identificação dos autores

4º ANO

II
149

III

IV
150

V
151

VI

VII
152

VIII

IX
153

X
154

XI

XII
155

XIII
156

XIV
157

XV
158

XVI

XVII
159

5º ANO

II
160

III

IV
161

VI
162

VII

VIII
163

IX

X
164

XI

XII
165

XIII
166

XIV
167

XV
168

XVI
169

XVII
170

XVIII
171

XIX
172

XX
173

XXI
174

XXII
175

XXIII
176

XXIV
177

XXV
178

XXVI
179

XXVII
180

ANEXO E – Redações com base no poema Infância de Carlos Drummond de Andrade –


scaneadas e sem identificação dos autores

4º ANO

I
181

II
182

III
183

IV
184

V
185

VI

VII
186

VIII
187

IX
188

XI
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