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E TI C A
I PRÁTICA
PETER SINGER

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seLo martins
ÉTICA PRÁTICA
ÉTICA PRÁTICA

Peter Singer

Tradução
] EFFERSON LUIZ CAMARGO

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© 2018 Martins Editora Livraria Ltda., São Paulo, para a presente edição.
© 2011 Cambridge Universiry Press.
Esta obra foi originalmente publicada em inglês sob o título Practical Ethics.

4• edição 2018

Publisher Evandro Mendonça Martins Fontes


Coordenação editorial Vanessa Faleck
Produção editorial Susana Leal
Capa e diagramação Douglas Yoshida
Revisão da tradução Maria do Carmo Za.nini
Preparação Julio de Mattos
Revisão Renata Sangeon
Lucas Torrisi
Amanda Zampieri

1ª edição 199414• edição Junho de 20181 Fonte Adobe Garamond Pro


Papel Offset 75 gim' I Impressão e acabamento Orgrafic

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ·


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Singer, Peter
Ética prática I Peter Singer; tradução Jefferson Luiz
Camargo. - 4. ed.- São Paulo :Martins Fontes- selo
Martins, 2018.- (Coleção Biblioteca Universal)

Título original: Practical Ethics


ISBN 978-85-8063-318-4

1. Ética 2. Ética social I. Título. II. Série.

18-12523 CDD -170


Índice para catálogo sistemático:
I. Érica : Filosofia 170

Todos os direitos desta edição reservados à


Martins Editora Livraria Ltda.
Av. Dr. Arnaldo, 2076
01255-000 São Paulo SP Brasil
Te!.: (11) 3116 0000
info@emartinsfontes.com. br
www.emartinsfontes.com.br
Sumário

Introdução . ... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. ... .. .. .. ... .. . ... ... .. .. ... . ... .. .. ... VII

Prefácio....................................................................... ... .. rx

1. Sobre a ética................................................................. 19

2. A igualdade e suas implicações..................................... 39

3. Igualdade para os animais?........................................... 85

4. O que há de errado em matàr? ...................................... II7

5. Tirar a vida: os animais .. ...................................... ........ 149

6. Tirar a vida: o embrião e o feto .................................... 191

7. Tirar a vida: humanos .................................................. 237

8. Ricos e pobres .................... ............ .............................. 287

9. Mudanças climáticas .......... ......... ........... ...................... 323

10. O meio ambiente ...................... .......... ........................ 353

11. Desobediência civil, violência e terrorismo .................. 379

12. Por que agir moralmente? ........................................... 409

Notas, referências e leituras complementares .................... 437

Índice remissivo ..... ..... ...................... ...... .... ..................... 463


Introdução

Faz trinta anos que Ética prática, de Peter Singer, se tornou


a introdução clássica à ética aplicada. Para esta quarta edição,
o autor revisou e atualizou todos os capítulos e acrescentou um
novo, para tratar de mudanças climáticas, um dos desafios éticos
mais importantes de nossa geração.
Algumas das questões discutidas neste livro dizem respeito
à nossa vida cotidiana. Seria ético adquirir bens supérfluos
quando outras pessoas não têm o suficiente para comer? Deve-
ríamos comprar a carne de animais criados de maneira intensiva?
Eu estaria fazendo algo errado se minhas emissões de carbono
estivessem acima da média mundial? Outras questões nos con-
frontam enquanto cidadãos interessados: a igualdade e a discri-
minação com base em raça ou sexo; o aborto, o uso de embriões
em pesquisa e a eutanásia; a violência política e o terrorismo; e a
preservação do meio ambiente de nosso planeta.
O estilo lúcido e os argumentos provocativos deste livro
fazem dele o material didático ideal para cursos universitários e
para qualquer pessoa que queira refletir sobre como deveria viver.

PETER SINGER é, no momento, professor da cátedra Ira W


DeCamp de Bioética no Centro Universitário de Valores Humanos
da Universidade de Princeton e professor laureado do Centro de
Ética Pública e Filosofia Aplicada da Universidade de Melbourne.
É autor ou organizador de mais de quarenta livros, entre eles:
Animal Liberation (1975), Rethinking Life and Death (1996) e, mais
recentemente, The Life You Can Save (2009). Em 2005, foi eleito
pela revista Time uma das cem pessoas mais influentes do mundo.
Prefácio

A ética prática abrange um campo muito vasto. Se procu-


rarmos bem, encontraremos ramificações éticas na maior parte
de nossas escolhas. Este livro não tenta abranger o campo todo.
Os problemas que aborda foram selecionados a partir de duas
premissas: a relevância e a abrangência com que o raciocínio
filosófico pode contribuir para a discussão desses problemas.
As questões éticas mais relevantes são aquelas que nos confron-
tam diariamente: seria correto gastar dinheiro para nos divertir-
mos quando poderíamos usá-lo para ajudar as pessoas que vivem
na extrema pobreza? Justifica-se que tratemos os animais simples-
mente como máquinas que produzem carne para a nossa alimenta-
ção? Deveríamos usar carros- e, com isso, emitir os gases do efeito
estufa que aquecem o planeta - quando podemos nos locomover
a pé, de bicicleta ou utilizar o transporte público? Outros proble-
mas, como o aborto e a eutanásia, felizmente não constituem,
para a maior parte de nós, decisões a serem tomadas todos os
dias, mas também são relevantes, pois trata-se de problemas que
podem surgir a qualquer momento de nossas vidas. Também
são questões de interesse atual, sobre as quais qualquer partici-
pante ativo de uma sociedade democrática deveria ter opiniões
embasadas e ponderadas.
Até que ponto um problema pode ser proveitosamente
discutido em termos filosóficos é algo que depende do tipo de
problema que temos diante de nós. Em grande parte, algumas
questões são polêmicas porque existem fatos sobre os quais ainda
não se chegou a um consenso. Deveríamos construir usinas
nucleares para substituir as termelétricas que queimam carvão,
grandes responsáveis pelo aquecimento global? A resposta a essa
pergunta parece depender, em grande parte, da possibilidade de
X ÉTICA PRATICA

garantir a segurança do ciclo do combustível nuclear em relação


tanto à liberação acidental de materiais radioativos quanto a
ataques terroristas. Os filósofos podem não ter o conhecimento
específico que lhes permita abordar essa questão (o que não
significa que não tenham nada a dizer a respeito; por exemplo,
ainda podem ser perfeitamente capazes de dizer algo útil sobre
ser ou não aceitável correr determinado risco). Em outros casos,
porém, os fatos são claros e aceitos por ambas as partes: são as
concepções éticas antagônicas que dão origem às divergências
quanto ao que fazer. Os fatos importantes a respeito do aborto
são colocados em questão - como veremos no Capítulo 6, a
pergunta "quando começa a vida humana?" é, na verdade, uma
questão de valores, e não de fatos - , mas a ética do aborto é
uma discussão acalorada. Nesses casos, o tipo de raciocínio e
de análise praticado pelos filósofos pode realmente oferecer
uma importante contribuição. O que se discute neste livro são
questões nas quais o papel principal é representado por diver-
gências éticas, e não factuais. Ponderá-las filosoficamente deve
permitir-nos chegar a conclusões mais bem justificadas.

Ética prática, publicado originalmente em língua inglesa em


1980, já foi amplamente lido, usado em muitos cursos univer-
sitários e traduzido para quinze idiomas. Sempre esperei que
muitos leitores discordassem das conclusões as quais defendo.
O que eu não esperava era que alguns tentassem impedir a
discussão dos argumentos do livro. Ainda no fim da década
de 1980 e começo da de 1990, na Alemanha, na Áustria e na
Suíça, a oposição aos pontos de vista defendidos neste livro
chegou a extremos que resultaram no cancelamento de pales-
tras e conferências para as quais eu havia sido convidado a
falar, e, em algumas universidades alemãs em que o livro seria
usado, as desavenças foram tantas que os cursos tiveram de ser
cancelados. Em Zurique, em 1991, quando eu tentava minis-
trar uma palestra, um manifestante subiu ao palco, arrancou-
-me os óculos, jogou-os no chão e os pisoteou. Protestos não
PREFACIO XI

tão violentos aconteceram na Universidade de Princeton, em


1999, quando fui nomeado para a cátedra de bioética. Pessoas
que faziam objeção às minhas opiniões barraram a entrada da
administração central da universidade, exigindo que minha
nomeação fosse revogada. Steve Forbes, um dos membros do
conselho universitário e, à época, pré-candidato republicano à
presidência dos Estados Unidos, anunciou que não faria mais
doações à universidade enquanto eu fizesse parte de seu quadro.
Eu e o presidente do conselho recebemos ameaças de morte.
Para grande mérito da universidade, ela se manteve firme na
defesa da liberdade acadêmica.
Os protestos levaram-me a refletir se as opiniões defendi-
das neste livro realmente seriam tão errôneas ou perigosas que
nem deveriam ser emitidas. Muitos opositores estavam simples-
mente desinformados a respeito do que eu dizia, mas há uma
verdade subjacente à afirmação de que o livro viola um tabu, ou
talvez mais de um. Na Alemanha, desde a era nazista e durante
muitos anos, foi impossível discutir abertamente a questão da
eutanásia ou se uma vida humana poderia ser tão miserável a
ponto de não valer a pena ser vivida. Mais fundamental ainda, e
não restrito à Alemanha, é o tabu que envolve a comparação do
valor da vida humana com vidas não humanas. Na agitação que
se seguiu ao cancelamento de uma conferência na Alemanha,
para a qual eu fora convidado a falar, a organização alemã que
patrocinava o evento apresentou uma série de moções, numa das
quais se lia: "A singularidade da vida humana exclui qualquer
possibilidade de comparação - ou, mais especificamente, de
equiparação- da existência humana com a de outros seres vivos,
com suas formas de vida ou interesses". Comparar e, em alguns
casos, equiparar a vida dos seres humanos à dos animais é exata-
mente do que tratam alguns capítulos deste livro; na verdade,
poderíamos dizer que, se existe um aspecto deste livro que o
diferencia de outras abordagens de questões como a igualdade
humana, o aborto, a eutanásia e o meio ambiente, esse aspecto
encontra-se no fato de que esses temas são abordados com o
XII ÉTICA PRÁTICA

repúdio consciente a quaisquer pressupostos de que todos os


membros de nossa espécie têm algum mérito específico ou valor
inato que nos coloque acima dos membros de outras espécies. A
crença na superioridade humana é deveras fundamental e está na
base do nosso pensamento em muitas áreas delicadas. Desafiá-
-la não é uma questão trivial, e o fato de esse desafio provocar
uma reação tão forte não nos deve surpreender. Não obstante,
uma vez que se compreenda que a violação desse tabu sobre a
comparação entre os seres humanos e os animais é parcialmente
responsável pelos protestos, fica claro que não existe volta. Por
razões que serão apresentadas e desenvolvidas nos capítulos a
seguir, a proibição de quaisquer comparações entre as espécies
seria filosoficamente indefensável. Além disso, tornaria impos-
sível superar os males que estamos fazendo agora a animais não
humanos e reforçaria atitudes que têm causado danos irrepará-
veis ao meio ambiente de nosso planeta.
Portanto, não abri mão das ideias que provocaram tanta
controvérsia. Se elas têm seus riscos, o risco de tentar continuar
silenciando a crítica a ideias largamente aceitas é ainda maior.
Desde a época de Platão, a filosofia vem avançando dialetica-
mente à medida que os filósofos apresentam motivos para discor-
dar das ideias de outros filósofos. Aprender com a discordância
nos leva a uma posição mais defensável, e é um dos motivos
pelos quais, mesmo que meus pontos de vista estejam equivoca-
dos, eles devem ser discutidos.
Apesar de eu não ter mudado de ideia em relação aos temas
contra os quais a maioria dos protestos se voltou - eutanásia e
aborto -, esta quarta edição é significativamente diferente das
anteriores. Todos os capítulos foram retrabalhados, o material
factual foi atualizado e, nos pontos em que minha posição foi
mal compreendida pelos críticos, tentei torná-la mais clara. Em
alguns casos, apareceram novas questões e novos argumentos
relevantes para questões antigas. Na discussão do status moral
dos primórdios da vida humana, por exemplo, os avanços cientí-
ficos levaram a um novo debate sobre a destruição de embriões
PREFÁCIO XIII

humanos para a obtenção de células-tronco. A compreensão


científica cada vez maior dos primórdios da vida humana não
só nos deu a esperança de progredir substancialmente no trata-
mento de doenças, também demonstrou que muitas células - e
não apenas o óvulo fertilizado - contêm o potencial de originar
uma nova vida humana. Precisamos perguntar se isso muda os
argumentos a respeito do status moral de embriões humanos e,
sendo esse o caso, de que maneira o faz.
As seções do livro que provocaram em mim a maior incer-
teza filosófica são os trechos dos Capítulos 4 e 5, que discutem se,
em algum sentido, trazer à existência um novo ser - seja um ser
humano ou um animal não humano - é capaz de compensar a
morte deliberada de um ser semelhante. Essa questão, por sua
vez, leva a perguntas referentes ao tamanho ideal da população
e se a existência de mais seres sencientes a desfrutar suas vidas
seria algo bom, mantendo-se inalteradas todas as outras condi-
ções. Esses questionamentos podem parecer obscuros e por de-
mais distantes da "ética prática" que o título do livro promete,
mas têm implicações éticas importantes. Como veremos, po-
dem servir de exemplo de como nossos juízos do que é certo ou
errado precisam ser embasados na investigação de questões filo-
sóficas profundas e difíceis. Ao revisar essas seções para esta edi-
ção, vi-me incapaz de defender, com o mínimo de confiança,
que a posição assumida por mim na edição anterior - com base
exclusivamente no utilitarismo preferencial - oferece uma res-
posta satisfatória a esses dilemas.
A reconsideração de minha postura anterior é a alteração
filosófica mais importante nesta edição. O acréscimo de maior
relevância prática, porém, é um novo capítulo que lida com o
grande desafio moral de nossa época: as mudanças climáticas.
É muito comum não enxergarmos as mudanças climáticas como
uma questão ética. Espero que esse capítulo mostre claramente
que, de fato, são. O número de capítulos desta edição continua
idêntico ao da anterior, pois um capítulo que eu havia acrescen-
tado à edição anterior, a respeito de nossa obrigação de acolher
XIV ÉTICA PRATICA

os refugiados, não aparece nesta. Não porque a questão de rece-


ber os refugiados seja hoje menos importante do que era em
1993. Ao contrário, hoje provavelmente seja mais significativa, e
o será ainda mais nas próximas décadas, pois começamos a ver
uma quantidade cada vez maior de "refugiados do clima": pes-
soas que não vivem mais onde seus pais e avós viviam porque os
regimes pluviais mudaram, ou o nível do mar se elevou. Mas
acabei insatisfeito com aquele capítulo. Em parte porque se trata
de uma questão na qual os fatos - por exemplo, a possibilidade
de um país receber grandes quantidades de refugiados sem que
isso leve a uma reação racista que prejudicaria as minorias den-
tro do próprio país - são extremamente relevantes. Além disso,
acabei percebendo diferenças entre países que são relevantes
nessa questão e, portanto, concluí relutantemente que qualquer
tentativa de tratá-la em apenas um capítulo de um livro como
este, dirigido a um público internacional, estaria fadada a ser
superficial. Decidi que, não sendo possível dar o tratamento
adequado ao assunto nem apresentá-lo em todas as suas nuan-
ces, seria melhor não incluí-lo neste livro, principalmente por
ser uma questão que cabe aos governos regulamentar com polí-
ticas, e não algo que possa ser afetado significativamente com as
ações individuais.
Para escrever e revisar este livro, usei profusamente meus
próprios livros e artigos já publicados. O Capítulo 3 se baseia
em meu livro Animal Liberation (New York Review/Random
House, 2• edição, 1990), ainda que também leve em considera-
ção as objeções feitas desde que o publiquei, em 1975. As divi-
sões do Capítulo 6 que tratam de tópicos como a fertilização in
vitro, o argumento derivado da vida em potencial, a experimen-
tação com embriões e o uso de tecido fetal foram todas extraídas
de um trabalho que escrevi com Karen Dawson, publicado com
o título de "rvF and the Argument from Potential" em Philosophy
and Public Affairs, v. 17 (1988), e em Embryo Experimentation
(Cambridge University Press, 1990), de Peter Singer, Helga Kuhse
et al. Nesta quarta edição, esse capítulo inclui a resposta aos
PREFACIO XV

argumentos de Patrick Lee e Robert George e que apareceu pela


primeira vez em "The Moral Status of Stem Cells", de Agata
Sagan e Peter Singer, em Metaphilosophy, 38 (2007). O Capítulo
7 foi enriquecido pela inclusão de ideias desenvolvidas por mim
e por Helga Kuhse em nossa abordagem muito mais completa
da questão da eutanásia nos casos de crianças com graves proble-
mas de invalidez, Should the Baby Live? (Oxford University
Press, 1985). O Capítulo 8 expõe novamente argumentos extraí-
dos de "Famine, Affluence and Morality", Philosophy and Public
Affairs, v. 1 (1972), e, para esta edição, recorri a meu tratamento
muito mais recente e abrangente da questão em The Life You
Can Save (Random House, 2009). O novo Capítulo 9 recorre a
um material publicado pela primeira vez em One World (Yale
University Press, 2002) e originário de "Climate Change as an
Ethical Issue", em Jeremy Moss (org.), Climate Change and So-
cialjustice (Melbourne University Press, 2009). O Capítulo 10 é
baseado em "Environmental Values", texto que escrevi para The
Environmental Challenge (Melbourne, Longman Cheshire,
1991), de lan Marsh (org.). Partes do Capítulo 11 foram extraídas
de meu primeiro livro, Democracy and Disobedience (Oxford,
Clarendon Press, 1973). As revisões para esta edição também
incluíram trechos de minhas respostas aos críticos em Peter Sin-
ger Under Fire, organizado por Jeff Schaler (Chicago, . Open
Court, 2009).
H. J. McCloskey, Derek Parfit e Robert Young fizeram
comentários proveitosos ao esboço da primeira edição deste
livro. As ideias de Robert Young também influenciaram meu
pensamento em uma fase anterior, quando, juntos, ministramos
um curso sobre esses temas na Universidade La Trobe, Austrá-
lia. Em particular, o capítulo sobre eutanásia deve muito às suas
ideias, ainda que ele não esteja inteiramente de acordo com seu
conteúdo. Recuando mais ainda no tempo, meu interesse pela
ética foi estimulado por H. J. McCloskey, que tive o privilé-
gio de ter como professor durante meus anos de graduação. A
marca deixada por R. M. Hare, de quem fui aluno em Oxford,
XVI ÉTICA PRATICA

é visível no substrato ético que fundamenta as posições assumi-


das neste livro. Jeremy Mynott, da Cambridge University Press,
incentivou-me a escrevê-lo, ajudou-me a dar-lhe forma e a
aperfeiçoá-lo ao longo do processo de escrita. A segunda edição
beneficiou-se de minha colaboração com Karen Dawson, Paola
Cavalieri, Renata Singer e, principalmente, Helga Kuhse. Para
esta quarta edição, devo agradecimentos infelizmente póstumos
a Brent Howard, pensador talentoso que, durante vários anos,
enviou-me inúmeras observações para uma possível revisão da
segunda edição. Também sou muito grato a Agata Sagan pelas
sugestões e pela ajuda na pesquisa durante todo o processo de
revisão. Suas contribuições ficam mais aparentes na discussão
do status moral de embriões e células-tronco, mas suas ideias e
sugestões também aprimoraram o livro em diversas outras áreas.

Existem, por certo, muitas outras pessoas com quem discu-


ti as questões que são tema deste livro. Em 1984, Dale Jamieson
chamou minha atenção para a importância das mudanças climá-
ticas como questão ética, e eu ainda o consulto a respeito desse
e muitos outros temas. Aprendi um bocado com J eff McMahan,
via contato pessoal, a partir de um seminário de pós-graduação
que ministramos juntos a respeito de questões de vida e morte e
a partir de seus inúmeros escritos. Na Universidade de Prince-
ton, tantas vezes aproveitei os comentários ao meu trabalho fei-
tos por colegas, professores visitantes no Centro Universitário de
Valores Humanos e alunos de graduação e pós-graduação. Don
Marquis e David Benatar passaram um ano cada no Centro, e
suas visitas criaram oportunidades para muitas e boas discussões.
Também agradeço aos meus colegas e alunos de pós-graduação
do Centro de Ética Pública e Filosofia Aplicada da Universidade
de Melbourne, por seus comentários em ocasionais palestras e
cursos nos quais apresentei meu trabalho.
Eu e Harriet McBryde discordamos veementemente a
respeito da eutanásia no caso de crianças portadoras de deficiên-
cias graves, mas nunca guardamos rancor um do outro, e ela
PREFÁCIO XVII

sempre apresentou meus pontos de vista com cuidadosa impar-


cialidade. Infelizmente, nosso diálogo se encerrou com sua
morte em 2008, e sinto falta de seu espírito crítico.
O leitor sagaz que comparar esta edição com a anterior
talvez repare que hoje estou mais propenso a cogitar - mas
não a abraçar - a ideia de que existam verdades éticas objetivas
independentes daquilo que se deseja. Devo essa mudança- que
não haveria como explorar adequadamente em um livro desta
natureza- à leitura que fiz de um rascunho do [então] inédito
livro de Derek Parfit, On What Matters, uma obra impressio-
nante. Espero poder escrever mais a respeito do tema em outra
ocasião.
Peter Singer
Princeton e Melbourne, 2010

Ao leitor: para maior clareza do texto, as notas, referências e


sugestões de leitura estão reunidas no fim do livro.
1

Sobre a ética

O tema deste livro é a ética prática, ou seja, a aplicação da


ética ou moralidade (usarei as duas palavras sem distinção) a
questões práticas. O leitor talvez prefira que eu comece de ime-
diato a discorrer sobre esses assuntos, mas para que as discus-
sões éticas sejam proveitosas, é preciso dizer algumas coisas
sobre a ética, de modo que tenhamos um claro entendimento do
que fazemos ao discutir problemas éticos. Portanto, o primeiro
capítulo prepara o cenário em que se vai desenrolar o restante
do livro. Para evitar que ele se transforme em um volume, será
breve e, às vezes, dogmático. Não disponho do espaço necessá-
rio para examinar todas as diferentes concepções da ética que
possam estar em conflito com aquela que vou defender; contu-
do, este capítulo servirá para apresentar os pressupostos sobre os
quais se fundamenta o restante do livro.

O que a ética não é

O principal tema da ética não é o sexo


Houve uma época, por volta da década de 1950, na qual,
se um jornal trouxesse estampada uma manchete com estes
termos "BISPO ATACA DECADÊNCIA DOS PADRÕES MORAIS", nossa
expectativa seria ler mais uma matéria sobre promiscuidade,
homossexualidade e pornografia, e não sobre as quantias irrisórias
que destinamos às nações pobres, nem o estrago que causamos
ao meio ambiente de nosso planeta. Em reação ao predomínio
20 ÉTICA PRATICA

dessa noção limitada de moralidade, popularizou-se a opinião de


que ela seria um sistema de proibições puritanas e irritantes cuja
função básica seria a de impedir as pessoas de se divertirem.
Felizmente, essa época já passou. Não pensamos mais na
moralidade ou ética como um conjunto de proibições que se
preocupam particularmente com o sexo. Até mesmo os líderes
religiosos falam mais da pobreza ao redor do planeta e das
mudanças climáticas do que de promiscuidade e pornografia.
As decisões relativas ao sexo podem envolver considerações de
honestidade, a preocupação com os outros, a prudência, a tenta-
tiva de não fazer mal às pessoas etc., mas o mesmo poderia ser
dito das decisões relativas à condução de um carro (na verdade,
tanto do ponto de vista da segurança quanto da proteção ao
meio ambiente, as questões morais colocadas pela condução de
um carro são muito mais sérias do que aquelas suscitadas pelo
sexo seguro). Dessa maneira, o presente livro passa ao largo da
discussão da moral sexual. Há problemas éticos mais importan-
tes a serem considerados.

A ética não é "boa na teoria, mas não na prática"


A segunda coisa que a ética não é: um sistema ideal
de grande nobreza na teoria, mas inaproveitável na prática.
O contrário dessa afirmação está mais próximo da verdade: um
juízo ético que não é bom na prática se deve ressentir também
de um defeito teórico, pois a questão fundamental dos juízos
éticos é orientar a prática.
Às vezes, as pessoas acreditam que a ética é inaplicável
ao mundo real, pois a imaginam como um sistema de normas
simples e breves, do tipo "não minta", "não roube" e "não mate".
Não surpreende que os que se atêm a esse modelo de ética também
acreditem que ela não se ajusta às complexidades da vida. Em
situações insólitas, as normas simples entram em conflito, e,
mesmo quando isso não acontece, seguir uma norma pode termi-
nar em desastre. Em situações normais, pode ser errado mentir,
mas, se você vivesse na Alemanha nazista e a Gestapo se apresen-
SOBRE A ÉTICA 21

tasse à sua porta em busca de judeus, sem dúvida o correto seria


negar a existência da família judia escondida no seu sótão.
A exemplo da falha de uma moral focada em restringir nosso
comportamento sexual, a falha de uma ética de normas simples
não deve ser vista como falha da ética como um todo. Trata-se
apenas da falha de uma concepção da ética, e nem chega a ser
irremediável. Aqueles que pensam na ética como um sistema de
normas - os deontologistas - podem salvar seu ponto de vista
encontrando normas mais complexas e específicas que não sejam
conflitantes entre si, ou classificando as normas segundo uma
estrutura hierárquica que resolva os conflitos internos. Além do
mais, há uma abordagem sempre válida da ética que praticamente
não é afetada pelas complexidades que tornam as normas simples
difíceis de serem aplicadas. Trata-se da concepção consequencia-
lista. Os consequencialistas não partem de regras morais, mas de
objetivos. Avaliam a qualidade das ações mediante uma verifica-
ção do quanto elas favorecem esses objetivos. O utilitarismo é
a mais conhecida das teorias consequencialistas, ainda que não
seja a única. O utilitarista clássico considera uma ação correta
desde que, comparada a uma ação alternativa, ela produza mais
felicidade para todos que são por ela atingidos, e errada caso não
consiga fazê-lo. Duas ressalvas a essa afirmação se fazem neces-
sárias: "mais felicidade", no caso, significa a felicidade líquida,
descontados o sofrimento e miséria que porventura também
tenham sido provocados pela ação; e, se duas ações diferentes
empatarem na disputa pelo título de produtora da maior felici-
dade possível, qualquer uma das duas será a correta.
As consequências de uma ação variam de acordo com as
circunstâncias nas quais ela seja praticada. Portanto, um utili-
tarista não pode ser devidamente acusado de falta de realismo
nem de uma rígida adesão a ideais que desprezem a experiên-
cia prática. Para o utilitarista, mentir será ruim em algumas
circunstâncias e bom em outras, dependendo das consequências
que o ato acarretar.
22 ÉTICA PRÁTICA

A ética não se fundamenta na religião


A terceira coisa que a ética não é: algo inteligível somente
no contexto da religião. Minha abordagem da ética passará
inteiramente ao largo da religião.
Alguns teístas afirmam que a ética não pode prescindir da
religião, porque o próprio significado de "bom" nada mais é que
"aquilo que Deus aprova". Platão refutou afirmação semelhante
há mais de dois milênios, argumentando que, se os deuses
aprovam algumas ações, deve ser porque essas ações são boas,
e que, portanto, não é pela aprovação dos deuses que se tornam
boas. O ponto de vista alternativo torna a aprovação divina total-
mente arbitrária: se, por acaso, os deuses tivessem aprovado a
tortura e reprovado o auxílio ao próximo, a tortura seria boa, e o
auxílio ao próximo, mau. Alguns teístas tentaram desembaraçar-
-se desse dilema ao sustentarem que Deus é bom, e que, portanto,
nunca aprovaria a tortura; mas, se querem sustentar que bom é
aquilo que Deus aprova, esses teístas deixam-se apanhar por sua
própria armadilha, pois o que estarão querendo dizer ao afirmar
que Deus é bom? Que Deus é aprovado por Deus?
Tradicionalmente, a mais importante ligação entre a religião
e a ética estava no fato de se pensar que a religião ofereceria uma
razão para se fazer o que é certo: os virtuosos serão recompen-
sados com uma eternidade de bem-aventurança, enquanto os
demais arderão no inferno. Nem todos os pensadores religiosos
aceitavam isso: lmmanuel Kant, um cristão dos mais devotos,
zombava de tudo que lhe cheirasse a obediência ao código moral
por interesse próprio. Devemos obedecer-lhe, dizia Kant, por
seus próprios méritos. Não precisamos ser kantianos para rejeitar
as motivações oferecidas pela religião tradicional. Há uma longa
linha de pensamento que busca a origem da ética nas atitudes de
benevolência e solidariedade para com os outros, uma qualidade
que a maioria das pessoas tem. O assunto, porém, é complexo
e, tendo em vista que se trata do tema do último capítulo deste
livro, não vou desenvolvê-lo aqui. Basta dizer que a observação
cotidiana dos nossos semelhantes deixa claro que o comporta-
SOBRE A ÉTICA 23

mento ético não exige a crença no céu e no inferno, e que ela,


por outro lado, nem sempre leva ao comportamento ético.
Se um criador divino não nos concedeu a moralidade, de
onde ela veio? Sabemos que, à semelhança de nossos parentes
mais próximos, os chimpanzés e bonobos, evoluímos a partir
de mamíferos sociais. Parece que, durante esse longo período de
evolução, desenvolvemos uma faculdade moral que produz
intuições a respeito do certo e do errado. Algumas delas são
compartilhadas com nossos parentes primatas: eles também têm
uma forte noção de reciprocidade e, quando os vemos reagir,
às vezes com violência, a um semelhante que não devolveu um
favor, enxergamos aí os primórdios de nossa própria noção de
justiça. Observando um grupo de chimpanzés em convívio,
Frans de Waal reparou que, depois de uma chimpanzé, Puist,
ter ajudado outro, Luit, a rechaçar a agressão de um terceiro,
Nikkie, este mais tarde atacou Puist. Puist pediu ajuda de
Luit, mas este nada fez. Terminado o ataque de Nikkie, Puist
agrediu Luit furiosamente. De Waal comenta: "Se sua fúria
foi de fato motivada pelo fato de Luit não a ter ajudado depois
que ela o ajudou, a sugestão seria de que a reciprocidade entre
os chimpanzés é regida pela mesma noção de retidão moral e
justiça dos seres humanos".
A partir dessas reações intuitivas, compartilhadas com ou-
tros mamíferos sociais, a moralidade se desenvolveu influencia-
da por nossa aquisição da linguagem. Assumiu formas distintas
em culturas humanas diferentes, mas ainda há uma quantidade
surpreendente de pontos comuns que os leitores provavelmente
reconhecerão por também apresentá-los. É crucial para todo
este livro que entendamos que essas intuições resultantes do
processo evolutivo não nos fornecem necessariamente as respos-
tas corretas para problemas morais. O que era bom para nossos
ancestrais pode não ser bom para a humanidade hoje, que dirá
para nosso planeta e todos os outros seres que nele vivem. Sem
dúvidas, as comunidades humanas, em um planeta pouco po-
voado, provavelmente teriam mais chances de sobreviver se ado-
24 ÉTICA PRATICA

tassem uma éttca que afirmasse "crescei e multiplicai-vos" e,


coerentemente, favorecesse as famílias grandes e condenasse a
homossexualidade. Hoje, podemos e devemos examinar com
espírito crítico as reações intuitivas que possamos ter a essas prá-
ticas e levar em consideração as consequências de famílias gran-
des ou da homossexualidade para o mundo no qual vivemos.
Muitas pessoas presumem que tudo que seja natural
também seja bom. Provavelmente pensam que, se nossas intui-
ções morais são naturais, devemos segui-las, mas isso seria um
erro. Como destacou John Stuart Mill em seu ensaio On nature
[Da natureza], a palavra "natureza" significa tudo que existe no
universo, incluindo-se aí os seres humanos e que é criado por eles,
ou o mundo como este seria sem os seres humanos e as coisas
que produzem. No primeiro sentido, nada que os seres humanos
façam pode ser "não natural". No segundo, a alegação de que
algo feito pelos seres humanos seja "não natural" não representa
objeção alguma ao ato de fazê-lo, pois tudo o que fazemos equivale
a interferir na natureza e, obviamente, boa parte dessa interferên-
cia- tratar as doenças, por exemplo- é extremamente desejável.
Portanto, entender a origem da moralidade nos liberta de
dois supostos senhores: Deus e a natureza. Herdamos de nossos
ancestrais um conjunto de intuições morais. Agora precisamos
definir quais delas devem ser mudadas.

A ética não é relativa à sociedade em que se vive


Do ponto de vista filosófico, a ideia mais difícil a respeito
da ética que pretendo negar neste primeiro capítulo é aquela
segundo a qual a ética é relativa ou subjetiva. Pelo menos, negarei
essas afirmações em alguns dos sentidos que comumente lhes
são atribuídos. Essa questão exige uma discussão mais ampla do
que as três anteriores.
Tomemos a ideia tão difundida de que a ética é relativa à
sociedade em que se vive. Isso é verdadeiro em um sentido, e
falso em outro. É certo que, como já vimos ao discutir o conse-
quencialismo, as ações que são certas em uma situação, devido
SOBRE A ÉTICA 25

às suas boas consequências, podem ser erradas em outra situa-


ção, devido às suas consequências ruins. Assim, as relações se-
xuais fortuitas podem ser erradas quando levam ao nascimento
de crianças das quais não se pode cuidar adequadamente, e não
são erradas quando, devido à existência de métodos contracepti-
vos eficazes, não levam a reprodução alguma. Trata-se simples-
mente de uma forma superficial de relativismo. Sugere que um
princípio específico como "o sexo fortuito é errado" pode ser
relativo à época e ao lugar, mas é compatível com a falsidade
objetiva de tal princípio quando este é formulado de maneira a
se aplicar a todos os casos de sexo fortuito, independentemente
das circunstâncias. Essa forma de relativismo tampouco nos dá
motivo para rejeitar a aplicabilidade universal de um princípio
mais geral, por exemplo, "faça aquilo que aumenta a felicidade e
diminui o sofrimento".
Uma forma mais fundamental de relativismo tornou-se
popular no século XIX, quando começaram a chegar informa-
ções sobre as crenças e as práticas morais de sociedades mais
distantes. Para o recato exagerado do período vitoriano, a infor-
mação de que existiam lugares onde as relações sexuais entre
solteiros eram vistas como perfeitamente aceitáveis constituiu
a semente de uma revolução no comportamento sexual. Não
surpreende que, para alguns, essas novas informações sugeriam
não somente que o código moral da Europa oitocentista não era
objetivamente válido, mas que nenhum juízo moral pode fazer
mais do que refletir os costumes da sociedade na qual é criado.
Os marxistas adaptaram essa forma de relativismo às suas
próprias teorias. As ideias dominantes de cada período, diziam,
são aquelas das classes dominantes, portanto, a moralidade de
uma sociedade é relativa à classe econômica que a domina e, por
esse motivo, é indiretamente relativa à sua base econômica.
Imaginavam que isso lhes permitia refutar triunfalmente as
pretensões da moralidade feudal e burguesa a uma validade
objetiva e universal. Aí alguns marxistas perceberam que isso
criava um problema: se toda moralidade é relativa, o que há de
26 ÉTICA PRÁTICA

tão especial no comunismo? Por que tomar o partido do prole-


tariado, e não o da burguesia?
Friedrich Engels, colaborador de Marx, abordou esse
problema da única maneira possível, abandonando o relativismo
em favor da afirmação descritiva mais limitada de que a morali-
dade de uma sociedade dividida em classes sempre refletirá os
interesses da classe dominante. Por outro lado, Engels escreveu
que a moralidade de uma sociedade sem antagonismos de classe
seria uma moralidade "realmente humana". Isso já não tem
nada de relativismo normativo - ou seja, relativismo referente
ao que devemos fazer-, mas, de um jeito meio confuso, é ainda
o marxismo que oferece o impulso para uma série de ideias relati-
vistas muito vagas, geralmente travestidas de "pós-modernismo".
O problema que levou Engels a abandonar o relativismo
também põe por terra o relativismo ético comum. Quem já se
debruçou sobre uma questão ética difícil sabe muito bem que
o fato de nos dizerem o que nossa sociedade acha que devemos
fazer não resolve o dilema. Precisamos chegar à nossa própria
decisão. As crenças e os costumes com os quais fomos criados
podem exercer grande influência sobre nós, mas, ao começar-
mos a refletir sobre eles, podemos decidir se agiremos de acordo
com o que eles nos sugerem ou se lhes faremos oposição.
O ponto de vista oposto - o de que a ética só pode ser relativa
a uma sociedade específica- tem consequências das mais implau-
síveis. Se nossa sociedade condena a escravidão, ao passo que outra
sociedade a aprova, esse tipo de relativismo não nos dá nenhuma
base a partir da qual escolher entre essas convicções antagôni-
cas. Na verdade, não existe realmente conflito em uma análise
relativista: quando afirmo que a escravidão é errada, na verdade
só estou dizendo que a minha sociedade condena a escravidão,
e, quando os proprietários de escravos de outra sociedade dizem
que a escravidão é correta, só estão dizendo que sua sociedade a
aprova. Por que discutir? É muito provável que estejamos todos
falando a verdade.
SOBRE A ÉTICA 27

Pior ainda, o relativista não pode, satisfatoriamente, explicar


o não conformista. Se "a escravidão é errada" significa "minha so-
ciedade condena a escravidão", então alguém que viva numa
sociedade que não condena a escravidão está cometendo um erro
simples e factual ao afirmar que a escravidão é um erro. Uma
pesquisa de opinião poderia demonstrar o erro de um juízo ético.
Os que desejam ser reformadores acham-se, portanto, numa si-
tuação difícil: quando se propõem a mudar as concepções éticas
de seus concidadãos, estão necessariamente incorrendo em erro.
Só quando conseguem induzir a maior parte da sociedade a acei-
tar as suas concepções é que elas se tornam corretas.

A ética não é só uma questão de predileções ou opiniões subjetivas


Essas dificuldades são suficientes para pôr a pique o relati-
vismo ético. O subjetivismo ético pelo menos impede que o
valoroso empenho dos futuros reformadores se transforme em
uma coisa sem sentido, pois faz os juízos éticos dependerem da
aprovação ou desaprovação da pessoa que está emitindo o juízo,
e não da sociedade na qual vive essa pessoa. Contudo, existem
outras dificuldades que pelo menos algumas formas de subjeti-
vismo ético não conseguem superar.
Para aqueles que afirmam que a ética é subjetiva, quando
afirmo que a crueldade com os animais é errada, e na verdade
estou apenas dizendo que condeno a crueldade com os animais,
essas pessoas se veem diante de uma versão exacerbada de uma
das dificuldades do relativismo: a incapacidade de explicar a diver-
gência ética. O que vale para o relativista em relação às divergên-
cias entre pessoas de sociedades diferentes vale para o subjetivista
em relação a todas as divergências éticas. Digo que a crueldade
com os animais é condenável, e outra pessoa diz que não é conde-
nável. Se isso significa que condeno a crueldade com os animais
e outra pessoa não, as duas afirmações podem ser verdadeiras e,
portanto, não há o que discutir.
Outras teorias, em geral descritas como "subjetivistas", não
estão sujeitas a essa objeção. Suponhamos que alguém afirme
28 ÉTICA PRATICA

que os juízos éticos não são verdadeiros nem falsos, pois não
descrevem nada, nem os fatos morais objetivos nem os estados de
espírito subjetivos de alguém. Essa teoria poderia sustentar que
os juízos éticos exprimem atitudes em vez de descrevê-las, e di-
vergimos sobre a ética porque, ao expressarmos nossa atitude,
tentamos fazer nossos ouvintes adotarem uma atitude seme-
lhante. Essa ideia, desenvolvida por C. L. Stevenson, é conheci-
da como emotivismo. Ou talvez, como enfatizou R. M. Hare,
os juízos éticos sejam preceitos e, portanto, estejam mais estrei-
tamente ligados a ordens do que a enunciações de fatos. De
acordo com esse ponto de vista- Hare o chama de prescritivis-
mo universal, e vamos examiná-lo de perto mais adiante neste
capítulo -, discordamos porque nos preocupamos com o que as
pessoas fazem. Uma terceira opinião, defendida por J. L. Mackie,
admite que muitos aspectos da maneira como pensamos e discu-
timos a ética implicam a existência de padrões morais objetivos,
mas assevera que essas características de nossos raciocínios e ar-
gumentos nos levam a uma espécie de erro, talvez o legado da
crença de que a ética seja um sistema de leis dado por Deus, ou
talvez apenas mais um exemplo de nossa tendência a objetivar
nossas necessidades e preferências pessoais.
Desde que cuidadosamente distinguidas da forma crua de
subjetivismo que vê os juízos éticos como descrições das atitudes
de quem fala, são todas representações plausíveis da ética. Ao
negar uma esfera de fatos éticos que faça parte do mundo real,
existindo com total independência de nós mesmos, pode ser que
estejam corretas. Suponhamos que estejam: daí se segue que os
juízos éticos são imunes à crítica, que não há nenhum papel a
ser desempenhado pela razão ou pelo argumento na ética e que,
do ponto de vista da razão, um juízo ético é tão bom quanto
qualquer outro? Não creio que seja assim, e nenhum dos defen-
sores dessas posições, mencionados no parágrafo anterior, nega à
razão e ao argumento um papel na ética, ainda que não estejam
de acordo quanto à importância desse papel.
SOBRE A ÉTICA 29

A questão do papel que a razão pode representar na ética é


o ponto crucial colocado pela afirmação de que a ética é subje-
tiva. Para fundamentar muito bem a ética prática, é preciso
demonstrar que o raciocínio ético é possível. Negar a existên-
cia de fatos éticos objetivos não implica a rejeição do raciocínio
ético. A tentação é dizer simplesmente que a prova do pudim
está em comê-lo, e que a prova de que o raciocínio ético é possí-
vel será encontrada nos capítulos seguintes deste livro, mas isso
não é inteiramente satisfatório. De um ponto de vista teórico,
é insatisfatório porque poderíamos flagrar-nos discutindo ética
sem saber, realmente, como essa discussão pode ser travada; e,
de um ponto de vista prático, é insatisfatório por ser mais provável
que nosso raciocínio se perca se nos faltar a compreensão de seus
fundamentos. Tentarei, portanto, dizer alguma coisa a respeito
de como podemos raciocinar em ética.

O que a ética é: uma concepção


O que vem a seguir é um esboço de uma concepção da ética
que concede à razão um importante papel nas decisões éticas.
Não se trata da única concepção possível da ética, mas é plausí-
vel. Mais uma vez, porém, terei de passar por cima de ressalvas e
objeções que mereceriam um capítulo inteiro. Aos que pensam
que existem objeções que põem por terra o ponto de vista que
estou apresentando, só posso dizer, de novo, que todo este capí-
tulo pode ser tratado como mera enunciação dos pressupostos
nos quais este livro se fundamenta. Desse modo, pelo menos aju-
dará a fornecer uma visão clara daquilo que entendo por ética.
O que significa emitir um juízo moral, discutir uma ques-
tão ética ou viver de acordo com padrões éticos? De que modo
os juízos morais diferem de outros juízos práticos? Qual é a di-
ferença entre uma pessoa que vive segundo padrões éticos de
outra que não o faz?
Todas essas questões estão relacionadas, portanto, preci-
samos levar apenas uma delas em consideração. Para fazê-lo,
contudo, é necessário dizer alguma coisa sobre a natureza da
30 ÉTICA PRÁTICA

ettca. Vamos supor que estudamos a vida de vanos povos e


sabemos muito acerca do que fazem, das coisas em que acredi-
tam, e assim por diante. Podemos, então, determinar quais entre
eles vivem segundo padrões éticos e quais não?
Poderíamos pensar que a maneira de proceder nesse caso
consiste em descobrir quem acredita ser errado mentir, trapacear,
roubar etc., quem não faz nenhuma dessas coisas, e quem não tem
essas convicções, deixando de pautar seus atos por essas restrições.
Concluiríamos, portanto, que os membros do primeiro grupo es-
tariam vivendo de acordo com padrões éticos, e diríamos exata-
mente o contrário dos membros do segundo grupo. Mas esse
procedimento mistura duas distinções: a primeira é entre viver
de acordo com (o que julgamos ser) padrões éticos corretos e vi-
ver de acordo com (o que julgamos ser) padrões éticos errôneos; a
segunda é a distinção entre viver de acordo com alguns padrões
éticos e viver à margem de todo e qualquer padrão ético. Aqueles
que mentem e trapaceiam, mas não acreditam que isso seja erra-
do, podem estar vivendo de acordo com padrões éticos. Podem
acreditar, por uma entre inúmeras razões possíveis, que é correto
mentir, trapacear, roubar etc. Não estão vivendo de acordo com
padrões éticos convencionais, mas podem estar vivendo de acordo
com outros tipos de padrões éticos.
Essa primeira tentativa de estabelecer uma distinção entre
o ético e o não ético foi equivocada, mas podemos aprender
com nossos equívocos. Vimos ser necessário admitir que aqueles
que mantêm crenças éticas não convencionais estão, ainda
assim, vivendo de acordo com padrões éticos se, por algum
motivo, acreditarem que seu modo de agir é correto. A condi-
ção em itálico nos dá uma pista para encontrarmos a resposta
procurada. A ideia de viver de acordo com padrões éticos está
ligada à ideia de defender o modo como se vive, de dar-lhe uma
razão de ser, de justificá-lo. Desse modo, as pessoas podem fazer
todos os tipos de coisas que consideramos erradas, mas, ainda
assim, viver de acordo com padrões éticos, desde que tenham
SOBRE A ÉTICA 31

condições de defender e justificar aquilo que fazem. Podemos


achar a justificativa inadequada e sustentar que as ações estão
erradas, mas a tentativa de se justificar, seja ou não bem-suce-
dida, é suficiente para trazer a conduta da pessoa para a esfera
do ético, em oposição ao não ético. Quando, por outro lado,
as pessoas não conseguem apresentar nenhuma justificativa
para o que fazem, podemos rejeitar sua alegação de que vivem de
acordo com padrões éticos, mesmo se aquilo que fazem estiver
de acordo com princípios morais convencionais.
Podemos ir além. Se devemos aceitar que uma pessoa esteja
vivendo de acordo com padrões éticos, a justificativa deve ser
de certo tipo. Por exemplo, uma justificativa baseada exclusi-
vamente no interesse pessoal não serviria. Quando Macbeth,
ao tramar a morte de Duncan, admite que só "ambições
grandiosas" o induzem a fazê-lo, está admitindo que o ato não
pode ser justificado eticamente. "Para que eu possa ser rei em
seu lugar" não é uma frágil tentativa de justificar eticamente o
assassinato; não é, de modo algum, o tipo de motivo que vale
como justificativa ética. É preciso demonstrar que os atos basea-
dos no interesse pessoal são compatíveis com princípios éticos
de alicerces mais amplos para que sejam eticamente defensáveis,
pois a noção de ética traz consigo a ideia de algo maior que o
indivíduo. Se vou defender minha conduta em bases éticas, não
posso mostrar apenas os benefícios que ela me traz. Devo dirigir-
-me a um público maior. "Para que eu possa encerrar o reinado
de um tirano cruel" teria, ao menos, sido uma tentativa ética
de justificar o assassinato do rei, apesar de não corresponder à
verdade, já que Shakespeare descreve Duncan como "bondoso".
Desde os tempos antigos, os filósofos e moralistas vêm
expressando a ideia de que a conduta ética é aceitável de um
ponto de vista que é, de certa forma, universal. O "Preceito
Áureo" atribuído a Moisés, que se acha no Levítico, e subse-
quentemente reiterado por Jesus, afirma que devemos extrapolar
nossos interesses pessoais e "fazer aos outros o que gostariamos
32 ÉTICA PRATICA

que fizessem a nós": em outras palavras, atribuir aos interesses


alheios o mesmo peso que atribuímos aos nossos. A mesma ideia
de se colocar no lugar do outro está incluída em outra fórmula
cristã, a de amar o próximo como a nós mesmos (ao menos se
dermos uma interpretação bastante ampla a "próximo"). Era
uma fórmula muito usada pelos antigos filósofos gregos e pelos
estoicos na era romana. Estes últimos afirmavam que a ética
provém de uma lei natural universal. Kant desenvolveu essa ideia
em sua célebre fórmula: ''Aja somente segundo a máxima através
da qual você possa desejar que, ao mesmo tempo, ela se trans-
forme numa lei universal". A teoria de Kant foi desenvolvida
posteriormente na obra de R. M . Hare, que via a "universali-
zabilidade" como uma característica lógica dos juízos morais.
Hutcheson, Hume e Adam Smith, filósofos ingleses do século
XVIII, invocaram um "espectador imparcial" imaginário como
critério de avaliação de um juízo moral. De J eremy Bentham até
hoje, os utilitaristas consideram axiomático que, ao se resolve-
rem problemas morais, "cada qual valha por um, e ninguém por
mais de um"; John Rawls incorporou essencialmente o mesmo
axioma à sua própria teoria ao inferir princípios éticos básicos
a partir de uma escolha imaginária que acontece sob o "véu da
ignorância", algo que impeça as pessoas encarregadas de fazer
a escolha de saber se vão ganhar ou perder com os princípios
que selecionarem. Até mesmo filósofos da Europa continental,
como o existencialista Jean-Paul Sartre e o teórico crítico Jürgen
Habermas, que, em muitos aspectos, diferem de seus colegas
ingleses- e um do outro - , concordam que, em certo sentido, a
ética é universal.
Poderíamos argumentar interminavelmente sobre os méri-
tos de cada uma dessas caracterizações do ético, mas o que elas
têm em comum é mais importante do que suas diferenças. To-
das concordam que a justificativa de um princípio ético não se
pode dar em termos de grupos parciais ou locais. A ética se fun-
damenta em um ponto de vista universal, o que não significa
que um juízo ético particular deva ser universalmente aplicável.
SOBRE A ÉTICA 33

Como vimos, os casos são modificados pelas circunstâncias.


Significa, isso sim, que, ao emitirmos juízos éticos, extrapola-
mos nossas preferências e aversões. De um ponto de vista ético,
é irrelevante o fato de eu me beneficiar ao enganar você, e você
sair perdendo. A ética extrapola o "eu" e o "você" e chega à lei
universal, ao juízo universalizável, ao ponto de vista do especta-
dor imparcial, ou observador ideal, ou qualquer outro nome que
lhe atribuirmos.
Podemos usar esse aspecto universal da ética para dele de-
duzir uma teoria ética que nos oriente sobre o que é certo e o que
é errado? Desde os estoicos a Hare e Rawls, os filósofos vêm
tentando fazer isso, e nenhuma tentativa obteve aceitação geral.
O problema é que, se descrevermos o aspecto universal da ética
em termos simples e formais, uma vasta gama de teorias éticas,
inclusive algumas totalmente irreconciliáveis, tornam-se com-
patíveis com essa noção de universalidade; se, por outro lado,
elaborarmos nossa descrição do aspecto universal da ética de
modo que ela nos leve, inevitavelmente, a uma teoria ética par-
ticular, seremos acusados de introduzir nossas próprias convic-
ções éticas em nossa definição do ético - essa definição deveria
ser supostamente ampla e neutra o suficiente para abranger to-
dos os sérios candidatos à condição de "teoria ética". Uma vez
que tantos foram incapazes de superar esse obstáculo em suas
tentativas de inferir uma teoria ética a partir do aspecto univer-
sal da ética, seria imprudente tentar fazê-lo aqui, nesta breve
introdução a uma obra de objetivos bastante diversos. Farei, em
vez disso, uma proposta um pouco menos ambiciosa. Sugiro que
o aspecto universal da ética oferece de fato um alicerce para que
eu possa começar com uma posição amplamente utilitária. Se
quisermos deixar o utilitarismo para trás, precisamos de bons
motivos para isso.
Apresento, a seguir, os motivos que me levam a tal suges-
tão. Ao admitir que os juízos éticos devam ser formados a partir
de um ponto de vista universal, aceito que minhas necessidades,
vontades e desejos, simplesmente por serem minhas preferências,
34 ÉTICA PRÁTICA

não podem contar mais que as necessidades, vontades e desejos


de outra pessoa. Assim, meu interesse perfeitamente natural em
que sejam preservadas minhas necessidades, vontades e desejos-
doravante chamadas de "preferências" -devem obrigatoriamente,
quando me ponho a pensar eticamente, ser estendidas às prefe-
rências de outras pessoas. Ora, imaginemos que eu faça parte
de um grupo de pessoas que sobrevivem coletando alimento na
floresta onde moram. Se estou sozinho e encontro uma árvore
frutífera particularmente generosa, vejo-me diante da decisão de
comer todas as frutas eu mesmo, ou dividi-las com os outros.
Imaginemos, também, que minha decisão ocorrerá num vazio
ético absoluto, que eu desconheça por completo quaisquer
considerações de natureza ética: digamos que eu esteja num
estágio pré-ético de pensamento. Como eu poderia tomar uma
decisão? Uma coisa seria relevante (e, talvez, nesse estágio pré-é-
tico, fosse a única coisa relevante): como minha escolha afetará
minhas preferências.
Imaginemos, agora, que começo a pensar eticamente, a
ponto de me colocar no lugar de outras pessoas afetadas por
minha decisão. Sabendo o que é estar no lugar delas, tenho de
levar em conta suas preferências: tenho de imaginar a fome que
estão passando, como vão apreciar as frutas, e assim por diante.
Tendo feito isso, sou obrigado a reconhecer que, já que estou
pensando eticamente, não posso atribuir às minhas preferên-
cias- simplesmente porque são minhas- um peso maior do que
atribuiria às preferências de outras pessoas. Consequentemente,
em lugar de minhas preferências, agora tenho de levar em con-
sideração as preferências de todos que serão afetados por minha
decisão. A menos que existam outras considerações eticamente
relevantes, isso me levará a ponderar todas essas preferências e
adotar o curso de ação que mais provavelmente maximizará as
preferências das pessoas afetadas. Portanto, pelo menos em al-
gum nível de meu raciocínio moral, a ética aponta o curso de
ação que acarretará as melhores consequências, no saldo geral,
para todos os afetados.
SOBRE A ÉTICA 35

No parágrafo anterior, escrevi "aponta" porque, como vere-


mos adiante, poderia haver outras considerações que apontassem
uma direção diferente. Escrevi "em algum nível de meu raciocí-
nio moral" porque, como veremos mais adiante, existem razões
utilitárias para se acreditar que não devemos tentar calcular es-
sas consequências para cada decisão ética que tomamos no nos-
so cotidiano, mas somente em circunstâncias muito incomuns
ou quando refletimos sobre a escolha de princípios gerais que
nos sirvam de guia no futuro. Em outras palavras, no exemplo
específico, à primeira vista poderia parecer óbvio que, para to-
dos os afetados, compartilhar as frutas que colhi tem conse-
quências melhores do que não fazê-lo. No fim, pode ser que esse
também seja o melhor princípio geral a ser adotado por todos
nós, mas, antes de termos motivos para acreditar ser esse o caso,
devemos levar em conta se o efeito de uma prática geral de dividir
as frutas colhidas vai beneficiar todos os afetados ou prejudicá-
-los graças à redução na quantidade de alimento coletado, pois
alguns deixarão de colher o que quer que seja se ficarem saben-
do que receberão comida suficiente daqueles que dividem o
que colhem.
Esse modo de pensar esboçado é uma forma de utilitarismo,
mas não a versão defendida por utilitaristas clássicos como J e-
remy Bentham, John Stuart Mill e Henry Sidgwick. Eles argu-
mentavam que deveríamos sempre fazer aquilo que maximizasse
o prazer ou felicidade e minimizasse o sofrimento ou infelici-
dade. Esse é o "utilitarismo hedonista" (o termo "hedonista" vem
da palavra grega para "prazer"). Por outro lado, a opinião a que
chegamos é conhecida como "utilitarismo preferencial", pois de-
fende que devemos fazer aquilo que, no saldo geral, favorece as
preferências dos que são afetados. Alguns estudiosos pensam que
Bentham e Mill talvez usassem "prazer" e "sofrimento" em um
sentido amplo, que lhes permitia incluir a conquista daquilo
que se deseja como um "prazer", e o contrário, como "sofrimen-
to". Se essa interpretação estiver correta, a diferença entre o utili-
tarismo preferencial e o utilitarismo de Bentham e Mill desaparece
36 ÉTICA PRATICA

(Sidwick, como sempre, foi mais preciso: em The Methods of


Ethics, ele distingue meticulosamente os pontos de vista preferen-
cialista e hedonista, e opta pelo segundo).
Não afirmo que seria possível inferir o utilitarismo prefe-
rencial a partir do aspecto universal da ética. Em vez de univer-
salizar minhas preferências, eu poderia fundamentar minhas
opiniões éticas em algo completamente diferente de preferências.
O utilitarismo hedonista, à semelhança do preferencial, é total-
mente imparcial ao distinguir indivíduos e satisfaz a condição de
universalizabilidade; assim como outros ideais éticos, por exem-
plo, direitos individuais, equidade, o caráter sagrado da vida,
justiça, pureza e assim por diante. São, pelo menos em algumas
versões, incompatíveis com qualquer forma de utilitarismo. Por-
tanto, voltando à situação de quem encontrou frutas em abundân-
cia e está decidindo se irá dividi-las com outras pessoas, eu poderia
argumentar que tenho direito às frutas, pois fui eu quem as encon-
trou. Ou poderia alegar que é justo que eu fique com as frutas,
pois tive o trabalho de procurar a árvore. Por outro lado, eu pode-
ria sustentar que todos têm igual direito à dádiva da natureza e,
portanto, sou obrigado a dividir igualmente as frutas.
Se me aproprio de um desses pontos de vista, mas não
consigo oferecer uma razão para defendê-lo, fora o fato de que
eu prefiro assim- prefiro uma sociedade na qual as pessoas que
encontrem objetos na natureza tenham direito de ficar com
eles, ou prefiro uma sociedade com uma noção de justiça que
recompense o esforço, ou prefiro uma sociedade na qual tudo
seja dividido igualmente -, então o peso da minha preferên-
cia precisa ser comparado ao peso das preferências contrárias
de outras pessoas. Contudo, talvez eu queira defender que esse
ponto de vista não seja simplesmente minha preferência, mas
que eu tenha, de Jato, direito às frutas que encontrei; ou todos
tenham, de Jato, direito a uma parte igual da dádiva da natureza.
Assim, essa afirmação precisa ser defendida por alguma espécie
de teoria ética. Onde arranjaremos uma teoria assim? Faz-se
necessário algum tipo de argumento moral substancial.
SOBRE A ÉTICA 37

Isso mostra que chegamos, com grande rapidez, a uma


postura inicialmente utilitária e preferencial tão logo aplicamos
o aspecto universal da ética a um processo simples e pré-ético
de tomada de decisões. A postura utilitarista preferencial é uma
posição mínima, uma base inicial à qual chegamos ao univer-
salizar a tomada de decisões com base no interesse próprio. Se
pretendemos pensar eticamente, não podemos nos recusar a dar
esse passo. Para extrapolar o utilitarismo, precisamos produzir
mais alguma coisa. Não podemos nos valer somente de nossas
intuições, mesmo daquelas que sejam amplamente compartilha-
das, pois essas, como já vimos, podem ser resultado de nossa
herança evolutiva e um guia nada confiável para nos apontar o
que é certo.
Uma forma de argumentar seria apresentar à reflexão
crítica e a um exame minucioso a alegação de que a satisfação de
preferências deveria ser nosso objetivo supremo. As pessoas têm
preferências fortíssimas por ganhar na loteria, apesar de pesqui-
sadores terem demonstrado que quem ganha grandes somas
na loteria não se torna, passado o júbilo inicial, significativa-
mente mais feliz do que era antes. Todavia, não é bom o fato de
terem conseguido o que queriam? Diante de relatos como esses,
os utilitaristas preferenciais provavelmente admitiriam que as
pessoas costumam criar preferências com base em informações
equivocadas sobre como as coisas seriam se suas preferências
fossem satisfeitas. Os utilitaristas preferenciais poderiam dizer
que as preferências que deveriam ser levadas em consideração
são aquelas que teríamos se tivéssemos todas as informações e
estivéssemos em um estado de espírito tranquilo e raciocinando
claramente. Por outro lado, os utilitaristas hedonistas diriam
que o fato de talvez abandonarmos muitas de nossas preferên-
cias, se soubéssemos que sua satisfação não nos traria felicidade,
mostra que é com a felicidade que realmente nos importamos,
não com a satisfação de nossas preferências. A isso, os utilitaris-
tas preferenciais talvez respondessem que uma candidata a poeta
poderia escolher uma vida com menos felicidade, caso pensasse
38 ÉTICA PRATICA

que isso lhe permitiria compor ótima poesia. São esses os tipos
de argumentos que precisamos analisar para decidir qual é a
forma mais defensável de utilitarismo. Em seguida, também
temos de considerar argumentos contrários a qualquer tipo
de utilitarismo e a favor de teorias morais bem diferentes. No
entanto, trata-se de um assunto para outro livro.
Este livro pode ser entendido como uma tentativa de indi-
car de que maneira um utilitarista preferencial coerente lidaria
com uma série de problemas polêmicos. Apesar das dificuldades
mencionadas, o utilitarismo preferencial é uma teoria ética dire-
ta que exige pouquíssimos pressupostos metafísicos. Todos sabe-
mos o que são preferências, ao passo que a afirmação de que algo
seja intrínseca e moralmente errado, que viole um direito na-
tural ou seja contrário à dignidade humana recorre a conceitos
não tão palpáveis e que dificultam a verificação de sua validade.
Mas, já que o utilitarismo preferencial talvez não se revele, ao
fim e ao cabo, a melhor maneira de abordar os problemas éticos,
também levarei em consideração, em vários pontos, como o uti-
litarismo hedonista, as teorias dos direitos, da justiça, de regras
morais absolutas etc. se relacionam com os problemas discuti-
dos. Desse modo, os leitores poderão chegar às suas próprias
conclusões sobre os méritos relativos das abordagens éticas utili-
taristas e não utilitaristas e sobre o papel que a razão e o argu-
mento desempenham na ética.
2

A igualdade e suas implicações

A base da igualdade
O período que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial
tem testemunhado mudanças drásticas nas atitudes morais em
relação a questões como aborto, sexo fora do casamento, homos-
sexualidade, pornografia, eutanásia e suicídio. Por maiores que
tenham sido essas mudanças, não se chegou a nenhum consenso
novo. As questões continuaram polêmicas, e pontos de vista
tradicionais ainda têm defensores respeitados.
Com a igualdade parece ocorrer algo diferente. A mudan-
ça de atitude em relação à desigualdade- sobretudo a desigual-
dade racial - não foi menos súbita e dramática que a mudança
de atitude perante o sexo, mas foi mais completa. As ideias ra-
cistas compartilhadas pela maior parte dos europeus no começo
do século xx tornaram-se inteiramente inaceitáveis, ao menos
na vida pública. Hoje, um poeta não poderia escrever sobre
"raças inferiores à margem da lei" e conservar - quando não
melhorar - sua reputação, como Rudyard Kipling, em 1897.
Isso não significa que os racistas tenham deixado de existir,
apenas que devem disfarçar seu racismo caso pretendam que
seus pontos de vista e planos de ação tenham alguma possibili-
dade de aceitação geral. O princípio de que todos os seres hu-
manos são iguais hoje faz parte da ortodoxia ético-política
predominante. Mas o que isso significa exatamente, e por qual
motivo conta com nossa aceitação?
40 ÉTICA PRÁTICA

Se formos além do consenso de que formas notórias de


discriminação racial são condenáveis, se questionarmos a base
do princípio de que todos os seres humanos são iguais, o con-
senso começará a perder sua força. E perderá ainda mais força
se tentarmos aplicar o princípio da igualdade a casos específicos.
Um sinal disso foi a polêmica provocada, na década de 1970,
pelas afirmações feitas por Arthur Jensen, professor de psicolo-
gia da educação na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e
por H . ]. Eysenck, professor de psicologia da Universidade de
Londres, sobre a existência de uma base genética que determi-
naria as variações de inteligência entre raças diferentes. A ques-
tão foi revitalizada, em 1994, com a publicação de The Bell
Curve [A curva do sino], de Richard Herrnstein e Charles Mur-
ray. Muitos dos mais ferrenhos adversários de Jensen, Eysenck,
Herrnstein e Murray presumiram que, se bem fundadas , essas
afirmações justificariam a discriminação racial. Estariam certos?
Perguntas semelhantes podem ser feitas a respeito da especula-
ção de Lawrence Summers, em 2005, quando era presidente do
conselho da Universidade de Harvard, de que as diferenças entre
homens e mulheres talvez fossem um dos fatores responsáveis
pela dificuldade da universidade em designar mais mulheres
para as cátedras de matemática e ciências. O clamor que se
seguiu foi largamente entendido como um dos fatores res-
ponsáveis pela subsequente exoneração de Summers. Teria ele
sido sexista?
Outra questão que nos obriga a repensar o que entende-
mos como igualdade é se membros de minorias desprivilegiadas
deveriam receber tratamento preferencial quando se candidatam
a vagas de emprego ou cursos universitários. Alguns filósofos e
advogados argumentam que a igualdade exige a ação afirmativa, ao
passo que outros afirmam que a igualdade exclui toda e qualquer
discriminação com base em raça, etnia ou sexo, seja para favorecer
ou desfavorecer os membros de um grupo desprivilegiado.
Para responder a essas questões, precisamos esclarecer o
que podemos dizer com justiça quando afirmamos que todos
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ6ES 41

os seres humanos são iguais. Podemos começar investigando os


fundamentos éticos do princípio de igualdade.
Quando dizemos que todos os seres humanos são iguais,
a despeito de raça ou sexo, estamos afirmando exatamente o
quê? Os racistas, sexistas e outros adversários da igualdade
têm mostrado frequentemente que, qualquer que seja a forma
de comprovação escolhida, a verdade pura e simples é que os
seres humanos não são todos iguais. Alguns são altos, outros
são baixos; alguns são bons em matemática, outros mal conse-
guem fazer uma operação de adição; alguns conseguem correr
cem metros em dez segundos, outros simplesmente não conse-
guem correr; alguns jamais feririam intencionalmente um
semelhante, ao passo que outros matariam um desconhecido
por cem dólares se o conseguissem fazer impunemente; alguns
têm vidas emocionais que chegam às raias do êxtase e às profun-
didades do desespero, enquanto outros vivem num plano
mais equilibrado, relativamente imunes ao que se passa a seu
redor... Poderíamos citar um número interminável de exemplos
semelhantes. O fato é que os seres humanos diferem entre si,
e que as diferenças remetem a tantas características que a busca
de uma base factual sobre a qual se pudesse erigir o princípio da
igualdade parece inalcançável.
Em seu influente livro A Theory of justice, ]ohn Rawls
sugeriu que a igualdade se pode fundamentar nas característi-
cas naturais dos seres humanos, desde que selecionemos aquilo
que ele chama de range property ou "propriedade de âmbito".
Vamos supor que tracemos um círculo num pedaço de papel.
Todos os pontos no interior do círculo - é esse o "âmbito" -
têm a propriedade de estar dentro do círculo, e a têm igual-
mente. Alguns pontos podem estar mais próximos do centro,
outros mais próximos da periferia, mas todos são, igualmente,
pontos no interior de um círculo. Da mesma forma, sugere
Rawls, a "personalidade moral" é uma propriedade que prati-
camente todos os seres humanos têm, e todos que a têm a têm
igualmente. Por "personalidade moral", Rawls não quer dizer
42 ÉTICA PRATICA

"personalidade moralmente boa": ele usa o termo "moral" em


contraste com "amoral". Uma pessoa moral, diz Rawls, deve ter
um senso de justiça. Em termos mais amplos, poderíamos dizer
que ser uma pessoa moral implica ser o tipo de pessoa à qual se
pode fazer uma súplica moral com alguma perspectiva de que
essa súplica será levada em conta.
Rawls afirma que a personalidade moral constitui a base da
igualdade humana, um ponto de vista que vem de sua fidelidade
a um modelo de justiça oriundo da tradição do contrato social.
Essa tradição vê a ética como uma espécie de acordo mutua-
mente benéfico: grosso modo, algo como "não me agrida para
não ser agredido", mas essa é a ideia geral. Portanto, só estão
dentro da esfera ética aqueles que são capazes de compreender o
fato de que não estão sendo agredidos e de, consequentemente,
refrear sua própria agressividade.
O uso da personalidade moral como base da igualdade
não está a salvo de problemas. Uma das objeções é que ter
uma personalidade moral é uma questão de grau. Em termos
gerais, algumas pessoas são extremamente sensíveis a questões
de justiça e ética; outras, por uma multiplicidade de razões, têm
somente uma consciência limitada desses princípios. A sugestão
de que ser uma pessoa moral é o mínimo necessário para se
situar na esfera do princípio de igualdade ainda deixa em aberto
a questão de saber onde se deve traçar a linha que delimita esse
mínimo. Tampouco é intuitivamente óbvio por que, sendo a
personalidade moral tão importante, não deveríamos ter graus
de status moral, com direitos e deveres correspondentes ao grau de
refinamento do senso de justiça de uma pessoa.
Ainda mais séria é a objeção de que nem todos os seres
humanos são pessoas morais, mesmo no sentido mais ínfimo.
Bebês, crianças pequenas e seres humanos portadores de graves
deficiências mentais carecem do necessário senso de justiça.
Diremos, então, que todos os seres humanos são iguais, com
exceção dos muito jovens ou dos deficientes mentais? Não é isso,
por certo, o que em geral se entende por princípio de igualdade.
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ0ES 43

Se esse princípio revisto implicasse que podemos desprezar os


interesses dos seres humanos muito jovens ou dos deficientes
mentais em moldes que seriam errados se eles fossem mais
velhos ou mais inteligentes, precisaríamos de argumentos muito
mais fortes para aceitá-lo (Rawls lida com a questão de bebês e
crianças ao incluir pessoas morais em potencial, juntamente com
aquelas que são de fato morais na esfera do princípio de igual-
dade. Mas trata-se de um recurso ad hoc, reconhecidamente
concebido para harmonizar sua teoria com nossas intuições
morais comuns, e não uma coisa para a qual se possam apresen-
tar argumentos independentes. Além disso, embora Rawls
admita que os portadores de deficiências mentais irreparáveis
"possam representar uma dificuldade", ele não oferece sugestão
alguma de como solucioná-la).
Assim, a posse de uma "personalidade moral" não oferece
uma base satisfatória para o princípio de que todos os seres
humanos são iguais. Duvido que qualquer característica natural,
seja ou não uma "propriedade de âmbito", possa desempenhar
essa função, pois duvido que exista uma propriedade moralmente
significativa que todos os seres humanos tenham por igual.
Há outra linha de defesa possível para a crença de que exis-
ta uma base factual para um princípio de igualdade que proíba
o racismo e o sexismo. Podemos admitir que os seres humanos
diferem enquanto indivíduos, e, ainda assim, insistir na afirma-
ção de que não existem diferenças moralmente significativas
entre as etnias e os sexos. O fato de sabermos que alguém é de
origem africana ou europeia, homem ou mulher, não nos auto-
riza a tirar conclusões sobre sua inteligência, seu senso de justi-
ça, a profundidade de seus sentimentos ou qualquer outra coisa
que nos desse o direito de tratar essa pessoa como menos do que
um semelhante. A pretensão racista de que os povos de origem
europeia são superiores aos de outras raças nesses quesitos é
falsa. As diferenças entre os indivíduos nesses quesitos não são
delimitadas por fronteiras raciais. O mesmo se pode dizer do
estereótipo sexista que vê as mulheres como emocionalmente
44 ÉTICA PRÁTICA

mais profundas e mais atenciosas, mas também menos agressivas


e empreendedoras que os homens. É evidente que essa afirmação
não vale para todas as mulheres. Algumas são emocionalmente
mais frívolas, menos atenciosas, mais agressivas e mais empreen-
dedoras que alguns homens.
O fato de que os seres humanos diferem enquanto indiví-
duos, não enquanto raças ou sexos, é importante, e a ele volta-
remos quando discutirmos as afirmações de Jensen, Eysenck
e outros; contudo, ele não proporciona um princípio de igual-
dade satisfatório nem uma defesa apropriada contra um adver-
sário da igualdade mais sofisticado que o racista ou o sexista.
Vamos supor que alguém proponha que as pessoas sejam subme-
tidas a testes de inteligência e, posteriormente, classificadas
em categorias superiores ou inferiores com base nos resultados.
Talvez os que fizessem mais de 125 pontos constituíssem uma
classe proprietária de escravos; aqueles que ficassem entre 100 e
125 pontos seriam cidadãos livres, mas sem direito de ter escra-
vos; e os que ficassem abaixo dos 100 pontos passariam a ser
escravos dos que obtiveram mais de 125. Uma sociedade hierar-
quizada desse jeito parece tão abominável quanto qualquer
outra que se baseasse na raça ou no sexo. Contudo, se funda-
mentarmos nossa defesa da igualdade na alegação factual de que
as diferenças entre os indivíduos extrapolam as fronteiras raciais
e sexuais, não teremos motivo para nos opor a esse tipo de socie-
dade hierarquizada, pois essa teria como alicerce as diferenças
reais entre as pessoas.
Só poderemos rejeitar essa "hierarquia de inteligência" e
classificações igualmente fantasiosas se estivermos convencidos
de que a reivindicação da igualdade não se baseia na posse de
inteligência, personalidade moral, racionalidade ou outros da-
dos semelhantes da realidade. Não existe nenhuma razão de ló-
gica imperiosa que nos leve a pressupor que uma diferença de
capacidade entre duas pessoas justifique uma diferença na con-
sideração que atribuímos a seus interesses. A igualdade é um
princípio ético básico, e não a enunciação de um fato. Isso ficará
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ6ES 45

evidente se voltarmos à discussão anterior sobre o aspecto uni-


versal dos juízos éticos.
No capítulo anterior, vimos que, ao fazer um juízo ético,
devemos extrapolar o ponto de vista pessoal ou grupal e levar
em consideração os interesses de todos os afetados, a menos
que tenhamos motivos éticos bem fundamentados para fazer o
contrário. Isso significa que ponderamos os interesses, considera-
dos simplesmente como interesses, e não como meus interesses,
interesses de pessoas de origem europeia ou de pessoas com QI
superior a 100. Isso nos proporciona um princípio básico de igual-
dade: o princípio da igual consideração dos interesses.
A essência do princípio da igual consideração está em
atribuirmos, em nossas deliberações morais, o mesmo peso aos
interesses semelhantes de todos os que são atingidos por nossos
atos. Isso significa que, se apenas x e Y viessem a ser atingidos
por um possível ato, e se x fosse perder mais do que Y teria a
ganhar, melhor seria deixar de praticar o ato. Se aceitarmos o
princípio da igual consideração de interesses, não poderemos
dizer que seja melhor praticar o ato, a despeito dos fatos descritos,
porque estaríamos mais preocupados com Y do que com x. Eis a
que o princípio realmente equivale: um interesse é um interesse,
seja lá de quem eu for.
Podemos tornar o problema mais concreto considerando
um interesse específico: por exemplo, o interesse que temos em
aliviar a dor. O princípio diz, portanto, que a razão moral fun-
damental para aliviar a dor é simplesmente a indesejabilidade da
dor enquanto tal, e não a indesejabilidade da dor de x, que pode
ser diferente da indesejabilidade da dor de Y. É claro que a dor
de x poderia ser mais indesejável que a dor de Y, pelo fato de ser
mais forte, e então o princípio de igual consideração atribuiria
um peso maior ao alívio da dor de x. De novo, mesmo que as
dores fossem iguais, outros fatores poderiam ser relevantes, so-
bretudo se outras pessoas fossem afetadas. Se houve um terre-
moto, talvez déssemos prioridade ao alívio da dor de um médico,
de modo que ele pudesse cuidar das outras vítimas. Mas a dor
46 ÉTICA PRATICA

do médico propriamente dita só conta uma vez, sem pondera-


ção adicional. O princípio da igual consideração de interesses
atua como uma balança, pesando imparcialmente os interes-
ses. O ponteiro da balança favorece o lado em que o interesse
for mais forte ou em que vários interesses se combinam para
exceder em peso um número menor de interesses semelhantes,
mas não levam em consideração de quem são os interesses que
estão pesando.
Desse ponto de vista, a raça é irrelevante para a conside-
ração dos interesses, pois o que conta são os interesses em si.
Considerar menos uma quantidade específica de dor porque essa
dor foi sentida por um membro de determinada raça equivale-
ria a fazer uma distinção arbitrária. Por que escolher uma raça
como vítima? Por que não fazer a escolha com base no fato de
uma pessoa ter nascido num ano bissexto? Ou pelo fato de seu
sobrenome conter mais de uma vogal? Do ponto de vista univer-
sal, todas essas características são igualmente irrelevantes para a
indesejabilidade da dor. Portanto, o princípio da igual conside-
ração de interesses mostra, inequivocamente, por que as mais
exacerbadas formas de racismo, como a dos nazistas, são erradas;
os nazistas estavam preocupados somente com o bem-estar dos
membros da raça "ariana" e ignoravam por inteiro o sofrimento
de judeus, ciganos e eslavos.
O princípio da igual consideração de interesses é tido, às
vezes, como um princípio puramente formal, desprovido de
substância e demasiado fraco para excluir práticas não iguali-
tárias. Já vimos, porém, que ele exclui o racismo e o sexismo,
pelo menos em suas formas mais exacerbadas. Se examinarmos
o impacto do princípio na imaginária sociedade hierárquica
baseada em testes de inteligência, poderemos ver que ele é forte
o bastante para proporcionar uma base que permita rejeitar
também essa forma mais sofisticada de não igualitarismo.
O princípio da igual consideração de interesses não permite
que nossa presteza em considerar os interesses dos outros dependa
das aptidões ou de outras características destes, excetuando-se a
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ6ES 47

característica de ter interesses. É verdade que não podemos saber


aonde nos levará a igual consideração de interesses enquanto
não soubermos quais interesses têm as pessoas, o que pode variar
de acordo com suas aptidões ou outras características. Levar
em consideração os interesses de crianças com talento para a
matemática pode levar-nos a lhes ensinar matemática avançada
em tenra idade, o que, no caso de crianças diferentes, pode ser
totalmente fora de propósito ou absolutamente prejudicial. Mas
o elemento básico -levar em conta os interesses da pessoa, sejam
eles quais forem- deve aplicar-se a todos, sem levar em conside-
ração a raça, o sexo ou os pontos obtidos no teste de inteligência.
Escravizar aqueles que não atingem um certo nível em um teste
de inteligência não seria compatível com a igual consideração,
salvo no caso de convicções insólitas e implausíveis acerca da
natureza humana. A inteligência nada tem a ver com muitos
interesses importantes dos seres humanos, como o interesse em
evitar a dor, satisfazer as necessidades básicas de alimentação e
abrigo, amar possíveis filhos e cuidar deles, manter relações de
amor e amizade com outras pessoas e ser livre para se dedicar a
seus projetos sem a desnecessária interferência alheia. A escravi-
dão impede que os escravos satisfaçam esses interesses do modo
como gostariam, e as vantagens que confere aos donos de escra-
vos mal podem ser comparadas, em importância, ao mal que faz
aos escravos.
Portanto, o princípio da igual consideração de interesses é
forte o suficiente para excluir uma sociedade escravagista ba-
seada na inteligência, bem como as formas mais grosseiras de
racismo e sexismo. Também exclui a discriminação da deficiên-
cia, seja mental ou física, na medida em que a deficiência não é
relevante para os interesses em consideração (por exemplo, a de-
ficiência mental grave, caso estivéssemos considerando o interes-
se de uma pessoa em votar numa eleição). Portanto, o princípio
da igual consideração de interesses pode ser uma forma defensá-
vel do princípio no qual todos os seres humanos são iguais, uma
48 ÉTICA PRATICA

forma que podemos usar ao discutir questões mais polêmicas


sobre a igualdade. Antes de prosseguirmos, porém, seria conve-
niente dizer mais algumas coisas sobre a natureza do princípio.
A igual consideração de interesses é um princípio mínimo
de igualdade, no sentido de que não impõe um tratamento
igual. Tomemos um exemplo relativamente objetivo: o interesse
em ter a dor física aliviada. Imaginemos que, depois de um ter-
remoto, encontro duas vítimas: uma delas em agonia, com uma
perna esmagada; a outra com um pouco de dor provocada por
um ferimento na coxa. Tenho apenas duas doses de morfina. O
tratamento igual sugeriria que eu desse uma a cada pessoa feri-
da, mas uma dose não seria suficiente para aliviar a dor da pes-
soa com a perna esmagada. Ela ainda sentiria muito mais dores
do que a outra vítima, e, mesmo depois de lhe ter aplicado a
primeira dose, a segunda traria um alívio muito maior a essa
pessoa do que à outra que sente pouca dor, caso eu lhe aplicasse
a morfina. Nessa situação, portanto, a igual consideração de in-
teresses leva àquilo que alguns poderiam ver como um resultado
não igualitário: duas doses de morfina para uma pessoa, e ne-
nhuma para a outra.
Há uma implicação não igualitária ainda mais polêmica do
princípio da igual consideração de interesses. No caso acima,
ainda que a igual consideração de interesses leve a um tratamento
desigual, esse tratamento desigual produz um resultado mais
igualitário. Ao aplicar a dose dupla na pessoa mais gravemente
ferida, provocamos uma situação na qual há menos diferença no
grau de sofrimento sentido pelas duas vítimas do que haveria se
tivéssemos dado uma dose a cada uma delas. Em vez de termi-
narmos com uma pessoa sentindo uma dor ainda forte, e outra,
sem dor alguma, terminamos com duas pessoas com uma dor
suportável. Está de acordo com um princípio bem conhecido
dos economistas, o princípio da diminuição da utilidade margi-
nal: quanto mais alguém tiver de uma coisa, menos essa pessoa
ganhará se obtiver mais dessa mesma coisa. Se estou lutando
para sobreviver com duzentos gramas de arroz por dia, e você
A IGUALDADE E SUAS !MPL/CAÇOES 49

me fornecer mais cinquenta gramas por dia, com isso melhora-


ria significativamente minha situação; mas, se eu já contar com
um quilo de arroz por dia, não me importarei muito com os
cinquenta gramas a mais. Vale a mesma coisa para o dinheiro:
cem dólares representam muita coisa para alguém que tem cem
dólares como renda semanal, mas significa muito pouco para
um bilionário. Quando levamos em conta a utilidade marginal,
o princípio da igual consideração de interesses nos predispõe
a aceitar a igual distribuição de renda - deixando de lado os
efeitos do desincentivo - e, até aí, o igualitário vai endossar suas
conclusões. O que pode incomodar o igualitário, com relação ao
princípio da igual consideração de interesses, é o fato de que há
circunstâncias nas quais o princípio da diminuição da utilidade
marginal não funciona ou é anulado por fatores que atuam com
a mesma força contrária.
Isso pode ser ilustrado mediante uma variação do exemplo
das vítimas do terremoto. Digamos, de novo, que há duas
vítimas, uma mais gravemente ferida que a outra; dessa vez,
porém, diremos que a mais gravemente ferida, A, perdeu uma
perna e corre o risco de perder um dedo do pé da perna que lhe
restou. A vítima menos gravemente ferida, B, tem um ferimento
que coloca sua perna em risco. Temos recursos médicos para uma
única pessoa. Se os usarmos na vítima mais gravemente ferida, o
máximo que faremos vai ser salvar seu dedo do pé, ao passo que,
se os usarmos na vítima menos gravemente ferida, poderemos
salvar sua perna. Em outras palavras, supomos que a situação seja
a seguinte: sem tratamento médico, A perderá uma perna e um
dedo do pé, enquanto B perderá uma perna; se administrarmos o
tratamento a A, A e B perderão uma perna; se o administrarmos a
B, A perderá uma perna e um dedo, enquanto B não perderá nada.
Se admitirmos que perder uma perna é pior que perder um
dedo (mesmo quando esse dedo fica no único pé que restou), o
princípio de diminuição da utilidade marginal não basta para
nos fornecer a resposta certa para essa situação. Faremos mais
para promover os interesses, imparcialmente considerados, das
50 ÉTICA PRÁTICA

pessoas afetadas por nossos atos se usarmos nossos recursos


limitados na vítima menos gravemente ferida, e não naquela que
sofreu ferimentos mais graves. Portanto, é isso que o princípio
da igual consideração de interesses nos leva a fazer. Assim, em
casos especiais, a igual consideração de interesses pode aumen-
tar, em vez de diminuir a diferença entre duas pessoas em níveis
distintos de bem-estar. É por esse motivo que se trata de um
princípio mínimo de igualdade, não um princípio igualitário
perfeito e consumado. Contudo, uma forma mais consumada
de igualitarismo seria difícil de justificar, tanto em termos gerais
quanto em sua aplicação a casos específicos como o que há
pouco descrevemos.
Por mínimo que seja, o princípio da igual consideração de
interesses pode parecer muito exigente em alguns casos. Quem
de nós poderá dar igual consideração ao bem-estar de nossa famí-
lia e ao bem-estar de desconhecidos? Abordaremos essa questão
no Capítulo 8, ao examinar nossas obrigações de prestar assistên-
cia aos necessitados das regiões mais pobres do mundo. Lá tenta-
rei mostrar que, apesar de o princípio da igual consideração de
interesses entrar em conflito com opiniões difundidas sobre o
que seria viver eticamente, são essas outras opiniões que devemos
rejeitar, não o princípio da igual consideração de interesses. En-
quanto isso, veremos de que modo esse princípio nos ajuda a
discutir algumas das questões polêmicas suscitadas pelas reivindi-
cações de igualdade.

Igualdade e diversidade genética


Em 1969, Arthur Jensen publicou na Harvard Educational
Review um longo artigo intitulado "How Much Can We Boost
IQ and Scholastic Achievement?" [Até que ponto podemos melho-
rar o QI e o aproveitamento escolar?]. Uma pequena parte do ar-
tigo discutia as causas prováveis do fato inquestionável de que- em
média - os afro-americanos não se saem tão bem nos testes-
-padrão de QI quanto a maioria dos demais norte-americanos.
Jensen resumiu a conclusão dessa parte da seguinte maneira:
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ6ES 51

tudo o que nos resta são diversas linhas de indícios, nenhuma


das quais conclusiva por si só, mas que, vistas em conjunto, não
tornam irracional a hipótese de que os fatores genéticos têm
fortes implicações para a diferença média de inteligência entre
negros e brancos. Em minha opinião, os indícios predominantes
fazem mais sentido no caso de uma hipótese genética do que no
caso de uma hipótese estritamente ambiental, o que, natural-
mente, não exclui a influência do meio ambiente nem sua intera-
ção com fatores genéticos.

Essa afirmação cheia de ressalvas aparece no meio de um


exame minucioso de um tema científico complexo, publicado
numa revista acadêmica. Ninguém se surpreenderia se passasse
despercebida, a não ser para os cientistas que atuam na área
da psicologia ou da genética. Em vez disso, foi amplamente
difundida pela imprensa popular como uma tentativa de defen-
der o racismo em bases científicas. Jensen foi acusado de fazer
propaganda racista e comparado a Hitler. Seus cursos foram
cancelados e os alunos de sua universidade exigiram que ele
fosse exonerado. H. J. Eysenck, professor de psicologia de uma
universidade britânica que apoiou as teorias de Jensen, recebeu
tratamento semelhante na Grã-Bretanha, na Austrália e nos
Estados Unidos. É interessante notar que Eysenck não sugeriu
que os indivíduos de origem europeia tivessem a mais alta inteli-
gência média entre os norte-americanos; em vez disso, percebeu
indícios de que os americanos de origem japonesa ou chinesa
eram mais bem-sucedidos nos testes de raciocínio abstrato
(a despeito de terem crescido em estratos mais baixos da escala
socioeconômica) do que os americanos de origem europeia.
A oposição às explicações genéticas de supostas diferen-
ças raciais quanto à inteligência é apenas uma manifestação
de uma oposição mais geral a explicações genéticas em outras
áreas socialmente delicadas. Tem muito a ver, por exemplo, com
a hostilidade das feministas da década de 1970 à ideia de que
existem fatores biológicos por trás do predomínio masculino
na política e nos negócios (as feministas de hoje parecem mais
52 ÉTICA PRÁTICA

propensas a aceitar a ideia de que as diferenças biológicas entre os


sexos influenciam, por exemplo, a maior agressividade mascu-
lina e o comportamento mais atencioso da mulher). A oposi-
ção às explicações genéticas também tem óbvias ligações com
a veemência das emoções despertadas pelas explicações evolu-
tivas sobre o comportamento humano. Nesse caso, a preocu-
pação é que, se o comportamento social humano for entendido
como resultado de milhões de anos de evolução e relacionado
ao comportamento de outros mamíferos sociais, passaremos a
pensar em hierarquia, dominância masculina e desigualdade
como parte de nossa natureza, fruto da evolução e, portanto,
imutável. Contudo, as explicações evolutivas para o comporta-
mento humano hoje são muito mais amplamente aceitas do que
eram na década de 1970. O mapeamento do genoma humano,
que faz parte de um projeto científico maior de entender melhor
a natureza e a função do código genético humano, também
provocou apreensão quanto ao que esse mapeamento poderia
revelar sobre as diferenças genéticas entre os seres humanos e o
uso que poderia ser feito dessas informações.
Não me caberia tentar avaliar os méritos científicos das
explicações biológicas do comportamento humano em geral nem
das diferenças raciais ou sexuais em particular. Minha preocu-
pação é muito mais com as implicações dessas teorias para o
ideal de igualdade. Para tanto, não é necessário estabelecermos
se as teorias são corretas. Só precisamos perguntar: suponhamos
que um grupo étnico realmente demonstre ter um QI médio
mais alto do que o de outro, e que parte dessa diferença tenha
uma base genética: isso significaria que o racismo é defensá-
vel, e que devemos rejeitar o princípio de igualdade? Pergunta
semelhante pode ser feita com relação ao impacto das teorias
sobre as diferenças biológicas entre os sexos. Em nenhum dos
casos a pergunta pressupõe que as teorias sejam corretas. Vamos
supor que nosso ceticismo sobre essas coisas nos levasse a negli-
genciar essas questões, e que, de repente, aparecessem indícios
que viessem a corroborar essas teorias. A sociedade confusa e
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ0ES 53

despreparada poderia entender que as teorias têm implicações,


que de fato não têm, para o princípio de igualdade.
Começarei por considerar as implicações do ponto de vista
de que existe uma diferença no QI médio de dois grupos étnicos
diferentes e de que os fatores genéticos são responsáveis por pelo
menos parte dessa diferença. Em seguida, examinarei o impacto
de supostas diferenças de temperamento e aptidão entre os sexos.

Diferenças raciais e igualdade racial


Suponhamos, apenas para examinar as consequências, que se
acumulem indícios favoráveis à hipótese de que existem diferenças
de inteligência entre os diferentes grupos étnicos de seres humanos
(não vamos pressupor que isso signifique os europeus no topo.
Como já vimos, há indícios contrários). Que importância isso teria
para nossas concepções da igualdade racial?
Primeiro, uma advertência. Quando as pessoas falam de
diferenças de inteligência entre grupos étnicos, em geral estão se
referindo a diferenças de pontuação nos testes-padrão de QI.
Ora, QI significa "quociente de inteligência", mas isso não quer
dizer que um teste de QI realmente avalie aquilo que entende-
mos por "inteligência" em contextos normais. Existe, por certo,
uma correlação entre ambos: se as crianças em idade escolar ti-
das por seus professores como extremamente inteligentes não
alcançassem, em geral, uma pontuação melhor do que seus co-
legas considerados abaixo da inteligência normal, os testes te-
riam de ser mudados; como, de fato, foram mudados no passado.
Mas isso não mostra quão próxima seja a correlação, e, tendo em
vista que nosso conceito corriqueiro de inteligência é vago, não
haveria como fazê-lo. Alguns psicólogos tentaram superar essa
dificuldade simplesmente definindo "inteligência" como "aqui-
lo que os testes de inteligência medem", mas isso só introduz um
novo conceito de "inteligência", mais fácil de medir do que nos-
sa noção corriqueira, mas pode ter um significado totalmente
diferente. Como "inteligência" é uma palavra de uso cotidiano,
usá-la com um sentido diferente só cria confusão. Deveríamos
54 ÉTICA PRÁTICA

falar, então, de diferenças de QI, e não de diferenças de inteligência,


pois isso é tudo que os indícios disponíveis poderiam sustentar.
A distinção entre inteligência e pontuação nos testes de QI
levou algumas pessoas a concluir que o QI carece de importân-
cia: trata-se do ponto de vista oposto - mas igualmente radical
e errôneo - àquele segundo o qual o QI é idêntico à inteligência.
O QI é importante em nossa sociedade. O QI de uma pessoa é
um fator a ser levado em conta em suas perspectivas de melho-
rar a situação profissional, aumentar a renda e ascender social-
mente. Se existirem fatores genéticos por trás das diferenças
raciais de QI, haverá provavelmente fatores genéticos por trás
das diferenças raciais em termos de situação profissional, renda
e classe social. Portanto, se estamos interessados na igualdade,
não podemos ignorar o QI.
Quando se aplicam testes de QI a pessoas de origens raciais
diferentes, a tendência é que se verifiquem diferenças nas
pontuações médias obtidas. A existência dessas diferenças não
é seriamente questionada, nem mesmo por aqueles que mais
se opuseram às opiniões expressas por Jensen, Eysenck e pelos
autores de The Bel/ Curve. O que se discute acaloradamente é
se as diferenças devem ser basicamente explicadas pela heredi-
tariedade ou pelo ambiente - em outras palavras, se refletem
diferenças inatas entre grupos diferentes de seres humanos ou se
ocorrem devido aos diferentes contextos sociais e educacionais
em que esses grupos estão inseridos. Quase todos aceitam que os
fatores ambientais realmente representam um papel nas diferen-
ças de QI entre grupos; o debate consiste em saber se eles podem
explicar todas ou praticamente todas as diferenças.
Suponhamos que a hipótese genética se mostre correta (faço
essa suposição, como já afirmei, não por acreditar que ela seja
correta, mas para podermos explorar suas implicações). Quais
seriam as implicações das diferenças genéticas de QI entre raças
diferentes? Acredito, por três motivos, que as implicações dessa
hipótese são menos drásticas do que se costuma imaginar, e que
não servem de consolo para os racistas.
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ6ES 55

Em primeiro lugar, a hipótese genética não significa que


devamos reduzir nosso empenho em superar outras causas de
desigualdade entre as pessoas; por exemplo, na qualidade da
moradia e da escolaridade ao alcance dos menos favorecidos.
É preciso admitir que, se a hipótese genética estiver certa, esse
empenho não criará uma situação na qual diferentes grupos
raciais terão QIS iguais. Mas não é motivo para aceitar uma situa-
ção na qual as pessoas sejam impedidas pelo ambiente de alcançar
todo seu potencial. Talvez devêssemos concentrar nossos esforços
no auxílio àqueles que partem de uma posição desfavorável, de
modo que terminemos com um resultado mais igualitário.
Em segundo lugar, o fato de o QI médio de um grupo racial
ficar alguns pontos acima do de outro não dá a ninguém o direito
de afirmar que todos os membros do grupo com QI médio mais
alto têm QIS mais altos que todos os membros do grupo com
QI médio mais baixo - o que é claramente falso para qualquer
grupo racial - ou que qualquer indivíduo do grupo com QI
médio mais alto tem um QI mais alto que qualquer indivíduo
do grupo com QI médio mais baixo, o que geralmente é falso.
A questão é que esses números são médias e nada dizem sobre os
indivíduos. Haverá uma sobreposição substancial de pontuações
de QI entre os dois grupos. Portanto, seja qual for a causa da
diferença nos QIS médios, dela não decorrerá nenhuma justifica-
tiva para a segregação racial na educação ou em qualquer outro
campo. Continua a valer que grupos raciais diferentes devem ser
tratados como indivíduos, independentemente de raça.
O terceiro motivo pelo qual a hipótese genética não corro-
bora o racismo é o mais fundamental das três. Está simplesmente
no fato de que, como vimos há pouco, o princípio de igualdade
não se baseia em nenhuma alegação de que as pessoas sejam
iguais em uma característica não moral. Afirmei que a única
base defensável para o princípio de igualdade é a igual conside-
ração de interesses, e também sugeri que os interesses humanos
mais importantes - como evitar a dor, satisfazer as necessi-
dades básicas de alimentação e abrigo, desfrutar de relações
pessoais calorosas, ser livre para se dedicar, sem interferências,
56 ÉTICA PRATICA

a seus próprios projetos e muitos outros - não são afetados por


diferenças de inteligência. Thomas Jefferson, que esboçou a
vibrante afirmação de igualdade com que se inicia a Declaração
de Independência dos Estados Unidos, sabia disso. Em resposta
a um autor que tentara contestar o ponto de vista segundo o
qual os africanos careciam de inteligência, uma opinião muito
comum na época, ele escreveu:

Estejam certos de que nenhuma pessoa viva deseja, mais sincera-


mente do que eu, ver a refutação ple1;1a das dúvidas que eu próprio
alimentei e expressei com relação ao grau de entendimento com
que eles foram aquinhoados pela natureza e descobrir que estão
em pé de igualdade conosco [...], mas, qualquer que seja seu
talento, não é por ele que seus direitos serão avaliados. Apesar de
ser superior aos demais em inteligência, sir Isaac Newton não era
senhor da propriedade nem da pessoa do próximo.

Jefferson estava certo. A condição de igualdade não depende


da inteligência. Os racistas que afirmam o contrário correm o
risco de se verem obrigados a se ajoelhar diante do primeiro
gênio que encontrarem.
Essas três razões bastam para mostrar que as alegações de
que, por razões genéticas, um grupo racial não se sair tão bem
quanto outro nos testes de QI não oferece nenhuma base para
a negação do princípio moral de que todos os seres humanos
são iguais. A terceira razão, porém, tem desmembramentos que
vamos examinar mais profundamente depois de discutirmos as
diferenças entre os sexos.

Diferenças sexuais e igualdade sexual


As discussões sobre diferenças psicológicas entre homens e
mulheres não costumam ser sobre o QI, e sim sobre as aptidões
distintas quantificadas por diferentes perguntas dos testes de QI.
Há indícios de que as mulheres têm maior aptidão verbal que
os homens. Isso implica que são melhores na compreensão de
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇÕES 57

textos complexos e mais cnatlvas com as palavras. Por outro


lado, os homens se saem melhor nos testes que envolvam aquilo
que se conhece por aptidão "visuoespacial". Entender um mapa
e usá-lo para se orientar envolve a aptidão visuoespacial, mas as
diferenças sexuais são mais evidentes no teste de rotação mental,
no qual duas formas tridimensionais são apresentadas às pessoas
que fazem o teste, e então se pergunta se as formas são idênticas,
mas elas foram rotacionadas, ou são imagens espelhadas umas
das outras.
As meninas obtêm uma pontuação mais elevada que os me-
ninos nos testes em que é preciso reconhecer os estados emocio-
nais de outras pessoas e, com base nessa percepção, prever o
comportamento desses indivíduos. Normalmente acredita-se
que os meninos se saiam melhor que as meninas em matemáti-
ca, mas as pontuações médias de meninas e meninos pouco di-
ferem, e a diferença às vezes favorece as meninas. As pontuações
dos meninos tendem a apresentar maior distribuição nos dois
extremos da escala, ao passo que as pontuações das meninas fi-
cam agrupadas no centro. Ou sejà, é mais provável que os me-
ninos estejam entre os melhores e os piores alunos das aulas
de matemática.
Discutiremos adiante a importância dessas diferenças rela-
tivamente secundárias nas aptidões intelectuais. Há também
uma característica importante, que não pertence à esfera inte-
lectual, na qual se verifica uma acentuada diferença entre os
sexos: a agressão. Estudos realizados com crianças de várias cul-
turas diferentes revelaram aquilo de que os pais havia muito
tempo suspeitavam: os meninos são mais propensos que as me-
ninas a brincadeiras violentas, a se atacar mutuamente e a revi-
dar quando atacados. Os homens se dispõem mais que as
mulheres a ferir os outros, tendência que se reflete no fato de
que quase todos os criminosos violentos são do sexo masculino.
Já se sugeriu que o comportamento agressivo estaria ligado à
competitividade e ao impulso de dominar os outros e chegar ao
topo de qualquer pirâmide da qual se faça parte. Por sua vez, as
58 ÉTICA PRÁTICA

mulheres inclinam-se mais a adotar uma postura de desvelo


com as pessoas.
São essas as principais diferenças psicológicas que têm sido
repetidamente observadas em muitos estudos sobre homens e
mulheres. De novo, elas só aparecem quando se consideram
as médias: existe uma sobreposição substancial no desempenho
dos dois sexos. Qual é a origem dessas diferenças? Mais uma
vez, as explicações antagônicas são o ambiente e a biologia. Ain-
da que essa questão da origem seja importante em alguns con-
textos específicos, foi-lhe dada uma importância exagerada
pelas feministas da década de 1970, para quem a questão da
emancipação das mulheres dependia da aceitação da explicação
ambiental. O que vale para a discriminação racial também é
válido neste caso: pode-se mostrar que a discriminação é um
erro independentemente das origens das diferenças psicológicas
conhecidas. Primeiro, porém, examinemos de passagem as ex-
plicações antagônicas.
Quem já lidou com crianças sabe que elas aprendem, de
todas as maneiras possíveis, que os sexos têm papéis diferentes.
Quarenta anos após o movimento feminista da década de 1970, a
tendência ainda é que os meninos ganhem caminhões ou revól-
veres de brinquedo quando fazem aniversário, enquanto as
meninas são presenteadas com bonecas ou estojos com pentes
e escovas. As meninas são estimuladas a usar vestidos, e todos
lhes dizem que estão lindas; os meninos são estimulados a usar
jeans e recebem elogios por sua força e ousadia. Antes da década
de 1970, os livros infantis quase invariavelmente representavam
os pais saindo para trabalhar, e as mães limpando a casa e prepa-
rando o jantar. Alguns ainda fazem isso, mas, em muitos países,
as críticas feministas a essa literatura - e o fato de muito mais
mulheres trabalharem fora - mudaram as imagens apresentadas
às crianças.
O condicionamento social existe, sem dúvida, mas será que
explica a existência de diferenças entre os sexos? Quando muito,
trata-se de uma explicação incompleta. Ainda precisamos saber
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇÕES 59

por que nossa sociedade- e não somente a nossa, mas quase todas
as sociedades humanas - costuma formar as crianças assim.
Segundo uma resposta conhecida, nas sociedades mais primi-
tivas e mais simples, os sexos desempenhavam papéis diferentes
porque as mulheres precisavam amamentar os filhos durante o
longo período que antecede sua emancipação. Isso significa que
as mulheres ficavam mais ligadas à casa, enquanto os homens
saíam para caçar. O resultado foi que as ·m ulheres desenvolveram
um caráter mais social e emocional, ao mesmo tempo em que os
homens ficaram mais duros e agressivos. Como a força física e a
agressividade eram as principais formas de poder nessas socieda-
des simples, os homens tornaram-se dominantes. Segundo esse
ponto de vista, os papéis sexuais que hoje existem constituem
um legado dessas circunstâncias mais simples, um legado que se
tornou obsoleto a partir do momento em que a tecnologia possi-
bilitou à mais frágil das pessoas operar um guindaste que ergue
cinquenta toneladas ou lançar um míssil que mata milhões. As
mulheres tampouco precisam ficar presas à casa e aos filhos do
jeito que costumavam ficar, pois hoje elas podem harmonizar a
maternidade com o desenvolvimento de uma carreira.
O ponto de vista alternativo afirma que, embora o condicio-
namento social tenha um papel na determinação das diferenças
psicológicas entre os sexos, os fatores biológicos também atuam
nesse sentido. Esse ponto de vista foi reforçado por um estudo
no qual mostravam a bebês de apenas um dia de vida o rosto de
uma pessoa viva ou um móbile mecânico. As meninas passavam
mais tempo olhando para o rosto; os meninos, para o móbile.
Além disso, as preferências das meninas pelas bonecas e dos
meninos pelos caminhões de brinquedo também valem, como já
se demonstrou, para os macacos-verdes! Não é de se admirar que
os pais continuem a dar aos filhos os brinquedos que as criánças
mais desejam e com os quais mais provavelmente brincarão.
Os indícios de que as diferenças sexuais quanto à agressivi-
dade têm uma base biológica foi resumida por Eleanor Maccoby
60 ÉTICA PRÁTICA

e Carol Jacklin em The Psychology ofSex Differences [A psicolo-


gia das diferenças sexuais]:

1. Os homens são mais agressivos que as mulheres em todas


as sociedades humanas nas quais a diferença foi estudada.
2. Diferenças semelhantes são encontradas em seres humanos
e primatas hominoides, bem como em outros animais
filogeneticamente, próximos.
3. As diferenças são encontradas em crianças muito novas,
numa idade em que não há indícios de qualquer condi-
cionamento social nesse sentido (na verdade, Maccoby e
Jacklin descobriram alguns indícios de que os meninos são
mais severamente castigados do que as meninas quando
demonstram um comportamento agressivo).
4. Já se mostrou que a agressão varia conforme o nível dos
hormônios sexuais, e os indivíduos do sexo feminino ficam
mais agressivos quando recebem hormônios masculinos.

Os indícios de uma base biológica para as diferenças de


aptidão visuoespacial são um pouco mais complicados, mas
consistem, em grande parte, em estudos genéticos que sugerem
que essa aptidão é influenciada por um gene recessivo ligado ao
sexo. Como resultado disso, estima-se que aproximadamente
50% dos homens tenham uma vantagem genética em situações
que exigem aptidão visuoespacial, mas que essa mesma vanta-
gem só é compartilhada por 25% das mulheres. Por outro lado,
fatores ambientais podem reduzir significativamente a vanta-
gem masculina nesse campo.
Os argumentos favoráveis e contrários a um fator biológico
subjacente à maior capacidade verbal das mulheres e à maior
aptidão matemática de homens com desempenho acima da
média (fruto da maior distribuição dos resultados para aptidão
matemática entre os homens, como já mencionado anterior-
mente) são, no momento, frágeis demais para que se possa
sugerir uma conclusão que os corrobore ou invalide.
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ6ES 61

Adotando a estratégia usada anteriormente na discussão


sobre raça e QI, não me aprofundarei na questão dos indícios
favoráveis e contrários a essas explicações biológicas das diferen-
ças entre homens e mulheres. Em vez disso, perguntarei quais
seriam as implicações das hipóteses biológicas.
As diferenças nos pontos fortes e fracos dos sexos no campo
intelectual não podem explicar mais do que uma pequena propor-
ção da diferença de posições que homens e mulheres ocupam
na nossa sociedade. Por exemplo, se uma aptidão visuoespacial
superior explica a predominância dos homens na arquitetura e
na engenharia, por que não encontramos igualdade sequer nas
áreas nas quais as aptidões relevantes coincidem com aquelas
nas quais as mulheres se saem tão bem, quando não melhor, que
os homens? As profissões que exigem uma grande aptidão verbal
são um bom exemplo. É verdade que existem mais mulheres
jornalistas do que engenheiras, e muitas mulheres alcançaram a
fama como romancistas; mesmo assim, as jornàlistas e comen-
taristas de televisão continuam sendo superadas numericamente
pelos homens. Assim, mesmo se aceitarmos as explicações bioló-
gicas para a determinação dessas aptidões, ainda poderemos
argumentar que as mulheres não têm as mesmas oportunidades
que os homens para exercer em mais alto grau as aptidões que
têm e chegar no topo de seus campos profissionais.
Por outro lado, o fato de haver mais homens nas duas extre-
midades da distribuição de aptidão matemática, enquanto as
mulheres têm a tendência de se agrupar em torno da média,
corrobora o comentário fatídico de Lawrence Summers a respei-
to da escassez relativa de candidatas qualificadas às cátedras de
Harvard nas áreas das ciências e da engenharia nas quais a apti-
dão matemática desempenha um papel crucial. Somente as pes-
soas dotadas de uma aptidão excepcional se tornam docentes, e,
mesmo nesse grupo seleto, somente os melhores podem sonhar
em se tornar professores de uma instituição de elite como Har-
vard. Não é difícil enxergar a maior probabilidade de homens
desfrutarem de uma representação excessiva na extremidade su-
perior da escala do talento matemático.
62 ÉTICA PRATICA

Que dizer da diferença em termos de agressividade?


A primeira reação à sugestão de que existe uma base bioló-
gica para a maior agressividade dos homens poderia ser afirmar
que as feministas deveriam aproveitar-se dessa demonstração
da superioridade ética das mulheres, pois implica que a maior
relutância feminina em ferir os outros é parte de sua natureza.
Mas o fato de que os criminosos mais violentos são homens
pode ser apenas um lado da maior agressividade masculina.
O outro lado poderia ser a maior competitividade dos homens,
sua ambição e seu empenho em chegar ao poder. Isso teria impli-
cações diferentes e, no caso das feministas, não tão bem-vindas.
Há alguns anos, um sociólogo americano, Steven Goldberg,
escreveu um livro provocativamente intitulado The lnevitability
ofPatriarchy [A inevitabilidade do patriarcado], no qual insistia
na tese de que a base biológica da maior agressividade masculina
tornará para sempre impossível a criação de uma sociedade em
que as mulheres tenham tanto poder político quanto os homens.
É fácil passar dessa afirmação à ideia de que as mulheres devem
aceitar sua posição inferior na sociedade e desistir da concor-
rência com os homens ou de educar suas filhas para competir
com eles. Em vez disso, as mulheres deveriam voltar para sua
tradicional esfera dos cuidados com a casa e os filhos. Esse é
exatamente o tipo de argumento que incita e dirige a hostilidade
de algumas feministas às explicações biológicas para a dominân-
cia masculina.
Como no caso da raça e do QI, as conclusões morais supos-
tamente decorrentes das teorias biológicas na verdade não decor-
rem delas de modo algum. Argumentos semelhantes aplicam-se a
este caso.
Primeiro, seja qual for a origem das diferenças psicológi-
cas entre os sexos, o condicionamento social pode enfatizar ou
atenuar essas diferenças. Como salientam Maccoby e Jacklin, a
tendência biológica à superioridade visuoespacial masculina, por
exemplo, constitui, na realidade, uma maior presteza natural em
aprender essas habilidades. Quando as mulheres são criadas para
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ6ES 63

ser independentes, sua aptidão visuoespacial é muito maior do


que quando ficam em casa e dependem dos homens. Também
vale, sem dúvida, para outras diferenças. Portanto, as feminis-
tas podem estar certas ao atacarem o modo como incentivamos
meninas e meninos a tomarem rumos diversos em seu desenvol-
vimento, mesmo se esse incentivo não for, por si só, responsá-
vel por criar diferenças psicológicas entre os sexos, mas apenas
reforçar predisposições inatas.
Em segundo lugar, qualquer que seja a origem das diferen-
ças psicológicas entre os sexos, elas só existem quando as médias
são consideradas, e algumas mulheres são mais agressivas e têm
melhor aptidão visuoespacial do que alguns homens. Vimos que
a própria hipótese genética oferecida a título de explicação da
superioridade visuoespacial masculina sugere que um quarto das
mulheres terá, por natureza, maior aptidão visuoespacial do que
a metade dos homens. Algumas mulheres também estão naquele
1% de pessoas que se destacam na aptidão matemática. Nossas
próprias observações deveriam convencer-nos de que existem
mulheres que também são mais agressivas que alguns homens.
Portanto, com ou sem as explicações biológicas, nunca estamos
em condições de afirmar: "Você é uma mulher, logo não pode
tornar-se engenheira nem professora de matemática em uma
universidade", ou "Por ser mulher, você não tem o empenho e
a ambição necessários para obter êxito na política". Tampouco
devemos pensar que não existam homens dotados da delica-
deza e do desvelo necessários para ficar em casa com as crian-
ças, enquanto a mãe trabalha fora. Devemos avaliar as pessoas
enquanto indivíduos, e não englobá-las indiscriminadamente em
categorias como "homens" e "mulheres" se quisermos descobrir
como elas realmente são; e, se vamos permitir às pessoas fazer
o que sabem fazer melhor, devemos manter a flexibilidade dos
papéis desempenhados por homens e mulheres.
A exemplo das duas razões anteriores, a terceira é análoga
às razões que ofereci para acreditar que uma explicação bioló-
gica das diferenças raciais de QI não justificaria o racismo.
64 ÉTICA PRÁTICA

Os interesses humanos mais importantes não são mais afetados


por diferenças de agressividade do que por diferenças de inteligên-
cia. As pessoas menos agressivas têm o mesmo interesse em evitar
a dor, desenvolver suas aptidões, morar e alimentar-se adequada-
mente, desfrutar de boas relações pessoais etc., exatamente como
as mais agressivas. Não há motivo para que as pessoas mais agres-
sivas tenham sua agressividade recompensada com melhores
salários e a capacidade de atender melhor a esses interesses.
Como a agressão, ao contrário da inteligência, não costuma
ser vista como uma característica desejável, é fácil ver que, por si
só, a maior agressividade não oferece nenhuma justificativa ética
para a maior proporção de homens em posições importantes na
política, nos negócios, nas universidades e profissões. Contudo,
pode ser usada para sugerir que a presente situação não passa do
resultado da competição entre homens e mulheres em condições
de igual oportunidade. Portanto, prosseguiria o argumento, o
status quo não é injusto. Essa sugestão, mais uma vez, suscita
novos desmembramentos das diferenças biológicas entre as pes-
soas que, como afirmei ao concluir nossa discussão de raça e QI,
precisam ser examinados mais profundamente.

Da igualdade de oportunidades à igualdade de consideração


Em nossa sociedade, grandes diferenças de renda e status
social costumam ser vistas com naturalidade, desde que devam
sua existência a condições de igual oportunidade. A ideia é que
não há nada de injusto em Jill ganhar 300 mil dólares enquanto
Jack ganha 30 mil, contanto que Jack tivesse a oportunidade de
estar na posição em que Jill se encontra hoje. Suponhamos que
a diferença de renda se deva ao fato de Jill ser médica, e Jack,
lavrador. Isso seria aceitável se Jack tivesse a mesma oportunidade
que Jill de se formar em medicina, com o que se pretende di-
zer que Jack não foi excluído do curso de medicina por causa de
sua raça, religião ou deficiência, irrelevante para o bom desempe-
nho de sua profissão - na verdade, se o aproveitamento escolar
de J ack tivesse sido tão bom quanto o de Jill, ou se ele tivesse
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ0ES 65

atendido a outros critérios relevantes para que fosse capaz de


exercer a medicina tão bem quanto Jill, ele poderia ter estudado
medicina, tornar-se médico e ganhar 300 mil dólares por ano.
Vista desse modo, a vida é uma espécie de corrida na qual é justo
que os vencedores levem os prêmios, contanto que todos come-
cem no mesmo ponto de partida. O mesmo ponto de partida
representa a igualdade de oportunidades, e isso, dizem alguns, é
o máximo a que pode chegar a igualdade.
Dizer que Jack e Jill tiveram as mesmas oportunidades
de se tornarem médicos porque Jack teria entrado no curso de
medicina se seu desempenho tivesse sido tão bom quanto o de Jill
equivale a adotar uma visão superficial da igualdade de oportu-
nidades que não resistiria a um exame mais aprofundado. Preci-
samos perguntar por que o desempenho de Jack não foi tão bom
quanto o de Jill. Talvez sua educação até aquele momento tenha
sido inferior - turmas maiores, professores menos qualificados,
recursos insuficientes etc. Se assim foi, ele não estava compe-
tindo com Jill em igualdade de condições no fim das contas.
A verdadeira igualdade de oportunidades exige de nós a garantia
de que as escolas ofereçam a todos as mesmas vantagens.
Equiparar o nível de todas as escolas seria bastante difícil,
mas é a mais fácil das tarefas que aguardam um consciencioso
proponente da igualdade de oportunidades. Mesmo que as
escolas sejam iguais, algumas crianças serão favorecidas pelo tipo
de lar do qual provêm. Um quarto tranquilo onde estudar, livros
em profusão e pais que incentivam a filha a ir bem na escola
poderiam explicar por que Jill tem êxito, enquanto Jack, forçado
a dividir um quarto com dois irmãos mais novos e trabalhar meio
período para ajudar a sustentar a família, não o tem. Mas de que
modo se pode igualar um lar? Ou os pais? A menos que esteja-
mos preparados para abandonar o contexto familiar tradicional
e criar nossos filhos em creches comunitárias, isso é impossível.
Isso poderia ser suficiente para mostrar a impropriedade
da igualdade de oportunidades como ideal de igualdade, mas
a objeção suprema - aquela que se relaciona à nossa discussão
66 ÉTICA PRATICA

anterior da igualdade - ainda está por vir. Mesmo se educásse-


mos comunalmente nossas crianças, como num kibbutz de Israel,
elas herdariam diferentes aptidões e traços de caráter, inclusive
níveis diferentes de agressividade e diferentes Qis. A eliminação
das diferenças no ambiente em que a criança vive não afetaria
as diferenças nos atributos genéticos. É verdade que quase certa-
mente diminuiria a disparidade entre as pontuações de QI, pois é
bem provável que, na atualidade, as diferenças sociais acentuem
as diferenças genéticas; mas as diferenças genéticas permanece-
riam, e, na maior parte das estimativas, elas são um componente
fundamental das diferenças de QI existentes (lembre-se o leitor
de que agora estamos falando de indivíduos. Não sabemos se a
raça afeta o QI, mas existem poucas dúvidas de que as diferenças
de QI entre indivíduos da mesma raça sejam, em parte, determi-
nadas geneticamente).
Portanto, a igualdade de oportunidades não é um ideal
atraente. Recompensa os que têm sorte, os que herdam as
aptidões que lhes permitem desenvolver carreiras interessantes e
lucrativas. Castiga o desventurado cujos genes dificultam muito
alcançar o mesmo sucesso.
Podemos, agora, inserir nossa discussão anterior de diferen-
ças de raça e sexo em um contexto mais amplo. Quaisquer que
sejam os fatos relativos à base social ou genética das diferenças
raciais de QI, a eliminação das desvantagens sociais não bastará
para produzir uma distribuição de renda igual ou justa: não será
igual, pois aqueles que herdarem as aptidões associadas a um QI
alto continuarão a ganhar mais dinheiro que aqueles que não as
herdarem; e não será justa, pois a distribuição de acordo com as
aptidões que se herdam nada tem a ver com aquilo que as pes-
soas merecem ou necessitam. O mesmo se pode dizer da aptidão
visuoespacial, do talento matemático e da agressividade, se é que
realmente levam a uma renda ou a um status superior. Se, como
afirmei, a base da igualdade é a igual consideração de interesses,
e os mais importantes interesses humanos têm pouco ou nada a
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ6ES 67

ver com o QI ou a agressividade de uma pessoa, passa a ser mo-


ralmente questionável uma sociedade em que a renda e a posição
social apresentam forte correlação com esses fatores.
Quando pagamos altos salários às pessoas que programam
computadores, e baixos salários àquelas que limpam escritórios,
estamos, na verdade, pagando às pessoas por terem aptidões
muito específicas que provavelmente apresentam um compo-
nente genético significativo e, em todo caso, foram quase inteira-
mente determinadas antes de as pessoas chegarem a uma idade
na qual fossem responsáveis por seus atos. Do ponto de vista da
justiça e da utilidade, há algo errado nisso. Para ambas, seria
melhor uma sociedade que adotasse o famoso slogan marxista:
"De cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas
necessidades". Se isso pudesse ser alcançado, as diferenças entre
as raças e os sexos perderiam sua relevância social. Só então te-
ríamos uma sociedade verdadeiramente baseada no princípio da
igual consideração de interesses.
Seria realista almejar por uma sociedade que recompense as
pessoas segundo suas necessidades, e não seu QI, sua agressivi-
dade ou outras aptidões herdadas? Não teríamos de pagar mais
às pessoas por serem médicos, advogados, professores universi-
tários ou programadores, por realizarem o trabalho intelectual
exigente essencial para nosso bem-estar?
Não é fácil pagar às pessoas segundo suas necessidades, e
não segundo suas aptidões inatas. Se um país tentar introduzir
esse sistema, e outros não, o resultado provável será a "fuga de
cérebros". Já existem inúmeros exemplos. É visível, em menor
escala, no número de médicos que deixaram o Canadá para tra-
balhar nos Estados Unidos - não porque o Canadá pague às
pessoas conforme suas necessidades, e não segundo suas apti-
dões inatas, mas porque os médicos recebem muito melhor nos
Estados Unidos que no Canadá. Se um país resolvesse tentar
nivelar os salários de médicos e trabalhadores braçais, não há a
menor dúvida de que o número de médicos que emigrariam
aumentaria muitíssimo. Durante o período comunista na União
68 ÉTICA PRÁTICA

Soviética e em seus estados-satélites, foi preciso limitar severa-


mente a emigração; pois, apesar de ainda haver consideráveis
diferenças salariais dentro dos países comunistas, sem as restri-
ções, teria havido uma evasão debilitante de mão de obra espe-
cializada para as nações capitalistas, que ofereciam remunerações
maiores aos especialistas. Por isso, os guardas de fronteira da
Alemanha Oriental recebiam ordens para alvejar e matar quem
tentasse fugir para o Ocidente. Mas, se implementar uma distri-
buição de renda mais justa em um único país exigir que se trans-
forme a nação numa prisão gigantesca, pode ser que uma
distribuição justa não valha o preço a ser pago.
Permitir que essas dificuldades nos levem à conclusão de
que nada é possível fazer para melhorar a distribuição da ren-
da que atualmente existe nos países capitalistas seria, porém,
uma atitude por demais pessimista. Nas mais prósperas nações
ocidentais já existe muito espaço para reduzir as diferenças sala-
riais antes de se chegar ao ponto em que um número significativo
de pessoas comece a pensar em emigrar. Isso, sem dúvida, é verda-
deiro principalmente no caso de países como os Estados Unidos,
onde as diferenças salariais são muito grandes no momento. É
nesse país que se pode, com mais eficiência, fazer pressão a fim
de se implantar uma distribuição de renda mais equitativa.
Há quem diga, talvez, que se não pagássemos muito
dinheiro às pessoas para que se tornassem médicos ou profes-
sores universitários, elas não se dedicariam aos estudos neces-
sários para chegar a essas posições. Não sei que provas existem
em defesa dessa hipótese, mas ela me parece extremamente
duvidosa. Meu próprio salário é bem mais alto que o das pessoas
empregadas pela universidade para cortar a grama e cuidar da
limpeza; mas, se nossos salários fossem idênticos, nem assim eu
gostaria de trocar de posição com elas, ainda que seus empre-
gos sejam bem mais agradáveis que alguns outros, igualmente
mal remunerados. Tampouco acredito que meu médico aceita-
ria a oportunidade de ocupar o lugar de sua recepcionista caso
seus salários fossem idênticos. É verdade que eu e meu médico
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ0ES 69

tivemos de estudar muitos anos para chegar onde estamos, mas


eu, pelo menos, recordo meus anos de estudante como um dos
períodos mais agradáveis de minha vida.
Ainda que eu não acredite ser o dinheiro o que leva as
pessoas a se tornarem médicos, em vez de recepcionistas, existe
uma ressalva a ser feita quanto à sugestão de que o salário deve
se basear na necessidade, e não na aptidão. A perspectiva de
ganhar mais dinheiro às vezes leva as pessoas a se empenha-
rem mais no uso de suas aptidões, e esse empenho maior pode
beneficiar pacientes, clientes, estudantes ou a sociedade em
geral. Portanto, talvez valesse a pena recompensar o empenho, o
que equivaleria a pagar mais às pessoas que, nos seus trabalhos,
chegassem quase aos limites superiores de suas aptidões, quais-
quer que elas fossem. Isso, porém, é muito diferente de pagar
às pessoas pelo nível de aptidão que por acaso tenham, coisa
que elas mesmas não são capazes de controlar. Como escreveu
Jeffrey Gray, um professor de psicologia inglês, os indícios de
que os genes influenciam o QI sugerem que pagar às pessoas
salários diferentes de acordo com a "classe social" de seus empre-
gos constitui "um desperdício de recursos disfarçado de 'incen-
tivo', que induz as pessoas a fazerem o que está além de seu
alcance ou as recompensa melhor por algo que elas fariam de
qualquer modo".
Até agora, temos pensado em pessoas como professores
universitários, que (pelo menos em alguns países) são pagos pelo
governo, e em médicos, cuja remuneração pode ser determinada
por órgãos governamentais, onde existe algum tipo de serviço
nacional de saúde, ou pela proteção governamental concedida
a associações profissionais como as associações médicas, que
dão à profissão o direito de excluir as pessoas sem a devida
qualificação que tentassem oferecer serviços semelhantes a um
preço mais baixo. Portanto, essas remunerações já estão sujeitas
ao controle do governo e poderiam ser alteradas sem que, com
isso, os poderes do governo passassem por mudanças drásticas.
O setor privado da economia já é outra questão. Em qualquer
70 ÉTICA PRÁTICA

sistema de livre empresa, quem for esperto e tiver empreendedo-


rismo ganhará mais dinheiro que seus concorrentes. A tributação
pode ajudar a redistribuir uma parte dessa renda, mas a eficá-
cia de um sistema tributário de progressividade crescente tem
limites, já que, depois de certo ponto, os espertalhões começam
a investir um montante absurdo de tempo e energia na busca por
maneiras inovadoras e engenhosas de sonegar impostos.
Há quem gostaria de usar esse argumento para defender que
a justiça exige a abolição da iniciativa privada no mundo todo.
Pode até ser uma boa ideia, mas não se concretizará. A inicia-
tiva privada tem o hábito de se reafirmar nas mais inóspitas
condições. No regime comunista, como os russos e os europeus
orientais logo descobriram, surgiram mercados negros, e, se
você quisesse que seu problema de encanamento fosse resolvido
rapidamente, seria aconselhável pagar um pouco mais por fora.
A China, apesar de ainda ser comunista no nome, só se tornou
mais próspera ao aceitar a iniciativa privada. Somente uma
mudança radical da natureza humana - a diminuição dos desejos
egoístas e consumistas - poderia superar a tendência de as pessoas
descobrirem um jeito de burlar qualquer sistema que suprima a
iniciativa privada. Como não existe nenhuma mudança desse tipo
à vista, é melhor aceitar que as pessoas que têm aptidões inatas
receberão mais que aquelas que têm as maiores necessidades.
Não significa que devamos esquecer completamente o princí-
pio da remuneração de acordo com as necessidades e o empenho,
e não de acordo com a aptidão inata. Durante a crise financeira
mundial de 2008 e 2009, os salários e as bonificações desmesura-
das que muitos executivos de alto escalão estavam recebendo, mes-
mo com suas empresas passando por dificuldades, recorrendo aos
fundos públicos para escapar da falência, provocaram a indigna-
ção generalizada da população. Em momentos como esse, vale a
pena lembrar que, mesmo se tivessem demonstrado mais perspi-
cácia financeira, esses executivos não teriam merecido essas re-
munerações. O componente realista do princípio da justiça que
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ6ES 71

venho defendendo é a recomendação de tentarmos criar um am-


biente favorável a uma redução dos salários exorbitantes dos ges-
tores de alto escalão e a salários mais altos para as pessoas que
mal ganham o suficiente para atender às suas necessidades.
O problema é como fazer para que isso não se limite a uma in-
tenção caridosa.

