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Ribeirão Preto
2011
Juliana Aparecida Possidônio
Ribeirão Preto
2011
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO OU PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
................................................................... ...................................................................
Prof.ª Dra. Elaine Sampaio Araújo Prof.ª Dra. Fabiana Cláudia Viana Borges
....................................................................
Prof.ª Dra. Soraya Maria Romano Pacífico
Orientador(a)
Antônio, Ivone e Rosana: pelo caminho, o qual a cada dia
eu enfeito com uma nova história.
Lucas, por nossas, sempre, inesquecíveis histórias!
Soraya, por trazer tantos sentidos a todas as minhas
histórias!
Agradecimentos
Aos meus pais, Antônio e Ivone: por todo o apoio, toda a confiança e toda a esperança
que, desde sempre, investem em mim e em minhas aspirações.
À minha irmã Rosana: pelo exemplo de convicção e luta que carrega consigo, e com o
qual me contagia.
Ao meu namorado Lucas: pelos sentidos tão lindos que enunciamos juntos. Pela
paciência e pela compreensão, além das trocas e discussões que muito enriqueceram esse
trabalho e que são tão caras a mim enquanto pessoa.
Aos meus amigos Maria Cecília, Calima, William, Mariana Lima, Jaqueline de Araújo
e Mariana Morales: a alguns pelas partilhas teóricas, a outros pelos muitos momentos de
trabalho e conversa que passamos juntos, mas a todos eles, pelas mais lindas e sinceras
amizades.
No entardecer dos dias de verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...
Introdução .......................................................................................................................... 10
1. Objetivos ........................................................................................................................ 13
3. Metodologia ................................................................................................................... 27
4.1. “Para início de conversa”: uma reflexão sobre os sujeitos e os sentidos das
redações iniciais .................................................................................................. 31
4.1.1. “Toda família”, “minha família” ou ambas? O discurso polêmico e a
subjetividade ................................................................................................ 31
4.1.3. Os papéis dos membros da família: sentidos sobre o ser pai e o ser mãe
........................................................................................................................ 58
ANEXOS ........................................................................................................................... 91
10
Introdução
Será sempre muito difícil elaborar uma introdução, cujo grande fim é a produção de
uma justificativa que, por meio de um texto coerente, apresente as nossas motivações para o
trabalho com determinado assunto e que, em consequência, convença nossos leitores a
respeito da relevância do mesmo, quando a temática que nos incita é exatamente a das várias
possibilidades de sentidos que perpassam um discurso.
E será, portanto, este segundo enfoque que caracteriza nossa língua que direcionará o
nosso olhar: inspiramo-nos num trabalho de ensino e aprendizagem da língua escrita que toma
como base a polissemia, as várias possibilidades de significação que precisam, a cada dia, a
cada nova aula ou novo texto, a cada novo livro que pegamos em nossa mão, ser construídas e
não desvendadas pelos alunos – postura esta, como demonstram muitas de nossas
experiências, ainda bem distante da maioria das salas de aula brasileiras.
É de muito tempo a nossa imersão dentro das práticas de leitura e escrita e, nesse
processo, a instituição escolar foi aquela que exerceu a maior influência na nossa constituição
enquanto sujeitos do dizer. Todavia, quase que a totalidade de nossa escolarização esteve
calcada num ensino da língua materna marcado por uma relação dos sujeitos com a linguagem
caracterizada pela ilusão, ou tentativa de imposição da homogeneidade de interpretações.
Acostumamo-nos com uma figura docente como voz de autoridade, ditando-nos as
explanações possíveis, administrando os sentidos e as interpretações de acordo com sua
vontade, sob o apoio do maior legitimador de sentidos de nossa sala de aula, qual seja o livro
didático (GRIGOLETTO, 1999).
11
Nesse contexto, também não nos despertaram o gosto pela leitura e pela escrita, visto
que elas sempre foram concebidas como espaço de repetição de conteúdos cristalizados e não
como práticas sociais mediadoras de conhecimento, sendo que, portanto, não puderam se
estabelecer como experiências prazerosas. Na verdade, ler e escrever sempre foram sinônimos
de fixar e decorar conteúdos já dados, processo este que formou, e forma a cada dia, sujeitos
esquivos „ao papel, à caneta e aos livros‟, considerando-se incapazes de construir um texto
coerente e compreendendo a leitura como um ato maçante. É nesse sentido que Romão e
Pacífico (2006) apontam que:
a leitura se tornou ferramenta, cuja utilização cotidiana em sala de aula instrumentaliza a
mesmice, a padronização e a formação de um sujeito repetidor, capaz apenas de observar os
sentidos literais, exímio decodificador dos aspectos que “o autor quis dizer” (p. 17).
É, pois, marcado por uma leitura parafrástica, isto é, pela reprodução de sentidos, pela
busca incessante do significado único e verdadeiro dos textos, como se eles fossem
constituídos por uma mensagem a ser decodificada pelo leitor, que o ensino até hoje se
configura.
Foi durante nosso processo de formação como futuros pedagogos, entretanto, que em
nós se fundou uma nova concepção. O contato com os estudos a respeito da escrita, da
alfabetização e do letramento, além das metodologias de língua portuguesa, abriu nosso olhar
para novas práticas de ensino da leitura e da escrita perpassadas pela multiplicidade de
significados e pela subjetividade do educando, contato este que pôde modificar inclusive as
nossas experiências individuais com o falar, o ler e o escrever.
Foi com base nos referenciais da Análise do Discurso, teoria que se ocupa das práticas
de linguagem, sob o enfoque de um dizer e de um sujeito marcados pela polissemia e pela
incompletude, que desenvolvemos nossas propostas de estágio no Ensino Fundamental de
escolas públicas, junto à disciplina de Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa do curso
de Pedagogia, da FFCLRP/USP, as quais nos proporcionaram vislumbrar lindas experiências
de contato e produções com o ler e escrever, bem distintas daquelas supracitadas. E foi assim,
nesse encontro com os referenciais teóricos da teoria mencionada que, bem como Romão e
Pacífico (2006, p.10),
Descobrimos que nada está acabado, que os sentidos das coisas, dos textos, da vida é tecido
a cada momento a partir de vazios e também de discursos e de outros discursos, em um
processo contínuo de construção. E essa capacidade de tecer o novo é essencialmente do ser
humano, do ser que está “vivo”, aquele que não pára no tempo, aquele que questiona,
transforma, produz coisas novas e dá significados novos aos textos, à vida.
12
1. Objetivos
Nesse sentido, ler e escrever ainda são, para muitos sujeitos, uma tarefa complexa, às
vezes árdua e, outras vezes, impossível de ser realizada, isto porque, as atividades de
discussão, interpretação e escrita, bem como “os textos lidos pelos alunos da chamada escola
tradicional muitas vezes não têm relação com a realidade em que eles vivem” não deixando,
assim, que as práticas de linguagem aconteçam “de modo espontâneo” pelo fato de estarem
dissociadas “das experiências cotidianas” dos sujeitos-alunos (ROMÃO & PACÍFICO, 2006,
p. 32).
Contudo, é por acreditarmos que o trabalho com a língua pode e deve se constituir
como um exercício que, diferentemente da abordagem tradicional a que antes nos referimos,
“faça sentido”, tornando-se, assim, prazerosa a todo sujeito, que temos como objetivo deste
trabalho analisar como os sujeitos-escolares, que frequentam o primeiro ciclo do Ensino
Fundamental realizam as atividades de linguagem, tais como leitura, discussão e interpretação
de textos para, a partir disso, construírem seu próprio texto.
Para isso, selecionamos textos cujo tema é a família, pois, para nós esse tema aborda
sentidos vividos por todo ser humano, uma vez que discursivizar sobre família afeta o sujeito
seja de qual maneira for, e isso, a nosso ver, pode promover a emergência da subjetividade na
14
produção infantil, fase escolar marcada por encontros e desencontros, em que muitas crianças
demonstram ter medo de escrever, ou ainda, temos a hipótese de que muitas não escrevem
porque não estão familiarizadas (vale o trocadilho), com as temáticas propostas por seus
professores ou ainda, considerando o peso deste material no trabalho docente, com os
exercícios de língua, de produção escrita, presentes no livro didático.
Por ser assim, objetivamos, em suma, por meio de um tema conhecido, analisar a
escrita do sujeito-aluno do Ensino Fundamental e como a escrita pode ser o lugar da
constituição do sujeito e dos sentidos.
15
2. Fundamentação teórica
A Análise do Discurso apresenta como objeto de estudo, como seu próprio nome já
indica, o discurso. O discurso pode ser caracterizado como o instrumento linguístico de
mediação entre o homem e a realidade. Ele engloba tanto os enunciados pertencentes a uma
mesma formação discursiva, conceito que explicaremos, quanto suas condições de produção,
17
sendo que estas dizem respeito aos contextos, imediato ou individual (contexto em sentido
estrito, significando o aqui e o agora do dizer), e histórico (contexto em sentido lato, mais
amplo que o primeiro, considerando os aspectos sociais, históricos e ideológicos do contexto
de enunciação), que possibilitam a produção do dizer. “Se separamos contexto imediato e
contexto em sentido amplo é para fins de explicação, na prática não podemos dissociar um do
outro, ou seja, em toda situação de linguagem esses contextos funcionam conjuntamente”
(ORLANDI, 2006, p. 15).
Nesse sentido, ao estudarmos o ensino de nossa língua materna por meio do contato
com o texto, dado que é nele que o discurso, nosso objeto de estudo, materializa-se, não
estaremos preocupados apenas com questões que dizem respeito à língua, à fala ou à
gramática, pois, apesar de o discurso carecer de tais subsídios linguísticos para ter existência
objetiva, ele carrega uma exterioridade à linguagem, sendo compreendido apenas no social,
isto é, ao se elucidar os aspectos históricos e ideológicos que o compõem.
não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com
maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto
parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma determinada
forma de sociedade.
de uma mensagem, eles possuem como objeto o próprio discurso, lugar em que sujeitos e
sentidos se edificam conjuntamente.
Desse modo, diremos que não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no
funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e
pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de
sentidos e não meramente transmissão de informação. São processos de identificação do
sujeito, de argumentação, de subjetivação, de construção da realidade etc. Por outro lado,
tampouco assentamos esse esquema na ideia de comunicação. A linguagem serve para
comunicar e para não comunicar. As relações de sujeitos e sentidos e seus efeitos são
múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito de sentidos entre
locutores (ORLANDI, 2005a, p. 21).
o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe “em si
mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao
contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-
histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas).
Faz-se necessário apresentar a noção de sujeito discursivo, essencial ao que até aqui
explicitamos. Para a AD, o sujeito não diz respeito a um ser humano específico, mas a um ser
social, ou seja, que só tem existência a partir de determinado lugar social, que é interpelado
pela ideologia e só pode, assim, ser apreendido em determinado momento sócio-histórico e
ideológico. Nesse sentido, o sujeito é caracterizado por uma postura polifônica – constituído
de um conjunto de outras vozes – e heterogênea – constituído de distintos discursos, os quais
se negam, contradizem e convergem entre si. “A voz desse sujeito revela o lugar social; logo,
expressa um conjunto de outras vozes integrantes de dada realidade social; de sua voz ecoam
outras vozes constitutivas e/ou integrantes desse lugar sócio-histórico” (FERNANDES, 2005,
p. 34).
seu dizer. A formação discursiva corresponde a tudo aquilo que pode e deve ser dito em
determinado contexto sócio-histórico, sendo marcada por sentidos que sempre voltam, por
enunciados que se repetem, que retomam uma mesma escolha temática (FOCAULT, 2009).
Trata-se da possibilidade de explicitar como cada enunciado tem o seu lugar e sua regra de
aparição, e como as estratégias que o engendram derivam de um mesmo jogo de relações,
como um dizer tem espaço em um lugar e em uma época específica (FERNANDES, 2005,
p. 60).
[...] o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que
designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem
de seu próprio lugar e do lugar do outro. Se assim ocorre, existem nos mecanismos de
qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as relações entre as situações
(obviamente definíveis) e as posições (representações dessas situações).
Toda formação discursiva tem ainda subjacente uma formação ideológica, visto que
todo signo é marcado pela ideologia, esta, entendida como um mecanismo de naturalização
dos sentidos que constitui o sujeito e materializa-se por meio do discurso, sendo este,
conforme já dissemos, um processo inconsciente. É por meio da formação ideológica que o
indivíduo é interpelado em sujeito, que o indivíduo situa-se numa posição sujeito
determinada, de modo que ele só pode dizer aquilo que diz pelo fato de ocupar tal posição.
