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22/01/2014
A morte de Vladimir
Aprovado em
14/02/2014 Herzog: narrativas do
trauma na memória
MARTA REGINA
MAIA
Universidade Federal de
Ouro Preto –
marta@martamaia.pro.br
Professora Adjunta III
do curso de Jornalismo
coletiva
da UFOP. Doutora em
Ciências da
Comunicação pela USP.
Marta Regina Maia e Thales Vilela Lelo
Líder do Grupo de
Pesquisa “Jornalismo, Resumo
Narrativas e Este trabalho faz uma discussão sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog a partir
Práticas Comunicacionais”
daqueles que sofreram torturas no regime militar. O principal objeto de análise será o
THALES VILELA
LELO documentário “Vlado: 30 anos depois”, produzido pela TV Cultura e dirigido por João
Universidade Federal de Batista de Andrade. A proposta metodológica se baseia em uma análise de conteúdo
Minas Gerais –
ancorada no paradigma indiciário, tomando o filme como um indicador da vida
thales.lelo@gmail.com
Mestrando em social (em diálogo com o contexto histórico no qual está inserido). As averiguações
Comunicação Social pela empreendidas indicam que as vítimas da ditadura narram suas histórias não por
UFMG. Membro do Grupo
de Pesquisa “Jornalismo, um desejo singular, mas por preocupação para com uma história que poderia ser
Narrativas e Práticas esquecida em razão da ausência de imagens que pudessem expressar suas dores, o
Comunicacionais”
que, entretanto, não impede a sua lembrança pelos meios de comunicação e pelo
jornalismo em especial.
Palavras-chave
Ditadura, memória, experiência.
Abstract
This paper performs a discussion about the death of journalist Vladimir Herzog
starting from whose who have suffered tortures in the military regime. The main
object of analysis is the documentary “Vlado: 30 anos depois”, produced by TV
Cultura and directed by João Batista de Andrade. The methodology is based on a
content analysis grounded in evidentiary paradigm, taking the film as an indicator
of social life (in dialogue with the historical context in which it is inserted). The
investigations undertaken indicate that the dictatorship’s victims narrate their stories
not by a singular desire, but by concern for a story that could be overlooked because
of the absence of images that could express their pain, which, however, does not
Estudos em Jornalismo preclude its remembrance by the media and journalism in particular.
e Mídia
Vol. 11 Nº 1 Keywords
Janeiro a Junho de 2014
ISSNe 1984-6924 Dictatorship, memory, experience.
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/1984-6924.2014v11n1p21 21
E
ste ano, se estivesse vivo, Ao menos dois elementos contribuíram
Vladimir Herzog faria 77 para a enorme repercussão do caso. O
anos. Qual o poder desta primeiro é que Vlado nunca havia tido
lembrança para a história posições radicais, o que teria gerado
recente do Brasil? É que uma estranheza generalizada sobre sua
o assassinato deste jornalista simboliza detenção, e ainda, o segundo, é que era
a iniquidade de um período histórico um jornalista, pessoa de visibilidade
que ainda guarda lacunas e traumas em pública. Tendo assumido a direção de
processamento. A reverberação deste jornalismo da TV Cultura de São Paulo
acontecimento atinge o século XXI no dia 3 de setembro de 1975, havia
porque seus familiares, e a sociedade apresentado à direção da emissora um
de modo geral, ainda não conhecem os documento intitulado “Considerações
meandros deste e de muitos outros fatos gerais sobre a TV Cultura”, em que
que marcaram a ditadura militar no expunha sua preocupação com um
Brasil. telejornal que estimulasse a reflexão e que
O ano é 1975, o lugar é São Paulo. Pauloespelhasse os problemas, as esperanças
Egydio Martins era o governador e Ernesto e as angústias das pessoas (CULTURA
Geisel o presidente, após sucessivos RETRÔ, 2011). Acabou por sofrer uma
militares na presidência desde o dia 31 de espécie de campanha por alguns setores
março de 1964, em que as Forças Armadas da imprensa, que indicavam o domínio
- com o argumento de que o país estava “da esquerda na emissora do governo”
para se tornar uma ditadura sindicalista (DANTAS, 2012, p. 154). Conseguiu
ou comunista - resolveram tomar o poder. assim atrair a atenção de certos dirigentes
A partir de então o país viveu sob a égide que não aceitavam ninguém que não
1- Uma das de atos institucionais que implantaram seguisse estritamente as regras do jogo.
