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Folha de Rosto
Créditos
Um Final e um Começo
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Agradecimentos
Contracapa
Para Brittany, que conheceu Celdaria primeiro
Um Final e Um Começo
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20.000 em ouro
Na primeira noite de lua cheia, Eliana não dormiu. Ela vestiu a nova
máscara, pintou os lábios de vermelho e jogou a capa favorita sobre
os ombros – um pouco de teatralidade nunca machucou ninguém –
e desapareceu na noite.
Ela foi para os telhados, para tabernas que cheiravam a latrina,
para os quartos vermelhos de senhoras amigáveis. Ela passou a
noite vagando pelo Barrens.
Ela assistiu e ouviu.
Ela procurou seus informantes habituais – rebeldes assustados
dispostos a trair a Coroa Vermelha ou oportunistas que jogariam
como agente duplo por uma moeda.
Ela fez perguntas e exigiu respostas. Ela ameaçou e persuadiu.
Principalmente, ameaçou.
Mas ela não descobriu nada sobre o Lobo. Nem um vislumbre,
nem um sussurro.
•••
•••
Na última noite de lua cheia, Eliana voltou para casa com o pânico
zumbindo sob a pele e descobriu que alguém havia invadido sua
casa.
Ao trabalhar, Eliana preferia entrar e sair da casa pelo minúsculo
terraço de pedra do lado de fora da janela do terceiro andar. Dessa
forma, a entrada da frente na estrada permanecia intacta.
Hoje à noite, porém, a janela dela estava aberta. Uma fina tira de
madeira marcava onde a tinta havia sido raspada; alguém forçou a
fechadura. Tinha uma rachadura na vidraça.
Enquanto ela estava congelada, ela sentiu um cheiro no ar, assim
como ela sentiu na noite da captura de Quill – a mesma sensação
desequilibrada que a deixou se sentindo fora de alinhamento com o
mundo ao seu redor. Uma pressão azeda estava pesada contra sua
língua e ombros.
Alguém estava aqui. Eles estavam aqui, aqueles sequestradores
de garotas mascarados das docas. Ela sabia disso com uma certeza
interior. As únicas vezes em que ela sentiu essa sensação foram
naquela noite e nessa.
O que significa que agora sua mãe…
E Remy?
Eles só pegam mulheres, Eliana disse a si mesma, com o coração
batendo freneticamente. Eles só pegam garotas.
Suor escorria ao longo de sua linha do cabelo. Ela poderia pedir a
Harkan que a ajudasse, mas a essa altura já seria tarde demais.
Ela pulou no terraço do segundo andar do lado de fora do quarto
de sua mãe. As flores do jardim do terraço de Rozen perfumavam o
ar e reviravam o estômago de Eliana.
Ela encontrou a janela destrancada, o que era estranho. Sua mãe
sempre trancava a janela antes de dormir. Ela abriu o painel,
deslizou para dentro… e parou.
A mãe dela se foi.
A sala cheirava a qualquer coisa fantasma que os sequestradores
carregavam com eles. Os lençóis haviam sido arrancados metade
do colchão. Uma xícara de chá quebrada estava em pedaços no
chão.
E a prótese de sua mãe estava apoiada na parede.
O terror enraizou Eliana no local.
Você tem medo que possamos ser os próximos,Remy havia dito
na noite da execução de Quill.
Não. Não. Não a mãe dela. Não era possível.
Quem estava por trás dos sequestros não levava mulheres do
Garden Quarter. Eles estavam protegidos neste bairro.
Mas se os sequestros eram parte de algo maior que os caprichos
de Lorde Arkelion, talvez além de seu controle…
Passos soaram no terceiro andar. No quarto dela. Quase
silencioso, mas não completamente. A casa deles era velha, o chão
rangeu.
Remy, ela pensou, por favor, esteja dormindo. Por favor, ainda
esteja seguro em sua cama.
Ela desembainhou a adaga e saiu pela porta do quarto da mãe.
Ela passou pela porta fechada de Remy e subiu as escadas até o
patamar do terceiro andar.
Pressionada contra a parede ao lado da porta do quarto, ela
esperou. A porta se abriu e uma figura alta saiu nas sombras.
Parado. Em direção à escada.
Um homem.
Ao luar saindo do quarto, ela viu a máscara dele de malha e
metal.
O medo a atingiu.
O Lobo.
Supostamente, ele nunca mostrou o rosto, escolhendo sempre
usar uma máscara. Mas uma senhora que Eliana conhecia, jurara
ter visto O Lobo tirá-la. Ele estava com cicatrizes, ela disse, como se
fosse um arranhão de garras.
Ela disse que ele tinha olhos como o inverno – frios e impiedosos.
Bem, então,, Eliana pensou. Estaremos bem combinados.
Ela correu até ele, chutou-o com força nas costas. Ela esperava
que ele caísse da escada.
Ele não caiu.
Ele se virou, pegou a perna dela e a jogou no chão. Com a perna
livre, ela chutou a canela dele, girou e ficou de pé. Ele deixou seu
punho enluvado voar, ela se abaixou e ele bateu na parede
Isso o atrasou um pouco. Ela chutou a parte de trás do joelho
dele. A perna dele dobrou, mas ele foi rápido. Ele se virou e a
empurrou com força. Ela perdeu o equilíbrio e desceu as escadas
para o segundo andar.
O Lobo a seguiu, agarrou seus braços e a empurrou sobre o
corrimão.
Ela caiu dois andares no saguão, de costas. A cabeça dela bateu
no chão de azulejos e, por um momento fugaz, ela viu estrelas. Mas
então ela cerrou os dentes e ficou de pé.
O Lobo correu atrás dela, ainda pronto para atacar. Ele sabia que
essa queda não a machucaria seriamente – nem a mataria – como
poderia ter feito com qualquer outra pessoa.
Uma nova onda de terror flutuou no fundo de sua garganta. De
repente, sua pele parecia mal ajustada sobre seus ossos
inquebráveis.
Ele a estava seguindo então. Ele a viu trabalhar. Ou pelo menos
ouvira os rumores do invencível Terror de Orline e acreditava neles
– por mais ridículos que parecessem. De qualquer maneira, ele
estava aqui. Ele a pegou.
Interessante. E preocupante.
Ela desviou do soco dele na base da escada, girou e chutou. Ele
agarrou a capa dela e a puxou de volta contra ele. Ela deu uma
cotovelada no estômago dele, o ouviu grunhir. Puxou Arabeth do
quadril, virou-se e a apontou para o coração dele.
Mas ele era muito rápido, Arabeth atingiu apenas o ar. Ela
cambaleou, desequilibrada. Ele a empurrou contra a parede ao lado
da porta da cozinha. Sua cabeça bateu no tijolo, e a sala afundou e
balançou ao redor de Eliana.
Ele agarrou o pulso dela e torceu, forçando ela a largar Arabeth.
Ele chutou a lâmina pelo corredor, enfiou o braço no pescoço dela e
a prendeu. Ela pegou Whistler da coxa e o acertou com ela. Não era
um corte fatal, mas ele ainda a amaldiçoou e a soltou.
Ela arrancou Tempest da bota e olhou para cima, pronta para
atacar.
O Lobo segurava um revólver, o cano da arma apontado para o
rosto dela.
Tudo paralisou.
— Largue as facas — a voz dele era baixa, refinada e cortante
como gelo — Contra a parede. Lentamente.
— Isso é trapaça — ela exasperou — Você trouxe um revólver —
mas ela obedeceu, afastando-se dele até seus ombros roçarem as
tábuas de madeira da parede.
O Lobo a seguiu, seu corpo se elevando sobre o dela. Ele
arrancou Nox e Tuora do cinto de Eliana e pressionou Tuora contra
a garganta dela, depois largou a lâmina e a chutou para longe.
Ela olhou para o rosto de metal vazio pairando sobre ela,
procurando pelos olhos dele além da máscara e não encontrando
nada.
—Tire sua máscara — ele ordenou.
Ela o fez, então o encarou com o sorriso mais duro que pôde.
— Terror — ele murmurou, a respiração do Lobo acariciando a
bochecha dela — É apenas um sentimento, facilmente esmagado.
Mas lobos, minha querida, têm dentes.
7
Rielle
“Cuidado, cuidado com o sorriso de
Sauvillier...
Uma bela lua em uma noite mais vil
Isso vai te cortar até os ossos, embaçar os
olhos mais nítidos
É o que diz um homem do rio que nunca conta
mentiras.”
—Canto viajante Celdariano.
Sempre que Eliana se vestia para uma das festas de lorde Arkelion,
ela pensava em seu pai.
Ioseph Ferracora passou a maior parte de sua infância lutando na
frente oriental, enquanto o Império acabava com a última resistência
de Ventera.
— Para cada noite que ele estiver fora, deixaremos velas nas
janelas para ele — decidira sua mãe. Naqueles dias dourados antes
da invasão, antes de Remy, a guerra distante não parecia mais real
para Eliana do que uma história de fantasma.
— Mas o que as velas farão? — Eliana perguntou.
— Elas pertencem à Rainha do Sol — explicou Rozen — e
ajudarão a trazer seu pai de volta em segurança para nós.
Então, todas as noites antes de dormir, Eliana acendeu a vela em
sua janela e sussurrou a oração da rainha do sol: — Que a luz da
rainha o guie para casa.
À medida que envelhecia, passou a temer as visitas de seu pai,
pois elas se tornavam mais curtas e sempre terminavam. Mas ela
nunca deixou de esperar o solstício de verão, quando Ioseph
retornaria para o festival anual – e mais importante, para o aparato
da Rainha do Sol.
Antes da Queda, antes da morte da Rainha de Sangue Rielle e de
deixar tudo em ruínas, o mundo estava cheio de magia. Assim
diziam as histórias, e quando criança, Eliana acreditava nelas com
todo o seu coração. Diziam que as pessoas do Velho Mundo
usavam escudos e espadas para invocar o vento e o fogo. Eles
adoravam poderosos santos que tinham banido a raça dos anjos
para o esquecimento, e acreditavam que uma rainha iria um dia,
salvar o mundo do mal. Ela chamava-se Rainha do Sol, pois ela
traria a luz para a escuridão.
Mesmo muito tempo depois que a era do Velho Mundo terminou, e
ficou claro que anjos e magia nunca existiram – que as lendas do
Velho Mundo eram simplesmente isso, lendas – muitas pessoas
ainda visitavam templos para orar para os santos, e o mito da rainha
do sol permaneceu.
E todo verão, Ioseph Ferracora voltava para casa e para a sua
filha, trazendo consigo um novo ornamento para o traje dela – uma
peruca dourada de Rinthos, uma pele de vison branca
contrabandeada de Astavar.
Juntos, Eliana e seus pais se juntariam aos desfiles que lotavam a
cidade. Crianças com bochechas douradas subiram pelas estátuas
em ruínas de Santa Katell, a sunspinner, para deixar guirlandas de
flores de gema em volta do pescoço dela. Músicos tocavam baterias
e suas harpas. Contadores de histórias vestidos de branco
recriavam a tão esperada vinda da Rainha do Sol.