Assim,
É com base nos sentidos evocados pelo conceito de interdiscurso, isto é, os sentidos-
outros que todo sujeito acessa, inconscientemente, na constituição de seu dizer, que Pêcheux
(1997) nos fala a respeito daquilo que ele denomina como ilusões ou esquecimentos do
sujeito. O esquecimento nº 1, segundo o autor, diz respeito à crença do sujeito de que ele é a
origem do dizer, que o sentido de seu discurso principia nele. Na ilusão nº 1 “o sujeito não
reconhece a inclusão daquilo que ele diz em determinada formação discursiva e não em outra,
uma vez que é interpelado pela ideologia; logo, a ilusão nº 1 é inconsciente”. O esquecimento
nº 2, por sua vez, pode ser definido como a ilusão da literalidade, isto é, a certeza que o
sujeito tem em relação à ideia de que tudo aquilo que ele diz corresponde ao que ele pensa e
que seu discurso só pode ser enunciado daquela maneira. “No entanto, o que não foi
enunciado continua a existir, pode ser acessível ao sujeito, que fez a opção por determinado
dizer a fim de induzir o interlocutor a entender de um modo e não de outro o discurso
produzido, por isso, a ilusão nº 2 é pré-consciente/consciente” (PACÍFICO, 2002, p. 31).
Orlandi vai ainda dizer, aprofundando tais conceitos de paráfrase e polissemia, que é
tendo em vista tais processos que poderemos distinguir produtividade e criatividade, sendo
que esses conceitos se relacionam, respectivamente, com aqueles processos da seguinte
forma:
É tendo em vista tais conceitos de paráfrase e polissemia que podemos abalizar uma
tipologia discursiva, isto é, modos distintos de estar no funcionamentos do dizer, os quais são
assinalados por Orlandi (1996a) como sendo três: o discurso lúdico, o discurso polêmico e o
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discurso autoritário, sendo que para diferenciá-los devemos levar em conta o objeto discursivo
e os interlocutores de determinado dizer.
O primeiro deles pode ser caracterizado como aquele em que o “objeto se mantém
presente enquanto tal e os interlocutores se expõem a essa presença”, o que resulta numa
“polissemia aberta”, isto é, um lugar discursivo em que qualquer sentido se torna possível
(ORLANDI, 1996a, p. 15). Pensando uma situação em que essa tipologia discursiva se
manifesta, podemos pensar em uma festa ou um encontro entre amigos ou familiares, numa
situação coloquial, onde todos podem falar de tudo e em que não há um objeto discursivo
único determinado.
O discurso polêmico, por sua vez, é aquele em que acontece a disputa, uma tentativa
de domínio do referente por parte dos interlocutores, sendo, então, que o objeto discursivo se
mantém e a polissemia tende a ser controlada, ou seja, cada participante do discurso tem a
possibilidade de evocar sentidos próprios sobre o objeto discursivo, mas tais sentidos,
diferentemente do discurso lúdico, em que qualquer dizer é possível, independentemente do
referente, no discurso polêmico precisam ter relação com este último. Podemos pensar o
discurso polêmico como, por exemplo, um debate temático entre candidatos políticos, no qual
estes tentam, a partir de sua argumentação, que tende a ser distinta da de seus concorrentes,
convencer o eleitor a respeito de sua confiabilidade; outro exemplo, pode ser uma palestra,
um simpósio em que os interlocutores disputam o objeto discursivo, ou seja, todos podem
falar sobre ele.
É de forma contrária a todos esses sentidos em que este último tipo discursivo se pauta
que Pêcheux (1990) já nos falava acerca da equivocidade da língua, isto é, ao fato de que as
palavras, em funcionamento, assumem possibilidades de sentidos outros, são calcadas na
polissemia, sendo que diferentes sujeitos podem evocar distintos sentidos sobre um mesmo
dizer.
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Mas é tristemente que afirmamos, mais uma vez com Orlandi, que na escola,
instituição pela qual nosso estudo se interessa e, mais que isso, instituição que exerce maior
influência na relação entre sujeito e linguagem, é este último tipo discursivo, o autoritário, que
circula: “mais do que informar, explicar, influenciar ou mesmo persuadir, ensinar aparece
como inculcar” (ORLANDI, 1996a, p. 17). Isto, a nosso ver, pode ser percebido quando
pensamos que o ensino, na grande maioria das vezes, se estabelece a partir de uma figura
docente detentora do saber e por uma figura de aluno que precisa repetir os sentidos evocados
pelo primeiro. Sob o enfoque que aqui nos interessa, tal discurso autoritário pode ser
percebido em atividades de linguagem descontextualizadas, marcadas pela repetição do
sentido “único e verdadeiro” dos textos, por uma concepção de leitura, interpretação e escrita
“esperada”, isto é, em que os sentidos possíveis são pré-determinados pelo professor e, pior
ainda, em que sentidos outros são interditados.
Nesse sentido, concordamos com Pacífico e Romão (2007) quando apontam como se
faz necessário que o professor tenha contato com outras possibilidades de trabalho com a
linguagem, podendo, então, “dar início e continuidade a uma atividade” que se paute no
discurso polêmico, dando aos seus alunos a possibilidade de se posicionarem e defenderem
seus pontos de vista quando empenhados em atividades de leitura, interpretação e escrita. Para
as autoras (2007, p. 316), “o professor deveria estar preparado para lidar com o diferente,
duvidar da transparência da linguagem” e ensinando aos seus alunos que “a escrita está ligada
ao poder e, sendo assim, aqueles que a dominam, criam efeitos de sentidos desejados e
silenciam os sentidos que devem permanecer apagados”.
A nosso ver, tal postura docente contribuiria ainda para que os sujeitos-alunos
pudessem ocupar, no processo de leitura, aquilo que Pacífico (2002) denomina função-leitor
e, do mesmo modo, na atividade de escrita, a posição que Orlandi (1996b) nomeia, como
função-autor – sendo este último resultado de uma extensão à noção restrita, isto é,
relacionada à autoria original, que Foucault (1983) dá ao mesmo conceito.
construída dado que, conforme concebemos, não há uma relação direta entre linguagem,
pensamento e mundo. Sob o referencial que nos inspira, posicionar-se como autor passa ainda
pela responsabilidade do sujeito “assumir um papel social na relação com a linguagem,
inserir-se na cultura e posicionar-se no contexto histórico-social”, de modo que podemos
afirmar, com convicção, que um trabalho pedagógico pautado discurso polêmico se constitui
como o verdadeiro local para que assunção da autoria possa acontecer.
Tendo em vista os objetivos a que este trabalho se propõe, torna-se fundamental ainda
fazermos relação entre eles e o que falamos nesse momento. Pensamos que da mesma forma
que o discurso polêmico – que é caracterizado pela polissemia, pela disputa do objeto
discursivo, pela possibilidade de assunção de sentidos outros, ou seja, pela criatividade – se
estabelece como o espaço por excelência para a assunção a autoria, ele também se constituirá
como tal em relação à emergência da subjetividade: a nosso ver, a subjetividade emerge
quando o sujeito tiver o espaço para poder se posicionar em relação a um objeto discursivo,
sustentando seu ponto de vista, ou ainda, defendendo os sentidos com os quais ele se
identifica, que ele se demonstrará, colocar-se-á a falar de si, fazendo circular sentidos que
sejam a sua expressão e não uma mera repetição das vozes do professor ou do livro didático.
Sendo assim, fazemos aqui uma ponte entre o referencial que nos norteia, os objetivos que nos
propomos e a metodologia escolhida para a consecução desta pesquisa.
e histórico do qual o sujeito fala. Ainda que tente dissimular tal heterogeneidade que lhe é
constitutiva, o sujeito é capturado pelo inconsciente e impossibilitado de controlá-lo, de modo
que também não é capaz de se reconhecer e de reconhecer o outro que lhe constitui.
é pelo e no olhar do outro que me vejo como um, outro que eu internalizo como sendo o
“eu”, outro que me constitui como sujeito da linguagem, pelo discurso que diz o que e
quem sou, como e porque sou. É na medida em que assumo esse dizer, que a ele me
submeto (inconscientemente), que dele me aproprio, digerindo-o, tornando-o “carne”, que
me torno sujeito (CORACINI, 2007, p. 143).
Um sujeito que se funda como múltiplo, constituindo-se por “crenças que fazem parte
do imaginário e da realidade da sociedade” (GHIRALDELO, 2003, p. 67), “pouco afeito ao
controle de si e do outro, já que é habitado por outros” e que manifesta seu inconsciente via
simbólico, por meio da linguagem, materializando-se na língua (CORACINI, 2003b, p. 150).
26
Um sujeito cuja identidade se erige a partir das representações sociais que se situam, que se
colocam nos discursos, que se edifica a partir de sentidos outros, isto é, dos outros e do Outro:
são estas ideias que nos guiam.
Desse modo, ao falarmos de identidade, nosso leitor deve compreender que esse
conceito relaciona-se aos sentidos com os quais os sujeitos se identificam – ou ainda
desidentifica, contra-identifica, trazendo a terminologia de Pêcheux (2009). Ao enunciar
determinados sentidos em seu dizer, o sujeito se inscreve em determinada formação
discursiva, passando a falar de um lugar que aprova aqueles sentidos, ou ainda, quando o
sujeito se posiciona contrariamente, se desidentificando com o dizer que expõe, passando a
enunciar de um lugar contrário àquele dizer, mas que nem por isso deixa de estar perpassados
pelos sentidos do que pode e deve ser dito naquele determinado contexto sócio-histórico, isto
é, pelas formações discursivas que lhe constituem.
Resta-nos falar das implicações dos conceitos, aqui apresentados, para a nossa
pesquisa. É por conta de tal concepção de um sujeito que para ter existência objetiva precisa
assujeitar-se, isto é, ser interpelado pela ideologia no processo de constituição de seu dizer e
que, por isso, carrega marcas do contexto sócio-histórico no qual ele está inserido, que, em
nosso processo de investigação das marcas de subjetividade produzidas pelos sujeitos-alunos
selecionados, interessar-nos-ão não apenas aquelas marcas explícitas em que o sujeito,
declaradamente, coloca-se a falar de si, usando pronomes pessoais (eu, me mim; nós, nos) ou
possessivos (meu, minha, nosso, nossa), nomeando-se e inserindo-se no decorrer de seu
discurso, mas queremos ainda conhecer os sentidos de família evocados por esses sujeitos,
pois a sua identificação ou des-identificação, contra-indicação com determinada formação
discursiva, isto é, com aquilo que pode e deve ser dito no contexto sócio-histórico no qual ele
se insere, dão-nos indicativos de sua constituição enquanto sujeito de seu dizer, de sua
subjetividade: um sujeito, como já dissemos e reiteramos, perpassado por sentidos outros.
27
3. Metodologia
O material que nos propomos a analisar neste trabalho teve sua origem num dos
grupos de estudo e pesquisa no qual estamos engajados e que faz uso dos referenciais teóricos
da Análise do Discurso. Formado por professores da educação básica, estudantes do curso de
pedagogia e docentes desta universidade, o grupo se propõe a investigar o ensino da língua
portuguesa sob um enfoque teórico-metodológico, ou, melhor dizendo, com vistas a contribuir
para o trabalho pedagógico dos membros que o compõem.
Foi num desses encontros que definimos, junto a uma das professoras do grupo, a
metodologia de nossa coleta de dados para a investigação da escrita de sujeitos-alunos do
ensino fundamental. Tendo já definido, orientadora e orientanda, em momento anterior, a
temática família como aquela que poderia melhor nos dar indícios sobre a subjetividade de
tais sujeitos-alunos, dado ser um tema com o qual todos nós, inevitavelmente, produzimos
sentidos, e tendo ainda selecionado, juntas, textos literários que pudessem dar subsídio à
reflexão e escrita dos alunos, solicitamos a esta professora que nos ajudasse com a coleta do
corpus, já que suas salas de aula eram constituídas pela faixa etária com a qual pretendíamos
trabalhar, isto é, crianças entre 9 e 11 anos, que estivessem no 4º ou 5º ano do ensino
fundamental. E sua resposta foi positiva.
Explicitar tais condições de produção se faz necessário pelo fato de que, dado o
engajamento desta professora com o mesmo referencial teórico no qual nos baseamos,
pensamos que o seu trabalho com a linguagem, em sala de aula, é desenvolvido tendo o
discurso polêmico sustentando sua metodologia: um trabalho de leitura e de escrita que busca,
para além de informar e levar os alunos a repetir determinados conteúdos, preza pela
discussão, pela disputa do objeto discursivo e pela possibilidade de seus alunos se inserirem
na constituição de seu dizer, constituindo-se como verdadeiros autores.
Voltemos ao nosso corpus: nosso material para análise é, pois, constituído por três
distintos momentos de escrita de duas turmas, uma do 5º ano, pertencente à rede pública
municipal de ensino, de Ribeirão Preto-SP, e outra, de 4º ano, pertencente à rede de escola da
indústria, considerada particular, também na cidade de Ribeirão Preto. O primeiro deles partiu
de uma discussão da professora com ambas as turmas sobre a temática família: após uma
28
conversa sobre o tema, ela pediu, então, para que as crianças escrevessem um texto cujo tema
fosse família – hipótese de trabalho de escrita essa que nós, orientadora e orientanda, não
havíamos pensado. Já o segundo e o terceiro, versaram sobre a leitura e análise de textos, por
nós selecionados, antes da produção das crianças: primeiro ouviram, leram e analisaram a
música “Família”, do grupo Titãs e, em outro dia, produziram a sua escrita tomando como
base o poema “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade1.