Ação afirmativa
A seção anterior sugere que a passagem para uma sociedade
mais igualitária, na qual as diferenças de renda sejam reduzidas,
é tão eticamente desejável quanto de difícil concretização. Não
sendo possível instituir maior igualdade salarial, poderíamos
ao menos tentar garantir que mulheres e minorias raciais ou
étnicas não levassem a pior onde existem importantes diferenças
de renda, status e poder em medida desproporcional à repre-
sentação demográfica dessas pessoas na comunidade como um
todo. As desigualdades entre membros do mesmo grupo étnico
podem não ser mais justificáveis do que aquelas que se verificam
entre grupos étnicos ou entre homens e mulheres; mas, quando
essas desigualdades coincidem com uma diferença óbvia entre
pessoas, como as diferenças entre afro-americanos e norte-
-americanos de origem europeia ou entre homens e mulheres,
elas contribuem mais para produzir uma sociedade dividida,
com um sentimento geral de superioridade, de um lado, e um
sentimento de inferioridade, de outro. Portanto, as desigualda-
des racial e sexual podem ter um efeito mais desagregador do
que outras formas de desigualdade. Também podem contri-
buir mais para criar um sentimento de desesperança entre os
membros do grupo inferiorizado, pois seu sexo ou sua raça não é
fruto de suas ações, e não há nada que possam fazer para mudar
esse estado de coisas.
De que modo se pode chegar à igualdade racial e sexual
em uma sociedade não igualitária? Vimos que a igualdade de
oportunidades é praticamente irrealizável e, se fosse possível
concretizá-la, talvez ainda permitisse que diferenças inatas de
72 ÉTICA PRÁTICA

agressividade ou QI viessem a determinar, injustamente, a con-


dição de membro dos estratos superiores. Uma forma de superar
esses obstáculos consiste em extrapolar a igualdade de oportuni-
dades e dar um tratamento preferencial a membros dos grupos
menos favorecidos. É a isso que se dá o nome de ação afirmativa
(ou, às vezes, de "discriminação inversa"). Talvez aí resida a maior
esperança de reduzir desigualdades históricas, ainda que pareça
transgredir o próprio princípio de igualdade.
A ação afirmativa é mais comumente usada na educação e no
mercado de trabalho. A educação é um campo particularmente
importante, pois influencia significativamente nas perspectivas
de um indivíduo conseguir bons salários, empregos satisfatórios,
poder e status na comunidade. Nos Estados Unidos, a educa-
ção foi o foco de uma disputa sobre a ação afirmativa, pois o
Supremo Tribunal não referendou alguns sistemas de ingresso
na universidade que beneficiavam grupos menos favorecidos. As
ações foram movidas porque descendentes de europeus foram
impedidos de ingressar em determinados cursos, muito embora
seu histórico escolar e desempenho no exame admissional fossem
melhores do que os de alguns afro-americanos admitidos nos
mesmos cursos. As universidades não negaram o fato e, para tentar
justificá-lo, explicaram que seus sistemas de ingresso tinham o
objetivo de ajudar os estudantes desfavorecidos.
Durante muitos anos, o caso mais conhecido foi o do
Conselho da Universidade da Califórnia contra Bakke. Alan
Bakke candidatou-se a uma vaga na Faculdade de Medicina da
Universidade da Califórnia, em Davis. Tentando aumentar a
representatividade das minorias no curso de medicina, a univer-
sidade reservou 16% das vagas para estudantes oriundos de
grupos menos favorecidos. Como esses alunos não teriam conse-
guido tantas vagas numa competição aberta, menos estudantes
de origem europeia foram admitidos, o que não teria aconte-
cido se a universidade não tivesse reservado vagas. Alguns desses
alunos recusados certamente teriam preenchido as vagas ofere-
cidas se, tendo obtido os resultados que obtiveram no exame
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇOES 73

admissional, também integrassem uma minoria desfavorecida.


Bakke foi um dos euro-americanos recusados, e, ao se ver rejei-
tado, processou a universidade. Tomemos esse caso como um
caso típico de ação afirmativa. Seria defensável?
Começarei por excluir um argumento às vezes usado para
justificar a discriminação em favor de membros de grupos des-
privilegiados. Às vezes se diz que se, por exemplo, 20% da popu-
lação formar uma minoria racial, e só 2% dos médicos vierem
dessa minoria, haveria prova suficiente de que, em algum mo-
mento do processo, ocorreu discriminação racial (o mesmo tipo
de argumento tem sido apresentado no caso de alegações de dis-
criminação sexual). Nossa discussão da polêmica genes versus
ambiente indica por que esse argumento é inconclusivo. Pode ser
que membros do grupo sub-representado sejam, em média, me-
nos dotados para o tipo de estudos que se fazem necessários para
formar um médico. Não estou dizendo que essa explicação cor-
responde à verdade, nem mesmo que é provável, mas é difícil
descartá-la inteiramente, da mesma maneira que o número des-
proporcionalmente grande de atletas afro-americanos na equipe
olímpica dos Estados Unidos não constitui, por si só, prova de
discriminação contra os americanos de origem europeia. Outros
indícios poderiam, sem dúvida, sugerir que o pequeno número
de médicos oriundos do grupo minoritário representa, de fato, o
resultado de um procedimento discriminatório; isso, porém,
precisaria ser demonstrado. Na ausência de provas concretas de
discriminação, não é possível justificar a ação afirmativa com
base no fato de que ela simplesmente corrige a discriminação
existente na comunidade.
Outra maneira de defender a decisão de aceitar um aluno
vindo de uma minoria em detrimento de um aluno do grupo
majoritário que se saiu melhor no vestibular seria afirmar que os
exames não oferecem uma indicação precisa da aptidão quando
um aluno foi seriamente desfavorecido. Isso está de acordo
com a questão suscitada na seção anterior, quando nos referi-
mos à impossibilidade de chegar à igualdade de oportunidades.
74 ÉTICA PRÁTICA

A educação e os antecedentes familiares provavelmente influen-


ciam os resultados obtidos nos exames. Um aluno com um histó-
rico de privações que obtenha 55 pontos percentuais num exame
vestibular pode ter melhores perspectivas de se formar em pouco
tempo do que um aluno mais privilegiado que tenha obtido 70.
O ajuste dos pontos obtidos nos exames de acordo com esses
critérios não equivaleria a admitir alunos de grupos minoritários
e desfavorecidos em detrimento de alunos com melhor qualifi-
cação. Refletiria a decisão de que os alunos desfavorecidos na
verdade teriam melhor qualificação que os demais. Isso não
configura nenhum tipo de discriminação racial.
A Universidade da Califórnia não pôde se defender dessa
maneira, pois sua Faculdade de Medicina em Davis havia sim-
plesmente reservado 16% das vagas para candidatos das mino-
rias. A quota não variava de acordo com a aptidão demonstrada
pelos candidatos menos favorecidos. Os indícios tampouco cor-
roboram o ponto de vista de que os alunos das minorias que são
beneficiados pela ação afirmativa tenham realmente qualifica-
ção tão boa quanto a de outros estudantes que obtiveram pon-
tuações mais altas no exame admissional. As notas dos alunos
admitidos pelos programas de ação afirmativa são, em média,
inferiores às da turma como um todo.
Vimos que o único fundamento defensável para a afirma-
ção de que todos os seres humanos são iguais é o princípio da
igual consideração de interesses. Esse princípio condena as
formas de discriminação racial e sexual que atribuem menos
importância aos interesses daqueles que sofrem a discriminação.
Poderia Bakke alegar que, ao rejeitar sua matrícula, a Faculdade
de Medicina atribuiu menos peso aos seus interesses do que aos
dos alunos afro-americanos?
Basta fazermos essa pergunta para nos darmos conta de
que o ingresso na universidade não é, normalmente, fruto da
consideração dos interesses de cada candidato. Depende, em
vez disso, de comparar os candidatos a padrões que a universi-
dade institui tendo em mente certas diretrizes. Examinemos o
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ6ES 75

caso mais simples: o ingresso rigorosamente baseado nos pontos


obtidos em testes de inteligência. Suponhamos que os recusados
com base nesse procedimento reclamassem que seus interesses
tivessem recebido menos consideração que os interesses dos
candidatos mais inteligentes. A universidade responderia que
esse procedimento não levou em conta os interesses dos candi-
datos e que, portanto, dificilmente poderia ter dado menos peso
aos interesses de um candidato do que aos de outro. Podería-
mos, então, perguntar à universidade por que usou a inteligência
como critério de admissão. Ela poderia responder, para começar,
que passar nos exames exigidos no ciclo básico da graduação
é algo que requer um alto nível de inteligência. Seria absurdo
permitir que os alunos incapazes de passar nesses exames fossem
admitidos, pois eles acabariam desperdiçando seu tempo e os
recursos da universidade. Em segundo lugar, a universidade
poderia responder que, quanto maior for a inteligência dos
alunos que se formam, mais úteis eles provavelmente serão para
a comunidade. Quanto mais inteligentes forem nossos médicos,
mais eficientes serão ao prevenir e curar doenças. Portanto, a
faculdade de medicina que seleciona os alunos mais inteligentes
provavelmente terá mais valor para a comunidade que investe na
formação médica.
Esse procedimento específico de admissão é, sem dúvida,
unilateral; um bom médico precisa ter outras qualidades além
de um alto nível de inteligência. É apenas um exemplo, e essa
objeção não é relevante para o argumento que quero fazer valer
ao usar esse exemplo. Esse argumento é que ninguém se opõe
à inteligência como critério de seleção da mesma maneira que
se opõe à raça enquanto critério; contudo, os mais inteligentes,
admitidos segundo um sistema fundamentado na inteligência,
não têm um direito mais intrínseco a ingressar na universidade
do que aqueles que são admitidos pela discriminação inversa.
Como já afirmei antes, a maior inteligência não implica nenhum
direito ou pretensão justificável a uma parcela maior das coisas
boas que nossa sociedade tem a oferecer. Se uma universidade
76 ÉTICA PRÁTICA

admite alunos de maior inteligência, ela não o faz em conside-


ração ao maior interesse que eles têm em ser admitidos, nem
em reconhecimento a seu direito de ser admitidos, mas porque,
com isso, favorece objetivos que a universidade acredita que
serão promovidos por esse processo de admissão. Portanto, se
essa mesma universidade resolver adotar novos objetivos e usar
a ação afirmativa para fomentá-los, os candidatos que teriam
sido admitidos pelo processo anterior não poderão reclamar
que o novo procedimento viola seus direitos ao ingresso ou
lhes dispensa menos respeito que aos outros. Para começar, não
tinham nenhuma pretensão especial ao ingresso; eram os felizes
beneficiários da antiga política da universidade. Agora que essa
política mudou, outros se beneficiam, não eles. Se isso parece
injusto, é só porque estávamos habituados à antiga política.
Portanto, não se pode, com justiça, condenar a ação
afirmativa com base na alegação de que ela viola os direitos dos
candidatos à universidade ou não os trata com igual considera-
ção. Não existe nenhum direito inerente à admissão, e a igual
consideração dos interesses dos candidatos não está em jogo
nos exames admissionais normais. Se há uma objeção a fazer
à ação afirmativa, deve ser porque os objetivos que ela procura
fomentar não são bons, ou porque, embora sejam bons e a ação
afirmativa os promova, existem custos ainda mais significativos
na adoção de um programa de ação afirmativa.
O princípio de igualdade poderia fundamentar a rejeição
dos objetivos de um processo de admissão que discriminasse
segundo a raça. Quando as universidades discriminam contra
as minorias que já se encontram em desvantagem, desconfiamos
que a discriminação realmente seja fruto de uma preocupação
menor com os interesses da minoria. Por que outro motivo as
universidades do Sul dos Estados Unidos recusavam afro-ame-
ricanos até serem obrigadas a admiti-los? Nesse caso, ao contrário
da situação de ação afirmativa, os rejeitados podiam, com justiça,
reclamar que seus interesses não estavam sendo considerados
em pé de igualdade com os dos norte-americanos de origem
A IGUALDADE E SUAS IMPLJCAÇ6ES 77

europeia admitidos. Pode ser que outras explicações tenham


sido dadas, mas eram certamente capciosas.
Os adversários da ação afirmativa não se opunham aos ob-
jetivos de igualdade social e maior representatividade das mino-
rias no campo profissional. Teria sido difícil fazê-lo . A igual
consideração dos interesses ajuda a avançar rumo à igualdade
por causa do princípio da diminuição da utilidade marginal,
porque o avanço rumo à igualdade atenuará o sentimento de
irremediável inferioridade que pode existir quando membros
de uma raça ou de um sexo sempre se saem pior que membros de
outra raça ou de outro sexo, e porque a extrema desigualda-
de entre as raças significa uma comunidade dividida, com a con-
sequente tensão racial.
Dentro do objetivo geral da igualdade social, a maior repre-
sentatividade das minorias em profissões como a advocacia e a
medicina é desejável por várias razões. Os membros de grupos
minoritários são mais propensos a trabalhar junto a seus iguais
do que aqueles que vêm dos grupos étnicos dominantes, e isso
pode ajudar a superar a escassez de médicos e advogados que se
verifica nas comunidades pobres, onde vive a maior parte das
minorias menos favorecidas. Também podem compreender os
problemas dos desfavorecidos melhor do que aqueles que vêm
de fora. Profissionais da medicina e do direito do sexo feminino
e de grupos minoritários podem servir de modelo para outros
membros do mesmo sexo e dos mesmos grupos, derrubando
as barreiras mentais inconscientes que os impedem de aspirar
ao exercício dessas profissões. Por fim, a diversidade entre os
estudantes ajudará os membros do grupo étnico dominante a
aprender mais sobre os membros da minoria, o que lhes dará
melhores condições de servir à toda a comunidade enquanto
médicos e advogados.
Os adversários da ação afirmativa partem de fundamen-
tos sólidos quando alegam que ela não promoverá a igualdade.
Como afirmou o ministro Powell, no caso Bakke, "os progra-
mas preferenciais só tendem a reforçar os estereótipos comuns,
78 ÉTICA PRÁTICA

sustentando que determinados grupos são incapazes de ter êxito


se não puderem contar com uma proteção especial". Poderíamos
dizer que, para se chegar à verdadeira igualdade, os membros
de grupos minoritários e as mulheres têm de conquistar suas
posições graças a seus próprios méritos. Enquanto tiverem mais
facilidade para entrar nas faculdades de direito, os bacharéis
provenientes de grupos minoritários - inclusive aqueles que
teriam ingressado na faculdade por serem melhores que seus
concorrentes - serão vistos como inferiores. Mais recentemente,
houve quem alegasse que a ação afirmativa gera um descom-
passo acadêmico que coloca alunos das minorias em turmas
com estudantes que, em grande parte, são academicamente
melhores do que eles. Por isso se diz que a tendência é que eles
acabem sendo os piores da turma, e suas chances de se forma-
rem são menores do que seriam se estivessem numa turma mais
adequada às suas capacidades.
Essas objeções práticas suscitam problemas factuais difíceis.
Embora tenham sido mencionadas no caso Bakke, elas não têm
sido o foco das batalhas judiciais norte-americanas concernentes
à ação afirmativa. Os juízes relutam, com razão, em julgar causas
quando não conhecem a fundo os fatos. Alan Bakke ganhou sua
causa sobretudo porque a maioria dos juízes considerou que a
Constituição dos Estados Unidos ou a Lei dos Direitos Civis
de 1964 determinava que nenhuma pessoa seria excluída de
qualquer atividade que recebesse assistência financeira federal
em razão de sua cor, raça ou nacionalidade. Contudo, o parecer
emitido pela maioria do pleno e redigido pelo ministro Powell
acrescentou que não haveria objeção a uma universidade que
procurasse aumentar a diversidade de seu corpo discente e,
em busca desse objetivo, incluísse raça como um dentre vários
fatores, como aptidão artística ou atlética, experiência profissio-
nal, solidariedade social manifesta, um histórico de superação
de desvantagens ou potencial de liderança. Assim, o tribunal
efetivamente permitiu que as universidades escolhessem seu
corpo discente de acordo com seus próprios objetivos, desde que
não fizessem uso de quotas.
A IGUALDADE E SUAS IMPLICAÇ6ES 79

Esse parecer foi mantido pelo Supremo Tribunal no caso


Grutter contra Bollinger, uma decisão de 2003 que envolvia a
Faculdade de Direito da Universidade de Michigan. A ministra
O'Connor, ao redigir o parecer da maioria, considerou que o
programa da faculdade passava no teste de oferecer "um exame
extremamente individualizado e holístico da ficha de cada
candidato, considerando com toda a seriedade todas as manei-
ras como um candidato poderia colaborar para um ambiente
educacional diversificado". Por outro lado, no caso Gratz versus
Bollinger, o tribunal rejeitou o programa de ação afirmativa do
ciclo básico da Universidade de Michigan que dava automatica-
mente a cada membro de uma minoria sub-representada uma
quantidade predeterminada de pontos adicionais para facilitar o
ingresso, sem conduzir o tipo de avaliação individual e flexível
de cada candidato propiciado pela faculdade de direito.
Nos Estados Unidos, portanto, controlar as admissões com
o intuito de obter diversidade é permitido, mas não as quotas
étnicas ou raciais. Em outros países - e, em termos gerais,
quando examinamos a questão tendo em vista a ética, e não o
direito -, a distinção entre as quotas e outras maneiras de dar
preferência a grupos desfavorecidos pode ser menos significa-
tiva. O importante é que a ação afirmativa, dê-se ela através de
quotas ou de qualquer outro método, não é contrária a nenhum
princípio justo de igualdade e não viola nenhum direito dos
que são por ela excluídos. Adequadamente aplicada, está em
harmonia com a igual consideração de interesses, pelo menos
no que diz respeito às suas aspirações. A única dúvida é saber se
realmente funciona. Nesse quesito, os indícios ainda estão sendo
reunidos e avaliados.

Uma nota conclusiva: igualdade e deficiência


Neste capítulo, estivemos preocupados com a interação do
princípio moral de igualdade com as diferenças, reais ou alega-
das, entre grupos de pessoas. Talvez a maneira mais clara de
perceber a irrelevância do QI ou de aptidões específicas para o
80 ÉTICA PRÁTICA

princípio moral da igualdade seja proceder a um exame da situa-


ção dos portadores de deficiências, tanto físicas quanto mentais.
Quando refletimos sobre o modo como essas pessoas devem ser
tratadas, não se discute se são ou não tão capazes quanto as
pessoas sem deficiências. Por definição, falta-lhes pelo menos
algumas das aptidões apresentadas pelas pessoas normais.
Às vezes, essas deficiências implicam que seus portadores
mereceriam um tratamento diferente daquele que se dispensa
aos outros. Quando estamos selecionando pessoas para a profis-
são de bombeiro, é perfeitamente justo que deixemos de lado
alguém que está confinado a uma cadeira de rodas; e, se estiver-
mos selecionando revisores de texto, os cegos não precisam se
candidatar. Mas o fato de uma deficiência específica excluir uma
pessoa da lista de candidatos a ocupar um cargo não significa
que os interesses dessa pessoa devam ser tratados com menos
consideração do que os de quem quer que seja. Tampouco justi-
fica a discriminação contra os deficientes em qualquer situação
em que a deficiência específica da pessoa não seja relevante para
o emprego ou o serviço oferecido.
Durante séculos, os deficientes sofreram preconceitos que,
em alguns casos, não eram menos graves do que os sofridos pelas
minorias raciais. Deficientes eram trancafiados, longe dos olhos
do público, em condições aterradoras. Alguns se tornavam verda-
deiros escravos, explorados como mão de obra barata em casas de
família ou fábricas. Com seu "programa de eutanásia", os nazis-
tas assassinaram dezenas de milhares de deficientes mentais que,
muito provavelmente, gozavam a vida, mas foram considerados
"bocas inúteis para alimentar" e uma desonra para a raça ariana.
Ainda hoje, algumas empresas não contratam cadeirantes para
serviços que eles seriam capazes de realizar com tanta eficiência
quanto qualquer outra pessoa. Outras, ao selecionar vendedo-
res, deixam de contratar alguém cuja aparência não seja normal,
com medo de que suas vendas caiam. Argumentos semelhantes
foram usados para a não contratação de membros de minorias
raciais. Podemos superar mais facilmente esses preconceitos
A IGUALDADE E SUAS !MPL/CAÇOES 81

acostumando-nos às pessoas diferentes de nós, e isso não aconte-


cerá se elas não forem empregadas para exercer funções nas quais
possam manter contato com o público.
Somente agora começamos a refletir sobre a injustiça que
tem sido cometida contra os deficientes e a considerá-los como
um grupo desfavorecido. É bem possível que o fato de termos
demorado tanto a fazê-lo se deva à confusão entre igualdade
factual e igualdade moral, que já discutimos no início deste
capítulo. Como os portadores de deficiências são diferentes em
alguns aspectos importantes, deixamos de ver como discrimi-
nação o ato de tratá-los de modo diferente. Negligenciamos o
fato de que, como nos exemplos apresentados anteriormente, a
deficiência da pessoa é irrelevante para o tratamento diferente
que a desfavorece. Existe, portanto, uma necessidade de garantir
que a legislação que proíbe a discriminação baseada na raça, na
etnia ou no sexo também proíba a discriminação de portadores
de deficiências, a menos que se possa demonstrar a relevância
delas para o emprego ou o serviço oferecido.
Isso não é tudo. Muitos dos argumentos favoráveis à ação
afirmativa, no caso dos que são prejudicados devido à raça ou
ao sexo, aplicam-se ainda mais fortemente aos deficientes. A
mera igualdade de oportunidades não será suficiente em situa-
ções nas quais uma deficiência impede que alguém se torne um
membro igual da comunidade. Dar aos deficientes oportunida-
des iguais de frequentar a universidade não adiantará muito se
o acesso à biblioteca só se der através de uma escadaria impra-
ticável para eles. Muitas crianças deficientes conseguem dar-se
bem em escolas normais, mas são impedidas de fazê-lo porque
suas necessidades especiais exigiriam recursos adicionais. Como
essas necessidades são quase sempre fundamentais para a vida
dos deficientes, o princípio da igual consideração de interes-
ses lhes atribuirá um peso muito maior do que às necessidades
menores de outras pessoas. Por essa razão, em geral será justificá-
vel gastar mais com os deficientes do que se gasta com os outros.
Quanto mais exatamente é, sem dúvida, uma pergunta difícil.
82 ÉTICA PRATICA

Onde os recursos são escassos, algum limite se faz necessário.


Atribuindo igual consideração aos interesses dos portadores
de deficiências e, imaginando-nos em sua situação, podemos
aproximar-nos da resposta certa.
Alguns dirão ver uma contradição entre esse reconhecimento
dos deficientes como grupo submetido a uma discriminação
injustificável e os argumentos que aparecerão mais adiante neste
livro defendendo o aborto e a eutanásia no caso de fetos ou bebês
portadores de deficiências graves. Pois esses argumentos pressu-
põem que a vida sem a deficiência é melhor do que com ela; e acaso
isso não constitui, por si só, uma forma de preconceito caracterís-
tico das pessoas sem deficiências, preconceito semelhante àquele
segundo o qual é melhor pertencer à raça europeia ou ser homem
do que ser mulher ou de origem africana?
O erro nesse argumento não é difícil de detectar. Uma coisa
é afirmar que os deficientes que desejam viver plenamente suas
vidas devem receber toda a ajuda necessária para fazê-lo; outra
coisa, e bem diferente, é afirmar que, se tivermos condições de
escolher por nosso próximo filho se ele vai começar a vida com
ou sem uma deficiência, é puro preconceito ou atitude tenden-
ciosa o que nos leva a optar por ter um filho sem deficiências.
Se, de repente, fosse oferecido aos cadeirantes um remédio
milagroso que, sem efeitos colaterais, lhes devolvesse o pleno uso
das pernas, quantos deles se recusariam a tomá-lo por acharem
que a vida com uma deficiência não é, de modo algum, inferior
à vida sem uma deficiência? Ao tentarem levantar fundos para
a pesquisa, superação e eliminação da deficiência, os próprios
deficientes mostram que preferir uma vida sem a deficiência não
é um mero preconceito. Alguns deficientes poderiam dizer que
só fazem essa escolha porque a sociedade coloca tantos obstácu-
los em seu caminho. Afirmam que aquilo que os torna deficien-
tes são as condições sociais, e não sua condição física ou mental.
Essa afirmação distorceo simples fato de que as condições sociais
tornam a vida dos deficientes muito mais difícil do que precisa-
ria ser, transformando-o em total falsidade. Ser capaz de andar,
A IGUALDADE E SUAS IMPLICA ÇÕES 83

enxergar, ouvir, ver-se relativamente livre da dor e do mal-estar,


conseguir comunicar-se bem são coisas que, praticamente em
quaisquer condições sociais, constituem vantagens inquestio-
náveis. Dizer isso não significa negar que as pessoas às quais
faltam essas vantagens possam vencer suas deficiências e levar
vidas de qualidade e diversidade surpreendentes. Não obstante,
não demonstraremos preconceito algum contra os deficientes se
preferirmos, seja para nós mesmos ou para os nossos filhos, não
enfrentar obstáculos tão grandes que o simples fato de superá-los
já constitui, por si só, uma vitória.
3

Igualdade para os animais?

Racismo e especismo
No capítulo anterior, ofereci motivos para acreditar que o
princípio fu ndamental da igualdade, no qual se baseia a ideia
da igualdade de todos os seres humanos, é o princípio da igual
consideração de interesses. Só um princípio moral básico como
esse nos permite defender uma forma de igualdade que inclua
quase todos os seres humanos, apesar de todas as diferenças que
existem entre si (as exceções são os seres humanos que não são
nem nunca foram conscientes e, portanto, não têm interesses
a serem levados em consideração, um tema a ser discutido nos
Capítulos 6 e 7). Ao mesmo tempo que o princípio da igual
consideração de interesses proporciona o melhor fundamento
possível para a igualdade humana, sua abrangência não se limita
aos seres humanos. Ao aceitarmos o princípio de igualdade para
os seres humanos, também nos comprometemos a aceitar que
ele se estende a alguns animais não humanos.
Quando redigi a primeira edição deste livro, em 1979,
alertei o leitor de que a sugestão que eu faria nesta seção poderia
parecer bizarra. Na época, aceitava-se, em geral, que a discri-
minação contra membros de minorias raciais ou contra mulhe-
res se encontrava entre as mais importantes questões morais e
políticas. Mas as questões que diziam respeito ao bem-estar dos
animais eram amplamente consideradas desimportantes, a não
ser pelas pessoas loucas por cães e gatos. Era comum presumir
86 ÉTICA PRÁTICA

que as questões humanas deveriam sempre ter precedência sobre


as questões dos animais. Hoje em dia, graças a organizações
como a PETA- Pessoas em prol do Tratamento Ético dos Animais
- e os francos defensores da causa espalhados pelo mundo todo,
o ponto de vista de que os animais são nossos iguais em certo
sentido já não atrai olhares estupefatos. Tornou-se mais familiar,
mesmo que ainda seja a opinião de uma minoria, muitas vezes
mal compreendida.
A convicção de que as questões humanas devam sempre ter
precedência sobre as questões dos animais reflete um preconceito
popular contra a possibilidade de se levar a sério os interesses
dos animais, um preconceito tão infundado quanto aquele que
levava os escravocratas brancos a não levar a sério os interesses de
seus escravos africanos. Para nós, é fácil criticar os preconceitos
de nossos avós, dos quais nossos pais se libertaram. É mais difícil
procurar preconceitos entre as crenças e os valores que defende-
mos. O que se precisa, agora, é de boa vontade para seguir os
argumentos por onde eles nos levam, sem a ideia preconcebida
de que o problema não é digno de nossa atenção.
O argumento para estender o princípio de igualdade a outras
espécies além da nossa é simples. Não requer mais do que uma
clara compreensão do princípio da igual consideração de interes-
ses. Como já vimos, esse princípio implica que nossa preocupação
com os outros não deve depender de como são nem das aptidões
que têm (muito embora o que essa preocupação exige precisamen-
te que façamos possa variar conforme as características dos que
são afetados por nossas ações). É com base nisso que podemos
afirmar que o fato de algumas pessoas não serem membros de
nossa raça não nos dá o direito de explorá-las e que o fato de algu-
mas pessoas serem menos inteligentes que outras não significa que
seus interesses possam ser desconsiderados. O princípio também
implica que o fato de alguns seres não pertencerem à nossa espécie
não nos dá o direito de explorá-los e também que o fato de outros
animais serem menos inteligentes do que nós não significa que
seus interesses possam ser desconsiderados.
IGUALDADE PARA OS ANIMAJS? 87

No capítulo anterior, vimos que, de uma forma ou de outra,


muitos filósofos têm defendido a igual consideração de interes-
ses como um princípio moral básico. Poucos reconheceram que
o princípio tem aplicações além das fronteiras de nossa própria
espécie. Um dos poucos a fazê-lo foi Jeremy Bentham, o criador
do utilitarismo moderno. Num trecho premonitório, escrito
numa época em que os escravos africanos das possessões britâ-
nicas ainda eram tratados quase do mesmo modo como hoje
tratamos os animais, Bentham escreveu:

Talvez chegue o dia em que o restante das criaturas animais venha


a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido priva-
das, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram
que o negror da pele não é motivo para que um ser humano seja
abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador.
É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas,
a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são motivos
igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao
mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável?
A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas, para
lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adulto é
muito mais racional e bem mais sociável que um bebê de um
dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém,
que as coisas não fossem assim. Que importância teria tal fato?
A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conse-
guem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento.

Nesse trecho, Bentham chama a atenção para a capacidade


de sofrimento como a característica vital que confere, a um ser,
o direito à igual consideração. A capacidade de sofrimento - ou,
mais estritamente, de sofrimento e/ou alegria ou felicidade -
não é apenas mais uma característica, como a capacidade de
aprender um idioma ou matemática avançada. Bentham não
está dizendo que aqueles que tentam demarcar a "linha insupe-
rável" que determina se os interesses de um ser devem ser
levados em conta escolheram por acaso a característica errada.
A capacidade de sofrer e de desfrutar as coisas é uma condição
88 ÉTICA PRATICA

prévia para se ter quaisquer interesses, condição que é preciso


satisfazer antes de se poder falar de interesses de modo signi-
ficativo. Seria absurdo dizer que não seria do interesse de uma
pedra ser chutada por um garoto rua afora. Uma pedra não tem
interesses, pois não é capaz de sofrer. Nada que venhamos a lhe
fazer poderá alterar seu bem-estar. Por outro lado, um rato tem
realmente interesse em não ser torturado, pois os ratos sofrerão
se forem tratados assim.
Se um ser sofre, não há justificativa de ordem moral para
nos recusarmos a levar esse sofrimento em consideração. Seja
qual for a natureza do ser, o princípio de igualdade exige que
o sofrimento seja levado em conta em pé de igualdade com o
sofrimento semelhante de qualquer outro ser, até onde possamos
fazer comparações aproximadas. Quando um ser não é capaz de
sofrer nem de sentir alegria ou felicidade, não há nada a ser levado
em consideração. É por esse motivo que o limite da senciência
(o termo aqui é usado como maneira abreviada e conveniente,
apesar de não rigorosamente exata, de nos referimos à capaci-
dade de sofrer ou sentir alegria ou felicidade) é o único limite
defensável da preocupação com os interesses alheios. Demar-
car esse limite com uma característica como a inteligência ou a
racionalidade equivaleria a demarcá-lo de modo arbitrário. Por
que não escolher alguma outra característica, por exemplo, a cor
da pele?
Os racistas violam o princípio de igualdade ao darem maior
importância aos interesses dos membros de sua raça sempre que
se verifica um choque entre seus interesses e os interesses dos
que pertencem a outra raça. Os racistas brancos que defendiam
a escravidão não costumavam dar ao sofrimento dos africanos o
mesmo peso que davam ao sofrimento dos europeus. Da mesma
maneira, os especistas atribuem maior peso aos interesses de
membros de sua própria espécie quando há um choque entre
seus interesses e os interesses daqueles que pertencem a outras
espécies. Os especistas humanos não admitem que a dor sentida
por porcos ou ratos é tão má como quando sentida pelos seres
humanos.
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 89

Esse é, em sua totalidade, o argumento para estender o


princípio de igualdade aos animais não humanos, mas pode ha-
ver algumas dúvidas a respeito do que essa igualdade significaria
na prática. Em particular, a última frase do parágrafo anterior
pode levar algumas pessoas a dar a seguinte resposta: "Com toda
a certeza, a dor sentida por um rato não é tão má quanto aquela
que sente um ser humano. Os seres humanos têm muito mais
consciência do que lhes está acontecendo, o que faz seu sofrimen-
to ser maior. Não se pode comparar, por exemplo, o sofrimento
de uma pessoa que morre lentamente de câncer com o de um
rato de laboratório sujeito ao mesmo destino".
Aceito plenamente que, no caso descrito, a vítima humana
do câncer costuma sofrer mais do que a vítima não humana.
Isso não enfraquece, de modo algum, o argumento da extensão
da igual consideração de interesses aos não humanos. Significa,
pelo contrário, que precisamos ter cuidado ao compararmos
os interesses de diferentes espécies. Em algumas situações, um
membro de uma espécie sofrerá mais que um membro de outra.
Nesse caso, ainda devemos aplicar o princípio da igual conside-
ração de interesses, mas a consequência de fazê-lo será, obvia-
mente, dar prioridade ao alívio do sofrimento maior. Um caso
mais simples pode ajudar a esclarecer essa questão.
Se eu der um tapa com a mão aberta na anca de um cavalo,
ele pode sobressaltar-se, mas presumivelmente não sentirá muita
dor. Sua pele é grossa o suficiente para protegê-lo de um simples
tapa. Contudo, se eu der o mesmo tapa num bebê, ele vai chorar
e presumivelmente sentirá dor, pois tem a pele mais sensível. Por-
tanto, é pior dar um tapa num bebê do que num cavalo, desde que
os dois tapas sejam dados com a mesma força. Mas deve existir al-
gum tipo de golpe - não sei exatamente qual seria, mas, digamos,
uma paulada - que fará o cavalo sentir tanta dor quanto sentiu a
criança ao receber um simples tapa. É isso o que quero dizer com
"igual quantidade de dor"; e, se achamos errado infligir tanta dor
a um bebê sem nenhum bom motivo, então, a menos que sejamos
especistas, devemos achar igualmente errado infligir a mesma
quantidade de dor a um cavalo sem um bom motivo.
90 ÉTICA PRÁTICA

Entre os seres humanos e os animais, existem outras diferen-


ças que levam a outras complicações. Os seres humanos adultos
e normais têm aptidões mentais que, em determinadas circuns-
tâncias, levam-nos a sofrer mais do que sofreriam os animais nas
mesmas circunstâncias. Se, por exemplo, decidíssemos realizar
experiências científicas extremamente dolorosas ou letais com
seres humanos adultos e normais, capturados nos parques públi-
cos com essa finalidade, os adultos que entrassem nos parques
ficariam com medo de serem raptados. O pavor resultante seria
uma forma adicional de sofrimento, vindo somar-se à dor provo-
cada pela experiência. Quando feitas com animais, as mesmas
experiências provocariam menos sofrimento, visto que eles não
sofreriam, por antecipação, o medo de serem raptados e subme-
tidos a experiências. Isso não significa, evidentemente, que seria
correto fazer a experiência com animais, mas apenas que existe
uma razão - uma razão que não é especista - para que, se a
experiência tiver de ser feita, a preferência seja utilizar animais,
e não seres humanos adultos e normais. Considere-se, porém,
que esse mesmo argumento nos dá uma razão para preferirmos
usar bebês humanos - órfãos, talvez -, ou seres humanos com
graves deficiências mentais nas experiências, em lugar de adultos,
uma vez que os bebês e os seres humanos com graves deficiências
mentais também não fariam ideia alguma do que estaria prestes
a lhes acontecer. No que diz respeito a esse argumento, animais,
bebês e seres humanos com graves deficiências mentais pertencem
à mesma categoria; e, se o usarmos para justificar as experiências
com animais não humanos, teremos de nos perguntar se estamos
preparados para admitir que sejam feitas as mesmas experiên-
cias com bebês e seres humanos adultos com graves deficiências
mentais. Se fizermos uma distinção entre os animais e esses seres
humanos, caberá também a pergunta: de que modo podere-
mos fazê-la, a não ser com base numa preferência moralmente
indefensável por membros de nossa própria espécie?
Há muitas áreas nas quais as aptidões mentais superiores de
humanos adultos normais fazem diferença: previsão, memória
mais detalhada, maior conhecimento do que está acontecendo etc.
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 91

Essas diferenças explicam por que um ser humano que está


morrendo de câncer provavelmente sofre mais que um rato.
A angústia mental é o que torna a situação humana tão mais
difícil de suportar. Contudo, essas diferenças não sugerem um
maior sofrimento por parte do ser humano normal. Às vezes,
os animais podem sofrer mais em decorrência de sua compreen-
são mais limitada. Se, por exemplo, estivermos fazendo prisio-
neiros de guerra, poderemos explicar a eles que, embora tenham
de se submeter à captura, à revista e ao cativeiro, eles não serão
maltratados e serão libertados assim que cessarem as hostilidades.
Se capturarmos animais selvagens, porém, não teremos como
explicar a eles que não ameaçaremos suas vidas. Os animais não
distinguem a tentativa de subjugá-los e prendê-los da tentativa
de matá-los; ambas provocarão o mesmo pavor.
Pode-se objetar que é impossível fazer comparações entre os
sofrimentos de espécies diferentes, e que, por esse motivo, quan-
do os interesses de animais e seres humanos entram em choque,
o princípio de igualdade não oferece nenhuma orientação. É ver-
dade que as comparações do sofrimento entre membros de es-
pécies diferentes não podem ser feitas com exatidão. A esse
respeito, tampouco pode ser feita com exatidão qualquer com-
paração entre o sofrimento de diferentes seres humanos. A exa-
tidão não é fundamental. Como veremos adiante, mesmo se
devêssemos impedir a imposição de sofrimentos aos animais
apenas quando os interesses dos seres humanos não são afetados
tanto quanto os dos animais, seríamos forçados a mudar radical-
mente a maneira como tratamos os animais, e as mudanças afe-
tariam a alimentação, a pecuária, os procedimentos experimentais
em muitos campos da ciência, o modo como vemos a vida selva-
gem e a caça, a captura de animais por meio de armadilhas, o
uso de peles no vestuário, áreas de lazer como circos, rodeios e
zoológicos. Em consequência, a quantidade total de sofrimento
provocado por nós seria imensamente reduzida.
Até aqui, fiz muitas afirmações sobre a imposição de sofri-
mentos aos animais, mas nada disse sobre matá-los. A omissão foi
92 ÉTICA PRÁTICA

deliberada. A aplicação do princípio de igualdade à imposição


de sofrimentos é, pelo menos na teoria, bem fácil de entender.
A dor e o sofrimento são coisas más e, independentemente da
raça, do sexo ou da espécie do ser que sofre, devem ser evitados
ou mitigados. O maior ou menor sofrimento provocado pela
dor depende de sua intensidade e duração, mas as dores de mes-
ma intensidade e duração são igualmente más, sejam elas senti-
das por seres humanos ou por animais. Quando refletimos
sobre o valor da vida, não podemos dizer tão confiantemente
que uma vida é uma vida e igualmente valiosa, seja ela humana
ou animal. Não seria especista afirmar que a vida de um ser
consciente, capaz de pensamento abstrato, de planejar o futuro,
de realizar atos complexos de comunicação etc. seja mais valio-
sa do que a vida de um ser que não tenha essas aptidões (no mo-
mento, a questão não é se esse ponto de vista é justificável ou
não, apenas que não se pode simplesmente rejeitá-lo como espe-
cista, pois não depende somente da espécie que uma vida seja
considerada mais valiosa que outra). O valor da vida é um pro-
blema ético de notória dificuldade, e só poderemos chegar a
uma conclusão racional sobre o valor comparado das vidas hu-
mana e animal depois de termos discutido o valor da vida em
termos gerais. Esse é o tema do próximo capítulo. Enquanto
isso, há conclusões importantes a serem extraídas do fato de se
estender para além de nossa espécie o princípio da igual consi-
deração de interesses, independentemente de nossas conclusões
sobre o valor da vida.

O especismo na prática

Os animais como alimento


Para a maior parte das pessoas que vivem nas sociedades
modernas e urbanizadas, a principal forma de contato com os
animais não humanos acontece na hora das refeições. O uso
de animais como alimento provavelmente seja a mais antiga e
difundida forma de uso animal. Há também um sentido em que
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 93

se pode vê-la como a forma mais básica de uso animal, a pedra


angular de uma ética que enxerga os animais como coisas que
podemos usar para satisfazer nossas necessidades e interesses.
Se os animais são importantes por si mesmos, o uso alimen-
tar que deles fazemos torna-se questionável. lnuítes que levam
vidas tradicionais no extremo norte, um ambiente que os coloca
diante das alternativas de matar os animais para comê-los ou mor-
rer de fome, podem alegar com certa razão que seu interesse em
sobreviver se sobrepõe ao dos animais que matam. Muitos de nós
não podemos defender nossa alimentação nos mesmos termos.
As pessoas que vivem em sociedades industrializadas podem fa-
cilmente conseguir uma alimentação adequada sem recorrer à
carne de animais. A carne não é necessária para a boa saúde ou
a longevidade. Na verdade, os seres humanos podem levar vidas
saudáveis sem comer produtos de origem animal, apesar de a die-
ta vegana exigir um cuidado maior, principalmente no caso de
crianças pequenas, e a suplementação de vitamina B 12 . A produ-
ção de origem animal nas sociedades industrializadas não é uma
forma eficaz de produção de alimentos, visto que a maior parte
dos animais consumidos foi engordada com grãos e outros ali-
mentos que poderíamos ter ingerido diretamente. Quando alimen-
tamos os animais com grãos, somente cerca de um quarto - em
alguns casos, um décimo - do valor nutritivo é conservado na
carne para consumo humano. Portanto, com exceção dos ani-
mais criados inteiramente em pastagens impróprias para a lavou-
ra, não se pode afirmar que sejam consumidos para melhorar
nossa saúde nem para aumentar nossa provisão de alimentos. Sua
carne é um luxo e só é consumida porque as pessoas apreciam o
sabor (a pecuária também contribui mais para o aquecimento
global do que todo o setor de transportes).
Ao refletirmos sobre a ética do uso de carne animal para
a alimentação humana nas sociedades industrializadas, exami-
namos uma situação na qual um interesse humano relativa-
mente menor deve ser confrontado com as vidas e o bem-estar
dos animais envolvidos. O princípio da igual consideração de
94 ÉTICA PRATICA

interesses não permite que os interesses maiores sejam sacrifica-


dos em função dos interesses menores.
O arrazoado contra o uso de animais para nossa alimen-
tação fica mais contundente nos casos em que os animais são
submetidos a vidas miseráveis para que sua carne se torne acessí-
vel aos seres humanos ao mais baixo custo possível. As formas
modernas de criação intensiva aplicam a ciência e a tecnologia
de acordo com o ponto de vista de que os animais são objetos
a serem usados por nós. A competição de mercado obriga os
produtores de carne a imitar os rivais que estão preparados
para cortar custos piorando a vida dos animais. Ao comprar-
mos carne, ovos ou leite produzidos dessa maneira, toleramos
métodos de produção de carne que confinam animais sencientes
em condições impróprias e espaços exíguos durante toda sua
vida. São tratados como máquinas que transformam forragem
em carne, e toda inovação que resulte numa maior "taxa de
conversão" será muito provavelmente adotada. Como afirmou
uma autoridade no assunto, "só se reconhece a crueldade quando
cessam os lucros". Para evitar o especismo, devemos pôr um fim
a essas práticas. Nosso hábito é o respaldo de que necessitam os
"fazendeiros industriais". A decisão de deixar de lhes dar esse
respaldo pode ser difícil, mas é menos difícil do que teria sido,
para um norte-americano branco dos estados sulistas, opor-se
às tradições de sua sociedade e libertar seus escravos. Se não
mudarmos nossos hábitos alimentares, como poderemos censu-
rar os proprietários de escravos que se recusavam a mudar seu
modo de vida?
Esses argumentos aplicam-se aos animais criados em fazen-
das industriais: ou seja, não devemos comer frango, porco ou
vitela, a menos que saibamos que a carne que estamos comendo
não foi produzida pelos métodos industriais. O mesmo se aplica
à carne bovina proveniente do gado confinado em instalações
de engorda abarrotadas (como é o caso da maior parte da carne
bovina consumida nos Estados Unidos). Os ovos provêm de
galinhas presas em pequenas gaiolas, tão pequenas que elas
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS' 95

não conseguem sequer esticar as asas, a menos que os ovos sejam


especificamente comercializados como "caipiras" ou "coloniais".
(No instante em que escrevo, a Suíça já baniu as gaiolas em
bateria, e a União Europeia começa a eliminá-las gradualmente.
Nos Estados Unidos, a Califórnia votou, em 2008, pela proibi-
ção, que deverá entrar em vigor em 2015. Uma lei aprovada em
Michigan, em 2009, prevê que as gaiolas em bateria sejam elimi-
nadas aos poucos num prazo de dez anos). Os laticínios muitas
vezes também são originários de vacas confinadas em celeiros,
incapazes de pastar ao ar livre. Além disso, para que continuem
produzindo, as vacas leiteiras precisam engravidar todo ano, e
seus bezerros devem ser apartados das mães logo após o nasci-
mento para que fiquemos com o leite. Isso causa aflição tanto na
vaca quanto em sua cria.
A preocupação com o sofrimento dos animais em fazen-
das industriais não nos torna a todos veganos porque é possível
comprar produtos originários de animais criados de maneira
extensiva (quando os produtos de origem animal são rotula-
dos de "orgânicos", presume-se que os animais têm acesso ao
campo, mas a interpretação dessa regra pode ser um tanto vaga).
A vida dos animais criados em liberdade é, sem dúvida, melhor
do que a dos animais criados em fazendas industriais. Ainda
assim, permanece a dúvida: usá-los como alimento seria compa-
tível com a igual consideração de interesses? Um dos proble-
mas é, naturalmente, que usá-los como alimento implica ter de
matá-los (até mesmo as galinhas poedeiras e as vacas leiteiras são
abatidas quando sua produtividade começa a diminuir, geral-
mente muito antes do fim natural de suas vidas), mas esse é um
problema que, como afirmei, será retomado em capítulos poste-
riores. Além de tirar suas vidas, muitas outras coisas são feitas
aos animais para que eles cheguem à nossa mesa a baixo preço.
A castração, a separação de mães e filhotes, a dissolução de
rebanhos, as marcas com ferro em brasa, o transporte, o manejo
no abatedouro e, por fim, o momento do abate: coisas que, prova-
velmente, envolvem sofrimento e não levam em consideração os
96 ÉTICA PRÁTICA

interesses dos animais. Talvez os animais possam ser criados em


pequena escala e sem esse tipo de sofrimento. Alguns pecuaris-
tas se orgulham de comercializar produtos oriundos de animais
"criados humanitariamente", mas os critérios para considerar
algo "humanitário" são muito variados. Toda guinada na direção
de um tratamento mais humanitário aos animais é bem-vinda,
mas parece improvável que esses métodos consigam produzir
a imensa quantidade de itens de origem animal hoje consu-
midos por nossas grandes populações urbanas. No mínimo,
teríamos de reduzir consideravelmente a quantidade de carne,
ovos e laticínios que consumimos. De qualquer modo, o mais
importante não é saber se seria possível produzir itens de origem
animal sem sofrimento, e sim se aqueles que estamos pensando
em comprar foram produzidos sem sofrimento. A menos que
possamos estar certos de que foram, o princípio da igual consi-
deração de interesses implica que a produção desses itens sacri-
ficou injustamente interesses importantes dos animais para a
satisfação de nossos interesses menores. Adquirir os itens finais
dessa cadeia de produção é apoiá-la e estimular os produtores a
continuar com isso. Nós, que vivemos em sociedades desenvol-
vidas, temos à nossa disposição inúmeras opções alimentares,
e não precisamos consumir esses produtos, portanto é errado
estimular a continuidade de um sistema cruel de produção de
itens de origem animal.
Para aqueles de nós que vivem em cidades onde é difícil
saber como os animais que poderíamos comer viveram e morre-
ram, essa conclusão nos aproxima bastante do estilo de vida
vegano. Examinarei algumas objeções a isso na última parte
deste capítulo.

Experiências com animais


Talvez o campo no qual o especismo possa ser mais clara-
mente observado seja o da utilização de animais em experiências.
É aí que a questão salta aos olhos, pois quem faz essas experiên-
cias quase sempre tenta justificar sua realização com animais
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 97

alegando que as experiências nos levam a descobertas sobre os


seres humanos; se assim for, essas pessoas devem concordar com
a afirmação de que os animais humanos e não humanos são
semelhantes em aspectos cruciais. Por exemplo, se o fato de forçar-
mos um rato a escolher entre morrer de fome e atravessar uma
grade eletrificada para conseguir comida nos diz alguma coisa
sobre as reações dos seres humanos ao estresse, devemos admitir
que o rato sente estresse quando colocado nesse tipo de situação.
As pessoas às vezes pensam que todas as experiências com
animais têm propósitos médicos importantíssimos e podem ser
justificadas com base no fato de que aliviam mais sofrimento do
que provocam. Essa crença reconfortante não passa de um enga-
no. O LD 50 - um teste concebido na década de 1920 para en-
contrar a "dose letal" ou o nível de consumo que leva à morte
50% dos animais de uma amostra - ainda é usado nos dias de
hoje com algumas finalidades. É empregado, por exemplo, para
testar o conhecidíssimo tratamento antirrugas Botox®. Com
esse propósito, os ratos recebem doses variáveis. Aqueles que re-
cebem uma dose suficientemente alta sufocam aos poucos com
a paralisação dos músculos respiratórios, sem dúvida alguma
depois de sofrer um bocado. Esses testes não são necessários
para evitar o sofrimento humano: mesmo que não existisse al-
ternativa ao uso de animais para testar a segurança dos produ-
tos, seria melhor passar sem eles e aprender a conviver com as
rugas, como a maioria dos idosos sempre fez.
Do mesmo modo, nem todas as experiências realizadas
pelas universidades podem ser defendidas com base na alega-
ção de que aliviam mais sofrimentos do que provocam. Numa
famosa série de experiências feitas durante mais de quinze
anos, H. F. Harlow, do Centro de Pesquisas com Primatas de
Madison, Wisconsin, criou macacos em condições de priva-
ção materna e total isolamento. Descobriu que, assim, poderia
reduzir os macacos a um estado em que, ao serem colocados entre
macacos normais, ficassem agachados num canto, em condições
de depressão e medo contínuos. Harlow também criou macacas
98 ÉTICA PRÁTICA

tão neuróticas que, ao se tornarem mães, jogavam os filhotes de


cara no chão e o esfregavam com eles, para a frente e para trás.
Harlow já morreu, mas, em outras universidades dos Estados
Unidos, alguns de seus ex-alunos continuaram a fazer variações
de suas experiências durante muitos anos após sua morte.
Nesses casos, e em muitos outros parecidos, os benefícios para
os seres humanos são inexistentes ou muito incertos, enquanto as
perdas para os membros de outras espécies são concretas e inequí-
vocas. Consequentemente, as experiências indicam a incapaci-
dade de atribuir igual consideração aos interesses de todos os seres
a despeito da espécie à qual pertençam.
No passado, o debate sobre as experiências com animais
muitas vezes deixou de entender isso, pois era enunciado em
termos absolutos: quem se opunha à experiência estaria prepa-
rado para deixar que milhares morressem de uma doença terrí-
vel que só poderia ser curada mediante experiências com um
animal? Trata-se de uma questão meramente hipotética, pois até
hoje foi impossível prever que uma experiência tivesse resultados
tão dramáticos; contudo, contanto que fique clara sua natureza
hipotética, acredito que a pergunta deva ser respondida afirma-
tivamente: em outras palavras, se um animal ou até mesmo uma
dezena deles tivessem de ser submetidos a experiências para
salvar milhares de pessoas, eu acharia correto e de acordo com a
igual consideração de interesses que assim fosse feito.
Diante da pergunta hipotética a respeito de salvar milhares
de pessoas por experiências realizadas com uma quantidade li-
mitada de animais, os adversários do especismo podem respon-
der com outra pergunta hipotética: aqueles que fazem as
experiências estariam preparados para fazê-las com seres huma-
nos órfãos e portadores de lesões cerebrais graves e irreversíveis
se essa fosse a única maneira de salvar milhares de outras pessoas
(digo "órfãos" para evitar a complicação dos sentimentos dos
pais humanos)? Se os cientistas não estiverem preparados para
usar órfãos humanos com lesões cerebrais graves e irreversíveis,
sua presteza em usar animais não humanos parece ser discrimi-
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 99

natória unicamente com base na espécie, uma vez que hominoi-


des, macacos, cães, gatos e até camundongos e ratos são mais
inteligentes, mais conscientes do que se passa com eles, mais sen-
síveis à dor etc. do que muitos seres humanos com graves lesões
cerebrais, que mal sobrevivem em hospitais e outras instituições.
Da parte desses seres humanos, parece não existir nenhuma ca-
racterística moralmente relevante que esteja ausente nos animais
não humanos. Portanto, os cientistas revelam preconceitos em
favor de sua própria espécie sempre que fazem experiências com
animais não humanos para finalidades que eles mesmos não
considerariam justificáveis se os experimentos fossem feitos com
seres humanos dotados de igual ou menor grau de senciência,
percepção, sensibilidade etc. Se esse preconceito fosse eliminado,
o número de experiências realizadas com animais seria imensa-
mente reduzido.
É possível que um pequeno número de experiências reais
com animais fosse justificável de acordo com o argumento que
já aceitei antes, ou seja, desde que não fosse violado o princí-
pio da igual consideração de interesses. O proveito obtido com
uma experiência real nunca seria tão incontestável quanto o do
exemplo hipotético, mas, se o benefício fosse grande o suficiente,
a probabilidade de obter o benefício suficientemente elevada e
o sofrimento dos animais pequeno o bastante, um utilitarista
não poderia afirmar que seria errado realizá-la. Valeria a mesma
coisa se a experiência fosse realizada com um ser humano órfão
e portador de lesão cerebral. Seja ou não defensável o ocasio-
nal experimento com animais, as atuais práticas institucionais
de utilizar animais em pesquisas não o são, porque, a despeito de
algumas melhorias nos últimos trinta anos, essas práticas ainda
estão longe de dar igual consideração aos interesses dos animais.
Portanto, seria melhor desviar as verbas que hoje vão para a
pesquisa com animais para a pesquisa clínica com pacientes
voluntários e para o desenvolvimento de outros métodos experi-
mentais que não fizessem ninguém, humano ou animal, sofrer.
100 ÉTICA PRATICA

Outras formas de especismo


Concentrei-me no uso de animais como alimento e cobaias,
pois são exemplos de um especismo sistemático e praticado em
grande escala. Não constituem, é claro, as únicas áreas nas quais
o princípio da igual consideração de interesses, levado além da
espécie humana, tem implicações práticas. Há muitas outras
áreas que suscitam questões semelhantes, inclusive o comércio
de peles, a caça em todas as suas diversas modalidades, os circos,
os rodeios, os zoológicos e os negócios que envolvem animais de
estimação. Dado que as questões filosóficas suscitadas por esses
problemas não são muito diferentes daquelas que são suscitadas
pelo uso dos animais na alimentação e na pesquisa, deixarei que
o leitor aplique a elas os princípios éticos apropriados.

Algumas objeções
Em 1973, apresentei pela primeira vez os pontos de vista
esboçados neste capítulo. Naquela época, não existia nenhum
movimento de libertação ou de direitos dos animais. Hoje existe,
e o trabalho árduo de incontáveis ativistas foi recompensado,
não só pela maior conscientização das pessoas em relação aos
maus tratos dispensados aos animais, mas também pelos benefí-
cios concretos obtidos em nome dos animais em vários campos.
A despeito dessa crescente aceitação de muitos aspectos do
argumento pela igual consideração dos interesses dos animais
e do avanço lento, mas palpável que já se fez em nome de seu
bem-estar em várias áreas, algumas objeções ainda são levanta-
das. Nesta última parte do capítulo, tentarei responder às mais
importantes dessas objeções.

Como sabemos que os animais sentem dor?


Nunca poderemos sentir em primeira mão a dor de outro
ser, seja ele humano ou não. Quando vejo uma criança cair
e esfolar o joelho, sei que ela sente dor pela maneira como se
comporta: chora, conta que o joelho está doendo, esfrega o
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 101

machucado etc. Sei que eu mesmo me comporto de um jeito


parecido - um pouco mais discreto - quando sinto dor, e então
admito que a criança está sentindo alguma coisa que se asseme-
lha ao que sinto quando esfolo o joelho.
O fundamento de minha convicção de que os animais
podem sentir dor é semelhante ao fundamento de minha convic-
ção de que as crianças podem sentir dor. Quando sentem alguma
dor, os animais se comportam de um jeito muito parecido com
o dos humanos, e seu comportamento é suficiente para justificar
a convicção de que eles sentem dor. É verdade que, com exceção
dos poucos animais que aprenderam a se comunicar conosco
por uma linguagem humana, eles não têm como dizer que estão
sentindo dor... Mas bebês e crianças bem pequenas tampouco
sabem falar. No entanto, encontram outras formas de tornar
aparentes seus estados interiores, demonstrando que podemos
ter certeza de que determinado ser está sentindo dor, ainda que
ele não disponha do recurso da linguagem.
Para respaldar nossa inferência a partir do comporta-
mento animal, podemos chamar a atenção para o fato de que
o sistema nervoso de todos os vertebrados, sobretudo o de aves
e mamíferos, é basicamente parecido. As partes do sistema
nervoso humano que dizem respeito à sensação de dor são relati-
vamente antigas em termos evolutivos. Ao contrário do córtex
cerebral, que só se desenvolveu depois que nossos ancestrais se
diferenciaram dos outros mamíferos, o sistema nervoso básico
evoluiu em ancestrais mais distantes e, portanto, é comum a
todos os animais "superiores", entre eles os seres humanos. Essa
semelhança anatômica torna provável que a capacidade de sentir
dos vertebrados seja semelhante à nossa.
O sistema nervoso dos invertebrados já não é tão parecido
com o nosso e, talvez por esse motivo, não tenhamos justificativa
para concluir com a mesma confiança que eles sentem dor. No
caso dos bivalves, como as ostras, os mexilhões e as vieiras, parece
improvável que tenham a capacidade de sentir dor ou qualquer
outro tipo de consciência; se for assim, o princípio da igual consi-
102 ÉTICA PRATICA

deração de interesses não se aplicará a eles. Por outro lado, os


cientistas que estudaram as reações de caranguejos e camarões a
estímulos como choques ou beliscões aplicados às antenas encon-
tram indícios que sugerem dor. Além do mais, é difícil explicar o
comportamento de alguns invertebrados - principalmente o do
polvo, capaz de aprender a resolver problemas inusitados, como
abrir a tampa de rosca de um pote de vidro para apanhar um
petisco saboroso dentro - sem aceitar que pelo menos alguns
invertebrados também desenvolveram consciência.
É significativo que nenhum dos motivos em que nos apoia-
mos para acreditar que os animais sentem dor se apliquem às
plantas. Não observamos comportamentos sugestivos de dor -
as alegações impressionantes de que teriam sido encontrados
sentimentos em plantas conectadas a detectores de mentiras
revelaram-se irreproduzíveis - e as plantas não têm um sistema
nervoso central como o nosso.

Os animais comem uns aos outros, por que não deveríamos comê-los?
Esta poderia ser chamada de "Objeção de Benjamin Franklin".
Em sua autobiografia, Franklin conta que foi vegetariano durante
algum tempo, mas que sua abstinência de carne chegou ao fim
quando se pôs a observar amigos preparando-se para fritar um
peixe que tinham acabado de pescar. Quando o peixe foi aberto,
descobriu-se que havia um peixe menor em seu estômago.
"Bem", disse Franklin de si para si, "já que vocês comem uns aos
outros, não vejo por que deixaríamos de comê-los". Desde então,
voltou a comer carne.
Franklin, pelo menos, foi honesto. Ao contar essa história,
confessou que só se deixou convencer da validade da objeção
depois que o peixe já estava na frigideira e exalando um "aroma
delicioso". Observou, também, que uma das vantagens de ser
uma "criatura racional" está no fato de se poder encontrar uma
razão para tudo que se quer fazer. As respostas que podem ser
dadas a essa objeção são tão óbvias que sua aceitação, por parte
de Franklin, é um testemunho mais da fome que ele sentia na
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 103

ocasião do que de sua capacidade de raciocínio. Em primeiro


lugar, a maior parte dos animais que mata para comer não
conseguiria sobreviver se não o fizesse, enquanto nós não temos
necessidade de comer carne. Em segundo, é estranho que os seres
humanos, que normalmente encaram o comportamento animal
como "selvagem", venham a usar, sempre que lhes convém, um
argumento do qual se pode inferir que devemos buscar orien-
tação moral nos animais. O argumento decisivo, porém, é que
os animais não são capazes de considerar as alternativas que se
apresentam a eles, nem de ponderar sobre a ética de sua alimen-
tação. Portanto, é impossível considerar os animais responsá-
veis pelo que fazem, ou concluir que, pelo fato de matarem, eles
"merecem" ser tratados da mesma maneira. Por outro lado, quem lê
estas palavras deve refletir sobre a justificabilidade de seus hábitos
alimentares. Não se pode fugir à responsabilidade imitando-se
seres que não são capazes de fazer essa opção.
Às vezes, as pessoas chegam a uma conclusão ligeiramente
diferente a partir do fato de que os animais devoram uns aos
outros. Pensam que esse fato sugere não que os animais mereçam
ser comidos, e sim que exista uma lei natural segundo a qual os
mais fortes devoram os mais fracos, uma espécie de "sobrevivên-
cia dos mais aptos" darwiniana através da qual, ao comermos
outros animais, estamos simplesmente fazendo nossa parte.
Essa interpretação da objeção comete dois erros básicos: um
erro de fato e um erro de raciocínio. O erro factual está no pressu-
posto de que, se consumimos carne, é porque isso faz parte de
um processo evolutivo natural. Pode ser verdadeiro no caso das
pessoas que ainda caçam para obter alimento, mas não tem nada a
ver com a produção em massa de animais em fazendas industriais.
Suponhamos, porém, que caçássemos para conseguir
alimento, e que isso fizesse parte de um processo evolutivo
natural. Ainda haveria um erro de raciocínio na suposição
de que, por ser natural, o processo é correto. É, sem dúvida,
"natural" que as mulheres gerem uma criança a cada um ou dois
anos, da puberdade à menopausa, mas não significa que seja
104 ÉTICA PRATICA

errado interferir nesse processo. Precisamos entender a natureza


e desenvolver as melhores teorias possíveis para explicar por que
as coisas são como são, porque só assim poderemos avaliar quais
serão, provavelmente, as consequências do que fazemos; mas
seria um erro presumir que a forma natural de fazer alguma
coisa seja incapaz de ser aperfeiçoada.

Ética e reciprocidade
Na mais antiga obra de filosofia moral que a tradição
ocidental nos legou, a República, de Platão, encontramos a
seguinte concepção da ética:

Afirmam que, por natureza, cometer injustiças é bom, e sofrer


uma injustiça é mau; mas também se afirma que há mais mal
na última do que bem na primeira. Portanto, quando os homens
tiverem cometido e ;ofrido a injustiça, e tiverem experimentado
ambas as coisas, todos que não forem capazes de evitar uma e
obter a outra pensarão que fariam melhor em concordar em não
ter nenhuma; em decorrência disso, começam a criar leis e conven-
ções mútuas; e chamam de legítimo e justo tudo aquilo que é
determinado pela lei. É essa, afirma-se, a origem e a natureza da
justiça- trata-se de um meio-termo ou conciliação entre a melhor
das alternativas, que é cometer injustiça e não ser punido, e a pior
delas, que é sofrer injustiça sem o poder de retaliar.

Não era esse o ponto de vista do próprio Platão. Ele o


coloca na boca de Glauco para permitir que Sócrates, o prota-
gonista de seu diálogo, possa refutá-lo. E um ponto de vista
que nunca teve aceitação geral, mas que nem por isso deixou de
existir. Ecos dele podem ser encontrados nas teorias éticas de
filósofos como John Rawls e David Gauthier, e tem sido usado
para justificar a exclusão dos animais da esfera da ética, ou, pelo
menos, de sua parte central. Pois, se a base da ética é eu me
abster de fazer coisas más aos outros, desde que eles tampouco
me façam algo de mau, não tenho motivo para deixar de fazer
coisas más àqueles que são incapazes de apreciar meu comedi-
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 105

mento e controlar reciprocamente a maneira como se portam


em relação a mim. De um modo geral, os animais pertencem a
essa categoria. Quando estou surfando e um tubarão me ataca,
meu respeito pelos interesses dos animais de nada me valerá: é
tão provável que eu seja devorado quanto seria um outro surfista
que, quando não está pegando onda, pesca tubarões sem deixar a
segurança do barco. Como os animais são incapazes de cometer
atos de reciprocidade, eles se encontram, de acordo com esse
ponto de vista, fora dos limites do contrato ético.
Ao examinarmos essa concepção da ética, devemos fazer
uma distinção entre as explicações da origem dos juízos éticos e
as justificativas desses mesmos juízos. A explicação da origem da
ética como um contrato tácito entre as pessoas tendo em vista seu
benefício mútuo tem certa plausibilidade (ainda que, em vista das
normas sociais quase éticas que se têm observado nas sociedades
de outros mamíferos, trata-se obviamente de uma ficção histórica).
Mas poderíamos aceitar esse relato como uma explicação histó-
rica sem que, com isso, nos comprometêssemos com concepções
a respeito do caráter justo ou injusto do sistema ético daí resul-
tante. Por mais interesseiras que sejam as origens da ética, é
possível que, tão logo comecemos a pensar eticamente, sejamos
levados a extrapolar essas premissas mundanas, pois somos
capazes de raciocínio, e a razão não se subordina ao interesse
pessoal. Ao raciocinarmos sobre a ética, estamos usando concei-
tos que, como visto no primeiro capítulo deste livro, nos levam
além de nosso interesse pessoal ou mesmo do interesse de um
grupo específico ao qual pertençamos. De acordo com o ponto
de vista contratual da ética, esse processo de universalização
deve deter-se nas fronteiras de nossa comunidade; mas, uma vez
iniciado o processo, podemos descobrir que não seria coerente
com nossas outras convicções parar nesse ponto. Assim como os
primeiros matemáticos, que podem ter começado a contar para
monitorar a quantidade de pessoas em suas tribos, não faziam
a menor ideia de que estavam dando os primeiros passos numa
viagem que levaria ao cálculo infinitesimal, a origem da ética
nada nos diz a respeito de onde ela deve terminar.
106 ÉTICA PRATICA

Ao nos voltarmos para a questão da justificativa, podemos


ver que as histórias contratuais da ética têm muitos problemas.
Claramente, essas histórias excluem da esfera ética muito mais
do que os animais não humanos. Uma vez que os seres humanos
com deficiências mentais graves são igualmente incapazes de
cometer atos de reciprocidade, eles também deveriam ser excluí-
dos. O mesmo se aplicaria aos bebês ou às crianças muito novas.
Os problemas da concepção contratual não se limitam a esses
casos especiais. De acordo com essa concepção, a principal razão
para se celebrar o contrato ético é o interesse pessoal. A menos
que um novo elemento universal seja introduzido, um grupo
de pessoas não tem motivos para lidar eticamente com outro se
não for esse seu interesse. Se levarmos isso a sério, teremos de
rever drasticamente nossos juízos éticos. Por exemplo: os trafi-
cantes brancos que levaram escravos africanos para a América
não tinham nenhuma razão pessoal para tratar os africanos
melhor do que tratavam. Os africanos não tinham como retaliar.
Se fossem contratualistas, os traficantes poderiam ter contestado
os abolicionistas, explicando-lhes que a ética se detém nas frontei-
ras de nossa comunidade e, como os africanos não pertencem à
nossa comunidade - e, na época, não pertenciam -, não teríamos
a menor obrigação para com eles.

Ainda mais surpreendente é o impacto do modelo contra-


tual sobre nossa atitude em relação às gerações futuras. "Por que
eu deveria fazer alguma coisa para a posteridade? O que a poste-
ridade já fez para mim?": seria esse o ponto de vista que devería-
mos assumir se não tivéssemos a menor obrigação para com
as pessoas incapazes de cometer atos de reciprocidade. Como as
pessoas do ano 2150 poderiam fazer alguma coisa para melhorar
ou piorar nossas vidas? Portanto, segundo a concepção contra-
tual, não precisaríamos nos preocupar com problemas como o
descarte do lixo nuclear. É verdade que uma parte do lixo nuclear
continuará letal durante 250 mil anos, mas, desde que o coloque-
mos em contêineres que o mantenham longe de nós por cem
anos, teremos feito tudo o que a ética exige de nós.
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 107

Esses exemplos devem ser suficientes para mostrar que, seja


qual for sua origem, a ética que temos hoje realmente vai além
de um entendimento tácito entre seres capazes de reciprocidade.
A perspectiva de retornar a essa base não é atraente. Uma vez
que nenhum relato da origem da moralidade nos força a basear
nossa moral na reciprocidade, e uma vez que nenhum outro
argumento em favor dessa conclusão foi oferecido, devemos
rejeitar essa concepção da ética.
A essa altura da discussão, alguns teóricos contratuais recor-
rem a uma concepção mais flexível da ideia de contrato, instando
para que incluamos na comunidade moral todos aqueles que têm
ou terão a capacidade de fazer parte de um acordo recíproco, sem
levar em consideração o fato de serem ou não capazes de recipro-
cidade e se um dia serão. Claramente, essa concepção não mais
se baseia em reciprocidade alguma, pois (a menos que tenhamos
uma preocupação obsessiva com a limpeza de nosso túmulo
ou com a preservação perpétua de nossa memória) as gerações
futuras não terão como estabelecer relações recíprocas conosco,
ainda que algum dia adquiram a capacidade de cometer atos de
reciprocidade. Contudo, se os teóricos do contrato abandonam
desse modo a reciprocidade, o que sobra da história contratual?
Por que adotá-la? E por que restringir a moralidade àqueles que
têm a capacidade de fazer acordos conosco se, de fato, não existe
possibilidade alguma de que venham um dia a fazê-lo? Em vez
de nos aferrarmos às ruínas de uma concepção contratual que
perdeu sua essência, seria melhor abandoná-la de vez e, com
base na universalizabilidade, refletir sobre quais seres devem ser
incluídos na esfera da moralidade.

Diferenças entre seres humanos e animais


Que os seres humanos e os animais são gêneros absoluta-
mente diferentes de criaturas é algo que nunca foi questionado
ao longo de quase toda a existência da civilização ocidental. A
base dessa hipótese foi destruída pela descoberta de nossas ori-
gens por Darwin e pela consequente perda de credibilidade da
108 ÉTICA PRÁTICA

história de nossa Criação Divina à imagem e semelhança de


Deus. O próprio Darwin argumentava que as diferenças entre
nós e os animais são de grau, e não de gênero, opinião que algu-
mas pessoas ainda têm dificuldade de aceitar. Procuraram ma-
neiras de traçar uma linha divisória entre os seres humanos e os
animais. Até hoje, esses limites têm-se mostrado de vida breve.
Por exemplo, costumava-se afirmar que só os seres humanos usa-
vam ferramentas, até que se descobriu que o pica-pau das ilhas
Galápagos usava um espinho de cacto para arrancar insetos de
buracos nas árvores. Depois sugeriu-se que, mesmo se outros ani-
mais usassem ferramentas, os humanos eram os únicos seres a
fazerem as suas. Então Jane Goodall descobriu que os chimpan-
zés das florestas da T anzânia mascavam folhas para fazer uma
esponja que lhes permitia absorver água e arrancavam as folhas
dos ramos para fazer ferramentas destinadas a apanhar insetos.
O uso da linguagem era outra linha limítrofe, mas agora temos
chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos que aprenderam a
linguagem de sinais dos surdos, e papagaios que aprenderam a fa-
lar, e não simplesmente a repetir palavras.
Se essas tentativas de traçar uma linha divisória entre os seres
humanos e os animais fossem corroboradas pelos fatos, ainda
assim não teriam a necessária relevância moral para justificar a
maneira como tratamos os animais. Como afirmou Bentham,
o fato de um animal não usar nenhum tipo de linguagem ou
ferramenta não é motivo para ignorarmos seu sofrimento.
Alguns filósofos têm afirmado que existiria uma diferença
mais profunda entre seres humanos e animais. Segundo eles, os
animais não são capazes de pensar nem raciocinar e, em decor-
rência disso, não concebem a si mesmos nem têm consciência.
Vivem o aqui e o agora e não se veem como entidades distin-
tas com um passado e um futuro. Tampouco têm autonomia,
a capacidade de escolher o modo como preferem viver. Já se
sugeriu que os seres autônomos e conscientes são, de alguma
forma, muito mais importantes do ponto de vista moral do
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 109

que os seres que só vivem o aqui e o agora, sem capacidade de


se perceberem como seres distintos que têm um passado e um
futuro. Segundo essa concepção, os interesses dos seres autôno-
mos e conscientes devem, normalmente, ter prioridade sobre os
interesses de outros seres.
Não vou discutir agora se alguns animais não humanos são
conscientes e autônomos, porque, no presente contexto, pouca
coisa depende dessa questão. No momento, estamos apenas
examinando a aplicação do princípio da igual consideração de
interesses. No capítulo seguinte, quando discutirmos por que
seria errado tirar uma vida e questões associadas, veremos que
existem razões para sustentar que a consciência é crucial quando
se discute se um ser tem ou não direito à vida; então exami-
naremos os indícios de consciência nos animais não humanos.
Enquanto isso, a questão mais importante é: o fato de um ser ter
consciência dá a essa criatura o direito a algum tipo prioritário
de consideração?
A alegação de que os seres conscientes têm direito a uma
consideração maior que outras criaturas será compatível com
o princípio da igual consideração de interesses se não for além
da alegação de que certas coisas que acontecem com os seres
conscientes podem ser contrárias a seus interesses, enquanto
acontecimentos semelhantes não seriam contrários aos interes-
ses dos seres que não são conscientes. Talvez seja assim porque
a criatura consciente é capaz de inserir o acontecimento no
contexto geral de um período de tempo mais longo, tem desejos
diferentes etc. Mas esse é um argumento que já dei por certo
ao iniciar este capítulo e, desde que não seja levado a extremos
absurdos - como insistir em que, se sou consciente, e uma vitela
não é, deixar de comer sua carne traz mais sofrimento do que
privar a vitela de sua liberdade de andar, se espreguiçar e comer
capim -, não é contestado pelas críticas que fiz às experiências
com animais e às fazendas industriais.
Seria bem diferente se a alegação fosse que, mesmo quando
um ser consciente não tivesse sofrido mais do q_ue um ser ape-
llO ÉTICA PRATICA

nas senciente, o sofrimento do ser consciente é mais importante


porque é uma criatura inerentemente mais valiosa. Isso introduz
afirmações de valor não utilitárias - afirmações que não deri-
vam, simplesmente, do fato de se adotar um ponto de vista uni-
versal, do modo como foi descrito na parte final do Capítulo 1.
Como o argumento utilitarista ali desenvolvido era reconheci-
damente experimental, não posso usá-lo para excluir todos os
valores não utilitaristas. Não obstante, temos o direito de per-
guntar por que os seres conscientes deveriam ser considerados
mais valiosos e, em particular, por que o suposto maior valor de
um ser consciente deveria ter como resultado a preferência pelos
interesses menores de um ser consciente em detrimento dos in-
teresses maiores de um ser apenas senciente, mesmo quando a
consciência do primeiro não está em jogo. Esse último argu-
mento é importante, pois, no momento, não estamos examinan-
do casos em que as vidas de seres conscientes estão em risco, mas
sim casos em que seres conscientes continuarão vivos e com suas
faculdades intactas, seja qual for nossa decisão. Nesses casos, se
a existência de consciência não implica que os interesses do ser
consciente sejam de fato maiores e afetados de maneira mais
adversa que os interesses de seres não conscientes, não fica claro
por que deveríamos incluir a consciência na discussão, da mes-
ma maneira que não deveríamos incluir espécie, raça ou sexo em
discussões semelhantes.
Há outra resposta possível à afirmação de que a consciência,
a autonomia ou qualquer característica semelhante possa servir
para distinguir os seres humanos dos animais não humanos.
Lembre-se, leitor, de que existem seres humanos com deficiências
mentais que podemos considerar menos conscientes ou autôno-
mos que muitos animais não humanos. Se usarmos essas caracte-
rísticas para colocar um abismo entre os seres humanos e outros
animais, estaremos colocando esses seres humanos menos capazes
do outro lado do abismo; e, se o abismo for usado para marcar uma
diferença de status moral, então esses seres humanos teriam o status
moral de animais, e não de seres humanos. Mas nenhum de nós
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 111

pensaria em usar seres humanos portadores de graves deficiências


mentais em experiências torturantes, nem engordá-los para satis-
fazer os epicuristas interessados em provar um novo tipo de carne.

Defesa do especismo
Diante da objeção de que sua posição nos daria o direito de
tratar os seres humanos portadores de graves deficiências mentais
da maneira como hoje tratamos os animais não humanos, alguns
filósofos voltam a defender o especismo, seja porque ele tem valor
instrumental ou, no caso dos mais ousados, porque pertencer a
uma espécie seria, por si só, moralmente significativo.
A defesa instrumental do especismo recorre ao argumento
bastante difundido da "ladeira escorregadia". Alega-se que dar um
primeiro passo em certa direção nos colocaria numa ladeira escor-
regadia e não conseguiríamos evitar a queda num abismo moral.
No presente contexto, o argumento é usado para sugerir que pre-
cisamos de uma linha nítida para separar os seres com os quais
podemos fazer experiências ou que podemos engordar para comer
daqueles com os quais não podemos fazer essas coisas. A separação
entre as espécies estabelece uma linha divisória bem nítida, ao pas-
so que isso não acontece com os níveis de consciência, autonomia
ou senciência. Ainda segundo o argumento, se admitirmos que um
ser humano, por maior que seja sua deficiência mental, não tem
um status moral superior ao de um animal, já estaremos deslizando
por uma ladeira, o próximo passo seria negar direitos aos desajus-
tados sociais, e o fundo do poço seria classificar como sub-huma-
nos e eliminar todos de quem não gostamos.
Em resposta ao argumento da ladeira escorregadia, é impor-
tante lembrar que o objetivo de minha argumentação é elevar o
status dos animais, e não rebaixar o dos seres humanos. Não é
minha intenção sugerir que os deficientes mentais devam ser
forçados a ingerir corantes alimentares até adoecerem ou morre-
rem - ainda que, sem dúvida, no que diz respeito a saber se a
substância é ou não segura para os seres humanos, esse procedi-
mento nos daria indicações mais precisas do que se o teste fosse
112 ÉTICA PRATICA

feito com coelhos ou cachorros. Gostaria que nossa convicção


de que seria errado tratar os deficientes mentais dessa maneira
fosse transferida para os animais não humanos dotados de níveis
semelhantes de consciência e com uma capacidade semelhante
de sofrer. É excessivamente pessimista não tentarmos modificar a
maneira como tratamos os animais porque poderíamos começar
a tratar os deficientes mentais com a mesma falta de consideração
que dispensamos hoje aos animais, em vez de dar aos animais a
maior consideração que hoje dedicamos aos seres humanos com
deficiências mentais. Se estivermos realmente convictos de que
a ladeira escorregadia é perigosa, poderemos evitá-la insistindo
para que todos os seres sencientes, sejam ou não conscientes,
tenham direitos fundamentais.
O argumento da ladeira escorregadia pode ser uma valiosa
advertência em alguns contextos, mas não resistirá muito sem
razões específicas para acreditarmos ser realmente provável que
o suposto escorregão ocorrerá. Pois poderíamos muito bem
argumentar que existe uma ligação entre a maneira como trata-
mos os animais e a maneira como tratamos os seres humanos
que aponta a direção contrária. Muitas pesquisas em psico-
logia e criminologia demonstraram que criminosos violentos
provavelmente maltrataram animais na infância e adolescência.
Talvez, se tratássemos melhor os animais, também trataríamos
melhor nossos semelhantes. Reconheço que se trata de uma
especulação, mas o argumento da ladeira escorregadia também
faz especulações e, portanto, poderíamos entender que uma
afirmação anula a outra. Em todo caso, se o status especial
que hoje atribuímos aos humanos permite que ignoremos os
interesses de bilhões de criaturas sencientes, não nos devemos
dissuadir de tentar corrigir essa situação por causa da mera
possibilidade de que os princípios nos quais fundamentamos
essa tentativa serão mal utilizados por pessoas más para seus
próprios fins. Em vez disso, devemos prestar mais atenção para
que esse mau uso não aconteça.
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 113

Um argumento que se aproxima de tornar a espécie uma


questão de importância moral intrínseca é que os seres humanos
com graves deficiências mentais e que não têm as aptidões que
distinguem o ser humano normal dos outros animais devem, não
obstante, ser tratados como se as tivessem, uma vez que perten-
cem a uma espécie cujos membros normalmente as possuem.
Em outras palavras, a sugestão é que tratemos os indivíduos não
de acordo com suas verdadeiras qualidades, mas de acordo com
as qualidades normais em sua espécie.
É interessante que se faça essa sugestão para defender que
os membros de nossa espécie sejam mais bem tratados que os de
outras espécies, quando ela seria firmemente rejeitada se fosse
usada para justificar que déssemos aos membros de nossa raça
ou sexo um tratamento melhor que aquele dispensado aos
membros de outra raça ou sexo. No capítulo anterior, ao discu-
tir o impacto de possíveis diferenças de QI entre membros de
grupos étnicos diferentes, fiz a afirmação óbvia de que, seja
qual for a diferença entre as pontuações médias de grupos dife-
rentes, alguns membros do grupo com a pontuação média mais
baixa se sairão melhor que alguns membros dos grupos com a
pontuação média mais alta. Daí que devemos tratar as pessoas
como indivíduos, e não de acordo com a pontuação média de
seu grupo étnico, quaisquer que sejam as explicações para essa
média. Se aceitarmos isso, não poderemos, coerentemente, aceitar
a sugestão de que, ao lidarmos com seres humanos com graves
deficiências mentais, devamos assegurar-lhes o status ou os di-
reitos normais de sua espécie. Pois o que significa o fato de que,
desta vez, a linha está traçada ao redor da espécie, e não da raça
ou do sexo? Não podemos insistir em que os seres sejam trata-
dos como indivíduos no primeiro caso e como membros de um
grupo no outro.
Também já se argumentou que, muito embora os seres
humanos com graves deficiências mentais possam não ter
aptidões superiores às dos outros animais, ainda assim eles são
seres humanos como "nós" e, por esse motivo, temos para com
114 ÉTICA PRÁTICA

eles obrigações que não temos com quem não é humano como
"nós". Esse argumento contorna a questão de quem considera-
mos que sejamos nós. Somos basicamente membros da espécie
H omo sapiens, seres basicamente conscientes ou, quem sabe, seres
basicamente sencientes? Pessoalmente, minha impressão é de
que um alienígena inteligente com quem eu pudesse comunicar-
-me e dividir sentimentos teria mais em comum comigo do que
um membro de minha própria espécie que porta uma deficiência
tão grave a ponto de ser incapaz de ter experiências conscientes,
mesmo que este se pareça muito mais comigo.
É compreensível que os seres humanos que se parecem
conosco evoquem sentimentos ternos que os alienígenas ou alguns
outros animais não evocam. No entanto, seria um erro vincu-
lar a moralidade tão intimamente às nossas afeições. É claro
que algumas pessoas podem manter, com o ser humano mais
gravemente afligido por uma deficiência mental, um relaciona-
mento mais estreito do que manteriam com qualquer animal
não humano, e seria absurdo lhes dizer que não deveriam se
sentir assim. Elas simplesmente têm esses sentimentos e não há
neles nada de bom ou mau. A questão é saber se nossas obriga-
ções morais para com um ser deveriam depender de nossos
sentimentos dessa maneira. É público e notório que alguns seres
humanos se relacionam melhor com seu gato que com seus
vizinhos. Quem associa a moralidade às afeições aceitaria que
essas pessoas estão certas quando, durante um incêndio, tentam
primeiro salvar seus gatos, e só depois os vizinhos? E, creio eu,
mesmo aqueles que estão preparados para dar uma resposta
afirmativa a essa pergunta, não desejariam concordar com os
racistas, que poderiam argumentar que, se os indivíduos mantêm
relações mais estreitas com outras pessoas que têm a mesma cor
de pele ou tipo de cabelo, e por elas sentem maior afeição, não é
errado que eles deem preferência aos interesses dessas pessoas. A
ética não exige que eliminemos as relações pessoais e as afeições
parciais, mas exige que, em nossas ações, levemos em conta as
IGUALDADE PARA OS ANIMAIS? 115

reivindicações morais daqueles que são afetados por elas, e que


o façamos com certo grau de independência em relação a nossos
sentimentos por eles.
Pouco antes de morrer, em 2003, o filósofo britânico
Bernard Williams defendeu o especismo num artigo intitulado
"The human prejudice" [O preconceito humano]. Williams
partiu da afirmação de que todos os nossos valores são necessa-
riamente "valores humanos". Em certo sentido, naturalmente,
são mesmo. Ainda estamos para encontrar seres não humanos
capazes de enunciar, ponderar e discutir seus valores, portanto
todos os valores que se prestam à discussão são humanos no
sentido de que foram formulados e enunciados por seres
humanos. O fato de nossos valores serem humanos nesse sentido
não exclui o possível desenvolvimento de valores que seriam
aceitos por qualquer ser racional capaz de se colocar no lugar
de outros seres. A natureza humana de nossos valores tampouco
nos informa - e esse é o ponto mais importante - o que nossos
valores podem ou devem ser e, particularmente, se deveríamos
valorizar os sofrimentos, prazeres e as vidas dos animais não
humanos menos do que valorizamos nossos sofrimentos, praze-
res e vidas. Há que se admitir que Williams reconheceu que
"faz parte do ponto de vista humano, ou humanitário, preocu-
par-se com a maneira como os animais devem ser tratados, e
nada do que eu disse sugere que não deveríamos nos preocupar
com isso". Qual seria, então, a relevância do fato de que nossos
valores são humanos? A derradeira defesa que Williams faz do
"preconceito humano" é surpreendentemente crua. Pede-nos
para imaginar que nosso planeta foi colonizado por alienígenas
benévolos, justos e perspicazes que julgam necessário nos elimi-
nar. E então afirma que, por mais justa e embasada que fosse
essa decisão (podemos imaginar, talvez, que nossa agressividade
incorrigível provavelmente destruiria o planeta cedo ou tarde),
estaríamos certos se nos aliássemos a nossa própria espécie
contra os alienígenas. A questão suprema, afirma Williams, é:
"de que lado você está?".
116 ÉTICA PRÁTICA

Já ouvimos essa pergunta antes. Em tempos de guerra ou


conflito racial, étnico, religioso ou ideológico, "de que lado você
está?" é usada para evocar a solidariedade do grupo e sugerir que
questionar a luta seria traição. Nos Estados Unidos da década de
1950, os seguidores do senador Joseph McCarthy fizeram essa
pergunta àqueles que se opunham a seus métodos de combate
ao comunismo. Figuras importantes do governo do presidente
George W. Bush a usaram para dar a entender que seus críticos
apoiavam os terroristas. A pergunta divide o mundo em "nós"
e "eles" e reivindica que o simples fato de existir essa divisão
transcende outra pergunta muito diferente: "Qual é a coisa certa
a fazer?". Nessas circunstâncias, a coisa certa e corajosa a se fazer
é não favorecer os instintos tribais que nos levam a dizer, "o da
minha tribo (país, raça, grupo étnico, religião etc.), certo ou
errado", e dizer "estou do lado que faz o que é certo". É fantás-
tico imaginar que um juiz imparcial, embasado e perspicaz um
dia decidisse que a única alternativa é "eliminar" nossa espécie
para evitar aflições e injustiças muito maiores, mas se fosse esse
o caso, deveríamos rejeitar o instinto tribal - ou da espécie -
e responder à pergunta de Williams da mesma maneira.
4

O que há de errado em matar?

Poderíamos resumir assim, de maneira bastante simplifi-


cada, os três primeiros capítulos deste livro: o primeiro apresenta
uma concepção da ética da qual, no segundo capítulo, emerge o
princípio da igual consideração de interesses; então esse princípio
é usado para esclarecer problemas sobre o significado da igual-
dade dos seres humanos e, no terceiro capítulo, é aplicado aos
animais não humanos.
Portanto, até agora, o princípio da igual consideração de
interesses esteve por trás da maior parte de nossa discussão.
Mas, como sugeri no capítulo anterior, a aplicação desse princí-
pio quando vidas estão em jogo é menos clara do que quando
estamos preocupados com interesses como, por exemplo, evitar
o sofrimento e experimentar o prazer. Neste capítulo, exami-
naremos algumas concepções sobre o erro que seria tirar uma
vida; com isso, estaremos preparando o terreno para os capítulos
seguintes, nos quais nos dedicaremos a algumas questões práticas
relevantes à decisão de quando é errado matar alguém, e quando
é errado permitir que alguém morra.

A vida humana
As pessoas costumam dizer que a vida é sagrada, o que,
quase sempre, não passa de força de expressão. Não querem
dizer, como suas palavras parecem indicar, que todas as formas
de vida são sagradas. Se quisessem, considerariam igualmente
abominável matar um porco, arrancar um repolho ou assassinar
118 ÉTICA PRATICA

um ser humano. Quando as pessoas afirmam que a vida é sagrada,


estão pensando na vida humana. Mas por que a vida humana
deveria ter um valor especial?
Ao discutir a doutrina da santidade da vida humana,
não usarei o termo "santidade" num sentido especificamente
religioso. É bem possível que a doutrina tenha uma origem
religiosa, mas agora faz parte de uma ética mais que secular, e
é enquanto parte dessa ética secular que ela exerce, nos dias de
hoje, sua maior influência. Tampouco tomarei a doutrina como
se ela sustentasse que é sempre errado tirar a vida humana, pois
isso implicaria o pacifismo absoluto, e existem muitos defenso-
res da santidade da vida humana que admitem a possibilidade
de matar em autodefesa, e há alguns que apoiam a pena capital.
Podemos dizer que a doutrina da santidade da vida humana não
é mais que uma maneira de afirmar que a vida humana tem
algum valor muito especial, um valor totalmente distinto do
valor da vida de outros seres vivos.
A concepção de que a vida humana tem um valor único
está profundamente enraizada em nossa sociedade e é cultuada
pelo direito. Para ver até que ponto essa crença pode chegar,
reflitam sobre o que aconteceu com Peggy Stinson, uma profes-
sora da Pensilvânia, Estados Unidos, que estava grávida havia
24 semanas quando entrou prematuramente em trabalho de
parto. O bebê, que Peggy e o marido chamaram de Andrew,
era praticamente inviável. Apesar da firme declaração dos pais
de que não queriam "lances de heroísmo", os médicos que cuida-
vam do menino recorreram a toda a tecnologia da medicina
moderna para mantê-lo vivo ao longo de quase seis meses.
Andrew tinha convulsões periódicas. Quando os seis meses
estavam chegando ao fim, ficou claro que, se ele sobrevivesse,
teria deficiências graves e permanentes. Andrew também estava
sofrendo muito. A certa altura, o médico disse aos Stinson que
Andrew deveria "sofrer o diabo" cada vez que respirava. O trata-
mento custou 104 mil dólares, e isso foi em 1977. Hoje, o custo
de manter um bebê em tratamento intensivo durante seis meses
excederia facilmente 1 milhão de dólares.
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 119

Andrew Stinson foi mantido vivo contra a vontade dos pais,


a um custo financeiro substancial, a despeito de seu sofrimento
evidente e do fato de que, depois de um certo ponto, ter ficado
claro que ele jamais teria condições de levar uma vida indepen-
dente ou de pensar e falar como faz a maior parte dos seres
humanos. Se seria ou não correto tratar um bebê humano dessa
maneira é uma questão que examinaremos no Capítulo 7. Neste
momento, quero destacar o contraste chocante entre tamanho
esforço para preservar uma vida humana e a despreocupação
com que tiramos a vida de cães vadios, macacos usados como
cobaias, bois, porcos e frangos que nos servem de alimento. O
que poderia justificar a diferença?
Em todas as sociedades que conhecemos, tirar a vida é
proibido de alguma maneira. Presume-se que uma sociedade não
sobreviva se permitir que seus membros matem uns aos outros
sem restrições. Contudo, o que tem diferenciado as sociedades
é algo que se pode explicitar com uma pergunta: quem, exata-
mente, é protegido? Em muitas sociedades tribais, o único delito
grave é matar um membro inocente da própria tribo; os membros
de outras tribos podem ser mortos impunemente. Em estados-
-nações mais sofisticados, a proteção tem sido estendida a todos
os que vivem dentro das fronteiras nacionais, ainda que tenham
existido casos famosos de exclusão de uma minoria. Hoje em dia,
a maioria concorda, pelo menos teoricamente, que, deixando de
lado os casos especiais como a autodefesa, a guerra e possivel-
mente a pena de morte e uma ou duas outras áreas questioná-
veis, é errado matar seres humanos, independentemente de sua
raça, religião, classe ou nacionalidade. A impropriedade moral
de princípios mais estreitos, como os que restringem o respeito
pela vida a uma tribo, raça ou nação, é ponto pacífico; contudo,
o argumento do capítulo anterior questiona obrigatoriamente se
a linha demarcatória de nossa espécie assinala ou não um limite
mais defensável para o círculo dos protegidos.
A esta altura, é melhor nos determos e perguntarmos o que
queremos dizer quando usamos termos como "vida humana"
120 ÉTICA PRATICA

ou "ser humano". São termos que se destacam nos debates sobre


o aborto e as experiências realizadas com embriões. "O feto é
um ser humano?" é uma pergunta que costuma ser considerada
crucial na questão do aborto, mas, a menos que reflitamos com
muito cuidado sobre esses termos, não haverá como responder a
perguntas como essa.
É possível atribuir um significado preciso a "ser humano".
Podemos usá-lo como sinônimo de "membro da espécie Homo
sapiens". O fato de um indivíduo pertencer ou não a uma espécie
é algo que pode ser determinado cientificamente, mediante um
exame dos cromossomos das células dos organismos vivos. Nesse
sentido, não há dúvida de que, desde os primeiros momentos de
sua existência, um embrião concebido a partir de espermato-
zoides e óvulos humanos seja um ser humano; e o mesmo se
pode dizer do ser humano com as mais profundas e irreparáveis
deficiências mentais, até mesmo de um bebê que nasceu anence-
fálico, ou seja, um bebê que, em virtude da formação defeituosa
do tubo neural, não tem um cérebro.
Existe outro uso do termo "humano", este proposto por
Joseph Fletcher, personalidade importante no desenvolvimento
da bioética. Fletcher fez uma relação daquilo que chama de "in-
dicadores de humanidade", entre os quais encontramos: auto-
consciência, autocontrole, senso de futuro e passado, capacidade
de se relacionar com os outros, preocupação com os outros, co-
municação e curiosidade. Esse é o sentido do termo que temos
em mente quando, querendo elogiar alguém, dizemos que é
"um verdadeiro ser humano" ou que demonstra "qualidades ver-
dadeiramente humanas". Ao fazermos tais afirmações, é eviden-
te que não nos estamos referindo ao fato de a pessoa pertencer à
espécie Homo sapiens, o que, enquanto fato biológico, raramente
se coloca em dúvida; estamos querendo dizer que é característi-
co dos seres humanos ter determinadas qualidades, e que a pes-
soa em questão as possui em alto grau.
Esses dois sentidos de "ser humano" se sobrepõem, mas
não coincidem. O embrião, o feto, a criança com profundas
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 121

deficiências mentais e o próprio bebê recém-nascido são todos


membros inquestionáveis da espécie Homo sapiens, mas nenhum
deles é autoconsciente, tem senso de futuro ou capacidade de
se relacionar com os outros. Portanto, a opção por um dos
dois sentidos pode fazer uma diferença importante no que diz
respeito ao modo como respondemos a perguntas do tipo "o feto
é um ser humano?".
Ao escolhermos quais palavras usar numa situação como
essa, devemos optar por termos que nos permitam expressar clara-
mente o significado que temos em mente e que não decidam de
antemão qual será a resposta a questões importantes. Estabelecer,
por exemplo, que se deve usar o termo "humano" no primeiro
dos dois sentidos há pouco descritos, e que, portanto, o feto é um
ser humano, e o aborto é imoral, não ajudaria em nada. De nada
valeria, tampouco, escolher o segundo sentido e afirmar, com
base nisso, que o aborto é aceitável. A moralidade do aborto é
uma questão fundamental, e a resposta que lhe damos não pode
depender da maneira como estipulamos que as palavras devem
ser usadas. Para não nos esquivarmos de nenhuma questão, por
ora vou pôr de lado o melindroso termo "humano" e substituí-lo
por dois termos diferentes, que correspondem aos dois sentidos
diferentes de "humano". Para o primeiro sentido, o biológico,
usarei simplesmente a expressão desajeitada, mas precisa,
"membro da espécie Homo sapiens"; e, para o segundo, usarei o
termo "pessoa".
Infelizmente, esse uso de "pessoa" é, em si, passível de induzir
ao erro, pois "pessoa" é um termo comumente usado como se
tivesse o mesmo significado de "ser humano". Os termos, porém,
não são equivalentes: poderia haver uma pessoa que não fosse
membro de nossa espécie. Também poderia haver membros de
nossa espécie que não fossem pessoas. A palavra "pessoa" tem
origem no termo latino que remete a uma máscara usada por
um ator no teatro clássico. Ao usarem máscaras, os atores davam
a entender que estavam representando um papel. Com o passar
do tempo, "pessoa" passou a designar aquele que desempenha
122 ÉTICA PRÁTICA

um papel na vida, alguém que é agente. Segundo o dicioná-


rio Oxford da língua inglesa, um dos significados correntes do
termo equivalente, person, é o de "ser autoconsciente ou racio-
nal". Esse sentido tem antecedentes filosóficos claríssimos. John
Locke define uma pessoa como "um ser pensante e inteligente,
dotado de razão e reflexão e capaz de se entender como tal, como
a mesma coisa pensante, em momentos e lugares diferentes".
Essa definição aproxima "pessoa" daquilo que Fletcher queria
dizer com "humano", salvo pelo fato de escolher duas característi-
cas fundamentais - a racionalidade e a autoconsciência - como o
âmago do conceito. Muito provavelmente, Fletcher concordaria
que essas duas características são essenciais, e que as outras mais
ou menos delas decorrem. Seja como for, proponho o uso de
"pessoa", no sentido de ser racional e autoconsciente, para incor-
porar os elementos do sentido popular de "ser humano" que não
são abrangidos por "membro da espécie Homo sapiens".

Matar membros da espécie Homo sapiens


Com o esclarecimento obtido em nosso interlúdio termi-
nológico e com a possibilidade de recorrer ao argumento do
capítulo anterior, esta seção pode ser breve. O erro de infligir
sofrimento a um ser não pode depender da espécie desse ser;
o mesmo se pode dizer do erro de matá-lo. Os fatos biológicos
que determinam a linha divisória de nossa espécie não têm um
significado moral. Dar preferência à vida de um ser simples-
mente porque ele é membro de nossa espécie é algo que nos
colocaria incomodamente na mesma posição dos racistas que
dão preferência àqueles que são membros de sua raça.
Aqueles que leram os capítulos anteriores deste livro podem
achar essa conclusão óbvia, pois foi aos poucos que chegamos a
ela. Mas ela difere intensamente da atitude predominante em
nossa sociedade, que, como vimos, trata como singularmente
valiosas as vidas de todos os membros de nossa espécie. Como
nossa sociedade pôde aceitar um ponto de vista que praticamente
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 123

não resiste a um exame crítico mais aprofundado? Uma breve


digressão histórica pode ajudar-nos a encontrar a explicação.
Se remontarmos às origens da civilização ocidental, aos
tempos greco-romanos, descobriremos que o fato de alguém
pertencer à espécie Homo sapiens não era suficiente para garan-
tir a proteção de sua vida. Não havia respeito pela vida dos
escravos ou de outros "bárbaros", e, mesmo entre os próprios
gregos e romanos, os bebês não tinham direito automático à
vida. Os gregos e os romanos matavam os bebês deformados ou
inaptos expondo-os às intempéries no alto de uma colina. Platão
e Aristóteles achavam que o Estado deveria impor a morte dos
bebês deformados. Os célebres códigos legislativos cuja autoria
é atribuída a Licurgo e Sólon continham cláusulas semelhan-
tes. Nesse período, achava-se melhor pôr fim a uma vida que
começara desfavoravelmente do que tentar prolongá-la, com
todos os problemas que ela poderia acarretar.
Nossa atitude atual remonta ao advento do cristianismo.
Havia uma motivação teológica específica para a insistência
cristã na importância da condição de membro de uma espécie:
a crença em que todos aqueles que nascem de pais humanos
são imortais e estão destinados a uma eternidade de êxtase
ou a tormentos intermináveis. A partir dessa crença, o assas-
sinato de um Homo sapiens assumiu um significado terrível,
pois enviava alguém para seu destino eterno. Uma segunda
doutrina cristã que levava à mesma conclusão era a crença em
que pertencemos todos a Deus já que fomos criados por ele, e
matar um ser humano equivale a usurpar o direito divino de
decidir quando devemos viver e quando devemos morrer. Como
afirmou santo Tomás de Aquino, tirar uma vida humana é um
pecado contra Deus, do mesmo modo que matar um escravo
seria um pecado contra seu proprietário. Por outro lado, acredi-
tava-se que os animais não humanos haviam sido colocados por
Deus sob o domínio do homem, como aparece escrito na Bíblia
(Gênesis 1:29 e 9:1-3). Portanto, os seres humanos poderiam
matar os animais não humanos à vontade, desde que não fossem
propriedade alheia.
124 ÉTICA PRÁTICA

Durante os séculos de domínio cristão sobre o pensamento


europeu, as atitudes éticas fundamentadas nessas doutrinas
tornaram-se parte da incontestada ortodoxia moral da civili-
zação europeia. Hoje, as doutrinas religiosas não são mais de
aceitação geral, mas as atitudes éticas às quais deram origem
se ajustam à arraigada crença ocidental na singularidade e nos
privilégios especiais de nossa espécie. E sobreviveram. Agora,
porém, que estamos reavaliando nossa concepção especista da
natureza, também é tempo de reavaliarmos nossa crença na
santidade da vida dos membros de nossa espécie.

Matar uma pessoa


Dividimos a doutrina da santidade da vida humana em
duas afirmações distintas: a primeira, que é especialmente grave
tirar a vida de um membro de nossa espécie; a segunda, que é
especialmente grave tirar a vida de uma pessoa. Vimos que a
primeira afirmação não tem como ser defendida. Que dizer da
segunda? Haveria algo na vida de um ser racional e autocons-
ciente, e não na de um ser que seja apenas senciente, que torne
muito mais grave o ato de tirar a vida do primeiro?
Uma linha de argumentação para responder a essa pergun-
ta de modo afirmativo pode ser desenvolvida da maneira como
a apresentaremos a seguir. Um ser autoconsciente tem consciên-
cia de si enquanto entidade distinta, com um passado e um fu-
turo (este, lembremo-nos, era o critério pelo qual Locke definia
uma pessoa). Um ser dotado de consciência de si seria capaz de
ter desejos relativos a seu próprio futuro. O aluno espera se for-
mar, a criança talvez queira ir a uma festa de aniversário, o pro-
fessor de filosofia pode ter esperanças de escrever um livro que
analise criticamente convicções éticas de ampla aceitação. Ti-
rar a vida dessas pessoas sem seu consentimento significa frus-
trar seus desejos para o futuro. Para a maioria de nós, seres
humanos adultos, esses desejos futuros são absolutamente fun-
damentais em nossas vidas e, portanto, matar um ser humano
normal contra sua vontade é frustrar os desejos mais importan-
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 125

tes dessa pessoa. Matar uma lesma não frustra nenhum desejo
desse tipo, pois as lesmas são incapazes de tê-los (nesse quesito,
porém, os fetos e até os recém-nascidos humanos encontram-se
na mesma situação das lesmas. As implicações serão exploradas
num capítulo subsequente).
Há que se admitir que, quando uma pessoa é morta, não
nos sobra um desejo frustrado no mesmo sentido em que tenho
um desejo frustrado quando, ao perambular por um lugar seco,
paro para matar minha sede e descubro que meu cantil está
furado. Nesse caso, tenho um desejo que não posso satisfazer e
sinto frustração e desconforto devido ao desejo contínuo e não
saciado de beber água. Quando sou morto, os desejos que tenho
para o futuro não continuam depois de minha morte e não sofro
por deixar de concretizá-los. Mas isso implica que impedir a
satisfação desses desejos não tem importância?
O utilitarismo clássico ou hedonista, como já destacamos,
julga as ações por sua tendência a maximizar o prazer ou a feli-
cidade e minimizar o sofrimento ou a infelicidade. Termos
como "prazer" e "felicidade" carecem de precisão, mas fica claro
que remetem a algo que se vivenda ou se sente: em outras pala-
vras, a estados de consciência. Portanto, de acordo com o utili-
tarismo hedonista, não há uma importância direta no fato de os
desejos para o futuro ficarem por concretizar quando as pessoas
morrem. Quando se morre instantaneamente, o fato de se ter ou
não desejos para o futuro é indiferente no que concerne à quan-
tidade de prazer ou sofrimento que se experimenta. Portanto,
para o utilitarismo hedonista, o status de "pessoa" não é direta-
mente relevante para o erro de matar.
Indiretamente, porém, a condição de pessoa pode ser
importante para o utilitarista hedonista. Essa importância
surge da seguinte maneira: se sou uma pessoa, sei que tenho
um futuro. Sei também que minha existência futura pode ser
interrompida. Se eu achar que isso pode acontecer a qualquer
momento, minha existência presente será cheia de ansiedade e,
provavelmente, menos agradável do que seria se eu não pensasse
126 ÉTICA PRATICA

que minha morte é iminente. Se eu souber que pessoas como eu


raramente são mortas, ficarei menos preocupado do que ficaria
se fosse o contrário. Portanto, o utilitarista hedonista pode defen-
der a proibição de matar as pessoas pela razão indireta de que
essa proibição aumentará a felicidade das pessoas que, de outra
forma, viveriam preocupadas diante da possibilidade de serem
mortas. Digo razão indireta, porque o raciocínio não remete a
nenhum delito direto que se cometa contra a pessoa que é morta,
mas sim a uma consequência do assassinato para outras pessoas.
Sem dúvida, é um tanto estranho opor-se ao assassinato não por
causa do mal feito à vítima, mas devido ao efeito que o assas-
sinato terá sobre terceiros. Para permanecer impassível diante
dessa estranheza, é preciso ser um utilitarista hedonista irredu-
tível. Convém lembrar, porém, que, por ora, estamos apenas
refletindo sobre o que há de especialmente errado em matar uma
pessoa. O utilitarista hedonista ainda poderia considerar errado
o assassinato pelo fato de eliminar a felicidade que a vítima teria
experimentado caso tivesse continuado viva. Essa objeção direta
ao assassinato se aplica a todo e qualquer ser com possibilidades
de ter um futuro feliz, independentemente do fato de ser uma
pessoa. Para o que temos em vista aqui, porém, o ponto princi-
pal é que essa razão indireta oferece, de fato, um motivo para
até mesmo o utilitarista hedonista considerar o assassinato de
uma pessoa, em certas condições, mais seriamente do que o
assassinato de um ser que não seja uma pessoa. Se um ser for
incapaz de se conceber existindo ao longo do tempo, não preci-
samos levar em conta a possibilidade de ele se preocupar com a
perspectiva de ver sua existência futura abruptamente interrom-
pida. Não teria como se preocupar com isso, pois não faz ideia
de seu próprio futuro.
Afirmei que o motivo utilitarista hedonista e indireto para
se levar o assassinato de uma pessoa mais a sério do que o assas-
sinato de um ser que não seja uma pessoa se sustenta "em certas
condições". A mais óbvia dessas condições é que o assassinato da
pessoa pode chegar ao conhecimento de outras pessoas, as quais,
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 127

por sua vez, fazem uma avaliação mais sombria de suas possi-
bilidades de viver até a idade madura ou ficam com medo de
serem assassinadas. Claro que é possível que uma pessoa venha
a ser morta em completo segredo, de tal modo que ninguém
venha a saber que um crime foi cometido. Nesse caso, essa razão
indireta e contrária ao assassinato não se aplicaria.
Deve-se, porém, introduzir uma ressalva a essa última
consideração. Nas circunstâncias descritas no parágrafo anterior,
a razão utilitarista indireta e contrária ao assassinato não se aplica-
ria se julgássemos esse caso individual. Há algo a ser dito, porém,
contra a aplicação do utilitarismo - seja o hedonista clássico ou
o preferencial- exclusiva ou basicamente a cada caso individual.
Pode ser que, em longo prazo, cheguemos a melhores resultados
- uma maior felicidade geral- se instarmos com as pessoas para
que não julguem cada ato individual com o critério de utilidade,
mas que, em vez disso, pensem em termos de princípios mais
amplos que venham a abranger todas, ou virtualmente todas,
as situações com as quais se deparem.
Várias razões têm sido oferecidas em defesa dessa aborda-
gem. R. M. Hare sugeriu uma proveitosa distinção entre dois
planos de raciocínio moral: o intuitivo e o crítico. Considerar
as possíveis circunstâncias nas quais se poderia maximizar a
utilidade matando em segredo alguém que deseja continuar
vivendo é raciocinar no plano crítico. As pessoas propensas a
refletir, fazer autocrítica ou filosofar talvez descubram ser útil
e interessante pensar nesses casos incomuns e hipotéticos. Na
vida real, em geral não somos capazes de prever todas as comple-
xidades de nossas escolhas. Simplesmente não é prático tentar
calcular, com antecedência, todas as consequências de todas as
opções que fazemos. Mesmo que nos restringíssemos às opções
mais significativas, haveria o perigo de que, em muitos casos,
fizéssemos esses cálculos complicados em circunstâncias nem
um pouco ideais. Poderíamos estar apressados ou perturbados,
furiosos, magoados ou dominados pelo espírito de competição.
Nossos pensamentos talvez estivessem distorcidos pela ganância,
128 ÉTICA PRÁTICA

pelo desejo sexual ou por ideias de vingança. Nossos interesses


pessoais, ou os interesses das pessoas que amamos, poderiam
estar em jogo. Ou talvez não fôssemos muito aptos a pensar
nessas questões como as consequências possíveis de uma escolha
importante. Hare sugere que, por todos esses motivos, em nossa
vida ética cotidiana é melhor adotarmos alguns princípios éticos
amplos e não nos desviarmos deles. Esses princípios devem
incluir aqueles que, ao longo dos séculos, a experiência mostrou
serem mais propensos a produzir as melhores consequências.
Na opinião de Hare, aí se inserem muitos dos princípios morais
clássicos: por exemplo, dizer a verdade, cumprir as promessas,
não fazer mal a ninguém etc. O respeito pela vida das pessoas
que desejam continuar vivendo estaria entre esses princípios.
Ainda que, no plano crítico, possamos imaginar circunstâncias
nas quais melhores consequências resultariam de ações pratica-
das contra um ou mais desses princípios, em termos gerais será
melhor que as pessoas se prendam a eles do que o contrário.
De acordo com esse ponto de vista, os princípios morais
segundo os quais decidimos viver deveriam ser como as instru-
ções dadas por um bom técnico a um tenista. As instruções
são dadas tendo em vista o que produzirá os melhores resul-
tados a maior parte do tempo: são um guia para que se jogue
o "tênis percentual". Eventualmente, um jogador de fundo de
quadra corre para a rede, consegue um winner e arranca aplau-
sos de todos, mas, se o técnico for realmente bom, desviar-se
das instruções dadas levará quase sempre ao fracasso. Portanto,
para o tenista de fundo, é melhor tirar da cabeça a ideia de
subir até a rede, a não ser, talvez, em circunstâncias muito
bem definidas. Da mesma maneira, se nos guiarmos por um
conjunto de princípios intuitivos bem escolhidos, será melhor se
não tentarmos calcular as consequências de cada opção moral
significativa que precisarmos fazer, mas, em vez disso, conside-
rarmos quais princípios se aplicam à nossa decisão e agirmos em
conformidade com eles. É possível que, muito ocasionalmente,
encontremo-nos em circunstâncias nas quais seja absolutamente
O QUE HA DE ERRADO EM MATAR? 129

claro que, se nos afastarmos dos princípios, teremos um resul-


tado muito melhor do que se nos prendêssemos a eles; então,
esse afastamento seria justificável. Mas, para quase todos nós,
na maior parte do tempo, tais circunstâncias não ocorrerão,
e podemos removê-las de nosso pensamento. Portanto, ainda
que no plano crítico o utilitarista tenha de admitir que sejam
possíveis casos nos quais seria melhor não respeitar o desejo de
alguém de continuar vivendo - porque, por exemplo, a pessoa
em questão poderia ser morta em absoluto segredo, evitando-se,
assim, uma grande quantidade de sofrimento bruto -, esse tipo
de raciocínio não tem lugar no plano intuitivo que deveria guiar
nossas ações cotidianas. É o que, pelo menos, poderia argumen-
tar um utilitarista.
É essa a essência, segundo penso, daquilo que o utilita-
rista hedonista diria sobre a distinção entre matar uma pessoa
e matar outro tipo de ser. O utilitarismo preferencial - a versão
do utilitarismo à qual chegamos ao universalizar nossas próprias
preferências da maneira descrita no primeiro capítulo deste
livro - atribui maior importância à distinção. De acordo com
o utilitarismo preferencial, uma ação contrária à preferência
de qualquer ser será errada, a menos que essa preferência tenha
menos valor que as preferências contrárias. É errado, portanto,
matar uma pessoa que prefira continuar vivendo, mantendo-se
iguais as demais condições. O fato de as vítimas não estarem
por perto depois de cometido o ato para lamentarem que suas
preferências foram ignoradas é irrelevante. O mal é praticado
quando a preferência é frustrada (pense em sua própria prefe-
rência por continuar vivendo. Você não quer vê-la frustrada,
e duvido muito que você se deixe convencer e mude de ideia
só porque, caso seja assassinado, nunca sofrerá pelo fato de sua
vontade de continuar vivendo ter sido frustrada).
Para o utilitarismo preferencial, tirar a vida de uma pessoa
é normalmente pior do que tirar a vida de outro ser, visto que,
em suas preferências, as pessoas orientam-se muito pelo futuro.
Normalmente, portanto, matar uma pessoa significa violar não
130 ÉTICA PRÁTICA

apenas uma preferência, mas uma vasta gama das preferências


mais centrais e significativas que uma pessoa possa ter. Quase
sempre equivale a ignorar tudo aquilo que a vítima tentou fazer
nos últimos dias, meses, ou até mesmo anos. Já os seres que
não conseguem se ver como entidades dotadas de um futuro
não podem ter quaisquer preferências a respeito de sua existên-
cia futura. Não equivale a negar que esses seres pudessem lutar
contra uma situação na qual suas vidas estivessem correndo
perigo, como um peixe luta para se livrar do anzol em sua boca;
indica apenas uma preferência pela cessação de um estado de
coisas que provoca dor e medo. O comportamento de um peixe
fisgado sugere uma razão para não se matar um peixe por esse
método, mas, por si só, não sugere uma razão utilitarista prefe-
rencial para não se matar um peixe por um método que provo-
que morte instantânea, sem antes provocar dor ou sofrimento.
A luta contra a dor e o perigo não sugere que os peixes sejam
capazes de preferir uma existência futura à não existência (mais
uma vez, lembremo-nos de que estamos refletindo sobre o que
há de especialmente errado em matar uma pessoa; não estou
afirmando que não existam razões utilitaristas preferenciais
para não matar seres conscientes que não sejam pessoas. Volta-
remos a essa questão em breve).

Uma pessoa tem direito à vida?


Embora o utilitarismo preferencial realmente ofereça uma
razão direta para não se matar uma pessoa, alguns podem achar
que a razão - mesmo quando ligada às importantes razões
indiretas que qualquer forma de utilitarismo vai levar em
consideração - não é suficientemente convincente. Para o utili-
tarismo preferencial, o mal feito à pessoa assassinada é grave,
mas não necessariamente decisivo. A preferência da vítima por
continuar viva poderia, em alguns casos, ser considerada menos
importante que fortes preferências de outras pessoas. Muitos
acreditam que a proibição de matar pessoas seja mais absoluta
do que sugere qualquer tipo de cálculo utilitário. Sentimos que
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 131

nossas vidas são algo a que temos direito, e direitos não devem
ser permutados pelas preferências ou os prazeres de terceiros.
Não estou convencido de que a ideia de um direito moral
seja útil ou importante, salvo quando usada como uma forma
simbólica de remeter a considerações morais de cunho mais
fundamental, por exemplo, a concepção de que - pelas razões
oferecidas na seção anterior -, em todas as circunstâncias
normais, é melhor tirarmos completamente da cabeça a ideia de
matar pessoas que querem continuar vivas. Não obstante, como
a ideia de que temos um "direito à vida" é bastante popular,
vale a pena perguntar se existem fundamentos para se atribuir o
direito à vida às pessoas, e não a outros seres vivos.
Michael Tooley, um filósofo norte-americano contempo-
râneo, afirmou que os únicos seres que têm direito à vida são
aqueles capazes de se conceber como entidades distintas que
existem no tempo - em outras palavras, como pessoas, o termo
por nós usado. O argumento de Tooley se baseia na afirmação
de que existiria uma ligação conceitual entre os desejos que um
ser é capaz de ter e os direitos que se pode dizer que tenha.
Como diz Tooley:

A intuição básica é que um direito é algo que pode ser violado e


que, em geral, violar o direito de um indivíduo a alguma coisa
é o mesmo que frustrar o desejo correspondente. Suponha, por
exemplo, que você tenha um carro. Tenho, portanto, a obrigação
prima facie de não roubá-lo de você. A obrigação, porém, não é
incondicional: depende, em parte, da existência de um desejo
correspondente de sua parte. Se você não se importar com o fato
de eu roubar seu carro, em termos gerais, eu não estaria violando
seu direito ao fazê-lo.