O desfile terminava na curva alta do rio, nas colinas mais a leste,
onde ficava a estátua de Audric, o Portador da Luz. Ele estava
sentado no cavalo alado, espada na mão e olhos sombrios fixos no
horizonte oriental. Era a estátua favorita de Eliana na cidade, pois o
rosto do rei condenado parecia ao mesmo tempo corajoso e
cansado. Olhá-lo fez seu coração torcer de pena.
— Sinto muito, Portador da Luz. — Ela sussurrou para ele, no ano
passado. Ela beijou a bota de pedra desgastada pelo tempo,
apertou o colar com a semelhança arruinada. Como sempre, ela
procurou o rosto dele nas camadas de desgaste do colar, mas
enquanto o cavalo alado estava limpo, a pessoa que o montava
havia sido enterrada na escuridão do tempo, por mais que Eliana
tentasse limpá-lo.
— Olhe para o horizonte — Rozen sussurrou para a filha, Remy
dormindo em seus braços — Você a vê? Você vê a rainha do sol?
— Ela virá este ano, papai? — Eliana, de sete anos, perguntou,
exaltada mesmo após a longa noite.
— Continue olhando, docinho — Ioseph respondeu, os braços
tremendo ao redor dela. — Continue procurando a luz.
Ele partiu novamente para a guerra no dia seguinte e nunca mais
voltou.
•••
Dez anos depois, Eliana sentou-se diante do espelho em seu quarto
enquanto Remy terminava de torcer seus cabelos castanhos
ondulados em um coque baixo. Suas bochechas – não tão pálidas
quanto as de Remy, mais próximas aos tons quentes de azeitona de
sua mãe – brilhavam com pó de prata. Kohl escuro contornava seus
olhos; diamantes brilhavam em cada orelha.
Ela terminou de aplicar um rico corante vermelho nos lábios e
sorriu ao refletir.
— Estou bem — ela declarou.
Remy revirou os olhos: — Você sempre parece bem.
— Sim, mas hoje à noite é realmente algo, não é?
— Eu vou continuar revirando os olhos até você parar de falar.
Ela sorriu para ele no espelho: — Então. Me diga mais uma vez.
Remy ficou de mau humor em sua cama: — Eu devo ficar com
Harkan, não importa o quê, e fazer exatamente o que ele me diz,
não importa o quê, e nem pensar em perguntar novamente sobre o
que você fará hoje à noite. Não importa o quê.
Eliana se levantou, o vestido cor de vinho de Lord Arkelion caiu
em pregas brilhantes sobre as pernas dela: — E se algo acontecer
com Harkan?
— Espero você na ponte leste, perto da estátua do almirante.
— Mas nada vai acontecer com Harkan — disse o próprio,
entrando pelo corredor. Ele usava botas marrons altas, calça escura,
um casaco comprido que abraçava o tronco caído e uma capa com
capuz. Ele abaixou uma pequena sacola de suprimentos e
bagunçou os cabelos de Remy — Harkan é impressionante demais
para isso.
Normalmente, Remy revirava os olhos e dizia a Harkan que a
única coisa impressionante que ele podia fazer era arrotar como um
velho bêbado.
Mas Remy ficou em silêncio e pálido, seus lábios rachados de
tanto mordê-los. Desde o desaparecimento da mãe, ele não deixou
ninguém vê-lo chorar, tentou corajosamente acompanhar as piadas
de Eliana, mas ela o conhecia bem.
Se algo desse errado, se acontecesse algo a ele ou Harkan por
causa do acordo que ela havia feito com Simon…
Ela enfiou o colar no vestido, o pingente áspero contra a pele e
transformou suas feições em uma máscara brilhante.
— Remy — disse Harkan. — Por que você não junta as suas
coisas?
— Eu não sou idiota — Remy murmurou. — Apenas me diga para
sair para que vocês possam conversar.
— Bem. Saia para que possamos conversar.
Quando Remy se foi, Harkan pegou a mão de Eliana.
— Me diga que você não está cometendo um erro terrível,
confiando neste homem — disse ele calmamente.
Uma emoção de nervosismo percorreu-a com a expressão grave
no rosto dele: — Você sabe que não posso lhe dizer isso.
— Bom. Porque então eu saberia que você estava mentindo.
Apesar de tudo, ela sorriu e, quando Harkan finalmente sorriu para
ela, ela segurou o rosto dele nas mãos e o puxou gentilmente para
um beijo. Com as mãos quentes contra as costas nuas, Eliana
quase podia acreditar que era apenas mais uma noite – ir a uma
festa com Harkan, dançar e flertar e voltar para casa com um
emprego.
— Nós vamos encontrá-la, El — Harkan beijou sua têmpora e a
soltou, os olhos suaves em seu rosto. — Mas primeiro…
— Primeiro — disse ela, tentando sorrir. — Tenho uma festa para
participar.
•••
•••
— De novo!
Rielle exalou bruscamente, soprando um cacho escuro e suado
dos olhos, se impulsinou com força o chão e pulou – primeiro sobre
uma pedra, depois sobre uma pilha de trilhos de madeira. Então ela
subiu a encosta rochosa, passou pelos trilhos e desceu pelo lado
mais íngreme.
Não perca o mastro, ela disse a si mesma. Não. Perca. O. Mastro.
Ela chegou ao fundo, caiu de bruços e deslizou sob a rede para o
poço de lama. Se tocasse a rede larga que se estendia acima dela,
teria que começar de novo no início do percurso, e seu pai
acrescentaria outra pedra à bolsa.
Rielle chegou na metade do caminho antes que suas mãos
escorregassem, a fazendo cair de queixo na lama. Inalando um
bocado, ela arfou e engasgou.
— De pé! — Latiu uma voz lá de cima.
Ela reprimiu um xingamento. Claro que ele escolheria aquele
momento para uma briga. Encontrou uma abertura na rede e
rastejou através dela, manobrando seu longo mastro de madeira
bem a tempo do ataque de seu pai.
Seu próprio mastro voou em seus ombros. Ela abaixou-se,
levantou o mastro e o girou para atacar. Os mastros se chocaram
com um estrondo que machucou os dentes de Rielle. Ela
cambaleou, perdeu o equilíbrio e se segurou na rede.
— Levante-se! — O mastro de seu pai balançou novamente,
batendo com força contra os nós de seus dedos.
— Droga! — Ela reprimiu lágrimas de dor e se levantou,
balançando loucamente. — Eu caí! — Seus pés ficaram presos na
rede e ela tropeçou e caiu com força.
— E você caiu de novo. — Seu pai emitiu um som suave de nojo e
jogou o mastro na grama do lado de fora do poço. — Você nem
chegou à escalada dessa vez. Levante-se e volte ao começo.
Rielle ficou de pé, tremendo de exaustão e raiva. Ela manteve os
olhos no chão, ignorando os guardas sempre presentes, que
permaneciam em silêncio ao lado da pista de obstáculos que seu
pai havia projetado. Se eles achavam que ela parecia ridícula, bem,
não estavam errados.
O percurso que Rielle descreveu para Audric e Ludivne como sua
“câmara de tortura na floresta.” ficava em uma área isolada na base
de Cibelline, a montanha mais alta de Celdaria. Os santos haviam
construído o castelo de Katell, Baingarde, em suas encostas séculos
antes. Todos os dias, durante seis dias seguidos, em preparação
para o próximo desafio, Rielle encontrava seu pai ali. – para
fortalecer seu corpo, ele disse, e melhorar sua agilidade.
Até agora, tudo o que tinha feito foi deixá-la dolorida e brava como
o canto mais escuro das profundezas.
— Eu não sou uma atleta. — ela disse irritada ao pai, saindo do
poço de lama e jogando o mastro fora. — Nem uma guerreira.
Ele soltou uma risada aguda. — Nunca nada foi tão claro quanto
isso.
— E ainda assim você insiste em me fazer passar por isso por
horas! — Ela marchou pela grama, tirando as luvas encharcadas de
lama, manoplas, caneleiras e, finalmente, a maldita e pesada bolsa
de pedras.
— Estamos aqui desde o amanhecer — ela murmurou. — Eu
deveria estar estudando com Tal agora, praticando com a Grã
Magister Rosier. A água sempre foi meu elemento mais fraco. Ou eu
poderia estar trabalhando no meu traje com Ludivine.
— Seu traje. — O pai dela zombou. — Sim, um uso sábio do seu
tempo.
— Ideia de Ludivine, e uma ideia boa. Se eu quero que nosso
povo me ame…
Ele riu de novo, suave e cruel.
— E mostrar a eles que não tenho medo.
— Mesmo você não sendo uma boa mentirosa.
— Pare de me interromper!
Ele ficou em silêncio, olhando para ela. Ela olhou de volta, o calor
subindo pela nuca, pelos braços, enrolando-se em sua barriga.
Seu pai olhou para suas mãos, mas ela as manteve fechadas com
força. Sabia o que ele estava procurando – faíscas selvagens, o
nascimento de um incêndio que sairia do controle e consumiria tudo
em seu caminho.
Enquanto lutava contra as lágrimas, os punhos cerrados ao lado
do corpo, ela desejou, não pela primeira vez, que seu pai fosse o
parente que ela matara — e que sua mãe tivesse vivido.
— Se você tiver alguma chance de sobreviver a esses testes. —
ele disse finalmente. — Se você quiser ter mais do que força bruta e
sorte do seu lado, precisará se fortalecer e rapidamente.
— Estou estudando há anos, trabalhando no meu controle com
Tal.
— E isso pode não ser suficiente!
Rielle se manteve firme enquanto ele avançava sobre ela. Ela
podia sentir sua trança deslizando, sentindo o quão desleixada,
pequena e tola ela parecia ao lado do lorde comandante Dardenne.
O homem de alguma forma parecia imperturbável, mesmo em seu
uniforme de treino enlameado. Ela mordeu sua língua com força.
— Isso não é brincadeira, Rielle. — continuou o pai. Ele voltou a
amarrar as amarras que seguravam o fino estofamento de couro em
volta do torso, ajeitou a gola dela, prendeu os cabelos soltos em sua
trança com tanta força que machucou seu couro cabeludo. — O
desafio da Terra não foi nada comparado ao que o Conselho
Magistral planejou para você a seguir. Este é apenas o começo de
um caminho longo e difícil. Sua vida como você conhecia acabou.
Você entende isso.
As bochechas de Rielle arderam. O que os guardas dela estariam
pensando do pai a repreendendo como faria com uma criança
pequena? — Sim, pai. — disse ela calmamente. — Entendo.
— Se você falhar, eles vão te matar. Eles podem me matar e a Tal
também.
Rielle olhou suas botas, seus olhos cheios de lágrimas.— Eu
pensei nisso.
— Pensou? Não podemos conhecer a mente do conselho, nem a
do rei. São circunstâncias extraordinárias.
— Sim, Pai.
Ele tirou uma das luvas e usou a mão nua para levantar o queixo
dela. Ela olhou para ele, olhos arregalados, até a boca dele se
torcer e ele se afastar. Sentou-se no chão, perto do poço de lama,
encontrou seu cantil na grama e tomou um gole de água.
— Sente-se. — disse ele, entregando o cantil para ela. — Beba.