O nosso objetivo, nesses dois últimos momentos, era de que, pelo contato com os
textos que abordavam diferentes sentidos de família, os sujeitos-alunos pudessem estabelecer
um diálogo com seus próprios sentidos sobre o tema, funcionando os textos, então, como um
arquivo (PÊCHEUX, 1997), na intenção de favorecer a emergência de sentidos outros, a
identificação dos sujeitos, a manifestação da subjetividade.
Além disso, precisamos falar sobre as formações imaginárias que integram o nosso
corpus, isto é, a respeito das “regras de projeção”, da ideia de interlocutor que estas crianças
tiveram na elaboração de seus textos: além, é claro, de ter subjacente a ideia de uma escrita
que passaria pelos olhares da professora, o que em muito direciona esses dizeres. Desde o
início, essas crianças sabiam que suas produções seriam objeto de análise de pesquisadores e,
a nosso ver, é mais que necessário explicitar esta característica do contexto de produção das
redações que analisaremos.
Com as redações em mãos, o processo seguinte foi o de leitura e análise dos textos
buscando identificar os objetivos de nosso trabalho, tudo isso é, claro, imbricado a estudos e
leituras que realizamos em momentos individuais e, também, numa disciplina junto ao
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da FFCLRP-USP, denominada “Argumentação e
autoria: investigações sobre a aquisição da linguagem escrita”, ministrada pela orientadora
deste trabalho, a Prof.ª Dra. Soraya Maria Romano Pacífico, da qual a orientanda desta
pesquisa participou como ouvinte.
(...) para que o analista do discurso possa realizar sua análise, é necessário que ele também
ocupe diversos lugares, investigando o dado, não como um fato acessível e observável, mas
1
A música e a poesia utilizadas podem ser visualizadas entre os anexos deste trabalho, sendo, respectivamente,
ANEXO A e ANEXO B.
29
sim, como a possibilidade do vir a ser, do sentido que está para ser construído (Pacífico,
2002, p. 65).
Afirmamos então, nesse mesmo sentido, que ao analisar as produções textuais que
formam o nosso corpus, estaremos em busca, de indícios, modo pelo qual o homem sempre
analisa, e que, em nosso caso, podem ser compreendidos através de marcas discursivas: pistas,
marcas que o analista precisa capturar a fim entender os sentidos enunciados pelos sujeitos.
Nas palavras de Orlandi (2005a, p. 30):
Os dizeres não são, como dissemos, apenas mensagens a serem decodificadas. São efeitos
de sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma forma
presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem de
apreender. São pistas que ele aprende a seguir para compreender os sentidos aí produzidos,
pondo em relação o dizer com sua exterioridade, suas condições de produção. Esses
sentidos têm a ver com o que é dito ali, mas também em outros lugares, assim como o que
não é dito, e com o que poderia ser dito e não foi.
A ideia de recorte, segundo Orlandi (mais uma vez), dever ser compreendida como
“uma unidade discursiva”, como um “fragmento correlacionado de linguagem – e situação”,
de modo que “o texto é o todo que organiza os recortes”, tendo, pois, “compromisso com as
30
tais condições de produção, com a situação discursiva”. Além disso, a noção de recorte deve
remeter “à noção de polissemia e não de informação” (1996a, p. 139-140).
São ainda precisas e essenciais aqui, a nós, as palavras de Pacífico (2002, p. 64)
quando diz que os recortes “não devem ser compreendidos enquanto estrutura linear, mas sim,
como pedaços, “nacos” do discurso, onde estarão materializados linguisticamente os indícios
de um modo de funcionamento”.
Passemos, pois, para a apresentação e análise dos textos, sendo que o próximo
capítulo será dividido em seções, tendo em vista esses três momentos de produção, analisando
o conteúdo essencial de cada um deles para, nas considerações finais, correlacioná-los e trazer
à tona aspectos conclusivos, que retomem os objetivos deste trabalho.
31
4.1. “Para início de conversa”: uma reflexão sobre os sujeitos e os sentidos das
redações iniciais
Nessa primeira parte do nosso capítulo de apresentação e análise dos dados nos
empenharemos em pensar, em refletir acerca dos sentidos enunciados pelos sujeitos-alunos
desta pesquisa e a sua inscrição subjetiva no dizer, na primeira produção por eles realizada.
Faz-se necessário explicitar ao leitor que nossas análises tomaram principalmente esta
primeira produção das crianças como seu objeto, e que isto se carece pela heterogeneidade
que lhe constitui, isto é, por seu caráter mais polissêmico com relação às outras duas
produções, as quais foram marcadas basicamente por um movimento de repetição ou
comparação do sujeito entre o seu dizer e o discurso do texto que tomavam como base, de
modo que os sentidos por eles evocados se inscreveram basicamente num mesmo lugar,
conforme retomaremos na segunda parte deste capítulo, em que nos dedicaremos na análise
dessas duas produções2.
Antes das análises, apresentaremos a fala da professora que coletou os dados para nós,
a fim de que o leitor possa compreender a partir de qual enunciado os sujeitos iniciaram sua
escrita, e também, pela fala da professora, o leitor poderá interpretar indícios do discurso
polêmico que sustentou a conversa inicial da professora com seus alunos. Vejamos:
Professora: “Na primeira produção eu iniciei a conversa sobre o que eles entendiam como
família, batemos um papo e acabaram relatando fatos comuns de que família era tudo
igual, portanto dei a sugestão da primeira frase: "Toda família é assim", e pedi que
escrevessem como é sua família e as demais que eles conhecem. Alguns alunos pediram
para mudar a frase inicial, pois o texto ficaria sem sentido, ficaria incoerente. Deixei livre
para mudar. O objetivo da frase não foi formatar a ideia de família e sim, causar conflito;
2
Todas as redações produzidas pelos alunos, aqui analisadas diretamente ou não, encontram-se disponíveis entre
os anexos deste trabalho para a apreciação do leitor. Seguindo a ordem em que foram produzidas, elas se
organizam da seguinte forma: redação inicial (ANEXO C), redação com base na música “Família” do grupo
Titãs (ANEXO D) e redação com base no poema “Infância” de Carlos Drummond de Andrade (ANEXO E).
32
oralmente vi que eles perceberam que apesar de tantas semelhanças, cada família tem suas
especificidades”.
Com estas palavras da professora, o leitor pode, ainda, entender as marcas que
perpassam esta primeira parte do nosso corpus, isto é, concordará conosco que há traços das
produções que analisaremos advindos desse momento de discussão e, da mesma forma,
incitados pela heterogeneidade da temática e da própria proposta de redação, heterogeneidade
esta percebida, como vemos, pelos próprios alunos.
É nesse sentido que podemos afirmar, tomando como base os recortes que agora
trazemos, os quais nos dão um indicativo da maioria destas redações iniciais, que tal
“conflito”, bastante estimulado pela discussão e, especialmente, pela sugestão da professora,
estabeleceu-se no momento da escrita: os textos produzidos por tais sujeitos-alunos estiveram
calcados numa “crise” em que, pelo que se percebe, eles buscavam compreender os pontos em
comum ou de distinção entre as famílias que conheciam para poderem sustentar o seu dizer.
Observemos:
Recorte 1:
Recorte 2:
“A minha família
Toda família é assim: como a minha talvez, como a
minha mãe que gosta de se vestir como uma dama se arruma todo
bonito só para ir no centro [...]”.
Recorte 3:
Recorte 4:
“minha familia
Toda família é assim: inteligente amigavel junta ETC
bondosa Toda famili gosta di ir em um lugar: na praia, clube, festa,
churrascos ETC meu pai gosta de: ir churracos de amigos e ETC
minha mãe gosta de ir no rodeio que tem todo ano em guatarapa ETC"
Recorte 5:
“minha familia
Toda familia é assim:
mães e diferente de todas as mãe e
e us pai e difente de todas os pai e
o vô e de ferente do todos os vó e
a vovó de ferente de todos os vovó e
o tiu e diferente de todo os tiu e
a tia e diferente de todo os tia e
a madrinha e diferente de todo as madrinha
todo mudo e diferete e você e da sua
faminha e diferente de voce"
3
Explicamos que em alguns momentos de nosso trabalho de análise, como é o caso deste, o título das redações
nos interessa como parte daqueles sentidos e movimentos do sujeito que pretendemos analisar. Por isso, quando
trouxermos um recorte em que o título tenha esse papel, isto é, quando o próprio título fizer parte do recorte, nós
o faremos com a formatação que o leitor pôde agora observar, isto é, com o título centralizado, seguido do
restante do recorte. Entretanto, mais adiante, neste trabalho, quando nos utilizarmos apenas de recortes pequenos
discursos para sustentar a nossa análise, nos quais não houver relação direta com o título da redação do sujeito-
aluno, faremos a referência ao recorte diretamente e, em parênteses, traremos o título da respectiva redação, para
que o leitor do trabalho, se assim desejar, possa dirigir-se ao texto integral, entre os anexos deste trabalho.
34
No recorte 2 o sujeito inicia seu texto dando-lhe um título que sugere um grande
recorte em sua fala, isto é, parece que ele se colocará a falar apenas “de sua família”,
entretanto, ele introduz a chamada que a professora havia sugerido e traz o debate da
polissemia que a temática envolve ao utilizar a palavra “talvez” para designar a proximidade
entre “toda família” e a sua própria família que ele passa a descrever.
Já o sujeito do recorte 3, de modo contrário, dá ao seu texto o título “as famílias não
são iguais”, o qual indica que uma diversidade acompanhará o seu dizer. Trazendo a frase
“toda família é assim”, ele parece tomar outro rumo discursivo, enumerando algumas
qualidades que poderiam ser comuns a todas as famílias: “bonita”, “legal”; contudo, a
sequência do recorte demonstra que isso é quebrado, visto que a palavra “diferente” surge,
inaugurando um novo sentido que, de certa forma, contradiz os pontos comuns antes
enunciados, já que o sujeito-aluno demonstra-se, a partir daí, numa angústia – sentimento esse
passado pela palavra “não” que é repetida várias vezes – para diferenciar sua família
“daquelas que usam drogas”.
coloca a ressaltar as diferenças, diferenças estas que veem modificar o sentido da frase inicial
de seu texto, atribuindo à palavra “toda” um sentido peculiar, já que podemos concluir a partir
de seu texto que “toda família é diferente de toda família”.
Aqui se faz necessário discutirmos um de nossos objetivos, qual seja nossa pretensão
em analisar se o funcionamento discursivo presente no contexto escolar do qual esse sujeito-
alunos enunciam se funda, ou não, como um facilitador para a emergência da subjetividade.
É aí, então, que o conflito do qual vínhamos falando se funda e que tais sujeitos-alunos
são impelidos a falarem da sua própria família, de sentidos outros sobre a temática. Pensamos
que isso se deve ao discurso polêmico no qual a postura da professora se sustentou, pois ela
poderia ter simplesmente introduzido a chamada e nada mais, ter “cobrado” – como muitas
experiências de estágios curriculares nos mostraram tal postura docente – aqueles mesmos
sentidos da discussão, sentidos esses unos, conformados e, provavelmente, dominantes sobre
a temática, isto é, ter feito com que seus alunos repetissem sentidos cristalizados, utilizando-
se do discurso autoritário que, necessariamente, não abre espaço para o sujeito se dizer: e é
exatamente o contrário que observamos.
Aqui já nos será possível também inferir algumas considerações importantes a respeito
da possibilidade (ou seria necessidade?) dos sujeitos falarem de si, isto é, sobre o conceito de
subjetividade que pretendemos investigar. Para visualizarmos então um pouco mais esse falar
de si, de sua família, dos sentidos com os quais o sujeito se identifica, que esta proposta
marcada pelo discurso polêmico proporcionou, traremos agora mais algumas redações ou
recortes. Neles perceberemos o mesmo movimento que até agora mostramos, isso é, um
sujeito que tenta falar desses dois lugares propostos pela professora, qual seja o da sua família
36
e da família do outro (ou seria do Outro?), mas que, contudo, é de si mesmo que fala desde
que começa a estruturar o seu dizer.
Recorte 6:
Quando iniciamos a leitura do texto deste sujeito nos deparamos com um discurso que
pretende diferenciar, distinguir umas famílias das outras, para isto tomando como base os
adjetivos (opostos, por sinal) “chata e legal”, ou melhor dizendo, “chata ou legal”. Somos
levados a pensar, num primeiro momento, que é possível diferenciarmos então as famílias,
dividindo-as a partir de dois contrários sentidos e, mais que isso, que a família do sujeito-
aluno em questão faz parte daquelas denominadas como “legais” (“eu acho a minha família
legal, eu amo a minha família”). Entretanto, a metade deste parágrafo de seu texto vem
modificar substancialmente o que ele dizia: quando ao terminar de dizer que considera sua
família legal, insere um “mais” (o qual significa neste caso como um “mas”), o sujeito quebra,
rompe com a formação discursiva de família legal na qual a sua própria família se sustentava,
abrindo, com esta conjunção adversativa, a possibilidade do outro, isto é, de sua família
poder, ao mesmo tempo, ser chata também, isto porque “a morte” de um pai, ou de outro
membro da família, como o tio da amiga, faz com que as “coisas”, que eram “legais”, se
“modifiquem”.
