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Sumário

Capa

Folha de Rosto
Créditos
Um Final e um Começo

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Elementos na Trilogia Empirium

Agradecimentos
Contracapa
Para Brittany, que conheceu Celdaria primeiro
Um Final e Um Começo

“Alguns dizem que a rainha estava assustada


em seus últimos momentos. Mas gosto de
pensar que ela estava com raiva.”
—A Palavra do Profeta.

A rainha parou de gritar logo após a meia-noite.


Simon estava escondido no armário dela, com os dedos tampando
os ouvidos para bloquear o barulho. Por horas, ele se agachou ali,
joelhos flexionados no peito, cabeça baixa.
Por horas, os aposentos da rainha estremeceram com seus gritos.
Agora, estava silencioso. Simon prendeu a respiração e contou os
segundos, como contar após um relâmpago até o trovão soar: a
tempestade está desaparecendo ou está chegando perto?
Um. Dois. Três.
Ele chegou a vinte e se atreveu a abaixar as mãos.
Um bebê gritou no silêncio. Simon sorriu e ficou de pé, uma onda
de alívio o atravessando.
O filho da rainha nasceu – finalmente. Agora ele e seu pai
poderiam fugir desta cidade, sem olhar para trás.
Simon passou pelos vestidos da rainha e tropeçou no quarto dela.
— Pai? — Perguntou, sem fôlego.
Garver Randell, pai de Simon, se virou para encará-lo, com os
olhos cansados, mas o sorriso amplo. E atrás dele estava a rainha
Rielle, seu cabelo selvagem e escuro grudado na pele pálida, os
lençóis da cama e a camisola branca manchados de vermelho. Ela
segurava um embrulho agitado nos braços.
Simon se aproximou da cama, maravilhado, ao mesmo tempo que
a visão da rainha fez um calor raivoso florescer em seu peito. A
nova princesa de seu reino era uma coisa pequena: rosto vermelho
enrugado, pele ligeiramente mais escura que a da mãe, olhos
castanhos arregalados, uma mecha de cabelo preto molhado.
A respiração de Simon ficou presa na garganta.
O bebê parecia muito com o falecido pai dela.
Rielle olhou para a criança, e logo ergueu o olhar para o pai de
Simon, perplexa.
— Eu pensei que a mataria — disse a rainha. Ela riu, limpando o
rosto com os dedos trêmulos. — Eu sonhei que a mataria. E, no
entanto, aqui está ela, afinal. — Ela se atrapalhou para ajustar o
bebê em seus braços. Ela não parecia muito boa em segurar bebês.
Era estranho ver a rainha assim – pequena em seu ninho de
travesseiros, parecendo pouco mais do que uma garota, apesar de
ter vinte anos. Essa rainha que se aliou aos anjos e os ajudou a
matar milhares de humanos.
Essa era a rainha que matou o marido.
— Audric a teria amado — sussurrou Rielle, o rosto amassado.
Os punhos pequenos de Simon se fecharam ao seu lado. Como
ela ousava falar sobre o Rei Audric quando foi ela quem o matou?
Ele aprendeu apenas algumas coisas sobre a noite em que a
capital caiu. O Rei Audric havia combatido contra a Rainha Rielle na
ampla varanda anexa ao quarto andar do castelo. A espada do rei
ardia com a luz do sol, sua armadura cravejada de diamantes e
espelhos brilhando mais que as estrelas.
Mas nem o Rei Audric, o Portador da Luz, o mais poderoso
Sunspinner em séculos, foi forte o suficiente para derrotar a Rainha
Rielle.
A rainha havia esculpido uma espada no ar, uma arma ofuscante
forjada a partir do próprio Empirium. Rielle e Audric lutaram lâmina
contra lâmina, mas a luta foi breve.
E quando Rielle enfiou a sua mão brilhante no peito de Audric
para arrancar o coração dele, não havia nada além de sede de
sangue em seus olhos enquanto observava o marido se transformar
em cinzas a seus pés.
Simon não era uma criança violenta, mas, mesmo assim, ele
pensou que, se olhasse para a rainha por mais um segundo, a
atacaria.
Então ele proferiu a oração da Rainha do Sol em homenagem a
Audric — que a luz da Rainha o guie para casa — e se voltou para o
pai.
Foi quando Garver Randell ficou rígido e sussurrou: — Ele sabe
— então caiu de joelhos.
Simon correu para o seu lado — Pai? O que está errado?
Garver apertou a cabeça, seu corpo tremendo. — Ele sabe, Deus
nos ajude, ele sabe — ele gemeu, e quando olhou para cima, estava
com os olhos cinzentos e nublados.
O coração de Simon afundou. Ele conhecia aqueles olhos e sabia
que eles significavam.
Um anjo finalmente havia encontrado um modo de entrar na
mente de seu pai.
E pelo terror no rosto de seu pai, Simon sabia que devia ser
Corien.
— Pai, me escute! Eu estou bem aqui! — Simon agarrou o braço
do pai — Vamos. Podemos ir embora agora! Por favor, rápido!
Simon ouviu a rainha atrás dele, cantando baixinho para si
mesma: — É assim que você segura seu filho. É assim que você
mata seu marido — Sua risada estava cheia de lágrimas.
— Ele sabe o que eu sou — Garver disse com a voz áspera.
O medo crescente de Simon transformou seu corpo em pedra.
Corien sabia – que seu pai era um marque e Simon também. Nem
anjo nem humano, mas com o sangue de ambos dentro deles.
De repente, as marcas escondidas nas costas de Simon, embaixo
de sua túnica, pareciam labaredas que alertariam todos na cidade
conquistada onde ele estava escondido. Durante anos, ele e o pai
viveram secretamente na capital de Celdaria, escondendo as costas
marcadas e a magia proibida. Eles foram curandeiros, honestos e
trabalhadores, procurados por plebeus e magistas do templo e até
pela família real.
E agora... agora, Corien sabia.
Simon empurrou o pai em direção à porta. — Pai, mexa-se, por
favor!
Garver engasgou. — Afaste-se de mim! Ele vai encontrar! — Ele
agarrou Simon pelo colarinho e o empurrou para longe.
A cabeça de Simon bateu na cama de dossel da rainha e ele caiu
no chão, atordoado. Ele viu o pai se virar, rir um pouco, apertar a
cabeça. Ele o observou murmurar palavras raivosas e estrangeiras
em uma voz que era metade dele e metade de Corien e depois
correu mancando até a janela do terraço.
Então, com um grito estrangulado, Garver Randell se jogou da
torre da rainha.
Simon se levantou, agarrou as cortinas da cama em busca de
apoio, cambaleou para frente e caiu. Com a cabeça latejando,
lutando contra o desejo de desmaiar, ele se arrastou pelo chão até o
terraço. No parapeito, com o vento da montanha batendo em suas
bochechas, ele não suportava olhar para baixo. Ele pressionou o
rosto contra a pedra fria e passou os braços em torno de dois
postes. Alguém ou alguma coisa estava fazendo um barulho
estrangulado terrível.
— Simon — disse uma voz atrás dele.
Ele percebeu, então, que o barulho horrível vinha dele.
Ele ficou de pé, contornando a rainha Rielle.
— Você fez isso — ele chorou — Você matou a todos nós! Você é
um monstro! Você é malvada!
Ele tentou dizer mais: ela traiu todos no reino de Celdaria, todos
no mundo. Ela deveria ser a Rainha do Sol, sua salvadora e
protetora. E, no entanto, ela se tornou a Rainha do Sangue. A
Assassina de Reis. A Dama da Morte.
Mas as lágrimas de Simon bloquearam sua voz. O vento que
soprava ao longo das montanhas esculpia arrepios em sua pele.
Seu pequeno corpo arfava; ele mal conseguia respirar.
Ele cruzou os braços com força, apertando os olhos com força
enquanto o mundo se inclinava. Ele não parava de ver a imagem do
pai correndo para o terraço e se atirando sobre o parapeito.
— Pai — ele sussurrou — Por favor, volte.
A rainha se acomodou cautelosamente no sofá em frente a ele,
seu bebê ainda nos braços. Os pés estavam descalços e
ensanguentados, a camisola encharcada de suor.
— Você está certo, você sabe — disse Rielle — Eu causei isso.
Simon estava feliz que a rainha não tentou se desculpar. Nada
que ela pudesse dizer faria algo melhorar.
— Eu acho — Rielle continuou devagar — Que ele vai matá-la.
Simon fungou, limpou a boca. Seus dentes batiam; ele não
conseguia parar de chorar. — O que você quer dizer?
Rielle se virou para olhar para ele, os lábios secos e rachados.
Uma vez, Simon lembrou, ele havia achado a rainha bonita.
— Minha filha — a voz de Rielle era oca — Eu acho que Corien a
matará. Ou ele vai tentar.
Simon disse. — Ele deveria matar você.
Rielle riu disso e continuou rindo histericamente. Simon só podia
encará-la com raiva e horror até que ela trouxe a filha para o rosto,
esfregou a bochecha dela contra a sua. O bebê fez um som
baixinho e suave e suspirou.
— É assim que você segura seu filho — murmurou Rielle. Ela fez
um barulho suave e triste. — Audric a teria amado.
Então o rosto da rainha se contorceu e ela gritou de dor. Ela
apertou o bebê no estômago e se dobrou, ofegando.
A pedra estremeceu sob os pés de Simon. As paredes dos
aposentos da rainha se moviam para dentro e para fora, como se
estivessem respirando junto com ela.
A pele de Rielle brilhava, mudando, e por um momento terrível,
Simon pensou que podia ver através de sua carne, o sangue e os
ossos abaixo – e a luz lá no fundo. Ela foi delineada em manchas
cintilantes de ouro, uma criatura luminosa de faíscas e brasas.
Então a luz desapareceu, e Rielle estava fraca e humana mais
uma vez.
O sangue de Simon rugiu de medo. — O que foi isso?
— Não vai demorar muito agora — Rielle voltou seu olhar
brilhante para ele, e Simon recuou. A pele ao redor dos olhos dela
estava escura e fina — Não consigo me segurar por muito mais
tempo.
— Você quer dizer que... você está morrendo?
— Eu tentei por tanto tempo — Rielle murmurou, e então ela
gritou mais uma vez, ficou rígida. Raios ardentes de luz saíram de
seus dedos e entraram na noite, formando um arco sobre a cidade
escura. A luz deixada para trás como listras carbonizadas,
irregulares no chão do terraço.
Rielle olhou para cima, com o rosto escorregadio de suor. A luz se
movia em ondas brilhantes sob sua pele. Simon não conseguia
desviar o olhar; ela era ao mesmo tempo a coisa mais linda e mais
assustadora que ele já viu.
— Você está... sofrendo? — perguntou Simon.
Rielle riu, um pequeno suspiro surpreso. — Estou sempre
sofrendo.
— Que bom — respondeu Simon, mas não sem uma pontada de
vergonha no peito. Ela era um monstro, sim, mas um monstro
exausto e descalço, abraçada com ternura a uma criança.
A rainha, seu pai sempre dizia a ele sempre que Simon fervia em
seu ódio, já foi apenas uma menina. Lembre-se disso. Lembre-se
dela.
Então Rielle ficou muito quieta.
— Oh, Deus — ela sussurrou. — Ele está vindo.
Simon recuou, o alarme tocando em seus ouvidos. — Corien?
Rielle usou a parede para se erguer, seu rosto se contraindo com
dor. — Não posso permitir que ele te encontre. Garver te escondeu
bem, mas se ele perceber que você está aqui agora e o que você
é...
Simon tocou suas costas, como se isso pudesse esconder as
marcas lá. — Você... você sabe sobre nós?
O rosto de Rielle cintilou com algo que Simon não conseguiu ler.
— Um amigo me disse. Apenas no caso de... bem. Caso eu
precisasse saber.
— Eu não entendo.
— E não tenho tempo para explicar. Esconda-se com ela, fique
aqui fora. Vou distrair ele.
E com isso, Rielle pressionou a filha nos braços de Simon e
correu de volta para seus aposentos.
Simon olhou para o bebê. Seus olhos escuros e sérios se fixaram
no rosto dela como se ela fosse a coisa mais interessante do
mundo. Apesar da cabeça dolorida e da horrível dor oca em seu
intestino, Simon deu a ela um pequeno sorriso.
— Olá — ele disse e tocou sua bochecha. — Eu sou Simon.
— Aqui, pegue isso — Rielle reapareceu, segurando na mão um
colar – um pêndulo plano de ouro com um cavalo alado esculpido
em sua superfície. No cavalo estava sentada uma mulher com
cabelos escuros e uma espada erguida vitoriosamente. Raios de sol
se espalhavam atrás dela.
Era uma imagem que havia dominado Celdaria nos últimos dois
anos, desde que a Igreja havia declarado Rielle como a prometida
Rainha do Sol.
Como todos a amaram, uma vez.
Quando a rainha colocou o colar no cobertor do bebê, Simon a
observou em silêncio. — Você sente muito pelo que fez?
— Faria você se sentir melhor se eu sentisse?
Simon não tinha resposta para isso.
A rainha beijou a testa da filha. — Ele não vai pegar você — ela
sussurrou. — Não você, minha preciosa.
Então ela se virou para Simon e, antes que ele pudesse protestar,
afastou o cabelo loiro acinzentado e lhe deu um beijo na testa. A
pele dele doía onde os lábios dela haviam tocado; lágrimas se
juntaram atrás de seus olhos. Ele sentiu como se estivesse na beira
de um penhasco balançando, como se algo terrível estivesse
prestes a acontecer e ele não pudesse fazer nada para deter isso.
— Vá para Borsvall — disse Rielle. — Encontre o Rei Ilmaire e o
comandante Ingrid. Mostre a eles este colar. Eles vão te esconder.
As portas externas dos aposentos de Rielle se abriram.
— Rielle? — Corien rugiu.
Rielle segurou a bochecha de Simon e encontrou seus olhos. —
Aconteça o que acontecer, não deixe que ele te veja.
Quando ela se virou, Simon pegou a mão de Rielle. Sem ela, ele
ficaria sozinho com essa criança, e de repente não queria nada mais
do que esconder o rosto nos braços de Rielle. Monstro ou não, ela
agora era mãe e isso era algo que ele ansiava mais do que qualquer
coisa.
— Por favor, não vá — ele sussurrou.
Ela deu um sorriso tenso. — Você é forte, Simon. Eu sei que você
pode fazer isso.
Então ela correu de volta para dentro e encontrou Corien no meio
do quarto.
— Cadê ele? — veio a voz de Corien, baixa e perigosa.
Simon se mexeu um pouco, espiando através de uma pequena
lasca entre as cortinas do terraço. Seu coração pulou de medo ao
ver o líder dos anjos – um homem bonito, pálido e esculpido,
cabelos preto brilhantes, lábios cheios e cruéis.
— Ela — Rielle o corrigiu. — Eu tenho uma filha.
O olhar de Corien ainda era mortal. — E onde está ela?
— Eu a enviei para longe. Com alguém tão poderoso que você
nunca a encontrará.
O coração de Simon se levantou. Alguém estava vindo ajudá-los?
Corien riu cruelmente — Ah sim? E quem poderia ser?
— Você pode tentar encontrar a verdade — disse Rielle — Mas
logo descobrirá que não é mais bem-vindo dentro de mim.
Com um grunhido, Corien bateu nela com força na boca. Rielle
tropeçou, seu lábio ensanguentado, e o olhar de Simon encontrou o
dela. Seus olhos de ouro flamejante eram duros, triunfantes. Havia
uma força em seu rosto cansado que ele nunca tinha visto antes.
Eu a enviei para longe. Com alguém tão poderoso que você nunca
a encontrará.
Você é forte, Simon. Você pode fazer isso.
E de repente Simon entendeu: ninguém estava vindo para ajudá-
los.
Ele era o alguém poderoso.
E cabia a ele sozinho salvar a princesa.
Ele precisaria usar sua magia – sua magia de marque meio-
sangue, a magia de viagem que havia condenado quase toda a sua
espécie – para enviá-los a centenas de quilômetros de distância,
para Borsvall e para a segurança.
Rielle voltou-se para Corien.
— Você não deveria ficar com tanta raiva — ela disse a ele. —
Você comete erros quando está com raiva. Se você não estivesse
tão cego por isso, teria ficado comigo, agarrado-a assim em que ela
nasceu e cortado sua garganta naquele momento.
Corien sorriu friamente para ela. — Você poderia ter me matado
por isso.
A rainha deu de ombros. — Talvez eu te mate agora de qualquer
maneira.
Simon se virou, seu peito apertado de medo. Como ele poderia
fazer isso? Ele tinha apenas oito anos de idade. Ele lera os livros de
viagem várias vezes, é claro, mas ainda não entendia tudo o que
havia dentro deles. E pelo que seu pai havia lhe ensinado sobre os
velhos tempos, antes que os marques fossem caçados por humanos
e anjos, a maioria de nós não tentava viajar até a idade adulta.
Você pode fazer isso, Simon, uma voz disse. A voz de uma
mulher – mas não a da rainha. Familiar, mas...
Ele virou, procurando na escuridão, e não encontrou ninguém.
Você deve fazer isso, disse a voz. Você e a criança, Simon, são
os únicos que podem nos salvar. Rápido, agora. Antes que ele te
descubra. Seu pai te escondeu bem, mas eu não posso mais te
proteger.
Um som grosso e carnudo veio de dentro do quarto da rainha. O
vidro caiu no chão. A rainha gritou e Corien murmurou algo de ódio.
O castelo gemeu. A parede contra a qual Simon se escondia
retumbava como se algo no subsolo estivesse despertando. Uma
explosão quente de ar irrompeu de dentro do quarto, quebrando as
janelas. Simon se abaixou sobre o bebê. Ela se contorceu contra o
peito dele com um grito abafado e irritado.
— Quieta, por favor — Simon sussurrou. O ar vibrou em torno
dele; o terraço balançava sob seus pés. Suor escorria por suas
costas. Uma luz vibrante dentro do quarto aumentou, ficando cada
vez mais brilhante.
Ele fechou os olhos, tentou esquecer a voz da mulher
desconhecida e se concentrar. Ele procurou na sua mente as
palavras dos seus livros proibidos, agora abandonados sob o soalho
da loja de seu pai:
O empirium está dentro de todo ser vivo, e todo ser vivo é do
empirium.
Seu poder conecta não apenas carne ao osso, raiz à terra,
estrelas ao céu, mas também estrada à estrada, cidade à cidade.
Momento a momento.
Simon sabia que apenas os marques tinham esse dom poderoso.
O dom de viajar. A capacidade de atravessar grandes distâncias em
um instante e percorrer o tempo tão fácil quanto as pessoas que
percorrem a estrada.
Simon costumava fantasiar sobre como seria voltar no tempo
antes da criação do Portão – antes das guerras antigas, quando os
anjos ainda andavam na terra e os dragões escureciam os céus.
Mas ele não conseguia pensar no tempo, não naquele momento.
O tempo era uma coisa perigosa e escorregadia. Ele deve pensar
apenas na distância: Celdaria a Borsvall.
— Não, Rielle! — Corien estava gritando. — Não! Não faça isso!
Simon olhou para trás e viu a Rainha Rielle de joelhos, com o
rosto virado para o céu, lutando para ficar de pé enquanto uma
concha de luz brilhante crescia ao seu redor. Corien bateu na luz,
queimando os punhos, mas ele não conseguia tocá-la. Ele arranhou
e gritou, amaldiçoou, implorou por ela.
Mas todos os seus gritos foram inúteis. O corpo de Rielle estava
se desenrolando em longas correntes de luz, sua pele descascando
como cinzas ao vento.
Simon virou-se e sussurrou para a princesa: — Não se preocupe,
eu não vou te deixar. Eu vou proteger você.
Ele fechou os olhos, mordeu o lábio, ignorou os gritos
desesperados de Corien e a luz ofuscante da rainha. Ele dirigiu sua
mente para o nordeste, em direção a Borsvall. Como seus livros
haviam instruído, ele guiou sua respiração por todas as linhas de
seu corpo, todos os tendões, todos os ossos.
Agora.
Os olhos dele se abriram.
Fios torcidos de luz, finos e esfumaçados, flutuavam no ar diante
dele.
Coração acelerado, Simon segurou a princesa perto com um
braço e estendeu a mão com o outro. Ele escutou seu sangue, pois
sabia o caminho exatamente como sabia como piscar, engolir,
respirar. Ele sentiu durante a noite os fios corretos, aqui e ali. Em
algum lugar diante dele havia um caminho, escondido aos olhos,
mas conhecido, inquestionavelmente, pelo poder que vibrava em
suas veias, e se ele pudesse encontrar o fio certo, puxar o livre,
coloca-lo diante de seus pés como um tapete sinuoso.
Lá.
Um único fio, mais brilhante que os outros, dançou na ponta dos
dedos dele.
Simon quase não se atreveu a alcançá-lo. Se ele se movesse
muito devagar ou muito rapidamente, se sua mente vagasse, o fio
poderia escapar dele.
Atrás dele, a rainha gritou com Corien, sua voz cheia de fúria. —
Eu não sou mais sua!
Não havia tempo para dúvidas. Simon pegou o fio mais brilhante,
cuidadosamente o guiou pelos dedos como uma mecha de cabelo
brilhante.
Espere um momento, seus livros diziam, para conhecer seu fio.
Quanto mais familiarizado você tiver, maior a probabilidade dele
levá-lo aonde você quer ir.
Enquanto Simon olhava para o fio que pairava em sua mão,
outros se iluminaram e se aproximaram, puxados pela força de sua
concentração.
Embora chamuscassem a pele macia de suas mãos, ele juntou os
fios nas mãos, guiando-os pelo ar frio da noite. Logo ele manobrou
os fios em um anel trêmulo e, além do anel, abriu uma passagem
para a escuridão.
O primeiro fio, o mais brilhante, rastejou até o peito de Simon e se
agarrou lá como um espinheiro, puxando-o gentilmente para frente.
Simon se sentiu bobo com isso, mas pensou nesse fio mesmo
assim, Olá.
A pressão de seu toque diminuiu.
Simon viu formas fracas através da passagem instável e afiada:
um caminho sinuoso de pedra negra, um portão alto e estreito.
Montanhas cobertas de gelo. Soldados apontando em reverência,
gritando na dura língua Borsválica.
Todos os músculos do corpo jovem de Simon se enrijeceram. A
cada respiração, o mundo escurecia. E, no entanto, risos
borbulhavam dentro dele, mesmo assim. Ele não conseguia se
imaginar mais feliz. Esse poder não era fácil, mas era certo e era
dele.
Então, atrás dele, a rainha Rielle gritou algo que Simon não
conseguia entender. A voz dela se partiu.
Os gritos frenéticos de Corien estavam roucos de angústia.
Simon engoliu em seco, o medo se aglomerou dentro dele como
um enxame de insetos.
Uma imensa e repentina quietude engoliu todo o som – os choros
de criança, os zumbidos. O mundo ficou em silêncio.
Simon olhou para trás no momento em que uma coluna de luz
disparava do quarto da rainha para a noite, tornando o céu branco
como o amanhecer. Simon escondeu o rosto, inclinando a cabeça
sobre o bebê nos braços. Sua mão viajante tremia enquanto ele
trabalhava. Um instante depois, o silêncio explodiu em um estrondo
que abalou as montanhas e quase derrubou Simon.
O castelo estava embaixo dele. O ar estourou com cheiro de fogo.
Uma das montanhas ao redor da capital desabou, seguida por outra
– e outra.
Segure-a, disse a voz da mulher mais uma vez, alta e clara em
sua mente. Nunca a deixe.
Os fios deslizavam pelas garras dos pensamentos de Simon. Ele
se sentiu esticado entre o local onde seus pés estavam e o fio preso
ao peito.
Vá, Simon! A voz da mulher chorou. Agora!
Simon deu um passo em direção ao anel de luz que levava para o
leste no momento em que um calor abrasador brotava em seus
calcanhares.
As últimas coisas que Simon sabia surgiram lentamente:
Uma parede brilhante de fogo correndo por ele de todos os lados,
estalando como mil tempestades. O ar mudou ao seu redor quando
ele atravessou a passagem dos fios, como água fria deslizando
sobre sua pele. A princesa gritando em seus braços.
A visão das montanhas de Borsvall desaparecendo.
O fio preso ao seu coração mudando. Torcendo.
Escurecendo.
Quebrando, com um estalo como um trovão.
Uma força batendo nele, agarrando-o pelos ossos.
O bebê sendo arrancado de seus braços, por mais que tentasse
segurá-la.
Um pedaço de tecido, rasgando em suas mãos.
E então, nada.
1
Rielle
“Lorde comandante Dardenne veio até mim no
meio da noite, com a filha nos braços. Eles
cheiravam a fogo; suas roupas estavam
chamuscadas. Ele mal conseguia falar. Eu
nunca tinha visto o homem com medo antes.
Ele empurrou Rielle em meus braços e disse:
‘Ajude-nos. Ajude-a. Não deixe que a tirem de
mim.’”
—Testemunho do Grão-Magister Taliesin Belounnon, sobre o
envolvimento de Lady Rielle Dardenne no massacre de Boon
Chase.
29 de abril do ano 998 da segunda era.