Tooley admite que é difícil formular com exatidão as


ligações entre direitos e desejos, pois existem casos problemá-
ticos, como o das pessoas que estão dormindo ou temporaria-
mente inconscientes. Ele não quer dizer que essas pessoas não
têm direitos pelo fato de, naquele momento, não terem desejos.
132 ÉTICA PRÁTICA

Não obstante, afirma Tooley, a posse de um direito deve, de


alguma maneira, estar ligada à capacidade de ter os desejos
relevantes, quando não à capacidade de ter os desejos em si.
O passo seguinte consiste em aplicar esse ponto de vista dos
direitos ao caso do direito à vida. Para colocar a questão do jeito
mais simples possível - mais simples ainda do que a proposição
de Tooley e, sem dúvida, com excessiva simplicidade-, se o direi-
to à vida é o direito de continuar existindo como uma entidade
específica, então o desejo relevante de ter direito à vida é o desejo
de continuar existindo como entidade específica. Contudo, so-
mente um ser capaz de se conceber como entidade específica
existindo no tempo - isto é, só uma pessoa - poderia ter seme-
lhante desejo. Portanto, só uma pessoa poderia ter direito à vida.
Foi assim que, pela primeira vez, Tooley formulou seu
ponto de vista num admirável artigo intitulado "Abortion
and lnfanticide" [Aborto e infanticídio], publicado em 1972.
Contudo, o problema de quão precisamente articular as ligações
entre direitos e desejos levou Tooley a modificar sua posição
num livro subsequente, que trazia o mesmo titulo: Abortion and
Injanticide. Nesse livro, ele afirma que um indivíduo não pode,
em nenhum momento - neste exato instante, por exemplo -, ter
direito a uma existência contínua, a menos que se trate de um
indivíduo com características tais que, no momento, possa ser
de seu interesse continuar existindo. Poder-se-ia pensar que isso
constitua uma diferença dramática em relação às consequên-
cias da posição de Tooley, pois, embora um recém-nascido não
pareça capaz de se conceber como uma entidade específica que
existe no tempo, normalmente pensamos que ser salvo da morte
é algo que faz parte dos interesses de um bebê, ainda que a morte
fosse inteiramente sem dor ou sofrimento. Sem dúvida alguma,
fazemos isso em retrospecto. Se minha mãe me contasse que,
quando eu era bebê, meu carrinho quase foi atropelado por um
trem e que só fui salvo porque uma pessoa desconhecida pensou
rápido, eu poderia dizer que essa desconhecida seria minha maior
benfeitora, pois, sem sua presteza de raciocínio, eu jamais teria
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 133

a vida feliz e satisfatória que levo agora. Tooley afirma, porém,


que a atribuição retrospectiva de um interesse em continuar
vivendo ao bebê configura um engano. Não sou o bebê a partir
do qual me desenvolvi. O bebê não tinha condições de desejar
transformar-se no tipo de ser que sou nem mesmo em algum
ser intermediário entre o que agora sou e o bebê que fui. Sequer
consigo lembrar-me de ter sido aquele bebê: não existe nada que
nos ligue mentalmente. A existência contínua não pode estar
entre os interesses de um ser que nunca teve o conceito de um eu
contínuo - isto é, que nunca foi capaz de se conceber existindo
no tempo. Se o trem tivesse matado instantaneamente o bebê,
a morte não teria sido contrária a seus interesses, pois ele jamais
teria o conceito de existir no tempo. É verdade que, então, eu
não estaria vivo, mas posso dizer que estar vivo só faz parte de
meus interesses porque tenho o conceito de um eu contínuo.
De modo igualmente verdadeiro, posso dizer que faz parte de
meus interesses que meus pais se tenham conhecido, pois, se isso
não tivesse ocorrido, jamais teriam criado o embrião a partir
do qual me desenvolvi, e, assim, eu não estaria vivo. Isso não
significa que a criação desse embrião fazia parte dos interesses
de qualquer ser em potencial que estivesse à espreita, esperando
para nascer. Não existia tal ser e, se eu não tivesse nascido, não
teria existido ninguém que lamentasse ter perdido a vida que
tenho o prazer de viver. Da mesma maneira, cometeremos um
erro se, neste momento, atribuirmos um interesse pela vida
futura ao recém-nascido que, nos primeiros dias que se seguem
ao parto, não tem conceito algum de uma existência contínua e
com o qual eu não tenho o menor vínculo mental.
Em seu livro, portanto, Tooley chega- ainda que por linhas
tortas - a uma conclusão que praticamente equivale àquela a
que chegou em seu artigo. Para ter direito à vida é preciso ter
- ou, pelo menos, ter tido em determinada época - o conceito
de uma existência contínua. Veja-se que esse enunciado evita
os problemas relativos ao trato com pessoas adormecidas ou
inconscientes: para que possamos afirmar que a vida contínua
134 ÉTICA PRATICA

talvez esteja entre seus interesses, basta que tenham, em algum


momento, o conceito de existência contínua. Essa afirmação faz
sentido: meu desejo de continuar vivendo - ou de concluir o
livro que estou escrevendo, ou de visitar o Nepal no ano que
vem - não cessa quando deixo de pensar conscientemente
nessas coisas. Quase sempre desejamos coisas sem que o desejo
esteja no primeiro plano de nossas mentes. O fato de termos
o desejo torna-se evidente ao nos lembrarmos dele ou quando,
de repente, nos deparamos com uma situação em que devemos
optar entre dois cursos de ação, um dos quais faz a concretiza-
ção do desejo se tornar menos provável. De modo semelhante,
quando vamos dormir, nossos desejos para o futuro não deixam
de existir. Ainda estarão lá quando acordarmos. Assim como
os desejos ainda são parte de nós, nosso interesse numa vida
contínua ainda é parte de nós enquanto estamos adormecidos
ou inconscientes.

Respeito pela autonomia


Até agora, nossa discussão sobre o erro de matar as pessoas
concentrou-se em sua capacidade de visualizar um futuro e
de ter desejos relativos a esse futuro. Outra implicação de ser
uma pessoa também pode ser relevante para o erro de matar.
Há uma corrente de pensamento ético, ligada a Kant, mas
que inclui muitos autores modernos não kantianos, segundo a
qual o respeito pela autonomia é um princípio moral básico.
Por "autonomia" entende-se a capacidade de escolher e agir de
acordo com suas próprias decisões. Supõe-se que os seres racio-
nais e autoconscientes tenham essa capacidade, enquanto os
seres incapazes de considerar as alternativas que se lhes apresen-
tam não conseguem escolher no sentido que se faz necessário
e, portanto, não podem ser autônomos. Em particular, só um
ser que consiga apreender a diferença entre morrer e continuar
vivendo pode optar autonomamente pela vida. Portanto, matar
uma pessoa que não optou por morrer constitui um desrespeito
à autonomia dessa pessoa; e, como a decisão de viver ou morrer
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 135

diz respeito à mais fundamental das escolhas que alguém pode


fazer, a escolha da qual dependem todas as outras, matar uma
pessoa que não optou por morrer constitui a mais grave violação
possível da autonomia dessa pessoa.
Nem todos concordam que o respeito pela autonomia seja
um princípio moral básico, ou mesmo um princípio moral
que se possa considerar válido. Os utilitaristas não respeitam
a autonomia como uma qualidade em si: como já vimos, ainda
que possam atribuir um grande peso ao desejo que uma pessoa
tem de continuar viva, seja diretamente, como querem os
utilitaristas preferenciais, ou como indício de que, em termos
gerais, a pessoa levava uma vida feliz, como querem os utilita-
ristas hedonistas. Mas um utilitarista não pode dar à autono-
mia a mesma ênfase que lhe dariam aqueles que a respeitam
como princípio moral independente. O utilitarista hedonista
talvez tenha de aceitar que, em alguns casos, seria certo matar
uma pessoa que não optou pela morte, pois, de outra forma,
essa pessoa levaria uma vida miserável. E o utilitarista preferen-
cial talvez tenha de chegar a uma conclusão semelhante se desejos
igualmente fortes de terceiros tenham um peso maior que o
desejo da pessoa de continuar vivendo. Mas isso só é verdadeiro
no plano crítico do raciocínio moral. Como já vimos, os utili-
taristas podem incentivar as pessoas a adotarem, em suas vidas
cotidianas, princípios que, quando seguidos em quase todos os
casos, levarão a melhores consequências do que qualquer ação
alternativa. O respeito pela autonomia seria um exemplo funda-
mental desse tipo de princípio. No capítulo sobre eutanásia,
discutiremos casos concretos que suscitam essa questão.
Talvez seja conveniente reunirmos aqui nossas conclusões
sobre o erro que é tirar a vida de uma pessoa. Vimos que existem
quatro razões possíveis para sustentar que seria particularmente
grave tirar a vida de uma pessoa: a preocupação utilitária e he-
donista com os efeitos do assassinato sobre os outros; a preocu-
pação do utilitarismo preferencial com a frustração dos desejos
e planos futuros da vítima; o argumento de que a capacidade de
136 ÉTICA PRATICA

se conceber existindo no tempo é uma condição necessária para


que se tenha direito à vida; e o respeito pela autonomia. Ainda
que, no plano do raciocínio crítico, um utilitarista hedonista só
aceitasse a primeira razão indireta, e um utilitarista preferencial
só aceitasse as duas primeiras razões, no plano intuitivo, os dois
tipos de utilitaristas provavelmente defenderiam a ideia de direi-
to à vida e também o respeito pela autonomia. A distinção entre
os planos crítico e intuitivo leva, portanto, a um maior grau de
convergência, no plano da tomada cotidiana de decisões morais,
entre os utilitaristas e não utilitaristas do que aquele que en-
contraríamos se só levássemos em consideração o plano de ra-
ciocínio crítico. Seja como for, nenhuma das quatro razões para
se dar proteção especial à vida das pessoas pode ser rejeitada
de imediato. Portanto, precisaremos mantê-las todas em mente
quando nos voltarmos para as questões práticas que envolvam
o assassinato.
Antes disso, porém, ainda precisamos considerar se matar
é errado quando o ser que irá morrer não fizer parte de nossa
espécie nem seja uma pessoa.

Vida consciente
Existem muitos seres que são sencientes e capazes de sentir
dor e prazer, mas que, não sendo também racionais e autocons-
cientes, não são pessoas. Vou referir-me a eles como "seres mera-
mente conscientes". Se muitos animais não humanos pertencem
a essa categoria, o mesmo deve ser dito de bebês recém-nascidos
e de alguns seres humanos com deficiências mentais. Quais de-
les carecem exatamente de autoconsciência é uma questão que
vamos abordar nos capítulos seguintes. Se Tooley tiver razão, não
se poderá dizer que os seres aos quais falta a consciência de si
tenham direito à vida, no sentido pleno da expressão, mas pode-
ria ser errado matá-los por outros motivos. Nesta seção, pergun-
taremos se é errado tirar a vida de um ser meramente consciente
e, se assim for, por quais motivos.
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 137

Matar um ser meramente consciente


A razão mais óbvia para se pensar que seja errado matar um
ser capaz de sentir dor ou prazer seria o motivo que um utilita-
rista hedonista daria: o prazer que esse ser pode experimentar.
Se valorizamos nossos próprios prazeres - os prazeres de comer,
fazer sexo, sentir o calor do sol ou nadar num dia quente -,
então o aspecto universal dos juízos éticos exige que estenda-
mos a avaliação positiva de nossa experiência desses prazeres
às experiências semelhantes de todos aqueles que são capazes
de vivenciá-las. Mas a morte é o fim de todas as experiências
agradáveis. Portanto, o fato de que os seres vão sentir prazer no
futuro é um motivo para se afirmar que seria errado matá-los.
Sem dúvida, um argumento semelhante sobre o sofrimento
aponta a direção oposta, e esse argumento só tem peso, ao voltar-
-se contra o assassinato, quando acreditamos que o prazer que os
seres possam vir a sentir será maior do que o sofrimento de
que possam vir a padecer. Portanto, tudo isso equivale a dizer
que não devemos acabar com uma vida agradável.
Parece bastante simples: valorizamos o prazer; matar aqueles
que levam vidas prazerosas acaba com o prazer que poderiam
ter; portanto, esse assassinato é um erro. Reparem que essa
afirmação extrapola o argumento simples a favor do utilitarismo
preferencial que se fundamenta na universalização de nossas
próprias preferências e foi apresentado no Capítulo 1. O ser
meramente consciente não tem preferência pela vida contínua.
Pode ser que, passando por uma experiência agradável, ele tenha
preferência por fazer essa experiência continuar, ou, passando
por uma experiência dolorosa, ele tenha preferência por fazer
essa experiência cessar, mas não tem preferência alguma para
o futuro distante, e seus desejos não sobrevivem a períodos de
sono ou inconsciência temporária, pois, ao contrário de um ser
autoconsciente, ele não consegue conceber sua própria existên-
cia futura após um período de sono. Assim, se nos preocupar-
mos exclusivamente com a frustração de preferências, no caso
de um ser meramente consciente, a morte sem dor e a aplicação
138 ÉTICA PRÁTICA

de um anestésico parecem equivalentes. Matá-lo não frustrará


mais desejos do que botá-lo para dormir. Ele ainda será capaz de
satisfazer suas preferências quando acordar, mas, de seu ponto
de vista subjetivo, será como se um novo ser, com novas prefe-
rências, passasse a existir. A afirmação de Tooley a respeito dos
recém-nascidos se aplica a todos os seres meramente conscien-
tes: na experiência subjetiva do ser propriamente dito, não há
nenhuma noção de continuidade entre sua vida mental antes de
cair no sono e sua vida mental depois de acordar. É por isso que a
afirmação feita na primeira linha deste parágrafo - "valorizamos
o prazer" - precisa ser compreendida segundo termos que extra-
polam o ponto de partida utilitarista preferencial para a ética.
Ele declara que o prazer é um valor, e, portanto, que existem
coisas de valor, independentemente de um ser preferi-las.
Esse valor específico é fácil de aceitar. Não é óbvio que o
prazer tenha valor positivo, e o sofrimento, um valor negativo?
Jeremy Bentham, o fundador da escola utilitarista, chegou até
mesmo a dizer que as palavras "benefício, vantagem, prazer,
bem ou felicidade" são todas a mesma coisa, e "diz-se que
uma coisa promove o interesse de um indivíduo, ou é favorável
a seus interesses, quando apresenta a tendência de incremen-
tar a somatória de seus prazeres, ou, o que vem a ser a mesma
coisa, diminuir a somatória de seus sofrimentos". Alguns
filósofos pensam que Bentham estava equivocado nesse ponto:
pensam que uma coisa pode ser de meu interesse se for o que
eu mais quero, venha ou não a me causar o maior prazer ou o
menor sofrimento possível. Para defender o ponto de vista de
Bentham, teríamos de considerar o prazer e o sofrimento como
valores objetivos (no caso do sofrimento, um valor objetivo
negativo, ou desvalor), e não fundamentados meramente na
universalização de nossas preferências. Para defender essa
afirmação, precisaríamos explicar a natureza desses valores
objetivos e como chegamos a conhecê-los. Do ponto de vista
filosófico, seriam alegações controversas, mas não necessaria-
mente indefensáveis.
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 139

Vamos supor, portanto, que aceitamos a ideia de que o pra-


zer é objetivamente bom, e o sofrimento é objetivamente ruim,
vamos supor que concordamos com Bentham: dizer que uma
coisa promove o interesse de um indivíduo é dizer que ela tem a
tendência de incrementar a somatória de seus prazeres depois de
subtraídos os sofrimentos. Estamos diante de mais um problema
difícil. Apresentar o argumento segundo os interesses de um in-
divíduo oculta o fato de que existem duas maneiras de reduzir a
quantidade de prazer no mundo: uma delas consiste em elimi-
nar os prazeres da vida de quem leva uma existência agradável; a
outra, em eliminar aqueles que levam uma vida agradável. A pri-
meira resulta em seres que experimentam menos prazer do que
poderiam ter experimentado. Com a segunda, isso não acontece.
O significado disso é que não podemos passar, automaticamente,
da valorização de uma vida agradável, e não de outra que seja de-
sagradável, para a valorização de uma vida agradável em lugar
de vida nenhuma. Pois, como se poderia objetar, o fato de sermos
mortos não nos deixa em pior situação: faz com que deixemos de
existir. E se deixamos de existir, não sentiremos falta do prazer
que teríamos sentido.
É possível que tudo isso pareça sofístico, um exemplo da
capacidade que têm os filósofos acadêmicos de procurar distin-
ções onde não existem diferenças significativas. Por que não,
o leitor talvez pergunte, considerar o assassinato de um ser o
equivalente exato de reduzir os prazeres de um ser vivo a zero?
Um motivo para pensar que talvez exista uma diferença moral-
mente significativa entre as duas maneiras de reduzir a quanti-
dade de prazer no mundo é que pensamos realmente existir
uma diferença moralmente significativa entre as duas manei-
ras análogas de aumentar a quantidade de prazer no mundo,
uma das quais seria aumentar o prazer daqueles que já existem,
a outra em aumentar o número daqueles que vão levar vidas
agradáveis. Se matar aqueles que levam vidas agradáveis é ruim
por causa do prazer que se perde, então pareceria bom aumentar
o número daqueles que levam vidas agradáveis. Um modo de
140 ÉTICA PRÁTICA

fazer isso seria pôr mais crianças no mundo, desde que tivésse-
mos uma expectativa razoável de que levariam vidas agradáveis,
ou criar grandes quantidades de animais em condições que lhes
assegurassem uma existência agradável. Mas seria realmente
bom criar mais prazer pela criação de seres mais satisfeitos?
Parece haver duas abordagens possíveis para essas ques-
tões desconcertantes. A primeira delas consiste, simplesmente,
em admitir que seja bom aumentar a quantidade de prazer no
mundo pelo aumento do número de vidas agradáveis, e que seja
ruim reduzir a quantidade de prazer no mundo pela diminuição
do número de vidas agradáveis. Esse ponto de vista tem a vanta-
gem de ser direto e claramente coerente, mas exige que admita-
mos que, se pudéssemos aumentar o número de seres que levam
vidas agradáveis sem piorar a situação de outros, seria bom que
o fizéssemos. Para saber se essa conclusão incomoda, talvez seja
útil examinar um caso específico. Imagine que um casal esteja
tentando decidir se vai ou não ter filhos. Suponha que, no que
diz respeito à felicidade desse casal, as vantagens e desvantagens
se anulem. Os filhos interfeririam em suas carreiras num mo-
mento crucial de suas vidas profissionais e, pelo menos durante
alguns anos, eles teriam de abrir mão de seu passatempo favori-
to, o excursionismo. Por outro lado, como boa parte dos pais,
eles sabem que ter filhos e vê-los crescer traria alegria e satisfa-
ção. Suponha que, se outras pessoas fossem afetadas, os efeitos
benéficos e nocivos também se anulariam. Por último, suponha
que, já que o casal tenha condições de dar aos filhos uma boa
educação, e que estes vão crescer como cidadãos de um país de-
senvolvido, cujo povo desfruta de um excelente padrão de vida,
é provável que as crianças venham a ter vidas agradáveis. O casal
deveria incluir o provável prazer que seus filhos teriam no futu-
ro entre as razões importantes para tê-los? Duvido que muitos
casais assim procedessem, mas, se aceitarmos essa primeira
abordagem, é o que deveriam fazer.
Chamarei essa abordagem de ponto de vista "total", pois, de
acordo com ela, deveríamos ter como objetivo aumentar a quanti-
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 141

dade total de prazer (rigorosamente falando, o total líquido de


prazer, depois de descontada a quantidade total de sofrimento),
e deveria ser indiferente, para nós, se isso ocorrerá pelo aumento
do prazer dos seres existentes ou do aumento do número dos
seres que existem.
A segunda abordagem consiste em levar em conta somente
os seres que já existem e aqueles que existirão independente-
mente do que façamos- como destacamos ao discutir a concep-
ção da ética como contrato social, seria errado desconsiderar os
interesses das gerações futuras só porque elas não existem no
momento. Podemos chamar essa abordagem de ponto de vista
"da existência prévia", pois diz respeito a seres que já existem, ou
cuja existência já foi determinada antes da decisão que vamos
tomar. Esse ponto de vista nega que haja valor na alternativa de
aumentar o prazer pela criação de novos seres. Condiz melhor
com o juízo intuitivo da maior parte das pessoas, para as quais
(penso eu) os casais não tenham nenhuma obrigação moral de
ter filhos só porque seria provável que estes viessem a ter vidas
agradáveis e ninguém seria adversamente afetado. Mas como
conciliar o ponto de vista da existência prévia com nossas intui-
ções no que diz respeito ao caso contrário, quando um casal
esteja pensando em ter um filho que, talvez pelo fato de herdar
um defeito genético, viesse a levar uma vida totalmente miserá-
vel e a morrer antes de completar dois anos? Acharíamos errado
que, sabendo disso, um casal concebesse tal criança, mas, se
o prazer que uma possível criança venha a experimentar não
constitui uma razão favorável à ideia de trazê-la ao mundo,
por que motivo o sofrimento que uma possível criança venha
a padecer deveria ser uma razão contrária à ideia de trazê-la
ao mundo? O ponto de vista da existência prévia é obrigado a
sustentar que não há nada de errado em trazer ao mundo um
ser miserável ou a explicar a assimetria existente entre casos de
possíveis crianças que provavelmente levarão uma vida agradá-
vel e casos de possíveis crianças que provavelmente levarão uma
vida miserável.
142 ÉTICA PRÁTICA

Negar que seja ruim trazer conscientemente ao mundo


uma criança infeliz é algo que dificilmente pareceria interes-
sante àqueles que adotaram o ponto de vista da existência prévia
desde o começo, pelo fato de este lhes parecer mais condi-
zente com seus juízos intuitivos do que o ponto de vista total.
Contudo, não é fácil encontrar uma explicação convincente
para a assimetria. Talvez o melhor que se possa dizer - mesmo
não sendo muito satisfatório- é que não há nada de diretamente
errado em conceber uma criança que será infeliz, mas que, uma
vez que essa criança exista, e sua vida será tomada apenas pela
infelicidade, deveríamos reduzir a quantidade de sofrimento no
mundo pela eutanásia. Na melhor das hipóteses, isso é parado-
xal, pois implica que não haveria nada de errado em conceber
uma criança mesmo sabendo que, tão logo ela venha a existir,
seria uma obrigação moral matá-la. Além disso, se a eutanásia
for um crime, como de fato é na maioria das sociedades atuais, e
um crime que possa acarretar o encarceramento prolongado de
quem o comete, a pessoa talvez tenha razões avassaladoras para
não matar a criança infeliz tão logo ela venha a existir. Nesse
caso, e de acordo com esse ponto de vista, não há razão para não
conceber uma criança que levaria uma vida miserável, mesmo
quando exista um motivo avassalador para não pôr um fim
a essa vida tão logo a criança exista. Os pais poderiam prever
que a criança que estejam pondo no mundo provavelmente será
infeliz durante várias décadas, e, mesmo assim, de acordo com o
ponto de vista da existência prévia, não fariam nada de errado.
O que nos deixa com as consequências nada intuitivas das
duas abordagens, a total e a da existência prévia. Aonde isso nos
levou em relação à pergunta original, se seria errado abreviar uma
vida agradável? Podemos sustentar que sim, tanto do ponto de
vista total quanto do da existência prévia, mas nossas respostas nos
comprometem com coisas diferentes em cada caso. Só poderemos
adotar a abordagem da existência prévia se admitirmos que não
é errado trazer um ser infeliz ao mundo, ou então se explicarmos
por que isso seria errado, mas não haveria erro em deixar de trazer
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 143

ao mundo um ser cuja vida será agradável. Alternativamente,


podemos adotar a abordagem total, mas, nesse caso, teremos
de admitir que também é bom criar mais seres cujas vidas serão
agradáveis, uma conclusão que tem algumas estranhas implica-
ções práticas. A importância de optar por um ponto de vista ou
outro ficará mais evidente nos capítulos seguintes.

Comparação do valor de vidas diferentes


Se pudermos dar uma resposta afirmativa - ainda que um
tanto incerta - à pergunta "a vida de um ser consciente tem
algum valor?", poderemos também comparar o valor de vidas
diferentes, em níveis diferentes de consciência e autoconsciên-
cia? Não vamos, por certo, tentar atribuir valores numéricos
às vidas de seres diferentes, nem mesmo fazer uma lista hierar-
quizada. O melhor que poderíamos esperar é ter uma ideia dos
princípios que, quando complementados apropriadamente com
informações pormenorizadas sobre as vidas de seres diferentes,
pudessem servir de base para essa lista. Contudo, a questão
principal é saber se podemos aceitar a ideia de hierarquizar o
valor de vidas diferentes.
Alguns dizem que hierarquizar o valor de vidas diferentes
é um procedimento antropocêntrico, ou até mesmo especista.
Alegam que, se assim fizermos, estaremos inevitavelmente nos
colocando no topo, e distribuindo os outros seres mais aparenta-
dos conosco proporcionalmente à semelhança existente entre nós
e eles. Em vez disso, deveríamos dar o mesmo valor a todas as
formas de vida. Aqueles que adotam esse ponto de vista admitem,
por certo, que a vida de uma pessoa pode incluir o estudo da
filosofia, mas que esse estudo não possa fazer parte da vida de
um rato. Mas dizem também que os prazeres da vida de um rato
são tudo que um rato tem: são tão importantes para ele quanto
os prazeres de estudar filosofia para o filósofo mais entusiasta.
Seria especista achar que a vida de um adulto normal de
nossa espécie é mais valiosa do que a vida de um rato adulto
normal? Só seria possível defender esse juízo se encontrássemos
144 ÉTICA PRATICA

um fundamento neutro, um ponto de vista imparcial a partir do


qual pudéssemos fazer a comparação.
A dificuldade de encontrar um fundamento neutro é uma
dificuldade prática muito concreta, mas não estou convencido
de que constitua um problema teórico insolúvel. Eu colocaria
nos seguintes termos a pergunta que precisamos fazer: imagi-
nemos que eu tenha a propriedade especial de me transfor-
mar num animal, de tal modo que, como Puck, em Sonho de
uma noite de verão, possa ser "às vezes um cavalo, às vezes um
cão". Suponhamos também que, quando me transformo num
cavalo, sou realmente um cavalo, com todas as experiências
mentais que só um cavalo é capaz de ter, e que, quando sou um
ser humano, tenho todas as experiências mentais que só um ser
humano é capaz de ter. Façamos, agora, a suposição adicional
de que posso assumir um terceiro estado no qual me lembre,
com exatidão, como era ser um cavalo e como era ser um ser
humano. Como seria esse terceiro estado? Em alguns aspec-
tos - por exemplo, o grau de autoconsciência e racionalidade em
questão-, poderia assemelhar-se mais à existência humana que à
equina, mas não seria uma existência humana em todos os seus
aspectos. Nesse terceiro estado, portanto, eu poderia fazer uma
comparação entre a existência equina e a existência humana.
Suponhamos que eu tivesse a oportunidade de viver uma outra
vida e que pudesse optar pela vida de um cavalo ou de um ser
humano, sendo, em ambos os casos, as vidas em questão tão boas
quanto se possa esperar que as vidas de um cavalo ou de um ser
humano poderiam ser. Na verdade, então, eu estaria tomando
uma decisão entre o valor da vida de um cavalo (para um cavalo)
e o valor da vida de um ser humano (para um ser humano).
Sem dúvida, esse cenário exige que suponhamos um
grande número de coisas que jamais poderiam acontecer e
algumas coisas que exigem muito da imaginação. A coerência
de uma existência em que não se é nem cavalo nem ser humano,
mas guarda-se a lembrança de como era ser ambos, poderia ser
questionada. Não obstante, acho possível entender a ideia de
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 145

tomar uma decisão a partir dessa posição, e tenho quase certeza


de que, a partir dessa posição, algumas formas de vida seriam
consideradas preferíveis a outras.
Se é verdade que podemos entender a escolha entre a existên-
cia como cavalo e a existência como ser humano, então, seja qual
for a escolha feita, podemos entender a ideia de que a vida de um
tipo de animal tem mais valor do que a vida de outro; e, se assim
for, a afirmação de que a vida de todos os seres tem igual valor
é muito frágil. Não podemos defender essa afirmação dizendo
que a vida de qualquer ser é importantíssima para ele, uma vez
que agora aceitamos uma comparação que assume uma postura
mais objetiva- ou, pelo menos, intersubjetiva- e que, portanto,
extrapola o valor da vida de um ser considerado exclusivamente
a partir do ponto de vista desse mesmo ser.
Portanto, não seria necessariamente especismo classificar
hierarquicamente o valor de vidas diferentes. Como faríamos
isso já é outra questão, e não tenho nada de melhor a oferecer
além da reconstrução imaginária de como seria existir como
um tipo diferente de ser. Algumas comparações podem ser
extremamente difíceis. Talvez nos vejamos obrigados a dizer
que não fazemos a menor ideia de qual existência seria melhor,
a de um peixe ou a de uma cobra; mas, até aí, quase nunca nos
vemos forçados a escolher entre matar um peixe ou uma cobra.
Outras comparações poderiam revelar-se menos difíceis. Em
geral, parece que, quanto mais altamente desenvolvida for a
vida mental de um ser, quanto maior seu grau de autocons-
ciência e racionalidade e mais ampla sua gama de experiências
possíveis, mais alguém iria preferir esse tipo de vida caso fosse
escolher entre ela e um nível inferior de consciência. Será que os
utilitaristas conseguem defender essa preferência? Num trecho
famoso, John Stuart Mill tentou fazê-lo:

Poucas criaturas humanas consentiriam em ser transformadas


em qualquer um dos animais inferiores, caso lhes fosse feita
a promessa de viverem plenamente todos os prazeres de um
146 ÉTICA PRATICA

animal; nenhum ser humano inteligente consentiria em se tornar


um idiota, nenhuma pessoa instruída aceitaria ser transformada
num ignorante, nenhuma pessoa sensível e consciente gostaria
de se tornar vil e egoísta, ainda que fossem convencidas de que o
idiota, o ignorante ou o tratante vivem mais satisfeitos com sua
sorte do que elas com as suas [.. .]. É melhor ser um ser humano
insatisfeito do que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates
insatisfeito do que um idiota satisfeito. E, se o idiota ou o porco
tiverem uma opinião diferente, será porque só conhecem seu lado
da questão. A outra parte da comparação conhece os dois lados.

Como foi demonstrado por muitos críticos, esse argumento


é questionável. Sócrates realmente sabia o que significa ser um
idiota? Poderia realmente vivenciar as alegrias dos prazeres
fúteis e das coisas simples, intocado pelo desejo de compreen-
der e melhorar o mundo? Não dá para ter certeza. Contudo,
outro aspecto significativo desse trecho costuma passar quase
despercebido. O argumento de Mill para se preferir a vida de
um ser humano à de um animal (com o qual muitos leitores
modernos se sentiriam bem à vontade) corresponde exatamente
a seu argumento para se preferir a vida de um ser humano
inteligente à de um idiota. Dados o contexto e o modo como
o termo "idiota" costumava ser usado naquela época, parece
provável que, ao usá-lo, ele se referisse ao que hoje chamaríamos
de "deficiente mental". Alguns leitores modernos se sentirão
claramente incomodados com essa nova conclusão; mas, como
o argumento de Mill sugere, não é fácil preferir a vida de um
ser humano à vida de um animal, sem que, ao mesmo tempo, se
dê preferência à vida de um ser humano normal à vida de outro
ser humano que apresente nível intelectual semelhante ao do ser
não humano da primeira comparação.
É difícil conciliar o argumento de Mill com o utilitarismo
hedonista, pois não parece verdadeiro que o ser mais inteligente
tenha necessariamente uma maior capacidade de ser feliz; e,
ainda que admitíssemos que essa capacidade seja maior, o fato,
como reconhece Mill, de ela não se realizar com a mesma
O QUE HÁ DE ERRADO EM MATAR? 147

frequência (o idiota é um ser satisfeito; Sócrates, não) teria de ser


levado em consideração. Um adepto do utilitarismo preferencial
poderia defender melhor o raciocínio de Mill? Isso dependeria
do modo como comparamos preferências diferentes de acordo
com diferentes graus de consciência e autoconsciência. Não
parece impossível que viéssemos a encontrar maneiras de classi-
ficar essas preferências distintas, mas, até o momento, a questão
permanece aberta.
Este capítulo se concentrou no tema de matar seres autocons-
cientes ou meramente conscientes. Sua intenção é fundamentar
as discussões que ainda virão sobre matar animais não humanos,
embriões e fetos, aqueles que desejam morrer e bebês portado-
res de deficiências tão graves que seus pais cogitem ser melhor a
criança morrer. Se existe ou não algo de errado em tirar a vida de
seres não conscientes - árvores ou plantas, por exemplo -, é o que
veremos no Capítulo 10.
5

Tirar a vida: os animais

No capítulo anterior examinamos alguns princípios gerais


concernentes ao valor da vida. Neste e nos dois capítulos seguintes,
vamos tirar daquela discussão algumas conclusões sobre três casos
de morte deliberada que têm sido objeto de um exaltado debate:
o aborto, a eutanásia e o abate de animais. Dos três, o abate de
animais é o que tem provocado menos controvérsia. Ainda assim,
por razões que ficarão claras mais tarde, é impossível defender uma
posição sobre o aborto e a eutanásia sem fazer, primeiro, algumas
reflexões sobre o abate de animais não humanos. Portanto, exami-
naremos essa questão em primeiro lugar.

Um animal não humano pode ser uma pessoa?


Vimos que existem razões para sustentar que tirar a vida de
uma pessoa constitui um erro muito mais grave do que tirar a
vida de um ser que não seja uma pessoa. Isso é verdadeiro quer
aceitemos o utilitarismo preferencial, o argumento de Tooley
sobre o direito à vida ou o princípio do respeito pela autonomia.
Até mesmo um utilitarista hedonista diria que pode haver razões
indiretas pelas quais seria errado matar uma pessoa. Portanto,
ao se discutir o erro de matar animais não humanos, é impor-
tante perguntar se alguns deles seriam pessoas.
Parece estranho chamar um animal de pessoa, mas pode
não ser mais que um sintoma de nosso hábito de manter nossa
espécie extremamente separada das outras. Seja como for,
podemos evitar a estranheza linguística ao reformularmos a
150 ÉTICA PRÁTICA

pergunta de acordo com nossa definição de "pessoa". O que


estamos realmente perguntando é se alguns animais são seres
racionais e autoconscientes, se sabem que são entidades distintas
e que têm um passado e um futuro.
Nos mitos antigos, nos contos e filmes contemporâneos,
nós nos imaginamos capazes de conversar com os animais.
Esse sonho se concretizou, ao menos em parte, em 1976,
quando dois cientistas da Universidade de Nevada, Estados
Unidos, Allen e Beatrice Gardner, desconfiaram que o fracasso
de tentativas anteriores de ensinar os chimpanzés a falar dever-
-se-ia não ao fato de esses animais não possuírem a inteligência
necessária ao uso da linguagem, mas ao fato de não disporem do
aparelho vocal necessário para a reprodução dos sons da lingua-
gem humana. Os Gardner decidiram, então, tratar uma jovem
chimpanzé como se fosse um bebê humano que não tivesse as
cordas vocais. Passaram a se comunicar com ela, e entre si sempre
que ela estava presente, usando a linguagem norte-americana de
sinais, muito utilizada pelos surdos do país.
A técnica funcionou. A chimpanzé, que chamavam de
"Washoe", aprendeu a compreender cerca de 350 sinais diferen-
tes, e a usar corretamente cerca de 150. Juntava os sinais para
formar frases simples e, ao fazê-lo, indicava fortemente que
tinha autoconsciência. Quando lhe mostraram sua própria
imagem num espelho e perguntaram "quem é?", ela respondeu:
"eu, Washoe". Mais tarde, Washoe mudou-se para Ellensburg,
no estado norte-americano de Washington, onde viveria com
outros chimpanzés sob os cuidados de Roger e Deborah Fouts.
Nesse lugar, adotou um bebê chimpanzé e logo começou não
apenas a fazer-lhe sinais, mas também a ensinar-lhe sinais por
iniciativa própria. Por exemplo, tomava-lhe as mãos e fazia com
que ele formasse o sinal para "comida" num contexto apropriado.
Washoe morreu em 2007, aos 42 anos de idade.
Gorilas, bonobos e orangotangos também foram capazes
de aprender a linguagem de sinais, embora ainda se debatam
os limites dessa capacidade. Há mais de trinta anos, Francine
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 151

Patterson se comunica em inglês e por meio de sinais com


Koko, uma gorila das planícies. Hoje, Patterson alega que Koko
tem um vocabulário corrente de mais de quinhentos sinais e
compreende um número ainda maior de palavras faladas em
inglês. Diante de um espelho, Koko costuma fazer caretas ou
examinar os dentes. Chantek, um orangotango, aprendeu a
linguagem de sinais com Lyn Miles. Quando lhe mostraram
a foto de um gorila apontando para o próprio nariz, Chantek
conseguiu imitá-lo, apontando para o seu.
Os primatas hominoides também usam sinais para se referir
a acontecimentos passados ou futuros, com o que demonstram
ter noção de tempo. Os Fouts costumam fazer festas periódicas
para os chimpanzés em Ellensburg. Todos os anos, depois do dia
de Ação de Graças, Roger e Deborah Fouts montam uma árvore
de Natal cheia de enfeites comestíveis. Os chimpanzés usam a
combinação de sinais "árvore doce" para se referir à árvore de
Natal. Em 1989, quando a neve começou a cair pouco depois
do dia de Ação de Graças, mas a árvore ainda não tinha sido
montada, um chimpanzé chamado Tatu perguntou: ''Árvore
doce?". Os Fouts interpretaram esse fato como uma demonstra-
ção não só de que Tatu se lembrava da árvore, mas que também
sabia ser aquela a época do ano em que ela deveria ser montada.
Mais tarde, Tatu também se lembrou de que o aniversário de
um dos chimpanzés, Dar, vinha pouco depois do de Deborah
Fouts. Os chimpanzés ganhavam sorvete em seus aniversários,
e, terminadas as comemorações do aniversário de Deborah,
Tatu perguntou: "Dar, sorvete?".
Suponhamos que, com base nesses indícios, admitamos
que os hominoides capazes de se expressar por sinais tenham
consciência de si. A esse respeito, serão eles excepcionais entre
os animais não humanos pelo fato de conseguirem expressar-se
por meio de uma linguagem? Ou será apenas que a linguagem
dá a esses animais condições de demonstrar uma característica
que eles e outros animais sempre tiveram?
152 ÉTICA PRATICA

Alguns filósofos afirmam que o ato de pensar exige uma


linguagem: não se pode pensar sem formular os próprios pen-
samentos como palavras. O filósofo Stuart Hampshire, de Ox-
ford, escreveu:

A diferença entre um ser humano e um animal está na possi-


bilidade de o ser humano expressar sua intenção e colocar em
palavras sua intenção de fazer isso ou aquilo, em benefício
próprio ou de outros. A diferença não consiste simplesmente em
que um animal não dispõe de meios para comunicar ou regis-
trar para si próprio sua intenção, do que resulta que ninguém
jamais teria como saber qual seria essa intenção. É uma diferença
mais forte, que é mais corretamente expressa como o absurdo de
atribuir intenções a um animal que não dispõe dos meios para
refletir sobre seu comportamento futuro e anunciá-lo para si
próprio e para os outros [...]. Seria absurdo atribuir a um animal
uma memória que diferenciasse a ordem dos acontecimentos
no passado, e seria absurdo atribuir-lhe a expectativa de uma
ordem de acontecimentos no futuro. Ele não tem os conceitos
de ordem, nem quaisquer outros conceitos.

É evidente que Hampshire estava errado ao estabelecer


uma distinção tão abrupta entre os seres humanos e os animais,
pois, como vimos há pouco, os hominoides que se expres-
sam por sinais mostraram que têm, de fato, "a expectativa de
uma ordem de acontecimentos no futuro", algo sobre o qual
Hampshire escreveu antes que os hominoides aprendessem
a usar a linguagem de sinais e, portanto, seu lapso pode ser
perdoável. Suponhamos que o argumento dele fosse reformu-
lado, de modo que se referisse a animais que não aprenderam
a usar uma linguagem, e não a todos os animais. Seria, então,
correto? Se a resposta for afirmativa, nenhum ser que não tenha
uma linguagem poderá ser considerado uma pessoa. É prová-
vel que isso também se aplique a seres humanos jovens tanto
quanto aos animais que não dominam a linguagem de sinais.
Poder-se-ia argumentar que muitas espécies de animais utilizam
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 153

uma linguagem, mas que, simplesmente, sua linguagem não é a


nossa. Sem dúvida, muitos animais sociais dispõem de formas
de se comunicar entre si, sejam elas as melodiosas canções das
jubartes, os zumbidos e assobios dos golfinhos, os gritos de
alerta dos macacos-verdes, que variam de acordo com o preda-
dor avistado, os uivos e latidos dos cães, o canto dos pássaros
ou, até mesmo, a dança das abelhas domésticas quando voltam
para sua colmeia, que transmite às companheiras a distância e
a direção da fonte de alimento de onde as abelhas acabaram de
voltar. Contudo, é duvidoso que, no sentido exigido, alguma
dessas manifestações possa ser vista como linguagem. E, tendo
em vista que a discussão dessa questão nos afastaria muito de
nosso tema, vou presumir que não são linguagens, e examinar
o que podemos aprender com o comportamento não linguístico
dos animais.
O argumento de Hampshire é um exemplo da armadilha
na qual os filósofos de gerações passadas estavam particular-
mente propensos a cair: sem sair de seus gabinetes, chegavam a
conclusões a respeito de um assunto que exige investigação no
mundo real. Não há nada de inteiramente inconcebível no fato
de um ser ter a capacidade de pensamento conceitual sem que
tenha uma linguagem, e existem exemplos de comportamento
animal extraordinariamente difíceis, quando não categorica-
mente impossíveis de serem explicados, a não ser que se parta
do pressuposto de que os animais estão pensando conceitual-
mente. Numa experiência, por exemplo, pesquisadores alemães
apresentaram a uma chimpanzé chamada Júlia duas séries de
cinco recipientes fechados e transparentes. Na extremidade
de uma das séries havia uma caixa com uma banana; a caixa
na extremidade da outra série estava vazia. A caixa que conti-
nha a banana só poderia ser aberta por uma chave com uma
forma específica, o que ficava evidente ao se olhar para a caixa.
Essa chave podia ser vista dentro de outra caixa fechada, e, para
abri-la, Júlia precisava de outra chave com uma forma distinta,
que precisava ser retirada de uma terceira caixa, que só poderia
154 ÉTICA PRATICA

ser aberta com sua própria chave, que estava dentro de uma
quarta caixa fechada. Por fim, diante de Júlia havia duas caixas
iniciais, abertas e contendo, cada uma, uma chave específica.
Júlia foi capaz de escolher a chave inicial correta, com a qual
pôde abrir a caixa seguinte da série que levava, finalmente,
à caixa com a banana. Para fazer isso, ela deve ter raciocinado
de trás para frente, partindo de seu desejo de abrir a caixa com a
banana, passando para a necessidade de ter a chave que abriria
essa caixa, e depois para a chave que abriria a caixa onde estava
a outra chave, e assim por diante. Uma vez que Júlia não tinha
aprendido nenhuma forma de linguagem, seu comportamento
vem provar que os seres desprovidos de linguagem podem
pensar em moldes bastante complexos.
Não é só em experiências de laboratório que o compor-
tamento dos animais aponta para a conclusão de que eles
têm memória do passado e expectativas quanto ao futuro,
que têm consciência de si, que articulam intenções e agem de
modo a concretizá-las. Durante muitos anos, Frans de Waal
e seus colegas observaram chimpanzés que viviam em condi-
ções seminaturais em pouco mais de 8 mil metros quadra-
dos de floresta no Zoológico de Arnhem, Holanda. Tiveram,
muitas vezes, a oportunidade de observar atividades coopera-
tivas que exigiam planejamento. Por exemplo, os chimpanzés
gostavam de subir nas árvores e quebrar os galhos para comer
as folhas. Para impedir a rápida destruição da pequena floresta,
os guardas do zoológico colocaram cercas elétricas ao redor dos
troncos das árvores. Os chimpanzés superaram esse obstáculo
quebrando grandes galhos de árvores mortas (que não tinham
cercas em volta) e arrastando-os até a base de uma árvore viva.
Um chimpanzé, então, segurava o galho seco enquanto outro
subia por ele, passava por cima da cerca e chegava à árvore.
O chimpanzé que chegava à arvore dividia as folhas recolhidas
com o outro que ficara segurando o galho.
De Waal também observou um comportamento delibera-
damente enganador que revela, de modo inequívoco, a existência
TIRARA VIDA: OS ANIMAIS 155

tanto de autoconsciência quanto a percepção da consciência do


outro. Os chimpanzés vivem em grupos nos quais um macho é
a figura dominante e ataca outros machos que querem acasalar
com as fêmeas receptivas. Apesar disso, uma intensa atividade
sexual acontece quando o macho dominante não está olhando.
Em geral, os chimpanzés machos procuram despertar o interesse
sexual das fêmeas sentando-se com as pernas abertas e o pênis
ereto (os homens que se expõem do mesmo modo podem estar
dando continuidade a um comportamento primata que se
tornou socialmente inadequado). Numa dessas ocasiões, um
jovem macho estava seduzindo uma fêmea quando apareceu o
macho dominante. O jovem macho cobriu o pênis com as mãos,
para que o macho dominante não o visse.
Não só filósofos como Hampshire, mas também alguns
cientistas argumentaram que a "viagem no tempo dentro da
mente", a capacidade de imaginar um acontecimento futuro,
é exclusiva dos seres humanos. Como tantas vezes acontece com
as tentativas de traçar linhas divisórias entre os seres humanos e
os animais, essa precisou ser enunciada de maneira muito precisa
para ser minimamente plausível. Quem tem cachorro sabe
que o cão é capaz de prever quando sairá para passear. Diz-se,
portanto, que a capacidade exclusiva dos seres humanos é a de
prever o futuro fora de seu atual conjunto de motivações. Assim,
essa afirmação não é refutada pelo cão que apanha a própria
guia e a deposita aos pés de seu companheiro humano. Diz-se
que o cão se deixa simplesmente dominar por seu desejo de dar
um passeio, e age movido por esse desejo. Os seres humanos, por
outro lado, conseguem fazer planos de acordo com motivações
satisfatórias que não sentem no momento: por exemplo, quando
vamos às compras para garantir que teremos algo para comer
no jantar, embora não estejamos com fome naquele instante.
Muitos animais guardam comida para usá-la no futuro, como
fazem os esquilos, mas é possível demonstrar que isso tem a ver
com uma premeditação consciente, e não com um comporta-
mento puramente instintivo?
156 ÉTICA PRÁTICA

Jane Goodall descreveu um incidente que indica a existência


de planejamento futuro da parte de Figan, um jovem chimpanzé
selvagem da região de Gombe, T anzânia. Com a intenção de
levar os animais mais para perto de seu posto de observação,
Goodall escondera algumas bananas numa árvore.

Um dia, algum tempo depois de o grupo ter sido alimentado,


Figan descobriu uma banana que tinha passado despercebida,
só que Golias [um macho adulto acima de Figan na hierarquia
do grupo] estava descansando exatamente embaixo dela. Depois
de uma rápida olhadela, da fruta para Golias, Figan afastou-se
e foi sentar-se do outro lado da tenda, de modo que não mais
visse a fruta. Quinze minutos depois, quando Golias levantou-se
e afastou-se, Figan, sem um momento de hesitação, dirigiu-se até
a banana e a pegou. É evidente que ele tinha avaliado toda a
situação: se ele tivesse subido atrás da fruta mais cedo, Golias
sem dúvida a teria tirado dele; se tivesse permanecido perto
da banana, provavelmente ficaria olhando para ela de vez em
quando. Os chimpanzés são muito rápidos para perceber e inter-
pretar os movimentos dos olhos de seus companheiros e, desse
modo, é bem possível que Golias acabasse vendo a fruta. Assim,
Figan não só se conteve, privando-se da satisfação imediata de
um desejo, mas também se afastou, de modo a não "entregar
o jogo" ao ficar olhando para a banana.

Durante muitos anos, a observação de Goodall foi consi-


derada anedótica e descartada. Hoje, no entanto, já se observou
comportamento semelhante em porcos, tanto em circunstâncias
naturais quanto em experimentos controlados. A porca que sabe
onde encontrar comida não irá a esse lugar se houver em seu
encalço um porco maior que não saiba onde o alimento está.
Parece que ela sabe que o porco maior acabaria empurrando-a
para um lado e ficando com a comida. Ela aprende a se compor-
tar de maneira a minimizar as chances de outro porco conse-
guir pegar o alimento: por exemplo, a porca só vai até a comida
quando o animal maior se encontra fora de vista ou muito mais
longe do alimento do que ela.
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 157

Outro exemplo de comportamento que demonstra a capaci-


dade de visualizar um momento futuro se encontra nos relatos
de Mathias Osvath, que durante muito tempo observou um
chimpanzé chamado Santino num zoológico sueco. Já faz mais
de uma década que Santino recolhe e guarda pedras. Ele o faz
pela manhã, antes de o zoológico liberar a entrada dos visitan-
tes. Várias horas depois, ele vai até suas pedras, posicionadas
no lado de seu recinto cercado por onde os visitantes chegam,
e passa a jogá-las nos frequentadores. Chegou até mesmo a
descobrir como fazer para detectar, com leves batidas, pontos
onde o concreto do recinto é fino o bastante para que ele possa
quebrá-lo em pedaços de tamanho ideal para os arremessos. Ele
o quebra nesses pontos fracos e acrescenta os fragmentos à sua
coleção de pedras naturais. No inverno, quando o zoológico
fica fechado à visitação, ele não recolhe as pedras. Atirar pedras
não é um comportamento instintivo dos chimpanzés, que dirá,
então, quebrar o concreto. Santino faz todas essas coisas com
tranquilidade, quando não há visitantes por perto e, portanto,
não é possível que esteja dominado pela mesma motivação que
o toma quando fica agitado com a presença dos frequentadores.
Por incrível que pareça, uma demonstração ainda mais
rigorosa da capacidade de um animal de prever seus desejos futuros
vem de experiências não com hominoides ou outros primatas,
mas com uma espécie de gaio californiano. Os cientistas usaram
duas características desses pássaros para preparar um experimento
engenhoso. Da mesma maneira que nós, os gaios armazenam
comida para consumi-la mais tarde. E, também como nós, depois
de se empanturrarem com um tipo de alimento, ficam fartos e
passam a preferir algo diferente. Os pesquisadores ofereceram
pinhões para um grupo desses pássaros, e então permitiram que as
aves armazenassem pinhões ou ração. Antes que tivessem acesso
às suas reservas, os pássaros voltaram a receber pinhões. Depois
de se familiarizarem com essa rotina, os gaios preferiram armaze-
nar ração. No entanto, se recebessem ração nas duas ocasiões, eles
preferiam armazenar pinhões, o que poderia ser explicado pelo
158 ÉTICA PRÁTICA

fato de que, no momento de armazenar o alimento, os pássaros


estavam fartos do que vinham comendo e simplesmente prefe-
riam guardar outro tipo de comida. Contudo, com um outro
grupo de gaios, os pesquisadores variaram a rotina. Dessa vez,
ofereceram aos pássaros um tipo de alimento e permitiram que
o armazenassem, mas, antes que as aves tivessem acesso às suas
reservas, elas foram alimentadas com o outro tipo de comida,
diferente daquele que haviam recebido antes que tivessem a
oportunidade de guardar algo para mais tarde. Esses gaios prefe-
riram armazenar o alimento idêntico ao que haviam acabado
de comer, mesmo estando fartos dele. É difícil enxergar outra
explicação para a diferença no comportamento desses pássaros
que não seja sua capacidade de prever que, antes que pudessem
acessar suas reservas, eles estariam fartos, não da comida que
haviam acabado de ingerir, e sim do outro tipo de alimento;
e que, portanto, prefeririam a comida que não queriam no
momento, mas iriam querer no futuro. Se for esse o caso, os gaios
californianos não só têm exatamente o que Hampshire disse que
as criaturas desprovidas de linguagem não têm, "uma expectativa
de uma ordem de acontecimentos no futuro", como também têm
-o que é mais incrível ainda- desejos que se fundamentam na
percepção de que seus desejos futuros serão diferentes daqueles
que têm no presente.

Matar pessoas não humanas


Imagino que seria melhor concluir, com base nos indícios
apresentados resumidamente até aqui, que alguns animais não
humanos são pessoas, de acordo com a definição que demos
ao termo. Para avaliarmos a importância dessa conclusão, preci-
samos inseri-la no contexto de nossa discussão anterior, durante
a qual argumentei que a única versão defensável da doutrina
da santidade da vida humana era o que poderíamos chamar de
"doutrina da gravidade especial que há no ato de tirar a vida
de uma pessoa". Sugeri que, se a vida humana tem um valor
especial ou um direito especial a ser protegida, ela o tem na medida
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 159

em que a maior parte dos seres humanos é formada por pessoas.


Portanto, se alguns animais também são pessoas, suas vidas
devem ter o mesmo direito especial à proteção. Quer fundamen-
temos essas características morais especiais das vidas das pessoas
humanas no utilitarismo preferencial, no direito à vida origi-
nário de sua capacidade de se ver como entidades contínuas ou
no respeito pela autonomia, esses argumentos também devem
ser aplicados às pessoas não humanas. Somente a razão utili-
tária indireta para não matarmos pessoas - o medo que esses
atos provavelmente despertará em outras pessoas - se aplica
menos prontamente a pessoas não humanas, uma vez que elas
têm menos chances do que as humanas de ficarem sabendo de
assassinatos que aconteceram longe delas. Contudo, essa razão
tampouco se aplica a todos os assassinatos de pessoas humanas,
pois é possível matar de modo que ninguém fique sabendo que
uma pessoa foi morta.
Portanto, devemos rejeitar a doutrina de que matar um
membro de nossa espécie é sempre mais grave que matar um mem-
bro de outra espécie. Alguns membros de outras espécies são
pessoas; alguns membros de nossa espécie não o são. Não há
avaliação objetiva capaz de sustentar o ponto de vista de que é
sempre pior matar membros de nossa espécie que não são pes-
soas do que matar membros de outras espécies que o são. Pelo
contrário, como vimos, há fortes argumentos para pensar que,
por si só, o ato de tirar a vida de pessoas é mais grave do que o
de tirar a vida daqueles que não são pessoas. Assim, parece que
matar um chimpanzé, sendo idênticas as demais condições, é
pior do que matar um ser humano que, devido a uma grave de-
ficiência mental, não é nem jamais será uma pessoa (claro que as
outras condições raramente são idênticas: por exemplo, as atitu-
des dos pais de seres humanos portadores de graves deficiências
mentais são relevantes).
Os primatas hominoides talvez sejam os exemplos mais cla-
ros de pessoas não humanas, mas, como vimos, há indícios de
pensamento voltado para o futuro em várias outras espécies. A
160 ÉTICA PRÁTICA

autoconsciência às vezes é relacionada ao fato de alguém sa-


ber, ao se ver no espelho, que está diante de si mesmo, e não
de outro ser. Coloca-se isso à prova aplicando-se tinta colori-
da a uma parte do animal que pode ser vista apenas diante do
espelho; no caso de um hominoide, por exemplo, seria a testa
(a tinta é aplicada quando o animal está dormindo, para que
nada perceba). Aí entrega-se ao animal um espelho com o
qual já esteja familiarizado. Se ele olhar para o espelho e le-
var a mão ao pontinho de tinta, teremos aí uma indicação de
que ele reconhece a imagem no espelho como sua. Todos os
hominoides passam no teste do espelho, assim como elefantes,
golfinhos e até mesmo as pegas. As pegas são aves da família
dos corvos, assim como os gaios californianos, que, como já
vimos, são capazes de levar em consideração seus desejos fu-
turos. Alex, um papagaio-do-congo que aprendeu um voca-
bulário de cinquenta a cem palavras com lrene Pepperberg,
entendia conceitos como "cor" e "forma", além de "igual" e
"diferente". Ele não fez o teste do espelho, mas o relato meti-
culoso feito por Pepperberg das habilidades e do comporta-
mento de Alex não deixa muitas dúvidas de que ele também
era autoconsciente até certo ponto. As crianças humanas com
menos de um ano de idade geralmente não passam no teste
do espelho, mas, por volta dos dezoito meses, a maioria já
consegue fazê-lo.
Passar no teste do espelho pode demonstrar autoconsciên-
cia, mas não passar não é uma prova de que o animal não tenha
consciência de si. Ao contrário dos hominoides, os macacos não
dão sinais de que são capazes de se reconhecer, embora alguns
deles consigam aprender a usar espelhos para localizar alimentos
que não enxergariam sem isso. Os cães não passaram no teste
do espelho, mas pode ser porque dependem mais do olfato que
da visão. Muitas pessoas que convivem com cães e gatos estão
convictas de que seus animais de estimação têm autoconsciência
e noção de futuro. Se cães e gatos se qualificam como pessoas, os
mamíferos que usamos como alimento não podem estar muito
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 161

atrás. Pensamos que os cães são mais "humanos" que os porcos,


mas já vimos que os porcos conseguem planejar com antecedên-
cia e entender se outro porco sabe ou não onde está a comida.
Estaremos transformando pessoas em toucinho? Além disso,
já que pelo menos algumas aves parecem ser pessoas, deveríamos
também tomar cuidado com a possível exclusão das galinhas.
Em bandos formados por até noventa aves, as galinhas parecem
reconhecer umas às outras como indivíduos e sempre sabem
quem está acima de quem na hierarquia. Também têm a facul-
dade do autocontrole e são capazes de imaginar, no mínimo, o
futuro próximo. Num experimento, as galinhas foram ensina-
das a bicar uma tecla que, passados dois segundos, daria a elas
acesso à comida durante três segundos, ao passo que uma outra
tecla, ao ser bicada, passados seis segundos, daria a elas acesso
à comida durante 22 segundos. As galinhas preferiam esperar a
oportunidade de se alimentar durante mais tempo. Num plano
mais anedótico, muitas pessoas que criam galinhas soltas e as
recolhem à noite, trancando-as num galinheiro, descrevem
como as aves ficam ansiosas para sair de manhã, uma atitude
que sugere expectativa de futuro.
Entre os animais que costumam acabar em nossos pratos,
os peixes talvez pareçam os mais improváveis de se revelarem
pessoas, mas trata-se de uma classe extremamente variada:
existem aproximadamente 28 mil espécies de peixes, número
maior que o das espécies reunidas de todos os outros verte-
brados. Suas habilidades também variam bastante. Em 2003,
o periódico Fish and Fisheries publicou um número especial a
respeito da aprendizagem entre os peixes e, na introdução, eles
eram descritos como animais "de grande inteligência social,
dedicados a estratégias maquiavélicas de manipulação, castigo e
reconciliação [...] e que cooperam para ficar de olho em predado-
res e capturar presas". Não está claro se isso tem a ver com plane-
jamento consciente, mas sabemos que a lenda popular de que os
peixes não se lembram das coisas por mais de três segundos está
muito equivocada: algumas experiências demonstraram que
162 ÉTICA PRATICA

eles conseguem lembrar-se da localização de um buraco numa


rede mesmo depois de passar onze meses longe dela. No caso
dos invertebrados, já se observou o polvo-raiado apanhar cocos
partidos ao meio e descartados pelos turistas e carregá-los por
distâncias consideráveis- o que dificulta bastante a movimen-
tação de um polvo tão pequeno -, para arranjá-los mais tarde
de maneira a oferecerem abrigo. Pelo que sabemos a respeito da
capacidade de aprender dos polvos, não seria exagero interpretar
esse comportamento como indício de que o polvo sabe que preci-
sará de abrigo no futuro e está planejando com antecedência.
É difícil determinar quando outro ser tem consciência de si
mesmo, do passado e do futuro. Se é errado matar uma pessoa
quando podemos evitar essa morte e, havendo dúvidas concre-
tas quanto à condição de pessoa do ser que estamos pensando
em matar, a melhor coisa a fazer seria dar a esse ser o benefício
da dúvida. A regra, aqui, é a mesma que se aplica aos caçado-
res de veados: quando você vê alguma coisa se mexendo no meio
da vegetação e não sabe ao certo se se trata de um veado ou de um
caçador, não atire (podemos pensar que os caçadores não deveriam
atirar em nenhum dos casos, mas a regra é prudente segundo a
ética observada pelos caçadores)! Por essas razões, há que se fazer
objeção à grande parte da matança de animais não humanos.
Naturalmente, talvez o abate seja justificável por motivos de força
maior, mas é algo que precisa de uma justificativa.
Por outro lado, até mesmo no caso dos animais não
humanos dotados de autoconsciência e que, portanto, satisfa-
zem nossa definição de "pessoa", é bem verdade que eles muito
provavelmente não se preocupam tanto com o futuro quanto um
ser humano normal. Gary Varner, em seu livro Personhood and
animais in the two-level utilitarianism ofR. M. H are [A condição
de pessoa e os animais no utilitarismo de dois níveis de R. M.
Hare], argumenta em favor de uma definição mais exigente de
pessoa do que aquela que usei. Na opinião dele, para alguém
ser uma pessoa, é preciso ter uma noção biográfica do eu.
Ele destaca que os seres humanos costumam contar histórias
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 163

a respeito de suas vidas, entretecendo narrativas que reúnem


de onde vieram, onde estão no momento e o que esperam do
futuro. Varner sugere que apenas os seres dotados de uma
linguagem sofisticada têm esse tipo de noção biográfica de suas
próprias vidas, o que significa que apenas os seres humanos a
possuem - mas não todos os seres humanos, porque nem todos
os seres humanos são capazes de desenvolver uma linguagem.
Varner acredita que essa noção biográfica do eu confere a uma
vida uma importância especial que falta às vidas de outros seres.
Alguns animais não humanos, segundo esse ponto de vista, são
"quase pessoas", no sentido de que têm certa autoconsciência,
mas não uma noção biográfica do eu.
Roger Scruton, filósofo britânico, disse que a morte extem-
porânea de um ser humano é uma tragédia porque provavel-
mente existem coisas que ele esperava conseguir e então não será
mais capaz de obter. A morte prematura de uma vaca não é,
nesse sentido, uma tragédia, porque, quer vivam um ano ou dez,
não há nada que as vacas esperem conseguir. Nem mesmo os
hominoides capazes de usar a linguagem de sinais nos contam
seus planos para o futuro distante. Os gaios californianos
guardam comida para o dia seguinte, mas, até onde sabemos,
não embarcam em projetos de longo prazo que só renderão
frutos anos mais tarde (se fosse possível demonstrar que os
esquilos e outros animais que guardam comida para o inverno
o fazem com a previdência consciente de suas necessidades
futuras, teríamos aí um impressionante exemplo em contrário,
mas esse comportamento pode ser instintivo).
Aceitando essas diferenças entre seres humanos normais e
maduros e animais não humanos, poderíamos ver que matar
é errado, não em termos absolutos e na dependência apenas
de determinar se o ser que será abatido é ou não uma pessoa,
e sim como uma questão de grau que depende, entre outras
coisas, da condição de pessoa integral, de quase pessoa ou de
ausência absoluta de autoconsciência do ser que será abatido;
de até que ponto, segundo nossas melhores estimativas, o ser
164 ÉTICA PRÁTICA

tinha desejos voltados para o futuro e o grau de importância


que esses desejos desempenhavam na vida desse ser. O direito
penal pode adotar razoavelmente um ponto de vista diferente,
fundamentando-se no fato de que políticas públicas precisam
de leis que tracem limites nítidos, mas as considerações morais
relevantes sugerem um continuum.

Matar outros animais


Os argumentos contra o assassinato baseados na capacida-
de de alguém se ver como um indivíduo que existe no tempo
aplicam-se a alguns animais não humanos, mas há outros, pre-
sumivelmente, que, embora conscientes, não são pessoas. Supo-
nhamos que existam alguns animais sobre os quais podemos
dizer com confiança que não sejam pessoas nem quase pessoas.
O erro ou acerto de se matar esses animais parece se fundamen-
tar em considerações utilitaristas, pois eles não são autônomos
e - pelo menos se for correta a análise dos direitos feita por
Tooley- não se habilitam ao direito à vida.
Antes de discutirmos a abordagem utilitarista do assassi-
nato em si, devemos ter em mente que uma grande variedade de
razões indiretas estará presente nos cálculos utilitaristas. Muitas
modalidades de abate praticadas com os animais não infligem
morte instantânea, portanto, existe dor no processo de matá-
-los. Também é preciso levar em conta o efeito da morte de um
animal sobre seu companheiro ou companheira, bem como
sobre outros membros de seu grupo social. Em muitas espécies
de aves e no caso de alguns mamíferos, a ligação entre macho
e fêmea dura até o fim de suas vidas. A morte de um membro
do casal provavelmente acarreta sofrimentos, além da sensa-
ção de perda e tristeza de parte do sobrevivente. Nos mamífe-
ros, a relação entre mãe e filho pode ser uma fonte de intenso
sofrimento sempre que um deles for morto ou levado embora
(os criadores de gado leiteiro estão sempre separando os bezer-
ros ainda muito novos de suas mães, para que o leite possa se
destinar ao consumo humano; quem já viveu numa fazenda de
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 165

criação de gado leiteiro sabe que, ainda muitos dias depois de os


bezerros serem levados, as vacas continuam chamando por eles).
Em algumas espécies, a morte de um animal pode ser sentida
por um grupo maior, como sugere o comportamento de lobos
e elefantes. Todos esses fatores levariam o utilitarista a se opor
fortemente ao abate de alguns animais, sejam eles pessoas ou não.
Esses fatores, porém, não constituiriam razões para alguém se
opor ao abate em si, fora a dor e o sofrimento que ele possa causar.
É complicado decidir qual seria o veredito utilitarista correto
sobre a morte deliberada, sem dor e que não resulte em perdas
para os outros, pois isso depende tanto do modo como escolhe-
mos entre as duas versões do utilitarismo esboçadas no capítulo
anterior - ou seja, os pontos de vista total ou da existência prévia
- quanto do fato de sermos utilitaristas hedonistas ou preferen-
ciais. Começarei supondo que somos utilitaristas hedonistas, pois
isso simplifica a discussão das diferenças entre os pontos de vista
total e da existência prévia, e só posteriormente vou considerar
qual seria o efeito da adoção do utilitarismo preferencial.
Segundo o ponto de vista "da existência prévia", é errado
matar qualquer ser cuja vida provavelmente tenha ou possa vir a
ter mais prazer que sofrimento. Esse ponto de vista implica que
normalmente é errado matar animais para que sirvam de ali-
mento, já que geralmente é possível argumentar que esses ani-
mais teriam experimentado alguns meses ou anos agradáveis
antes de morrerem, algo que nosso prazer ao comê-los não teria
como superar. Por outro lado, o ponto de vista total pode levar
a um resultado diferente. Em Social Rights and Duties [Direitos
e deveres sociais], uma coletânea de ensaios e palestras publicada
em 1896, Leslie Stephen, ensaísta britânico e pai da escritora
Virgínia Woolf, escreveu:

Entre todos os argumentos favoráveis ao vegetarianismo,


nenhum é tão fraco quanto o da benevolência. O mais interessado
na procura por toucinho é o porco. Se o mundo fosse habitado
exclusivamente por judeus, não existiria um único porco.
166 ÉTICA PRÁTICA

Segundo o argumento de Stephen, ainda que os consumi-


dores de carne sejam responsáveis pela morte do animal que co-
mem e pela perda de prazer imposta a esse animal, eles são
também responsáveis pela criação de mais animais, pois, se nin-
guém comesse carne, ninguém mais criaria animais para o aba-
te. Portanto, a perda que aqueles que comem carne infligem a
um animal é compensada pelo benefício que conferem a outro.
O argumento é ressuscitado periodicamente por quem tenta de-
fender o consumo de carne: no século XXI, por exemplo, por
Michael Pollan em seu bem-sucedido The omnivore's dilemma
[O dilema do onívoro], e também pelo chefbritânico e autor de
livros sobre comida Hugh Fearnley-Whittingstall. Podemos
chamá-lo de "argumento da substituibilidade", pois pressupõe
que, se matarmos um animal, poderemos substituí-lo por outro,
desde que esse outro leve uma vida tão agradável quanto aquela
que o animal abatido viveria se lhe tivessem permitido vivê-la.
Os utilitaristas hedonistas que aceitam o ponto de vista total são
obrigados a concordar com esse argumento, pois essa versão do
utilitarismo só considera os seres sencientes valiosos na medida
em que possibilitam a existência de experiências intrinsecamen-
te valiosas, como o prazer. É como se os seres sencientes fossem
receptáculos de alguma coisa valiosa- e pouco importa que um
receptáculo venha a se quebrar, desde que exista outro para o
qual o conteúdo possa ser transferido sem que se perca nada
(essa metáfora, porém, não deve ser levada muito a sério: ao con-
trário de líquidos preciosos, o prazer e outras experiências não
podem existir independentemente de um ser consciente; assim,
mesmo de acordo com o ponto de vista total, não se pode pro-
priamente considerar os seres sencientes meros receptáculos).
A primeira coisa a destacar no argumento da substituibilida-
de é que, mesmo sendo válido quando o animal em questão tem
uma vida agradável, ele não justificaria a ingestão da carne dos
animais criados nas modernas fazendas industriais, onde ficam
tão amontoados e têm seus movimentos tão limitados a ponto de
suas vidas parecerem, para eles, muito mais um fardo que um
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 167

benefício. Pollan e Fearnley-Whittingstall sabem disso. Eles con-


denam manifestadamente as fazendas industriais e recomendam
que não compremos o que for produzido nesses locais.
Uma segunda coisa seria: se é bom criar vidas felizes, supõe-
-se também ser bom que exista o maior número possível de seres
felizes em nosso planeta. Os defensores da ingestão de carne
devem torcer para encontrar uma justificativa para o fato de ser
melhor existirem pessoas felizes, e não simplesmente o maior
número possível de seres felizes, pois, de outro modo, o argu-
mento implicará que devemos eliminar quase todos os seres hu-
manos para dar lugar a uma quantidade muito maior de animais
menores e felizes que poderiam substituí-los de maneira susten-
tável. Contudo, se os defensores da ingestão de carne apresenta-
rem um motivo para se preferir a criação de pessoas felizes à
criação de ratos felizes, por exemplo, então seu argumento não
sustentará absolutamente a ingestão de carne. Pois, com a exce-
ção de algumas regiões que só servem para pastagem, a superfí-
cie de nosso globo poderá prover a subsistência de mais pessoas
se nos dedicarmos à agricultura, e não à criação de animais.
Uma terceira coisa seria que, se a substituibilidade vale para
os animais, também deve valer para seres humanos de nível
mental semelhante. Suponhamos que, toda vez que nascesse
uma criança, os pais tivessem a opção de criar um clone de seu
filho ou filha para desempenhar, posteriormente, o papel de
doador de órgãos. Os clones se desenvolvem em úteros artificiais
e são criados longe de outros seres humanos, para que os pais
não se apeguem e acabem relutando em remover os órgãos do
clone. Ainda na forma embrionária, os clones são geneticamente
modificados para que suas faculdades mentais nunca se desen-
volvam mais do que seria esperado de um bebê humano. Intelec-
tualmente incapazes de compreender sua sina, eles levariam
vidas semelhantes às de bebês felizes e bem cuidados até chegar
o momento de ser abatidos ... de maneira humanitária, obvia-
mente. Seus corações e outros órgãos são usados para prolongar
168 ÉTICA PRATICA

as vidas das crianças - agora adultas, provavelmente - a partir


das quais foram clonados. Os receptores pagam pelos órgãos,
e a renda obtida possibilita a criação de novos clones para a
próxima geração de bebês. Suponhamos que uma denomina-
ção religiosa - o budismo, por exemplo - que faça objeção a
essa prática se recuse a utilizar os clones e nos recomende acatar
a ideia de levarmos uma vida de duração natural, algo que os
budistas enxergam como uma alternativa ética preferível à
de usar órgãos de clones para prolongar nossas vidas. A isso,
um Leslie Stephen moderno talvez respondesse: "De todos os
argumentos favoráveis à duração natural da vida, nenhum é tão
fraco quanto o da benevolência. O mais interessado na procura
por órgãos é o clone. Se o mundo fosse habitado exclusivamente
por budistas, não existiria um único clone". Visto que, anterior-
mente, rejeitamos o especismo, não é fácil imaginar como
poderemos usar o argumento da substituibilidade para defender
o consumo de carne sem também aceitá-lo como defesa dessa
forma de banco de órgãos.
Essas três coisas certamente enfraquecem o argumento da
substituibilidade como defesa da ingestão de carne, mas não
chegam ao ponto principal do problema. Alguns seres sencien-
tes serão realmente substituíveis? O ponto de vista total e o
argumento da substituibilidade já foram amplamente critica-
dos, mas nenhum dos críticos ofereceu soluções satisfatórias aos
problemas subjacentes, aos quais essas posturas oferecem uma
resposta consistente, mesmo que não muito apropriada.
Henry Salt, um vegetariano inglês do século XIX que
escreveu um livro chamado Animais' Rights [Os direitos dos
animais], achava que o argumento se fundamentava num
simples erro filosófico:

A falácia está na confusão de raciocínio que tenta comparar


a existência com a não existência. Uma pessoa que já está em
existência pode sentir que é melhor ter do que não ter vivido,
mas, primeiro, é preciso que disponha da terra firma da existência
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 169

onde vai buscar sua argumentação: quando começa a argumentar


como se o fizesse a partir do abismo da não existência, pronuncia
absurdos, fazendo afirmações sobre o bem e o mal, a felicidade ou
a infelicidade, aquilo a respeito do qual nada podemos afirmar.

Salt afirma que o filósofo romano Lucrécio, que viveu no


século 1 a.C, refutou o "sofisma vulgar" de Stephen no seguinte
trecho de De rerum natura:

Que perda seria a nossa, se não tivéssemos nascido?


Possam os homens vivos aspirar a uma vida mais longa
Enquanto uma terna afeição ligar seus corações à Terra:
Mas o que desconhece o sabor da vontade de viver,
Não nascido e impessoal, da vida não sentirá falta alguma.

Quando escrevi a primeira edição de Animal liberation,


eu aceitava o ponto de vista de Salt. Achava absurdo falar como
se o fato de trazer um ser à vida fosse como a concessão de
um favor, visto que, quando se concede esse favor, não existe
ser algum. Mas, a esse respeito, mudei de ideia. Como vimos
no capítulo anterior, parece que realmente praticamos um ato
nocivo sempre que, conscientemente, damos vida a um ser
infeliz; se assim for, é difícil explicar por que não praticamos um
ato bom quando, conscientemente, damos vida a um ser feliz.
Derek Parfit descreveu outra situação hipotética que
equivale a uma defesa ainda mais forte do ponto de vista da
substituibilidade. Ele nos pede para imaginarmos que duas
mulheres estão planejando ter um filho. A primeira já está no
terceiro mês de gravidez quando seu médico lhe dá uma boa
e uma má notícia. A má notícia é a de que o feto que ela traz
consigo tem um defeito que vai reduzir significativamente a
qualidade de vida da futura criança, ainda que não chegue ao
ponto de fazer com que ela seja completamente infeliz, nem que
não valha a pena viver essa vida. A boa notícia é a de que o
defeito em questão é facilmente tratável. Tudo que a mulher tem
de fazer é tomar uma pílula que não apresenta efeitos colaterais,
170 ÉTICA PRÁTICA

e a futura criança estará livre do defeito. Como Parfit sugere,


muito plausivelmente, nessa situação todos concordaríamos que
a mulher deve tomar a pílula, e que estará agindo mal se se
recusar a fazê-lo.
A segunda mulher procura seu médico antes de engravidar,
quando está prestes a parar de usar anticoncepcionais, e também
recebe uma boa e uma má notícia. A má notícia é a de que seu
estado de saúde é tal que, se ela conceber uma criança nos próxi-
mos três meses, a criança terá o mesmo defeito que o filho da
primeira mulher terá se não tomar a pílula. O defeito não é tratá-
vel, mas a boa notícia é a de que o estado de saúde da mulher é
temporário. Se ela esperar três meses para engravidar, seu filho
nascerá sem o defeito. Como Parfit sugere, nesse caso também
concordaríamos que a mulher deve esperar os três meses antes
de ficar grávida, e que estará agindo mal se não o fizer.
Suponhamos que a primeira mulher não tome a pílula,
que a segunda mulher não espere os três meses antes de engra-
vidar, e que, em decorrência disso, seus respectivos filhos
nasçam com uma deficiência significativa. Pareceria que ambas
fizeram uma coisa errada. Seus erros são de igual magnitude?
Se admitirmos que, para a segunda mulher, não teria sido mais
difícil esperar os três meses antes de engravidar do que teria
sido, para a primeira, tomar a pílula, ficamos com a impressão
de que a resposta seria afirmativa, ou seja, ambas fizeram uma
coisa igualmente errada. Mas examinemos, agora, as implica-
ções de tal resposta. A primeira mulher prejudicou seu filho.
Essa criança pode dizer-lhe: "Você deveria ter tomado a pílula.
Se o tivesse feito, hoje eu não teria esta deficiência, e minha vida
seria significativamente melhor". Mas, se o filho da segunda
mulher tentar fazer a mesma afirmação, a mãe poderá respon-
der: "Se eu tivesse esperado três meses para engravidar, você
jamais teria existido. Eu teria gerado outra criança, de um óvulo
e de um esperma diferentes. Sua vida, mesmo com sua deficiên-
cia, vale a pena ser vivida. Você nunca teve a oportunidade
de existir sem a deficiência. Portanto, não lhe fiz mal algum".
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 171

Essa resposta parece constituir uma defesa consumada diante


da acusação de que a mulher fez mal à criança que agora existe.
Se, apesar disso, insistirmos em nossa crença de que, da parte da
mulher, foi um erro não adiar a gravidez, onde está o erro? Não
pode estar no fato de ter trazido à existência a criança que deu
à luz, pois essa criança tem uma qualidade de vida adequada.
Poderia estar em não trazer à vida um possível ser? Para sermos
mais precisos, em não trazer à vida a criança que teria se tivesse
esperado três meses? Se explicarmos dessa maneira o erro na
decisão da segunda mulher, rejeitaremos o ponto de vista da
existência prévia em favor do ponto de vista total, ou de algo
bem próximo disso. Também damos mais um passo na direção
de aceitar a substituibilidade, pois nossa explicação implica que
devemos ponderar os interesses dos seres que viriam a existir se
escolhêssemos trazê-los à vida.
Já que algumas pessoas não sabem ao certo o que dizer a
respeito do caso das duas mulheres - particularmente se as duas
atitudes são ou não igualmente erradas-, acrescentarei mais um
exemplo, adaptando um caso que Parfit chama de "Depleção",
de modo a lembrar bastante a decisão que as nações desenvolvi-
das enfrentam hoje em relação ao que fazer sobre as mudanças
climáticas. Poderíamos continuar usando a energia mais barata
disponível para oferecer a nós mesmos, nossos filhos e talvez
nossos netos um padrão de vida mais elevado. Nas discussões
sobre políticas climáticas, muitas vezes se dá a isso o nome de
"segue tudo como sempre". Se fizermos isso, porém, o aque-
cimento do planeta deixará, em algum momento do próximo
século, as coisas muito piores para as gerações futuras, permane-
cendo bem ruins durante vários séculos - embora devamos pre-
sumir, no âmbito desta discussão, que não serão tão ruins a
ponto de as pessoas dos séculos ainda por vir não terem mais
vidas que valham a pena ser vividas. Por outro lado, poderíamos
adotar a política da chamada "sustentabilidade": interrupção
imediata do uso de combustíveis fósseis, alterações significativas
no estilo de vida, indústrias diferentes, menos viagens, menos
172 ÉTICA PRATICA

carne e muitas outras mudanças. Nós, nossos filhos e talvez nos-


sos netos viveríamos ligeiramente pior com a política de susten-
tabilidade, em comparação com a do "segue tudo como sempre",
mas as gerações de um futuro mais distante viveriam, durante
muitos séculos, bem melhor. No cômputo geral, se considerar-
mos o bem-estar de cada geração, inclusive o da nossa, até onde
nos é dado ver, a sustentabilidade produz consequências muito
melhores que o "segue tudo como sempre". Mas, imaginemos
que somos egoístas e não nos importamos muito com as gera-
ções futuras que virão depois de nossos netos: decidimos optar
pela política do "segue tudo como sempre".
Fizemos algo errado? Certamente fizemos, mas quem foi
que prejudicamos? Pode parecer que prejudicamos as pessoas que
viverão em séculos ainda por vir, porque elas terão vidas menos
satisfatórias do que teriam caso tivéssemos optado pela susten-
tabilidade. Mas essa resposta não contempla o fato de que nossa
opção por uma ou outra política produzirá efeitos tão difundidos
que também mexerá com quem conhece quem e quem tem filhos
com quem. Por exemplo, as pessoas viajarão menos e, portanto,
conhecerão pessoas diferentes. Novas indústrias se desenvolverão
em regiões diferentes do país, e as pessoas se mudarão para lá em
busca de emprego. As pessoas que somos dependem de quem
foram nossos pais: se meus pais nunca se tivessem conhecido,
eu não existiria. Meu pai e minha mãe provavelmente teriam
outros filhos, com outros parceiros, e nenhum desses filhos seria
eu. Portanto, se optarmos pela política do "segue tudo como
sempre", poderemo-nos antecipar a toda e qualquer queixa das
pessoas do século xxm deixando-lhes um documento para
explicar que, se tivéssemos optado pela sustentabilidade, elas não
viveriam melhor: simplesmente não existiriam. Além disso, se
suas vidas não são tão ruins a ponto de não valer a pena vivê-las,
existir ainda é melhor que não existir.
O que há de errado com essa justificativa para o "segue tudo
como sempre"? Segundo o ponto de vista da existência prévia,
é difícil localizar o que poderia estar errado. Essa abordagem nos
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 173

manda fazer aquilo que é melhor para as pessoas que já existem


ou que virão a existir de um modo ou de outro, e é isso que
teremos adotando o "segue tudo como sempre". As pessoas
que levarão a pior porque continuamos "como sempre" serão
aquelas que não existiriam se tivéssemos optado pela susten-
tabilidade. O exemplo mostra que o foco exclusivo nas pessoas
que já existem ou virão a existir de qualquer maneira deixa
de fora algo crucial para a ética dessa decisão. Nós podemos
e devemos comparar as vidas daqueles que virão a existir com
as vidas daqueles que poderiam existir se tivéssemos agido de
maneira diferente. Contrariando Salt, podemos e devemos
"argumentar como se o [fizéssemos] a partir do abismo da não
existência". Só poderemos condenar a decisão de continuar com
a política do "segue tudo como sempre" se levarmos em consi-
deração o fato de que, se mudarmos para a sustentabilidade,
as vidas daqueles que ainda virão a existir serão muito melho-
res que as vidas daqueles que virão a existir com a adoção da
política do "segue tudo como sempre". Há que se admitir que
as pessoas pelo bem das quais deveríamos mudar para a susten-
tabilidade continuarão, nas palavras de Lucrécio, "não nascidas,
impessoais", a menos que optemos por mudar. Sem que nunca
tenham experimentado a "vontade de viver", não "sentirão falta
alguma" da vida. Contudo, a qualidade das vidas que levariam
é inescapavelmente relevante para nossa decisão.
Se devemos, por conseguinte, ao tomarmos decisões éticas,
pelo menos de quando em quando levar em consideração como
afetaríamos as vidas de pessoas cuja existência, no momento em
que tomamos nossa decisão, é incerta, precisamos perguntar:
no processo que vai de pessoas que poderíamos trazer à vida a
pessoas que de fato existem, em qual estágio a substituibilidade
deixa de se aplicar? Qual característica faz a diferença?
Nesse caso, há uma diferença entre o utilitarismo prefe-
rencial e o utilitarismo hedonista. Os utilitaristas preferenciais
sabem distinguir entre indivíduos autoconscientes que levam
suas próprias vidas e querem continuar vivendo e aqueles que
174 ÉTICA PRÁTICA

não têm preferências voltadas para o futuro. Eles concorda-


riam com a alegação de Lucrécio de que existe uma diferença
entre matar seres vivos que "aspiram a uma vida mais longa" e
deixar de gerar um ser que, não nascido e impessoal, não possa
sentir a perda da vida. Que dizer, porém, dos seres que, apesar
de vivos, não podem aspirar a uma vida mais longa, pois lhes
falta a concepção de si próprios enquanto seres vivos dotados de
um futuro? Em certo sentido, trata-se de seres também "impes-
soais". Poderíamos dizer que não lhes estamos fazendo mal
algum, o que um utilitarista preferencial poderia entender como
indicação de que, pelo fato de esses seres não terem preferências
voltadas para o futuro, não estaremos contrariando nenhuma de
suas preferências se os matarmos instantaneamente e sem dor.
Assim, é possível que a capacidade de se imaginar existindo no
tempo e, portanto, de aspirar a uma vida mais longa (bem como
a de ter outros interesses não passageiros, voltados para o futuro)
seja a característica que distingue os seres que não podem ser
considerados substituíveis.
Essa conclusão está em harmonia com os pontos de vista
de Tooley a respeito do que significa ter um direito à vida. Para
um adepto do utilitarismo preferencial, mais preocupado com a
satisfação de preferências do que com experimentar o sofrimento
ou a felicidade, há uma harmonia semelhante no caso da distin-
ção já estabelecida entre matar seres racionais e autoconscientes
e matar aqueles que não têm essas características. Os seres racio-
nais e autoconscientes são indivíduos, levam suas próprias vidas
e não podem, em sentido algum, ser vistos como meros recep-
táculos capazes de conter certa quantidade de felicidade. Por
outro lado, os seres que são conscientes, mas não conscientes de
si mesmos, aproximam-se mais da imagem de receptáculos para
as experiências de prazer e sofrimento, pois suas preferências
serão de um tipo mais imediato. Diante dos indícios que acaba-
mos de recapitular, não é fácil afirmar com toda a certeza quais
animais seriam conscientes, embora não autoconscientes, mas
é razoável supor que alguns se encaixam nessa categoria. Não
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 175

terão desejos que projetem no futuro as imagens que fazem de


sua própria existência. Seus estados conscientes não se conectam
interiormente ao longo do tempo. Se ficarem inconscientes- por
exemplo, ao adormecer -, então, antes da perda de consciência,
não terão expectativas nem desejarão nada que possa acontecer
subsequentemente. Se recuperarem a consciência, desconhece-
rão o fato de terem tido uma existência anterior. Portanto, se
fossem mortos enquanto ainda inconscientes e substituídos por
outros membros de sua espécie em igual número, animais que
só serão criados se o primeiro grupo for morto, não haveria, em
sua percepção, nenhuma diferença entre essa situação e a perda
e recuperação da consciência pelos mesmíssimos animais.
Para um ser meramente consciente, a morte é a interrupção
das experiências, quase da mesma maneira que o nascimento
é o início das experiências. A morte não pode ser contrária a
um interesse pela continuidade da vida, assim como o nasci-
mento não pode estar de acordo com um interesse em começar
a viver. Nessa medida, no caso de seres meramente conscientes,
o nascimento e a morte anulam-se mutuamente, enquanto no
caso dos seres autoconscientes, o fato de um deles talvez desejar
continuar vivendo implica que a morte infligirá uma perda que
não encontrará compensação suficiente no nascimento de outro.
O teste de universalizabilidade corrobora esse ponto de vis-
ta. Se eu me imaginar ora como um ser autoconsciente, ora
como um ser meramente consciente, só no primeiro caso pode-
rei ter desejos futuros que extrapolem os períodos de sono ou de
inconsciência temporária: por exemplo, o desejo de concluir
meus estudos, de ter filhos ou, simplesmente, de continuar vi-
vendo, além dos desejos de satisfação ou prazer imediatos, ou de
me livrar de situações dolorosas ou angustiantes. Portanto, é só
no primeiro caso que minha morte implica uma perda maior do
que uma mera perda temporária da consciência, não sendo ade-
quadamente compensada pela criação de um ser dotado de pers-
pectivas semelhantes de experiências prazerosas.
176 ÉTICA PRATICA

Ao resenhar a primeira edição deste livro, H. L. A. Hart,


uma personalidade importante da filosofia do direito no século
xx, sugeriu que, para um utilitarista, os seres autoconscientes
devem ser substituíveis exatamente do mesmo modo que o são
os seres que não têm consciência de si. Segundo a concepção
de Hart, o fato de alguém ser adepto deste ou daquele tipo de
utilitarismo não faz diferença alguma, pois

[...] o utilitarismo preferencial é, afinal, uma forma de maximi-


zação do utilitarismo: ele determina que a satisfação geral das
preferências de diferentes pessoas seja maximizada, assim como
o utilitarismo clássico estabelece que a felicidade geral experi-
mentada seja maximizada [...]. Se as preferências, inclusive o
desejo de viver, podem ter sua importância diminuída pelas
preferências dos outros, por que não podem ter sua importância
diminuída por novas preferências criadas para substituí-las?

Não há dúvida de que o utilitarismo preferencial é uma


forma de maximizar o utilitarismo, no sentido que nos leva a
maximizar a satisfação das preferências, mas isso não significa
que devamos considerar a frustração das preferências existentes
como algo que possa ter sua importância diminuída pela criação
de novas preferências - nos seres que já existem ou nos seres que
ainda vamos trazer à vida - que serão satisfeitas em seguida.
Pois, apesar de a satisfação de uma preferência existente ser uma
coisa boa, a maneira como deveríamos avaliar o "pacote" que
engloba a criação e a posterior satisfação de uma preferência é
uma questão muito diferente. Se eu me colocar no lugar de ou-
tra pessoa com uma preferência insatisfeita e me perguntar se,
sendo idênticas as demais condições, eu desejo que essa prefe-
rência seja satisfeita, a resposta será obviamente que sim, pois
essa é a definição de preferência insatisfeita. Mas, se perguntar a
mim mesmo se desejo que se crie uma nova preferência que pos-
sa então ser satisfeita, pode ser que eu responda que dependerá
da preferência. Se eu pensar num caso em que a satisfação da
preferência seja extremamente agradável, posso dizer que sim.
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 177

Sabendo que comeremos muito bem no jantar, podemos dar


um passeio para abrir o apetite; as pessoas consomem todo tipo
de afrodisíacos para estimular o desejo sexual quando sabem
que as condições para a satisfação desse desejo são propícias.
Nesses casos, a criação do novo desejo gera mais prazer, e a
maioria das pessoas prefere ter mais prazer; portanto, a criação
do novo desejo é uma maneira de obter algo que desejo de um
jeito ou de outro. Se, por outro lado, eu pensar na criação de
uma preferência que se assemelha mais a uma privação, minha
resposta será negativa: não a quero, mesmo que eu seja capaz de
satisfazê-la. Não nos forçamos deliberadamente a sentir sede só
porque sabemos que haverá água em abundância para saciá-la.
Isso sugere que a criação e a satisfação de uma preferência não
são, por si só, coisas boas ou más: nossa reação à ideia da criação
e da satisfação de uma preferência varia conforme o caráter de-
sejável ou indesejável, no que concerne a outras preferências
de longa data que possamos ter, da experiência em sua totalida-
de. Do contrário, não há por que criar um desejo novo só para
que possamos satisfazê-lo.
De maneira condizente com essa conclusão, poderíamos
pensar na criação de uma preferência não satisfeita como o
lançamento de um débito numa espécie de livro-caixa moral, um
débito que seja simplesmente cancelado pela satisfação da prefe-
rência. Esse modelo de "débito" para a importância ética das
preferências tem a vantagem de explicar a complicada assimetria
em nossas obrigações quando se trata de trazer filhos ao mundo,
mencionada no capítulo anterior. Achamos errado dar vida a uma
criança que, devido a uma deficiência genética, vai levar uma
vida absolutamente miserável durante um ou dois anos e morrer.
Contudo, não achamos bom nem obrigatório trazer ao mundo
uma criança que tem todas as probabilidades de levar uma vida
feliz. A concepção das preferências como débitos explica por que
deveria ser assim: dar vida a uma criança sem que tenhamos
condições de satisfazer praticamente nenhuma de suas prefe-
rências equivale a criar um débito que não poderemos cancelar.
178 ÉTICA PRATICA

Portanto, é errado. Gerar uma criança cujas preferências terão


como ser satisfeitas significa criar um débito que será apagado
quando os desejos forem atendidos. Segundo esse modelo, isso
é eticamente neutro. O modelo também pode explicar por que,
no exemplo de Parfit, as ações das duas mulheres são igual-
mente erradas: apesar de nenhuma delas frustrar preferências já
existentes, ambas, de maneira desnecessária, dão vida a crianças
que muito provavelmente terão saldos negativos bem maiores
no livro-caixa moral do que os filhos que elas poderiam ter dado
à luz em outras circunstâncias. Da mesma maneira, explica por
que continuar com a política do "segue tudo como está" é errado:
essa também deixa no livro-caixa moral saldos negativos maiores
do que seria o caso se adotássemos a sustentabilidade.
Há, no entanto, uma grave objeção a essa contabilidade de
preferências: se a criação de cada preferência é um débito que só
se cancela quando o desejo é satisfeito, seria errado, portanto -
sendo idênticas as demais condições -, trazer à vida uma criança
que, em termos gerais, será muito feliz e capaz de satisfazer quase
todas as suas preferências, mas que, ainda assim, ficará com
algumas delas por satisfazer. Já que todos têm alguns desejos
que ficam por satisfazer, até mesmo a melhor vida que alguém
poderia esperar levar com alguma verossimilhança deixaria um
pequeno débito no livro-caixa. A conclusão que se pode tirar é
que seria melhor nenhum de nós ter nascido!
Seria algo demasiadamente absurdo para se levar a sério?
Lembra a filosofia do pessimismo defendida pelo alemão
Arthur Schopenhauer no século XIX e também algumas
linhas de pensamento budista. Para Schopenhauer, e talvez
para Buda, estamos sempre nos esforçando para obter alguma
coisa e, quando a conseguimos, em vez de alcançarmos a satis-
fação perene, surgem novos desejos que precisam ser satisfei-
tos. Já que a única satisfação que nos é dada obter é o alívio
passageiro de um estado negativo, a vida não vale a pena ser
vivida, e nossa melhor perspectiva é escapar do ciclo de morte e
nascimento. David Benatar, um filósofo sul-africano, defendeu
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 179

recentemente algo parecido com o pessimismo de Schopenhauer


em seu livro Better never to have been: the harm of coming
into existence [Melhor nunca ter sido: os males da existência].
Benatar argumenta que trazer alguém à vida causa-lhe um mal
que as experiências positivas que essa pessoa talvez venha a ter
não conseguirão compensar. Um dos argumentos de Benatar
para sustentar essa afirmação se fundamenta em algo parecido
com a concepção das preferências como débitos: ter um desejo
insatisfeito, segundo ele, é viver em estado de insatisfação, e isso
é ruim. Além do mais, convivemos com desejos insatisfeitos
durante a maior parte de nossas vidas, e as ocasionais satisfações
que representam o que é dado à maioria de nós alcançar não
bastam para superar em importância esses estados negativos.
Voltemos à questão das mudanças climáticas, mas acrescen-
temos uma terceira opção que esse tipo de pessimismo parece
apontar. Podemos chamá-la de "a última farra". Os defensores
dessa opção querem que sejamos ainda mais perdulários com a
energia que utilizamos do que seríamos com a política do "segue
tudo como está"; mas, para garantir que nossas ações não vão
deixar nenhum saldo negativo exagerado no livro-caixa moral
do planeta, eles recomendam que sejamos todos esterilizados.
As pessoas que existem hoje serão a última geração sobre a face
da Terra. Suponhamos, por mais implausível que seja, que todos
concordem com isso, que ninguém se importe com o fato de
sermos a última geração, e que nossas ações não vão piorar a
vida dos animais não humanos (ou talvez possamos esterilizá-
-los também). Se os pessimistas estiverem corretos, essa seria a
coisa certa a fazer, e poderíamos pensar que admitir que está
certa- ou pelo menos que não está errada- seria a obrigação dos
defensores da concepção das preferências como débitos. Pois, se
trazer alguém à vida deixará inevitavelmente um saldo negativo
no livro-caixa moral, por que deveríamos fazer uma coisa dessas?
Presume-se que só deveríamos fazê-lo se o saldo negativo no
livro-caixa moral daqueles que já existem fosse maior: ou seja,
se quisessem ter filhos ou desejassem ser sucedidos por outras
180 ÉTICA PRÁTICA

gerações. No entanto, confirmando-se as hipóteses que funda-


mentam "a última farra", não seria esse o caso. Aqueles que já
existem levariam vidas melhores se não houvesse gerações futuras.
A concepção das preferências como débitos nos autoriza de
alguma maneira a rejeitar "a última farra"? Vamos refrescar a
memória e lembrar o que está em jogo: não nos esqueçamos de
que a concepção das preferências como débitos foi uma resposta
ao argumento de Hart de que um utilitarista preferencial deveria
considerar todos os seres substituíveis, quer desejem continuar
vivendo ou não. Se a concepção das preferências como débitos
exige que acatemos "a última farra", muitas pessoas veriam isso
como uma objeção a essa concepção, e, por conseguinte, uma
objeção à minha tentativa de argumentar que as pessoas não
são substituíveis. Penso, porém, que podemos rejeitar "a última
farra" e, ao mesmo tempo, manter a concepção das preferências
como débitos, mas, para tanto, precisamos recorrer a uma ideia
de valor que extrapole os fundamentos minimalistas do utilita-
rismo preferencial delineados no Capítulo 1 deste livro.
Imaginemos dois universos diferentes. No Universo Não
Senciente, não existe vida senciente alguma. No Universo
das Pessoas, existem vários bilhões de seres autoconscientes.
Eles levam vidas plenas e deliciosas, provam as alegrias do amor
e da amizade, do trabalho relevante e satisfatório e de criar os
filhos . Buscam conhecimento, aumentando sua compreensão de
si mesmos e do universo que habitam. Respondem às belezas da
natureza, cuidam das florestas e dos animais que são anteriores
a eles próprios, produzem literatura e música que não devem
nada às obras de Shakespeare e Mozart. Conseguem preve-
nir ou aliviar muitas formas de sofrimento, mas são mortais e
não conseguem satisfazer todos os seus desejos. É preferível o
Universo das Pessoas existir, e não o Universo Não Senciente?
Podemos responder a essa pergunta universalizando nossas
próprias preferências? Poderíamos dizer que preferiríamos levar
o tipo de vida que se leva no Universo das Pessoas a não viver de
maneira alguma. R. M. Hare sugeriu certa vez que poderíamos
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 181

abordar da mesma maneira o aborto. Só porque gosto de minha


vida, fico feliz por meus pais não terem abortado o feto a partir
do qual me desenvolvi. Portanto, ele argumentou, sendo idênti-
cas as demais condições, não deveríamos abortar se tivéssemos
motivos para acreditar que o feto se transformaria numa pessoa
que apreciaria estar viva e se houvesse menos pessoas como
essas, caso o feto fosse abortado (ou seja, o feto abortado não
seria substituído posteriormente por um outro que, não fosse
por isso, não existiria). Mas há uma diferença significativa entre
se colocar no lugar de outros seres já existentes que serão afeta-
dos por seu ato e se colocar no lugar de seres que simplesmente
poderiam não existir. No primeiro caso, estamos satisfazendo
preferências existentes e, no segundo, criando novas preferências.
Para voltar a um exemplo que já usei, se as pessoas têm sede,
eis aí uma razão para lhes dar água, mas não quer dizer que
temos motivos para deixar as pessoas com sede para então lhes
oferecer água. Da mesma maneira, nenhuma obrigação de dar
vida a mais seres decorre do fato de que, se o fizermos, eles serão
capazes de satisfazer a maioria de suas preferências. Portanto,
levar em consideração os interesses de seres futuros que são
meramente possíveis - algo que mal conseguimos deixar de
fazer em alguns contextos - extrapola a ideia minimalista origi-
nal de utilitarismo preferencial que se fundamenta na universa-
lização de nossas preferências. Pode ser que se fundamente no
juízo de que certos tipos de vida têm valor. Poderíamos tentar
distinguir dois tipos de valor: o valor dependente de preferên-
cias, que depende da existência de seres com preferências e está
ligado às preferências desses seres em particular, e o valor que
não depende de preferências. Quando dizemos que o Universo
das Pessoas é melhor que o Universo Não Senciente, recorremos
a um valor que não depende de preferências. Henry Sidgwick,
utilitarista do século XIX, disse que, se refletirmos com cuidado,
veremos que a única coisa inerente ou fundamentalmente boa-
e boa por si só - é uma forma de consciência ou estado mental
que consideramos desejável. Ele acreditava que essa consciência
182 ÉTICA PRATICA

desejável fosse o prazer e, à semelhança de outros utilitaristas


hedonistas, teria julgado melhor o Universo das Pessoas, pois ele
contém mais prazer que sofrimento, o que não acontece com o
Universo Não Senciente. Afirmar que o prazer é bom e o sofri-
mento é ruim é asseverar não só que existam valores indepen-
dentes de preferências, mas também que o prazer e o sofrimento
são valores desse tipo. Se existem valores independentes de
preferências, nesse sentido existem muitas outras concepções
possíveis de valor. Minha narrativa do Universo das Pessoas foi
criada para apreender várias concepções possíveis de consciên-
cias desejáveis. Poderíamos ter uma visão pluralista de valor e
considerar que amor, amizade, conhecimento e apreciação da
beleza, bem como o prazer ou a felicidade, têm todos valor. Não
estou tentando determinar a natureza do valor independente de
preferências, e sim mostrar que a ideia por trás dele nos autoriza
a rejeitar a opção da "última farra" e também a do "segue tudo
como está" em nosso exemplo sobre as mudanças climáticas.
Os adeptos do utilitarismo hedonista se veem diante de
uma objeção diferente. Já que prefeririam qualquer universo no
qual houvesse mais prazer que sofrimento a um universo que
não tivesse nem um nem outro, eles teriam de preferir não só o
Universo das Pessoas ao Universo Não Senciente, mas também
o Universo dos Carneiros Felizes, onde os únicos seres sencien-
tes são carneiros e ovelhas com todo o pasto do mundo à sua
disposição. Os cordeiros saltitam felizes nos campos, crescem,
se reproduzem e, quando seus filhotes chegam à maturidade,
morrem de maneira rápida e indolor. Se os utilitaristas hedonis-
tas prefeririam o Universo dos Carneiros Felizes ao Universo das
Pessoas é algo que dependeria de em qual dos dois a diferença
entre a quantidade de prazer e a quantidade de sofrimento seria
maior, como vimos no fim do capítulo anterior, quer concorde-
mos ou não com avaliação que Mill faz dos prazeres e sofrimentos
de animais e seres humanos normais.
Para mim, parece óbvio que tanto o Universo das Pessoas
quanto o Universo dos Carneiros Felizes são melhores que o
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 183

Universo Não Senciente, mas, a esta altura, estamos lidando


com valores tão básicos que é difícil encontrar um argumento
capaz de convencer alguém que negue essa conclusão. Não nos
esqueçamos que o Universo das Pessoas não é nosso universo
real. Pode ser que haja mais sofrimento e aflição do que felici-
dade em nosso universo real, principalmente se considerarmos
o sofrimento extremo que aqui existe. Portanto, não tenho
compromisso algum com uma visão otimista de nosso universo
real, e sim com a concepção de que, se a vida fosse de fato boa
para todo mundo, sem o horror do sofrimento, esse universo
seria melhor que o Não Senciente. Ainda assim, admito que seria
possível o utilitarista preferencial aguentar firme e dizer que
o Universo Não Senciente é tão bom quanto o Universo das
Pessoas - e explicar nossa relutância em acatar essa conclusão ao
dizer que se trata do resultado da evolução de nosso instinto de
reprodução e cuidado com a prole.
Ao discutir essas opções de universos, vi-me diante da
objeção de que o Universo Não Senciente não pode ser compa-
rado, eticamente, a nenhum outro universo. Ele não é pior nem
melhor que qualquer outro universo. Não tem valor zero numa
escala que atribui um valor positivo ao Universo das Pessoas;
encontra-se simplesmente fora do âmbito da ética, e nenhuma
escala de valor a ele se aplica. Isso poderia parecer plausível, mas aí
imaginamos um Universo dos Infernos povoado exclusivamente
por criancinhas que sofrem em agonia durante vários anos, sem
nenhum aspecto que se salve em suas vidas, e só então morrem.
As mesmas pessoas que negam ser possível comparar o Universo
das Pessoas ao Universo Não Senciente não hesitam em concor-
dar que o Universo dos Infernos é pior que o Não Senciente.
A implicação é que podemos comparar o Universo Não Senciente
a universos que encerrem seres sencientes. Além disso, podemos
imaginar toda uma série de universos, em graus progressiva-
mente menores de senciência, entre o Universo das Pessoas e
o Universo Não Senciente. O universo mais próximo do Não
Senciente talvez não tivesse nenhuma vida senciente, a não ser
184 ÉTICA PRATICA

um camarãozinho que viva, experimente um breve instante de


consciência e morra. Parece estranhíssima a afirmação de que
podemos colocar esse universo na mesma escala do Universo das
Pessoas, mas, tão logo deixe de ter até mesmo essa consciência
momentânea, o universo passa a ser incomparável.
Nos trinta anos que se passaram desde a publicação da
primeira edição deste livro, muitos filósofos apresentaram
soluções engenhosas para o problema de como deveríamos
ponderar decisões que afetem aqueles que virão a existir. Ainda
não encontramos uma concepção que a maioria dos filósofos
julgue minimamente satisfatória, e toda nova sugestão fatal-
mente suscitará algumas dificuldades ou resultados nada intui-
tivos. Não é, por si só, razão para rejeitar a concepção, pois as
dificuldades ainda podem ser menos graves que as dificuldades
que afligem todos os outros pontos de vista. Portanto, é a consi-
deração favorável ao tipo de valor que venho sugerindo que,
aliada à concepção das preferências como débitos, ajuda-nos a
formular respostas para essas questões desconcertantes. Permite
que deixemos para trás o ponto de vista da existência prévia, que
claramente não é adequado para lidarmos com algumas dessas
questões, sem nos obrigar a admitir que todos os seres sencien-
tes, mesmo aqueles que têm autoconsciência, são substituíveis.
Além disso, oferece-nos um fundamento para rejeitar a "última
farra" como estratégia para lidar com as mudanças climáticas.
Não obstante, essa combinação de utilitarismo preferencial e
uma ideia de valor intrínseco que não depende de preferências
sacrifica uma das grandes vantagens de qualquer forma de utili-
tarismo que se baseie apenas em um valor, qual seria: não ter de
explicar como valores diferentes poderiam ser intercambiáveis.
Em vez disso, já que essa concepção sugere que existem dois
tipos de valores - um pessoal e que se baseia em preferências; o
outro, impessoal-, não é fácil entender como devemos proceder
quando os dois tipos de valores vão de encontro um ao outro.
Antes de abandonarmos o tema do abate de animais, devo
enfatizar que afirmar que os seres meramente conscientes são
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 185

substituíveis não equivale a dizer que seus interesses não con-


tam. Espero que o terceiro capítulo deste livro deixe claro que
seus interesses realmente contam. Na medida em que os seres
sencientes são conscientes, eles têm interesse em satisfazer seus
desejos ou experimentar o máximo de prazer e o mínimo de
sofrimento. A senciência já basta para que um ser seja colocado
dentro da esfera da igual consideração de interesses, mas isso
não significa que o ser tenha um interesse pessoal em continuar
a v1ver.

Conclusões
Se os argumentos apresentados neste capítulo são corre-
tos, não existe uma única resposta à pergunta: "É normalmente
errado tirar a vida de um animal?". O termo "animal"- mesmo
no sentido restrito de "animal não humano" - abrange uma
diversidade de vidas cuja multiplicidade é ampla demais para
que um princípio possa se aplicar a todas elas.
Alguns animais não humanos parecem conceber a si
mesmos como seres distintos que têm um passado e um futuro,
o que nos dá uma razão direta para não matá-los, uma razão
cuja força varia na mesma medida em que o animal seja capaz
de ter desejos para o futuro. Quanto mais passamos a conhe-
cer as faculdades intelectuais de animais não humanos, mais
aumenta a quantidade de espécies às quais se pode aplicar essa
razão contrária ao abate. Há vinte anos, podíamos atribuir com
segurança a autoconsciência apenas aos primatas hominoides.
Hoje podemos incluir nessa lista não só elefantes e golfinhos,
mas também algumas aves. É difícil saber o que novas pesquisas
acabarão revelando. Devemos, portanto, conceder o benefício
da dúvida a macacos, cães, gatos, porcos, focas, ursos, vacas,
carneiros etc., e talvez até mesmo às aves e aos peixes: depende
muito de até que ponto estamos dispostos a estender o benefício
da dúvida nos casos em que a dúvida existe. Nossa discussão
colocou um enorme ponto de interrogação diante da justificabi-
lidade de um grande número de assassinatos de animais pratica-
186 ÉTICA PRÁTICA

dos pelos seres humanos, mesmo quando essas mortes ocorrem


sem dor e sem provocar sofrimento em outros membros da
comunidade animal (é evidente que, em sua maior parte, o abate
não é praticado em condições ideais).
Quando chegamos aos animais que, até onde podemos
dizer, não são autoconscientes, a melhor razão direta para não
matá-los aponta a perda de uma vida agradável ou desfrutável.
Quando, levando tudo em consideração, a vida tirada não
teria sido agradável, nenhum erro direto é cometido. Mesmo
quando o animal morto talvez tivesse vivido agradavelmente,
é no mínimo discutível a afirmação de que nenhum erro será
cometido se, em decorrência do assassinato, o animal morto
for substituído por outro animal que leve uma vida igualmente
prazerosa. Adotar esse ponto de vista implica sustentar que um
erro praticado contra um ser vivo pode ser compensado por um
benefício conferido a um ser até então não existente. Portanto,
é possível ver os animais meramente conscientes como permutá-
veis entre si de um modo que os seres que têm noção de futuro
não são. Isso significa que, em algumas circunstâncias- quando
os animais levam vidas agradáveis, são mortos sem dor, suas
mortes não provocam o sofrimento de outros animais, e o
abate de um animal torna possível sua substituição por outro
que, não fosse isso, não teria vivido -, o abate de animais sem
autoconsciência não configura um erro.
Seguindo esse raciocínio, seria possível justificar a criação
de animais para o fornecimento de carne, não nas condições que
se apresentam nas fazendas industriais, mas soltos no terreiro
de um sítio ou fazenda? Suponhamos que pudéssemos asseve-
rar com certa segurança que as galinhas, por exemplo, não
têm consciência de que existem no tempo (e, como vimos, esse
pressuposto é questionável). Admitamos, também, que as aves
possam ser mortas sem sentir dor, e que as sobreviventes não
parecem ser afetadas pela morte de um dos seus. Admitamos, por
último, que, por razões econômicas, não poderíamos criar as aves
se não fosse para comê-las. O argumento da substituibilidade,
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 187

nesse caso, parece justificar que os animais sejam mortos, pois


privá-los dos prazeres de sua existência pode ser contrabalan-
çado com os prazeres das galinhas que ainda não existem e que
só existirão se as já existentes forem mortas.
Enquanto exemplo de raciocínio crítico-moral, esse
argumento pode parecer bem fundado, mas sua aplicação é
limitada. É incapaz de justificar as fazendas industriais, onde
os animais não levam vidas agradáveis e, em circunstâncias
normais, tampouco justifica o abate de animais selvagens.
Um pato abatido por um caçador (partindo-se da hipótese,
só para fins de argumentação, de que os patos não têm consciên-
cia de si e que o atirador certamente matará o pato instantanea-
mente) provavelmente levava uma vida agradável, mas abater
um pato com um tiro não leva à sua substituição por outro pato.
A menos que a população de patos tenha chegado ao máximo
que a oferta de alimentos seja capaz de manter, o ato de matar
um pato põe fim a uma vida agradável sem dar início a outra,
e, por esse motivo, é errado em bases estritamente utilitárias.
Mesmo no caso de animais dotados de certa autoconsciên-
cia, matá-los para obter comida nem sempre será errado. Muitas
pessoas que não veem nada de mal em comprar o presunto prove-
niente de uma fazenda industrial ou o frango do supermercado não
hesitam em condenar a caça: e, no entanto, é mais fácil defender a
caça que uma fazenda industrial. Pensemos na caça ao veado nas
regiões dos Estados Unidos onde os únicos predadores capazes
de controlar a população desses animais são os seres humanos.
Os veados se reproduzem tanto que não têm o suficiente para
comer e começam a degradar o meio ambiente. Muitos deles
acabarão morrendo de fome. Os caçadores argumentam que,
para o veado, é melhor a morte rápida proporcionada por uma
bala do que definhar lentamente, e os ambientalistas destacam
que a alta densidade demográfica de veados pode colocar em
perigo outras espécies tanto de plantas quanto de animais. É
incontestável que a morte provocada por um tiro certeiro seja
preferível a morrer de fome, algo que ainda valerá mesmo que
188 ÉTICA PRÁTICA

os veados sejam autoconscientes. Na prática, já que nem todos


os caçadores têm boa mira, e alguns acabarão ferindo, e não
matando os animais, seria melhor implementar alguma forma
de controle da fertilidade do que permitir a caça (nossa despreo-
cupação com o abate de animais fica evidente quando se vê que
poucas pesquisas se dedicaram a desenvolver métodos práticos
de contracepção e esterilização de animais silvestres). Vamos
supor, porém, que não exista um método factível de controle da
fertilidade, que o caçador atire bem o suficiente para matar o
veado sem fazê-lo sofrer, e que, se o veado não for abatido com
um tiro, acabará morrendo lenta e dolorosamente no próximo
inverno. Se essa é a situação, parece que um consequencialista
não poderia fazer objeção ao abate do veado. Fazer isso seria
considerarmo-nos responsáveis pelas mortes que causamos,
mas não pelas mortes que seriam provocadas pela "natureza" se
nada fizéssemos. Esse argumento é semelhante a outro que às
vezes é usado para distinguir a eutanásia deliberada do "deixar
a natureza seguir seu curso" e, como veremos ao discutir o tema
no Capítulo 7, não se trata de um argumento defensável. Caçar
nessas circunstâncias, porém, responde apenas por alguns dos
bilhões de mortes prematuras que os seres humanos infligem
aos animais ano após ano.
Argumenta-se, às vezes, que nem mesmo os veganos podem
furtar-se à responsabilidade pela matança, pois o trator que ara
o campo para a lavoura pode triturar camundongos silvestres,
e as toupeiras podem morrer quando suas tocas são destruídas
pelo arado. A colheita remove a terra onde pequenos animais
encontram abrigo, expondo-os a predadores. Steven Davis, um
zoólogo da Universidade Estadual do Oregon, afirmou que a
quantidade de animais mortos pela agricultura é maior que a
de animais mortos pela pecuária extensiva, mesmo que sejam
contabilizadas as cabeças de gado abatidas. Suas descobertas
vêm sendo usadas por outros defensores do consumo de carne,
entre eles Michael Pollan. Davis, no entanto, não levou em
consideração o fato de que uma área de terra dedicada à agricul-
TIRAR A VIDA: OS ANIMAIS 189

tura alimentará aproximadamente dez vezes mais pessoas do


que a mesma área quando utilizada como pastagem para o gado
de corte. Quando essa diferença é contabilizada, o argumento
de Davis vira de ponta-cabeça e demonstra que os veganos são
responsáveis por matar aproximadamente apenas um quinto do
total de animais mortos por quem come a carne proveniente da
pecuária extensiva.
Em nenhum momento desta discussão a intenção foi
sugerir que as pessoas que precisam matar animais para sobre-
viver - pessoas que vivem na pobreza e lutam para conseguir
alimento suficiente para si e suas famílias, ou aquelas que levam
a vida tradicional dos caçadores-coletores - não devam fazê-lo.
Se vacas, porcos, galinhas e outros animais que costumamos
comer forem autoconscientes, ainda assim não chegarão nem
perto do grau de autoconsciência dos seres humanos normais.
Concordo com Varner e Scruton que, quanto mais o indivíduo
pense em sua própria vida como uma história que ainda tem
capítulos por escrever, quanto mais espere realizar alguma coisa
no futuro, mais terá a perder se for morto. Por essa razão, quando
existe um conflito irreconciliável entre as necessidades básicas
para a sobrevivência de animais e seres humanos normais, não é
especismo dar prioridade à vida daqueles que têm noção biográ-
fica de sua própria existência e uma orientação muito mais forte
para o futuro.
6

Tirar a vida: o embrião e o feto

O problema
Nos últimos quarenta anos, poucas questões éticas foram
objeto de uma discussão tão acirrada quanto o aborto, e nenhum
dos lados conseguiu modificar as opiniões de seus adversários.
Até 1967, o aborto era ilegal em quase todas as democracias
ocidentais, com exceção da Suécia e da Dinamarca. Em seguida,
a Grã-Bretanha alterou a legislação e passou a permitir o aborto
com base em premissas sociais abrangentes e, no caso Roe contra
Wade, de 1973, o Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos
admitiu que as mulheres têm o direito constitucional de abortar
nos primeiros seis meses de gravidez. Presidentes conservadores
alteraram a composição do Supremo Tribunal, mas este, até o
momento, continuou defendendo o âmago da jurisprudência
estabelecida pela decisão do caso Roe contra Wade e, ao mesmo
tempo, permitiu que os estados da federação restringissem o
acesso ao aborto com diversas medidas de pequeno impacto.
Nas últimas décadas, os países europeus, inclusive os católi-
cos apostólicos romanos, como a Itália, a Espanha e a França,
liberalizaram suas leis relativas ao aborto. Hoje, até mesmo a
Irlanda e a Polônia permitem o aborto em algumas circunstân-
cias. No mundo todo, apenas alguns países, principalmente os
da América Latina, proíbem totalmente o aborto.
Em 1978, o nascimento de Louise Brown - o primeiro
ser humano a nascer de um óvulo fertilizado fora de um corpo
192 ÉTICA PRATICA

humano - levantou um novo problema sobre o status do início


da vida humana. O sucesso com que Robert Edwards e Patrick
Steptoe demonstraram a possibilidade da fertilização in vitro,
ou FIV, baseou-se em muitos anos de experiências com embriões
humanos - nenhum dos quais sobreviveu -, e, desde então,
outros tantos embriões foram usados em experimentos que
tinham o objetivo de melhorar a probabilidade de êxito desse
método que permitia casais inférteis terem filhos. Atualmente,
a FIV é um procedimento rotineiro para certos tipos de infertili-
dade, e milhões de pessoas devem sua existência a essa técnica.
A FIV também pode ser usada por casais que correm um risco
elevado de gerar filhos portadores de anomalias genéticas. Seus
embriões podem ser triados em laboratório, e somente aqueles
que não portam a anomalia genética são implantados, tornando
desnecessários o diagnóstico pré-natal e o aborto, mas não a
destruição de embriões humanos.
Como a FIV geralmente produz mais embriões do que é
possível transplantar com segurança para o útero da mulher da
qual o óvulo procede, desenvolveu-se a técnica de congelamento
de embriões, para que os excedentes pudessem ser armazenados
até serem necessários. Crianças normais podem desenvolver-se a
partir desses embriões, mas, se o transplante do embrião "fresco"
original levar à formação do filho desejado, os embriões conge-
lados podem não ser mais desejados. O resultado é que, atual-
mente, existe um grande número de embriões conservados em
congeladores especiais em várias partes do mundo (nos Estados
Unidos são mais de 400 mil). Alguns desses embriões conge-
lados e indesejados talvez sejam doados a outros casais estéreis
que não podem produzir seus próprios óvulos e espermatozoides,
mas o destino dos demais é incerto. Em muitos casos, perdeu-
-se o contato com o casal que doou o óvulo e o espermatozoide.
Os cientistas agora estão interessados em usar alguns desses
embriões excedentes ou abandonados para obter células-tronco,
pois acreditam que elas podem apontar o caminho para a cura
para o mal de Parkinson, a diabetes juvenil, o mal de Alzheimer,
TIRARA VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 193

lesões na coluna espinhal, doenças cardíacas e outros problemas


de saúde. No entanto, por destruir o embrião, o processo de
obtenção das células-tronco se viu envolvido na mesma polêmica
ética e política do aborto: a questão de quando seria errado
destruir a vida humana em seus primórdios. Em 2001, o presi-
dente dos Estados Unidos, George W Bush, proibiu o uso de
verbas federais para o financiamento de pesquisas que utilizas-
sem células-tronco derivadas de embriões a partir da data em que
a medida foi anunciada. Essa decisão foi revogada imediatamente
pelo presidente Barack Obama depois de sua posse em 2009,
mas seu decreto presidencial foi revogado por um juiz federal em
2010, que o declarou contrário a uma lei que impedia o uso de
verbas federais para financiar pesquisas que destruíam embriões.
Neste capítulo, consideraremos o status moral do embrião
e do feto. Usarei principalmente o termo "feto", mas pode-se
entendê-lo incluindo o embrião, a menos que o contexto deixe
claro que não seja o caso.
A questão de quando seria errado destruir a vida humana
em seu início exige cautela e reflexão, pois o desenvolvimento do
ser humano é um processo gradual. Imediatamente depois da
concepção, o óvulo fertilizado é apenas uma célula, e sua morte
pouco abalaria emocionalmente a maioria de nós: na verdade,
quando a concepção é natural, a mulher em cujo corpo ocorre
a fertilização sequer sabe que o óvulo foi fertilizado ou, caso
ocorra um aborto espontâneo logo no começo, que o ovo se
perdeu. Depois de vários dias, ele ainda não deixou de ser um
minúsculo grupo de células que não tem nenhuma caracterís-
tica anatômica do ser em que mais tarde se transformará. Nesse
estágio, as células que formarão o embrião propriamente dito
são indiscerníveis daquelas que formarão a placenta e o saco
amniótico. Por volta de catorze dias depois da fertilização, não
podemos nem mesmo saber se o embrião se transformará em um
ou dois indivíduos, pois poderá haver clivagem, levando à forma-
ção de gêmeos idênticos. Aos catorze dias, aparece a primeira
194 ÉTICA PRÁTICA

característica anatômica, a chamada "linha primitiva", no lugar


onde a coluna vertebral se desenvolverá. A essa altura, não há
como o embrião ter consciência ou sentir dor. Contudo, esse
embrião vai, seguindo o processo normal de desenvolvimento,
transformar-se aos poucos num ser humano adulto. Matar um
ser humano adulto é assassinato e, a não ser em circunstâncias
especiais, como as que serão discutidas no capítulo seguinte,
trata-se de um ato resoluta e universalmente condenado. É a
ausência de uma linha divisória absolutamente nítida que separa
o óvulo fertilizado do ser humano adulto que gera o problema.
Começarei apresentando o ponto de vista daqueles que se
opõem ao aborto, um ponto de vista que passarei a chamar de
"conservador". Em seguida, examinarei algumas das respostas
liberais clássicas e mostrarei por que são inadequadas. Por últi-
mo, usarei nossa discussão anterior sobre o valor da vida para
abordar o problema a partir de uma perspectiva mais ampla. Em
contraste com a opinião de que a questão moral do aborto é um
dilema sem solução, mostrarei que, pelo menos dentro dos limi-
tes da ética não religiosa, existe uma resposta inequívoca, e quem
assume um ponto de vista diferente está equivocado.