A partir de tal análise podemos concluir, portanto, que é de si, de sua família que o
sujeito fala desde o início, isto porque seu título para a redação trará, nesse momento, um
outro sentido: não apenas aquele de que devemos sempre esquecer das coisas tristes e chatas e
pensar apenas nas alegres e legais, silêncio esse que o trecho “mais não importa”, ao final do
recorte, traz consigo, mas esse título “você acha a tua família chata?” parece uma reflexão do
sujeito sobre sua própria família, querendo, pelo que nos parece, dizer ao seu leitor que pense
37
bem antes de responder tal pergunta, pois talvez sua família não seja tão chata como o
sentimento que a morte do pai causou à família dela. E ainda: é quebrada aquela distinção que
o sujeito trazia ao inicio de seu texto, pois, diferente da separação, da distinção que a frase
“você acha sua família chata ou legal?” quer fundar, o sujeito responde no decorrer de seu
texto, sem perceber, inconscientemente, que é possível que uma família seja as duas coisas ao
mesmo tempo, como a dele é.
Recorte 7:
“minha familia
Toda família é assim: briga, sia ama mas tudo tudo e tão comum
só tem briga e amor como posso dizer a mãe sepre ama o fihos (a) e
alguns pais nunca estão pressente.
Mas o legal é o amor de pai ou mãe e como um belo trabalho em
equipe tudo da certo tudo é tão lindo.
Eu e minha mãe é tão lindo como eu amo ela de um a 10 eu dou
1000 e é o mesmo comigo eu sou 10.000 pra ela”
No entanto, devemos retomar os sentidos que são evocados e, a nosso ver, reiterados
pelo sujeito em seu texto. Parece sim que esse sujeito tenta falar de um modelo de família, no
qual a mãe ama os filhos e os pais, em seu ponto de vista, nem tanto, por não estarem ou não
poderem estar “presentes” (ou seria por não “pressentirem”, brincando com sua falha, que os
filhos os querem por perto?), por estarem relacionados com o sentido de “briga”. Tal dizer do
alunos nos remete, portanto, a uma formação discursiva de famílias cujos pais são separados
ou vivem em conflito e que, na sociedade que vivemos, poderia ser atribuído a pelo menos
uma parcela de “todas” as famílias.
38
O que acabamos dizer tem em vista destituir a ideia de que só falo de mim quando me
inscrevo visivelmente, demonstrando isso ao meu leitor, o que acontece quando escrevemos
em primeira pessoa, por exemplo. Mais ainda: depõe a ideia de que escrever em terceira
pessoa garante maior objetividade ao dizer do sujeito, excluindo assim de seu texto marcas de
subjetividade (CORACINI, 1991). Relembramos, segundo a concepção de sujeito que nos
sustém, que tal discussão sobre um sujeito que fala de si enquanto fala do outro tem como
válida, ainda, o seu inverso: isto é, a ideia um sujeito que fala do outro quando se propõe a
falar daquilo que é seu – reflexão esta que retomaremos no próximo tópico deste trabalho,
onde buscaremos compreender os sentidos evocados por estes sujeitos-alunos sobre o tema
família, nesta primeira proposta de redação.
São muito válidas ainda, para as considerações sobre subjetividade que vimos tecendo,
algumas redações, das quais vale a pena trazermos alguns recortes para o leitor. Nelas, da
mesma forma, o “toda” e o “minha” aparece; entretanto, ao invés de se investir naquele
conflito do qual tratávamos, o sujeito faz uma escolha. Em outras palavras, são redações em
que o sujeito até inicia seu texto com aquela chamada “toda família é assim” sugerida pela
professora, mas que para ela (a chamada) nem ligam, optando – ou podendo escolher, como
pensamos – por uma alternativa mais que subjetiva, qual seja, escrever apenas sobre a
“minha”, a sua própria família, ou ainda, de si, de seu próprio dia.
Recorte 8:
“A FAMÍLIA
Toda família é assim: minha mãe ela não gosta de casa
bagunsada quando ta bagunsada ela manda arumar meu quato meu
quanto é cheio de boneca e barbe meu Pai ele tem um fiestra ele
trabalha muito ele é predero [...]”.
Recorte 9:
“Família legal
Toda família é assim:
Minha familia é engraçada legal palhaça minha mãe tão
dirvetida ela sacomigu brinca com migu eu amo minha mãe ela esta
nomeu coração”.
Recorte 10:
“A minha família
Toda família é assim:
Olá meu nome é Vitória vou contar meu dia dia de segunda eu
agordo cedo pra toma meu café da manhã que minha mãe já prepara
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terça feira acordo muito tarde e minha mãe faz o almoço pra mim e
pro meu pai e me troco pra ir na escola [...]”
É claro que podemos supor que o inicio proposto pela professora se encontra aí por
conta mesmo da postura desta como voz de autoridade no que diz respeito à produção textual,
de modo que para que pudesse escrever abertamente sobre si, seu dia, aquilo que lhe constitui,
o sujeito precisasse se inscrever naquele outro dizer, “disfarçando”, “adequando-se” à
proposta. Todavia, não é isto que pensamos.
Embora a análise do discurso não trabalhe com a quantidade, aqui se faz necessário
explicitar alguns números sobre os “caminhos” que esta primeira redação apontou, isso
porque tal quantidade vem significar como um indício da subjetividade, da escolha que esses
sujeitos-alunos puderam fazer para falar daquilo que era seu, que lhe interessava.
Mas o dado mais significativo para nós ainda está por vir: outros dezessete (17)
sujeitos-alunos, em sua escrita, optaram por não utilizar aquele início sugerido pela
professora, de modo que a chamada, ou o sentido de “toda família é assim” não aparece em
sua redação – explicitamente, devemos dizer, já que apesar de estarem falando de si, como já
foi dito e reiteramos, os sujeitos evocam sentidos do Outro, sentidos sociais e históricos que
os constitui, o que, sem dúvida alguma, está ligado à concepção de sujeito cindido e
heterogêneo na qual nos baseamos.
Mas para nós, neste momento, este dado vem confirmar a hipótese que abraçávamos
de que o discurso polêmico no qual o trabalho da professora se sustenta é o espaço necessário
para que os sujeitos, mesmo influenciados pela posição de autoridade que ela ocupa, possam
escolher e falar de si quando quiserem, isto é, possam fazer emergir a sua subjetividade.
Confirmemos isso, então, nos recortes que seguem. Para um deles, inclusive, trazemos,
41
scaneada, a redação da criança, já que o sujeito faz um desenho, texto visual que confirma a
nossa análise a respeito da sua vontade (necessidade) de falar de sua própria família e de si.
Recorte 11:
“familia unida
Minha família é assim: carinhosa, meiga, presiosa e legal a
minha avó tem uma casa que é muito grande que mora oito pessoa
minha avó, meu vô minha tia, meu tio, eu, meus dois subrinhos e
minha mãe nós somos um familia unida sempre ajudando.
É isso que é a minha familia”.
Recorte 12:
“família
Minha família e assim: meu Papai é legal e Bom ele trabalha de
dia ele Meleva Eu e a minha irmã Para a escola e a minha Mamãe faiz
a Marmita do Meu Papai Mais depois o Meu Papai Vai trabalhar e a
Minha mamãe Vai Para a igreja horar quando da 10:00 hora ela vai
para a minha casa [...]”.
Recorte 13:
Recorte 14:
“Minha Família
Minha família é assim:
Minha mãe é carinhosa, especial, gentil com
as pessoas, legal, trabalhadora, ela me leva no
dentista e no médico, ela me dá algumas coisa,
calma e brincalhão etc...
Meu pai é legal, bravo, brincalhão, especial,
carinhoso, me dá o que eu quero, me leva nos lugar,
trabalhador etc...
Eu sou filha única, sou chocolatra, eu sou
um pouco respondona, sou crack em rendibol, gosto
muito da minha família, da minha professora, avó e
meu avô e os meus tio e tia, e em primeiro lugar
DEUS e etc...”.
Para finalizarmos essa primeira discussão sobre as redações iniciais, resta-nos dizer
que, do total destes textos analisados, apenas seis (6) sujeitos, três (3) de cada turma,
coincidentemente, não fizeram referência direta a si e a sua família de forma direta, usando
pronomes pessoais ou possessivos. É preciso ainda explicar sobre o conteúdo de tais redações,
pois são exatamente essas redações que estão perpassadas pelo reforço ou pela crítica a um
sentido de família dominante, sentido este que não esteve ausente, como o leitor já pode ter
percebido pelos recortes que antes trouxemos, de todas as outras redações, e sobre os quais
nos deteremos no tópico seguinte de nossas análises.
Este vai-e-vem entre o discurso acerca de todas as famílias, das quais o sujeito podia
falar, e de sua própria, trouxe para o nosso material de análise a ideia de que há um conflito
inerente à própria temática. O que acontece, a nosso ver, é um movimento dos sujeitos no
sentido de compreender o tema, para o qual eles sustentavam um sentido homogêneo ao final
do debate com a professora, mas que, ao se colocarem diante da atividade de escrita, puderam
perceber que é pela heterogeneidade que ele se caracteriza.
Recorte 1:
Recorte 2:
44
“A Familia legal
Toda familia é assim:
Legal feliz interessante não é chata. é super legar famílias
gostam muito de sair ir ao shopping ir a muitas coisas mais e gostas
muito de andar de carro.
Minha vó é uma pessoa legal e o meu vô é tamben muito legal e
o meu irmão e também legal minha mãe é a pessoa que eu nas gosto e
os meus tios”.
Recorte 3:
Recorte 4:
“FAMÍLIA FELIZ
Toda família feliz e assim:
Amor de Pai
Amor de irmão
Amor de Mãe no coração...
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Se você é feliz
Minha família é sempre assim
Dando amor pra você e pra mim... [...]”.
Recorte 5:
“A minha família é diverente ela danca bem, ela come bem ela
sé vente bem ela brinca bem faz tudo muito bem.
Eu tenho muitos tios e tias eu tenho dois vovó e um vô eu
também tenho um brino um imão e pais.
A minha é diventida e a sua eu não sei” (Minha Familia).
As produções, de forma geral, indicam, como o leitor pode observar por meio dos
recortes acima, um sujeito-aluno preocupado em definir as qualidades de sua família, em que
os pontos positivos dela – como retomaremos mais adiante – precisam sempre ser maiores e
superar os negativos: uma família unida, em que os pais dão amor e carinho aos filhos, em
que há brincadeira e diversão, em que tudo se demonstra como legal.
E aqui há algo que nos interessa, particularmente: a recorrência, que parece indicar
uma necessidade, desses sujeitos em denominar, em definir sua família como “legal”. Os
recortes 1, 2 e 3, demonstram muito bem isso que tentamos dizer, pois todos os membros da
família, coincidentemente (ou não!) são discursivizados pelos sujeitos como legais.
vivemos, ela precisa ser “feliz”, precisa ter “um pai”, “uma mãe” e “irmão(s)”, mas que, para
além disso, devem “dar amor” para todos, “amor pra você e para mim”, como sugere o nosso
recorte 4.
E é exatamente aí, junto aos sentidos de uma família que tem pai, mãe e filhos que se
amam e divertem sempre, que encontramos o outro lado, o outro sentido que a palavra legal
toma em nosso corpus: parece que a família legal é uma família, na verdade, legalizada;
contudo, não legalizada pela lei, mas sim, pela sociedade, por um discurso social que tenta
abafar, silenciar as mazelas, as situações que estão fora de ordem. Indicam ainda que esses
sujeitos-alunos sabem qual modelo de família é valorizado, qual modelo de família é ideal
(legal) para a sociedade em que ele vive.
Vale a pena apreciarmos mais um recorte que confirma esse sentido de legal, pautado
naquilo que precisa seguir moldes e perdurar como intacto numa sociedade. Escolhendo como
gênero textual para sua escrita, a poesia, um dos sujeitos-alunos desta pesquisa escreve um
texto que toma como base os dias da semana. No decorrer de seu texto, chamado “Uma
família espetacular”, o sujeito parece ser dominado pela necessidade da rima e traz ao seu
texto um sentido de brincadeira. Sem mencionar membro nenhum de sua família, o sujeito
não faz nenhuma referência, ao longo do texto, aos sentidos que vimos até aqui falando. Mas
a conclusão de sua produção, entretanto, interessa-nos:
Recorte 6:
“Na quinta nós vamos sair para comer e meu pai gas 30R$
Na quarta nós vamos na fazenda e tiramos leite da vaca
Na terça nós jogamos um jogo que se chama Travessa
Na segunda nós fazemos uma bagunça!
Em tudo isto eu minha familia que é legal e tradicional
Hó, minha família é uma so!” (Uma familia espetacular)
Tal desfecho do texto vem confirmar o que dissemos a respeito da captura dessas
crianças, desses sujeitos-alunos pelos sentidos de família que vínhamos tecendo, pois, apesar
dos sentidos anteriormente trazidos pelo sujeito do recorte não fazerem correlação com a ideia
de família legal, com o modelo de família dominante, na conclusão de seu texto esta palavra,
este sentido aparece e, mais que isso, aparece correlacionado com a palavra tradicional, que
vem mesmo indicar que é a família deve ser algo clássico: que é algo habitual (com o sentido
47
de seguir um hábito) à sociedade em que ele vive uma família ter de ser “espetacular”. No
último verso, ainda, o sujeito faz referência a um verso de uma cantiga popular, uma cantiga
infantil e tradicional, isto é, que é/foi passada de geração em geração e que se mantém a
mesma, tal como o modelo de família, pelo que até aqui analisamos.