evidências de
que esta notícia mecanismos de cerceamento da liberdade A divulgação de sua foto, emblemática
ainda não foi e dos direitos constitucionais. do período ditatorial, em que aparece
devidamente “dada”
é a reportagem feita Os meios de comunicação sofrem, enforcado pelo cinto de seu macacão,
pelo jornalista Lucas
Ferraz, na Folha nestas décadas, as consequências da com as pernas dobradas, contribuiu
de S. Paulo, em repressão generalizada que o país para acirrar os ânimos no interior da
05/02/2012. Nesta
atravessa. A história de Vladimir Herzog, sociedade . Este acontecimento também
1
matéria, o jornalista
localiza, nos Estados entretanto, foi diferente de outras mostrou as tensões entre diferentes forças
Unidos, o fotógrafo
que tirou as fotos de histórias do período, em que pessoas que estavam no poder. Como mostra Elio
Herzog na época. O eram tiradas de suas casas sem qualquer Gaspari (2004), amparado em documentos
fotógrafo Silvaldo
Leung Vieira - que tipo de presença legal. Ele, que também da época, o presidente Geisel questionava
pela primeira vez teve seu domicílio e trabalho invadidos a falibilidade dos métodos utilizados
fala à imprensa
-, assume, nesta por policiais, conseguiu adiar por um pelas forças de repressão, com especial
reportagem, que dia a sua ida para “prestar depoimento” preocupação pela insubordinação militar
houve manipulação
e que isso o teria na sede do DOI-CODI, com pleno (dado que em São Paulo ela aparecia
levado a abandonar conhecimento dos familiares e colegas de de maneira mais evidente). Uma das
seu emprego público
em 1979, quando foi trabalho. Mal sabia que entraria naquele provas dessa indisciplina foi a demissão,
para uma viagem de lugar para nunca mais sair. pelo presidente, do Comandante do II
férias nos EUA. Exército, general Ednardo D’Avila Mello,
22
logo após a morte do operário Manoel sua morte, inúmeros livros, filmes,
Fiel Filho, ocorrida 84 dias após a morte reportagens e artigos científicos
de Herzog2. produzidos no Brasil e no exterior. No
“Mataram o Vlado!”, frase dita por caso específico deste trabalho, iremos nos
Clarice Herzog, sua esposa, logo que uma deter especialmente no documentário
comitiva da TV Cultura chegou em sua produzido pela TV Cultura “Vlado:
casa para justamente informar-lhe que a 30 anos depois”, sob a direção de João
2- O operário foi
situação do jornalista teria se agravado, Batista de Andrade. À parte todos dado como suicida,
foi sendo replicado em quase todos os outros documentos que foram utilizados “enforcado” por uma
meia, na mesma
lugares, evidenciando a necessidade de para esta análise, este documentário carceragem onde
se marcar este fato de maneira coletiva. surge como uma rememoração do Vladimir Herzog
fora encontrado
Uma proposta de D. Paulo Evaristo Arns acontecimento. A proposta metodológica igualmente
conseguiu esta proeza: um Ato Ecumênico baseia-se, inicialmente, em uma análise “enforcado”.
3-Vale registrar que o
na Catedral da Sé. Este evento, que reuniu
Se o acontecimento
rabino Henry Sobel,
mais de oito mil pessoas, representou também presente ao
Ato, deu a ordem
ainda repercute
uma das atividades que assinalam uma para que Herzog
reação mais articulada da sociedade civil fosse enterrado não
muito na sociedade,
na ala dos suicidas,
contra a ditadura, simbolizada por uma conforme tradição
frase da atriz Ruth Escobar no Ato: “Até judaica, mas sim no
são colocados à
tradução dos autores). Esta indagação
não diz apenas do ponto de vista do
disposição repórter, mas da condição social em
que “os fatos” estão inseridos. Isto quer
dizer que os jornalistas são responsáveis
Como já falado, o que este documentário pela organização dos acontecimentos
apresenta então é uma dimensão comum transformados então em notícias, mas que
ao acontecimento “ditadura militar” a não estão sozinhos nesta tarefa. Há uma
partir dos relatos daqueles que passaram produção social do fato, sendo inúmeros
por essa experiência. Nas palavras de os fatores envolvidos neste processo.