Ela obedeceu, sem dizer nada. Enquanto bebia, ela olhou de
relance para o pai, notando o cinza em suas têmporas e salpicado
em seus cabelos grossos e escuros, as linhas ao redor de sua boca
que não esboçava um sorriso. Ela percebeu, com uma rápida
reviravolta, que não conseguia se lembrar de como ele era antes da
morte de sua mãe ter roubado seu sorriso.
— Você se lembra. — ela perguntou. — Daquela canção de ninar
que mamãe cantava para mim?
Seu pai estava olhando para a pista de obstáculos cheia de lama,
o anel sombrio de soldados ao seu redor, a densa floresta de
pinheiros além dela. Rielle o observou, examinando seu perfil. De
repente, sentiu uma necessidade de segurar a mão dele e perguntar
se ele estava com tanto medo quanto ela.
Rielle enrolou os dedos na grama.
— Não me lembro de nenhuma canção de ninar. — ele respondeu
sem humor.
Rielle não tinha certeza se isso era mentira ou não, mas ela
assentiu de qualquer maneira e olhou para a floresta exatamente
como ele. Respirou fundo e começou a cantar.
Pela lua, pela lua
É aí que você me encontrará
Pela lua, pela lua
Vamos dar as mãos, só você e eu
Vamos orar para as estrelas
E pedir que elas nos libertem
Pela lua, pela lua
É aí que você me encontrará
Depois de alguns momentos de silêncio insuportável, ela
acrescentou: — Nem sempre consigo me lembrar de coisas sobre
ela. Como ela cheirava. A sensação de suas mãos. Mas eu lembro
da voz dela, e eu lembro dessa música.
Assim que as palavras saíram de seus lábios, seu pai se levantou,
tirou o pó da calça, pegou sua bolsa de pedras e entregou a ela. Ela
não conseguia ler nada no rosto dele, exceto a mesma calma
resolução que sempre usava – a certeza do erro de Rielle e de seu
próprio sofrimento nas mãos dela.
— Mais uma vez. — disse ele. — De volta ao começo.
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Ele a conduziu pela prisão primeiro.
Todo posto avançado do Império tinha uma, e embora esta fosse
pequena e simples em comparação com as masmorras elaboradas
abaixo do palácio do senhor Arkelion em Orline, era distinto de uma
maneira. Em vez de celas, os cômodos compridos e estreitos
estavam alinhados com pequenas gaiolas quadradas que exigiam
que os adultos sentassem curvados. Mas nem todos eram adultos;
alguns eram crianças. Grotescamente magras, barrigas inchadas,
peles avermelhadas por coçar, lábios cobertos de sangue e vômito.
Eles assistiram Eliana quando ela passou. Os mais novos, não tão
magros ou machucados, olhavam cruelmente, cuspiam através das
grades de suas gaiolas. Os que estavam lá há algum tempo – pele
incrustada na imundície, cabelos emaranhados, rosto magro – nada
disseram, olhando fixamente.
Em uma curva na parede, uma criança pequena bateu na porta de
sua gaiola e agarrou a grade com ossudos dedos brancos. Seus
olhos estavam furiosos, a pele ao redor deles estava vermelha e
crua.
— Ajude-nos! — Ela gritou, sacudindo a porta. O metal cortou
suas mãos. — Tire-me daqui! Tire-me daqui!
— Existe uma razão em me mostrar tudo isso? — Eliana
perguntou, parecendo entediada. Mas seu sangue fervia quente
dentro dela.
Que Tameryn, a Astuta, lhe conceda uma morte rápida e indolor,
criança, ela pensou.
— Eu queria lhe mostrar o que vai acontecer com você —
respondeu lorde Morbrae. — Se você decidir me desafiar durante a
sua estadia aqui.
Então ele abriu uma porta para uma pequena sala simples – uma
cadeira, uma lâmpada piscando. Estendeu as mãos para as facas
dela. — Você pode esperar lá dentro.
Eliana olhou para dentro, ergueu uma sobrancelha não
impressionada. Mas sua mente trabalhava freneticamente por conta
pânico. Ela não tinha tempo para esperar em uma cela. Remy
contaria tudo a Simon, e eles a procurariam, armas em punho. Eles
atirariam nela imediatamente. Precisava contar a Lorde Morbrae,
ajudá-lo a preparar seus soldados para combater o ataque dos
rebeldes – mas não antes de conseguir o que queria dele.
Ela colocou as facas nas mãos dele. — Eu tenho um quarto de
verdade, então? Não é uma gaiola suja de esterco?
O sorriso de lorde Morbrae não alcançou seus olhos. — Apenas o
melhor para o Terror de Orline. Espero que você esteja com fome.
Quando ele fechou a porta, Eliana foi deixada sozinha e incerta.
Sentou na cadeira no meio da sala e esperou.
•••
•••
— Quem é você?
Eliana se assustou ao ouvir a voz do imperador. Já havia a
imaginado antes, entretendo fantasias selvagens de invadir seu
palácio em Celdaria e cortar sua garganta antes que ele tivesse a
chance de convencê-la disso.
Conversas sussurradas no palácio de Lord Arkelion haviam lhe
dito que a voz do imperador poderia invadir sua mente e seu
coração, deixando-a impotente para resistir a fazer o que ele
sugerisse. O que Eliana havia decidido há muito tempo não fazia
sentido. Uma voz não pode controlar você; quem dissesse o
contrário era um tolo.
Mas nunca, em todos os seus devaneios ensopados de sangue,
Eliana imaginou que a voz do Imperador soasse assim. Um
propósito vivido ali, sob os tons ricos - resoluto e imóvel, antigo e
astuto.
Ela deu um passo para trás, tropeçou em uma imperfeição na
pedra do terraço. — Eu não quis me intrometer.
— E ainda assim você fez. — O imperador se aproximou, com as
mãos atrás das costas. — Eu não consigo te ver muito bem. Você
consegue me ver?
— Um pouco. — Ela se sentiu tentada a esfregar o ar, como se
quisesse limpar uma janela embaçada.
— Que curioso.
— Eu vou só... — Ela queria se virar e correr, mas a escuridão de
seus olhos a mantinha no lugar. — Eu vou agora.
— Oh, eu acho que não...
Ele congelou. Expressões que ela não conseguia decifrar em
cascata atravessavam o rosto dele: horror, alegria, espanto.
Raiva.
— Você — Sussurrou com voz rouca, toda a beleza desapareceu
de sua voz. Em seu lugar, havia um terrível desejo esfarrapado. — É
você.
Eliana encontrou a grade do terraço atrás dela. — O que?
Rapidamente ele se aproximou, alcançando-a. — Fique aí. Onde
está você?
Um grande estremecimento sacudiu o terraço, jogando Eliana
para o lado. Ela apertou as mãos contra a parede do palácio para
evitar cair...
E de repente, o palácio, a cidade abaixo e o Imperador, se foram.
As paredes vermelhas da sala de jantar de Lorde Morbrae se
erguiam rapidamente e se fechavam ao seu redor. Seu rosto frouxo
a encarava, olhos nublados.
Como os olhos de um adatrox.
Ela se afastou dele, caiu com força no chão e se afastou.
— Quem é você? — Lorde Morbrae perguntou, levantando-se
bruscamente da cadeira. Procurando por ela, assim como o
imperador havia feito. Sua voz havia sido cortada em duas, parte
dele, parte do imperador. — Venha aqui. Venha até mim.
Uma explosão soou do lado de fora. Eliana reconheceu isso como
o começo de um bombardeio.
Simon.
Remy havia contado tudo a ele, e agora a Coroa Vermelha
destruiria esse posto avançado, com ela dentro.
Apesar de tudo, Eliana sorriu. Que rebelde seu irmão traidor
acabara sendo!
A sala tremeu: os pratos na mesa sacudiram e Lorde Morbrae
tropeçou. Três dos quatro adatrox estacionados ao redor da sala
correram para a porta, pegando suas espadas. Um copo de vinho
caiu no chão e quebrou.
Eliana pegou o maior pedaço de vidro que pôde encontrar,
levantou-se e pulou em direção a Lorde Morbrae. Ele a viu tarde
demais, esquivou-se desajeitadamente. Eliana se perguntou se o
cinza que nublava seus olhos estava confundindo sua visão, então
passou a ponta afiada do fragmento por sua garganta. O sangue
jorrou quente sobre suas mãos e suas roupas. Lorde Morbrae fez
um som terrível de asfixia, depois ficou de joelhos antes de cair.
O adatrox restante correu para Eliana. Ela pegou uma faca da
mesa que encontrou ao lado do cadáver de Lorde Morbrae, dando-
lhe uma joelhada a virilha, depois enfiou a faca na barriga. Eliana
passou por ele, voou para o corredor e correu direto para o cano do
revólver de Simon.
Ele usava a máscara de metal do Lobo, mas mesmo com seus
traços ocultos, ela podia sentir sua fúria no ar como a carga de um
raio.
Outro bombardeiro explodiu, este mais perto. Simon a agarrou
pelos braços quando algo no teto cedeu com um gemido rangente,
ele a puxou com força contra seu peito e a protegeu entre seu corpo
e a parede. Uma das vigas caiu, derrubando pedras.
— Por aqui. — Ele murmurou, sacudindo a poeira do capuz.
Ela empurrou contra seu aperto. — Onde está Remy?
— Com Navi. Então me ajude, senão vou jogá-la por cima do
ombro para tirá-la daqui, se necessário.
— Por que não me mata? — Limpou a areia dos olhos. — Eu sou
uma traidora, não sou? Eu pensei que você explodiria o lugar nos
céus — E eu com ele.
Ele riu amargamente. — Se fosse assim tão fácil.
Gritos e tiros soaram além das paredes do posto avançado, e
Remy, Eliana supôs, estava em algum lugar no meio delas. Se ela
não cooperasse, talvez nunca o encontrasse. Lançou um olhar para
Simon e engoliu sua raiva antes de segui-lo pelo corredor.
Atrás deles, veio um grito distante, seguido por outro.
Eliana girou. Inalando, ela provou fumaça.
A prisão.
Correu em direção, mas só deu alguns passos antes de Simon
agarrar seu braço.
— Me solte — Ela rosnou.
Ele fez, mas a manteve por perto — Então não fuja novamente.
— Há pessoas lá atrás — disse ela. — Refugiados. Prisioneiros.
Crianças. Temos que libertá-los.
— Nós não podemos.
— Por quê?
— Porque meus soldados prepararam bombardeios ao redor do
prédio. Quando o fogo os atingir, eles detonarão. Em menos de
cinco minutos, este prédio não estará mais em pé.
Eliana sentiu como se o chão tivesse caído debaixo dela. — Você
está mentindo.
— Eu não estou.
— Bem, eu vou. — Ela começou a voltar para a prisão e, desta
vez, quando Simon a deteve, ela lhe deu uma cotovelada no
estômago e o bateu com o pé, mas Simon não a soltou.
— Me solte! — Ela lutou, se debatendo violentamente. — Que
diferença faz a você se eu morrer tentando salvá-los?
— Estou tão emocionado com sua repentina onda heróica —
Simon disse — Eu não tenho que me explicar para você. Agora,
anda.
Outro bombardeiro detonou, mais próximo ainda. Um pedaço de
gesso caiu do teto e atingiu a cabeça de Eliana. A dor atingiu seu
crânio; balançou, tentou avançar, tropeçou.