O ponto de vista conservador


Apresentado formalmente, o argumento básico contra o
aborto seria mais ou menos assim:

Primeira premissa: É errado matar um ser humano inocente.


Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.
Conclusão: Logo, é errado matar um feto humano.

A resposta liberal tradicional consiste em negar a segunda


premissa do argumento. Desse modo, a discussão está relaciona-
da ao problema de o feto ser ou não um ser humano, e a ques-
tão do aborto costuma ser vista como uma controvérsia a respeito
do momento do início da vida humana.
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 195

Quanto a esse ponto do debate, é difícil abalar o argumen-


to conservador. Os conservadores chamam a atenção para o con-
tinuum entre o óvulo fertilizado e a criança e desafiam os liberais
a apontar qualquer estágio desse processo gradual que assinale
uma linha divisória moralmente significativa. Se essa linha exis-
tir, dizem os conservadores, devemos conferir ao embrião o sta-
tus de criança ou diminuir o status da criança ao de um embrião;
mas ninguém quer permitir que as crianças sejam mortas a pe-
dido de seus pais e, assim, o único ponto de vista defensável está
em assegurar ao feto a proteção que asseguramos à criança.
É verdade que não existe nenhuma linha divisória moral-
mente significativa entre o óvulo fertilizado e a criança? As
mais comumente sugeridas são: o nascimento, a viabilidade,
os primeiros movimentos do feto e o surgimento da consciên-
cia. Examinemos, individualmente, cada uma dessas possíveis
linhas divisórias.

Nascimento
É a mais visível das possíveis linhas divisórias e a que melhor
se ajusta à argumentação liberal. Até certo ponto, ajusta-se melhor
também aos nossos sentimentos: ficamos menos perturbados com
a destruição de um feto que nunca vimos do que com a morte de
um ser que todos podemos ver, ouvir e acariciar. No entanto, será
que isso é suficiente para transformar o nascimento na linha que
decide se um ser pode ou não ser morto? Os conservadores podem
perfeitamente responder que o feto/bebê é a mesma entidade tanto
dentro quanto fora do útero, que tem as mesmas características
humanas (possamos vê-las ou não), o mesmo grau de consciência
e a mesma capacidade de sentir dor. Sob esses aspectos, um bebê
prematuro pode muito bem ser menos desenvolvido do que um
feto que se aproxima do fim da gestação normal. Parece estra-
nho admitir que não podemos matar o bebê prematuro, mas que
podemos matar o feto mais desenvolvido. A localização de um ser
- dentro ou fora do útero - não deveria fazer tanta diferença em
relação ao erro que seria matá-lo.
196 ÉTICA PRÁTICA

Viabilidade
Se o nascimento não assinala uma distinção moral decisiva,
será que deveríamos recuar a linha divisória ao tempo em que
o feto poderia sobreviver fora do útero? Isso supera uma das
objeções em tomar o nascimento como o ponto decisivo, pois
trata igualmente o feto viável e o bebê prematuro no mesmo
estágio de desenvolvimento. Foi na viabilidade que o Supremo
Tribunal dos Estados Unidos buscou a linha divisória no caso Roe
contra Wade. O tribunal sustentou que o Estado tem o interesse
legítimo em proteger a vida em potencial e que esse interesse
se torna "inexorável" na questão da viabilidade, "pois, então,
supõe-se que o feto tenha a capacidade de levar uma vida signifi-
cativa fora do útero materno". Segundo o tribunal, portanto, as
leis norte-americanas que proíbem o aborto com base na viabili-
dade não são inconstitucionais. Mas os ministros que redigiram
o voto do pleno não indicaram por que a mera capacidade de
existir fora do útero deva fazer tanta diferença para o interesse
do Estado em proteger a vida em potencial. Afinal, se falamos
(como fez o tribunal), em vida humana em potencial, então o
feto inviável pode ser considerado um ser humano adulto em
potencial tanto quanto o feto viável (já retomarei essa questão
da potencialidade, mas trata-se de uma questão diferente do
argumento conservador que no momento estamos discutindo,
segundo o qual o feto já é um ser humano, e não apenas um ser
humano em potencial).
Há outra objeção importante ao se tomar a viabilidade
como o ponto de separação. O ponto em que o feto pode sobre-
viver fora do corpo da mãe varia conforme o estado da tecnologia
médica. Até o desenvolvimento de métodos modernos de terapia
intensiva, em geral se aceitava que um bebê nascido mais de dois
meses prematuro não tinha condições de sobreviver. Hoje, um
feto de seis meses - prematuro de três meses - consegue sobre-
viver, graças à sofisticação da tecnologia médica, conhecendo-se
casos de sobrevivência de fetos nascidos aos cinco meses e meio
de gestação.
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 197

À luz desses avanços médicos, diremos que um feto de seis


meses de idade não deve ser abortado agora, mas poderia ter sido
abortado há cinquenta anos, quando sua sobrevivência teria sido
improvável, sem que com isso se cometesse um erro? A mesma
comparação também pode ser feita, não entre o presente e o
passado, mas entre lugares diferentes. Um feto de seis meses
poderia ter uma boa probabilidade de sobreviver em uma cidade
onde fosse empregada a mais recente tecnologia médica, mas
não teria chance se nascesse num vilarejo distante da Nova
Guiné. Suponhamos que, por algum motivo, uma mulher no
sexto mês de gravidez fosse pegar um avião de Nova York para
um vilarejo da Nova Guiné, e que, tendo chegado a este, não
houvesse como voltar rapidamente para uma cidade onde pudesse
contar com os mais modernos recursos médicos. Devemos dizer
que ela teria agido erradamente se tivesse feito um aborto antes
de partir de Nova York, mas que, agora, no vilarejo, pode fazê-lo?
A viagem não altera a natureza do feto, então por que motivo
deveria acabar com seu direito à vida?
Os liberais poderiam responder que o fato de o feto ser
totalmente dependente da mãe para sobreviver implica que seu
direito à vida também depende dos desejos dela. Em outros casos,
porém, não defendemos a ideia de que a total dependência em
relação a outra pessoa signifique que essa pessoa possa decidir se
viveremos ou morreremos. Se vier a nascer numa região isolada
onde não exista nenhuma outra mulher que possa amamentá-lo,
nem recursos para que possa ser alimentado com mamadeira,
o recém-nascido será uma criatura totalmente dependente de
sua mãe. Uma idosa pode ser totalmente dependente do filho
que toma conta dela, e um excursionista que quebra a perna a
cinco dias de caminhada da estrada mais próxima pode morrer
se seu companheiro não procurar socorro. Não pensamos que,
nessas situações, a mãe possa tirar a vida de seu bebê; o filho,
a de sua mãe idosa; ou o excursionista, a de seu companheiro
ferido. Portanto, não é plausível sugerir que a dependência do
198 ÉTICA PRÁTICA

feto inviável em relação à sua mãe dê a ela o direito de matá-lo.


E, se a dependência não justifica que se faça da viabilidade a
linha divisória, é difícil saber o que pode justificá-la.

Primeiros sinais de vida


Se nem o nascimento nem a viabilidade assinalam uma
distinção moralmente significativa, há ainda menos a ser dito
acerca de um terceiro candidato: os primeiros sinais de vida.
É a época em que, pela primeira vez, a mãe sente o feto se mexer.
Na teologia católica tradicional, pensava-se ser esse o momento
em que ele ganhava sua alma. Se aceitarmos esse ponto de vista,
poderemos achar que esses movimentos iniciais são importan-
tes, pois, segundo a concepção cristã, a alma é o que diferencia
os seres humanos dos animais. Contudo, a ideia de que a alma
entra no feto quando ele começa a se mexer não passa de uma
superstição antiga que já foi rejeitada até mesmo pelos teólo-
gos católicos. Se deixarmos de lado essas doutrinas religiosas, os
primeiros sinais de vida tornam-se insignificantes. Trata-se do
momento em que se percebe que o feto começa a se movimentar
por conta própria: o feto está vivo antes disso, e pesquisas reali-
zadas com ultrassonografia mostraram que, na verdade, os fetos
já começam a fazer seus primeiros movimentos na sexta semana
depois da fertilização, muito antes de esses sinais serem perce-
bidos. Seja como for, a capacidade de movimento físico - ou
a falta dela - nada tem a ver com o direito que alguém possa
ter à continuidade da vida. Não vemos a falta dessa capacidade
como uma negação do direito que os paralíticos têm de conti-
nuar vivendo.

Consciência
Na medida em que constitui um indicador de alguma
forma de consciência, poderíamos pensar no movimento como
algo dotado de uma importância moral indireta - e, como já
vimos, a consciência e a capacidade de sentir prazer ou dor têm
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 199

uma importância moral concreta. Apesar disso, nenhum dos


lados envolvidos na questão do aborto menciona devidamente a
questão do desenvolvimento da consciência no feto. Aqueles que
se opõem ao aborto podem mostrar filmes sobre o "grito silen-
cioso" do feto ao ser abortado, mas, com esse intuito, existe apenas
a intenção de mexer com as emoções dos que ainda não tomaram
partido. Na verdade, os adversários do aborto querem defender a
ideia de que o ser humano tem direito à vida desde o momento
da concepção, seja ou não consciente. Já para os que defendem
o aborto, o apelo à ausência da capacidade de consciência parece
uma estratégia arriscada. Com base nos estudos que mostram
que o movimento já se evidencia na sexta semana depois da ferti-
lização, ao lado de outros estudos que constataram a existência
de atividade cerebral na sétima semana, sugeriu-se que o feto
pode ser capaz de sentir dor nessa fase inicial da gravidez. Essa
possibilidade deixou os liberais muito cautelosos em seu apelo ao
surgimento da consciência como o momento em que o feto passa
a ter direito à vida. Voltaremos à questão da consciência do feto
ainda neste capítulo.
Nossa discussão mostrou que a busca dos liberais por uma
linha divisória moralmente crucial entre o recém-nascido e o
feto não produziu nenhum fato, nem descobriu um estágio do
desenvolvimento que possa arcar com o peso de separar aqueles
que têm direito à vida dos que não têm, de modo que mostre
claramente que os fetos pertencem à última categoria quando
estão no estágio de desenvolvimento em que a maior parte dos
abortos é feita. Os conservadores pisam em solo firme quando
insistem que o desenvolvimento do embrião ao recém-nascido é
um processo gradual, que não tem um ponto óbvio no qual a
condição moral mudaria a ponto de justificar a diferença entre
considerar a morte deliberada de um bebê um assassinato e con-
siderar a morte deliberada de um feto algo que a gestante deveria
ter a liberdade de escolher conforme seus desejos.
200 ÉTICA PRÁTICA

Alguns argumentos liberais


Alguns liberais não contestam a afirmação conservadora de
que o feto é um ser humano inocente, mas afirmam que, não
obstante, o aborto é admissível. Examinarei três argumentos
que dizem respeito a esse ponto de vista.

As consequências de leis restritivas


O primeiro argumento é o de que as leis que proíbem o
aborto não acabam com ele, apenas levam-no a ser praticado
clandestinamente. Em geral, as mulheres que pretendem abortar
estão desesperadas e procuram um aborteiro de fundo de quintal
ou usam remédios populares. O aborto feito por um médico
qualificado é uma operação tão segura quanto qualquer outra,
mas as tentativas de abortar pelas mãos de profissionais desqua-
lificados costumam resultar em graves complicações médicas e,
às vezes, até em morte. Portanto, o resultado da proibição do
aborto não é tanto a redução do número de abortos realizados, e
sim o aumento das dificuldades e do risco para as mulheres com
uma gravidez indesejada. Além disso, quando o aborto é ilegal,
alguns aborteiros subornam policiais para fazer vista grossa,
contribuindo, portanto, para a corrupção da polícia.
Esse argumento tem ajudado a angariar apoio para a criação
de leis mais liberais sobre o aborto. Foi aceito pela Real Comissão
Canadense da Condição Feminina, cuja conclusão foi: "Uma lei
que tem efeitos mais nocivos do que benéficos não é uma boa
lei [...]. Enquanto [essa lei] existir em sua forma atual, milhares
de mulheres a transgredirão". Nos países latino-americanos que
proíbem o aborto ou o permitem somente em situações limita-
díssimas, os abortos ilegais são difundidos e constituem uma das
grandes causas de morte e ferimentos graves entre mulheres jovens.
O que há de mais importante nesse argumento é o fato de ser
contra as leis que proíbem o aborto, e não de ser um argumento
contra o ponto de vista de que o aborto é um erro. Trata-se de uma
distinção importante, quase sempre negligenciada nos debates
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 201

sobre o aborto. O presente argumento ilustra bem a distinção,


pois uma mulher poderia aceitá-lo coerentemente e defender o
ponto de vista de que a lei deve permitir o aborto quando solici-
tado, achando ao mesmo tempo - caso estivesse grávida ou
aconselhasse uma grávida - errado abortar. É um erro pressupor
que a legislação deva sempre impor a moralidade. Pode aconte-
cer de as tentativas de impor a conduta certa levarem a conse-
quências indesejadas e não diminuírem a prática do malfeito.
Nesses casos, é melhor abandoná-las.
Portanto, esse primeiro argumento tem a ver com as leis que
regem o aborto, e não com a ética do aborto. Mesmo dentro des-
ses limites, porém, está aberto à contestação, pois é incapaz de
responder à alegação dos conservadores de que praticar o aborto é
tirar deliberadamente a vida de um ser humano inocente, colo-
cando o aborto na mesma categoria ética do assassinato. Aqueles
que têm essa visão não se deixarão contentar pela afirmativa de
que as leis restritivas sobre o aborto não fazem mais do que levar
as mulheres aos aborteiros de fundo de quintal. Vão insistir que
essa situação pode ser mudada e que se pode exigir o cumprimento
apropriado da lei. Também podem sugerir medidas que tornem a
gravidez mais fácil de aceitar no caso das mulheres que engravi-
dam contra sua vontade. Os conservadores também podem dizer
que a lei terá certo efeito restringente, mesmo que não seja ade-
quadamente cumprida, e que as vidas dos fetos salvos por esse
efeito restringente têm um peso maior do que o mal que as mu-
lheres sofrem nas mãos de aborteiros de fundo de quintal.
Se o argumento conservador inicial e contrário ao aborto
não for contestado, teremos aí respostas razoáveis e, por esse
motivo, o primeiro argumento não poderá se esquivar da
questão ética central: é ou não é errado matar um feto?

Nada a ver com a lei?


O segundo argumento também tem a ver com as leis que
regem o aborto, e não com a ética do aborto. Na década de
1950, o governo britânico criou uma comissão, presidida por
202 ÉTICA PRATICA

sir John Wolfenden, para investigar se a homossexualidade e


a prostituição deveriam continuar criminalizadas. O relató-
rio Wolfenden não contestou a imoralidade de tais atos, mas
recomendou que a lei fosse alterada, pois "deve continuar
existindo uma esfera de moralidade e imoralidade privadas que,
grosso modo, nada tem a ver com a lei". Esse ponto de vista é
muito aceito pelos pensadores liberais e suas origens podem ser
atribuídas a Sobre a liberdade, de John Stuart Mill. Nas palavras
de Mill, o "princípio muito simples" dessa obra consiste na
afirmação de que

[...] o único objetivo em nome do qual é possível exercer legiti-


mamente o poder sobre qualquer membro de uma comunidade
civilizada, contra a sua vontade, é o de impedir que os outros
sejam prejudicados[...]. Ele não pode ser legitimamente forçado a
agir ou a abster-se de agir porque será melhor que o faça, porque
assim será mais feliz, porque, na opinião dos outros, agir desse
modo seria mais sensato ou mesmo mais certo.

O ponto de vista de Mill é adequado e comumente citado


em apoio à revogação de leis que criam "crimes sem vítimas" -
como as leis que proíbem os relacionamentos homossexuais en-
tre adultos que desejam mantê-los por mútuo acordo, o uso de
maconha e outras drogas, a prostituição, os jogos de azar etc.
O aborto costuma ser incluído nessa relação. Aqueles que consi-
deram o aborto um crime sem vítimas dizem que, enquanto todos
têm o direito de defender um ponto de vista sobre a moralidade
do aborto e agir de acordo com ele, nenhum segmento da comu-
nidade deve tentar coagir os outros a aderirem ao seu ponto de
vista específico. Numa sociedade pluralista, devemos ser tole-
rantes com os que defendem opiniões morais diferentes das nos-
sas e deixar a decisão de fazer um aborto a cargo da mulher que
está vivendo o problema.
A falácia de incluir o aborto entre os crimes sem vítimas
deve ser evidente a todos. Em grande parte, a discussão sobre o
aborto é uma discussão sobre o fato de essa prática ter ou não
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃ O E O FETO 203

uma "vítima". Para os adversários do aborto, a vítima é o feto.


Aqueles que não se opõem ao aborto podem negar que o feto con-
te como vítima. Talvez digam, por exemplo, que um ser só pode
ser uma vítima quando seus interesses são violados, e que o feto
não tem interesses. A disputa poderia ser resolvida de diversas
maneiras, mas, seja qual for a via que a discussão tomar, não se
pode simplesmente ignorá-la com base na afirmação de que as
pessoas não devem coagir as outras a seguirem suas concepções
morais particulares. Minha opinião de que foi errado o que Hitler
fez aos judeus é um ponto de vista moral, e, se houvesse qual-
quer possibilidade de um ressurgimento do nazismo, eu certa-
mente me empenharia ao máximo para obrigar os outros a
seguirem minha opinião. O princípio de Mill só é defensável
quando se restringe, como Mill o restringiu, aos atos que não
prejudicam os outros. Usar o princípio como um meio de evitar
as dificuldades de resolver o debate ético sobre o aborto equi-
vale a dar por certo que o aborto não prejudica um "outro", que
é, exatamente, o ponto que precisa ser comprovado antes que
possamos, legitimamente, aplicar o princípio ao caso do aborto.

Um argumento feminista
O último dos três argumentos que procuram justificar
o aborto sem negar que o feto é um ser humano inocente é
o de que uma mulher tem o direito de escolher o que acontece
com seu próprio corpo. Esse argumento adquiriu notoriedade
com a ascensão do movimento feminista na década de 1970 e
foi aperfeiçoado por filósofos(as) norte-americanos(as) simpá-
ticos(as) ao feminismo. Um argumento influente foi apresen-
tado por Judith Jarvis Thomson em uma engenhosa analogia.
Imagine, diz ela, que um dia você acorda pela manhã e descobre
que está num leito de hospital, ligado de alguma forma a um
homem que se encontra inconsciente numa cama ao lado da sua.
Você é informado de que esse homem é um famoso violinista
com uma doença renal. Ele só poderá sobreviver se seu sistema
circulatório for ligado ao de uma pessoa que tenha o mesmo tipo
204 ÉTICA PRÁTICA

sanguíneo, e você é a única pessoa que tem o sangue compatível.


Portanto, você foi sequestrado por uma sociedade de fanáticos
pela música, a ligação foi feita e ali está você. Como se trata de
um hospital bem-conceituado, você poderia, se quisesse, pedir
a um médico para desfazer a ligação com o violinista, mas este
morreria com certeza. Por outro lado, se você continuar ligado
a ele por só (só?) nove meses, o violinista se recuperará, e vocês
poderão ser desconectados sem que ele corra perigo algum.
Thomson acredita que, se você se encontrasse inesperada-
mente numa situação como essa, não teria nenhuma obrigação
moral de permitir que o violinista usasse seus rins durante nove
meses. Poderia ser bondade ou generosidade sua permitir que
ele o fizesse, mas, nas palavras de Thomson, dizer isso é bem
diferente de dizer que, se não o fizesse, você estaria cometendo
um erro.
Observe-se que a conclusão de Thomson não depende de
negar que o violinista seja um ser humano inocente que tem o
mesmo direito à vida que qualquer outro ser humano inocente.
Pelo contrário, Thomson afirma que o violinista realmente
tem direito à vida, mas que o fato de tê-lo não dá a ninguém o
direito de usar o corpo de outra pessoa, mesmo que, sem esse
uso, alguém possa morrer.
O paralelo com a gravidez, sobretudo a gravidez resultante
de estupro, deve ficar evidente. Graças a uma escolha que não
foi sua, uma mulher que engravidou por ter sido estuprada
vê-se ligada a um feto de uma forma muito semelhante à
da pessoa ligada ao violinista. É verdade que, normalmente, uma
mulher grávida não precisa ficar nove meses presa a uma cama,
mas, mesmo que tivesse um problema particular de saúde que
a obrigasse a passar toda a gravidez na cama, os adversários do
aborto não veriam nesse argumento justificativa suficiente para
sua prática. Permitir que o recém-nascido seja adotado talvez
seja psicologicamente mais difícil do que se separar do violinista
no fim de sua doença, mas não parece constituir razão suficiente
para que o feto seja morto. Se admitirmos, apenas a título de
TIRARA VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 205

argumentação, que o feto é um ser humano plenamente desen-


volvido e tem interesses morais de importância correspondente,
o fato de alguém o abortar quando o feto não é viável tem a
mesma relevância moral que desligar-se do violinista. Portanto,
se concordamos com Thomson que não seria errado desligar-
-se do violinista, teremos de admitir também que, sejam quais
forem as condições do feto, o aborto não é um erro - pelo menos
não quando a gravidez resulta de estupro.
O argumento de Thomson poderia extrapolar a esfera dos
casos de estupro? Imagine que você se viu ligado ao violinista não
por ter sido sequestrado por fãs da música, mas porque, ao tomar
o elevador do hospital para visitar um amigo doente, apertou sem
querer o botão errado e foi parar na seção do hospital em que só
eram admitidos os voluntários que estavam ali para serem ligados
a pacientes que, sem isso, não teriam condições de sobreviver. À
espera do próximo voluntário, uma equipe médica achou que era
você, aplicou-lhe uma anestesia e fez a ligação. Se o argumento
de Thomson era válido no caso do sequestro, é provável que
também o seja nesse exemplo, pois o fato de passar nove meses
sustentando involuntariamente outra pessoa é um preço muito
alto a pagar pela ignorância ou pelo descuido. Desse modo, o
argumento poderia extrapolar a esfera do estupro e chegar ao
número muito maior de mulheres que engravidam por ignorân-
cia, descuido ou falha de anticoncepcionais.
Será esse um argumento bem fundado? A resposta concisa
a essa pergunta é: o argumento será bem fundado se a teoria
específica dos direitos que se acha por trás dele também for
bem fundada; e será infundado se a teoria dos direitos for igual-
mente infundada.
A teoria dos direitos em questão pode ser ilustrada por outro
dos exemplos fantasiosos de Thomson: imagine que eu esteja
desesperadamente doente e que a única coisa que pode salvar
minha vida é o toque refrescante, em minha testa febril, da mão
de minha estrela de cinema favorita. Bem, afirma Thomson,
ainda que eu tenha direito à vida, não tenho o direito de forçar a
206 ÉTICA PRÁTICA

tal atriz a me procurar, e ela não tem nenhuma obrigação moral


de tomar um avião para me salvar, ainda que fosse simpaticís-
simo de sua parte fazê-lo. Portanto, Thomson não admite que,
pesados todos os prós e contras, sejamos sempre obrigados a
optar pela ação mais correta ou a fazer o que venha a ter as
melhores consequências. Em vez disso, ela aceita um sistema
de direitos e obrigações que nos permite justificar nossas ações
independentemente de suas consequências.
Voltarei a comentar essa concepção dos direitos no
Capítulo 8. A esta altura, basta destacar que um utilitarista
rejeitaria essa teoria dos direitos e a opinião de Thomson no
caso do violinista. O utilitarista afirmaria que, por mais furioso
que eu estivesse por ter sido sequestrado, se, levando tudo em
conta, inclusive os interesses de todos os afetados, as consequên-
cias de meu desligamento do violinista forem piores do que as
consequências que adviriam se eu continuasse ligado, eu deveria
permanecer ligado. Isso não significa que os utilitaristas consi-
derariam má ou culpada a mulher que se desligasse. Poderiam
admitir que ela foi colocada numa situação extremamente difícil,
uma situação na qual fazer o que é certo implica um sacrifício
considerável. Poderiam até mesmo admitir que, na mesma situa-
ção, a maior parte das pessoas seguiria seus próprios interesses,
em vez de fazer a coisa certa. Não obstante, sustentariam que é
errado se desligar.
Ao rejeitar a teoria dos direitos de Thomson e também
sua opinião no caso do violinista, o utilitarista também estaria
rejeitando o argumento favorável ao aborto. Thomson afirmou
que seu argumento justificava o aborto, mesmo se admitísse-
mos que a vida do feto tem o mesmo peso que a vida de uma
pessoa normal. O utilitarista diria que seria errado se recusar a
manter a vida de uma pessoa por nove meses se fosse essa a única
maneira de mantê-la viva. Portanto, se atribuirmos à vida do
feto o mesmo valor da vida de uma pessoa normal, o utilitarista
diria que seria errado se recusar a sustentar o feto até que ele
tivesse condições de sobreviver fora do útero.
TIRARA VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 207

Isso conclui nossa discussão sobre as respostas liberais mais


comuns ao argumento conservador contra o aborto. Vimos
que os liberais não conseguiram estabelecer uma linha divisó-
ria moralmente significativa entre o recém-nascido e o feto, e
que seus argumentos - com a possível exceção do argumento
de Thomson, se é que se pode defender sua teoria dos direitos -
tampouco conseguem justificar o aborto sem desafiar a afirma-
ção conservadora de que o feto, é um ser humano inocente. Não
obstante, para os conservadores, seria prematuro presumir que
seu argumento contra o aborto seja bem fundado. Chegou o
momento de trazermos para a discussão algumas considerações
mais genéricas a respeito do valor da vida.

O valor da vida fetal


Voltemos ao início. O argumento central contra o aborto,
do qual partimos, era o seguinte:

Primeira premissa: É errado matar um ser humano inocente.


Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.
Conclusão: Logo, é errado matar um feto humano.

O primeiro grupo de réplicas que examinamos aceitava a


primeira premissa desse argumento, mas rejeitava a segunda.
O segundo grupo de réplicas não rejeitava nenhuma das premis-
sas, mas não aceitava a conclusão tirada dessas premissas (ou se
opunha à conclusão posterior de que o aborto deve ser proibido
por lei). Nenhuma dessas réplicas questionava a primeira pre-
missa do argumento. Dada a enorme aceitação da doutrina da
santidade da vida humana, isso não nos surpreende, mas a dis-
cussão que fizemos dessa doutrina nos capítulos anteriores mos-
tra que essa premissa não é tão firme quanto muitos imaginam.
A fragilidade da primeira premissa do argumento conserva-
dor está no fato de se fundamentar em nossa aceitação do status
especial da vida humana. Vimos que "humano" é um termo
que se subdivide em duas noções específicas: ser um membro
208 ÉTICA PRATICA

da espécie Homo sapiens e ser uma pessoa. Uma vez desmem-


brado o termo, a fragilidade da primeira premissa conservadora
se torna evidente. Se "humano" for tomado como equivalente
de "pessoa", a segunda premissa do argumento, que afirma que
o feto é um ser humano, será claramente falsa, pois não se pode,
plausivelmente, argumentar que o feto seja racional ou autocons-
ciente. Por outro lado, se "humano" for tomado apenas com o
significado de "membro da espécie Homo sapiens", então a defesa
conservadora da vida do feto terá por base uma característica
que carece de relevância moral e, portanto, a primeira premissa
será falsa. A esta altura, a questão já nos deve ser familiar: por
si só, o fato de um ser pertencer ou não à nossa espécie não é
mais relevante para o erro de matá-lo do que o fato de ele ser ou
não um membro de nossa raça. A crença em que, a despeito de
outras características, o mero fato de pertencer a nossa espécie
faz uma grande diferença quanto ao erro de matar um ser é um
legado de doutrinas religiosas que até os que se opõem ao aborto
hesitam em trazer ao debate.
O reconhecimento desse simples fato transforma toda a
questão do aborto. A pergunta-chave não é mais "quando começa
a vida humana?", pois agora podemos ver que a admissão de que o
feto é um ser humano não resolve a questão de ser ou não errado
matá-lo. Podemos examinar o feto do jeito que ele é - com as
características concretas de que dispõe - e avaliar sua vida em pé
de igualdade com as vidas de seres que possuam características
semelhantes, mas não são membros de nossa espécie. Essa mudança
de perspectiva deixa evidente que o movimento "Pró-Vida", ou
do "Direito à Vida", recebeu um nome inadequado. Aqueles que
protestam contra o aborto, mas se alimentam regularmente dos
corpos de galinhas, porcos e vacas dificilmente podem alegar que
se preocupam com a "vida" propriamente dita. Sua preocupa-
ção com embriões e fetos sugere apenas uma preocupação enviesada
com a vida de membros de nossa própria espécie. Qualquer que
seja a comparação justa de características moralmente relevan-
tes - como a racionalidade, a autoconsciência, a consciência,
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 209

a autonomia, o prazer, a dor etc. -, a vaca, o porco e a tão ridicu-


larizada galinha surgem bem à frente do feto em qualquer dos
estágios da gravidez, ao passo que, se fizermos a mesma compa-
ração com um embrião ou com um feto de menos de três meses,
um peixe daria mais indícios de ter uma consciência.
Sugiro, então, que não atribuamos à vida de um feto um
valor maior que o atribuído à vida de um animal no mesmo
nível de racionalidade, autoconsciência, consciência, capacidade
de sentir etc. Como nenhum feto é uma pessoa, nenhum feto
tem o mesmo direito à vida que uma pessoa. Até o feto ter certa
capacidade de experimentar as coisas conscientemente, o aborto
encerrará uma existência que - se considerada em termos do
que realmente é, e não de seu potencial- é mais semelhante à de
uma planta do que à de um animal senciente como um cão ou
uma vaca (resta discutir a questão da diferença que o potencial
do feto deveria fazer).

O feto como ser senciente


Quando o feto já se desenvolveu o suficiente para ter
consciência, ainda que não tenha consciência de si, o aborto
não deve ser considerado levianamente (se é que alguma mulher
considera o aborto de maneira leviana). Portanto, precisamos
perguntar quando é que o feto adquire consciência. Não chega
a surpreender que os dois lados da questão do aborto tendam a
responder de maneiras diferentes a essa pergunta. Ao afirmar
que o feto tem consciência no começo da gravidez e descrever a
dor que eles acreditam que o feto sinta durante o procedimento
abortivo, aqueles que se opõem ao aborto acrescentam a seu
repertório um argumento de forte apelo emocional. Aqueles que
defendem um ponto de vista liberal sobre o aborto geralmente
preferem não pensar na possibilidade de que o feto seja capaz de
sentir dor durante o procedimento.
Para resolver o problema, precisamos tanto de informações
científicas a respeito do desenvolvimento do cérebro e do sistema
nervoso do feto quanto de - já que os cientistas não têm como
210 ÉTICA PRÁTICA

observar diretamente a dor, e sim apenas o que acreditamos ser


seus correlatos fisiológicos - uma ideia do nível de desenvolvi-
mento necessário para permitir a consciência e a capacidade de
sentir dor. Como já vimos ao considerarmos a dor em animais
muito diferentes de nós - por exemplo, com os invertebrados -,
é difícil saber se a dor ou qualquer tipo de consciência é possível
sem um córtex cerebral funcional. Nos seres humanos, antes das
dezoito semanas de gestação ou perto disso, o córtex cerebral
não se desenvolveu o suficiente para permitir a ocorrência de
ligações sinápticas em seu interior: em outras palavras, os sinais
que produzem a dor num adulto não são recebidos. Entre dezoito
e vinte e cinco semanas de gestação, o cérebro do feto chega
a um estágio no qual surgem algumas transmissões nervosas
nas partes associadas à consciência. Mesmo então, o feto parece
encontrar-se num estado persistente de sono e, portanto, talvez
não seja capaz de sentir dor. O feto começa a "despertar" por
volta de trinta semanas de idade gestacional. Já passamos, obvia-
mente, do estágio de viabilidade, e um "feto" que se encontrasse
vivo e fora do útero nesse estágio seria um bebê prematuro, e
não mais um feto.
Para dar ao feto o benefício da dúvida, seria razoável usar
o momento mais precoce no qual talvez seja plausível afirmar
que ele seria capaz de sentir alguma coisa como o limite que,
se ultrapassado, deveria obrigar-nos a proteger o feto. Portanto,
deveríamos desconsiderar o indício incerto do estado de vigília
e escolher o momento no qual o cérebro é fisicamente capaz de
receber os sinais necessários para torná-lo consciente. Sugere-
-se que o feto passa a sentir dor a partir das dezoito semanas
de gestação. Antes desse estágio, para acreditarmos que o feto
tem consciência, teríamos de alegar que o feto é capaz de sentir
dor de alguma maneira que prescinde de ligações sinápticas no
córtex cerebral. Não é impossível, mas não temos indícios de
que isso ocorra. Felizmente, a avassaladora maioria dos abortos
são praticados muito antes das dezoito semanas: nos Estados
Unidos, mais de 85% dos abortos são realizados no primeiro
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 211

trimestre, ou seja, quando o feto tem menos de treze semanas.


Portanto, é improvável que a maioria dos abortos cause alguma
espécie de dor ao feto.
Depois de dezoito semanas de gestação, o interesse do feto
em não sofrer deve ser levado em consideração da mesma maneira
que devemos considerar os interesses de animais não humanos,
sencientes, mas não autoconscientes. Como vimos, pode ser justi-
ficável matar uma criatura senciente, mas é importante que o abate
ocorra da maneira mais indolor possível. No caso de animais não
humanos, a importância do abate humanitário é amplamente
aceita (mesmo com o cumprimento muitas vezes inadequado das
leis que exigem o abate humanitário). O estranho é que, no caso
do aborto, presta-se relativamente pouca atenção ao possível sofri-
mento do feto. Não porque o aborto seja uma prática conhecida
por matar o feto de maneira rápida e humanitária. Não faz muito
tempo, os abortos tardios - justamente aqueles em que o feto
poderia sofrer - eram praticados injetando-se uma solução salina
no saco amniótico que envolve o feto, causando-lhe convulsões
e levando-o a morrer de uma a três horas depois. Esse método
raras vezes é usado hoje em dia, e foi abandonado principalmente
por colocar a mulher grávida em risco, não porque houvesse a
preocupação de não fazer o feto sofrer. Atualmente, os abortos
tardios costumam ser provocados com a aplicação de prostaglan-
dina, um hormônio sintético que provoca contrações semelhan-
tes às do parto, embora também possa causar convulsões, e pode
levar ao nascimento de crianças vivas. Para não correr o risco de
a criança nascer viva, é possível injetar digoxina no coração do
feto, matando-o rapidamente. Esse método deveria ser usado não
por evitar o nascimento de uma criança viva, mas por evitar o
sofrimento desnecessário do feto.

O feto como vida em potencial


Até o momento, levamos em consideração apenas as carac-
terísticas reais do feto, e não suas características potenciais. Com
base nas características reais, alguns adversários do aborto hão
212 ÉTICA PRATICA

de admitir que o feto pode ser comparado com muitos animais


não humanos. Na opinião deles, é quando passamos a exami-
nar seu potencial de se tornar um ser humano maduro que o
fato de pertencer à espécie Homo sapiens se torna importante - e
a importância da vida do feto supera, de longe, a de qualquer
porco, vaca ou galinha.
Agora já podemos examinar um argumento diferente.
Podemos colocá-lo da seguinte maneira:

Primeira premissa: É errado matar um ser humano em potencial.


Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano em potencial.
Conclusão: Logo, é errado matar um fero humano.

A segunda premissa desse argumento é mais forte do que a


segunda premissa do argumento anterior. Embora seja proble-
mático saber se um feto é realmente um ser humano - isso
vai depender do que queremos dizer com o termo -, não se
pode negar que o feto é um ser humano em potencial. Isso é
verdade tanto se, por "ser humano", estivermo-nos referindo a
um "membro da espécie Homo sapiens" quanto se tivermos em
mente um ser racional e autoconsciente, uma pessoa. Contudo,
a força da segunda premissa do novo argumento é conseguida
à custa de uma primeira premissa mais fraca, pois o erro de
matar um ser humano em potencial - até mesmo uma pessoa
em potencial - é mais sujeito à contestação do que o erro de
matar uma pessoa real.
Naturalmente, é verdade que a racionalidade, a autocons-
ciência e outras características potenciais do Homo sapiens fetal
superam essas mesmas qualidades numa vaca ou num porco;
daí não se segue, porém, que o feto tenha um direito mais forte
à vida. Não existe regra que afirme que um x potencial tenha o
mesmo valor de um x ou que tenha todos os direitos de um x.
Há muitos exemplos que mostram exatamente o contrário. Arran-
car uma bolota de carvalho em germinação não é o mesmo que
derrubar um venerável carvalho. Jogar um ovo fertilizado numa
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 213

panela de água em ebulição é muito diferente de fazer a mesma


coisa com um frango vivo. O príncipe Charles (no momento em
que escrevo) é rei da Inglaterra em potencial, mas não tem, neste
instante, os direitos de um rei.
Na falta de qualquer inferência geral de 'A. é um x poten-
cial" para 'A. tem os direitos de um x", é melhor não admitirmos
que uma pessoa em potencial deva ter os direitos de uma pessoa,
a menos que nos seja fornecida alguma razão específica para que
deva ser assim nesse caso específico. Mas que razão poderia ser
essa? Essa pergunta torna-se especialmente pertinente quando
nos lembramos das premissas a partir das quais, no capítulo an-
terior, sugeriu-se que a vida de uma pessoa merece ser mais prote-
gida que a vida de um ser que não é uma pessoa. Essas razões- a
preocupação indireta do utilitarista clássico em não provocar
nos outros o medo de que sejam os próximos a serem mortos, o
peso atribuído pelo utilitarista preferencial aos desejos de uma
pessoa, a ligação estabelecida por Tooley entre o direito à vida e
a capacidade de se ver como um sujeito mental dotado de conti-
nuidade, e o princípio do respeito pela autonomia - são todas
baseadas no fato de que as pessoas veem a si mesmas como enti-
dades distintas que têm um passado e um futuro. Nenhuma des-
sas razões se aplica àqueles que hoje não são nem nunca foram
capazes de se ver dessa maneira. Se são essas as bases para não se
matar pessoas, o mero potencial de se tornar uma pessoa não
depõe contra tirar a vida.
Poder-se-ia dizer que essa resposta compreende mal a
relevância do potencial do feto humano e que esse potencial
é importante não por criar no feto um direito ou uma reivin-
dicação à vida, mas porque quem mata um feto humano está
privando o mundo de um futuro ser racional e autoconsciente.
Se os seres racionais e autoconscientes têm um valor intrínseco
que outros seres não têm, matar um feto humano significa privar
o mundo de uma coisa intrinsecamente valiosa e, portanto,
configura um erro. Contudo, a alegação de que os seres racio-
nais e autoconscientes têm um valor intrínseco particularmente
214 ÉTICA PRÁTICA

elevado não pode ser motivo para que se faça objeção a todos os
abortos ou aos abortos praticados simplesmente porque a gravi-
dez é inoportuna.
Suponhamos que uma mulher não veja a hora de partici-
par de uma expedição de alpinistas ao Himalaia em junho -
o alpinismo é uma de suas paixões, e essa expedição é uma
oportunidade rara de escalar montanhas de uma região que ela
nunca visitou -, mas, em janeiro, fica sabendo que está grávida
há dois meses. Ela e o companheiro conversaram muitas vezes
sobre o tipo de família que queriam ter, e os dois gostariam
de ter dois filhos nos próximos cinco anos. A gravidez só é
indesejada por ter ocorrido num momento inoportuno. Nessas
circunstâncias, os adversários do aborto provavelmente o veriam
como particularmente afrontoso, pois não estão em jogo nem
a vida nem a saúde da mãe, apenas o prazer que ela tem em
escalar montanhas. Contudo, se o aborto só é errado por privar
o mundo de uma futura pessoa, esse aborto em questão não é
errado, pois nada mais faz do que retardar a chegada de mais
uma pessoa ao mundo.
Por outro lado, repudiar o aborto porque impede seres de
elevado valor intrínseco de vir ao mundo é condenar, implici-
tamente, práticas que reduzem a futura população humana:
a contracepção, tanto por meios "artificiais" quanto pelos
"naturais", como a abstinência nos dias em que a mulher prova-
velmente está fértil e também o celibato. Esse argumento não
oferece nenhuma razão para se julgar o aborto pior do que
quaisquer outros meios de controle da população. Se o mundo
já está superpovoado, o argumento não oferece absolutamente
nenhuma razão para sermos contrários ao aborto.
O fato de termos no feto uma pessoa em potencial tem
alguma outra relevância? Paul Ramsey, ex-professor de religião
na Universidade de Princeton, escreveu que, ao nos ensinar que
a primeira fusão de espermatozoide e óvulo cria uma partícula
informacional "que nunca se repetirá", a genética moderna
nos leva à conclusão de que "toda destruição da vida fetal deve
TIRARA VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 215

ser classificada como assassinato". O presidente dos Estados


Unidos, George W Bush, disse algo parecido em 2001, quando,
ao defender as restrições que impôs ao financiamento federal
de pesquisas com células-tronco, afirmou que todo embrião
é único, "como um floco de neve". Mas o fato de uma coisa
ser única não é, por si só, razão para preservá-la: não tenta-
mos preservar os flocos de neve. Sem dúvida, um feto canino
também é geneticamente único. Isso significa que é tão errado
abortar um cão quanto um ser humano? Quando são concebi-
dos gêmeos idênticos, a informação genética é repetida. Assim,
será que Ramsey ou Bush acharia admissível abortar um dos
gêmeos idênticos?
Os avanços da tecnologia reprodutiva colocaram o
argumento do caráter único sob uma pressão ainda maior,
principalmente quando usado - como fez o presidente Bush -
para depor contra a destruição de embriões com o intuito de
obter células-tronco. Hoje em dia, é relativamente simples deixar
um embrião se desenvolver até o estágio no qual é formado por
duas ou quatro células, para então dividi-lo. Esse procedimento
gera dois embriões geneticamente idênticos que, se implantados
no útero de uma mulher, podem-se desenvolver normalmente,
separados um do outro (o processo é semelhante ao que ocorre
quando um embrião se divide naturalmente e gera gêmeos
idênticos). Se o motivo para a destruição de um embrião confi-
gurar um erro estiver no fato de que cada embrião é único, então
poderíamos dividi-los usando essa técnica e destruir apenas
um deles, preservando, assim, seu caráter único. Duvido que
tal coisa fosse aceitável para muitos que julgam errado destruir
embriões humanos.
Essa divisão embrionária é uma forma de clonagem, embora
não seja, obviamente, a mesma técnica que levou ao nascimento
da ovelha Dolly, clonada a partir de uma célula adulta. Os
cientistas retiraram o núcleo de uma célula de glândula mamária
ovina e o introduziram num óvulo que também tivera seu núcleo
removido. O embrião resultante foi transferido para o útero de
216 ÉTICA PRÁTICA

uma outra ovelha. Dolly era geneticamente idêntica à ovelha


doadora da célula de glândula mamária. Essa forma de clona-
gem já foi repetida em muitas espécies - gatos, cães, cavalos e
macacos, entre outras - e não há nenhuma razão científica para
se pensar que não possa ser usada em seres humanos. Portanto,
o caráter único de nossa composição genética está prestes a se
tornar uma questão de escolha: se quisermos gerar clones de
nós mesmos, provavelmente conseguiremos fazê-lo. Mas é
improvável que os militantes pró-vida aceitem a destruição de
um embrião clonado por esse não ser geneticamente único mais
do que concordariam em destruir um embrião que tivesse um
gêmeo idêntico.
A possibilidade da clonagem apresenta um problema
diferente para os argumentos contrários à destruição de embriões
em virtude de seu potencial. Hoje sabemos que várias células,
provenientes tanto de adultos quanto de embriões, podem se
transformar em novos seres humanos. As células-tronco são um
bom exemplo, pois já se demonstrou que, quando transferidas
para um óvulo sem núcleo, elas se transformam rapidamente
em novos seres. Uma das possíveis maneiras de interpretar o
argumento da vida em potencial é entendê-lo como a alegação
de que, se uma entidade pode transformar-se num novo ser
humano, devemos conceder a essa entidade um status moral
semelhante ao de um ser humano. Se aceitarmos essa alegação,
porém, aparentemente estaremos sujeitos a conceder esse status
moral não só aos embriões, mas também a todas as outras células
capazes de se transformar em seres humanos. Portanto, a tenta-
tiva de desfazer a controvérsia em torno da obtenção de células-
-tronco a partir de embriões usando-se células-tronco adultas, e
não embrionárias, sairia pela culatra, porque as próprias células-
-tronco, não importa de onde venham, têm o potencial de se
transformar em novos seres humanos. Tão logo percebemos
que são inúmeras as células que têm o potencial de se transfor-
mar em novos indivíduos humanos, também entendemos como
é absurda a alegação de que devemos proteger todos os seres
humanos em potencial.
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 217

Outros dois argumentos contra o aborto


Vale a pena mencionar à parte outros dois argumentos
contra o aborto, pois ambos aceitam que não basta simples-
mente afirmar que o feto é membro da espécie Homo sapiens e,
portanto, que seria errado matá-lo.
O primeiro deles foi apresentado por Don Marquis em
um artigo reimpresso várias vezes, intitulado "Why abortion is
immoral" [Por que o aborto é imoral]. Marquis começa pergun-
tando por que seria errado matar um de nós - você, leitor, por
exemplo. Ele responde que matar o leitor seria errado porque
privaria você de seu futuro, algo que tem valor para você. Assim,
e mantendo-se idênticas outras condições, é errado matar um
ser que, em todos os aspectos relevantes, espera-se que tenha
um futuro como o seu, leitor, um futuro que tem valor para esse
ser. E pode-se esperar que o feto tenha um futuro como esse.
Portanto, matar um feto é errado, porque isso o priva de "um
futuro como o nosso".
Essa objeção ao aborto não se aplica quando não é possível
esperar que o feto tenha um futuro como o nosso. Suponhamos,
por exemplo, que os exames pré-natais diagnostiquem que o feto
porta o gene da doença de Tay-Sachs, uma condição incurável
que leva à paralisia e, por fim, à morte, geralmente por volta
dos quatro anos de idade. Marquis admite que seu argumento
não fornece motivos para que não se mate esse feto, o que leva
muitos militantes pró-vida a rejeitar sua opinião, mas talvez
fosse melhor entender essa flexibilidade como um ponto forte
dessa posição (e um indício de que não se trata simplesmente de
uma nova roupagem da defesa tradicional da santidade da vida).
Marquis, portanto, evita a objeção de que seu ponto de
vista seja uma forma de especismo, mas, para ele, é mais difícil
evitar a objeção que se aplica aos argumentos fundamentados no
potencial do feto. Se é errado matar o feto porque isso o priva
de um futuro valioso, não seria igualmente errado decidirmos
não ter filhos? Nesse quesito, o aborto, os métodos confiáveis
de contracepção e a abstinência são todos igualmente eficazes
218 ÉTICA PRÁTICA

no que se refere a não permitir a existência de um ser com um


futuro valioso.
Marquis reconhece que aquilo que ele chama de "objeção
contraceptiva" é a réplica mais forte a seu argumento, mas ele
acredita ter uma tréplica irrefutável: "o mal que se faz ao matar
é, fundamentalmente, o mal que se faz ao indivíduo que é
morto; no momento da contracepção, não há indivíduo a ser
maltratado". Em outras palavras, segundo a ética de Marquis,
só incorremos em erro quando fazemos mal a um indivíduo já
existente. Esse ponto de vista é bastante difundido. Parece óbvio
que matar uma pessoa que anseia por um futuro valioso é pior
que não trazer ao mundo uma pessoa que, se fosse concebida,
teria um futuro valioso - com efeito, trata-se do fundamento
da razão utilitarista preferencial para não matar, discutida nos
Capítulos 4 e 5. Essa diferença desaparece, porém, quando
pensamos não em uma pessoa que anseia por seu futuro, e sim
num feto que não tem e nunca teve consciência. O feto propria-
mente dito, se for morto antes de adquirir consciência, nada
sentirá de diferente do que sentiria se não o tivessem concebido,
pois, nos dois casos, não há o que sentir. A única diferença é que,
no caso do aborto, podemos dizer que "havia um feto que nada
sentia e deixou de existir", enquanto no caso da contracepção,
só podemos dizer que nunca existiu feto algum. A diferença é
muito tênue para que nela se fundamente a distinção entre um
ato imoral e um ato moralmente inócuo.
O problema piora ainda mais quando consideramos o que
poderíamos chamar de "objeção da célula totipotente". Marquis
não se sujeita ao ponto de vista de que um indivíduo passa a
existir no momento em que o esperma penetra o óvulo. Refle-
tindo sobre o momento em que o indivíduo que terá um futuro
valioso passa a existir, ele escreve:

O fato de as células produzidas até o estágio de dezesseis células


serem totipotentes - e, portanto, capazes de se dividir em um ou
mais indivíduos - apresenta um obstáculo à ideia de que um
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 219

indivíduo humano (que, em estágio posterior, seria o adulto) passa


a existir no momento da concepção. Na verdade, é possível que, no
estágio de dezesseis células, existam dezesseis indivíduos humanos.

Se Marquis tiver razão nesse ponto, isso só dificultaria mais


as coisas para sua própria posição. Como vimos anteriormente,
podemos dividir o embrião de duas ou quatro células, criando
gêmeos ou quadrigêmeos idênticos (atrasar a divisão até o está-
gio de dezesseis células diminui a probabilidade de êxito, pois,
a essa altura, a totipotência das células está chegando ao fim). Se
dividirmos, por exemplo, o embrião de quatro células em qua-
drigêmeos e os transferirmos para o útero de uma mulher, ou,
melhor ainda, para os úteros de quatro mulheres, será possível
esperar que cada um deles tenha um futuro valioso. Portanto,
seria imoral permitir que o embrião continuasse a crescer e, as-
sim, reduzir a quantidade de vidas com futuros valiosos de qua-
tro para uma? Parece absurdo, mas Marquis não pode dizer,
nesse caso, que não há um indivíduo a se considerar, pois ele
reconheceu que é possível que cada célula totipotente seja um
indivíduo humano. Claro que poderíamos negar que cada célu-
la totipotente seja um indivíduo, mas o fato de Marquis defen-
der seu ponto de vista dessa maneira revela o modo crucial como
a aplicação de seu argumento - e a decisão de que um ato é
imoral - depende mais de fazermos distinções delicadas de sta-
tus entre várias entidades do que da possibilidade de o ato ter
consequências melhores ou piores que alguma outra coisa que
poderíamos ter feito.
Patrick Lee e Robert George, dois célebres adversários do
aborto e da destruição de embriões nos Estados Unidos, ressus-
citaram recentemente um ponto de vista profundamente enrai-
zado na tradição moral católica, mas que não procura respaldo
em premissas religiosas. Quase à semelhança de Marquis, Lee
e George rejeitam todo e qualquer apelo explícito ao simples
fato de que o embrião ou feto é um membro da espécie Homo
sapiens e repudiam todo e qualquer uso do argumento derivado
220 ÉTICA PRÁTICA

da vida em potencial, concordando em que "o direito à vida


deve-se fundamentar no que vale para a entidade no momento, e
não em seu futuro". Eles prosseguem, dizendo: "o que vale para
o embrião humano no momento é que ele ou ela é um indiví-
duo distinto dotado de uma natureza racional, muito embora
ainda leve vários anos para desenvolver totalmente suas capaci-
dades naturais e fundamentais, de modo que sejam aplicáveis de
imediato". Como todos concordamos que o embrião humano
não é, nunca foi, nem será capaz de raciocinar durante um
bom tempo, seria mais exato afirmar que o embrião humano
é "um indivíduo distinto dotado de uma natureza racional" ou
que o embrião humano "é um indivíduo distinto dotado do
potencial de se tornar um ser racional"? Se tivermos de escolher
entre essas duas maneiras de colocar a questão, a segunda
fornecerá uma descrição mais precisa do embrião. Ele não tem
"uma natureza racional". Tem, isso sim, o código genético que,
em circunstâncias favoráveis, o transformará num ser dotado
de natureza racional. Apesar de repudiarem todo e qualquer
argumento derivado de um potencial, no fim das contas, aquilo
no que Lee e George parecem se apoiar é a racionalidade poten-
cial do embrião. Pois, se insistissem em que o direito à vida se
fundamenta na faculdade atual do embrião humano de ter uma
natureza racional, o que estariam querendo dizer com isso? Pelo
jeito, tão somente que se trata de um organismo que, diferen-
temente de outros organismos - por exemplo, um cão adulto
-, tem um código genético que produzirá, em alguns anos,
um indivíduo humano dotado de natureza racional. Se esse é
o argumento, Lee e George ainda nos devem uma explicação:
por que bastaria essa faculdade para que matar um ser fosse pior
do que matar um cão adulto que não tem essa faculdade, mas,
no momento, tem uma capacidade maior de entender que está
vivo e ter preferências a respeito de sua vida? Por que deveríamos
decidir quais seres constituem um erro mais grave matar com
base num código genético que, daqui a alguns anos, produzirá a
capacidade de raciocinar? É difícil entender como seria possível
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 221

defender essa alegação sem recorrer novamente a u m argumento


religioso ou a um argumento derivado de um potencial.

O status do embrião no laboratório


A discussão do aborto que antecedeu esta seção também nos
permite resolver o debate mais recente acerca do status moral dos
embriões recém-formados fora do corpo humano. O surgimento
dessa questão mostra que não podemos contornar o problema
do status moral do embrião e do feto afirmando que, mesmo
que o embrião tenha importância idêntica à de um ser humano
adulto, a mulher ainda tem o direito de deter o controle sobre
seu próprio corpo e, assim, pode optar por encerrar a gravidez.
Quando o embrião não está alojado no corpo de uma mulher,
esse argumento não se aplica. Portanto, poder-se-ia pensar que
o argumento contra a experiência com embriões é mais forte do
que o argumento pró-aborto, pois um dos argumentos favorá-
veis a este não se aplica, enquanto se aplicam, sim, os principais
argumentos contra o aborto: o de que o embrião tem direito à
proteção por ser um ser humano ou o de que o embrião tem
direito à proteção por ser um ser humano em potencial. Na
verdade, porém, nenhum dos dois argumentos contra o aborto
se aplica tão diretamente ao caso do embrião no laboratório
quanto se poderia pensar.
Em primeiro lugar, o embrião já é um ser humano? Vimos
que, mesmo reconhecendo que a vida humana começa com
a concepção, isso não justifica a conclusão de que seja errado
destruir um feto ou embrião, pois as reivindicações de direito à
vida não devem ter por base o fato de alguém pertencer à mesma
espécie. E, se o feto não é uma pessoa, como argumentei, fica
ainda mais evidente que o embrião tampouco o é. Existe uma nova
e interessante questão a ser colocada contra a afirmação de que o
embrião é um ser humano: os seres humanos são indivíduos, e
ainda se discute se o embrião é um ser humano individual. Como
acabamos de destacar, os embriões humanos podem dividir-se em
dois ou mais gêmeos idênticos, algo que pode ocorrer a qualquer
222 ÉTICA PRÁTICA

momento até por volta do 14° dia após a fertilização. Quando temos
um embrião anterior a esse ponto, não podemos saber ao certo
se o que estamos vendo é o precursor de um ou mais indivíduos.
Isso apresenta um problema para aqueles que enfatizam a
continuidade de nossa existência desde a concepção até a vida
adulta. Suponhamos que temos um embrião dentro de um
recipiente sobre a bancada de um laboratório. Se pensarmos nesse
embrião como o primeiro estágio de um ser humano individual,
poderíamos chamá-lo de Mary. Mas suponhamos, agora, que o
embrião se divide em dois. Um deles ainda é Mary, e o outro,
Jane? Se assim for, qual dos dois é Mary? Não existe nada que
os diferencie, não há como dizer que o que chamamos de Jane
se tenha separado do que chamamos de Mary, e não vice-versa.
Portanto, deveríamos dizer que Mary já não está entre nós, mas
que, em vez disso, estamos diante de Jane e Helen? Mas o que
foi que aconteceu com Mary? Morreu? Devemos lamentar sua
morte? David Oderberg, que tenta defender o ponto de vista
de que o ser humano adulto é exatamente o mesmo indiví-
duo que o zigoto ou embrião a partir do qual se desenvolveu,
sugeriu que poderíamos lamentar devidamente a perda de Mary,
mas, por sabermos tão pouco a seu respeito, está claro que não
o faríamos da mesma maneira que choramos por alguém que
conhecíamos bem. O pesar implica que há alguma coisa que
nos deixa tristes, e é difícil enxergar o que poderia causar tristeza
na formação de gêmeos ... a menos, é claro, que não quiséssemos
suportar o fardo de ter dois bebês ao mesmo tempo. A menos
que tivéssemos algum motivo para querer que o amontoado de
células que chamávamos de Mary realizasse seu potencial como
Mary, e não como Jane e Helen, que razão há para lamentar
o ocorrido um pouquinho que seja? Na verdade, agora vemos
que dar ao amontoado de células o nome de "Mary" já é supor
que se trata de um indivíduo específico, e talvez seja isso o que
nos permita pensar que ocorre a perda lamentável de um indiví-
duo. Se pensarmos na coisa como um amontoado de células,
sendo ainda desconhecida a quantidade de indivíduos que dali
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 223

se desenvolverá, então não ficaremos tentados a imaginar que


uma vida se perdeu. Faria igual sentido lamentar a perda de
Jane e Helen se o embrião se transformasse numa única criança
(ainda não sabemos o que faz o embrião se dividir. Faz alguma
diferença se a divisão é predeterminada pela natureza intrínseca
do embrião - e simplesmente não sabemos se isso vai acontecer -
ou se a separação depende de fatores independentes do embrião
propriamente dito, talvez presentes no corpo da mulher grávida?
No primeiro caso, pode ser que exista um argumento melhor
para afirmarmos que, em certo sentido, a criança ou crianças
que se formarem a partir do embrião já existiam desde o instante
em que o espermatozoide penetrou o óvulo. Por outro lado, se
a divisão depender de algo externo ao embrião, será mais difícil
defender esse ponto de vista. Naturalmente, se a divisão for
o resultado de intervenção humana - se decidirmos dividir o
embrião no estágio de duas células -, será impossível afirmar que
os dois gêmeos existiam antes que a operação fosse executada).
Portanto, há um argumento para negarmos ao embrião a
condição de ser humano individual, mas este não é de modo
algum conclusivo. Ele oferece certo fundamento para as leis e
regulamentos da Grã-Bretanha e de vários outros países que
permitem a realização de experiências com embriões até catorze
dias depois da fertilização. Contudo, não levarei essa discus-
são adiante, pois já apresentei motivos para justificar por que,
mesmo se o embrião antes dos catorze dias de existência for um
ser humano individual, não decorre que seja errado destruí-
-lo. Consequentemente, as leis que limitam a experimentação
destrutiva com embriões até os primeiros catorze dias de vida
são desnecessariamente restritivas.
Os argumentos favoráveis à proteção de embriões no labora-
tório fundamentados no potencial também enfrentam mais
dificuldades quando aplicados aos embriões do que quando
aplicados ao feto no útero. Durante o processo normal da repro-
dução sexual humana dentro do corpo, o embrião permanece
solto nos primeiros sete a catorze dias, implantando-se poste-
224 ÉTICA PRATICA

riorrnente na parede do útero. Enquanto esses embriões só existi-


riam dentro do corpo da mulher, não haveria corno observá-los
durante esse período. A própria existência do embrião só poderia
ser determinada depois da implantação. Nessas circunstâncias,
assim que se tornasse conhecimento da existência de tal embrião,
ele passaria a ter boas probabilidades de se tornar urna pessoa,
a menos que seu desenvolvimento seja deliberadamente inter-
rompido. Portanto, a possibilidade de o embrião se tornar urna
pessoa seria muito maior do que a de um óvulo, numa mulher
fértil, se unir ao esperrnatozoide do parceiro dessa mulher e
levar à geração de urna criança.
Também há outra importante distinção entre o embrião e o
óvulo e o esperrnatozoide. Enquanto o embrião dentro do corpo
feminino tem urna possibilidade definida (cuja extensão exami-
naremos mais adiante) de se transformar numa criança, a menos
que um ato humano deliberado interrompa seu desenvolvimen-
to, o óvulo e o esperrnatozoide só se podem transformar numa
criança se houver um ato humano: o ato sexual. No primeiro
caso, portanto, tudo que se precisa para que o embrião tenha a
perspectiva de realizar seu potencial é que as pessoas envolvidas
não decidam interromper seu desenvolvimento; no segundo caso,
é preciso que pratiquem um ato específico. Portanto, o desen-
volvimento do embrião dentro do corpo feminino pode ser visto
corno o mero desdobramento de um potencial que lhe é ineren-
te (devo admitir que estou recorrendo a urna simplificação ex-
cessiva, que não leva em conta os atos concretos que dizem
respeito ao parto e aos cuidados com o recém-nascido; mas essa
aproximação é suficiente). É mais difícil entender dessa maneira
o desenvolvimento do óvulo e do esperrnatozoide separados, pois
nenhum desenvolvimento ocorrerá a menos que o casal mante-
nha relações sexuais ou recorra à inseminação artificial.
Examinemos, agora, o que aconteceu em decorrência
do sucesso da fertilização in vitro. O procedimento implica
remover um ou mais óvulos do ovário de urna mulher, colocá-los
TIRARA VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 225

dentro de um recipiente de vidro contendo um fluido apropriado,


ao qual então se acrescenta o esperma. Nos laboratórios mais
eficientes, isso leva à fertilização em cerca de 80% dos óvulos
assim tratados. O embrião pode então ser mantido no recipiente
durante alguns dias, enquanto se desenvolve e suas células se
dividem. Se aparentar estar se desenvolvendo normalmente, será
transferido para o útero da mulher ou congelado para ser utili-
zado no futuro, caso a mulher não engravide com o embrião ou
os embriões transferidos. Ainda que, em si, a transferência seja
um procedimento simples, é só depois dela que existe a possi-
bilidade de as coisas correrem mal, por razões ainda não plena-
mente compreendidas. Até mesmo no caso das equipes de FIV
mais bem-sucedidas, a probabilidade de um embrião transferido
para um útero realmente se implantar e levar ao nascimento de
uma criança viva costuma ser inferior a 20% e, em mulheres
com mais de 37 anos, em geral não passando de 10% (as clíni-
cas de FIV costumam mencionar "taxas de sucesso" muito mais
altas, mas seus números se baseiam em nascimentos bem-suce-
didos "por ciclo de tratamento", e um ciclo geralmente envolve
a transferência de dois ou três embriões). Em resumo, antes
do advento da FIV, em todos os casos em que soubéssemos da
existência de um embrião humano normal, teria sido correto
afirmar, a respeito desse mesmo embrião, que, a menos que ele
sofresse interferência deliberada, haveria uma grande probabili-
dade de que ele se transformasse numa pessoa. O processo da
FIV, porém, leva à criação de embriões que só se transformarão
numa pessoa se houver um ato humano deliberado (a transferên-
cia para o útero), e que, ainda assim, na melhor das circunstân-
cias, muito provavelmente não se transformarão numa pessoa.
O resultado de tudo isso é que a FIV diminuiu a diferença
entre o que pode ser dito sobre o embrião e o que pode ser dito
sobre o óvulo e o espermatozoide, quando ainda separados, mas
vistos como um par. Antes da FIV, qualquer embrião humano
normal que conhecêssemos tinha possibilidades muito maiores
226 ÉTICA PRÁTICA

de se transformar numa criança do que qualquer óvulo e esper-


matozoide anteriores ao processo de fertilização. Com a FIV,
porém, há uma diferença muito mais modesta na probabilidade
de uma criança se originar de um embrião de duas células dentro
de um recipiente de vidro e na probabilidade de uma criança
resultar de um óvulo e de um pouco de esperma dentro de um
recipiente de vidro. Para ser mais preciso, se admitirmos que um
laboratório tem índice de fertilização de 80% no caso de óvulos
retirados de pacientes e que seu índice de gravidez por embrião
transferido é de 20%, então, quando o laboratório recebeu o
óvulo, a probabilidade deste se transformar numa criança era
de 16%; porém, se já fosse um embrião, a probabilidade de o
embrião se transformar numa criança seria de 20%. Portanto,
se o embrião é uma pessoa em potencial, por que óvulo e esper-
matozoide, considerados em conjunto, não são também uma
pessoa em potencial? Nenhum membro do movimento pró-vida
deseja resgatar óvulos e espermatozoides para salvar as vidas das
pessoas nas quais eles potencialmente se transformarão.
Examinemos a seguinte sequência de acontecimentos, não
de todo improvável. No laboratório de FIV, o óvulo de uma mulher
foi obtido e está dentro de um recipiente sobre a bancada. O
esperma de seu parceiro está num recipiente ali ao lado, pronto
para ser misturado à solução que contém o óvulo. É então que
chegam más notícias: o obstetra descobriu que a mulher tem um
problema de saúde que só permitirá ao útero receber o embrião
em um mês, e o laboratório não tem como congelar embriões.
Não há, portanto, por que dar seguimento ao processo. Pede-se
a um assistente de laboratório que descarte o óvulo e o esperma.
Ele os joga numa pia. Até aí, tudo bem. Só que, algumas horas
depois, quando volta para preparar o laboratório para o próximo
procedimento, o assistente percebe que a pia está entupida. O
óvulo e o fluido ainda estão ali, no fundo da pia. Quando está
prestes a desentupir a pia, o assistente dá-se conta de que o
esperma também foi jogado ali. Muito provavelmente, o óvulo
foi fertilizado! Que fazer agora? Aqueles que fazem uma aguda
TIRARA VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 227

distinção entre o óvulo e o esperma e o embrião devem susten-


tar que, se o assistente pôde inocentemente jogar o óvulo e o
esperma na pia, seria errado que ele a desentupisse agora. Isso é
difícil de aceitar. A potencialidade não parece ser um conceito
do tipo "tudo ou nada"; a diferença entre óvulo e esperma e o
embrião é uma diferença de grau, associada à probabilidade de
transformação em uma pessoa.
Os defensores tradicionais do direito à vida para o embrião
têm relutado em introduzir graus de potencial no debate, pois,
uma vez que se aceite a noção, parece inegável que o embrião
em sua fase inicial seja menos uma pessoa em potencial do que
o embrião numa fase mais adiantada ou o feto. Isso poderia ser
facilmente entendido de modo a concluirmos que a proibição
à destruição do embrião primitivo é menos rigorosa do que a
proibição à destruição do embrião em fase mais adiantada ou do
feto. Não obstante, alguns defensores do argumento derivado
do potencial recorrem à probabilidade. Um deles é o teólogo
católico John Noonan:

Assim como a vida em si é uma questão de probabilidades, assim


como a maior parte dos raciocínios morais é um cálculo de proba-
bilidades, parece igualmente de acordo com a estrutura da reali-
dade e a natureza do pensamento moral encontrar um juízo moral
sobre a mudança de probabilidades no que diz respeito à concepção
[...]. O argumento seria diferente se apenas uma em cada dez crian-
ças concebidas viesse a nascer? É claro que esse argumento seria
diferente. É um apelo às probabilidades que realmente existem,
e não a todo e qualquer estado de coisas que possa ser imaginado
[...]. Se um espermatozoide é destruído, destruiu-se um ser que
tinha uma probabilidade de muito menos de 1 em 200 milhões
de se transformar num ser racional, dotado de código genético,
de um coração e outros órgãos, e capaz de sentir dor. Se um feto
é destruído, destruiu-se um ser já dotado de código genético, de
órgãos, sensível à dor e com 80% de possibilidade de se transfor-
mar num bebê fora do útero, um bebê que, com o tempo, teria a
capacidade de raciocinar.
228 ÉTICA PRÁTICA

O artigo do qual essa citação foi extraída chegou a influen-


ciar bastante o debate sobre o aborto, e tem sido muito citado e
republicado pelos que se opõem a essa prática, mas o desenvol-
vimento de nossa compreensão do processo reprodutivo tornou
insustentável a posição de Noonan. A primeira dificuldade está
em que os números que ele apresenta acerca da sobrevivência do
embrião, inclusive no útero, não são mais considerados preci-
sos. Na época em que Noonan escreveu o artigo, a estimativa
de gravidezes perdidas baseava-se no reconhecimento clínico da
gravidez entre seis a oito semanas depois da fertilização. Nesse
estágio, a possibilidade de alguém perder a gravidez por aborto
espontâneo é de cerca de 15%. Contudo, os recentes avanços
técnicos que possibilitam um reconhecimento mais precoce da
gravidez oferecem números surpreendentemente diversos. Se
a gravidez for diagnosticada antes da implantação (até catorze
dias depois da fertilização), a probabilidade de resultar em
nascimento será de 25 a 30%. No caso dos diagnósticos pós-im-
plantação, as chances aumentam, inicialmente, para 46 a 60%,
e é só depois da sexta semana de gestação que a possibilidade de
nascimento passa a ser de 85 a 90%.
Noonan afirmou que seu argumento é "um apelo às proba-
bilidades que realmente existem, e não a todo e qualquer estado
de coisas que possa ser imaginado". Contudo, se mudarmos as
reais probabilidades de os embriões se tornarem pessoas em
diferentes estágios de sua existência, o argumento de Noonan
não é capaz de confirmar o momento da fertilização como a fase
em que o embrião adquire um status moral significativamente
diferente. Na verdade, se fôssemos exigir uma probabilidade de
80% para a posterior transformação num bebê - número que
o próprio Noonan menciona -, teríamos de esperar até quase
seis semanas depois da fertilização para que o embrião tivesse a
importância que Noonan quer reivindicar para ele.
A certa altura de sua argumentação, Noonan refere-se ao
número de espermatozoides envolvidos na ejaculação mascu-
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 229

lina e afirma que só existe uma entre 200 milhões de possi-


bilidades de que um espermatozoide venha a ser parte de um
ser vivo. Esse enfoque no espermatozoide, e não no óvulo, é
curioso (talvez um exemplo de viés masculino?), mas, ainda
que o deixemos passar, as novas tecnologias colocam mais uma
dificuldade diante desse argumento. Atualmente existe um
meio de superar a infertilidade masculina provocada pela baixa
contagem de espermatozoides. O óvulo é removido, como no
procedimento in vitro normal, mas, em vez de se acrescentar
uma gota de fluido seminal ao recipiente que contém o óvulo,
um único espermatozoide é pinçado por uma agulha fina e
microinjetado sob a camada externa do óvulo. Assim, se compa-
rarmos a probabilidade de o embrião se tornar uma pessoa com
a probabilidade de o óvulo ter o mesmo destino - juntamente
com o único espermatozoide que foi pinçado pela agulha e está
prestes a ser microinjetado no óvulo -, seremos incapazes de
encontrar uma distinção nítida entre um e outro. Isso signi-
fica que seria errado interromper o processo assim que o esper-
matozoide fosse pinçado? O argumento das probabilidades de
Noonan pode dar a impressão de comprometê-lo tanto com essa
afirmação implausível quanto com a aceitação de que podemos
destruir embriões humanos. Esse procedimento também
destrói a afirmação de Ramsey sobre a importância da estrutura
genética única, pois aquela "partícula informacional que nunca
se repetirá" foi determinada no caso do embrião, mas não no
caso do óvulo e do espermatozoide. Pois, nesse caso, ela também
é determinada antes da fertilização.
Nesta seção, tentei mostrar de que modo as circunstân-
cias especiais do embrião no laboratório afetam a aplicação
dos argumentos discutidos em outra parte deste capítulo sobre
o status do embrião ou do feto. Não tentei abranger todos os
aspectos da fertilização in vitro e das experiências com embriões.
Para fazê-lo, seria preciso investigar várias outras questões,
inclusive a conveniência da alocação dos escassos recursos
230 ÉTICA PRATICA

médicos para essa área num momento em que o mundo passa


por um sério problema de superpopulação. Outros usos da
FIV- como a doação ou venda de embriões a terceiros, a contra-
tação de uma barriga de aluguel para gestar a criança, a possi-
bilidade de mulheres mais velhas terem filhos (em 2008, uma
indiana de setenta anos usou a técnica e se tornou a mulher mais
idosa da história comprovável a ter dado à luz uma criança),
a seleção de embriões em busca de um que atenda a certos crité-
rios genéticos desejáveis - apresentam problemas éticos distin-
tos. São questões importantes, mas abordá-las faria com que nos
afastássemos muito dos temas principais deste livro.

Aborto e infanticídio
Permanece uma importante objeção ao argumento que
apresentei em favor do aborto. Já vimos que a força da posição
conservadora está na dificuldade de os liberais demonstrarem
a existência de uma linha divisória moralmente significativa
entre um embrião e um bebê recém-nascido. A clássica postura
liberal deve ser capaz de mostrar onde se situa essa linha, pois os
liberais costumam afirmar que é permissível matar um feto ou
embrião, mas não um bebê. Afirmei que a vida de um feto
(e, mais claramente ainda, a de um embrião) não tem mais valor
que a vida de um animal num estágio semelhante de raciona-
lidade, autoconsciência, capacidade de sentir etc., e que, não
sendo uma pessoa, nenhum feto tem o mesmo direito à vida
que uma pessoa. Ora, é preciso admitir que esses argumentos
aplicam-se tanto ao bebê recém-nascido quanto ao feto. Um
bebê de uma semana não é um ser racional e consciente de si,
e existem muitos animais cuja racionalidade, autoconsciência,
capacidade de sentir etc. são muito mais desenvolvidas do que
os mesmos atributos como os encontramos num bebê de uma
semana ou um mês de idade. Se, pelas razões que apresentei,
o feto não tem o mesmo direito à vida que uma pessoa, parece
que o bebê recém-nascido tampouco o tem. Assim, embora
TIRARA VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 231

minha posição sobre o status da vida fetal possa ser aceitável para
muitas pessoas, as implicações dessa posição quanto ao status
da vida recém-nascida estão em desacordo com o pressuposto
virtualmente incontestado de que a vida de um bebê recém-
-nascido é tão sacrossanta quanto a de um adulto. Na verdade,
algumas pessoas parecem pensar que a vida de um bebê é mais
preciosa do que a de um adulto. Histórias medonhas de solda-
dos alemães enfiando suas baionetas em bebês belgas apareciam
com grande destaque na onda de propaganda antiteutônica que
acompanhou a entrada da Grã-Bretanha na Primeira Guerra
Mundial, e aparentemente presumia-se de maneira tácita que
essa atrocidade era pior que o assassinato de adultos.
Não vejo o conflito entre a posição que assumi e as ideias
muito difundidas sobre a santidade da vida do bebê como um
motivo que justifique o abandono de minha posição. Quando
raciocinamos em termos éticos, não devemos hesitar em contes-
tar ideias éticas quase universalmente aceitas se temos motivos
para achar que talvez não estejam tão bem fundadas quanto
parecem. É verdade que os bebês nos encantam por serem peque-
nos e indefesos, e, sem dúvida, existem boas razões de natureza
evolutiva para que instintivamente nos sintamos inclinados a
protegê-los. Também é verdade que os bebês não podem ser
combatentes, e matá-los em tempo de guerra é o mais gritante
caso de assassinato de civis, proibido por convenção interna-
cional. Em geral, como os bebês são indefesos e moralmente
incapazes de cometer um crime, faltam a quem os matam as
desculpas comumente oferecidas para o assassinato de adultos.
Nada disso mostra, porém, que a morte de um bebê seja uma
coisa tão perversa quanto a de um adulto (inocente).
Tentando chegar a um juízo ético ponderado a respeito
dessa questão, devemos deixar de lado os sentimentos baseados
na aparência indefesa, diminuta e- às vezes- graciosa dos bebês
humanos. Pensar que as vidas dos bebês têm um valor especial
porque eles são pequenos e engraçadinhos equivale a pensar que
232 ÉTICA PRÁTICA

o filhote de uma foca, com sua pelagem branca e macia e seus


grandes olhos redondos, merece mais proteção que um gorila,
que não tem esses atributos. O desamparo e a inocência do bebê
Homo sapiens também não podem servir de motivo para preferi-lo
ao igualmente indefeso e inocente Homo sapiens fetal, ou, a esse
propósito, para preferi-lo a ratos de laboratório que são "inocen-
tes" exatamente no mesmo sentido em que o é o bebê humano-
e quase tão desamparados quanto este último, dado o poder que
sobre eles exercem as pessoas que os usam em suas experiências.
Se conseguirmos pôr de lado esses aspectos comoventes,
mas rigorosamente irrelevantes, da morte deliberada de um bebê,
seremos capazes de ver que os motivos para não matar pessoas não
se aplicam aos bebês recém-nascidos. A razão indireta do utilita-
rismo clássico não se aplica, pois ninguém capaz de compreen-
der o que está acontecendo quando um recém-nascido é morto
poderia sentir-se ameaçado por uma diretriz política que desse
menos proteção aos recém-nascidos do que aos adultos. A esse
respeito, Bentham estava certo ao descrever o infanticídio como
algo cuja natureza "não leva a mais medrosa das imaginações a
sentir a menor inquietação". Quando já somos suficientemente
velhos para compreender essa política, já somos velhos demais
para nos sentirmos ameaçados por ela.
Do mesmo modo, a razão utilitarista preferencial para se
respeitar a vida de uma pessoa não se pode aplicar a um recém-
-nascido. Os recém-nascidos não se veem como seres que podem
ter ou não um futuro; portanto, não podem ter o desejo de
continuar vivendo. Pela mesma razão, se o direito à vida deve ter
por base a capacidade de querer continuar vivo ou a capacidade
de se ver como um sujeito mental contínuo, um recém-nascido
não pode ter o direito à vida. Por último, o recém-nascido não
é um ser autônomo, capaz de fazer escolhas; portanto, matar
um recém-nascido não pode violar o princípio do respeito pela
autonomia. Em tudo isso, o recém-nascido está em pé de igual-
dade com o feto; consequentemente, existem menos razões
contra matar bebês e fetos do que contra matar aqueles que se
TIRAR A VIDA: O EMBRIÃO E O FETO 233

conseguem ver como entidades distintas dotadas de existência


no tempo.
É claro que seria difícil dizer em qual idade as crianças
começam a se ver como entidades distintas dotadas de existência
no tempo. No entanto, a dificuldade de traçar essa linha divisó-
ria não é motivo para que a tracemos num lugar obviamente
errado, tanto quanto a notória dificuldade de dizer quantos fios
de cabelo um homem precisa ter perdido antes que possamos
chamá-lo de "calvo" não é motivo para se dizer que alguém não
é calvo quando a sua cabeça mais parece uma bola de bilhar.
É evidente que, quando o que está em risco são os direitos,
é melhor pecar pelo excesso de segurança. Existe alguma plausi-
bilidade no ponto de vista de que, para fins legais, uma vez que
o nascimento proporciona a única linha divisória nítida, clara e
facilmente compreensível, a lei de homicídio deve continuar a se
aplicar a partir do nascimento. Uma vez que esse é um argumento
da esfera da política e do direito públicos, ele é compatível com
o ponto de vista de que, por razões puramente éticas, o assassi-
nato de um recém-nascido não é comparável ao de uma criança
mais velha ou de um adulto. Alternativamente, lembrando a
distinção estabelecida por Hare entre os planos crítico e intuitivo
de raciocínio moral, poder-se-ia sustentar que o juízo ético ao
qual chegamos só se aplica em termos de moralidade crítica: para
a tomada de decisões cotidianas, deveríamos agir como se uma
criança tivesse direito à vida desde o momento em que nasce.
No próximo capítulo, examinaremos outra possibilidade: a de
que devem existir pelo menos algumas circunstâncias nas quais
o pleno direito legal à vida entra em vigor não no nascimento,
mas só algum tempo depois - um mês, talvez. Isso propiciaria a
ampla margem de segurança há pouco mencionada.
Se essas conclusões parecem chocantes demais para serem
levadas a sério, talvez valha a pena lembrar que a proteção absoluta
que damos às vidas dos bebês é uma atitude especificamente cristã,
e não um valor ético universal. O infanticídio tem sido praticado
em sociedades que, geograficamente, vão do Taiti à Groenlândia,
234 ÉTICA PRATICA

em culturas tão variadas quanto as dos aborígenes nômades austra-


lianos, as sofisticadas comunidades urbanas da Grécia antiga,
da China dos mandarins ou do Japão até o século XIX.
Na Grécia antiga, os espartanos não eram os únicos a
abandonar suas crianças nas encostas das colinas: tanto Platão
quanto Aristóteles recomendavam a morte dos bebês defor-
mados. Romanos como Sêneca, cujo senso moral compassivo
surpreende o leitor moderno (ou a mim, pelo menos), por
parecer superior ao dos primeiros autores cristãos da Idade
Média, também viam o infanticídio como a solução natural e
humanitária para o problema colocado pelos bebês doentes
e deformados. A mudança da atitude ocidental diante do infan-
ticídio desde a época romana é um produto do cristianismo.
Talvez hoje seja possível examinar essas questões sem adotar a
estrutura moral cristã que, por tanto tempo, impediu toda e
qualquer reavaliação essencial.
Nada disso pretende sugerir que alguém que saia por
aí matando bebês a esmo equipare-se, moralmente, a uma
mulher que faz um aborto. Devemos estabelecer condições
muito rigorosas para o infanticídio permissível. Essas restri-
ções, porém, teriam de estar mais ligadas aos efeitos do infan-
ticídio sobre os outros do que ao erro intrínseco de matar um
bebê. É óbvio que, na maior parte dos casos, matar um bebê
significa infligir uma terrível perda aos que amam a criança.
Minha comparação entre o aborto e o infanticídio foi sugerida
pela objeção de que a posição que assumi a respeito do aborto
também justifica o infanticídio. Admiti essa acusação na medida
em que o erro intrínseco de matar o feto em fase avançada e o
erro intrínseco de matar o recém-nascido não são coisas marca-
damente diferentes. Nos casos de aborto, porém, admitimos que
as pessoas mais atingidas - os futuros pais, ou, pelo menos, a
futura mãe- desejam fazer o aborto. Portanto, o infanticídio só
poderá ser comparado ao aborto quando as pessoas mais próxi-
mas da criança não quiserem que ela viva. Como um bebê pode
ser adotado por outros, o que não está ao alcance de um feto em
TIRARA VIDA: OEMBRIÁOEOFETO 235

estágio anterior ao da viabilidade, esses casos serão raros (alguns


deles serão discutidos no capítulo seguinte). Matar um bebê
cujos pais não querem sua morte constitui, sem dúvida, uma
questão inteiramente diversa, da mesma maneira que obrigar
uma mulher a fazer um aborto que ela não deseja é completa-
mente diferente de permitir a uma mulher optar pelo aborto.
7

Tirar a vida: humanos

No fim do capítulo anterior, extrapolamos a questão do


aborto e chegamos ao infanticídio, confirmando a suspeita dos
defensores da santidade da vida humana de que, uma vez aceito
o aborto, a eutanásia nos espera na próxima esquina. Para eles,
é mais um motivo para se opor ao aborto. Afirmam que a eutanásia
vem sendo rejeitada pelos médicos desde o século v a.c., quando
começaram a fazer o juramento de Hipócrates e a prometer
que "A ninguém dar[iam], por comprazer, nem remédio mortal
nem um conselho que induza a perda". Além disso, dizem eles,
o programa de extermínio nazista é um exemplo recente e terrí-
vel do que pode acontecer quando se confere ao Estado o poder
de matar seres humanos inocentes.
Não nego que, quando se admite o aborto nas bases apresen-
tadas no capítulo anterior, o argumento que favorece o assassi-
nato de outros seres humanos em determinadas circunstâncias
torna-se forte. Porém, como tentarei mostrar neste capítulo,
não é algo a ser visto com horror, e o uso da analogia nazista
é profundamente enganador. Pelo contrário, quando abando-
namos essas doutrinas sobre a santidade da vida humana,
que caem por terra assim que são questionadas - como vimos
no Capítulo 4 -, o que se torna horrível, em alguns casos, é a
recusa em admitir que é preciso matar.
Quando a primeira edição deste livro foi publicada em
1979, nenhum país havia legalizado a eutanásia, mas, na Suíça,
um médico poderia prescrever drogas letais aos pacientes que
238 ÉTICA PRÁTICA

procurassem ajuda para morrer. Trinta anos depois, a eutaná-


sia voluntária e/ou o suicídio assistido foram legalizados nos
Países Baixos, na Suíça, Bélgica, Luxemburgo e nos estados
norte-americanos do Oregon, Washington e Montana. Antes de
considerarmos a justificabilidade dessas práticas, pode ser útil
esclarecermos a terminologia.

Formas de ajudar a morrer


À semelhança do aborto, ajudar uma pessoa a morrer é
algo extremamente polêmico, e os aspectos políticos da questão
influenciaram a terminologia utilizada. Nos Estados Unidos,
a discussão se concentrou na possibilidade, caso um paciente
peça ao médico que o ajude a morrer, de o médico ter ou não
permissão para prescrever algo que, se for tomado pelo paciente,
porá fim à sua vida de maneira rápida e humanitária. Isso foi
legalizado nos estados do Oregon e de Washington depois da
aprovação, pela maioria dos eleitores, de referendos de inicia-
tiva popular. O Supremo Tribunal de Montana, em 2009,
declarou que essa ajuda não infringia nenhuma lei. Costuma
ser chamada de "suicídio assistido por médicos", ou simples-
mente "suicídio assistido", mas, ao menos nos Estados Unidos,
a palavra "suicídio" tem conotações tão negativas que as organi-
zações que lutam para legalizá-lo preferem chamá-lo de "morte
com dignidade" ou "ajuda para morrer". Esses termos são muito
vagos para discussões filosóficas. "Morte com dignidade" pode
significar praticamente qualquer coisa, dependendo do que as
pessoas considerem uma maneira digna de morrer. ''Ajuda para
morrer" dificilmente seria mais específico. Poderia se referir a
atos que deixassem a pessoa agonizante mais confortável, sem
abreviar sua vida, como a aplicação de quantidades moderadas
de analgésicos, ou se poderia referir a ministrar ao paciente,
mediante seu pedido, uma injeção letal. Além disso, nenhuma
dessas expressões informa quem ajudaria o paciente a morrer.
O termo "morte assistida por médicos" se aproxima mais do
que realmente acontece, mas ainda não enfatiza o fato de que é
TIRAR A VIDA: HUMANOS 239

o paciente quem toma a decisão de pôr fim à própria vida.


É verdade que os doentes terminais que decidem pôr fim às suas
vidas para não sofrer mais tomam uma decisão muito diferente
daquela tomada pelas pessoas que se matam por causa de trans-
tornos emocionais, mas isso não muda o fato essencial de que
todas essas pessoas estão pondo fim às suas vidas, em vez de
continuar vivendo o máximo possível. Consequentemente, não
nos deveríamos esquivar do termo "suicídio assistido", pois
ele oferece a descrição mais precisa do que acontece quando
um médico, a pedido do paciente, prescreve uma droga que o
paciente tomará para pôr fim à sua vida. Ao usarmos esse termo,
devemos nos esforçar para desconsiderar as conotações negativas
que a palavra "suicídio" possa ter. Muitas culturas já considera-
ram o suicídio, em determinadas circunstâncias, um ato racional,
honrado e, em alguns casos, até nobre. O filósofo estoico Sêneca
escreveu que o sábio "vive tanto quanto deve viver, e não tanto
quanto pode". Carão, o Jovem, um político romano renomado
por ser Íntegro e se recusar a receber subornos, cometeu suicí-
dio quando se viu incapaz de deter a destruição da república
romana por Júlio César. De acordo com Plutarco, César disse:
"Carão, invejo tua morte" - reconhecendo que, ao pôr fim à
sua vida, Catão teria feito algo realmente nobre. Assim, usemos
esse termo, sem prejudicar nossa discussão da possibilidade de o
suicídio assistido ser justificável ou legalizado nas circunstâncias
que examinaremos.
O suicídio assistido pode ser considerado um tipo de
eutanásia, mas o segundo termo tem significados mais amplos.
"Eutanásia" significa, segundo o dicionário, "morte serena, sem
sofrimento", mas hoje o termo é usado para se referir à morte
deliberada daqueles que têm doenças incuráveis e sofrem de
angústia e dores insuportáveis, com o propósito de poupá-los
de mais aflição e sofrimento. Difere, portanto, do suicídio assis-
tido por médicos na medida em que o médico ou outra pessoa
que propicie a eutanásia pode causar a morte, ministrando ao
paciente uma injeção letal, por exemplo. Entre as definições
240 ÉTICA PRÁTICA

mais comuns de eutanásia, existem três tipos diferentes, e cada


um desses suscita questões éticas específicas. Nossa discussão
terá muito a ganhar se começarmos definindo os três tipos de
eutanásia e inserindo-os no contexto geral. Em seguida, podere-
mos avaliar a justificabilidade de cada tipo.

Eutanásia voluntária
Eutanásia voluntária é a eutanásia praticada mediante
um pedido espontâneo da pessoa a ser morta que, ao fazer
esse pedido, precisa estar em pleno exercício de suas faculda-
des mentais e ter todas as informações necessárias. A eutaná-
sia pode ser voluntária mesmo quando a pessoa deixa de ter o
exercício pleno de suas faculdades mentais até o momento de
sua morte, pois ela poderia ter expresso sua vontade por escrito
quando ainda tinha saúde, especificando as condições nas quais
gostaria de morrer, caso se visse privada de suas faculdades
mentais. Ao matarmos alguém que fez tal pedido, reafirmou-o
diversas vezes e se encontra agora numa das condições descritas,
podemos perfeitamente alegar que agimos com o consentimento
de quem foi morto; portanto, seria eutanásia voluntária.
Na Holanda, uma série de processos judiciais na década
de 1980 assegurou a um médico o direito de ajudar um de seus
pacientes a morrer. Os tribunais não fizeram distinção entre
prescrever ao paciente uma dose letal de um medicamento e
aplicar no paciente uma injeção letal. Na verdade, a maioria dos
médicos holandeses prefere presenciar a morte do paciente, para
garantir que tudo corra bem. Além disso, alguns pacientes não
conseguem engolir ou manter no estômago uma dose considerá-
vel de medicamento, por isso, a preferência costuma ser a aplica-
ção de injeções.
Em 2002, o parlamento holandês legalizou a eutanásia
voluntária desde que os médicos observem certas diretrizes (que
serão descritas mais adiante neste capítulo). A Bélgica fez a mesma
coisa naquele mesmo ano. Em 2008, Luxemburgo tornou-se o
terceiro país do mundo a legalizar a eutanásia voluntária.
TIRAR A VIDA: HUMANOS 241

Eutanásia involuntária
Considero a eutanásia involuntária quando a pessoa morta
tem condições de consentir com a própria morte, mas não o faz,
seja porque não lhe perguntaram ou porque, se perguntaram,
ela optou por continuar vivendo. Admito que essa definição
engloba dois casos diferentes numa mesma categoria. Há uma
diferença significativa entre matar alguém que prefere conti-
nuar vivo e matar alguém que não consentiu em ser morto, mas
que, se perguntado, teria dado seu consentimento. Na prática,
porém, é difícil imaginar casos em que uma pessoa é capaz de
consentir e teria consentido se perguntada, mas não lhe foi feita
a pergunta. Afinal, por que não perguntar? Somente nas situa-
ções mais bizarras é que se poderia pensar num motivo para não
obter o consentimento de uma pessoa ao mesmo tempo capaz e
desejosa de concordar com a própria morte.
Matar alguém que não consentiu em ser morto só pode
ser apropriadamente visto como eutanásia quando o motivo de
quem mata é o desejo de poupar a pessoa de um sofrimento
intolerável. Sem dúvida, é estranho que alguém agindo com essa
motivação venha a desprezar os desejos da pessoa em cujo nome
e benefício a ação é praticada. Os casos autênticos de eutanásia
involuntária parecem ser muito raros.

Eutanásia não voluntária


Essas duas definições abrem espaço para um terceiro tipo de
eutanásia. Se um ser humano não é capaz de compreender a escolha
entre a vida e a morte, a eutanásia não seria nem voluntária, nem
involuntária, mas não voluntária. Entre os incapazes de consentir
estariam incluídos os bebês que sofrem de doenças incuráveis ou
com graves deficiências e as pessoas que, por motivo de acidente,
doença ou velhice, já perderam para sempre a capacidade de
compreender o problema em questão, sem que tenham previa-
mente solicitado ou recusado a eutanásia nessas circunstâncias.
242 ÉTICA PRÁTICA

Em 1988, Samuel Linares, um bebê, engoliu um pequeno


objeto que ficou preso em sua traqueia e impediu o fluxo de
oxigênio para o cérebro. Se o caso tivesse ocorrido cinquenta anos
antes, não há dúvida de que Samuel teria morrido em seguida,
e nenhuma decisão precisaria ter sido tomada. No entanto,
graças à disponibilidade da moderna tecnologia médica, ele deu
entrada em um hospital de Chicago, em coma, e foi colocado
em um respirador. Oito meses depois, ele ainda estava em estado
comatoso, ligado ao respirador, e o hospital planejava removê-
-lo para uma unidade de terapia prolongada. Pouco antes da
remoção, os pais de Samuel foram visitá-lo no hospital. A mãe
saiu do quarto, o pai sacou de um revólver e pediu que a enfer-
meira se afastasse. Em seguida, desligou Samuel do respirador e
embalou o bebê nos braços até que ele morresse. Ao se certificar
de que Samuel estava morto, largou o revólver e se entregou à
polícia. Foi acusado de homicídio doloso, mas o júri se recusou
a acatar essa acusação; mais tarde, ele recebeu uma suspensão da
sentença pela acusação menor decorrente do uso da arma.
No Canadá, em 1993, Robert Latimer matou sua filha Tra-
cey, doze anos de idade e deficiente, colocando-a na cabine da
caminhonete da família e envolvendo-a com os gases do escape.
Os indícios sugeriam que Tracey, que padecia de uma forma gra-
ve de paralisia cerebral, não andava, não falava, não conseguia
alimentar-se sozinha e sentia dores significativas. Latimer disse
que sua prioridade era "livrá-la da dor". Foi condenado por homi-
cídio doloso e sentenciado à prisão perpétua, com possibilidade
de obter liberdade condicional só depois de cumprir pelo menos
dez anos. Muitos canadenses acharam o veredito rigoroso de-
mais, mas nenhum dos vários recursos apresentados foi capaz de
libertá-lo. Ele obteve a liberdade condicional em 2008.
É evidente que esses casos suscitam questões diferentes
das apresentadas pela eutanásia voluntária. O desejo de morrer
inexiste na pessoa que foi morta. Também se pode questionar se,
em tais casos, a morte é provocada tendo em vista o benefício da
criança ou o de sua família. Cuidar de Samuel Linares teria sido,
TIRAR A VIDA: HUMANOS 243

sem dúvida, um peso enorme e inútil para a família e um desper-


dício dos já escassos recursos médicos do Estado; mas, se estava
em coma, não poderia estar sofrendo, e ninguém poderia dizer
que a morte viria ao encontro de seus interesses (ou de encon-
tro a seus desejos). Estritamente falando, portanto, não se trata
de eutanásia nos moldes em que defini o termo. Não obstante,
poderia configurar um fim justificável de uma vida humana.
Como os casos de infanticídio e eutanásia não voluntá-
ria são aqueles que mais se aproximam de nossas discussões
anteriores sobre o status dos animais e do feto humano, vamos
examiná-los primeiro.

Justificativas para o infanticídio e a eutanásia não


voluntária
Como vimos, a eutanásia é não voluntária quando a pessoa
a ela submetida jamais teve a capacidade de optar entre viver ou
morrer. Essa é a situação do bebê com graves deficiências ou do
ser humano de certa idade que apresenta deficiências mentais
severas desde o nascimento. A eutanásia e outras formas de
matar também são não voluntárias quando a pessoa não é mais
capaz de fazer a escolha crucial, mas já o foi um dia, sem ter
expressado nenhuma preferência importante acerca de sua situa-
ção atual.
O caso de alguém que nunca foi capaz de optar entre
viver ou morrer é um pouco mais simples do que o de uma
pessoa que tinha, mas agora perdeu, a capacidade de tomar essa
decisão. Vamos, mais uma vez, separar os dois casos e examinar,
primeiro, o mais simples. Para simplificar, eu me concentra-
rei nos bebês, ainda que todas as minhas afirmações sobre eles
também se possam aplicar a crianças mais velhas ou a adultos
cuja idade mental é e sempre foi a de um bebê.

Decisões de vida e morte nos casos de bebês deficientes


Se fôssemos abordar a questão de vida ou morte para um
bebê humano portador de deficiências graves sem qualquer
244 ÉTICA PRÁTICA

discussão prévia da ética de se tirar a vida em geral, talvez não


conseguíssemos resolver o conflito entre as obrigações ampla-
mente aceitas de proteger a santidade da vida humana e o objetivo
de diminuir o sofrimento. Há quem diga que esses conflitos
entre valores fundamentais só podem ser resolvidos por decisões
"subjetivas", ou que as questões de vida e morte devem ser deixa-
das a cargo de Deus e da Natureza. Contudo, nossas discussões
anteriores prepararam o terreno, e os princípios estabelecidos e
aplicados nos três capítulos anteriores tornam a questão muito
menos desconcertante do que a maioria das pessoas imagina.
No Capítulo 4, vimos que o fato de um indivíduo ser um
ser humano, no sentido de que pertence à espécie Homo sapiens,
não é relevante para o erro de matá-lo; pelo contrário, são carac-
terísticas como a racionalidade, a autonomia e a autoconsciência
que fazem a diferença. Os bebês não têm essas características.
Matá-los, portanto, não é coisa que se possa comparar a matar
seres humanos normais ou quaisquer outros seres que tenham
consciência de si. Aplicam-se aqui, também, os princípios que
regem o erro de matar animais que são sencientes, mas não
racionais ou conscientes de si. Como vimos, os argumentos
mais plausíveis para a atribuição do direito à vida a um ser se
aplicam somente se ele tiver alguma consciência de si enquanto
entidade que existe no tempo ou enquanto eu mental dotado de
continuidade. O respeito pela autonomia também não pode ser
aplicado onde não exista capacidade de autonomia. Os princí-
pios remanescentes, identificados no Capítulo 4, são utilitaris-
tas. Portanto, a qualidade de vida que se espera que o bebê tenha
é um fator importante.
Essa conclusão não se limita aos bebês que, devido a
deficiências mentais irreversíveis, jamais se tornarão seres racio-
nais e conscientes de si. Em nossa discussão do aborto, vimos
que o potencial de um feto em se tornar um ser racional e
autoconsciente não pode ser levado em conta como argumento
para não matá-lo num estágio em que ele não possui essas carac-
terísticas - ou seja, não o pode a menos que também estejamos
TIRAR A VIDA: HUMANOS 245

preparados para considerar o valor da vida racional e consciente


de si como razão para não prevenir a gravidez ou para adotar o
celibato. Nenhum bebê- deficiente ou não- tem um direito
inerente à vida tão forte quanto o dos seres capazes de se ver
como entidades distintas que existem no tempo.
A diferença entre tirar a vida de bebês deficientes e a de
bebês normais não se encontra em nenhum suposto direito à vida
que os últimos tenham, e os primeiros, não, mas em outras consi-
derações sobre tirar a vida. Uma das mais óbvias diz respeito à
diferença que normalmente existe nas atitudes dos pais. Em geral,
o nascimento de uma criança é um grande acontecimento para
eles. Provavelmente fizeram muitos planos para o bebê, e a mãe
o carregou consigo durante nove meses. Desde o nascimento,
uma afeição natural começa a ligar os pais a ele. Portanto, uma
importante razão pela qual matar uma criança é quase sempre
uma coisa terrível é o efeito que essa morte produz sobre os pais.
É diferente quando o bebê nasce com uma grave deficiên-
cia. É claro que as anormalidades congênitas variam. Algumas
são triviais, e é pequeno o efeito que exercem sobre a criança
ou seus pais; outras, porém, transformam a alegria normal do
nascimento numa ameaça à felicidade do casal e dos outros
filhos que possam ter.
Os pais têm bons motivos para lamentar o nascimento
de uma criança deficiente. O efeito que a morte dessa criança
produzirá sobre os pais pode ser um motivo para que ela seja
morta, e não para que seja mantida viva. Claro que esse nem
sempre é o caso. Alguns pais querem que até mesmo um bebê
com as mais graves deficiências viva o máximo possível, e esse
desejo seria, então, um motivo para não matar o bebê. Contudo,
e se não for esse o caso? Na discussão que apresento a seguir,
partirei do pressuposto de que os pais não querem que a criança
deficiente continue viva. Vou também admitir que a deficiência
é tão grave que - mais uma vez, em contraste com a situação
de uma criança indesejada, mas normal, nos dias de hoje - não
existam outros casais dispostos a adotar o bebê. Trata-se de uma
246 ÉTICA PRATICA

hipótese realista, até mesmo numa sociedade em que existem


longas listas de espera de casais que querem adotar crianças
normais. É verdade que, em um ou outro caso notório no qual
se permite a morte de um bebê portador de deficiências graves,
aparecem casais interessados em adotar a criança. Infelizmente,
esse interesse é produto da publicidade que os meios de comuni-
cação dão a uma dramática situação de vida e morte, não se
estendendo aos casos bem menos notórios, porém bem mais
comuns, de pais que se sentem incapazes de cuidar de um filho
portador de deficiências graves, que acabará definhando numa
instituição qualquer.
Tratemos, por exemplo, da doença de Tay-Sachs, um
problema genético que, no primeiro ano de vida, atrofia os
músculos do bebê. A criança fica cega, surda, não consegue engolir,
e, por fim, acaba paralisada. Também perde a saúde mental e sofre
convulsões. Mesmo que recebam os melhores cuidados médicos,
as crianças afetadas pela doença de T ay-Sachs geralmente morrem
antes de completar cinco anos de idade. Quando a vida de um
bebê seria tão miserável que nem valeria a pena vivê-la, da perspec-
tiva interior do ser que levaria essa vida, as duas versões do utili-
tarismo- a da "existência prévia" e a "total"- determinam que,
se não houver razões "extrínsecas" para se manter vivo o bebê -
por exemplo, os sentimentos dos pais -, é melhor que se ajude a
criança a morrer sem sofrimento.
Um problema mais difícil se coloca - e a convergência
entre as duas concepções deixa de existir- quando examinamos
as deficiências que tornam as perspectivas de vida da criança
significativamente menos promissoras do que as de uma criança
normal, mas não tão áridas a ponto de fazer com que a vida não
valha a pena ser vivida. A hemofilia talvez seja um bom exemplo.
O hemofílico não tem o elemento que faz o sangue normal
coagular, e, assim, corre o risco de ter hemorragias prolongadas,
principalmente internas, em decorrência do mais leve ferimento.
Se não for estancada, essa hemorragia leva à invalidez perma-
nente, e, por fim, à morte. A hemorragia é muito dolorosa e,
TIRAR A VIDA: HUMANOS 247

ainda que os progressos do tratamento tenham posto fim à


necessidade de contínuas transfusões de sangue, os hemofílicos
ainda precisam passar um tempo considerável nos hospitais.
Não podem praticar a maioria dos esportes e vivem constan-
temente no limiar de uma crise. Mesmo assim, os hemofílicos
aparentemente não passam o tempo todo pensando em acabar
com tudo; a maior parte acha que, apesar das dificuldades, a
vida realmente vale a pena ser vivida.
Dados esses fatos, suponhamos que o diagnóstico de um
recém-nascido indique que ele seja hemofílico. Assustados com
a perspectiva de criar um filho com esse problema, os pais não
anseiam por sua sobrevivência. A eutanásia poderia ser defen-
dida nesse caso? É bem possível que nossa primeira reação seja
um categórico "não", pois há esperanças de que o bebê venha a
ter uma vida bastante digna, ainda que não tão boa quanto a
de uma criança normal. Em sua versão da "existência prévia", o
utilitarismo respalda esse ponto de vista. O bebê existe. Pode-se
esperar que, em sua vida, a felicidade acabe predominando
sobre a infelicidade. Matar essa criança seria privá-la desse saldo
positivo de felicidade. Seria, portanto, um erro.
Por outro lado, a versão "total" do utilitarismo não nos
possibilita uma tomada de decisão unicamente com base nessa
informação. O ponto de vista total exige que se pergunte se a
morte do bebê hemofílico levaria à criação de outro ser que, de
outro modo, não teria existido. Em outras palavras, se a criança
hemofílica for morta, seus pais teriam outro filho? Um filho
que não teriam se a criança hemofílica continuasse viva? E, se
tivessem, essa segunda criança teria alguma chance de levar uma
vida melhor do que aquela que foi morta?
Quase sempre é possível dar uma resposta afirmativa a
essas duas perguntas. Como no exemplo da alpinista que consi-
deramos no capítulo anterior, uma mulher pode planejar ter
dois filhos; se um morrer quando ela ainda estiver em idade de
engravidar, ela poderia ter outro. Suponhamos que uma mulher
que pretenda ter dois filhos dê à luz uma criança normal e que,
248 ÉTICA PRÁTICA

depois, nasça-lhe uma criança hemofílica. As dificuldades para


cuidar desta última podem impedi-la de cuidar de um terceiro
filho, mas, se a criança doente morresse, ela poderia dar à luz
novamente. Também é plausível supor que as perspectivas de
uma vida feliz sejam maiores para uma criança normal do que
para uma criança hemofílica.
Se preferirmos a versão total à da existência prévia, teremos
de levar em consideração a probabilidade de que, quando a
morte de uma criança deficiente leva ao nascimento de outro
bebê com melhores perspectivas de ter uma vida feliz, a quanti-
dade total de felicidade será maior se a criança deficiente for
morta. A perda de uma vida feliz, no caso do primeiro bebê,
é superada pela vida mais feliz que o segundo estaria conquis-
tando. Portanto, se tirar a vida do bebê hemofílico não tiver
efeitos adversos sobre outras pessoas, de acordo com o ponto de
vista total, seria correto matá-lo.
O ponto de vista total considera os bebês substituíveis,
quase do mesmo modo que considera substituíveis os animais
meramente conscientes (como vimos no Capítulo 5). Muitos
pensarão que o argumento da substituibilidade não se pode
aplicar aos bebês humanos. Matar até mesmo o mais irremedia-
velmente incapacitado dos bebês ainda é oficialmente visto como
assassinato. De que maneira, então, poderíamos aceitar a morte
de bebês com problemas muito menos sérios, como a hemofilia?
No entanto, uma reflexão mais aprofundada mostrará que as
implicações do argumento da substituibilidade não parecem
tão bizarras assim, pois existem membros deficientes de nossa
espécie com os quais lidamos exatamente da maneira como o
argumento sugere que façamos. Esses casos são muito semelhan-
tes aos que temos discutido. Só há uma diferença de tempo:
o tempo que se leva para descobrir o problema e, na sequência,
matar o ser deficiente.
O diagnóstico pré-natal já é um procedimento rotineiro para
as mulheres grávidas. Existem várias técnicas médicas para se
obter informações sobre o feto nos primeiros meses de gravidez.
TIRAR A VIDA: HUMANOS 249

Em determinada etapa do desenvolvimento dessas técnicas, foi


possível descobrir o sexo do feto, mas não havia como saber se
ele seria hemofílico. A hemofilia é um defeito genético ligado
ao sexo e só se manifesta nos indivíduos do sexo masculino; as
mulheres podem portar o gene e transmiti-lo à sua descendên-
cia masculina sem serem afetadas. Portanto, uma mulher que
se sabia portadora do gene da hemofilia poderia, nessa etapa,
evitar dar à luz uma criança hemofílica, bastando, para isso, que
descobrisse o sexo do feto e abortasse todos aqueles que fossem
do sexo masculino. Estatisticamente, só a metade desses filhos
homens de mulheres portadoras do gene deficiente sofreria de
hemofilia e, portanto, metade dos fetos abortados seria normal.
Essa prática era muito difundida em vários países, e, no entanto,
não provocou grandes protestos. Hoje, quando temos técnicas
capazes de identificar a hemofilia antes do nascimento, podemos
ser mais seletivos, mas o princípio é o mesmo: oferecem-se às
mulheres, que em geral os aceitam, abortos com a finalidade de
impedir que deem à luz crianças hemofílicas.
O mesmo se pode dizer sobre várias outras doenças que
podem ser detectadas antes do nascimento. A síndrome de
Down é uma delas. As crianças que apresentam esse problema
têm deficiências mentais, e a maioria jamais será capaz de viver
independentemente, mas suas vidas, como as das crianças peque-
nas, podem ser felizes. O risco de ter um filho com a síndrome
de Down aumenta muito conforme a idade da mãe, e, por esse
motivo, em muitos países, o diagnóstico pré-natal costuma ser
oferecido a todas as mulheres que engravidam depois dos 35 anos.
A maioria avassaladora das grávidas que recebem a notícia de que
seu filho terá síndrome de Down põe fim à gravidez, e muitas
voltam a engravidar, o que, em muitos casos, leva ao nascimento
de uma criança que não tenha o problema.
O diagnóstico pré-natal seguido por aborto em casos especí-
ficos é uma prática comum em países nos quais, além de leis
liberais sobre o aborto, existe tecnologia médica avançada. Acho
que é assim mesmo que deve ser. Como mostram os argumentos
250 ÉTICA PRÁTICA

defendidos no último capítulo, acredito que o aborto pode ser


justificado. Observe-se, porém, que nem a hemofilia nem a
síndrome de Down invalidam o portador a ponto de fazer com
que sua vida não valha a pena ser vivida, da perspectiva interior
da pessoa que tenha o problema. Abortar um feto com uma
dessas deficiências, com o objetivo de ter mais um filho que não
seja deficiente, significa tratar os fetos como substituíveis. Se a
mãe já tomara a decisão anterior de ter certo número de filhos
- digamos, dois -, então, o que ela está fazendo, na verdade, é
rejeitar um filho em potencial em favor de outro. Em defesa de
seus atos, ela poderia dizer: "A perda da vida do feto abortado
é superada pela conquista de uma vida melhor para a criança
normal que só será concebida se a deficiente morrer".
Quando a morte ocorre antes do nascimento, a substituibi-
lidade não entra em conflito com convicções morais geralmente
aceitas. O fato de se saber que um feto é deficiente é ampla-
mente aceito como base para a realização do aborto. Contudo,
ao discutir o aborto, vimos que o nascimento não assinala uma
linha divisória moralmente significativa. Não é fácil defen-
der o ponto de vista de que os fetos podem ser "substituídos"
antes do nascimento, mas os recém-nascidos não podem sê-lo.
Tampouco existe outro momento - por exemplo, o da viabi-
lidade - que sirva melhor como critério de separação entre o
feto e o bebê. A autoconsciência, que poderia fornecer uma base
para a afirmação de que seja errado matar um ser e substituí-
-lo por outro, não é encontrada nem no feto nem no recém-
-nascido. Nenhum deles é um indivíduo capaz de se ver como
uma entidade distinta, com uma vida própria a ser vivida, e é
só no caso dos recém-nascidos, ou no de estágios ainda mais
primitivos da vida humana, que a substituibilidade deveria ser
examinada enquanto opção eticamente aceitável.
Alguns defensores dos deficientes fazem forte objeção
a essa conclusão. Afirmam que a substituição de um feto ou
de um recém-nascido em virtude de uma deficiência seria um
erro, pois sugere a todos os deficientes vivos que suas vidas são
TIRAR A VIDA: HUMANOS 251

menos dignas de serem vividas do que as das pessoas que não


tenham deficiência alguma. Contudo, essa é a única maneira
de dar sentido a ações que todos aceitamos como verdadeiras.
Lembremo-nos da talidomida: muitas mulheres grávidas que
tomaram esse remédio tiveram filhos sem braços ou pernas.
Quando se constatou a causa dos nascimentos anormais,
o medicamento foi tirado de circulação, e o fabricante respon-
sável teve de pagar indenizações. Se realmente acreditássemos
que não haja motivo para se pensar que a vida de uma pessoa
deficiente talvez não seja pior do que a de uma pessoa normal,
não consideraríamos o uso de talidomida por mulheres grávidas
uma tragédia. Os pais não teriam reivindicado indenizações,
e elas não teriam sido concedidas pelos tribunais. As crianças
seriam simplesmente "diferentes". Poderíamos até mesmo ter
deixado o medicamento no mercado, para que as mulheres que
o considerassem um sonífero útil durante a gravidez pudessem
continuar a tomá-lo. Se isso soa grotesco, é só porque nenhum
de nós tem a menor dúvida de que é muito melhor nascer com
todos os membros do que sem alguns deles. Acreditar nisso não
implica desrespeito algum por aqueles que não têm todos os
membros: trata-se apenas de reconhecer as dificuldades concre-
tas com que essas pessoas se deparam em suas vidas.
Seja como for, a posição aqui assumida não quer dizer que
seria melhor que as pessoas nascidas com graves deficiências não
sobrevivessem; fica implícito, apenas, que seria melhor se os pais
desses bebês fossem capazes de tomar essa decisão. Essa posição
tampouco implica falta de respeito ou de igual consideração
pelos deficientes que hoje vivem suas vidas de acordo com seus
próprios desejos. Como vimos no fim do Capítulo 2, o princípio
da igual consideração de interesses rejeita a desconsideração dos
interesses das pessoas com base em suas deficiências.
É provável que até mesmo aqueles que rejeitam o aborto e
a ideia de que o feto seja substituível vejam as pessoas possíveis
como substituíveis. Lembremo-nos da segunda mulher, no caso
das duas mulheres de Parfit, que descrevemos no Capítulo 5.
252 ÉTICA PRATICA

Seu médico lhe disse que, se prosseguisse com o plano de engra-


vidar imediatamente, teria um filho deficiente (hemofílico,
talvez), mas que, se esperasse mais três meses, a criança nasceria
normal. Se pensamos que ela faria mal em não esperar é porque
estamos comparando as duas vidas possíveis e avaliando que
uma tem melhores perspectivas do que a outra. É evidente
que, nesse estágio, nenhuma vida começou, mas a questão é
quando, no sentido moralmente significativo, uma vida começa
de fato? Nos Capítulos 4 e 5, examinamos vários motivos para
afirmar que a vida só adquire significado moral pleno quando o
indivíduo tem consciência de que existe no tempo.
Considerar os recém-nascidos substiruíveis, como hoje
consideramos os fetos, teria vantagens substanciais sobre o
diagnóstico pré-natal seguido de aborto. O diagnóstico pré-na-
tal ainda não consegue detectar rodas as principais deficiências.
Na verdade, algumas delas não estão presentes antes do nasci-
mento: podem resultar de partos extremamente prematuros ou
de alguma coisa que não deu certo no próprio processo do parto.
Atualmente, os pais só podem optar por manter ou não seus
filhos deficientes quando a deficiência é detectada durante a
gravidez. Não há fundamento lógico para restringir a opção dos
pais a essas deficiências específicas. Se não víssemos os recém-
-nascidos, até algum tempo depois do parto, como seres que
têm direito à vida, poderíamos permitir que, depois de consul-
tarem seu médico, os pais tomassem uma decisão com base num
conhecimento muito mais profundo de qual serão as condições
do bebê do que seria possível antes do nascimento.
Todas as observações feiras até aqui dizem respeito ao erro
de tirar a vida do bebê enquanto faro isolado, e não em termos
dos efeitos que isso possa exercer sobre os outros. O quadro pode
alterar-se quando levamos em consideração os efeitos exercidos
sobre outras pessoas. É evidente que passar por todo o processo
de gravidez e de trabalho de parto só para dar à luz uma criança
que, por decisão da própria pessoa, não deveria viver seria uma
experiência difícil e, talvez, dolorosa. Por esse motivo, muitas
TIRAR A VIDA: HUMANOS 253

mulheres talvez preferissem o diagnóstico pré-natal seguido


de aborto ao nascimento de uma criança viva possivelmente
seguido de infanticídio; mas, se este último não for moralmente
pior do que o primeiro, aparentemente trata-se de uma decisão
que a mulher deveria ser autorizada a tomar.
Outro fator a ser levado em conta é a possibilidade de
adoção. Quando existem mais casais querendo adotar do que
crianças normais para serem adotadas, um casal sem filhos pode
estar disposto a adotar um hemofílico. Isso aliviaria a mãe do
peso de criar uma criança hemofílica, e, se assim o desejasse,
ela poderia ter outro filho. Nesse caso, o argumento da substi-
tuibilidade não poderia justificar o infanticídio, pois trazer
à vida outra criança não dependeria da morte do hemofílico.
A morte deste último seria a perda direta de uma vida de quali-
dades positivas que não seria compensada pela criação de outro
ser dotado de uma vida melhor.
Portanto, a questão de pôr fim à vida de recém-nascidos
deficientes apresenta uma série de complicações, tanto factuais
quanto filosóficas. Filosoficamente, a questão mais difícil é
aceitar ou não a versão total ou da existência prévia do utili-
tarismo (ou alguma outra concepção); pois, no caso de bebês
deficientes cujas vidas valem a pena ser vividas, apesar de tudo,
a justificabilidade da decisão de lhes tirar a vida dependerá
de qual versão escolhermos. Não obstante, permanece claro
o argumento principal, mesmo depois de avaliadas as diver-
sas objeções e complicações: matar um bebê deficiente não
equivale, moralmente, a matar uma pessoa. Muitas vezes, isso
não constitui erro algum.

Outras decisões não voluntárias de vida e morte


Na seção anterior, discutimos a morte deliberada e justi-
ficável de seres que nunca foram capazes de escolher entre a
vida e a morte. Também é possível cogitar acabar com uma vida
sem consentimento algum no caso daqueles que, no passado,
foram pessoas capazes de optar por viver ou morrer, mas que, no
254 ÉTICA PRÁTICA

momento, em decorrência de um acidente ou da idade avançada,


perderam essa capacidade para sempre, e, antes de perdê-la, não
fizeram nenhum tipo de manifestação no sentido de preferi-
rem continuar vivendo em tais circunstâncias. Esses casos não
são raros. Muitos hospitais cuidam de vítimas de acidentes de
trânsito cujos cérebros sofreram lesões irrecuperáveis. Podem
sobreviver muitos anos em coma, ou, talvez, com um resquí-
cio de consciência. Rita Greene, uma enfermeira, tinha 24 anos
quando adoeceu e sucumbiu a um estado vegetativo persistente.
Morreu aos 63, sem jamais ter recuperado a consciência. Estima-
-se que de 1O mil a 40 mil pessoas vivam em estado vegetativo
persistente nos Estados Unidos. Em outros países desenvolvidos,
onde a tecnologia de prolongamento da vida não é usada de
maneira tão agressiva, são bem menos numerosos os pacientes
internados por longos períodos nessas condições.
Às vezes, as decisões que dizem respeito ao tratamento de
pessoas em estado vegetativo persistente chegam aos tribunais e
ganham enorme publicidade. Nenhuma delas recebeu tanta
atenção quanto o caso de Terri Schiavo, que morreu numa uni-
dade de cuidados paliativos na Flórida, Estados Unidos, em
2005, depois de passar quinze anos no que, segundo seus médi-
cos, seria um estado vegetativo persistente. Michael Schiavo, ma-
rido de Terri, queria que a sonda alimentar fosse removida, para
que ela pudesse morrer. Alegou que essa era a vontade da esposa,
algo que ela havia externado previamente diante dele. Robert e
Mary Schindler, os pais de Terri, negaram o que o marido dizia,
além de afirmar que ela dava sinais de estar a par do que aconte-
cia a seu redor, e que, portanto, não se encontrava em estado ve-
getativo persistente. As decisões judiciais favoreceram Michael
Schiavo, e a sonda alimentar que mantinha Terri Schiavo viva foi
removida. O caso não demorou a ser abraçado como causa por
quem se opunha ao aborto e à eutanásia. Conseguiram conven-
cer a assembleia legislativa da Flórida a aprovar uma nova lei que
mantivesse o processo nos tribunais do estado, e, quando mais
uma vez os juízes não ordenaram que Terri fosse mantida viva, o
TIRAR A VIDA: HUMANOS 255

Congresso foi convocado durante um recesso parlamentar para


aprovar uma lei especial que permitisse aos Schindler levar o caso
a um tribunal federal. O presidente George W. Bush pegou um
avião de seu rancho no Texas para a capital, Washington, só para
assinar a lei, mas o tribunal federal também manteve a decisão de
que Michael Schiavo tinha o direito de decidir remover a sonda
alimentar de sua esposa. O Supremo Tribunal Federal dos Esta-
dos Unidos recusou-se a acatar o recurso dessa decisão, e Terri
morreu. A necropsia demonstrou que o cérebro de Terri Schiavo
estava seriamente atrofiado, e que nenhum tratamento poderia
ter revertido essa perda de massa encefálica.
É possível que uma pequena porcentagem dos pacientes
considerados em estado vegetativo persistente tenha alguma
consciência. Contudo, o progresso nas técnicas de diagnóstico
por imagem nos permitem ver que, no caso de muitos pacien-
tes em estado vegetativo persistente, o sangue não chega às
partes do cérebro responsáveis pela consciência. Sem o afluxo
de sangue, o cérebro se deteriora rapidamente; portanto, nesses
pacientes, é possível descartar a existência de uma consciência
ou a possibilidade de recuperá-la. A partir do momento em que
fica claro que o paciente em estado vegetativo persistente não
percebe o que acontece a seu redor e nunca poderá recuperar
essa consciência, sua vida deixa de ter valor intrínseco. Estão
vivos biologicamente, mas não biograficamente. Se o veredito
parece duro demais, o leitor deve perguntar a si mesmo qual
seria a melhor escolha a fazer diante das seguintes alternativas:
(a) morte instantânea, ou (b) coma instantâneo, sem recupe-
ração, seguido de morte dez anos mais tarde. Não vejo vanta-
gem alguma em sobreviver em estado comatoso se não houver
recuperação possível e a morte for uma certeza.
Num aspecto importante, porém, esses pacientes diferem
dos bebês portadores de deficiências. Ao discutir o infanticídio
na última parte do Capítulo 6, citei o comentário de Bentham
segundo o qual o infanticídio "não leva a mais medrosa das
imaginações a sentir a menor inquietação", pois quem tem
256 ÉTICA PRATICA

idade suficiente para saber que bebês deficientes são elimina-


dos encontra-se, necessariamente, fora do alcance dessa política.
O mesmo não se pode afirmar sobre as decisões que dizem
respeito a como tratar aqueles que já foram racionais e conscientes
de si. Portanto, uma possível objeção a tirar a vida de um desses
pacientes seria: isso vai gerar medo e insegurança entre aqueles
que hoje não se veem diante dessa perspectiva, mas que um dia
poderão ver-se. Por exemplo, as pessoas mais idosas, sabendo
que a eutanásia não voluntária às vezes é aplicada a pacientes
mais velhos e senis, privados da faculdade de aceitar ou rejei-
tar a morte, poderiam temer que cada injeção ou comprimido
fosse letal. Esse medo poderia ser totalmente irracional, mas
seria difícil convencer as pessoas disso, sobretudo se a velhice já
tivesse, de fato, afetado sua memória e capacidade de raciocínio.
Essa objeção poderia ser resolvida mediante um procedi-
mento que permitisse, aos que não desejam submeter-se à eutaná-
sia não voluntária em circunstância alguma, deixar registrada
sua recusa em fazê-lo. Se o procedimento se tornasse rotineiro,
traria o benefício adicional de evitar processos judiciais intermi-
náveis como o de Terei Schiavo.