Queremos enfatizar que tudo que analisamos só se torna possível por estarmos
trabalhando com um funcionamento discursivo, ou seja, com o já dito, o que faz com que, por
exemplo, tal sentido da cantiga possa ser aqui retomado.
Recorte 7:
Recorte 8:
Recorte 9:
Recorte 10:
“FAMILIA AMOR ♥
Toda familia é assim: tem mamãe papai irma e irmão eles se
ama tem familia que so é a mãe o filio não é. tanbem familia que é do
mesmo jeito que a minha pai separados minha familia e legal eu tenho
2 casas a do meu pai e da minha mãe. meu pai antes de ter eu tinha 5
ja mas ele separo e conseguiu a minha mãe eles namoro e teve eu ai o
meu pai ficou com 6. minha mãe ja tinha 2 meninos ela fico com 3
então quando eu fiquei um pou mas grande ele se separaro então eu
fiquei com a minha mãe mas a minha familia e muito legal.
A tenho certeza de que a su a familia e legal tanbem do mesmo
jeito que a minha é XAU!!!
Recorte 9 Recorte 10
49
E é produzindo sentidos opostos aos produzidos pelos sujeitos acima que se encontra o
sujeito do recorte 9. Iniciando seu texto com dados estatísticos – poderíamos assim chamar
suas porcentagens sobre as famílias – este sujeito traz à tona o debate da separação. Se no
detivermos apenas aos seus dados inicias, isto é, que 90% das famílias são unidas enquanto
apenas 10% delas são separadas, poderíamos pensar que esse sujeito fala de todas as famílias
da sociedade em que ele vive, mas ao continuar a leitura de sua produção compreenderemos
que é de si, de sua família, que ele tenta falar. Com o enunciado “eu vou te contar”, uma
marca que nos remete ao discurso da oralidade, o sujeito parece se aproximar de seu leitor
para explicar suas estatísticas, querendo dizer-lhe “chega aqui que eu vou explicar por que
estou falando isso”.
É nesse momento que o sujeito sai do “toda família” e caminha em direção à sua
própria: ao dizer que sua família deixou de ser feliz por conta a separação de seus pais (“é que
a minha família é assim, era feliz só que ai meu pai e minha mãe se separaram”), ele inaugura
sentidos para aquelas porcentagens que trouxe no início de seu discurso, de modo que
podemos entender que estar entre os 90% unidos é sinônimo de ser feliz, enquanto os 10% de
separação, que é onde esse sujeito se insere, entre a minoria, não o é. Por ter, então, sua
família entre uma minoria que ele não aceita e que este sujeito expressa seu desejo, a sua
esperança de que seus pais retomem os laços, o que é reiterado pelo “Eba!!!” que ele
pronuncia após contar-nos que seu pai terminou o relacionamento com sua namorada; e não é
qualquer comemoração não: como se pode ver pela imagem acima, é um “Eba” em letras
muito maiores que seu texto e ainda seguido de três pontos de exclamação! Concluímos que,
como seu dizer gira em torno apenas desse sentido negativo da separação, sentido esse muito
importante para si, de modo que ele até “ia se esquecendo” de contar outras coisas, o seu
50
desejo é de que sua família seja “como é toda família”, retomando aqui o título de sua
redação, ou melhor dizendo, que sua família seja igual à maioria das famílias, isto é, a 90%
delas.
E tudo isso se confirma com os sentidos que vão sendo inaugurados na sequência:
temos um sujeito-aluno que se refere ao fato de seus pais terem outros dois ou cinco filhos
como algo que não é normal, ou melhor dizendo, que não é bem aceito pela sociedade: “meu
pai, antes de ter eu, tinha 5 já” e “minha mãe já tinha 2 meninos”, ele nos diz, onde a palavra
já vem indicar tal consciência de que sua família está “fora de ordem” (ou “de uma ordem”,
como demonstram os sentidos antes explorados). Além disso, esse sujeito se refere de uma
forma muito peculiar ao relacionamento inicial de seus pais, dizendo que seu pai “conseguiu”
a sua, palavra que vem indicar sentidos de disputa, como num jogo, em que você “consegue”
ganhar ou conquistar algum objeto: isso mesmo, dá-nos a impressão de um relacionamento
em que as pessoas se veem como objetos, o que vem confirmar os sentidos já enunciados por
esse sujeito com a palavra “já”.
51
Mas há algo, em especial, que se faz necessário analisar, já que vem reiterar todos
esses sentidos de um sujeito não satisfeito com sua família separada, de um sujeito que não é
tão feliz assim por ter “duas casas”: ao final do primeiro parágrafo de seu texto, logo após
contar como foi a separação de seus pais, o sujeito-aluno nos diz o seguinte, “mas a minha
família é muito legal”, em que a conjunção adversativa vem marcar a oposição entre os dois
modelos de família que o sujeito denuncia em seu texto, vem marcar uma oposição entre a
separação e a possibilidade de uma família ser legal. Pensamos que se sua família fosse
mesmo legal, que se uma família pode ser legal ao mesmo tempo em que os pais são
separados, era um “e” e não um “mas” que deveria estar ali, ligando e não opondo os sentidos
de separação e legalidade.
Recorte 11:
“[...] meu Pai ele tem um fiestra ele trabalha muito ele é predero
ele minha mãe brigam mas minha irmã chama yasmin ela não gosta
que Meu pai e minha mãe eles são muito legal eles me deu um
notebuko [...]” (A FAMÍLIA).
Recorte 12:
52
“[...] eu amo minha familia. minha vida não é tão facio com
minha familia mas familia é familia poriço eu aguento todas as
reclamações. (minha familia).
Recorte 13:
Recorte 14:
“[...] quase todas as família uzão troga mas augumas nao usão
não não mas lingue da minha faília usa Não e as bebidas e o sigarro
então quedo quedo das famílias que uzão” (As família não em igul).
Como já adiantamos, os recortes acima fazem referência a sentidos de família que são
interpretados como negativos, mas que ao mesmo tempo precisam ser silenciados ou
distanciados do sujeito, visto que a presença de tais sentidos significa o rompimento com
aquele modelo de família que a sociedade, na qual ele vive, aprova, sentidos que, quando
colocados em discurso, vêm significar que sua família não está mais legal, que sua família
não corresponde ao modelo de família correto, valorizado.
É assim que o sujeito, no recorte 11, silencia, insistentemente, o sentido de briga dos
seus pais: primeiro ele escreve que seus pais brigam, mas logo em seguida silencia isso
começando a falar de sua irmã; a sequência ainda sugere que a irmã denunciará tais sentidos,
já que começa a dizer que sua irmã “não gosta que seu pai e sua mãe”... Pensamos, então, que
é da briga que ela não gosta, mas isso também é silenciado, pois o sujeito, logo após colocar
em discurso as brigas, interrompe a construção do enunciado e escreve que seus pais “são
muito legais”.
Algo semelhante acontece no recorte 12, já que nele o sujeito diz ter que aguentar
todas as relações, as quais fazem com que “sua vida, na sua família, não seja tão fácil”,
53
porque “família é família”, o que para nós significa que todo e qualquer sacrifício precisa
existir, por parte de todos os sujeitos de uma família, para que ela seja sempre legal, feliz,
harmoniosa, apesar de todas as dificuldades existentes.
No recorte 13, por sua vez, já trazido por nós em outro momento, é o sentido de morte
que precisa ser silenciado: apesar de o sujeito admitir que sua família não é mais tão legal
como antes de seu pai morrer (“Eu acho a minha família legal eu amo a minha família mais as
vezes as coisas mudão assim: acaba uns afalecendo”), ele precisa deixar isso pra lá, fazer de
conta que isso “não importa” mais e continuar a vida, amando os que ainda estão vivos –
discurso esse muito circulante em nossa sociedade para tentar silenciar os sentimentos que
uma morte geralmente provoca.
Por último, vemos um sujeito, no recorte 15, também já analisado sob outro ponto de
vista, que procura colocar sua família bem longe daquelas que usam droga, que se envolvem
com bebidas e com cigarro, que precisa diferenciar sua família daquelas que se envolvem com
questões não aceitas pela sociedade em que vivemos, para definir, então, sua família como
legal, diferenciação essa coerente com sua convicção, demonstrada pelo título de seu texto, de
que “as famílias não são iguais”.
Essa temática que transita de uma família legal, unida, até as famílias que, deixando-se
permear pelos sentidos negativos, acima analisados, perdem a “chance” de serem ideais, pode
ser analisada no recorte que se segue.
Recorte 15:
“Casos de Famílias
Toda Família é assim: Legal, unida, bonita.
Quase toda família almoça e janta toda unida.
Mas tem família que é destruída pelas drogas e pela bebida.
Também tem pessoas que tem chanse de ter uma família unida
mas acaba perdendo ela.
Tem família que é separada pelas brigas.
os sentidos caminharão em outro curso quando o sujeito dá espaço para as coisas negativas a
respeito das famílias, uma oposição em relação ao que vinha sendo dito antes. Assim, sentidos
sobre drogas, bebidas e brigas, mais uma vez, são apresentados, tal como até aqui vinha sendo
dito, como opostos ao modelo ideal de que falávamos no início deste tópico e que o autor do
recorte 15 marca, também, no início de sua produção.
Outra análise ainda se faz possível a este recorte, tomando como base o título que este
sujeito dá a seu texto, qual seja “Casos de famílias”. O nome de sua produção faz menção,
coincidentemente ou não, a um programa de TV do canal SBT, intitulado “Casos de família”
e cujo desenrolar pode ser também correlacionado ao recorte: o programa se desenvolve com
uma temática do dia e vários casais ou outros membros de uma família que tenham alguma
história relacionada com o tema são chamados para falar da mesma e escutar a dos outros. E
geralmente são temas que giram em torno de problemas familiares, de aspectos negativos da
família, tais como os que até aqui foram levantados, como drogas, bebidas, separações,
traições ou outras coisas que fazem com que a família “perca a chance ser unida”. No fim do
programa, entretanto, observamos que aquela primeira formação discursiva retorna, visto que
há sempre um psicólogo que finaliza com uma mensagem pacificadora, já que muitas
discussões e até brigas acontecem no programa, tratando, geralmente, desse amor, dessa união
que as famílias, apesar das brigas, dos desafetos, das desavenças, precisam ter. E não só a esse
programa de TV, perguntamo-nos: a qual família mais esse texto se refere? Que família é essa
que, apesar de estar perpassada pelas brigas, pelas drogas, pelo sofrimento, deve se amar e
esquecer todos os seus problemas? E estas não são tão poucas, pelo que nossa análise indica.
Para completar essa reflexão acerca dos sentidos sobre família e a subjetividade que
permearam o discurso dos sujeitos-alunos aqui analisados, faz-se necessário o diálogo com
Guerra e Trannin (2006, p. 157), autoras que, ao analisarem os discursos midiáticos sobre
“meninos de rua”, afirmam que
definidos socialmente sobre o que é uma família que constituem o discurso, o imaginário, a
subjetividade dos sujeitos-alunos, que aqui nós analisamos.
Recorte 16:
Duas páginas inteiras falando sobre família e com uma emoção que prende o leitor a
cada novo argumento, a cada novo tópico do seu dizer. Uma contação de história que
emociona e que traz elementos linguísticos que constroem esse efeito de emoção (“disse
pensativo”, “suspirou e disse”). Vemos um sujeito completamente identificado com a
atividade de escrita sobre família, o que pensamos ser fruto de um trabalho pautado no
discurso polêmico que a professora realiza, e realizou neste momento. Um sujeito que
demonstra gostar daquilo que está escrevendo e o faz com muita organização: de sua família,
das famílias que são legais, das que não são tão boas, das que ajudam na dor, das que não
ajudam, das que fazem surpresa e das que não fazem.
Coerentemente, esse sujeito termina seu texto com uma linda história que, além de nos
emocionar, reitera os sentidos de que há muitas coisas que as famílias podem fazer para serem
felizes, para aliviar a dor e os sentimentos tristes da morte, e que isso deve ser feito antes que
seja tarde. A frase final de sua história inaugura ainda o novo, o sentido que pode vir a ser, e o
mais interessante: ela desenha um coração com a palavra família, coincidentemente ou não,
57
bem debaixo de onde escreveu história, de modo que conseguimos também interpretar que
“essa família ainda não teve fim...”, que a família de que ela fala, a qual possui “muitos
jeitos” de ser, pode a cada dia ser nova, diferente.
Permita-nos leitor, ainda, agora sim, finalizando esse tópico, trazer mais uma redação
que reforça nossa defesa de que um trabalho de leitura e escrita, isto é, um trabalho de
língua(gem), baseado no discurso polêmico é local por excelência para a identificação dos
sujeitos com a escrita e, por conseguinte, para a emergência da subjetividade.
Recorte 17:
“Familhão
Vale a pena nos determos aos sentidos construídos por esse sujeito a respeito de sua
família a fim de compreendermos a questão do discurso polêmico e da subjetividade.