Amaldiçoando, Simon a pegou, enfiou a arma nas mãos dela e a
pegou com facilidade nos braços.
— Se alguém vier até nós — ele ordenou. — Atire neles.
Ele correu, mantendo a cabeça dobrada sobre a dela. Nuvens de
poeira, fumaça e areia embaçavam seu caminho. Eliana tossiu
contra o peito de Simon, pensou em atirar em seu estômago
naquele momento.
Mas então dois adatrox saíram das sombras. Eliana virou nos
braços de Simon e atirou cinco vezes. Ela tinha uma mira ruim,
mesmo sem ter sido atingida na cabeça, mas a sorte ajudou pelo
menos duas de suas balas acertarem o alvo. Os adatrox
estremeceram e caíram.
Viraram uma esquina e outra, passaram por uma sala crepitando
com chamas e outra onde um adatrox de olhos vidrados estava no
limiar, o braço estendido. Papéis marcados com estampas
enlameadas de botas cobriam o chão.
Então, um tiro atrás deles, quase os atingindo. Eliana olhou além
do ombro de Simon, e seu estômago tremeu de medo.
Lorde Morbrae.
Ele estava vivo.
Ele os perseguiu pelo corredor, um rifle na mão e, embora seu
rosto, pescoço e jaqueta brilhassem com sangue, Eliana não viu
ferimentos na garganta.
Impossível.
Ela apontou o revólver para Simon e atirou, mas nada aconteceu.
— Você usou todas as malditas balas. — Simon chutou uma porta
três vezes antes de abrir. Uma vez aberta, ele chutou de volta.
Lorde Morbrae atirou de novo; a madeira da porta lascou os
calcanhares de Simon.
Ele abaixou Eliana ao chão. Estavam do lado de fora. Tinha que
ter sido perto do meio dia, mas nuvens e fumaça escureciam o céu.
A parede do perímetro do posto avançado estava em chamas.
Eliana ouviu gritos, comandos berrados. Simon a puxou
desajeitadamente, o braço em volta da cintura dela enquanto
corriam.
Ah, certo, Eliana pensou, tonta, a dor em sua cabeça agora tinha
desaparecido completamente, seus membros fortes e firmes mais
uma vez. Eu deveria estar machucada. Inclinou-se no corpo de
Simon, o deixando ajudá-la.
Um coro de lamentos estridentes começou atrás deles. A porta
pela qual eles saíram se abriu. Eliana viu Lorde Morbrae procurar
através da fumaça, localizá-los e levantar a arma. Os gemidos
aumentaram, estridentes e dissonantes.
Simon empurrou Eliana à frente dele. — Abaixe-se!
Ela obedeceu, deslizando por uma ladeira molhada até um
desfiladeiro estreito e pantanoso. Simon se jogou atrás dela e cobriu
o corpo dela com o seu.
O mundo explodiu.
•••
•••
•••
•••
•••
Mais tarde naquela noite, Eliana esperou até ouvir a ligeira batida de
Camille na porta do quarto, depois saiu de baixo do braço de Remy,
arrancou as adagas do chão e entrou no corredor.
Camille esperou, com o rosto carregado e tenso. — Você está
pronta?
— Estou aqui, não estou? Lidere o caminho.
Elas se moveram silenciosamente em direção à entrada da frente.
Eliana colocou Arabeth no coldre do quadril, enfiou Whistler no que
estava debaixo da manga esquerda e Nox na bota esquerda, depois
enfiou Tuora e Tempest nos bolsos internos de sua jaqueta.
Na porta que dava para o Santuário, Camille a deteve. — Não
posso dar-me o luxo de perder mais alguém do meu pessoal. Se te
meteres em problemas por aí esta noite, estás por tua conta a risco.
Eliana assentiu uma vez. — E se eu não voltar?
A expressão de Camille suavizou um pouco. — Vou dar ao seu
irmão sua mensagem. Não se preocupe, Terror.
— Eu nunca me preocupo se posso evitar — respondeu Eliana
suavemente, então saiu pela porta e ouviu Camille fechá-la e trancá-
la atrás dela.
Ela rastejou pelo corredor atapetado e entrou no amplo mezanino
do terceiro andar do Santuário. Imediatamente, o fedor do mundo
fora dos apartamentos de Camille tomou conta de Eliana – o fedor
quente de corpos sujos, cerveja derramada, pratos de comida
deixados para azedar. Às nove e meia, o Santuário se arrastava
com centenas de almas buscando distração do mundo lá em cima, e
a noite apenas começara.
Duas mulheres brigavam em uma das gaiolas de combate. Um
barulhento jogo de cartas ocupava metade do segundo andar, os
espectadores gritando suas apostas enquanto os jogadores
jogavam dados em nuvens de fumaça. Entre dois pilares em um
canto escuro, duas figuras seminuas se contorciam contra a parede.
Eliana passou por todo o terceiro andar, que abrigava dezenas de
outros apartamentos além dos de Camille. No quarto andar, portas
com cortinas vermelhas e franjas de contas abriam caminho para
um bordel, do qual flutuavam sons de música estridente e risadas
desenfreadas. A bílis de Eliana subiu ao receber olhares tímidos dos
meninos com coleiras em volta do pescoço, os gritos distantes e
lamentosos que delimitavam a linha entre prazer e dor.
Ela correu pelo quinto nível, depois voltou ao segundo e ao
primeiro. Lá, o barulho das lutas de boxe – socos, aplausos e gritos
de obscenidades – abafou todas as conversas mais silenciosas.
Eliana não podia se mover sem esbarrar contra um estranho. Gotas
quentes de suor das gaiolas e dos espectadores gritando
espalharam-se por seus braços.
Se Fidelia quer arrebatar garotas invisíveis, Eliana pensou, este é
o lugar para fazê-lo.
Ela foi direto para o bar e colocou três moedas de cobre no
balcão. — A melhor cerveja que você tem.
O barman torceu os lábios. — Não temos nenhuma cerveja boa.
Eliana sorriu, jogando o casaco de lado para mostrar a lâmina
brilhante de Tuora. — Encontre-me um pouco. Rapidamente.
O barman suspirou e revirou os olhos. Mas ele fez o que ela
pediu, deslizando uma caneca de cerveja suja sobre a bancada com
um toque de desdém no pulso. Ela pegou a caneca, jogou outro
cobre para ele porque estava se sentindo generosa e se afastou.
Eliana levou a caneca aos lábios enquanto caminhava. Após o
primeiro gole, sua boca ficou tensa de nojo. O barman não mentiu; a
bebida tinha gosto de mijo.
Ela deslizou em uma cabine estreita de madeira contra a parede
oposta, as costas das bancadas altas e privadas.
Já havia se passado uma hora desde que ela deixara os
apartamentos de Camille e, apesar de toda conversa sobre o medo
de Fidelia correr solta em Rinthos, Eliana não viu nada digno de
atenção. A cabine sombreada era um lugar tão bom quanto
qualquer outro para se sentar e observar, normal e despercebida,
até que ela se tornou parte da sala tanto quanto os móveis antigos e
sujos.
Às vezes, ela pensou, o caçador não deve rondar, mas sim
esperar. E assistir.
Ela deslizou para baixo em seu assento, apoiando as botas em
cima da mesa. Era bom trabalhar de novo, instalar-se e observar as
engrenagens sujas do Santuário girarem ao seu redor. Desde seu
bombardeio, ela se sentiu diferente de si mesma, sacudida e
desequilibrada. Mas isso... isso era familiar.
Era um bom local: ela ainda podia ver o bar, as lutas de boxes e
pelo menos uma das entradas do Santuário, embora não fosse a
que eles haviam passado dois dias antes. Ela imaginou que deveria
haver todo tipo de buraco de rato para entrar e sair de um ninho tão
vil. Há 20 metros de distância, uma mulher de pele marrom
meditava sobre a caneca. Há duas mesas adiante e à esquerda, um
grupo de homens e uma mulher pálida com tranças negras
selvagens uivavam de tanto rir.
À direita de Eliana: um homem de pele de ébano e uma mulher
sardenta, estavam terminando tigelas de ensopado. Uma das brigas
terminou. Uma multidão cantando levantou o vencedor
ensanguentado até os ombros e começou um desfile improvisado.
Eliana tomou outro gole de sua bebida, os olhos vagando pela
sala escura e cheia de gente sobre a borda da caneca – e então
congelou.
Ela piscou algumas vezes, como se tentasse clarear a visão de
um pontinho. Uma pressão repentina e pesada a prendeu no banco,
fazendo a cabeça girar. Uma sensação de injustiça encheu o ar, um
leve cheiro azedo, como se alguém tivesse estalado um chicote de
má intenção através da sala.
Um calafrio percorreu seu corpo.
Lembrou-se daquele sentimento, daquele perfume, de Orline – da
noite em que tentara salvar a criança sequestrada e da noite em que
sua mãe desapareceu. Era mais violento agora, o sentimento. Mais
perto. Urgente. Ela agarrou a borda da mesa, lutando contra o
desejo de deitar a cabeça na madeira. O mundo oscilou, torto.
Debaixo da mesa, Eliana encontrou Arabeth e se sentiu um pouco
melhor quando seus dedos envolveram o punho da adaga.
O frio em seus ombros se tornou uma pontada aguda de aviso.
Ela forçou o olhar.
A mulher que estava sentada sozinha, franzindo a testa por causa
de sua bebida, se foi. Sua cerveja estava derramada sobre a mesa,
pingando no chão. Sua caneca rolou até parar debaixo da cadeira
em que ela estava sentada.
Mas ela poderia simplesmente ter deixado a mesa.
Com a boca seca, o coração batendo forte, Eliana rapidamente
correu de volta pelo caminho das pessoas que observara apenas
alguns segundos antes, antes que o mundo mudasse.
A mulher de tranças negras se fora. O homem que estava sentado
ao lado dela deu um tapa na cadeira vazia, enxugando lágrimas dos
olhos enquanto um dos bêbados vomitava.
E o homem e a mulher que estavam terminando o ensopado – o
homem agora estava sentado sozinho, com a cabeça na tigela
enquanto bebia as últimas gotas da refeição. A tigela da mulher
bateu no chão e quebrou; o homem olhou para ela, franzindo a
testa, confuso, depois esticou o pescoço para espiar pela multidão.
Três mulheres, todas desaparecidas em questão de segundos.
Três mulheres se foram como sua mãe.
Eliana lambeu os lábios, seu sangue quente estava zumbindo. Ela
desembainhou Arabeth e levantou-se.
Eles estavam aqui. Fidelia.
Eles vêm à noite. Eles vêm a cada sete dias.
Eliana se levantou, deslizou pela multidão o mais rápido possível,
sem chamar a atenção, examinou a sala. Ela deixou seus olhos
desfocarem.
Lá.
À sua direita, uma figura sombria e encapuzada se movia
rapidamente pela sala. Eliana pensou ter visto outra pessoa ao seu
lado. A mulher que bebia sozinha? Mas assim que Eliana tentou se
concentrar nessa forma específica, sua visão se inclinou.