Pollak, apesar dos entraves implicados Os meios de comunicação, como
na captação de lembranças pelos um dos lugares de constituição da
dispositivos confeccionados para esta memória coletiva, não conseguiram, à
finalidade, “o filme é o melhor suporte época da morte do jornalista Vladimir
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Herzog, veicular estas informações, Ayres Britto, Ministro do Supremo
mas conseguem hoje, com o advento Tribunal Federal, ao proclamar seu voto
da Comissão Nacional e das Comissões contrário à revalidação da Lei da Anistia
estaduais da Verdade, dar vazão a (ver nota de rodapé nº 5), reforçou que
inúmeras reportagens que incidem sobre “os crimes hediondos não foram incluídos
este acontecimento. E não foi somente no texto da Anistia. Quem redigiu
pela presença da censura que esta e esta Lei não contemplou os crimes de
outras matérias sobre o período não torturadores” (2012). Acrescentando
puderam ser veiculadas; foi também pela ainda que “a humanidade tem o dever
impossibilidade das pessoas falarem, pois de odiar os seus ofensores porque o
lembranças traumatizantes “esperam o perdão coletivo é falta de memória e de
momento propício para serem expressas vergonha” (2012). A sociedade brasileira
(...). O longo silêncio sobre o passado, parece não se ausentar nesse sentido,
longe de conduzir ao esquecimento, é afinal, nas palavras de Jacques Le Goff, “a
a resistência que uma sociedade civil memória é um elemento essencial do que
impotente opõe ao excesso de discursos se costuma chamar identidade, individual
oficiais”. (POLLAK, 1989, p. 5) ou coletiva, cuja busca é uma das
O espaço público é então ocupado atividades fundamentais dos indivíduos e
por estas memórias e reverberações, na das sociedades de hoje” (1990, p. 44).
medida em que muitos documentos e O dispositivo sensível, que nomeia
depoimentos são, finalmente, colocados à Jacques Ranciére (2009), tanto pode ser o
disposição para jornalistas, historiadores, documentário que, mais do que apresentar
pesquisadores e a sociedade em geral. discursos, insiste em extravasar as
A própria história reforça sua condição experiências que não queriam ter “sido”,
conflituosa, em que vários grupos quanto pode ser a imagem de Vlado
disputam o seu enquadramento. No congelada em uma fotografia criada
caso específico, vale registrar que, após pelos aparelhos repressores e acionada
recomendação da CNV e atendendo como uma lembrança indesejada, mas
solicitação da família Herzog, a Justiça ainda não resolvida. Nesse sentido,
de São Paulo determinou a mudança do o documentário produzido pela TV
registro de óbito de Vlado. O atestado, Cultura e dirigido por João Batista de
que antes apresentava a causa da morte Andrade reconstitui uma experiência que 1- O nome imprensa
alternativa, também
por “asfixia mecânica”, teve sua redação é comum por afetar socialmente grupos chamada de nanica,
alterada para morte em decorrência em ação e que continua a reverberar na era utilizado para
classificar mais
“de lesões e maus-tratos sofridos em memória coletiva, em especial nos meios de uma centena
dependência do II Exército – SP (Doi- de comunicação e no jornalismo. de publicações
que surgiram
Codi)”. entre 1964 e 1980.
Opinião, Pasquim e
Movimento foram
os periódicos mais
importantes entre
esses jornais e
revistas, muitas vezes
de periodicidade
incerta. Sobre o tema
cf. Kucinski (1991).
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Referências bibliográficas
BRAGA, José L. “Lugar de fala” como conceito metodológico no estudo de produtos
culturais e outras falas. In: FAUSTO NETO, Antônio; PINTO, Milton (Orgs.). Mídia
e Cultura. Rio de Janeiro: Diadorim/Compôs, p.105-120, 1997.
BRITO, Ayres. Rejeitada Ação contra Lei da Anistia: veja voto de dois ministros.
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=5ranNPsDDAk. Acesso em: 20
outubro 2013.
DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
_____________. Ocupando-se em “ser comum”. In: Veredas, v.1, Juiz de Fora p.165-
181, 2007. Do original: SACKS, Harvey. On doing “being ordinary”. In: ATKINSON,
John; HERITAGE, John (Orgs.). Structures of social action: studies in conversation
analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
Vídeos
disponíveis em https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo
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