Justificativa da eutanásia voluntária


Nos países onde a eutanásia e o suicídio assistido são ile-
gais, os médicos que ajudam seus pacientes terminais a morrer
se arriscam a sofrer processos criminais graves. Ainda que os
júris relutem bastante em condenar os médicos nesses casos, a lei
é muito clara: nem o pedido, nem o grau de sofrimento, nem a
condição incurável da pessoa morta configuram defesa diante
da acusação de assassinato. Os defensores da eutanásia voluntá-
ria propõem que essa lei seja modificada, de modo que um mé-
dico possa, legalmente, agir de acordo com o desejo de seus
pacientes para morrer sem sofrimento. A defesa da eutanásia
voluntária tem uma coisa em comum com a da eutanásia não vo-
luntária, no sentido de que a morte é um benefício para a pessoa
que morre. Ou, no caso de pessoas que jamais recuperariam a
TIRAR A VIDA: HUMANOS 257

consctencia, pelo menos não é algo nocivo. Contudo, os dois


tipos de eutanásia diferem: a voluntária implica a eliminação de
uma pessoa, um ser racional e autoconsciente (as pessoas que são
racionais e autoconscientes no momento em que fazem o pedido
podem não estar mais racionais e autoconscientes na ocasião em
que o pedido é atendido, mas, para simplificar as coisas, deixarei
de levar em conta essa complicação).
Vimos que é possível justificar que se ponha fim à vida de
um ser humano que não tenha condições de dar seu consenti-
mento. Precisamos agora perguntar de que modo as questões
éticas diferem quando o ser for capaz de consentir e realmente
dá seu consentimento.
Retomemos os princípios gerais sobre tirar a vida que foram
propostos no Capítulo 4. Afirmei que a eliminação de um ser
que sabe que terá um futuro é uma questão mais séria do que
matar um ser meramente consciente. Apresentei quatro motivos
distintos para justificar essa argumentação:

1. A afirmação dos utilitaristas clássicos de que, como os


seres autoconscientes são capazes de temer a própria
morte, matá-los tem efeitos piores sobre seus semelhantes.
2. A perspectiva utilitarista preferencial que vê a frustração
do desejo que a vítima tem de continuar vivendo como
um importante motivo para não eliminá-la.
3. Uma teoria dos direitos segundo a qual, para ter um
direito, a pessoa precisa ter a capacidade de desejar aquilo
a que tem direito, de modo que, para ter direito à vida,
é preciso que também tenha a capacidade de desejar a
continuidade da própria existência.
4. O respeito pelas decisões autônomas de agentes racionais.

Imaginemos, agora, uma situação na qual uma pessoa que


sofre de uma doença dolorosa e incurável deseje morrer. Algum
desses quatro fundamentos de que normalmente seria pior matar
uma pessoa seria um bom motivo para não tirarmos a vida de
uma pessoa que deseje morrer?
258 ÉTICA PRATICA

A objeção utilitarista clássica não se aplica à morte delibe-


rada que só se verifica com o consentimento concreto da pessoa
a ser eliminada. O fato de pessoas serem mortas nessas condi-
ções não tenderia a espalhar o medo ou a insegurança, pois, se
não quisermos que nos matem, basta não darmos nosso consen-
timento. Na verdade, o argumento do medo pesa em favor da
eutanásia voluntária, pois, se ela não for permitida, podemos,
com razão, ter medo de que nossas mortes sejam desnecessaria-
mente prolongadas e angustiantes. Na Holanda, um estudo de
âmbito nacional realizado pelo governo constatou que "muitos
pacientes querem ter a certeza de que seu médico os ajudará a
morrer caso seu sofrimento se torne intolerável". Muitas vezes,
havendo essa garantia, não ocorrem mais pedidos de eutanásia.
A viabilidade da eutanásia trouxe alívio e bem-estar, sem que ela
tivesse de ser praticada.
O utilitarismo preferencial também sugere uma posição
favorável, e não contrária, à eutanásia voluntária. Assim como
o utilitarismo preferencial deve levar em conta o desejo de
continuar vivendo como uma das razões para não tirar a vida,
é preciso que leve em conta o desejo de morrer como uma das
razões para tirá-la.
Em seguida, de acordo com a teoria dos direitos que exami-
namos, uma das características fundamentais de um direito é
o fato de se poder abrir mão dos direitos sempre que se quiser.
Posso ter direito à privacidade, mas, se quiser, posso instalar
webcams em todos os cômodos de minha casa e deixá-las ligada
24 horas por dia. Ninguém que assistisse às gravações no meu
site estaria violando meu direito à privacidade, pois, nesse caso,
abri mão dele. Da mesma maneira, dizer que tenho direito à
vida não equivale a dizer que meu médico estaria cometendo
um erro se, a meu pedido, acabasse com ela. Ao fazer o pedido,
abro mão do meu direito à vida.
Por último, o princípio do respeito pela autonomia afirma
que devemos permitir que os agentes racionais vivam suas vidas
de acordo com suas próprias decisões autônomas, livres de
TIRARA VIDA: HUMANOS 259

coerção ou interferência; mas, se os agentes racionais optarem


autonomamente por morrer, o respeito pela autonomia nos deve
levar a ajudá-los a pôr em prática sua opção.
Portanto, ainda que existam motivos para se pensar que a
eliminação de um ser autoconsciente é normalmente pior do que
a de qualquer outro tipo de ser, nos casos especiais de eutaná-
sia voluntária, a maior parte dessas razões não são contrárias a
ela, mas, antes, a favorecem. Por mais surpreendente que esse
resultado possa parecer à primeira vista, na verdade nada mais
faz senão refletir o fato de que o que há de especial nos seres
autoconscientes é sua capacidade de saber que existem no tempo,
e que, a menos que morram, continuarão existindo. Em geral,
essa existência contínua é fervorosamente desejada; quando,
porém, a previsível existência contínua deixa de ser desejada e se
torna apavorante, a vontade de morrer pode assumir o lugar do
desejo normal de viver, invertendo as razões contra tirar a vida.
Desse modo, é muito mais fácil defender a eutanásia voluntária
do que a não voluntária.
Alguns adversários da legalização da eutanásia voluntária
poderiam admitir que tudo isso procede, desde que tomemos
uma decisão realmente livre e racional de morrer; no entanto,
acrescentam, nunca podemos ter a certeza de que a pessoa que
pede para morrer o faz como resultado de uma decisão livre e
racional. Os idosos e os doentes não teriam sido pressionados por
seus parentes para que acabassem rapidamente com suas vidas?
Não seria possível cometer de fato um assassinato fingindo-
-se que uma pessoa pediu a eutanásia? E, mesmo não havendo
pressão nem fingimento, alguém que está doente, sofrendo e,
muito provavelmente, confuso e drogado teria condições de
tomar uma decisão racional entre morrer ou continuar vivendo?
Hoje, nossa experiência com a legalização da eutanásia
voluntária e do suicídio assistido é considerável e continua a
aumentar, e isso nos fornece os fundamentos necessários para
responder a essas preocupações. O parlamento holandês só
legalizou a eutanásia em 2002, mas, antes disso, foram duas
260 ÉTICA PRÁTICA

décadas de garantias, aos médicos dos Países Baixos, de que eles


não seriam processados caso praticassem a eutanásia se seguis-
sem as diretrizes articuladas pelos tribunais depois de uma
série de casos nos quais médicos acusados de cometer eutanásia
foram absolvidos. Quando a eutanásia foi legalizada, condições
semelhantes foram incorporadas à lei. Na Holanda, e eutanásia
é legal se:

• for feita por um médico;


• o paciente tiver solicitado explicitamente a eutanásia, de um
modo que não reste dúvida de que opte pela morte de livre
e espontânea vontade, que sua decisão foi tomada à luz de
todos os fatos e depois de muita consideração;
• o paciente tiver um problema que cause sofrimento físico
ou mental prolongado que se lhe afigure intolerável;
• não houver uma alternativa aceitável (do ponto de vista
do paciente) e capaz de aliviar seu sofrimento;
• o médico tiver consultado outro profissional indepen-
dente que esteja de acordo com sua opinião.

Essas diretrizes tornam muito improvável o assassinato


a pretexto de eutanásia, e não há indícios de que isso venha
ocorrendo na Holanda. Desde que a lei foi aprovada, compo-
sições políticas diferentes estiveram no poder, com a liderança
dos democratas cristãos em vários governos de coalizão consecu-
tivos. Não houve nenhuma tentativa de revogar a lei da eutaná-
sia. Não é coincidência que dois países vizinhos da Holanda
- Bélgica e Luxemburgo - tenham sido os próximos a legali-
zar a eutanásia, com leis semelhantes à dos Países Baixos. A
maioria dos belgas, em particular, pelo fato de falarem o idioma
holandês, viram-se numa situação privilegiada para monitorar
a prática da eutanásia no país vizinho. É improvável que esses
países tivessem legalizado a prática se houvesse indícios claros de
abusos graves na Holanda.
Da mesma maneira, o estado norte-americano do Oregon
legalizou o suicídio assistido em 1997, portanto temos uma boa
TIRARA VIDA: HUMANOS 261

experiência com essa prática numa parte dos Estados Unidos.


Não há nenhum indício de que a lei venha sendo mal utilizada.
Mais uma vez, um vizinho monitorou a situação e resolveu
seguir o exemplo. Em 2008, os eleitores do estado de Washington
referendaram uma lei muito semelhante à de Oregon.
Outra objeção comum à eutanásia é a possibilidade de os
médicos se enganarem. Em casos raros, pacientes que recebe-
ram de dois médicos competentes o diagnóstico de que sofriam
de uma doença incurável sobreviveram e desfrutaram muitos
anos de boa saúde. É possível que, com o passar do tempo,
a legalização da eutanásia voluntária possa resultar na morte de
algumas pessoas que, de outro modo, se recuperariam de suas
doenças e viveriam ainda mais alguns anos. Esse não é, porém,
o argumento que derruba de vez a eutanásia, como algumas
pessoas imaginam. Ao número muito pequeno de mortes
desnecessárias que se poderia seguir à legalização da eutanásia,
devemos contrapor a enorme quantidade de dor e aflição que
sofreriam os pacientes genuinamente terminais caso a eutaná-
sia não seja legalizada. Uma vida mais longa não é um bem
tão supremo que supere todas as outras considerações (se fosse,
haveria meios muito mais eficientes de salvar vidas: a proibição
do cigarro, a redução dos limites de velocidade a dez quilôme-
tros por hora, para não mencionar a questão do auxílio finan-
ceiro a países estrangeiros, que é o tema do próximo capítulo).
A possibilidade de que dois médicos cometam um erro significa
que a pessoa que opta pela eutanásia está tomando uma decisão
depois de levar em conta todas as probabilidades e abrindo mão
de uma pequena possibilidade de sobrevivência para evitar um
sofrimento que, quase certamente, resultaria em sua morte.
Essa escolha pode ser perfeitamente racional. A probabilidade é
o guia da vida e também o da morte.
Contra isso, alguns dirão que o avanço nos tratamentos
médicos dispensados aos pacientes terminais acabaram com a dor
e tornou desnecessária a eutanásia voluntária. Mas a dor física
não é a única coisa que faz as pessoas terem vontade de abreviar
262 ÉTICA PRATICA

a vida: talvez tenham ossos tão frágeis que se quebrariam com


gestos bruscos; ou, quem sabe, náuseas e vômitos incontroláveis;
um câncer que leve à morte lenta por inanição; incapacidade
de controlar os intestinos ou a bexiga; dificuldades respiratórias
etc. Esses sintomas nem sempre podem ser eliminados, a menos
que se mantenha o paciente inconsciente o tempo todo.
O dr. Timothy Quill, médico de Rochester, no estado
norte-americano de Nova York, descreveu de que modo receitou
um barbitúrico para "Diane", uma paciente com um tipo grave
de leucemia, ao saber que ela queria tomar os comprimidos
para pôr fim à vida. O dr. Quill já conhecia Diane havia muito
tempo e admirava sua coragem em enfrentar as doenças graves
que tivera anteriormente. Em um artigo para o New England
journal of Medicine, ele escreveu:

Para Oiane, era extraordinariamente importante manter o


controle e a dignidade durante o tempo de vida que lhe restava.
Quando isso deixou de ser possível, ela tomou a decisão inequí-
voca de morrer. Sendo ex-diretor de uma unidade de cuidados
paliativos, eu sabia como usar medicamentos que aliviam a dor
de modo a manter os pacientes confortáveis e diminuir-lhes o
sofrimento. Expliquei-lhe a filosofia de assistência e bem-estar,
na qual acreditava fortemente. Ainda que compreendesse o que
eu propunha, Oiane tinha conhecido pessoas que arrastavam
suas existências nesse "bem-estar relativo" e não queria nada
daquilo para si. Quando chegou a hora, ela quis pôr fim à sua
vida do modo menos doloroso possível. Conhecendo seu desejo
de independência e sua decisão de não perder o controle da situa-
ção, achei que o pedido era perfeitamente sensato [...].Ao longo
de nossas discussões, ficou claro que a preocupação com o medo
que ela tinha de sofrer uma morte arrastada interferiria na possi-
bilidade de Oiane tirar o máximo proveito do tempo que lhe
restava, enquanto não encontrasse um meio seguro de garantir
a própria morte.

Nem todos os pacientes moribundos que querem morrer


têm a sorte de ter a seu lado um médico como Timothy Quill.
TIRAR A VIDA: HUMANOS 263

Em Last Wish [Último desejo], seu comovente livro, Betty Rollin


contou como sua mãe teve um câncer de ovário que se espalhou
por outras partes do corpo. Certa manhã, sua mãe lhe disse:

Tive uma vida maravilhosa, mas agora tudo acabou, ou deve


acabar. Não tenho medo da morte; tenho medo desta doença
e do que ela está fazendo comigo [...]. Não tenho mais alívio.
É só náuseas e dor [...]. Chega de quimioterapia, Não há mais
tratamento. E então, o que vai acontecer comigo? Sei o que
vai acontecer. Vou morrer aos poucos [...]. Não quero isso [...].
A quem minha morte lenta beneficiaria? Fossem meus filhos os
beneficiados, eu estaria disposta a enfrentá-la. Mas nada disso
vai fazer bem algum a vocês [...].A morte lenta não tem o menor
sentido. Nunca gostei de fazer coisas que não tivessem sentido.
Preciso acabar com isto.

Betty Rollin achou muito difícil ajudar a mãe a realizar seu


desejo: "Todos os médicos deram as costas a nossos pedidos de
ajuda (Quantos comprimidos? De que tipo?)". Depois que seu
livro sobre a morte da mãe foi publicado, ela recebeu centenas
de cartas, muitas de pessoas (ou de parentes de pessoas) que
tinham tentado morrer, não conseguiram e sofreram ainda
mais. Os médicos negaram ajuda a muitas dessas pessoas, pois,
ainda que o suicídio seja legal em muitas jurisdições, o mesmo
não acontece com o suicídio assistido.
O dr. Jack Kevorkian, patologista de Michigan, tentou
ajudar as pessoas que queriam morrer, mas não contavam com
o auxílio de seus médicos. No começo, ele ajudava as pessoas
a morrer com uma "máquina de suicídio": uma haste metálica
com três frascos diferentes ligados a um cateter intravenoso.
Ele introduzia o cateter na veia do paciente, mas deixava o dispo-
sitivo preparado para que uma solução salina inofensiva fosse
injetada. O paciente poderia, mais tarde, acionar uma chave que
permitia a introdução de uma droga que induzia ao coma, e
a isso se seguia, automaticamente, uma droga letal contida no
terceiro frasco. O dr. Kevorkian declarou que estava preparado
264 ÉTICA PRÁTICA

para tornar a máquina acessível a todos os pacientes termi-


nais que desejassem usá-la. Em junho de 1990, Janet Adkins,
que sofria do mal de Alzheimer, mas ainda tinha condições de
tomar a decisão de pôr fim à sua vida, entrou em contato com
o dr. Kevorkian e falou-lhe de sua vontade de morrer, em vez
de se submeter ao lento processo de deterioração que a doença
acarreta. O médico estava a seu lado quando ela usou a máquina,
e, posteriormente, relatou a morte de Janet Adkins à polícia. O
dr. Kevorkian foi acusado de assassinato, mas o juiz não permitiu
que o caso fosse a julgamento, pois considerou que Janet havia
causado a própria morte. Nos oito anos que se seguiram, o dr.
Kervokian ajudou muitas pessoas a morrer e foi acusado repeti-
das vezes de ser cúmplice de suicídio, mas nenhum júri o conde-
nou por isso. Quando sua licença para praticar a medicina foi
revogada, e ele não tinha mais como obter o fármaco letal que
vinha usando, ele modificou a "máquina de suicídio" para que
liberasse monóxido de carbono por meio de uma máscara de
gás. Por fim, em 1998, Kevorkian decidiu ajudar Thomas Youk,
que estava morrendo de ELA - esclerose lateral amiotrófica, ou
doença de Lou Gehrig -, e pedira ao médico para pôr fim à sua
vida. Os pacientes que sofrem de ELA perdem o controle sobre os
músculos, e, perto do fim, se veem incapazes de acionar chaves
ou tomar medicamentos. Kevorkian cruzou a linha que separava
o suicídio assistido da eutanásia voluntária ao aplicar em Youk
uma injeção letal. Mais do que isso, desafiando claramente as
autoridades instituídas, ele divulgou uma gravação em vídeo do
momento em que aplicava a injeção. Dessa vez, um júri o conde-
nou por homicídio culposo, e ele passou oito anos na prisão até
receber liberdade condicional.
Philip Nitschke prefere agir à margem da lei, em vez de
infringi-la diretamente. Nitschke praticava a medicina no Terri-
tório do Norte australiano quando a região legalizou a eutanásia
voluntária. Ele ajudou quatro pacientes terminais a pôr fim à
vida até a lei ser revogada pelo governo federal da Austrália em
1997. Convencido de que as pessoas têm o direito de tirar volun-
TIRAR A VIDA: HUMANOS 265

tariamente a própria vida, ele fundou a Exit International, uma


organização que realiza oficinas na Austrália, Nova Zelândia,
Reino Unido e Estados Unidos, ensinando às pessoas como pôr
fim às suas vidas com segurança e eficácia. Escreveu, em coauto-
ria, o livro The Peaceful Pill Handbook [Manual da pílula da
paz], para fornecer as mesmas informações às pessoas que não
têm como participar das oficinas. A edição impressa do livro foi
proibida na Austrália, mas está disponível nos Estados Unidos,
e Nitschke também oferece uma versão eletrônica online (apesar
de ser crime baixá-la na Austrália). Independentemente do que
se pense a respeito da ética da eutanásia voluntária e do suicídio
assistido, se esse tipo de informação deveria ou não ser disponi-
bilizado ao grande público é, por si só, uma questão ética, dada a
possibilidade de pessoas que não se encontram em estado termi-
nal nem têm doenças incuráveis fazerem mau uso dela. Muitos
defensores da legalização da eutanásia voluntária e do suicídio
assistido fazem objeção à publicação de guias que ensinam a
morrer, argumentando que as leis que restringem a assistência
aos médicos constituem mecanismos de segurança importantes.
Nitschke poderia concordar que algo assim seria desejável, mas
ele considera que, como ainda são poucos os países nos quais a
eutanásia voluntária ou o suicídio assistido foram legalizados, a
importância de ajudar aqueles que têm bons motivos para pôr fim
às suas vidas supera o pequeno risco de abuso.
Será que a ideia de disponibilizar a todas as pessoas uma
"pílula da paz" atribui uma importância excessiva à liberdade e
à autonomia individuais? Afinal, não permitimos que as pessoas
escolham livremente, por exemplo, se querem ou não consumir
heroína. Trata-se de uma restrição da liberdade, mas, na opinião
de muitos, uma restrição que pode ser justificada em bases pater-
nalistas. Se o fato de impedir que as pessoas se tornem viciadas
em heroína é um paternalismo justificável, por que também não
o seria impedir que elas decidam sobre a própria morte?
A questão é pertinente, pois o respeito pela liberdade indivi-
dual pode ser levado longe demais. John Stuart Mill achava que
266 ÉTICA PRÁTICA

o Estado jamais deveria interferir na vida do indivíduo, a não


ser para impedir que ele prejudicasse seus semelhantes. O bem
do indivíduo em si, pensava Mill, não constitui razão suficiente
para a intervenção do Estado. É possível, porém, que Mill tivesse
uma opinião excessivamente elevada sobre a racionalidade do
ser humano. Às vezes, pode ser correto impedir que as pessoas
façam escolhas que têm fundamentos obviamente irracionais e
das quais podemos estar certos que, mais tarde, se arrepende-
rão. Contudo, a proibição da eutanásia voluntária não pode ser
justificada em bases paternalistas, pois trata-se de um ato para
o qual existem boas razões. A eutanásia voluntária só ocorre
quando, até onde os médicos são capazes de afirmar, uma pessoa
está sofrendo de uma doença incurável e dolorosa ou de um
problema extremamente angustiante. Nessas circunstâncias,
não se pode dizer que o fato de alguém optar por uma morte
rápida configure uma escolha obviamente irracional. A força do
argumento em favor da eutanásia voluntária está nessa combi-
nação do respeito pelas preferências (ou autonomia) dos que se
decidem por ela e da base inequivocamente racional da decisão
em si. Quando se disponibilizam livremente informações que
permitem às pessoas tirar a própria vida, elas talvez decidam
fazê-lo sem uma fundamentação racional clara. A possibilidade
de alguém abusar da eutanásia voluntária e do suicídio assistido
regulamentados por lei é muito menor, e, quando eles se encon-
tram disponíveis, não existe a necessidade de facilitar o acesso
das pessoas à informação sobre como se matar.

Não justificação da eutanásia involuntária


A eutanásia involuntária se assemelha à eutanásia volun-
tária no sentido de que implica a eliminação daqueles que são
capazes de consentir com a própria morte. A diferença está em
que eles não dão seu consentimento. Trata-se de uma diferença
crucial, como mostra o argumento da seção anterior. Todas as
quatro razões para não matar seres autoconscientes se aplicam
quando a pessoa morta não optou por morrer.
TIRAR A VIDA: HUMANOS 267

Algo muito semelhante à eutanásia involuntária parece ter


ocorrido num hospital de Nova Orleans durante as enchen-
tes provocadas pelo furacão Katrina, em 2005. O Memorial
Medicai Center, um hospital comunitário que abrigava, na
ocasião, mais de duzentos pacientes, foi isolado pelas cheias.
Três dias após o furacão, o hospital não tinha eletricidade, faltava
água e não havia mais como dar a descarga nos vasos sanitários.
Alguns pacientes que dependiam de respiradores morreram.
Com o calor abafado que fazia, os médicos e enfermeiros viram-
-se sobrecarregados, tendo de cuidar dos sobreviventes deitados
em leitos sujos. Para aumentar ainda mais a ansiedade, havia
o temor de que a cidade estivesse sem lei nem segurança, e o
hospital pudesse ser alvo de bandidos armados.
Foram chamados helicópteros para evacuar os pacientes.
A prioridade foi dada àqueles que estavam em melhores condi-
ções de saúde e conseguiam andar. A polícia estadual chegou
e informou aos funcionários que, por causa dos tumultos, era
preciso abandonar o hospital até as cinco horas da tarde.
No oitavo andar, Jannie Burgess, uma mulher de 79 anos
que tinha câncer em estágio avançado, recebia morfina por via
intravenosa e estava à beira da morte. Para que a evacuassem, ela
teria de ser carregada por seis lances de escada e exigiria aatenção
de enfermeiros que eram necessários em outros locais. Se não
recebesse cuidado algum, ela talvez recuperasse a consciência e
sentisse dor. Um dos médicos ali presentes instruiu a enfermeira
a aumentar a quantidade de morfina, "o suficiente para que
ela part[isse]". Outra médica disse aos enfermeiros que vários
pacientes do sétimo andar também estavam demasiadamente
doentes para sobreviver. Ela aplicou nesses pacientes morfina
e uma outra droga que diminuiria a sua frequência respiratória
até que morressem.
Parece que pelo menos um dos pacientes que receberam essa
injeção letal não corria risco tão grande de morrer a qualquer
momento. Emmett Everett era um homem de 61 anos que sofre-
ra um acidente anos antes e ficara paralítico; ele estava no hospi-
268 ÉTICA PRÁTICA

tal aguardando uma cirurgia para remover uma obstrução no


intestino. Quando os outros pacientes de sua ala foram evacua-
dos, ele pediu para que não o deixassem para trás; mas ele pesava
172 quilos, e seria extremamente difícil carregá-lo escada abaixo
e depois escada acima até os helicópteros. Disseram-lhe que a
injeção ajudaria a aliviar as vertigens que ele costumava sentir.
É discutível se a morte deliberada desses pacientes poderia
ser justificada nessas circunstâncias, mas, a meu ver, a morte de
Emmett Everett não pode. É significativo o fato de os médicos
não terem agido dessa maneira porque já se tivesse dado o
perigoso primeiro passo rumo à aceitação da eutanásia voluntária
ou do suicídio assistido, pois essas práticas nunca foram legaliza-
das no estado norte-americano da Louisiana. Ao contrário, pelo
que os médicos contaram a Sheri Fink, autora da matéria do New
York Times na qual o relato anterior se baseia, eles entenderam
o que estavam fazendo como a aplicação da doutrina do duplo
efeito, à qual os médicos costumam recorrer ao aplicar morfina
para aliviar a dor de um paciente terminal, mesmo sabendo que
isso abreviará sua vida. Discutiremos essa doutrina logo mais.
Haveria alguma possibilidade de justificar a eutanásia
involuntária em bases paternalistas para poupar alguém de uma
agonia extrema? Podemos imaginar um caso no qual a agonia
é tão grande e tão evidente que supera as quatro razões para
não matar seres autoconscientes. No entanto, para tomar essa
decisão, alguém precisaria estar convencido de ter condições
de avaliar quando a vida de uma pessoa é tão ruim que não
valha a pena ser vivida e de fazer essa avaliação melhor do que
a própria pessoa. Mas o fato de a outra pessoa querer continuar
vivendo é um bom indício de que sua vida vale a pena ser vivida.
Que melhor indício poderia haver?
O único tipo de caso em que o argumento paternalista é
absolutamente plausível é aquele no qual a pessoa a ser morta
não se dá conta da agonia que sofrerá no futuro, e, se não for
morta agora, terá de suportar essa agonia até o último instante.
TIRAR A VIDA: HUMANOS 269

Nessas bases, poder-se-ia matar uma pessoa que - ainda que


não se tenha apercebido do fato - caiu nas mãos de sádicos
homicidas que a torturarão até a morte. Felizmente, é muito
mais comum encontrar esses casos na ficção do que na vida real.
Neste ponto da discussão, a diferença entre os planos crítico
e intuitivo de raciocínio moral (cf. Capítulo 4) volta a ser rele-
vante. Se, na vida real, é extremamente improvável encontrar-
mos um caso de eutanásia involuntária justificável, então talvez
seja melhor tirarmos da cabeça os casos fantasiosos nos quais
alguém se possa imaginar defendendo-a e passar a ver o preceito
contra a eutanásia involuntária como realmente absoluto. No
plano intuitivo - aquele de que nos valemos em nossa vida coti-
diana-, podemos simplesmente dizer que a eutanásia só é justi-
ficável se os que forem mortos

1. não tiverem condições de consentir com a própria morte


por faltar-lhes a capacidade de compreender a escolha
entre a continuidade de sua própria existência e a não
existência, ou
2. tiverem a capacidade de escolher entre a continuidade de
sua vida ou a morte e tomaram a decisão firme de morrer
de livre e espontânea vontade e à luz de todos os fatos.

Eutanásia ativa e passiva


As conclusões às quais chegamos neste capítulo violam um
dos princípios mais fundamentais da ética ocidental: matar seres
humanos inocentes é sempre errado. Já demonstrei que, pelo
menos no caso dos bebês deficientes, minhas conclusões consti-
tuem um desvio menos radical em relação à prática existente do
que as pessoas poderiam pensar, em virtude do amplo respal-
do que se dá ao diagnóstico pré-natal seguido de aborto no caso
de uma gravidez que levaria ao nascimento de uma criança defi-
ciente. Nesta seção, pretendo afirmar que existe outra área da
prática médica já aceita que não difere intrinsecamente das prá-
ticas que defendo. Em contraste com esse pano de fundo, as
270 ÉTICA PRATICA

conclusões às quais chegamos não parecem tão chocantes quanto


poderiam ser.
"Baby Doe" era o pseudônimo legal de um bebê nascido
em Bloomington, no estado norte-americano de Indiana,
com a síndrome de Down e alguns outros problemas, entre
eles a má-formação do esôfago, a passagem que vai da boca
ao estômago. Ou seja, Baby Doe não podia receber alimentos
pela boca. O problema poderia ser resolvido por uma cirurgia,
mas, depois de discutirem a situação com o obstetra, os pais
recusaram essa opção. Sem a cirurgia, Baby Doe não demora-
ria a morrer. Posteriormente, seu pai diria que, sendo professor,
já havia trabalhado em estreito contato com crianças portado-
ras da síndrome de Down, e que, segundo decisão tomada por
ele e pela esposa, o melhor para Baby Doe e para o resto da
família (eles tinham mais dois filhos) seria não permitir que a
cirurgia fosse feita. Insegura e em busca de orientação jurídica,
a administração do hospital levou o caso ao tribunal. Tanto a
primeira instância quanto o Supremo Tribunal do estado reite-
raram o direito dos pais de não permitir a realização da cirurgia.
O caso chamou a atenção da imprensa de todos os Estados
Unidos e foi feita uma tentativa de levá-lo ao Supremo Tribunal
Federal. Baby Doe, porém, morreu antes que isso acontecesse.
Uma das consequências do caso Baby Doe foi que o governo
dos Estados Unidos, que na época tinham por primeiro manda-
tário Ronald Reagan, emitiu uma portaria determinando que, a
despeito das deficiências que pudessem apresentar, todos os bebês
deveriam receber os tratamentos necessários para lhes salvar a
vida. A nova lei, porém, enfrentou forte oposição do Conselho
Federal de Medicina e da Academia Norte-Americana de Pedia-
tria. Nas audiências sobre a portaria, até mesmo o dr. C. Everett
Koop, diretor nacional de saúde do governo Reagan e principal
força por trás da tentativa de assegurar o tratamento a todos os
bebês, teve de admitir que, em alguns casos, ele próprio não
recomendaria um tratamento que assegurasse a continuidade da
vida. O dr. Koop mencionou três condições nas quais, segundo
TIRAR A VIDA: HUMANOS 271

ele, esse tipo de tratamento não seria apropriado: bebês anence-


fálicos (que nasceram sem cérebro); bebês que, geralmente por
terem nascido prematuros demais, tivessem sofrido uma hemor-
ragia cerebral tão forte que jamais voltariam a respirar sem auxílio
de aparelhos e nem mesmo viriam, um dia, a reconhecer uma
outra pessoa; e bebês que, devido à ausência da maior parte de seu
trato digestivo, só pudessem ser mantidos vivos por uma sonda
que levasse o alimento diretamente para sua corrente sanguínea.
A portaria acabou sendo adotada de uma forma muito
atenuada, o que dava aos médicos certa flexibilidade. Mesmo
assim, uma pesquisa subsequente feita entre pediatras norte-
-americanos especializados em assistência aos recém-nascidos
mostrou que 76% deles achavam que a lei não era necessária,
66% achavam que a portaria representava uma interferência no
direito dos pais de determinar qual a melhor decisão a tomar
para o bem de seus filhos, e 60% acreditavam que os regula-
mentos não permitiam a consideração adequada do sofrimento
dos bebês.
Numa série de casos britânicos, os tribunais aceitaram o
ponto de vista de que a qualidade de vida de uma criança é uma
consideração relevante a ser examinada antes de ser tomada a
decisão de submeter ou não o bebê a um tratamento que lhe
prolongue a vida. Num caso chamado A respeito de B, que teve
por protagonista um bebê nas mesmas condições de Baby Doe,
com síndrome de Down e obstrução do intestino, o tribu-
nal determinou que a cirurgia fosse feita, pois a vida do bebê
deixaria de ser "comprovadamente horrível". Em outro caso,
A respeito de C, no qual o bebê apresentava má-formação do
cérebro e várias outras deficiências físicas, o tribunal autorizou a
equipe de pediatras a eliminar o tratamento que o mantinha vivo.
O mesmo procedimento foi adotado no caso A respeito do bebê],
uma criança que nasceu prematura demais e era cega, surda e
com probabilidades quase nulas de algum dia conseguir falar.
Uma pesquisa realizada com médicos europeus que traba-
lhavam em uns neonatais na França, Alemanha, Itália, Luxem-
272 ÉTICA PRÁTICA

burgo, Holanda, Espanha, Suécia e Reino Unido demonstrou


que, em todos esses países, a maioria havia estabelecido limites
ao tratamento intensivo que se poderia oferecer a um bebê que
apresentasse um problema incurável. Por exemplo, haviam
deixado de fora a ressuscitação pós-parada cardíaca ou colocar o
bebê num respirador. Portanto, ainda que muitos discordassem
dos pais de Baby Doe (já que portadores da síndrome de Down
podem levar uma vida boa e costumam ser indivíduos carinho-
sos e sensíveis), praticamente todo mundo admite que, nos casos
mais graves, permitir que uma criança morra é o único proce-
dimento humano e eticamente aceitável que se pode adotar.
A pergunta é: se é certo permitir que bebês morram, por que
seria errado matá-los?
Essa questão não passou despercebida aos médicos que lidam
com o problema. Quase sempre, sua resposta é citar os versos de
Arthur Clough, poeta do século XIX, que escreveu:

Não matarás; mas não precisas te empenhar


Em manter importunamente a vida.

Infelizmente, para os que recorrem aos versos imortais de


Clough como manifesto ético peremptório, eles procedem de
uma sátira mordaz- "O último Decálogo" -, que tem por finali-
dade zombar das atitudes descritas. São estes os versos iniciais:

Terás apenas um deus,


Que existiria à custa de dois.
Não adorarás imagens gravadas,
A não ser as que vês nas moedas.

Portanto, Clough não pode ser incluído entre os que acham


errado matar, mas consideram certo não se empenhar demais
em manter a vida. Entretanto, haverá algo a ser dito a favor des-
sa ideia? A concepção de que há é muitas vezes chamada de
"doutrina dos atos e das omissões". De acordo com essa concep-
TIRAR A VIDA: HUMANOS 273

ção, há uma importante distinção moral entre praticar um ato


que tem determinadas consequências - matar uma criança defi-
ciente, por exemplo - e deixar de fazer algo que terá as mesmas
consequências. Se essa doutrina estiver certa, o médico que apli-
ca uma injeção letal numa criança está cometendo um erro; o
médico que deixa de ministrar antibióticos a uma criança, sa-
bendo muito bem que ela morrerá sem esses medicamentos, não
está cometendo erro algum.
Que razões existem para que se aceite a doutrina dos atos
e das omissões? Poucos defendem a doutrina por seus próprios
méritos como um primeiro e importante princípio ético. Trata-
-se, pelo contrário, de uma implicação de uma concepção da
ética, uma concepção segundo a qual enquanto não violarmos
preceitos morais específicos que nos impõem certas obrigações
morais, estaremos fazendo tudo que a moralidade exige de nós.
Esses preceitos são similares aos que ficaram conhecidos pelos
Dez Mandamentos e códigos morais afins: "não matar", "não
mentir", "não roubar" etc. Caracteristicamente, são formulados
na negativa, de modo que, para obedecer, só precisamos nos
abster de praticar os atos que eles condenam. Portanto, pode-se
exigir a obediência de todos os membros da comunidade.
Uma ética que consista em obrigações específicas, prescri-
tas por regras morais às quais se pode esperar que todos obede-
çam deve estabelecer uma nítida distinção moral entre atos e
omissões. Examinemos, por exemplo, o preceito "não matar".
Se for interpretado, como tem sido em toda a tradição ocidental,
apenas como uma proibição de se tirar a vida de um ser humano
inocente, não será muito difícil evitar a violação explícita desse
preceito. Poucos, dentre nós, são assassinos. Não é tão fácil
impedir que seres humanos inocentes morram. Muitas pessoas
morrem por falta de alimentação ou de recursos médicos.
Se pudermos ajudar algumas delas, mas não o fizermos, estare-
mos permitindo que morram. Tomar o preceito contrário a tirar
a vida e aplicá-lo às omissões faria viver em conformidade com
274 ÉTICA PRATICA

ele se transformar numa marca de santidade ou de heroísmo


moral, em vez de ser o mínimo exigido de toda pessoa moral-
mente decente.
Uma ética que avalie os atos tendo em vista o fato de eles
violarem ou não preceitos morais específicos deve, portanto,
atribuir uma importância moral à distinção entre atos e omissões.
Uma ética que avalie os atos por suas consequências não o fará,
porque, em todos os aspectos significativos, as consequências
de um ato e as de uma omissão serão quase sempre indistinguí-
veis. Por exemplo, decidir não colocar num respirador um bebê
prematuro e incapaz de respirar sem auxílio tem consequências
tão fatais quanto aplicar uma injeção letal na criança.
A questão dos atos e das omissões coloca a escolha entre
essas duas abordagens básicas de uma maneira invulgarmente
clara e direta. O que precisamos fazer é imaginar duas situações
análogas que só diferem pelo fato de, numa delas, uma pessoa
praticar um ato que resulte na morte de outro ser humano, en-
quanto, na outra, ela chega ao mesmo resultado por ter deixado
de fazer alguma coisa. Segue a descrição de uma situação relati-
vamente comum, extraída de um ensaio de sir Gustav Nossal,
importante pesquisador médico australiano:

Uma senhora de 83 anos foi aceita [por um abrigo para pessoas


idosas] porque sua confusão mental cada vez maior tornou
impossível, para ela, continuar vivendo em sua própria casa, e
não havia ninguém que quisesse cuidar dela ou tivesse condições
de fazê-lo. Três anos depois, seu estado se agravou. Não conse-
gue mais falar, precisa ser alimentada e sofre de incontinência.
Por fim, não consegue mais ficar sentada numa poltrona e se
vê para sempre confinada a uma cama. Certo dia, ela contrai
pneumonia.

No caso de um paciente com uma qualidade de vida razoá-


vel, a pneumonia seria rotineiramente tratada com antibióticos.
Os antibióticos deveriam ser dados à paciente do exemplo?
Nossal prossegue:
TIRAR A VIDA: HUMANOS 275

Os parentes são procurados, e a diretora do abrigo lhes diz que


ela e os médicos com os quais costuma trabalhar chegaram a um
acordo informal para esse tipo de caso. Quando o paciente sofre
de demência senil avançada, tratam as três primeiras infecções
com antibióticos, e, depois disso, cônscios do provérbio segundo
o qual "a pneumonia é amiga dos velhos", deixam que a natureza
siga seu curso. A diretora enfatiza que, se os parentes quiserem,
todas as infecções serão vigorosamente tratadas. Os parentes
concordam com a adoção do método empírico. A paciente morre
de uma infecção no trato urinário seis meses depois.

A velha senhora morreu em consequência de uma omissão


deliberada. Para muitas pessoas, é perfeitamente possível justi-
ficar essa omissão. Talvez até se perguntassem se não teria
sido melhor omitir o tratamento já na primeira ocorrência de
pneumonia. Afinal, o número três não tem nada de moral-
mente mágico. No momento em que se decidiu não ministrar
o antibiótico, também teria sido justificável aplicar uma injeção
que desse à paciente uma morte serena?
Comparando essas duas maneiras de provocar a morte
de um paciente num determinado momento, seria razoável
afirmar que o médico que aplique a injeção seja um assassino
que mereça ir para a cadeia, enquanto aquele que resolva não
ministrar os antibióticos seja bom e piedoso no exercício da
profissão? É possível que os tribunais dissessem exatamente
isso, mas é evidente que se trata de uma distinção insustentável.
Nos dois casos, o resultado é a morte do paciente. Nos dois
casos, o médico sabe que será esse o resultado e decide o que
vai fazer com base nesse conhecimento, pois acha esse resultado
melhor do que a outra alternativa. Nos dois casos, o médico
deve assumir a responsabilidade por sua decisão: não seria
correto, da parte do médico que resolveu não dar os antibió-
ticos, dizer que não foi responsável pela morte do paciente
porque não fez nada. Numa situação como essa, não fazer nada
já constitui, em si, uma opção deliberada, e não se pode fugir à
responsabilidade por suas consequências.
276 ÉTICA PRÁTICA

Sem dúvida, sempre se poderia dizer que o médico que


deixe de ministrar os antibióticos não mata o paciente, apenas
permite que ele morra; mas é preciso, então, responder à
pergunta: por que matar é sempre errado, e deixar morrer não é?
Em sua maior parte, os defensores da distinção simplesmente
respondem que existe um preceito moral contra tirar a vida de
seres humanos inocentes e nenhum contra o fato de se permitir
que eles morram. Essa resposta trata um preceito moral conven-
cionalmente aceito como se ele não pudesse ser questionado;
não pergunta se deveríamos ter um preceito moral contra tirar
a vida (mas não contra o fato de permitir que alguém morra).
Já vimos, porém, que o princípio convencionalmente aceito da
santidade da vida humana é insustentável. Os preceitos morais
que proíbem o assassinato, mas aceitam o "deixar morrer",
tampouco podem ser aceitos como verdadeiros sem razões
objetivas para tanto.
A reflexão sobre esses casos leva-nos à conclusão de que não
existe nenhuma diferença moral intrínseca entre matar e permi-
tir a morte. Ou seja, não existe diferença que dependa exclusiva-
mente da distinção entre um ato e uma omissão. (Não significa
que todos os casos nos quais se permite que alguém morra sejam
moralmente equivalentes a tirar a vida. Outros fatores - fatores
extrínsecos - serão, às vezes, relevantes. Esse tema será discutido
no próximo capítulo.) Permitir que alguém morra- o que às vezes
se chama de "eutanásia passiva" - já é aceito como um procedi-
mento humanitário e apropriado em certos casos. Se não existe
nenhuma diferença moral intrínseca entre matar alguém e permi-
tir que alguém morra, a eutanásia ativa também deveria ser aceita
como humanitária e apropriada em determinadas circunstâncias.
Outros sugeriram que a diferença entre não ministrar
o tratamento necessário ao prolongamento da vida e aplicar
uma injeção letal estaria na intenção com que as duas coisas
são feitas. Aqueles que assim pensam recorrem à "doutrina
do duplo efeito", amplamente aceita entre teólogos e filóso-
fos morais católico-romanos, para afirmar que uma ação
TIRAR A VIDA.· HUMANOS 277

(não ministrar um tratamento que prolongue a vida, por exemplo)


pode ter dois efeitos (nesse caso, não causar mais sofrimentos ao
paciente e abreviar-lhe a vida). Em seguida, argumentam que,
enquanto o efeito diretamente pretendido for o efeito benéfico
que não viola um preceito moral absoluto, a ação é permissível.
Ainda que possamos prever que nossa ação (ou omissão) resultará
na morte do paciente, isso não passa de um efeito colateral não
desejado. Mas a distinção entre efeito diretamente pretendido e
efeito colateral é inventada, e a doutrina pode ser facilmente mal
utilizada, como vimos no caso do Memorial Medicai Center
de Nova Orleans depois da passagem do furacão Katrina. Não
podemos fugir à responsabilidade simplesmente direcionando
nossa intenção para um efeito e não para o outro. Se prevemos
os dois efeitos, temos de assumir a responsabilidade pelos efeitos
previstos de nossos atos. Muitas vezes, queremos fazer alguma
coisa, mas não a fazemos por causa de suas consequências indese-
jáveis. Por exemplo, uma indústria química pode querer livrar-se
de seus resíduos tóxicos da maneira mais econômica possível,
lançando-os no rio mais próximo. Admitiríamos que os direto-
res da indústria afirmassem que o efeito diretamente pretendido
era tão somente aumentar sua eficiência, e, com isso, gerar mais
empregos e baixar o custo de vida? Consideraríamos a poluição
desculpável por ela ser, simplesmente, um efeito colateral indese-
jado da vontade de concretizar esses nobres objetivos? É evidente
que os partidários da doutrina do duplo efeito não aceitariam
essa desculpa. Ao rejeitá-la, porém, teriam de se fundamentar
na avaliação de que o custo - o rio poluído - é desproporcional
aos benefícios. Nesse ponto, uma avaliação consequencialista se
esconde atrás da doutrina do duplo efeito. O mesmo acontece
quando a doutrina é usada na esfera da assistência médica. Em
geral, salvar uma vida tem precedência sobre o alívio da dor. Se
assim não for no caso de um paciente específico, só pode ser
porque avaliamos que suas perspectivas de uma vida futura com
uma qualidade aceitável são tão ínfimas que, nesse caso, a prece-
dência pode ficar com a decisão de abrandar o sofrimento. Em
278 ÉTICA PRATICA

outras palavras, não se trata de uma decisão baseada na aceita-


ção da santidade da vida humana, mas uma decisão que tem por
base uma avaliação disfarçada da qualidade de vida.
Igualmente insatisfatório é o conhecido apelo à distinção
entre tratamentos "comuns" e "incomuns", aliado à crença de
que não seja obrigatório prover os meios incomuns. Junto com
minha colega Helga Kuhse, fiz uma pesquisa entre pediatras e
obstetras australianos e descobri que eles tinham ideias extraor-
dinárias a respeito do que seriam meios "comuns" e "incomuns".
Alguns chegavam a pensar que o uso de antibióticos - o mais
barato, simples e corriqueiro dos tratamentos médicos - poderia
ser visto como incomum. É fácil descobrir o motivo dessa
diversidade de opiniões. Quando examinamos as justificativas
oferecidas por teólogos e filósofos morais para a distinção, fica
claro que aquilo que é "comum" numa situação pode tornar-se
"incomum" em outra. Por exemplo, no famoso caso de Karen
Ann Quinlan, a jovem de Nova Jersey que estava em coma,
respirando por aparelhos e, segundo se achava, sem perspectiva
alguma de recuperação, um bispo católico romano declarou que
o uso de um respirador seria "incomum", e, portanto, opcio-
nal, pois Quinlan não tinha esperança alguma de sair do coma.
É evidente que, se os médicos achassem que Quinlan tinha
probabilidades de se recuperar, o uso do respirador não seria
opcional e passaria a ser visto como "comum". Por outro lado,
quando o respirador foi removido e, para surpresa de muitas
pessoas, a moça continuou a respirar por conta própria, os pais
dela, que também eram católicos romanos, não pediram que a
sonda alimentar fosse retirada. Quinlan sobreviveu mais nove
anos, mas nunca saiu do coma.
Em 2004, em meio à polêmica por causa de Terri Schiavo,
o papa João Paulo n afirmou categoricamente que não se deve
remover a sonda alimentar de pessoas em estado vegetativo,
alegando que "fornecer água e alimento, mesmo que por meios
artificiais, sempre representa uma maneira natural de preser-
var a vida, e não um ato da medicina". É difícil entender como
TIRAR A VIDA: HUMANOS 279

a utilização de uma sonda alimentar possa não ser um ato da


medicina: o posicionamento da sonda não é algo que pessoas sem
treinamento na área da saúde consigam fazer. Haveria de fato
uma diferença moral significativa entre remover um respirador e
retirar uma sonda alimentar? É a perspectiva de o paciente levar
uma vida com um mínimo de qualidade (e, nos casos em que os
recursos são limitados e poderiam ser usados com mais eficiên-
cia para salvar vidas em outros lugares, o custo do tratamento)
que determina se uma forma específica de tratamento deve ou
não ser providenciada.
Na verdade, devido a diferenças extrínsecas - sobretudo
diferenças quanto ao tempo que a morte leva para ocorrer -,
a eutanásia ativa pode ser o procedimento mais humanitário.
Na década de 1970, o médico britânico John Lorber recomen-
dou que se permitisse a morte dos bebês nascidos com a forma
mais grave de espinha bífida - na época, um defeito congê-
nito relativamente comum em que o bebê tem uma ferida nas
costas que deixa os nervos expostos -, porque ele considerava
as perspectivas de uma vida digna de ser vivida praticamente
nulas no caso dessas crianças. Lorber admitia, sem rodeios, que
o objetivo de não ministrar tratamento algum a esses bebês seria
a esperança de que eles tivessem uma morte rápida e sem dor.
Contudo, quando ele analisou o que acontecera com 25 bebês
nascidos com espinha bífida que nunca passaram por cirurgia,
por decisão médica, descobriu que catorze deles ainda estavam
vivos depois de um mês; sete, depois de três meses. Uma clínica
australiana que seguiu a recomendação de Lorber para os casos
de espinha bífida constatou que, de 75 bebês não tratados, cinco
sobreviveram por mais de dois anos. Tanto para os bebês quanto
para suas famílias, a experiência deve ter sido tão penosa quanto
arrastada. Isso também representa (ainda que, numa sociedade
razoavelmente rica, essa não deva ser a principal considera-
ção) um ônus substancial para a equipe hospitalar e os recur-
sos médicos da comunidade (hoje em dia, um número muito
menor de bebês nasce com espinha bífida, em parte porque se
280 ÉTICA PRATICA

descobriu que a incidência da má-formação é reduzida quando a


mãe ingere ácido fólico no começo da gravidez, em parte porque
agora é possível detectar a espinha bífida durante a gravidez, e a
maioria dos fetos que portam essa condição é abortada).
Para tomarmos um outro exemplo, examinemos o caso dos
bebês que nasceram com síndrome de Down e uma obstrução
no sistema digestivo que, se não for removida, não permitirá que
o bebê consiga se alimentar. A exemplo de "Baby Doe", pode-se
permitir que esses bebês morram. Contudo, a obstrução pode
ser removida e não tem nada a ver com o grau de aptidão intelec-
tual que a criança apresentará. Além disso, a morte decorrente
da omissão em operar nessas circunstâncias não é rápida nem
indolor, apesar de certa. O bebê morre de desidratação ou fome.
Baby Doe levou cerca de cinco dias para morrer, e, em outros
exemplos conhecidos dessa prática, a morte só ocorreu depois de
duas semanas.
Nesse contexto, é interessante repensar um argumento que já
apresentamos: o de que ser membro da espécie Homo sapiens não
dá a um ser o direito a um tratamento melhor do que teria outro
ser, com nível mental semelhante, que pertença a uma espécie
diferente. Também poderíamos ter dito- e só não o fizemos por
parecer óbvio demais - que o fato de pertencer à espécie Homo
sapiens não é motivo para dar a um ser um tratamento pior do que
aquele dado a um membro de outra espécie. No que diz respeito
à eutanásia, porém, é preciso que isso seja dito. Se um cachorro
de estimação está doente, sofre e não tem a menor chance de
se recuperar, a atitude humanitária é levá-lo ao veterinário, que
acabará rapidamente com seu sofrimento aplicando-lhe uma
injeção letal. "Permitir que a natureza siga seu curso", recusando-
-se a tratar o cão que levará dias, semanas ou meses angustiantes
para morrer seria obviamente errado. Nosso respeito equivocado
pela doutrina da santidade da vida humana é a única coisa que
nos impede de ver que aquilo que é obviamente errado de se fazer
a um cão é igualmente errado quando feito a um ser humano que
nunca foi capaz de expressar sua opinião sobre o assunto.
TIRAR A VIDA: HUMANOS 281

Em resumo: as maneiras passivas de pôr fim à vida resultam


numa morte arrastada. Introduzem fatores irrelevantes (uma obs-
trução intestinal ou uma infecção fácil de curar) no processo de
seleção daqueles que vão morrer. Se somos capazes de admitir
que nosso objetivo é uma morte rápida e indolor, não deveríamos
permitir que o acaso determinasse se esse objetivo será ou não
alcançado. Tendo optado pela morte, devemo-nos certificar de
que ela ocorra da melhor maneira possível.

Ladeira escorregadia (slippery slope)*: da eutanásia ao


genocídio?
Antes de abandonarmos esse tema, devemos examinar uma
objeção que, de tão poderosa na literatura contrária à eutanásia,
merece uma seção à parte. É ela, por exemplo, a razão pela qual
Lorber rejeita a eutanásia ativa. Em suas palavras:

Discordo inteiramente da eutanásia. Ainda que seja totalmente


lógica e que, em mãos experientes e escrupulosas, pudesse ser
o modo mais humanitário de lidar com a situação, legalizar a
eutanásia equivaleria a colocar uma arma por demais perigosa nas
mãos do Estado ou de indivíduos inescrupulosos e ignorantes.
Não é preciso voltar muito atrás na História para conhecer os
crimes que poderiam ser cometidos se a eutanásia fosse legalizada.

A eutanásia seria o primeiro passo ladeira abaixo? Na ausên-


cia de bases morais salientes que impedissem nossa queda, será
que cairiam até as profundezas do abismo do terror de Estado e
do assassinato em massa? A experiência do nazismo, à qual, sem

* Slippery slope, em tradução literal, é um "plano inclinado e escorregadio", ou


uma "ladeira escorregadia". O princípio que leva este nome significa romar uma
atitude que, subsequentemente, "escorrega ladeira abaixo", sem limites, até romar
prejuízos de proporções sem precedentes. O termo é bastante utilizado e difun-
dido nas discussões filosóficas sobre a bioética e a eutanásia. No texro, o auror
utiliza-se do exemplo amplamente discutido de pequenas negligências da pane
dos médicos nazistas que foram gradualmente se convertendo em campanhas de
exterminação em massa nos campos de concentração. (N. R. T.)
282 ÉTICA PRATICA

dúvida, Lorber está se referindo, tem sido muito usada como


ilustração do que poderia se seguir à legalização da eutaná-
sia. Segue um exemplo mais específico, extraído de um artigo
escrito por outro médico, Leo Alexander:

Sejam quais forem as proporções finalmente assumidas pelos


crimes [nazistas], ficou evidente a todos que os investigaram que
eles partiram de coisas triviais. De início, verificou-se apenas uma
sutil mudança de ênfase na atitude fundamental dos médicos.
Começou pela aceitação da atitude, fundamental ao movimento
da eutanásia, de que existe uma coisa que se entende por vida
que não vale a pena ser vivida. Em seus estágios iniciais, essa
atitude dizia respeito, simplesmente, aos seres grave e cronica-
mente doentes. Aos poucos, a esfera dos incluídos nessa categoria
foi ampliada de modo a abranger os socialmente improdutivos,
os ideologicamente indesejados, os racialmente indesejados e,
por último, todos os que não fossem alemães. É importante
nunca esquecer que a alavanca infinitamente pequena que deu à
inclinação mental o impulso necessário foi a atitude diante dos
doentes incuráveis .

Alexander aponta o chamado "programa de eutanásia" dos


nazistas como a origem de todos os crimes horrendos que mais
tarde o nazismo cometeria, e o faz porque o programa implicava
que "existe uma coisa que se entende por vida que não vale a
pena ser vivida". Lorber dificilmente concordaria com Alexan-
der a esse respeito, já que sua recomendação de não tratar bebês
portadores dos piores casos de espinha bífida se baseia exata-
mente nesse raciocínio. Ainda que, às vezes, as pessoas falem
como se nunca devêssemos julgar quando uma vida humana é
ou não digna de ser vivida, há ocasiões em que é evidente que se
trata de um raciocínio correto. Uma vida de sofrimentos físicos
e privada de qualquer forma de prazer ou de níveis mínimos
de autoconsciência não é digna de ser vivida. Como já mencio-
namos, a existência de um indivíduo afetado pela doença de
Tay-Sachs é um exemplo plausível de vida que não merece ser
TIRAR A VIDA: HUMANOS 283

vivida. Pesquisas feitas por economistas da saúde, nas quais se


pergunta às pessoas o quanto valorizam o fato de estarem vivas
em certas condições de saúde, regularmente constatam que elas
atribuem um valor negativo a algumas condições - isto é, dão a
entender que seria melhor morrer do que sobreviver em determi-
nadas circunstâncias. Aparentemente, a vida da velha senhora
descrita por sir Gustav Nossal não era- na opinião da diretora
do abrigo para idosos, dos médicos e dos parentes - digna de
ser vivida. Se podemos estabelecer critérios para decidir quem
deva morrer e quem deva receber tratamento, por que seria
errado estabelecer critérios, talvez os mesmos, para decidir quem
deveria ser morto?
Portanto, o que diferencia os nazistas das pessoas normais
que não cometem assassinatos em massa não é o ponto de vista
de que algumas vidas não são dignas de serem vividas. O que
seria, então? Será o fato de terem transicionado da eutanásia
passiva para a eutanásia ativa? Muitos, como Lorber, preocupam-
-se com o poder que um programa de eutanásia ativa poderia
colocar nas mãos de um governo sem escrúpulos. Não se trata
de uma preocupação desprezível, mas também não é preciso
exagerá-la. Governos inescrupulosos já têm em mãos meios mais
eficazes de se livrar de seus adversários do que a eutanásia prati-
cada por médicos e por motivos médicos. "Suicídios" podem ser
arranjados. "Acidentes" podem acontecer. Se necessário, assas-
sinos podem ser contratados e seus crimes atribuídos a outras
pessoas. Nossa melhor defesa contra essas alternativas está em
fazer todo o possível para manter nosso governo democrático,
transparente e nas mãos de pessoas que nunca desejariam, seria-
mente, eliminar seus adversários. Sempre que esse desejo for
sério o suficiente, os governos encontrarão meios de concretizá-
-lo, esteja a eutanásia legalizada ou não.
Na verdade, os nazistas não tinham um programa de
eutanásia no sentido específico do termo. Seu "programa
de eutanásia" não era motivado pela preocupação com o sofri-
mento dos que eram mortos. Se assim fosse, por que os nazistas
284 ÉTICA PRATICA

teriam mantido suas operações em segredo, enganado os paren-


tes quanto à causa da morte das pessoas eliminadas e isentado
do programa algumas classes privilegiadas, como veteranos das
forças armadas ou parentes de membros das equipes que prati-
cavam a eutanásia? A "eutanásia" nazista nunca foi voluntária e,
na maior parte dos casos, era involuntária, nem mesmo não
voluntária. "Acabar com as bocas inúteis" - um dos lemas usados
pelos encarregados do "programa" - pode nos dar uma ideia
melhor de seus objetivos do que a expressão "morte por miseri-
córdia". Tanto a origem racial quanto a capacidade de traba-
lho estavam entre os fatores levados em conta na seleção dos
pacientes que seriam morros. O que tornou possível o chamado
"programa" de eutanásia e, mais tarde, todo o holocausto foi a
crença nazista na importância de manter um Volk ariano puro
- uma entidade quase mística vista como mais importante do
que a mera vida dos indivíduos. Por outro lado, as propostas de
legalização da eutanásia se baseiam no respeito pela autonomia e
no objetivo de evitar um sofrimento inútil.
Portanto, são poucas as chances de a legalização da eutanásia
nos lançar no abismo das atrocidades nazistoides. Ainda seria pos-
sível argumentar que, por mais arbitrárias que fossem as distin-
ções entre humano e não humano, feto e bebê, matar e deixar
morrer, o preceito de que seria sempre errado matar um ser hu-
mano inocente pelo menos traça uma linha divisória utilizável.
A distinção entre um bebê cuja vida pode ser digna de ser vivida
e outro cuja vida seja exatamente o contrário é muito mais difícil
de determinar. Talvez, ao verem que certos tipos de seres huma-
nos são mortos em certas circunstâncias, as pessoas concluam que
não seja errado matar outros que não sejam muito diferentes dos
primeiros. Assim, os limites da eliminação aceitável seriam gra-
dualmente recuados? Na ausência de qualquer impedimento lógi-
co, o resultado seria a perda total do respeito pela vida humana?
Se nossas leis fossem modificadas de modo a permitir que
qualquer pessoa pudesse praticar a eutanásia, a ausência de uma
linha divisória nítida entre aqueles que poderiam ser justifi-
TIRAR A VIDA: HUMANOS 285

cadamente morros e aqueles que não poderiam suscitaria um


problema real. Não é isso, porém, o que os defensores da eutaná-
sia propõem. Se a eutanásia só pode ser praticada por um médico,
com a cooperação de um segundo profissional da saúde, não é
provável que a propensão a matar se difunda incontroladamente
por toda a comunidade. Já que se podem recusar a ministrar um
tratamento, os médicos já detêm considerável poder sobre a vida
e a morre. Não há indícios de que os médicos que começam por
permitir que bebês com graves deficiências morram de pneumo-
nia passem a não aplicar antibióticos às minorias raciais ou aos
extremistas políticos. Na verdade, a legalização da eutanásia
talvez se convertesse em uma limitação ao poder dos médicos,
pois colocaria às claras e sob a fiscalização de outro médico
aquilo que alguns desses profissionais já vêm fazendo por inicia-
tiva própria e às escondidas.
Seja como for, são poucos os indícios históricos que sugerem
que uma atitude permissiva ante a eliminação de uma categoria
de seres humanos leve a um colapso das restrições a se pôr fim
à vida de outros seres humanos. Os gregos antigos matavam
ou abandonavam regularmente seus bebês, mas, pelo menos no
que diz respeito a tirar as vidas de seus concidadãos, parecem ter
sido tão escrupulosos quanto os cristãos medievais ou os norte-
-americanos contemporâneos. Nas sociedades esquimós tradi-
cionais, havia o costume de um homem matar os pais idosos,
mas quase não se tinha conhecimento do assassinato de adultos
normais e saudáveis. Não menciono essas práticas para sugerir
que sejam imitadas, mas somente para indicar que é possível
traçar linhas em lugares diferentes daqueles em que hoje as
traçamos. Se essas sociedades eram capazes de separar os seres
humanos em categorias diferentes, sem transferir suas atitudes
de um grupo para outro, nós, com nossos sistemas jurídicos
mais sofisticados e nosso maior conhecimento médico, devería-
mos ser capazes de fazer o mesmo.
Nada disso significa que o fato de nos afastarmos da tradi-
cional ética da santidade da vida humana não ofereça um risco
286 ÉTICA PRÁTICA

mínimo, mas limitado, de trazer consequências indesejadas. De-


vemos confrontar esse risco com o mal verdadeiro a que a ética
tradicional dá lugar: o mal feito àqueles cujo sofrimento seja des-
necessariamente prolongado. Também devemos perguntar se a
ampla aceitação do aborto e da eutanásia passiva já não revela-
ria, na ética tradicional, falhas que a transformam numa frágil
defesa contra os que não têm respeito pelas vidas individuais.
Em longo prazo, uma ética mais judiciosa - ainda que menos
precisa - talvez forneça bases mais sólidas para resistirmos ao
impulso de matar sem justificativa alguma.
8

Ricos e pobres

Alguns fatos sobre a pobreza


No fim do século XX, o Banco Mundial enviou uma equipe
de pesquisadores para registrar as opiniões de 60 mil homens e
mulheres que viviam na pobreza absoluta. Em visita a 73 países,
os pesquisadores ouviram repetidas vezes que ser pobre significava:

• Não ter comida suficiente durante uma parte do ano


ou o ano inteiro; fazer, em geral, apenas uma refeição
por dia; ter, às vezes, de escolher entre matar a fome dos
filhos ou a sua e, em algumas ocasiões, não ser capaz de
fazer nem uma coisa nem outra.
• Não ter como guardar dinheiro. Se um membro da
família adoecer e você precisar de dinheiro para uma
consulta médica, ou se a colheita não for boa e não houver
o que comer, a solução será pedir dinheiro emprestado a
um agiota que cobrará juros tão altos que a dívida conti-
nuará a crescer e você nunca se verá livre dela.
• Não ter o luxo de mandar as crianças para a escola; ou,
se começaram a frequentar a escola, você precisar tirá-las
de lá quando a colheita for ruim.
• Viver numa casa precária, feita de barro ou sapé, uma
casa que é preciso reconstruir a cada dois ou três anos ou
logo depois de enfrentar o mau tempo.
288 ÉTICA PRÁTICA

• Não ter uma fonte confiável de água potável. É preciso


trazê-la de longe e, mesmo assim, pode ser que a água
deixe as pessoas doentes se não for fervida.

Essas privações materiais costumam ser acompanhadas


por um estado humilhante de impotência, vulnerabilidade e a
sensação intensa de vergonha ou fracasso.
A pobreza absoluta, segundo a definição do Banco Mundial,
é não ter renda suficiente para atender às necessidades humanas
mais fundamentais, como comida, água, moradia, vestuário,
saneamento, assistência médica e educação adequadas. Em 2008,
o banco calculava que, para tanto, seria preciso ter uma renda
diária com poder de compra equivalente ao de 1,25 dólar norte-
-americano. Não se trata do equivalente em moeda estrangeira a
1,25 dólar, o que talvez não seja tão ruim, pois, como sabem todos
aqueles que viajam de países ricos para países pobres, as moedas
correntes nos países ricos costumam ter muito mais poder de
compra nos países pobres. A definição do Banco Mundial leva
essa diferença em conta: os pobres ganham apenas o suficiente
para comprar, em sua própria moeda, a quantidade de recur-
sos essenciais que 1,25 dólar compraria nos Estados Unidos.
A estimativa do banco é que 1,4 bilhão de pessoas tenham uma
renda inferior a essa.
Nos países industrializados, as pessoas são pobres em compa-
ração com outros membros de sua sociedade. Sua pobreza é
relativa: têm o suficiente para atender às suas necessidades funda-
mentais e geralmente também têm acesso à assistência médica.
Esse 1,4 bilhão de pessoas que vivem na pobreza absoluta nos
países em desenvolvimento são pobres segundo todos os crité-
rios: têm dificuldade para atender às suas necessidades básicas.
A pobreza absoluta mata. De acordo com o UNICEF - Fundo
das Nações Unidas para a Infância - , 8,8 milhões de crianças
com menos de cinco anos morreram de causas relacionadas à
pobreza e perfeitamente evitáveis em 2008. Isso equivale a 24 mil
crianças - imagine um estádio de futebol cheio delas - morrendo
desnecessariamente todos os dias (a mortandade de crianças vem
RICOS E POBRES 289

diminuindo constantemente desde a década de 1960, mas os


números ainda são muito altos). Milhões de adultos também
morrem por causa da pobreza absoluta. A expectativa de vida nos
países ricos hoje é de 78 anos; nos países em desenvolvimento,
fica por volta dos 50. Quando a pobreza absoluta não causa a
morte, leva a um tipo de miséria que não se vê nas nações ricas. A
subnutrição de crianças pequenas prejudica o desenvolvimento
físico e mental. Milhões de pessoas malnutridas padecem de
enfermidades nutricionais, como o bócio ou a cegueira causada
pela avitaminose A. O valor nutritivo da comida que os pobres
ingerem é reduzido ainda mais por parasitas como a tinha ou o
ancilóstomo, que são endêmicos quando o saneamento básico e
a educação para a saúde são insuficientes.
À parte a morte e a doença, a pobreza absoluta ainda é uma
condição de vida miserável que se caracteriza pela inadequação
dos alimentos, da moradia, do vestuário, do saneamento e dos
serviços de saúde e educação. Essa é a situação "normal" de
nosso mundo. Morreram, no mínimo, dez vezes mais pessoas
por causa de doenças relacionadas à pobreza e perfeitamente
evitáveis no dia 11 de setembro de 2011 do que nos ataques
terroristas ao World Trade Center e ao Pentágono naquela data
tenebrosa. Os ataques motivaram o investimento de trilhões
de dólares na "guerra ao terror" e em medidas de segurança
que causam inconvenientes a todos os usuários do transporte
aéreo desde então. As mortes provocadas pela pobreza foram
ignoradas. Se pouquíssimas pessoas morreram em decorrência
do terrorismo desde 11 de setembro de 2001, aproximadamente
30 mil pessoas morreram de causas relacionadas à pobreza em
12 de setembro daquele ano e a cada dia que se passou desde
então, e a mesma quantidade morrerá amanhá. Mesmo conside-
rando acontecimentos de maiores proporções, como o tsunami
asiático de 2004, que matou aproximadamente 230 mil pessoas,
ainda estaremos tratando com números que representam a
perda de vidas perfeitamente evitável que ocorre apenas em uma
semana e está relacionada à pobreza ... E isso se repete durante
52 semanas todos os anos.
290 ÉTICA PRATICA

Alguns fatos sobre a riqueza


Podemos colocar ao lado desse quadro de pobreza absoluta
um retrato contrastante da "riqueza absoluta". Aqueles que são
absolutamente ricos não são necessariamente ricos em compara-
ção a seus vizinhos, mas têm uma renda maior do que aquela de
que precisariam para viver adequadamente, atendendo a todas as
necessidades básicas da vida. Depois de pagar (diretamente ou
via impostos) por comida, moradia, vestuário e serviços básicos
de saúde e educação, os absolutamente ricos ainda têm condi-
ções de gastar dinheiro com o luxo e o supérfluo. Escolhem seu
alimento pelos prazeres do paladar, e não para matar a fome;
compram roupas novas para ter boa aparência, e não para se
aquecer; mudam de casa para viver numa vizinhança melhor ou
ter mais espaço para seus filhos, e não para se proteger da chuva;
e, depois de tudo isso, ainda sobra dinheiro para gastar com
sofisticados equipamentos de áudio e vídeo ou férias no exterior.
Neste ponto, não faço qualquer juízo ético sobre a riqueza
absoluta, apenas chamo a atenção para o fato de ela existir.
A característica que a define melhor é uma significativa quanti-
dade de renda que fica acima do nível necessário para satisfazer
as necessidades básicas de um ser humano e seus dependentes.
Segundo esse padrão, é absolutamente rica a maior parte dos
cidadãos da Europa Ocidental, da América do Norte, do Japão,
da Austrália, da Nova Zelândia e dos países produtores de petró-
leo do Oriente Médio. Também existem centenas de milhões
de pessoas ricas em países como China, Índia e Brasil, apesar de
conviverem com a pobreza absoluta. Os ricos têm dinheiro que
poderiam, sem colocar em risco seu bem-estar fundamental,
transferir para os absolutamente pobres.
No momento, muito pouco está sendo transferido.
Na década de 1970, a Assembleia Geral das Nações Unidas
estabeleceu uma meta modesta para o montante de auxílio
financeiro que as nações ricas deveriam dar a outros países:
0,7% do Produto Interno Bruto, ou 70 centavos a cada cem
dólares obtidos por uma nação. Quarenta anos depois, somente
RICOS E POBRES 291

a Dinamarca, Luxemburgo, Holanda, Noruega e Suécia atingi-


ram esse objetivo. Em 2008, os Estados Unidos e o Japão, as
duas maiores economias entre os países ricos, doavam apenas
0,19%, ou 19 centavos a cada cem dólares obtidos. Austrália e
Canadá se saíam só um pouco melhor, com 0,31%, enquanto
França, Alemanha e Grã-Bretanha ficavam na média das nações
ricas, doando entre 0,38 e 0,43%. Em comparação com o que
ganham, as nações ricas estão doando muito pouco.

O equivalente moral do assassinato?


Os fatos sugerem que, por não darem mais do que dão, os
ricos permitem que mais de 1 bilhão de pessoas continuem a
viver na privação e morram prematuramente. Essa conclusão
não se aplica apenas aos governos, mas também a cada indiví-
duo rico, pois todos nós temos a oportunidade de fazer alguma
coisa para melhorar essa situação; temos, por exemplo, a oportu-
nidade de doar nosso tempo ou dinheiro para organizações
voluntárias que ajudem a oferecer aos pobres assistência médica,
água potável, educação e técnicas agrícolas melhores. Portanto,
se permitir que alguém morra não é intrinsecamente diferente de
matar alguém, fica a impressão de que somos todos assassinos.
O veredito seria duro demais? Muitos o rejeitarão como um
absurdo evidente. Tratariam logo de entendê-lo como uma de-
monstração de que deixar morrer não equivale a matar, tanto
quanto ter uma vida abastada sem contribuir para um órgão de
assistência internacional não equivale, eticamente, a ir para a Etió-
pia e atirar em alguns camponeses. Apontam muitas diferenças
significativas entre gastar dinheiro com coisas supérfluas- dinhei-
ro que poderia ser usado para salvar vidas- e atirar deliberadamen-
te nas pessoas. Vamos examinar algumas dessas diferenças e
considerar quais delas de fato são moralmente significativas.
Em primeiro lugar, a motivação será quase sempre diferente.
Aqueles que atiram deliberadamente em outras pessoas se
empenham em matar. Movidos por sadismo, maldade ou
qualquer outra motivação igualmente desagradável, querem
292 ÉTICA PRÁTICA

suas v1t1mas mortas. Imagina-se que quem compra um iPod


queira sofisticar sua fruição da música- o que, em si, não é uma
coisa horrível. Na pior das hipóteses, gastar dinheiro com supér-
fluos em vez de dá-lo a quem precisa indica egoísmo e indife-
rença diante do sofrimento alheio, características que podem ser
indesejáveis, mas que não podem ser comparadas com a verda-
deira maldade ou motivações semelhantes.
Em segundo lugar, para quase todos nós, não é difícil agir
de acordo com uma regra contrária a matar pessoas; por outro
lado, é muito difícil obedecer a um preceito que nos mande
salvar todas as vidas possíveis. Para levar uma vida confortável,
ou mesmo luxuosa, não é preciso matar ninguém; mas é preciso
permitir que morram algumas pessoas que poderíamos ter salvo,
pois o dinheiro de que precisamos para viver confortavelmente
poderia ter sido dado a elas. Portanto, cumprir a obrigação de
não matar alguém é muito mais fácil do que cumprir a obriga-
ção de salvar alguém. Salvar todas as vidas que pudéssemos
significaria reduzir nosso padrão de vida ao mínimo essencial
para nos manter vivos 1• Eximir-se de todo dessa obrigação exigi-
ria um grau de heroísmo moral profundamente diferente do que
é exigido pelo simples fato de não matar.
Uma terceira diferença diz respeito à maior certeza das con-
sequências do tiro em comparação com a recusa em ajudar. Se
aponto um revólver carregado para uma pessoa e, à queima-roupa,
puxo o gatilho, é praticamente certo que ele ou ela vai morrer;
ao passo que o dinheiro que eu poderia dar talvez fosse emprega-
do num projeto que, por não dar certo, não ajudaria ninguém.
Em quarto lugar, quando as pessoas são baleadas, exis-
tem indivíduos identificáveis que foram prejudicados. Podemos
1 A rigor, precisaríamos descer ao nível mínimo compatível com a obtenção de

uma renda que, depois de prover nossas necessidades, nos deixasse um excedenre
para dar aos omros. Assim, se hoje ganho, digamos, 100 mil dólares por ano, mas
isso exige que eu gaste 30 mil dólares anuais para viver num bairro mais caro do
que talvez me coubesse, não poderia salvar mais pessoas ao me mudar para uma
área rural de baixo custo de vida se, para isso, eu tiver de aceitar um emprego que
só me pague 60 mil dólares por ano.
RICOS E POBRES 293

indicá-los e mostrar também o sofrimento de suas famílias em


luto. Quando compro meu iPod, não posso saber a quem meu
dinheiro teria salvo se eu o tivesse doado.
Em quinto lugar, pode-se dizer que as agruras dos famintos
não são culpa minha, e que, portanto, não posso ser respon-
sabilizado por elas. Os famintos continuariam morrendo de
fome mesmo que eu nunca tivesse existido. Se eu matar, porém,
torno-me responsável pelas mortes de minhas vítimas, que
jamais teriam morrido se eu não as tivesse matado.
Essas diferenças não precisam abalar nossa conclusão anterior
de que não há uma diferença intrínseca entre matar e deixar
morrer. São diferenças extrínsecas, isto é, diferenças em geral, mas
não necessariamente associadas à distinção entre matar e deixar
morrer. Podemos imaginar casos nos quais alguém permite que
outra pessoa morra por motivos sádicos ou malévolos; podemos
imaginar um mundo onde existam tão poucas pessoas precisando
de ajuda e onde seja tão fácil ajudá-las, que podemos cumprir facil-
mente nosso dever de não deixar que as pessoas morram quanto
nosso dever de não matar; podemos imaginar situações nas quais
as consequências de não ajudar sejam tão certas quanto as de atirar
em alguém; podemos imaginar casos nos quais possamos identifi-
car a pessoa que deixamos morrer. Podemos, inclusive, imaginar
um caso em que se deixe alguém morrer no qual, se eu não
tivesse existido, a pessoa não teria morrido: por exemplo, um
caso em que, se eu não estivesse em condições de ajudar (ainda
que eu não ajudasse), alguém estaria e teria ajudado. Excetuadas
essas situações imaginárias, porém, é verdade que as diferenças
extrínsecas que normalmente estabelecem uma distinção entre
matar e deixar morrer explicam por que normalmente conside-
ramos a primeira opção muito pior que a segunda. Mas explicar
nossas atitudes éticas convencionais não significa justificá-las.
As cinco diferenças não só explicam, como também justificam
nossas atitudes? Examinemos uma por uma.
294 ÉTICA PRÁTICA

(1) Tomemos, para começar, a ausência de uma VItima


identificável. As pesquisas mostram que as pessoas, diante da
oportunidade de ajudar uma criança pobre, provavelmente a
ajudarão se virem uma fotografia da criança e souberem seu
nome e idade; a probabilidade de ajudar é menor quando a iden-
tidade da criança não é fornecida. Mas pode ser que isso apenas
demonstre que, durante os milhões de anos nos quais nossos
ancestrais viveram em grupos pequenos e próximos, desenvolve-
mos uma resposta instintiva a ajudar indivíduos. Por outro lado,
não desenvolvemos resposta nenhuma que nos leve a oferecer
formas mais anônimas de ajuda, por falta absoluta de oportuni-
dades. Isso deveria fazer alguma diferença para nossas obriga-
ções éticas? Suponhamos que eu seja um caixeiro-viajante que
venda comida enlatada e fique sabendo que uma remessa de la-
tas está contaminada: ao ser consumido, o contaminante tem o
efeito conhecido de duplicar o risco de os consumidores morre-
rem de câncer no estômago. Suponhamos que eu continue ven-
dendo as latas. Minha decisão pode não ter vítimas identificáveis.
Alguns daqueles que comerem o alimento vão morrer de cân-
cer. A proporção de consumidores que vai ter esse tipo de morte
será duas vezes superior à da comunidade em geral, mas, entre
os consumidores, quem morreu por ter comido o que vendi e
quem teria desenvolvido a doença de qualquer modo? É impos-
sível saber, mas, sem dúvida, essa impossibilidade não torna mi-
nha decisão menos condenável do que teria sido se o agente
contaminante tivesse efeitos mais facilmente detectáveis, ainda
que igualmente fatais. Além disso, se isso vale no caso de matar-
mos um indivíduo identificável, por que seria diferente no caso
de deixarmos de salvar outro?
(2) A incerteza de que, ao dar dinheiro, eu poderia salvar
uma vida é algo que reduz em muito o erro de não o dar em
comparação com a morte deliberada de uma pessoa; mas é
insuficiente para mostrar que não o dar constitui uma conduta
aceitável. O motorista que passa em alta velocidade pela faixa de
pedestres, indiferente a quem possa ali estar, não é um assassino.
RICOS E POBRES 295

Pode ser que ele nunca atropele um pedestre. Mas, arriscando-


-se conscientemente a matar uma pessoa inocente, sua atitude é
extremamente errada.
(3) A ideia de que somos responsáveis por nossos atos, mas
não por nossas omissões, é ainda mais desconcertante. Por um
lado, sentimo-nos na obrigação ainda maior de ajudar aqueles
cuja desgraça provocamos (é por esse motivo que quem prega
um aumento da ajuda financeira a países estrangeiros costuma
afirmar que as nações ricas criaram a pobreza das nações pobres
pelas formas de exploração econômica que remontam ao sistema
colonial). Por outro lado, qualquer consequencialista insistiria
que somos responsáveis por todas as consequências de nossas
ações, e, se uma consequência de eu gastar dinheiro com um
iPod for a morte de alguém, serei responsável por essa morte.
É verdade que a pessoa morreria mesmo que eu nunca tivesse
existido, mas que relevância tem isso? O fato é que existo, e o
consequencialista diria que nossas responsabilidades derivam do
mundo como ele é, e não de como poderia ter sido.
Um modo de entender o ponto de vista não consequencia-
lista da responsabilidade está em fundamentá-lo num tipo de
teoria dos direitos como aquele proposto por John Locke e, mais
recentemente, defendido por libertários como Robert Nozick e
Jan Narveson. Se todos têm direito à vida e, tratando-se de um
direito contra outros que possam ameaçar minha vida, mas não
de um direito a receber ajuda de outros quando minha vida
estiver em perigo, então podemos compreender o sentimento
de que somos responsáveis por matar, mas não por deixarmos de
salvar. O primeiro infringe os direitos de outros; o segundo, não.
Devemos aceitar essa teoria dos direitos? Se, para criar nossa
teoria dos direitos, imaginamos, como Locke e Nozick, indiví-
duos que vivem independentemente uns dos outros num "estado
natural", pode parecer lógico adotar uma concepção dos direitos
na qual, enquanto cada um deixar o outro em paz, não haverá
direitos violados. De acordo com esse ponto de vista, eu poderia,
muito corretamente, ter mantido minha existência independente
296 ÉTICA PRÁTICA

se o desejasse fazer. Assim, se não torno sua situação ainda pior


do que ela teria sido se eu não tivesse absolutamente nada a ver
com você, como posso ter infringido seus direitos? A fundamen-
tação factual dessa teoria é duvidosa. Thomas Pogge a contesta
em World Poverty and Human Rights [A pobreza no mundo e os
direitos humanos], ao argumentar que várias características da
ordem econômica mundial mostram que contribuímos para o
empobrecimento de algumas pessoas em benefício próprio. Para
citar apenas um exemplo, dependemos de petróleo e minérios
trazidos de países governados por ditadores que usam o dinheiro
para enriquecer pessoalmente ou para fortalecer seus exércitos
e se entrincheirar no poder. Esses ditadores não têm direito
moral algum à riqueza que jaz no subsolo dos países sob seu
jugo. Os dividendos também deveriam ser distribuídos entre
todas as pessoas do país. Os ditadores são ladrões e assassinos,
e nós, receptadores de mercadorias roubadas. Nossa disposição
de entregar bilhões de dólares a ditadores, em troca de petróleo e
minérios, também cria um enorme incentivo para as pessoas que
avaliam suas chances de depor o governo e, portanto, aumenta
a instabilidade nesses países, o que, por sua vez, contribui para a
pobreza (as mudanças climáticas criam mais um problema para
a concepção de que não fazemos mal aos pobres, mas esse é o
assunto do próximo capítulo).
Ainda que deixássemos de lado os problemas com a funda-
mentação factual do argumento libertário, teríamos de nos per-
guntar por que deveríamos partir de uma perspectiva a-histórica,
abstrata e absolutamente inexplicável quanto a de um ser huma-
no independente. Como outros primatas, nossos ancestrais fo-
ram seres sociais muito antes de se tornarem seres humanos, e
não poderiam ter desenvolvido as habilidades e aptidões dos se-
res humanos se, primeiro, não fossem seres sociais. Não somos
hoje indivíduos isolados nem nunca fomos. Por que, então, de-
veríamos adotar o ponto de vista de que os direitos devem se
restringir aos direitos contra a interferência? Em vez disso, pode-
ríamos adotar o ponto de vista de que levar a sério o direito à
RICOS E POBRES 297

vida é incompatível com a atitude de observar as pessoas morre-


rem quando se poderia facilmente salvá-las.
(4) O que dizer da diferença de motivação? O fato de
uma pessoa não desejar verdadeiramente a morte de alguém
diminui a gravidade da censura que ela merece, mas não tanto
quanto sugerem nossas atitudes correntes ante a concessão de
ajuda. O comportamento do motorista apressado é, mais uma
vez, um bom comparativo, pois, em geral, esses motoristas não
têm o menor desejo de matar alguém. Simplesmente querem
chegar mais cedo a algum lugar ou apreciam a velocidade e são
indiferentes às consequências. Apesar da falta de maldade que os
caracteriza, aqueles que matam com seus carros não devem ser
somente responsabilizados por seus atos, mas também severa-
mente punidos.
(5) Deixei por último a diferença mais significativa. O fato
de normalmente não ser difícil deixar de matar as pessoas,
enquanto salvar todas as pessoas possíveis é um ato de heroísmo,
deve fazer uma diferença importante em nossa atitude diante
da impossibilidade de fazer aquilo que cada princípio exige.
Não matar é um padrão mínimo de conduta aceitável que
podemos exigir de todos; salvar todas as pessoas possíveis não
é algo que possa ser exigido de maneira realista, sobretudo nas
sociedades habituadas a dar tão pouco, como é o caso da nossa.
Dados os padrões geralmente aceitos, as pessoas que doam,
digamos, lüo/o do que ganham para ajudar os pobres são muito
mais suscetíveis de receber elogios por estarem acima da genero-
sidade média do que de ser acusadas de dar menos do que teriam
condições de dar. A adequação do elogio e da censura consti-
tui, porém, uma questão independente do acerto ou do erro
das ações. O primeiro avalia o agente; a segunda avalia a ação.
Talvez muitas das pessoas que doam lüo/o devessem, na verdade,
doar 50%, mas censurá-las por não darem mais seria contrapro-
ducente. Poderia levá-las a achar que aquilo que se exige é um
exagero, e, como a censura virá de qualquer maneira, o melhor
a fazer é não dar nada mesmo. O fato de que uma ética que
298 ÉTICA PRÁTICA

colocasse a salvação de todas as pessoas que pudéssemos salvar


em pé de igualdade com a proibição de matar configura uma
ética para santos e heróis não nos deve levar à conclusão de que
a alternativa deve ser uma ética que torne obrigatório não matar,
mas nos isenta por inteiro da obrigação de salvar quem quer que
seja. Como logo veremos, existem posições intermediárias entre
esses extremos.
Façamos um resumo das cinco diferenças que normal-
mente existem entre matar e deixar morrer no contexto da
pobreza absoluta e da ajuda internacional. A ausência de uma
vítima identificável não tem importância moral, ainda que
possa ter um papel importante na explicação de nossas atitudes.
A ideia de que somos diretamente responsáveis por aqueles que
matamos, mas não pelos que deixamos de ajudar, depende de
uma noção muito questionável de responsabilidade, e talvez seja
preciso fundamentá-la numa controversa teoria dos direitos. As
diferenças de certeza e motivação são eticamente importantes e
mostram que não ajudar os pobres não é tão condenável quanto
matá-los; poderia, contudo, estar no mesmo nível do ato de
matar alguém por estar dirigindo irresponsavelmente um carro,
o que já é bastante grave. Por fim, a dificuldade de cumprir
por inteiro a obrigação de salvar todas as pessoas possíveis torna
inadequado censurar aqueles que não alcançam esse objetivo da
mesma forma que censuramos aqueles que matam; isso, porém,
não mostra que, em si, o ato seja menos grave, nem desculpa
aqueles que não se empenham em salvar nenhuma pessoa.
Em todo caso, se deixar de salvar uma vida nem sempre pode
ser o equivalente ético de matar deliberadamente, fica evidente que
a maneira como respondemos à existência da pobreza e da riqueza
absolutas é uma das grandes questões morais de nossa época.
Portanto, vejamos de novo se temos alguma obrigação de ajudar
aqueles cujas vidas correm perigo, e, se tivermos, examinemos
de que modo essa obrigação se aplica à situação atual do mundo.
RICOS E POBRES 299

A obrigação de ajudar

O argumento a favor da obrigação de ajudar


A caminho da sala de aula, passo por um lago ornamental;
percebo que uma criança pequena caiu nele e corre o risco de
morrer afogada. Olho ao redor, para ver onde estariam os pais
ou a babá, mas, para minha surpresa, noto que não há mais
ninguém por perto. Parece que cabe a mim garantir que a criança
não se afogue. Alguém negaria que devo entrar na água e salvar
a criança? Isso significa que terei de enlamear minhas roupas,
estragar os sapatos e cancelar a aula, ou adiá-la até encontrar
uma roupa seca para vestir; no entanto, em comparação com a
morte evitável de uma criança, isso é uma coisa insignificante.
Um princípio plausível que sustentaria a opinião de que
devo tirar a criança do lago é o seguinte: se estiver a nosso
alcance impedir que algo de ruim aconteça, sem que com
isso sacrifiquemos nada de importância moral comparável, é
o que devemos fazer. Esse princípio parece indiscutível. Sem
dúvida, vai contar com a aquiescência dos consequencialistas,
mas os não consequencialistas devem aceitá-lo também, pois a
imposição de impedir o que é ruim só se aplica quando nada
de comparavelmente significativo esteja em jogo. Portanto, o
princípio não pode levar aos tipos de ações que os não conse-
quencialistas desaprovariam categoricamente - graves violações
dos direitos individuais, injustiça, promessas não cumpridas etc.
Se, em termos de importância moral, os não consequencialistas
considerarem qualquer uma dessas coisas comparável ao evento
ruim que se deve impedir, estarão automaticamente vendo o
princípio como se ele não se aplicasse aos casos em que o evento
ruim só pode ser impedido pela violação de direitos, a prática da
injustiça, o não cumprimento de promessas ou o que estiver em
jogo. Em sua maior parte, os não consequencialistas sustentam
que devemos impedir que o mal aconteça e promover o bem.
Sua rixa com os consequencialistas está na insistência de que
300 ÉTICA PRÁTICA

esse não é o único princípio ético supremo: o fato de ser um


princípio ético não é negado por nenhuma teoria ética plausível.
Não obstante, o aspecto indiscutível do princípio de
que devemos impedir que o mal aconteça sempre que puder-
mos, sem sacrificar nada de importância moral comparável é
enganoso. Se fôssemos levá-lo a sério e orientar nossos atos por
ele, nossas vidas e nosso mundo passariam por uma transfor-
mação radical, pois o princípio se aplica não somente às raras
situações em que podemos salvar uma criança do afogamento,
mas à situação cotidiana de podermos ajudar aqueles que vivem
na pobreza absoluta. Ao fazer essa afirmação, estou supondo
que, com a fome e a desnutrição, a falta de moradia, o analfa-
betismo, as doenças, o alto índice de mortalidade infantil e a
baixa expectativa de vida, a pobreza absoluta é uma coisa ruim.
E também suponho que os ricos têm o poder de diminuir a
pobreza absoluta, o que podem fazer sem ter de sacrificar
qualquer coisa de importância moral comparável. Se esses dois
pressupostos e o princípio que temos discutido forem corretos,
teremos uma obrigação de ajudar aqueles que se encontram na
pobreza absoluta, uma obrigação não menos forte do que aquela
que nos leva a impedir que uma criança se afogue num lago.
Não ajudar seria errado, fosse ou não intrinsecamente equiva-
lente a matar. Ajudar não é, como se costuma pensar, um ato
caridoso e louvável quando praticado, mas do qual não é errado
eximir-se: é uma coisa que deve ser feita por todos.
Apresentado de maneira mais formal, esse argumento
sena asstm:

Primeira premissa: Se pudermos impedir que algo de ruim


aconteça sem termos de sacrificar algo de importância comparável,
devemos impedir que aconteça.
Segunda premissa: A pobreza absoluta é uma coisa ruim.
Terceira premissa: Existe uma parcela de pobreza absoluta que
podemos impedir sem que seja preciso sacrificar nada de impor-
tância moral comparável.
Conclusão: Devemos impedir a existência de uma parcela de
pobreza absoluta.
RICOS E POBRES 301

A primeira é a premissa moral mais importante, e é nela que


se fundamenta o argumento; tentei demonstrar que pode ser
aceita por pessoas que defendem concepções éticas diferentes.
A segunda premissa é praticamente impossível de contestar.
Seria difícil encontrar uma concepção ética plausível que não
visse a pobreza absoluta - o sofrimento e a morte de adultos e
crianças que ela causa, para não mencionar seus outros efeitos,
como a educação deficiente, a desesperança, impotência e
humilhação - como uma coisa nefasta.
A terceira premissa é mais controversa, ainda que cuidadosa-
mente estruturada. Afirma que uma parcela de pobreza absoluta
pode ser evitada, sem que seja preciso sacrificar algo de importân-
cia moral comparável. Evita, portanto, a objeção de que qualquer
ajuda que eu possa dar não seria mais que "uma gota no oceano",
pois o fundamental não é saber se minha contribuição pessoal
exerceria qualquer efeito digno de nota na pobreza mundial (é
claro que não vai), mas, sim, saber se vai evitar uma parcela de
pobreza. Isso é tudo de que o argumento precisa para sustentar
sua conclusão, já que a segunda premissa afirma que qualquer
parcela de pobreza absoluta é uma coisa má, não apenas a pobreza
absoluta em sua totalidade. Se, sem a necessidade de sacrificar
algo de importância moral comparável, pudermos oferecer a
uma família os meios de se livrar da pobreza absoluta, a terceira
premissa está justificada.
Não obstante, há quem argumente que eu não poderia ter a
certeza de que minha doação para uma organização assistencial
salvará uma vida ou ajudará as pessoas a sairem da pobreza ab-
soluta. Muitas vezes, esses argumentos se calcam em crenças
comprovadamente infundadas, como a ideia de que a organiza-
ção assistencial usaria a maior parte do dinheiro recebido para
cobrir os custos administrativos, de maneira que apenas uma
pequena fração chegaria às pessoas que dele precisam, ou que
governos corruptos nas nações em desenvolvimento ficariam
com o dinheiro. Na verdade, as grandes organizações assistenciais
não usam mais que 20% dos fundos que levantam para fins ad-
302 ÉTICA PRÁTICA

ministrativos, deixando pelo menos 80% para os programas que


ajudam diretamente os pobres; e elas não entregam as doações
aos governos, pois trabalham diretamente com os pobres ou
com organizações populares sediadas nos países em desenvolvi-
mento e que mantêm um bom histórico de filantropia.
No entanto, mensurar a eficiência de uma organização
assistencial pela régua da redução dos custos administrativos
é um equívoco comum. Entre os custos administrativos estão
os salários de pessoas experientes e capazes de garantir que
sua doação custeará projetos que realmente ajudem os pobres
de maneira sustentável e a longo prazo. Uma organização que
não empregue pessoas como essas pode ter custos administra-
tivos menores que uma outra que o faça, mas não conseguiria
aproveitar tão bem sua doação.
A GiveWell.org não é uma organização assistencial: levanta
provas irrefutáveis da eficácia de outras organizações. Compa-
rou, por exemplo, o custo por vida salva de várias organizações
que se empenham em combater as doenças que matam muitas
das 8,8 milhões de crianças que morrem todos os anos em razão
da pobreza. De acordo com a GiveWell.org, existem diversas
organizações capazes de salvar uma vida por 600 a 1.200 dólares,
e, no site da GiveWell.org, é possível ver quais delas têm as
melhores classificações. Já que é possível fazer doações para as
organizações mais bem classificadas, parece claro que a terceira
premissa do argumento é verdadeira no caso das pessoas que
gastam pelo menos algumas centenas de dólares por ano com
coisas das quais não precisam de fato. Elas podem salvar uma
vida ou evitar uma parcela da pobreza absoluta, sem sacrificar
nada de importância moral comparável.
Deixei de examinar a noção de importância moral com a
finalidade de mostrar que o argumento não depende de valores
específicos ou princípios éticos. Em qualquer concepção defen-
sável do que seria moralmente significativo, a terceira premissa
é verdadeira no caso da maior parte das pessoas que vivem em
países industrializados. Somos ricos porque dispomos de uma
RICOS E POBRES 303

renda da qual podemos abrir mão sem, com isso, nos privarmos
das necessidades básicas da vida, e podemos usar essa renda para
diminuir a pobreza absoluta. O quanto nos sentimos obriga-
dos a doar depende daquilo que julgamos ser de importância
moral comparável à pobreza que podemos evitar: roupas e janta-
res caros, um aparelho de som sofisticado, férias no exterior,
um carro de luxo, uma casa maior, escolas particulares para
nossos filhos ... Para um utilitarista, é provável que nada disso
tenha uma importância comparável à diminuição da pobreza
absoluta, e o não utilitarista - caso seja a favor do princípio da
universalizabilidade - certamente deve admitir que pelo menos
algumas dessas coisas têm uma importância moral muito menor
do que a pobreza absoluta que poderia ser evitada com o dinheiro
que custam. Portanto, a terceira premissa parece ser verdadeira
com base em qualquer concepção ética plausível, ainda que a
quantidade exata de pobreza absoluta que possa ser evitada antes
que qualquer coisa de importância moral seja sacrificada varie
conforme a concepção ética aceita.

Objeções ao argumento

Cuidar de nossa própria gente


Quem já se empenhou em aumentar a ajuda internacional
deve ter se deparado com o argumento de que devemos cuidar
das pessoas que nos são mais próximas, de nossas famílias, e,
depois, dos pobres de nosso próprio país, antes de nos preocu-
parmos com a pobreza em países distantes.
Não há dúvida de que, instintivamente, preferimos ajudar as
pessoas mais próximas. Poucos seriam capazes de ver uma crian-
ça se afogar e não fazer nada; muitos podem ignorar as mortes
evitáveis de crianças na África ou na Índia. O problema, porém,
não é o que normalmente fazemos, mas o que deveríamos fazer,
e é difícil encontrar uma justificativa moral bem fundada para a
concepção de que a distância ou o fato de se pertencer a uma
comunidade faz uma diferença crucial nas nossas obrigações.
304 ÉTICA PRÁTICA

Consideremos, por exemplo, as afinidades raciais. As pessoas


de origem europeia deveriam ajudar os europeus pobres antes
dos africanos pobres? De imediato, muitos dentre nós rejeitariam
essa sugestão, e nossa discussão do princípio de igual conside-
ração de interesses, no Capítulo 2, mostrou por que a devemos
rejeitar: a necessidade humana de se alimentar nada tem a ver
com a raça a que se pertença, e, se os africanos precisam mais de
comida do que os europeus, seria uma violação do princípio da
igual consideração dar preferência a estes.
A mesma coisa se aplica à questão da cidadania e da nacio-
nalidade. Toda nação rica tem alguns cidadãos relativamente
pobres, mas a pobreza absoluta se restringe, em grande parte,
aos países em desenvolvimento. Nos Estados Unidos, uma
família de quatro pessoas será classificada oficialmente como
pobre se sua renda anual for inferior a 22 mil dólares. Sustentar
uma família com essa renda pode ser muito difícil nos Estados
Unidos, mas é óbvio que serão necessários vários milhares de
dólares para que a vida das pessoas nessa situação melhore signi-
ficativamente. Nos países em desenvolvimento, por outro lado,
custa menos de mil dólares salvar a vida de uma criança que,
sem essa ajuda, morreria de uma doença relacionada à pobreza,
e duplicar a renda de dez famílias que vivem na pobreza absoluta
exigiria menos de 5 mil dólares (a cifra é citada apenas para
fins comparativos: não estou sugerindo que a melhor maneira
de reduzir a pobreza seja dar dinheiro diretamente aos pobres).
Como nossos recursos são limitados, faz sentido usá-los de
maneira a provocar o máximo efeito benéfico. Nessas circuns-
tâncias, seria errado decidir que somente aqueles que tiveram a
sorte de ser cidadãos de nossa própria comunidade poderiam
compartilhar de nossa abundância.
Sentimos as obrigações de parentesco ainda mais intensa-
mente do que as da cidadania. Que pais dariam seu último prato
de arroz a terceiros se seus filhos estivessem morrendo de fome?
Fazer isso pareceria contrário à natureza. Na verdade, parece-
ria contrário à nossa condição de mamíferos biologicamente
desenvolvidos cuja prole ainda dependerá de nós durante muitos
RICOS E POBRES 305

anos, mas esse fato isolado não demonstraria que se trataria de


um erro. Seja como for, não vivemos esse tipo de situação, pois
nossos filhos são bem alimentados, usam boas roupas, frequen-
tam boas escolas e querem saber de novas bicicletas ou jogos
eletrônicos mais sofisticados. Nessas circunstâncias, quaisquer
obrigações especiais que pudéssemos ter para com nossos filhos
já foram atendidas, e as necessidades de pessoas desconhecidas
gritam muito mais forte a nossos ouvidos.
O elemento de verdade no ponto de vista de que primeiro
devemos cuidar de nossa gente está na vantagem de um sistema
identificável de responsabilidades. Quando as famílias e as co-
munidades locais cuidam dos seus próprios membros mais po-
bres, os laços de afeição e as relações pessoais obtêm resultados
que, de outra forma, precisariam de uma burocracia enorme e
impessoal. Portanto, seria absurdo propor que, a partir de hoje,
todos nós passássemos a nos ver como igualmente responsáveis
pelo bem-estar de todas as pessoas do mundo; não é isso, po-
rém, o que propõe o argumento a favor da obrigação de ajudar.
Ele só se aplica quando alguns estão em situação de pobreza
absoluta e outros podem ajudar sem sacrificar nada de compa-
rável em termos de importância moral. Permitir que seus pró-
prios parentes sucumbam à pobreza absoluta seria sacrificar
algo de importância comparável; e, antes que se chegasse a esse
ponto, o colapso do sistema de responsabilidades para com a
família e a comunidade seria um fator a pender a balança para
um pequeno grau de preferência pela família e a comunidade.
Contudo, esse pequeno grau de preferência é decisivamente su-
perado pelas discrepâncias que se verificam nas esferas da ri-
queza e da propriedade.

Direitos de propriedade
Será que as pessoas têm direito à propriedade privada, um
direito que contradiz o ponto de vista de que seriam obrigadas a
dar uma parte de sua riqueza aos que vivem na pobreza absoluta?
De acordo com algumas teorias dos direitos, contanto que alguém
306 ÉTICA PRÁTICA

tenha adquirido sua propriedade sem recorrer a meios injustos,


como a força e a fraude, terá assegurado seu direito a uma riqueza
enorme e a todos os luxos concebíveis ao mesmo tempo em que
outros morrem de fome. Essa concepção individualista dos direi-
tos se choca com outras concepções, como a doutrina cristã que
afirma que a propriedade existe para a satisfação das necessidades
humanas; e, portanto, como escreveu santo Tomás de Aquino,
"tudo que um homem possua em superabundância será devido,
por direito natural, ao sustento dos pobres". Sem dúvida, um
socialista também veria a riqueza como pertencente à comuni-
dade, e não ao indivíduo, ao passo que os utilitaristas, socialistas
ou não, estariam dispostos a suprimir os direitos de propriedade
para, com isso, evitar males maiores.
Portanto, será que o argumento a favor da obrigação de aju-
dar os outros pressupõe a aceitação de uma dessas outras teo-
rias dos direitos de propriedade e a rejeição da ideia de um
robusto direito individual à propriedade? Não necessariamente.
Uma teoria dos direitos de propriedade pode insistir no nosso
direito de conservar a riqueza sem se pronunciar sobre a obrigação
de os ricos darem dinheiro aos pobres. Robert Nozick, por exem-
plo, rejeitava o uso de meios compulsórios para a redistribuição
da renda, como a tributação, mas sugeriu que, por meios volun-
tários, poderíamos alcançar os objetivos que consideramos mo-
ralmente desejáveis. Portanto, Nozick teria rejeitado a afirmação
de que os ricos têm a "obrigação" de dar dinheiro aos pobres, na
medida em que isso implica que os pobres têm direito à nossa
ajuda, mas talvez aceitasse que doar seja algo que devemos fazer
e que deixar de doar, ainda que dentro de nossos direitos, consti-
tui um erro, pois, para que se tenha uma vida ética, é preciso
mais que o respeito pelos direitos dos outros.
O argumento a favor da obrigação de ajudar pode subsistir,
com apenas algumas modificações, mesmo se adotarmos uma
teoria individualista dos direitos de propriedade. Seja como
for, porém, não acho que devamos adotar semelhante teoria.
Ela deixa muita coisa ao acaso para que possamos vê-la como
RICOS E POBRES 307

uma concepção et1ca aceitável. Por exemplo, muitas pessoas


cujos antepassados por acaso habitavam os desertos de areia
da região do golfo Pérsico são hoje fabulosamente ricas, pois
havia petróleo por baixo de toda aquela areia, enquanto muitas
pessoas cujos antepassados se estabeleceram nas terras melhores
ao sul do Saara hoje vivem em pobreza absoluta devido às secas
e às colheitas ruins. Essa distribuição pode ser aceitável de um
ponto de vista imparcial? Se nos imaginarmos pessoas prestes
a começar a vida como cidadãos do Kuwait ou do Chade -
sem sabermos em qual dos dois lugares-, aceitaríamos o princí-
pio de que os cidadãos do Kuwait não têm nenhuma obrigação
de ajudar quem vive no Chade?

A população e a ética da triagem


Talvez a mais séria objeção ao argumento de que temos
obrigação de ajudar seja a de que, como a maior causa da pobreza
absoluta é o excesso de população, ajudar os que hoje vivem em
situação de pobreza apenas asseguraria que mais pessoas nasces-
sem para viver na pobreza no futuro.
Em sua forma mais extrema, essa objeção é usada para
mostrar que deveríamos adotar uma política de "triagem".
O termo provém de programas médicos adotados em tempo de
guerra. Com um número muito pequeno de médicos para lidar
com todas as baixas, os feridos eram divididos em três catego-
rias: aqueles que provavelmente sobreviveriam sem auxilio
médico, aqueles que talvez sobrevivessem se lhes fosse prestada
assistência, mas que, em caso contrário, provavelmente viriam a
morrer, e aqueles que talvez não sobrevivessem nem mesmo com
toda a assistência médica disponível. Os únicos que recebiam
assistência eram os da categoria intermediária. A ideia, sem
dúvida, seria usar os parcos recursos médicos da maneira mais
eficiente possível. Para os da primeira categoria, o tratamento
médico não era estritamente necessário; para os da terceira, esse
tratamento tinha grandes probabilidades de se mostrar inútil.
Na década de 1970, algumas pessoas sugeriram que devería-
308 ÉTICA PRATICA

mos aplicar a mesma política aos países, de acordo com suas


perspectivas de se tornarem autossuficientes. Se adotássemos
esse ponto de vista, não ajudaríamos países que, mesmo sem
nossa ajuda, estivessem na iminência de se tornarem capazes de
alimentar suas populações. Não ajudaríamos países que, mesmo
com nossa ajuda, jamais conseguiriam limitar sua população a
um número que pudessem alimentar. Ajudaríamos os países nos
quais nossa ajuda pudesse constituir a diferença entre o sucesso
e o fracasso em equilibrar alimento e população. /

Em defesa desse ponto de vista, Garrett Hardin criou uma


metáfora: nós, dos países ricos, somos como os ocupantes de um
barco salva-vidas abarrotado que vaga a esmo por um oceano
cheio de pessoas se afogando. Se, para tentarmos salvá-las, as
trouxermos para dentro de nosso barco, ele ficará sobrecarrega-
do de modo que todos morreremos afogados. Como é melhor
que alguns sobrevivam, em vez de nenhum, devemos deixar que
os outros se afoguem. No mundo de hoje, segundo Hardin, a
"ética do barco salva-vidas" vem bem a propósito. Os ricos de-
vem deixar que os pobres morram de fome, pois, de outra for-
ma, os pobres arrastarão os ricos consigo. Ele citava Índia e
Bangladesh como exemplos de países nos quais a população es-
tava aumentando e ultrapassando a capacidade de suporte do
território ocupado. Portanto, ele sugeriu que os abandonássemos
à própria sorte, até que a fome, as doenças e as catástrofes natu-
rais reduzam sua população a um número de habitantes que os
dois países fossem capazes de sustentar.
Contra esse ponto de vista, alguns autores afirmaram que
o excesso de população é um mito. O mundo produz comida
em abundância para alimentar toda sua população, e, segundo
algumas estimativas, teria condições de alimentar dez vezes
mais gente. As pessoas passam fome não porque sejam muitas,
mas por causa da distribuição desigual da terra e da exploração
dos países pobres pelo sistema político e econômico internacio-
nal em benefício dos ricos.
O mundo, de fato, produz o suficiente para alimentar
seus habitantes. Na verdade, desperdiçamos uma quantidade
RICOS E POBRES 309

imensa de soja e grãos com a alimentação de animais, dos quais


obtemos, em contrapartida, apenas uma pequena fração do
valor nutritivo do alimento vegetal que utilizamos para engor-
dá-los. Também desperdiçamos outros montantes consideráveis
de grãos transformando-os em biocombustível, para que possa-
mos usar mais o carro. A quantidade de grãos que investimos na
alimentação de animais bastaria para dar a todas as 1,4 bilhões
de pessoas que hoje vivem na pobreza absoluta mais de duas
vezes as calorias de que precisam.
Desde a época em que Hardin escreveu a respeito da "ética
do barco salva-vidas", a população de Índia e Bangladesh conti-
nuou a crescer, e a capacidade dos dois países de alimentá-la se
revelou muito maior do que Hardin imaginara. Uma proporção
menor de habitantes de ambos os países passa fome nos dias de
hoje em comparação com a época em que Hardin defendeu a in-
terrupção da ajuda financeira internacional nos dois casos. Não
obstante, é difícil não nos alarmarmos com a taxa de crescimento
da população em alguns países africanos. Por volta de 2050,
espera-se que a população da Nigéria, por exemplo, praticamente
duplique, sendo que hoje já é de 144 milhões de habitantes.
Prevê-se que a Etiópia, hoje com 77 milhões de habitantes, terá
146 milhões até lá, e a República Democrática do Congo, 187
milhões, quase três vezes o tamanho de sua população atual, que
é de 63 milhões de habitantes. A questão é como devemos res-
ponder a essas taxas altas de crescimento populacional em países
que já têm uma grande proporção de habitantes vivendo na po-
breza absoluta? Os defensores da triagem estão propondo que
deixemos o controle do crescimento populacional desses países a
cargo de uma elevação dos índices de mortalidade: ou seja, na
prática, a cargo da fome, subnutrição, aumento da mortalidade
infantil e epidemias de doenças contagiosas.
As consequências da triagem nessa escala são tão horríveis
que tendemos a rejeitá-la sem novas reflexões. Como poderíamos
ficar sentados diante de nossos aparelhos de televisão, sem fazer
nada, enquanto milhões de pessoas morrem de fome? Isso não
310 ÉTICA PRATICA

representaria o fim de todas as noções de igualdade humana e


respeito pela vida humana? Todo aquele cuja primeira reação
à triagem não fosse de repugnância deveria ser visto como um
tipo desagradável de pessoa. Contudo, as primeiras reações, que
se baseiam em sentimentos fortes, nem sempre são guias confiá-
veis. Os defensores da triagem estão corretamente preocupados
com as consequências em longo prazo de nossas ações. Dizem
que ajudar os pobres e os que estão morrendo de fome é algo que
simplesmente assegura a existência de mais pobres e famintos
no futuro. Quando nos cansarmos de ajudar, ou quando nossa
capacidade de ajudar finalmente se exaurir, o sofrimento será
ainda maior do que seria se parássemos de ajudar agora. Se isso
estiver correto, no longo prazo não existe nada que possamos
fazer para impedir a existência da pobreza absoluta, e, assim,
não temos nenhuma obrigação de ajudar. Tampouco parece
sensato afirmar que, nessas circunstâncias, as pessoas tenham
direito à nossa ajuda. Se, de fato, admitirmos a existência desse
direito, a despeito das consequências que ele acarreta, estaremos
dizendo que- para usarmos novamente a metáfora de Hardin-
é preciso continuar puxando para nosso barco salva-vidas todos
aqueles que estão prestes a se afogar, até que o barco afunde e
nós todos morramos afogados.
Se é para rejeitar a triagem, que o façamos em seu próprio
terreno, no âmbito da ética consequencialista. Nesse ponto, ela
é vulnerável. Qualquer ética consequencialista deve levar em
consideração a probabilidade dos resultados. Uma decisão que
sem dúvida produzirá algum benefício deve ser preferida a uma
decisão alternativa que possa levar a um benefício ligeiramente
maior, mas que tem iguais probabilidades de não resultar em
benefício algum. Só devemos optar pelo benefício incerto quan-
do sua maior magnitude superar sua incerteza. É melhor poder
contar com certa unidade de benefício do que com uma possibi-
lidade de 10% de obter cinco unidades; mas é melhor uma pos-
sibilidade de 50% de obter três unidades do que a certeza de
RICOS E POBRES 311

contar com uma única unidade. O mesmo princípio se aplica


quando estamos tentando evitar que coisas ruins aconteçam.
Os defensores da política de cortar a ajuda financeira inter-
nacional para os países mais pobres preveem que isso terá como
resultado um mal maior: o controle da população pela fome
e pelas doenças. Dezenas de milhões morreriam lentamente.
Centenas de milhões continuariam vivendo na pobreza absoluta,
à margem da existência. Contra essa perspectiva, os defenso-
res da política de triagem colocam a possibilidade de um mal
ainda maior: o mesmo processo de fome e doenças ocorrendo,
digamos, daqui a cinquenta anos, quando a população mundial
talvez seja pelo menos 50% maior do que é hoje, e a quanti-
dade de pessoas que virá a morrer de fome ou viver duramente na
pobreza absoluta também será muito maior. Eis a pergunta que
se coloca: se não interrompermos a ajuda internacional prestada
hoje, as consequências futuras serão ainda mais desastrosas?
As previsões de crescimento populacional são notoria-
mente falíveis, e as teorias sobre os fatores que o determinam
continuam circunscritas à esfera das especulações. O modelo
de mudanças populacionais mais amplamente aceito propõe
que os países passam por uma "transição demográfica" quando
aumentam seu padrão de vida. Quando as pessoas são muito
pobres e não têm acesso à medicina moderna, sua fertilidade é
alta, mas a população é controlada pelos altos índices de morta-
lidade, principalmente a infantil. A introdução de saneamento
básico, técnicas médicas avançadas e outras melhorias diminui
o índice de mortalidade infantil, e, inicialmente, a população
cresce rápido. Alguns países pobres, sobretudo na África subsaa-
riana, estão atualmente nessa fase. Entretanto, com a queda nos
índices de mortalidade infantil, os casais começam a perceber
que, para que seus filhos cheguem à maturidade em número
igual ao das famílias do passado, eles não precisam pôr no
mundo tantas crianças quanto seus pais. A necessidade de filhos
que possam dar apoio econômico na velhice também diminui.
312 ÉTICA PRÁTICA

A melhor educação, a emancipação das mulheres e sua entrada


no mercado de trabalho também diminuem os índices de natali-
dade, e, em decorrência desses fatores, o crescimento da popula-
ção começa a se equilibrar. Muitos países ricos já chegaram a
essa fase, e suas populações - descontando-se a imigração -
estão crescendo muito lentamente, se tanto.
Se esse modelo estiver correto, existe uma alternativa para os
desastres tidos como inevitáveis pelas pessoas que defendem que
a ajuda financeira só promove o crescimento populacional. Pode-
mos ajudar os países pobres a elevar o padrão de vida dos mem-
bros mais pobres de sua população. Podemos incentivar os
governos desses países a fazer uma reforma agrária, elevar a qua-
lidade da educação, dar às mulheres acesso à educação e impedir
que seu único papel continue a ser o da procriação. Também
podemos ajudar outros países a tornar mais disponíveis as técni-
cas de controle da natalidade e de esterilização. Há uma boa pro-
babilidade de que essas medidas apressem o início da fase de
transição demográfica e reduzam o crescimento da população a
níveis mais controláveis. Segundo avaliações das Nações Unidas,
o índice de fertilidade total em países em desenvolvimento caiu
de seis filhos por mulher no fim da década de 1960 para menos
de três no começo do século XXI. O incentivo ao uso de técnicas
de controle da natalidade obteve êxitos extraordinários em países
como Tailândia, Indonésia, México, Colômbia, Brasil e Bangla-
desh. Levando-se em conta as dimensões e a importância do pro-
blema, essa conquista refletiu um investimento relativamente
baixo nos países em desenvolvimento, e apenas uma pequena
parte do dinheiro veio de nações desenvolvidas. Assim, parece
que os investimentos nessa área apresentam uma excelente rela-
ção custo-benefício. Há que se admitir que o declínio na fertilidade
dá sinais de estar diminuindo e até mesmo desaparecendo em
alguns países; portanto, existe a necessidade real de continuar-
mos focados nos perigos do crescimento contínuo da população.
Contudo, bastam os indícios de que o aumento da segurança
econômica e da educação, bem como a maior disponibilidade de
RICOS E POBRES 313

meios contraceptivos, afeta o crescimento populacional para tor-


nar a triagem eticamente inaceitável. Não podemos permitir que
milhões morram de fome e de doenças quando existe uma pro-
babilidade razoável de que o crescimento da população possa ser
controlado sem recorrer a esses horrores.
O crescimento da população não é motivo para se inter-
romperem os programas de ajuda internacional, e sim uma razão
para reconsiderar o tipo de ajuda que é dado. Talvez tenhamos
de investir mais em educação, principalmente na educação das
mulheres, ou na disponibilização de meios contraceptivos. Sejam
quais forem os tipos de ajuda que se mostrem mais eficazes em
circunstâncias específicas, a obrigação de ajudar em nada diminui.
Permanece, porém, uma questão incômoda. O que devería-
mos fazer no caso de um país pobre e já com excesso de popula-
ção que, por motivos religiosos ou nacionalistas, restringe o uso
dos anticoncepcionais e se recusa a desacelerar o crescimento de
sua população? Deveríamos, mesmo assim, oferecer ajuda para
seu desenvolvimento? Ou não seria mais correto condicionar a
nossa ajuda à tomada de medidas efetivas para a diminuição do
índice de natalidade? Alguns seriam contrários a esse último
procedimento, sob a alegação de que estabelecer condições para
ajudar significa tentar impor nossas ideias a nações independen-
tes e soberanas. Trata-se, de fato, de uma imposição, mas será ela
injustificável? Se o argumento a favor da obrigação de ajudar é
bem fundado, temos a obrigação de reduzir a pobreza absoluta;
mas não temos a menor obrigação de fazer sacrifícios que, até
onde sabemos, não oferecem perspectiva alguma de redução da
pobreza em longo prazo ... e poderiam até aumentá-la. Portanto,
não temos nenhuma obrigação de ajudar países cujos governos
têm políticas capazes de tornar nossa ajuda inoperante. Isso
poderia ser cruel para com os cidadãos pobres desses países -
pois talvez não tenham como determinar as diretrizes políti-
cas de seus governos -, mas, no longo prazo, ajudaremos mais
pessoas se usarmos nossos recursos onde eles são mais efica-
zes (aliás, os mesmos princípios podem se aplicar a países que
314 ÉTICA PRÁTICA

se recusem a tomar outras medidas capazes de tornar a ajuda


mais eficaz, por exemplo, não permitir que as mulheres tenham
acesso à educação).

Deixar a cargo do governo


É comum ouvir dizer que a ajuda internacional deve ficar
sob a responsabilidade dos governos, e não de instituições de
caridade privadas. Segundo se diz, a doação privada permite que o
governo fuja às suas responsabilidades. Se fizermos caridade,
o governo não verá a necessidade de tomar providências.
Visto que aumentar a ajuda governamental é a maneira
mais segura de aumentar significativamente a quantidade total
de ajuda que se dá, eu concordaria com a ideia de que os gover-
nos dos países ricos devem dar muito mais do que dão hoje,
contanto que os beneficiários sejam os projetos que de fato aju-
dam os pobres. Doar menos de 25 centavos a cada 100 dólares
do Produto Interno Bruto - e essa cifra já inclui as doações go-
vernamentais e filantrópicas privadas - para reduzir a pobreza
absoluta nos países mais pobres do mundo é uma quantia escan-
dalosamente pequena para uma nação tão rica quanto os Esta-
dos Unidos. Até mesmo a meta de 0,7% oficialmente instituída
pela ONU parece muito menos do que as nações ricas podem e
devem dar, ainda que seja uma meta alcançada por muito pou-
cas. Mas será essa uma razão para que cada um de nós deixe de
doar o que for possível por agências voluntárias? Acreditar que
assim seja parece pressupor que, quanto maior for o número de
pessoas que fazem doações por agências voluntárias, menos pro-
vável seria que o governo faça sua parte. Será isso plausível? O
ponto de vista oposto - se ninguém fizer doações voluntárias, o
governo pressuporia que seus cidadãos não são favoráveis à ajuda
internacional e cortaria seu programa em função desse raciocí-
nio - é mais razoável. De qualquer modo, a menos que exista
uma probabilidade concreta de que, ao nos recusarmos a doar,
estaríamos ajudando a aumentar a filantropia governamental,
recusar-se a fazê-lo no âmbito particular seria errado pela mes-
RICOS E POBRES 315

ma razão que seria errado cortar a ajuda financeira internacional


por causa do risco do crescimento populacional: é recusar-se a
impedir um mal definido em nome de um ganho muito incerto.
O ônus de demonstrar que se recusar a fazer doações particula-
res levaria o governo a ser mais generoso incide sobre aqueles
que se recusam a dar.
Isso não quer dizer que as doações particulares sejam
suficientes. Na condição de cidadãos preocupados e pró-ativos,
devemos lutar pela introdução de padrões totalmente novos de
ajuda internacional pública e privada. Também devemos traba-
lhar para obter relações comerciais mais justas entre países ricos
e pobres, e até mesmo cortar os subsídios que as nações ricas
dão a seus agricultores, pois isso impossibilita que os países
pobres sejam competitivos nos mercados globais. Talvez seja
mais importante, na esfera da militância política, defender os
interesses dos pobres do que dar alguma coisa a eles, mas por
que não unir as duas coisas? Infelizmente, muitos usam o ponto
de vista de que a ajuda internacional é uma responsabilidade do
governo como desculpa para não fazer doações, não como um
motivo para militar politicamente.