DOIS ANOS ANTES

Rielle Dardenne correu para o escritório de Tal e jogou a mensagem


do pardal em sua mesa.
— A princesa Runa está morta — ela anunciou.
Ela não descreveria exatamente seu humor como empolgação,
mas seu próprio reino, Celdaria, e seu vizinho do nordeste, Borsvall,
viveram em um estado de tensão por tantas décadas, que
dificilmente seria digno de nota quando, digamos, um navio
mercante celdário afundasse na costa de Borsvall ou patrulhas
começassem a explodir perto da fronteira.
Mas uma princesa de Borsvall assassinada? Isso era novidade. E
Rielle queria dissecar cada parte disso.
Tal soltou um suspiro, pousou a caneta e passou as mãos
manchadas de tinta pelos cabelos loiros bagunçados. A chama de
ouro polida presa à sua lapela brilhou na luz do sol.
— Talvez — sugeriu Tal, olhando para Rielle de um jeito que não
era desaprovação nem diversão — Você devesse considerar ficar
menos entusiasmada com o assassinato de uma princesa?
Ela deslizou na cadeira na frente dele: — Eu não estou feliz com
isso ou algo do tipo. Estou simplesmente intrigada. — Rielle puxou o
pedaço de papel de volta sobre a mesa e leu as palavras escritas
mais uma vez. — Então você acha que foi assassinato? Audric acha
que foi.
— Me prometa que você não vai fazer nada de estúpido hoje,
Rielle.
Ela sorriu docemente para ele: — Quando eu já fiz algo estúpido?
Ele levantou uma sobrancelha: — A guarda da cidade está em
alerta máximo. Quero você aqui, a salvo no templo, caso aconteça
algo. — ele pegou a mensagem, examinando seu conteúdo —
Como você conseguiu isso, afinal? Não, espera. Eu sei. Audric te
deu.
Rielle ficou rígida: — Audric me mantém informada. Ele é um bom
amigo. Onde está o mal nisso?
Tal não respondeu, mas ele também não precisava.
— Se você tem algo para me dizer — ela rebate, a bochechas
dela corando — Então apenas diga. Caso contrário, vamos começar
nossas aulas.
Tal a observou por mais um momento, depois se virou para pegar
quatro livros enormes na prateleira atrás dele.
— Aqui — disse ele, ignorando a expressão teimosa em seu rosto
— Marquei algumas passagens para você ler. Hoje será dedicado
ao estudo silencioso. E testarei você mais tarde, para que nem
pense em trapacear.
Rielle estreitou os olhos para o livro no topo da pilha. “Uma
História Resumida da Segunda Era, Volume I: As Consequências
das Guerras Angélicais”. Ela fez uma careta: — Isso não me parece
resumido.
— É tudo uma questão de perspectiva — disse ele, voltando aos
papéis em sua mesa.
O lugar favorito de Rielle no escritório de Tal era o assento da
janela com vista para o pátio principal do templo. Estava cheia de
almofadas escarlates forradas com canos dourados e, quando ela
estava sentada, balançando as pernas para o sol, quase podia
esquecer que havia um mundo enorme além do templo e de sua
cidade – um mundo que ela nunca veria.
Ela se sentou perto da janela, tirou as botas, subiu as pesadas
saias de renda e descansou os pés descalços no peitoril. A luz do
sol da primavera aqueceu suas pernas, e logo ela estava pensando
em como Audric florescia em dias brilhantes e ensolarados como
este. Como sua pele parecia brilhar e crepitar, implorando para ser
tocada.
Tal limpou a garganta, quebrando o foco dela.
Ele a conhecia muito bem.
Ela abriu Uma História Resumida, deu uma olhada no texto de
letras minúsculas e desbotado, e imaginou jogar o livro pela janela e
entrar no pátio do templo, onde os cidadãos estavam fazendo
orações matinais – rezando para que os cavaleiros que eles haviam
apostado na corrida de hoje vençam, sem dúvida. Todo templo na
capital estaria cheio de almas tão ansiosas, não só no Pyre – o
templo de Tal, onde os cidadãos adoravam São Marzana, o
firebrand –, mas também na Casa da Luz, na Casa da Noite, nos
Baths e no Firmament, no Forge e no Holdfast. Orações
sussurradas em todos os sete templos, a todos os sete santos e
seus elementos
Orações desperdiçadas, pensou Rielle com uma leve e aguda
excitação. Os outros corredores parecerão crianças em pôneis
comparados a mim.
Ela folheou algumas páginas, mordendo o interior do lábio até se
sentir calma o suficiente para falar: — Ouvi dizer que muitos na
corte de Borsvall estão culpando Celdaria pela morte de Runa. Nós
não faríamos isso, faríamos?
Tal riscou através do papel com sua caneta: — Certamente não.
— Mas não importa se é verdade ou não, não é? Se o conselho
do rei Hallvard o convencerem de que matamos a filha dele, ele
declarará guerra no final.
Tal deixou cair a caneta com um bufar de aborrecimento: — Não
vou conseguir fazer nenhum trabalho hoje, não é?
Rielle segurou um sorriso. Se você soubesse o quanto isso é
verdade, querido Tal.
— Me desculpe por ter curiosidade sobre a situação política do
nosso país — disse ela. — Isso se enquadra na categoria de coisas
que não podemos discutir, para que meu pobre cérebro vulnerável
não estilhace com o estresse?
Um pequeno sorriso se contraiu na boca de Tal: — Borsvall pode
declarar guerra, sim.
— Você não parece preocupado com essa possibilidade.
— Acho isso improvável. Estamos à beira da guerra com Borsvall
há décadas e, no entanto, isso nunca aconteceu. E isso nunca vai
acontecer porque o povo de Borsvall pode ser defensor da guerra,
mas o rei Hallvard não está saudável e nem é estúpido.
Massacraríamos os exércitos deles. Ele não pode começar uma
guerra com ninguém, muito menos com Celdaria.
— Audric acha… — Rielle hesitou. Um toque de desconforto
escorreu por sua garganta. — Audric acha que a morte da princesa
Runa e a rebelião de escravos em Kirvaya significam que é hora.
Que as Rainhas estão chegando.
O silêncio caiu sobre a sala como uma mortalha.
— Audric sempre foi fascinado pela profecia — disse Tal, sua voz
enganosamente calma. — Há anos ele está procurando sinais de
que as Rainhas estão chegando.
— Ele parece bastante convencido desta vez.
— Uma rebelião de escravos e uma princesa morta não são
suficientes para…
— Mas eu ouvi o Grão-Magister Duval falando sobre as
tempestades no oceano em Meridian — ela continuou, estudando o
rosto de Tal — Até em Ventera e Astavar. Tempestades estranhas,
fora da estação.
Tal piscou. Ah, pensou Rielle. Você não sabia disso, sabia?
— Tempestades acontecem fora de estação de tempos em
tempos — disse Tal — O empirium funciona de maneiras
misteriosas.
Rielle enrolou os dedos nas saias, se confortando com o fato de
que em breve ela estaria de calça e botas de montaria, com o
colarinho aberto na brisa.
Ela estaria na linha de partida.
— No relatório que li — continuou ela — Dizia que uma
tempestade de areia no sul do Meridiano fechou todo o porto de
Morsia por dias.
— Audric precisa parar de te mostrar todos os relatórios que
aparecem na mesa dele.
— Audric não me mostrou nada. Eu mesma encontrei esse.
Tal levantou uma sobrancelha: — Você quer dizer que entrou no
escritório dele quando ele não estava lá e mexeu nos papéis dele.
As bochechas de Rielle ficaram quentes: — Eu estava procurando
por um livro que deixei para trás.
— De fato. E o que Audric diria se soubesse que você esteve no
escritório dele sem a permissão dele?
— Ele não se importaria. Eu sou livre para entrar e sair quando
quiser.
Tal fechou os olhos: — Lady Rielle, você não pode simplesmente
visitar as salas privadas do príncipe herdeiro dia e noite como se
não fosse nada. Você não é mais criança. E você não é a noiva
dele.
Rielle perdeu o fôlego por um instante: — Estou ciente disso.
Tal acenou com a mão e se levantou da cadeira, efetivamente
encerrando toda a conversa sobre a profecia e as Rainhas.
— A cidade está lotada e imprevisível hoje — disse ele,
atravessando a sala para se servir de outra xícara de chá — A
notícia sobre a morte da princesa Runa está se espalhando. Nesse
clima, o empirium pode se comportar de maneiras igualmente
imprevisíveis. Talvez devêssemos começar uma rodada de orações
para firmarmos nossa mente. Em meio ao caos do mundo, a chama
ardente serve como uma âncora, nos colocando em paz com o
empirium e Deus.
Rielle olhou para ele: — Não use sua voz de Magister, Tal. Faz
você parecer velho.
Ele suspirou, tomou um gole de chá. — Eu sou velho. E mal-
humorado, graças a você.
— Trinta e dois não é velho, especialmente por já ser Grão-
Magister do Pyre — Ela fez uma pausa. Precisaria continuar com
cuidado — Eu não ficaria surpresa se você fosse escolhido para ser
o próximo Arconte. Claro, com alguém tão talentoso como você do
meu lado, eu poderia assistir a Corrida do seu camarote…
— Não tente me bajular, Lady Rielle — os olhos dele brilharam
para ela. Ali estava o Tal que ela gostava, o bravo firebrand, não o
mestre devoto — Não é seguro para você lá fora agora, para não
mencionar perigoso para todos os outros, se algo a desencadear e
você perder o controle.
Rielle fechou Uma História Resumida e se levantou da janela. —
Maldito seja, Tal.
— Não no templo, por favor — Tal advertiu por cima da borda de
sua xícara.
— Eu não sou uma criança. Você realmente acha que não sou
mais esperta agora? — a voz dela ficou zombeteira — “Rielle,
vamos fazer uma oração juntos para acalmá-la”, “Rielle, vamos
cantar uma canção sobre São Katell, o Magnífico, para tirar as
mentes das coisas”, “Não, Rielle, você não pode ir ao masque. Você
pode se perder. Você pode se divertir, Deus não permitiria”. Se o Pai
decidisse, eu ficaria trancada o resto da vida com o nariz enterrado
em um livro ou de joelhos em oração, me chicoteando toda vez que
eu tivesse um pensamento de raiva. Esse é o tipo de vida que você
gostaria para mim também?
Tal a observou, imóvel: — Se isso significasse que você estaria
segura e que outros também estariam seguros? Sim, eu gostaria.
— Mantida trancada como uma criminosa — um sentimento
familiar e frustrado surgiu dentro dela, ela empurrou de volta com
uma punição. Ela não perderia o controle, não hoje, de todos os
dias, não hoje.
— Você sabe – ela disse, sua voz falsamente brilhante — que
quando há tempestades, o Pai me leva até os aposentos dos
criados e me dá um calmante? Isso me faz dormir, ele me tranca e
me deixa lá.
Após uma pausa, Tal responde: — Sim.
— Eu costumava lutar com ele. Ele me segurava e me dava um
tapa, fechava meu nariz até que eu não conseguisse respirar e tinha
que abrir a boca. Então ele empurrava o frasco entre meus lábios e
me fazia beber, e eu cuspia, mas ele continuava me forçando a
beber, sussurrando para mim tudo o que eu já havia feito de errado,
e enquanto eu gritava o quanto o odiava, eu adormecia. E quando
acordava, a tempestade tinha acabado.
Uma pausa mais longa: — Sim — respondeu Tal suavemente —
Eu sei.
— Ele acha que as tempestades são muito provocativas para
mim. Elas me dão ideias, ele diz.
Tal pigarreou: — Isso foi minha culpa.
— Eu sei.
— Mas o remédio foi sugestão dele.
Ela o deu um olhar fulminante: — E você tentou convencê-lo do
contrário?
Ele não respondeu, e a calma em seu rosto a deixou fervendo.
— Eu não luto mais contra ele — disse ela — Eu ouço um trovão
e desço sem ele nem me pedir. Quão patética eu me tornei.
— Rielle… — Tal suspirou, balançou a cabeça — Tudo o que eu
poderia lhe dizer, eu já disse antes.
Ela se aproximou dele, deixando a solidão que ela normalmente
esconde dele – de todos – suavizar seu rosto. Venha, bom Magister
Belounnon. Tenha pena da sua doce Rielle. Ele cedeu primeiro,
olhando para longe dela. Algo como tristeza mudou seu rosto, e sua
mandíbula se apertou.
Bom.
— Ele me deixaria dormir pela vida toda, se pudesse — disse ela.
— Ele ama você, Rielle. Ele se preocupa com você.
O calor estalou na ponta dos dedos de Rielle, crescendo junto
com sua raiva. Com uma pontada teimosa de fúria, ela deixou
acontecer. Ela sabia que não deveria, que uma explosão só tornaria
mais difícil escapar, mas de repente ela não conseguiu se importar.
Ele ama você, Rielle.
Um pai que ama sua filha não a faria sua prisioneira.
Ela pegou uma das velas da mesa de Tal e observou com severa
satisfação quando o pavio explodiu em uma chama cuspida e
indisciplinada. Enquanto olhava para ela, imaginou sua fúria como
um rio inundando, derramando constantemente sobre as margens e
alimentando a chama em suas mãos.
A chama cresceu – do tamanho de uma caneta, uma adaga, uma
espada. Então cada vela seguiu o exemplo, uma floresta de lâminas
de fogo.
Tal se levantou de sua mesa e pegou um belo escudo polido de
um suporte no canto da sala. Todo elemental vivo – todo
waterworker e windsinger, todo shadowcaster e todo firebrand como
Tal – tiveram que usar uma moldagem, um objeto físico forjado
exclusivamente por suas próprias mãos, para acessar seu poder. O
poder singular deles, o único elemento que eles podiam controlar.
Mas não Rielle.
Ela não precisava de moldagem, e fogo não era o único elemento
que ela controlava.
Ela tinha poder sobre todos eles.
Tal ficou de pé atrás dela, uma mão segurando seu escudo, a
outra mão descansando suavemente na dela. Quando criança,
quando ainda achava que amava Tal, esses toques a emocionavam.
Agora ela considerou seriamente dar um soco nele.
— Em nome de São Marzana, o Brilhante — murmurou Tal —
Oferecemos esta oração às chamas, para que o empirium possa
ouvir nosso apelo e nos dar forças: fogo crepitante, não brilhe com
fúria ou abandono. Queime firme e verdadeiro, queime limpo e
queime brilhante.
Rielle segurou palavras duras. Como ela odiava rezar. Cada
palavra familiar parecia uma nova barra sendo adicionado à gaiola
que seu pai e Tal haviam criado para ela.
A sala começou a tremer – o tinteiro na mesa de Tal, os vidros da
janela aberta, a xícara de chá pela metade de Tal.
— Rielle? — Tal perguntou, movendo seu escudo. No corpo dele
atrás dela, ela sentiu uma tensão crescente e quente enquanto ele
se preparava para apagar o fogo dela com seu próprio poder.
Apesar de seu esforço, a preocupação em sua voz causou nela uma
pontada de remorso. Ele queria o seu bem, ela sabia. Ele queria,
desesperadamente, que ela fosse feliz.
Ao contrário do pai.
Então Rielle inclinou a cabeça e engoliu sua raiva. Afinal, o que
ela estava prestes a fazer poderia fazer Tal se virar contra ela para
sempre. Ela poderia permitir a ele essa pequena vitória.
— Não brilhe com fúria ou abandono — ela repetiu, fechando os
olhos. Ela imaginou deixar de lado cada pedaço de emoção, cada
som, cada pensamento, até que sua mente fosse um vasto campo
de escuridão, exceto pelo minúsculo ponto de luz que era a chama
em suas mãos.
Então ela também permitiu que a escuridão se infiltrasse através
da chama e foi deixada sozinha no frio, ainda vazio de sua mente.
A sala se acalmou.
A mão de Tal caiu.
Rielle ouviu quando ele voltou seu escudo para o lugar. A oração
a tinha limpado e, na esteira de sua raiva, ela sentiu…nada. Um
coração e uma cabeça vazia.
Quando ela abriu os olhos, eles estavam secos e cansados. Ela
se perguntou amargamente como seria viver sem um refrão
constante de orações em seus pensamentos a alertando contra
seus próprios sentimentos.
Os sinos do templo tocaram onze vezes; O pulso de Rielle
disparou. A qualquer momento, ela ouviria o sinal de Ludivine.
Ela se virou para a janela. Sem mais orações, sem mais leitura.
Todos os músculos do corpo dela se agitaram com energia. Ela
queria cavalgar.
— Prefiro morrer a viver como prisioneira do meu pai — disse ela
por fim, incapaz de resistir a uma última alfinetada petulante.
— Morta como a sua mãe?
Rielle congelou. Quando ela encarou Tal, ele não desviou o olhar.
Ela não esperava essa crueldade dele. Do pai, sim, mas nunca de
Tal.
A lembrança de chamas de muito tempo atrás ardeu em sua
visão.
— O meu pai o instruiu a trazer isso à tona se eu saísse do
controle? — ela perguntou, mantendo a voz calma e fria — O que
aconteceu com o Chase e tudo mais.
— Sim — respondeu Tal, sem vacilar.
— Bem, fico feliz em dizer que só matei uma vez. Você não
precisa se preocupar.
Depois de um momento, Tal se virou para arrumar os livros em
sua mesa. — Isso é tanto para sua segurança quanto para a de
todos os outros. Se o rei descobrir que escondemos a verdade
sobre o seu poder todos esses anos… Você sabe o que poderia
acontecer. Especialmente para o seu pai. E, no entanto, ele faz isso
porque te ama mais do que você jamais entenderá.
Rielle riu bruscamente: — Isso não é motivo suficiente para me
tratar assim. Eu nunca vou perdoar ele por isso. Um dia, vou parar
de perdoar você também.
— Eu sei — disse Tal, e com a tristeza em sua voz, Rielle quase
teve pena dele.
Quase.
Mas então um grande estrondo soou do andar de baixo e um
inconfundível grito de alarme.
Ludivine.
Tal deu a Rielle aquele olhar familiar que ele costumava ter –
quando ela, aos sete, transbordou a piscina de Baths; quando ele a
encontrou, aos quinze, a primeira vez que ela escapou para a
taberna de Odo. Aquele olhar de O que eu fiz para merecer isso?
Rielle olhou inocentemente de volta para ele.
— Fique aqui — ele ordenou — Estou falando sério, Rielle.
Entendo sua frustração, de verdade, mas isso é maior do que a
injustiça de você se sentir entediada.
Rielle voltou ao assento da janela, esperando que sua expressão
aparecesse adequadamente envergonhada.
— Eu te amo, Tal — disse ela, e a verdade disso foi suficiente
para fazê-la se odiar um pouco.
— Eu sei — ele respondeu. Então ele vestiu sua túnica magistral e
saiu pela porta.
— Magister, é Lady Ludivine — veio uma voz em pânico do
corredor – um dos jovens acólitos de Tal — Ela acabou de chegar
na capela, meu senhor, quando ela empalideceu e caiu. Não sei o
que aconteceu!
— Convoque meu curandeiro — Tal instruiu — e envie uma
mensagem para a rainha. Ela estará em seu camarote na linha de
partida. Diga que a sobrinha ficou doente e não vai se juntar a ela.
Depois que eles se foram, Rielle sorriu e puxou as botas.
Ficar aqui?
Sem chance.
Ela correu pela sala de estar do lado de fora do escritório de Tal e
entrou nos corredores de mármore com veios vermelhos do templo,
onde floreios bordados de chamas cintilantes cobriam os tapetes
macios. A entrada do templo, com o piso em parquet polido em um
brilho dourado, era uma agitação de atividades, enquanto
adoradores, acólitos e servos corriam para as portas pontudas da
capela.
— É Lady Ludivine — um jovem acólito sussurrou para sua
companheira quando Rielle passou — Aparentemente, ela ficou
doente.
Rielle sorriu, imaginando todo mundo se preocupando com a
pobre Ludivine, tragicamente adorável e fraca no chão do templo.
Ludivine gostaria de receber a atenção – e do lembrete de que ela
mantinha toda a capital como um fantoche nas cordas de seu
mestre.
Mesmo assim, Rielle lhe devia um tremendo favor depois disso.
Fosse o que fosse, valeria à pena.
O cavalo de Ludivine estava ao lado do seu, do lado de fora do
templo, estável e segurado por uma mão jovem, que parecia à beira
do pânico. Ele reconheceu Rielle e cedeu com alívio.
— Desculpe-me, lady Rielle, mas lady Ludivine está bem? — ele
perguntou.
— Não tenho ideia — respondeu Rielle, balançando na sela.
Então ela estalou as rédeas e sua égua disparou pela estrada
principal que levava da pira ao coração da cidade, cascos batendo
contra os paralelepípedos. Uma grande variedade de apartamentos
e edifícios do templo erguiam-se ao redor delas – paredes de pedra
cinza gravadas com cenas da criação da capital, telhados
arredondados de cobre polido, colunas delgadas envoltas em hera
florida, fontes brancas coroadas com as semelhanças dos sete
santos em oração. Tantos visitantes vieram de todo o mundo para
Âme de la Terre para assistir a corrida, que o ar frio da primavera
agora pressionava espesso e próximo. A cidade cheirava a suor e
especiarias, cavalo suado e moedas quentes.
Enquanto Rielle avançava pela estrada, a multidão dispersou em
alarme de ambos os lados, gritando maldições até que eles
perceberam quem ela era e se calaram. Ela guiou a égua pelas ruas
sinuosas e dirigiu-se aos principais portões da cidade, com o corpo
apertado pelos nervos.
Mas ela não cederia ao seu poder hoje.
Ela competiria na Boon Chase, como qualquer cidadão livre, e
provaria ao pai que podia se controlar, mesmo quando sua vida
estava em perigo e os olhos de toda a cidade estavam sobre ela.
Ela provaria a ele e a Tal que merecia viver uma vida normal.
2
Eliana
“Eliana diz que no dia em que o Império tomou
nossa cidade, você não conseguia respirar
sem se engasgar com o sabor do sangue. Ela
disse que eu deveria estar feliz por ser apenas
um bebê, mas gostaria de poder me lembrar.
Talvez então eu fosse mais forte. Eu seria um
guerreiro. Como ela.”
—Diário de Remy Ferracora, cidadão de Orline 3 de fevereiro de
1018, terceira era.

1,020 ANOS DEPOIS

Eliana estava caçando quando ouviu o primeiro grito.


Gritos não eram tão incomuns na cidade de Orline, especialmente
nos Barrens, onde casebres se espalhavam pelas docas do rio em
uma planície escura de miséria.
Este, porém, era alto, penetrante – o grito de uma jovem – e então
o silêncio caiu tão abruptamente que Eliana pensou que poderia
estar imaginando coisas.
— Você ouviu isso? — ela sussurrou para Harkan, que estava ao
lado dela com as costas contra a parede.
Harkan ficou tenso: — Ouvi o quê?
— Esse grito. Uma garota.
— Eu não ouvi nenhum grito.
Eliana olhou para a janela escura próxima, ajustou sua nova
máscara de veludo, admirou as linhas magras de seu corpo: —
Bem, todos nós conhecemos sua audição de merda.
— Minha audição não é uma merda — Harkan murmurou.
— Não é tão boa quanto a minha.
— Não podemos ser todos tão maravilhosos quanto o Terror de
Orline.
Eliana suspirou: — Triste, mas verdade.
— Acho que até eu, com minha audição de merda, ouviria um
grito. Talvez você tenha imaginado.
Mas Eliana não imaginou.
Na cidade de Orline, meninas e mulheres estavam desaparecendo
ultimamente – não eram enviadas para um campo de trabalho do
Império nem levadas ao palácio do Senhor de Orline para serem
treinadas nas dobras de donzelas. Essas coisas deixariam para trás
fofocas, trilhas de evidências.
Essas meninas recentes estavam simplesmente sendo levadas.
Em um momento elas estavam lá; no seguinte elas se foram.
No começo, Eliana não se permitiu importar. Ninguém em seu
bairro havia sido preso e ela não achava que o Império começaria a
sequestrar seus próprios queridos cidadãos. A família dela estava
em segurança. Então, não era problema seu.
Mas quanto mais meninas desapareciam, mais histórias ela ouvia
sobre mulheres desaparecidas, mais difícil ficava para ela ignorar a
situação. Tantas irmãs se foram, tantas mães – arrancadas de seus
entes queridos, levadas enquanto dormiam. Não por criminosos ou
rebeldes da Coroa Vermelha.
E depois houve os rumores que persistiram em alguns círculos,
apesar do absurdo, de um buraco no céu do outro lado do mundo.
Possivelmente em Celdaria. Possivelmente nas Sunderlands. Cada
boato contava uma história diferente. Alguns pensavam que tudo
estava conectado – o buraco no céu, as meninas desaparecidas.
Eliana não era uma delas. Buraco no céu? Era mais um medo
descontrolado. As pessoas estavam ficando histéricas o suficiente
para procurar conforto e verdade em lendas arcaicas.
Eliana se recusa a se juntar a eles.
Então ela ouviu novamente: um segundo grito. Mais próximo.
Um sentimento azedo percorreu seu corpo, provocando calafrios
violentos em sua pele. O mundo se inclinou, congelou e se
endireitou. O doce odor das flores brancas da árvore gemma ficou
rançoso.
Ao lado dela, Harkan mudou: — Você está bem?
— Você não sente isso?
— Sente o que? O que está acontecendo com você hoje?
— Eu sinto… — As bordas da visão dela brilhavam como uma
miragem de calor — Eu não sei o que sinto. Como se um adatrox
estivesse por perto, mas pior.
À menção dos soldados do Império, Harkan ficou tenso: — Não
vejo nenhum adatrox. Você tem certeza?
Um terceiro grito – desta vez mais desesperado e rapidamente
sufocado.
— Quem quer que seja — Eliana murmurou, com a voz tensa e
com raiva — Eles estão próximos.
— O que? Quem?
— A próxima refeição de Arabeth — Eliana deu um sorriso a
Harkan e depois desembainhou Arabeth, a adaga longa e de lâmina
irregular que ela mantinha no quadril — Hora de brincar.
Com uma última espiada em seu reflexo, ela disparou para fora
das sombras e entrou nos becos apertados e sujos de Orline.
Harkan a chamou, ela o ignorou. Se ele quisesse detê-la, poderia
tentar, mas teria sido jogado de costas em dois segundos.
Ela sorriu. A última vez que o prendera assim, fora na cama dele.
Sinceramente, ela não conseguia decidir qual contexto preferia.
Mesmo assim, ainda não queria começar uma briga. Não quando
tinha um sequestrador de garotas para caçar.
Ela entrou no Barrens, deslizando entre tendas remendadas e
barracos de madeira quebrados com fogo moribundo saindo deles.
Além dos Barrens, corria o vasto rio Bruviano, suas margens
entupidas com pilhas de musgo branco apodrecido.
A primeira vez dela nessas favelas, aos dez anos, quase se
engasgara com o cheiro. Isso lhe valeu um olhar duro da mãe.
Agora, oito anos depois, ela quase não o percebia.
Examinou a noite: um mendigo afanando os bolsos de um bêbado
inconsciente. Um jovem magro, cabelo desgrenhado e empoeirado,
se atracando com uma mulher contra uma porta pintada.
Outro grito. Mais fraco. Eles estavam indo na direção do rio.
A sensação subindo por sua espinha aumentou. Parecia – ela não
sabia outra maneira de descrever – como se tivesse vontade
própria.
Ela colocou as mãos nos joelhos e fechou os olhos com força.
Manchas coloridas dançavam atrás das pálpebras. Na viga de
suporte de madeira desgastada ao seu lado, alguém rabiscara um
desenho infantil de uma mulher mascarada de preto, saltando no ar
com uma faca em cada mão.
Apesar do mal estar embaçando sua visão, Eliana não pôde
deixar de sorrir.
— El, pelo amor dos santos, o que você está fazendo? — Harkan
se aproximou e pôs a mão no ombro dela — O que tem de errado?
Você está ferida?
— Eu? Ferida? — ela engoliu em seco contra a sensação de mal
estar apertando sua garganta — Querido Harkan — gesticulou para
o desenho de si mesma — Como você pôde pensar uma coisa
dessas do Terror de Orline?
Ela correu para longe e pulou do nível superior das docas para
outro acima, cerca de trinta metros abaixo. O impacto a sacudiu com
apenas uma leve dor. Ela estava de novo em funcionamento em um
instante. Tal queda quebraria as pernas de Harkan; ele teria que
percorrer o caminho mais longo.
Se Remy estivesse lá, ele a diria para não ser tão óbvia.
— As pessoas começaram a notar — ele havia dito outro dia —
Eu ouço conversas na padaria.
Eliana, se esticando no chão do quarto, perguntou inocentemente:
— Que tipo de conversa?
— Quando uma garota cai três andares e depois se põe de pé no
meio da Garden Square, as pessoas tendem a notar. Especialmente
quando ela está usando uma capa.
Eliana sorriu ao pensar em seus rostos abertos e impressionados:
— E se eu quiser que eles notem?
Remy ficou quieto por um longo momento. Então: — Você quer
que o Invictus venha e tire você de mim?
Isso a silenciou. Ela olhou para o rosto pálido e comprimido do
irmãozinho e sentiu o estômago revirar.
— Sinto muito — disse em voz baixa — Eu sou tão idiota.
— Eu não me importo se você é uma idiota — ele respondeu —
Apenas não seja uma exibida.
Ele estava certo, ela sabia. O problema era que ela gostava de se
exibir. Se ela era uma aberração com um corpo milagroso que
nenhuma queda poderia matar, então poderia muito bem se divertir
com isso.
Se ela estava ocupada se divertindo, não tinha tempo para se
perguntar por que seu corpo podia fazer o que fazia.
E o que aquilo significava.
Correndo pelas docas, ela seguiu a trilha de erro no ar como se
estivesse rastreando o cheiro de presas. O nível mais baixo das
docas estava silencioso, o ar do verão parado e úmido. Ela correu
uma esquina e depois outra – e parou. O cheiro, a sensação,
agitaram a beira do píer deteriorado. Ela forçou o caminho a seguir,
apesar de seu estômago revirar e cada pingo estridente de seu
sangue gritar para que ficasse longe.
Duas figuras – mascaradas e vestindo roupas de viagem escuras
– aguardavam em um barco longo e elegante à beira do cais. Suas
estruturas altas e bruscas sugeriam que eram homens. Uma terceira
figura carregava uma menina pequena com pele marrom-dourada
como a de Harkan. A garota lutou, uma mordaça enfiada na boca,
pulsos e tornozelos amarrados.
Coroa vermelha? Improvável. O que os rebeldes iriam querer com
crianças roubadas? E se a Coroa Vermelha estivesse envolvida nos
sequestros, Eliana já teria ouvido sussurros do subterrâneo a essa
altura.
Eles poderiam ser caçadores de recompensas como ela mesma,
mas por que o Império Imortal pagaria pelo que poderia
simplesmente pegar e levar? E trabalhando em grupo? Muito
improvável.
Uma das figuras do barco estendeu os braços para a garota.
Corpos enchiam o chão do barco – outras mulheres, outras
meninas, amarradas e inconscientes.
A raiva de Eliana se acendeu.
Ela puxou o Whistler longo e fino da bota esquerda.
— Indo a algum lugar, senhores? — ela chamou e correu para
eles.
A figura no cais se virou no exato momento em que Eliana o
alcançou. Ela girou, o acertou com a bota embaixo do queixo. Ele
caiu sufocando.
Uma das figuras do barco pulou no cais. Ela o golpeou na
garganta com Arabeth, o jogou na água junto de seu camarada.
Virou-se, triunfante, acenou para o sequestrador ainda esperando
no barco.
— Vamos, amor — cantou — Você não tem medo de mim, tem?
Uma vez, ela se encolheu ao matar. Seu primeiro foi há seis anos,
quando tinha 12. Rozen Ferracora, a mãe de Eliana, a levou com
ela para trabalhar – o último que Rozen havia feito antes de sua
lesão – e alguém as denunciou. Os rebeldes sabiam que estavam
chegando. Foi uma emboscada.
Rozen havia derrubado dois deles, e Eliana havia se escondido
nas sombras. Essa sempre foi a instrução de sua mãe: vou impedir
que você mate o máximo que puder, menina. Por enquanto, assista.
Aprenda. Pratique. O que meu pai me ensinou, eu ensinarei a você.
Então um dos rebeldes prendeu Rozen no chão, e Eliana não
conheceu nada além de raiva.
Ela voou na rebelde, enfiou sua pequena lâmina profundamente
nas costas da mulher. Então parou, olhando, enquanto a mulher
perdia a vida em uma poça de sangue.
Rozen pegou a mão de Eliana e a afastou. De volta para casa na
cozinha, seu irmão, Remy – na época com apenas cinco anos –
olhou com os olhos arregalados quando o choque de Eliana deu
lugar ao pânico. Mãos vermelhas de sangue, ela soluçara rouca nos
braços de sua mãe.
Felizmente, matar se tornou muito mais fácil.
Duas figuras mascaradas dispararam para fora das sombras, com
pequenos pacotes nos braços. Mais garotas? Jogaram os pacotes
para o último camarada restante no barco e depois se viraram para
encará-la. Ela deu um golpe, depois outro, depois deu um duro no
estômago e um forte gancho na mandíbula.
Ela tropeçou, se sacudiu. A dor desapareceu tão rapidamente
quanto havia chegado. Ela girou e esfaqueou outro dos
brutamontes. Ele caiu na água imunda.
Então uma onda de náusea bateu, como um chute no estômago.
Ela caiu de joelhos, ofegando por ar. Um peso caiu sobre seus
ombros, embaçou sua visão, pressionou-a com força contra a doca
escorregadia do rio.
Cinco segundos. Dez. Então a pressão desapareceu. O ar não
parecia mais desalinhado ao redor de seu corpo; sua pele não se
arrepiava mais. Ela levantou a cabeça, forçou-se a abrir os olhos. O
barco estava deslizando para longe.
Selvagem e com raiva, a cabeça ainda girando, Eliana ficou de pé.
Um braço forte segurou seu torço, puxando-a para trás no momento
em que ela se preparava para mergulhar.
— Saia de cima de mim — disse com firmeza — Ou as coisas vão
ficar desagradáveis — ela deu uma cotovelada nas costelas de
Harkan.
Ele praguejou, mas não soltou: — El, você perdeu a cabeça? Este
não é o trabalho.
— Eles as levaram — pisou em seu peito do pé, se desvencilhou
de seu aperto, correu de volta para a beira do cais.
Ele a seguiu e a segurou pelo braço, girando-a para encará-lo: —
Não importa. Este não é o trabalho.
O sorriso dela emergiu duro como vidro: — Quando é que me
proibir já funcionou a seu favor? Oh espere — se aproximou,
suavizando o sorriso — Eu posso pensar em uma ou duas vezes…
— Pare com isso, El. O que você sempre me disse? — seus olhos
escuros encontraram os dela, presos — Se não é o trabalho, não é
problema nosso.
O sorriso desapareceu. Ela afastou o braço dele: — Eles
continuam nos levando. Por quê? E quem são eles? Por que apenas
as meninas? E o que foi isso… esse sentimento? Nunca senti nada
assim antes.
Ele parecia duvidoso: — Talvez você precise dormir.
Ela hesitou, o desespero entrando lentamente: — Você não sentiu
nada?
— Desculpe, não.
Ela olhou para ele, ignorando a sensação instável em seu
intestino: — Bem, mesmo assim, aquela garota não era rebelde. Ela
era criança. Por que eles se incomodariam em levá-la?
— Seja qual for o motivo, não é problema nosso — repetiu
Harkan. Ele respirou fundo, devagar, talvez se convencendo — Não
essa noite. Temos trabalho a fazer.
Eliana ficou olhando o rio por um longo tempo. Imaginou esculpir
um rosto em uma laje de pedra sem falhas – sem suor, sem
cicatrizes. Apenas um sorriso duro que surgiria quando chamado e
olhos como facas à noite. Quando terminou, sua raiva havia
desaparecido e o rosto insensível era o dela.
Virou-se para Harkan, deu um sorriso atrevido que ele
desprezava: — Vamos, então? Esses bastardos aumentaram meu
apetite.

•••

O contrabandista rebelde da Coroa Vermelha, conhecido como


Quill, roubava pessoas e informações de Orline. Ele também era
bom nisso – um dos melhores.
Eliana e Harkan levaram semanas para localizá-lo.
Agora, eles estavam agachados em um telhado com vista para um
pequeno pátio no Bairro Antigo, onde Quill deveria encontrar um
grupo de simpatizantes rebeldes tentando fugir da cidade. O pátio
cheirava docemente das rosas que revestiam as paredes.
Ao lado dela, Harkan mudou, alerta.
Eliana viu formas escuras entrarem no pátio e se amontoarem no
canto abaixo de uma roseira escalada. Esperando.
Pouco tempo depois, uma figura encapuzada entrou pelo canto
oposto e se aproximou deles. Eliana enrolou os dedos em volta da
adaga, com o sangue correndo.
As nuvens mudaram, a luz da lua iluminava o quintal.
O coração de Eliana gaguejou e afundou.
Quill. Tinha que ser ele. Havia uma leve mancada em sua marcha,
de uma ferida sofrida durante a invasão.
E lá, esperando por ele, havia uma mulher e três filhos pequenos.
Harkan xingou baixinho. Ele apontou para as crianças, fazendo
sinal com a mão. Ele e Eliana criaram um código silencioso anos
atrás, quando ela começou a caçar sozinha depois da lesão de
Rozen. Ele insistiu para que não fosse sozinha, e assim aprendeu a
caçar, rastrear, matar, atacar seu próprio povo e servir o Império –
tudo por ela.
Não, era a mensagem dele. Abortar.
Ela sabia o que ele queria dizer. As crianças não faziam parte
desse trabalho. Quill era uma coisa, mas a ideia de entregar
crianças inocentes para o Lorde de Orline... Não servia para Harkan.
Honestamente, também não servia para Eliana.
Mas três rebeldes esperavam na entrada sombreada do pátio:
escolta e protetores de Quill. Não havia tempo e era um risco muito
grande poupar a família. Ela e Harkan tiveram que se mover
rapidamente.
Ela balançou a cabeça. Pegue eles, ela assinou de volta.
Harkan respirou alto demais, ela ouviu a tristeza furiosa.
Abaixo, a cabeça de Quill virou na direção deles.
Eliana pulou do telhado, pousou levemente e se levantou. Pensou,
brevemente, como era uma pena que ela não pudesse se sentar e
se ver lutar. Certamente parecia tão bom quanto sentir.
Quill desembanhou uma adaga; a mãe caiu de joelhos,
implorando piedade. Quill empurrou o capuz para trás. De meia-
idade, rosto corado e inteligente aos olhos, ele tinha uma
serenidade com ele que dizia: Eu não temo a morte, mas a
rendição.
Quatro segundos depois, Eliana havia chutado sua perna ruim por
baixo dele, tomado sua faca, atingido a nuca com o punho. Ele não
se levantou novamente.
Ela ouviu Harkan pousar atrás dela, seguido por passos rápidos
enquanto os outros rebeldes corriam para o pátio. Juntos, ela e
Harkan os derrubaram em instantes. Ela girou e atirou a adaga.
Bateu na porta de madeira do pátio, prendendo o filho mais velho no
lugar pela capa.
Os outros congelaram e começaram a chorar.
A mãe deles estava com os olhos vidrados no chão em uma cama
de pétalas podres. Uma das adagas da rebelde se projetou de seu
coração.
Eliana puxou-o livre – outra lâmina para seu arsenal. Ela se
perguntou por que os rebeldes haviam matado a mulher. Para se
proteger?
Ou, para conceder-lhe a misericórdia que eles sabiam que ela não
receberia de outra forma.
— Pegue o guarda — ordenou Eliana, procurando na mãe objetos
de valor. Ela não encontrou nada, exceto um pequeno ídolo do
Imperador, feito de barro e gravetos, sem dúvida mantido com ela
no caso de uma patrulha adatrox detê-la para uma busca. Os olhos
pretos e redondos do ídolo brilhavam ao luar. Ela jogou de lado. Os
soluços das crianças ficaram mais altos — Eu vou ficar com eles.
Harkan fez uma pausa, aquele olhar triste e cansado em seu rosto
que a fez estremecer porque ela sabia que ele esperava que isso a
mudasse, um dia desses. Faça-a melhorar. Faça-a boa de novo.
Ela levantou uma sobrancelha. Desculpe, Harkan. Boas meninas
não vivem por muito tempo.
Então ele foi embora.
O filho mais velho observou Eliana, abraçando seus irmãos.
Algum impulso que se agitava profundamente dentro dela exigia que
ela os deixasse ir, apenas desta vez. Não faria mal a nada. Eles
eram crianças, eles não eram nada.
Mas as crianças não conseguiam ficar caladas. E se alguém
descobrisse que o Terror de Orline, a caçadora de animais de
estimação de Lord Arkelion, deixara os traidores correrem
livremente…
— Tínhamos medo de que os homens maus a levassem também
— disse o garoto simplesmente — É por isso que queríamos ir
embora.
Os homens maus. Um pequeno calafrio pulou no pescoço de
Eliana. Os homens mascarados das docas?
Mas o garoto não disse mais do que isso. Ele nem tentou correr.
Garoto esperto, Eliana pensou.
Ele sabia que não iria longe.
•••