Podemos observar neste recorte 17, um sujeito que discursiviza sua família de uma forma que
parece prazerosa, para si próprio, trazendo-nos a convicção de que é com muito gosto que ele
fala de seu pai, de sua mãe e de sua irmã, sentimento esse que ele reforça, ao final da
produção, com a palavra “minha”, marcando que é sua e apenas sua, de mais ninguém, essa
família tão boa.
“descobriu”, expressão que também inaugura a possibilidade de novos sentidos para o seu
dizer. E por falar em inaugurar novos sentidos, é exatamente isso o que este sujeito faz no
título de seu texto, “Familhão”: o final “ão” comumente designa, em nossa língua, algo que
atrapalha, como no caso das palavras “problemão” ou “confusão”, por exemplo; entretanto, é
um sentido totalmente diverso que ele constrói para essa palavra, de modo que, de algo que
incomoda, que atrapalha, o final “ão”, dado para sua família, passa a designar uma família
ótima, que ele gosta demais e, quem sabe, uma família perfeita.
4.1.3. Os papéis dos membros da família: sentidos sobre o ser pai e o ser mãe
Mais uma vez aqui, ao trazermos os sentidos produzidos pelos sujeitos-alunos acerca
das figuras de pai e mãe, percebemos um conflito do qual falamos no tópico passado, já que é
naquele mesmo movimento de aprovação social, isto é, em que os sentidos dominantes sobre
ser família, e aqui, sobre o imaginário social que determina os papéis para cada membro da
família, são resgatados, num movimento de tensão entre o sedimentado e a disputa dos
sentidos que podem ser outros, dado que o contexto sócio-histórico o determina, conforme
podemos observar nos recortes abaixo:
Recorte 1:
59
Recorte 2:
Recorte 3:
Os recortes são tecidos pela formação discursiva que, por longo tempo sustentou, de
modo hegemônico, os sentidos sobre pai e mãe, ou seja, sentidos de um pai que precisa todos
os dias sair de casa e trabalhar para não deixar faltar nada em casa, e de uma mãe que deve
estar dentro de casa, cuidando da casa e dos filhos, são apontados por esses sujeitos e os são,
como bem ilustra o recorte 3, na forma de uma “função”, como algo que não pode ser
modificado, que precisa ser cumprido para que a família esteja em “ordem”.
Tal recorrência a formações discursivas sobre o ser homem e se mulher nos fazem
questionar alguns sentidos que a sociedade em que vivemos vem, há algum tempo,
reiterando. Nossa sociedade contemporânea prega que o papel da família, especialmente o da
mulher, foi modificado: ouvimos dizer que as mulheres conquistaram sua liberdade, sua
independência, podendo estudar, trabalhar, investir em sua carreira profissional e que as
responsabilidades do lar tornaram-se atividades a serem dividas com os homens. Mas não é
bem isso que encontramos nos discursos produzidos pelos sujeitos-alunos desta pesquisa.
Vejamos:
Recorte 4:
60
É como um “dever” que as atividades de “cozinhar e limpar”, bem como cuidar dos
filhos e do “Marido” – significante escrito com letras maiúsculas, o que nos indica um poder
deste em relação à mulher e nos remete àquela ideia antiga (será?) de uma mulher submissa
ao homem – são discursivizadas. Além disso, tal construção cria o efeito de sentido de que a
mulher só é “autorizada” a sair do lar quando isso for mesmo preciso, isto é, quando for ela a
responsável por “sustentar os filhos”, na ausência do pai, mas que mesmo assim isso se opõe
(o que o conectivo “mas” vem indicar) ao seu verdadeiro dever, antes explicitado.
De modo algum, ainda, são relacionados ao homem aqueles sentidos de cuidado com o
lar e com os filhos: os sujeitos-alunos bem demostram em seus dizeres que, apesar de
trabalhar fora, quando ela está no lar, a mulher ainda trabalha sozinha enquanto o homem
trabalha fora de casa, ou ainda, “trabalha no sofá” – como um sujeito escreveu sobre seu pai.
Disso decorre um questionamento: será mesmo que as mulheres conquistaram sua liberdade?
Será que a figura feminina já pode mesmo ser relacionada a algo mais que “somente à vida
privada” (PACÍFICO & ROMÃO, 2006)?
Recorte 5:
Recorte 6:
Um pai que diz “tchau” para os trabalhos domésticos, que não está presente no lar da
mesma forma que a mãe, a qual precisa, sempre prontamente, “pegar o avental” e ainda ficar
de olho no filho, fazendo com que ele seja educado e obediente: tais sentidos apontam para
um lugar bem definido do que é ser pai e ser mãe; eles nos dão indícios de que os sentidos
dominantes, que circularam sobre os papéis do homem e da mulher na constituição familiar,
há muito tempo em nossa sociedade, ainda permeiam o imaginário dos sujeitos, embora haja,
hoje, uma formação discursiva que sustenta que tais sentidos já foram destituídos, dando lugar
para novos sentidos de homem/mulher, pai/mãe.
Recorte 7:
O recorte acima vem confirmar a nossa hipótese de que os sentidos sobre ser homem e
ser mulher, ligados aos de ser pai e ser mãe, encontram-se muito longe de escapar de um
estereótipo social, há tempos proclamado. Assim como ao se falar de pai retomam-se os
sentidos de trabalho e sustento da família, e para a mãe os de cuidado da casa e dos filhos, a
mulher continua sendo aquela que adora assistir a novelas enquanto o homem é o “viciado”
em futebol ou no “jornal”, como outros recortes demonstraram, de modo que retomamos um
lugar de mãe preso à fantasia do lar, representado pela novela, e de um pai ligado ao “mundo
real” da notícia e do “jogo”, já que seu lugar é lá fora, no trabalho, ganhando dinheiro e
pagando as contas, o que lhe exige, pelo efeito da ideologia, estar a par das “notícias”.
Todos os sentidos levantados até aqui nos fazem crer que colocar em discurso sentidos
de pai e de mãe, de homem e de mulher, é algo ligado a discursos sociais, a formações
discursivas determinadas socialmente e, por isso mesmo, sentidos partilhados e aceitos por
determinada sociedade. Apesar disso, alguns sentidos dominantes sobre família são
considerados como proibidos pelos próprios sujeitos da pesquisa, como podemos interpretar
pelo recorte abaixo:
Recorte 8:
62
Ao trazer uma crítica aos sentidos de pai e mãe, de homem e mulher que nossa
sociedade bem conhece, além do de irmão, este sujeito cria o efeito de sentido de
descontentamento com o modo como essa família se relaciona. Entretanto, ao reclamar da
falta de tempo dos pais, já que a mãe precisa ver todas as novelas e o pai se recusa a estar com
os filhos para poder ver o jornal, e do fato de que ter um irmão é algo “chato” e que,
pensamos, deve tomar mais ainda o tempo de seus pais, o sujeito traz indícios de que sabe
estar colocando em curso sentidos que deveriam permanecer em silêncio, uma vez que a
sociedade critica os filhos que questionam os pais; os alunos que questionam os professores, e
por aí vai.
Por ser assim, o sujeito resume os sentidos por ele evocados como uma “conversinha”
e avisa ao leitor que ele precisa ter cuidado ao falar estas coisas perto da sua família,
indiciando que tudo isso que ele denuncia corresponde a algo proibido, a sentidos que, a
nosso ver, contradizem aquela legalidade da família que outros sujeitos explicitaram. E isso
que falamos relaciona-se com o desenho com o qual o sujeito finaliza a sua produção, já que
mesmo sem parecer estar tão contente assim com as “manias e fantasias” de sua família, é
exatamente com um lindo coração com a palavra “família” dentro, como podemos observar
no desenho ao lado do recorte, que este sujeito encerra seu texto: é porque não pode evocar os
sentidos acima descritos que o sujeito precisa, coerentemente, finalizar sua escrita com tal
63
desenho, o qual vem indicar o amor, a unidade, a harmonia que deve constituir toda família a
fim de que ela seja feliz.
Recorte 8:
Como se pode ver, é mais uma vez entre o conflito de ser uma família unida e
harmoniosa, o que depende de papéis de pai e mãe bem definidos, e de ser uma família
separada, marcada por figuras maternas e paternas distintas do modelo dominante, que esses
sujeitos-alunos se colocam. É mais uma vez pelo falar de si perpassado pelo Outro, pelo olhar
social que aprova ou que exclui (ou pelo menos tenta excluir) determinados sentidos, que o
dizer esses sujeitos caminham: um eu que não se desvincula dos sentidos sociais, um sujeito
perpassado pela ideologia e por dizeres naturalizados sobre si e, no caso, sobre sua família;
um sujeito que, para compreendermos seus discursos, precisamos entender os sentidos que ele
enuncia – são estes os referenciais sobre sujeito e sobre uma subjetividade marcada pela
identificação ou desidentificação (PÊCHEUX, 2009) do sujeito, que nos impulsionam e que
estão sendo até aqui confirmados.
64
Pela análise dos discursos podemos fazer mais uma vez uma relação com os sentidos
de legal e compreender a formação discursiva na qual tais sentidos se inscrevem: o que é ser
legal (no sentido de aprovação social mesmo) na sociedade em que vivemos? É
principalmente consumir; logo, sair, comprar, ganhar presentes. Podemos dizer que, a
recorrência desses verbos aponta para uma necessidade, para uma „exigência social‟ que o
sistema capitalista impõe ao sujeito, isto é, “ter, consumir, ganhar”, sentidos que ficam bem
marcados nas redações analisadas e afetam o modo como o sujeito contemporâneo constrói
sua identidade.
Encontramos, aqui, desse modo, um discurso arrojado, que valoriza uma vida pós-
moderna, sendo partidário das exigências de uma sociedade capitalista, em contraposição
àquela anterior identificação dos sujeitos com sentidos tradicionais sobre o ser pai e o ser
mãe, sobre ser homem e ser mulher. Vejamos alguns recortes:
Recorte 1:
Recorte 2:
Recorte 3:
65
“Toda família é assim: boa, da presentes, sai com você, vai para
o parque com você, compram uma bake pra você, comem com você,
levam você para a escola, viajam comvoce, andam com você, seu
irmão joga bola com você, seu irmão vai no estádio com você, seu
irmão vai na sorveteria, sua irmã vai com você na loucadora, sua irmã
vai no mq lanc feliz. Seu pai voa de avião com você, seu pai joga
vídeo-game com você, seu pai fais um moicano em você, seu pai dida
dez reais, minha mãe vei de são Paulo, meu pai vei de minas minas
gerais, meu pai gosta dei no mauriho Biages e minha mãe gosta dei no
teatro, minha irmã gosta dei na Cidade, eu gosto dei no estadio” (A
Familha).
Parece significar status ganhar uma “bike”, conforme aponta o sujeito do terceiro
recorte, que está além de se ter uma bicicleta, uma vez que tal influência do inglês vem
marcar, mais uma vez, a necessidade do consumo que nos é imposta, funcionando no mesmo
sentido o “Mc Lanche Feliz”, grande símbolo do Mc Donald‟s para as crianças, empresa que
bem representa o que é esse consumir pautado no modelo norte-americano.
Nesse momento, colocamo-nos a perguntar: por que será que estes sujeitos reclamam
por tais sentidos? Será que as famílias estão conseguindo ficar juntas? E se não, por que isso
não está acontecendo? É nesse momento que nos deparamos com os sentidos sobre trabalho,
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Recorte 4:
“Mas todas familia tem pai e mãe que trabalha isso é muito
legal.
Porque com o trabalho deles eles ganha dinheiro, todas familia
passeião com felicida e alegria isso é bonito demais”
Percebemos aí o sentido do trabalho dos pais que são evocados pelos sujeitos-crianças
desta pesquisa: um trabalho que deve depois servir para trazer momentos de “felicidade e
alegria” em família, pois é estar com a família que o mais “bonito”. E o inverso a este sentido
também é verdadeiro, já que encontramos sujeitos que enunciam sentido que nos dão indícios
de que quando esse trabalho excede a relação entre família deixa ser tão bonita.
Recorte 5:
Recorte 6:
chega mais cedo, ele precisa aproveitar o mais rápido possível, o que não lhe dá tempo de
completar o seu dizer.
Interpretamos que os sujeitos são muito afetados pelo trabalho dos pais, trabalho que
lhes rouba o tempo que poderiam desfrutar da sua companhia. Essa relação conflituosa fica
marcada na língua, pois o mesmo sujeito, ao escrever sobre o trabalho de seu pai e de sua
mãe, não completa a palavra “trabalha” para seu pai, mas somente para sua mãe. Tais falhas
do dizer, para nós, significam muito: entendemos que a falta das letras pode representar a falta
de tempo dos pais para com seus filhos, ou seja, tocar nesse assunto é difícil e essa dificuldade
se materializa na escrita, indiciando as marcas da subjetividade.
Da mesma forma, o recorte 6 nos dá indício de um sujeito-aluno que apela pelo tempo
aos seus pais. Com certeza, tendo uma mãe que “trabalha todos os dias” e um pai “então, que
trabalha o dia inteirinho”, não é apenas deles, podemos pensar, que esse sujeito sente dó,
como podemos ler em “tadinho”: se esses pais não têm tempo para fazer nada, provavelmente,
não têm também tempo para “fazer nada” com ele, seu filho.