Ela se apoiou com força contra um pilar próximo – pegajoso e
coberto de sujeira – quando uma onda de náusea a atravessou. Ela
rangeu os dentes, empurrando o enjoo. A figura estava se movendo
em direção à parede oriental. Se ela não se mexesse rapidamente,
perderia a pista.
Uma mão agarrou seu pulso. — Indo para algum lugar?
Eliana virou-se para encarar Simon. — Deixe-me ir, ou vou perdê-
los.
— Quem? — Ao lado de Simon, Navi espiou por baixo do capuz.
— O que está acontecendo?
— Em um momento atrás essas mulheres estavam lá, bem na
minha frente, e no próximo... — Eliana cambaleou contra Simon
quando o sentimento de mal-estar voltou. Ele a pegou pela cintura,
impediu-a de cair. — Deus, isso é irritante — ela reclamou, com
lágrimas nos olhos. — Não consigo pensar por dois segundos sem
me sentir mal. O que essas pessoas estão fazendo comigo?
Simon olhou atentamente para o rosto dela. — Quem? Alguém
está te machucando?
— Fidelia. — Ela se inclinou contra o comprimento sólido de seu
peito, de repente feliz por ele estar lá. Se ele não tivesse vindo, ela
teria caído igual uma pilha no chão. — Camille disse que eles levam
mulheres, e meninas, assim como as pessoas em Orline. Pelo
menos, eu acho que eles são todos os mesmos. Adoradores de
anjos, disse Camille. A cada sete dias. Eu ia ajudá-la a encontrar
essa garota que trabalhava para ela. Depois, eles vieram. Eles
estão aqui. Eles levaram três mulheres em questão de segundos.
Eu não entendo.
O olhar azul penetrante de Simon estava focado em seu rosto. —
Você disse que estão fazendo algo com você. Explique. O olhar azul
penetrante de Simon estava focado em seu rosto.
Ela lutou fracamente para se libertar dele. — É muita coisa para
explicar, tenho que encontrá-los.
— Negativo. Vamos voltar para a casa de Camille, e depois de a
desmembrar por te ter mandado para cá, vou te trancar no quarto
mais seguro que encontrar, possivelmente para sempre.
— Toque nela — murmurou ela — e eu vou desmembrar você. —
Estava ficando cada vez mais difícil organizar seus pensamentos. —
O que vocês dois estão fazendo aqui juntos, mesmo? — Ela deu um
passo instável após outro passo instável, franzindo a testa para o
chão.
— Navi e eu nos encontramos fora do seu quarto — disse Simon.
— Descobrimos que você se foi, e ela insistiu em vir comigo para
encontrá-la.
— Por que vocês dois estavam lá? — Eliana trouxe uma mão para
o seu templo latejante. — Isso é bastante estranho, não é?
— Bem, eu queria dar uma olhada em você, ter certeza de que
você conseguiu dormir, — Navi disse, com sua voz clara. — Simon?
— Ela olhou sem culpa para ele. — Por que você estava na porta de
Eliana no meio da noite?
A boca de Simon afinou. — Este não é o momento para...
— Não há uma chance no Abismo de que eu esteja saindo daqui
sem encontrar Fidelia — Eliana murmurou — e cortando garganta
após garganta até que eles me digam onde minha mãe está.
— Uma imagem encantadora. Agora, ande.
Eliana pisou firme para se manter e se libertou do aperto de
Simon. Sem ele segurando-a, o mundo virou de cabeça para baixo.
Ela desmaiou imediatamente, mas Simon a pegou antes que ela
pudesse bater no chão.
— O que há de errado com ela? — veio a voz preocupada de
Navi.
— Eliana? — A mão de Simon apertou a bochecha dela. — Qual é
o problema, o que está acontecendo com você? Se você não me
disser, eu não posso ajudá-la.
Ela tomou três longas e rasas respirações para acalmar a
sensação doentia subindo em sua garganta, em seguida, olhou para
ele com olhos lacrimejantes. — Esta é a primeira pista que tenho
desde que saí de Orline — disse ela com os dentes cerrados. —
Não vou desistir. Não me faça te machucar, Simon. Não estou
interessada em fazê-lo.
Ele ergueu uma sobrancelha. — Não está?
— Meu Deus, você nunca cala a boca? — Ela tentou passar por
ele, mas foi Navi que a impediu dessa vez.
— Eliana, pare com isso — ela disse calmamente. — Vamos
voltar. Não é seguro aqui fora.
— Mas eu posso encontrar minha mãe — Eliana insistiu — e
todos os outros que foram levados. — Ela olhou para Simon. —
Incluindo pessoas da Coroa Vermelha.
— Sem importância. — disse Simon. — Nossa prioridade é levar
Navi para Astavar. Uma vez feito isso, vou ajudá-la a encontrar sua
mãe. Como combinamos.
— Ou eu poderia ir encontrá-la agora. Quando chegarmos a
Astavar, pode ser tarde demais.
— Um risco que você sabia quando aceitou minha oferta.
— Por que você se importa que eu fique com você? Se é um
lutador que você quer, Camille tem dezenas de mercenários para
escolher.
Uma vez que as palavras foram ditas, a mente de Eliana começou
a clarear, cortando seus sentidos confusos. Por que ele se importa
de fato? Quando ela olhou para Simon, seu rosto cuidadosamente
implacável lhe disse a verdade: ela tinha atingido um ponto.
— O que é que se passa comigo — ela disse calmamente, dando
um passo em direção a ele, depois outro — que faz você querer me
manter por perto?
Navi olhou curiosamente entre eles. Simon abriu a boca,
hesitante.
Então, uma voz ressoou das sombras sob a escada próxima: —
Porque você é especial, Eliana Ferracora. E ele quer você para si
próprio. Assim como eu.
A boca de Eliana ficou seca ao som dessa voz. Ela sabia disso,
embora agora ele arranhasse ao invés de ronronar.
Uma figura esbelta veio à luz, vestindo um uniforme preto
esfarrapado e um manto carmesim desgastado, quase
irreconhecível pela lama e manchas de sangue que rasgavam o
tecido outrora fino.
— Rahzavel — sussurrou Eliana em horror. Até Simon parecia
estupefato. — Você está vivo.
O assassino sorriu, seu rosto pálido marcado com uma cicatriz
longa e inchada que escorria de sua têmpora, dividindo seu rosto ao
meio, e desaparecendo em seu colarinho. Seus cabelos brancos
estavam bagunçados em forma de cachos emaranhados.
— Vivo — ele concordou — e tão animado para matá-la.
Então ele arrancou sua espada da bainha em sua cintura,
levantou-a com um grito faminto horrível, e avançou para o pescoço
de Eliana.
33
Rielle
“Eu esperava que as notícias recentes não
chegassem até você por mais alguns dias. É
verdade, no entanto, sobre o Príncipe Audric e
a garota Dardenne. Lamento não ter podido
dizer-lhe pessoalmente. Fique em Belbrion,
proteja o norte. Paciência, meu filho. Tudo
será como deve ser, e em breve.”
—Carta do Lorde Dervin Sauvillier a seu filho, Merovec
•••
Fazia muito frio, onde quer que tivessem ido. Um frio uivante.
Mãos fortes prenderam os braços de Rielle atrás das costas. Os
dentes dela estavam batendo; a camisola não era nada contra o
vento. Sob os pés descalços, o chão era gelado e rochoso.
Pelo amor de Deus, Rielle, acorde!
— Estou acordada — ela conseguiu murmurar.
— Não por muito tempo. — Uma voz fina e próxima sussurrou: —
Lamento dizer que você não poderá se salvar desta vez.
A venda foi arrancada de seus olhos e sua mente explodiu de
medo. Ela piscou olhando para algo branco brilhante: montanhas
cobertas de neve. Céu e uma fina névoa de nuvens. A beira de um
penhasco.
Oh, Deus.
— Todos saúdam a Rainha do Sol — sussurrou aquela voz
zombeteira, e então as mãos que seguravam seus braços a
lançaram da montanha para a morte dela.
•••
O vento golpeou seu corpo desamparado no ar quando ela caiu.
Ela não teve chance de gritar – e não tinha fôlego. O vento gelado
atingiu seu nariz e boca.
Salve-se! A voz de Corien era frenética.
Ela estava no mundo, caindo através das montanhas, e também
estava no chão diante de seu trono naquele reino oco de sonhos.
Corien pegou seu corpo mole em seus braços e tentou dar vida a
ela de volta.
Lute contra isso! Lute!
Ela sabia que ele estava certo. Ela poderia lutar contra isso.
Ela se forçou a abrir os olhos; o frio puxou grossas correntes de
lágrimas pelo rosto.
Eu não quebro nem me curvo, ela rezou. Eu não posso ser
silenciada.
Mas o veneno havia formado uma parede imóvel entre seu corpo
e o empirium. Ela pegou seu poder e não encontrou nada.
Ela sabia, então, que ia morrer.
Não, você não vai! Corien chorou. Deus, Rielle, não, por favor!
Ao lado do trono, com o rosto cheio de tristeza, Corien embalou o
corpo dela contra o peito. O mundo sombrio sem fim ao seu redor
soltou gritos aterrorizados.
Uma onda de frio rodopiou por baixo de Rielle, pulverizando-a
com neve. Um oceano de picos cinzentos giravam acelerando em
sua direção.
Quando fechou os olhos, viu Audric e Ludivine, e seu coração se
apertou dolorosamente de desespero, e ela desejou, e ela desejou...
Ela parou tão repentinamente que lhe arrancou o vento.
Mas ela não sentiu dor.
E ela estava se levantando.
Uma criatura abaixo dela soltou um grito agudo, parte falcão, parte
cavalo, parte... alguma coisa sobrenatural e solitária que enviou uma
pontada de desejo pelo coração de Rielle.
Ela finalmente se permitiu entender a verdade:
Um pégaso – uma besta divina – a pegou e agora subia pelo céu
com Rielle aninhada em segurança nas costas entre duas enormes
asas negras.
Atordoada, ainda ofegante, ela terminou sua oração à luz brilhante
do sol da manhã:
Eu não quebro, nem me curvo.
Eu não posso ser silenciada.
Eu estou em toda parte.
36
Eliana
“Nós somos os que Ele chama de noite
Nós somos os pilares de Sua força
Nós dizemos a palavra que Ele rezou
Sobre Suas asas, nossas almas são refeitas”
—O juramento de iniciação do culto Fidélia
O mundo era uma caixa cinza plana, e Eliana morava dentro dela.
Um piso, uma parede, um teto. Sem janelas. Uma porta de metal
com uma ranhura fina cortando perto do fundo – e uma estreita faixa
de luz, debaixo dela a única fonte de luz.
O ar se encheu de gritos fracos e distantes.
Lentamente, ela se sentou e percebeu que estava usando calças
brancas lisas com uma túnica combinando. Os pés dela estavam
descalços; o chão estava frio e duro. Suas facas... suas facas se
foram. Assim como o colar dela.
Uma cela. Ela estava em uma cela.
Ela apoiou os joelhos no peito e segurou a cabeça dolorida nas
mãos.
Lembranças voltaram para ela: Rahzavel sorrindo para ela, as
vigas sombrias do Santuário arqueando-se no alto. Simon caiu da
escada. Correndo com Navi, o mundo balançando ao seu redor a
cada passo. Remy. Ela precisava chegar a Remy.