Na tarde seguinte, Eliana estava em uma varanda com vista para


a forca.
Lorde Arkelion descansava no extremo leste da praça, o encosto
alto do trono talhado para se assemelhar a asas.
Eliana, observando-o, cruzou os braços sobre o peito. Mudou seu
peso para uma perna. Tentou ignorar a figura com o uniforme
Invictus vermelho e preto ao lado do trono de Sua Senhoria.
Dessa altura, Eliana não sabia dizer quem era, mas não
importava. A mera visão daquela silhueta familiar foi suficiente para
revirar o estômago.
Invictus: uma companhia de assassinos que viajava pelo mundo e
cumpria as ordens do imperador. Os trabalhos mais perigosos, os
trabalhos mais sangrentos.
Era apenas uma questão de tempo antes que eles a recrutassem.
Ela imaginava isso diariamente, apenas para ver se a ideia iria parar
de aterrorizá-la.
Até agora, não tinha.
Provavelmente Rahzavel seria aquele que a procuraria. Eliana o
viu em várias festas de Sua Senhoria ao longo dos anos. Toda vez
ele pedia uma dança com ela. Toda vez, seu olhar acinzentado a
desafiava a recusá-lo.
Ah, como ela desejou que pudesse.
— Uma caçadora de recompensas invencível — ele cantarolou no
ouvido dela durante a última dança juntos no verão anterior — Que
curioso — ele enfiou os dedos frios nos dela — Você será uma boa
adição à nossa família algum dia.
Quando Rahzavel a procurar, ele provavelmente nem a deixará se
despedir de seus entes queridos antes de escoltá-la para o além
mar de Celdaria, o coração do Império Imortal – e para o próprio
imperador.
Bem-vinda, Eliana Ferracora, o imperador dizia em seus sonhos
mais terríveis, o sorriso dele não alcançando os olhos negros. Eu
ouvi muito sobre você.
E esse seria o fim da vida como ela conhecia agora. Ela se
tornaria um dos elites – um soldado de Invictus.
Ela se tornaria, como Rahzavel, uma nova espécie de monstro.
Hoje, no entanto, não era o dia.
Então Eliana observou, batendo os dedos contra o braço,
desejando que Sua Senhoria acabasse logo com isso. Ela estava
com fome e cansada, e Harkan estava fora de si de vergonha. E
quanto mais eles ficavam lá, mais desesperadamente ele esperava
algo dela que ela não podia dar a ele:
Arrependimento.
O guarda do Império marchou com Quill e o filho mais velho até a
forca. Foi construído nas ruínas do templo de São Marzana, o
reverenciado firebrand do Velho Mundo – o mundo antes da morte
da Rainha de Sangue Rielle. Antes da ascensão do Império.
Os soldados do Império demoliram quase totalmente o templo
quando tomaram Orline. Uma vez, o templo havia sido uma grande
variedade de salões, salas de aula e santuários abobadados,
abertos à brisa do rio, e pátios envoltos em trepadeiras florescentes.
Agora, restavam apenas alguns pilares em ruínas. A estátua de São
Marzana, de guarda na entrada do templo, havia sido destruída.
Uma semelhante do imperador agora estava lá – suas feições
mascaradas, seu corpo encoberto. Bandeiras douradas, preta e
vermelhas ladeavam a cabeça dele.
A praça embaixo dele estava lotada, mas silenciosa. Os cidadãos
de Orline estavam acostumados às execuções, mas Quill era
popular em certos círculos, e nem mesmo o senhorio dele abatia
crianças.
Quando Eliana e Harkan lhe apresentaram as crianças
capturadas, lorde Arkelion sorriu gentilmente, inspecionou os dentes
dos mais novos e os mandou embora com uma de suas concubinas.
As crianças procuraram pelo irmão, chorando todo o caminho até a
sala do trono até que alguém, abençoadamente, fechou as portas.
Mas o filho mais velho não havia chorado. E ele não estava
chorando agora, nem mesmo enquanto observava o carrasco
levantar a espada.
— O Império vai queimar!— gritou Quill, os cabelos grudados no
couro cabeludo com suor.
A espada caiu, a cabeça de Quill rolou. Uma onda de som
inquietante varreu a multidão.
Só então, com o rosto coberto de sangue fresco, o menino
começou a chorar.
— El — Harkan engasgou. Ele pegou a mão de Eliana na mão
suada e esfregou o polegar ao longo da palma da mão dela. Sua
voz saiu desgastada. Ele não dormiu.
Ela dormiu como se estivesse morta. Dormir era importante. Não
se podia caçar sem uma boa noite de sono.
— Não precisamos assistir — ela disse o mais pacientemente
possível — Nós podemos ir.
Ele soltou a mão dela: — Você pode ir se quiser. Eu tenho que
assistir.
Lá estava novamente – o mesmo tom exausto, como um cão de
olhos tristes, resignado à sua próxima surra.
Para não gritar com ele, Eliana brincou com o pingente de ouro
amassado sob sua capa. Ela usava uma corrente em volta do
pescoço todos os dias e conhecia as linhas riscadas e desgastadas
de cor: o arco do pescoço do cavalo. Os intrincados detalhes de
suas asas. A figura cavalgando sobre ela, espada levantada, rosto
enegrecido pelo tempo: Audric, o Portador da Luz. Um dos reis
mortos do Velho Mundo que seu irmão era obcecado por razões que
Eliana não conseguia entender. Seus pais disseram que haviam
encontrado a bugiganga na rua quando Eliana ainda era bebê e lhe
deram para acalmar o choro em uma noite sem dormir. Ela o usava
desde que conseguia se lembrar, embora não por amor ao Portador
da Luz. Ela não se importava com reis mortos.
Não, ela usava porque, em alguns dias, sentia que o peso familiar
do colar na garganta era a única coisa que a impedia de se
despedaçar.
— Eu vou ficar — ela disse a Harkan levemente. Muito
levemente? Provavelmente — Eu tenho tempo.
Ele nem a repreendeu. O carrasco levantou a espada. No último
momento, a criança levantou a mão em uma saudação – um punho
no coração e depois ergueu o ar. O sinal de lealdade à rebelião, à
Coroa Vermelha. Seu braço tremia, mas ele encarava o sol com
olhos sem piscar.
Ele começou a recitar a oração da Rainha do Sol: — Que a luz da
rainha me guie…
A espada caiu.
As lágrimas de Eliana a surpreenderam. Ela piscou para longe
antes que eles pudessem cair. Harkan cobriu a boca com uma mão.
— Deus nos ajude — ele sussurrou — El, o que estamos
fazendo?
Ela agarrou a mão dele e o fez encará-la.
— Sobrevivendo — ela disse a ele — E isso não é nada para se
envergonhar — Ela engoliu em seco e engoliu novamente. Sua
mandíbula doía. Fingir tédio era um trabalho árduo, mas a guerra
também. E se ela desmoronasse, Harkan desmoronaria ainda mais
rápido.
O Lorde de Orline levantou uma mão.
Os cidadãos que lotavam a praça abaixo entoavam as palavras
que circulavam constantemente pela mente de Eliana como
pássaros carniceiros:
— Glória ao Império. Glória ao Império. Glória ao Império.
3
Rielle
“Após a queda das Sunderlands, os Sete
retornaram ao continente e ainda não
puderam descansar. Seu povo estava em
guerra há décadas e almejavam um lugar
seguro para chamar de lar. Então, os santos
começaram na terra natal de Katell e usaram
seu poder para esculpir um paraíso nas
montanhas alpinas. Abrigado por altos picos,
verdejantes com florestas e terras agrícolas,
este paraíso foi nomeado Âme de la Terre e se
tornou a capital da Celdaria. Eles construíram
a cidade da rainha no sopé da montanha mais
alta e a cercaram com um lago de cristal que
parecia ser esculpido no céu mais claro.”
—Uma História Resumida da Segunda Era, Volume I: As
Consequências das Guerras Angélicais de Daniel Riveret e
Jeannette d'Archambeau, da Primeira Guilda de Eruditos.
A linha de partida estava um caos.
Alguns cavaleiros competiam em nome dos templos da Igreja. Os
do Pyre, o templo de Tal, usavam escarlate e ouro. Preto e azul
escuro para a Casa da Noite, o templo dos shadowcasters e da irmã
de Tal, Sloane. Ocre e verde-claro para o Holdfast, o templo dos
earthshakers.
As grandes casas Celdarianas também enviaram representantes.
Rielle passou por cavaleiros de lilás e sálvia representando a Casa
Riveret, marrom russet e prata para a Casa Sauvillier. Os cavaleiros
haviam viajado dos distantes reinos de Ventera e Astavar, que se
estendiam pelo Grande Oceano.
Muitos cavaleiros, como Rielle, foram contratados por
comerciantes ansiosos pela bolsa vencedora. Todavia, nenhum
deles era tão rico quanto seu patrocinador, Odo Laroche.
E nenhum dos outros competidores teve o privilégio de treinar
com os melhores cavaleiros do rei, desde que tinham idade
suficiente para sentar em uma sela.
Sorrindo, Rielle guiou sua égua sob o labirinto de camarotes de
espectadores. Seus ouvidos ecoaram pelo barulho – jogadores
gritando suas apostas, crianças correndo pela multidão e gritando
de alegria. – A fumaça das barracas de vendedores do mercado que
vendiam sanduíches de carne de porco assada e espetos de aves
enegrecidas ardeu seus olhos.
Ela finalmente chegou à tenda reservada aos cavaleiros de Odo.
O vestido que ela usava era o seu favorito – verde floresta para
combinar com seus olhos, videiras iridescentes costuradas na
bainha, um decote que mostrava suas clavículas – mas o sol do
meio-dia a fazia sentir vontade de rasgá-lo. Deixando o cavalo com
as espadas guardando a porta, ela entrou para trocar de roupa.
E congelou.
Audric já estava lá, vestindo apenas calças e botas de montaria. A
fina túnica esmeralda e o casaco bordado pendiam ordenadamente
das costas de uma cadeira. Em suas mãos ele segurava uma
camisa de linho simples.
Ele sorriu para ela: — Chegou na hora — disse ele e jogou uma
camisa para ela.
Ela pegou, por pouco: — A multidão é maior do que eu esperava
— disse ela, embora sua garganta tivesse ficado repentinamente
seca e a surpreendeu que ela conseguiu entender uma palavra.
Fazia muito tempo desde que ela havia visto o príncipe de seu
reino tão despido.
Crescer juntos, isso não significaria nada. Ela passara horas
brincando com ele e Ludivine nos jardins atrás do castelo. Nadaram
juntos no lago que cercava a cidade, adoraram juntos no Baths.
Mas isso foi antes.
Antes do noivado de Audric e Ludivine, um acordo que unia ainda
mais as casas Courverie e Sauvillier. Antes que Audric se
transformasse de seu amigo tímido, desajeitado e estranho em
príncipe Audric, o Portador da Luz, o mais poderoso sunspinner em
séculos.
Antes de Rielle perceber que amava Audric. E que ele nunca seria
dela.
Ela absorveu a visão dele – os músculos magros de seus braços,
seu peito largo, sua cintura estreita. A pele dele não era tão escura
quanto a de seu pai, nem tão pálida quanto a da mãe, a rainha.
Cachos castanhos escuros, úmidos pelo calor, emolduravam
frouxamente o rosto. A luz solar manchada caiu através da rede da
tenda e pintou sua pele radiante.
Quando ele olhou para ela, ela corou com o calor do seu olhar: —
Lu está bem, certo? — ele perguntou.
— E aproveitando a atenção, tenho certeza. E a sua mãe?
— Eu disse a ela que cuidaria de Lu e que ela deveria relaxar e
aproveitar a corrida — ele balançou a cabeça com tristeza — Ela
acha que eu sou um filho obediente…
— E, em vez disso, você está escapando para arriscar a vida e os
membros — Rielle lançou-lhe um sorriso malicioso — Sua mentira
foi uma gentileza. Ela ficaria nervosa se soubesse onde você
realmente está.
Audric riu: — Minha mãe pode lidar com o medo de vez em
quando. Caso contrário, ela fica entediada e, quando fica entediada,
começa a se intrometer e, quando se intromete, começa a
incomodar Lu e eu.
Sobre quando vamos nos casar. As palavras não ditas pairaram
no ar, e Rielle não podia mais olhar para ele.
Ela passou por trás da cortina que Odo havia providenciado,
desabotoou o vestido e saiu dele. Usando apenas sua roupa de
baixo, ela pegou as calças que Audric jogou para ela.
— Se eu não conhecesse você — disse ela, mantendo a voz leve
— Eu diria que você está um pouco rebelde. E eu que pensei que
você não fosse do tipo que quebra regras.
Ele riu de novo: — Você faz isso comigo.
Esta foi, ela começou a perceber, uma péssima idéia. Ela deveria
ter pedido a Odo uma tenda separada. Despir-se a um metro e meio
de Audric era o tipo de loucura deliciosa para a qual ela nunca
poderia ter se preparado.
Deus a ajude, ela podia ouvir o tecido de sua túnica deslizando
contra seu torso. Ela quase podia sentir, como se ele estivesse ao
lado dela, tirando o vestido por cima da cabeça, libertando-a da
última barreira que restava entre eles.
Enquanto tentava se mexer em sua própria túnica preta,
amaldiçoando a si mesma e sua imaginação inútil, ela enfiou o
braço na pesada gola bordada.
— Rielle? — veio a voz de Audric — Depressa, eles começaram a
anunciar os cavaleiros.
Droga, droga, droga. Rielle torceu e se contorceu, puxando sua
blusa.
Do outro lado da tela, a aba da barraca se abriu. — A corrida está
começando e parece que meus dois corredores não estão em lugar
nenhum — veio a voz de barítono suave de Odo, com apenas um
toque de irritação — Preciso lembrá-los de que estou apostando um
pouco de moeda em ambos, além da minha própria cabeça, caso
algum de vocês seja estúpido o suficiente para ser descoberto? Ou
pior, quebrar o pescoço?
— Estaremos lá — Rielle falou. — Eu já lhe dei motivos para
duvidar de mim?
— Em várias ocasiões, na verdade — respondeu Odo. Houve uma
pausa — Devo enumerá-las para você?
— Um momento, por favor, Odo — disse Audric, riso em sua voz.
A aba da barraca se fechou.
— Posso entrar ai? — Audric perguntou.
— Sim, mas… oh, espere — com um puxão violento, Rielle
conseguiu se libertar. Ela puxou a túnica, mexendo nas fitas
douradas no decote — Sim, tudo bem, estou decente.
Audric rodeou a tela, sua jaqueta de couro e boné na mão: —
Será que estamos prestes a entrar nesta corrida com risco de vida,
e você é a atrapalhada?
— Não importa que você tenha tentado evitar isso uma dúzia de
vezes — Rielle arrancou o boné da mão dele — Não importa que
você não tenha quebrado uma única regra em sua vida até agora.
— Mas esse é um desafio inaugural e tanto, você não concorda?
— ele se aproximou para ajudá-la a prender o fecho da túnica entre
os ombros. Os dedos dele roçaram a nuca dela — Quero dizer, eu
poderia ter começado minha série de rebeldia com algo simples.
Chegar atrasado à corte da manhã, pular minhas orações, dormir
com uma criada…
Ela começou a rir. Parecia mais estridente do que ela gostaria: —
Você? Levar uma criada para a cama? Você não sabe nada sobre
cortejar uma mulher.
— É o que você acha.
— Eu não acredito nisso.
— Eu sou um caso perdido para você?
— Para começar, você deve deixar seus livros de lado de vez em
quando.
— Lady Rielle — ele diz com a voz provocante — Você está se
oferecendo para me educar na arte de seduzir uma mulher?
Um silêncio terrível caiu. Rielle sentiu Audric tenso atrás dela. Um
rubor subiu por suas bochechas. Por que ela se deixou levar por
essa, de todas as conversas? Ela não sabia nada sobre namorar
alguém.
O pai dela se certificou disso.
Uma vez, aos treze anos, Rielle chegou em casa depois de
assistir Audric, de quinze anos, praticar luta de espadas no quintal
do quartel, se sentindo tensa e pronta para sair de sua própria pele.
O pai dela e seus tenentes haviam conduzido Audric através de
muitos exercícios naquele dia. Magister Guillory estava sentado
perto, oferecendo conselhos sempre que quisesse. Como Grã-
Magister da Casa da Luz, a velha feroz supervisionou os estudos de
sunspinner de Audric durante anos. Ela e o pai de Rielle ajudaram
Audric a concentrar o chamado, às vezes esmagador, de seu poder,
no trabalho físico e confiável de lutar com uma espada.
Rielle assistiu a muitos treinos de Audric, mas esse em particular
tinha sido diferente. Ela não foi capaz de tirá-lo da cabeça depois –
como ele se movia à luz da tarde, todos os movimentos firmes e
seguros, a testa franzida em concentração enquanto sua espada
espalhava raios de sol sobre a pele dele. Ela trazia para o pai a
bebida habitual dele depois do jantar naquela noite, e ficou tão
abalada que deixou cair a xícara.
O pai dela levantou uma sobrancelha: — Você não está sendo
você mesma esta noite.
Ela não disse nada, sem saber como responder.
— Eu notei você no quintal hoje — ele observou suavemente —
Você tem aparecido com frequência ultimamente.
Rielle se agachou para limpar a bagunça, seus cabelos
escondendo seu rosto quente.
Então seu pai a colocou de pé, um aperto forte o suficiente para
machucar seu pulso.
— Eu sei o que você está pensando — ele disse a ela — E eu
proíbo você. Você pode perder o controle um dia e machucá-lo. Ele
tem um dom raro, você entende? O maior poder que alguém tão
jovem já teve. É importante que o reino veja que ele é o mestre, não
o contrário. A última coisa que Audric precisa é de alguém como
você pairando sobre.
Os olhos de Rielle se encheram de lágrimas: — Alguém como eu?
O pai dela a libertou, impassível: — Uma assassina.
Lorde Comandante Dardenne não permitiu que a filha participasse
dos treinos de Audric depois disso.
Agora, aos dezoito anos, Rielle não tinha beijado uma alma, nem
chegado perto disso. Certamente ela tinha imaginado isso, e com
frequência. Ela sabia que era linda – se não no sentido
convencional, então da maneira que pelo menos fazia as pessoas
olharem, e olharem de verdade. Impressionante era a palavra que
Ludivine costumava usar. Ou arrebatadora.
O pai dela apenas comentou uma vez a aparência dela: — Você
tem o rosto de uma mentirosa. Eu posso ver todas as maquinações
do mundo em seus olhos.
No entanto, Rielle cultivou essa beleza da maneira que pôde,
vestindo as roupas mais diferentes que conseguia – ousada e com
vergonha de revelar, criada com tecidos exóticos que Ludivine
secretamente encomendou para ela e que a fizeram se destacar na
corte como um pavão entre pombos. Toda vez que ousava se
mostrar com uma roupa assim, sentia olhares famintos e sentia sua
própria fome secreta subir dentro de sua barriga, quente e ansiosa.
Mas, mesmo assim, as palavras de seu pai pairavam sobre seu
pescoço como um jugo de espinhos, e ela reprimia todo instinto
voraz que possuía.
Além disso, ela não queria ninguém, não o suficiente para correr o
risco.
Então, ela se manteve distante, suas frustrações se manifestando
em sonhos escorregadios e frenéticos, as vezes de Audric, as vezes
de Ludivine ou Tal – mas principalmente de Audric. Nessas noites,
quando Audric dos sonhos a puxava para a cama dele, ela acordava
e encontrava os espelhos em seu quarto rachados, velas já
apagadas recém acesas e cintilantes.
O pai dela não estava errado. Havia um perigo para ela, uma
imprevisibilidade. Ela não levaria isso para a cama de outra pessoa.
Especialmente alguém que havia sido prometido a sua amiga.
Rielle cometeu o erro de olhar para Audric por cima do ombro, e
seu olhar sombrio se fixou no dela por um breve momento antes de
ambos desviarem o olhar.
— Nós deveríamos ir — disse ela. Ela pegou a jaqueta das mãos
dele, enrolou os cabelos no boné e saiu para montar no cavalo. Ela
envolveu o véu do boné em volta do pescoço e do rosto, enfiou a
ponta do colar no colarinho. Quando Audric se juntou a ela, vestindo
seus próprios revestimentos de proteção, eles não falaram, e ela
ficou feliz.
Esta corrida não seria gentil com ela se ela permanecesse
distraída.

•••

Juntos, eles seguiram os outros cavaleiros até a linha de partida.


Audric montou um dos cavalos de Odo, uma égua castanha
celdária das terras fluviais do sul. A montaria de Rielle, outra das
cavalariças de Odo, era menor: uma égua Kirvayan cinza chamada
Maliya, que tinha o estandarte da calda alto.
Rielle ocupou seu lugar na linha de partida, cinco lugares à
esquerda e dois atrás de Audric. O arauto, bem no alto, anunciou
cada corredor através de um pequeno amplificador redondo
projetado no Forge.
Quando Rielle ouviu seu próprio nome falso ser anunciado, ela
acenou para a multidão, com aplausos generosos. Embora a
identidade assumida dela e de Audric não significasse nada para
essas pessoas, o nome de seu patrocinador – o rico comerciante
Odo Laroche, dono de metade dos negócios da cidade – carregava
um peso tremendo.
No alto, o Rei Bastien tomou seu lugar diante do amplificador para
iniciar as notas de abertura.
— Para celebrar mais um ano de paz em nosso reino — a voz do
rei ecoou — E na esperança de uma colheita abundante, de um
festival alegre e de agradecer ao Deus que abençoou Celdaria com
tais presentes, dou as boas-vindas a todos vocês para o Boon
Chase deste ano!
O Rei Bastien voltou ao seu lugar e os bateristas começaram. As
filas de corredores mudaram; o ar estalou contra a pele de Rielle.
Os arautos da corrida tocaram suas cornetas uma vez. Duas
vezes.
Rielle enrolou os dedos enluvados em volta das rédeas de Maliya,
cada centímetro de seu corpo vibrando.
Os últimos cavaleiros tomaram seus lugares – doze árbitros
mascarados nas cores reais de ameixa, esmeralda e ouro. Eles
correriam o percurso e procuravam por jogo sujo.
As batidas aceleraram, combinando com o coração pulsante de
Rielle.
Os arautos tocaram a corneta pela terceira vez.
Com um rugido ensurdecedor da multidão, os corredores
mergulharam adiante na planície, a vasta extensão de pastagens
fora dos portões da cidade.
O Chase havia começado.

•••

Os primeiros minutos foram um frenesi ofuscante de sons e cores.


Os cascos de cinco dúzias de cavalos levantaram nuvens de poeira.
À direita de Rielle, um homem com uma proteção de metal sobre
os dentes puxou uma luva cravada e derrubou outro corredor de sua
montaria com o impulso de um braço corpulento. Os outros
cavaleiros o pisotearam, cortando seus gritos, e seu cavalo saiu do
curso com as rédeas arrastando.
Rielle levou Maliya para frente, olhando em volta
descontroladamente. Um árbitro deveria ter desqualificado o homem
por isso. Mas na tempestade de poeira, ela não conseguiu distinguir
as cores dos árbitros. Era como se eles tivessem desaparecido.
Ela atravessou a Planície, guiando Maliya através de uma
multidão de cotovelos e chicotes voadores, cavaleiros gritando com
as montarias para se mover e gritando ameaças em uma dúzia de
idiomas. Quando alcançou o sopé do monte Taléa, diminuiu o passo
e dirigiu Maliya para a subida mais íngreme da floresta. Ela viu um
flash de cor familiar através das árvores à frente. Preto e dourado.
Cores de Odo.
Audric.
Ela se abaixou contra o pescoço de Maliya, incitou a égua a subir
o sopé e saiu das árvores para a primeira passagem da montanha.
Uma larga faixa de grama tremia ao vento diante dela. Paredes de
pedra se elevavam dos dois lados.
O coração de Rielle se levantou. Ela murmurou as palavras
kirvayanas que Odo havia lhe dito que a égua responderia: — Monte
o vento, falcão do meu sangue, asas do meu coração!
Maliya disparou para a frente.
O vento passou por elas, arrancando lágrimas dos olhos de Rielle.
Ela alcançou Audric e cantou com triunfo.
Ele olhou na direção dela, seu cachecol se soltando. Ele sorriu
para ela, e seu coração pulou. Apesar do perigo da corrida, ela não
pôde deixar de desejar que eles ficassem aqui – longe da corte,
longe de todos os outros – para sempre.
Segundos depois, Audric se afastou, seguindo o caminho mais
curto ao redor da montanha. Sua égua celdariana foi criada por
trilhas íngremes e rochosas.
Mas Maliya foi feita para acelerar. Rielle a impulsionou pelo
desfiladeiro e Maliya obedeceu. O vento uivava nos ouvidos de
Rielle. Ela mal podia ouvir a própria respiração. As formas dos
outros cavaleiros, espalhadas pela passagem, eram borrões de cor.
Eles a estavam alcançando.
Ela virou Maliya para a direita, em uma trilha estreita do penhasco.
Não era sua primeira escolha, mas daria a ela um tempo maior. Ela
disse a si mesma para não olhar e, no entanto, não conseguiu
evitar, espiando por cima da borda do abismo abaixo. Ela começou
com calafrios; sua visão se inclinou. Um deslocamento errado de
seu peso, um passo em falso da égua e ela voaria para a morte.
Atrás dela, veio um barulho de cascos e pedras. Quando a trilha
do penhasco se alargou, descendo os contrafortes arborizados, ela
olhou para trás.
Um cavaleiro passou por ela e depois mais três, tão perto que ela
sentiu o cheiro do suor deles. Atrás deles, um corredor bateu com o
cavalo no lado do outro, derrubando o cavalo e o cavaleiro do
penhasco pelo qual Rielle acabara de passar. O cavalo caído soltou
um grito terrível e depois ficou em silêncio.
Rielle se virou, o coração batendo forte, os olhos ardendo da
poeira que enchia o ar. Ela saiu da floresta perto da trilha para o
segundo passo que a levaria ao redor do Monte Taléa e de volta
para a cidade.
Lá, ela finalmente encontrou árbitros: sete deles, a certa distância
à sua frente. Eles tiraram as máscaras, deixando seus cabelos loiros
e trançados voarem livres. Eles estavam soltando gritos estridentes
de guerra que Rielle reconheceu imediatamente de uma das
intermináveis palestras de Audric sobre Borsvall.
Eles estavam se aproximando do corredor mais próximo deles –
um homem de preto e dourado, seu boné e cachecol caídos, o vento
balançando seus cachos escuros.
O mundo foi destilado para esse momento único e terrível. O
medo sugou o vento dos pulmões de Rielle.
Os árbitros, quem quer que fossem, não eram soldados do pai
dela. Eles eram de Borsvall.
E eles estavam cercando Audric com as espadas levantadas para
matar.
4
Eliana
“Mas quando as forças do Império chegaram a
Orline, capital de Ventera, eles foram cegados
por uma luz intensamente brilhante. Era a
Rainha do Sol, brilhante e vingativa. Ela
liderou a investida com o rei Maximilian ao seu
lado, e todos que ela tocou sentiram sua
magia há muito esquecida despertar. Mais
uma vez, eles eram sunspinners, firebrands e
earthshakers. E o rio naquela manhã ficou
vermelho com sangue do Império.”
—O Triunfo da Rainha do Sol (Sendo Uma História Alternativa do
Reino de Ventera)
Como está escrito no diário de Remy Ferracora 14 de junho de
1018 da Terceira Era.

Após as execuções, Eliana viu Harkan se abrigar no seu minúsculo


apartamento no último andar do prédio, próximo ao dela.
Quando ela se virou para ir embora, ele disse suavemente: — El?
Ela hesitou. Se ela ficasse, eles compartilhariam a cama dele,
como costumavam fazer. Seu toque seria uma absolvição – seus
braços fortes e morenos, o jeito terno que ele a abraçava e
acariciava seus cabelos. Por um tempo, ela esqueceria quem era e
o que havia feito.
Mas então, Harkan iria querer conversar. Ele olharia nos olhos
dela e procuraria a garota que ela um dia fora.
O pensamento a esgotou.
— Por favor, El — disse Harkan, com a voz tensa — Eu preciso de
você.
Ele mal podia olhar para ela. Ele estava envergonhado por não
querer ficar sozinho? Ou envergonhado de desejar o toque de um
monstro?
Inesperada, uma lembrança veio à tona: o rosto desafiador e
manchado de lágrimas do garoto, pouco antes de a espada do
carrasco cair.
O estômago de Eliana se apertou. Ela apertou a mão de Harkan.
— Tudo bem, mas eu só quero dormir.
A voz dele veio gentil: — Eu também
Eles passaram pela janela do terraço e entraram no quarto dele –
simples e pequeno, cheio de roupas amarrotadas. O resto do
apartamento de sua família permaneceu em silêncio e trancado.
Desde que sua mãe e seus irmãos mais velhos morreram no muro
no dia em que o Império invadiu dez anos antes, Harkan não tocou
em nada deles nem se sentou nos móveis em que se sentaram ou
usou as panelas e frigideiras de sua mãe. O apartamento era uma
tumba e Eliana não se atreveu a entrar por medo de trazer
fantasmas para dentro de seu corpo.
Mas o quarto de Harkan era um lugar familiar e desarrumado. Ao
longo dos anos, Eliana passou tantas noites lá quanto ela havia
passado na própria cama.
Ela subiu na cama dele, esperando. Ele deixou as cortinas quase
fechadas, deixando a janela aberta atrás deles. Ele acendeu as
quatro velas agachadas que mantinha em uma mesa lateral – uma
para cada membro de sua família perdida. Tirou a camisa e as
botas, subiu ao lado dela e a puxou para o ninho quente de seus
braços.
— Obrigado — ele murmurou contra sua bochecha.
Ela sorriu, se aproximando dele: — Eu sempre durmo melhor
quando estou com você.
Ele riu baixinho. Então a sala se encheu de silêncio. Ele enrolou
as pontas da trança dela entre os dedos: — Algum dia, teremos
dinheiro suficiente para deixar este lugar.
Eliana fechou os olhos. Era o começo da história favorita de
Harkan, uma que ele havia contado inúmeras vezes. Ela não teve
coragem de dizer a ele que não aguentava ouvir, não hoje. Que
essa história tinha sido um conforto quando eles eram jovens e não
sabiam de quase nada, mas era simplesmente cruel e sem sentido
agora.
Então ela esperou até poder falar em vez de gritar com ele e
perguntou, como sempre fazia: — Para onde iremos?
— Norte através do mar estreito, para Astavar.
Astavar. Eliana costumava sonhar com o que seria: montanhas
cobertas de branco, vales verdejantes, um mundo de gelo e neve e
céus noturnos cheios de fios tortuosos de luz colorida.
Agora era simplesmente um lugar no mapa. O vizinho do norte de
Ventera e o último país livre restante no mundo.
— Ninguém entra ou sai de Astavar — rebateu Eliana, caindo no
ritmo de suas idas e vindas.
— Vamos encontrar um contrabandista — continuou Harkan —
Um bom. Pagaremos o que for necessário.
— Astavar vai cair um dia desses. Todo mundo cai para o Império.
Veja o que aconteceu conosco.
— Possivelmente. Mas, enquanto isso, poderíamos ter alguns
anos de paz. Você, eu, sua mãe, Remy — Ele apertou a mão dela
— Uma família adequada.
Assim como a que Eliana havia destruído poucas horas atrás. De
repente, ela achou difícil de engolir. De repente, seus olhos estavam
quentes e cheios.
Droga. Foi isso que aconteceu ao tentar ser uma boa amiga.
— Eu não sei se poderia ser adequada — ela brincou. Parecia
pouco convincente até para ela.
— Pense nisso, El — O polegar de Harkan alisou círculos contra a
dobra do braço dela — O mar não é grande. Poderíamos estar em
Astavar em uma hora, talvez duas. Poderíamos encontrar um lugar
pequeno, talvez perto de um lago. Eu poderia cultivar. Remy poderia
assar. Sua mãe poderia continuar com o conserto. E você…
— E eu? — Eliana se sentou. Ela não podia mais jogar este jogo
— Se pudéssemos passar pelas tropas do Império em nossa
fronteira, e se pudéssemos encontrar um contrabandista que não
nos entregasse para o Império, e se pudéssemos convencer os
Astavaris a nos deixar atravessar sua fronteira... se
conseguíssemos fazer tudo que, com dinheiro que não temos, o que
eu faria nessa fantasia sua?
Harkan ignorou o tom áspero de sua voz. Ele beijou o pulso dela:
— Qualquer coisa. Você pode caçar. Eu vou te ensinar como cultivar
tomates. Você pode usar um chapéu de palha — Ele pressionou os
lábios no ombro dela — Suponho que você não precise usar
chapéu. Embora não tenha vergonha de dizer que sonho acordado
com isso há tanto tempo que meu coração pode se partir se você
não o fizer.
— Não vai dar certo — ela disse finalmente.
— O chapéu? — O olhar de Harkan era suave — Pelo contrário,
acho que ele ficaria muito bem em você.
Naquele momento, ela o odiava quase tanto quanto se odiava.
Ela saiu dos braços dele, passou a túnica por cima da cabeça e
gentilmente prendeu os pulsos dele no travesseiro.
— Não há lugar para uma garota como eu no seu mundo dos
sonhos, amor — explicou ela com um sorriso tímido — Tudo o que
sei fazer é matar, lembra?
— E isso — disse Harkan, com os olhos escuros e a voz baixa.
— E isso — ela concordou e depois o beijou profundamente o
suficiente para que ele não tivesse mais nada a dizer.

•••

Naquela noite, ela voltou para casa ao entardecer para preparar o


jantar.
— Mamãe querida! — Ela deu um beijo na bochecha de sua mãe.
— O que aconteceu hoje? — perguntou Rozen Ferracora. Ela
estava sentada à mesa, partes de seu último trabalho de reparos
espalhados pela madeira gasta. Porcas e parafusos. Pregos e facas
— Eu ouvi sobre o garoto – e Quill.
— Ah, é mesmo? — Eliana deu de ombros e começou a cortar
cenouras. Ela sentiu os olhos de sua mãe nela e começou a cortar
mais rápido — Bem. O que você espera? Outro dia de shows no
glorioso reino de Ventera.
Mais tarde, Remy entrou e sentou à mesa, assistindo Eliana
preparar o jantar – um pedaço de pão fresco, ensopado de legumes,
um pedaço de queijo duro – tudo de alta qualidade, comprado no
Garden Quarter.
Eliana nunca esteve tão consciente de sua adorável casinha, seu
estoque de comida, a relativa segurança de seu bairro.
Tudo isso foi comprado com o sangue nas mãos dela.
Ela encheu a tigela da mãe e a colocou diante dela com um
floreio.
Remy quebrou o silêncio, sua voz trêmula. Seus olhos azuis
brilhavam com lágrimas não derramadas: — Você é uma covarde.
Eliana esperava isso. Ainda assim, o criticismo em sua voz foi um
soco no estômago. Ela quase deixou cair o prato.
Rozen assobiou para ele: — Pare com isso, Remy.
— Ouvi dizer que uma criança foi executada hoje e esse rebelde,
Quill. O que contrabandeava pessoas para fora da cidade.
A garganta de Eliana se apertou dolorosamente. Ela nunca tinha
visto essa expressão no rosto de Remy. Como se ele não a
reconhecesse – e não quisesse.
Com gosto, ela mordeu um pedaço de pão: — Tudo verdade!
— Você fez isso — ele sussurrou.
— Fiz o que?
— Você os matou.
Ela engoliu em seco, deu um gole na água e limpou a boca: —
Como eu disse antes, minha covardia nos mantém aquecidos,
alimentados e vivos. Então, querido irmão, a menos que você prefira
morrer de fome…
Remy empurrou o prato para longe: — Eu te odeio.
Rozen se sentou rígida em sua cadeira: — Não. Não diga isso.
— Deixa ele me odiar — Eliana olhou para Remy e depois
rapidamente se afastou. Ele estava olhando direto para o buraco
macio dentro dela, o lugar oco que ela não deixava ninguém além
dele ver. Ardia por causa da ferida que as palavras dele causaram
— Se isso o ajuda a dormir à noite, ele pode me odiar até o fim de
seus dias.
Os olhos de Remy voaram para o pescoço dela, onde a corrente
do colar era visível. A expressão dele escureceu.
— Você usa o Rei Audric, o Portador da Luz, no pescoço, mas
não merece — O olhar dele voltou para o rosto dela — Ele teria
vergonha de você se a Rainha de Sangue não o tivesse matado. Ele
teria vergonha de alguém que ajuda o Império.
— Se a Rainha de Sangue não o tivesse matado — Eliana disse
calmamente — Então não importaria, importaria? Talvez o Império
nunca tivesse ascendido. Talvez todos nós vivêssemos em um
mundo cheio de cavalos mágicos e voadores e belos castelos
construídos pelos próprios santos.
Ela apertou as mãos, olhou o irmão com paciência exagerada: —
Mas a rainha Rielle o matou. E aqui estamos nós. E uso a imagem
dele no meu pescoço para me lembrar de que não vivemos nesse
mundo. Vivemos em um mundo onde bons reis morrem e aqueles
tolos o suficiente para esperar por algo melhor são mortos.
Ela ignorou os dois depois disso e devorou o ensopado em
silêncio.

•••

Sua mãe a encontrou mais tarde naquela noite, quando Eliana


estava limpando as lâminas no quarto.
— Eliana — disse Rozen, ofegando um pouco — Você deveria
descansar — Mesmo com a prótese de perna, ela precisou de
algum esforço para subir sem ajuda. Ela se apoiou com força na
bengala.
— Mãe, o que você está fazendo? — Eliana se levantou, ajudou a
mãe a se sentar. Suas adagas e granadas de fumaça caíam no
chão, uma tapeçaria da morte — Você é quem deveria estar
descansando.
Rozen ficou olhando o chão por um longo momento. Então seu
rosto se enrugou e ela se virou no ombro de Eliana.
— Eu odeio ver você assim — ela sussurrou — Me desculpe por
isso. Me desculpe, eu te ensinei… Me desculpe por tudo.
Eliana a segurou, acariciando seu cabelo escuro emaranhado. Ela
ouviu Rozen sussurrar desculpas demais para contar.
— Desculpar pelo quê? — Eliana disse finalmente — Pelo seu avô
que te ensinou a matar? Que você me ensinou?
Rozen segurou a bochecha de Eliana com uma mão desgastada e
procurou seu rosto com olhos molhados que lembraram Eliana de
Remy – curiosa, incansável: — Você me diria se precisasse
descansar? Podemos pedir tempo a lorde Arkelion…
— Tempo para que? Assar biscoitos e pintar as paredes de uma
cor clara? — Eliana sorriu e apertou a mão da mãe — Eu não
saberia o que fazer comigo mesma.
A boca de Rozen afinou: — Eliana, não brinque comigo. Eu posso
ver através desse seu sorriso. Eu te ensinei.
— Então não se desculpe por me ensinar como nos manter vivos,
certo? Estou bem.
Eliana se levantou, espreguiçou e depois ajudou Rozen a ir para
sua própria cama. Ela fez uma xícara de chá, beijou a bochecha
dela, ajudou a soltar a perna para passar a noite – um aparelho de
madeira finamente trabalhado que custara a Eliana o salário de dois
empregos.
Duas execuções. Duas almas abatidas.
Quando Eliana voltou para o quarto, encontrou Remy esperando
por ela, abraçando os joelhos no peito.
Ela se arrastou na cama ao lado dele, lutando para respirar
através de um aperto repentino no peito. A dor caiu sobre ela em
ondas. Com os olhos secos, ela as deixou arrastá-la para baixo.
Remy disse calmamente: — Eu não te odeio — e permitiu que ela
o abraçasse. Ela fechou os olhos e tentou se concentrar apenas
nele – os aromas combinados da farinha nas roupas dele e da tinta
nas mãos. O som de sua voz cantando “A Song for the Golden
King”, era a canção de ninar favorita de Eliana quando criança – um
lamento por Audric, o Portador da Luz.
As mãos pequenas de Remy acariciaram os cabelos de Eliana.
Ela poderia esmagá-lo se quisesse. E, no entanto, se dada a
chance, seu minúsculo irmão enfrentaria o Imperador. Mesmo que
isso o matasse.
E eu tenho a força de um guerreira, ela pensou, mas o coração de
uma covarde.
Uma piada cruel. O mundo estava cheio delas.
— Eu não aguento mais — ela sussurrou, sua voz abafada contra
a camisa de Remy.
— Não aguenta o quê? — Remy perguntou calmamente.
— Você sabe o quê.
Ele não disse nada. Ele faria ela dizer.
Ela suspirou: — Matar, caçar pessoas. Ser boa nisso.
— Você gosta de ser boa nisso — Remy ressaltou.
Ela não discutiu: — Está ficando pior lá fora. E ainda não tenho
respostas.
— As mulheres desaparecidas?
— Quem as está levando? E para onde? E por quê? — Os dedos
dela se enroscaram nos pulsos dele. Ela imaginou puxá-lo para o
mundo escuro e seguro debaixo da cama e nunca deixá-lo sair.
— Você tem medo que possamos ser os próximos — disse ele.
— Receio que possamos ser. Qualquer um poderia ser.
— Você está certa — Remy deitou ao lado dela, com os olhos
fechados — Mas tudo o que importa agora é que você está aqui, e
eu também.
Eliana levou as mãos dele ao coração dela e deixou que ele
cantasse para ela até que ela entrasse em um sono profundo.