E aqui chegamos ao que nos propomos pensar nesse tópico, pois entendemos que há
um efeito metafórico no dizer desses sujeitos-alunos, ao tocarem na questão do trabalho
excessivo de seus pais. Com isso, entendemos que há uma “função persuasiva” da metáfora
em funcionamento nesta formação discursiva que encontramos, isto é, há um uso da metáfora
como forma de se impor ou, melhor dizendo, demonstrar, de forma sutil, de maneira não
explícita, uma opinião (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2002 apud CAMARGOS,
s.d.). Encontramos no dizer desses sujeitos-crianças uma queixa aos pais para que lhes
dediquem um tempo maior; porém, isso se dá através de um olhar condescendente dos
sujeitos, os quais, capturados pela ideologia capitalista, tentam discursivizar o trabalho como
algo importante e necessário, mesmo que, na costura dos sentidos ouçamos uma voz que
lamenta tudo isso.
Recorte 7
“Todo mundo tem pai ou teve, tem pai que chega do trabalho
mesmo que esteja cansado sempre tem uma hora extra para brincar
com o filho, e tem pai que chega do trabalho e nem lembra que tem
filho, e tem pai que sempre coloca você para dormir e lê uma história
para você, e tem pai que só coloca você dentro do quarto e tranca a
porta você que tem que se virar” (A minha família é assim).
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Para concluirmos essa primeira parte de nossas análises que, como já dissemos, é a
que compõe a maioria das análises deste capítulo de apresentação dos dados de nosso corpus,
dada a sua grande heterogeneidade, traremos agora alguns escritos que para nosso objetivo de
encontrar indícios da subjetividade são extremamente importantes. Vejamos duas produções:
Recorte 1:
Recorte 2:
“O som do coracão
Cuado tinhs um ano meu vó murel ele cantava opera não
conhesi Ele mas uma coisa fes eu senti que a Vos dele me ispiro
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quando tinha 5 anos eu estrei no pré uer eu comecei tucar opera mas
era curau eles me levou au pedro segundo me senti que algum dia eu
ia estar la cuando fis 6 anos entrei no projeto guri aliprendis a cantar
menhor conhesi varus amigos que tinha vos perfeita
sei que mas e mas vou lutar
Opera e Minha Vida”.
Recorte 1 Recorte 2
Esses escritos, a nosso ver, são muito importantes para o que pretendemos investigar
sobre a utilização da escrita como um espaço para o sujeito poder dizer, poder falar de si.
Produzindo efeitos de sentidos bem distintos, já que o sujeito do primeiro recorte enuncia
sentidos negativos sobre si e sua família, enquanto, no segundo, o sujeito nos apresenta
sentidos que lhe “tocam ao coração”, que fazem parte de “sua vida”, de seus “sentimentos”,
ambos os sujeitos parecem utilizar a escrita com uma mesma finalidade, visto que o falar de
sua família articula-se ao falar de si, das coisas de que ele gosta ou não, dos sentimentos que a
sua família lhe provoca.
No primeiro recorte temos um sujeito que se discursiviza como uma empregada dentro
de seu lar, de modo que não tem o seu tempo e a sua privacidade respeitados. Este sujeito não
consegue encontrar, a nosso ver, aqueles sentimentos positivos, de uma família unida e
“legal”, que era unanimidade na discussão inicial entre a turma e a professora e, por isso,
inicia seu texto exatamente com uma crítica àquilo tudo: “toda família é assim: menos a
70
minha”, discursiviza o sujeito, recusando os sentidos homogêneos que a conversa com a sala
sustentava sobre as famílias. Ao dizer que gostaria de “ter asa para poder ir embora”,
encontramo-nos com o desejo desse sujeito, o qual ele pode expressar neste espaço da escrita,
um lugar que parece lhe dar conforto, já que o sujeito anuncia, pela escrita, o seu desejo de
estar longe da sua família, de ter sua liberdade.
Finalizando essa reflexão sobre o falar de si, pensamos ser pertinente a apreciação de
três pequenos recortes que também apontam na direção da necessidade do sujeito usar a
escrita para falar de si, algo que também acreditamos decorrer do assunto família, de modo
que, para poder dizer sobre a temática, o sujeito necessariamente precisa pensar em si, na sua
relação com a família e, assim, inscrever-se no seu discurso.
Recorte 3:
Recorte 4:
Recorte 5:
Esclarecemos que esse momento de reflexão será mais breve que o anterior, no qual
nos debruçamos sobre as redações iniciais dos sujeitos-alunos desta pesquisa, e isto se deve,
mais uma vez dizemos, ao caráter mais heterogêneo, isto é, ao cruzamento de várias
formações discursivas que sustentaram a construção das produções iniciais, o que não foi
observado nas que analisaremos, agora.
Tomando como base a leitura e escuta da música “Família”, do grupo Titãs, além de
uma discussão entre a professora e as turmas, esse segundo momento de escrita teve a
seguinte proposta como norte às crianças: “A música do grupo Titãs traz o tema: Família.
Que relação você pode fazer da família descrita na música, com sua família e as famílias que
você conhecer?”.
Conhecer essa proposta inicial da professora se faz importante por conta dos sentidos
que permearam a totalidades deste momento de escrita, visto que a produção desses sujeitos
esteve calcada numa necessidade de “relacionar”, ou melhor, de comparar a família da música
e a sua, buscando pontos em comum entre os sentidos de família enunciados na canção e os
sentidos próprios à sua família.
Desse modo, será basicamente pela repetição dos discursos sobre família, construídos
na música, dos sentidos que a canção torna possível – os quais giram em torno de
acontecimentos cotidianos, de episódios coloquiais, como um almoço com todos os membros
da família juntos ou um momento para se assistir à TV, por exemplo – que as famílias desses
sujeitos-alunos serão, em seus textos, discursivizadas. Os recortes que trazemos abaixo nos
dão indícios dessa escrita bem homogênea e, podemos até dizer, parafrástica, que constitui
essa parte de nosso corpus.
Recorte 1:
Recorte 2:
Recorte 3:
Recorte 4:
Recorte 5:
Recorte 6:
“Minha familia não almoça junto todo dia porque meu pai esta
trabalhando nós tambem não jantamos junto mas sim nós vamos a
farmacia e ao SUS minha mãe e eu temos medo de barata e teamos
gato e temos galinha e cachorro.
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Recorte 7:
“Comparação da família
A família da música fala do pai, da mãe, da tia e avós.
Minha família é eu, meu pai, minha mãe e a minha irmã.
Nem todo dia nós almoçamos juntos, porque minha irmã e o
meu pai trabalham e aí só fica eu e a minha mãe em casa [...]”.
Recorte 8:
Pela leitura dos recortes acima, podemos compreender o quanto o retorno constante ao
texto e a repetição daqueles sentidos da música constituíram o movimento de escrita desses
sujeitos. Foi uma preocupação em “relacionar”, em “comparar”, em encontrar junto aos
sentidos possíveis à sua família aquilo que é “parecido”, “comum”, “igual”, “quase igual” ou
ainda “contrário” ao discurso de família que circula na música, que esteve presente nos
dizeres desta parte do corpus.
suas famílias com o “olhar do texto”, que solicitava tal relação entre a música e a família de
cada um. Entretanto, trazemos conosco a hipótese de que tal homogeneidade constitutiva
deste momento de escrita dos sujeitos se deve também ao gênero do texto ao qual foram
apresentados, qual seja, uma música.
Um último dado desta parte do corpus que muito nos interessa diz respeito à
correlação entre a proposta de redação da professora e a efetivação da escrita dos alunos.
Retomando a indicação da docente, veremos que ela solicita, sim, uma relação entre
aquilo que eles deveriam produzir e a música; contudo, é para além da família dos próprios
sujeitos que a professora os impulsiona: muito mais que apenas uma relação da família
descrita na música com a família do sujeito, a proposta é a de que as outras famílias que o
sujeito conhece se tornem também objeto de discussão de seu dizer.
Mas isso não acontece em nenhuma das produções analisadas: é apenas da sua família
que esses sujeitos falam, com mais nenhuma eles comparam os sentidos advindos do poema.
Isso nos faz pensar que tal proposta de escrita que toma como base a relação, isto é, que traz
consigo um espaço para a comparação, e que torna possível ao sujeito falar de si e do outro,
dos sentidos que lhes são próximos, com os quais ele convive, e daqueles que ele apenas
observa ou „já ouviu falar‟, constitui-se como um lugar possível à emergência da
subjetividade, visto que ao poderem discursivizar tanto sobre sua família quanto a respeito das
outras que ele conhece, todos os sujeitos optaram pela primeira possibilidade de escrita,
fechando-se naquilo que lhes é mais próximo.
Como é a família descrita no poema? Foi com esta proposta de escrita parafrástica,
isto é, que solicitava dos alunos um texto em que apenas os sentidos do poema fossem
resgatados, que esse terceiro momento de redação começou. Surpreendeu-nos, muito, deparar-
nos com essa orientação da professora para a produção textual dos alunos, uma vez que tal
indicação para a escrita nos faz pensar num ensino de língua(gem), como a maioria das
experiências escolares que tivemos nos demonstraram, que se pauta na repetição de sentidos
do texto, que “treina” os sujeitos-alunos a serem meros repetidores do “o que o autor quis
dizer”.
Entretanto, a leitura das produções textuais nos faz perceber que esse momento de
escrita esteve perpassado por sentidos outros, isto é, por uma polissemia. Isso significa que os
sujeitos puderam ir além daqueles sentidos enunciados pelo poema “Infância”, de Carlos
Drummond de Andrade. Os sujeitos-alunos, desse modo, evocaram suas próprias impressões
sobre o texto e, de maneira muito semelhante à produção que eles fizeram com base na
música, antes por nós analisada, eles utilizaram-se da relação entre os sentidos de família do
texto e os sentidos de sua própria família, o que não era previsto pela proposta de redação da
professora, que, aparentemente, não abria espaço para a emergência da subjetividade.
E esse “escape” dos sujeitos, esse discursivizar sobre sua família (e de seus desejos de
família, como veremos), que não estava previsto no texto, interessa-nos muito, já que indicia,
mais uma vez, a necessidade desses sujeitos usarem a escrita para falarem de si. Além disso,
esse movimento de escrita dos sujeitos vem confirmar, uma vez mais, a nossa proposição de
que um trabalho pautado no discurso polêmico abre sempre o espaço necessário para a
assunção da autoria e para a emergência da subjetividade: mesmo que, em algum momento, a
situação de escrita se ancore numa proposta parafrástica, como foi o caso dessa produção,
quando os sujeitos já estão acostumados com um trabalho de língua(gem) que possibilita o
novo, que traz sempre a discussão, a crítica e a heterogeneidade como metodologia, o
ambiente polissêmico é o que perpetua.
Trazemos, agora, alguns recortes dessas produções, os quais bem demonstram esse
movimento do sujeito entre escrever sobre a família do texto e a sua, e que ainda nos dá
indícios dos sentidos aos quais os sujeitos têm acesso sobre o tema família: a família do
poema denominada como “antiga”, “rural” ou “do campo”, e a família do sujeito
caracterizada pelos sentidos de “atual”, “da cidade” ou “urbana”, além de inserida em um
contexto que se sustenta na “tecnologia”.
77
Recorte 1:
Recorte 2:
Recorte 3:
“Era uma familia muito simples eles não era muito moderno
igual é agora que tem tecnologia eles morava em fazenda eles eram
rurais [...]
78
Recorte 4:
Recorte 5:
Recorte 6:
“Familia Moderna
A minha familia é deferente que essa familia de hoje em dia é
assim o pai não ada de cavalo os filho não brinca em arvores a mãe
não custura Por ogem é moderno as criaça meche e coputador a mãe
trabalha, o pai anda de carro”.
Uma família rural ou do campo, simples, antiga, que não tem contato com a
tecnologia: são esses os sentidos advindos da família descrita no poema para esses sujeitos-
alunos. De forma distinta, uma família urbana, em que os pais trabalham, têm carro, uma
família que vive na cidade e que se utiliza muito da tecnologia, como a TV e o computador: é
assim que são discursivizadas as famílias “atuais”. É, pois, junto a essa formação discursiva
que distingue o rural e do urbano, o novo ou atual daquilo que é velho ou antigo, que os
79
discursos desses sujeitos-alunos se constroem. Ilustra muito bem o que dizemos o recorte que
apresentamos abaixo, no qual o sujeito constrói uma parte de seu texto, tomando como base a
estrutura do poema, que “atualiza”, podemos assim dizer, os sentidos do poema infância,
trazendo traços característicos das famílias que estes sujeitos denominam “atuais”.
Recorte 7:
A vó no fuxico
O vô no canal gado
O primo no X-Box
A prima no computador
O tio no playstaytion
A tia no nootbok
A madrinha no Nintendo 64
O padrinho no celular” (O meu pé de laranja lima).