Um padrão excessivamente alto?


A última objeção ao argumento a favor da obrigação de
ajudar é a de que ele é demasiado exigente: estabelece um padrão
tão alto que somente um santo poderia atingi-lo. Existem pelo
menos três versões dessa objeção. A primeira delas afirma que,
sendo a natureza humana o que é, não temos condições de
atingir um padrão tão alto, e, como é absurdo dizer que devemos
fazer aquilo que não podemos fazer, é preciso rejeitar a afirma-
ção de que devemos dar tanto. A segunda versão assegura que,
mesmo que conseguíssemos atingir um padrão tão alto, fazê-lo
seria indesejável. De acordo com a terceira versão da objeção,
estabelecer um padrão tão alto é indesejável porque ele seria
percebido como difícil demais de atingir e acabaria desestimu-
lando muitas pessoas até mesmo a tentar atingi-lo.
316 ÉTICA PRÁTICA

Os proponentes da primeira versão da objeção costumam


fazer comentários a respeito da natureza humana. Destacam
que estamos muito mais preocupados com nossos próprios
interesses ou os de nossos familiares mais próximos do que
com os interesses de desconhecidos. Isso acontece, ele poderiam
acrescentar, porque evoluímos a partir de um processo natural
em que aqueles com um alto grau de preocupação por seus
próprios interesses, ou pelos interesses de seus filhos e de sua
família, tinham a tendência de deixar mais descendentes nas
gerações futuras do que aqueles que não se preocupavam tanto
com seus próprios interesses e os de sua família. Em decorrên-
cia disso, o biólogo Garrett Hardin afirmou - em defesa de
sua "ética do barco salva-vidas" - que o altruísmo só poderia
existir "em pequena escala, a curto prazo e no interior de grupos
pequenos e íntimos", enquanto Richard Dawkins afirmou, em
seu provocativo livro O gene egoísta: "Por mais que nos agradasse
acreditar no contrário, o amor universal e o bem-estar da espécie
como um todo são conceitos que simplesmente não têm sentido
do ponto de vista evolutivo".
Ao discutir a objeção de que primeiro devemos cuidar de
nossa gente, já chamei a atenção para a forte tendência à parcia-
lidade que se observa nos seres humanos. A preferência por
nossos próprios interesses e os de nossa família, em detrimento
dos interesses de desconhecidos, certamente é uma decorrên-
cia natural do processo evolutivo. Isso significa que seria tolo
esperar uma grande conformidade com um padrão que exija
uma preocupação imparcial, e, por esse motivo, seria muito
pouco apropriado ou viável condenar todos aqueles que não
conseguem atingir esse padrão. Contudo, por mais difícil que
possa ser, agir imparcialmente não é impossível. A afirmação
muito citada de que "dever" pressupõe "poder" não se aplica a
esse caso e constitui uma razão para rejeitarmos juízos morais
do tipo "Você deveria ter salvo todas as vítimas do naufrágio",
quando, na verdade, se você tivesse colocado mais uma pessoa
no barco salva-vidas, ele teria afundado, e você não teria salvo
RICOS E POBRES 317

ninguém. Numa situação dessas, é absurdo dizer que alguém


deveria ter feito aquilo que, provavelmente, não tinha condi-
ções de fazer. Contudo, quando temos dinheiro para gastar
com coisas luxuosas, e outras pessoas estão morrendo de fome,
fica claro que podemos dar muito mais do que damos, e que,
portanto, podemos todos chegar mais perto do padrão imparcial
proposto neste capítulo. E tampouco existe, à medida que nos
aproximamos mais desse padrão, uma barreira intransponível.
Um exemplo notável do que uma família pode fazer
começou em Atlanta, no estado norte-americano da Georgia,
em 2006, quando o carro em que seguiam Kevin Salwen e
Hannah, sua filha de catorze anos, parou num sinal vermelho.
De um lado, Hannah viu um reluzente Mercedes compacto,
e, do outro, um sem-teto. "Sabe, pai", ela disse, apontando -,
"se aquele homem tivesse um carro que não fosse tão bom, aquele
outro ali poderia comer". Foi o início de uma conversa que
continuou quando chegaram em casa. Em vez de ridicularizar
a ideia, a mãe de Hannah a desafiou: "O que você quer fazer?
Vender nossa casa, mudar-se para outra que tenha metade do
tamanho desta aqui e abrir mão de um quarto só seu?". Seguiu-
-se uma série de conversas, e então os Salwen, uma família bem
de vida formada por quatro pessoas, decidiram fazer exatamente
isso: vender a casa, doar metade do dinheiro ao pobres, e, com o
restante, comprar uma casa menor. Os amigos acharam que era
loucura, mas os Salwen tinham certeza de que estavam fazendo
a coisa certa. O resultado foi que conseguiram doar mais de
800 mil dólares para ajudar os habitantes de uma aldeia rural em
Gana a sair da pobreza. Muitas pessoas considerariam um sacri-
fício mudar-se para uma casa menor, mas Kevin Salwen conta
que a decisão fazia sentido até mesmo quando os interesses da
própria família eram levados em conta: "Doar metade de algo
que tínhamos em demasia (nossa casa) trouxe-nos uma intimi-
dade, uma confiança e uma alegria que não tínhamos até então".
Há que se admitir que a decisão dos Salwen ainda lhes legou
uma vida confortável. Poderiam ter doado mais sem sacrificar
318 ÉTICA PRÁTICA

algo de importância comparável às vidas que, caso tivessem sido


mais generosos, poderiam ter salvo. Portanto, esse exemplo não
demonstra que o padrão é alcançável, mas demonstra, sim, como
uma família pode transpor as barreiras que a maioria de nós já
tem como certas. Zell Kravinsky foi ainda mais longe. Depois de
ganhar mais de 40 milhões de dólares investindo com inteligên-
cia no mercado imobiliário, ele doou quase todo esse montante
e foi viver com a família numa modesta casa suburbana. Então,
ao saber que as pessoas acabam morrendo de doenças renais na
fila de espera por um transplante, e depois de estudar pesquisas
que mostram que as probabilidades de alguém precisar dos dois
rins são de apenas uma em 4 mil, ele foi a um hospital municipal
que atendia principalmente afro-americanos e doou um de seus
rins a um desconhecido. Diante desses exemplos, não podemos
dizer que o padrão imparcial estaria equivocado porque atingi-
-lo seria impossível para nós - para qualquer um de nós, como
indivíduos. Não sabemos realmente até onde se pode chegar na
estrada da imparcialidade. Diferentemente dos Salwen ou de
Zell Kravinsky, a maioria das pessoas não se arrisca a tentar.
A segunda versão da objeção foi levantada por vários
filósofos na década passada, entre os quais Susan Wolf, que o
fez num artigo contundente, intitulado "Moral Saints" [Santos
da moralidade]. Wolf argumenta que, se todos assumísse-
mos a postura moral defendida neste capítulo, teríamos de
abrir mão de inúmeras coisas que tornam a vida interessante:
a ópera, a boa cozinha, as roupas caras e os esportes profissio-
nais, só para começar. O tipo de vida que passamos a ver como
exigência ética seria uma busca exclusiva do bem geral, sem a
ampla diversidade de interesses e atividades que, de um ponto
de vista menos exigente, pode fazer parte de nosso ideal de uma
vida boa para um ser humano. A isso, porém, pode-se responder
que a vida rica e diversificada que Wolf defende como um ideal
pode ser a forma de vida mais desejável para um ser humano que
vive num mundo de fartura, mas seria errado pressupor que essa
mesma vida continue sendo boa num mundo em que adqui-
RICOS E POBRES 319

rir coisas luxuosas signifique aceitar o sofrimento constante e


perfeitamente evitável de outras pessoas. Um médico que se veja
diante de centenas de pessoas gravemente feridas devido a um
acidente de trem dificilmente acharia defensável a ideia de tratar
cinquenta delas e depois ir à ópera, apoiando-se no raciocínio de
que a ópera faz parte de uma vida humana bem vivida. A priori-
dade deveria ser as necessidades de vida ou morte dos outros.
Ao enxergarmos o mundo como um todo e avaliarmos nossa
capacidade de fazer alguma diferença, somos semelhantes ao
médico, no sentido de que vivemos em uma época em que todos
temos a oportunidade de ajudar a mitigar as consequências de
um desastre.
Associada a essa segunda versão da objeção, temos a
afirmação de que uma ética imparcial como aquela que aqui
defendemos impossibilita relações pessoais sérias que se funda-
mentam no amor e na amizade; por sua própria natureza, essas
relações são parciais. Colocamos os interesses das pessoas que
amamos, de nossa família e nossos amigos acima dos interes-
ses de desconhecidos. Se não o fizéssemos, essas relações teriam
como subsistir? Na resposta que dei ao examinar a objeção de
que primeiro devemos cuidar de nossa gente, já mostrei que
existe espaço, dentro de uma estrutura moral imparcialmente
fundamentada, para a aceitação de certo grau de parcialidade
nas relações de parentesco, e o mesmo pode ser dito a respeito de
outras relações pessoais íntimas. Para a maior parte das pessoas,
as relações pessoais estão, claramente, entre as necessidades de
uma vida próspera, e desistir delas seria o mesmo que sacrificar
algo de grande importância moral. Além do mais, para a maioria
das pessoas, abrir mão desses relacionamentos diminuiria não só
sua felicidade e saúde mental, mas também sua eficácia como
agentes da mudança. Portanto, o princípio que defendo aqui
não exige que ninguém faça semelhante sacrifício.
A terceira versão da objeção coloca a pergunta: não seria
contraproducente exigir que as pessoas deem tanto? Elas não
poderiam dizer "Já que não posso fazer aquilo que é moralmente
320 ÉTICA PRATICA

exigido, não me darei o trabalho de dar coisa alguma"? Contudo,


se estabelecêssemos um padrão mais realista, as pessoas talvez
fizessem um esforço concreto para atingi-lo. Portanto, estabele-
cer um padrão mais baixo poderia, de fato, resultar numa maior
prestação de ajuda.
É importante entender claramente a condição dessa
terceira versão da objeção. Sua acuidade enquanto prognós-
tico do comportamento humano é bastante compatível com o
argumento de que somos obrigados a dar até o ponto em que, se
dermos mais, sacrificaremos alguma coisa de importância moral
comparável ao que conseguiremos com nossa doação. O que se
poderia inferir da objeção é que a defesa pública desse padrão
de doação é indesejável. Significaria que, para fazer o máximo
possível no sentido de reduzir a pobreza absoluta, deveríamos
defender um padrão mais baixo do que a quantidade que,
segundo pensamos, as pessoas realmente deveriam dar. É claro
que nós próprios- aqueles, dentre nós, que aceitam o argumento
original, com seu padrão mais alto - saberíamos que devemos
fazer mais do que propomos publicamente que as pessoas façam,
e até mesmo, na verdade, dar mais do que incitamos os outros
a dar. Não há, aqui, nenhuma incoerência, pois tanto em nosso
comportamento público quanto privado estamos tentando fazer
o máximo para diminuir a pobreza absoluta.
Para um consequencialista, esse conflito aparente entre
moralidade pública e privada é sempre uma possibilidade, não
constituindo, em si, uma indicação de que o princípio subja-
cente esteja errado. As consequências de um princípio são uma
coisa, e as consequências de defendê-lo publicamente são outra.
Uma variante dessa ideia já é reconhecida pela distinção entre
os planos crítico e intuitivo de moralidade, aos quais recorri em
capítulos anteriores. Se pensarmos nos princípios apropriados
para o plano de moralidade intuitivo como aqueles que devem
ser comumente defendidos, são esses os princípios que, quando
defendidos, darão origem às melhores consequências. No que
diz respeito à ajuda internacional, são esses os princípios que
RICOS E POBRES 321

levarão à maior quantidade de doações feitas pelos ricos aos


pobres, desde que o dinheiro seja doado a uma organização que
o use com o máximo de eficiência.
Seria verdade que o padrão estabelecido por nosso argumen-
to é tão alto a ponto de ser contraproducente? Não há muitos
indícios pelos quais nos possamos orientar, mas as discussões do
argumento com estudantes e outras pessoas levaram-me a pensar
que talvez seja. Por outro lado, o padrão convencionalmente acei-
to - algumas moedas na caixinha de doações que é esfregada em
nossa cara- é obviamente baixo demais. Que nível devemos de-
fender? Em meu livro, The Life You Can Save [A vida que se pode
salvar] - e no site correspondente, disponível em <www.theli-
feyoucansave.com> -, sugeri uma escala progressiva como a dos
impostos. Começa em apenas 1% da renda, e, no caso de 90%
dos contribuintes, não exige que doem mais do que 5%. Trata-se,
portanto, de uma cifra totalmente realista de que as pessoas po-
deriam abrir mão sem sacrifício algum - e, de fato, geralmente
ganhariam alguma coisa com isso, pois muitos estudos psicológi-
cos mostram que os doadores, como descobriu a família Salwen,
são mais felizes que os não doadores. Não sei se, de fato, a escala
que proponho produzirá, se defendida amplamente, a maior
quantidade de doações, mas calculo que, se todas as pessoas do
mundo rico doassem de acordo com essa escala, levantaríamos
1,5 trilhão de dólares por ano, oito vezes mais do que a força-
-tarefa das Nações Unidas, liderada pelo economista Jeffrey Sa-
chs, calculou ser necessário para cumprir os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio estabelecidos pelos líderes de todas
as nações do mundo reunidos na Cúpula do Milênio em 2000.
Entre essas metas estava reduzir à metade a proporção mundial
de pessoas que viviam na pobreza absoluta e a proporção de pes-
soas que passavam fome, além de reduzir em dois terços a morta-
lidade de crianças com menos de cinco anos de idade - o que
salvaria 6 milhões de vidas por ano - e possibilitar que crianças
do mundo todo completem o ensino fundamental.
322 ÉTICA PRATICA

Esse resultado surpreendente - o de que o montante que


cada um de nós precisaria doar seria bem modesto se todos
que vivem na abundância contribuíssem com o esforço para re-
duzir a pobreza absoluta e suas consequências- demonstra que o
argumento com o qual começamos este capítulo só é exigente
porque pouquíssimas pessoas em condições de ajudar os pobres
estão fazendo algo de significativo nesse sentido. Não precisamos
transferir para os pobres metade, um quarto nem mesmo um
décimo do dinheiro dos ricos. Quando poucos ajudam, es-
ses poucos têm de cortar na própria carne até chegar ao ponto no
qual doar mais implicaria sacrificar algo de importância moral
comparável à vida que é salva pela doação. Se todos nós, ou pelo
menos a maioria, doássemos de acordo com a escala muito mais
modesta que sugeri, nenhum de nós teria de abrir mão de muita
coisa. E é por isso que esse padrão pode ser defendido publica-
mente. Precisamos mudar nossa ética pública de modo que,
para qualquer um que possa se dar ao luxo de comprar supér-
fluos - e até mesmo uma garrafa de água é um luxo quando o
suprimento de água potável é gratuito -, doar algo importante
para quem se encontra na pobreza absoluta se torne parte funda-
mental do que seria levar uma vida ética.
9

Mudanças climáticas

No capítulo anterior, consideramos brevemente o argumento


de que a única obrigação que temos em relação a desconhecidos
é não lhes fazer mal. Durante boa parte da existência humana,
teria sido fácil viver em concordância com esse ponto de vista.
Nossos ancestrais viviam em grupos de não mais que algumas
centenas de pessoas, e aquelas que se encontrassem do outro lado
de um rio ou cordilheira poderiam muito bem estar vivendo em
um mundo à parte. Desenvolvemos princípios éticos para nos
ajudar a lidar com problemas internos às nossas comunidades,
e não para ajudar quem estava do lado de fora. O mal que se
considerava errado fazer geralmente era claro e bem definido.
Desenvolvemos inibições e respostas emocionais a tais atos,
e essas reações instintivas ou emocionais ainda formam o alicerce
de boa parte do nosso pensamento moral.
Nos dias de hoje, estamos conectados a pessoas do mundo
todo e de maneiras que nossos ancestrais nunca teriam imagi-
nado. A descoberta de que as atividades humanas estão mudando
o clima do planeta foi acompanhada pela compreensão de novas
maneiras de fazermos mal uns aos outros. Ao dirigir seu carro,
você queima combustível fóssil que libera gás carbônico na
atmosfera. Você está alterando a composição química da atmos-
fera e, com isso, o clima. O que isso faz às outras pessoas?
Em algumas partes do mundo, isso que você está fazendo
já é evidente. De acordo com a Organização Mundial da Saúde,
o aquecimento do planeta provocou 140 mil mortes acima do
324 ÉTICA PRATICA

esperado em 2004, em comparação com o número de mortes


que teriam ocorrido caso as temperaturas médias globais conti-
nuassem no patamar em que estavam no período de 1961
a 1990. Significa que as mudanças climáticas já estão provo-
cando, semana a semana, mortandade semelhante à dos ataques
terroristas de 11 de setembro de 2001. As causas imediatas do
excesso de mortes são, em grande parte, doenças suscetíveis às
condições climáticas - como a malária e a dengue - e a diarreia,
que se torna mais comum quando falta água potável. A desnu-
trição resultante de colheitas perdidas por causa das temperatu-
ras elevadas ou da baixa precipitação também é responsável por
muitas mortes adicionais.
As mudanças também são evidentes nos deltas fluviais,
férteis e densamente povoados do Egito, de Bangladesh, da
Índia e do Vietnã, que estão ameaçados por causa da elevação
do nível do mar. As Sundarbans, ilhas no delta do Ganges que
abrigam 4 milhões de indianos, estão desaparecendo: duas ilhas
sumiram completamente; no total, uma área de oitenta quilô-
metros quadrados de terra desapareceu nos últimos trinta anos.
Centenas de famílias tiveram de ser removidas para campos de
desabrigados. Algumas pequenas nações do Pacífico, como as
Maldivas, Quiribáti e Tuvalu, formadas por atóis coralíneos
baixos, correm o mesmo risco: daqui a algumas décadas, pode
ser que essas nações estejam debaixo d'água.
São apenas os primeiros sinais de mudanças muito maiores
por vir. Em 2007, o Quarto Relatório de Avaliação do Painel ln-
tergovernamental sobre Mudanças Climáticas, a organização
científica estabelecida pelo Programa Ambiental das Nações
Unidas e a Organização Meteorológica Mundial, descobriu que,
por volta de 2080, um aumento de temperatura em 2 a 2,4 graus
Celsius levaria à escassez de recursos hídricos utilizados por
1,2 bilhão de pessoas. A elevação do nível do mar deixaria, a cada
ano, outros 16 milhões de pessoas vulneráveis às inundações lito-
râneas. Se as temperaturas aumentarem 3,3 graus Celsius nesse
mesmo período, a escassez hídrica afetará de 2,5 a 3,2 bilhões de
MUDANÇAS CLIMÁTICAS 325

pessoas, e, a cada ano, outras 29 milhões de pessoas estarão vul-


neráveis às inundações litorâneas.
O que estamos fazendo com pessoas que não conhecemos
em outras comunidades neste exato momento é, portanto, muito
mais grave e difundido que o mal que causaríamos se tivésse-
mos o hábito de, vez ou outra, mandar um grupo de guerrei-
ros saquear um ou dois vilarejos e estuprar seus habitantes.
Mas provocar danos imperceptíveis e remotos com a liberação
de gases residuais é uma forma completamente nova de fazer
mal a alguém, e, portanto, faltam-nos as inibições instintivas ou
respostas emocionais que nos impediriam de provocá-lo. Temos
dificuldade até para entender isso como fazer mal.
O urso polar encarapitado num bloco de gelo evanes-
cente tornou-se um símbolo da campanha contra o aqueci-
mento global, mostrando que não são apenas os seres humanos
que sofrerão com as mudanças climáticas. Milhões de animais
morrerão nas secas e inundações. Alguns conseguirão mudar-
-se para novos ambientes à medida que os anteriores mudarem,
mas, para outros, não restará para onde ir. Em algumas regiões,
por exemplo, as espécies alpinas poderão se mudar para pontos
mais altos nas montanhas à medida que as temperaturas se eleva-
rem, mas em outras - a Austrália é um exemplo -, a fauna e a
flora alpinas já estão nas regiões mais altas, e não há como subir
mais. O aquecimento global provocará extinções em larga escala.
No capítulo anterior, argumentei contra a ideia de que
nossa única obrigação em relação a desconhecidos seria não lhes
fazer mal; mas, mesmo que abraçássemos essa ideia, os fatos
associados às mudanças climáticas demonstrariam claramente
que estamos fazendo mal a centenas de milhões, talvez bilhões
de pessoas pobres do mundo. Portanto, parece que, independen-
temente do ponto de vista adotado, temos a obrigação de deixar
de lhes fazer mal e reparar o mal que já causamos, um mal que
continuará a ter desdobramentos no mínimo até o próximo
século, mesmo se reduzirmos a zero toda a emissão de gases do
efeito estufa. Precisamos de acordos internacionais para lidar
326 ÉTICA PRATICA

com as mudanças climáticas e precisamos de uma ética global


para fundamentar esses acordos. Este capítulo discute como
poderia ser essa ética global e quais seriam as responsabilidades
de nações e indivíduos em relação às mudanças climáticas.

"Bastante e de tão boa qualidade"


Imagine que moramos em um vilarejo onde todos jogam
o lixo num fosso gigantesco. Ninguém sabe ao certo o que
acontece com o lixo depois que ele desce pelo fosso, mas, como a
coisa desaparece e, aparentemente, não incomoda ninguém, não
há quem se preocupe com isso. Por mais que joguemos coisas
no fosso, os outros também podem fazer o mesmo. Na memória
das pessoas, a capacidade do fosso para receber nosso lixo parece
ilimitada. Acreditamos poder tomar o que quisermos e ainda
deixar, nas palavras de John Locke, filósofo inglês do século xvn,
"o bastante e de tão boa qualidade para os outros". Na opinião
de Locke, trata-se de um fator-chave para nossa capacidade de
transformar recursos naturais em propriedade. Agora imagine
que comecemos a produzir mais lixo, e, de repente, descobri-
mos que a capacidade do fosso não é ilimitada: ao contrário,
já está abarrotado. Nesse momento, se continuarmos a jogar
nosso lixo no fosso, não estaremos mais deixando "o bastante e
de tão boa qualidade para os outros", daí nosso direito a jogar o
lixo fora sem qualquer controle passará a ser questionável.
Pense na atmosfera como o fosso gigantesco, e no nosso
lixo como o gás carbônico, o metano e outros gases do efeito
estufa. Acabamos de descobrir que a capacidade da atmosfera
de absorver nossos gases sem consequências danosas é limitada.
Os indícios mostram que já estamos abusando de sua capacidade.
Antes da revolução industrial, o gás carbônico em nossa atmos-
fera chegava apenas a 270 partes por milhão (ppm). Aí os seres
humanos começaram a queimar carvão em grandes quantida-
des e, mais tarde, petróleo e gás. Em 2010, o gás carbônico na
atmosfera chegou a 390 ppm. É o nível mais alto já registrado em
toda a história, e continua a aumentar à razão de 2 ppm por ano.
MUDANÇAS CLIMÁTICAS 327

A concordância geral é de que, se fizermos as temperaturas


médias subirem 2°C, haverá provavelmente consequências
perigosas e de larga escala, muito mais graves que qualquer coisa
que tenhamos presenciado até o momento. Até 2008, aproxima-
damente, a maioria dos cientistas concordava que o nível de gás
carbônico em nossa atmosfera não poderia passar de 450 ppm
se quiséssemos impedir uma elevação de temperatura superior a
2oC. De acordo com a tendência atual, chegaremos aos 450 ppm
de gás carbônico na atmosfera por volta de 2040.
Deixar que os níveis de gás carbônico na atmosfera cheguem
a 450 ppm já é correr um sério risco. Na primeira década do
século XXI, o aquecimento global excedeu mais de uma vez as
previsões feitas nos primeiros relatórios do Painel lntergover-
namental sobre Mudanças Climáticas, e desenvolvemos uma
compreensão melhor dos perigos dos círculos de retroalimenta-
ção no aquecimento planetário. O derretimento do gelo ártico é
um exemplo visível de que alguma coisa está acontecendo mais
rápido do que os cientistas previram. Também ilustra os perigos
de um círculo de retroalimentação. Há quatrocentos anos,
os exploradores buscavam a lendária "Passagem Nordeste" que
permitiria a navegação por todo o norte da Europa e Rússia até a
China. Descobriram que o gelo ártico era impenetrável e desisti-
ram. Em 2009, embarcações comerciais conseguiram percorrer
a Passagem Nordeste. A grande área do Oceano Ártico que hoje
fica livre de gelo no verão é um sintoma do aquecimento global.
Além disso, ela mesma provoca mais aquecimento. O gelo e a
neve refletem os raios solares. Uma superfície oceânica livre de
gelo absorve mais calor do sol. Nossas emissões de gases do efeito
estufa, ao provocar aquecimento suficiente para derreter o gelo
ártico, criaram um círculo de retroalimentação que gerará mais
aquecimento, mesmo que deixemos de emitir gases do efeito
estufa a partir de amanhã. Outros círculos de retroalimenta-
ção representam um perigo ainda maior. Na Sibéria, enormes
quantidades de metano - um gás do efeito estufa extremamente
potente - estão encerradas no que costumávamos chamar de
328 ÉTICA PRATICA

"permafrost", regiões nas quais o solo ficava permanentemente


congelado. Áreas que costumavam ficar congeladas agora estão
descongelando, e, ao fazer isso, liberam o metano, ajudando a
aumentar o aquecimento e a derreter novas regiões, que liberam
mais metano.
Indícios desse tipo levaram James Hansen, da NASA, e seus
colegas a concluir, num artigo publicado na Science, em 2008,
que, se quiséssemos "preservar um planeta semelhante àquele
onde a civilização se desenvolveu e ao qual a vida na Terra se
adaptou", precisaríamos reduzir o gás carbônico a "no máximo
350 ppm". Trata-se, obviamente, de um nível que já ultrapas-
samos há anos. Portanto, se pensarmos na atmosfera como um
fosso gigantesco, então já abusamos de sua capacidade. Precisa-
mos diminuir o uso que fazemos dele. Como podemos decidir
quem deve diminuir mais?

O que seria uma distribuis:ão equitativa?

Responsabilidade histórica
Ao tratar da questão da justiça na distribuição em seu
livro Anarchy, State and Utopia [Anarquia, estado e utopia], o
filósofo Robert Nozick fez uma distinção proveitosa entre princí-
pios "históricos" e "de resultado final". Um princípio histórico
é aquele que afirma: para entender se determinada distribuição
de bens é justa ou injusta, temos de perguntar como a distribui-
ção ocorreu; temos de conhecer sua história. As partes interessa-
das têm direito - estabelecido por uma aquisição originalmente
justificável e uma cadeia de transferências legítimas - ao que
hoje possuem? Se assim for, então a distribuição atual seria justa.
Caso contrário, uma retificação ou reparação seria necessária para
produzir uma distribuição justa. Por outro lado, um princípio de
resultado final simplesmente examina a distribuição que já existe,
neste exato instante, e pergunta, com base nisso, se ela é justa.
Um princípio histórico, muitas vezes aplicado no caso da
poluição, é o do "quebrou, conserte", também conhecido como
MUDANÇAS CLIMATICAS 329

"o poluidor que pague a conta". Se uma indústria química poluir


um rio, então a responsabilidade de limpar o rio caberá ao dono
da indústria. Se aplicarmos esse princípio às mudanças climá-
ticas, então a responsabilidade de resolver o problema caberia
proporcionalmente a cada país de acordo com quanto contri-
buíram para provocar o problema. As emissões históricas de gás
carbônico são relevantes, pois a maior parte do gás carbônico
emitido um século atrás ainda está na atmosfera hoje.
Em discussões sobre as mudanças climáticas nas Nações
Unidas, em 1997, o governo brasileiro propôs que as metas de
redução nas emissões deveriam ser estabelecidas de acordo com
o impacto das emissões históricas de uma nação na elevação
da temperatura. Formou-se um grupo de cientistas para avaliar
a proposta e indicar se existiam informações que permitissem
concluir quais teriam sido as contribuições de diversas nações
ou regiões para a elevação das temperaturas globais. Esse grupo
acabou relatando, em 2008, que havia dados adequados para
tanto, principalmente no caso de emissões de combustíveis
fósseis, embora as contribuições devidas às mudanças na cober-
tura florestal e à agricultura fossem mais difíceis de quantificar.
O grupo mediu as contribuições no período de 1890 a 2000,
destacando que os resultados seriam ligeiramente diferentes
se datas iniciais e finais distintas fossem escolhidas. Concluiu
que os Estados Unidos são responsáveis por 20% da eleva-
ção da temperatura, e as nações europeias que participam da
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(ocnE) são responsáveis por 14%. Surpreendente, de certo modo
- e talvez desconcertante para os brasileiros -, foi o fato de a
América Latina também contribuir, aparentemente, com 14%
para a elevação da temperatura, embora o estudo destacasse
que essa cifra chegaria a cair para 8% se dados diferentes sobre
cobertura florestal e alterações no uso da terra fossem emprega-
dos. Por outro lado, todo o Leste da Ásia, incluindo aí a China,
contribui com apenas 10%, o Sul da Ásia, que abrange a Índia,
com apenas 7%. Do ponto de vista do "quebrou, conserte",
330 ÉTICA PRÁTICA

portanto, são os Estados Unidos e as nações europeias que


se industrializaram tempos atrás, talvez acompanhados pela
América Latina, que devem arcar com a maior parte do fardo de
resolver o problema.
A China apoiou a proposta brasileira, mas com a ressalva
explícita de que as contribuições históricas para as mudanças
climáticas deveriam ser consideradas de acordo com o número
de habitantes. Carbon Equity [Justiça carbônica], um relatório
preparado por cinco acadêmicos chineses e think tanks dedica-
dos ao estabelecimento de diretrizes de ação, por ocasião da
conferência de 2009 sobre mudanças climáticas em Copenha-
gue, argumenta que o fato de a China ter uma população muito
maior que os Estados Unidos precisa ser levado em consideração
na distribuição de responsabilidades pelo problema do efeito
estufa. O pressuposto, que parece razoável, é de que cada pessoa
tem direito a uma quota igual de atmosfera, e deveríamos exami-
nar até que ponto a população de algumas nações, nos séculos
passados, usou mais do que lhe cabia usar. O relatório calcula
que, no período que vai de 1850 a 2004, o norte-americano
médio foi responsável por jogar 21 vezes mais gás carbônico na
atmosfera do que o chinês médio e 53 vezes mais que o indiano
típico. Na média, britânicos e canadenses são responsáveis por
16 vezes mais carbono na atmosfera que os chineses e 40 vezes
mais que os indianos. O princípio da responsabilidade histó-
rica, portanto, indica que quase todo o sacrifício necessário para
deter o aquecimento global deveria ser feito pelas nações indus-
trializadas mais antigas.
Ouve-se de quando em quando a objeção de que a revolu-
ção industrial beneficiou o mundo todo, não somente as nações
industrializadas, portanto, as emissões necessárias para a indus-
trialização não deveriam ser consideradas como responsabi-
lidade exclusiva das nações industrializadas. É verdade que a
revolução industrial possibilitou o desenvolvimento da ciência e
da tecnologia, e isso beneficiou e continua a beneficiar bilhões
de pessoas em todo o mundo. Mas também permitiu que as
MUDANÇAS CLIMÁTICAS 331

nações industrializadas colonizassem boa parte do mundo, e,


mesmo terminada a era da colonização, dominassem o sistema
de comércio global. Isso beneficiou enormemente as pessoas que
vivem nas nações industrializadas, ao passo que seu impacto nas
nações colonizadas foi, na melhor das hipóteses, muito ambíguo.
Portanto, mesmo que a industrialização tenha sido, no balanço
geral, um benefício, e não um malefício para o mundo como um
todo, é um benefício que coube desproporcionalmente a quem
vivia nas próprias nações industrializadas, e as emissões podem
ser razoavelmente entendidas como responsabilidade delas.
Outra objeção à responsabilização das nações industriali-
zadas por todas as suas emissões desde a revolução industrial é
que, durante boa parte desse período, elas não sabiam que essas
emissões seriam nocivas. É verdade, apesar de que, já em 1896,
o ilustre cientista Svante Arrhenius previa que a queima de
combustíveis fósseis levaria a um acúmulo de gás carbônico na
atmosfera e aqueceria o planeta. (No entanto, ele imagina que
seria algo bom, pois tornaria o clima da Terra "mais equânime"
e estimularia a produção de alimentos. Talvez essa opinião favorá-
vel a respeito do aquecimento global tivesse algo a ver com o fato
de ele viver na Suécia.) Mas o aquecimento global antropogênico
não foi estudado a sério antes da década de 1970, e as mudan-
ças climáticas só se tornaram uma preocupação internacional
na década de 1980. Em audiências no Congresso dos Estados
Unidos, em 1987 - na época, o ano mais quente já registrado;
hoje, porém, não figura nem entre os dez anos mais quentes -,
James Hansen fez um alerta sobre os perigos do aquecimento
global. Foi apoiado por outros cientistas. No ano seguinte, foi
criado o Painel lntergovernamemal sobre Mudanças Climáticas
e, dois anos mais tarde essa organização relatou que a ameaça das
mudanças climáticas era real, sendo necessário um tratado global
para lidar com isso. A Convenção-Quadro das Nações Unidas
sobre Mudanças Climáticas foi pactuada numa "Conferência
de Cúpula da Terra" realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Essa
convenção, aceita por 181 governos, entre eles todas as principais
332 ÉTICA PRÁTICA

nações industrializadas, pede a estabilização dos gases do efeito


estufa "num nível suficientemente baixo para impedir a perigosa
interferência antropogênica no sistema climático". As nações do
mundo não fizeram o que se comprometeram a fazer. Em vez
disso, as emissões de gases do efeito estufa continuaram a aumen-
tar (o Protocolo de Quioto, aceito pela maioria das nações
industrializadas em 1997, foi uma tentativa de coagir as nações
industrializadas a cumprir as promessas feitas na Conferência da
Terra ocorrida no Rio de Janeiro cinco anos antes. Não foi ratifi-
cado pelos Estados Unidos, na época o maior emissor mundial
de gases do efeito estufa, além de ser um país com um nível de
emissão per capita particularmente elevado).
Apesar de não ter valor legal, o compromisso firmado no
Rio de Janeiro demonstra que, em 1992, as nações desenvolvi-
das estavam cientes de que era necessário fazer alguma coisa. A
análise da proposta brasileira de considerar as contribuições his-
tóricas, mencionada anteriormente, também examinou qual se-
ria o resultado caso a data de partida da responsabilidade
histórica não fosse 1890, e sim 1990- e ninguém poderia argu-
mentar que, naquele ano, ignorava-se o fato de que as emissões
de gases do efeito estufa traziam consigo o risco de provocar
mudanças climáticas perigosas. Apesar de essa data de partida
muito mais recente obviamente reduzir as contribuições das na-
ções industrializadas mais antigas, a diferença foi menor do que
se poderia esperar. A contribuição dos Estados Unidos caiu de
20 para 16%, e a das nações europeias da OCDE caiu de catorze
para onze por cento. A contribuição da China subiu para apro-
ximadamente 13%, mas a da Índia continuou por volta de 5%.
As contribuições da África continuaram ínfimas, independente-
mente do período investigado. As contribuições per capita das
nações industrializadas continuaram desproporcionalmente
maiores, porque, naturalmente, a população dos Estados Unidos
corresponde apenas a um quarto da chinesa. Portanto, mesmo
que aceitemos o argumento de que a regra do "quebrou, conser-
te" se aplica somente a partir do momento em que os grandes
MUDANÇAS CLIMATICAS 333

emissores tomaram ciência de que as emissões poderiam causar


perigosas mudanças climáticas antropogênicas, ainda seria o
caso de os Estados Unidos e as nações industrializadas da Euro-
pa se obrigarem a fazer muito mais que outras nações para resol-
ver o problema.

Quotas equitativas
Em uma reunião sobre mudanças climáticas da Cúpula das
Nações Unidas, o presidente de Ruanda, Paul Kagame, desta-
cou que as mudanças climáticas provavelmente terão um impac-
to mais forte na África que em qualquer outra parte do mundo.
E, no entanto, a África tem menos recursos para enfrentar essa
dificuldade. Muitos modelos das mudanças que o aquecimento
global provavelmente trará mostram que a precipitação dimi-
nuirá mais nas proximidades do equador e aumentará perto dos
polos. A chuva de que centenas de milhões de pessoas precisam
para cultivar seu alimento passará a ser cada vez menos confiá-
vel. Além disso, as nações mais pobres dependem da agricultura
muito mais do que as ricas. Nos Estados Unidos, a agricultura
representa apenas 4% da economia; em Malauí, é 40%, e 90%
dos malauianos são agricultores de subsistência; praticamente
todos eles dependem das chuvas. Padrões semelhantes de depen-
dência da lavoura e das chuvas são comuns em todo o continen-
te africano.
Também é obviamente verdadeiro que às nações mais
pobres faltam os recursos para se adaptar. No sul da Austrá-
lia, quando vários estados se viram diante de uma tendência de
longo prazo de declínio na precipitação, os governos construí-
ram caras usinas de dessalinização para garantir que as grandes
cidades não ficassem sem água. Nos Países Baixos, o governo
erigiu diques para conter a elevação do nível do mar e está proje-
tando casas anfíbias capazes de acompanhar as cheias fluviais e
flutuar, sem perder a ancoragem. Outros países não têm como
arcar com esses métodos caros de fornecer água e controlar
inundações provocadas pela elevação do nível do mar.
334 ÉTICA PRATICA

O presidente Kagame prosseguiu, apontando que as


mudanças climáticas só seriam "um problema criado pela
África" apenas "muito marginalmente, se tanto". Vimos que ele
também estava certo quanto a isso. Não obstante, ele propôs que
se esquecessem o passado e o fato de a responsabilidade caber às
nações industrializadas que causaram o problema. Disse que era
porque todos nós estávamos diante de uma luta pela sobrevivên-
cia que ele não queria "mais uma rodada dessa brincadeira de
jogar a culpa uns nos outros", o que não só seria de mau gosto,
mas também contraproducente. Em vez disso, ele propôs que
todo ser humano tem direito a uma quota equitativa da atmos-
fera. Na mesma reunião das Nações Unidas, o Sri Lanka fez
uma proposta semelhante.
As "quotas equitativas" têm o grande mérito da simplici-
dade. É um princípio de resultado final: não leva em considera-
ção o passado e dá a todos uma quota equitativa da atmosfera de
agora em diante. À semelhança de outras nações em desenvolvi-
mento, Ruanda e Sri Lanka estão usando muito menos do que
sua quota equitativa per capita, e, assim, mesmo que abram mão
do direito de se queixar das nações industrializadas por causa
de sua responsabilidade histórica, ainda serão beneficiadas no
sistema de quotas equitativas.
O que querem dizer, na prática, as quotas equitativas?
Imagine que nosso objetivo seja estabilizar as emissões de gases
do efeito estufa em um nível que venha a nos impedir de exceder
os 450 ppm de gás carbônico. Discute-se o quanto carbono
poderíamos emitir por pessoa e, ao mesmo tempo, permanecer
abaixo desse nível, mas uma cifra plausível seria duas toneladas
de gás carbônico por pessoa por ano. (Às vezes, as emissões são
expressas em carbono, e não como gás carbônico. Uma tonelada
de carbono é equivalente a 3,7 toneladas de gás carbônico, de
modo que duas toneladas de gás carbônico não passam muito
de meia tonelada de carbono. Também devemos sempre nos
lembrar de que a cifra para o "gás carbônico" na verdade significa
"equivalente ao gás carbônico", pois inclui outros gases do efeito
MUDANÇAS CLIMÁTICAS 335

estufa, como o metano, convertidos a uma razão que leva em


conta sua potencialidade de aquecer o planeta.) Agora compare
as emissões per capita reais de algumas nações relevantes com
essa estimativa de duas toneladas de gás carbônico por pessoa
que poderiam ser emitidas anualmente. Em 2010, os Estados
Unidos, o Canadá e a Austrália produziram onze toneladas; a
China, umas quatro; a Índia, não mais que uma tonelada; e o
Sri Lanka, apenas dois terços de tonelada, aproximadamente.
Significa que o Sri Lanka poderia triplicar suas emissões, que a
Índia poderia quase duplicar suas emissões, e ainda assim não
excederiam suas quotas per capita. A China precisaria diminuir
pela metade suas atuais emissões, a Alemanha teria de reduzi-las
em mais de 80%, e - o resultado mais dramático - os Estados
Unidos, o Canadá e a Austrália teriam de reduzir suas emissões
a um décimo dos níveis atuais.
Naturalmente, não é possível que nações industrializadas
como a Alemanha e os Estados Unidos implementem reduções
tão dramáticas a curto prazo, ou que o façam sem, no mínimo,
provocar consequências econômicas devastadoras as quais, numa
democracia, levariam a uma mudança de governo e revogação
das medidas. No entanto, antes de concluirmos que isso faz
do princípio das quotas equitativas per capita uma ideia nada
realista, existem dois fatores atenuantes a considerar. A primeira
é que tornar comercializáveis as quotas de emissão de gases
do efeito estufa facilitaria a transição para uma economia de
emissões baixas. O mercado de emissões funciona com base no
simples princípio econômico de que, se é possível comprar algo
a um custo menor do que sairia produzi-lo, é melhor comprá-lo
do que produzi-lo. Nesse caso, o que se compra é uma quota
transferível para a produção de gases do efeito estufa, fixada em
função de uma quota equitativa per capita. O mercado interna-
cional de carbono implica que cortes nas emissões de carbono
serão feitos ao menor custo possível, e, portanto, causarão o
mínimo de estrago possível na economia global. Além disso,
um mercado de carbono dá aos países com poucas emissões de
336 ÉTICA PRÁTICA

gases do efeito estufa - em geral, países pobres - um incentivo


para manter suas emissões em níveis baixos, para que tenham
mais quotas de emissões para vender aos países ricos que excede-
rem suas próprias quotas. Assim, um mercado internacional
de emissões poderia contribuir para a solução do problema da
pobreza discutido no capítulo anterior. Envolveria a transfe-
rência de recursos das nações ricas para as pobres, não como
altruísmo, e sim como pagamento por uma mercadoria valiosa.
Existem, porém, sérias objeções a um mercado interna-
cional de carbono. Uma delas é se um sistema como esse seria
verificável - ou seja, se as emissões de cada nação poderiam
ser fiscalizadas adequadamente de acordo com sua quota -
e o que aconteceria se não fosse. Sem um meio confiável de
confirmar as reduções nas emissões, não se conseguirá nada.
Em segundo lugar, os pagamentos das nações ricas às nações
pobres só reduzirão a pobreza se os governos que os receberem
usarem-nos com essa finalidade. No caso de governos que se
recusam a fazê-lo - algo que, como vimos no capítulo anterior,
muitas vezes acontece quando governos corruptos ou ditato-
riais recebem royalties pela venda de petróleo e minerais -,
seria melhor que os pagamentos fossem guardados até aparecer
um governo que consiga demonstrar que usará os fundos para
beneficiar todo o seu povo.
A terceira objeção a um mercado internacional de emissões
é aquela que James Hansen fez a qualquer sistema" de limitação
e comércio" - isto é, qualquer sistema que estabeleça um teto
global para as emissões, divida-o em licenças de emissão para
nações, empresas ou indivíduos, e daí permita que essas licenças
sejam negociadas. Hansen destaca que esses sistemas têm um
efeito perverso nas ações altruístas. Se decido reduzir minhas
emissões de gases do efeito estufa comprando um carro híbrido
de baixo consumo, isso não reduzirá o total de emissões do meu
país. O teto determina o total, e, se algumas pessoas reduzirem
suas emissões, isso fará cair o preço das licenças de emissão.
MUDANÇAS CLIMATJCAS 337

Portanto, os combustíveis fósseis serão mais baratos do que se-


riam se algumas pessoas não tivessem decidido, de maneira al-
truísta, reduzir suas emissões, e outras pessoas que não são
altruístas sem dúvida alguma decidirão comprar um carro maior
ou utilizar mais energia, por causa da queda nos preços. Han-
sen, portanto, prefere um imposto sobre o carbono contido nos
combustíveis fósseis e a divisão igualitária dos rendimentos en-
tre todos os residentes legais de um país. Ele dá a isso o nome de
sistema de "imposto e dividendos". Isso recompensaria as pes-
soas que reduzem sua pegada de carbono, o que reduziria o total
de emissões. Em resposta, o economista Paul Krugman reco-
nhece que um sistema de limitação e comércio realmente dimi-
nui o número de oportunidades para se demonstrar altruísmo
climático, mas nega que o altruísmo nos permitiria reduzir as
emissões no montante necessário. Ele também destaca que per-
mitir a comercialização de licenças usa o mecanismo do merca-
do para garantir que as emissões sejam reduzidas ao menor
custo possível: por que reduzir as emissões com um custo eleva-
do se outra pessoa consegue reduzi-las por muito menos e ainda
obter lucro vendendo para você suas licenças? Portanto, na opi-
nião de Krugman e da maioria dos economistas, um imposto
sobre o carbono é menos eficiente que um sistema de limitação
e comércio.
No entanto, discutir as vantagens e desvantagens de um
mercado de carbono é uma digressão em nossa discussão sobre
a possibilidade de as nações desenvolvidas reduzirem suas
emissões no montante necessário para evitar a catástrofe. Um
mercado de carbono seria um fator que talvez transformasse a
tarefa em algo ligeiramente m ais factível do que parecia a princí-
pio. Um segundo fator é que os cortes não precisam ser feitos
todos ao mesmo tempo. O Conselho Consultivo para Mudanças
Globais da Alemanha, uma organização científica que orienta
o governo alemão, sugeriu que o total permissível de emissões
de gás carbônico não deveria ser calculado para um único ano,
e sim que deveria ser estabelecido para todo um período, que
338 ÉTICA PRATICA

iria de hoje até 2050 e concebido de maneira que existisse uma


probabilidade de as temperaturas globais não aumentarem mais
de 2oC. Com essa finalidade, o conselho sugeriu uma emissão
máxima de 750 bilhões de toneladas de gás carbônico entre
2010 e 2050 (embora, mesmo com essa quantidade, o conselho
tenha alertado que a probabilidade de manter a elevação das
temperaturas abaixo de 2°C não passaria de dois terços). Esse
total, propôs o conselho, deveria ser dividido entre os países de
acordo com suas quotas equitativas per capita. Então os países
poderiam produzir seus próprios "roteiros", mostrando de que
modo reduziriam suas emissões de gás carbônico para que não
excedessem suas receitas de carbono antes de 2050.
Apesar de a proposta alemã dar tempo aos países indus-
trializados para implementar mudanças, para os países que
mais produzem emissões per capita atualmente, há muito pouco
tempo. Uns sessenta países, em grande parte nações industria-
lizadas, usarão toda sua receita, mantidas as taxas atuais, em
menos de vinte anos. A Alemanha, por exemplo, se continuasse
a emitir o mesmo que emitia em 2008, usaria toda sua receita
de emissões em apenas dez anos, e então precisaria zerar as
emissões pelos próximos trinta anos. (Portanto, é louvável que
Angela Merkel, chanceler alemã, tenha aceitado o princípio de
quotas equitativas ao afirmar: " [...] nossa medida de longo prazo
só pode ser a necessária equiparação das emissões mundiais per
capita de co 2 ." ) Os Estados Unidos, a Austrália e o Canadá,
no momento, usarão toda sua receita em apenas seis anos. Um
outro grupo de trinta países, entre eles a China, o México e a
Tailândia, mantidas as taxas atuais, usarão sua receita em vinte
a quarenta anos. Os 95 países restantes não precisam reduzir
suas emissões, já que, mantidas as taxas atuais, suas receitas
ainda durarão pelo menos quarenta anos. O Brasil se encon-
tra nesse grupo. Assim como a Índia, que levaria 88 anos para
esgotar sua receita nos níveis atuais. Algumas das nações mais
pobres emitem tão pouco carbono que, mantidas as taxas atuais,
MUDANÇAS CLIMÁTICAS 339

levariam muitos séculos para usar toda a sua receita. Numa


das extremidades do espectro, a pequena nação africana de
Burquina Faso levaria 2.892 anos para usar toda a sua receita-
o que significa que, num mercado internacional de limitação e
comércio, seria capaz de vender grande parte de sua quota para
as nações que terão mais dificuldade para cumprir as metas.
Fora a questão de se as nações ricas conseguiriam sujeitar-se
de maneira realista ao método das quotas equitativas per capita,
uma outra objeção a essa abordagem é que, se a população de
um país crescer, então esse país receberá um quinhão maior;
ao passo que o quinhão de todos os outros diminuirá porque o
nível total permissível de emissões tem de continuar constante.
Portanto, um país com uma população em rápido crescimento
impõe um fardo a outros países, obrigando-os a reduzir ainda
mais suas emissões. Seria melhor ter um sistema que desse aos
países um incentivo para desacelerar o crescimento popula-
cional. Conseguiríamos fazer isso estabelecendo quinhões
nacionais vinculados à população atual, em vez de deixá-los
variar com o aumento da população. No entanto, já que países
diferentes têm proporções diferentes de jovens prestes a chegar
à idade reprodutiva, essa cláusula provocaria maiores priva-
ções em países com populações mais jovens do que naqueles
que têm populações mais maduras. Esse problema poderia ser
evitado se os quinhões nacionais se baseassem numa estimativa
da população numa data futura. A Divisão de População do
Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações
Unidas publica previsões da quantidade de habitantes que cada
nação terá em 2050. Usar essas cifras como base para a divisão
per capita encorajaria os países a tentar manter-se abaixo do
tamanho populacional previsto, pois qualquer país que conse-
guisse fazer isso teria um quinhão por pessoa maior do que seria
com base em sua população atual. Por outro lado, o país teria
uma quota de emissão por residente legal reduzida se seu cresci-
mento populacional excedesse a previsão da ONU.
340 ÉTICA PRÁTICA

Luxo versus subsistência


Em A Theory of justice [Uma teoria da justiça], talvez a
obra mais influente a respeito da justiça publicada no século xx,
John Rawls argumentou que, se o desvio de mais recursos para
aqueles que estão em pior situação fizer com que ela melhore,
então é isso que a justiça exige que façamos. Na Convenção-
-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de
1992, a importância de favorecer quem estava em pior situação
foi reconhecida por uma cláusula que especificava que os países
signatários da convenção "têm o direito e o dever de promover o
desenvolvimento sustentável". Aceita-se a importância do desen-
volvimento dos países pobres, mas o direito ao desenvolvimento
é limitado pela necessidade de que ele seja sustentável. Os países
do mundo, portanto, têm, de acordo com os termos da conven-
ção, "responsabilidades comuns, mas diferentes".
Em 1993, o filósofo Henry Shue argumentou que uma
divisão justa das quotas para emissão de gases do efeito estufa
distinguiria as "emissões de subsistência" das "emissões de luxo",
para que o metano produzido por arrozais em países pobres não
tivesse o mesmo valor de emissões produzidas por veículos de
passeio de grande porte utilizados em nações ricas. Num debate
sobre as mudanças climáticas durante uma Assembleia Geral
das Nações Unidas, em 1997, um diplomata da China usou a
mesma linguagem, dizendo que as "emissões de subsistência"
e as "emissões de desenvolvimento" de países pobres deveriam
ser toleradas por acordos futuros, ao passo que as "emissões
de luxo" dos países ricos deveriam ser limitadas. Quer se opte
por um princípio de justiça igualitária, rawlsiana ou utilitarista,
tem-se algo difícil de negar.
Fazer a distinção entre emissões de luxo e subsistência
demonstra de modo convincente que Burquina Faso não tem
obrigação alguma de limitar as emissões que ajudem em seu
desenvolvimento - mas, até aí, como já vimos, isso também
ficava evidente com a aplicação do princípio de quotas equita-
tivas per capita. Contudo, a distinção entre emissões de luxo
MUDANÇAS CLIMATICAS 341

e subsistência não tem muita serventia para a China, pots p


existem mais chineses levando um estilo de vida opulento - e
que, portanto, são responsáveis por um nível elevado de emissões
- do que, por exemplo, de alemães. Há que se admitir que todos
os alemães são responsáveis por um nível elevado de emissões,
enquanto apenas uma pequena porção de chineses o são, mas, se
a China pede aos países ricos que restrinjam suas "emissões de
luxo", dificilmente pode ignorar as emissões de luxo produzidas
por sua própria elite.

Uma forma de agressão?


Todos os três princípios que discutimos têm algo em seu fa-
vor, e a escolha entre um e outros é difícil. Poderíamos tentar
combiná-los, modificando a ideia fundamental de quotas equita-
tivas per capita ao ponderá-la com as contribuições históricas e a
necessidade de um país de se desenvolver e propiciar a todos os
seus cidadãos os meios para alcançar um padrão mínimo de vida.
Sem entrar nas complexidades de possíveis combinações, fica cla-
ro que, segundo qualquer um desses princípios, ou qualquer com-
binação deles, as nações ricas não têm como justificar sua contínua
e elevada produção de gases do efeito estufa. Não é possível ima-
ginar um princípio ético plausível que torne essa justificativa pos-
sível. Podemos concluir, portanto, que estão fazendo algum mal.
Qual seria exatamente a natureza desse mal? Numa confe-
rência de cúpula da União Africana em 2007, o presidente de
Uganda, Yoweri Museveni, disse às nações da Europa e da
América do Norte: "Vocês nos agridem ao provocar o aqueci-
mento global [.. .]. O Alasca provavelmente permitirá a agricul-
tura, a Sibéria provavelmente permitirá a agricultura, mas o
que será da África?". Já vimos que Museveni se referia a fatos
essencialmente corretos. Não obstante, espanta-nos que ele
tenha usado o termo "agredir". Será que ele tem razão?
Quando pensamos em "agressão", imaginamos soldados
cruzando uma fronteira ou aviões bombardeando posições inimi-
gas. Ao emitir níveis elevados de gases do efeito estufa, as nações
342 ÉTICA PRÁTICA

ricas não estão atacando deliberadamente um outro país, mas


suas ações podem ser ainda mais devastadoras que as formas
convencionais de guerra de agressão. Graças ao que as nações
ricas estão fazendo, as terras que hoje são produtivas acaba-
rão inférteis, geleiras que durante milênios alimentaram rios
desaparecerão, o mar tomará campos férteis, doenças tropicais
se disseminarão, e as pessoas morrerão de fome ou se tornarão
refugiadas. Faz pelo menos vinte anos que os países ricos sabem
que suas ações trazem consigo o risco de provocar esses efeitos; e,
desde aproximadamente a primeira década do século XXI, sabem
que suas ações provavelmente terão esses efeitos. O fato de esses
males serem um efeito colateral indesejado, porém inevitável da
busca por objetivos normalmente inócuos, como dar às pessoas
o estilo de vida que desejam, não é justificativa para provocar
esses males. De acordo com a doutrina do duplo efeito, provocar
conscientemente o mal pode ser justificável se o mal não for
a intenção, se o objetivo for suficientemente importante para
contrabalançar o mal causado e se não houver outra maneira de
chegar ao objetivo sem provocar um mal de, no mínimo, igual
intensidade. No caso do aquecimento global, porém, ocorre o
inverso: o mal causado excede bastante o bem obtido. O presi-
dente dos Estados Unidos, George W. Bush, admitiu isso logo
no começo de seu mandado ao responder, quando lhe pergun-
taram se faria alguma coisa a respeito do aquecimento global:
"Não faremos nada que prejudique nossa economia, porque em
primeiro lugar vêm as pessoas que vivem nos Estados Unidos".
Logo em seguida, perguntaram a Ari Fleischer, porta-voz de
Bush, durante uma coletiva de imprensa, se o presidente pediria
aos motoristas para reduzirem pronunciadamente o consumo de
combustível, e Fleischer respondeu: "De jeito nenhum. O presi-
dente acredita que esse é o modo de vida norte-americano, e que
o objetivo de quem estabelece as diretrizes deve ser proteger o
modo de vida norte-americano". Esses comentários sugerem que
os Estados Unidos estavam ameaçando as vidas de centenas de
milhões de pessoas porque seu líder priorizava mais a preservação
MUDANÇAS CLIMÁTICAS 343

dos interesses econômicos de seus cidadãos - e seu direito de


queimar quanto combustível fóssil quisessem - do que a sobre-
vivência de pessoas fora dos Estados Unidos. Apesar de George
W. Bush não estar mais no poder, a menos que os Estados
Unidos mudem drasticamente seu ponto de vista a respeito das
emissões, essa percepção continuará verdadeira. Pode-se dizer o
mesmo a respeito de outras nações desenvolvidas, mesmo que
seus líderes sejam mais cuidadosos em suas declarações.
O que estamos fazendo às pessoas mais ameaçadas pelo
aquecimento global, portanto, tem impacto semelhante ao de
travar com elas uma guerra de agressão. A motivação é diferente,
mas isso pouco lhes serve de consolo. Além do mais, já que
sabemos o que estamos fazendo e, mesmo assim, não deixamos
de fazê-lo, não nos podemos esquivar da responsabilidade por
isso. Somos culpáveis pelo mal que causamos a essa gente.

O que os indivíduos devem fazer


A pergunta seguinte a fazer é: que tipo de obrigação isso
nos impõe como indivíduos e cidadãos de nações culpáveis?
Quando examinávamos nossas responsabilidades pessoais como
indivíduos ricos num mundo em que um bilhão de pessoas
vivem na extrema pobreza, a resposta era clara. Podemos muito
bem tentar mudar a atitude de nosso governo, solicitando-lhe
que aumente o auxílio enviado aos pobres do mundo e tornando
esse auxílio o mais eficaz possível, mas também podemos e
devemos agir por conta própria, mesmo se- ou especificamente
se- o governo não cumprir suas obrigações. Enquanto for possí-
vel, com nossas doações a organizações humanitárias, impedir
que algo muito ruim aconteça sem sacrificarmos algo de impor-
tância moral comparável para nós mesmos, então doar dinheiro
para essas organizações é o que devemos fazer. Parece ser essa a
situação: uma determinada doação pode ter um impacto signifi-
cativo e discernível, não sobre o problema da pobreza como um
todo, mas sobre uma única criança e sua família. Pode-se dizer
o mesmo a respeito das mudanças climáticas?
344 ÉTICA PRATICA

À primeira vista, parece que sim. Imagine que, sendo o


típico norte-americano, eu seja pessoalmente responsável por
emitir o equivalente a vinte toneladas de gás carbônico por ano.
Uso condicionadores de ar para refrescar minha casa no verão, e
a eletricidade vem em grande parte de usinas termelétricas que
queimam carvão, e uso diesel para aquecê-la no inverno. Minha
dieta é rica em carne e laticínios, tenho um carro e vou para a
Flórida de avião nas férias de inverno. Aí começo a me preocu-
par com as mudanças climáticas, e passo a ingerir alimentos
de origem basicamente vegetal, melhoro o isolamento térmico
de minha casa, instalo painéis solares para gerar eletricidade e
aquecer o ambiente e a água, troco o carro pela bicicleta ou
o trem e começo a passar as férias em lugares mais próximos
de onde moro. Surpreendentemente, consigo reduzir minhas
emissões de gases do efeito estufa a duas toneladas por ano.
A mudança no meu estilo de vida terá um impacto discernível
e significativo para alguém? Certamente não terá um impacto
detectável. Mesmo supondo que o resultado de minhas ações
serão dezoito toneladas a menos de gás carbônico na atmosfera
a cada ano, essa quantidade é muito pequena para ter um efeito
discernível. Não estou dizendo que não terá efeito algum, e sim
que não há como saber qual seria esse efeito, se houvesse um.
Muitas vezes nos vemos diante de ações que parecem
erradas, mesmo que não seja óbvio se terão consequências ruins.
Um dos exemplos prediletos dos filósofos é o de atravessar um
belo gramado por um atalho. Imagine que todos nós pouparía-
mos alguns segundos tomando o atalho, mas nenhum de nós
quer ver o gramado danificado. Ainda assim, que diferença fará
se eu tomar o atalho só desta vez? A grama não demonstrará
ter sofrido nenhum estrago perceptível se apenas uma pessoa
pisoteá-la. A resposta usual a isso é: "E se todos fizessem a
mesma coisa?". Se todos o fizessem, naturalmente, uma trilha
feia e lamacenta se formaria, e nenhum de nós quer ver isso.
A sugestão é: já que é ruim se todos o fizerem, deve ser errado
que eu o faça.
MUDANÇAS CLIMÁTICAS 345

"E se todos fizessem a mesma coisa?" nem sempre é uma boa


objeção a uma ação. "E se todos se tornassem filósofos? Morrería-
mos todos de fome!" não é um bom motivo para alguém não se
tornar filósofo, desde que saibamos que não há a menor chance
de todos se tornarem filósofos. Mesmo que uma quantidade sufi-
ciente de outras pessoas quisesse fazer o que estou fazendo para
provocar a consequência ruim - como no exemplo da travessia
do gramado -, não fica claro se "e se todos fizessem a mesma
coisa?" demonstra que uma ação seja errada. Seria errado eu atra-
vessar o gramado porque poderia dar um mau exemplo às outras
pessoas, e, portanto, aumentaria as chances de todos fazerem a
mesma coisa? E se for tarde da noite e não houver mais ninguém
por perto? Seria errado porque minha pegada sobre a grama fará
uma contribuição causal, mesmo que pequena, ao processo de
erosão do gramado? Imagine que eu tenha estudado a intensida-
de de tráfego que o gramado seja capaz de suportar e descoberto
que ele aguenta a passagem de até dez pessoas por dia sem apre-
sentar sinais de erosão. Também sei que não mais do que seis
pessoas o atravessam diariamente. Desde que eu só o faça quan-
do menos de dez pessoas o atravessarem num determinado dia, e
desde que eu o faça quando ninguém estiver olhando, para não
influenciar outras pessoas a atravessá-lo, o fato de eu pisar na
grama não teria a menor consequência danosa. Eu ainda estaria
errado ao fazê-lo porque seria ruim se todos o fizessem?
Nesse ponto, os consequencialistas e não consequencialis-
tas divergem. O utilitarista de atos que julga cada ato de acordo
com suas consequências diria que, se fosse possível ter realmente
certeza de que pisar na grama não teria consequências danosas,
não seria errado fazê-lo. O utilitarista de regras poderia dizer
que, já que a melhor regra que todos poderiam seguir nessas
circunstâncias seria "não atravessar o gramado", seria errado se
eu o fizesse, mesmo que, ao fazê-lo, eu não causasse consequên-
cias ruins. Um kantiano também poderia rejeitar a travessia do
gramado porque Kant afirmou que, se não posso formular a
máxima de minha ação como uma lei universal, então esta deve
346 ÉTICA PRATICA

estar errada. A questão difícil para os utilitaristas de regras e


kantianos, porém, é como formular a regra ou máxima que deva
ser universalizada. É verdade que "atravesse o gramado sempre
que isso for conveniente para você", se cumprida por boa parte
das pessoas, acabaria danificando o gramado, e já que o valorizo
intacto, não poderia formulá-la como lei universal. E quanto a
"atravesse o gramado toda vez que, ao fazê-lo, não estabeleça
um exemplo ruim nem estrague a grama"? Se pudermos formu-
lar nossas regras ou máximas com tamanha especificidade,
então, como demonstrou David Lyons em seu livro Forms and
Limits of Utilitarianism [Formas e limites do utilitarismo], o
utilitarismo de regras torna-se indistinguível do utilitarismo de
atos - ou seja, os utilitaristas de regras aprovariam as mesmas
ações que os utilitaristas de atos aprovariam e desaprovariam
aquelas que os utilitaristas de atos também desaprovariam. R.
M. Hare fez alegação semelhante a respeito do apelo kantiano à
ideia de lei universal, argumentando que esse princípio orienta
o utilitarismo.
Em Ideal Code, Real World [Código ideal, mundo real],
Brad Hooker defende uma versão do utilitarismo de regras que
crie uma barreira contra a criação de regras demasiadamente
complicadas. Ele sustenta que agimos de maneira errada quando
contrariamos uma regra que faria parte do regulamento que,
se internalizado pela avassaladora maioria da população, teria as
melhores consequências. Se criarmos regras muito específicas,
as pessoas as julgarão demasiadamente difíceis de internalizar
ou seguir, e o custo de educar as pessoas para seguir as regras
seria muito elevado. E já que, na opinião de Hooker, o código
deve ser conhecido e divulgado publicamente, é difícil imaginar
que uma regra como "só atravesse o gramado se puder fazê-lo
em segredo" poderia fazer parte do melhor código moral, pois
aí todos saberiam que as travessias "secretas" do gramado seriam
permitidas, e uma quantidade excessiva de pessoas o atravessaria.
Christopher Kutz examina essas questões em seu livro
Complicity: Ethics and Law for a Collective Age [Cumplicidade:
MUDANÇAS CLIMÁTICAS 347

ética e lei para uma idade coletiva], e sugere o que ele chama de
Princípio da Cumplicidade:

Sou responsável pelo que fazem as outras pessoas quando parti-


cipo intencionalmente do malfeito ou do mal que tal ato causa.

Esse princípio não é consequencialista, afirma Kutz, pois


me torna responsável independentemente da real contribuição
que eu possa fazer. Como exemplo de cumplicidade, ele consi-
dera a emissão de CFC - clorofluorcarbonetos -, os gases que
danificam a camada de ozônio e aumentam o buraco que há
nela, provocando maior incidência de câncer de pele em muitas
regiões do mundo. Apesar de o problema do buraco na camada
de ozônio ser semelhante em vários aspectos ao problema das
mudanças climáticas - emissões individuais oriundas de várias
nações estavam danificando a atmosfera, para prejuízo de todos -,
o ozônio era danificado por uma categoria de gases muito mais
específica e significativamente menos importante, usada geral-
mente em refrigeradores e alguns condicionadores de ar. Portan-
to, foi muito mais fácil chegar a um acordo internacional para
interromper o uso desses gases, obtido pelo Protocolo de Mon-
treal, em 1987, que concedeu aos países em desenvolvimento
um período maior que o das nações industrializadas para se li-
vrar dos CFC. Kutz se concentra num único motorista que utiliza
um líquido refrigerante a base de CFC no condicionador de ar de
seu carro. Ele estaria fazendo algo errado? Kutz afirma que, em-
bora não exista uma vítima clara do uso que o motorista faz do
CFC, "os indivíduos se devem imaginar inclusivamente respon-
sáveis por aquilo que fazem em conjunto". Se, coletivamente,
causamos algum mal, então - muito embora não tenhamos deli-
beradamente nos disposto a fazer algo em conjunto, e a contribui-
ção de um único indivíduo talvez não afete significativamente o
mal causado-, cada um de nós é cúmplice do malfeito e respon-
sável por ele.
348 ÉTICA PRÁTICA

Contudo, não está claro se precisamos de um princípio de


cumplicidade especial e não consequencialista do tipo proposto
por Kutz. Nem o dano à camada de ozônio nem o aquecimento
global se assemelham ao caso do gramado que aguentaria ser
pisoteado por mais algumas pessoas sem sofrer dano. Quando
soubemos do perigo oferecido pelos CFC e os gases do efeito
estufa, já havíamos cruzado o limiar de dano. Nossas emissões
de CFC estavam - e nossas emissões de gases do efeito estufa
ainda estão - piorando a situação. Naturalmente, o dano é
muito maior que o de estragar um gramado. Isso sugere que
não precisamos divergir do consequencialismo para mostrar o
que há de errado na emissão de gases nocivos para a atmosfera.
Em Reasons and Persons [Razões e pessoas], Derek Parfit destaca
que nossa tendência é pensar que só podemos prejudicar seria-
mente as pessoas se alguém tiver razão para apresentar uma
queixa grave. Pode ser um resquício das condições de nossa
existência primeva, quando, como mencionado no começo deste
capítulo, se fizéssemos mal a alguém, geralmente ficava evidente
que o havíamos feito, e nada que fizéssemos provavelmente
afetaria uma quantidade muito grande de pessoas. Hoje nossas
ações podem afetar milhões, talvez bilhões de pessoas, o que
significa que podemos fazer um mal tão difuso que nenhum
indivíduo possa alegar, com plausibilidade, ter sido seriamente
afetado por ele.
Jonathan Glover apresenta um exemplo claro de como
ignorar males imperceptíveis pode ser enganoso. Glover imagina
que, numa aldeia pobre, cem pessoas estejam prestes a almoçar.
Cada uma delas segura uma tigela contendo cem feijões.
De repente, cem bandidos esfomeados atacam a aldeia. Cada
bandido toma a tigela de um aldeão, come os feijões e foge
a galope. Na semana seguinte, os bandidos planejam repetir
a ação, mas um deles é açoitado pelo escrúpulo de deixar
camponeses pobres famintos. As dúvidas são aplacadas por
outro bandido, que propõe que cada um deles não tire mais
do que um feijão da tigela de cada aldeão. Já que não há como
MUDANÇAS CLIMÁTICAS 349

a perda de um feijão fazer uma diferença perceptível para um


aldeão- ninguém vai reparar se está comendo 99 ou 100 feijões
-, nenhum bandido terá piorado a vida de ninguém. E, assim,
os bandidos atacam a aldeia, mas, em vez de simplesmente tirar
a tigela inteira das mãos de um aldeão, cada bandido vai até
cada um dos cem aldeões e tira apenas um feijão de cada tigela.
Os aldeões se veem tão famintos quanto estavam na semana
anterior, mas nenhum bandido de barriga cheia perderá o sono,
sabendo que nenhum deles fez mal a ninguém.
O exemplo de Glover mostra o absurdo de desconsiderar
males diminutos. Mesmo que cada um de nós não faça uma
diferença perceptível, somos individualmente responsáveis por
uma parte do prejuízo total que provocamos coletivamente.
Se, agindo em conjunto com 1 bilhão de outras pessoas ricas,
cada um de nós emite vinte toneladas de gás carbônico, cada um
de nós contribui imperceptivelmente para as mudanças climáti-
cas, e, portanto, inflige um mal imperceptível a outras pessoas.
Mas ainda estamos, coletivamente, infligindo um mal enorme a
um grande número de pessoas e temos de arcar com nosso qui-
nhão de responsabilidade por isso. De acordo com Kutz, pode-
mos encarar o equívoco do que estamos fazendo nos termos de
um princípio de cumplicidade não consequencialista, mas tam-
bém podemos encará-la, ao menos em casos desse tipo, como
algo consistente com a aplicação estrita do consequencialismo.
Até este ponto, presumimos que a mudança no meu estilo
de vida e no de muitas outras pessoas que agem também por
vontade própria levará, com o passar do tempo, a uma quanti-
dade menor de gás carbônico na atmosfera do que se não tivés-
semos reduzido nossas emissões. Parece óbvio, mas, como vimos
anteriormente, ]ames Hansen destacou que, se o governo adotar
um sistema de limitação e comércio para a redução de emissões
de carbono, os cortes individuais nas emissões de carbono
podem não ter efeito nenhum sobre a redução das emissões.
Imagine que meu governo se comprometa a reduzir os gases
do efeito estufa em, digamos, 50% até 2050. Para conseguir
350 ÉTICA PRATICA

isso, o governo calcula a quantidade de carbono que pode ser


emitida por ano e leiloa licenças que os grandes emissores preci-
sam comprar para continuar a operar suas usinas ou fábricas.
Se mais pessoas instalarem painéis solares e uma quantidade
menor de termelétricas for necessária, as empresas de energia
não precisarão comprar tantas licenças; ou, se já as compraram,
terão licenças excedentes para vender para quem delas precise.
O preço das licenças cairia, e, com isso, também o custo dos
produtos com elevada emissão de carbono. Os consumidores
mais preocupados em poupar dinheiro do que em fazer o que
é certo comprarão mais desses produtos, e, se o mercado de
emissões for bem projetado e implementado, as emissões ainda
atingirão a meta estabelecida pelo governo. A economia nas
emissões provocada pela mudança no meu estilo de vida não
terá provocado a redução das emissões totais.
Poderia ainda haver benefícios na mudança voluntá-
ria de estilo de vida que reduz as emissões, mesmo num
sistema de limitação e comércio? As pessoas que consomem
menos demonstram que podemos levar vidas mais simples
neste planeta. Se a meta estabelecida pelo governo para a
redução dos gases do efeito estufa for facilmente alcançada,
isso poderia convencer o governo a estabelecer uma nova meta
mais ambiciosa. Quando mudam seu estilo de vida, as pessoas
estão expressando seus valores e estimulando outras a reconsi-
derar os seus. Isso poderia levar a uma preocupação maior com
o meio ambiente e com todos que dividem o planeta conosco.
Mudanças no consumo também poderiam reduzir o lucro de
setores que produzem muito carbono e, portanto, diminuir
sua capacidade de fazer lobby junto ao governo. Isso poderia
ser particularmente importante no caso de um setor politica-
mente muito influente, como o da pecuária de corte. Rebanhos
bovinos e ovinos emitem níveis elevados de metano e, por isso,
a pecuária contribui bastante para as mudanças climáticas -
com efeito, a pecuária mundial contribui mais para o aqueci-
mento global do que todos os meios de transporte combinados.
MUDANÇAS CLIMÁTICAS 351

Por causa disso, em 2010, a Organização das Nações Unidas


para Alimentação e Agricultura (FAO) propôs um imposto sobre
a pecuária. Não obstante, em muitos países os pecuaristas estão
fazendo lobby para que sejam liberados do mercado de carbono e,
em alguns deles, no momento em que escrevo, esse empenho
lobista parece estar obtendo um êxito considerável. Se de fato
forem bem-sucedidos, um boicote voluntário aos produtos de
origem bovina e ovina seria a única maneira de reduzir a grande
quantidade de emissões produzida por esses setores.
Para os não consequencialistas, o princípio da cumplici-
dade é relevante nesse caso. Se os mercados de carbono governa-
mentais não reduzirem as emissões de gases do efeito estufa para
que cesse o risco futuro de prejudicar seriamente os climas do
planeta - e, no momento em que escrevo, nenhum país imple-
mentou um mercado capaz de reduzir os gases do efeito estufa
a ponto de eliminar esse risco -, então, continuar a emitir gases
do efeito estufa, até mesmo num nível consistente com o plano
do governo, ainda é ser partícipe da prática errada que fará mal
a outras pessoas. Um não consequencialista poderia, portanto,
sustentar que nossa participação internacional nessa prática é
errada, mesmo que a redução de emissões individuais a zero
não tivesse impacto nenhum sobre a quantidade total de gases
do efeito estufa introduzidos na atmosfera. É a abordagem do
tipo "minhas mãos continuam limpas, de um jeito ou de outro,
mesmo que isso não faça a menor diferença" difícil de justificar
com base no consequencialismo direto, mas alguns movimentos
bem-sucedidos em prol da mudança têm sua origem nas ações
daqueles que resistem à maldade sem de fato dar a si mesmos
a oportunidade de fazer a diferença. Uma postura firmemente
não consequencialista pode ter boas consequências. Talvez a
noção de que é objetável ser cúmplice de uma prática nociva,
mesmo que nossas ações não façam diferença alguma, tenha
surgido porque, às vezes, as consequências serão melhores se as
pessoas agirem como se fossem não consequencialistas.
352 ÉTICA PRATICA

Uma coisa com a qual todos podem concordar é que, além


de sermos responsáveis pelo mal que causamos com nossas emis-
sões, coletiva ou individualmente, temos a obrigação de tentar
mudar a política de nosso governo da maneira que for melhor
para desacelerar a velocidade das mudanças climáticas. Como já
vimos, por não conseguirem reduzir suas emissões de gases do
efeito estufa, as nações ricas estão dolosamente fazendo mal a
outras pessoas numa escala incomensurável. Há espaço para opi-
niões divergentes quanto ao melhor método para reduzir as emis-
sões. Pode envolver a adoção de um mercado de carbono ou de
um imposto sobre o carbono, para que todos tenham um forte
incentivo financeiro para evitar os produtos que emitem gases do
efeito estufa. Ao atribuir um preço às emissões de carbono - o
que, idealmente, implicaria a inclusão no preço das atividades
que emitem carbono o custo total que essas atividades impõem a
terceiros prejudicados pelas mudanças climáticas -, criamos um
incentivo para buscar novas maneiras de desenvolver formas de
energia eficientes e que emitem pouco carbono para substituir o
uso de combustíveis fósseis, simplesmente porque são mais bara-
tas. Também podemos instar os governos a financiar a pesquisa
e o desenvolvimento dessas formas de energia. Repare, no entan-
to, que, mesmo se encontrássemos um substituto para os com-
bustíveis fósseis, não teríamos sequer arranhado o problema das
emissões de metano produzidas pelos rebanhos bovinos e ovinos.
Portanto, essas emissões também precisam ser tributadas ou in-
cluídas num mercado de carbono.
Dada a gravidade dos riscos que nosso planeta e toda a sua
população enfrentarão por causa das mudanças climáticas no
decorrer do próximo século, a intensidade dos protestos contra a
inação tem sido, até o momento, muito baixa. Há uma necessi-
dade urgente de melhorar a compreensão das pessoas sobre o que
provavelmente acontecerá se não começarmos a reduzir profunda
e rapidamente nossas emissões de gases do efeito estufa. Nesta
situação, não devemos ser espectadores passivos.
10

O meio ambiente

Ao longo de ravinas cheias de matas e gargantas rochosas,


um rio corre para o mar. A comissão estadual de hidreletri-
cidade vê as águas que fluem como energia não aproveitada.
A construção de uma represa em uma das gargantas empre-
garia temporariamente mil pessoas durante três anos e geraria
empregos permanentes para vinte ou trinta. Em termos econô-
micos, a represa armazenaria água suficiente para garantir que,
nos próximos dez anos, o estado pudesse satisfazer suas neces-
sidades energéticas. Isso incentivaria a instalação de indústrias
grandes consumidoras de energia, com o que se estaria fomen-
tando a geração de empregos e o crescimento econômico.
O acidentado terreno do vale do rio só é acessível aos que
estejam razoavelmente em boas condições físicas, mas, ainda as-
sim, trata-se de um lugar excelente para os que gostam de cami-
nhar pelas matas. O rio atrai aqueles que gostam de se aventurar
de barco pelas corredeiras. No coração do vale existem inúmeros
pinheiros raros, sendo que muitas das árvores têm mais de mil
anos. Os vales e desfiladeiros abrigam muitos pássaros e ani-
mais, inclusive uma espécie em risco de extinção: um pequeno
marsupial que poucas vezes foi encontrado fora do vale. Pode ser
que ali também existam outras plantas e espécies animais raras,
mas ainda não se sabe ao certo, pois os cientistas ainda não in-
vestigaram totalmente a região.
A represa deve ser construída? Esse é um exemplo de uma
situação na qual devemos fazer uma opção entre conjuntos
354 ÉTICA PRÁTICA

muito diferentes de valores. A descrição baseia-se, livremente,


na proposta de construção de uma represa no rio Franklin,
no sudoeste da Tasmânia, uma ilha que faz parte do Estado
australiano. Relato o resultado dessa proposta no Capítulo 11,
mas, de propósito, alterei alguns pormenores, e a descrição acima
pode ser vista como um caso hipotético. Muitos outros exemplos
teriam colocado igualmente bem a oposição entre valores: derru-
bar florestas virgens, construir uma fábrica de papel que lançará
poluentes nas águas costeiras ou abrir uma nova mina na orla de
um parque nacional. Neste capítulo, examinarei os valores que
estão na base dos debates sobre essas decisões, e o exemplo que
apresentei pode servir de ponto de referência para esses debates.
Enfocarei, particularmente, os valores em jogo nas controvérsias
sobre a preservação das regiões incultas, pois essa é a questão
que torna mais evidentes os valores fundamentalmente diferen-
tes dos dois lados. Quando falamos sobre a inundação do vale de
um rio, a decisão à nossa frente é absolutamente clara.
Em termos gerais, podemos dizer que aqueles que se
posicionam favoravelmente à construção da represa estão valori-
zando a oferta de empregos e uma maior renda per capita para o
estado, em detrimento da preservação da natureza, das plantas
e dos animais (tanto os mais comuns quanto aqueles que estão
ameaçados de extinção), bem como das possíveis atividades
recreativas ao ar livre. Antes, porém, de começarmos a esmiuçar
os valores das pessoas que apoiariam a construção da represa e
daquelas que não o fariam, examinaremos brevemente as origens
de nossas atitudes modernas em relação ao mundo natural.

A tradição ocidental
As atitudes ocidentais diante da natureza brotaram de uma
mistura daquelas defendidas pelos hebreus, da maneira como
são apresentadas nos primeiros livros da Bíblia, e da filosofia da
Grécia Antiga, principalmente a de Aristóteles. Em contraste
com outras tradições da Antiguidade, por exemplo, as da Índia,
as tradições hebraicas e gregas fizeram do homem o centro do
O MEIO AMBIENTE 355

universo moral. Na verdade, em alguns aspectos, até isso dimi-


nui a importância que os seres humanos têm na tradição ociden-
tal, pois sugere que outros seres têm importância moral, mesmo
quando ela não é tão central. Durante boa parte da tradição
ocidental, porém, os seres humanos não são apenas o centro,
mas a totalidade das características moralmente significativas
deste mundo.
O relato bíblico da criação, no Gênesis, deixa bem clara
a concepção hebraica do lugar especial ocupado pelos seres
humanos no plano divino:

Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e


semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves
dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre
todos os répteis que se arrastem sobre a terra".
Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus,
criou o homem e a mulher.
Deus os abençoou: "Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei
a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as
aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a
terra".

Hoje, os cristãos debatem o significado dessa concessão de


"domínio". Os que se preocupam com o meio ambiente prefe-
rem interpretá-la como uma "administração"; ou seja, não como
uma licença para fazermos tudo o que quisermos com as outras
coisas vivas, mas sim como uma orientação para cuidarmos
delas, em nome de Deus, e responsáveis em nome de Deus pelo
modo como as tratamos. Essa interpretação, porém, quase não
encontra respaldo no texto; e, tendo em vista o exemplo dado
por Deus, quando afogou quase todos os animais da terra para
castigar os seres humanos por sua maldade, não admira que,
na opinião das pessoas, a inundação do simples vale de um rio
não deva ser motivo para preocupação. Depois do dilúvio, há
uma repetição da concessão de domínio, dessa vez numa lingua-
gem mais sinistra:
356 ÉTICA PRATICA

Vós sereis objeto de temor e de espanto para todo animal da terra,


toda ave do céu, tudo o que se arrasta sobre o solo e todos os
peixes do mar: eles vos são entregues.

A implicação é clara: agir de modo a provocar medo e terror


em todas as criaturas que se movem sobre a terra não constitui
um erro; na verdade, está de acordo com a lei de Deus.
Os mais influentes pensadores cristãos primitivos não
tinham dúvidas sobre como se deveria entender o domínio
exercido pelo homem. "Acaso Deus tem dó dos bois? ", pergun-
tou São Paulo em meio à discussão sobre uma ordem contida no
Velho Testamento, determinando que os bois deveriam descan-
sar no sabá. A pergunta, porém, é simplesmente retórica, pois
ele estava convencido de que a resposta só poderia ser negativa,
e que a explicação da ordem deveria dar-se nos termos de
algum benefício aos seres humanos. Santo Agostinho pensava
da mesma forma. Ele explica as intrigantes histórias do Novo
Testamento em que Jesus aparenta indiferença tanto com árvores
quanto com animais - amaldiçoando uma figueira à morte e
provocando o afogamento de um rebanho de porcos -, tendo
por finalidade nos ensinar que "abster-se de matar animais e
destruir plantas é o máximo de superstição".
Ao predominar no Império Romano, o cristianismo também
assimilou elementos da antiga atitude grega diante do mundo
natural. A influência grega foi levada para a filosofia cristã pelo
maior dos escolásticos medievais, santo Tomás de Aquino, cuja
obra de toda a vida foi a fusão da teologia cristã com o pensa-
mento de Aristóteles. Aristóteles via a natureza como uma hierar-
quia na qual os que têm menos capacidade de raciocínio existem
para o bem dos que têm mais:

As plantas existem para o bem dos animais, e estes, por sua vez,
existem para o bem do homem - os animais domésticos para o
seu uso e alimento, e os selvagens (ou seja, a maior parte deles)
para fornecer alimento e outros acessórios necessários à vida,
como as roupas e inúmeras ferramentas.
O MEIO AMBIENTE 357

Uma vez que a natureza não faz nada sem propósito ou em vão,
é inegavelmente verdadeiro que ela fez todos os animais para o
bem do homem.

Em sua principal obra, a Suma Teológica, santo Tomás de


Aquino seguiu esse trecho de Aristóteles quase ao pé da letra,
acrescentando, apenas, que o ponto de vista está de acordo com a
ordem divina que se encontra no Gênesis. Em sua classificação dos
pecados, santo Tomás só admite os que são contra Deus, contra nós
mesmos ou os nossos semelhantes. Não há possibilidade nenhuma
de se pecar contra os animais, ou contra o mundo natural.
Foi esse o pensamento da principal corrente do cristia-
nismo durante pelo menos dezoito séculos. Também existiram,
por certo, espíritos mais generosos, como Basílio, João Crisós-
tomo e Francisco de Assis, mas, na maior parte da história
cristã, eles não exerceram nenhum impacto significativo sobre a
tradição dominante. Convém, portanto, que enfatizemos essas
características, pois elas podem servir como termo de compa-
ração quando discutirmos as diferentes concepções do meio
ambiente natural.
De acordo com a tradição ocidental dominante, o mundo
natural existe para o benefício dos seres humanos. Deus deu a
eles o domínio sobre o mundo natural e não se importa com
a maneira como o tratamos. Os seres humanos são os únicos
membros moralmente importantes deste mundo. Em si,
a natureza não tem nenhum valor intrínseco, e a destruição de
plantas e animais não pode configurar um pecado, a menos que,
por essa destruição, façamos mal aos seres humanos.
Por mais terrível que seja essa tradição, ela não exclui o cui-
dado com a preservação da natureza, na medida em que esse
cuidado esteja associado ao bem-estar humano. O que, sem dú-
vida, pode ser muitas vezes o caso. Seria possível, dentro dos li-
mites da tradição ocidental dominante, opor-se à queima de
combustíveis fósseis, à destruição das florestas e ao gado emissor
de metano pelos riscos à saúde e ao bem-estar humanos em con-
358 ÉTICA PRATICA

sequência das alterações climáticas. Quanto aos argumentos so-


bre a preservação da vida selvagem, houve um tempo em que a
vida selvagem parecia um ermo, uma área inútil que precisava
ser limpa para tornar-se produtiva e valiosa. Mas agora uma me-
táfora diferente seria mais apropriada: os restos da verdadeira vida
selvagem são ilhas em meio ao mar de atividade humana que os
ameaça engolir. O que dá à vida selvagem valor por sua escassez,
conferindo base a um forte argumento pela preservação, mesmo
em termos de uma ética antropocêntrica. Esse argumento se tor-
na ainda mais forte quando assumimos um ponto de vista de
longo prazo. Vamos examinar, agora, esse aspecto imensamente
importante dos valores ambientais.

As futuras gerações
Uma floresta virgem é o produto de todos os milhões de
anos que se passaram desde o início da vida em nosso planeta.
Se ela for derrubada, outra floresta pode crescer em seu lugar,
mas a continuidade seria interrompida. O rompimento dos
ciclos naturais da vida das plantas e dos animais significa que
a floresta jamais será como teria sido se não fosse derrubada.
As vantagens decorrentes da derrubada da floresta - empre-
gos, lucros comerciais, ganhos de exportação, papel e papelão
mais baratos para as embalagens - são vantagens a curto prazo.
Mesmo que a floresta não seja derrubada, mas inundada para a
construção de uma represa que gere eletricidade, é provável que
os benefícios só perdurem por uma ou duas gerações; depois
disso, uma nova tecnologia tornará esses métodos de geração de
energia obsoletos. No entanto, uma vez que a floresta é derru-
bada ou inundada, sua ligação com o passado estará perdida
para sempre. Esse é um custo com o qual terão de arcar todas
as gerações que nos sucederem neste planeta. É por isso que os
ambientalistas estão certos quando se referem às florestas como
uma "herança mundial". É uma coisa que herdamos de nossos
ancestrais e que nós devemos preservar para os nossos descen-
dentes, se quisermos que eles não sejam privados dela.
O MEIO AMBIENTE 359

Em muitas sociedades humanas estáveis voltadas para


suas tradições, a cultura predominante coloca forte ênfase na
preservação. Nossa cultura, por outro lado, tem uma grande
dificuldade de admitir valores em longo prazo. É notório que os
políticos não conseguem enxergar além das próximas eleições,
mas, mesmo que o fizessem, seus assessores econômicos estariam
sempre lhes dizendo que qualquer coisa a ser ganha no futuro
deveria ser descontada a tal ponto que torne fácil negligenciar
por inteiro o futuro a longo prazo. Os economistas aprende-
ram a aplicar uma taxa de desconto a todos os bens futuros.
Em outras palavras, um milhão de dólares daqui a vinte anos
não terá o mesmo valor de um milhão de dólares hoje, mesmo
levando-se em conta a inflação. Os economistas descontarão o
valor do milhão de dólares a uma certa porcentagem, que em
geral corresponde às taxas de juros reais em longo prazo. Em
termos econômicos, isso faz sentido, pois, se hoje eu tivesse mil
dólares, poderia investi-los de modo que, em termos reais, vales-
sem mais daqui a vinte anos, mas o uso de uma taxa de desconto
significa também que os valores ganhos no futuro mais distante
serão muito baixos em comparação aos valores ganhos hoje.
Suponha que acreditemos que, em duzentos anos, as pessoas
estejam prontas para pagar um milhão de dólares (um milhão
de dólares de hoje, não um milhão inflacionados) para dispor
de um vale não degradado. Agora imagine que hoje podemos
lucrar cortando a floresta do vale, que nunca crescerá de novo.
Se aplicarmos uma taxa anual de desconto de 5%, composta
exponencialmente, o quão grande esse lucro teria de ser para
justificar a perda de um milhão de dólares em 2210? A reposta,
surpreendentemente, seria apenas sessenta dólares! Isso é tudo o
que vale um milhão em duzentos anos, a essa taxa de desconto.
Obviamente, se usarmos uma taxa e desconto de 5%, os valores
ganhos em mil anos no futuro praticamente não contam. Isso
não se deve a nenhuma incerteza sobre a existência, ou não, de
seres humanos ou outras criaturas sencientes habitando este
planeta na ocasião, mas simplesmente ao efeito cumulativo da
360 ÉTICA PRÁTICA

taxa de retorno aplicada ao dinheiro investido hoje. No entanto,


do ponto de vista dos valores sem preço e atemporais das flores-
tas, a aplicação de uma taxa de desconto nos dá a resposta
errada. Existem coisas que, depois de perdidas, não podem ser
recuperadas com dinheiro. Portanto, justificar a destruição de
uma antiga floresta mediante a alegação de que o resultado será
um aumento substancial das exportações é algo que não faz o
menor sentido, ainda que pudéssemos investir esses rendimen-
tos e aumentar seu valor ano após ano. Por mais que aumentás-
semos esse valor, ele jamais poderia voltar a comprar a ligação
com o passado representado pela floresta.
Esse argumento não mostra que não existe como justifi-
car a derrubada de uma floresta antiga; significa, na verdade,
que qualquer justificativa do tipo deve levar plenamente em
conta o valor das florestas para as gerações que habitarão o
planeta no futuro remoto, mas também no futuro mais imediato.
Esse valor estará, obviamente, ligado à importância cênica ou
biológica da floresta, mas, à medida que diminui a proporção
das verdadeiras terras virgens, cada uma de suas partes se torna
significativa, pois as oportunidades de se conhecer uma grande
extensão natural vão se tornando raras, e também diminuem as
probabilidades de se fazer uma seleção razoável das principais
formas de terras virgens a serem preservadas.
Poderemos ter a certeza de que as futuras gerações apreciarão
a natureza? Não serão mais felizes sentados em shopping centers
com ar condicionado, ou diante dos jogos de computador mais
sofisticados do mundo? É possível que sim, mas existem várias
razões para não atribuirmos grande importância a essa possibi-
lidade. Em primeiro lugar, a tendência tem seguido a direção
oposta: o apreço pela natureza nunca foi tão grande quanto hoje,
sobretudo nos países que superaram os problemas da pobreza e
da fome e têm relativamente poucas terras virgens remanescen-
tes em seu território. As extensões naturais são valorizadas como
uma coisa de imensa beleza e como um reservatório de conhe-
cimentos científicos a serem ainda adquiridos, por causa das
O MEIO AMBIENTE 361

oportunidades recreativas que oferecem e pelo fato de algumas


pessoas simplesmente gostarem de saber que ali ainda existe uma
coisa natural, relativamente intocada pela civilização moderna.
Se, como todos esperam, as futuras gerações forem capazes de
prover as necessidades básicas da maioria das pessoas, podemos
esperar que, nos próximos séculos, elas também passem a valori-
zar a natureza pelos mesmos motivos que nós a valorizamos.
Os argumentos em favor da preservação que se baseiam
na beleza das extensões naturais costumam ser tratados como
se quase não tivessem valor, por serem "simplesmente estéti-
cos" - ainda que não poupemos esforços para preservar os
tesouros artísticos de civilizações humanas antigas. É difícil
imaginar qualquer vantagem econômica que estaríamos dispos-
tos a aceitar como compensação adequada pela destruição das
obras do Louvre, por exemplo. Como poderíamos comparar o
valor estético da natureza com o dos quadros do museu francês?
Nesse ponto, é possível que os juízos se tornem inevitavelmente
subjetivos; logo, eu me reportarei às minhas próprias experiên-
cias. Já vi os quadros do Louvre, bem como os de muitos outros
museus da Europa e dos Estados Unidos. Acho que tenho um
razoável senso de apreciação das artes plásticas, mas ainda não
tive, em nenhum museu, experiências que satisfaçam o meu
senso estético com a intensidade com que isso acontece quando
caminho pelo pico de uma montanha rochosa, parando aqui e
ali para admirar abaixo a floresta de um vale, ou quando sento à
beira de um riacho que corre por sobre pequenas pedras cober-
tas de musgo, ao lado de samambaias gigantes que crescem
à sombra da cobertura da mata. Não acho que sou o único a
pensar assim - para muitas pessoas, as florestas são a fonte dos
maiores sentimentos de plenitude estética, algo que se aproxima
de uma intensidade espiritual.
Não obstante, talvez seja verdade que essa apreciação da
natureza não será compartilhada pelas pessoas que viverem
daqui a um ou dois séculos. Mas, se as florestas podem ser fonte
de tanta alegria e satisfação, isso seria uma grande perda. Além
362 ÉTICA PRATICA

disso, até certo ponto depende de nós que as futuras gerações


valorizem ou não os ambientes naturais; trata-se, pelo menos, de
uma decisão sobre a qual podemos exercer influência. Por nossa
preservação das áreas verdes estamos dando às gerações futuras
uma oportunidade e, por nossos livros e filmes, podemos criar
uma cultura capaz de ser transmitida aos nossos filhos, e a seus
filhos. Se achamos que um passeio pela floresta, com nossos
sentidos em harmonia com a apreciação dessa experiência, é
uma forma muito mais compensadora de passar o dia do que
ficar brincando com jogos de computador, ou se achamos que
levar a nossa comida e a nossa barraca numa mochila, para ficar
uma semana explorando uma floresta, faz muito mais pelo
caráter de uma pessoa do que ficar em casa assistindo à televisão
durante o mesmo número de dias, então devemos incentivar as
futuras gerações a viver em sintonia com a natureza.
Por último, se deixarmos intactas todas as extensões natu-
rais que hoje existem, as gerações futuras pelo menos terão a
opção de sair para ver um mundo que não foi criado pelos seres
humanos. Se destruirmos essas áreas naturais, essa opção deixa-
rá de existir para sempre. Assim como gastamos enormes fortu-
nas para preservar cidades como Veneza, ainda que as futuras
gerações talvez não demonstrem interesse por esses tesouros ar-
quitetônicos, devemos também preservar a natureza ainda que
exista a possibilidade de que as futuras gerações se interessem
muito pouco por ela. Desse modo, não lesaremos as futuras ge-
rações da mesma maneira que fomos lesados pelos atos impen-
sados das gerações passadas, que nos privaram da possibilidade
de conhecer animais como o dodô, a vaca-marinha de Steller, ou
o tilacino, o "tigre" marsupial da Tasmânia. Precisamos ter o
cuidado de não infligir perdas igualmente irreparáveis às gera-
ções que vierem depois de nós.
Por esse motivo, também, o esforço em mitigar o efeito
estufa, discutido no capítulo anterior, deve ser alvo da mais
alta prioridade. Pois, se por "extensões naturais" queremos nos
O MEIO AMBIENTE 363

referir àquelas partes do nosso planeta que ainda não foram


afetadas pela atividade humana, talvez já seja tarde demais: não
há mais extensões naturais em nosso planeta. O primeiro livro
popular a advertir sobre os riscos da mudança climática foi The
End of Nature [O fim da natureza], de Bill McKibben. Nele,
McKibben afirma: "Ao modificarmos as condições atmosféri-
cas, fazemos com que cada ponto da terra seja feito pelo homem,
artificial. Privamos a natureza de sua independência, e isso é
fatal para o seu significado. A independência da natureza é o
seu significado; sem ela, não existe nada além de nós". Esse
pensamento é profundamente perturbador. McKibben, porém,
não o desenvolve para sugerir que desistamos de nossos esforços
para reverter a tendência. É verdade que, como afirma o autor,
"vivemos num mundo pós-natural". Nada pode desfazer isso; o
clima do nosso planeta está sob a nossa influência. Ainda temos,
porém, muitas coisas que valorizamos na natureza, e talvez
ainda seja possível salvar o que restou.
Portanto, uma ética centrada no homem pode ser a base
de poderosos argumentos a favor do que poderíamos chamar de
"valores ambientais". Essa ética não implica que o cresci-
mento econômico seja mais importante do que a preserva-
ção da natureza. À luz de nossa discussão sobre o especismo,
no Capítulo 3, deve também ficar claro que é errado nos
limitarmos a uma ética centrada no ser humano. Precisamos,
agora, examinar os desafios mais fundamentais que se colocam
a essa abordagem ocidental tradicional das questões ambientais.

Existe valor além dos seres sencientes?


Ainda que a condução de alguns debates sobre as mais
importantes questões ambientais possa ocorrer com apelo exclu-
sivo aos interesses a longo prazo de nossa própria espécie, em
qualquer abordagem séria dos valores ambientais, um problema
central será a questão do valor intrínseco. Já vimos que é arbitrá-
rio defender o ponto de vista de que só os seres humanos têm
valor intrínseco. Se encontramos valor nas experiências humanas
364 ÉTICA PRATICA

conscientes, não podemos negar que exista valor em pelo menos


algumas experiências de seres não humanos. Até onde chega
esse valor? A todos, mas unicamente, aos seres sencientes? Ou
extrapola a fronteira da senciência?
Algumas observações sobre a noção de "valor intrínseco" nos
ajudarão a abordar essa questão. Uma coisa tem valor intrínseco
se for boa ou desejável em si, em contraste com o "valor instru-
mental", como um meio para a obtenção de algum outro fim
ou objetivo. A nossa própria felicidade, por exemplo, é de valor
intrínseco, pelo menos para a maior parte de nós, no sentido de
que a desejamos por si mesma. Por outro lado, o dinheiro só tem
um valor instrumental. É algo que desejamos pelas coisas que
nos permite comprar. Se estivéssemos abandonados numa ilha
deserta, não o desejaríamos. A felicidade, no entanto, seria tão
importante numa ilha deserta quanto em qualquer outro lugar.
Voltemos a examinar, por um momento, o problema da
construção da represa no rio que descrevemos no início deste
capítulo. Se fosse para tomar a decisão exclusivamente com
base nos interesses humanos, confrontaríamos as vantagens
econômicas da represa para os cidadãos com a perda para os
que gostam de andar pelas matas, para cientistas e outros,
hoje e no futuro, que valorizam a preservação do rio em seu
estado natural. Já vimos que, pelo fato de esse cálculo incluir
um número indeterminado de gerações futuras, a perda do rio
terá um custo muito maior do que imaginaríamos a princípio.
Mesmo assim, se levarmos o fundamento de nossa decisão além
dos interesses dos seres humanos, teremos muito mais elementos
contrários às vantagens econômicas da construção da represa.
Nesses cálculos devem agora entrar os interesses de todos os
animais que vivem na área a ser inundada. Quase todos os
animais que vivem na área inundada vão morrer: alguns afoga-
dos, outros de fome. Uns poucos talvez consigam mudar-se para
uma região vizinha apropriada, mas as regiões selvagens não
são lugares cheios de nichos vazios à espera de ocupantes. Se
existe um território capaz de prover a subsistência de um animal
O MEIO AMBIENTE 365

nativo, é bem provável que já esteja ocupado. Nem afogamento


nem fome são maneiras agradáveis de morrer, e ao sofrimento
implícito nessas mortes não devemos atribuir, como já vimos,
uma importância menor do que a que atribuiríamos à mesma
quantidade de sofrimento experimentado por seres humanos.
Esses fatos aumentarão significativamente o peso dos argumen-
tos contrários à construção da represa.
Que dizer do fato de que os animais morrerão, à parte o
sofrimento que acompanhará essas mortes? Como vimos, é pos-
sível, sem que nos acusem de discriminação arbitrária com base
em considerações de espécie, ver a morte de um animal não hu-
mano "meramente consciente" como algo menos significativo do
que a morte de uma pessoa, pois os seres humanos são capazes de
prever e planejar com antecedência de uma maneira que não está
ao alcance dos animais meramente conscientes. Essa diferença
entre provocar a morte de uma pessoa e de um animal meramen-
te consciente não significa que a morte de um animal deva ser
tratada como sem importância. Pelo contrário, os utilitaristas
levarão em conta a perda que a morte inflige aos animais - a
perda de toda a sua futura existência e das experiências que te-
riam feito parte de suas vidas futuras. Quando a construção de
uma represa inunda um vale e mata milhares, talvez milhões,
de criaturas sencientes, deve-se atribuir a essas mortes uma gran-
de importância em qualquer avaliação dos custos e benefícios da
construção. Para os utilitaristas que aceitam o ponto de vista to-
tal discutido no Capítulo 4, se a represa destrói o hábitat dos
animais, é preciso considerar relevante o fato de que essa perda é
contínua. Se a represa não for construída, é provável que os ani-
mais continuem a viver no vale por milhares de anos, experi-
mentando seus prazeres e sofrimentos específicos. Poder-se-ia
perguntar se, para os animais, a vida num ambiente natural ofe-
rece um saldo positivo de prazer em relação ao sofrimento, ou de
satisfação de suas preferências em relação à sua frustração - e se
houver peixes na represa, os utilitaristas totais também levariam
em conta os prazeres de sua existência como contrapeso, em al-
366 ÉTICA PRÁTICA

guma medida, à perda dos prazeres dos animais da floresta. Nes-


se ponto, a ideia de calcular os benefícios torna-se quase absurda;
isso, porém, não significa que a perda de futuras vidas animais
deva ser negligenciada no processo de tomada de decisão.
Talvez isso não seja tudo. Não seria o caso de atribuirmos
importância não apenas ao sofrimento e à morte de determi-
nado número de animais, mas também ao fato de que toda uma
espécie possa desaparecer? Que dizer da perda de árvores que ali
estiveram por milhares de anos? Que importância (se houver)
devemos atribuir à preservação dos animais, das espécies,
das árvores e do ecossistema do vale, independentemente dos
interesses dos seres humanos - sejam eles econômicos, recreati-
vos ou científicos - em sua preservação?
Temos, aqui, uma divergência moral fundamental: uma
divergência sobre quais tipos de seres devem ser levados em conta
em nossas deliberações morais. Examinemos o que tem sido
afirmado a respeito de se levar a ética além dos seres sencientes.

O respeito pela vida


A posição ética defendida neste livro amplia a ética da
tradição ocidental dominante, mas, em alguns aspectos,
é visivelmente do mesmo tipo. Nossa posição traça os limites
das considerações morais que dizem respeito a todas as criatu-
ras sencientes, mas deixa outros seres vivos fora desses limites.
A inundação das velhas florestas, a possível perda de toda
uma espécie, a destruição de vários ecossistemas complexos,
o bloqueio do rio e a perda das gargantas rochosas são fatores
que só devem ser levados em consideração na medida em que
exerçam um efeito adverso sobre criaturas sencientes. Será possí-
vel um rompimento mais radical com a posição tradicional? Será
possível mostrar que alguns ou todos os aspectos da inundação
do vale têm valor intrínseco, de modo que devam ser levados em
conta independentemente de seus efeitos sobre seres humanos
ou animais não humanos?
O MEIO AMBIENTE 367

Ampliar plausivelmente a ética para além dos seres sencientes


é uma tarefa difícil. Uma ética baseada nos interesses de criaturas
sencientes está em um terreno conhecido. As criaturas sencientes
têm vontades e desejos. A pergunta "Como deve ser o afogamento
de um gambá?" pelo menos faz sentido, ainda que, para nós,
seja impossível dar uma resposta mais precisa do que "deve ser
horrível". Ao chegarmos às decisões morais que afetam criatu-
ras sencientes, podemos tentar acrescentar os efeitos exercidos
por diferentes ações sobre todas as criaturas sencientes afetadas
pelas ações alternativas abertas a nós. Isso nos dará, pelo menos,
uma tosca orientação com relação àquilo que talvez seja a coisa
certa a fazer. Mas não há nada que corresponda ao que deve ser
uma árvore morrendo porque as suas raízes foram inundadas.
Ao abandonarmos os interesses de criaturas sencientes como
nossa fonte de valor, onde encontraremos valor? O que é bom
ou mau para as criaturas não sencientes, e por que isso importa?
Poderíamos pensar que, enquanto nos limitarmos às coisas
vivas, a resposta não será difícil de encontrar. Sabemos o que
é bom ou mau para as plantas do nosso jardim: água, luz do
sol e composto orgânico são coisas boas; frio ou calor extremos
são nocivos. O mesmo se aplica às plantas de qualquer floresta
ou região inculta; portanto, por que não ver seu florescimento
como bom em si, independentemente de sua utilidade para as
criaturas sencientes?
A esse propósito, um dos problemas consiste em que, sem
interesses conscientes a nos orientar, não temos como avaliar
as importâncias relativas a serem atribuídas ao florescimento de
diferentes formas de vida. Um pinheiro Huon de mil anos
de idade é mais digno de ser preservado do que um tufo de
relva? A maior parte das pessoas vai dizer que sim, mas essa
opinião parece ter mais a ver com nossos sentimentos de respeito
e veneração pela idade, pelo tamanho e pela beleza da árvore,
ou com o tempo que seria necessário para substituí-la, do que
com a nossa percepção de algum valor intrínseco no floresci-
mento de uma velha árvore- um valor intrínseco que o tufo de
relva não tem.
368 ÉTICA PRATICA

Se pararmos de falar em termos de senciência, o limite entre


objetos naturais vivos e inanimados fica mais difícil de defender.
Seria realmente pior abater uma velha árvore do que destruir
uma bela estalactite que levou muito mais tempo para atingir sua
forma atual? Com base em que se poderia emitir essa opinião?
Talvez a melhor defesa conhecida de uma ética que abranja to-
das as coisas vivas seja a do famoso teólogo Albert Schweitzer.
Em 1952, Schweitzer recebeu o prêmio Nobel da Paz por seu
trabalho humanitário na fundação de um hospital no Gabão e
por sua ética da "reverência à vida". Apesar de sua frase ser mui-
tas vezes citada, os argumentos por ele oferecidos em defesa des-
sa posição são menos conhecidos. Aqui está uma das poucas
passagens nas quais ele defendeu sua ética:

A verdadeira filosofia deve começar pelos fatos mais imediatos e


abrangentes da consciência, e isso pode ser formulado da seguinte
maneira: "Sou vida que quer viver, e existo em meio à vida que
quer viver" [...] Do mesmo modo como em minha vontade de
viver existe um anseio por mais vida e por aquela misteriosa
exaltação da vontade que se chama de prazer, e o terror diante do
aniquilamento e daquele insulto à vontade de viver a que chama-
mos dor, tudo isso também predomina em toda a vontade de viver
que me cerca, e predomina por igual, quer consiga expressar-se à
minha compreensão, quer permaneça não expresso.
A ética, portanto, consiste nisto; no fato de eu vivenciar a
necessidade de pôr em prática o mesmo respeito pela vida, e de
fazê-lo igualmente, tanto com relação a mim mesmo quanto no
que diz respeito a tudo que deseja viver. Nisso já tenho o neces-
sário princípio fundamental de moralidade. É bom conservar e
acalentar a vida; é ruim destruir e reprimir a vida. Um homem só
será realmente ético quando obedecer ao dever que lhe é imposto
de ajudar toda a vida que for capaz de ajudar e quando se der
ao trabalho de impedir que se causem danos a todas as coisas
vivas. Ele não pergunta se esta ou aquela vida é digna de solida-
riedade enquanto dotada de valor intrínseco, nem até que ponto
ela é capaz de sentimentos. Para ele, a vida é sagrada enquanto
tal. Ele não estilhaça os cristais de gelo que reluzem ao sol, não
O MEIO AMBIENTE 369

arranca uma folha ou uma flor de sua árvore, e tem o cuidado de


não esmagar insetos enquanto caminha. Se, numa noite de verão,
precisa de luz para trabalhar, prefere deixar a janela fechada e
respirar um ar sufocante a permitir que os insetos venham cair
sobre a sua mesa de trabalho com as asas feridas e chamuscadas.

Paul Taylor defendeu um ponto de vista semelhante em seu


livro Respect for Nature [Respeito pela natureza], em que afirma
que toda coisa viva está "em busca do seu próprio bem, de uma
maneira que lhe é única". Ao entender isso, diz ele, passaremos
a ver todas as coisas vivas "da mesma maneira que vemos a nós
mesmos", portanto, "estaremos aptos a atribuir à sua existência
o mesmo valor que atribuímos a nossa".
Não fica claro de que modo devemos interpretar a posição
de Schweitzer. A referência ao cristal de gelo é especialmente
enigmática, pois um cristal de gelo não está vivo. Schweitzer
talvez considere qualquer forma de assassinato um tipo de
vandalismo, uma destruição sem motivos de algo de valor?
Deixando isso de lado, porém, o problema com as defesas
oferecidas por Schweitzer e Taylor às suas concepções éticas é
que ambos fazem um uso metafórico da linguagem, e depois
argumentam como se o que acabaram de dizer fosse literal-
mente verdadeiro. É comum falarmos sobre plantas que "procu-
ram" água ou luz para poderem sobreviver, e essa maneira de
pensar sobre as plantas facilita a aceitação dessa conversa de sua
"vontade de viver", ou de sua "perseguição" do seu próprio bem.
Contudo, quando paramos para refletir sobre o fato de que as
plantas não são conscientes e não podem, portanto, ter nenhum
comportamento intencional, fica claro que toda essa linguagem
é metafórica; poderíamos, igualmente, dizer que um rio está em
busca do seu próprio bem e esforçando-se por alcançar o mar,
ou que o "bem" de um míssil teleguiado seja explodir seu alvo.
É enganoso, da parte de Schweitzer, tentar nos fazer aceitar uma
ética de respeito por todas as manifestações de vida por suas
referências a "anseio", "exaltação", "prazer" e "terror". As plantas
não experimentam nada disso.
370 ÉTICA PRÁTICA

Holmes Roston, filósofo ambientalista norte-americano,


faz uma objeção à minha comparação - apresentada na segunda
edição deste livro- entre o comportamento de "busca" da planta
e do míssil teleguiado. Ele argumenta que, quando o míssil se
aproxima de seu alvo e explode, poderia ser bom para a pessoa
que lança o míssil, mas não é bom para o próprio míssil. O míssil
foi projetado e construído para um propósito. Já as plantas e
outros organismos, por outro lado, diz Rolston:

A seleção natural escolhe características de um organismo que


sejam valiosas para sua sobrevivência. Quando a seleção natural
trabalhou para reunir essas características em um organismo,
esse é capaz de avaliar com base nessas características. É um
organismo avaliante, mesmo se o organismo não for um avalia-
dor senciente, e muito menos um avaliador consciente. E essas
características, apesar de escolhidas pela seleção natural, são
inatas no organismo, ou seja, armazenadas em seus genes. É
difícil dissociar a ideia de valor da seleção natural.

Rolston falha em explicar por que a seleção natural origina


a valoração no organismo, mas o projeto humano e a manufa-
tura, não. Ele deve estar ciente de que há algo estranho na ideia
de um avaliador que não seja senciente nem consciente. Em
defesa desse ponto de vista, ele questiona o que parece ser uma
pergunta retórica: "Por que o organismo não está avaliando o
que usa como recurso?". Nós podemos construir máquinas à
energia solar que voltem seus painéis solares para o sol de modo a
receber o máximo de energia para suas baterias. Deveríamos
dizer que esses aparelhos estão avaliando a luz do sol que usam?
Se não, a diferença estaria no fato de que os meios da planta
de mandar suas raízes em busca de água estar codificado em
seus genes, enquanto os meios da máquina de obter luz do sol
estariam codificados em seus programas de computador? Por
que isso faria apenas um deles avaliador e o outro, não?
Há diferenças importantes entre coisas vivas e máquinas
projetadas por humanos. Contudo, no caso tanto de plantas
O MEIO AMBIENTE 371

como de máquinas, é possível dar uma explicação puramente


física do que a planta ou a máquina estão fazendo; e, em ausência
de consciência, não há uma boa razão para por que deveríamos
ter mais respeito pelo processo físico que governa o crescimento
de degeneração das coisas vivas do que pelo que governa coisas
não vivas. Assim, no mínimo não é óbvio por que deveríamos
ter mais reverência por uma planta do que por uma estalactite,
ou por um organismo unicelular do que por uma montanha.

Ecologia profunda
Há mais de sessenta anos, o ecologista norte-americano
Aldo Leopold escreveu que uma "nova ética" se fazia necessá-
ria, uma "ética que tratasse da relação do homem com a terra,
os animais e as plantas que nela vivem". A sua "ética da terra"
ampliaria "as fronteiras da comunidade de modo a incluir o
solo, a água, as plantas e os animais, ou, coletivamente falando,
a terra". O aumento das preocupações ecológicas na década
de 1970 levou a uma renovação do interesse por essa atitude.
O filósofo norueguês Arne Naess escreveu um artigo breve, mas
importante, em que estabeleceu uma distinção entre as tendên-
cias "superficiais" e "profundas" que se verificam no movimento
ecológico. O pensamento ecológico superficial estaria circuns-
crito à estrutura moral tradicional; seus partidários estariam
ansiosos por evitar a poluição da água para que pudéssemos
beber uma água mais pura e, na base de seu empenho em
preservar a natureza para que as pessoas pudessem continuar
caminhando por ela. Por outro lado, os ecologistas profundos
desejariam preservar a integridade da biosfera pela necessidade
dessa preservação, ou seja, independentemente dos possíveis
benefícios que o fato de a preservar pudesse trazer para os seres
humanos. Em seguida, vários outros autores tentaram desenvol-
ver alguma forma de teoria ambiental "profunda".
Nos casos em que a ética do respeito pela vida enfatiza os
organismos vivos individuais, as propostas de uma ética da eco-
logia profunda tendem a assumir algo maior do que o objetivo
372 ÉTICA PRÁTICA

do valor: espécies, sistemas ecológicos e até mesmo a biosfera


como um todo. Leopold assim sintetizou os fundamentos de
sua nova Ética da Terra: "Uma coisa é certa quando tende a
preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade
biótica; é errada quando apresenta a tendência contrária". Em
seguida, Ame Naess e George Sessions, filósofo norte-ameri-
cano envolvido com o movimento da ecologia profunda, esta-
beleceram vários princípios para uma ética ecológica profunda.
Eis os primeiros:

1. O bem-estar e o desenvolvimento da Vida humana e


não humana na Terra têm valor em si mesmos (sinôni-
mos: valor intrínseco, valor inerente). Esses valores são
independentes da utilidade do mundo não humano para
finalidades humanas.
2. A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem
para a concretização desses valores, e também são valores
em si mesmas.
3. Os seres humanos não têm o direito de reduzir essa
riqueza e diversidade, a não ser para a satisfação de
necessidades vitais.

Ainda que esses princípios só remetam à vida, no mesmo


trabalho Naess e Sessions afirmam que a ecologia profunda usa
o termo "biosfera" de um modo mais abrangente, referindo-se
também às coisas inanimadas, como os rios (bacias hidrográfi-
cas), paisagens e ecossistemas. Dois australianos que trabalham
com o limite da ética ambiental, Richard Sylvan e Val Plumwood,
também levam sua ética para além das coisas vivas, nela incluindo
a obrigação de "não pôr em risco o bem-estar de objetos ou siste-
mas naturais sem uma boa razão para fazê-lo".
Na seção anterior, citei a observação de Paul Taylor sobre o
fato de que devemos nos predispor não simplesmente a respeitar
todas as coisas vivas, mas também a atribuir à vida de todas as
coisas vivas o mesmo valor que atribuímos à nossa própria vida.
O MEIO AMBIENTE 373

Trata-se de um tema corriqueiro para os ecologistas profundos,


quase sempre extrapolado para além das coisas vivas. Em Deep
Ecology [Ecologia profunda], Bill Devall e George Sessions
defendem uma forma de "igualitarismo biocêntrico":

A intuição da igualdade biocêntrica é a de que, na biosfera, todas


as coisas têm o mesmo direito de viver e florescer, bem como de
alcançar as suas formas individuais de desenvolvimento e autor-
realização dentro da Autorrealização maior. Esta intuição básica
é a de que, enquanto partes do todo interligado, todos os organis-
mos e todas as entidades da ecosfera são iguais em termos de seu
valor intrínseco.

Se, como a citação parece sugerir, essa igualdade biocên-


trica se funda numa "intuição básica", ela se defronta com
intuições muito fortes que apontam para a direção oposta- por
exemplo, a intuição de que os direitos de "viver e se desenvolver"
dos adultos normais devem ser preferidos aos dos fermentos, e
os dos gorilas devem ter precedência sobre os das folhas da relva.
Se, por outro lado, a questão for que seres humanos, gorilas,
leveduras e relva são, todos, partes de um todo inter-relacionado,
ainda assim se poderá perguntar de que modo isso determina
que eles tenham o mesmo valor intrínseco. Seria porque todas
as coisas vivas têm um papel a desempenhar num ecossistema
do qual dependem para sua sobrevivência? Em primeiro lugar,
porém, mesmo que isso mostrasse que exista um valor intrín-
seco aos microrganismos e às plantas como um todo, não diz
absolutamente nada sobre o valor de microrganismos ou plantas
considerados individualmente, já que nenhum indivíduo é
necessário para a sobrevivência do ecossistema como um todo.
Em segundo lugar, o fato de todos os organismos serem parte de
um todo inter-relacionado não sugere que tenham, todos, um
valor intrínseco, muito menos um valor intrínseco igual. Talvez
só tenham valor por serem necessários à existência do todo, e
o todo talvez só tenha valor por sustentar a existência de seres
conscientes.
374 ÉTICA PRÁTICA

Portanto, a ética da ecologia profunda falha em oferecer


respostas convincentes a perguntas sobre o valor das vidas de seres
vivos individuais. É possível, porém, que esse seja o tipo errado
de pergunta a se fazer. A ciência da ecologia considera os siste-
mas, e não os organismos individuais. Da mesma maneira, a ética
ecológica poderia tornar-se mais plausível se fosse aplicada
ao nível das espécies e dos ecossistemas do que dos organismos
individuais. Por trás de muitas tentativas de extrair valores da
ética ecológica nesse nível, encontra-se uma forma de holismo -
certa impressão de que a espécie ou o ecossistema não são apenas
um conjunto de indivíduos, mas, na verdade, uma entidade em si.
Esse holismo é explicitado em A Morally Deep World [Um mundo
moralmente profundo], de Lawrence Johnson. Johnson discorre
com grande conhecimento sobre os interesses de uma espécie, e
o faz num sentido diferente do da soma dos interesses de cada
membro da espécie, afirmando que os interesses de uma espécie,
ou de um ecossistema, devem ser levados em conta, juntamente
com os interesses individuais, em nossas deliberações morais.
Em The Ecological Self[O eu ecológico], Freya Mathews afirma
que qualquer "sistema autorrealizador" tem valor intrínseco, no
sentido de que procura manter-se ou preservar-se. Enquanto os
organismos vivos são exemplos paradigmáticos de sistemas autor-
realizadores, Mathews, a exemplo de Johnson, inclui as espécies
e os ecossistemas como entidades holísticas, ou individualistas,
dotadas de sua própria forma de realização. A autora chega a
incluir todo o ecossistema global, seguindo James Lovelock, ao
referir-se a ele pelo nome da deusa grega da terra, Gaia. Com base
nisso, ela defende sua própria forma de igualitarismo biocêntrico.
Existe, sem dúvida, uma verdadeira questão filosófica no fato
de uma espécie ou um ecossistema poder, ou não, ser visto como
o tipo de indivíduo que possa ter interesses, ou um "eu" a realizar-
-se; e, ainda que essa possibilidade exista, a ética da ecologia
profunda se depararia com problemas semelhantes aos que identi-
ficamos em nosso exame da ideia do respeito pela vida. Pois é
necessário não apenas que se possa afirmar, com propriedade,
O MEIO AMBIENTE 375

que árvores, espécies e ecossistemas têm interesses, mas que têm


interesses moralmente significativos. Para que os vejamos como
"individualidades", seria preciso mostrar que a sobrevivência ou
a realização desse tipo de individualidade tem um valor moral,
independentemente do valor que tem devido à sua importância
para a manutenção da vida consciente.
Ao discutirmos a ética do respeito pela vida, vimos que
uma das maneiras de determinar que um interesse seja moral-
mente significativo consiste em perguntar o que representa,
para a entidade afetada, ter um interesse não satisfeito. A mesma
pergunta pode ser feita a respeito da autorrealização: que signi-
fica, para o eu, permanecer não realizado? É possível dar respos-
tas inteligíveis a essas perguntas quando elas são feitas a propósito
de seres sencientes, mas não de árvores, espécies ou ecossistemas.
O fato de que, como James Lovelock mostra em Caia: A New
Look at Life on Earth [Gaia: uma nova visão sobre a vida na
Terra], a biosfera pode reagir a acontecimentos em moldes que
se assemelham aos de um sistema autossustentável não mostra,
em si, que a biosfera deseje conscientemente manter-se. Referir-
-se ao ecossistema global pelo nome de uma deusa grega parece
uma boa ideia, mas talvez não seja a melhor maneira de nos
ajudar a pensar com clareza sobre a natureza. Da mesma forma,
em menor escala, não há nada que corresponda ao sentimento de
ser um ecossistema inundado por uma represa, pois não existe
semelhante sentimento. A esse propósito, as árvores, os ecossis-
temas e as espécies assemelham-se mais a rochas do que a seres
sencientes; nessa medida, portanto, a linha divisória entre as
criaturas sencientes e não sencientes constitui uma base mais
sólida para a demarcação de um limite importante do que a
linha que separa as coisas vivas das inanimadas, ou as entidades
holísticas e quaisquer outras entidades que pudéssemos conside-
rar não holísticas (sejam quais forem essas outras entidades, até
mesmo um átomo, quando visto a partir do nível apropriado,
é um sistema complexo que "procura" manter-se).
376 ÉTICA PRÁTICA

Essa rejeição da base ética de uma ética da ecologia profunda


não significa que o argumento a favor da preservação da natu-
reza não seja forte. Significa apenas que um tipo de argumento
- o argumento do valor intrínseco das plantas, das espécies ou
dos ecossistemas - é, na melhor das hipóteses, problemático.
A menos que se possa colocá-lo numa base diferente e mais sólida,
devemos nos restringir aos argumentos baseados nos interesses
das criaturas sencientes - presentes e futuras, humanas e não hu-
manas. Esses argumentos são suficientes para mostrar que, pelo
menos numa sociedade em que ninguém precise destruir a natu-
reza para obter alimento para a sobrevivência ou materiais para
abrigar-se dos elementos, o valor da preservação do que resta de
regiões naturais significativas excede em muito os valores econô-
micos obtidos por sua destruição.