•••

O próximo trabalho bateu alguns dias depois na porta de Eliana.


Embalado em um pacote de papel pardo, estava marcado com o
endereço do alfaiate mais caro da cidade.
Eliana pegou o pacote e deu ao mensageiro três moedas de prata.
O homem de pele clara usava a túnica marrom simples de um
aprendiz e, à primeira vista, parecia tão comum quanto qualquer um.
Mas Eliana soube imediatamente que esse homem não era aprendiz
de alfaiate.
Ela agradeceu com um aceno silencioso e voltou para o quarto.
Da janela dela, ela o viu descer a rua, lotada de compradores do
Garden Quarter.
Ele andava quase perfeitamente. Mas Eliana aprendera a
observar uma certa rigidez na maneira como os adatrox se moviam
– de vez em quando, um sutil e antinatural tique que acompanhava
as mudanças de movimento. Uma ligeira escuridão nos olhos,
movimentos atrasados da boca, da testa. As partes mais sutis do
rosto que lhe diziam o que a pessoa lá dentro estava pensando.
Era como se os soldados do Império não se movessem por
vontade própria, mas por vontade de outra pessoa.
Ela esperava que nunca descobrisse por que um adatrox poderia
parecer normal em um momento – rindo, conversando, bocejando –
e então, de repente, fica perfeitamente parado e quieto. Como uma
estátua. Uma sombra caindo sobre o rosto, turvando os olhos. Pode
durar um instante ou horas.
O que quer que o Império tenha feito com suas legiões de
soldados, ela esperava que não tivesse sido feito com o pai, onde
quer que ele estivesse. Se ele ainda estivesse vivo.
Ela colocou o pacote na cama e parou por um momento, se
preparando.
Ela sempre ouvia falar de empregos em potencial ao visitar Remy
na padaria ou enquanto participava de uma das festas de Sua
Senhoria com Harkan. Ela permitiria que algum filho ou filha favorita
do Império a beijasse em um canto cortinado, sussurrando segredos
para ela. Depois, ela e Harkan caíram juntos na cama até não se
sentirem tão impuros.
Mas, às vezes, os trabalhos vinham como mensagens,
especialmente para Eliana.
Estes, ela não compartilhava com Harkan.
Eles costumavam chegar dobrados entre bolinhos embrulhados
com papel fino, para lembrar Eliana de Remy – e o quão perto ele
estava dessa nota e de seu mensageiro com os olhos de ardósia.
Ela leria essas ordens com as mãos trêmulas.
Hoje, o trabalho estava escondido sob dobras de seda – um fino
vestido cor de vinho com duas longas fendas, uma em cada perna,
brilhando como se tivesse sido mergulhado em diamantes. A parte
de trás era completamente nua, exceto por três fios finos de contas.
Era uma cor lisonjeira para ela, e as medidas pareciam corretas.
Cairia muito bem no corpo dela.
Ela engoliu sob o nó que se formava no peito dela. Lorde Arkelion
prestou muita atenção nela – e já faz algum tempo agora. Eliana
desdobrou a mensagem e leu as instruções codificadas três vezes:

O Lobo corre na lua cheia.


Eu o quero vivo.
Glória ao Império.
Vida longa à Sua Majestade, o Imperador Imortal.

Ela olhou para a caligrafia requintada.


Embora a mensagem contivesse o selo de lorde Arkelion, a escrita
não era dele.
Era de Rahzavel.
A carta, então, era uma mensagem dentro de uma mensagem:
Rahzavel estava a caminho de Orline. Ele estava atrás do Lobo e
queria a ajuda de Eliana.
Ela não o culpou.
Ao contrário de Quill, o Lobo não era um lacaio da Coroa
Vermelha. Ele era a mão direita do Profeta, tenente do misterioso
líder da própria Coroa Vermelha. O Lobo havia escapado do Império
por anos, e agora ele estava aqui na cidade dela.
Os olhos de Eliana encontraram a figura escrita na parte inferior
do bilhete pela mesma mão meticulosa:

20.000 em ouro

O coração dela disparou.


Um pagamento de 20.000 em ouro do Império?
Isso era uma pequena fortuna – e, vindo de Rahzavel, o convite
que Eliana temia há muito: Entregue o Lobo. Pegue nosso dinheiro.
Junte-se ao Invictus
Sirva ao Imperador.
Ela nunca disse a Harkan como, nos últimos dois anos, aceitou
ainda mais empregos do que ele sabia e guardou o máximo que
pôde.
Ela nunca lhe contou o quão profundamente ela desejara sua
fantasia de viver em algum canto tranquilo de Astavar com cabras,
pão fresco e plantas de tomate.
Em vez disso, ela guardou, matou, caçou e guardou. E agora, com
20.000 em ouro, além de suas economias...
Ela ouviu a campainha tocar lá embaixo. Remy estava em casa, o
riso dele iluminou a casa deles. Que milagroso, que ele ainda
pudesse rir tão facilmente.
Eliana jogou o bilhete no fogo e viu as palavras de Rahzavel
queimarem. Uma vez que o bilhete havia virado cinzas, ela olhou
pela janela para o céu escuro. Era a primeira noite de lua cheia.
Se o Invictus a queria, eles poderiam tê-la, mas nunca tocariam
em sua família.
Ela entregaria o Lobo como ordenado.
Ela aceitaria a recompensa e garantiria que Remy, Harkan e sua
mãe pudessem deixar o país em segurança.
E ela começaria a caçada nessa mesma noite.
5
Rielle
“Fogo crepitante, não brilhe com fúria ou
abandono
Queime firme e verdadeiro, queime limpo e
queime brilhante.”
—O Rito do Fogo
Como foi proferido pela primeira vez por Santa Marzana, a
brilhante, padroeira de Kirvaya e dos firebrands.

Rielle viu os sete árbitros falsos se virando para Audric, suas


espadas brilhando. Homens de Borsvall.
Outros cavaleiros se afastaram do caminho enquanto
continuavam pelo desfiladeiro, olhos fixos no percurso e no prêmio
esperando no final.
Audric olhou por cima do ombro, os soldados inimigos formando
um V atrás dele. Um deles carregava uma espada que puxava
longas espirais de escuridão do ar – um shadowcaster, lançando
trevas à sua frente e cegando Audric.
Rielle viu essas coisas, e não viu nenhuma delas.
Havia apenas Audric. Não importava o noivado, não importava
Ludivine e que se dane toda a corte real.
Ele era dela e esses homens queriam matá-lo.
Uma raiva afiada cresceu dentro dela.
Como eles ousavam?
Ela estalou as rédeas de Maliya e soltou um grito agudo. A égua a
levou correndo até eles.
Não tinha como Audric derrotar todos eles, não desarmado – e
Rielle sabia que ele estava desarmado hoje. Quando ela sugeriu
que ele mantivesse pelo menos seus receptáculos secundários e
menos poderosos escondidos com ele, ele protestou. Armas são
contra as regras, Rielle. Até minhas adagas. Você sabe disso.
Se ele tivesse Illumenor, sua espada, não haveria dúvida. Mas
Audric não conseguiria conjurar a luz do sol sem seus receptáculo.
Nem os santos eram capazes de fazer isso.
Ninguém podia, Rielle sabia, além dela.
Em um instante, anos de lições aprendendo a reprimir todos os
instintos que ela possuía desapareceram. Uma porta fechada e
trancada em seu coração se abriu.
Ela estendeu a mão como se pudesse parar os assassinos
apenas com sua fúria. Uma explosão de calor inundou seu corpo.
As pontas dos dedos dela eram dez pontos de fogo.
Chamas irromperam em ambos os lados dela, disparando em
direção ao desfiladeiro em dois caminhos ardentes.
O mundo tremeu. Um assobio quente rasgou o ar em dois.
Torrões de terra voaram. Maliya tremeu embaixo dela, soltou um
grito estridente. Rielle mal conseguia se sentar.
Ela ouviu um grito de pânico e olhou para trás por onde tinha
vindo. A terra enegrecida atrás dela parecia ter sido aberta por
garras monstruosas. Outros corredores estavam trazendo os
cavalos para baixo, afastando-os do chão trincado.
Abaixo de Rielle, os lados de Maliya se estremeceram. Ela estava
forçando muito a égua. Elas não deviam estar correndo tão rápido.
Mas Rielle se recusou a parar.
Ali, na frente dela – os assassinos de Borsvall. Eles estavam
entrando no desfiladeiro e voltando pelas montanhas para a cidade,
tentando interceptar Audric antes que ele pudesse chegar lá.
Enormes pedregulhos rolavam pelas montanhas em ambos os lados
do desfiladeiro e colidiam uns com os outros, lançando terra e
pedras. Os outros corredores tentaram desviar dos escombros,
apenas alguns conseguiram. Vários corpos caíram e não se
levantaram novamente.
Rielle considerou parar para ajudar o mais próximo, mas depois
viu a lança de um assassino brilhar, lançando nós pegajosos de fogo
em Audric. Um firebrand. As chamas grudavam na capa e nas botas
de Audric. Ele abaixou quando uma rajada de fogo passou sobre a
cabeça dele e virou o cavalo para a direita. O ar ao seu redor
brilhava e estalava. Seu poder de sunspinner, estaria ansioso para
entrar em erupção?
Rielle chutou Maliya com força. Rápido, mais rápido.
Se alguma coisa acontecesse com ele, se ele morresse antes que
ela pudesse lhe dizer...
O chão se abriu em ambos os lados dela. Chamas frescas saíram
da terra no lugar que ela rasgou, explodindo calor em seu rosto.
Rochas voaram, uma bateu no ombro de outro cavaleiro enquanto
ele lutava para sair do caminho dela, e ele caiu.
A culpa a atingiu, mas Maliya gritou, desorientada. Algo estava
errado. Sua marcha era irregular.
Rielle escorregou, quase caindo. Ela se puxou de volta, com força,
e inalou um bocado de fumaça.
Maliya fez outro som terrível. Ela estava bufando. As pernas de
Rielle estavam queimando. Tudo estava muito quente.
Mais a frente, Audric tinha conseguido passar.
Rielle empurrou Maliya com mais força, e elas seguiram Audric. O
ar estava cheio de fumaça, chamas, o rugido da rocha caindo. A
euforia vertiginosa do poder que varria o corpo de Rielle era tão
avassaladora que ela mal conseguia ficar na sela, pensar, respirar.
E algo, muito próximo dela, estava queimando.
Além dos assassinos, um flash de cor, o grito de um homem:
Audric, fora do alcance de seus agressores, incentivando seu cavalo
cada vez mais rápido. Mas os homens de Borsvall estavam quase
em cima dele.
Rielle lambeu os lábios, tinham gosto de suor.
Ela não trouxe nenhuma arma. Por que ela não trouxe nenhuma
arma?
O cavaleiro de Borsvall mais próximo dela se virou na sela e gritou
de horror. Ele jogou o machado no ar e o empurrou de volta. O
cavalo de Rielle avançou sob ele, soltou um grito agudo e tropeçou.
O homem era um metalmaster; seu poder voou de seu corpo
através do receptáculo e sacudiu Maliya para a esquerda, direita e
esquerda novamente. Um cheiro metálico azedo no ar fez Rielle
querer vomitar. Ela estendeu a mão no ar e jogou tudo o que sentiu
nele.
Calor rasgou através dela, da barriga para os dedos. Um nó
branco escaldante voou na direção do cavaleiro de Borsvall e o
envolveu em dourado. Por um momento ele se assustou, delineado
em luz. Então em outro ele se contorcia no chão, seu machado se
dissolvendo em cinzas a seu lado.
Rielle passou por ele. Ela engasgou com o cheiro dele, com a
visão da bagunça carbonizada que já fora um corpo.
Assim como a mãe dela.
Eles estavam em casa naquele dia, cercados por velas. Uma
oração da noite, uma discussão tola – e uma explosão.
Rielle olhou para as mãos. Suas luvas de equitação foram
chamuscadas, manchas de sangue escorriam pelas palmas das
mãos dela. Ela virou uma mão para a esquerda, para a direita. Um
brilho de ouro branco piscou logo abaixo de sua pele, depois
desapareceu.
Luz solar.
Magister Guillory não teria orgulho dela? Uma verdadeira
sunspinner, alguém que poderia conjurar o sol com as próprias
mãos.
Ela riu, um som estrangulado. O que estava acontecendo com
ela? O corpo dela era uma fogueira, se espalhando para fora e ela
não conseguia parar.
Ela soltou as rédeas, instinto gritando para ela pegar uma arma e,
embora encontrasse apenas ar vazio, suas mãos estalavam com o
calor. Cega e desesperada, ela jogou as mãos para os atacantes de
Borsvall. Uma força invisível os jogou no chão. Seus cavalos
corriam livres, enlouquecidos de medo.
Rielle olhou em volta, atordoada. O mundo estava tremendo atrás
dela, sacudindo pelo caminho de Maliya, uma teia de fendas. Sua
mente também se rompeu, como se seu poder tivesse se soltado de
todas as suas extremidades.
Onde estava o Audric? Ela procurou loucamente através da
fumaça e poeira.
— Rielle! — Uma voz familiar.
Audric, a pé. Ela deve ter derrubado ele também, e agora ele
estava mancando. Ela forçou Maliya a se mover. Audric se afastou
de sua aproximação. Algo terrível se formou em seu rosto.
O que ele viu?
Uma espessa flecha preta passou por ela.
Rielle empurrou Maliya ao redor, girando-a com tanta força que
ela podia sentir o corte da broca em sua própria boca. Ela encarou o
homem que havia atirado nela. Ele a encarou, pegando outra flecha.
Ele encaixou a flecha no arco. Ele não mirou na direção dela, mas
na de Audric.
Rielle gritou para Audric se mover, instou Maliya a avançar para
ficar entre ele e o arqueiro.
Maliya deu alguns passos vacilantes, e então algo abaixo de
Rielle cedeu. Ela olhou para baixo. Seu cavalo era uma bagunça
crua de carne viva – ensopada de sangue, manchas de seu casaco
cinza estava carbonizado.
O horror disso atingiu Rielle no estômago. Ela largou as rédeas e
recostou-se na sela. Ela teve que se afastar dessa coisa terrível
debaixo dela. De onde veio isso?
As partes traseiras de Maliya cederam e dobraram, Rielle caiu de
lado. Ela rastejou, frenética, agarrando a terra para sair do caminho.
Outra flecha do assassino de Borsvall – mas não apontada para
Rielle, nem para Audric. A flecha perfurou Maliya entre os olhos,
seus gritos se calaram. Os destroços dela estavam lá, fumegantes.
Rielle se amontoou no chão, o cheiro da carne queimada de
Maliya preso no nariz dela. Uma parte distante de sua mente ainda
procurava por Audric, mas quando ela tentou se levantar, seu corpo
não cooperou. Se esforçando, ela se levantou e vomitou. Ela estava
coberta de sujeira e sangue – dela e de Maliya.
O barulho de metal contra metal soou no ar. Espadas.
Audric.
Frenética, Rielle procurou em sua visão sombria uma arma
própria, algo que um dos homens de Borsvall deveria ter deixado
cair. Até uma pedra serviria.
Oh, Deus a ajude, seu pobre cavalo.
O que ela havia feito?
Ela limpou as palmas das mãos sangrando na blusa. A terra ainda
vibrava, como se um exército de dez mil soldados estivesse
marchando sobre a capital.
— Pare com isso — ela sussurrou, pois sabia que tudo isso era
culpa dela – o cavalo, as pedras que caíam, as fendas na terra.
Ela perdeu o controle, depois de tudo que Tal e seu pai tentaram
ensinar. Ela só queria mostrar a eles que podiam confiar nela, que
ela merecia uma vida fora do templo e seu próprio quarto solitário.
E agora seu pai a odiaria ainda mais profundamente do que ele já
odiava.
Todo mundo pelo caminho tinha visto.
O que ela era?
Ela bateu as mãos no chão, sem se importar com a dor: — Pare
com isso!
Um rugido, uma rápida rajada de vento. De repente tudo estava
quente.
Ela ouviu os sons distantes dos gritos vindos do local da corrida.
Alguém estava falando pelo amplificador.
Ela olhou para cima.
A caçada dela a levou ao ponto mais alto do desfiladeiro. Na
frente dela, havia uma ladeira descendente, depois a Planície. A
linha de chegada, os espectadores dos camarotes se aglomeravam
em volta dela. A capital – os telhados dos sete templos e de
Baingarde, o castelo do rei, brilhando ao sol.
Duas trilhas de fogo se estendiam de suas mãos em direção à
cidade como línguas longas e famintas.
Rielle se levantou cambaleando, a exaustão a balançando. Audric
gritou em aviso. Rielle se virou para ver um dos homens restantes
de Borsvall se aproximando, a espada levantada, o fogo crepitando
ao longo da lâmina. Seus olhos estavam arregalados e brancos, seu
rosto assustado. Esse assassino, esse firebrand com sua espada
flamejante, tinha medo dela.
Ela caiu de novo e rolou, a espada dele assobiou no ar onde ela
estivera. Fogo chamuscou seus cabelos. A fumaça fez suas narinas
piscarem.
Audric pulou na frente dela, uma adaga brilhante em cada mão.
Rielle quase desmaiou de alívio. Afinal, ele escapou das armas.
O rosto de Audric estava duro de raiva. Quando a espada de fogo
do assassino colidiu com suas adagas iluminadas pelo sol, o golpe
sacudiu os dentes de Rielle. Faíscas voaram. Chamas cuspiram
perto do rosto de Audric, enquanto a espada do firebrand o atingia.
Mas ele não vacilou. Ele permaneceu firme diante de Rielle, as
adagas jogando a luz do sol no chão. Ele rugiu e investiu contra o
assassino, deslocando sua espada. Orbes gêmeos da luz do sol
irromperam de suas adagas cruzadas e derrubaram o assassino no
chão. O assassino se pôs de pé, com o rosto e os braços
queimados, e correu para Audric com um grito desesperado e
gutural.
A cabeça de Rielle vibrava a cada choque das lâminas, ela
apertou as mãos em volta do crânio. Ela tinha que se segurar. Se
não conseguisse parar o fogo, a cidade queimaria.
Audric interceptou cada uma das investidas do outro homem com
as dele. Suas adagas zumbiram, o ar estremeceu com o calor. Ele
trançou de um lado para o outro, evitando um impulso mortal. Ele se
virou, atirou um escudo de luz com suas adagas que atravessou o
estômago do homem. O assassino caiu, sua espada abruptamente
apagada. Outro assassino se aproximou. Audric girou, pegou a
lâmina do segundo homem entre as suas. Este era um windsinger, o
vento soprava e uivava ao redor dele. Ele girou sua espada como se
tivesse um exército de tempestades e quase derrubou Audric.
As espadas deles brilharam, mas até Audric tinha seus limites.
Este segundo assassino era um homem enorme. Se ao menos
Audric tivesse Illumenor...
— Corra, Rielle! — Audric gritou, os cachos grudados na testa. Ele
empurrou o atacante, bloqueou um golpe selvagem da espada do
homem.
Rielle olhou em volta, viu um brilho de metal na terra: uma adaga
caída, seu punho gravado com o brasão da família real de Borsvall –
um dragão voando sobre uma montanha.
Reunindo suas últimas forças, Rielle agarrou a adaga e se
levantou. Suas pernas quase dobraram, sua visão esmaeceu. Ela
ignorou a dor que atravessava seu corpo, pulou, e a lâmina
encontrou o caminho de casa na garganta do homem de Borsvall.
Rielle observou o homem cair, sentiu seu vento convocado
desaparecer quando ele deu seu último suspiro. O mundo era um
zumbido fraco ao seu redor.
Ela assistiu o incêndio correndo pela encosta em direção à cidade,
acendendo cada folha de grama que tocava.
Pare, ela pensou. Por favor, pare com isso. Não os machuque. Ela
alcançou o fogo com o que restava de seu controle devastado,
tentou puxar o inferno de volta para ela, mas a escuridão inundou
sua visão.
Talvez ela não tenha causado o incêndio, afinal. Talvez tenha sido
um sonho terrível. Ela acordaria na manhã da corrida. Ludivine a
ajudaria a fugir do escritório de Tal. Eles planejaram tudo.
Ela venceria a corrida e Audric a abraçaria, rindo. Ele a
parabenizaria, radiante de orgulho, e depois a deixaria para jantar a
sós com Ludivine, e uma parte de Rielle morreria, como sempre
acontecia quando ela se lembrava da simples e terrível verdade do
noivado deles.
Rielle sentiu um cheiro no vento – cabelos chamuscados, carne
de cavalo chamuscada.
Não tinha sido um sonho.
Como ela pôde ter feito isso?
Como ela fez isso?
O pai dela estava certo. Tal estava certo. Ela deveria passar o
resto de sua vida em um quarto silencioso, entorpecida com veneno.
Ela não era confiável.
Ela caiu de joelhos, a cabeça girando, mas braços fortes a
seguraram. Ela sentiu uma mão em seus cabelos e lábios quentes
contra sua testa.
— Rielle — exclamou Audric — Rielle, Deus, você está
machucada. Fique comigo. Olhe para mim, por favor.
Antes que a escuridão a levasse, ela ouviu outra voz – masculina
e adorável e tão suave quanto sombras.
Acho que é hora de dizer olá, disse a voz. Parecia um beijo e
vinha de longe e de muito perto.
Então ela não sabia de mais nada.
6
Eliana
“A capital de Ventera, Orline, é uma cidade
portuária bem situada na costa sudeste.
Apesar do calor sufocante e do fedor
ocasional dos pântanos na fronteira ocidental,
sou forçado a admitir que possui uma certa
beleza única – uma cidade luxuosa de
terraços de pedra, pátios escondidos e musgo
suspenso, abraçada por um amplo rio marrom
que começa duas mil milhas ao norte nas
montanhas de Ventera.”
—Relatório inicial do Lorde Arkelion a Sua Santa Majestade, o
Imperador dos Imortais, sobre a bem-sucedida apreensão de
Orline
13 de fevereiro de 1010, terceira era.

Na primeira noite de lua cheia, Eliana não dormiu. Ela vestiu a nova
máscara, pintou os lábios de vermelho e jogou a capa favorita sobre
os ombros – um pouco de teatralidade nunca machucou ninguém –
e desapareceu na noite.
Ela foi para os telhados, para tabernas que cheiravam a latrina,
para os quartos vermelhos de senhoras amigáveis. Ela passou a
noite vagando pelo Barrens.
Ela assistiu e ouviu.
Ela procurou seus informantes habituais – rebeldes assustados
dispostos a trair a Coroa Vermelha ou oportunistas que jogariam
como agente duplo por uma moeda.
Ela fez perguntas e exigiu respostas. Ela ameaçou e persuadiu.
Principalmente, ameaçou.
Mas ela não descobriu nada sobre o Lobo. Nem um vislumbre,
nem um sussurro.

•••

Na segunda noite de lua cheia, Eliana voltou para casa com um nó


do tamanho de um punho no estômago e uma dúzia de perguntas
frenéticas em sua mente.
O Lobo sabia que ela o estava rastreando? Foi por isso que tudo
ficou quieto?
Rahzavel a estava observando?
Isso era algum tipo de teste?
Ela estava falhando?
Ela se sentou no terraço do lado de fora do quarto e viu o nascer
do sol transformar o mundo em vermelho sangue. Parte dela
desejava atravessar o espaço entre os telhados, se esgueirar para o
quarto de Harkan, acordá-lo com a boca e deixar ele amá-la até o
esquecimento.
Mas, em vez disso, ela ficou parada como uma gárgula, com
capuz e luvas, e esperou – e se perguntou.
Se ela não encontrasse o Lobo, o que Rahzavel faria?
E se ela estava caçando o Lobo, ele a estaria caçando?

•••

Na última noite de lua cheia, Eliana voltou para casa com o pânico
zumbindo sob a pele e descobriu que alguém havia invadido sua
casa.
Ao trabalhar, Eliana preferia entrar e sair da casa pelo minúsculo
terraço de pedra do lado de fora da janela do terceiro andar. Dessa
forma, a entrada da frente na estrada permanecia intacta.
Hoje à noite, porém, a janela dela estava aberta. Uma fina tira de
madeira marcava onde a tinta havia sido raspada; alguém forçou a
fechadura. Tinha uma rachadura na vidraça.
Enquanto ela estava congelada, ela sentiu um cheiro no ar, assim
como ela sentiu na noite da captura de Quill – a mesma sensação
desequilibrada que a deixou se sentindo fora de alinhamento com o
mundo ao seu redor. Uma pressão azeda estava pesada contra sua
língua e ombros.
Alguém estava aqui. Eles estavam aqui, aqueles sequestradores
de garotas mascarados das docas. Ela sabia disso com uma certeza
interior. As únicas vezes em que ela sentiu essa sensação foram
naquela noite e nessa.
O que significa que agora sua mãe…
E Remy?
Eles só pegam mulheres, Eliana disse a si mesma, com o coração
batendo freneticamente. Eles só pegam garotas.
Suor escorria ao longo de sua linha do cabelo. Ela poderia pedir a
Harkan que a ajudasse, mas a essa altura já seria tarde demais.
Ela pulou no terraço do segundo andar do lado de fora do quarto
de sua mãe. As flores do jardim do terraço de Rozen perfumavam o
ar e reviravam o estômago de Eliana.
Ela encontrou a janela destrancada, o que era estranho. Sua mãe
sempre trancava a janela antes de dormir. Ela abriu o painel,
deslizou para dentro… e parou.
A mãe dela se foi.
A sala cheirava a qualquer coisa fantasma que os sequestradores
carregavam com eles. Os lençóis haviam sido arrancados metade
do colchão. Uma xícara de chá quebrada estava em pedaços no
chão.
E a prótese de sua mãe estava apoiada na parede.
O terror enraizou Eliana no local.
Você tem medo que possamos ser os próximos,Remy havia dito
na noite da execução de Quill.
Não. Não. Não a mãe dela. Não era possível.
Quem estava por trás dos sequestros não levava mulheres do
Garden Quarter. Eles estavam protegidos neste bairro.
Mas se os sequestros eram parte de algo maior que os caprichos
de Lorde Arkelion, talvez além de seu controle…
Passos soaram no terceiro andar. No quarto dela. Quase
silencioso, mas não completamente. A casa deles era velha, o chão
rangeu.
Remy, ela pensou, por favor, esteja dormindo. Por favor, ainda
esteja seguro em sua cama.
Ela desembainhou a adaga e saiu pela porta do quarto da mãe.
Ela passou pela porta fechada de Remy e subiu as escadas até o
patamar do terceiro andar.
Pressionada contra a parede ao lado da porta do quarto, ela
esperou. A porta se abriu e uma figura alta saiu nas sombras.
Parado. Em direção à escada.
Um homem.
Ao luar saindo do quarto, ela viu a máscara dele de malha e
metal.
O medo a atingiu.
O Lobo.
Supostamente, ele nunca mostrou o rosto, escolhendo sempre
usar uma máscara. Mas uma senhora que Eliana conhecia, jurara
ter visto O Lobo tirá-la. Ele estava com cicatrizes, ela disse, como se
fosse um arranhão de garras.
Ela disse que ele tinha olhos como o inverno – frios e impiedosos.
Bem, então,, Eliana pensou. Estaremos bem combinados.
Ela correu até ele, chutou-o com força nas costas. Ela esperava
que ele caísse da escada.
Ele não caiu.
Ele se virou, pegou a perna dela e a jogou no chão. Com a perna
livre, ela chutou a canela dele, girou e ficou de pé. Ele deixou seu
punho enluvado voar, ela se abaixou e ele bateu na parede
Isso o atrasou um pouco. Ela chutou a parte de trás do joelho
dele. A perna dele dobrou, mas ele foi rápido. Ele se virou e a
empurrou com força. Ela perdeu o equilíbrio e desceu as escadas
para o segundo andar.
O Lobo a seguiu, agarrou seus braços e a empurrou sobre o
corrimão.
Ela caiu dois andares no saguão, de costas. A cabeça dela bateu
no chão de azulejos e, por um momento fugaz, ela viu estrelas. Mas
então ela cerrou os dentes e ficou de pé.
O Lobo correu atrás dela, ainda pronto para atacar. Ele sabia que
essa queda não a machucaria seriamente – nem a mataria – como
poderia ter feito com qualquer outra pessoa.
Uma nova onda de terror flutuou no fundo de sua garganta. De
repente, sua pele parecia mal ajustada sobre seus ossos
inquebráveis.
Ele a estava seguindo então. Ele a viu trabalhar. Ou pelo menos
ouvira os rumores do invencível Terror de Orline e acreditava neles
– por mais ridículos que parecessem. De qualquer maneira, ele
estava aqui. Ele a pegou.
Interessante. E preocupante.
Ela desviou do soco dele na base da escada, girou e chutou. Ele
agarrou a capa dela e a puxou de volta contra ele. Ela deu uma
cotovelada no estômago dele, o ouviu grunhir. Puxou Arabeth do
quadril, virou-se e a apontou para o coração dele.
Mas ele era muito rápido, Arabeth atingiu apenas o ar. Ela
cambaleou, desequilibrada. Ele a empurrou contra a parede ao lado
da porta da cozinha. Sua cabeça bateu no tijolo, e a sala afundou e
balançou ao redor de Eliana.
Ele agarrou o pulso dela e torceu, forçando ela a largar Arabeth.
Ele chutou a lâmina pelo corredor, enfiou o braço no pescoço dela e
a prendeu. Ela pegou Whistler da coxa e o acertou com ela. Não era
um corte fatal, mas ele ainda a amaldiçoou e a soltou.
Ela arrancou Tempest da bota e olhou para cima, pronta para
atacar.
O Lobo segurava um revólver, o cano da arma apontado para o
rosto dela.
Tudo paralisou.
— Largue as facas — a voz dele era baixa, refinada e cortante
como gelo — Contra a parede. Lentamente.
— Isso é trapaça — ela exasperou — Você trouxe um revólver —
mas ela obedeceu, afastando-se dele até seus ombros roçarem as
tábuas de madeira da parede.
O Lobo a seguiu, seu corpo se elevando sobre o dela. Ele
arrancou Nox e Tuora do cinto de Eliana e pressionou Tuora contra
a garganta dela, depois largou a lâmina e a chutou para longe.
Ela olhou para o rosto de metal vazio pairando sobre ela,
procurando pelos olhos dele além da máscara e não encontrando
nada.
—Tire sua máscara — ele ordenou.
Ela o fez, então o encarou com o sorriso mais duro que pôde.
— Terror — ele murmurou, a respiração do Lobo acariciando a
bochecha dela — É apenas um sentimento, facilmente esmagado.
Mas lobos, minha querida, têm dentes.
7
Rielle
“Cuidado, cuidado com o sorriso de
Sauvillier...
Uma bela lua em uma noite mais vil
Isso vai te cortar até os ossos, embaçar os
olhos mais nítidos
É o que diz um homem do rio que nunca conta
mentiras.”
—Canto viajante Celdariano.