Sua respiração ficou fina e rápida. Ela lembrou, lembrou...
Uma mão sobre a boca, fumaça venenosa subindo pelo nariz.
Três mulheres se foram em três segundos.
Fidélia.
Com um grito selvagem, ela se levantou e bateu contra a porta –
repetidamente, jogando o lado esquerdo do corpo em cada golpe
até que sua cabeça girou e seus dentes doíam. Ela ficaria
machucada, mas apenas por um tempo. É melhor continuar, certo?
— Quem é você? — Ela bateu os punhos com força, deu um
pontapé na porta com os dedos dos pés ensanguentados. —
Liberte-me! Mostre-me a porra de sua cara!
E então, lembrou-se de uma última coisa: sua mãe. A mãe dela
poderia estar neste lugar.
Ela se jogou contra a porta com renovado fervor. — Mãe? Mãe, eu
estou aqui! Alguém me responda! Me responda!
Mas até o corpo dela tinha limites. Ela gritou até sua voz ceder.
Ela caiu no chão, bateu com as palmas exaustas contra a porta até
não poder mais segurar os braços, depois se arrastou para o canto
da cela e dobrou o corpo em posição fetal.
Com os olhos fixos na linha branca brilhante abaixo da porta, ela
esperou.
•••
•••
•••
•••
•••
•••
Três dias. Rielle se arrastou para seu quarto muito tempo depois
que o sol se pôs. Três dias até o desafio do fogo.
E então... o quê?
— Minha senhora — repreendeu Evyline da porta. — Você deveria
tentar dormir mais, pelo menos até que os ensaios terminem.
— Você está certa, Evyline — respondeu Rielle. — É só que,
quando você estiver prestes a ser jogada em um poço de chamas
mortais, irá querer estudar suas orações o máximo que puder.
— As orações são boas, minha senhora, mas dormir é melhor.
Você não pode orar nem combater o fogo se estiver exausta.
Rielle, bocejando, desamarrou a trança e sacudiu os cabelos. —
Estou inclinada a concordar. Meu pai, no entanto, não.
Depois de verificar se Atheria ocupara seu posto noturno habitual
no terraço, Rielle tropeçou para seu quarto de banho.
E congelou, de repente e completamente acordada.
Audric estava sentado em um sofá perto da janela oposta. Seu
cabelo era uma bagunça de cachos, como se ele estivesse
passando os dedos por ele há horas. Ele se levantou para encará-
la, as mãos cerradas ao lado do corpo.
Ele deu um sorriso tenso. — Olá — ele disse calmamente.
Rielle voltou para o quarto. — Evyline — ela chamou por cima do
ombro — Espero que você não se importe, mas me pergunto se
você pode me dar algum tempo sozinha.
— Minha senhora, não é seguro...
— Estou bastante segura com Atheria no meu terraço.
Como se fosse uma sugestão, o pégaso bufou além das cortinas.
— Conceda-me esse desejo, você poderia?
— Só essa noite — disse Evyline severamente, depois de um
momento. — O mínimo que posso fazer, suponho, depois de tudo o
que você passou.
— Está certo. — Rielle conduziu-a o mais gentilmente que pôde.
— Boa noite, Evyline, e obrigada por sua vigilância.
— Claro, minha senhora.
Rielle fechou a porta, trancou-a e respirou fundo para se preparar.
Quando ela se virou, Audric estava parado no meio da sala,
parecendo um pouco envergonhado.
— Desculpa por ter rastejado até aqui — disse ele — Mas queria
vê-la. Não vou criar um hábito, prometo.
— Talvez você devesse — Rielle brincou, mas sua voz saiu
trêmula.
O olhar escuro de Audric procurou o seu, depois foi para baixo.
Uma onda de nervos dançou em seu esterno. — Você quer falar
comigo sobre alguma coisa?
— Sim, é... — Agora sua voz era instável. Ele limpou a garganta.
— Receio, no entanto, que não devo. Que sou um tolo por vir aqui
hoje à noite.
— Você sabe que pode me dizer qualquer coisa.
— Eu sei.
— Então fale comigo. — Ela o alcançou. — O que foi?
Ele levou a mão dela aos lábios. — Rielle — ele sussurrou contra
a pele dela — Rielle, Rielle...
— Você está me assustando. Diga algo diferente do meu nome.
Diga algo real.
— Algo real. — Ele riu um pouco e se afastou dela. — É que...
Quando ele se calou novamente, Rielle pensou que poderia gritar.
— Audric, se você não começar a falar neste instante...
— Você entende o que tudo isso significa, não é? — Ele apontou
para o castelo ao redor deles. — Eu serei rei algum dia e você será
a Rainha do Sol.
— Bem, não se o desafio de fogo...
— Oh, Rielle. Você vencerá esse desafio como todos os outros.
Você será gloriosa, e então... — Ele passou a mão pelos cabelos,
virou-se e voltou a ela. — Então você me servirá, e se eu tiver que
enviá-la para a batalha para salvar o reino, eu o farei. Esse é o
objetivo predito da Rainha do Sol: defender e proteger. E não posso
me afastar disso simplesmente porque amo você.
Sua voz captou as últimas palavras.
Rielle se aproximou lentamente, seu coração batendo forte. Ela
tocou o braço dele, e quando ele a olhou, seus olhos calorosos e
perturbados, ela aninhou a bochecha dele na mão.
Ele se inclinou para o toque, colocou sua mão na dela e beijou a
palma. — Eu sei que não devo tocar em você — disse ele, sua voz
rouca. — Nós decidimos isso. Tínhamos boas razões. Mas, Deus
me ajude, mal consigo pensar desde aquele dia nos jardins.
Rielle se aproximou mais, puxando sua mão até a cintura dela. —
Lembre-se, Ludivine não se importa. Ela quer que a gente faça.
— Não é Lu e nem a família dela. Não mais. Agora estou
pensando... — Ele encostou a testa na dela e fechou os olhos. —
Se ao menos eu pudesse parar de te amar.
— O que você está dizendo?
— Como Rainha do Sol, você será sagrada para o nosso povo,
Rielle. Um símbolo ansiado e orado desde o início de nossa era.
— Não vamos me chamar assim, a menos que isso realmente
aconteça. Já estou nervosa o suficiente.
— O Arconte irá abençoá-la na frente de toda a cidade. Eu não
posso interferir nisso. Não posso manchar isso.
Ela se afastou dele. — Você está dizendo que me levar para sua
cama me mancharia de alguma forma?
Ele olhou para ela, impotente. — Não sei como amar você e ser a
pessoa que a envia para a guerra.
Ela cruzou os braços sobre o peito. — Só agora você percebe que
isso poderia acontecer? Para o que você acha que servem os testes
exatamente?
Ele se virou, os olhos brilhando.
Ela o seguiu. — Audric, eu quero que você ouça isso, pois só direi
uma vez.
Ele virou com a mudança na voz dela.
— Se você me enviasse para a batalha — ela disse — Eu ficaria
feliz e queimaria nossos inimigos em cinzas. Mas eu não faria isso
por você... ou por causa da profecia. Eu faria isso porque esta é a
minha casa também. E se você tentasse me manter perto de você
por amor a mim, você falharia.
Ele olhou para ela, o ar entre eles estalando tenso e furioso. Ela
levantou o queixo e o convidou silenciosamente para desafiá-la.
Mas ele não o fez. Em vez disso, ele caminhou na direção dela e
pegou sua boca faminta com a dele.
Ela ofegou com o beijo, tropeçando para trás com a força do
toque. Ele a firmou, as mãos nos quadris, e se moveu com ela até
que ficasse pressionada entre a parede e o corpo dele. Ela abriu a
boca para ele, passou os dedos por seu cabelo.
As mãos dele estavam por toda parte – primeiro aninhando o rosto
dela, depois segurando seus quadris para puxá-la para mais perto.
Quando ele arrastou os lábios pelo pescoço dela, e na clavícula,
beijando ao longo do decote do vestido, Rielle arqueou o corpo
contra o dele.
O fogo estalou e assobiou.
— Sim — ela sussurrou, puxando a camisa dele para encontrar a
pele nua. — Sim.
Sua voz era baixa. — Sim o que, querida? Diga-me onde tocar
você.
— Onde você tocou antes. Por favor, Audric.
Ele voltou para a boca dela enquanto levantava suas saias, depois
deslizou a palma da mão por suas coxas. Ao primeiro toque de sua
mão na barriga dela, Rielle se empurrou contra ele com um suspiro.
— Abra suas pernas para mim, Rielle — ele murmurou, sua voz
tremendo em seu ouvido. — Eu entendi você.
Ela obedeceu, e quando a mão dele a encontrou, acariciando
suavemente entre as pernas, ela gritou e apertou a camisa dele nos
punhos.
A parede atrás dela tremia.
Ele deslizou um dedo dentro dela, seu polegar ainda acariciando-
a. — Todas as noites desde aquele dia — ele sussurrou contra a
boca dela — Eu sonhei com isso. Eu acordo com o seu nome nos
meus lábios.
Não importava como Rielle se movia, ela não conseguia se cansar
dele. Ela enfiou as unhas nas costas dele, puxando-o para mais
perto. — Mais rápido, Audric. Mais forte, por favor.
Ele obedeceu. — Assim?
— Sim, sim. — Ela sentiu-se esticar em torno de seus dedos; ele
acrescentou outro, empurrando mais rápido. — Assim, ah, Deus...
— Ela soltou um som que nunca tinha feito, um gemido baixo e
gutural que a balançou na ponta dos pés.
— Assim mesmo. — Audric beijou sua têmpora, seus cabelos.
Sua voz estava cheia de admiração. — Assim mesmo, Rielle.
Ela se agarrou a ele, apertou os quadris contra a mão dele até
que a onda de formigamento que se formava profundamente dentro
de seu ser, varresse sua pele e sua espinha. Ela empurrou contra
ele, deu um grito agudo e estilhaçou.
A sala tremeu ao redor deles.
As velas acesas do outro lado da sala acenderam chamas
irregulares saltando centímetros no ar. O fogo da lareira estalou;
brasas espalhadas pelo tapete. As paredes tremeram por alguns
segundos, como se estivessem em um pequeno terremoto, depois
ficaram em silêncio.
— O que foi isso? — sussurrou.
— Fui eu. — Rielle fechou os olhos, as bochechas em chamas. —
Eu sinto muito.
— Você?
— Não deveríamos ter feito isso. Deixe-me ir, por favor.
Ele a soltou, e ela se afastou instável, ajeitando o vestido. Ela só
conseguia pensar na voz do pai, há tantos anos:
Você pode perder o controle um dia, machucá-lo.
A última coisa que Audric precisa é de alguém como você.
— Você deveria ir — disse ela, cruzando os braços sobre o peito.
Audric ficou quieto por um momento. — Claro que sim, se é isso
que você deseja. Mas primeiro, você pode me contar o que
aconteceu?
— Quatro desafios, e eu estava bem. Eu consegui; eu me senti
mais forte do que nunca. E agora? Alguns momentos com você, e
eu faço o quarto desmoronar.
— Nada desmoronou. Rielle, foi apenas um pequeno tremor.