D esenvolver uma ética ambiental


Os contornos gerais de uma ética verdadeiramente ambien-
tal são fáceis de estabelecer. Em seu nível mais fundamental,
essa ética incentiva a consideração dos interesses de todas as cria-
turas sencientes, inclusive as gerações que habitarão o planeta
num futuro remoto. Acompanha-a uma estética da apreciação
dos lugares naturais não devastados. Em um nível mais detalha-
do, aplicável às vidas dos que vivem nas grandes e nas pequenas
cidades, essa ética desestimula a existência de grandes famílias
(quanto a esse ponto, estabelece um agudo contraste com algu-
mas concepções éticas existentes, relíquias de uma época em que
a Terra era muito menos densamente povoada, e também ofere-
ce um contrapeso à implicação da versão "total" do utilitarismo,
que discutimos no Capítulo 4). Uma ética ambiental rejeita os
ideais de uma sociedade materialista na qual o sucesso é medido
pelo número de bens de consumo que alguém seja capaz de
acumular. Em vez disso, avalia o sucesso em termos do desen-
volvimento das aptidões individuais e da verdadeira conquista
da satisfação e realização. Incentiva a frugalidade e a reutiliza-
ção na medida em que seja necessária para minimizar nosso im-
O MEIO AMBIENTE 377

pacto no planeta. Portanto, os diversos guias e livros para o


"consumidor verde", que tratam das coisas que podemos fazer
para salvar o nosso planeta- reciclar o que usamos e comprar os
produtos menos nocivos ao meio ambiente -, fazem parte dessa
nova ética que é necessária.
Uma ética ambiental leva a um reexame de nossa concepção
de extravagância. Em um mundo sob pressão, essa concepção
não se limita às limusines com chofer, ou ao champanhe Dom
Perignon. A madeira proveniente de uma floresta tropical é extra-
vagante, pois o valor a longo prazo dessa floresta é muito maior do
que os usos aos quais se destina a madeira. Os produtos de papel
descartável são extravagantes, pois as velhas florestas de madeira
rija estão sendo transformadas em lascas ou aparas de madeira e
vendidas para os fabricantes de papel. Esportes automotivos são
extravagantes, porque podemos apreciar outros modos de corrida
que não requeiram combustíveis fosseis que contribuem para o
efeito estufa. Um bife é extravagante, por causa das altas emissões
de metano envolvidas em sua produção, para não mencionar o
desperdício da maioria do valor nutricional de grãos e soja que
alimentam o gado de corte.
Na Grã-Bretanha, durante a Segunda Guerra Mundial,
quando havia escassez de gasolina, viam-se cartazes com a per-
gunta: "Sua viagem é realmente necessária?". O apelo à soli-
dariedade nacional contra um perigo visível e imediato era
extremamente eficaz. O perigo que corre nosso meio ambiente é
mais difícil de ver, mas a necessidade de abrir mão de viagens
desnecessárias, bem como de outras formas de consumo desne-
cessário, continua sendo igualmente grande. A ênfase na fruga-
lidade e numa vida mais simples não significa que uma ética
ambiental seja contrária ao prazer, mas sim que os prazeres que
ela valoriza não provêm do consumo exagerado. Em vez disso, eles
provêm de calorosas relações pessoais e sexuais, do fato de se
estar ao lado dos filhos e dos amigos, das conversas, dos esportes
e das diversões que estejam em harmonia com o meio ambiente,
em vez de causar-lhe danos; dos alimentos que não se baseiam na
378 ÉTICA PRÁTICA

exploração de criaturas sencientes, nem resultam na destruição da


terra; de todos os tipos de atividades e trabalhos criativos; e (com
o devido cuidado de não danificar exatamente aquilo que se
valoriza) da apreciação dos lugares ainda não arrasados deste
mundo em que vivemos.
11

Desobediência civil,
violência e terrorismo

Nós examinamos algumas questões éticas. Vimos que mui-


tas das práticas aceitas estão abertas a sérias objeções. Qual deve
ser nossa atitude diante delas? Essa é, também, uma questão
ética. Apresento, a seguir, cinco casos verdadeiros para que o
leitor reflita.
*
Oskar Schindler era um pequeno industrial alemão. Durante
a guerra, tinha uma fábrica perto de Cracóvia, na Polônia.
Quando os judeus poloneses começaram a ser mandados para os
campos de extermínio, ele reuniu uma força de trabalho consti-
tuída por judeus provenientes de campos de concentração e do
gueto - uma força bem maior do que a fábrica necessitava - e,
para protegê-los, Schindler recorreu a vários estratagemas ilegais,
inclusive ao suborno de membros da ss e outros oficiais. Gastava
do seu próprio dinheiro para comprar alimentos no mercado
negro, pois era preciso complementar as escassas rações oficiais
que obtinha para seus empregados. Graças a esses métodos, pôde
salvar a vida de mais ou menos 1.200 pessoas.
*
O dr. Thomas Gennarelli dirigia um Laboratório de Feri-
mentos na Cabeça na Universidade de Pensilvânia, na cidade da
Filadélfia, Estados Unidos. Os membros de uma organização
clandestina, chamada Frente de Libertação dos Animais, foram
380 ÉTICA PRATICA

informados de que Gennarelli provocava ferimentos na cabeça


de macacos sem que os animais fossem anestesiados. Também
ficaram sabendo que Gennarelli e seus colaboradores gravavam
as experiências em fitas de vídeo, para registrar o que acontecia
durante e após os ferimentos. Tentaram obter outras informa-
ções através de canais oficiais, mas não foram bem-sucedidos.
Em maio de 1984, entraram às escondidas no laboratório,
à noite, e encontraram 34 fitas de vídeo. Antes de saírem, levan-
do consigo as fitas, destruíram sistematicamente todo o equipa-
mento do laboratório. As fitas mostravam, claramente, macacos
conscientes tentando a todo custo não se deixar amarrar às me-
sas de operação onde lhes feriam a cabeça; também mostravam
os cientistas zombando e gargalhando dos animais apavorados,
prestes a serem usados nas experiências. Quando uma versão
editada das gravações chegou ao público, provocou horror gene-
ralizado. Mesmo assim, foi preciso mais um ano de protestos,
culminando com uma manifestação passiva na sede da organi-
zação governamental que financiava as experiências de Genna-
relli, até que o ministro da Saúde e dos Serviços Sociais dos
Estados Unidos proibisse as experiências.
*
Em 1986, Joan Andrews entrou numa clínica de abortos
em Pensacola, Flórida, Estados Unidos, e danificou um apare-
lho de sucção usado para abortar. Recusou-se a ser representada
por um advogado no tribunal, afirmando que "os verdadei-
ros réus, as crianças não nascidas, não tiveram defesa e foram
mortos sem o devido processo legal". Andrews era partidária
da Operação Salvamento, uma organização norte-americana
que foi buscar seu nome e sua autoridade para agir no preceito
bíblico "livra os que foram entregues à morte, salva os que
cambaleiam indo para o massacre". A Operação Salvamento, na
época, usava a desobediência civil para fechar clínicas de aborto,
com isso, em seu ponto de vista, "salvando a vida de bebês em
gestação que os Salvadores têm a obrigação moral de defender".
Os participantes bloqueavam as portas das clínicas para impedir
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 381

a entrada dos médicos e das mulheres grávidas que pretendiam


abortar. Tentavam dissuadi-las de entrar na clínica mediante
um "aconselhamento de calçada" sobre a natureza do aborto.
Gary Leber, na época um dos diretores da Operação Salva-
mento, afirmou que, somente entre 1987 e 1989, pelo menos
421 mulheres desistiram de abortar em consequência direta das
"missões de salvamento", e que os filhos dessas mulheres, que
teriam sido mortos, hoje estão vivos. Indiciada pelos danos ao
patrimônio que ela causou à clínica de Pensacola, Andrews, que
já havia sido detida mais de 130 vezes por sua militância contra
o aborto, recusou-se a assinar uma declaração na qual prometia
não continuar com seus protestos. Foi condenada a cinco anos
de prisão. Cumpriu a pena, continuou a protestar, voltou a ser
detida e condenada, passando mais algum tempo no cárcere.
Nesse ínterim, a Operação Salvamento mudou de liderança e
estratégia, restringindo-se a se opor ao aborto por meios legais.
Andrews não tem mais vínculo nenhum com a organização.
*
Em 1976, Bob Brown, na época um jovem clínico geral,
desceu de balsa o rio Franklin, no sudoeste da Tasmânia. A be-
leza selvagem do rio e a paz das florestas imperturbáveis ao re-
dor causaram-lhe uma profunda impressão. Depois, numa
curva rio abaixo, deparou-se com os trabalhadores da Comissão
Hidrelétrica, que estudavam a possibilidade de construir ali
uma represa. Brown desistiu da medicina e fundou a Sociedade
Tasmaniana de Proteção à Natureza, com o objetivo de proteger
as áreas naturais que ainda existiam no estado australiano. Ape-
sar de uma vigorosa campanha, a Comissão Hidrelétrica reco-
mendou a construção da represa, e, depois de alguma hesitação,
com o apoio tanto da comunidade financeira quanto dos sindi-
catos trabalhistas, o governo do estado decidiu iniciar as obras.
A Sociedade Tasmaniana de Proteção à Natureza organizou um
bloqueio pacífico da estrada que estava sendo construída no lo-
cal da represa. Em 1982, Brown e muitos outros foram detidos
durante quatro dias por invasão de terras pertencentes à Comis-
382 ÉTICA PRATICA

são Hidrelétrica. O bloqueio transformou à represa num dos


principais pontos de debate da eleição federal prestes a se reali-
zar. O Partido Trabalhista australiano, na oposição antes da
eleição, empenhou-se em descobrir meios constitucionais que
pudessem impedir a continuidade das obras da represa. A elei-
ção levou o Partido Trabalhista ao poder, e foi aprovada uma
legislação que interrompia a construção. Apesar de contestada
pelo governo da Tasmânia, essas leis foram mantidas pela maio-
ria simples do Supremo Tribunal da Austrália, com base nas
alegações de que o sudoeste da Tasmânia era Patrimônio da Hu-
manidade e de que o governo federal tinha poderes constitucio-
nais para sustentar o tratado internacional que criava a Comissão
do Patrimônio Mundial. Hoje, o rio Franklin permanece cor-
rendo livre. Bob Brown lidera o Partido Verde australiano no
Senado como representante da Tasmânia.
*
Num dia de muita neve em março de 2009, 2.500 ativis-
tas cercaram a Usina Termelétrica do Capitólio, em Washing-
ton, capital dos Estados Unidos, e a fecharam durante algumas
horas, protestando contra a resposta inadequada do governo ao
aquecimento global. Foi o maior ato de desobediência civil em
nome da preocupação com as mudanças climáticas já ocorrido
nos Estados Unidos. Em uma carta aberta divulgada antes do
protesto, Bill McKibben e Wendell Berry, dois dos autores mais
entendidos de questões ambientais nos Estados Unidos, decla-
raram: "Existem momentos na história de uma nação - e de
um planeta - nos quais pode ser necessário infringir a lei para
testemunhar o mal, chamar atenção para isso e exigir que seja
corrigido". Diziam acreditar que um desses momentos havia
chegado no que se referia às mudanças climáticas, e estavam
dispostos a fazer sacrifícios pessoais, "mesmo que [fosse]
apenas dar um pulinho na cadeia" (os manifestantes invadi-
ram a propriedade da usina e poderiam ter sido detidos, mas a
polícia não interveio, e ninguém foi preso). O protesto não teve
nenhum efeito digno de nota sobre a política norte-americana
em relação às mudanças climáticas. Contudo, dias antes das
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 383

manifestações, foi anunciado que a usina, que queimava carvão,


passaria a usar gás natural, o que reduziria sua contribuição para
as mudanças climáticas.
*
Temos uma obrigação imperiosa de obedecer à lei? Oskar
Schindler; os membros da Frente de Libertação dos Animais
que surrupiaram as fitas de vídeo de Gennarelli; Joan Andrews,
da Operação Salvamento; Bob Brown e os que se juntaram
a ele diante das máquinas de terraplanagem no sudoeste da
Tasmânia; e os manifestantes que fecharam a entrada da Usina
Termelétrica do Capitólio estavam todos desobedecendo à lei.
Estariam todos cometendo um erro?
Não se pode lidar com essa questão invocando a fórmula
simplista: "os fins nunca justificam os meios". Para todos, com
exceção dos mais rígidos adeptos de uma ética de preceitos, às
vezes os fins realmente justificam os meios. A maior parte das
pessoas acha que é errado mentir, mantendo-se iguais outras
condições, mas considera certo fazê-lo com a finalidade de não
ofender sem motivo ou não causar constrangimento desneces-
sário - por exemplo, quando um parente bem-intencionado
nos dá um vaso medonho como presente de aniversário e nos
pergunta se realmente gostamos da coisa assim que agradecemos
a lembrança por mera educação. Se esse fim relativamente trivial
pode justificar a mentira, fica ainda mais óbvio que algum fim
importante - impedir um assassinato ou impedir que animais
passem por grandes sofrimentos - pode justificar o fato de
mentirmos. Portanto, o princípio segundo o qual os fins não
podem justificar os meios é facilmente transgredido. O difícil
não é saber se os fins podem justificar os meios, mas quais meios
são justificados por quais fins.

A consciência individual e a lei


Muitas pessoas se opõem à construção de represas em rios,
à exploração de animais, ao aborto e a usinas geradoras de energia
que emitem grandes quantidades de gases do efeito estufa,
384 ÉTICA PRÁTICA

mas não infringem a lei para tentar pôr fim a essas atividades.
Sem dúvida, alguns membros das organizações mais conven-
cionais que defendem a conservação da natureza, a libertação
dos animais e a proibição do aborto não cometem atos ilegais
porque não querem ser multados nem presos; outros, porém,
mostram-se dispostos a assumir as consequências da prática de
atos ilegais. Só não o fazem porque respeitam e acatam a autori-
dade moral da lei.
Quem está certo quanto a essa divergência ética? Teremos
alguma obrigação moral de obedecer à lei quando ela protege
e sanciona coisas que consideramos profundamente erradas?
Uma resposta clara a essa pergunta foi dada pelo radical norte-
-americano do século xrx, Henry Thoreau. Em seu ensaio
intitulado "Civil Disobedience" [Desobediência civil] - talvez o
primeiro uso dessa expressão que hoje se tornou tão corrente -,
ele escreveu:

Ainda que por um momento, ou em grau mínimo, deve o


cidadão submeter sua consciência ao legislador? Por que, então,
cada homem é dotado de uma consciência? Acho que devemos
ser homens primeiro, e súditos depois. Não é desejável culti-
var pela lei respeito equivalente ao que se tem pelo que é certo.
A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer,
a qualquer momento, aquilo que acho certo.

Num estado de espírito semelhante, o filósofo norte-ameri-


cano Robert Paul Wolff escreveu:

O que define o Estado é a autoridade, o direito de estabelecer


normas. A obrigação fundamental do homem é a autonomia,
a recusa em deixar-se governar. A impressão que fica, portanto,
é a de que não existe solução para o conflito entre a autonomia
individual e a suposta autoridade do Estado. Na medida em que
um homem cumpra com seu dever de ser o autor de suas próprias
decisóes, ele oporá resistência à autoridade que o Estado afirma
ter sobre ele.
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 385

Thoreau e Wolff resolvem o conflito entre o indivíduo e a


sociedade posicionando-se a favor do indivíduo. Devemos agir
conforme os ditames de nossa consciência, conforme decidir-
mos autonomamente o que devemos fazer, e não como a lei
determina. Tudo o mais seria uma negação de nossa capacidade
de fazer uma opção ética.
Assim colocada, a questão parece simples, e as respostas
de Thoreau e Wolff se afiguram obviamente corretas. Portanto,
Oskar Schindler, a Frente de Libertação dos Animais, Joan
Andrews, Bob Brown, Wendell Berry e Bill McKibben estavam
plenamente justificados ao fazerem o que achavam certo, e não
o que o Estado considerava legítimo. Mas será tudo assim tão
simples? Em um determinado sentido, não há como negar que,
como afirma Thoreau, devemos fazer o que achamos certo, ou que,
como diz Wolff, devemos ser os autores de nossas decisões. Diante
da opção de fazer o que achamos certo ou o que achamos errado,
é evidente que devemos ficar com a primeira alternativa. Contudo,
apesar de verdadeiro, isso não ajuda muito. O que precisamos
saber não é se devemos fazer o que decidimos que seja certo,
mas de que modo essa decisão deve ser tomada.
Pensemos nas divergências de opinião entre membros de
grupos como a Frente de Libertação dos Animais e os membros
mais respeitadores da lei de uma organização como a Sociedade
Humanitária dos Estados Unidos ou a Real Sociedade Britânica
para a Prevenção da Crueldade com os Animais: na opinião dos
primeiros, infligir dor aos animais é errado, a menos que circuns-
tâncias extraordinárias justifiquem o fato, e, se a melhor maneira
de acabar com isso é infringir a lei, então eles acreditam que
seja correto infringir a lei. Os membros dos outros dois grupos
também acham -vamos supor que assim seja- que maltratar os
animais é errado, a menos que circunstâncias extraordinárias o
justifiquem, mas, em sua opinião, infringir a lei também é um
erro, e esse erro não pode ser justificado pelo objetivo de impedir
a sujeição dos animais a uma dor injustificável. Suponhamos
agora que, entre as pessoas que se opõem à ideia de fazer animais
386 ÉTICA PRATICA

sofrerem, haja algumas que não saibam se devem se juntar aos


militantes que transgridem a lei ou aos grupos mais ortodoxos
que defendem o bem-estar dos animais. De que maneira, ao
dizermos a essas pessoas para fazerem o que acham certo ou
para serem autoras de suas próprias decisões, estaremos ajudan-
do-as a resolver essa dúvida? Sua dúvida é sobre o que é certo
fazer, e não sobre fazer aquilo que decidiram ser certo.
Podemos tornar esse ponto ainda mais obscuro ao falar-
mos em "seguir a própria consciência", independentemente
daquilo que a lei determina. Alguns dos que falam em "seguir a
própria consciência" querem apenas dizer que, depois de refle-
tir, é preciso fazer aquilo que se acha certo - e, como no caso
dos nossos supostos membros da Sociedade Humanitária dos
Estados Unidos ou da Real Sociedade Britânica para a Preven-
ção da Crueldade com os Animais, isso pode depender daquilo
que a lei determina. Para outros, "consciência" não é algo que
dependa de um juízo crítico reflexivo, mas de uma espécie de
voz interior que nos diz que alguma coisa é errada e que pode
continuar nos dizendo isso a despeito de nossa decisão cuidadosa
e ponderada com base em todas as considerações éticas relevan-
tes, de que a ação não é errada. Nesse sentido de "consciência",
uma mulher solteira que, por ter sido educada dentro dos mais
rígidos preceitos do catolicismo romano, acredita que o sexo fora
do casamento é sempre um erro pode abandonar sua religião e
passar a defender o ponto de vista de que não existem fundamen-
tos para restringir o sexo à esfera do casamento, e, ainda assim,
continuar a se sentir culpada todas as vezes que fizer sexo. Ela
pode referir-se a esses sentimentos de culpa como sua "consciên-
cia", mas, se essa é sua consciência, será que ela deve obedecê-la?
Afirmar que devemos seguir nossa consciência é irrepreen-
sível- e inútil- quando "seguir a própria consciência" significa
fazer aquilo que, depois de muito refletir, as pessoas consideram
certo. Quando "seguir a própria consciência" significa, porém,
fazer aquilo que nossa "voz interior" nos instiga a fazer, seguir a
própria consciência equivale a abdicar de nossa responsabilidade
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 387

enquanto agentes racionais, a não levar em conta todos os fatores


relevantes e a não agir de acordo com nossa melhor avaliação do
que há de certo e de errado na situação. A "voz interior" tem
grande probabilidade de ser um produto de nossa formação e
educação, não uma fonte de verdadeiro discernimento ético.
É provável que nem Thoreau nem Wolff sugiram que
devemos sempre seguir nossa consciência em termos do que nos
diz a "voz interior". Talvez queiram dizer, se é que seus pontos de
vista têm alguma plausibilidade, que devemos seguir nossa própria
opinião quanto ao que devemos fazer. Nesse caso, o máximo que
pode ser dito a respeito de suas recomendações é que elas nos
lembram que as decisões de obedecer à lei são decisões éticas
que a lei, por si, não pode resolver por nós. Sem uma reflexão
prévia, não devemos admitir que, se a lei proíbe, digamos, que se
roubem fitas de vídeo de um laboratório, será sempre errado fazer
tal coisa. Tampouco devemos pressupor que, se a lei proíbe que
se escondam os judeus dos nazistas, será errado contrariá-la. A
lei e a ética são coisas distintas. Por outro lado, isso não significa
que a lei não tenha um peso moral. Não significa que qualquer
ação que, se legal, seja certa deva ser certa mesmo sendo, de fato,
ilegal. O fato de uma ação ser ilegal pode ter importância ética,
bem como legal. Se ela é realmente importante do ponto de vista
ético, já é uma outra questão.

A lei e a ordem
Se achamos que uma prática está muito errada e se temos
a coragem e a capacidade de romper com essa prática mediante
a infração da lei, de que modo a ilegalidade dessa ação poderia
oferecer um motivo ético para não cometê-la? Para responder a
uma pergunta tão específica quanto essa, devemos, primeiro,
fazer outra, mais geral: por que precisamos de leis?
Os seres humanos são sociais por natureza, mas não tão
sociais a ponto de não precisarmos nos proteger do risco de
sermos agredidos ou mortos por nossos iguais. Poderíamos tentar
fazer isso mediante a formação de organizações justiceiras que
388 ÉTICA PRÁTICA

impedissem as agressões e punissem aqueles que as praticam;


os resultados, porém, seriam incertos, e talvez levassem a uma
guerra de grupos armados. Portanto, é desejável ter, como afirmou
John Locke, há muito tempo, "uma legislação estável, consoli-
dada e conhecida", interpretada por um juiz competente e dotada
de poder suficiente para fazer cumprir as decisões judiciais.
Se, voluntariamente, as pessoas parassem de agredir as
outras, ou de agir em conflito com uma vida social feliz e harmo-
niosa, poderíamos dispensar juízes e castigos. Ainda precisaría-
mos de convenções para lidar com questões como, por exemplo,
de que lado da rua se deve dirigir um carro. Até mesmo uma
anarquia utopista precisaria de princípios predeterminados de
cooperação. Teríamos, portanto, algo bastante próximo da lei.
Na verdade, nem todos se absterão, voluntariamente, de práticas
que os demais não toleram, como a agressão. E o perigo repre-
sentado por atos individuais, a exemplo da agressão, tampouco é
a única coisa que torna a lei necessária. Qualquer sociedade será
marcada por divergências: quanta água os agricultores podem
tirar do rio para irrigar suas plantações; problemas relativos
à posse da terra ou à custódia de uma criança, ao controle da
poluição e aos índices de tributação. Certa definição na tomada
de decisões é necessária para que as controvérsias sejam resolvi-
das rápida e economicamente, pois, em caso contrário, existe a
possibilidade de que as partes envolvidas acabem por recorrer
à força. Qualquer tomada de decisão é melhor que o recurso
à força, pois, quando ela é usada, as pessoas saem feridas, e o
desejo de retaliação provavelmente causará mais violência. Além
disso, a maior parte dos procedimentos de tomada de decisão
produz resultados pelo menos tão justos e benéficos quanto o
uso da força.
Portanto, as leis e um processo definido de tomada de
decisões que resulte na criação de leis são uma coisa benéfica,
e isso nos dá uma razão importante para obedecermos à lei.
Ao obedecer às leis, posso contribuir para o respeito em que são
tidos o procedimento definido de tomada de decisões e as leis.
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 389

Ao desobedecer, dou aos outros um exemplo que também pode


levá-los à desobediência. O efeito pode multiplicar-se e contri-
buir para a decadência da lei e da ordem. Em casos extremos,
pode levar à guerra civil.
Uma segunda razão para obedecer decorre imediatamente
da primeira. Para que as leis sejam eficientes, portanto - dada a
maneira como os seres humanos são -, deve existir algum
mecanismo para descobrir e penalizar os infratores. O funcio-
namento e a manutenção desse mecanismo terá um custo com o
qual a comunidade deverá arcar. Se eu infringir a lei, a comuni-
dade será obrigada a arcar com as despesas de fazê-la vigorar.
Essas duas razões para a obediência às leis não são nem univer-
salmente aplicáveis, nem conclusivas. Não são, por exemplo,
aplicáveis às transgressões da lei que permanecem secretas.
Se, na calada da noite, quando as ruas estão desertas, eu atraves-
sar o sinal vermelho, não haverá ninguém para ser levado à
desobediência pelo meu exemplo, e ninguém para fazer vigorar
a lei contra minha transgressão. Não é esse, porém, o tipo de
ilegalidade em que estamos interessados.
Na ausência de motivos para desobedecer à lei, essas duas
razões para a obediência não são suficientes para resolver a questão;
contudo, onde houver razões conflitantes, devemos examinar o
mérito de cada caso, para vermos se as razões para desobedecer
são mais fortes do que aquelas que sugerem a obediência. Se, por
exemplo, a prática de atos ilegais for a única maneira de impedir
inúmeros procedimentos experimentais dolorosos feitos com
animais, de salvar importantes regiões naturais ou de obter cortes
significativos nas emissões de gases do efeito estufa, a importância
dos fins justificaria que se corresse algum risco de contribuir para
um declínio geral da obediência às leis.

Democracia
A esta altura, alguns dirão: a diferença entre os feitos heroi-
cos de Oskar Schindler e os atos ilegais indefensáveis da Frente
de Libertação dos Animais, de Joan Andrews, dos adversários da
390 ÉTICA PRATICA

construção da represa no rio Franklin e daqueles que praticam a


desobediência civil para incentivar que se faça alguma coisa em
relação às mudanças climáticas está em que, na Alemanha na-
zista, não existiam canais legais a que Schindler pudesse recorrer
para mudar a situação. Todos os outros viviam numa democra-
cia e poderiam ter utilizado meios legais para pôr fim àquilo que
consideravam errado. A existência de procedimentos legais para
alterar a lei faz o uso de meios ilegais se tornar injustificável.
É verdade que, nas sociedades democráticas, existem proce-
dimentos legais que podem ser usados por quem busca refor-
mas; por si só, porém, isso não mostra que o uso de meios ilegais
seja sempre errado. Os canais legais podem existir, mas as pers-
pectivas de usá-los para provocar mudanças no futuro previsível
podem ser quase nulas. Enquanto se faz um progresso lento e
penoso - ou, talvez, progresso nenhum - por meio desses canais
legais, os erros indefensáveis que se está tentando impedir conti-
nuarão sendo praticados. Antes da luta bem-sucedida para sal-
var o rio Franklin, já se havia feito uma campanha política
contra a construção de outra represa, proposta pela Comissão
Hidrelétrica da Tasmânia, que inundaria o Pedder, um lago al-
pino intocado que se situava num parque nacional. A referida
campanha recorreu a uma tática política mais ortodoxa. Fracas-
sou, e o lago Pedder desapareceu sob as águas da represa. O la-
boratório do dr. Gennarelli já vinha fazendo experiências havia
muitos anos antes de ser tomado de assalto pela Frente de Liber-
tação dos Animais. Sem a prova das fitas de vídeo roubadas,
o laboratório provavelmente teria funcionado durante muitos
anos ainda. Da mesma maneira, a Operação Salvamento foi
criada depois que catorze anos de ação política mais convencio-
nal não foram capazes de reverter a situação legal permissi-
va em relação ao aborto que existe nos Estados Unidos desde
que, em 1973, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitu-
cionais as leis que o restringiam. Durante esse período, segundo
Gary Leber, da Operação Salvamento, "25 milhões de norte-
-americanos foram 'legalmente' assassinados". Os manifestantes
DESOBEDIENCIA CIVIL, VIOiENCIA E TERRORISMO 391

que se preocupam com as mudanças climáticas acreditam, com


bons motivos, que logo será demasiado tarde para evitar altera-
ções perigosas e irreversíveis nos climas da Terra. Quando ado-
tamos a perspectiva dos desobedientes, é fácil perceber por que
a existência de canais legais para a introdução de mudanças na
sociedade não resolve o dilema moral. Uma possibilidade extre-
mamente remota de mudança legal não é um motivo forte con-
tra o uso de meios ilegais que têm maiores probabilidades de
êxito. O máximo que pode decorrer da mera existência desses
canais legítimos é que, como só podemos saber se serão eficazes
quando tivermos recorrido a eles, sua existência constitui uma
razão para postergar os atos ilegais até que os meios legais te-
nham sido tentados, mas em vão.
Aqui, o partidário das leis democráticas pode tentar outra
tática: se os meios legais não forem capazes de produzir a reforma
desejada, isso mostrará que a reforma proposta não conta com a
aprovação da maioria do eleitorado; e a tentativa de implementar
a reforma através de meios ilegais, contra a vontade da maioria,
seria uma violação do princípio fundamental da democracia, ou
seja, a vontade da maioria.
O militante pode contestar esse argumento com base em
duas premissas, uma facrual e outra filosófica. A alegação factual
contida no argumento do democrata é a de que uma reforma
incapaz de ser implementada por meios legais não conta com a
aprovação da maioria do eleitorado. Isso talvez seja verdadeiro
numa democracia direta, na qual todo o eleitorado votaria em
cada uma das questões em pauta, mas, sem dúvida, nem sempre
se pode afirmá-lo como verdadeiro no caso das modernas
democracias representativas. Não há como assegurar que, com
relação a qualquer problema especifico, uma maioria de repre-
sentantes vá adotar o mesmo ponto de vista que a maioria de
seus constituintes. Podemos ter uma razoável certeza de que a
maioria dos norte-americanos que viram, na televisão, trechos
dos vídeos de Gennarelli não teriam defendido as experiências.
Não é assim, porém, que as decisões são tomadas numa democra-
392 ÉTICA PRATICA

cia. Ao escolherem seus representantes - ou seus partidos políti-


cos -, os eleitores optam por um "pacote", em detrimento de
outros pacotes que lhes são apresentados. Quase sempre acontece
que, para votarem nas propostas que apoiam, os eleitores devem
aceitar outras propostas que não são de seu agrado. Também
pode acontecer que as propostas preferidas pelos eleitores não
sejam oferecidas por nenhum dos principais partidos. No caso do
aborto, nos Estados Unidos, a decisão crucial não foi tomada por
uma maioria de eleitores, mas pelo Supremo Tribunal Federal.
Não pode ser derrubada por uma maioria simples de eleitores,
mas somente pelo próprio tribunal ou através do complexo proce-
dimento de uma emenda constitucional, que pode ser derrubada
por uma minoria do eleitorado.
E se uma maioria aprovasse o erro ao qual os militantes
querem pôr fim? Seria errado, então, recorrer aos meios ilegais?
Temos, aqui, o postulado filosófico subjacente ao argumento
democrático a favor da obediência, ou seja, o pressuposto de que
devemos acatar as decisões majoritárias.
A questão da ascendência da maioria não deve ser vista com
exagero. Nenhum democrata sensato afirmaria que a maioria
está sempre certa. Se 49% da população pode estar errada, o
mesmo pode acontecer com 51%. O fato de a maioria apoiar
ou não os pontos de vista da Frente de Libertação dos Animais,
os da Operação Salvamento ou os dos manifestantes preocu-
pados com as mudanças climáticas não determina se esses
pontos de vista são ou não moralmente corretos. Talvez o fato
de tais grupos serem minoritários - se é que são - signifique
que eles devam reconsiderar seus meios. Com uma maioria em
sua retaguarda, poderiam alegar estar agindo de acordo com os
princípios democráticos, recorrendo a meios ilegais para superar
falhas do mecanismo democrático. Sem essa maioria, todo o
peso da tradição democrática se volta contra eles, e são eles que
aparecem como a força coercitiva que tenta obrigar a maioria
a aceitar algo contra sua vontade. Que peso moral devemos,
porém, atribuir aos princípios democráticos?
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 393

Como seria de esperar, Thoreau não se deixava impressio-


nar pela tomada de decisões majoritárias. "Toda eleição", escre-
veu ele, "é uma espécie de jogo, como o de damas ou o gamão,
acrescido de um leve matiz de moralidade; um jogo com o certo
e o errado, com as questões morais". Em certo sentido, Thoreau
tinha razão. Se, como é preciso, rejeitarmos a doutrina de que a
maioria está sempre certa, submeter as questões morais a uma
eleição equivale a apostar que aquilo que acreditamos ser o certo
vai ser aprovado com mais votos do que aquilo que considera-
mos errado; e essa é uma aposta que muitas vezes perderemos.
Não obstante, não devemos exagerar em nosso desdém
pelas eleições ou apostas quando a alternativa é algo ainda pior.
Os caubóis que decidem suas questões de honra em um jogo
de pôquer agem muito melhor do que aqueles que continuam
a resolver essas questões da maneira tradicional que vemos nos
faroestes. Uma sociedade que resolve suas controvérsias por
eleições age melhor do que uma sociedade que o faz pelo uso
de armas - o que, no fim das contas, provavelmente deixará de
levar à conclusão correta tanto quanto o voto. Até certo ponto,
essa é uma questão com a qual já deparamos, sob o título de
"a lei e a ordem". Aplica-se a qualquer sociedade que tenha um
método estabelecido e pacífico de resolver suas divergências;
numa democracia, porém, há uma diferença sutil que confere
mais peso ao resultado do processo de tomada de decisões.
Um método de resolver as controvérsias no qual ninguém tem
um poder maior do que os outros é um método que pode ser
recomendado a todos como um excelente compromisso entre
reivindicações antagônicas ao poder. Qualquer outro método
deve atribuir maior poder a alguns e menos a outros, sendo,
portanto, um convite à oposição por parte dos que têm menos.
Em todo caso, isso vale para a época igualitária em que vivemos.
Numa sociedade feudal, onde as pessoas aceitam como justo e
natural seu papel de senhor ou vassalo, não se contesta o poder
do senhor feudal e não se faz necessária uma solução concilia-
tória (estou pensando em termos de um sistema feudal ideal,
assim como de uma democracia ideal). Na maior parte do
394 ÉTICA PRATICA

mundo, porém, parece que essa época já passou e não voltará.


O esfacelamento da autoridade tradicional criou a necessidade
de concessões políticas; entre as possíveis, a única aceitável por
todos é aquela que consiste em dar a cada um o direito a um
voto. Desse modo, na ausência de um processo consensual
que nos permita optar por outra modalidade de distribuição
do poder, essa solução oferece, em princípio, a mais sólida das
bases possíveis para o estabelecimento de um método pacifico
de resolução das controvérsias.
Portanto, rejeitar a ascendência da maioria equivale a rejei-
tar a melhor base possível para o ordenamento pacífico de urna
sociedade numa época igualitária. Para onde mais nos podería-
mos voltar? Para um sistema eleitoral rneritocrático, com um
maior número de votos à disposição dos mais inteligentes ou
mais cultos, corno John Stuart Mill urna vez propôs? De que
modo, porém, chegaríamos a um acordo a respeito de quem
teria direito a um maior número de votos? Para um déspota
esclarecido? Muitos estariam de acordo com isso, desde que
pudessem escolher o déspota. Na prática, o resultado provável
do abandono da ascendência da maioria não é nenhum desses:
é a ascendência dos que dispõem da maior força. Aqueles que
praticam a desobediência em relação a urna questão - digamos,
a dos direitos dos animais - fariam bem em lembrar que haverá
outras questões nas quais eles apoiarão a lei e desejarão impô-la
às pessoas que estão tentando pôr fim a uma prática que eles
mesmos aprovam. Muitas pessoas no movimento em prol dos
direitos dos animais acreditam que as mulheres deveriam ter
o direito de acesso a abortos legais e seguros, e muitas pessoas
no movimento contrário ao aborto nada veern de errado nas
experiências realizadas com animais nem com o abate desses
seres para nossa alimentação. Esses integrantes da Frente de
Libertação dos Animais, portanto, quererão que a lei se faça
valer contra a Operação Salvamento, e vice-versa.
Portanto, o princípio da ascendência da maioria tem um
grande peso moral. A desobediência é mais fácil de justificar numa
ditadura corno a da Alemanha nazista do que numa democracia
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 395

como a que hoje existe nos Estados Unidos, na Europa, na Índia,


no Japão ou na Austrália. Em uma democracia, relutaríamos
em praticar qualquer ação que equivalesse a uma tentativa de
coagir a maioria, pois essas tentativas implicam a rejeição de sua
ascendência, e não existe nenhuma alternativa aceitável a isso.
É evidente que pode haver casos nos quais a decisão majoritária
seja tão pavorosa que a coerção se justifique, sejam quais forem
os riscos a correr. A obrigação de obedecer a uma verdadeira
decisão majoritária não é absoluta. Não demonstramos nosso
respeito pelo princípio da cega obediência à maioria, mas por
considerarmos justificada a desobediência somente em circuns-
tâncias extremas.

Desobediência civil e de outros tipos


Se resumirmos nossas conclusões sobre o uso de meios
ilegais para a conquista de fins meritórios, descobriremos que:
(1) existem razões pelas quais devemos, normalmente, aceitar
o veredito de um método estabelecido e pacífico de solucionar
divergências; (2) essas razões são particularmente fortes quando
o método for democrático e o veredito representar um genuíno
ponto de vista majoritário; mas, (3) ainda existem situações nas
quais o uso de meios ilegais pode ser justificado.
Vimos que existem duas maneiras distintas pelas quais seria
possível tentar justificar o uso de meios ilegais numa sociedade
amplamente democrática. A primeira baseia-se em que a decisão
à qual nos estamos opondo não constitui uma genuína expres-
são do ponto de vista da maioria. A segunda é a de que, embora
a decisão seja uma genuína expressão do ponto de vista da maio-
ria, esse ponto de vista é tão errado que a ação contra a maioria
se justifica.
É a desobediência com base no primeiro motivo que mais
merece o nome de "desobediência civil". Nesse caso, o uso de
meios ilegais pode ser visto como uma extensão do uso de meios
legais para garantir uma decisão verdadeiramente democrática.
A extensão pode ser necessária porque os canais normais para
396 ÉTICA PRÁTICA

garantir a conquista de uma reforma não estejam funcionando


adequadamente. No que diz respeito a determinados problemas,
os representantes eleitos são excessivamente influenciados por
lobbies capazes de contribuir com grandes doações para suas
campanhas de reeleição. No caso de outras questões, a popula-
ção sequer sabe o que está acontecendo. Talvez os interesses
legítimos de uma minoria sejam ignorados por autoridades
preconceituosas. Em todos esses casos, as formas hoje correntes
de desobediência civil - resistência passiva, marchas ou greves
brancas - são apropriadas. O bloqueio da estrada da Comis-
são Hidrelétrica, que levava ao local onde havia sido proposta
a construção da represa no rio Franklin, e o protesto diante
da Usina Termoelétrica do Capitólio foram casos clássicos de
desobediência civil nesse sentido.
Em situações como essa, a desobediência à lei não é uma
tentativa de coagir a maioria. Pelo contrário, a desobediência
tenta informar a maioria; ou convencer os representantes eleitos
de que um grande número de eleitores tem opiniões definidas
sobre o problema; ou chamar a atenção de todo um país para
uma questão anteriormente deixada a cargo de burocratas; ou,
ainda, pedir a reconsideração de uma decisão tomada de forma
por demais precipitada. A desobediência civil é um meio apro-
priado para se chegar a semelhantes fins sempre que os meios
legais falham, pois, apesar de ilegal, não ameaça a maioria nem
tenta coagi-la (ainda que, em geral, lhe imponha custos adicio-
nais ou inconveniências). Ao não resistirem à força da lei, ao não
optarem por uma estratégia de violência e ao aceitarem as pena-
lidades legais por seus atos, aqueles que praticam a desobediên-
cia civil tornam patentes a sinceridade de seu protesto e seu
respeito pelo Estado de direito e pelos princípios fundamentais
da democracia.
Assim concebida, a desobediência civil geralmente é justifi-
cável. A justificativa não precisa ser suficientemente forte para
passar por cima da obrigação de obedecer a uma decisão demo-
crática, uma vez que a desobediência é uma tentativa de restaurar o
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 397

processo democrático de tomada de decisões, e não de frustrá-


-lo. Esse tipo de desobediência poderia ser justificado, por exem-
plo, pelo objetivo de levar a público a informação de que regiões
naturais insubstituíveis e prestes a serem inundadas para a cons-
trução de uma represa serão perdidas, ou de que animais são
maltratados em laboratórios e fazendas industriais que a grande
maioria das pessoas nunca vê.
O uso de meios ilegais para impedir a prática de ações
inegavelmente de acordo com o ponto de vista da maioria é
mais difícil de justificar, mas não impossível. Podemos achar
improvável que uma política de genocídio à maneira nazista
alguma vez viesse a ser aprovada pelo voto da maioria, mas, se
isso acontecesse, o respeito pelo voto majoritário estaria sendo
levado a extremos absurdos para que alguém se sentisse obrigado
a aceitar a decisão da maioria. Para fazer frente a males dessa
magnitude, justifica-se o uso de praticamente todos os meios
que possam ser eficazes.
O genocídio é um caso extremo. Admitir que ele justifica o
uso de meios ilegais até mesmo contra a vontade da maioria
proporciona muito pouco em termos de ação política prática.
Contudo, admitir uma só exceção ao dever de se sujeitar às de-
cisões democráticas suscita novas questões: onde se vai traçar a
linha divisória entre maldades como o genocídio, em que a obri-
gação é claramente sobrepujada, e questões menos graves, em
que a obrigação permanece? E quem vai decidir de que lado
dessa linha imaginária estará situado determinado problema?
Gary Leber, da Operação Salvamento, escreveu que, desde 1973,
só nos Estados Unidos "já destruímos quatro vezes mais pessoas
do que Hitler". Ronnie Lee, um dos fundadores da Frente de
Libertação dos Animais na Grã-Bretanha, também recorreu à
metáfora nazista para representar o que fazemos com os ani-
mais, dizendo: '~inda que sejamos apenas uma espécie dentre as
muitas existentes na Terra, instituímos um Reich que domina
totalmente todos os outros animais e até mesmos os escraviza".
Não é de surpreender, portanto, que esses ativistas vejam a deso-
398 ÉTICA PRATICA

bediência civil como um curso de ação plenamente justificado.


Mas deveriam ser eles a tomar essa decisão? Se não forem eles,
quem deveria decidir quando um problema é tão grave que, até
mesmo numa democracia, deve-se passar por cima da obrigação
de obedecer à lei?
Eis a única resposta que se pode dar a essa pergunta:
devemos decidir, por nós mesmos, de que lado da linha divisó-
ria se situa cada caso específico. Não existe outra maneira de
decidir, pois o método usado pela sociedade para resolver seus
problemas já tomou sua decisão. A maioria não pode ser juiz
de seus próprios atos. Se achamos que a decisão da maioria está
errada, precisamos nos resolver quanto à gravidade de tal erro.
Isso não significa que qualquer decisão que tomemos
para semelhante problema seja subjetiva ou arbitrária. Neste
livro, apresentei argumentos sobre cerro número de problemas
morais. Se aplicarmos esses argumentos aos cinco casos com os
quais este capítulo se iniciou, veremos que eles levam a conclu-
sões específicas. O projeto racista do nazismo de exterminar os
judeus foi uma atrocidade óbvia, e Oskar Schindler estava intei-
ramente certo ao fazer o possível para impedir que alguns judeus
se tornassem vítimas do programa (dado o risco pessoal que ele
correu, foi também moralmente heroico ao fazê-lo). Com base
nos argumentos apresentados no Capítulo 3 deste livro, eram
erradas as experiências que Gennarelli fazia com os macacos,
pois tratavam criaturas sencientes como meras coisas a serem
usadas como instrumento de pesquisa. Interromper experiências
desse tipo é um objetivo desejável, e, se a única maneira de conse-
gui-lo era invadir o laboratório de Gennarelli e roubar as fitas,
a ação era justificável. Da mesma forma, por razões analisadas
no Capítulo 10, inundar o vale do rio Franklin para gerar uma
quantidade relativamente pequena de eletricidade só poderia ter
por base valores que adotavam um ponto de vista a curto prazo e
eram indefensavelmente antropocêntricos. A desobediência civil
foi um meio apropriado de afirmar a importância dos valores que
haviam sido negligenciados pelos que defendiam a construção
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 399

da represa. Poderíamos dizer a mesma coisa da desobediência civil


que se opõe às mudanças climáticas - nesse caso, de fato, dada a
extensão do desastre que provavelmente ocorrerá se as emissões
dos gases do efeito estufa não forem abruptamente reduzidas nos
próximos anos, a pergunta que talvez coubesse seria: por que,
até o momento, viu-se tão pouca desobediência civil?
Por outro lado, vimos, no Capítulo 6, que os argumentos
subjacentes às ações de Joan Andrews mostraram-se falhos.
O feto humano não tem direito ao mesmo tipo de proteção a
que fazem jus os seres humanos mais velhos e, portanto, aqueles
que consideram o aborto moralmente equivalente ao assassinato
estão errados. Com base nesses pressupostos, a campanha de
desobediência civil contra o aborto não é justificável. É impor-
tante, porém, dar-se conta de que o erro está no raciocínio moral
sobre o aborto de Andrews, e não em seu raciocínio moral sobre
a desobediência civil. Se, de fato, o aborto fosse moralmente
equivalente ao assassinato, todos nós deveríamos ir para as ruas
e bloquear a entrada de todas as clínicas de aborto.
Essas coisas tornam a vida difícil, sem dúvida. É impro-
vável que Andrews se deixe convencer pelos argumentos conti-
dos neste livro. Seu apego às citações bíblicas sugere que sua
oposição ao aborto seja fundamentalmente religiosa. Portanto,
não existe uma maneira fácil de convencê-la de que sua desobe-
diência civil é injustificável. Podemos lamentar o fato, mas não
há nada que se possa fazer a respeito. Não existe um preceito
moral único que nos permita determinar quando a desobediên-
cia é justificável e quando não o é, sem entrarmos na questão
dos erros e acertos cometidos por quem é alvo da desobediência
(como vimos, porém, a Operação Salvamento não pratica mais
a desobediência civil, talvez por ter chegado à conclusão de que
essas táticas não a ajudavam a atingir seu objetivo de pôr fim ao
aborto nos Estados Unidos).
Quando estamos convencidos de que procuramos inter-
romper algo que realmente constitui um grave erro moral, temos
ainda outras perguntas de ordem moral a nos fazer. Precisa-
400 ÉTICA PRATICA

mos confrontar a magnitude do mal que estamos tentando


deter com a possibilidade de que nossas ações ajudem a causar
a um drástico declínio do respeito pela lei e pela democracia.
Também devemos levar em conta a probabilidade de que nossas
ações fracassem em seus objetivos e provoquem uma reação que
reduza as possibilidades de se obter sucesso por outros meios
(por exemplo, os ataques violentos aos pesquisadores, que estimu-
lam a comunidade científica a estigmatizar todos os críticos das
experiências com animais como terroristas).
Um resultado de uma abordagem consequencialista dessa
questão - que pode, à primeira vista, parecer estranho - consis-
te em que, quanto mais profundamente arraigado for o hábito
de obediência às regras democráticas, tanto mais fácil será de-
fender a desobediência. Não há paradoxo nenhum aí: trata-se,
apenas, de mais um exemplo da verdade prosaica de que, en-
quanto as plantas jovens precisam de cuidados especiais, as mais
velhas podem deles prescindir. Assim, com relação a determina-
do problema, a desobediência talvez fosse justificável na Grã-Bre-
tanha ou nos Estados Unidos, mas não num país que enfrentou
recentemente uma ditadura e uma guerra civil e agora tenta es-
tabelecer um sistema democrático de governo.
Cada caso é único, e essas questões não podem ser resolvi-
das genericamente. Quando os males a serem extirpados não são
nem profundamente horrendos (como o genocídio), nem relativa-
mente inócuos (como a criação de uma nova bandeira nacional),
as pessoas sensatas terão opiniões diferentes quanto à justifica-
bilidade de se tentar impedir a implementação de uma decisão
ponderada à qual se chegou por via democrática. Quando meios
ilegais são usados com essa finalidade, um importante passo foi
dado, pois a desobediência, então, deixa de ser "desobediência
civil"- se por esse termo se entende a desobediência que se justi-
fica por um apelo a princípios que a própria comunidade aceita
como a maneira ideal de lidar com seus problemas. É melhor que
essa desobediência seja civil também no outro sentido do termo,
o que se opõe ao uso da violência ou às táticas do terrorismo.
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 401

Violência e terrorismo
Como vimos, a desobediência civil usada como meio de
chamar a atenção da população ou de convencer a maioria a
reconsiderar suas opiniões é muito mais fácil de justificar do que
a desobediência cuja finalidade seja coagir a maioria. A violência
é, obviamente, ainda mais difícil de defender. Alguns chegam
a afirmar que o uso de violência como meio, sobretudo a violência
contra pessoas, nunca pode ser justificado, por mais importante
que seja o fim.
A oposição ao uso de violência pode ser feita com base
numa regra absoluta ou numa avaliação de suas consequências.
Os pacifistas costumam ver o uso de violência como absoluta-
mente errado, a despeito de suas consequências. Essa proibição,
bem como outras do tipo "não importa o quê", admite a validade
da distinção entre atos e omissões. Sem essa distinção, os pacifis-
tas, que recusam o uso de violência quando ela for o único meio
de impedir uma violência ainda maior, seriam responsáveis pelo
recrudescimento da violência que resultou de sua omissão.
Suponhamos que temos a oportunidade de assassinar um
tirano que mata sistematicamente as pessoas que ele descon-
fie serem da oposição. Sabemos que, se o tirano morrer, muito
provavelmente será substituído por um conhecido líder oposicio-
nista que, no momento, se encontra exilado, mas que, ao voltar,
restabelecerá o Estado de direito. Se dissermos que a violência
é sempre um erro e nos recusarmos a executar esse assassinato,
não deveremos arcar com uma parte da responsabilidade pelos
futuros assassinatos cometidos pelo tirano?
Se são bem fundadas as objeções à distinção entre atos e
omissões que apresentamos no Capítulo 7, aqueles que não recor-
rem à violência para impedir uma violência maior têm de assumir
a responsabilidade pela violência que poderiam ter evitado.
Assim, a rejeição da distinção entre atos e omissões estabelece
uma diferença crucial para a discussão da violência, pois abre a
porta para um argumento plausível em defesa da violência.
402 ÉTICA PRÁTICA

Os marxistas faziam uso desse argumento para refutar os


ataques à sua posição favorável à revolução violenta. Em sua
clássica acusação dos efeitos sociais do capitalismo do século xrx,
A situação das classes trabalhadoras na Inglaterra, Engels escreveu:

Se um indivíduo inflige a outro uma lesão corporal que leva à


morte da pessoa agredida, damos a isso o nome de homicídio
culposo; por outro lado, se o agressor sabe de antemão que o
golpe será fatal, referimo-nos a seu ato como assassinato. O assas-
sinato também é cometido quando uma sociedade coloca cente-
nas de trabalhadores numa situação que os leva, inevitavelmente,
a fins prematuros e anti naturais . Sua morte é tão violenta quanto
se tivessem sido apunhalados ou baleados [...]. O assassinato terá
sido praticado se milhares de trabalhadores tiverem sido privados
das necessidades vitais, ou sempre que se virem forçados a uma
situação na qual lhes seja impossível sobreviver [.. .].O assassinato
terá sido praticado se a sociedade souber perfeitamente bem que
milhares de trabalhadores não poderão deixar de ser sacrificados
enquanto se permitir que essas condições continuem existindo.
Esse tipo de assassinato é tão doloso quanto aquele que é prati-
cado por um indivíduo. À primeira vista, não se assemelha nem
um pouco a um assassinato, pois a responsabilidade pela morte
da vítima não pode ser atribuída a nenhum agressor específico.
Todos são responsáveis e, no entanto, ninguém é responsável,
pois parece que a vítima morreu de causas naturais. Se um traba-
lhador morre, ninguém atribui a responsabilidade por sua morte
à sociedade, ainda que alguns se deem conta de que a sociedade
não tomou as medidas necessárias para impedir que a vítima
morresse. Mesmo assim, porém, trata-se de assassinato.

Poderíamos objetar ao uso dado por Engels à palavra


"assassinato". A objeção lembraria os argumentos discutidos
no Capítulo 8, quando nos perguntamos se nossa omissão em
ajudar os que morrem de fome faz de nós assassinos. Vimos que
não existe nenhuma importância intrínseca na distinção entre
atos e omissões; mas, do ponto de vista da motivação e da justeza
da atribuição de culpa, a maior parte dos casos em que não se
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 403

impede que alguém morra não é equivalente ao assassinato.


O mesmo se aplicaria aos casos descritos por Engels. O filósofo
tenta atribuir a culpa à "sociedade", mas esta não é uma pessoa
nem um agente moral, e não pode, portanto, ser responsabili-
zada da mesma maneira que um indivíduo.
Ainda assim, trata-se de uma crítica rasa. Se "assassinato"
é ou não a palavra certa, se estamos ou não dispostos a considerar
"violentas" as mortes de operários subnutridos que trabalham em
fábricas insalubres e inseguras, a questão fundamental colocada
por Engels permanece. Essas mortes são um erro da mesma
magnitude das mortes de centenas de pessoas num atentado
terrorista. Seria unilateral afirmar que a revolução violenta seja
sempre absolutamente errada, sem levarmos em consideração
os males que os revolucionários estão tentando extirpar. Se os
meios violentos fossem a única maneira de modificar as condi-
ções descritas por Engels, aqueles que se opuseram ao uso de
meios violemos teriam de ser responsabilizados pela continui-
dade dessas condições.
Algumas das práticas que descrevemos neste livro são
violentas, tanto diretamente quanto por omissão. No caso dos
animais não humanos, o tratamento que lhes concedemos é quase
sempre violento de um modo ou de outro. Obviamente, aqueles
que consideram o feto humano um sujeito moral verão o aborto
como um ato violento contra ele. No caso de seres humanos
recém-nascidos, ou já com um breve tempo de vida, o que
dizer de uma situação evitável em que alguns países apresentam
índices de mortalidade vinte vezes maiores do que outros, e uma
pessoa nascida em um país pode esperar viver trinta anos mais
do que alguém que tenha nascido em outro? Será isso violência?
Como vimos no Capítulo 9, o presidente Museveni, de Uganda,
afirmou que as nações industrializadas, ao emitir os gases do
efeito estufa, cometem uma agressão contra os países em desen-
volvimento das regiões tropicais. Mais uma vez, realmente não
importa o termo que usamos: em seus efeitos, essas práticas são
tão terríveis quanto a violência.
404 ÉTICA PRÁTICA

As condenações absolutas da violência mantêm-se ou caem


com a distinção entre atos e omissões. Portanto, caem. Existem,
porém, fortes objeções consequencialistas ao uso da violência.
Até aqui, baseamos nossa discussão no pressuposto de que
a violência poderia ser o único meio de mudar as coisas para
melhor. Os consequencialistas precisam perguntar se alguma
vez a violência configura o único meio para se chegar a um fim
importante, ou, se não o único meio, pelo menos o mais rápido.
Devem também perguntar sobre os efeitos a longo prazo de se
almejar à transformação por meios violentos.
Poderia alguém defender, em bases consequencialistas, uma
condenação da violência que, na prática - quando não também
em princípio -, é tão abrangente quanto a do pacifista radical?
Poderíamos tentar essa defesa enfatizando o efeito de recru-
decimento que o uso de violência traz consigo: de que modo a
perpetração de um assassinato, não importa quão "necessário" ou
"justificado" ele possa parecer, diminui a resistência à perpetração
de novos assassinatos. É provável que as pessoas que se habitua-
ram a agir violentamente sejam capazes de criar uma sociedade
melhor? Eis uma questão com referência à qual o registro histórico
é relevante. O curso tomado por várias revoluções - da Revolu-
ção Francesa de 1789 à Revolução Bolchevique, na Rússia, e,
talvez a mais terrível de todas, o regime do Khmer Vermelho no
Camboja- deve abalar a crença em que um desejo veemente de
justiça social produza imunidade contra os efeitos espúrios da
violência. Existem, reconhecidamente, outros exemplos passí-
veis de outro tipo de leitura, mas precisaríamos de um consi-
derável número de exemplos para superar, em importância, o
legado de Robespierre, Stálin e Pol Pot.
O pacifista consequencialista pode usar outro argumento,
semelhante àquele que ofereci contra a sugestão de que devemos
permitir que a morte por inanição reduza as populações dos
países mais pobres a um patamar em que tivessem condições de
se alimentar. Assim como essa política, a violência envolve certo
dano, que se diz justificado pelas perspectivas de benefícios futuros.
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 405

Esses benefícios futuros, porém, nunca podem ser assegurados, e,


mesmo nos raros casos em que a violência realmente chega a fins
desejáveis, dificilmente podemos estar seguros de que os fins não
poderiam ter sido alcançados com a mesma rapidez por meios não
violentos. O que, por exemplo, foi conseguido com os milhares de
mortos e feridos em decorrência de décadas de atentados terroris-
tas do IRA, na Irlanda do Norte? Nada, além do contraterrorismo
praticado por grupos protestantes extremistas. Podemos pensar,
também, nas mortes e nos sofrimentos inúteis provocados pelo
Baader-Meinhoff, na Alemanha, ou pelas Brigadas Vermelhas, na
Itália. O que a causa do povo palestino ganhou com o terrorismo,
além de um Israel menos transigente e mais agressivo do que era
quando essa luta começou tantos anos - e tantas vidas - atrás? Por
mais espetacular que tenha sido o êxito operacional de Al-Qaeda
no dia 11 de setembro de 2001, parece muito improvável que o
assassinato de milhares de norte-americanos tenha deixado essa
organização mais próxima de pôr um fim à supremacia militar
dos Estados Unidos no Oriente Médio, que dirá de coagir os EUA
a se tornar um estado islâmico. Podemos simpatizar com os fins
pelos quais lutam alguns desses grupos - não todos! -, mas,
se os meios empregados causam um mal incontestável a pessoas
inocentes e não garantem que os objetivos serão alcançados, então
é errado utilizá-los. Esses argumentos consequencialistas contri-
buem para fortalecer a posição contra o uso da violência enquanto
meio, sobretudo nos casos em que ela se volta, indiscriminada-
mente, contra cidadãos comuns, como quase sempre é o caso da
violência terrorista. Em termos práticos, esse tipo de violência
parece impossível de se justificar.
Existem outros tipos de violência que não podem ser excluí-
dos de maneira tão convincente. Há, por exemplo, o já mencio-
nado assassinato de um tirano homicida. Nessas circunstâncias,
desde que as políticas de extermínio sejam uma expressão da
personalidade do tirano, e não das instituições por ele contro-
ladas, desde que a violência seja estritamente limitada, que o
objetivo seja impedir uma violência muito maior, que não haja
406 ÉTICA PRATICA

outra maneira de deter essa violência mais disseminada e que o


sucesso de um único ato de violência seja extremamente provável,
a violência é justificável.
A violência pode ser limitada de uma maneira diferente.
Os casos que até aqui examinamos envolvem violência contra
pessoas. São esses os casos clássicos que nos vêm à mente ao
discutirmos a violência, mas existem outros tipos. Os membros
da Frente de Libertação dos Animais danificaram laborató-
rios, jaulas e equipamentos usados para prender, machucar ou
matar animais, mas evitam qualquer violência contra quaisquer
animais, sejam eles humanos ou não (nem todas as organizações
militantes pelos direitos dos animais seguiam essa diretriz: pelo
menos duas pessoas saíram feridas por causa de bombas planta-
das por gente que alegava agir em defesa dos animais. Esses atos
foram condenados por outros grupos, inclusive pela Frente de
Libertação dos Animais).
Os danos à propriedade não constituem um problema tão
grave como a lesão ou a morte de pessoas: podem ser justifi-
cados com argumentos que não justificariam algo que fizesse
mal a seres sencientes. Isso não significa que a violência contra
a propriedade não seja importante. A propriedade significa
muito para algumas pessoas, e só razões muito fortes poderiam
justificar sua destruição. Essas razões, porém, podem existir.
A justificativa poderia não ser nada de tão memorável a ponto
de transformar a sociedade. Como no caso da invasão do labora-
tório de Gennarelli, poderia ser o objetivo específico e a curto
prazo de salvar alguns animais de procedimentos experimentais
dolorosos que só eram feitos com animais devido ao viés especista
da sociedade. Mais uma vez, se essa ação seria realmente justi-
ficável de um ponto de vista consequencialista dependeria dos
detalhes da situação concreta. Alguém sem conhecimento de
causa poderia enganar-se facilmente quanto ao valor de uma
experiência ou quanto ao grau de sofrimento causado por ela.
Além do mais, será que, da destruição de equipamentos e da
libertação de alguns animais, não poderá resultar simplesmente
DESOBEDIÊNCIA CIVIL, VIOLÊNCIA E TERRORISMO 407

que novos equipamentos sejam comprados e novos animais


sejam criados? O que se vai fazer com os animais libertados?
Os atos ilegais não levarão o governo a resistir às iniciativas
no sentido de modificar as leis relativas ao uso de animais em
experiências, sob o argumento de que não deve dar a impressão
de estar cedendo à violência? Todas essas questões precisariam
ser respondidas satisfatoriamente antes que pudéssemos tomar
uma decisão favorável à destruição de um laboratório.
A violência não é fácil de se justificar, mesmo quando se
volta contra propriedades, e não contra seres sencientes, ou
quando se trata de violência contra um ditador, e não de violência
indiscriminada contra a população. Ainda assim, as diferenças
entre tipos de violência são importantes, pois é só através de sua
observação que podemos condenar um tipo de violência- aquela
praticada pelos terroristas - em termos praticamente absolutos.
As diferenças são obscurecidas pelas condenações abrangentes de
tudo quanto se insere na categoria geral de "violência".
12

Por que agir moralmente?

Em capítulos anteriores, discutimos qual deve ser nossa


conduta moral diante de uma série de questões práticas e quais
os meios justificáveis que devemos adotar para concretizar
nossos objetivos éticos. A natureza de nossas conclusões sobre
essas questões - as exigências que elas nos colocam - apresenta
uma questão nova e mais fundamental: por que devemos
agir moralmente?
Tomemos nossas conclusões sobre o uso de animais como
alimento ou sobre a ajuda que os ricos deveriam dar aos pobres.
Alguns leitores podem aceitar essas conclusões, tornando-se
vegetarianos e passando a fazer tudo o que esteja a seu alcance
para reduzir a pobreza absoluta. Outros podem discordar de
nossas conclusões, afirmando que não existe nada de errado
em comer animais e que não têm nenhuma obrigação moral de
fazer algo para reduzir a pobreza absoluta. É provável, também,
que exista um terceiro grupo, formado por leitores que não
encontrem falhas nos argumentos éticos contidos nesses capítu-
los, mas que nem por isso mudem sua alimentação ou passem
a contribuir para ajudar os pobres. Entre os membros desse
terceiro grupo, alguns não passam de pessoas de vontade fraca,
mas outros podem estar em busca de uma resposta para outra
questão prática. Se as conclusões da ética exigem tanto assim
de nós, podem eles perguntar, deveríamos ter algum tipo de
preocupação ética?
410 ÉTICA PRATICA

Compreender a questão
"Por que devo agir moralmente?" é um tipo de pergunta
diferente daquelas que temos discutido. Perguntas como "Por
que devo tratar as pessoas de grupos étnicos diferentes em igual-
dade de condições?" ou "Por que o aborto é justificável?" são
feitas em busca de razões éticas para se agir de determinada
maneira. São perguntas que pertencem à esfera da ética e que
pressupõem um ponto de vista ético. "Por que devo agir moral-
mente?" situa-se em outro nível. Não é uma questão que parte
da ética, mas uma questão sobre a ética.
"Por que devo agir moralmente?" é, portanto, uma pergunta
a respeito de algo normalmente pressuposto. Essas perguntas são
desconcertantes. Alguns filósofos acham essa pergunta específica
tão desconcertante que a rejeitam como logicamente inadequada,
como uma tentativa de perguntar uma coisa que não pode ser
perguntada adequadamente.
Uma das bases dessa rejeição é a afirmação de que nossos
princípios éticos são, por definição, os princípios que assumi-
mos como fundamentalmente importantes. Isso significa que,
sejam quais forem os princípios fundamentais para determi-
nada pessoa, eles representam, necessariamente, seus princípios
éticos, e uma pessoa que aceite como princípio ético o dever
de doar dinheiro para ajudar os pobres já decidiu, por defini-
ção, doar seu dinheiro. Segundo essa definição da ética, uma
vez que a pessoa tome uma decisão ética, é impossível que se
coloque qualquer outra questão de ordem prática. Portanto, é
impossível conferir qualquer sentido à pergunta "Por que devo
agir moralmente?".
Poder-se-ia ver como uma boa razão para aceitar a definição
de ética como fundamental o fato de que ela nos permite rejeitar,
como desprovida de sentido, uma questão que de outra forma
seria embaraçosa. Adotar essa definição não nos ajuda, porém, a
resolver problemas concretos, pois ela causa dificuldades ainda
maiores para a determinação de uma conclusão ética. Tomemos,
por exemplo, a conclusão de que os ricos devem ajudar os pobres.
POR QUE AGIR MORALMENTE 411

Apesar de o argumento a favor dessa conclusão no Capítulo 8


ter recorrido ao apelo intuitivo de nossa disposição de salvar a
criança que se afogava no lago, vimos que, se essa intuição fosse
rejeitada, ainda se poderia basear no pressuposto de que o sofri-
mento e a morte são ruins, mesmo quando não se trata de nosso
sofrimento e de nossa morte. Se definirmos os princípios éticos
como todo e qualquer princípio que se considere fundamental,
então alguém poderia dizer que seu princípio fundamental é
egoísta, e que o sofrimento e a morte de desconhecidos não têm
importância alguma. Não poderíamos invocar a universalizabi-
lidade com o intuito de negar que tal princípio poderia ser ético,
porque se tudo que uma pessoa considere fundamental valer
como seu princípio ético, não haverá lugar para a exigência de
que seus princípios sejam universalizáveis. Assim, o que ganha-
mos por sermos capazes de rejeitar a pergunta "por que devo
agir moralmente?", perdemos por não sermos capazes de usar
a universalizabilidade dos juízos éticos - ou de qualquer outra
característica da ética- para defendermos conclusões específicas
sobre o que seja moralmente certo. Considerar a ética como se,
em algum sentido, ela envolvesse necessariamente um ponto de
vista universal parece-me uma maneira mais natural e menos
confusa de discutir essas questões.
Outros filósofos acham que a pergunta "Por que devo agir
moralmente?" deve ser rejeitada pelos mesmos motivos que
nos levam a rejeitar outra pergunta, "Por que devo ser racio-
nal?". A exemplo de "Por que devo agir moralmente?", "Por que
devo ser racional?" também questiona alguma coisa já normal-
mente pressuposta. Mas questionar a racionalidade - não o uso
da razão num contexto específico, e sim no geral - é, de fato,
uma pergunta logicamente imprópria, pois, ao respondê-la,
só podemos oferecer razões para sermos racionais. Portanto,
a pessoa que faz a pergunta deve estar à procura de razões, e,
assim, pressupõe por si só a racionalidade. A consequente justi-
ficativa da racionalidade seria circular - o que mostra não que
a racionalidade careça de uma justificativa necessária, mas que
412 ÉTICA PRÁTICA

não precisa ser justificada, pois não pode ser inteligivelmente


questionada a menos que já seja pressuposta (observemos que
algumas perguntas sobre a possibilidade de usar a razão para
chegar a uma decisão são inteligíveis. Por exemplo, "Ao decidir
se confio ou não em alguém que acabo de conhecer, eu deveria
usar a razão ou o instinto?" é uma pergunta inteligível, pois
questiona o uso da razão num contexto específico. É possível
que nossos instintos se saiam melhor que a razão nesse contexto,
e, se for assim, a melhor resposta seria utilizar o instinto.
No entanto, afirmar isso é, por si só, oferecer uma razão para
não usar a razão nesse contexto, e, portanto, a pergunta não
desafia a razão propriamente dita).
"Por que devo agir moralmente?" é semelhante a "Por que
devo ser racional?" no sentido de pressupor o próprio ponto de
vista que questiona? Seria, se interpretássemos o "devo" como
um "dever" moral. Nesse caso, a pergunta remeteria às razões
morais para ser moral, o que seria absurdo. Se decidimos que
uma ação é moralmente obrigatória, não há nenhuma outra
pergunta moral a ser feita. É redundante perguntar por que devo,
moralmente, praticar a ação que é meu dever moral praticar.
Não existe, porém, nenhuma necessidade de interpretar a
pergunta como um pedido para que se justifique eticamente
a ética. "Devo" não precisa significar "devo moralmente".
Poderia, simplesmente, ser uma maneira de pedir razões para
a ação, sem qualquer especificação a respeito do tipo de razão
desejado. Às vezes, queremos fazer uma pergunta prática muito
geral, que não parte de nenhum ponto de vista específico. Diante
de uma escolha difícil, pedimos conselhos a um amigo íntimo.
Moralmente, ele nos diz, deveríamos fazer A, mas B estaria mais
de acordo com nossos interesses, ao passo que a etiqueta exige
que façamos c, mas fazer D seria "muito legal!". Essa resposta
pode não nos satisfazer. Queremos conselhos sobre quais desses
pontos de vista devemos adotar. Se é possível fazer tal pergunta,
precisamos fazê-la a partir de uma postura de neutralidade
entre todos esses pontos de vista, e não de .envolvimento com
POR QUE AGIR MORALMENTE 413

qualquer um deles. "Por que devo agir moralmente?" é esse tipo


de pergunta. Se não fosse possível fazer perguntas práticas sem
pressupor um ponto de vista, seríamos incapazes de dizer algo
compreensível sobre as escolhas práticas mais fundamentais. Se
é preciso agir ou não de acordo com considerações relativas à
ética, ao interesse pessoal, à etiqueta ou à estética, é algo que
nos colocaria diante de uma escolha "além da razão" - em certo
sentido, uma escolha arbitrária. Antes de nos resignarmos a essa
conclusão, devemos, pelo menos, tentar interpretar a pergunta
de modo que o mero fato de fazê-la não nos comprometa com
nenhum ponto de vista específico.
Agora podemos formular mais precisamente a pergunta.
Trata-se de uma pergunta sobre o ponto de vista ético, feita a
partir de uma posição extrínseca. Mas o que é "o ponto de vista
ético"? Sugeri que um traço distintivo da ética esteja em que os
juízos éticos seriam universalizáveis. A ética exige que extrapole-
mos nosso ponto de vista pessoal e nos voltemos para um ponto
de vista semelhante ao do espectador imparcial.
Dado esse conceito de ética, "Por que devo agir moral-
mente?" é uma pergunta que pode ser apropriadamente feita por
quem se questione sobre o dever de só agir com base em premis-
sas aceitáveis desse ponto de vista universal. Afinal, é possível
agir- e algumas pessoas realmente agem - sem pensar em nada,
a não ser nos próprios interesses. A pergunta remete a razões
para ir além dessa base de ação pessoal e só agir com base em
juízos que estejamos dispostos a prescrever universalmente.

Razão e ética
Há uma antiga corrente de pensamento filosófico que tenta
demonstrar que agir racionalmente é o mesmo que agir etica-
mente. Hoje, o argumento é associado a Kant, sendo encontrado
em especial nos escritos dos kantianos modernos, muito embora
remonte aos estoicos. A forma em que o argumento é apresen-
tado varia, mas a estrutura comum tende a ser a seguinte:
414 ÉTICA PRATICA

1. Alguma exigência de universalizabilidade ou imparciali-


dade é fundamental para a ética.
2. A razão teórica ou prática é universal ou objetivamente
válida. Se, por exemplo, decorre das premissas "todos
os seres humanos são mortais" e "Sócrates é humano"
que Sócrates é mortal, então essa inferência deve valer
universalmente. Não pode ser válida para mim e inacei-
tável para você.

Logo:

3. Só um juízo que atenda à exigência descrita em (1) como


condição necessária de um juízo ético será um juízo
objetivamente racional em conformidade com (2). Pois
não posso esperar que outros agentes racionais aceitem
como válido, para eles, um juízo que eu não aceitaria
se estivesse em seu lugar; e, se dois agentes racionais
não pudessem aceitar os juízos um do outro, esses não
poderiam ser juízos racionais, pela razão oferecida em
(2). Dizer que eu aceitaria o juízo que faço, mesmo que
estivesse no lugar de outras pessoas, e elas, no meu,
equivale simplesmente a dizer que posso prescrever meu
juízo a partir de um ponto de vista universal. Tanto a
ética quanto a razão exigem que olhemos para além de
nosso ponto de vista particular e adotemos uma perspec-
tiva a partir da qual nossa própria identidade pessoal- o
papel que por acaso desempenhamos - não é impor-
tante. Portanto, a razão exige que ajamos com base
em juízos universalizáveis e que, nessa mesma medida,
ajamos eticamente.

Será válido esse argumento? Já mostrei que aceito o primeiro


ponto, o de que a ética implica universalizabilidade. O segun-
do ponto também parece inegável. A razão deve ser universal.
Portanto, podemos afirmar que a conclusão procede? É aqui que
POR QUE AGIR MORALMENTE 415

se encontra a falha do argumento. A conclusão parece derivar


diretamente das premissas, mas esse movimento implica um res-
valo: do sentido limitado em que é verdade que um juízo racional
deve ser universalmente válido para um sentido mais forte de
"universalmente válido", que equivale à universalizabilidade.
A diferença entre esses dois sentidos pode ser percebida
ao considerarmos um imperativo não universalizável, como
este, puramente egoísta: "Que todos façam o que for de meu
interesse". Isso difere do imperativo do egoísmo universali-
zável - "Que todos façam o que for de seu interesse" -, pois
contém uma referência não eliminável a uma pessoa específica.
Não pode, portanto, ser um imperativo ético. Também lhe falta
a universalizabilidade exigida para que possa ser uma base racio-
nal para a ação? A resposta é, sem dúvida, negativa. Todo agente
racional poderia aceitar que a atividade puramente egoísta de
outros agentes racionais é racionalmente justificável. O egoísmo
puro poderia ser racionalmente adotado por todos.
Examinemos mais de perto essa questão. Deve-se admitir
que existe um sentido em que um agente racional puramente
egoísta- vamos chamá-lo de J ack- não pudesse aceitar os juízos
práticos de outro agente racional puramente egoísta - vamos
chamá-la de Jill. Partindo do pressuposto de que os interesses
de Jill diferem dos de Jack, Jill pode estar agindo racionalmente
ao insistir que Jack faça A, enquanto Jack também age racional-
mente ao decidir que não vai fazer A.
Essa divergência, porém, é compatível com a aceitação do
egoísmo puro por parte de todos os agentes racionais. Ainda que
aceitem o egoísmo puro, ele os conduz para direções diferen-
tes, pois partem de posições diferentes. Quando Jack adota o
egoísmo puro, ele o leva a promover seus interesses, e o mesmo
acontece com Jill quando ela adota o egoísmo puro. Daí decorre
a divergência quanto ao que fazer. Por outro lado - e é nesse
sentido que o egoísmo puro poderia ser aceito como válido
por todos os agentes racionais -, se fôssemos perguntar a Jill
(confidencialmente, prometendo não contar a Jack) o que ela
416 ÉTICA PRÁTICA

considera racional que Jack fizesse, ela teria de responder, caso


estivesse sendo sincera, que o racional, para Jack, seria fazer o
que estivesse de acordo com os interesses dele, e não com os
interesses dela.
Portanto, quando agentes racionais puramente egoístas se
opõem mutuamente a seus atos, isso não indica uma divergência
quanto à racionalidade do egoísmo puro. Ainda que não seja
um princípio universalizável, o egoísmo puro poderia ser aceito
por todos os agentes racionais como uma base racional para a
ação. O sentido em que os juízos racionais devem ser univer-
salmente aceitos é mais frágil do que o sentido em que os juízos
éticos também devem sê-lo. "Que todos façam o que for de meu
interesse" poderia ser uma razão válida para Jack fazer o que é
de seu interesse, embora não pudesse constituir uma razão ética
para que ele o fizesse.
Uma das consequências dessa conclusão consiste em que os
agentes racionais podem tentar racionalmente impedir que cada
um faça aquilo que eles admitem que o outro está racionalmente
justificado a fazer. Infelizmente, não há nisso paradoxo algum:
de acordo com boa parte das teorias da racionalidade, trata-se
apenas de um fato da vida cotidiana. Dois vendedores que dispu-
tam uma venda importante vão aceitar a conduta de seu adver-
sário como racional, ainda que cada um tente impedir o sucesso
do concorrente. O mesmo se pode dizer de dois pretendentes
apaixonados, de soldados inimigos que se defrontam no campo
de batalha ou de jogadores de futebol que disputam a bola.
Assim, essa tentativa de demonstrar a existência de uma
ligação entre razão e ética não se consegue sustentar. Existem
outras maneiras de criar essa ligação? O principal obstáculo a
ser superado é a natureza da razão prática. Há muito tempo,
David Hume afirmou que, na esfera da ação, a razão só se aplica
aos meios, não aos fins. Os fins devem ser dados por nossas
vontades e nossos desejos. Inflexivelmente, Hume apresentou as
implicações desse ponto de vista:
POR QUE AGIR MORALMENTE 417

Não é contrário à razão preferir a destruição do mundo inteiro a


um arranhão no meu dedo. Não é contrário à razão, para mim,
optar pela minha ruína total para impedir a menor inquietação
de um indiano ou de uma pessoa que me seja totalmente desco-
nhecida. É igualmente pouco contrário à razão preferir, inclu-
sive, um bem que reconheço menor a um bem maior, e ter uma
afeição mais intensa pelo primeiro do que pelo segundo.

Por mais extremada que seja, a concepção de razão prática


de Hume tem resistido extraordinariamente bem às críticas.
Sua afirmação central- a de que, no raciocínio prático, parti-
mos de alguma coisa desejada- é difícil de refutar; mas é preciso
refutá-la, se pretendemos que algum argumento consiga mostrar
que seja racional, para nós todos, agir de modo ético, indepen-
dentemente do que desejamos.
Tentando refutar Hume, vários autores começam asseve-
rando que é racional levar em consideração os próprios desejos
futuros, independentemente de, no momento, a pessoa querer
ou não satisfazer esses desejos futuros. Em The Possibility of
Altruism [A possibilidade do altruísmo], Thomas Nagel afirmou,
vigorosamente, que não levar em consideração nossos desejos
futuros em nossas deliberações práticas indicaria uma incapa-
cidade de nos vermos como pessoas existentes no tempo, sendo
o presente apenas um momento dentre tantos outros em nossas
vidas. Portanto, para Nagel, é a concepção que tenho de mim
mesmo enquanto pessoa que torna racional, para mim, levar
em consideração meus interesses em longo prazo. Isso continua
sendo verdadeiro ainda que eu tenha "uma afeição mais intensa"
por alguma coisa que, considerados todos os aspectos, reconheço
não estar, de fato, dentro de meu campo de interesses.
Derek Parfit oferece um exemplo impressionante de alguém
que não consegue levar seus próprios interesses em consideração
no decorrer do tempo de uma maneira que espantaria muitos
de nós por ser obviamente irracional. Ele pede que imaginemos
alguém que padeça de um problema chamado "Indiferença da
Terça-Feira Futura":
418 ÉTICA PRÁTICA

Esse homem se importa com seus prazeres ou sofrimentos futuros,


exceto quando caem numa terça-feira futura qualquer. Essa estra-
nha atitude não depende de ignorância nem de falsas convicções.
O homem sabe que a dor, às terças, seria igualmente dolorosa e
igualmente sua, e que a terça-feira não difere de nenhum outro
dia da semana. Mesmo assim, se tiver como escolher, o homem,
nesse momento, preferiria a agonia de qualquer terça-feira futura
a uma dorzinha em qualquer outro dia por vir.

A respeito de uma pessoa como essa, Parfit comenta:

O fato de determinada provação ser muito mais dolorosa é


um motivo forte para não preferi-la. O fato de que tal provação
aconteceria numa terça-feira futura não é razão para preferi-la.
Portanto, as preferências desse homem são intensamente contrá-
rias à razão e irracionais.

Ele acrescenta que, embora ninguém tenha essa atitude,


ela seria semelhante ao viés com que muitas pessoas encaram
o porvir. Parfit sugere que seria igualmente irracional alguém
adiar um minuto de agonia hoje se soubesse que isso implicaria
uma hora do mesmo grau de agonia amanhã. Desvios não tão
extremos de uma postura de neutralidade temporal - ou seja,
uma atitude de igual preocupação com todos os instantes do
tempo, deixando de lado as incertezas a respeito do futuro -
também são, na opinião de Parfit, irracionais.
Se os argumentos de Nagel e Parfit conseguem ou não justi-
ficar a racionalidade da prudência ou da neutralidade temporal
é uma questão; questão totalmente diversa é se um argumento
semelhante também poderia ser usado a favor de uma forma
de altruísmo baseada em levar em consideração os desejos dos
outros. Nagel tentou esse argumento análogo em The Possibi-
lity of Altruism. No argumento a favor do altruísmo, o papel
ocupado por "ver o presente como nada mais que um instante
entre outros" é tomado como "ver a si mesmo como nada mais
que uma pessoa entre outras". O problema é que, mesmo que
POR QUE AGIR MORALMENTE 419

fosse extremamente difícil para a maior parte de nós deixar de


se conceber como existente no tempo, tendo o presente como
apenas mais um dentre tantos instantes que nos são dados
viver, o modo como nos vemos como uma pessoa entre outras
é totalmente diferente. A esse respeito, a observação de Henry
Sidgwick parece-me perfeitamente exata:

Seria contrário ao senso comum negar que a distinção entre


qualquer indivíduo e um outro qualquer é real e fundamental, e
que, consequentemente, "eu" estou preocupado com a qualidade
de minha existência enquanto indivíduo num sentido - funda-
mentalmente importante- no qual não estou preocupado com a
qualidade da existência de outros indivíduos; e, assim, não vejo
como se possa provar que essa distinção não deva ser considerada
fundamental para a determinação do fim último da ação racio-
nal para um indivíduo.

Portanto, não é só a concepção de razão prática de Hume


que obstrui o caminho das tentativas de mostrar que agir racio-
nalmente é o mesmo que agir eticamente; poderíamos livrar-nos
desse obstáculo, só para descobrir que nosso caminho estaria
bloqueado pela distinção que faz o senso comum entre mim e os
outros. Nagel não defende mais a procedência do argumento de
The Possibility ofAltruism, e Parfit concorda em grande parte
com Sidgwick na questão da racionalidade de agir para promo-
ver os próprios interesses, mesmo quando contrários aos inte-
resses maiores de outras pessoas. Em grande parte, mas não
inteiramente, pois ele pensa ser irracional agir de acordo com
seus próprios interesses quando são secundários seus interesses
em jogo e outras pessoas correm riscos maiores. Portanto, se
você pudesse poupar-se de um minuto de desconforto fazendo
alguma coisa que infligiria uma morte excruciante a 1 milhão
de pessoas, fazer isso seria, na concepção de Parfit, irracional,
mesmo que fosse para promover seus próprios interesses. Ainda
assim, estaríamos muito longe de estabelecer que fazer o impar-
cialmente bom ou correto seria uma exigência da razão.
420 ÉTICA PRÁTICA

Portanto, mesmo se a concepção de razão de Hume estiver


errada, a próxima e mais defensável concepção de razão - a de
Sidgwick, talvez modificada por Parfit - não nos permite
concluir que agir moralmente é uma exigência da razão.

Ética e interesse pessoal


Se o raciocínio prático começa por alguma coisa desejada,
mostrar que é racional agir moralmente implicaria mostrar que,
ao agir moralmente, conseguiremos uma coisa que queremos.
Se, concordando com Sidgwick, e não com Hume, sustentarmos
que é racional agir em nome de nossos interesses a longo prazo,
independentemente do que por acaso queiramos no presente
momento, poderíamos mostrar que é racional agir moralmente
demonstrando que faz parte de nossos interesses em longo
prazo fazer as coisas desse modo. Já foram muitas as tentativas
de seguir essas linhas de argumentação, desde que Platão, na
República, representou Sócrates argumentando que ser virtuoso
é ter os diferentes elementos da própria personalidade ordenados
de maneira harmoniosa, e que isso é necessário para a felici-
dade. Logo examinaremos esses argumentos; primeiro, porém,
é preciso levar em conta uma objeção a toda essa abordagem da
pergunta: "Por que devo agir moralmente?".
As pessoas costumam dizer que defender a moralidade
mediante o apelo ao interesse pessoal significa entender mal tudo
aquilo de que trata a ética. F. H. Bradley foi muito eloquente ao
fazer essa afirmação:

Que resposta podemos dar quando a pergunta "Por que devo


ser moral?", no sentido de "Que vantagens isso me traria?", for
feita? A esse respeito, imagino, faremos bem em evitar todos os
louvores ao caráter agradável da virtude. Podemos pensar que
ela transcende todas as delícias possíveis do vício, mas seria bom
lembrar que abandonamos um ponto de vista moral e que degra-
damos e prostituímos a virtude sempre que a recomendamos,
em nome de seus prazeres, aos que não a amam por si só.
POR QUE AGIR MORALMENTE 421

Em outras palavras, nunca poderemos levar as pessoas a


agir moralmente ao oferecer-lhes razões ligadas ao interesse
pessoal, pois, se aceitarem o que dizemos e agirem conforme
as razões apresentadas, estarão apenas agindo em função do
interesse pessoal, e não moralmente.
Uma resposta a essa objeção consistiria em dizer que a
substância da ação, aquilo que realmente se faz, é mais impor-
tante que o motivo. As pessoas poderiam dar dinheiro para
ajudar quem se encontra na situação de pobreza absoluta porque
seus amigos passarão a vê-las com melhores olhos, ou talvez
doem a mesma quantia por acharem que é seu dever fazê-lo.
Aqueles que receberem essa ajuda serão igualmente beneficiados
de um jeito ou de outro.
Essa resposta é verdadeira, mas incipiente. É possível tornar
esse raciocínio mais sofisticado se o combinarmos com um relato
apropriado da natureza e função da ética. A ética é uma prática
social, produto da evolução de seres que viviam em grupos
sociais, e promove modos de vida que interessam aos indivíduos
que vivem em grupo. Os juízos éticos podem fazer isso ao louvar
e incentivar as ações que estejam de acordo com esses valores.
Os juízos éticos dizem respeito aos motivos, porque essa é uma
boa indicação da tendência de uma ação a promover o que se
considera desejável ou indesejável, mas também porque é nesse
aspecto que o louvor e a reprovação podem ser eficientes para
alterar a tendência das ações de uma pessoa. Nesse quesito, a
consciência moral (isto é, agir com o objetivo de fazer o que é
certo) é um motivo particularmente útil. Se aceitarem os valores
de sua sociedade (e, se a maior parte das pessoas não os aceitasse,
eles não seriam os valores da sociedade), as pessoas dotadas
de consciência moral tenderão sempre a promover aquilo que
a sociedade valoriza. Pode ser que não tenham predisposição
nenhuma à generosidade ou à solidariedade, mas, se acharem
que faz parte de seus deveres ajudar os pobres, é o que farão.
Além disso, aqueles que se deixam motivar pelo desejo de fazer
o que é certo sem dúvida agirão da maneira que consideram
422 ÉTICA PRÁTICA

certa em todas as circunstâncias, enquanto aqueles que agem em


função de algum outro motivo, por exemplo, o interesse pessoal,
só farão o que acham certo quando acreditarem que suas ações
também contemplarem seus interesses. Portanto, a consciência
moral é uma espécie de tapa-buracos de múltiplas funções que
pode ser usado para motivar as pessoas a fazerem tudo quanto
for valorizado, mesmo que as virtudes naturais normalmente
associadas à ação de acordo com esses valores (generosidade,
solidariedade, honestidade, tolerância, humildade etc.) estejam
ausentes (aqui há que se fazer uma ressalva: a mãe dotada de
consciência moral pode prover a subsistência de seus filhos
tão bem quanto a mãe que os ame, mas ela não os pode amar
porque seria a coisa certa a fazer. Às vezes, a consciência moral é
um pobre substituto da coisa real).
Desse ponto de vista da ética, o que realmente importa
são os resultados, e não os motivos. A consciência moral tem
valor devido às suas consequências. Contudo, ao contrário da
benevolência, por exemplo, ela só pode ser louvada e estimulada
por seus próprios méritos. Louvar um ato investido de consciên-
cia moral por suas consequências seria louvar não a consciência
moral, mas alguma coisa totalmente diversa. Se apelarmos para
a solidariedade ou para o interesse pessoal como razão para
cumprirmos nosso dever, não estaremos incentivando as pessoas
a fazerem sua obrigação pelos próprios méritos das coisas. Se
vamos incentivar a consciência moral, é preciso vê-la como uma
coisa boa por suas próprias qualidades.
É diferente no caso de um ato praticado com base em
um motivo que leve as pessoas a agirem independentemente
de louvor ou incentivo. O uso da linguagem ética, nesse caso,
é desnecessário. Não dizemos, normalmente, que as pessoas
devem fazer ou têm o dever de fazer tudo que lhes possa dar
o máximo de prazer, pois, em sua maior parte, as pessoas já
são suficientemente motivadas para fazer isso. Assim, enquanto
louvamos as boas ações feitas em nome do que é certo, reprimi-
mos nosso louvor quando acreditamos que a ação foi praticada
por um motivo como o interesse pessoal.
POR QUE AGIR MORALMENTE 423

Essa ênfase nos motivos e no valor moral de fazer o que é


certo pelos méritos da coisa em si está atualmente arraigada em
nossa noção de ética. Com a profundidade em que está arrai-
gada, sentimos que dar razões de interesse pessoal para fazer o
que é certo equivale a esvaziar a ação de seu valor moral.
Minha sugestão é que nossa noção de ética tornou-se
enganadora na medida em que o valor moral só é atribuído à
ação praticada por ser correta, sem quaisquer motivos ulteriores.
É compreensível e, do ponto de vista da sociedade, talvez até
desejável, que essa atitude predomine; não obstante, aqueles que
aceitam essa concepção da ética e são levados por ela a fazer o
que é certo porque é certo, sem pedirem outras razões para tanto,
estão sendo vítimas de uma espécie de conto do vigário - ainda
que, sem dúvida, não de modo consciente.
O fato de tal concepção da ética ser injustificável já foi
indicado pelo malogro do argumento, discutido no início deste
capítulo, a favor de uma justificativa racional da ética. Na histó-
ria da filosofia ocidental, ninguém insistiu mais intensamente do
que Kant em que nossa consciência moral corrente só encontra
valor moral quando o dever for praticado como um fim em si
mesmo. Contudo, o próprio Kant percebeu que, sem uma justifi-
cativa racional, essa concepção comum da ética seria "uma mera
ilusão do cérebro". E é esse, realmente, o caso. Se rejeitarmos -
como, em linhas gerais, temos feito - a justificação kantiana da
racionalidade da ética, mas tentarmos conservar seu conceito
kantiano, ela ficará solta no ar, sem um ponto de apoio. Torna-
-se um sistema fechado, um sistema que não pode ser questio-
nado porque sua primeira premissa - a de que somente a ação
praticada por ser a correta tem um valor moral - exclui a única
justificativa possível que nos resta para a aceitação dessa mesma
premissa. Desse ponto de vista, a moralidade não é um fim mais
racional do que qualquer outra prática alegadamente autojustifi-
cável, como a etiqueta ou o tipo de fé religiosa que só chega para
aqueles que, primeiro, põem de lado todo seu ceticismo.
424 ÉTICA PRATICA

Tomada como uma concepção da ética em sua totalidade,


essa noção kantiana da ética deve ser rejeitada. Isso não signi-
fica, porém, que nunca devemos fazer o que nos parece certo
simplesmente porque nos pareça certo e sem outras razões. Nesse
caso, precisamos apelar mais uma vez para a distinção estabele-
cida por Hare entre pensamento intuitivo e pensamento crítico.
Quando me distancio de minhas decisões éticas cotidianas e
pergunto por que devo agir eticamente, meu dever seria procu-
rar razões no sentido mais amplo, e não permitir que preconcei-
tos kantianos me impeçam de examinar as razões de interesse
pessoal para levar uma vida pautada pela ética. Se minha busca
for bem-sucedida, vai oferecer-me razões para assumir o ponto
de vista ético como linha de ação definida, como modo de viver.
Eu não mais perguntaria, em minha tomada de decisões éticas
cotidianas, se cada uma das ações certas está de acordo com
meus interesses. Pelo contrário, ajo dessa maneira pois me vejo
como uma pessoa ética. Nas situações cotidianas, assumirei,
simplesmente, que fazer o que é certo faz parte de meus interes-
ses, e, assim que tiver decidido o que é certo, seguirei em frente
e farei o que acho que deva ser feito, sem pedir novas razões que
me levem a fazê-lo. Deliberar sobre as razões fundamentais para
fazer o que é certo, em cada caso, complicaria minha vida de
uma maneira impossível; seria, também, desaconselhável, pois
em situações específicas eu poderia ser por demais influenciado
por desejos e inclinações muito fortes, mas temporários, e com
isso tomaria decisões das quais mais tarde me arrependeria.
É assim, pelo menos, que uma justificativa da ética em
termos do interesse pessoal poderia funcionar, sem destruir seu
próprio objetivo. Podemos, agora, perguntar se tal justificação
existe. Nesse ponto, deixo de lado uma justificativa antiga que
ainda é importante para muitos fiéis: a crença em que a virtude
será recompensada e a maldade, punida, numa vida posterior
à nossa morte terrena. Para recorrer a essa justificativa, seria
preciso, primeiramente, demonstrar que sobrevivemos à morte
de alguma maneira e, em segundo lugar, que seremos recom-
POR QUE AGIR MORALMENTE 425

pensados e punidos de acordo com o caráter ético que demos às


nossas vidas. Não sei como isso poderia ser demonstrado.
Na República, Platão descreve Sócrates debatendo com
os céticos, que perguntam por que deveriam ser justos, e, por
fim, concluem que "o justo é feliz e o injusto é miserável".
O argumento de Sócrates, porém, hoje convenceria poucos leito-
res, pois, ao que parece, ele trabalhava com um conceito de boa
vida que pressupõe que viver bem é tanto fazer o que é certo ou
justo quanto prosperar e ser feliz. Pode ser que, na antiga Grécia,
levar uma vida boa fosse isso, mas hoje sabemos muito bem que
viver eticamente é uma coisa, ser próspero e feliz é outra, mesmo
se admitirmos sem preconceitos a possibilidade de haver um elo
entre as duas coisas. Muitos outros filósofos secundaram Sócra-
tes e Platão ao tentar demonstrar que o homem bom será feliz:
Aristóteles, Aquino, Espinoza, Butler, Hegel e - apesar de todas
as suas restrições à prostituição da virtude - até mesmo Bradley.
Esses filósofos fizeram afirmações gerais a respeito da natureza
humana e das condições nas quais os seres humanos podem ser
felizes. Os filósofos não são naturalmente cientistas empíricos, e
muitas alegações factuais feitas por filósofos do passado carecem
de provas que as fundamentem. Mas, a esta altura, é relevante
recorrer ao corpus cada vez maior de pesquisas contemporâneas
no campo que às vezes é chamado de "psicologia positiva", a área
da psicologia que explora as origens da felicidade.
Eis que encontramos, de fato, indícios de que exista pelo
menos uma correlação entre alguns aspectos do viver eticamente
e a felicidade. Uma pesquisa abrangente mostrou que os norte-
-americanos que fazem caridade tinham 43% mais chances de
dizer que eram "muito felizes" em suas vidas do que aqueles que
não doavam dinheiro. As pessoas que prestavam serviços volun-
tários para as beneficências também tinham maiores probabili-
dades de afirmar que eram felizes do que as pessoas que não o
faziam. Outro estudo mostrou que aqueles que doavam tinham
68% menos chances de experimentar a "desesperança" e 34%
menos chances de dizer que se sentiam "tão tristes que nada
426 ÉTICA PRATICA

era capaz de alegrá-los". Doar sangue - outro ato altruísta -


também faz as pessoas se sentirem bem consigo mesmas. O
trabalho voluntário, de fato, parece melhorar a saúde dos idosos
e aumenta sua longevidade. Jonathan Haidt, professor de psico-
logia na universidade e autor de The Happiness Hypothesis [A
hipótese da felicidade], comenta: "Pelo menos para os idosos,
dar é melhor que receber".
Haveria nisso mais que uma simples correlação? Talvez.
Pesquisadores conduziram um experimento no qual colocavam
cem dólares na mão de dezenove universitárias e davam a elas
a opção de doar parte do dinheiro a um centro beneficente de
distribuição de comida aos pobres. Para garantir que os efeitos
observados fossem provocados exclusivamente pela doação, e
não, por exemplo, pela convicção de que as moças seriam consi-
deradas generosas por outras pessoas, as estudantes foram infor-
madas de que ninguém, nem mesmo os pesquisadores, saberiam
quais delas tinham feito a doação. Enquanto as universitárias
decidiam o que fazer, os pesquisadores obtinham imagens por
ressonância magnética, que mostravam a atividade de diversas
regiões do cérebro. A pesquisa descobriu que, quando as estudan-
tes doavam, os "centros de recompensa" cerebrais - o núcleo
caudado, o núcleo accumbens e a ínsula- eram ativados. São as
regiões do cérebro que respondem quando comemos um doce
ou recebemos dinheiro. Trata-se de um experimento limitado, e
somente novas pesquisas mostrarão se o fenômeno é difundido
e se poderia explicar, em parte, por que é mais provável que os
filantropos se declarem felizes.
A pesquisa mencionada se concentra no comportamento de
doar e ajudar. Seria possível que algo semelhante se aplicasse à
vida pautada pela ética em geral? Parece haver poucas pesquisas,
quando muito, a respeito desse tema mais amplo. A. H. Maslow,
um psicólogo norte-americano, afirmou que os seres humanos
têm uma necessidade de autorrealização que implica a aquisição
sempre crescente de coragem, bondade, conhecimento, amor,
honestidade e altruísmo. Quando satisfazemos essa necessidade,
POR QUE AGIR MORALMENTE 427

sentimo-nos serenos, alegres, cheios de entusiasmo, às vezes


eufóricos, geralmente felizes. Quando agimos contra nossa
necessidade de autorrealização, sentimos ansiedade, desespero,
~édio, vergonha, vazio e geralmente nos tornamos incapazes de
gostar de nós mesmos. Seria ótimo se Maslow estivesse certo;
infelizmente, os dados que ele apresenta em defesa de sua teoria
consistem em estudos muito limitados de pessoas escolhidas a
dedo, e não podem ser considerados mais que sugestivos.
A natureza humana é tão diversa que podemos duvidar que
alguma generalização sobre o tipo de caráter que leva à felici-
dade poderia aplicar-se a todos os seres humanos. Que dizer,
por exemplo, daqueles que chamamos de "psicopatas"? Os
psiquiatras usam esse termo como um rótulo para uma pessoa
antissocial, impulsiva, egocêntrica, não emotiva, desprovida
de sentimentos de remorso, vergonha ou culpa e, aparente-
mente, incapaz de criar relações pessoais profundas e duradou-
ras. Os psicopatas são certamente anormais, mas, se é correto
afirmar que são doentes mentais, já é outra questão. Na super-
fície, pelo menos, eles não sofrem devido a seu problema, e não
é óbvio que ser "curado" faça parte de seus interesses. Hervey
Cleckley, autor de um estudo clássico sobre a psicopatia intitu-
lado The Mask of Sanity [A máscara da sanidade], observa que,
desde a publicação de seu livro, tem recebido um número incon-
tável de cartas de pessoas desesperadas em busca de ajuda: mas
as cartas vêm de pais, cônjuges e outros parentes de psicopatas,
quase nunca dos próprios. Isso não surpreende, pois embora os
psicopatas sejam antissociais e indiferentes ao bem-estar alheio,
eles têm uma opinião inflacionada a respeito de suas próprias
faculdades. Ao serem entrevistados, dizem coisas assim:

Muitas coisas já me aconteceram, muitas outras vão acontecer.


Mas gosto de estar vivo, e estou sempre ansiosamente à espera
de cada dia. Gosto de rir, e já ri muito. No fundo do coração,
sou essencialmente um palhaço - mas um palhaço feliz. Sempre
aceito o lado bom e o lado ruim das coisas.
428 ÉTICA PRÁTICA

Não existe uma terapia eficaz para a psicopatia, o que pode


ser explicado pelo fato de que os psicopatas não veem nada de
errado em seu comportamento, que quase sempre acham extre-
mamente recompensador, pelo menos a curto prazo. É evidente
que sua natureza impulsiva e a falta de senso de vergonha ou de
culpa significam que alguns psicopatas acabam na prisão, ainda
que seja difícil dizer quantos não têm esse fim, pois aqueles que
evitam a prisão também têm maiores probabilidades de evitar o
contato com psiquiatras. Os estudos mostram que um número
surpreendentemente elevado de psicopatas é capaz de evitar a
prisão apesar de seu comportamento profundamente antissocial,
provavelmente devido à sua famosa habilidade de convencer os
outros de que estão muito arrependidos, de que "isso jamais
voltará a acontecer" e de que merecem uma nova oportunidade.
A existência dos psicopatas - ou, mais genericamente, de
pessoas com tendências à psicopatia - contraria a afirmação
de que a benevolência, a solidariedade e os sentimentos de culpa
estão presentes em todos. Também parece contrariar as tentati-
vas de associar a felicidade à posse dessas tendências. Façamos,
porém, uma pausa antes de aceitarmos essa última conclusão.
Devemos aceitar as avaliações que os próprios psicopatas fazem
de sua felicidade? Afinal, são mentirosos consumados. Além do
mais, mesmo que estiverem dizendo a verdade, do modo como
a veem, terão condições de afirmar que são realmente felizes
quando parecem incapazes de vivenciar os estados emocionais
que têm um papel tão importante na felicidade e na satisfação de
outras pessoas? É notório que um psicopata pode usar o mesmo
argumento contra nós: como podemos dizer que somos verdadei-
ramente felizes quando ainda não experimentamos o arrebata-
mento e a liberdade que provêm da completa irresponsabilidade?
Como não podemos entrar nos estados subjetivos dos psicopatas,
nem eles nos nossos, a questão é de difícil solução.
Cleckley sugere que o comportamento dos psicopatas poderia
ser explicado como resposta à falta de sentido de suas vidas.
Uma das características dos psicopatas é dedicar-se a um traba-
lho durante algum tempo, e, então, no momento em que sua
POR QUE AGIR MORALMENTE 429

habilidade e seu fascínio já os tornaram extremamente bem-su-


cedidos, cometer alguma transgressão banal e facilmente detec-
tável. Um padrão idêntico tem lugar em suas relações pessoais.
Eles vivem em grande parte no presente e não têm qualquer
projeto coerente de vida. Às vezes, sua incapacidade de levar em
consideração as consequências futuras de seus atos - até mesmo
aquelas que os afetam - é impressionante. Eis um exemplo de
um dos estudo de R. D. Hare:

Um de nossos participantes de pesquisa, que obtivera uma


pontuação elevada no teste de psicopatia, disse que, a caminho
de uma festa, decidiu comprar um engradado de cerveja, mas
percebeu que havia deixado a carteira em casa, que ficava a seis
ou sete quarteirões dali. Como não quisesse voltar, ele apanhou
um pedaço de pau e assaltou o posto de gasolina mais próximo,
ferindo gravemente o balconista.

Vemos aí um respaldo à descrição que Thomas Nagel


faz da imprudência como a impossibilidade irracional de nos
vermos como pessoa que existe no tempo, sendo o presente um
mero instante entre outros momentos pelos quais passamos.
Os psicopatas sofrem de uma forma acentuada dessa impossi-
bilidade. Cleckley explica esse comportamento inconstante e
inadequadamente motivado comparando a vida do psicopata
à de uma criança obrigada a assistir sentada a uma apresenta-
ção de Rei Lear. Nessas condições, as crianças ficam inquietas
e se comportam mal porque não têm como desfrutar da peça
do mesmo modo que os adultos. Suas ações têm por finalidade
aliviar o tédio. Da mesma maneira, afirma Cleckley, os psicopa-
tas se sentem entediados porque sua pobreza emocional significa
que eles não são capazes de se satisfazer nem de se interessar por
tudo aquilo que, para os outros, são as coisas mais importantes
da vida: amor, família, sucesso nos negócios ou na vida profis-
sional etc. Para eles, são coisas que simplesmente não contam.
Seu comportamento imprevisível e antissocial não passa de uma
tentativa de aliviar aquilo que, de outra forma, seria uma existên-
430 ÉTICA PRÁTICA

cia tediosa. Essas afirmações são especulativas e Cleckley admite


que pode não ser possível determiná-las cientificamente. Elas
sugerem, porém, um aspecto da vida do psicopata que põe por
terra a natureza de outra forma atraente de sua vida descompro-
metida. Em algum momento, a maior parte das pessoas capazes
de reflexão deseja que sua vida tenha algum tipo de significado.
Poucos entre nós poderiam optar deliberadamente por um
estilo de vida que considerássemos profundamente desprovido
de sentido. Por esse motivo, pouquíssimos, entre nós, optariam
por levar uma vida igual à dos psicopatas, por mais agradável
que ela pudesse ser.
Contudo, se é para rejeitar a declaração do próprio psico-
pata de que sua vida é agradável, argumentando que se trata de
uma vida desprovida de sentido, teremos de encarar a questão
de se é possível ou não encontrarmos sentido em nossas próprias
vidas. Deixando de lado a crença religiosa, não temos de aceitar
que a vida é realmente desprovida de sentido, não só para os
psicopatas, mas para todos nós? E, se assim for, por que não
escolheríamos - se tivéssemos o poder de escolher nossa perso-
nalidade - a vida de um psicopata? Mas será verdade que,
deixando de lado a religião, a vida não tem sentido? Nossa busca
por razões para agir moralmente acabou levando-nos àquela que
costuma ser vista como a questão filosófica fundamental.

A vida tem sentido?


Em qual sentido a rejeição da crença na existência de um
deus implica a rejeição de que a vida tem algum sentido? Se este
mundo foi criado por algum ser divino, com determinado ob-
jetivo em mente, poder-se-ia dizer que tem um significado, pelo
menos para esse ser divino. Se soubéssemos qual objetivo levou
o ser divino a nos criar, saberíamos, então, qual seria o sentido
de nossa vida para nosso criador. Se aceitássemos o objetivo de
nosso criador (embora fosse preciso explicar por que havería-
mos de fazê-lo), poderíamos afirmar que conhecemos o sentido
da vida.
POR QUE AGIR MORALMENTE 431

Quando rejeitamos a crença num deus, devemos abrir mão


da ideia de que a vida neste planeta tenha algum significado
predeterminado. Vista como um todo, a vida não tem sentido.
De acordo com as melhores teorias de que dispomos, a vida
começou a partir de uma combinação aleatória de moléculas;
depois, desenvolveu-se por mutações aleatórias e da seleção
natural. Tudo isso simplesmente aconteceu, não aconteceu em
decorrência de nenhuma finalidade geral. Agora que já produziu
seres que preferem um estado de coisas a outro, talvez seja possí-
vel que determinadas vidas tenham significado. Nesse sentido,
os ateus podem encontrar significado na vida.
Retomemos a comparação entre a vida de um psicopata e a de
uma pessoa mais normal. Por que a vida do psicopata não deveria
ter sentido? Vimos que os psicopatas elevam seu egocentrismo
ao máximo: nada lhes interessa, nem as outras pessoas, nem o
sucesso na vida prática. Por que motivo o prazer que suas vidas
lhes proporcionam não é suficiente para que tenham sentido?
Muito poucos entre nós seriam capazes de encontrar a
felicidade ao decidir, deliberadamente, desfrutar da vida sem
se preocupar com nada nem ninguém. Os prazeres que então
obteríamos pareceriam vazios e logo nos fartaríamos deles.
Procuramos um sentido para nossas vidas que vá além de
nossos prazeres, e encontramos alegria e satisfação em fazer as
coisas que consideramos dotadas de sentido. Se nossa vida não
tiver nenhum sentido além de nossa própria felicidade, é prová-
vel que, ao conseguirmos aquilo que julgamos necessário à
nossa felicidade, constatemos que a felicidade em si continua a
esquivar-se de nós.
Chamamos de "paradoxo do hedonismo" o fato de que as
pessoas que procuram a felicidade pela felicidade quase nunca
conseguem encontrá-la, enquanto outras a encontram em busca
de objetivos totalmente diversos. Não se trata, por certo, de um
paradoxo lógico, mas de um postulado sobre o modo pelo qual
podemos ser felizes. A exemplo de outras generalizações sobre
esse tema, falta-lhe confirmação empírica. Contudo, vai ao en-
432 ÉTICA PRÁTICA

contro de nossas observações cotidianas e é coerente com nossa


natureza de seres desenvolvidos e dotados de um propósito cons-
ciente. Os seres humanos sobrevivem e se reproduzem pela ação
dotada de propósito consciente. Alcançamos a felicidade e a sa-
tisfação ao lutarmos por nossos objetivos e concretizá-los. Em
termos evolutivos, poderíamos dizer que a felicidade funciona
como uma recompensa interna por nossas conquistas. Subjeti-
vamente, vemos a concretização do objetivo (ou a progressão até
ele) como uma razão para a felicidade. Portanto, nossa própria
felicidade é um subproduto do desejo de conseguir outra coisa,
não sendo alcançada quando o objetivo em questão é a felicida-
de pela felicidade.
A vida do psicopata pode agora ser vista como desprovida
de sentido de um modo que uma vida normal não é. Não tem
sentido porque se volta para os prazeres do momento, sem buscar
alguma coisa em longo prazo ou um objetivo mais abrangente.
As vidas mais normais têm sentido porque são vividas na expec-
tativa de objetivos mais amplos.
Tudo isso é especulativo. São coisas que podemos aceitar ou
rejeitar na medida em que estejam de acordo com nossas obser-
vações e introspecções. Minha próxima - e última - sugestão
é ainda mais especulativa: para encontrarmos um significado
duradouro para nossas vidas, não basta ir além dos psicopatas
que não têm projetos de vida nem compromissos a longo prazo;
precisamos também ir além dos egoístas mais precavidos, que
têm projetos a longo prazo, só que exclusivamente voltados
para seus próprios interesses. Esses egoístas prudentes podem
encontrar sentido em suas vidas durante algum tempo, pois são
movidos pelo objetivo de promover seus interesses, mas, no fim
das contas, que significado tem isso? Quando todos os nossos
interesses já tiverem sido realizados, vamos nos acomodar e ser
felizes para sempre? Conseguiríamos ser felizes desse modo? Ou
decidiríamos que nosso objetivo ainda está por alcançar, que
ainda precisaríamos fazer algumas coisas antes de nos sentarmos
e desfrutarmos de nossas conquistas? A maior parte dos egoístas
POR QUE AGIR MORALMENTE 433

materialmente bem-sucedidos opta por esta última alternativa,


fugindo assim à necessidade de admitir que não conseguem
encontrar a felicidade vivendo em férias permanentes. Pessoas
que se mataram de trabalhar para abrir seus pequenos negócios,
dizendo a si mesmas que só o fariam até ganharem o suficiente
para levar uma vida confortável, continuam trabalhando até
muito tempo depois de terem concretizado seu objetivo original.
Suas "necessidades" materiais se expandem com rapidez a ponto
de ficarem sempre à frente de seus rendimentos.
Nos últimos anos, tivemos inúmeros exemplos de como o
desejo de ganhar dinheiro é insaciável e aonde ele nos leva. Na dé-
cada de 1980, foi resumido no filme Wall Street: poder e cobiça,
de Oliver Stone, estrelado por Michael Douglas como o desa-
gradável Gordon Gekko, um rentista astuto cujo modus operan-
di lembra o do operador financeiro Ivan Boesky, que ficou
famoso por dizer que "a ganância é boa". No filme, o espírito
crítico é propiciado por Bud Fox, interpretado por Charlie
Sheen. Quando Gekko tenta aplicar à companhia aérea onde o
pai de Fox trabalha como mecânico seu costumeiro método de
tomar o controle acionário, desmontar a empresa e vender os
ativos, o jovem, zangado, pergunta: "Diga-me uma coisa, Gor-
don, onde é que isso vai parar, hein? Na rabeira de quantos iates
você consegue esquiar ao mesmo tempo? Quanto vai ser o bas-
tante?". No caso de Boesky, parece que 150 milhões de dólares
não foram o suficiente, pois era essa sua fortuna quando ele ten-
tou aumentá-la ainda mais aproveitando-se de informações pri-
vilegiadas para lucrar no mercando financeiro, um crime pelo
qual ele acabaria perdendo a fortuna, a reputação e a liberdade.
Depois que o homem que deu à década seu slogan foi parar na
cadeia, as pessoas começaram a discutir a possibilidade de pro-
curar satisfação e felicidade, e não simplesmente acumular di-
nheiro. No entanto, quando os bons tempos da economia
voltaram na primeira década do século XXI, a ostentação finan-
ceira atingiu novos patamares com a competição entre os cria-
dores de fundos de investimento para ver quem ofereceria a festa
434 ÉTICA PRATICA

de aniversário mais pródiga, celebrações que custavam até 5 mi-


lhões de dólares. Quando a crise financeira mundial eclodiu, em
2007, e o golpe da pirâmide de Bernard Madoff tornou-se o
equivalente ao crime contra a economia popular de Boesky,
voltou-se a falar da busca por sentido e satisfação ... Parece correto
prever que, com o passar do tempo, o ciclo voltará a se repetir.
Para quem deseja escapar desse ciclo de acumulação e ruína,
a ética pode propiciar uma alternativa mais duradoura. Se esta-
mos atrás de um objetivo mais amplo do que nossos interesses
pessoais, alguma coisa que nos permita ver nossas vidas como
existências dotadas de uma importância que extrapole os estrei-
tos limites de nossa riqueza ou até mesmo de nossos estados pra-
zerosos de consciência, uma solução óbvia seria adotar o ponto de
vista ético. Esse, como já vimos, exige que ultrapassemos um
ponto de vista pessoal e que assumamos o ponto de vista de
um espectador imparcial. Portanto, ver as coisas eticamente é
uma maneira de transcender nossas preocupações subjetivas e de
nos identificar com o ponto de vista mais objetivo possível- nas
palavras de Sidgwick, com "o ponto de vista do universo".
O ponto de vista do universo é elevado. No ar rarefeito
que o envolve, podemos ser levados a discorrer, como faz Kant,
sobre o ponto de vista moral que humilha "inevitavelmente"
todos os que comparam com ele sua própria natureza limitada.
Não pretendo sugerir nada de tão grandioso. No início deste
capítulo, ao rejeitar o argumento apresentado por Thomas
Nagel em defesa da racionalidade do altruísmo, concordei com
Sidgwick e Parfit em que não existe nada de irracional em se
preocupar com a qualidade da própria existência, da mesma
maneira que não é se preocupar com a qualidade da existên-
cia de outros indivíduos. Sem retroceder nesse ponto, quero
agora sugerir que, no sentido amplo que inclui a consciência de
si mesmo e a reflexão sobre a natureza e a finalidade de nossa
própria existência, a racionalidade pode nos levar a preocupa-
ções mais amplas do que a qualidade de nossa própria existência;
o processo, porém, não é necessário, e os que dele não parti-
POR QUE AGIR MORALMENTE 435

cipam - ou que, ao partlCtparem, não o seguem até o ponto


de vista ético - não são irracionais nem incorrem em erro.
Para algumas pessoas, colecionar selos ou acompanhar seu time
de futebol preferido é uma forma totalmente adequada de dar
um objetivo às suas vidas. Não há, nisso, nada de irracional,
mas, repetindo, existem outras pessoas que buscam algo mais
significativo quando se tornam mais conscientes de sua situa-
ção no mundo e mais contemplativas no que diz respeito a seus
objetivos. A esse terceiro grupo, o ponto de vista ético oferece
um sentido e um objetivo na vida que nunca são abandona-
dos. Pelo menos, não se pode abandonar o ponto de vista ético
até que todos os deveres éticos tenham sido cumpridos. Se essa
utopia fosse alguma vez alcançada, nossa natureza finalista
poderia muito bem nos deixar insatisfeitos, tanto quanto os
egoístas talvez se sintam insatisfeitos quando já têm tudo de que
necessitam para serem felizes. Não há nada de paradoxal nisso,
pois não devemos esperar que a evolução nos tenha provido,
por antecipação, da capacidade de desfrutar de uma situação
que nunca ocorreu anteriormente. Isso tampouco vai constituir
um problema prático no futuro próximo.
Concluirei dando a essas especulações abstratas um caráter
mais pessoal e concreto. Henry Spira foi um dos militantes
norte-americanos mais eficazes na luta pela causa dos animais
no século xx (para dar apenas um exemplo, deve-se a Spira,
acima de tudo, a presença da frase "não testado em animais"
nas embalagens de muitos cosméticos). Além de suas inúme-
ras campanhas que pouparam os animais de um sofrimento
enorme, Spira marchou em prol dos direitos civis no sul dos
Estados Unidos, combateu a corrupção no Sindicato Nacional
dos Marítimos e deu aulas para adolescentes carentes nas escolas
de ensino médio de Nova York. Tive a boa sorte de tê-lo como
amigo e me hospedei várias vezes em seu apartamento esparsa-
mente mobiliado e de aluguel baixíssimo em Nova York, que lhe
servia de lar e escritório. Quando ele teve câncer e compreen-
deu que o fim estava próximo, eu lhe perguntei o que o levara
436 ÉTICA PRÁTICA

a passar a vida toda trabalhando em prol de outras pessoas.


Ele respondeu:

Acho que, essencialmente, a gente quer ter a impressão de que


nossas vidas não se resumem a consumir produtos e produzir
lixo. Creio que a gente goste de olhar para trás e dizer que fez
o possível para tornar este mundo um lugar melhor para as
pessoas. Você pode enxergar as coisas por este ponto de vista:
que outra motivação pode ser maior do que fazer todo o possível
para reduzir a dor e o sofrimento?

Essa resposta não oferecerá a todos razões imperiosas


para agir moralmente. Não se pode provar que temos todos a
obrigação racional de reduzir a dor e o sofrimento e fazer deste
mundo um lugar melhor para as pessoas. O comportamento
eticamente indefensável nem sempre é irracional. É provável que
sempre venhamos a precisar que as sanções legais e a pressão
social nos deem razões adicionais para não cometermos infra-
ções éticas graves. Por outro lado, as pessoas que costumam
refletir o suficiente para se perguntarem por que deveriam agir
eticamente também são aquelas que têm maiores probabilidades
de compreender as razões que Spira ofereceu para a adoção do
ponto de vista ético.
Notas, referências e leituras
complementares

Prefácio
Mais detalhes a respeito dos protestos que se ergueram contra as
opiniões manifestadas neste livro podem ser encontrados em "On Being
Silenced in Germany", The New York Review of Books, 15 de agosto de
1991; e Peter Singer, "An lntellectual Autobiography", em Jeffrey Schaler
(org.), Peter Singer Under Fire (Chicago, 2009).
A recomendaçáo para náo comparar seres humanos e animais foi
extraída de Ethische Grundaussagen [Fundamentos da ética], do Conselho
da Associaçáo Federal Lebenshilfe für geistig Behinderte e.V., publicado
na revista da associaçáo, Geistige Behinderung, 29, 4, 1990, p. 256.