Rielle se levantou, arrancada dos sonhos de fogo em um mundo de


pânico repentino.
— Audric — ela resmungou. A palavra raspou sua garganta em
carne viva. Ele tinha que estar perto. Se ele tivesse morrido, se ele
tivesse morrido…
— Silêncio — Mãos frias trouxeram um copo de água aos lábios
dela e a ajudaram a beber — Ele está vivo e bem.
Rielle piscou, e o rosto de Ludivine entrou em foco. Ela usava
seus longos cabelos dourados em ondas soltas. Seus pálidos olhos
azuis eram brilhantes, a única fenda em uma armadura de
serenidade. Com o cabelo solto, com o rosto calmo e limpo, ela
poderia se passar por uma garota muito mais jovem que dezenove
anos. No entanto, ela era filha do lorde supremo, uma dama da
Casa Sauvillier, prima e prometida do príncipe herdeiro e futura
rainha de Celdaria. E mesmo em seu roupão, era o que ela parecia
em cada centímetro de si.
— Aí está você — disse ela, sorrindo — Há dois dias que você
acorda e apaga. Só conseguimos te dar pequenas porções de
comida e goles de água — a testa pálida de Ludivine franziu. Ela
juntou as mãos de Rielle nas suas: — Você me aterrorizou, querida.
— Me diga o que aconteceu — disse Rielle, tentando se sentar.
Ludivine hesitou: — Você deveria descansar.
Mas então Rielle lembrou como Maliya havia desmoronado e se
sentiu repentinamente, violentamente doente. Ludivine segurou a
massa escura e rebelde que eram seus cabelos e esfregou entre os
ombros enquanto ela esvaziava o estômago no chão.
Uma das criadas de Ludivine correu para limpar a bagunça e
depois olhou assustada para Rielle. A criada terminou de limpar e
fugiu para a sala com a pressa que o decoro permitia.
Rielle a observou sair. Quando ela e Ludivine estavam novamente
sozinhas, Rielle disse: — Conte.
— Os assassinos estão mortos — disse Ludivine suavemente —
Quinze dos corredores estão mortos. Estamos... incertos de como
cada um deles morreu, mas estamos culpando a morte deles pelos
assassinos e pelas circunstâncias da própria corrida.
Rielle não conseguiu encontrar os olhos de Ludivine. Ela mal
podia suportar sentir a realidade da existência de seu próprio corpo.
Quinze corredores mortos. Quinze.
O sangue dela zumbia com a lembrança disso – as pedras
quebradas e a terra flamejante, os corredores caídos e os gritos dos
cavalos.
Ela cerrou os punhos, fechou os olhos e contou a respiração: —
Lu, me desculpe.
— Todo mundo está seguro — continuou Ludivine — Tal e seus
acólitos conseguiram controlar o fogo antes que ele pudesse se
espalhar até os camarotes e as terras agrícolas.
O fogo. O fogo que ela criou.
Rielle nem conseguia se lembrar de como tudo começou. Todo o
caso, desde que viu os assassinos cercarem Audric, não passava
de uma névoa de confusão.
A vergonha a agarrou como um punho quente: — Entendo. Vou
ter que agradecê-los pessoalmente.
— No mínimo — disse Ludivine, mas sua voz era suave — Seu
cavalo…
Rielle fez um som pequeno e sufocado. Ela ainda podia sentir a
carne do pobre animal queimando ao seu toque. Os assassinos
mereceram a morte, mas não Maliya, e nem os quinze corredores.
Ela fechou os olhos: — Odo ficará furioso.
— Ele está simplesmente feliz por você estar viva.
— E Audric?
Ludivine colocou a mão sobre a de Rielle: — Audric está bem.
— Ele não está machucado?
— De verdade, Rielle. Ele está perfeitamente bem. Eu deveria
chamá-lo em breve. Ele tem estado bastante impaciente para falar
com você.
Rielle ouviu a nota afetada na voz da amiga. Às vezes, ela podia
jurar que Ludivine sabia tudo sobre seus verdadeiros sentimentos:
— Ainda não — Se eu o vir, direi algo imperdoável. Eu vou falar
demais. — Há muito o que explicar, e eu…
— Sim, de fato há. Eu não sabia que você era uma earthshaker,
Rielle. E uma firebrand também?
Rielle ficou rígida com a falsa ternura na voz de Ludivine. Era um
tom que ela raramente usava: — Eu não sou nenhuma dessas
coisas.
— Você certamente é alguma coisa. A capital está um alvoroço.
Corpos, podemos explicar. Mas montanhas alteradas, terra arrasada
e destruída? Muitas pessoas fizeram perguntas.
— E o rei quer respostas.
— Sim
— Bem, ele terá que arranca-las de mim.
— Isso não é engraçado.
— Eu não estou…
— Pare de mentir para mim — Ludivine levantou-se para andar
pela sala. Quando ela voltou, seu rosto estava vermelho, seus olhos
brilhavam — Como você pôde esconder isso de mim? Confiamos
uma na outra. Eu nunca deixaria nada acontecer com você.
— Não era sua verdade para saber — Rielle disse firmemente.
— E que verdade é essa? O que aconteceu lá fora? O que você
é?
Isso foi um golpe. A voz de Rielle se desfez: — Eu gostaria de
saber.
— A profecia diz… — Ludivine fez uma pausa, organizando os
pensamentos — ‘Elas carregarão o poder dos Sete.’ As duas
Rainhas estão preditas para poder controlar todos os elementos,
não apenas um.
Rielle soltou uma risada áspera e cansada: —Você está realmente
me explicando a profecia?
— As pessoas vão pensar que você é uma delas.
— Eu estou bem ciente disso, Lu.
— Os rumores já estão circulando. A cidade…
— Está aterrorizada? — Rielle passou as mãos trêmulas pelo
rosto — Eles não são os únicos.
— Eu pensei que não tínhamos segredos entre nós.
— Eu posso fazer isso ir embora. Eu só... preciso de mais tempo.
— Fazer isso ir embora? O que, como se esse poder que você
tem estivesse de mau humor? Essas são as palavras do seu pai.
Rielle fechou os olhos: — Pai. Deus me ajude.
— Ele está com o Rei agora.
Rielle vacilou com isso, mas forçou o queixo: — Eu não vou deixar
eles me matarem.
A expressão de Ludivine se suavizou: — Rielle…
— Eles podem tentar, tenho certeza que eles vão. Mas eu não vou
deixar — ela ficou de pé, com a cabeça latejando.
Ludivine gentilmente pegou o pulso de Rielle e depois embalou o
rosto dela em suas mãos. Rielle deixou seus olhos se fecharem. O
perfume de Ludivine – óleo de lavanda e pele limpa – a envolveu em
memória: A caminhada da manhã pelos jardins, com os braços
ligados. Noites de infância enrolada com Ludivine e Audric, perto da
lareira nos quartos deles.
— Eu também não vou deixar eles te machucarem — Ludivine
repetiu, sua voz firme e clara — Nunca. Você me ouviu?
Rielle tentou ser leve: — Ah, e o que você vai fazer? A doce dama
Ludivine não machucaria nem uma mosca, me disseram.
Ludivine sorriu. Ela abriu a boca para falar, mas Rielle a deteve. O
momento de calma trouxe uma lembrança.
— Alguém falou comigo — disse ela abruptamente.
Ludivine franziu a testa, piscando: — O quê?
— Antes. Eu vi o fogo e não consegui me levantar. Audric me
pegou, e… então ouvi alguém falar comigo.
— Você quer dizer, Audric falou com você?
— Não. Alguém. Foi… — Rielle fez uma pausa, tentando recordar
o sentimento exato, e sua pele tremia como se alguém tivesse
passado uma pena pela barriga dela — Veio de dentro de mim.
Ludivine arqueou uma sobrancelha: — O curandeiro de Audric
disse que você pode estar com febre leve.
— Não, Lu, estou lhe dizendo…
Alguém bateu na porta externa dos aposentos de Ludivine, a
criada que havia corrido para fora um momento antes entrou no
quarto, com os olhos arregalados. Ela olhou por cima do ombro: —
Desculpe, minha senhora, mas você tem uma visita…
Ludivine manteve a mão de Rielle na dela: — Lady Rielle ainda
não está pronta para receber visitantes.
— Desculpe, minha senhora, eu tentei dizer a eles…
— É o rei — disse Rielle — Não é?
A empregada não encontrou seus olhos: — Fomos obrigados a
enviar uma mensagem assim que você acordou, minha senhora.
— Sua Majestade tem muitas perguntas, Rielle — veio uma voz
que ela conhecia bem.
O comandante Armand Dardenne entrou da sala de estar,
empurrando a porta do quarto de Ludivine sem se dar ao trabalho
de bater. Ele era aço e ferro, cada centímetro dele impecável. Ele
olhou para a filha com todo o calor de uma estátua.
Ela começou a se levantar: — Tal...?
— O Grão Magister Belounnon já foi interrogado pelo conselho —
continuou ele — Assim como eu. Você é a próxima. Faça-se
apresentável.
Sem outra palavra, Ludivine e suas criadas levaram Rielle para
trás da cortina de vestir e a ajudaram a colocar um vestido azul
escuro e marfim, com gola alta e mangas com fita. Era bonito o
suficiente para encantar, recatado o suficiente para não ofender.
— Eu deveria estar com raiva por você ter mandado suas criadas
vasculharem meu guarda-roupa sem minha permissão? — Rielle
murmurou com uma risada.
— Eu não me importaria menos se você está com raiva ou não —
disse Ludivine, arrumando as saias de Rielle. — Todos esses anos
de minha orientação, e ainda não confio em você para escolher o
vestido apropriado para qualquer ocasião.
— Alguns diriam que meu senso de moda é único e com visão
futurista.
— Sim, e esse senso não é algo para ser apresentado durante um
interrogatório real — Ludivine levantou uma sobrancelha para uma
de suas criadas — Eu preciso dos pentes de jóias que estão sobre a
mesa.
Depois que Ludivine prendeu seus longos cabelos escuros, Rielle
verificou seu reflexo no espelho. Ela parecia pequena e estranha, a
suavidade de seu vestido contrastava com os arranhões vermelhos
em seu rosto, as sombras nítidas sob seus olhos verdes.
— Se você terminou — veio a voz do pai dela.
Rielle fechou os olhos e respirou fundo, mas antes que pudesse
se mover, Ludivine a abraçou e a beijou na bochecha.
— Lembre-se — Ludivine sussurrou — Se alguém quiser
machucá-la, terá que passar por mim. Audric. E Tal. E muitos,
muitos outros. O rei não agirá precipitadamente. Confie nele. Confie
em nós.
Rielle abraçou Ludivine por outro momento, depois saiu da cortina
de vestir. O pai lhe ofereceu o braço, relutantemente, ela pegou.
— Pai — ela começou — Antes de descermos…
Ele a ignorou: — Todos neste castelo estão famintos por fofocas
no momento. Não fale de nada importante enquanto eles nos levam
lá para baixo.
— Eles? — ela perguntou, mas assim que entraram na sala de
estar, ela entendeu.
Vinte soldados da guarda real esperavam por eles, alinhando o
caminho para fora dos aposentos de Ludivine com suas espadas
desembainhadas.
Rielle vacilou apenas por um momento enquanto os guardas os
escoltavam pelo corredor cheio de janelas, onde a luz do sol da
manhã banhava a pedra polida em ouro.
Ela levantou o queixo e apertou a mandíbula. Audric ainda estava
vivo. Ela não se arrependia do que tinha feito.
Bom, veio a voz, satisfeita. Você não deve se arrepender de nada.
Já era tempo.
Ela estava com febre. Ela estava exausta, ouvindo coisas.
Mesmo assim…
Quem é você? ela pensou.
Não houve resposta.
O silêncio a enervou e, embora fosse infantil, ela não pôde deixar
de dizer baixinho ao pai: — Não estou com medo.
— Minha filha — ele respondeu, algo novo e abatido em sua voz
— Você deveria estar.
8
Eliana
“Eles o chamam de o Lobo. Ele é o favorito do
Profeta, dizem nossos informantes. Dizem que
ele não pode ser capturado, mas fique
tranquilo, meu senhor: Encontraremos esse
Lobo, arrancaremos todos os segredos de seu
corpo e o deixaremos sangrar até secar.”
—Relatório escrito por Lorde Arkelion de Ventera a Sua Santa
Majestade, Imperador dos Imortais
21 de junho de 1018 da Terceira Era.

O Lobo amarrou as mãos dela no corrimão da escada e ordenou


que ela se sentasse no degrau mais baixo. Então, para sua
surpresa, ele tirou a própria máscara e abaixou o capuz.
A senhora que Eliana conhecia havia exagerado muito.
Suas cicatrizes eram estrias prateadas na testa, nariz e
bochechas. Havia manchas de pele desfiguradas, desgastadas pelo
fogo ou pelo vento, mas o próprio rosto, emoldurado por cabelos
loiros e desgrenhados, era severo, afiado. Lindo.
Mas a senhora tinha razão sobre seus olhos: azul inverno e
diamante frio.
— Viu algo que gostou? — Eliana olhou para ele através dos
cílios. Mudou o corpo dela para ele, arqueou as costas apenas o
suficiente para mostrar sua posição.
O Lobo se ajoelhou diante dela: — Você é boa.
Sorrindo, ela o olhou de cima a baixo – calças e colete justos e
altos, e mangas até os cotovelos, o coldre de armas em uma faixa
ao redor do tronco e um cinto baixo ao redor dos quadris: — Você
também, Lobo. É uma pena que terei que te matar. Se as
circunstâncias fossem diferentes, eu pediria para ver sua espada.
— Uma amarga decepção, com certeza — Agora era ele quem
deixava seu olhar percorrê-la — Você é muito mais divertida do que
eu imaginava.
— Divertida? — ela soltou um riso baixo do fundo da garganta —
Você não tem ideia do quão divertida eu posso ser — ela se
recostou o melhor que pôde com as mãos amarradas, fingindo tédio
— Então. Você existe afinal. O poderoso Lobo. Temível capitão da
Coroa Vermelha, soldado imparável. Mão direita do próprio Profeta.
Mais como um cachorro do que um lobo, se você me perguntar.
Vocês rebeldes são todos iguais.
— Nós somos? — seu sorriso fácil a gelou.
— Me diga — ela continuou — Quando você se reporta ao
Profeta, você rasteja de barriga para ele? Beija as botas dele? Ele
chicoteou você por não ter conseguido derrubar o Imperador ainda?
É melhor você continuar com as coisas, você sabe. Mais rebeldes
estão morrendo todos os dias — sorrindo, ela se inclinou para mais
perto, desejando que seu coração batesse em silêncio — Eu me
certifico disso.
Ele se aproximou dela. Mesmo ajoelhado, ele era alto: — Se você
está tentando me deixar com raiva — ele murmurou, suas bocas a
poucos centímetros de distância — Receio que não vá funcionar.
A cada momento em que ele se agachava olhando para ela, seus
olhos vagando por cada plano e curva de seu corpo, Eliana se
sentia mais perto do terror. Havia uma quietude sobre ele – uma
sensação de algo horrível à espera, algo tenso – que pressionava
contra a pele dela como a lembrança de um pesadelo.
Por um momento, ela perdeu a coragem.
— O que você quer? — ela perguntou.
O sorriso dele cresceu lentamente: — Ora, Madam Terror, eu
quero você.
A estranha ternura em sua voz enviou gelo pela espinha dela: —
Onde está minha mãe?
— Eu não faço ideia.
Ela zombou, revirando os olhos: — Eu não sabia que a Coroa
Vermelha tinha o hábito de roubar mulheres indefesas de suas
camas. Vocês não deveriam ser heróis? Lutando contra nossos
opressores, salvando o mundo da tirania?
— A Coroa Vermelha não é responsável por esses sequestros.
— Então quem é?
— Uma boa pergunta. Eu tenho meus palpites.
Era inútil acusá-lo mais. Há muito tempo, ela descartara o
envolvimento da Coroa Vermelha nos desaparecimentos.
Mas ela não conseguia parar de imaginar sua mãe mantida em
cativeiro em algum lugar, sozinha e com medo, imaginando quando
sua filha viria buscá-la.
Os olhos de Eliana ficaram quentes. Seus dedos coçavam por
suas adagas: — Ou me mate — disse ela alegremente — Ou me
desamarre para que eu possa cortar sua língua mentirosa.
— Não tenho interesse em fazer nenhuma dessas coisas — um
sorriso puxou sua boca — Eu tenho uma proposta para você, mas
prefiro não falar sobre isso aqui, no caso de quem levou sua mãe
decidir voltar. O que acha de levarmos nossos segredos para outro
lugar, pequeno Terror?
Pequeno? No momento em que ela tivesse a chance, ela o
colocaria em seu devido lugar.
—Você está louco? — ela retrucou.
— Muitos se perguntam — ele enrolou dois dedos sob o queixo
dela, a fez olhar para ele. Seu toque a sacudiu, ela se forçou a se
apoiar na mão dele.
— Eu caço pessoas como você — ela disse com um sorriso
delicado e duro.
— Sim, e você faz um bom trabalho — todo o humor em sua voz
morreu — Diga-me, Madam Terror: se eu prometer ajudá-la a
encontrar sua mãe, em troca de sua ajuda, você se juntará a mim?
Eliana tentou lê-lo e não encontrou nada para seguir. Juntar-se a
ele? Um pensamento ridículo. Ela não podia confiar nele.
E, no entanto, se ela o recusasse, se ele fugisse da cidade e ela
fosse a lorde Arkelion de mãos vazias, o que aconteceria?
Ela adoraria fechar os olhos e ter um momento sozinha para
pensar. Mãe, me desculpe. Deus, sinto muito. Eu irei assim que
puder. Irei te encontrar. Eu juro.
— Eu deixo esta cidade amanhã. — continuou o Lobo — E você
pode simplesmente se encrencar por me deixar escorregar entre
seus dedos. Então você pode se juntar a mim ou não, mas de
qualquer maneira, você não vai me pegar — um pequeno sorriso —
Você quer encontrar sua mãe, sim? Não seria mais inteligente fazer
isso com ajuda?
Seus pensamentos embaralharam e dispararam: — Meu Deus,
que noite. O famoso Lobo, precisando da ajuda de uma garota…
— Minha missão começa amanhã à noite. Temos um acordo ou
não?
— Amanhã é o dia da nomeação de Sua Senhoria. Há uma festa
no palácio.
— Que feliz coincidência.
Ela estreitou os olhos: — Só amanhã à noite?
— Não. Nossa missão será mais longa.
— Quanto tempo mais?
— Eu não posso dizer.
— Ou você não vai.
— Esses são os meus termos. Você aceita?
Ela sentiu que os poucos nervos que ela tinha estavam prontos
para explodir. Ela conseguiu um tipo desinteressado de desdém: —
Por que eu?
— Você conhece o palácio. Você facilitará a entrada.
— E depois disso? Por que me levar com você?
— Porque eu preciso me mover rápido, e preciso de outro
assassino do meu lado. Alguém tão bom quanto eu.
— Ou melhor.
— Diz ela, amarrada no chão.
— Você puxou uma arma para mim. Caso contrário, eu teria
vencido você.
— Talvez.
— Deve ser uma missão muito importante — continuou ela,
zombando — E ainda assim você se arrisca confiando em mim.
— Estou apostando que você não correrá o risco de perder sua
mãe — respondeu ele.
O Lobo a tem. E a julgar pelo olhar em seu rosto, ele sabe disso.
— E se eu não aceitar esse acordo?
— Então eu vou embora e nunca mais te vejo, e você continuará
sua vida aqui, se é que pode chamar assim. A menos que eles te
matem por não me capturar.
Eliana ficou calada para ver o que ele faria.
Depois de um momento, ele soltou os pulsos dela, descartou as
amarras e se levantou: — Bem?
Ela calculou quanto tempo levaria para chutá-lo, deixá-lo
cambaleante, pegar seu revólver e atirar. Ela nunca usou uma arma
– elas eram raras, caras e nunca se deixou gastar o dinheiro com
elas – mas puxar o gatilho parecia bastante simples.
Cinco segundos. Talvez seis.
Ela poderia fazer isso. Ela se levantou.
E então ela viu Harkan.
Ele estava vindo da cozinha, seu corpo mergulhado nas sombras,
sua adaga favorita na mão. Atrás dele, Remy assistia tenso da
cozinha.
O olhar de Harkan encontrou o dela, mantido firme. Eu tenho você
— Eu vou ajudá-lo — ela disse ao Lobo lentamente — Mas
apenas se eu puder levar meu irmão comigo.
Os olhos de Remy se arregalaram.
— O menino padeirinho? — o Lobo franziu a testa — Você não
pode estar falando sério.
Eliana manteve o rosto neutro. Quanto ele sabia sobre ela? —
Suponho que estaremos roubando algo do palácio e depois
entregando em algum lugar. Algum pedaço de inteligência militar ou
política? Para onde quer que estejamos levando depois, Remy virá.
Você conseguirá uma passagem segura para Astavar e não fará
nada para prejudicá-lo. Ou não temos um acordo.
Ele a encarou: — Essa não foi minha oferta.
— Sim ou não, Lobo.
Ele inclinou a cabeça. Seus olhos captaram a luz da lua e o
fizeram parecer algo de um dos contos mais extravagantes de Remy
– uma criatura noturna, feita de segredos e bordas afiadas. Um
monstro do Império para a Rainha do Sol matar: — Somente
aqueles que têm medo de mim me chamam assim. E você não tem
medo de mim. Você tem?
Harkan se aproximou através das sombras – um passo, dois
passos.
— Nem um pouco — ela mentiu — Então, como devo te chamar?
Ele inclinou a cabeça: — Você pode me chamar de Simon.
— Bem. Simon. E mais uma coisa: meu amigo Harkan também irá
conosco.
Atrás de Simon, Harkan levantou a adaga para atacar.
Eliana flexionou os dedos.
A boca de Simon afinou, o único aviso. Um giro, um empurrão, e
então Harkan estava deitado de costas no chão, a bota de Simon
pressionando sua garganta, sua arma na mão de Simon.
— Ele? — Simon apontou para Harkan com a adaga. O olhar que
ele lançou para Eliana foi de profundo desgosto — Seu amante?
Eliana lançou um sorriso malicioso para Simon: — Já está com
ciúmes? Deixe ele ir.
— El — murmurou Harkan, lutando para respirar — Não podemos
confiar nele.
— Não — ela concordou — Mas ele também não pode confiar em
nós — ela estendeu a mão para Tuora — Solte ele, ou nenhum
acordo.
Simon fez uma pausa, depois devolveu Tuora para ela e se
afastou.
Eliana enfiou a adaga no coldre do cinto, ajoelhou-se ao lado de
Harkan e o ajudou a se sentar: — Me conte mais sobre esta sua
missão, Lobo.
— Informações apenas a medida que você for precisar saber
delas, pequeno Terror — disse Simon — Até lá, faça o que eu digo e
vou ajudá-la a encontrar sua mãe. Você tem minha palavra.
— A palavra de um rebelde não vale muito.
— E a palavra de um colega assassino? — ele tirou a luva e
estendeu a mão — Temos um acordo?
Eliana hesitou. Se ela aceitasse sua oferta, sua vida aqui seria
perdida. Lorde Arkelion não lidava gentilmente com desertores, e
Rahzavel não permitiria que ela desaparecesse na noite. Ao fazer
isso, ela estaria ameaçando não apenas a si mesma, mas Remy e
Harkan também.
Mas se alguém pudesse ajudá-la a encontrar sua mãe e levá-los a
Astavar em segurança, seria o Lobo, com toda a Coroa Vermelha –
as mesmas pessoas que ela passara tanto tempo caçando – à sua
disposição.
Se ela fizesse isso direito, poderia manter Harkan e Remy fora do
alcance do Império por mais alguns anos. Ela podia enganar o
Invictus, ficar com seus entes queridos, encontrar sua mãe e mantê-
los a salvo.
Ela procurou os olhos de Simon em busca de mentiras e
encontrou apenas aço frio.
— Eliana, não concorde com isso — Harkan murmurou, olhando
para Simon — Vamos encontrar Rozen de outra maneira.
Mas não havia outra maneira. Eliana se levantou e apertou a mão
de Simon.
— Temos um acordo — disse ela, e tentou ignorar a maneira
como sua pele tremia com o toque de Simon – como a sensação de
ser observada das sombras ou a carga fervente de uma tempestade
que ela não podia ultrapassar.
9
Rielle
“Os sete santos combinaram seus poderes e
abriram uma porta para o Abismo com vento e
água, com metal e fogo, com sombra e terra.
E quando Santa Katell, por último, soltou sua
espada ardente e iluminada pelo sol, os anjos
caíram gritando na escuridão eterna.”
—O Livro dos Santos.

O Salão dos Santos era a sala maior e mais sagrada de Baingarde.


Pilares de pedra branca sustentavam altos tetos abobadados,
enfeitados com entalhes elaborados de sóis e luas, árvores e
chamas. Os próprios tetos exibiam um mapa do mundo da Avitas:
Celdaria e as outras quatro nações do vasto continente oriental. Ao
norte de Celdaria ficava Sunderlands e o Portão. E através do
Grande Oceano estavam os reinos ocidentais de Ventera, Astavar e
Meridian.
Em um alto tablado de mármore branco na frente da sala estava o
banco da Suprema Corte; grandes cadeiras com encosto alto para o
rei e a rainha; uma cadeira ornamentada e de assento amplo para o
Arconte, o chefe da Igreja, e uma tribuna multinível grande o
suficiente para acomodar os membros de cada templo e conselho
real.
Acima do estrado erguia-se Santa Katell, a santa padroeira de
Celdaria e todos os sunspinners do mundo. O braço direito dela
erguia a espada – o receptáculo dela – que agora estava escondido
em algum lugar de Celdaria.
A outra mão de Katell agarrava um punhado irregular de penas
feitas de pedra. Anjos em miniatura e patéticos, seus rostos
contorcidos em agonia, subiam pelas pernas de sua égua branca,
implorando sem sucesso.
Ao redor de sua cabeça brilhava uma auréola de luz, banhada em
ouro, mantido polido e perfeito.
Santa Katell, a Magnífica – uma sunspinner e, depois das Guerras
Angélicas, uma rainha. A unificadora de Celdaria. Amada por um
anjo, mas forte o suficiente para resistir à tentação do inimigo.
E, nos mil anos desde então, os filhos de sua linhagem sentaram-
se no trono.
Os outros seis santos alinhavam-se no vasto salão, três de cada
lado. Gigantescos e solenes, pedra e bronze, cada um deles
carregava seu próprio receptáculo e era emoldurado por um
elemento: Santa Nerida, waterworker e a santa padroeira de
Meridian, brandindo seu tridente com ondas em suas costas, seu
kraken enrolado nos pés descalços. São Grimvald, metalmaster e
santo padroeiro de Borsvall, abria caminho a cavalo em meio a uma
tempestade de cacos de ferro, com o martelo na mão.
E Santa Katell, montando sua égua branca brilhante.
Vinte guardas blindados estavam ao pé do estrado, de frente para
Rielle. Eles eram homens e mulheres de seu pai, pessoas que ela
conhecia pelo nome. Ela sentiu os olhos nela – preocupação,
curiosidade. Medo.
Eles estão certos em ter medo, veio a voz, sem aviso prévio. Mas
não você.
Rielle ficou rígida. Nesse ambiente, era impossível ouvir a voz
sem lembrar a verdade: falar mentalmente era algo que os anjos
fizeram uma vez.
Sua pele se arrepiou com o pensamento. Tantas pessoas estavam
olhando para ela que ela mal podia ficar parada. Seu pai estava
cercado por um contingente de guardas armados. Rainha
Genoveve, Rei Bastien, Ludivine. O Arconte, sereno em suas
vestes. Os conselheiros – com a óbvia e alarmante exceção de Tal.
E Audric.
Ele estava sentado ao lado dos pais, na beira do assento, como
se estivesse preparado para se lançar ao estrado em caso de
desastre. Quando os olhos de Rielle encontraram os dele, ele lhe
enviou um pequeno sorriso, fino de preocupação.
Rielle relaxou um pouco.
Audric está aqui, ela disse a si mesma. Ele não vai deixar que eles
me machuquem.
Ela olhou para o rei, acima. A expressão em seu rosto o fez
parecer mais perturbado do que ela já o vira. O rei Bastien era um
homem de bom humor. Rielle cresceu ao som do riso estrondoso
dele pelos corredores de Baingarde, havia gritado alegremente
enquanto ele perseguia a ela, Audric e Ludivine pela sala de jogos
de infância em inúmeros jogos de encontre o rato.
Não havia vestígios desse homem hoje.
Rielle resistiu ao desejo de enxugar o suor que se acumulava na
linha do cabelo. Ela fez uma reverência baixa, as saias reunidas no
chão impecável. — Sua Majestade.
— Lady Rielle Dardenne — começou o rei Bastien. — Você foi
trazida aqui hoje para responder perguntas sobre o incidente que
ocorreu durante o Boon Chase há dois dias. Farei uma série de
perguntas e você responderá com sinceridade aos olhos dos santos.
— Eu entendi, meu rei — a sala enorme engoliu a voz de Rielle.
O rei Bastien assentiu, fez uma pausa. A passagem cinzenta
através de sua barba negra e as linhas de risada em seu rosto
marrom o fizeram parecer mais velho do que Rielle jamais havia
pensado antes.
Então seu olhar endureceu. Rielle resistiu ao desejo de dar um
passo para trás com nova ameaça perigosa no ar.
— Há quanto tempo — ele perguntou, com a voz fria e natural. —
Você sabe que possui magia elementar?
De alguma forma, Rielle pensou que isso começaria com algo
menos direto. Uma pergunta ou duas, ou cinco, que lhe dariam
tempo para encontrar sua voz.
Mas pelo menos, talvez, eles pensassem que ela era apenas uma
elementar e não… o que ela realmente era. Talvez o castigo dela,
então – e o de Tal e do pai – não fosse tão severo quanto ela temia.
As palavras da profecia passaram por sua mente: elas carregarão
o poder dos Sete.
— Desde que eu tinha cinco anos — ela respondeu.
— E como você chegou a essa conclusão?
Ele perguntou tão casualmente, como se eles já não soubessem a
resposta.
Uma cadeira rangeu quando alguém mudou seu peso. Rielle
olhou por cima e encontrou a irmã de Tal, Sloane Belounnon, com o
resto do Conselho Magisterial ao redor do Arconte. Ela se sentou
rígida em seu assento, seus cabelos escuros na altura do queixo
parecendo extraordinariamente severos contra sua pele minguada.
Parecia que ela não tinha dormido.
Como Sloane deve se sentir ao saber que seu irmão havia
escondido tal segredo dela?
— Quando… quando eu tinha cinco anos — continuou Rielle. —
Ateei fogo em nossa casa.
— Como?
— Eu estava com raiva. Minha mãe e eu tivemos uma discussão.
— Sobre o que?
Parecia ridículo, terrivelmente pequeno: — Eu não queria ir dormir.
Eu queria sentar com meu pai e ler.
— Então, — disse o rei calmamente — você incendiou sua casa.
— Foi um acidente. Eu estava com raiva, e a raiva aumentou até
que eu não consegui mais conter. Eu corri para fora porque o
sentimento me assustou. Parecia que algo dentro de mim estava
queimando. E então… quando eu me virei — ela disse, a memória a
arranhando. — Vi fogo consumindo nossa casa. Um momento não
estava lá, e no outro estava.
— E você causou isso.
— Sim.
— Como você soube?
Como você vê sua própria mão se movendo e sabe que ela está
presa ao seu braço, ombro e sangue e ossos? Assim.
— Eu sabia porque parecia, soava e parecia comigo — explicou
ela. — Parecia o mesmo que minha raiva. O mesmo perfume, o
mesmo sabor. Eu me senti conectada a isso — ela hesitou — O
Grão Magister Belounnon desde então me ajudou a entender que o
que eu sentia naquele momento era o empirium. A conexão entre
mim e o fogo era o poder que conecta todas as coisas, e eu tinha
acessado.
Rielle se atreveu a olhar para o Arconte, sentado ao lado do
Conselho Magisterial. Ele olhou para ela, seus pequenos olhos
brilhantes sem piscar. A luz da tocha fez sua pele pálida e sua
cabeça lisa brilharem.
— E sua mãe conseguiu escapar? — o rei continuou.
A garganta de Rielle se apertou e, por um momento, ela não
conseguiu falar: — Não. Ela estava presa dentro. Papai correu para
buscá-la e a trouxe para fora. Ela estava viva, mas então…
Diga, criança. A voz voltou, compassiva. Diga a eles. Eles não
podem te machucar.
Com os santos de pedra olhando para ela, seus olhos insensíveis
frios e graves, a voz estranha não deveria ter sido um conforto. Mas
ouvi-la, no entanto, acalmou seu estômago agitado.
— Eu estava com medo — continuou ela — quando vi minha mãe.
Eu nunca tinha visto queimaduras antes. Ela estava gritando, e eu
gritei para ela parar, mas ela não parou, e então… tudo que eu
conseguia pensar era como eu precisava que ela parasse de gritar
— ela correu pela história, como se tentasse superar a memória
daquelas chamas escaladas. — Então ela parou. O pai a deitou no
chão, implorou para que ela acordasse. Mas ela estava morta.
Todos na sala se alteraram, murmurando.
— E você escondeu esse assassinato de nós por treze anos. —
declarou o rei Bastien.
— Não foi um assassinato — disse Rielle, desejando
desesperadamente se sentar. Seu corpo ainda estava machucado
pela luta nas montanhas — Eu não quis matar minha mãe. Eu era
criança e foi um acidente.
— Estamos interessados em fatos aqui, não intenções. O fato é
que você matou Marise Dardenne e, com a ajuda de seu pai e do
Grão-Magister Belounnon, mentiu por treze anos.
— Se alguém me perguntasse se eu matei a minha mãe e eu o
tivesse negado — respondeu Rielle, olhando diretamente para o rei.
— Então isso seria uma mentira, Majestade. Manter um segredo
não é mentir.
— Lady Rielle, não estou interessado em semântica. Você ocultou
o dano que era capaz de causar enquanto comia à minha mesa,
enquanto estudava com meu filho e sobrinha, e assim colocou ele e
todos os que estavam ao seu redor em perigo. Alguns podem
considerar tal engano traição.
Traição. Rielle manteve os olhos no rei Bastien e as mãos contra
as coxas. Se ele pretendia assustá-la, conseguiu.
— E no dia da corrida — disse o rei — você não apenas começou
um incêndio quando atacou aqueles homens…
A raiva floresceu dentro dela. Se ela fosse considerada culpada
de traição, ela também poderia receber sua punição: — Quando eu
salvei a vida do príncipe Audric, você quer dizer.
Um murmúrio mais alto surgiu da tribuna, mas o rei Bastien
simplesmente inclinou a cabeça. Rielle sabia que era o único
agradecimento que poderia receber, mas era o suficiente para lhe
dar um pouco de coragem.
— Quando você atacou aqueles homens — continuou o rei —
você não apenas começou um incêndio. Você rasgou a terra. Você
esculpiu folhas de pedra das montanhas. Um dos corredores
sobreviventes descreveu você captando a luz do sol usando apenas
as mãos. Outro afirma que você jogou os assassinos de seus
cavalos por nenhum meio visível que ele pudesse detectar. Mesmo
que os assassinos em si fossem elementais, você os dominou
facilmente — o rei ergueu os olhos das anotações. — Isso está
alinhado com sua própria lembrança?
Então eles sabiam o que ela havia feito, que ela não era uma
mera elemental. Sua mandíbula doía de apertá-la: — Sim,
Majestade.
— Então, você não é apenas uma firebrand, mas uma
earthshaker, uma sunspinner e também, talvez, outras coisas. Acho
que você entenderá nossa preocupação ao contemplarmos o que
isso significa. Nenhum humano que já viveu foi capaz de controlar
mais de um elemento. Nem mesmo os santos.
Uma pequena centelha de orgulho acendeu dentro de Rielle.
— Lady Rielle, — continuou ele — se você estivesse perto de um
corpo de água durante esta corrida, teria causado a inundação?
— É impossível dizer se eu poderia ou não, Vossa Majestade.
— Você poderia, então?
Uma enorme. Anos de lições com Tal mostraram apenas poucas
partes do poder dela e, embora ela nunca tenha sido tão forte com a
água quanto com o fogo…
Você sabe que poderia fazer isso, a voz murmurou. Você poderia
inundar o mundo. Esse tipo de poder zumbe sob sua pele. Não é?
Um prazer cauteloso se desenrolou dentro dela. Quem é Você?
ela perguntou a voz.
Não respondeu.
Ela levantou o queixo: — Sim, acredito que poderia.
Uma nova voz falou: — Você gostou?
Era uma pergunta tão astuta e perfeitamente terrível que Rielle
não respondeu imediatamente. Ela encontrou o autor da pergunta –
severamente bonito, de cabelos loiros, um queixo elegante. Lorde
Dervin Sauvillier. O irmão da rainha e o pai de Ludivine.
Ao lado dele, Ludivine estava sentada, de olhos claros em seu
vestido de rosa luminosa, com rendas escorrendo pelas mangas.
— Lorde Sauvillier — disse o rei severamente. — Embora aprecie
seu interesse por esses eventos, não lhe dei permissão para falar.
A rainha Genoveve – de cabelos ruivos, pálida como sua sobrinha
Ludivine – tocou o braço do marido: — No entanto, é uma pergunta
razoável se devemos determinar a melhor forma de proceder.
Rielle olhou para a rainha e foi recompensada com um pequeno
sorriso que lembrou Rielle de Ludivine – uma Ludivine que crescera
não ao lado de Audric nos quartos arejados e ensolarados de
Baingarde, mas nos salões frios das montanhas de Belbrion, sede
da Casa Sauvillier.
O olhar da rainha Genoveve deslizou sobre Rielle e se afastou.
— Não tenho certeza — respondeu Rielle — De que compreendo
inteiramente a pergunta de lorde Sauvillier.
O pai de Ludivine levantou uma sobrancelha para o rei, que
assentiu uma vez.
— Bem, Lady Rielle, se você perdoa minha franqueza — disse
Dervin Sauvillier — Eu me pergunto se você gostou do que fez no
hipódromo. Se você gostou de machucar os assassinos — ele fez
uma pausa. — Se você gostou de machucar sua mãe.
— Se eu gostei? — Rielle repetiu, parando.
É claro que ela gostara. Não a dor que ela causou e nem a morte
de sua pobre mãe.
Mas o alívio disso... Isso, ela ansiava. A pressa de liberação
através de todos os músculos do corpo. Aqueles momentos
proibidos, ardentes – praticando com Tal, correndo no Chase –
quando ela não conhecia nada além de seu poder e o que ele podia
fazer. A clareza brilhante de entender que esse era seu verdadeiro
eu inteiro.
Às vezes, ela não conseguia dormir por querer se sentir assim
novamente.
— Sua hesitação é alarmante, Lady Rielle — Disse lorde
Sauvillier.
— Eu... não gostei da dor que causei aos outros — respondeu
Rielle lentamente. — Por isso, não sinto nada além de vergonha e
remorso. De fato, estou chocada que alguém possa pensar que eu
poderia gostar de fazer essas coisas com qualquer pessoa viva,
sem falar com minha própria mãe. Mas... os ensinamentos de
nossos santos não nos dizem que devemos ter prazer no uso do
poder que nos foi concedido por Deus?
Pelo canto dos olhos, Rielle viu finalmente o Arconte se mover, se
inclinando um pouco para a frente.
Era como se Audric estivesse esperando por um sinal dela, e ele
não decepcionou: — Meu senhor, posso responder a sua pergunta?
— ele perguntou ao pai.
O rei Bastien não parecia feliz, mas assentiu.
— Os ensinamentos dos santos realmente nos dizem isso, minha
dama — disse Audric, olhando diretamente para ela como se os
dois fossem os únicos na sala. — E também nos dizem que poder
não é algo que os elementais devam negar ou ignorar. Mesmo
quando esse poder é perigoso, e talvez até especialmente nesse
caso. Eu, de todas as pessoas, sei a verdade disso.
Rielle não disse nada, embora se sentisse leve com alívio. Com
essas palavras, Audric havia mostrado a ela que ele entendia. Ele a
perdoou. A crença constante que brilhava nos olhos dele a aqueceu
até os dedos dos pés.
— Com todo respeito, Vossa Majestade — disse lorde Sauvillier, e
agora ele simplesmente parecia exasperado — Não podemos
comparar essa mulher e sua destruição descuidada do que a cerca
com o seu filho, que sempre demonstrou disciplina irrepreensível e
que nunca deixou o poder tirar o melhor dele.
Uma raiva rápida chegou a Rielle: — Talvez o desafio que me
encara seja maior, pois parece que sou mais poderosa que nosso
príncipe.
O silêncio que se seguiu foi tão completo que parecia vivo. Lorde
Sauvillier recuou com nojo, a boca em uma linha fina e zangada. O
rei parecia ter sido esculpido em pedra, como um dos santos vigias.
Rielle esperou, o coração trovejando. Ela queria olhar para Audric,
mas resistiu.
Finalmente, o rei Bastien falou: — Lady Rielle, você conhece a
profecia, como foi dita pelo anjo Aryava e traduzida pela rainha
Katell.
Claro que ela conhecia. Todos conheciam.
— Sim, Majestade — respondeu Rielle.
— O Portão cairá — recitou o rei. — Os anjos voltarão e trarão
ruína ao mundo. Você saberá desta vez pela ascensão de duas
rainhas humanas – uma de sangue e outra de luz. Uma com o poder
de salvar o mundo. Uma com o poder de destruí-lo. Duas rainhas
vão ascender. Elas carregarão o poder dos Sete. Elas levarão seu
destino em suas mãos. Duas rainhas vão ascender.
O rei fez uma pausa. Na sequência das palavras da profecia, o
salão ficou gelado.
— Essa é a interpretação mais popular, é claro — continuou o rei
Bastien — e diz que a vinda das duas rainhas pressagiará a queda
do Portão e a vingança dos anjos. E que essas duas rainhas serão
capazes de controlar não apenas um elemento, mas todos eles.
Sim, é claro, e todo mundo sabia disso também. Não que a
maioria das pessoas tenha pensado muito nas diferentes
interpretações dos tempos modernos – se elas sequer pensavam na
profecia.
Rielle era uma das exceções. Muitas vezes, ela se via lendo as
palavras da profecia repetidamente, passando os dedos pelas letras
escritas nos livros de Tal.
Uma rainha de sangue e uma rainha de luz. A Rainha de Sangue
e a Rainha do Sol eram como elas eram chamadas ao longo dos
séculos.
E agora, depois de tantos anos, elas quase não pareciam reais. O
Portão estava forte nas Terras do Sol, longe no mar do norte,
vigiado e silencioso, com os anjos trancados em segurança do outro
lado. Rainhas de uma profecia poderiam muito bem ter sido
personagens de um conto. As crianças escolhiam lados, montavam
exércitos de brincadeiras, faziam guerras nas ruas.
A rainha má contra a boa rainha. Sangue em guerra com a luz.
Eu sou uma delas? Rielle se perguntou, embora nunca tivesse
tido coragem de perguntar a Tal ou ao pai imediatamente. E... qual?
— Você vê, Lady Rielle — disse o rei. — Que minha
responsabilidade não é decidir se o que você fez é um crime e se –
ou como – você deve ser punida. É que você parece não ser nem
firebrand, nem spunspinner, nem earthshaker, mas todas essas
coisas e muito mais, o que é sem precedentes. Você executou uma
magia mais poderosa do que houve em meia idade, mesmo depois
de passar treze anos sendo ensinada a suprimir suas habilidades na
esperança de que elas desaparecessem. E você fez isso sem a
ajuda de um receptáculo, algo que nem os santos conseguiram
alcançar no auge de sua glória.
— Meu dever sagrado — disse o rei, com o rosto sério. — É
determinar o que exatamente você é. Preciso decidir se você é uma
dessas rainhas e, em caso afirmativo, qual delas.
Rielle ouviu claramente as palavras não ditas: E o que isso
significa para você.
Ela cerrou os punhos nas saias e fez uma reverência diante do rei,
a sombra de Santa Katell caindo como uma espada no pescoço
dela.
10
Eliana
“Quando a noite é mais escura
Quando perdida está a luta
Quando o sangue está todo à vista
Olhe para o amanhecer”
—Canção folclórica venterana