Ela girou para ele. — Apenas um pequeno tremor? E se
continuássemos? E se eu tivesse perdido o controle? E se o chão
tivesse se aberto sob nossos pés? Meu pai estava certo. Ele podia
ver antes de mim.
— O que ele viu?
— Que eu te amo! — ela explodiu, lágrimas cortando sua voz. —
Que todos os meus anos de trabalho, todas as noites sozinha, todas
as orações... Isso é desfeito quando estou com você. Você me toca
e eu queimo, e eu posso levar tudo queimando comigo!
— Rielle, olhe para mim. — Audric segurou suas mãos com tanta
delicadeza que ela começou a chorar de verdade.
— Eu vou te machucar — ela sussurrou.
— Se alguma coisa acontecesse com você por minha causa, eu
não aguentaria, Audric. Eu não vou fazer isso. Ficarei sozinha para
sempre se for preciso.
— Não, não, você não. — Ele virou o rosto dela para o dele com
ternura, beijos suaves como penas em suas bochechas. — Você
merece apenas felicidade. Não uma cama fria e um quarto vazio.
Ela fechou os olhos com o toque dele. — Eu sou muito perigosa.
— Você é o meu tipo de perigo.
— Isso não é uma piada, Audric. Esta é a sua vida... e a minha.
— E minha vida não tem cor sem você. — As mãos dele
seguraram o rosto dela. — Eu não tenho medo de você, Rielle. Eu
confio em você e quero você.
Rielle se inclinou em seu peito, inspirou-o – sua pele aquecida
pelo sol, o algodão de sua túnica.
— E se eu te pedisse — ela disse finalmente — Para me beijar de
novo?
— Eu te beijaria a noite toda e nunca me cansaria disso.
Ela se afastou para olhá-lo. — E se eu pedisse para você me levar
para a cama?
— Então eu levaria você até lá — disse ele — E não descansaria
até que você estivesse preenchida por mim.
— É exatamente isso que eu quero. — Ela beijou o triângulo de
pele acima do colarinho e sussurrou: — Quero que você me
preencha.
Ela se esticou na ponta dos pés para beijá-lo antes que ele
pudesse responder, e quando seus braços a envolveram
febrilmente, ela sorriu contra a boca dele e soltou uma risada
encantada.
— Cama — ela sussurrou, puxando-o cegamente em direção a
ela.
Ele a apoiou contra uma das colunas da cama, sua boca nunca
deixando a dela. Ele a beijou como se o ar dentro dela fosse o que
precisava para sobreviver. Ela colocou as mãos para trás, contra o
poste para se preparar, e arqueou em direção a ele.
— Sim — ele disse sem fôlego, mexendo na linha de botões na
frente do vestido. Ele deslizou o corpete pelo torso dela, para que
ele se juntasse à cintura. Os seios dela se soltaram e ele baixou a
boca para eles de uma vez, gemendo contra a pele dela.
Rielle torceu embaixo dele até que ela não aguentou mais a dor
entre as pernas. — Eu preciso de você — ela ofegou, segurando os
ombros dele. — Por favor, Audric.
Ele puxou a túnica por cima da cabeça, depois desabotoou o cinto
e tirou as botas. Ele a moveu em direção à cama, chupando
suavemente o lábio inferior. Juntos, puxaram o vestido dela até cair
no chão.
Audric murmurou: — Meu Deus, Rielle, você é linda — e a ajudou
a deitar sobre a pilha de cobertores espalhados pela cama. As mãos
dele traçaram as curvas de seus seios, cintura, quadris. Ele beijou
cada uma das contusões do desafio das sombras, murmurando o
nome dela contra a pele com mais amor do que qualquer oração.
Quando os quadris dele pousaram nos dela, Rielle mal conseguiu
conter o grito. Ele passou os dedos entre os dela e pressionou as
mãos gentilmente contra os travesseiros. A cada movimento de
seus quadris, uma nova onda de prazer surgia dentro dela.
Tremendo sob as linhas duras e quentes de seu corpo, ela disse
desesperadamente: — Audric, por favor.
— Espere. — Ele beijou a curva de seu queixo e se afastou um
pouco. — Espere um momento.
— Não, agora.
— Antes de fazermos isso...
Ela ouviu a nota cautelosa na voz dele e entendeu. — Estou
tomando um tônico para isso. — Ela tocou ternamente o rosto dele.
— Por favor, não se preocupe.
Ele assentiu, abaixou a boca na dela e murmurou: — Eu te amo,
Rielle — e a penetrou em um movimento suave.
Ela gritou, resistindo contra ele. Ela se sentiu impossivelmente,
deliciosamente cheia e tocou seu rosto com uma risada sem fôlego.
— Você está bem? — ele sussurrou.
— Estou. — Ela apertou os braços dele, sorrindo. — Não vá.
— Nunca. Eu sinto muito...
— Não. Não se desculpe. Estou bem. — Ela tocou dois dedos nos
lábios dele e soltou uma risada trêmula. — Estou mais do que bem.
Ele sorriu, beijou a pele macia sob seus olhos e começou a se
mover dentro dela. Rielle ofegou, arqueando-se contra ele.
— Olhe para mim — ele a pediu calmamente, e quando ela
encarou seus olhos, a devoção concentrada em seu rosto fez seu
coração inchar. — Estou bem aqui, e amo você. Eu te amo, eu te
amo.
— Beije-me — ela sussurrou, tremendo.
Ele obedeceu, sua boca quente e lenta na dela, ecoando os
movimentos suaves de seus quadris.
— Devo parar? — Ele beijou sua mandíbula. O arranhar suave de
seus dentes enviou calafrios delicados através de sua pele. Ela
fechou os olhos e se mexeu embaixo dele. O prazer inchou
lentamente em seu corpo, quente e sem pressa.
— Não pare — ela murmurou. — Nunca.
— Rielle. Rielle. — Ele se moveu um pouco mais contra ela, sua
voz escurecendo. — Diga-me o que você quer, e eu farei.
Ela torceu em seu aperto suave com um suspiro. — Eu quero
ouvir o que você quer, é o que eu desejo.
— Quero fazer você desmoronar em meus braços. Quero que
esqueça seu medo, suas preocupações, qualquer que seja a
escuridão que assombra seus pensamentos. — Ele deslizou uma
mão pelo corpo dela até os quadris unidos, acariciando entre as
pernas dela.
Ela amaldiçoou, bateu a palma da mão contra a cama, procurando
por uma âncora. A mão dele encontrou a dela, firmou-a na sua.
— O que mais você quer? — ela murmurou, olhando para ele. Ela
moveu os quadris contra os dele.
— Eu... — Sua voz falhou. Ele balançou a cabeça, estremecendo
quando ela deslizou a mão pelo braço dele. Ela levou a mão dele à
boca e beijou a palma da mão.
— Você quer me fazer gritar.
Ele fez um som pequeno e sufocado. Seus quadris estremeceram
bruscamente.
— Deus, sim — ele gemeu.
— Mais rápido, então. — Ela tocou os lábios dele com o polegar.
Quando ele o pegou na boca, seus olhos se fecharam, ela
estremeceu, sorriu e passou a perna em volta da dele. Ela poderia
olha-lo assim para sempre – perdendo-se nele, desmoronando em
seus braços. — Por favor, Audric.
Mesmo quando ele obedeceu, sua gentileza a surpreendeu. A
mão dele soltou a dela para aninhar seu rosto, depois deslizou para
acariciar seus seios. O doce prazer dele dentro dela provocou ondas
trêmulas em sua pele. Ela arqueou em seu toque, apertou os
cobertores em seus punhos.
Ela soltou um soluço frenético. — Audric, por favor...
Ele murmurou contra o pescoço dela, suas mãos tremendo ao seu
redor. — Sim, Rielle, sim, é isso. — O desejo áspero em sua voz a
incendiou. Quando ela deslizou as mãos nos cabelos dele e puxou
com força os cachos, ele gritou contra seu pescoço, e o som
desesperado e totalmente masculino foi sua ruína, enviando-a em
espiral para cima e para cima, até que ela caiu contra a cama,
pulsando dourado com prazer. Ela se agarrou a ele, impotente e
mole, sua visão uma névoa zunindo, e acariciou seus cabelos
enquanto seus quadris diminuíram a velocidade.
E com o peso sólido de Audric sobre ela – seus lábios em seus
cabelos e sua voz rouca de amor, seu próprio corpo sentindo-se
alegremente despreocupado – Rielle observou as chamas
faiscantes em torno de seu quarto sem medo no coração e não
pensou em Corien.
42
Eliana
“Você já viu o Lobo? Conversou com ele? O
homem tem uma luz ruim nos olhos. Você olha
para o rosto dele por meio minuto, vê que ele
foi destruído e costurado novamente mais
vezes do que qualquer um deveria ter sido.”
—Registro sem nome de um desertor da Coroa Vermelha,
precedendo a execução.
•••
Eles se moveram pela floresta fria por horas – durante toda a noite e
no dia seguinte.
O chão ficou mais rochoso quanto mais ao norte eles foram, terra
macia dando lugar a areia pálida. As árvores eram estranhas aqui,
curtas e finas, com folhas quebradiças que assobiavam
maldosamente ao vento. Carrinhos de mão compridos e
deformados, coroados com pedras em ruínas serpenteavam pela
floresta como veias.
— Essas árvores cheiram a morte — Hob sussurrou enquanto se
agachava perto de um desses montes. — Ficarei feliz em deixá-las
para trás.
Eliana concordou – mas para onde ir depois disso? O contato de
Simon, seu caminho através do Mar Estreito, agora estava perdido
para eles.
Finalmente pararam para descansar, aconchegando-se sob uma
saliência coberta de musgo ao lado de uma ligeira colina. Navi havia
perdido muito de sua cor, sua pele escorregadia de suor. Eles a
colocaram no chão, espalhando folhas sobre seu corpo trêmulo.
Ela levantou uma mão fraca. — Eliana?
Eliana pegou, sentou-se ao lado dela. — Estou aqui. Você está
bem. Nós vamos ficar bem agora.
Navi sorriu fracamente. — Não minta para mim.
— Bem. Provavelmente estamos todos condenados.
— Isso é melhor.
Remy se encostou no outro lado de Eliana, os braços cruzados
sobre o peito. Ele não falou uma palavra desde que deixaram Simon
para trás.
Eliana olhou para Hob. — Você sabe com quem Simon poderia
estar falando? O contato que ele foi encontrar.
Hob tirou alguns pedaços de comida dos bolsos – carne seca,
pãezinhos, tudo o que ele havia conseguido pegar antes de fugir do
fogo – e passou para eles. — Não. De acordo com Simon, eu não
sou um aliado de alto escalão o suficiente para ter acesso a essas
informações.
— Deve haver contrabandistas que cruzam o Mar Estreito.
— Um pouco. Mas não temos dinheiro para isso. — Hob arrancou
uma baga de um arbusto próximo, mastigou e cuspiu. — Rotberries.
Essa floresta é inútil.
— Podemos voltar para Rinthos? Pedir ajuda a Camille?
— Eu não acho que Navi sobreviveria à viagem. Se pudermos
chegar ao porto de Skoszia sem que alguém nos veja e nos mate no
local, posso enviar uma mensagem para Camille de um lugar lá,
mas isso levará tempo.