Recorte 8:
80
Recorte 9:
Quando nos deparamos com os sentidos iniciais da fala desses sujeitos-alunos, somos
levados, num primeiro momento, a pensar que o discurso da pós-modernidade, representado
pelo “videogame”, pelo “computador”, pela “modernidade” e por um estar “dentro da
tecnologia”, seriam os sentidos que mais agradam às crianças, de modo que nossa posterior
expectativa seria a de encontrar um discurso que valorizasse estes aspectos da
contemporaneidade, sentidos esses que confirmariam serem as famílias atuais mais felizes.
Entretanto, é exatamente um efeito de sentido de desejo por uma vida mais tranquila,
representada pelo campo, pelo rural, em que “viver fora de tecnologia” é sinônimo de “paz”,
de “não ter problemas” como na cidade, o que os recortes abaixo também nos demonstram.
Recorte 10:
Recorte 11:
Recorte 12:
Recorte 12:
Recorte 13:
“Essa familia é uma familia das outras modas das modas dos
campos que se andava de cavalo, que se sentava na varanda e
costurava, a vó fazia um café pretinho, o bebê que dormia a tarde para
deixar os outros em paz e um menino que brincava em volta dos pés
de manga.
Minha família é uma familia das novas modas das modas da
cidade que se anda de carro, que se costura em uma empresa, a vó é
aposentada mas porem andava atraz de trabalho, o bebê fica na creche
82
Recorte 14:
“[...]
Essa familia vive livre no campo
A minha familia vive trabalhado
Recorte 15:
Recorte 16:
Recorte 17:
83
Uma sociedade em que as crianças precisam estudar muito e acabam sem muito tempo
para a brincadeira, ou ainda em que as brincadeiras antigas são esquecidas porque as pessoas
não conseguem mais viver longe da tecnologia. Um lugar em que os pais precisam trabalhar
muito e que, por conta dessa vida corrida, não ficam muito em casa, mas presos à agitação do
dia a dia – ao contrário da liberdade do campo, sugerida na primeira estrofe do recorte 14. Um
modo de viver em sociedade marcado pelo medo do assalto e por um isolamento das pessoas:
são esses os discursos a respeito da diferença entre o rural e o urbano, que criam um efeito de
sentido negativo a essa segunda forma de viver em sociedade, que os sujeitos crianças dessa
pesquisa enunciam, marcando que eles se posicionam e sabem usar a escrita a fim de fazer
uma análise crítica da realidade.
Um desejo de viver numa sociedade mais tranquila, mais sossegada, em que haja
maior tempo para a brincadeira, em que os pais trabalhem menos e possam estar mais com
seus filhos, – o que retoma sentidos que já fizeram parte do discurso desses sujeitos-alunos
nas redações iniciais – em que as pessoas sejam verdadeiramente livres: indícios, mais uma
vez, da inscrição subjetiva desses sujeitos, que reclamam por, que querem uma vida em
família diferente.
84
Considerações Finais
É importante dizer nesse momento que, bem longe de findar as discussões que aqui
realizamos, essas considerações trazem consigo outro propósito: nosso intuito, aqui, é o de
retomar aqueles aspectos que, ao longo de nossa investida de análise vieram responder os
questionamentos de nossos objetivos, confirmando ou mesmo destituindo as nossas hipóteses
acerca do ensino do papel e do lugar da subjetividade no ensino de língua(gem). Isso porque,
a nosso ver, sentidos outros ainda se tornam (e sempre serão) passíveis de enunciação por
meio de nosso corpus, visto o ideal de um dizer que é sempre perpassado pelo já-dito, pelo
contexto sócio-histórico e pelo próprio sujeito, pelo qual a nossa posição de analistas do
discurso se engendra, o que torna cada novo olhar para o discurso um novo desvendar de
sentidos.
O primeiro aspecto de nossas investigações que retomaremos, diz respeito aos sentidos
discursivizados pelos sujeitos desta pesquisa acerca do tema família, seja sobre um modelo
dominante de família em que a harmonia e a união, a legalidade e o silenciamentos dos
problemas se fazem exigências, ou acerca dos sentidos, também dominantes, sobre pai e sobre
mãe, sobre homens e mulheres, como muito discutimos, são indicativos de algo muito
importante para nós: eles vêm reiterar os nossos suportes teóricos, a nossa identificação com a
concepção de um sujeito, como afirma Coracini (2007), que tem sua identidade, sua
subjetividade fundado a partir da presença do Outro, por um discurso social que a institui
como heterogênea e que o edifica como um sujeito cindido, perpassado pela ideologia, que se
submete, inconscientemente, e assume como seu um discurso da sociedade.
Foi, pois, um sujeito que fala de si a todo o momento, por meio da voz dos outros e do
Outro, por meio do olhar social e ideológico que o constitui, que nesta pesquisa encontramos:
sujeito esse que ao se posicionar e se identificar ou desidentificar (PÊCHEUX, 2009) com
determinados sentidos, o faz por meio de sentidos que não apenas seus; um sujeito, como já
dissemos na fundamentação deste trabalho, que se institui como múltiplo, fundando-se por
“crenças que fazem parte do imaginário e da realidade da sociedade” (GHIRALDELO, 2003,
85
p. 67), sendo “pouco afeito ao controle de si e do outro, já que é habitado por outros” e se
revelando por meio da linguagem (CORACINI, 2003b, p. 150).
Outra questão relevante em nosso processo de pesquisa diz respeito à nossa ideia
inicial, descrita em nossa metodologia, de que os textos selecionados para as produções das
crianças, qual seja a música e o poema, funcionando como um arquivo (PÊCHEUX, 1997),
pudessem favorecer a emergência da subjetividade. Nossas análises demonstraram que, de
forma contrária ao previsto, foram estas duas produções baseadas em textos, pautas nestes
arquivos, me menos estiveram marcadas pela polissemia de sentidos. Disso nos fica a
reflexão: como a escola está trabalhando com o arquivo? Ou a falta desse trabalho faz com
que o ambiente mais aberto que a primeira proposta, partindo apenas de um tema e de uma
discussão, pareça ser o espaço ideal para a emergência da subjetividade?
Percebemos, no decorrer desse texto, um sujeito-aluno que escolhe falar de sua família
quando tem como proposta da docente falar de “todas as famílias”, quando pode escolher
relacionar os sentidos da música “com sua família e com outras que ele conhece”, ou ainda,
quando não tem uma proposta de escrita parafrástica, que não prevê uma comparação e muito
menos um resgate de si, mas apenas a descrição dos sentidos da família do poema.
Encontramos um sujeito que se marca na escrita, evidenciando que “agora vai falar de si” e,
mais ainda, um sujeito que encontra na escrita um lugar para demonstrar seus sentimentos e
desejos mais íntimos, que “desabafa” e que discursiviza a partir de sua fala mais íntima, a
partir da voz de seu “coração”. Um sujeito que enuncia sentidos que refletem sua vontade de,
muito mais que presentes, ele quer seus pais presentes (vale o trocadilho), sua vontade de que
esses lhe dediquem mais tempo do que “para o trabalho”, “para o jornal”, “para a novela”.
Sujeito esse que, mesmo vivendo no mundo contemporâneo, perpassado pela tecnologia,
deseja a tranquilidade do campo, o aconchego da vida simples.
86
Vemos, então, por todo o nosso corpus que a criança quer falar de si, do que gosta, do
que deseja, daquilo que ela quer e que lhe é necessário. Contudo, a escola, na maioria das
vezes, está presa a outros sentidos, especialmente a um ensino de língua pautado na repetição
de sentidos cristalizados, na cópia como atividade de exercício da escrita, na paráfrase como
único modo de “expressão” do sujeito e nas correções ortográficas e gramaticais como único
modo de um professor olhar para a produção textual de seu aluno. Assim vamos produzindo,
como já falávamos na introdução deste trabalho, sujeitos cada vez mais esquivos “ao papel, à
caneta e aos livros”, para os quais a escrita representa um ato massivo e desprovido de
sentidos.
Mas o movimento que visualizamos em nosso trabalho foi totalmente inverso ao que
acabamos de dizer. Tal espaço do sujeito para poder falar de si e, do mesmo modo, a
identificação desses sujeitos com a atividade de escrita, o que percebemos quando eles se
inserem e enunciam sentidos que lhes constituem, é decorrente, a nosso ver, do discurso
polêmico (ORLANDI, 1996a) no qual todo o trabalho da professora se pauta, o qual vem
confirmar a nossa hipótese de que ele se torna, assim como para a assunção da autoria, lugar
privilegiado para a emergência da subjetividade, do desejo, da vontade, do falar de si. A
disputa dos sentidos se torna lugar essencial para que esse sujeito de demonstre, fale de si e
dos sentidos com os quais ele se identifica ou desidentifica, e isso acontece, como já
dissemos, mesmo que em algum momento a proposta a situação de escrita se oriente de forma
parafrástica, visto que, como nosso corpus demonstrou e como nós defendemos, quando os
sujeitos já estão habituados a um ensino da língua materna que abre espaço à polissemia e à
crítica, é desse lugar heterogêneo que eles escolhem falar.
Embora, mais uma vez, não trabalhamos em Análise do Discurso com a quantidade, a
extensão das redações desses alunos, como o leitor poderá perceber pelos anexos deste
trabalho, funcionam discursivamente e nos dão indícios também de algo que queríamos
investigar, isto é, se essa relação dos sujeitos-alunos com a escrita baseada no discurso
polêmico e na possibilidade de emergência da subjetividade, constitui-se como um lugar de
identificação dos sujeitos com a escrita. E a resposta é positiva: encontramos sujeitos-alunos
que não têm medo de usar a escrita para falar dos sentidos que lhes são caros e que o fazem de
uma forma, parece-nos, tão natural, tão gostosa, que nos faz acreditar que é com muito prazer
que eles o fazem.
Finalmente, resta-nos inferir acerca das contribuições desta pesquisa para nós, como
futuros docentes de língua e linguagem. É, pois, reiterando as nossas concepções de um
87
ensino da Língua Portuguesa que precisa estar pautado numa metodologia que se interesse
pelos sentidos que os sujeitos-alunos enunciam, que lhes dê a possibilidade de discursivizar
acerca dos sentidos com os quais eles se identificam, que lhes permita criar, criticar, discutir,
questionar e defender pontos de vista, que concluímos essas nossas reflexões. Um ensino que
se destitua de um modo de ver a língua, de compreender os sentidos e os sujeitos de forma
parafrástica, e que faça do sujeito-aluno do ensino fundamental muito mais que um “exímio
decodificador dos aspectos que “o autor quis dizer”” (ROMÃO E PACÍFICO, 2006, p.17).
Um ambiente escolar de leitura e de escrita que encante esse sujeito pelo movimento dos
sentidos, pela heterogeneidade dos discursos, pelo modo, ao mesmo tempo, integrado e
distinto da linguagem, tal como pudemos perceber aqui, por meio dos sentidos que os sujeitos
desta pesquisa colocaram em funcionamento.
88
Referências Bibliográficas
ROMÃO, L. M. S.; PACÍFICO, S. M. R. Era uma vez uma outra história: leitura e
interpretação na sala de aula. São Paulo: Editora DCL, 2006.
ANEXOS
92
“Família”
Titãs
Infância
4º ANO
I
95
II
96
III
IV
97
V
98
VI
VII
99
VIII
IX
100
XI
101
XII
102
XIII
103
XIV
104
XV
105
XVI
106
XVII
107
XVIII
108
XIX
109
XX
110
XXI
111
XXII
112
XXIII
XXIV
113
XXV
114
XXVI
115
116
XXVII
117
XXVIII
118
119
XXIX
120
121
XXX
122
123
XXXI
124
5º ANO
I
125
II
III
126
IV
127
V
128
VI
129
VII
130
VIII
131
IX
132
X
133
XI
134
XII
135
XIII
XIV
136
XV
137
XVI
138
XVII
139
XVIII
XIX
140
XX
141
XXI
142
XXII
143
XXIII
144
XXIV
145
XXV
146
XXVI
147
XXVII
148
ANEXO D – Redações com base na música Família do grupo Titãs – scaneadas e sem
identificação dos autores
4º ANO
II
149
III
IV
150
V
151
VI
VII
152
VIII
IX
153
X
154
XI
XII
155
XIII
156
XIV
157
XV
158
XVI
XVII
159
5º ANO
II
160
III
IV
161
VI
162
VII
VIII
163
IX
X
164
XI
XII
165
XIII
166
XIV
167
XV
168
XVI
169
XVII
170
XVIII
171
XIX
172
XX
173
XXI
174
XXII
175
XXIII
176
XXIV
177
XXV
178
XXVI
179
XXVII
180
4º ANO
I
181
II
182
III
183
IV
184
V
185
VI
VII
186
VIII
187
IX
188
XI
189
XII
190
XIII
XIV
191
XV
XVI
192
XVII
XVIII
193
XIX
194
XX
195
XXI
196
XXII
197
XXIII
198
XXIV
199
XXV
200
XXVI
201
XXVII
202
5º ANO
II
203
III
204
IV
V
205
VI
VII
206
VIII
IX
207
XI
208
XII
209
XIII
210
XIV
211
XV
212
XVI
213
XVII
214
XVIII
215
XIX
216
XX
217
XXI
218
XXII
219
XXIII
220
XXIV
221
XV
222
XVI
223
XVII
224
XVIII