Sempre que Eliana se vestia para uma das festas de lorde Arkelion,
ela pensava em seu pai.
Ioseph Ferracora passou a maior parte de sua infância lutando na
frente oriental, enquanto o Império acabava com a última resistência
de Ventera.
— Para cada noite que ele estiver fora, deixaremos velas nas
janelas para ele — decidira sua mãe. Naqueles dias dourados antes
da invasão, antes de Remy, a guerra distante não parecia mais real
para Eliana do que uma história de fantasma.
— Mas o que as velas farão? — Eliana perguntou.
— Elas pertencem à Rainha do Sol — explicou Rozen — e
ajudarão a trazer seu pai de volta em segurança para nós.
Então, todas as noites antes de dormir, Eliana acendeu a vela em
sua janela e sussurrou a oração da rainha do sol: — Que a luz da
rainha o guie para casa.
À medida que envelhecia, passou a temer as visitas de seu pai,
pois elas se tornavam mais curtas e sempre terminavam. Mas ela
nunca deixou de esperar o solstício de verão, quando Ioseph
retornaria para o festival anual – e mais importante, para o aparato
da Rainha do Sol.
Antes da Queda, antes da morte da Rainha de Sangue Rielle e de
deixar tudo em ruínas, o mundo estava cheio de magia. Assim
diziam as histórias, e quando criança, Eliana acreditava nelas com
todo o seu coração. Diziam que as pessoas do Velho Mundo
usavam escudos e espadas para invocar o vento e o fogo. Eles
adoravam poderosos santos que tinham banido a raça dos anjos
para o esquecimento, e acreditavam que uma rainha iria um dia,
salvar o mundo do mal. Ela chamava-se Rainha do Sol, pois ela
traria a luz para a escuridão.
Mesmo muito tempo depois que a era do Velho Mundo terminou, e
ficou claro que anjos e magia nunca existiram – que as lendas do
Velho Mundo eram simplesmente isso, lendas – muitas pessoas
ainda visitavam templos para orar para os santos, e o mito da rainha
do sol permaneceu.
E todo verão, Ioseph Ferracora voltava para casa e para a sua
filha, trazendo consigo um novo ornamento para o traje dela – uma
peruca dourada de Rinthos, uma pele de vison branca
contrabandeada de Astavar.
Juntos, Eliana e seus pais se juntariam aos desfiles que lotavam a
cidade. Crianças com bochechas douradas subiram pelas estátuas
em ruínas de Santa Katell, a sunspinner, para deixar guirlandas de
flores de gema em volta do pescoço dela. Músicos tocavam baterias
e suas harpas. Contadores de histórias vestidos de branco
recriavam a tão esperada vinda da Rainha do Sol.
O desfile terminava na curva alta do rio, nas colinas mais a leste,
onde ficava a estátua de Audric, o Portador da Luz. Ele estava
sentado no cavalo alado, espada na mão e olhos sombrios fixos no
horizonte oriental. Era a estátua favorita de Eliana na cidade, pois o
rosto do rei condenado parecia ao mesmo tempo corajoso e
cansado. Olhá-lo fez seu coração torcer de pena.
— Sinto muito, Portador da Luz. — Ela sussurrou para ele, no ano
passado. Ela beijou a bota de pedra desgastada pelo tempo,
apertou o colar com a semelhança arruinada. Como sempre, ela
procurou o rosto dele nas camadas de desgaste do colar, mas
enquanto o cavalo alado estava limpo, a pessoa que o montava
havia sido enterrada na escuridão do tempo, por mais que Eliana
tentasse limpá-lo.
— Olhe para o horizonte — Rozen sussurrou para a filha, Remy
dormindo em seus braços — Você a vê? Você vê a rainha do sol?
— Ela virá este ano, papai? — Eliana, de sete anos, perguntou,
exaltada mesmo após a longa noite.
— Continue olhando, docinho — Ioseph respondeu, os braços
tremendo ao redor dela. — Continue procurando a luz.
Ele partiu novamente para a guerra no dia seguinte e nunca mais
voltou.

•••
Dez anos depois, Eliana sentou-se diante do espelho em seu quarto
enquanto Remy terminava de torcer seus cabelos castanhos
ondulados em um coque baixo. Suas bochechas – não tão pálidas
quanto as de Remy, mais próximas aos tons quentes de azeitona de
sua mãe – brilhavam com pó de prata. Kohl escuro contornava seus
olhos; diamantes brilhavam em cada orelha.
Ela terminou de aplicar um rico corante vermelho nos lábios e
sorriu ao refletir.
— Estou bem — ela declarou.
Remy revirou os olhos: — Você sempre parece bem.
— Sim, mas hoje à noite é realmente algo, não é?
— Eu vou continuar revirando os olhos até você parar de falar.
Ela sorriu para ele no espelho: — Então. Me diga mais uma vez.
Remy ficou de mau humor em sua cama: — Eu devo ficar com
Harkan, não importa o quê, e fazer exatamente o que ele me diz,
não importa o quê, e nem pensar em perguntar novamente sobre o
que você fará hoje à noite. Não importa o quê.
Eliana se levantou, o vestido cor de vinho de Lord Arkelion caiu
em pregas brilhantes sobre as pernas dela: — E se algo acontecer
com Harkan?
— Espero você na ponte leste, perto da estátua do almirante.
— Mas nada vai acontecer com Harkan — disse o próprio,
entrando pelo corredor. Ele usava botas marrons altas, calça escura,
um casaco comprido que abraçava o tronco caído e uma capa com
capuz. Ele abaixou uma pequena sacola de suprimentos e
bagunçou os cabelos de Remy — Harkan é impressionante demais
para isso.
Normalmente, Remy revirava os olhos e dizia a Harkan que a
única coisa impressionante que ele podia fazer era arrotar como um
velho bêbado.
Mas Remy ficou em silêncio e pálido, seus lábios rachados de
tanto mordê-los. Desde o desaparecimento da mãe, ele não deixou
ninguém vê-lo chorar, tentou corajosamente acompanhar as piadas
de Eliana, mas ela o conhecia bem.
Se algo desse errado, se acontecesse algo a ele ou Harkan por
causa do acordo que ela havia feito com Simon…
Ela enfiou o colar no vestido, o pingente áspero contra a pele e
transformou suas feições em uma máscara brilhante.
— Remy — disse Harkan. — Por que você não junta as suas
coisas?
— Eu não sou idiota — Remy murmurou. — Apenas me diga para
sair para que vocês possam conversar.
— Bem. Saia para que possamos conversar.
Quando Remy se foi, Harkan pegou a mão de Eliana.
— Me diga que você não está cometendo um erro terrível,
confiando neste homem — disse ele calmamente.
Uma emoção de nervosismo percorreu-a com a expressão grave
no rosto dele: — Você sabe que não posso lhe dizer isso.
— Bom. Porque então eu saberia que você estava mentindo.
Apesar de tudo, ela sorriu e, quando Harkan finalmente sorriu para
ela, ela segurou o rosto dele nas mãos e o puxou gentilmente para
um beijo. Com as mãos quentes contra as costas nuas, Eliana
quase podia acreditar que era apenas mais uma noite – ir a uma
festa com Harkan, dançar e flertar e voltar para casa com um
emprego.
— Nós vamos encontrá-la, El — Harkan beijou sua têmpora e a
soltou, os olhos suaves em seu rosto. — Mas primeiro…
— Primeiro — disse ela, tentando sorrir. — Tenho uma festa para
participar.

•••

No salão de baile do palácio de Lord Arkelion, apenas um punhado


de pequenas velas pontilhavam a sala, e o chão trêmulo girava com
dançarinos. Janelas grandes se abriam para a noite, deixando entrar
a brisa do rio.
Eliana fingiu beber um gole de vinho e examinou a sala, contando
as figuras imóveis ao redor do perímetro – adatrox. Vinte deles.
A boca dela afinou. Em uma noite normal, mais de quinhentos
adatrox patrulhavam o enorme palácio e seus vastos terrenos. Mas
hoje à noite haveria perto de mil.
Ela continuou contando. Trinta. Trinta e cinco. Principalmente
homens, algumas mulheres. Escuros e pálidos. Mantos pretos,
sobretudo cinza e olhares vazios que podiam se tornar assassinos
em um instante.
Um ídolo do imperador se erguia em um canto do salão de baile.
Eliana, olhando para ele, enviou uma rápida oração a Santa
Tameryn do Velho Mundo, a shadowcaster e a santa padroeira de
Astavar. O Império podia derrubar seus templos no chão e derrubar
suas estátuas, mas eles não podiam policiar as orações dentro de
sua cabeça.
Me esconda, Tameryn, ela rezou, senhora de rapidez e atos
ilícitos.
Se é que você realmente existiu.
Tons de campainha flutuavam da praça central da cidade – a torre
do relógio, atingindo a meia-noite.
Eliana esperou cinco minutos antes de vagar pelo salão, sorrindo
e dando desculpas sempre que alguém lhe pedia uma dança. Ela
percorreu o labirinto de salas de estar à luz de velas ao redor do
salão, mantendo um olho no adatrox que patrulhava os corredores.
Então, ela entrou em uma passagem estreita dos criados e seguiu
as escadas em espiral até os níveis mais baixos do palácio – a
enfermaria, os aposentos dos empregados, as cozinhas.
Qualquer servo por quem ela passava a conhecia bem o suficiente
para olhar para o outro lado.
Quando ela dobrou a esquina em um corredor com caixas de
legumes e sacos de farinha empilhados, um formigamento de
nervos subiu por sua espinha.
Se tudo isso era uma armadilha elaborada de Simon, se ele a traiu
no último minuto e abandonou Remy e Harkan para a morte certa...
bem. Ela não seria derrotada sem derrubá-lo.
Ela fez uma pausa, ouviu a agitação da cozinha para se certificar
de que ninguém estava se aproximando, depois abriu uma porta
pesada e trancada que levava a um pequeno pátio de pedra de
suprimentos.
Simon entrou, vestindo o uniforme adatrox que Eliana havia
roubado para ele. No sobretudo, com o escudo alado do Império
estampado no peito, ele poderia ter se passado por um dos
soldados silenciosos – exceto por aquela luz aguda nos olhos dele e
pela maneira como se movia. Sinuoso e gracioso, sem a rigidez de
um adatrox.
— Finalmente — ele disse secamente. — Eu estava começando a
me preocupar.
— Acho isso improvável — ela fechou a porta e passou por ele,
notando com prazer selvagem como os olhos dele percorriam seu
corpo. Isso poderia ser útil mais tarde. — Vamos nos mover.
Ela o conduziu pelas passagens dos servos até o terceiro andar,
onde emergiram no palácio propriamente dito. Os tapetes
empilhados abafaram os degraus. Música flutuava pelas janelas
abertas para os vastos jardins abaixo.
Na ala norte, as paredes eram vermelhas, as molduras
ornamentadas. Lâmpadas de gás queimavam em invólucros de
jóias; o ar cheirava a perfume. Eles viraram uma esquina em uma
galeria de retratos de generais de olhos pretos. Em uma
extremidade do corredor pendia uma pintura do próprio imperador.
O coração de Eliana bateu forte. Ela nunca esteve na ala norte
antes. Ela não conseguia se livrar do medo infantil de que os olhos
negros pintados do imperador a seguissem a cada passo.
— Bem — disse ela. — Estamos aqui. Agora é sua vez.
Simon passou por ela: — Assista e aprenda, pequeno Terror.
— Me chame de 'pequeno' de novo e eu vou te dar um soco.
Um sorriso tremeu na boca dele: — Você sabe exatamente como
me seduzir.
— Já se esqueceu? Meus socos doem.
— Esquecer? Na verdade, gosto da memória.
Ela fez uma careta, mas então eles alcançaram um conjunto de
portas de madeira marcadas pela gravura de uma mulher nua, seus
cabelos ondulados caindo como cascatas na frente do rosto, e
Eliana congelou.
— A ala das donzelas? — ela lançou um olhar para Simon. As
concubinas do sexo feminino viviam nessa torre, e os homens na
ala sul. — Por quê?
— Tem uma garota lá dentro — Simon explicou, segurando o
braço de Eliana. — Me cubra enquanto eu a recupero. Tente não se
machucar. Não quero que você me atrase.
Eliana se irritou. Como se ele tivesse a chance de navegar de
volta pelo castelo sem ela.
— Siga a minha deixa — Simon disse, batendo na porta.
Eliana assentiu, pronta para pegar Arabeth da fenda em sua saia.
As portas se abriram, revelando dois adatrox. Homens. Um pálido,
um negro.
Suas sobrancelhas se franziram ao ver Simon. Ele empurrou
Eliana para o vestíbulo. Ela manteve os olhos obedientemente no
chão, o coração batendo forte.
— O que é isso? — um dos adatrox perguntou.
— Entrega especial — Simon respondeu suavemente, antes de
puxar a espada do cinto e estripar os dois. Eles caíram no chão.
Simon chutou a porta atrás dele.
Uma garota que passava pelo vestíbulo, vestida de sedas de
gaze, fugiu gritando avisos.
Mais adatrox dobraram a esquina. Simon correu para eles, Eliana
logo atrás. Ele acertou um dos adatrox com um soco rápido e um
golpe de sua lâmina.
Eliana saltou em direção ao outro. O adatrox investiu contra ela,
espada na mão. Ela contornou seu impulso, esfaqueou-o na
garganta. Ele bateu no chão, sufocando. Então seu olhar nublado
caiu no rosto dela e escureceu. Afiado.
Um sentimento doentio tomou conta dela. Ela cambaleou,
desequilibrada. Ela se sentiu… observada. Como se as sombras ao
redor com olhos secretos tivessem despertado para olhar.
O adatrox ficou quieto, seu olhar vazio e cego enquanto ele
sangrava no chão. Qualquer que fosse a escuridão que tocasse
seus olhos, agora se fora. Ou talvez nunca tivesse estado lá?
Ela se virou e correu atrás de Simon, seguindo o som de metal
sobre metal por um corredor largo, forrado de cortinas bordadas. Ela
o encontrou em uma sala de banho suavemente iluminada que
cheirava a jasmim e rosas. Três adatrox o cercaram.
Ela cuidou de um abrindo a garganta dele, depois escapou dos
punhos do outro antes de varrer os pés debaixo dele e chutá-lo na
cabeça com o calcanhar de sua sandália de contas. Uma garota
passou por ela e pelo adatrox sangrando, depois saiu pela porta,
segurando um xale no peito e deixando um rastro de pegadas
vermelhas atrás dela.
Do outro lado da sala, Simon lutava com outro adatrox. Um grupo
de meninas estavam recuadas no canto oposto, presas com ela e
Simon entre eles e escapando. Uma delas soltou um soluço agudo.
Eliana examinou o rosto assustado de cada garota. Qual era a
que Simon precisava recuperar? E por quê? Qual era a utilidade de
uma concubina para o segundo membro do ranking mais alto da
Coroa Vermelha?
Eliana sentiu o adatrox na porta atrás dela antes de vê-lo, mal se
virou a tempo de desviar da espada. Ela escorregou em uma piscina
de água no chão e caiu com força, batendo o joelho.
Antes que Eliana pudesse recuperar o equilíbrio, o adatrox
balançou a espada em sua direção mais uma vez – apenas
tropeçando para trás quando uma série de safiras e diamantes
pousaram em seu pescoço. A pessoa atrás dele puxou o colar com
força e o adatrox deixou cair a espada para arranhar a garganta,
engasgando.
Eliana pegou sua espada e a atravessou em seu coração. Ele
caiu.
Ela olhou para cima e encontrou o olhar de uma garota segurando
o colar, no final do qual pendia uma enorme opala. A pele da garota
era de um marrom quente, o cabelo preto, os olhos cor de avelã
pálido. Embora ela não usasse nada além de uma tira azul
salpicada de sangue e marcas de donzela de ouro escuro em seus
pulsos, ela tinha a aparência de uma rainha.
— De nada — disse a garota, sem fôlego.
Simon apareceu entre elas: — Bom, vocês já se conheceram —
ele pegou a garota pelo braço e foi em direção à porta. — Por aqui.
Eliana embainhou Arabeth e os seguiu.
— Meu nome é Navi. — disse a garota, sorrindo para Eliana
enquanto Simon a apressava para sair da sala.
Mas Eliana não respondeu, pois quando olhou de relance para as
janelas abertas do banheiro, viu uma figura cair do telhado e pousar
no terraço do lado de fora.
Alto e magro, com pele pálida e cremosa e cabelos louros presos
em uma longa trança, todo vestido de preto, exceto por uma capa
vermelho-sangue que varria o chão:
Rahzavel.
11
Rielle
“Da profecia de Aryava, há muitas
interpretações. Alguns descartam suas
palavras moribundas enquanto as divagações
sem sentido de uma grande mente angelical
foram arruinadas. Mas todos os eruditos
concordam com isso: apesar da guerra dividir
seu povo, o sangue de humanos e anjos que
mancharam suas mãos, o anjo Aryava amava
Santa Katell, o atirador do sol – e esse amor
salvou a todos nós.”
—“Um discurso sobre a profecia de Aryava”
Traduzido pela Grã Magister Isabeau Bazinet do Holdfast
Transcrito em 6 de outubro do ano 12 da Segunda Era.

Depois de duas horas, o rei declarou um recesso e os guardas de


Rielle a escoltaram para uma das antecâmaras do salão.
Ela afundou na primeira cadeira que viu, tão cansada que se
sentiu mal. Os conselheiros a atacaram com perguntas – como era
manipular tantos elementos ao mesmo tempo e tudo com o mesmo
corpo. Se cantar o vento parecia diferente de controlar o fogo ou
sacudir a terra, ou era o mesmo para ela?
Que tipo de lições Tal deu a ela ao longo dos anos?
Ah, ele tentou matá-la, em algumas ocasiões, para testar sua
restrição?
Como ele fez isso e quantas vezes?
Como ela lutava contra o desejo instintivo de se salvar? Que
testemunho maravilhoso de seu controle. E para onde, eles
perguntaram, fora esse controle no hipódromo?
Eles a deixaram se sentar pelo menos para alguns dos
questionamentos, mas ela ainda se sentia tão exausta como se
tivesse revivido todo o Chase. Duas vezes.
Assim que seus olhos começaram a se fechar, as portas se
abriram e Audric entrou na sala.
— Deixe-nos — ele disse aos guardas.
Os guardas não se mexeram. Houve uma momento de silêncio
em que tudo estava suspenso.
— Acho que se Lady Rielle quisesse me matar — Audric retrucou
— Ela teria feito isso anos atrás. Nos deixem.
Os guardas foram embora imediatamente.
Rielle estava agora totalmente acordada. Ela ficou de pé, com o
coração trovejando. Por onde começar com ele?
— Audric — disse ela, com a voz desgastada — Desculpe não ter
contado a você.
— Eu entendo por que você não o fez. Deus, Rielle, eu... por
favor, não peça desculpas. Você está bem?
Ela soltou uma gargalhada suave: — Não inteiramente.
Audric veio até ela, embalou as mãos dela nas dele. Seu polegar
roçou seu pulso como um beijo: — Eu não posso perdoá-los por
fazerem isso com você.
Cada pressão suave dos dedos dele fazia o estômago de Rielle se
contorcer: — Meu pai e Tal?
— Eles deveriam ter vergonha de sua covardia.
— Bem, eu tenho certeza que Tal tem, de qualquer maneira.
— Que bom.
— Eles pensaram que estavam fazendo o que era melhor.
Audric fez uma careta: — Para o reino.
— Claro.
— E para você?
Ela hesitou. Quantas vezes ela fez essa pergunta ao pai, apenas
para ser envergonhada com o silêncio?: — Minha felicidade não é
importante em comparação com a segurança das pessoas ao meu
redor.
— Não é importante! — Audric a soltou, passando a mão pelos
cachos escuros — É o que eles têm lhe dito todos esses anos.
De repente, o ar ao redor deles parecia carregado. Os dedos de
Rielle se arrepiaram com a proximidade da magia. O ar floresceu
com o calor. Rielle sentiu o aroma levemente chamuscado da magia
do sol – um céu ardente do meio-dia, um dia quente de verão. Os
olhos de Audric se voltaram para os dela antes que ele se virasse,
os ombros altos e tensos. Ele foi até a janela e apoiou a mão no
vidro aquecido pelo sol.
Quando ele olhou para ela, seu rosto não estava tão furioso e o ar
se acalmou.
— Sua felicidade é importante, Rielle — ele disse suavemente —
E lamento não ter visto o que estava acontecendo esse tempo todo,
diante dos meus olhos. Se eu soubesse, nunca os deixaria…
Ele parou, o queixo cerrado. Ela queria tanto tocá-lo.
— Eu sei — ela disse a ele.
— Você foi maravilhosa lá fora, durante a corrida. Eu nunca vi
esse tipo de poder. Rielle, foi lindo.
Ela não pôde deixar de corar de prazer, apesar de tudo: — Eles
iam matar você. Eu não podia deixar isso acontecer.
Ele levantou uma sobrancelha: — E eu não posso me cuidar?
— Você pode, e você o fez. Mas… — ela ficou em silêncio,
engolindo a voz.
Mas se você tivesse morrido, eu não teria suportado.
Se você tivesse morrido, não sei o que teria acontecido a seguir.
O que eu teria feito para vingar você.
Audric pigarreou. Ele pareceu escolher suas palavras com
cuidado: — Quando eu vi você cavalgando em minha direção, não
sabia que o sangue era do seu cavalo. Eu pensei que era seu. Você
estava coberta de sangue, e eu pensei… — ele caminhou na
direção dela, seu olhar demorando no rosto dela e depois ele
desviou o olhar.
A presença dele era como um toque pairando logo acima da pele
dela. Rielle queria desesperadamente mergulhar nisso. Se aquecer
nele. Reivindicá-lo.
— Você poderia dizer obrigado — ela finalmente conseguiu dizer
— Pelo menos.
— Se você prometer que não vai me aterrorizar assim novamente.
Ou pelo menos me avise para que eu possa me preparar.
— É claro — ela concordou — Se você me avisar da próxima vez
que planejar ser atacado por assassinos.
Ele sorriu para ela: — Lutamos bem juntos. Eu não me importaria
de fazer isso de novo — então sua expressão se suavizou —
Obrigado, Rielle.
Ela esperava que ele não pudesse ler seu rosto: — O que
acontece agora?
— É isso que eu vim lhe contar — começou Audric, e então a
porta se abriu, mostrando Ludivine e os guardas.
— Você contou para ela? — ela perguntou, parecendo perturbada.
— O que? — Rielle disse — O que eles decidiram?
— Eles estão pedindo para você voltar imediatamente, Lady Rielle
— um dos guardas disse.
— Diga ao meu tio, o Rei, que ela o atenderá em um momento —
disse Ludivine, seu doce sorriso não alcançando seus olhos — E se
ele protestar, você pode pedir para ele morder a língua ou a
sobrinha o odiará pelo resto de seus dias.
O guarda corou e inclinou a cabeça, depois se retirou para o
corredor.
— Muitos dos conselheiros têm medo — disse Ludivine
rapidamente a Rielle — E o rei está sob uma tremenda pressão para
agir antes que os rumores comecem a sair do controle e gerem
pânico. Antes… — ela fez uma pausa — Antes que qualquer outra
coisa aconteça.
Antes que eu perca o controle novamente, Rielle pensou
sombriamente.
— Ele não teria concordado com isso a menos que não tivesse
outra escolha — continuou Ludivine.
O estômago de Rielle caiu: — Concordado com o que?
— Sete tentativas — explicou Ludivine — Uma para cada
elemento.
— Testes de seu poder — acrescentou Audric — Projetados pelo
Conselho Magisterial. Para garantir que você possa controlar suas
habilidades — ele desviou o olhar, com a boca torcendo
amargamente.
Ludivine colocou uma mão gentil no braço dela: — Eles não
apenas estarão testando seu controle. Eles também estarão
testando sua lealdade. Você não deve vacilar nisso, Rielle. Uma
insinuação de desafio, um vislumbre de traição…
— O que exatamente eles acham que eu vou fazer? — Rielle
explodiu, uma ponta de risada incrédula em sua voz — Desertar
para Borsvall? Me virar no meio da corte e matar o rei onde ele
estiver?
— Não sabemos o que a Rainha de Sangue fará quando ela
chegar — continuou Ludivine gentilmente — Uma com o poder de
salvar o mundo. Uma com o poder de destruí-lo. Uma de sangue.
Uma de luz.
— Eu já estou cansada de ouvir essa maldita profecia — Rielle
murmurou e ficou satisfeita ao ver o pequeno sorriso de Audric.
— O ponto é — Ludivine insistiu — Que os conselheiros acreditam
que você é uma das rainhas. E se eles puderem garantir que você é
leal, que você quer apenas proteger Celdaria, e não destruí-la...
Rielle levantou as mãos: — Mas por que, em nome de Deus, eu
iria querer?
— ...então isso vai significar para eles — disse Ludivine, falando
sobre ela — que, seja o que for que a profecia diz, você fez uma
escolha. Proteger e não prejudicar. Servir e não trair.
— E se eu optar por não participar desses testes? — Rielle
perguntou, uma vez que ela encontrou sua voz novamente.
— Então — disse Ludivine calmamente — Eles não terão escolha
a não ser considerá-la uma ameaça.
Rielle deu um passo atrás. Um sentimento frio e doentio a
atravessou: — Eles vão me matar.
— Não enquanto eu respirar — disse Audric, os punhos cerrados.
— Desculpe, senhor — murmurou o primeiro guarda, entrando
inquieto na sala — Mas entreguei a mensagem de Lady Ludivine ao
rei e ele pede...
O olhar que Audric lhe lançou foi assassino: — Eu sei muito bem o
que o rei pede — quando ele finalmente voltou para Rielle, seu olhar
estava firme — Não permitirei que ninguém a prejudique. Você
vencerá essas tentativas e depois de convencer todos…
— Então eu vou servir à coroa — Rielle terminou para ele. Todos
sabiam que a Rainha do Sol, se ela chegasse, serviria ao prazer dos
governantes de Celdaria. Ela lideraria os exércitos do reino em
batalha. Usando seu poder, ela protegeria o país, protegeria o
Portão.
Protegeria o rei.
— Então você servirá à coroa — concordou Audric.
Algum dia, ele quis dizer, ela serviria a ele – e sua rainha. Ela
olhou para Ludivine e depois para longe.
— Meu senhor — pediu o guarda da porta.
— Estou pronta — disse Rielle, antes que Audric pudesse
ameaçar o homem ainda mais, e liderou o caminho de volta para o
corredor.
Ela ficou mais uma vez diante do tablado enquanto os
conselheiros se deslocaram e se estabeleceram acima dela. Sua
mente dançou em torno da pergunta: Como estou me sentindo
agora? Acabei de ser ameaçada de morte.
Ela reconheceu que provavelmente deveria estar mais chateada,
mas foi uma mudança tão selvagem do que sua vida havia sido
apenas dois dias antes que ela simplesmente se sentiu entorpecida.
Eu serei testada, ela pensou.
Provavelmente… doerá.
Depois, se acostumando lentamente com a ideia: mostrarei a eles
o que posso fazer.
Ela considerou. Ser procurada em vez de escondida, proteger seu
país em vez de viver com medo de que ela fosse capaz de nada
além de machucar as pessoas, de ser amada em vez de odiada...
Lágrimas ardiam em seus olhos.
Eu vou ser amada.
Ela encontrou o pai, cercado por guardas, parado sem expressão
embaixo da estátua de São Grimvald – um metalmaster, exatamente
como ele. Ela se perguntou o que ele estava pensando. Todo o
trabalho cuidadoso dele e de Tal, arruinado. E agora o futuro – o
dela e o deles – estava apenas nas mãos dela.
Ela se levantou.
Eles vão me amar. Todos eles vão.
Rielle ouviu o rei Bastien repetir o que Ludivine e Audric haviam
lhe dito: sete provações, uma para cada um dos sete elementos, a
serem projetadas pelo Conselho Magisterial e administradas a ela
nas sete semanas seguintes.
Se, no final desse período, ela tivesse provado suas habilidades e
seu controle em um grau satisfatório – se ela tivesse demonstrado
consistentemente lealdade e devoção à coroa, e nem desafio nem
volatilidade –, ela seria considerada a Rainha do Sol, o símbolo
mais sagrado da Igreja e a protetora profetizada da coroa, e
receberia todos os privilégios e tributos devidos.
Se não…
— Então, Lady Rielle — disse o rei, com a voz pesada — Não
terei escolha a não ser ordenar sua execução.
Rielle permitiu que o silêncio do salão aumentasse. Lorde Dervin
Sauvillier a observava, seus olhos afiados. Do outro lado da tribuna,
o Arconte estava sentado, calmo, com as mãos cruzadas no colo.
— Não decreto isso levianamente — acrescentou o rei —
Conheço você a vida toda e seu pai me serviu por duas vezes mais.
Mas não posso permitir que isso afete meu dever de proteger meu
povo. Devemos ter certeza de que você não é o perigo que
tememos há mil anos
Oh, Rielle, disse a voz, retornando com um rápido choque de
raiva, por favor, diga-me que você não deixará que eles a prendam
assim.
Mas ela já havia se adiantado para falar. Ela se sentia tão
brilhante e segura quanto o sol.
Ludivine dissera que o Conselho Magisterial era uma escolha –
proteger e não prejudicar. Servir e não trair.
Era uma escolha, e ela a fez.
Ela seria um símbolo da luz e não da morte.
— Entendo seu medo, meu rei — disse Rielle — E felizmente
suportarei essas provações para provar meu valor e minha força
para você, meu povo e meu país. — ela se fez olhar ao redor da
sala. Ninguém seria capaz de acusá-la de covardia. Ela encontrou
Audric e Ludivine, extraiu força da visão de seus rostos — Não
tenho medo de testar meu poder.
Sussurros passaram pelos conselheiros reunidos. Rielle levantou
o queixo para encarar o rei.
Vou te mostrar o que posso fazer.
Eu vou te mostrar quem eu realmente sou.
— Então, Lady Rielle — disse finalmente o rei, com a expressão
despedaçada — Que comecem as provações.
12
Eliana
“Você ouvirá coisas sobre os assassinos do
imperador, coisas projetadas para aterrorizar
você. Que sua lealdade a ele lhes dá uma
força extraordinária. Que, como ele, eles não
podem ser mortos. Mas eu lhes digo, os
açougueiros do Invictus são de carne e
sangue como você. É uma batalha de crenças.
Sua fé pode durar mais que a deles?”
—A Palavra do Profeta.