— Essa é a hora que não temos.
— Nós o deixamos. — Remy mudou para olhar para Eliana. —
Nós o deixamos morrer com Rahzavel.
— Sim, nós deixamos — disse Eliana, recusando-se a encontrar
seus olhos. — Ele gostaria que nós fizéssemos.
— Isso não está certo.
— Ei, você sabe o que? — Ela passou o braço pelos ombros de
Remy. — Eu tenho algo para te dizer. Eu gostaria de poder mostrar
a você, mas não posso. Você também, Hob.
Hob levantou uma sobrancelha. — Não fale comigo como se eu
fosse criança.
— Eu conheci uma amiga — disse Eliana — nos laboratórios onde
eles mantinham eu e Navi. O nome dela é Zahra e... ela está aqui
conosco. Agora mesmo.
Um pouco da tristeza deixou o rosto de Remy. — Realmente?
Como? Onde?
Hob estava olhando para ela. — Você perdeu a cabeça?
— Isso não é brincadeira, Hob. — disse Zahra.
O braço de Hob disparou para proteger Eliana e Remy. — Quem
está aí? Quem disse isso?
— Quem é você? — Remy olhou em volta, maravilhado. — Você
pode me mostrar como você é?
— Meu nome é Zahra, pequenino. — Zahra desceu ao nível dos
olhos de Remy, com o queixo nas mãos. — Que coisa querida você
é. Sua mente está tão aberta quanto o céu.
Remy cautelosamente acenou com a mão. — Você está muito
perto, não é?
— De fato.
— Eliana — murmurou Hob — o que é isso?
Remy abraçou os joelhos no peito. — Você é um espectro?
Zahra piscou surpresa. — O que é essa criança, que conhece
muito do mundo? — Sua expressão ficou terna. — Oh, docinho.
Você é um sonhador, um contador de histórias. Eu vejo isso agora.
Você anseia por magia e por todos aqueles gigantes dourados do
passado.
Remy corou de prazer. — Antes da invasão — ele disse
ansiosamente — as pessoas roubavam livros dos templos, para que
não fossem destruídos. Compro-os sempre que posso e leio todos.
— Espere. — Eliana se afastou para franzir a testa para ele. —
Você quer dizer que costumava esgueirar-se por Orline comprando
livros no mercado subterrâneo?
— Você acha que eu aprendi tudo o que sei apenas rolando
massa na padaria?
— Bem, eu… — Ela balançou a cabeça, surpresa.
— Oh, eu gosto de você. — Zahra passou um braço pelos ombros
de Remy com um sorriso. — Uma mente curiosa e um coração puro,
ambos em um.
Hob jogou as luvas no chão. — Alguém pode me dizer o que é um
espectro?
— Não se mexam — uma voz masculina advertiu das sombras
diante deles. — Ou direi aos meus arqueiros para deixarem suas
flechas voarem.
Eliana congelou quando as formas mudaram na vegetação
rasteira – cinco soldados, dez, aproximando-se com arcos
levantados e flechas prontas.
Zahra disparou até sua altura total, olhos escuros brilhando. —
Eliana, me perdoe. Eu estava distraída; eu não os ouvi!
Um dos arqueiros apontou a flecha para o lado, procurando Zahra
– e, é claro, não encontrando nada.
— Você tem um quinto no seu grupo? — perguntou o primeiro
homem. Ele se aproximou de Eliana, sem arco na mão, mas uma
espada longa e curva no quadril. O capuz escondia o rosto da vista.
— Você vê cinco pessoas aqui? — Eliana olhou para ele. — Seus
olhos falham com você, eu tenho medo.
— Mas meus ouvidos não. — O homem parou, considerando a
cabeça cortada de Navi. — Você escapou de Fidelia.
Eliana ficou tensa. — Possivelmente.
— Malik? — Navi gemeu, lutando para se levantar. — É você?
— Navi? — O homem tirou o capuz e caiu de joelhos aos pés
dela. — Doces Santos. — Ele juntou Navi contra seu peito antes
que Eliana pudesse detê-lo, deu um beijo carinhoso na cabeça dela.
— Simon disse que você estava viva, mas eu não acreditei. Eu não
podia me deixar.
Navi se agarrou a ele, seu rosto magro livre de dor pela primeira
vez desde que escaparam dos laboratórios. — Eliana — ela
murmurou — por favor, não tenha medo. Estamos seguros agora.
— Eu serei a juíza disso. — Eliana se moveu na frente de Remy e
estendeu a mão por baixo de sua jaqueta chamuscada para
Arabeth. — Quem é você?
Malik se virou, as bochechas marrons molhadas de lágrimas, os
olhos grandes e escuros, a mandíbula forte. A semelhança, agora
que Eliana sabia procurá-la, era óbvia.
— Eu sou Malik Amaruk — disse ele, limpando o rosto. — Eu sou
o irmão de Navi e um príncipe de Astavar.
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Há quatorze anos atrás, eu tive uma ideia para um livro e decidi que
queria ser uma escritora.
Quatorze anos é um longo tempo, e há muitas pessoas que eu
preciso agradecer por me ajudar a realizar meu sonho e ajudar
Furyborn a se tornar o livro que ele é hoje.
Primeiramente, a Diana Fox, que pegou minha carta de proposta
original de Furyborn da pilha, generosamente (e gentilmente)
explicou para mim quanto trabalho eu precisava fazer, e me ajudou
a começar nessa indústria. A você, Diana, eu sou eternamente
grata.
À minha editora, Annie Berger, com quem é uma delícia trabalhar
– paciente, perspicaz, destemida. Obrigada por ir nessa jornada
comigo.
À minha agente, Victoria Marini: Seu entusiasmo me mantém
inspirada; sua pura ferocidade me mantém sentindo segura e sã. Me
sinto honrada por chamar você de minha agente – e minha amiga.
À equipe inteira da Sourcebooks Fire – incluindo a produtora
editorial Elizabeth Boyer, gerente editorial Annette Pollert-Morgan,
revisores Diane Dannenfeldt, Alex Yeadon, Katy Lynch, Beth
Oleniczak, Margaret Coffee, Sarah Kasman, Kate Prosswimmer,
Heidi Weiland, Valerie Pierce, e Stephanie Graham – obrigada a
todos por aceitarem a mim e Furyborn com tanta paixão e
entusiasmo.
A Michelle McAvoy, Nicole Hower, e David Curtis, que fizeram
Furyborn parecer tão belo, por dentro e por fora. Obrigada.
Esse livro costumava ser três vezes mais longo e ocupava dois
enormes cadernos. Há pessoas na minha vida que, de fato, leram a
coisa toda e continuam falando comigo. Obrigada a Erica Kaufman,
Beth Keswani, Starr Hoffman, Ashley Cox, e Cheryl Cicero. Mais
agradecimentos a outras pessoas que leram várias partes cruciais
desse livro ao longo dos anos: Kait Nolan, Susan Bischoff, Justin
Parente, Kendra Highley, Gabi Estes, Britney Cossey, e Amy
Gideon.
A Jonathan Thompson – o Lysol para minha Monica, o Simon
(Tam, não Randell) para minha River, o Brit-Brit para minha Cate:
obrigada por sempre acreditar em mim.
À minha doce meia-irmã, Ashley Mitchell, que montou a primeira
lista oficial do elenco de fantasia para esse livro, anos e anos atrás.
Eu ainda tenho aquele documento do Word, e nunca deixarei de
amá-lo (ou você!).
A Brittany Cicero: Você leu o primeiro esboço da primeira versão
de Furyborn, semana após semana, capítulo por capítulo, enquanto
eu pairava sobre seu ombro, observando seu rosto para cada
minúscula reação. Eu te amo. Esse livro não existiria sem você.
A Michelle Schusterman: Você leu o primeiro esboço dessa versão
de Furyborn enquanto eu o escrevia, dia após dia, capítulo por
capítulo. Eu não conseguiria ter dominado esse monstro selvagem
sem você ao meu lado. Obrigada, para sempre.
A Diya Mishra: Eu não tenho certeza se alguma outra pessoa
nesse mundo entende esse livro por completo como você. Você é
minha brilhante rainha das bruxas da Sonserina, minha parceira de
crime, minha alma gêmea, e eu sou tão feliz por Winterspell ter nos
unido.
A Alison Cherry, cujo maravilhoso cérebro fez esse livro muito
melhor do que ele, e que acalmou de momentos de ansiedade e
dúvida demais para contar – obrigada, amiga, por ser minha.
A Lindsay Eagar (por constantemente me inspirar, e por seu
coração selvagem e imparável), Heidi Schulz (por Marky Mark e por
ser um dos melhores seres humanos que eu conheço), Lindsay
Ribar (por aquela caminhada na floresta), Sarah Maas (pelo balé e
Alien(s) e seus comentários generosos), Sara Raasch (pela nossa
festa invernal dupla de lançamento e por seus comentários
generosos), Lauren Magaziner (por seu amor e apoio e encontros
para escrita), Isaiah Campbell (idem!), Ally Watkins (por sempre
checar como eu estava, e por seu coração gentil), Katie Locke (por
seus comentários, perspicácia, encontros para escrita, e
encorajamento), Mackenzi Lee (por sua poderosa amizade), e Kayla
Olson (por Cheez-Its, por nossos lugares naquela mesa perfeita, por
sempre torcer por mim) – obrigada.
Mais agradecimentos enormes e abraços de longe: Emma
Trevayne, Kat Catmull, Stefan Bachmann, Megan McCafferty,
Sammy Bina, Anna-Marie McLemore, Sarah Enni, Caitie Flum,
Adam Silvera, Leigh Bardugo, Corey Ann Haydu, Nova Ren Suma,
Anne Ursu, Phoebe North, Serena Lawless, Shveta Thakrar, Laini
Taylor, Sarah Fine, Amie Kaufman, Brooks Sherman, Anica Rissi,
Navah Wolfe, Cat Scully, Shannon Messenger, Nikki Loftin, CJ
Redwine, Eugene Meyers, Ellen Wright, Jay Kristoff, Zoraida
Cordova – todos vocês me apoiaram e me inspiraram de incontáveis
maneiras ao longo dos anos, e eu mal posso esperar para ver o que
o futuro reserva para cada um de vocês.
À minha família: Todos vocês suportaram muitas coisas vindas de
mim ao longo dos anos. Vocês leram aqueles cadernos gigantes.
Vocês ouviram minhas lamúrias sobre arranjar um agente. Vocês
não pararam uma única vez de me dizer que eu conseguiria realizar
meus sonhos. Anna, Drew, Pai, Mãe – Eu amo muito todos vocês.
Por fim, eu agradecerei vocês, leitores destemidos, por acolherem
esse livro – e esses personagens que eu amo tanto – em seus
corações.
Esperamos que tenha gostado do livro. Por favor, deixe uma
avaliação positiva no perfil do autor em redes como Amazon,
Goodreads, Skoob etc. Tudo bem se a resenha/avaliação for escrita
em português, contanto que você não diga que leu em PT em
momento algum, evitando também prints do livro. Se tiver
condições, por favor, adquira a obra, é o mínimo que podemos
fazer!