Capitulo 1: Sobre a ética


As questões discutidas na primeira parte - relativismo, subjetivismo
e a suposta dependência da ética em relaçáo à religiáo - sáo aborda-
das em várias obras didáticas. A melhor introduçáo ao tema talvez seja
}ames Rachels, The Elements ofMoral Philosophy, 6• ed., organizado por
Stuart Rachels (Nova York, 2009). A Stanford Encyclopedia of Philoso-
phy, disponível on-line, é uma fonte proveitosa de referências sobre o
tema e também para outros assuntos discutidos neste livro. Vejam-se
também os artigos sobre esses temas, de autoria de David Wong, James
Rachels e Jonathan Berg, respectivamente, em Peter Singer (org.), A
Companion to Ethics (Oxford, 1991). O argumento de Platáo contra a
definiçáo de "bom" como "aquilo que é aprovado pelos deuses" está em
Eutifron. A discussáo de Engels da concepçáo marxista de moralidade
e sua referência a "uma moralidade realmente humana" estáo em Herr
Eugen Dührings Umwdlzung der Wissenschaft, cap. 9. Para uma discussáo
da crítica da moralidade de Marx, veja-se Allen Wood, "Marx Against
438 ÉTICA PRÁTICA

Morality", em Peter Singer (org.), A Companion to Ethics. A teoria emoti-


vista de C. L. Stevenson é apresentada da maneira mais completa possível
em Ethics and Language (New Haven, 1944), de sua autoria. A posição
básica de R. M. Hare pode ser encontrada em The Language of Morais
(Oxford, 1952); Freedom and Reason (Oxford, 1963) e Moral Thinking
(Oxford, 1981). Para uma síntese dessas ideias, veja-se o ensaio de Hare,
"Universal Prescriptivism", em P. Singer (org.), A Companion to Ethics
(Oxford, 1991). Ethics: Inventing Right and Wrong (Harmondsworth,
Middlesex, 1977), de]. L. Mackie, defende uma versão do subjetivismo.
Derek Parfit oferece um argumento rigoroso em defesa da verdade
objetiva da ética em On What Matters (Oxford, no prelo), de sua autoria.
A descrição do comportamento dos chimpanzés que sugere uma
noção de justiça provém de Frans de Waal, Chimpanzee Politics (Jonathan
Cape, Londres, 1982), p. 205-7. Um relato detalhado de descober-
tas recentes a respeito da evolução natural de nossas intuições morais,
bem como uma discussão da relevância dessas descobertas para a ética,
encontram-se em Joshua Greene, The Moral Brain and How to Use lt
(Penguin Press, Nova York, no prelo).
O ensaio de Mill, "On Nature", foi publicado pela primeira vez em
John Stuart Mil!, Nature, The Utility oJReligion, and Theism (Londres, 1874).
As formulações mais importantes do princípio da universalizabili-
dade a que me refiro na segunda parte deste capítulo podem ser encon-
tradas em: lmmanuel Kant, Fundamentos da metafisica da moral, seção
n; R. M. H are, Freedom and Reason e Moral Thinking; R. Firth, "Ethical
Absolutism and the Ideal Observer", Philosophy and Phenomenological
Research, vol. 12 (1951-1952); J. J. C. Smart e B. Williams, Utilitaria-
nism, For andAgainst (Cambridge, 1973); John Rawls, A Theory of]ustice
(Oxford, 1972; edição revisada, 1999); J.-P. Sartre, "Existentialism is a
Humanism", em W. Kaufmann (org.), Existentialism from Dostoevsky to
Sartre (Nova York, 2• ed., 1975), parte rn, cap. 2-4.
O argumento especulativo a favor de um utilitarismo com base nos
interesses ou nas preferências deve muito a Hare, ainda que não vá tão
longe quanto o argumento que se encontra em Moral Thinking. Sidgwick
distingue os pontos de vista preferencialista e hedonista em The Methods
oJEthics (Londres, 1907, 7' ed.), livro 1, cap. 9, p. 109-15. Pode-se encon-
trar uma discussão proveitosa do consequencialismo no artigo de Walter
Sinnott-Armstrong para a Stanford Encyclopedia ofPhilosophy, disponível
em: <http://plato.stanford.edu/entries/consequentialism>.
A descoberta de que ganhar na loteria não aumenta a felicidade está
em Philip Brickman, Dan Coares e Ronnie Janoff-Bulman, "Lottery
Winners and Accident Victims: Is Happiness Relative?", journal ofPerso-
nality and Social Psychology, 36, 1978, p. 917-27.
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 439

Capítulo 2: A igualdade e suas implicações


O argumento de Rawls, para quem a igualdade se pode basear
nas características naturais dos seres humanos, pode ser encontrado na
seção 77 de A Theory of]ustice (Cambridge, Massachusetts, 1971; edição
revisada, 1999).
Para acompanhar a discussão de inteligência e testes de QI, veja-se
]ames Flynn, What is Intelligence? Beyond the Flynn Effect (Cambridge,
2009). Os argumentos em favor de uma ligação entre QI e raça podem
ser encontrados em A. R. Jensen, Genetics and Education (Londres, 1972)
e Educability and Group Diflerences (Londres, 1973), e em Race, Intelli-
gence and Education (Londres, 1971), de H. J. Eysenck. Várias objeções
são apresentadas em K. Richardson e D . Spears (org.), Race, Culture
and Intelligence (Harmondsworth, Middlesex, 1972). Veja-se também
N. ]. Block e G. Dworkin, The IQ Controversy (Nova York, 1976); H.].
Eysenck e Leon Kamin, lntelligence: The Batt!e ojthe Mind (Londres, 1981);
R. C. Lewontin, Steven Rose e Leon Kamin, Not in Our Genes (Nova York,
1984), particularmente o cap. 5; R. ]. Herrnstein e C. Murray, The Bel!
Curve (Nova York, 1994) e o debate entre Robert N ichols e ]ames Flynn,
comentado por Jensen, em S. Modil e C. Modgi l,Arthur ]ensen, Consensus
and Controversy (Nova York, 1987), p. 213-35 e 374-81. O comentário de
Thomas Jefferson sobre a irrelevância da inteligência ante a questão dos
direitos foi feito numa carta a Henri Gregoire, datada de 25 de fevereiro
de 1809.
A natureza e a origem das diferenças cognitivas e psicológicas entre
os sexos são discutidas em Eleanor Maccoby e C. Jacklin, The Psychology
of Sex Diflerences (Paio Alto, 1974); Diane Halpern, Sex Diflerences in
CognitiveAbilities (Londres, 2000, 3' ed.); Doreen Kimura, Sex and Cogni-
tion (Cambridge, Massachusetts, 2000); e Melissa Hines, Brain Gender
(Nova York, 2005). A recepção crítica a uma parte desses argumentos
científicos pode ser encontrada em Cordelia Fine, Delusions of Gender
(Nova York, 2010).
Uma tÍpica defesa da igualdade de oportunidades como a única
forma justificável de igualdade é apresentada por Daniel Bell em "A 'Just'
Equality", Dialogue (Washington, DC, 1975), vol. 8, no 2. A citação de
Jeffrey Gray é um excerto de "Why Should Society Reward Intelligence?",
The Times (Londres), 8 de setembro de 1972. Os dilemas colocados pela
igualdade de oportunidades são apresenrados criticamente em ]ames
Fishkin,justice, Equal Opportunity and the Family (New Haven, 1983).
Um panorama da questão da ação afirmativa encontra-se no
artigo de Robert Fullinwider, "Affirmative Action", na versão on-line da
440 ÉTICA PRÁTICA

Stanford Encyclopedia ofPhilosophy, disponível em <http://plato.stanford.


edu/emries/affirmative-action>. Veja-se também Robert Fullinwider e
J udith Lichtenberg, Leveling the Playing Field: ]ustice, Politics, and College
Admissions (Lanham, Maryland, 2004). Indícios de que estudantes
provenientes de minorias beneficiados pelas medidas de ação afirmativa
se saem pior que a média da turma são apresentados em Richard Sander,
"A Systemic Analysis of Affirmative Action in American Law Schools",
Stanford Law Review, 57 (2004), p. 367-484. O argumento de que a
ação afirmativa prejudica os estudantes provenientes de minorias pode
ser encontrado em Stephan Thernstrom e Abigail Thernstrom, America
in Black and White: One Nation, Indivisible (Nova York, 1997). A ação
afirmativa é defendida por dois ex-presidentes dos conselhos das univer-
sidades de Princeton e Harvard em William Bowen e Derek Bok, The
Shape of the Ri ver: Long-Term Consequences of Considering Race in College
and University Admissions (Princeton, Nova Jersey, 1998).

Capitulo 3: Igualdade para os animais?


Um relato mais completo de meus pontos de vista sobre a ética de
como devemos tratar os animais encontra-se em Animal Liberation (Nova
York, 2009, 2• ed., reimpressa com um novo prefácio). O livro de Mary
Midgley, Animais and Why They Matter (Harmondsworth, Middlesex,
1983), apresenta um relato agradável dessas questões. Em ]ames Rachels,
CreatedJrom Animais (Oxford, 1990), traçam-se as implicações morais da
revolução darwiniana para a maneira como imaginamos nosso lugar entre
os animais. Richard Ryder traz um histórico das mudanças de atitude diante
do especismo em Animal Revolution (Oxford, 1989). Também são recomen-
dáveis: David DeGrazia, Taking Animais Seriously (Cambridge, 1996) e,
do mesmo autor, Animal Rights: A Very Short Introduction (Oxford, 2001);
Paola Cavalieri, The Animal Question (Nova York, 2001) e The Death of
the Animal: A Dialogue (Nova York, 2009); e Karen Dawn, Thanking the
Monkey (Nova York, 2008). A respeito da psicologia de nossas relações
com os animais, veja-se Hal Herzog, Some We Love, Some We Hate, Some
We Eat: Why It's So Hard to Think Straight About Animais (Nova York,
2010). Entre as antologias que tratam de ética e animas, temos: Tom
Regan e Peter Singer (org.), Animal Rights and Human Obligations (Engle-
wood Cliffs, Nova Jersey, 1989, 2• ed.); Peter Singer (org.), In Defense
of Animais (Oxford, 1986) e In Defense of Animais: The Second Wave
(Oxford, 2006); Susan Armstrong e Richard Botzler (org.), The Animal
Ethics Reader (Londres, 2003); e Cass Sunstein e Manha Nussbaum (org.),
Animal Rights: Current Debates and New Directions (Nova York, 2004).
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 441

A defesa que Bentham faz dos animais foi extraída de seu livro
Introduction to the Principies ofMorals and Legislation (1789), cap. xvm,
seção 1, nota.
Uma descrição mais pormenorizada das condições das modernas
fazendas industriais pode ser encontrada em Animal Liberation, cap. 3,
em Michael Pollan, The Omnivore's Dilemma (Nova York, 2006), cap.
17; e em Peter Singer e Jim Mason, The Ethics of What We Eat (Nova
York, 2006). De maneira similar, Animal Liberation, cap. 2, traz uma
discussão mais abrangente do uso de animais em pesquisas do que
aquela que pudemos apresentar neste livro; veja-se também Victims of
Science (Fontwell, Sussex, 1983, 2' ed.), de Richard Ryder. Os detalhes a
respeito da experiência com botox pode ser encontrada em <http://www.
hsus.org>. As experiências de isolamento de macacos, feitas por H. F.
Harlow, foram originalmente publicadas em Journal of Comparative and
Physiological Psychology, vol. 78 (1972), p. 202; Proceedings of the Natio-
nal Academy of Sciences, vol. 54 (1965), p. 90; e Engineering and Science,
vol. 33 (abril de 1970), p. 8. A respeito da continuidade do trabalho de
Harlow, veja-se Animal Liberation, 2' ed., p. 34-5.
A fonte da anedota sobre Benjamin Franklin é sua Autobiography
(Nova York, 1950). A mesma objeção foi mais seriamente examinada por
John Benson em "Duty and the Beast", Philosophy, vol. 53 (1978), p. 545-7.
Na seção "Ética e reciprocidade", a citação da República de Platão foi
extraída do livro 11, p. 358-9. Entre as declarações posteriores que expres-
sam um ponto de vista semelhante, temos: John Rawls, A Theory of]ustice
(Oxford, 1972; edição revisada, 1999); J. L. Mackie, Ethics, cap. 5; e David
Gauthier, Morals by Agreement (Oxford, 1986). Esses autores excluem os
animais do centro da moralidade, ainda que atenuem o impacto dessa
exclusão de diversas maneiras (veja-se, por exemplo, A Theory of]ustice,
p. 512, e Ethics, p. 193-5). Minha abordagem da versão mais flexível do
ponto de vista da reciprocidade se baseia em Edward Johnson, Species
and Morality, tese de doutorado, Princeton University, 1976 (University
Microfilms International, Ann Harbor, Michigan, 1981), p. 145.
Uma interpretação de uma concepção contratual da ética muito
mais favorável aos animais encontra-se em Mark Rowlands, Animal Rights:
Moral Theory and Practice (Londres, 2009, 2' ed.).
Na seção "Diferenças entre seres humanos e animais", as obser-
vações de Jane Goodall a respeito dos chimpanzés são relatadas com
simpatia em In The Shadow ofMan (Boston, 1971) e Through a Window
(Londres, 1990), e num formato mais acadêmico em The Chimpanzees of
Gombe (Cambridge, Massachusetts, 1986). Mais informações a respeito
das capacidades dos primatas hominoides podem ser encontradas em
442 ÉTICA PRÁTICA

Paola Cavalieri e Peter Singer (org.), The GreatApe Project (Londres, 1993).
A respeito do status moral relativo de animais e pessoas portadoras de defi-
ciências mentais graves, veja-se Peter Singer, "Speciesism and Moral Status",
e Eva Feder Kittay, "The Personal is Philosophical is Political: a Philoso-
pher and Mother of a Cognitively Disabled Person Sends Notes from the
Bartlefield", ambos em Eva Feder Kitray e Licia Carlson (org.), Cognitive
Disability and Its Challenge to Moral Philosophy (Malden, Massachusetts,
2010), p. 331-44 e p. 393-413.
Entre as objeções ao argumento discutido na seção "Defesa do
especismo", a afirmação de que deveríamos dar aos indivíduos o status
moral correspondente às qualidades que são normais para sua espécie é
de autoria de Stanley Benn e encontra-se em "Egalitarianism and Equal
Consideration of Interests", em J. Pennock e J. Chapman (org.), Nomos
ix: Equality (Nova York, 1967), p. 62ff; o argumento de que temos
obrigações especiais para com os seres humanos porque pensamos em
nós mesmos como humanos é de autoria de John Benson e encontra-
-se em "Duty and the Beast", Philosophy, vol. 53 (1978); os argumentos
relacionados foram apresentados por Bonnie Sreinbock, "Speciesism and
the Idea of Equality", Philosophy, vol. 53, p. 255-6 e, em maior exten-
são, por Leslie Pickering Francis e Richard Norman, "Some Animais Are
More Equal Than Others", Philosophy, vol. 53 (1978), p. 518-27. Bernard
Williams defende "The Human Prejudice" num ensaio com esse mesmo
título, republicado em Jeffrey Schaler (org.), Peter Singer Under Fire
(Chicago, 2009). No mesmo volume, encontra-se uma resposta minha e
mais pormenorizada.

Capítulo 4: O que há de errado em matar?


O tratamento de Andrew Stinson é descrito por Robert e Peggy
Stinson em The Long Dying ofBaby Andrew (Boston, 1983).
O artigo de Joseph Fletcher, "Indicators ofHumanhood: A Tentative
Profile ofMan", foi publicado em The Hastings Center Report, vol. 2, no 5
(1972). A definição de "pessoa", segundo John Locke, foi extraída de seu
Ensaio sobre o entendimento humano (1690), livro u, cap 27, parágrafo 9.
As opiniões de Aristóteles sobre o infanticídio provêm de sua
Política, livro vu, p. 1.335b; as de Platão foram extraídas da República,
livro v, p. 460c. O respaldo à afirmação de que nossas atitudes atuais
com relação ao infanticídio são, em grande parte, uma consequência
da influência do cristianismo sobre nosso pensamento pode ser encon-
trado no material histórico sobre o infanticídio mencionado nas notas
do capítulo 6 (veja-se, em especial, o artigo de W. L. Langer, p. 353-5).
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 443

A propósito da afirmação de Santo Tomás de Aquino, para quem matar


um ser humano contraria os preceitos divinos do mesmo modo que matar
um escravo constitui uma ofensa a seu senhor, veja-se a Suma teológica, n,
ii, questão 64, artigo 5.
Hare propõe e defende sua concepção em dois planos do raciocínio
moral em Moral Thinking (Oxford, 1981).
"Abortion and lnfanticide", de Michael Tooley, foi publicado pela
primeira vez em Philosophy and Public Ajfairs, vol. 2 (1972). O trecho
citado na seção "Uma pessoa tem direito à vida", à p. xx, foi extraído
de uma versão revisada publicada em]. Feinberg (org.), The Problem of
Abortion (Belmont, 1973), p. 60. Seu livro Abortion and Infanticide foi
publicado em Oxford em 1983.
Outras discussões a respeito da autonomia como uma das objeções
ao assassinato podem ser encontradas em Jonathan Glover, Causing
Death and Saving Lives (Harmondsworth, Middlesex, 1977), cap. 5; e em
H. J. McCloskey, "The Right to Life", Mind, vol. 84 (1975).
Jeremy Bentham descreve como uma coisa poderia promover os
interesses de um indivíduo em seu livro Introduction to the Principies of
Morais and Legislation (1789), cap. 1, parágrafos II e v.
Minha discussão das versões "total" e "da existência prévia" do
utilitarismo deve muito a Derek Parfit. Inicialmente, tentei defender o
ponto de vista da existência prévia em "A Utilitarian Population Principie",
publicado em M. Bayles (org.), Ethics and Population (Cambridge,
Massachusetts, 1976), mas a réplica de Parfit, "On Doing the Best for
our Children", no mesmo volume, me fez mudar de opinião. Reasons and
Persons (Oxford, 1984), de Parfit, é leitura obrigatória para rodos os que
desejam aprofundar-se nesse tema. Veja-se também seu breve relato de
algumas dessas questões em "Overpopulation and the Quality of Life",
em Peter Singer (org.), Applied Ethics (Oxford, 1986). Parfit usa o termo
"que afeta as pessoas" onde uso "existência prévia", que parece mais
adequado, pois o ponto de vista não faz nenhuma referência específica a
pessoas enquanto seres distintos de outras criaturas sencientes.
A distinção entre as duas versões do utilitarismo parece ter sido
percebida pela primeira vez por Henry Sidgwick em The Methods
of Ethics (Londres, 1907), livro rv, cap. 1, p. 414-6. Entre as discus-
sões posteriores, além daquelas já citadas, temos: J . Narveson, "Moral
Problems of Population", The Monist, vol. 57 (1973); T. G. Roupas,
"The Value of Life", Philosophy and Public Ajfairs, vol. 7 (1978); e R. L
Sikora, "Is it Wrong to Prevent the Existence of Future Generations?",
em B. Barry e R. Sikora (org.), Obligations to Future Generations (Fila-
délfia, 1978); Jeff McMahan, "Problems of Population Theory", Ethics,
444 ÉTICA PRÁTICA

92 (1981), p. 96-127; Melinda Roberts, Child versus Childmaker: Future


Persons and Present Duties in Ethics and the Law (Lanham, Maryland,
1998); Jesper Ryberg e Torbjorn Tannsjo (org.), The Repugnant Conclu-
sion: Essays of Population Ethics (Nova York, 2005); Elizabeth Harman,
"Can We Harm and Benefit in Creating?", Philosophical Perspectives, vol.
18 (2004), p. 89-109; e Caspar Hare, "Voices From Another World: Must
We Respect the Interests of People who Do Not, and Will Never, Exist?",
Ethics, vol. 117 (2007), p. 498-523, Um panorama da discussão pode ser
encontrado em Jesper Ryberg, "The Repugnam Conclusion", na versão
on-line da Stanford Encyclopedia ofPhilosophy, disponível em <http://plato.
stanford.edu/entries/repugnant-conclusion>.
O famoso trecho em que Mill compara Sócrates com o tolo é de seu
livro Utilitarianism (publicado pela primeira vez em 1863; ]. M . Dent,
Londres, 1960, pp. 8-9).
Uma discussão aprofundada e cuidadosa de todo o campo tratado
neste capítulo e nos três que o seguem encontra-se em Jeff McMahan,
The Ethics ofKilling: Problems at the Margins ofLife (Nova York, 2001).

Capítulo 5: Tirar a vida: os animais


A comunicação pioneira com um ser de outra espécie foi anunciada
em R. Gardner e B. Gardner, "Teaching Sign Language to a Chimpan-
zee", Science, vol. 165 (1969), p. 664-72 . As informações sobre o uso da
linguagem por chimpanzés, gorilas e um orangotango foram extraídas de
artigos de Roger e Deborah Fouts, Francine Patterson, Wendy Gordon
e H. Lyn Miles, em Paola Cavalieri e Peter Singer (org.), The Great Ape
Project (Londres, 1993). A vida de Washoe é narrada por Roger Fotus em
Next ofKin (Londres, 1997), e a vida mental dos golfinhos é discutida em
Thomas White, In Defense ofDolphins (Blackwell, Oxford, 2007).
A citação na primeira parte do Capítulo 5 foi extraída de Stuart
Hampshire, Thought and Action (Londres, 1959), p. 98-9. Entre os
que sustentaram pontos de vista semelhantes, podemos citar Anthony
Kenny, em Will, Freedom and Power (Oxford, 1975); Donald David-
sou, "Thought and Talk", em S. Guttenplan (org.), Mind and Language
(Oxford, 1975); e Michael Leahy, em Against Liberation (Londres, 1991).
A capacidade de Júlia de resolver problemas foi demonstrada por
]. Dohl e B. Rensch, que têm seu trabalho descrito em The Chimpan-
zees of Gombe, de Jane Goodall, p. 31. Frans de Waal relata sua obser-
vação dos chimpanzés em Chimpanzee Politics (Nova York, 1983).
O relato de Goodall sobre a maneira cautelosa com que Figan conse-
guiu sua banana foi extraído de In the Shadow of Man. O estudo que
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 445

demonstra que os porcos evitam apontar aos porcos mais fortes onde
está a comida é de autoria de S. Held, M. Mendl, C. Devereux e R. W.
Byrne: "Foraging Pigs A! ter Their Behavior in Response to Exploitation",
Animal Behaviour, voi 64 (2002), p. 157-66. Mathias Osvath descreveu
suas observações a respeito do chimpanzé que atirava pedras, Santino, em
"Spontaneous Planning for Future Stone Throwing by a Male Chimpan-
zee", Current Biology, vol. 19 (2009), p. R190-l. As extraordinárias facul-
dades mentais do gaio californiano foram demonstradas em Sérgio P. C.
Correia, Anthony Dickinson e Nicola S. Clayton, "Western Scrub-Jays
Anticipate Future Needs Independently o f Their Current Motivational
State", Current Biology, vol. 17 (2007), p. 856-61. A respeito desse tema
em geral, veja-se Michael Mendl e Elizabeth S. Paul, "Do Animais Live
in the Present? Current evidence and implications for welfare", Applied
Animal Behaviour Science, vol. 113 (2008), p. 357-82.
A autoconsciência nos animais e os testes diante do espelho são discu-
tidos em vários ensaios, entre eles: M. Bekoff, C. Allen e G. Burghardt
(org.), The Cognitive Animal: Empírica/ and Theoretical Perspectives on
Animal Cognition (Cambridge, Massachusens, 2002). Irene Pepperberg
descreve seu trabalho com Alex, o papagaio, em Alex and Me (Nova York,
2008). A capacidade das galinhas de exercer autocontrole são descritas
em S. M. Abeyesinghe, C. J. Nicol, S. J. Hartnell e C. M. Wathes, "Can
Domestic Fowl, Gallus gallus domesticus, Show Self-Control?", Animal
Behavior, vol. 70 (2005), p. 1-11. Culum Brown discute a vida mental dos
peixes em "Not Just a Pretty Face", New Scientist, 182 (12 de junho de
2004), p. 42. A respeito do uso inovador de ferramentas por polvos, veja-se
Julian K. Finn, Tom Tregenza e Mark Norman, "Defensive Tool Use in
a Coconur-Carrying Ocropus", Current Biology, 19 (2009), p. Rl069-70.
Mais informações a respeito da concepção de Gary Varner de que há
uma diferença entre uma pessoa, uma quase pessoa e um ser meramente
consciente encontram-se em seu livro, Personhood and Animais in the
Two-Level Utilitarianism of R. M. Hare (Nova York, no prelo). Roger
Scruton escreve a respeito da morte e de quando ela é ou não uma tragé-
dia em seu ensaio "The Conscientious Carnivore", em Food for Thought,
organizado por Sreve Sapontzis (Amhersr, Nova York, 2004), p. 81-91.
A afirmação de Leslie Srephen de que comer toucinho é uma
bondade para com os porcos vem de sua obra Social Rights and Duties
(Londres, 1896), citada por Henry Sair em "The Logic of rhe Larder",
publicado em The Humanities of Diet (Manchesrer, 1914), do próprio Sair,
e reimpresso na primeira edição de T. Regan e P. Singer (org.), Animal
Rights and Human Obligations (Englewood Cliffs, Nova Jersey, 1976).
Novas formulações do argumento podem ser encontradas em Michael
446 ÉTICA PRÁTICA

Pollan, The Omnivore's Dilemma (Nova York, 2006) e Hugh Fearnley-


-Whittingstall, The River Cottage Meat Book (Londres, 2004). Minhas
primeiras discussões dessa questão estão no capítulo 6 da primeira edição
de Animal Liberation (Nova York, 1975). Uma discussão pormenorizada
da questão, argumentando contra a substituibilidade, encontra-se em
Tatjana Visak, "Killing Happy Animais", tese de doutorado apresentada
à Universidade de Utrecht, 2010.
O exemplo das duas mulheres provém de Derek Parfit, "Rights,
Interests and Possible People", em S. Gorovitz et ai. (org.), Moral Problems
in Medicine (Englewood Cliffs, Nova Jersey, 1976); uma variante,
expressa em termos da escolha entre dois programas médicos diferentes,
pode ser encontrada em Reasons and Persons (Oxford, 1984), de Parfit,
p. 367. A distinção estabelecida por James Rachels entre uma vida bioló-
gica e uma vida biográfica vem de seu livro The End of Life (Oxford,
1987). A discussão que Hart faz desse tema em sua resenha da primeira
edição deste livro tinha o tÍtulo de "Death and Utility" e foi publicada em
The New York Review ofBooks, edição de 15 de maio de 1980.
Arthur Schopenhauer argumenta a favor de sua concepção pessimista
da existência em The World as Will and ldea (publicado pela primeira vez
em 1818, traduzido para o inglês por R. B. Haldane e J. Kemp, Londres,
1896), livro rv, seções 56-9, p. 397-420. Uma defesa mais recente é o livro
Better Never to H ave Been: the Harm of Coming in to Existence (Oxford,
2006), de David Benatar.
O argumento de Henry Sidgwick a favor da consciência desejável-
ou prazer - como bem supremo pode ser encontrado em The Methods of
Ethics, livro m, cap. 14.
A apresentação original do problema da não identidade, subjacente
ao meu exemplo das mudanças climáticas e à " depleção" de Parfit, no qual
a minha historieta se baseia, encontra-se em Derek Parfit, Reasons and
Persons (Oxford, 1984), p. 351-74. Um panorama do problema e novas
referências podem ser encontrados em Melinda Roberts, "The Noniden-
tity problem", na versão on-line da Stanford Encyclopedia of Philosophy,
disponível em <http://plato.stanford.edu/entries/nonidentity-problem>.
A respeito da ética da caça, veja-se Gary Varner, In Nature's lnterests
(Nova York, 1998), cap. 5. Steven Davis afirma que quem come a carne
proveniente da pecuária extensiva é responsável pela morte de menos
animais do que os veganos em "The Least Harm Principie May Require
That Humans Consume a Diet Containing Large Herbivores, Not a
Vegan Diet",]ournal ofAgricultura/ and Environmental Ethics, 16 (2003),
p. 387-94. O erro em seus cálculos foi revelado em Gaverick Matheny,
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 447

"Least Harm: A Defense ofVegetarianism from Steven Davis's Omnivo-


rous Proposal", ]ournal of Agricultura/ and Environmental Ethics, 16
(2003), p. 505-11.

Capitulo 6 : Tirar a vida: o embrião e o feto


A súmula completa da decisão do Supremo Tribunal Federal
dos Estados Unidos sobre o caso Roe contra Wade está disponível
on-line; alguns trechos cruciais foram publicados em J. Feinberg (org.),
The Problem of Abortion. Quanto ao número de embriões congelados
nos Estados Unidos, veja-se Pam Belluck, "From Stem Cell Opponents,
and Embryo Crusade", The New York Times, 2 de junho de 2005.
A comissão governamental mencionada na seção "Nada a ver com
a lei?" do Capítulo 6 - a Comissão Wolfenden - publicou um relató-
rio, o Report of the Committee on Homosexual Offinses and Prostitution,
Command Paper 247 (Londres, 1957). A citação é da p. 24. O "princí-
pio muito simples" de J. S. Mill é apresentado no primeiro capítulo de
On Liberty (Londres, 1864, 3• ed.). Crimes Without Victims, de Edwin
Schur, foi publicado em Englewood Cliffs, Nova Jersey, em 1965.
O ensaio "A Defence of Abortion", de Judith Jarvis Thomson, foi publi-
cado em Philosophy and Public Affàirs, vol. 1 (1971), e reimpresso em
Peter Singer (org.), Applied Ethics.
A descrição que faço do desenvolvimento da senciência no feto se
baseia em pesquisas conduzidas por Susan Taiwa no Centro de Bioética
Humana da Universidade Monash e publicadas sob o título "When Is the
Capacity for Sentience Acquired During Human Fetal Development?",
journal ofMaternal-Fetal Medicine, vol 1. (1992), p. 153-65. Uma opinião
abalizada e anterior partiu do conselho consultivo do governo britânico a
respeito de pesquisas com fetos, presidido por sir John Peel, publicada como
The Use ofFetuses and Fetal Materiais for Research (Londres, 1972). Veja-se
também Clifford Grobstein, Science and the Unborn (Nova York, 1988).
Paul Ramsey usa a singularidade genética do feto como argumento
contrário ao aborto em "The Morality of Abortion", em D. H. Labby (org.),
Life or Death: Ethics and Options (Londres, 1968), reimpresso em J. Rachels
(org.), Moral Problems (Nova York, 1975, 2• ed.), p. 40. O discurso do presi-
dente norte-americano George W. Bush a respeito da utilização de embriões
para obtenção de células-tronco encontra-se em <http://georgewbush-
-whitehouse.archives.gov/news/releases/2001/08/20010809-2.htmb.
O argumento de Don Marquis contra o aborto foi publicado
como "Why Abortion is Immoral",journal ofPhilosophy, vol. 86 (1989),
p. 183-202; veja-se também Alistair Norcross, "Killing, Abortion and
448 ÉTICA PRÁTICA

Contraception: A Reply to Marquis", journal of Philosophy, vol. 87


(1990), p. 268-77. A citação que menciona a totipotência vem de Don
Marquis, "Singer on Abortion and Infanticide", em Jeffrey Schaler (org.),
Peter Singer Under Fire (Open Court, 2009), p. 151.
A respeito da possibilidade de criar novos seres humanos a partir de
tipos diversos de células, veja-se Agata Sagan e Peter Singer, "The Moral
Status ofStem Cells", Metaphilosophy, vol. 38, no 2-3 (abr. 2007), p. 264-84.
O trecho mencionado e atribuído a Patrick Lee e Robert George foi retirado
do ensaio dos autores, "Human-Embryo Liberation: A Reply to Peter
Singer", National Review Online (25 de janeiro de 2006), disponível em
<http://www.nationalreview.com/comment/lee_george200601250829.
asp>. Veja-se também Patrick Lee e Robert George, Body-SelfDualism in
Contemporary Ethics and Politics (Cambridge University Press, Cambridge,
2008), p. 81-94.
Devo minhas especulações sobre a identidade do embrião que se
divide a Helga Kuhse, com quem escrevi, em coautoria, "Individuais,
Humans and Persons: The Issue of Moral Status", em P. Singer, H.
Kuhse, S. Buckle, K. Dawson e P. Kasimba (org.), Embryo Experimenta-
tion (Cambridge, 1990). Temos, ambos, uma dívida para com um livro
extraordinário de um teólogo católico romano que se opõe ao ponto de
vista de que a concepção assinala o início do indivíduo humano, Norman
Ford, autor de When Did I Begin? (Cambridge, 1988). A discussão a
respeito do luto por "Mary" encontra-se em David Oderberg, "Moda!
Properties, Moral Status, and Identity'', Philosophy & Public Affairs, 26
(1997), p. 270-1. O argumento sobre a potencialidade no contexto da ferti-
lização in vitro foi publicado pela primeira vez em Peter Singer e Karen
Dawson, "IVF Technology and the Argument from Potential", Philoso-
phy and Public Affairs, vol. 17 (1988), tendo sido reimpresso em Embryo
Experimentation. Stephen Buckle apresenta uma abordagem diferente em
"Arguing from Potencial", Bioethics, vol. 2 (1988), também reimpresso em
Embryo Experimentation. Veja-se também Reginald Williams, "Abortion,
Potencial, and Value", Utilitas, 20 (2008), p. 169-84.
A citação de John Noonan foi extraída de "An Almost Absolute Value
in History", em John Noonan, The Morality of Abortion (Cambridge,
Massachusetts, 1970), p. 56-7. A respeito da porcentagem de embriões que
se tornam bebês, veja-se United States Department of Human Services,
Cemers for Disease Com rol and Prevention, Assisted Reproductive Techno-
logy (ART) Repore: National Summary, 2007, disponível em <http://apps.
nccd.cdc.gov/ART/NSR.aspx?SelectedYear=2007>. Observe-se que, para
obter a probabilidade de um determinado embrião sobreviver, é necessário
dividir as taxas de sucesso da gestação pelo número médio de embriões
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 449

usados a cada ciclo (já que a maioria das gestações tem como resultado apenas
uma criança). Essas mesmas cifras, no caso da Grã-Bretanha, podem ser
encontradas no site da Human Fertilisation and Embryology Authority,
disponível em: <http://www.hfea.gov.uk/ivf-figures-2006.html#1276>.
No caso do estado australiano de Victoria, veja-se Victorian Assisted
Reproductive Treatment Authority, Annual Report, 2009, disponível em
<http://www.varta.org.au/www/257/1003057/displayanicle/1003573.htmb.
O tranquilizador comentário de Bentham sobre o infanticídio
foi extraído de seu livro Theory of Legislation, p. 264, e é citado por E.
Westermarck em The Origin and Development of Moral Ideas (Londres,
1924), I, p. 413n. Na úlrima parte de Abortion and lnfanticide, Michael
Tooley discute os indícios disponíveis a respeito do desenvolvimento, no
bebê, da percepção de ser um eu contínuo. Sobre esse assunto, veja-se
também Alison Gopnik, The Philosophical Baby (Nova York, 2009).
Material histórico sobre a predominância do infanticídio pode ser
encontrado em Maria Piers, Infanticide (Nova York, 1978), e W. L. Langer,
"lnfanticide: A Historical Survey", History ofChildhood Quarterly, vol. 1
(1974). Uma pesquisa mais antiga- ainda assim valiosa- pode ser encon-
trada em Edward Westermarck, The Origin and Development of Moral
Ideas, I, p. 394-413. Um interessante estudo do uso do infanticídio como
forma de planejamento familiar está em Thomas C. Smith, Nakahara:
Family Farming and Popu!ation in a ]apanese Vil/age, I7I7-1830. As
referências às concepções de Platão e Aristóteles sobre o assumo foram
apresentadas nas notas ao Capítulo 4. Com relação a Sêneca, veja-se De
ira, r, 15, citado por Westermarck em The Origin and Development of
Moral Ideas, I, p. 419. Infanticide and the Value ofLife (Buffalo, Nova York,
1978), organizado por Marvin Kohl, é uma coletânea de ensaios sobre o
infanticídio. Um fone argumento sobre as razões para as políticas públi-
cas defenderem o nascimento como o momento em que deve ser rraçada
a linha divisória pode ser encontrado (para os que leem em alemão) em
Norbert Hoerster, "Kindstotung und das Lebensrecht von Personen",
Analyse & Kritik, vol. 12 (1990), p. 226-44.
Entre os artigos que exibem alguma afinidade com a posição que
assumi, temos: Michael Tooley, ''Abortion and lnfamicide", Philosophy and
Public Affairs, vol. 2 (1972); Mary Anne Warren, "The Moral and Legal
Status of Abortion", The Monist, vol. 57 (1973); e R. M. Hare, ''Abortion
and the Golden Rule", Philosophy and Public Affairs, vol. 4 (1975).

Capítulo 7: Tirar a vida: humanos


Os pormenores do caso Linares foram extraídos do New York Times,
27 de abril de 1989, e de Hastings Center Report, jul.lago. 1989. lnfor-
450 ÉTICA PRÁTICA

mações e referências pormenorizadas sobre toda a questão concernente


às decisões de vida ou morte no caso de bebês encontram-se em Helga
Kuhse e Peter Singer, Should the Baby Live? (Oxford, 1985); Nuffield
Council on Bioethics, "Criticai Care Decisions in Fetal and Neonatal
Medicine" (2006), disponível em <http://www.nuffieldbioethics.org/go/
outwork/neonatal/publication_406.htmb; John D. Lantos e William
Meadow, Neonatal Bioethics: The Moral Challenges ofMedicai Innovation
(Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2006); and Geoffrey Miller,
Extreme Prematurity: Practices, Bioethics and the Law (Cambridge/Nova
York, Cambridge University Press, 2007).
O número de pacientes em estado vegetativo persistente e a duração
desses estados podem ser encontrados em "usA: Right to Live, or Right
to Die?", The Lancet, vol. 337 (12 de janeiro de 1991). Veja-se também
Nancy Frazier O'Brien, "No Easy Answers Seen for Questions About
Persistem Vegetative State", Catholic News Service, 20 de setembro de
2007, disponível em <www.catholic.org>. A respeito do caso Schiavo,
veja-se William Yardley e Maria Newman, "Schiavo Dies Nearly Two
Weeks After Remova! of Feeding Tube", The New York Times, 31 de
março de 2005; e Timothy Williams, "Schiavo's Brain Was Severely
Deteriorated, Autopsy Says", The New York Times, 15 de junho de 2005.
O caso de Diane foi extraído de Timothy E. Quill, "Death and
Dignity: A Case of Individualized Decision Making", The New England
]ournal ofMedicine, vol. 324, no 10 (7 de março de 1991), p. 691-4. Betty
Rollins descreve a morte de sua mãe em Last Wish (Penguin, 1987): o
trecho citado foi extraído das p. 149-50. A respeito da morte de Janet
Adkins, veja-se o New York Times, 14 de dezembro de 1990; o relato do
próprio Jack Kevorkian encontra-se em Prescription: Medicide (Prome-
theus books, Buffalo, Nova York, 1991), de sua autoria. Outras discus-
sões sobre o suicídio assistido e a eutanásia voluntária encontram-se em
Margaret Pabst Battin, The Least Worst Death (Nova York, 1994);]. M.
Dieterle, "Physican-Assited Suicide: A New Look at the Arguments",
Bioethics, 21 (2007), p. 127-39; e Michael Gil!, "Is the Legalization of
Physician-Assisted Suicide Compatible with Good End-Of-Life Care?",
]ournal ofApplied Philosophy, 26 (2009), p. 28-42.
O relato que faço do que aconteceu no Memorial Medicai Center
de Nova Orleans se baseia em Sheri Fink, "The Deadly Choices at
Memorial", The New York Times Sunday Magazine, 30 de agosto de 2009.
O ponto de vista oficial da Igreja Católica a respeito da eutanásia e
da doutrina do duplo efeito encontra-se em Declaração Sobre a Eutanásia,
publicada pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (Vaticano,
1980). Outras discussões proveitosas encontram-se em Jonathan Glover,
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 451

Causing Death and Saving Lives, cap. 14 e 15; D. Humphry e A. Wickett,


The Right to Die: Understanding Euthanasia (Nova York, 1986); e H.
Kuhse, "Euthanasia", em Peter Singer (org.), A Companion to Ethics
(Oxford, 1991).
Quanto às questões que giram em torno do tratamento de bebês
portadores de deficiências graves, veja-se C. Gill, "Health Professionals,
Disability and Assisted Suicide: An Examination of Relevam Empírica!
Evidence and Reply ro Batavia", Psychology, Public Policy & Law, vol. 6,
no 2 (2000), p. 526-45; A. Batavia, "The Relevance ofData on Physicians
and Disability on the Right ro Assisted Suicide: Can Empírica! Srudies
Resolve the Issue?", Psychology, Public Policy & Law, vol. 6, no 2 (2000),
p. 546-58; e Eva Feder Kittay, "At the Margins of Moral Personhood",
Ethics, 116 (2005), p. 100-31. Vejam-se também os ensaios a seguir e
minhas respostas, rodos em Jeffrey Schaler (org.), Peter Singer Under Fire
(Chicago, 2009): Harry J. Gensler, "Singer's Unsanctity ofHuman Life:
A Critique"; Harriet McBryde Johnson, "Unspeakable Conversations, or,
How I Spent One Day as a Token Cripple at Princeron University"; e
Stephen Drake, "Not Dead Yet!".
A diferença entre eutanásia ativa e passiva é concisamente criticada
por James Rachels em "Active and Passive Euthanasia", publicado em
New England fournal ofMedicine, vol. 292 (1975), p. 78-80, e reimpresso
em Peter Singer (org.), Applied Ethics. Vejam-se também The End of
Life, de Rachels; o capítulo 4 de Should the Baby Live?, de Helga Kuhse
e Peter Singer; e o capítulo 2 de Helga Kuhse, The Sanctity-OfLife
Doctrine in Medicine: a Critique (Oxford, 1987), Um relato do caso Baby
Doe pode ser encontrado no capítulo 1 do mesmo livro. A pesquisa dos
pediatras norte-americanos foi publicada em "Neonarologists Judge the
'Baby Doe' Regulations", de Loretta M. Kopelman, Thomas G. lrons e
Anhur E. Kopelman, em The New England fournal ofMedicine, vol. 318,
no (17 de março de 1988), p. 677-83. Os processos judiciais ingleses a
respeito dessas decisões são descritos em Derek Morgan, "Letting Babies
Die Legally", Institute ofMedicalEthics Bulletin (maio de 1989), p. 13-18; e
em "Withholding ofLife-Saving Trearment", The Lancet, vol. 336 (1991),
p. 1.121. O poema de Arthur Clough encontra-se na antologia The New
OxfordBookoJEnglish Verse, organizado por Helen Gardner (Oxford, 1978).
O ensaio de si r Gusrav Nossa! eirado na seção "Eutanásia ativa e passiva" do
Capítulo 7 é "The Righr ro Die: Do We Need New Legislation?", Parlia-
ment ofVictoria, Social Development Committee, First Report on Inquiry
into Options for Dying with Dignity, p. 104. A respeito da doutrina do
duplo efeito e da distinção entre meios comuns e incomuns de tratamento,
veja-se Helga Kuhse, "Euthanasia", em Perer Singer (org.), A Companion
452 ÉTICA PRATICA

to Ethics; um relato mais completo pode ser encontrado em H. Kuhse, The


Sanctity-OfLife Doctrine in Medicine: A Critique (Oxford, 1987), cap. 3-4.
Quanto à decisão do papa João Paulo li em relação à remoção de sondas
alimentares, veja-se "Discurso do papa João Paulo li aos participantes do
congresso internacional 'Life Sustaining Treatments and Vegetative State:
ScientificAdvances and Ethical Dilemmas"', 20 de março de 2004, dispo-
nível em <http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/2004/march/
documems/hf_jp-ii_spe_20040320_congress-fiamc.htmb. Veja-se também
a já mencionada Declaração sobre a eutanásia, publicada pela Sagrada
Congregação para a Doutrina da Fé (Vaticano, 1980).
O estudo dos pediatras e obstetras australianos mencionado foi
publicado com o tÍtulo de "The Treatment of Newborn Infants with
Major Handicaps", de P. Singer, H. Kuhse e C. Singer, no Medicai
}ournai of Australia, 17 de setembro de 1983. O testemunho do bispo
católico Lawrence Casey no caso Quinlan é citado no julgamento em
"In the Matter ofKaren Quinlan, An Alleged Incompetent", reimpresso
em B. Steinbock (org.), Killing and Letting Die (Englewood Cliffs, Nova
Jersey, 1980). John Lorber descreve a prática de eutanásia passiva em
casos seletos de espinha bífida em "Early Results of Selective Treatment
of Spina Bifida Cystica", British Medicai ]ournal, 27 de outubro de 1973,
p. 201-4. As estatÍsticas referentes à sobrevivência de bebês com espinha
bífida não submetidos a tratamento foram extraídas dos ensaios de Lorber
e G. K. e E. D. Smith, já mencionados. Médicos diferentes apresentam
números diferentes. Com relação a novas discussões do tratamento de
bebês com espinha bífida, veja-se o capítulo 3 de Shouid the Baby Live?,
de Helga Kuhse e Peter Singer.
O argumento de que os crimes nazistas resultaram do programa
de eutanásia é uma citação extraída de Leo Alexander, "Medicai Science
Under Dictatorship", New England journal of Medicine, vol. 241 (14 de
julho de 1949), p 39-47. Em lnto That Darkness: From Mercy Killing to
Mass Murder (Londres, 1974), Gitta Sereny faz uma afirmação semelhante
ao acompanhar a carreira de Franz Stangl, desde os centros de eutanásia
até o campo de extermínio de Treblinka; ao fazê-lo, porém, revela como o
programa nazista de "eutanásia" era diferente daquilo que hoje se defende
(veja-se, especialmente, p. 51-5). Um exemplo de pesquisa que mostra que
as pessoas normalmente consideram alguns estados de saúde piores que
a morte pode ser encontrado em G. W. Torrance, "Utility Approach to
Measuring Health-Related Quality ofLife", ]ournai oJChronic Diseases,
vol. 40 (1987), p. 6.
Com relação à eutanásia entre os esquimós (e a raridade do homicí-
dio fora dessas circunstâncias específicas), veja-se E. Westermarck, The
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 453

Origin and Development of Mora l Ideas, vol. 1, p. 329-34; p. 387, nota 1;


p. 392, notas 1-3.

Capítulo 8: Ricos e pobres


Uma discussão pormenorizada das obrigações dos ricos para com
os pobres encontra-se em Peter Singer, The Life You Can Save (Nova
York, 2009). Entre outros livros preciosos sobre o assunto, temos: Peter
Unger, Living High and Letting Die (Nova York, 1996); William Aiken
e Hught LaFollete (org.), World Hunger and Moral Obligation (Upper
Saddle River, Nova Jersey, 1996); Thomas Pogge, World Hunger and
Human Rights (Cambridge, 2002); Deen Chatterjee (org.), The Ethics of
Assistance (Cambridge, 2004); Garrett Cullity, The Moral Demands of
Affluence (Oxford, 2005); e Thomas Pogge (org.), Freedom Jrom Poverty
as a Human Right (Oxford, 2007). Uma discussão a respeito das causas da
pobreza pode ser encontrada em Paul Collier, The Bottom Billion (Nova
York, 2007).
O relatório da equipe de pesquisadores do Banco Mundial a respeito da
pobreza foi publicado como: Deepa Narayan, Raj Patel, Kai Schafft, Anne
Rademacher e Sara h Koch-Schulte, Voices of the Poor: Can Anyone Hear Us?
(Nova York, 2000). Os números mais recentes do UNICEF para a mortalidade
infantil estão disponíveis em <www.childinfo.org/mortality.htmb.
Quanto aos valores que cada nação doa para a ajuda internacio-
nal, veja-se <http://www.oecd.org/countrylist/0,3349,en_2649_34447_
1783495_1_1_1_1,00.htmb.
Quanto à diferença que uma vítima identificável faz para nossa
disposição em ajudar, veja-se Paul Slovic, "Psychic Numbing",judgment
and Decision Making, 2 (2007), p. 79-95. Com relação à diferença entre
matar e deixar morrer- ou à inexistência de uma diferença-, veja-se (além
das referências anteriores à eutanásia ativa e passiva) Jonathan Glover,
Causing Death and Saving Lives, cap. 7; Richard Trammel, "Saving Life
and Taking Life", journal of Philosophy, vol. 72 (1975); John Harris,
"The Marxist Conception of Violence", Philosophy and Public A!Jairs,
vol. 3 (1974), John Harris, Violence and Responsibility (Londres, 1980);
e S. Kagan, The Limits ofMorality (Oxford, 1989).
A concepção dos direitos de John Locke é desenvolvida em seu
Segundo tratado sobre o governo civil (1690), e a de Robert Nozick é
apresentada em Anarchy, State and Utopia (Nova York, 1974). A defesa
que Narveson faz desse ponto de vista e minha resposta encontram-se
em Jeffrey Schaler (org.), Peter Singer Under Fire (Chicago, 2009). A
concepção bastante diferente de santo Tomás de Aquino foi extraída da
454 ÉTICA PRÁTICA

Suma teológica, li, ii, questão 66, artigo 7. Thomas Pogge argumenta que
somos responsáveis por provocar ou manter a pobreza em seu livro World
Hunger and Human Rights (Cambridge, 2002).
Quanto à eficácia da ajuda internacional, vejam-se <www.GiveWell.
org> e minha discussão do tema em The Life You Can Save (Nova York,
2009), cap. 6.
Garrett Hardin propôs sua "ética do barco salva-vidas" em "Living
on a Lifeboat", Bioscience, out. 1974, da qual outra versão foi publicada
em W. Aiken e H. LaFollette (org.), World Hunger and Moral Obliga-
tion (Englewood Cliffs, Nova Jersey, 1977). Hardin aprofunda mais o
argumento em The Limits ofAltruism (Bioomington, Indiana, 1977). Um
argumento anterior que rejeita a ajuda internacional foi apresentado por
W. e P. Paddock em seu mal intitulado livro Famine 1975! (Boston, 1967),
mas, na história desse ponto de vista, o lugar de honra deve ficar com
Thomas Malthus e Um ensaio sobre o princípio da população (Londres,
1798). A questão da população e a quantidade de grãos que desperdiçamos
com a alimentação de animais são discutidos em Peter Singer, The Life
You Can Save, cap. 7. As estimativas das Nações Unidas para a redução
dos índices de fertilidade podem ser encontradas em United Nations,
Department of Economic and Social Affairs, Population Division, World
Population Prospects: The 2006 Revision (Nova York, 2007). A respeito da
diminuição no ritmo de declínio da fertilidade, veja-se John Bongaarts,
"Fertility Transitions in Developing Countries: Progress o r Stagnation?",
Population Council, New York, Poverty, Gender, and Youth Working
Paper no 7, 2008.
A respeito das ações da família Salwen, veja-se Kevin e Hanna
Salwen, The Power ofHalf One Family's Decision to Stop Taking and Start
Giving Back (Nova York, 2010). Sobre Zell Kravinsky, veja-se Ian Parter,
"The Gift", The New Yorker, 2 de agosto de 2004. O artigo de Susan
Wolfe, "Moral Saints", foi publicado em]ournal ofPhilosophy, 79 (1982), p.
419-39. Discute-se a possibilidade de uma posição semelhante àquela que se
defende neste livro estabelecer um padrão por demais elevado em "Sympo-
sium on Impartiality and Ethical Theory", Ethics, 101 (4), jul. 1991. Uma
defesa vigorosa da ética imparcialista contrária a essa objeção encontra-
-se em S. Kagan, The Limits ofMorality (Oxford, Clarendon Press, 1989).
Veja-se também Peter Singer, The Life You Can Save, cap. 9-10.

Capítulo 9: Mudanças climáticas


Os documentos essenciais para que se faça uma avaliação das
mudanças climáticas são os Relatórios de Avaliação do Painel Intergo-
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 455

vernamental sobre Mudanças Climáticas. No momenro em que escrevo,


o mais recente desses documentos é o Quarto relatório de avaliaçáo,
divulgado em 2007. Os relatórios estão disponíveis em <www.ipcc.ch>.
The Weather Makers (Nova York, 2001), de Tim Flannery, é uma boa
e abrangenre introdução ao assumo, bem como o mais breve Now or
Never (Nova York, 2009), do mesmo autor. Entre as referências biblio-
gráficas que tratam dos aspectos éticos das mudanças climáticas, temos:
Stephen Gardiner, A Perfect Moral Storm (Oxford, 2001); James Garvey,
The Ethics oJClimate Change (Nova York, 2008); e Jeremy Moss (org.),
Climate Change and Social ]ustice (Melbourne, 2009). Uma coletânea
proveitosa seria Stephen Gardner, Simon Caney, Dale Jamieson e Henry
Shue (org.), Climate Ethics (Nova York, 2010).
O número de mortes causadas pelo aquecimento global é fornecido
pela Organização Mundial de Saúde em World Health Organization,
The Global Burden of Disease, 2004, Annex, p. 8, disponível em <http://
www.who.int/healthinfo/global_burden_disease/GlobalHealthRisks_
reporr_annex.pdf>.
A respeito do desaparecimento das ilhas Sundarbans: Somini
Sengupta, "Sea's Rise in India Buries Islands and a Way of Life", New
York Times, 11 de abril de 2007. As previsões referentes ao provável
impacto futuro das mudanças climáticas foram extraídas de Inrergovern-
mental Pane! on Climate Chame (rPcc), "Summary for Policymakers",
em IPCC, Climate Change 2007: Impacts, Adaptation and Vulnerabi-
lity. Contribution of Working Group ii to the Fourth Assessment Report of
the lntergovernmental Panel on Climate Change (Cambridge, 2007;
versão on-line em <www.ipcc.ch>), p. 1-22. A proposta brasileira está
disponível em <http://unfccint/methods_and_science/other_methodolo-
gical_issues/items/1038.php>. Os números referentes à responsabilidade
histórica pelas mudanças climáticas encontram-se em Niklas Hõhne et
ai., Summary Reportof the Ad Hoc Group for the Modeling and Assessment
of Contributions to Climate Change (Match), nov. 2008, disponível em
<http://unfccc.im/files/methods_and_science/other_methodological_
issues/application/pdf/match_summary_report_pdf>; veja-se também
Michel den Elzen et ai., "Analyzing Countries' Contribution to Climate
Change: Scientific and Policy-Related Choices", Environmental Science &
Policy, 8 (2005), p. 614-36. O documenro chinês mencionado é: Chinese
Academy os Sciences, Chinese Academy of Social Sciences, Develop-
menr Research Center of the State Council, National Climate Center,
Tsinghua University, Carbon Equity: Perspective from Chinese Academic
Community, lO de dezembro de 2009.
456 ÉTICA PRATICA

A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáti-


cas pode ser encontrada em <http://www.unfcc.int/resource/conv/conv.htmb.
A sugestão de que não deveríamos exceder os 350 ppm de gás carbônico
na atmosfera foi oferecida em ]ames Hansen et ai., "Target Atmospheric co2:
Where Should Humanity Aim?", Open Atmosphere Science ]ournal, 2
(2008), p. 217-31. Hansen apresenta argumentos contrários a um sistema
de limitação e comércio em seu artigo "Cap and Fade", The New York
Times, 7 de dezembro de 2009; Paul Krugman responde com "Building a
Green Economy", New York Times Sunday Magazine, 5 de abril de 2010.
Quanto à abordagem adotada pelo Conselho Consultivo para
Mudanças Globais da Alemanha, veja-se WBGU, Solving the Climate Dilemma:
the BudgetApproach (Berlim, 2009), disponível em <http://www.wbgu.de/
wbgu_sn2009_en.htmb. A citação atribuída aAngela Merkel foi extraída
de seu discurso no simpósio Global Sustainability, em Potsdam, em 9 de
outubro de 2007, disponível em alemão, com o título de "Rede von
Bundeskanzlerin Dr. Angela Merkel beim Symposium 'Global Sustai-
nability' am 9. Oktober 2007 in Potsdam", Bundesregierrung, Bulletin
104-1 , 10 de outubro de 2007, disponível em <http://www.bundesre-
gierung.de/nn_l514/Con ten t/ DE/Bulletin/200711 0/1 04-1-bk-klima.
htmb. Com relação à distinção feita por Henry Shue, veja-se "Subsis-
tence Emissions and Luxury Emissions", Law and Policy, 15 (1993),
p. 39-59. Quanto à defesa de algo parecido pela China em 2007, veja-se a
agência de notícias Xinhua, "China Urges Accommodation to 'Em issions
of Subsistence"', China Daily, 2 de agosto de 2007.
Os comentários do presidente Museveni de Uganda foram extraí-
dos de seu discurso na conferência de cúpula da União Africana, em
Adis Abeba, Etiópia, em fevereiro de 2007, de acordo com o que relatou
Andrew Revkin, em "Poor Nations to Bear Brunt as World Warms", New
York Times, 1o de abril de 2007.
A proposta de um imposto sobre a pecuária apresentada pela Organi-
zação das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura acompanhava
o relatório da entidade, Livestock in the Balance: The State of Food and
Agriculture, 2009 (Roma, 2010), p. 74.
A citação atribuída ao presidente dos Estados Unidos George W. Bush
se encontra em Edmund Andrews, "Bush Angers Europe by Eroding Pact
on Warming", New York Times, }o de abril de 2001. A citação atribuída ao
porta-voz de Bush, Ari Fleisher, foi extraída da conferência de imprensa
na Casa Branca em 7 de maio de 2001.
A respeito da questão da responsabilidade individual pelas ações para
as quais nós contribuímos, são referências relevantes: David Lyons, Forms
and Limits ofUtilitarianism (Oxford, 1965); R. M. Hare, "Could Kant Have
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 457

Been a Utilitarian?", Utilitas, 5 (1993), p. 1-16; Brad Hooker, Ideal Code,


Real World (Oxford, 2000); David Schawrtz, Consuming Choices (Lanham,
Maryland, 2010); Derek Parfit, Reasons and Persons (Oxford, 1984),
cap. 3; Christopher Kutz, Complicity: Ethics and Law for a Collective Age
(Cambridge, 2000); e Jonathan Glover, "lt Makes no Difference Whether
or Not I Do Ir", Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary
Volume XLIX (1975).

Capítulo 10: O meio ambiente


A respeito da proposta de construir uma represa no rio Franklin, no
sudoeste da Tasmânia, veja-se The Franklin: Not justa River (Ringwood,
Victoria, 1983), de ]ames McQueen.
A primeira citação bíblica vem do Gênesis 1, 24-28; a segunda,
também do Gênesis 9, 1-3. Quanto às tentativas de atenuar a mensagem
contida nesses trechos, veja-se, por exemplo, The Ethics ofEnvironmental
Concern (Londres, 1983), de Robin Attfield, e Christianity and the Rights
ofAnimais (Londres, 1987), de Andrew Linzey. A citação de Paulo vem
de Coríntios 9, 9-10, e a de Santo Agostinho vem de seu livro The Catholic
and Manichean Ways of Life, traduzido para o inglês por D. A. Gallagher
e I. J. Gallagher (Catholic University Press, Boston, 1966), p. 102.
A respeito da maldição da figueira, veja-se Marcos 11, 12-22, e, quanto ao
afogamento dos porcos, Marcos 5, 1-13. O trecho de Aristóteles pode ser
encontrado em sua Política (J . M. Dent and Sons, Londres, 1916), p. 16.
Quanto às opiniões de santo Tomás de Aquino, veja-se a Summa theolo-
gica, n, ii, questão 64, artigo 1; r, ii, questão 72, artigo 4.
A respeito de detalhes sobre pensadores cristãos alternativos, veja-se
Man and the Natural World (Londres, Allen Lane, 1983), de Keith Thomas,
p. 152-3, e The Ethics ofEnvironmental Concern (Londres, 1929), p. 246-7.
As citações provenientes de The End of Nature (Nova York, 1989),
de Bill McKibben, são das p. 58 e 60. Veja-se também, do mesmo autor,
Eaarth (Nova York, 2010).
A mais completa exposição que Albert Schweitzer faz de suas
concepções éticas pode ser encontrada em Civilisation and Ethics (parte
n de The Philosophy of Civilisation), traduzido para o inglês por C. T.
Campion (Londres, 1929, 2' ed.). A citação vem das p. 246-7. As citações
de Respect for Nature (Princeton, 1986), de Paul Taylor, são das p. 45 e
128. Uma crítica da obra de Taylor pode ser encontrada em "The Life
Principie: a (Metaethical) Rejection", de Gerald Paske, journal ofApplied
Philosophy, vo!. 6 (1989).
458 ÉTICA PRÁTICA

A objeção de Holmes Rolston ao que escrevi na segunda edição deste


livro pode ser encontrada em "Respect for Life: Counting What Singer
Finds ofNo Account", em Dale Jamieson (org.), Singer and Critics (Oxford,
1999), p. 247-68; veja-se também minha resposta, no mesmo volume.
A proposta de A. Leopold de uma "ética da terra" pode ser encon-
trada em seu livro A Sand County Almanac, With Essays on Conservation
from Round River (Nova York, 1970; publicado pela primeira vez em
1949, 1953); os trechos citados foram extraídos das p. 238 e 262 . O texto
clássico para a distinção entre ecologia superficial e profunda é Ame
Naess, "The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movement",
Inquiry, vol. 16 (1973), p. 95-100. Com relação a obras posteriores sobre
a ecologia profunda, veja-se, por exemplo, Arne Naess e George Sessions,
"Basic Principies of Deep Ecology", Ecophilosophy, vol. 6 (1984); W.
Devall e G. Sessions, Deep Ecology: Living as if Nature Mattered (Salt
Lake City, 1985; o trecho mencionado na seção "Ecologia profunda" do
Capítulo 10 vem da p. 67); Lawrence Johnson, A Mora!!y Deep Wor!d
(Cambridge, 1990); Freya Mathews, The Ecologica! Seif(Londres, 1991);
Vai Plumwood, "Ecofeminism: An Overview and Discussion ofPositions
and Arguments: Critica! Review", Austra!asian ]ourna! ofPhilosophy, vol.
64 (1986; suplemento), e Richard Sylvan, "Three Essays Upon Deeper
Environmental Ethics", Discussion Papers in Environmenta! Philosophy, vol.
13 (1986; publicado pela Universidade Nacional Australiana, Camberra).
Caia: A New Look at Life on Earth, de }ames Lovelock, foi publicado em
Oxford em 1979. Earth and Other Ethics (Nova York, 1987), de Chris-
topher Stone, especula sobre as maneiras como os seres não sencientes
poderiam ser incluídos numa estrutura ética.
O Creen Consumer Cuide original foi elaborado por John Elkington
e Julia Hailes (Londres, 1988). Desde então, muitas adaptações e muitos
outros guias semelhantes foram publicados em diversos países. A respeito
do descomedimento da produção animal, vejam-se as referências apresen-
tadas para o Capítulo 8. Uma excelente introdução à ética ambiental
encontra-se em Dale Jamieson, Ethics and the Environment (Cambridge,
2008). A Companion to Environmenta! Philosophy (Oxford, 2001), organi-
zado por Dale Jamieson, é uma coletânea abrangente de ensaios. Veja-se
também o artigo "Environmental Ethics", de Andrew Brennan, na versão
on-line da Stanford Encyclopedia ofPhilosophy.

Capítulo 11: Desobediência civil, violência e terrorismo


A história de Oskar Schindler é brilhantemente contada por Thomas
Kenneally em Schindler's Ark (Londres, 1982). O caso de Joan Andrews e
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 459

o trabalho da Operação Salvamento são descritos por Bernard Nathanson


em "Operation Rescue: Domestic Terrorism or Legitimare Civil Rights
Protest?", Hastings Center Report, nov./dez. 1989, p. 28-32. A passagem
bíblica citada vem de Provérbios 24, 11. A afirmação de Gary Leber sobre
o número de crianças salvas encontra-se em seu ensaio "We Must Rescue
Them", Hastings Center Report, nov./dez. 1989, p. 26-7. A respeito das
experiências de Gennarelli e dos fatos a elas associados, veja-se Animal
Liberation: A Graphic Cuide (Londres, Camden Press, 1987), de Lori
Gruen e Peter Singer. A respeito da Frente de Libertação dos Animais,
veja-se também Philip Windeatt, "They Clearly Now See the Link:
Militam Voices", em Peter Singer (org.) In Defence ofAnimais (Oxford,
Blackwell, 1986). O bloqueio do rio Franklin é vivamente descrito por
um dos participantes em The Franklin: Not ]ust a River (Ringwood,
Victoria, 1983), de ]ames McQueen. A propósito das primeiras campa-
nhas malsucedidas para salvar o lago Pedder, veja-se "I Saw My Temple
Ransacked", de Kevin Kiernan, em Cassandra Pybus e Richard Flana-
gan (org.), The Restof the World is Watching (Sydney, 1990). A respeito
do protesto diante da Usina Termelétrica do Capitólio, veja-se Bryan
Walsh, "Despi te Snow- and lrony- a Climate Protest Persists", Time,
3 de março de 2009.
"Civil Disobedience", de Henry Thoreau, foi reimpresso em várias
obras, dentre as quais: H. A. Bedau (org.), Civil Disobedience: Theory and
Practice (Nova York, 1969); o trecho citado foi extraído da p. 28 dessa
coletânea. A citação que vem imediatameme a seguir saiu da p. 18 de In
Defense ofAnarchism (Nova York, 1970), de R. P. Wolff. A respeito da
natureza da consciência, veja-se A. Campbell Garnett, "Conscience and
Conscientiousness", em J. Feinberg (org.), Moral Concepts (Oxford, 1969).
John Locke defendeu a importância de leis estabelecidas em seu
Segundo tratado sobre o governo civil (1690), sobretudo nas seções 124-6.
A respeito das inúmeras tentativas de alterar as leis sobre experiências
feitas com animais, veja-se Victims of Science (Londres, 1975), de Richard
Ryder. Sobre a defesa da desobediência civil nesse contexto, veja-se Pelle
Strindlund, "Butchers Knives into Pruning Hooks: Civil Disobedience for
Animais", em Peter Singer, In Defense ofAnimais: The Second Wave (Oxford,
2006).
A proposta de Mill a respeito de se atribuir um maior número de
votos aos mais cultos aparece no capítulo 8 de seu livro Representative
Government. Devo a citação de A situação das classes trabalhadoras na
Inglaterra (tradução inglesa de W. Henderson e W. Chaloner, Oxford,
1958, p. 108), de Engels, a John Harris, "The Marxist conception of
violence", Philosophy and Public Affairs, vol. 3 (1974), que afirma, convin-
460 ÉTICA PRÁTICA

centemente, que a violência passiva tem de ser vista como uma forma
genuína de violência. Veja-se também o livro de Harris, Violence and
Responsibility (Londres, 1980), e o de Ted Honderich, Three Essays on
Political Violence (Oxford, 1976). O livro Ecodefense: A Field Cuide to
Monkeywrenching, de Dave Foreman e Bill Haywood, já está em sua
terceira edição (Chico, Califórnia, 1993).
A relevância da democracia para justificar a desobediência às leis é
tratada com muito mais detalhes em meu livro Democracy and Disobedience
(Oxford, 1973). Civil Disobedience and Violence (Belmont, 1971), organi-
zado por J . G. Murphy, ainda é uma coletânea proveitosa. H. A. Bedau
também organizou uma outra antologia, além daquela já citada anterior-
mente: Civil Disobedience in Focus (Londres, 1991). Uma discussão mais
recente da desobediência civil encontra-se em Kimberley Brownlee, "Civil
Disobedience", na versão on-line da Stanford Encyclopedia ofPhilosophy.

Capítulo 12: Por que agir moralmente?


A propósito das tentativas de rejeitar a questão-título deste capítulo,
por ser considerada imprópria, veja-se The Place of Reason in Ethics
(Cambridge, 1961), de S. Toulmin, p. 162; Human Conduct (Londres,
1963), de J . Hospers, p. 194; e Generalization in Ethics (Londres, 1963),
de M. G. Singer, p. 319-27. D. H. Monro define os juízos éticos como
fundamentais em seu livro Empiricism and Ethics (Cambridge, 1967);
veja-se, por exemplo, a p. 127. A visão prescritiva da ética de R. M. Hare
implica o envolvimento de um compromisso com a ação na aceitação
de um juízo moral, mas, como só os juízos universalizáveis contam
enquanto juízos morais, esse ponto de vista não resulta em que qualquer
juízo que consideremos fundamental seja, necessariamente, nosso juízo
moral. Portanto, a concepção de Hare nos permite dar sentido à nossa
questão. A respeito dessa questão geral da definição de termos morais
e das consequências de definições diferentes, veja-se, de minha autoria,
"The Triviality of the Debate Over 'Is-Ought' and the Definition of
'Moral"', American Philosophical Quarterly, vol. 10 (1973).
O argumento discutido na segunda seção é um resumo do que se
encontra em fontes como: Meditações, de Marco Aurélio, livro IV, parte
4; Fundamentos da metafísica da moral, de I. Kam; The Categorical
Imperative (Londres, 1963), de H. J. Paton, p. 245-6; Human Conduct
(Londres, 1963), de J. Hospers, p. 584-93; e Practical Reasoning (Oxford,
1963), de D. Gauthier, p. 118. Quanto a uma defesa diferente de um ponto
de vista kantiano que exigiria uma discussão à parte, veja-se Christine
Korsgaard, The Sources ofNormativity (Cambridge, 1996).
NOTAS, REFERÊNCIAS E LEITURAS COMPLEMENTARES 461

Hume defende sua concepção da razão prática em A Treatise of


Human Nature, livro r, partem, seção 3. As objeções de Thomas Nagel
a essa concepção podem ser encontradas em The Possibility ofAltruism
(Oxford, 1970). Uma reafirmação mais recente da posição de Nagel
acha-se em seu livro The View from Nowhere (Nova York, 1986). A
observação de Sidgwick sobre a racionalidade do egoísmo está na p. 498
de The Methods of Ethics (Londres, 1907, 7• ed.). A história de Parfit a
respeito do homem que sofre de Indiferença da Terça-feira Futura saiu de
seu livro On What Matters (Oxford, no prelo [publicado posteriormente
em 2011]), mas, originalmente, ele chegou a discutir essa possível atitude
em Reasons and Persons (Oxford, 1984), p. 124. Sharon Street responde a
Parfit em "In Defense of Future Tuesday lndifference: Ideally Coherent
Eccentrics and the Contingency of What Matters", Philosophical Issues,
19 (2009), p. 273-98. A respeito da concepção de Sidgwick, modificada
por Parfit, sobre a racionalidade de fazer o que promove nossos interesses,
veja-se On What Matters, cap. 6.
A insistência de Bradley em que se deve amar a virtude por ela
mesma vem de seus Ethical Studies (Oxford, 1876, reimpresso em 1962),
p. 61-3. A mesma posição pode ser encontrada em Fundamentos da
metafísica da moral, de Kant, cap. 1, e em D. Z. Phillips, "Does it pay to
be good?", Proceedings ofthe Aristotelian Society, vol. 64 (1964-5). Bradley
e Kant expõem aquilo que acham ser "a consciência moral comum", e não
seus próprios pontos de vista. O próprio Kant adota o ponto de vista
da consciência moral comum, mas, posteriormente, em Ethical Studies,
Bradley defende uma concepção da moralidade na qual a satisfação subje-
tiva que faz parte da vida moral tem um papel muito importante.
Minha exposição de por que acreditamos que somente as ações
praticadas em nome da moralidade têm valor moral é semelhante ao
ponto de vista defendido por Hume em Uma investigação sobre os princí-
pios da moral. A conclusão de Sócrates de que "o justo é feliz" pode ser
encontrada em Platão, República, 354a.
A primeira pesquisa mencionada sobre doações para a caridade é a
Social Capital Community Benchmark Survey; a segunda provém do Pane!
Study oflncome Dynamics da Universidade de Michigan. Encontrei essas
referências emArthur Brooks, "Why Giving Makes You Happy", New York
Sun, 28 de dezembro de 2007. Outros estudos são descritos em Jonathan
Haidt, The Happiness Hypothesis (Nova York, 2006), cap. 8. O estudo que
utilizou imagens do cérebro é descrito em William T. Harbaugh, Ulrich
Mayr e Daniel Burghart, "Neutra! Responses to Taxation and Voluntary
Giving Reveal Motives for Charitable Donations", Science, 316 (15 de
junho de 2007), p. 1622-25.
462 ÉTICA PRÁTICA

Maslow apresenta alguns dados muito vagos em defesa de sua teoria


da personalidade em "Psychological Data and Value Theory", em New
Knowledge in Human Values (Nova York, 1959), organizado por A. H.
Maslow (org.); veja-se também Motivation and Personality (Nova York,
1954), de A. H . Maslow.
Com relação aos psicopatas, veja-se The Mask of Sanity (St. Louis,
1976, 5• ed.), de H. Cleckley. A observação sobre os pedidos de ajuda que
vêm dos parentes, e não dos próprios psicopatas, encontra-se na p. viii. A
menção a um psicopata feliz é uma citação de Psychopathy and Delinquency
(Nova York, 1956), de W. e J. McCord, p. 6. A respeito da habilidade com
que os psicopatas evitam a prisão, veja-se Psychopathy (Nova York, 1970),
de R. D. Hare, p. 111-12. O exemplo do psicopata que esqueceu a carteira
foi extraído de R. D. Hare, Without Conscience: The Disturbing World of
Psychopaths Among Us (Nova York, 1993), p. 58-9. Quem me apontou esse
exemplo foi Heidi Maibom, em "Moral Unreason: The Case ofPsychopa-
thy", Mind & Language, 20 (2005), p. 237-57.
O "paradoxo do hedonismo" é discutido por F. H. Bradley no
terceiro ensaio de seu Ethical Studies; o relato de um psicoterapeuta pode
ser encontrado em The Will to Meaning (Londres, 1971), de Viktor Frankl,
p. 33-4.
Sobre as relações emre interesse pessoal e ética, veja-se o último
capítulo de Methods ofEthics, de Sidgwick, e a discussão no capítulo 6 do
livro de Derek Parfit, On What Matters.
Pormenores a respeito das festas de aniversário que custaram mais
de 5 milhões de dólares podem ser encontrados em Andrew Ross Sorkin,
"In Defense o f Schwarzman", The New York Times, 29 de julho de 2007.
~

Indice remissivo

A ajuda internacional 290


condições da 312
"Abortion and lnfanticide" (Tooley) 132
crescimento populacional e 307
aborto 194 reponsabi lidade governamental pela 314
argumento feminista sobre o 203
Alemanha. Veja-se nazistas, nazismo
argumentos liberais sobre o 200
e emissões de gases do efeito estufa 335,
como assassinato 201, 215
337> 338
como crime sem vítimas 202
e eutanásia x
como questão ética X
e limites ao tratamento intensivo neonaral 272
de fero portador de deficiência 249
Alexander, Leo 281
definição de ser humano e 120
diagnóstico pré-nata l e 249 alimentos. Veja-se fome; inanição
e infanticídio 230 animais como 92
e o valor da vida 207 crescimento populacional e 309
espontâneo 228 produção e consumo de 93, 331
justificação do 250 alívio da dor com base na igual consideração
legislação e 200. Veja-se Roe versus Wade de interesses 45, 48
objeção à contracepção 217 alma 198
objeção às células totipotentes 218 Al-Qaeda 405
oposição ao 207, 381, 399 altruísmo 418, 434
posição conservadora sobre o 194 América do Norte. Veja-se Canadá;
tardio 209 Estados Unidos
aborto espontâneo 193, 228 riqueza na 290
aborto tardio 2 ro AMorallyDeep World(Johnson) 374
Academia Norte-Americana de Pediatria 270 And rews, Joan 380
ação afirmativa 40, 71, 72, 73, 74, 76, 77, 78, animais 88
79• 81 auroconsCiencia em 155, r6o, r85
ação moral capacidade de sentir dor 8 8
interesse pessoal e 31, ro6, 417 como alimento 92
raciocínio prático e 417 comunicação entre 150, 153
razões para a 413 consciência em ro8, 154, 185
Adkins, Janet 264 consequências do aquecimento global
adoção 245, 253 sobre os 325
diferença do ser humano para os XI, 107
afeições e moralidade I I 4
efeito das mudanças climáticas sobre os 325
afinidades raciais e a obrigação de ajudar 304
exclusão da ética 104
África 333 experiências com 96
crescimento populacional e 309 igualdade para os 89
emissões e gases do efeito estufa 334, 338 matar 164, r84
mudanças climáticas e 333 tirar a vida de 97, 164, 185
afro-americanos 71, 74 uso de ferramentas por ro8
e ação afirmativa 71, 74 animais não hun1anos
e testes de QI 50 como pessoas I 49
agências voluntárias 314 violência para com 158
Agostinho (Santo) 356, 457 aptidão visuoespacial
agressão, diferenças sexuais na 56, 59 diferenças sexuais na 57, 6o, 61, 62, 63, 66
464 ÉTICA PRATICA

aquecimento global. Veja-se mudanças climáticas e eutanásia 257


Aquino, Tomás de 123, 306, 356, 357,442, e o direito à vida 132, 230, 244
453> 457 e o valor da vida 92, 143
a República 104, 309 e tirar a vida 124, 163
A respeito de B 271 na condição humana 120
argumento da substituibilidade 167 nos animais 155, 160, 184
Aristóteles 123, 234, 354, 356, 357, 425, 442, autodefesa u8, II9
449> 457 automóveis 298
Arrhenius, Svante 331 autonomia. Veja-se respeito pela autonomia
A situação das classes trabalhadoras na {princípio)
Inglaterra (Engels) 402, 459 e o direito à vida 136
assassinato e os animais 108

aborto como 201, 215 respeito pela I 34


deixar morrer como equivalente moral do 291 aves 157, 158, r6o
assassinato, justificação do 401, 404
assistência ao desenvolvimento.
B
Veja-se ajuda internacional Baader-Meinhoff, quadrilha 405
metas da ONU 290 "Baby Doe", caso 270, 271, 272, 280,451
ataques terroristas aos EUA 289 Bakke, Alan. Veja-se Conselho da Universidade
A Theory of]ustice {Rawls) 41, 340 da Califórnia contra Bakke
atitudes morais baleias jubartes, comunicação entre 153
mudanças nas 19 Banco Mundial 287, 288
atividades recreativas ao ar livre 354 Bangladesh 308, 309, JI2, 324
atos e omissões bebês. Veja-se bebês deficientes; infanticídio
doutrina dos 273, 280 como pessoas morais em potencial 42
e a defesa da violência 401 como seres substituíveis 250
responsabilidades nos 29 5 deformados 120, 234
atos ilegais direito à vida 132
justificação de 395 em experiências 90
ausência de sentido da vida 428 prematuros u8, 195
Austrália 290 santidade da vida humana r r8
ajuda internacional 290 status como seres humanos 125
aquecimento global 33 3 tirar a vida de 123, 2Jl, 247, 248
distinção comum/incomum na 278 bebês anencefálicos 271
emissões de gases do efeito estufa 335, 338 bebês deficientes
riqueza na 290 direito à vida 123
suicídio assistido por médicos na 265 e eutanásia não voluntária 247
Áustria tirar a vida de 245, 256
protesto contra a eutanásia na X tratamento/não tratamento médico 247
autoconsciência benevolência 22, 422, 428
das pessoas 162 Benjamin Franklin, Objeção de 102
do bebê 121, 230
Bentham, Jeremy 32, 35, 87, 108, IJ8, 139,
do embrião 230
232,255>440,443>449
do feto 121, 230
Berry, Wendell 382, 385
e a capacidade de escolher 136
e a e o princípio da igual consideração de Blblia 354, 355· Veja-se cristianismo
interesses 10 8 bioética XI, I 20
ÍNDICE REMISSIVO 465

biosfera 371, 375 China


Boesky, Ivan 4 33 emissões de gases do efeito estufa 335, 338
Bradley, F. H. 420, 4 62 emissões de luxo 340
Brasil in fa nticídio em mandarim 23 4
mudanças climáticas 329
emissões de gases do efeito estufa no 329,
338 riqueza/pobreza na 290
riqueza/pobreza no 290 cidadania, e a obrigação de ajudar 304
uso de contraceptivos no 3 r 2 "Civil Oisobedience" (Thoreau) 384, 459, 460
Brigadas Vermelhas 405 civilização ocidental
Brown, Bob 381, 382, 383, 385 va lor da vida na 122
Brown, Louise 191 Cleckley, Hervey 427
budismo 178 clonagem 167, 216
Burquina Faso clorofluorcarbonetos (CFCs) 347
emi ssões de gases do efeito estu fa em 339, Clough, Arthur 272, 451
340 coerção 258, 395
Bush, George W. rr6, 193, 215, 255 , 342, Colômbia
34 3> 447 uso de contraceptivos na 3I 2
combustíveis fósseis 329
c Comissão do Patrimônio Mundial 382
caça roa, 103, 162, 187 Comissão Hidrelétrica da Tasmânia 390
caça ao veado 187 comportamento de planejamento
cães r6o, 280 em animais 154
Canadá comportamento intencional em animais I 53
ajuda internacional 291 composição genética 216
emissões de gases do efeito estufa em 335, 338 comunidade moral !07
câncer de ovário 263 comunidade (s)
câncer de pele 34 7 di reito de determinar a fi liação a 72
e a obrigação de ajudar 304
capacidade de escolher
fro nteiras da(s) !05
e autonomi a ro8, 134
mo ral 107
e euta násia 239, 269
comunismo 70, II6
e eutanásia in voluntária 2 41
e eutanásia não voluntária 241 conceito de continuidade do eu 132
capacidade de suporte 308 condição social 64, 71
caridade 314, 425 condicionamento social 58, 6o
condições sociais e deficiência 8o
Carão 239
condução de automóveis 297
catolicismo romano 191, 276, 278
C onferência de Cúpula da Terra
celibato 214
(Rio de Janeiro) 331
células-tronco X III, XVI, 192, 193, 2 15, 216
consciência. Veja-se autoconsciência;
chimpanzés Veja-se autoconsciência
auroconsciência e1n 162 ausência de ror, 371
criação de ferramentas por ro8 do so frim ento 89
intencionalidade em 156 e eutanásia 254
linguagem em 150 e o direito 383, 421
pensamento conceitual em I 53 e o va lor d a vida 92
planejamento consciente em 161 moral 422
466 ÉTICA PRÁTICA

no argumento conservador sobre o aborto 199 D


nos animais 108, 154, 155, 184
dano à camada de ozônio 347
Conselho da Universidade da Califórnia contra
Darwin, Charles 107, 108
Bakke 72
Davis, Steven 188, 4 46
Conselho Federal de Medicina dos EUA 270
Dawkins, Richard 316
consequencialismo 21 , 25
débitos, preferências como 177, 179, 184
atos/omissões no 280
Deep Ecology (Devall & Sessions) 373, 458
desobediência civil no 400
e moralidade pública/privada 320 defeitos congênito
argumento da substituibilidade e 169
obrigação de ajudar no 295, 299
espinha bífida 279
princípi o d a cumplicidade 346, 351
deficiência
rriagem no 309
discriminação co m base em 47
violência no 404
princípio de igua ldade e 79
consequências da travessia de gramados para o
deixar morrer equivalente moral
utilitaristas de regras 345, 346
do assassinato 291
consequências da travessia de um gramado do
democracia 389
ponto de vista do utilitarismo de atos 345
e mudanças na legislação sobre euta násia 391
consumo 3 )O, 377 deontologistas 21
contracepção 214 De rerum natura (Lucrécio) 169
obj eção à 218
descarte do lixo nuclear ro6
controle populacional
desnutrição 324
aborto/contracepção como 214
desobediência. Veja-se atos ilegais
ina nição como 187
justi ficação d a 39 5
infanticídio como 233
desobediência civil 39 5
pela fome e a doença 309
e muda nças clim áti cas 384
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre justificação da 395
Mudanças Climáticas 340
Deus, deuses 22, 355, 430
córtex cerebral 2.10
Devall, Bill 37 3
crescimento populacional como causa De Waal, Frans 23 , 154,438, 444
da pobreza 307
Dez Mandamentos 273
crescimento populacional por causa da pobreza
diabetes 192
efeito sobre as emissões per capita 339
diagnóstico pré-natal 192, 248, 249, 2)2,
criação divina 108 253· 269
crianças . Veja-se bebês dieta
como pessoas morais em porencial 43 e mud anças climáticas 344
crime sem vítima, aborto como 202 igualdade pa ra os anim ais e 93
crimes sem vítimas 202 dieta vegetariana 165
cristianismo diferenças genéticas de QI 54
e infanticídio 2 33 diferenças individuais 43
e o valor da vida 123 diferenças psicológicas entre os sexos 56
padrões éticos universais no 32 diferenças raciais e QI I I 3
srarus dos seres huma nos no 355 diferenças salariais . Veja-se distribuição de renda
cuidar de nossa própria gente, diferenças sexuais
argumento do 303 biológ icas 40
cumplicidade, princípio da 346 no Q T 56
ÍNDICE REMISSIVO 467

diminuição da utHidade marginal (princípio) 48 domin.incia masculina 40


Dinamarca 191, 290 dor. Veja-se sofrimento
dinheiro com base d a igual consideração de interesses
desejo pelo 43 3 45·47
direito ao 306 e direito à vida; e va lor d a vid a 137
transferência de 290 em animais, capacidade de sentir 86, 89, roo
direito à ajuda 296. Veja-se obrigação de ajudar e tirar a vida de anima is 89
nas decisões de euta násia 262
direito à vida
no feto 209
auroconsciênda 230
doutrina do duplo efeito 268, 276, 277, 34 2,
autoconsciência e 134
450, 451
autonomia e 134
capacidade de escolher e 203
E
d as pessoas 130, 213
de bebês deficientes 123 ecologia
e eutanásia voluntária 258 superficia l/profunda 371.
perda d a capacidade de escolher e 257 Veja-se ecologia profunda
reivindi cação do X III ecologia profunda 371
direito moral 13 I ecossistema global 374
direitos ecossistemas 366, 372
de pessoas 212 educação
do feto 212 ação afirm ativa na 72
e aborto 206 de portadores de deficiência 8 r
e desejos 131, 256 iguald ade na 65
individuais 36 Edwards, Robert 192
res ponsabilidade em 42 Egito 324
teo ria dos 205, 257, 296 egoísmo e felicidade 431
direitos de propriedade, e a obrigação egoísta
de ajudar 305
prudente 432
direitos individuais 36 pura mente 415, 416
direitos morais 296 embrião
discriminação. Veja-se ação afirmativa co mo ser humano 221
a favor de grupos disprivilegiados 72 e experiências 221
com base em defi ciências 46, 81 linh a divisória mora lmente significativa entre
com base na espécie 99, 365 a cri ança e o 194
racial 40 proteção em laboratório 221
discriminação inversa. Veja-se ação afirmativa racionalid ade po tencial do 220
discriminação racial 40 singularidade do 215
distinção eu/outro 419 uso de 215
distribuição de renda emissões de gases do efeito estufa 334
iguald ade na 66 co mo agressão às nações em desenvolvimento
justiça na 66 341, 389
e emissões de luxo 340
diversidade genética e igualdade 50
e mercado de ca rbono 334
Divisão de População da ONU 339 métod o d a quota equi tativa per capita
doença cardíaca 193 334· 338
doença de Tay-Sachs 217, 246, 282 emotivismo 28
doenças suscetíveis às condições climáticas 324 energia nuclear IX
468 ÉTICA PRATICA

enfermidades nutricionais 289 natureza e função da 421


Engels, Friedrich 26 o que é 29
escolha(s) de divertimento 354, 360 o que não é 19
escravidão 26, 27, 47, 88 origem d a 22
Espanha 191, 272 prática 19
espécies ameaçadas 187 razão e 28, 413, 4 22
universalizabilidade da 36
espécies, ética ecológica no nível da 374
visão contratual da IO 5
especismo
defesa do I I r ética ambiental
e o erro de matar 122, 207, 244 desenvolvi menta de 376
e o valor da vida 92, 14 3 ética da terra 37 I
e racismo 88 ética de regras 21
e tirar a vida de pessoas não humanas 158 ética do barco salva-vidas 308
formas de roo
ética do respeito pela vida 371, 375
espectador imparcial 32, 413, 434
ética ecológica 358, 371, 372
espermatozoide e FIV 230
ética imparcial 319
espinha bífida 279, 280, 282
ética individualista 306
esquimós 28 5
ética kantiana 423, 424
Estado. Veja-se governo
autoridade do 384 ética prática 19
e eutanásia 243, 281 Etiópia 291, 309
e liberdade do indivíduo 26 5 eu contínuo r 33
e o poder de matar 237, 281 Europa. Veja-se cada país
estado comatoso 242 riqueza na 290
estado dormente 133 , 175 eutanásia
estado inconscente 175, 203, 257 argumentos co ntra a 269
estado inconsciente 131, 137 ativa/pass iva 269
Estados Unidos defini ção 238
ajuda internacional 291 e genocídio 281
emissões de gases do efei to estu fa 335, 338 e raciocínio moral intuitivo 269
mudanças climáticas e os 329, 332 invo lu ntá ria 241 , 266
Estados Unidos, Lei dos Direitos Civis dos 78 justificação da 256
estado vegetativo 254, 255, 278 não voluntária 241
estética dos lugares naturais 376 voluntária 240
estilo de vida 96, qr, 341, 342, 344, 349, eutanásia ativa 269
350, 430 eutanásia involuntária, não justificação da 266
estoicos 32, 33, 413 eutanásia não voluntária
estupro justificação da 243
gravidez res ultante de 204 p roteção em relação à 253
ética 31. Veja-se moralidade Eutanásia não voluntária 241
da triagem 307 bebês defi cientes e 243
do aborto x
eutanásia passiva 269
ecológica 358, 371
exclusão da ro6 eutanásia voluntária 256
interesse pessoal e 413, 420 justi ficação da 256
justificação d a 413 evolução 23, 52
ÍNDICE REMISSIVO 469

excesso de população consciência no 198


de animais silvestres 187 direito à vida 213
humana 307, 308 estado dormente do 210
existência no tempo linha divisória moralmente significativa entre
como início da vida 253 a criança e o 194
concepção de 131, 164 proteção contra pesquisas e experiências
e a eutanásia voluntária 259 221,223
status como ser humano 120, 194, 208, 231
no fero 233
substituibilidade do 250
nos bebês 132, 244
tirar a vida do 217
expectativa de vida 289
viabilidade do 195
experiências (científicas}
filhos
com bebês humanos 90
obrigações morais em relação a ter 141
com embriões 221
filiação a uma espécie
com portadores de deficiências 90, 98
e a distinção humano/animal 90
em animais 90, 96
e o direiro à vida 220
proteção do fem 221, 223
e tirar a vida 123
experiências com animais 96 relevância moral do limite da II4, 122, 300
atos ilegais em oposição a 400
filosofia na Grécia antiga 32, 123, 354
extinção 325
Fink, Sheri 268
extravagancia 377
fins/meios 383, 396, 405
Eysenck, H.J. 40, 44, 5J, 54
Fletcher, Joseph 120, 122
florestas. Veja-se matas
F
destruição de 357
Faculdade de Direito da Universidade fome 287, 288, 290, 321.
de Michigan 79 Veja-se inanição; pobreza
faculdades mentais; e sofrimento 87. força
Veja-se seres humanos portadores de violência I 11, 40I
deficiências mentais
Fouts, Deborah 150, I5I
fatores biológicos nas diferenças sexuais 59
Fouts, Roger 150, 15 I
fazendas industriais 94, 186
França I9I, 272, 291
Fearnley-Whittingstall, Hugh 166, 167
Franklin, Benjamin I02
felicidade. Veja-se prazeres
Frente de Libertação dos Animais 379, 383,
capacidade de sentir 125
385,389, 390,392,394·397·406,459
ética e 425
frugalidade 376
valor intrínseco da 431
fuga de cérebros 67
feminismo, feministas
Fundo das Nações Unidas para a Infancia
a respeim da dominância masculina 51
(UNICEF) 288
a respeito do aborto 204
futuras gerações
ferramentas, uso de, por animais 108
e meio ambiente 358
fertilização in vitro (VI F} XIV, 192, 224,
230,448 G
feto. Veja-se aborto
aborto de portadores de deficiências 249 gado I88
autoconsciência do 120, 230 Gaia 374
capacidade de sentir dor 209 Gaia: A New Look at Life on Earth (Lovelock)
como vida em potencial 2II , 220 374
como vítima 202 gaiolas em bateria 9 5
470 É TICA PRÁTICA

gaios californianos 158, r6o, 163 H


galinhas 161, r86
Habermas, Jürgen 32
gan:l.ncia 433
Haidt, Jonathan 426
Ganges, delta do 324
Hampshire, Stua rt 152
G ardner, Allen I 50
Hansen, James 328, 336, 349
gás carbônico 326, 334 Hardin, G a rrett 308, 316
gatos 160 Hare, R. M . XVI , 28, 32, 33, 127, 128, 162,
gêmeos 222 r8o, 233 , 346,424, 429
genética 40, 50, 229 H a rlow, H. F. 97, 98
Gennarelli, Thomas 379, 380, 383, 390, 391, Hart, H . L. A. 176, 180
398,406 hedonismo, paradoxo do 431
genocídio 28 I , 397 hemofilia 246, 248, 249, 250
George, Robert XV, 219 hereditariedade. Veja-se genética
gerações futuras heroísmo moral 274
e mudanças climáticas 171, 179 Herrnstein, Richard 40
obrigação para com as ro6 hierarquia da inteligência 44
GiveWell.org 302 hierarquia de inteligência 52
Glover, jonathan 348 Hitler, Adolf 51, 203, 397
Goldberg, Steven 62 holismo 374
golfinhos homens . Veja-se sexismo; papéis
comun icação entre 153 sexuais; diferenças sexuais; igualdade/
Goodall, Jane 108, 156 desigualdade sexual
gorilas. Veja-se hominoides hominoides 151. Veja-se chimpanzés
linguagem em 150 autoconsciência em 150, 160, 184
lin guagem em I5I
governo. Veja-se estado
noção de tem po em 151
e mud anças climáticas 350, 382
responsabilidade pela aj uda internacional 314 Homo sapims (espécie)
e mata r 122
Grã-Bretanha 191, 291
em brião como 120
Gratz versus Bollinger 79 e o va lor d a vida 245
gravidez feto como I 20, 208
res ultante de estup ro 204 fi liação a 120
trimestres da 2II homossexualidade 202
gravidez perdida 228 Hooker, Brad 346
Gray, Jeffrey 69 "How Much Can W e Boost IQ a nd Scholastic
Grécia antiga Achievement? " (Jensen) 50
filo sofi a na 31, 354 humanidade, indicadores de 120
in fa nticídio na 233 Hume, David 416
Greene, Rita 254 Hutcheson, Francis 32
grupos étnicos
di fe renças de Q l II 3 I
e ação afirmativa 71, 74, 77 igua l consideração dos interesses, princípio da
Grutter contra Bollinger 79 aplicado aos a nim ais 85, 93, 98, 99 , 100
guerra e a obrigação de aj ud ar 299
tirar a vida durante a II9 e auroco nsciência/aurono mia 108
ÍNDICE REMISSIVO 471

e defi ciência 80, 25 I e Estado 265


e discriminação racial/sexual 44, 74, 77 e sociedade 2 7
e o princípio de igua ld ade 48 que se veem como um dentre outros 4I7
e o sofrimento 46, 48 Indonésia
igualdade de consideração 64 uso de co ntraceptivos na 312
igualdade de oportunidades infanticídio
e igua ldade de consideração 65 abo rto e 230
e portadores de defi ciências 8 I de bebês deficientes 243
impossibilidade d a 65 justificação do 243
igualdade/desigualdade racial, mudanças restrições ao 234
nas atitudes 39 infertilidade nos seres humanos I92
igualdade/desigualdade sexual 7I ingestão de carne, justificação da I88
ação afirm ativa 7 I Inglaterra
igualdade factual 44, 81 limi tes ao cratamenco intensivo neonaral na
igualdade moral 8r 272. Veja-se Grã-Bretanha
igualdade (princípio) ingresso na universidade
capacidade d e sofrer e 87 e ação a firmativa 72
com base em diferenças sexuais e na e inteligência 40
igualid ade racial 71 iniciativa privada 70
co m base na igual consideração injustiça. Veja-se justiça
de interesses 44 e consequencialismo 299
com base nas diferenças raciais e na para com portadores de deficiências 80
iguald ade racial 71
inteligência
e ação afi rmativa 71
diferenças raciais de 40, 5I
e defi ciência 79
diferenças sexuais de 43
e diversid ade genética 50
e in gresso na universidade 51
fund amentos da 39 hierarquia imaginária de 44, 46
igualdade social (meta) 7 I interesse pessoal
igualitarismo 46, 55, 393 e contrato ético 106
biocêntrico 373, 374 e raciocínio I05, 43I
ilhas, desaparecimento de 3 24 ét ica do 31,417
impedir algo de ruim sem sacrificar algo de interesses
impord.ncia moral (princípio) 299 capacid ade de sofrimento/felicid ade
imposto e dividendos, sistema 337 prerrequi siro para 87
imprudência 429 de anim ais 85, 93, 98, 105
imprudência no trânsito 297 de espécies, ecossistemas 365
de longo prazo 358, 4I7
inanição
de seres não auroconscientes I 10
no controle da popul ação anima r86
do fero 203
no controle da popul ação hum ana 309
ego ísmo prudente e 43 2
Índia
limite da preocupação com
cresci mento populacional na 309 interesses alheios 88
e emi ssões de gases do efeito estufa 335, 338 moralmente significat ivos 205, 375
e m udanças clim áticas 324, 332 preocupação com os pró prios.
riqueza/pobreza na 290 Veja-se interesse pessoal
"Indiferença da Terça-Feira Futura" 4 17 interesses moralmente significativos 375
indivíduo (s) Irish Republican Army [Exército Republicano
e di fe renças de grupos II3 da Irlanda] (IRA) 405
472 ÉTICA PRÁTICA

Irlanda, aborto na 191 Kravinsky, Zell 318


Itália 191, 272 Krugman, Paul 337
Kuhse, Helga X V, XVI, 278
J Kutz, Christopher 347, 348, 349
Jacklin, Caro! N. 6o, 62, 439
Japão
L
ajuda internacional 291 ladeira escorregadia, argumento da
in fant icídio no 234 em defesa do especismo rr r
riqueza no 290 lago Peddar 390
Jefferson, Thomas 56 Last wish (Rollin) 263
Jensen, Arthur 40, 50 Latimer, Robert 242
Johnson, Lawrence 374 Leber, Gary 381, 390, 397
juízos éticos 105 Lee, Patrick XV, 219
juízo(s) moral(is) 25, 29, 32, 227, 316 Lee, Ronnie 397
juramento de Hipócrates 237 Lei dos Direitos Civis de 1964 78
justiça 36 lei e ordem 387
na distribuição 328 lei natural 32
n a distribuição de rend a 64 leis
senso de 23, 40 e aborto 200, 201
justificação e consciência individual 383
ci rcular 4II obrigação de obedecer 384
da caça 187 razões pa ra obedecer 388
da desobediência civil 395 Leopold, Aldo 37 1
da ética do interesse pessoal 4 22
lesões na coluna espinhal 193
da eutanás ia 256
Leste da Ásia 329
d a eutan ásia não voluntá ria 243
liberdade acadêmica XI
d a eutanásia voluntária 256
d a inges tão de carne 186 libertação dos animais, grupos em prol da
da raciona lidade d a ética 41 r 383, 406
da violência 40I Licurgo 123
de ações, independentemente limitações de recursos e tratamento médico 50
das consequências 293 limite vivo/inanimado 375
de atos ilegais 407 Linares, Samuel 242
de padrões éticos 30 linguagem
do aborto 250 em animais 150
do assassinato 401, 405 e pensamento 153
do in fa nticídio 243 linguagem norte-americana de sinais 150
dos ju ízos éticos 105
linha divisória moralmente significativa 194
justi ficação ética da ética 412
nasci mento como 195
prim eiros sinais de vida como 198
K
su rgimento da consciência como 198
Kagame, Paul 333, 334 viabilidade do feto como 196
Kant, lmmanuel 22, 32, 134, 345, 413 , 423 , 434 linha primitiva 194
Katrina, furacão 277 " livro-caixa moral ", modelo do 177, 178, 179
Kevorkian, Jack 263, 264 Locke, John 122, 124, 295,326,388
Kipling, Rudyard 39 Lorber, John 279, 281, 282, 283
ÍNDICE REMISSIVO 473

Lovelock, }ames 374, 375 minorias


Lucrécio 169, 173, 174 e ação afi rmativa 40, 71, 74, 76
Luxemburgo re presentativ idade nas profissões 72
e aj uda internaciona l 291 moralidade. Veja-se ética
e lim ites ao tratamenm intensivo neonaral 272 classe econôm ica e 25
eutanásia em 240 da reciprocidade 23, I04
e afeições II 4
Lyons, David 346
lei e 200
M "Moral Saints" (Wolf) 318
morrer com dignidade 238
macacos . Veja-se hominoides
mortalidade, índices de 288
M accoby, Eleanor E . 59, 6o, 62
mortalidade infantil 300, 309, 3II
Mackie, J . L. 28
morte assistida 238
Madoff, Bernard 434 morte e morrer
M alauí, 333 de an imais 164, 365
mal de Alzheimer 193, 264 desejo de 257. Veja-se eutanásia voluntária
mal de Parkinson 192 motivo (s)/motivação
Maldivas 324 e animais em co mparação co m seres
hu manos 155
mal imperceptível 348
em matar/deixa r morrer 297
mamíferos sociais 23, 52
teológicos 22, !23
"máquina de suicídio" 263, 264 movimento de libertação das mulheres 59
Marquis, Don XVI, 217 movimento pelos direitos dos animais
marxismo, marxistas 26, 67 e o aborto 394
Maslow, A. H . 426, 427 movimento Pró-Vida (movimento do
Mathews, Freya 374 Direito à Vida) 208
McCarthy, Joseph rr6 movimento, relevância moral do 160, 198
McKibben, Bill 363, 382, 385 mudanças climáticas. Veja-se meio ambiente
"a úlri ma farra", opção da 179, r 8o
medicina
consequências d a alteração
uso de fe tos na 193, 215, 216 na temperatura 324
medo consequências globais das 324
argumento do, e eutanásia voluntária 258 desobed iência civil contra as 382, 399
meio ambiente. Veja-se mudanças climáticas distribuição equitativa das 328
nas di ferenças de Q I 54, 66 extinções de an imais e 325
na tradição ocidental 3 55 governos 350
ponto de vista da ecologia profunda obrigações dos indivíduos 343
sobreo 371 oposição à reação do governo às 382
mercado internacional de carbono 33 5, 336 pecuária e 91
Merkel, Angela 338 quotas equi tativas das 333
"segue tudo como sempre", opção do 171,
métodos de produção agropecuária
172, 173
e pobreza 336 sustentabilidade, opção da 171
e tratamento dos an im ais 91, 93
mulheres. Veja-se sexismo; papéis sexuais;
México 312, 338 diferenças sexuais; igualdade/desigualdade sexual
Miles, Lyn 151 Murray, Charles 40
Mil!, John Stuart 24, 35, 145, 202, 265, 394 Museveni, Yoweri 341, 403
474 ÉTICA PRÁTICA

N obrigação moral
de obedecer à lei 38 3
nacionalidade Il9
de redu zir a pobreza 409
nações pobres, obrigação de ajudar as. no infa nticídi o 232
Veja-se ajuda internacional
observador ideal 33
Nações Unidas (ONU)
Oderberg, David 222
Divisão de População 339
meta de ajuda 290, 314 O gene egoista (Dawkins) 316
Naess, Arne 37I, 372 On Liberty (Mill) 202
Nagel, Thomas 417, 4I8, 4I9, 429, 434 On Nature (Mill) 24
não igualitarismo 46, 7 I Operação Salvamento 380, 38I, 383, 390,
Narveson, Jan 295 392,394,397. 399
nascimento I 9 5 orangotangos
ling uagem em 150
natalidade, índices de 3 I 2
Oregon
natureza
euta násia volun tári a no 260
apreciação da 36o
apreciação estética da 361 Organização Mundial da Saúde 323
fim da 363 Organização para a Cooperação e
na tradi ção ocid ental 220 Desenvolvimento Econômico (OCDE) 329, 332
natureza humana 70, II5, 3I5, 425 organizações anti aborto 3 84
nazistas, nazismo 203, 237, 281, 282 , 398 O peração Salvam ento 380, 381, 383, 390,
necessidade de autorrealização 426, 427 392, 394. 397· 399
Oriente Médio
necessidade de revolução 403
riqueza no 290
necessidades básicas humanas 47, 290
Osvath , Mathias I 57
necessidades, remuneração de acordo com as 70
"O último Decálogo" (Clough) 272
Newton, lsaac 56
óvulo e FIV 230
Nitschke, Philip 264
noção de tempo nos animais I5I p
Noonan, John 227, 228, 229
norte-americanos de origem chinesa,
pacifistas 401 , 404
testes de inteligência e 5I padráo (ões)
norte-americanos de origem japonesa, demas iado altos, em relação à obrigação de
testes de inteligência e 51 ajudar 315
Noruega éticos . Veja-se padrões éticos
e ajuda internacional 291 padrões éticos 30
sofrimento, capacidade de 36 5 específicos de determinad as sociedade 30
Nossa!, Gustav 274, 283 padrões morais objetivos 2 8
Nova Zelândia pais
riqueza na 290 de bebês deficientes u8
Nozick, Robert 295 , 306, 328 e infa nticídio 147
nutrição 92, 289 Países Baixos
ajuda intern acional 291
o diretri zes para a e utanás ia
voluntária nos 260
Obama, Barack 193 e aquecimento global 3 33
obrigação de ajudar e limites ao tratamento intensivo
argumento em prol da 299 neonatal 272
objeções à 303 eutanás ia nos 240, 258
ÍNDICE REMISSIVO 475

países do Terceiro Mundo. Veja-se países em pobreza absoluta 287, 288


desenvolvimento causa da 289
países em desenvolvimento. Veja-se cada país definição 288
e organizações assistenciais 301 fatos a respeito da 287. Veja-se pobreza
índice de fertilidade em 312 absoluta
mudanças climáticas e 324, 330, 333 obrigação de prevenir 299, 322
pobreza em 288, 304 pobreza relativa 289
países menos desenvolvidos. Veja-se países em Pogge, Thomas 296
desenvolvimento Pollan, Michel r66, 167, r88
Palestina 40 5 Polônia
papéis sexuais 59 aborto na 191
paradoxo do hedonismo 43I poluição 328
parentesco, e a obrigação de ajudar 304 polvo I62
Parfit, Derek XV, XVII, I69, 170, I7r, 178, ponto de vista da existência prévia
25I, 348,4I7,4I8,4I9,420,434 (utilitarismo)
Partido Trabalhista australiano 382 argumento da substituibilidade segundo o 184
paternalismo 26 5 mudanças climáticas segundo o I72
Patterson, Francine I 5I tirar a vida de animais segundo o 165
Paulo (São) IV, 3 56 tirar a vida de bebês deficientes segundo o
141, 246
pecado
são Tomás de Aqui no a respeito do 357 ponto de vista ético 413
peixe I30, I6I ponto de vista moral 420, 434
pena capital II8 ponto de vista total (utilitarismo)
ingestão de carne segundo o I65
pensamento. Veja-se raciodnio
maximização do prazer segundo o 35, II7,
linguagem e I 53
I25, 133, 136, 137, 138, I39, I40, J4I, 165,
Pepperberg, lrene r6o I66, I74· I75• 177, 182, r85, 198, 209, 214,
perda de espécies (extinção) 325 282,365.368,369, 37~422,431
personalidade moral (conceito) 41 tirar a vida de animais segundo o 36 5
peso moral 421 tirar a vida de bebês deficientes segundo o 246
pessoa ponto de vista universal }2, 33, 46, rro, 4II,
autoconsciência da 162 413, 414
concepção do eu como 418 pontuação em testes. Veja-se testes de Ql
definição I2I ingresso 74
direito à vida 130, 220 porcos r 56, r6r
embrião como 221 portadores de deficiências. Veja-se seres
embrião tornando-se 223 humanos portadores de deficiências mentais
feto como/feto não como 209, 230 como grupo desprivilegiado 8o
não humanas 149 e eutanásia não voluntária 8o
respeito pela autonomia da r 59 em experiências 90
tirar a vida de; quase pessoas 162 posteridade. Veja-se gerações futuras
ver a nós mesmos como um entre outros 418
prazer
Platão XII, 22, 104, 123, 234, 420,425 e aborto I98
Plumwood, Vai 372 e o direito à vida 137
Plutarco 239 e o valor da vida 137
pobres (os). Veja-se pobreza maximização do prazer 139, 140
pobreza nos animais 18 6
absoluta 287 Preceito Áureo 31
476 ÉTICA PRATICA

preconceito. Veja-se discriminação questões éticas


contra interesses dos animais 86 aspecro universal d as JI, 32, 4 II
contra pessoas portadores de deficiências 80 como atitudes/como prescrições 28
preferências juízos morais a respeito de 23, 105
criação e satisfação de 37, 174, 176, 178 justificação d as 4 II
em animais 365 lei universal em 32, 346
prescritivismo universal 28 Quill , Timothy 262
preservação da natureza Quinlan, Karen Ann 278
atos ilegais na 384, 397 quotas e ação afirmativa 74, 78
valores em controvérsias a respeito d a 354 R
prezervaçáo da natureza
raciocínio
valor de longo prazo da 3 59 d iferenças entre humanos e animais no ro8
primeiros sinais de vida I 9 5 e ética 29, 413, 420
princípios democráticos, peso moral dos 392 e in reresse pessoal 105
princípios morais erro no 82, 103, r68
e matar animais para servirem de alimento moral crítico 127, 135, 136, 233, 269
92, 102 moral intuirivo 127, 136, 233, 269
respeito pela autonomia como 134 raciocínio prático 417
procedimento(s) de tomada de decisões 38 8 raciocínio moral crítico 127, 135, 233 , 269
proibição de matar II 9 raciocínio moral intuitivo 127, 133, 233, 269
projeto genoma humano 52 raciocínio moral, níveis de
crírico 135, 233, 269
promessas não cumpridas 128, 299
intuirivo 136, 233, 269
promessas, não cumprimento de I 28, 299
raciocínio prático 417
propriedade, violência contra a 4 06
racionalidade da ética 326
prostituição 202
racismo 43 , 47
Protocolo de Quioto 332 com base na igual consideração dos
prudência 20, 418 interesses 43
imprudência 429 e ação afi rmativa 76
psicologia positiva 425 pri ncípio violador do 88
racis tas 39
psicopatas 427, 432
Ramsey, Paul 214, 215 , 229
pureza 36
Range Properry ou propriedade
de ãmbiro 41, 43
Q Rawls , John 32, 33, 41, 42, 43 , 104, 340
QI Reagan, Ronald 270
d iferenças ambientais de 54 Real Comissão Canadense da
diferenças genéricas de 54, 66 Condição Feminina 200
e diferenças raciais II3 Real Sociedade Brirãnica para a Prevenção
e diferenças sexuais 56 da C rueldade com os Animais 385, 386
e princípios de igualdade 66 Reasons and Persons (Parfit)
qualidade de vida a res peiro de C 271
do bebê deficiente 183 a res peito do bebê J 271
e euta násia 279 reciclagem 377
e trata mento méd ico 275 reciprocidade e ética 23, 104
quase pessoas 163 recusa em ministrar 73
ÍNDICE REMISSIVO 477

reforma agrária 312 Salt, Henry r68, 169, 173


refugiados climáticos XIV Salwen, Kevin 317, 318, 321
regras morais 2 73 santidade da vida humana u8, 124, 158, 207,
matar/deixar morrer nas 273 237,244,276,278,280,285
Reino Unido, limites ao tratamento intensivo Sartre, Jean-Paul 32
neonatal no 272 Schiavo, Terri 254, 255, 256, 278
relacionamentos pessoais Schindler, Oskar 379, 383, 385, 389, 398
de psicopatas 427, 428 Schopenhauer 178, 179
e a obrigação de ajudar 303 Schweitzer, Albert 368, 369
relativismo 25, 26, 27 Scruton, Roger 163, 189
relevância moral senciência como limite da preocupação com
do limite de filiação a uma espécie II3, interesses alheios 8 8
122, 300 Sêneca 234, 239
impedir algo ruim sem fazer sacrifícios 299
sentido da vida 430
religião 22, 25, II9, 208. Veja-se budismo;
sentimentos de culpa 386, 427, 428
cristianismo; tradição hebraica
ser(es) humano(s)
represa 353, 364, 390, 399
definição II9
represa no rio Franklin, projeto 354, 396
desenvolvimento do(s) 193, 209
República Democrática do Congo 309 diferenças em relação aos animais 107, I 52
resolução de problemas por animais (polvo) 102 diferenças entre 43
Respect for Nature (Taylor) 369 embrião como 1 20
respeito pela autonomia (princípio) fero como 121, 194, 207, 230
como princípio moral fundamental 134 na tradição ocidental, status do 355
e capacidade de escolher ro8, 134 sofrimentO nos 210
e eutanásia III, 135, 283 seres humanos
e tirar a vida 135, 232 em matar/deixar morrer 291
respeito pela autonomia (princípio) seres humanos portadores de
e pessoas 15 8 deficiências mentais
responsabilidade como seres incapazes de exercer
por atos/omissões 293 reciprocidade ro6
sistema reconhecido de 303 discriminação contra 8o
e a distinção entre humano e animal IIO
revolução industrial 330
e eutanásia 242
rio(s), represamento de 353, 364, 381, 399 e experiências 91
riqueza 290 e igualdade 8 r
e obrigação moral de ajudar 299 status como seres humanos ro8
fatos sobre a 290 tirar a vida de 8o
riqueza absoluta 290 ser(es) senciente(s)
roaylties de petr6leo e minerais 336 consideração moral do 366
Roe contra Wade 191, 196 distintos dos não sencientes 375
Rollin, Betty 263 fero como 209
Rolston, Holmes 370 levar a ética para além dos 366
valor além dos 86
romanos 234
ser meramente consciente 174
Ruanda 333
Sessions, George 372, 373
s sexismo 43, 46
Sachs, Jeffrey 217, 246, 282, 321 sexo 19, 25
478 ÉTICA PRATICA

Shakespeare, William 31, 180 Summa Theologica (São Tomás deAquino) 357
Shue, Henry 340 Summers, Lawrence 40, 6r
Sibéria 327 Sundarbans 324
Sidgwick, Henry 35, 181, 419,420, 434 Supremo Tribunal 72, 79, 191, 196, 238, 255,
síndrome de Down 249, 250, 270, 271, 272, 280 270,382,390,392
sistema de limitação e comércio 336, 349 Sylvan, Richard 372
sistema nervoso 101 , 209
sistemas autorrealizadores 374 T
Smith, Adam 32 Tail!india 312, 338
sociedade talidomida 251
um indivíduo 27, 385 Tasmânia, projeto da represa no
Sociedade Humanitária dos rio Franklin na 354
Estados Unidos 385, 386 taxa de desconto 3 59
Sociedade Tasmaniana de Proteção Taylor, Paul 369, 372
à Natureza 381
tecido fetal 192, 215 , 216
Sócrates 104, 146, 147, 414, 4 20, 425
tecnologia médica
sofrimento e eutanásia 196
experiências com an im ais para o alívio do 95 e viabilidade n8, 197
meta de evitar o 28 4
tecnologia reprodutiva
meta de evitar o, nos a nima is 386
clonagem 215
meta de reduzir o 244
fertilização in virro 192, 224, 229
sofrimento, capacidade de. Veja-se dor
teologia católica sobre os primeiros
como característica que dá a um ser o di reito
sinais de vida 198
à igual consideração 372
nos animais 87, 89 teoria dos direitos 205, 206, 207, 257, 258,
295· 306
solidariedade 22, 78 , n6, 368, 377, 421, 422,
428 terrorismo V II, 289 , 379• 400, 401, 405
Sólon 123 teste do espelho r6o
Spira, Henry 435, 436 teste LD50 97
Sri Lanka, e emissões de gases do efeito estufa testes de QI e afro-americanos 50
334 The Ecological Seif(Matbews) 374
status moral IIO The End ofNature (McKibben) 363
da pessoa portadora de deficiência r II The Happiness Hypothesis (Haidt) 426
do em brião 195. 207 "The Human Prejudice" (Williams) II5
Stephen, Leslie 165, 168 The lnevitability of Patriarchy (Goldberg) 62
Steptoe, Patrick 192 The Mask ofSanity (Cleckley) 427
Stevenson, C . L. 28 The Peaceful Pill Handbook (Nitschke) 265
Stinson, Andrew II9
The Possibility ofAltruism (Nagel) 417,
Stinson, Peggy n8 418, 419
subjetivismo 27 The Psychology oJSex Differences
Suécia 191, 272, 291, 331 (Maccoby e Jacklin) 6o
Suíça 95, 237, 238 Thomson, Judith J . 203, 204, 205, 206, 207
protestos contra a eutanásia na x Thoreau, Henry 384, 385, 387, 393
suiddio 238 tirar a vida
assistido por m éd icos 238, 263 atos/omissões em 273
Sul da Ásia 330 de animais 95, 164, 185
ÍNDICE REMISSIVO 479

de bebês 123,232,282 utilidade marginal 48


de pessoas não humanas 158 diminuição da 48
de seres humanos 124 utilitarismo
de um ser meramente consciente 136, 257 clássico. Veja-se utilitarismo clássico
do Homo sapiens 122 consequencialismo 25, 345
e autoconsciência r24, 163, 186 e obrigação de ajudar 299
em segredo I2 7 hedonista. Veja-se utilitarismo hedonista
erro de 125, 133, 135, 164, 195, 206, 234 morre de animais no 365
morre deliberada contra deixar morrer 291 morte deliberada no 126, 137
no utilitarismo hedonista 125, 129, 135 ponto de vista da existência prévia no.
no utilitarismo preferencial 129, r 3 5 Veja-se ponto de vista da existência prévia
probição de II9 preferência . Veja-se utilitarismo preferencial
tomada de decisões morais 32 tirar a vida de animais no 164
tomada de decisões pré-éticas 32, 34, 37 valor da vida no 145
versão total. Veja-se ponto de vista total
Tooley, Michael 131, 132, 133, 136, 138, 149,
164, 174· 213 utilitarismo clássico
tradição hebraica 355 a pessoa no 213
dor e prazer no 3 5
tradição ocidental
e o utilitarismo preferencial 35
meio ambiente na 355
eutanásia voluntária no 258
respeito pela vida na 366
matar bebês no 23 2
tratamento comum versus incomum 278
maximização da felicidade no 21, 35, 176
tratamento, igual/desigual 47 morte deliberada no 125, 257
tratamento médico tomada de decisões morais no 32
distinção comum/incomum 278 utilitarismo hedonista 35, 36
e qualidade de vida 274 diferença em relação ao utilitarismo
tratamento preferencial. Veja-se ação preferencial 174
afirmativa felicidade no 37
triagem, ética da 307 preferência no 181
tributação na distribuição de renda 70 tirar a vida no 125, 135
tsunami na Ásia 289 valor da vida no 145
Tuvalu 324 utilitarismo preferencial XIII, 35, 36, 38, 129,
130, 135, 137, 147, 149, 159, 165, 173, 174,
u 176, r8o, r8r, 184,258
argumento da substituibilidade no rn. 176
"uma gota no oceano", argumento da 301 diferenças em relação ao utilitarismo
universalizabilidade (princípio) hedonista 173
dos padrões éticos 36 eutanásia voluntária no 258
do valor intrínseco 180 tirar a vida de bebês no 232
eaética 413 tirar a vida no 129, 135, 257
e o argumento da substirubilidade I 75 valor da vida no 145
e preferências 36, 180
Universidade da Califórnia, em Davis 40, v
72,74 valor
Universidade de Princeton, protestos contra a além dos seres sencientes 86
eutanásia na XI dependente de preferências I 8 r
Universo das Pessoas 180, 181, 182, 183, 184 independente de preferências 182
Universo Não Senciente 180, r8r, 182, 183 moral 375
480 ÉTICA PRATICA

valor da vida sig ni ficado da 430


alegações a respeito do XI significado do respeito pela 366
comparado 143 va lor intrínseco da 213
e aborto 207 vida biográfica 2 55
e tirar a vida de p essoas não humanas 158
vida boa 317,425
na civilização ocidental 123
vida consciente 136
na ecologia profund a 371
no cristianismo 1 23 vida fetal
vida fetal 207 valor da 207, 2 33
vida hu mana II7 vida humana
valores início da 193, 220
comuns 115 tirar a 117
de longo prazo 377 vida humana em potencial
na éti ca ecológica 358, 372 embrião co mo; feto como 216
não utilitaristas I 10 interesses do Estado em proteger a 196
valores ambientais 363 vida vegetal 102, 367, 369
valores não utilitaristas IIO Vietnã 324
valor instrumental 364 violência 112, 4 01
uni versa lização r8r virtudes
valor intrínseco éticas 424
de plantas, espécies, ecossistemas 364 natura is 422
valor intrínseco (conceito) 184 vítima{s}, identificável{eis) 294, 298
valor moral 37 5 vontade da maioria 397, 398
Varner, Gary 162, 163, 189
véu da ignorância 32 w
viabilidade do feto 196 Washington {estado)
viajem no tempo dentro da mente 155 eutanásia voluntária no 238
vida. Veja-se vida humana Williams, Bernard II5
co ntinu id ade da 221, 358 Wolfenden, John 202
dife renças em relação aos animais XI Wolff, Robert P. 384
início da 193, 221 Wolf, Susan 318
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Foto da capa (ciThinkstock/msk nina


Ética prática, de Peter Singer, focaliza a
aplicação da ética em difíceis e controver-
tidas questões sociais como: igualdade e
discriminação de raça, sexo, capacidade;
aborto; eutanásia e experiência com
embriões; estatuto moral dos animais;
violência política e desobediência
civil; obrigação de ajudar os outros;
responsabilidade com o meio am-
biente etc. Singer expõe e demons-
tra os argumentos básicos de modo
perspicaz e não doutrinário. O livro
é estruturado de modo que mostre
como as controvérsias contempo-
râneas têm frequentemente raízes
filosóficas e apresenta sua própria
teoria da ética, que pode ser apli-
cada coerente e convincentemente em
todos os casos práticos.

ISBN : 978-85-8063-318-4

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