— Você não parece surpresa em me ver — disse Rahzavel. Ele se


aproximou do banheiro com a graça de um dançarino — Então você
é uma tola, mas você não é estúpida.
Todo instinto gritou para Eliana fugir da ala das donzelas depois
de Simon e Navi, mas para onde? E depois o que? Rahzavel a
caçaria até os confins da terra. Ele, Invictus e o próprio imperador
considerariam a deserção dela um insulto pessoal.
Ela teve tempo para duas esperanças passageiras – que Simon e
Navi saíssem do palácio em segurança. E que Simon encontrasse
uma centelha de misericórdia em seu coração e protegeria Remy e
Harkan.
Então Rahzavel atacou.
Ele foi rápido, através do banheiro e sobre ela, antes que ela
tivesse a chance de criar uma estratégia. Ele levantou a espada e,
com aquele rosto pálido sorrindo friamente para ela, tudo o que
Eliana sabia a abandonou em um instante.
Ela se virou e correu.
Rahzavel a perseguiu através da ala das donzelas. Ele a
alcançou, deixando sua espada voar. Eliana balançou a espada
adatrox, seu cabo pesado manchado de sangue, e bloqueou o
ataque. Rahzavel avançou; Eliana mal bloqueava cada um de seus
cortes.
Suas lâminas se chocaram. Eliana deu um passo atrás e
rapidamente girou a espada, repelindo Rahzavel. Ela bateu
violentamente em seu torso, mas ele foi rápido. Ele avançou
novamente. Eliana tropeçou para trás, encontrou uma escultura de
uma mulher com pouca roupa sobre uma mesa, jogou-a na direção
dele e correu.
Ela ouviu a escultura bater no chão. Os passos rápidos de
Rahzavel a seguiram através de uma série de quartos estreitos e
alcatifados.
Os ataques dela ficaram desesperados. Rahzavel era muito
rápido, muito meticuloso. Ela ofegava; ele mal parecia suar. Ela se
esquivou da espada dele, a lâmina sibilando próxima ao pescoço
dela. Ela atirou para o lado a espada adatrox, usou a mão livre para
pegar o que pudesse encontrar – vasos, taças, pratos dourados – e
jogou tudo de volta para ele.
Ele riu dela, desviando de tudo.
Eles emergiram mais uma vez no banheiro, o ladrilho
escorregadio pela água e sangue.
Uma garota solitária se encolheu no canto, choramingando.
O sorriso de Rahzavel se desenrolou: — Você está assustando as
prostitutas, Eliana.
Ela empurrou Arabeth em direção a barriga dele; ele a bloqueou
facilmente.
Eles rodearam um ao outro, Eliana limpando para trás o suor. O
cabelo dela havia se soltado do nó.
— Você nunca deveria ter trocado de lado — Rahzavel disse,
cada sílaba imaculada. — Você poderia ter sido uma das favoritas
do imperador. Sua família não passaria nenhuma necessidade.
Então, sem aviso, alguém empurrou Eliana por trás. Ela se
desequilibrou no azulejo liso, e Rahzavel usou sua espada para
derrubar Arabeth.
Ele bateu forte com as costas da mão no rosto dela. Ela caiu,
batendo a cabeça contra uma mesa baixa.
Atordoada, ela viu movimento e cor – uma das concubinas de
lorde Arkelion, fugindo. A garota a empurrou.
— Parece que os laços de irmandade não se estendem a
traidoras — a voz de Rahzavel flutuou acima dela. Ele montou os
quadris dela, seu rosto a centímetros do dela – mandíbula
barbeada, nariz reto, olhos cinzentos planos e distantes.
Ela sentiu uma dor aguda na garganta e olhou para baixo,
atordoada demais para lutar.
Ele a estava cortando.
Um novo pânico tomou conta dela, despertando-a. Ela precisava
se afastar dele, agora, antes que ele visse a verdade.
— Muitos matariam seus entes queridos — murmurou Rahzavel
— Pela chance de servir ao imperador como fazemos no Invictus. E,
no entanto, você se interessou pelo cãozinho do Profeta?
Outro corte, um X raso entre as clavículas.
Ela torceu em seu aperto. Ele cortou a carne macia do braço dela.
Deus, não, ele vai ver...
— Suponho que terei de encontrar para o imperador um recruta
mais agradecido — ele devaneou suavemente — E ficar com você
para mim.
Ele girou um dedo comprido em seu sangue fresco e o arrastou
pelo braço dela até o cotovelo.
Ele olhou para baixo e congelou.
Eliana seguiu seu olhar. O mundo desacelerou e parou.
Juntos, eles assistiram o corte em seu braço fechar.
Um instante depois, a pele estava tão boa quanto nova.
O olhar de Rahzavel voltou para o dela e, pela primeira vez desde
que o conhecera, ela viu uma faísca de algo diferente da sede de
sangue nos olhos dele.
Admiração. Confusão.
Medo.
Eliana mal conseguia respirar. Seu sangue correu quente sob a
pele.
— O que você é? — Rahzavel sussurrou.
Um movimento repentino, logo além do ombro de Rahzavel. Uma
forma alta e escura; uma mudança no ar.
Eliana lançou um sorriso para Rahzavel: — Eu sou sua desgraça.
Rahzavel deu um salto, se virou e encontrou a espada de Simon
com a sua.
Eliana se afastou, pegou Arabeth e se levantou, pronta para pular
atrás de Simon e ajudar, mas a visão deles a deteve.
Rahzavel e Simon giraram, esfaquearam, atingiram, suas lâminas
cortando o ar. Eles desviavam, abaixavam, aparavam e
empurravam. Quem quer que fosse o Profeta, ele obviamente se
certificara de que Simon fosse bem treinado o suficiente para
combater até os próprios assassinos do imperador.
Ela os seguiu até a ampla sala de estar na ala das donzelas, sem
saber como ajudar. Sua visão havia desaparecido, mas Simon e
Rahzavel estavam se movendo tão rapidamente que lhe parecia um
caos simplesmente elegante – adagas e espadas, vermelho e
prateado, o sangue no chão e as asas de sangue da capa de
Rahzavel.
A luta deles os levou para o terraço ao redor da ala. Eliana correu
atrás deles, a brisa quente do litoral a inundando. Abaixo, um dos
afluentes do rio se arrastava lentamente para o mar.
A lâmina de Rahzavel pegou a de Simon, prendendo-o contra a
grade de pedra. Eles estavam trancados juntos, os olhos de Simon
cheios de fúria fria, os de Rahzavel vazios e mortais. Os joelhos de
Simon estavam dobrados.
Eliana viu sua oportunidade, mergulhou nas costas de Rahzavel
com sua adaga. Ele girou no último momento, rebateu a arma dela
e, em seguida, Simon fora das mãos dele. Eliana pegou uma urna
de porcelana de uma mesa próxima e a derrubou nos ombros de
Rahzavel. Ele mal tropeçou, mas foi o suficiente.
Simon chutou o cotovelo de Rahzavel, e o assassino deixou cair a
espada. Então Simon o empurrou pelo parapeito do terraço.
Chutando e arranhando, Rahzavel espetou Simon na garganta,
mas Simon segurou, ofegando por ar. Eliana correu para o lado
dele, o ajudou a empurrar.
Rahzavel caiu sobre o parapeito e caiu na escuridão abaixo.
Eliana olhou por cima da beira, tentando ver se ele atingiria o rio,
mas a noite estava muito escura. Ela limpou o sangue do rosto,
respirando com dificuldade.
Simon se juntou a ela, tossindo por causa do último golpe de
Rahzavel na garganta. Ele cuspiu sobre o parapeito, os lábios
curvados com nojo.
— Você acha que a queda foi suficiente para matá-lo? — a garota
– Navi – perguntou, juntando-se a eles no parapeito.
Então os sinos das torres de vigia ao longo das paredes do
palácio começaram a tocar.
Navi assobiou uma maldição: — Razia. Ela desapareceu logo
depois que vocês chegaram. Ela deve ter denunciado vocês.
Os olhos de Eliana encontraram os de Simon: — Me siga.
Teremos que fazer isso da maneira mais difícil.
Ela levou Simon e Navi de volta ao palácio, por uma rede diferente
de passagens estreitas de criados. Eles encontraram três adatrox
vindos dos salões de baile. Navi achatou-se contra a parede curva
de pedra, enquanto Eliana e Simon socavam e esfaqueavam pelo
caminho.
Eles correram para dentro de um conjunto de quartos na ala leste
do palácio, onde os convidados da festa que ocupavam os quartos
gritaram em protesto, depois correram para outro amplo terraço,
este iluminado com lâmpadas de vidro rosa e perfumado por pilhas
de flores. Abaixo, os jardins de Lord Arkelion eram um mar de luz e
cor.
Eliana liderou o caminho, pulando do terraço em uma fileira de
arbustos. Aterrissou com força, os galhos estalando embaixo dela e
rolou de pé. Ela ouviu Simon e Navi pousarem atrás dela, ouviu o
suave grito de dor de Navi.
Os foliões saltaram, alarmados. Alguém gritou.
Eliana girou, procurando. Um esquadrão de adatrox irrompeu do
salão de baile da manhã, com espadas na mão. Dois fuzis. Eles se
agacharam nos degraus, miraram, preparados para atirar.
Dois tiros soaram; Eliana se abaixou. Uma urna de pedra próxima
quebrou. Um grupo de dançarinos com vestes de seda e pulseiras
fugiu, gritando.
Eliana levou Simon e Navi pelos jardins, passando pelos
convidados atordoados, tentando ignorar os sons dos adatrox os
perseguindo. Não conseguia pensar em Rahzavel, na sorte que ele
não teria chance de contar a ninguém sobre a coisa impossível que
vira.
Ela pensaria apenas em Harkan, em sua mãe, em Remy.
Remy, eu estou indo. Não tenha medo.
Mais adatrox os esperavam no perímetro dos jardins, onde um
túnel protegido levava aos pátios externos. Simon bateu em um
adatrox, cortou dois. Eliana viu um revólver disparar e empurrou
Simon para fora do caminho, assim que um tiro soou, depois girou e
abriu a garganta do atirador.
Eles chegaram aos pátios externos, depois pelo Portão do Lorde e
pela própria cidade. O Bairro Antigo estava em pânico, os cidadãos
lutando para voltar para suas casas. Guirlandas espalhavam-se
pelas ruas irregulares. Fogos de artifício explodiram no céu em uma
chuva de vermelho.
Eliana olhou para trás e viu o palácio pairando a certa distância –
e uma dúzia de adatrox em perseguição.
Finalmente, eles emergiram do Bairro Antigo e percorreram a
confusão dos mercados comuns na periferia da cidade, onde
vendedores e compradores, planejando uma noite de folia, agora
lutavam por segurança.
Eliana olhou em frente para a ponte leste. Os fogos de sinalização
brilharam nas torres que ladeavam a água. Em breve, todos os
soldados da cidade saberiam exatamente onde eles estavam.
Eles passaram correndo pela imponente estátua do almirante,
onde Harkan estava esperando. Ele acendeu um bombardeiro e
passou por eles em direção ao adatrox que se aproximava. Uma
explosão, gritos de choque e dor – depois um silêncio vibrante.
Os terrenos do mercado estavam em ruínas. O bombardeiro os
comprou um momento ou dois.
Um pequeno peso bateu em Eliana, abraçando-a.
Remy.
Ela beijou o topo da cabeça dele: — Está tudo bem. Eu peguei
você. Estou aqui.
Harkan ficou atrás dele, olhando além de Eliana. Mais adatrox
estavam chegando, saindo dos níveis superiores da cidade. Ele
jogou o capuz para trás e carregou o revólver que Simon havia lhe
dado.
— El, pegue-o e vá — ele disse a ela.
Eliana olhou para ele, Remy na mão: — Você vem conosco.
— Simon não pode poupar mais granadas. Eu posso segurá-los.
— Você está louco? Você não pode atirar em nada — ela agarrou
o braço de Harkan — E há muitos deles. Eles vão te matar!
Simon arrancou Remy das mãos dela e rugiu: — Eliana, agora! —
e correu pela ponte, abrigando Navi e Remy contra seu corpo. As
duas metades da ponte, abaixadas para trazer suprimentos para a
festa, começaram a subir. Remy olhou freneticamente para Eliana,
mas o fogo de flechas do muro interno da cidade choveu sobre eles,
e logo ele se perdeu na noite.
Eliana agarrou a mão de Harkan: — vamos.
Mas ele ficou firme, puxou ela para seu corpo para um beijo
desajeitado e duro.
— Eu sempre te amei — ele sussurrou contra a boca dela.
— Você me diz isso agora? — ela queria bater nele. Um soluço
explodiu em risada trêmula — Seu idiota…
Uma explosão próxima quase os derrubou. O adatrox detonou um
de seus próprios bombardeiros. Atrás de Eliana, a ponte mexeu e
gemeu.
— Eu posso lidar com isso — Harkan a empurrou em direção à
ponte — Vai!
Ela o encarou por um momento impotente e gelada, bebendo a
visão dele – a queda escura de seus cabelos, a bela linha quadrada
de sua mandíbula. Sua garganta se encheu de todas as coisas que
ela nunca tinha dito e de todas as coisas que ela tinha.
Nada disso era suficiente.
Ela se virou e fugiu pela ponte, sem olhar para trás, mesmo
quando ouviu Harkan abrir fogo. Ele gritou, e o peito dela agarrou
seu coração. Ela correu cegamente pela ponte trêmula, pulou a
brecha no topo e tropeçou do outro lado. Ela se juntou a Simon
enquanto ele lutava contra os guardas da torre, Navi e Remy logo
atrás deles.
A cada passo que dava, cada golpe de suas lâminas, a dor a
atingia. Lágrimas e fumaça a deixaram meio cega.
Primeiro sua mãe, agora Harkan. O melhor amigo dela. Sua luz
em dias escuros.
Ela o deixou. Ela o deixou.
Ela tentou ouvir os tiros dele e ouviu apenas o caos. Os arqueiros
adatrox na muralha da cidade gritaram comandos uns para os
outros. Simon sibilou para ela se mover mais rápido. Ele pegou um
bombardeiro de um adatrox caído, o acionou e jogou de volta na
torre de guarda.
A explosão os jogou fora de seus pés. O queixo de Eliana atingiu
o chão. Um choque de dor sacudiu seu crânio. Mas eles destruíram
a torre, derrubaram a ponte. Daria a eles alguns minutos. Ela se
levantou.
Depois da ponte, eles correram para um dos acampamentos
dispersos que se formaram fora da cidade – refugiados que fugiam
do perigoso interior, esperando uma chance de entrar na cidade. Os
acampamentos eram um pandemônio. As pessoas fugiam das
muralhas da cidade, pisoteando os lentos e doentes. Animais feridos
corriam enlouquecidos.
Ainda segurando Remy perto do braço, Simon jogou a Navi sua
capa de adatrox. Ela pegou e puxou o capuz sobre o rosto. Dois
soldados em mantos surrados os encontraram com um par de
cavalos selados. Outros passaram correndo por eles em direção à
muralha da cidade. Os rebeldes da Coroa Vermelha, Eliana
assumiu, todos prontos para morrer para protegê-los.
Bom, ela pensou. A morte deles vai nos dar tempo.
— Pegue o garoto — ordenou Simon. Navi assentiu, o rosto
escondido. Um dos rebeldes lhe deu apoio e depois ajudou Remy
antes de correr em direção à parede com os outros. O último
rebelde virou-se para encarar Simon, seu rosto castigado iluminado
com algum fogo interior.
Ela colocou o punho no coração e depois no ar – a saudação da
Coroa Vermelha.
— O Império vai queimar — ela disse.
Simon inclinou a cabeça: — Que a luz da rainha te guie.
Então a mulher se foi.
— Coloque seus braços em volta da minha cintura — Navi
murmurou para Remy — E segure firme. Qual o seu nome?
— Remy — ele respondeu, olhando com medo para Eliana —
Para onde estamos indo?
— Não — Eliana acordou de seu choque entorpecido, afastando-
se de Simon — Eu ando com Remy.
— Desculpe — respondeu Simon — Você não pode partir antes
de cumprir o fim de nossa barganha.
Apenas alguns dias antes, ela tinha sido o Terror – rainha de seu
próprio mundo sangrento. Imparável e incontestável.
Agora, ela corria o risco de perder todos que amava e não podia
fazer nada para impedir. Nada além de deixar o único lar que ela já
conheceu e confiar a vida de seu irmão a um estranho que não
responderia suas perguntas.
Sua paciência estalou.
Ela aceitou a mão estendida de Simon, subiu atrás dele e levou
Arabeth até sua garganta.
— Diga-me para onde estamos indo, Lobo, e o porquê —
murmurou Eliana — Ou isso acaba agora.
Navi incitou seu cavalo lentamente na direção deles: — Minha
amiga — disse ela a Eliana — Juro que ele não é nosso inimigo.
— Navana é uma princesa de Astavar — respondeu Simon — E
estamos levando-a para casa.
— A invasão do Império está chegando muito mais cedo do que
pensávamos, e em maior número — Navi olhou para fora de seu
capuz, seu olhar sério. — Devo avisar meu povo a tempo, ou
Astavar cairá. Esta não é uma informação em que possamos confiar
no subterrâneo.
Eliana olhou para a garota. Era impossível: uma princesa,
posando como uma das concubinas de Sua Senhoria. Uma invasão.
Astavar cairá.
E, se o fizesse, o último reino livre do mundo cairia. O Império
Imortal dominaria tudo.
— Você pode por favor abaixar sua maldita adaga? — Simon
rebateu — Estamos perdendo tempo.
Eliana o fez, e Simon lhe lançou um olhar assassino por cima do
ombro antes de acrescentar: — Tente não cair.
Enquanto fugiam pelas colinas orientais, deixando a cidade de
Orline para trás, passaram pela crista da terra onde ficava a estátua
de Audric, o Portador da Luz. Agora havia apenas terra nua,
chamuscada e cinza da guerra.
Ainda assim, quando passaram pelo local, Eliana sentiu a velha
pontada no coração pelo rei morto e pensou em uma oração que ela
não se permitia fazer há anos:
Que a luz da rainha nos guie para casa.
13
Rielle
“De céu em céu
De mar em mar
Firme eu permaneço
E nunca vou fugir.”
—O Rito da Terra
Como foi proferido pela primeira vez por São Tokazi, o Firme,
santo padroeiro de Mazabat e earthshakers

A montanha estava caindo ao redor dela.


Rielle esperava que fosse um sonho. Talvez os últimos dias
tivessem sido um pesadelo, e agora ela acordaria, e tudo seria
como era antes.
Abra seus olhos, Rielle.
Sim. Ela sabia que precisava abrir os olhos, mover-se, correr, mas
a tolice que corria por suas veias fazia o movimento parecer
impossível.
Eles a drogaram.
O maldito Arconte havia decidido, que, quando acordasse no local
do desafio, não soubesse onde estava ou como chegou lá. Como se
jogá-la nessas provas no dia seguinte ao depoimento, sem tempo
para treinar com o pai ou estudar com Tal, não fosse punição
suficiente por suas muitas mentiras.
De fato não era, segundo o Arconte.
— Talvez, Lady Dardenne — dissera ele brandamente, com os
olhos escuros lacrimejantes fixos no rosto dela — Se você tivesse
se revelado imediatamente após o assassinato de sua mãe há
tantos anos, as coisas seriam diferentes agora.
— E como uma criança de cinco anos — ela retrucou, incapaz de
ficar quieta — Tal escolha foi exclusivamente minha
responsabilidade, suponho?
O Arconte cruzara as mãos no colo, sete anéis brilhando nas
macias mãos brancas: — Até crianças — ele dissera — Sabem que
é errado matar.
Abra seus olhos, Rielle. Seu cérebro estava gritando com ela, ou
talvez alguém estivesse por perto. Talvez um dos membros do
conselho que supervisionou o desafio. Talvez Tal.
Talvez aquela voz estranha tenha retornado.
Abra seus olhos!
Ela se forçou a ficar de pé, seus membros desajeitados e pesados
como chumbo. Sua visão balançou violentamente para frente e para
trás. Ela colocou uma mão enluvada em ambos os lados da cabeça
latejante.
Então ela sentiu a pressão pesada de algo subindo bem acima
dela, frio e implacável.
Pedra.
Esteja preparada para se mover assim que acordar. As instruções
de Tal mais cedo naquela manhã passaram por sua mente como
fragmentos pegajosos de um sonho. Eles não vão dar tempo para
você se recuperar.
Ele se recusou a olhá-la nos olhos, e ela se recusou a implorar
para ele.
Um estrondo por trás e em cima retumbou em volta de sua
cabeça. Como uma série de socos no estômago, seus sentidos
voltaram ao lugar:
A leve picada de gelo.
O ar, fino e frio.
Seus dedos, a maioria dormentes. O frio penetrava em suas botas
de couro e nas calças mais grossas que possuía, nenhuma das
quais era quente o suficiente para um ambiente assim. Mas o
Arconte decidiu que ela não tinha direito a roupas adequadas, que
só podia usar o que já tinha em seu armário e que não receberia
outra ajuda. E assim, doze horas depois, aqui estava ela, jogada
em...
Uma montanha.
Estava caindo ao seu redor.
Não era uma das pequenas montanhas da rota do Chase, mas um
dos picos monstruosos que formavam uma espinha zangada e com
neve se dirigindo para o leste da capital.
Mexa-se, Rielle!
Ela deu um passo para trás, olhou para cima, tropeçou em
pedaços de gelo, se segurou em uma pedra coberta de neve.
Enquanto ela observava, pequenas pedras escorregaram do pico
mais próximo, colidindo com a neve empilhada nas encostas e
enviando rajadas brilhantes de gelo. De repente, ela estava de volta
ao curso de Chase, observando a passagem da montanha
desmoronar e não se importar – porque ela deveria se preocupar
com a queda de montanhas com Audric em perigo?
Mas Audric não estava aqui. Rielle estava sozinha.
Doze pequenas luzes brilhavam bem acima, cercando-a.
Sua mente lenta alcançou seu corpo que despertava rapidamente.
Não. Ela não estava sozinha.
Essas luzes pertenciam a elementais: a Grã Magister Florimond e
seus acólitos earthshakers do Holdfast. Uma dúzia deles formava
um perímetro, receptáculos nas mãos, ordenados pelo Arconte para
derrubar a montanha e achatá-la.
Este era o desafio da terra, o primeiro de sete que decidiria seu
destino.
Eles apressaram as coisas – com raiva dela, possivelmente com
medo dela. Isso era desleixado e pouco característico da Igreja, feito
sem testemunhas, pompa ou cerimônia.
Mas isso dificilmente importava. Se ela não fugisse, seria
esmagada.
Rielle, corra!
Descendo a montanha, ela disparou, passando por árvores,
pulando veios de pedra congeladas. Ela pulou sobre uma árvore
caída meio enterrada na neve e caiu em uma deriva de um metro e
meio de profundidade. Perdeu o equilíbrio, deu um salto para a
frente, afundou na neve e inalou, tossindo. Ela procurou um lugar
para se segurar no gelo, levantou e olhou por cima do ombro.
O largo mar de neve era agora uma onda agitada, com centenas
de metros de altura, devorando tudo em seu caminho. Pinheiros
pretos estalaram ao meio; raposas e veados em fuga
desapareceram, sugados sob a furiosa corrente branca. Grandes
lajes de rocha ondulavam na superfície, sacudindo e caindo.
O terror atravessou o corpo de Rielle, abafando tudo o que ela
sabia.
Ela olhou para a frente mais uma vez. O desfiladeiro se inclinava
ligeiramente para cima diante dela. Se ela conseguisse chegar a um
terreno mais alto, talvez pudesse escapar do caminho da avalanche.
Ou, disse a voz, retornando abruptamente, você poderia...
Mas Rielle não pôde ouvir o resto da frase com o rugido da
montanha trovejante. Galhos de pinheiro e punhados de gelo caíam
sobre ela. Seus pulmões ardiam, cada respiração gelada queimando
sua garganta enquanto ela lutava contra a neve. Ela agarrou as
árvores para se impulsionar para a frente e arranhou os dedos
enluvados.
Ali: uma ligeira elevação de rocha, pontilhada por tocos de árvores
cujas raízes finas caíam em cascata pelas rochas como cobras
rastejando por seus buracos.
Rielle saltou para o alto da pedra – e errou.
Não, ela não errou.
A terra estava se abrindo, seu caminho caindo sob os próprios
pés.
Ela estendeu a mão cegamente, desesperada por um aperto de
mão. Segurou uma pedra congelada com uma mão e colidiu com a
pedra. Pendurada ali, tonta, ofegante.
Uma luz piscou no canto do olho esquerdo.
Os earthshakers não a deixariam escapar tão facilmente.
Com os pés balançando sobre o abismo, ela levantou a outra
mão, agarrando a pedra para segurar melhor. Ela tentou se levantar,
todos os músculos tensos.
Quando chegasse em casa, teria que pedir ajuda ao pai para
fortalecer seu corpo.
Se ela chegasse em casa.
Então seria isso? Ela morreria neste primeiro desafio,
apressadamente abatida como se não fosse nada importante?
Como se a vida dela e o destino de Tal e de seu pai não significasse
nada?
Não, ela não terminaria assim.
Isso, a voz disse, é o que gosto de ouvir.
Com um grito áspero, Rielle se levantou, seu corpo queimando em
protesto. Ela se perguntou se seus braços se soltariam, depois
arranhou os joelhos contra a rocha e subiu até o topo da ladeira.
Ela correu para a esquerda, com a respiração entrando e saindo
dos pulmões como punhos gelados. Pedras ergueram-se à sua
frente em grupos de pilares, enfeitados com neve e lama. O
caminho era sólido. A esperança inchou em seu peito.
Então, com um grande gemido ecoante, como se as placas da
terra tivessem sido empurradas para fora de alinhamento, o
caminho diante dela se abriu. Pequenos abismos serpenteavam
pelo chão, alargando-se como bocas cheias de criaturas
subterrâneas ansiosas por uma matança.
O estômago de Rielle mergulhou nos dedos dos pés. Mas não
havia tempo a perder. Ela fechou os olhos e pulou.
Os pés dela bateram no chão.
Ela abriu os olhos. Ainda viva, ainda respirando.
Ela pulou e pulou novamente através dos trechos de rocha que se
deslocavam. Os abismos aumentaram; o chão tremeu e
estremeceu, tentando afastá-la. Um arrepio violento a jogou para o
lado. Ela caiu – arranhando o braço e os joelhos brutalmente – se
levantou e correu.
O ar se agitou com fragmentos de gelo e rocha. A avalanche
bloqueou o sol e sugou o ar do céu. O mundo acima dela estava
branco e rugindo; o mundo abaixo dela estava se desfazendo como
deveria ter acontecido quando Deus soprou vida no universo.
Eu não vou morrer aqui, ela pensou.
Ela se empurrou mais rápido, seu corpo inteiro pegando fogo.
Depois das árvores à frente, tinha que haver um caminho para a
segurança, terreno alto demais para a avalanche tocar. Se ela
pudesse chegar um pouco mais longe...
Então ela viu a verdade:
Além das árvores, não havia caminho.
Era uma gota pura. Um canyon – e sem saída.
Sua mente gritou que era o fim.
O corpo dela decidiu discordar.
— Não — ela sussurrou.
Não, aconcordou a voz. Hoje não. Nunca.
Rielle se virou para enfrentar o enorme mar de neve branca,
plantou as pernas congeladas na beira do penhasco. Ela colocou as
mãos no ar e fechou os olhos com força. Não pensou em nada, nem
pensou em parar.
Ela levantou as mãos, o calor sólido dentro dela gritando Não!
mais alto do que qualquer voz ou palavra jamais poderia.
Uma parede estreita de pedra, larga o suficiente para abrigá-la,
explodiu do chão diante dela e disparou no ar apenas alguns
segundos antes da avalanche bater nela.
Rielle ficou de pé, com a cabeça baixa e os olhos fechados, as
mãos pressionadas contra a rocha que crescia rapidamente, as
palmas das mãos acesas na pedra. A avalanche rompeu com um
uivo estridente de cada lado dela. A neve e a agitação raspavam
seus braços e pés, ameaçavam levantá-la do chão e arremessá-la
no desfiladeiro.
Segure firme na rocha, disse o sangue de Rielle.
Segure firme.
E a laje estreita de pedra parecia ouvir. Estava alta, tremendo
contra a força da avalanche. O ar tinha um sabor azedo, mechas
úmidas de magia earthshaker, cheirando a lama, chegando ao limite
enquanto passavam pelo ar.
Uma pequena chama de triunfo surgiu entre os pulmões ardentes
de Rielle.
Eles tentaram matá-la e falharam.
Eles derrubaram uma montanha em cima dela e ela sobreviveu.
Ela estava tremendo na beira do penhasco, a mesma montanha
que tentara matá-la agora a protegendo de si mesma.
— Por favor, pare — ela sussurrou para a montanha. Ela não a
culpou por estar com raiva de tais abusos. Ela apertou a bochecha
contra a parede quente de pedra, que agora estava rígida como
uma coisa antiga que sempre existiu naquele local – um pilar
estranho de rocha, solitário e teimoso.
As pontas dos dedos dela estavam em chamas. Se ela
continuasse por mais tempo, seu peito se abriria, seu coração
estouraria, seus pulmões cederiam.
— Por favor — ela sussurrou, cada palavra um esforço — Pare —
lágrimas exauridas escorreram por suas bochechas.
Então, seja uma resposta ao pedido dela ou simplesmente o
momento em que a Grã Magister Florimond decidiu que bastava, a
montanha recuou completamente. A avalanche diminuiu;
pedregulhos caíram abruptamente do céu.
Foi um caos para a quietude no espaço de cinco segundos.
Um pássaro gritou desamparado.
Rielle se deixou cair, caindo ao pé de sua rocha. A neve era um
travesseiro frio sob sua bochecha flamejante.
— Só mais seis — ela sussurrou, um sorriso aguado brincando
nos lábios, e então a dor a atingiu de uma só vez.
Estarei aqui quando você acordar, disse a voz, e uma parte fraca
e giratória de sua mente cansada sussurrou de volta, Obrigada.
14
Eliana
“Desde que nossa guerra com os humanos
começou, eu tive apenas um sonho. Todas as
noites, o nevoeiro que me rodeia se ergue, e
eu entendo mais do que vejo: uma mulher,
feita de ouro mais brilhante que o sol. Ela está
de pé em um rio de sangue, e a luz cai das
pontas de seus cabelos. Ela é amiga ou
inimiga? Isso meus sonhos não me deixaram
claro. Mas eu sei de uma coisa: Ela virá. Nesta
guerra, ou na próxima, ela virá.”
—Escritos perdidos do anjo Aryava

— Ouvi dizer que você é um contador de histórias. — disse Navi.


Eliana esperou pela resposta de Remy.
Nada.
Já fazia dois dias que eles estavam levando os cavalos para o
norte à noite, escondendo-se em um silêncio tenso quando ouviam
sinais de uma perseguição de patrulhas adatrox e, depois, do
nascer ao pôr do sol, esperavam nas árvores o anoitecer.
No momento em que tiveram a chance de descansar, escondidos
em uma vala cheia de lama fedorenta enquanto o sol brilhava
perigosamente acima, Remy sussurrou: — O que aconteceu com
Harkan?
— Ele ficou para trás para nos dar tempo de escapar. — Eliana
disse a ele, sua voz cuidadosamente controlada e seu coração em
pedaços. — Eu deixei instruções para ele. Ele nos alcançará mais
tarde...
— Não minta para mim. Ele está morto, não está?
Ela não conseguia olhar para ele. — Harkan? Vamos lá, você
sabe que é preciso mais do que alguns adatrox para...
— Cala a boca.
— De verdade, Remy. Não podemos ter certeza. — Mesmo
quando dizia as palavras, ela não conseguia acreditar nelas. — Ele
ainda pode estar vivo.
— Por favor. — Remy levou os joelhos ao peito e se afastou dela.
— Apenas cale a boca.
Ele não disse nada desde então.
Agora, no entanto, Navi parecia determinada a fazê-lo falar.
— Que tipo de história você gosta de contar? — Ela perguntou.
Eliana, que era a primeira no turno de vigia, encostou-se em um
carvalho prateado próximo, Arabeth em uma mão e Whistler na
outra. Ela olhou para a floresta. Carvalhos finos de prata com casca
levemente reluzente os cercavam, assim como as árvores de
gemma com folhas de cera e flores brancas. Torres de vigia
robustas, sem galhos, exceto por grupos de aparência esfarrapada
no topo que estavam tortas. Elas eram populares ao longo da
parede externa de Orline, tradicionalmente plantadas para afastar
invasores, o que Eliana achou hilário. Ela sempre pensou que elas
se pareciam com velhos com barrigas macias e cabelos selvagens.
Quando ela contou isso a Remy, ele analisou a árvore mais
próxima deles, depois pôs o nariz no ar, curvou-se e disse à árvore:
— Bom te encontrar, bom senhor. Posso lhe oferecer um pente?
Eliana riu tanto que ela realmente chiou.
Sua mão apertou em torno de Whistler. Deus, seria bom lutar
contra algo.
Em vez de ficar aqui, sentindo pena de mim mesma.
E com raiva.
Principalmente com raiva.
Não. Ela respirou fundo, devagar. Principalmente sentindo falta de
Harkan.
E da mãe.
E do pai.
Por um momento, ela se permitiu imaginar Harkan ao seu lado,
vigiando-a, desconfiando de Simon, preocupando-se com sua mãe,
sua garganta se apertou com tanta dor que ela perdeu o fôlego.
Preste atenção, Eliana. Você está de vigia.
Ela olhou para as árvores até os olhos secarem, depois olhou de
soslaio para Simon, que havia se acomodado para descansar. Ele
estava sentado na sombra de outro carvalho, examinando a floresta
iluminada pelo amanhecer.
Ela o analisou. Luto e preocupação a incomodavam por dentro.
Essa quietude era enlouquecedora.
O que ele faria se ela sacasse suas lâminas? Ele a superou em
casa, mas apenas por causa de sua arma. Se ela pudesse estripa-lo
antes que ele pudesse alcançar o coldre...
E depois o que? O ponto principal dessa aventura louca era usá-
lo, não matá-lo.
Eliana bateu a cabeça contra a árvore e olhou para o céu.
— Falar comigo pode fazer você se sentir melhor — Navi insistiu,
sua voz gentil.
Eliana revirou os olhos.
Mas então Remy a surpreendeu. — Eu gosto de escrever histórias
sobre magia. — Ele respondeu com a voz rouca.
Eliana ficou sem fôlego. Ela não havia percebido até aquele
momento o quanto sentia falta do som de sua voz
— Magia? — Navi parecia intrigada. — Você quer dizer como a do
Velho Mundo?
— Gosto de escrever sobre os Elementals. Especialmente os
Earthshakers.
— Por que os Earthshakers?
— Porque às vezes eu gostaria que um exército de Earthshakers
viesse a Orline abrissem o chão e engolissem a cidade inteira.
— Entendo — Disse Navi sem mostrar emoções.
— Desculpe — Remy murmurou. — Eliana diz que não devo falar
sobre coisas assim. Não é gentil.
Isso pareceu divertir Navi. — E sua irmã é?
Vadia. Eliana deu a ela o sorriso que ela geralmente reservava
para as pessoas que ela queria persuadir na cama. — Quando eu
quero ser. — Ela respondeu.
Remy lhe lançou um olhar irritado.
Navi colocou o braço em volta dos ombros dele. — Eu entendo
sobre querer derrubar sua cidade. — Disse ela. — Às vezes acho
que a vida seria mais fácil se os oceanos se levantassem e
afogassem Astavar. Então não precisaria passar todos os momentos
da minha vida em agonia de preocupação por isso.
Remy assentiu. — WaterWorkes poderiam fazer isso.
— De fato, eles poderiam, se ainda existissem. Mesmo assim,
eles teriam que ser bastante poderosos para afundar um país
inteiro.
Uma batida de silêncio. Então Remy sussurrou: — A rainha Rielle
poderia ter feito isso.
— Ah. Navi soltou um pequeno suspiro. — A própria Rainha de
Sangue. Sim, tenho certeza de que ela poderia ter mergulhado
todas as montanhas nas profundezas se tivesse vivido o suficiente
para fazê-lo. Você escreve histórias sobre ela?
— Uma vez escrevi uma história sobre o que teria acontecido se
ela não tivesse morrido. Se ela tivesse vivido para sempre com os
anjos, e o mundo ainda tivesse magia. Você acha que os anjos a
teriam feito um deles? Foi o que eu escrevi na minha história. Ela os
levou ao céu, e eles procuraram por Deus nas estrelas.
— Eu acho. — Disse Navi lentamente. — Que se a Rainha de
Sangue tivesse vivido, ela se tornaria algo mais poderoso do que
um anjo, com todos os seus milênios de conhecimento, ela saberia
de tudo.
Eliana se afastou da árvore, não conseguindo mais ficar parada
ouvindo a voz de Remy ficar cada vez mais excitada, como se essa
princesa Navana fosse uma amiga querida dele, como se ele não se
importasse que Eliana esperasse nas sombras, pronta para degolar
qualquer garganta estranha que possa aparecer.
E ele iria preferir que eu ficasse parada e o assistisse ser
despedaçado na próxima vez que formos atacados?
Ela sabia o que ele diria: Sim.
Que tolo.
Porque pelo menos eu não estaria matando. Não é mesmo,
querido irmão?
— Você gosta de escrever histórias? — Remy perguntou.
— Gosto de contar histórias que outros escreveram. —
Respondeu Navi. — Histórias sobre Astavar acima de tudo.
Remy hesitou. Então, disse timidamente: —Você pode me contar
uma?
Eliana se atreveu a olhar para eles. Remy havia se encostado ao
lado de Navi na samambaia, as costas contra uma árvore derrubada
da torre de vigia, a cabeça apoiada nela. A garota acariciou os
cabelos desgrenhados de Remy, lentamente, e quando ela pegou
Eliana olhando, a expressão que ela usava era de tanta compaixão
que Eliana fantasiou, por um momento imensamente gratificante, de
a alcançar e acertar seu punho em sua mandíbula.
Ela virou-se para Simon.
Mas ele não estava lá.
Ela congelou. Seu peito se apertou de medo.
— Certamente vou compartilhar uma história com você, e estou
honrada que um escritor queira me escutar. — Respondeu Navi. —
Você sabe, é claro, que a santa padroeira de Astavar é ...
— Tameryn, A Astuta. — Disse Remy, sua voz se iluminando. —
Ela era uma Shadowcaster. Eu li que ela dormia sob as estrelas e
usava seu leopardo preto como travesseiro.
— E você também leu. — Disse Navi. — Que sombras cresceram
em seu couro cabeludo em vez de cabelos? Seu pente favorito
estava coberto de pérolas negras esmagadas, e era esculpido dos
ossos de um lobo que morreu salvando sua vida quando era
menina.
— Eu não conheço essa história — Remy sussurrou,
impressionado.
Eliana se afastou deles, suas vozes murmuradas a seguindo no ar
da manhã como uma canção de ninar desconhecida. Com as
adagas a postos, ela circulou a árvore sob a qual Simon estava
parado. Não tinha nada lá.
Ela supôs que ele poderia estar se aliviando em algum lugar, mas
o desconforto que se instalou em seu peito dizia o contrário.
Abaixando-se debaixo de um galho de carvalho caído, usando a
lâmina de Whistler para abrir uma cortina de musgo suspenso,
Eliana sabia que estava se afastando demais do acampamento. Não
podia deixar Navi, Remy e os cavalos sem cuidados, mas sem
Simon, eles todos estavam perdidos. Eles se perderiam nessas
florestas cheias de pântanos mais rapidamente do que...
Uma mudança no ar aconteceu, leve, mas inegável.
Alguém estava por perto.
Eliana agachou-se à sombra de uma árvore de gemma,
procurando a origem do barulho na floresta.
Então algo frio picou a lateral de seu pescoço.
— Dê-me um motivo para matá-la. — Disse a voz de uma mulher,
cruel e dura como rocha — E eu farei isso.
Eliana pressionou o pescoço com mais força contra a faca da
mulher, sentiu a ponta da lâmina afundar em sua carne. A dor tomou
seu corpo. Estou aqui. dizia, E não corro da morte.
Eu a procuro.
Eliana riu. — Você morreria tentando, eu acredito.
A mulher fez um barulho desdenhoso. — Improvável. Ela cuspiu, e
então levou com força o punho da faca contra a cabeça de Eliana.
15
Rielle
“Já não tenho nome. Abandonei meu
receptáculo à destruição e abandono a magia
com a qual nasci. Dedico minha mente e corpo
à orientação da Igreja e ao estudo do
empirium. Não tenho mais nome. Eu sou
apenas o Arconte.”
—Juramento de indução tradicional do Arconte, líder da Igreja de
Celdaria

A voz seguiu Rielle de volta a realidade, sociável e silenciosa.


Estranho, que uma voz pudesse ser silenciosa. Se não estivesse
falando, ainda assim, Rielle poderia senti-la ao seu lado, então
acreditava que não era somente uma voz.
Pertencia a alguém – um corpo, uma pessoa – e quem quer que
fosse, estava perto.
Quem é você? Ela esperava que a voz pudesse a ouvir – ao
mesmo tempo que não. Ela tinha enlouquecido?
Gentilmente provocando, a voz respondeu. Vou te contar agora.
Você merece, Rielle. Você escapou da montanha afinal.
Um sorriso apareceu em seus lábios. Antes, a voz parecia vaga,
indecifrável. Mas agora…
Você é um homem.
Mmm. Afirmativo, Disse suave e brincalhão. Quase ronronando.
O sorriso de Rielle cresceu, o calor subindo por suas bochechas.
Você tem um nome? Ela perguntou.
Claro.
E então Rielle sentiu olhos nela, apesar de não poder ver nada
além do preto aveludado de sua mente que ainda despertava.
Dedos frios tocaram seu pulso.
Rielle se mexeu. Endurecendo.
Conte-me? Sua voz continha uma timidez desconhecida. Ela
passara a infância flertando cautelosamente com Tal, com Ludivine,
até ousando com Audric de vez em quando, mas isso parecia
diferente. Novo e imenso.
Por favor?
A voz respirou lentamente, depois soltou um suspiro ainda mais
lento – um som satisfeito. Não um gemido, nem um suspiro.
A pele de Rielle formigou, esquentando.
Meu nome, Disse a voz, lábios roçando a curva de sua orelha. É
Corien.

•••

— Lady Rielle, você está acordada. E bastante satisfeita consigo


mesma, ao que parece.
Os olhos de Rielle se abriram.
Uma parede de janelas emolduradas com cortinas nas cores da
Casa Courverie recebiam a luz da tarde. O teto pintado acima dela,
cercado de molduras douradas, exibia a rainha Katell em toda a sua
glória. Primeiro como uma jovem acólita no coração de Celdaria,
então como Santa Katell, dirigindo os anjos através do Portão, e por
último, coroada e vestida, a primeira rainha de Celdaria.
Ao lado de Rielle estava o Arconte. Seus olhos fixados em Rielle,
levemente curiosos.
Atrás dele estavam dez membros da Guarda Sagrada. Os sete
símbolos do templo decoravam suas brilhantes armaduras de ouro,
refletindo os símbolos costurados nas vestes do Arconte. A Guarda
Sagrada não devia nenhum tipo de lealdade ao Lorde comandante
Dardenne, o guarda real ou a guarda da cidade, eles pertenciam
apenas ao Arconte e à Igreja.
Ignorando a ansiedade que cortava seus braços, Rielle sentou-se
e encarou o Arconte com um olhar que esperava ser tão
irritantemente imperturbável quanto o dele.
— Estou de fato satisfeita, Sua Santidade. — disse ela, sorrindo.
— Pois parece que concluí com sucesso a primeira de minhas
provações. Se você tivesse parado uma avalanche usando apenas
as suas mãos e um pouco de determinação, certamente também
ficaria orgulhoso de si mesmo, não é?
Ela fez uma pausa. Será que estava exagerando?
Porém, ela não conseguiu resistir.
— Mas então. — disse ela, observando o rosto do Arconte. —
Seria difícil para você imaginar tal coisa, já que desistiu de todos os
direitos à sua magia. E, mesmo antes disso você tinha que usar um
receptáculo para acessar seu poder. Não estou sobrecarregada por
tais restrições.
O Arconte permaneceu sem piscar, seu sorriso pequeno e tenso.
Rielle não desviou o olhar.
Bom. disse Corien. Faça-o suar.
Uma porta na parede à direita de Rielle se abriu, revelando um
dos pajens do rei Bastien. — Sua Majestade está pronta para você,
Sua Santidade.
— Excelente. — O Arconte levantou-se. — Lady Dardenne, siga-
me.
Rielle obedeceu, a guarda sagrada formando um círculo ao seu
redor enquanto caminhava.
Eles realmente pensam que vou perder todo o senso de razão e
matar todos à minha vista? Ela pensou sombriamente.
Alguns sim. disse Corien.
Algo no tom da voz dele – ou do pensamento? – assustou Rielle.
Você não está apenas dizendo isso. Você sabe o que eles pensam.
E então silêncio.
Corien? De repente, seu coração estava batendo forte no peito. A
realidade do que estava acontecendo parecia de repente,
terrivelmente clara. Ela estava falando com uma voz em sua
cabeça, como se isso fosse uma coisa normal, e tinha sido tão fácil
fazê-lo que já parecia um hábito rotineiro.
Isso... não era bom.
A verdade voltou para ela, falar mentalmente era algo que os
anjos fizeram uma vez.
Enojada por si mesma, ou pela ideia de Corien, Rielle não
conseguiu se decidir – ela imaginou se afastar dele, se fechar atrás
de uma porta e girar a chave.
O que você não está me dizendo? Ela sussurrou contra a porta.
A voz de Corien ficou fina e fria: Preste atenção, Rielle. Seus
carcereiros te esperam.
— Lady Rielle — A voz do Rei Bastien soou agradável. — Você
parece bem, considerando tudo.
Rielle piscou duas vezes, voltando a si mesma. Ela estava diante
de uma longa mesa retangular de madeira polida. Retratos
emoldurados de reis e rainhas da linha Courverie adornavam a
parede oposta. À sua direita, uma ampla extensão de janelas que
dava acesso para uma varanda ensolarada.
Este era o Salão do Conselho do rei, onde seu Conselho Privado
se reunia.
E lá se encontrava o próprio rei, com seus conselheiros mais
próximos: a rainha Genoveve ao lado dele, encarando Rielle por
cima da borda do cálice de vinho. A Dama da Moeda, O Senhor das
Letras e Os Juízes da Suprema Corte, nomeados pelo rei.
Grã Magister Florimond, a mais poderosa earthshaker de
Celdaria, a mulher que criou a avalanche.
E o pai de Rielle, com o rosto sem expressão e ilegível.
Ela não o abraçava há anos, mas agora, estranhamente, se viu
desejando isso.
Mas apenas por um momento.
Ela levantou uma sobrancelha para ele e curvou-se. Avistou suas
botas arruinadas e percebeu que ainda estava usando as roupas da
montanha. Seu corpo escolheu aquele momento para sentir cada
arranhão e entorse, cada machucado. Suas feridas provocavam
partes iguais de dor e prazer triunfante.
Ela lutou contra a montanha e venceu.
Rielle se endireitou mais uma vez, a dor brotando em seus
ombros doloridos.
— Obrigada por dizer isso, Sua Majestade. — disse ela. — Minha
rainha. Meu senhor Pai. Grã Magister. Fico feliz em ver todos vocês
bem.
— Também estamos felizes em vê-la bem, Lady Dardenne —
Respondeu o rei Bastien.
— Vocês estão?
A cabeça de seu pai se virou para encará-la.
Uma risada rouca soou na mente de Rielle. Querida.
Rielle mordeu seu lábio inferior. — Perdoe-me, meu rei. Isso foi
insolente da minha parte.
— E não foi apenas insolente. — Murmurou a Rainha Genoveve.
— Passou seus dias colocando em risco meu filho e sobrinha, não
se preocupa com a segurança deles?
Rielle deu um passo à frente, com indignação subindo no peito.
Como um só, a guarda do rei e a Guarda Sagrada ao lado do
Arconte se mexeram, as mãos em suas espadas.
Ela apertou a mandíbula e se manteve firme. — Minha rainha,
amo seu filho e sobrinha mais do que qualquer pessoa neste
mundo. Se você acha que passei um momento da minha vida sem
pensar na segurança deles, você está completamente...
O bater de uma porta a cortou. Rielle virou-se para ver Audric
caminhando em direção a ela, cachos escuros caindo sobre a testa
em desordem e Ludivine logo atrás dele.
Uma onda de alívio tomou conta de Rielle, ela teve que se apoiar
na mesa do rei para obter apoio.
Então Audric estava lá, abraçando-a. Contra o cabelo
emaranhado e coberto de lama, ele sussurrou — Rielle, eles não
nos deixaram ver você.
Aninhada em segurança sob o queixo de Audric, Rielle deixou
seus olhos se fecharem e respirou seu cheiro familiar. — E ainda
assim aqui está você.
— Você está bem? — Audric se afastou, procurando seu rosto. —
O que aconteceu?
— Eu completei com sucesso a prova da terra. — Respondeu
Rielle, incapaz de reprimir um grande sorriso enquanto olhava para
ele. — Só restam mais seis.
Ao lado de Audric, Ludivine sorriu. — Oh, Rielle, isso é
maravilhoso
— Sim, a Grã Magister Florimond e seus acólitos criaram uma
avalanche. — Acrescentou o Arconte. — Destinado a matar Lady
Rielle. Obviamente não a matou. Para nosso grande alívio. — Ele
fez uma pausa. — E para seu alívio ainda maior, ao que parece,
meu príncipe.
As bochechas de Rielle queimaram, quando ela olhou além de
Audric para encontrar o olhar de Ludivine, ela não viu nada além de
amor e um sorriso caloroso.
Audric se afastou de Rielle. — Meu senhor, Arconte, você zomba
da vida e segurança da nossa Rainha do Sol? Por favor, me ajude a
entender isso. Parece desrespeitoso na melhor das hipóteses e
blasfêmia na pior.
— Gostaria de lembrá-lo, meu filho — disse a rainha Genoveve —
De que Lady Rielle completou apenas uma das sete provações. E
não cabe a você determinar se ela é ou não a rainha do sol.
Os olhos de Audric brilhavam, seus ombros erguidos. — Ela não
apenas completará as provas: ela irá transcendê-las.
O Arconte fungou. — Em que você baseia essa fé?
— Eu a conheço a vida toda.
— Você conheceu uma mentira.
— Basta. — O rei Bastien apertou as mãos sobre a mesa. — Não
estamos aqui para discutir sobre o passado. Estamos aqui para
discutir o futuro.
— Você está certo, pai. — Disse Audric, aproximando-se dele. —
Não faça Lady Rielle concluir o resto dessas provações sozinha e
despreparada. — Ele olhou para Rielle, sua expressão iluminada
com convicção e crença. Crença nela. — Ela deve concluir os testes
na frente de tantas pessoas quanto possível.
— Deve ser um espetáculo. — Concordou a Grã Magister
Florimond, inclinando-se para encarar o rei. Ela era uma mulher
robusta e baixa, com pele avermelhada e cabelos castanhos
grossos em uma coroa de tranças na cabeça. — As coisas que Lady
Rielle realizou naquela montanha… — Ela balançou a cabeça e
olhou para Rielle. — São coisas que as pessoas precisam ver.
Rielle sentiu uma onda de prazer com a expressão de horror do
Rei Bastien — Por quê?
Magister Florimond abriu a boca para falar, depois hesitou e olhou
para Audric.
— Porque — Disse Audric, observando o pai. — Quando o Portão
cair e os anjos retornarem, a Rainha do Sol precisará do apoio do
povo Caldarian nas costas dela. Eles precisam ver o trabalho dela.
Eles precisam amá-la.
Os juízes, o Lorde das Letras e a Dama das Moedas, até a rainha,
se mexeram inquietos, assim como alguns dos guardas parados ao
redor da sala.
Rielle olhou para o pai. Por fim, ele retornou o olhar dela. Ela se
perguntou se ele estava se lembrando da mesma coisa que ela:
noites secretas no escritório de Tal, depois de um dia de aulas,
Rielle no colo do pai e lendo lentamente as palavras da profecia de
Aryava em voz alta:
Duas rainhas vão subir.
Uma do sangue.
Uma da luz.
Ela era jovem na época, e talvez ainda não fosse suficientemente
assustadora, então seu pai ainda a tocava com algo que parecia
carinho.
— Audric. — Disse o rei Bastien com firmeza. — Eu pediria que
você não falasse dessas coisas agora.
— Mas é justamente agora que precisamos falar dessas coisas.
— A voz de Audric estava assumindo aquele tom sereno e rude, o
mesmo que ele sempre seguia nos seus “ataques acadêmicos”,
nome dado por Rielle e Ludivine.
Apesar de tudo, Rielle olhou de lado para Ludivine, que estava
escondendo seu próprio sorriso.
— A morte da princesa Runa. — Continuou Audric. — As revoltas
de escravos em Kirvaya. As tempestades sem precedentes no
oceano, em Meridian e Ventera. As montanhas que se deslocam
nas antigas terras angelicais, destruindo aldeias inteiras da noite
para o dia. E agora… — Disse ele, olhando para Rielle. — Há Lady
Rielle. Talvez aqueles assassinos soubessem algo que não
sabíamos, e a tentativa deles de me matar foi realmente uma
tentativa de extrair seu poder para que todos vissem. Ou talvez
fosse uma simples coincidência. De qualquer maneira, não
podemos ignorar o tempo desses eventos.
Audric voltou seu olhar apaixonado para o rei. — O anjo que
Aryava conhecia, séculos atrás. Ele nos avisou desta vez, e agora
está sobre nós.
A expressão normalmente aberta do rei Bastien era uma porta
trancada. — Já chega, Audric.
— Pai, ignoramos os sinais por nosso próprio risco...
O rei levantou-se. — Já basta!
Audric deu um passo para atrás, encontrando o olhar de seu pai
por um momento abrasador antes de olhar para o chão.
O Arconte pigarreou. — Talvez haja alguma sabedoria nas
sugestões do príncipe. Se os eventos da profecia estão se
desenrolando diante de nós, se Lady Rielle for forçada a concluir as
provações à vista do povo Celdarian.
— Então o desafio será ainda maior para mim. — Interrompeu
Rielle. — E vocês saberão que não devo ser temida. — Ela tomou o
lugar de Audric diante de seu pai, seu coração batendo rápido e
seguro. — Pois não lutarei apenas pela minha vida, mas também
pela deles.
— Isso. — Disse o rei Bastien. — É um risco terrível.
A rainha Genoveve pousou o cálice com força. — Um risco que
não podemos correr. Meu amor, isso é um absurdo.
— A guarda da cidade. — Insistiu Rielle. — A guarda real, a
Guarda Sagrada, todo acólito dos templos. Todos eles podem estar
em alerta, prontos para o caso de eu vacilar. — Ela respirou fundo.
— Mas não vou vacilar. Fui bem ensinada por meu pai e por Tal.
— Ensinada escondida entre segredos e mentiras. — Acrescentou
o Arconte.
Rielle o ignorou. — Eles podem continuar minhas lições, com a
ajuda de todos no Conselho Magistral.
Ela olhou para a Grã Magister Florimond. A mulher inclinou a
cabeça. — Eu, por exemplo, ficarei feliz em ajudar Lady Rielle nisso.
Rielle deu um pequeno sorriso. — Serão descobertas, meu rei,
sobre as provações. Sobre mim. Muitas pessoas sabem o que está
acontecendo para boatos não escaparem. Pense em como nosso
povo reagirá se descobrirem que você está escondendo um segredo
deles. Mentiras suficientes foram contadas, segredos suficientes
mantidos. Eu participei disso e não desejo mais.
O rei Bastien voltou ao seu lugar, considerando em silêncio.
— Se contarmos às pessoas tudo… — Audric acrescentou,
ficando ao lado dela.
— E eles poderem ver o poder e o controle de Rielle por si
mesmos … — Disse Ludivine, do outro lado de Rielle.
— Então isso mostrará a eles que você confia nela.
— E eles, por sua vez, confiarão nela. — Acrescentou Ludivine. —
E você também, tio.
— E — Finalizou Rielle — Se houverem reviravoltas sombrias em
outras partes do mundo, talvez pensem duas vezes antes de focar
em Celdaria, se souberem que estamos unidos. Que não há
segredos para explorar.
— Se — disse o rei Bastien lentamente. — Eles veem que temos
o ser humano mais poderoso que já viveu como nosso guardião?
Corien, finalmente, voltou. Ele não está errado. Veio sua voz
baixa. Nunca houve um humano como você, Rielle. E nunca haverá.
Rielle lutou para manter o sorriso escondido. Ela sentiu que isso
não ajudaria em seu caso.
Finalmente, o rei Bastien tomou uma profunda respiração e
reclinou em sua cadeira. — Vocês três. — Ele disse, olhando para
Rielle, Audric e Ludivine, por sua vez. — Tiveram muita prática de
planejar esquemas juntos. É difícil argumentar com isso.
— Meu amor… — começou a rainha Genoveve com urgência.
— Está resolvido, então. — O rei Bastien colocou as palmas das
mãos sobre a mesa. — As seis provas restantes serão eventos
públicos, abertos a todos. Como você chama, Brydia? Um
espetáculo?
A Grã Magister Florimond inclinou a cabeça. — Talvez uma
palavra irreverente demais.
— Não, é uma boa palavra. Uma palavra comemorativa. E é isso
que será: uma celebração do poder de Celdaria e do poder de seus
cidadãos. — O rei Bastien olhou para o filho. — Um sinal claro para
toda alma viva de que Celdaria não tem medo de tempestades
estranhas ou de mudanças de terras. Ou velhos contos de morte e
destruição que não têm relação com o nosso futuro.
Por um momento, Rielle temeu que Audric dissesse outra coisa,
convidando ainda mais a raiva de seu pai, mas então o rei Bastien
saiu da sala, seu guarda rei o seguindo. Os outros foram atrás logo
depois, Audric correndo atrás da mãe e o pai de Rielle
desaparecendo antes que ela tivesse a chance de falar com ele.
— Bem. — Ludivine disse brilhantemente. Ela agarrou as mãos de
Rielle e sorriu. — Eu não sei sobre você, mas depois disso? Eu
poderia tomar uma bebida.
16
Eliana
“Levante seus olhos para o céu oriental
Espere o sol e, com ele, levante-se.
Vamos marchar pelas estradas enegrecidas
pelos mortos.
Vamos derrubar suas paredes e pintar suas
coroas de vermelho.”
—Uma música de remo composta por um suposto aliado da
Coroa Vermelha, Ioseph Ferracora, durante o cerco à Baía de
Arxara

Eliana acordou embaixo de uma colcha esfarrapada, em um


pequeno quarto escuro, com a visão indesejável de Simon sentado
perto dela.
Ele reclinou-se em uma cadeira de madeira, uma perna longa
descansando na outra, segurava um copo de álcool fedorento.
Eliana sentou-se, lembrando-se de cerrar os dentes como se a dor
do golpe em sua cabeça tivesse persistido.
— Você tem cinco segundos para me dizer onde estamos e onde
está Remy — Disse ela suavemente. — E quem me bateu na
cabeça, e onde eu posso encontrá-lo, antes de estripá-lo.
— E bom dia para você, minha querida Terror. — Disse Simon,
com uma saudação de seu copo. — Devo dizer que você parece
particularmente, bem, terrivel, se perdoar a piada.
— Onde estão minhas facas? — Ela percebeu, com uma onda de
choque, que não estava mais usando seu vestido de festa
arruinado. Na verdade, ela não estava usando mais nada, exceto o
pingente em volta do pescoço.
— Seu pedaço de merda. — Disse ela calmamente. — Onde
estão minhas roupas, onde estão minhas facas e onde está meu
irmão?
— Remy está seguro e dormindo. Navi também, se você estiver
curiosa. Embora eu tenha certeza que você não está. — Simon
jogou-lhe uma pilha de roupas. — Aster queria cuidar de suas
feridas e tirar o vestido ensopado de sangue de você. Talvez para
compensar a irmã batendo na sua cabeça e depois, aparentemente,
te drogando? Repreendi Marigold por desperdiçar produtos de
qualidade com você, mas ela não se arrependeu.
Eliana pegou a túnica que ele tinha jogado, fazendo uma careta
para as bainhas desfiadas e as mangas remendadas. — Quem é
Marigold?
— Irmã de Aster. Tente acompanhar. — Ele jogou o resto da
bebida para trás e largou o copo. — De qualquer forma, toda vez
que Aster tentou te vestir, você a chutou. Mas não se preocupe, ela
é durona.
Ela o encarou até ele dizer: — Ah. — E se virou em direção a
parede.
— Curiosamente. — Continuou ele — Você não tinha feridas que
Aster pudesse ver.
O pulso de Eliana acelerou. Ela vestiu roupas íntimas, camiseta e
calças — largas demais para ela, para não mencionar empoeiradas
e desbotadas, mas pelo menos estavam limpas.
— Decepcionado por eu ter tido a sorte de sair ilesa de nossa
fuga? — Ela puxou a túnica de linho manchada. — Eu aposto que
você adoraria ver meu corpo marcado da cabeça aos pés com
cicatrizes para combinar com o seu, não é?
— Na verdade. — Respondeu Simon. — Não.
Ela esperou pela elaboração e, quando não aconteceu, examinou
a jaqueta que ele lhe trouxera, um tecido com mangas de sino e
desgastado pelo tempo, com um colarinho maçante que uma vez
fora certamente berrante e agora parecia simplesmente patético.
— Roupas decentes não são algo que os rebeldes se importam
muito em encontrar, suponho? — Ela murmurou, encolhendo os
ombros na jaqueta.
— Se você já terminou.
Ela fez um trabalho rápido com seus cabelos selvagens,
trançando-os até a submissão. — Me dê minhas facas, e evitarei
bater em você por pelo menos cinco minutos.
— Você sempre foi tão indescritivelmente irritante?
— Seu rosto sempre pareceu tão tentadoramente esculpível?
— Você queria saber onde estamos. — Disse Simon, apontando
para a porta. Ela passou por ele em um corredor escuro de pedra.
Um caminho de pranchas de madeira alinhava-se no chão de terra.
Após o som distante da conversa, ela virou uma esquina, passou
desajeitadamente por duas portas contra a parede e emergiu em
uma plataforma de madeira com vista para um poço subterrâneo. As
paredes brilhavam com o gotejamento lento da água.
O chão do poço estava coberto de pessoas: refugiados, vestidos
em trapos. Rostos escuros e pálidos, crescidos e jovens, todos
marcados com sujeira, cinzas e sangue.
E ao redor do perímetro – vigiando plataformas, passando pelos
refugiados reunidos com suprimentos e macas – haviam rebeldes.
Alguns usavam rifles amarrados nas costas; outros carregavam
punhais na cintura.
De repente Eliana não se sentiu cansada nem irritada.
Simon a levou para um acampamento da Coroa Vermelha.
Imediatamente, ela se inclinou contra o parapeito da plataforma,
como se estivesse impressionada com a visão apresentada diante
dela. Ela soltou um suspiro de piedade alto o suficiente para Simon
ouvir.
E ela começou a contar:
Dois soldados rebeldes patrulhando o chão do poço. Mais seis
distribuidores de suprimentos . Cinco plataformas ao redor da sala,
um soldado estacionado em cada uma. Uma caixa aberta de batatas
contra um trecho de parede próximo; uma dúzia a mais, igualmente
marcada, empilhada embaixo disso.
Simon veio para ficar ao lado dela. Suas mãos cicatrizadas
descansavam no parapeito ao seu lado.
O tamanho do poço? Ela mediu rapidamente. Talvez trezentos e
quatro metros quadrados e seis metros de profundidade.
O número de refugiados dentro dele? Trezentos, mais ou menos.
— Sem palavras, Terror? — disse Simon.— Permita-me um
momento de choque.
Ela se afastou dele. — O que é este lugar?
Ela deixou suas palavras carregarem um pequeno tremor, o
suficiente para Simon talvez se perguntar: o coração da Terror foi
tocado pela visão de tanta miséria?
Ah, ela pensou, mas o Terror não tem coração.
— Crown's Hollow. — Simon se moveu em direção a um conjunto
de escadas ao lado da plataforma. — Venha. Eu vou te mostrar.
Ela não o seguiu, deixou um pouco de medo aparecer nos olhos,
para que ele a encontrasse nervosa. — Diga-me aqui.
— Isso não é Orline, Terror. Siga-me, ou a Coroa Vermelha fará
sua vida tão miserável quanto a deles.
Sua risada era estridente, não convincente. Me subestime, Lobo.
Eu te desafio a fazê-lo. — Isso levaria algum tempo.
— Você fez desta guerra um jogo para si mesma, mas aqui não é
um jogo, não para essas pessoas. E se você exibir suas mortes na
frente deles, eu não mostrarei piedade.
A ferocidade em sua voz a assustou. Por um momento, Eliana não
encontrou nada para dizer.
Então ela disse com desdém: — Você acha que me conhece. — E
caminhou para se juntar a ele. — Mas você está errado.
— E você não conhece esta guerra. — Respondeu Simon. —
Porém conhecerá, e em breve. Considere isso uma introdução.
Ele não disse mais nada, e ela ficou contente, pois, enquanto
desciam na multidão, ela só conseguia pensar no fedor e no
zumbido baixo de muitos seres humanos vivos que respiravam,
espremidos em um espaço muito pequeno. Crianças amontoadas
em tendas improvisadas. Uma mulher afiava as facas enquanto uma
menininha em seu joelho observava, de olhos arregalados. Um
jovem lia para o companheiro, cochilando à luz de um fogo que
morria.
O ar era um mar de suor, roupas sujas e esgoto. Pior do que isso,
porém, era a expressão unificadora que os refugiados usavam.
Havia um vazio nos rostos deles — Uma fome, uma exaustão —
Que empurrou as costelas de Eliana e azedou sua garganta.
Ela não conseguia imaginar o que eles haviam visto, e não se
importava. Ela tinha seu próprio passado de horrores para enfrentar,
suas próprias noites sem dormir.
— Como você pode viver com isso? — Harkan perguntou a ela,
quando ambos tinham doze anos. Ele havia descoberto
recentemente o que Eliana estava treinando para fazer e parecia
estar lutando sobre como conversar ao seu redor, agora que sabia o
que ela podia fazer com uma faca.
— Com o que? — Ela perguntou, concentrando-se em limpar o
conjunto de lâminas que sua mãe havia comprado para ela. Primeiro
elas devem ser limpas, Rozen havia dito a ela. Não tenha pressa.
Conheça-as. Elas precisarão de nomes.
Nomes? Eliana perguntou, rindo.
Sim, Rozen respondeu, seu olhar um pouquinho triste. Elas serão
as amigas mais verdadeiras que você já teve.
— Como você pode viver sabendo que matará pessoas? —
Harkan a observara nervosamente, trabalhando. — Pessoas boas
— É fácil. — respondeu Eliana. Naquela época, a gravidade do
que ela estava fazendo pesava no estômago como uma pedra em
um mar sem fim, mas sua mãe a instruiu que, se ela não
aprendesse a esconder esse sentimento doentio, isso a consumiria.
Então, Eliana experimentou o rosto que vinha praticando no espelho
todas as manhãs — impensada, entediada, manhosa. — e disse a
Harkan: — É a única maneira de permanecer viva.
Harkan balançou a cabeça e desviou o olhar, como se a visão
dela fosse algo que ele não podia mais suportar.
— Eu não sei o que está acontecendo com você. — Sussurrou,
mas ele ficou, no entanto, e ajudou-a limpar as lâminas e nomeá-
las. — Arabeth. — Ele sugeriu para a perversa e irregular,
permitindo até um sorriso fantasma quando Eliana aprovou. Feito
isso, ele se deitou na cama e a abraçou até adormecer.
Mas Eliana não dormiu naquela noite. Ela estava deitada ao lado
de Harkan, com os olhos bem fechados, desejando que quando
acordasse de manhã tudo estaria como deveria. Seu pai voltaria
para casa, o Império desapareceria e o rei Maximiliano ainda estaria
vivo.
Harkan olharia para ela como se fosse sua amiga novamente e
não algo terrível e novo.
Santa Katell, Eliana rezou, ouça minha oração. Envie-nos o calor
da sua sabedoria. Ilumine o caminho escuro diante de mim.
Encontre a Rainha do Sol. Diga a ela que estamos esperando.
Diga a ela que precisamos dela.
Eliana havia virado o rosto para o travesseiro, as lágrimas
escorrendo silenciosamente pelo rosto. Diga que preciso dela.
Na penumbra de Crown's Hollow, Eliana se concentrou na parte
de trás da cabeça de Simon.
Como você pode viver sabendo que matará pessoas?
Pessoas boas.
Ela ignorou os refugiados murmurantes a seus pés e disse a si
mesma: Não olhe para eles.
Não olhe.
Não.
Em vez disso, ouviu os rebeldes que se agitavam no meio da
multidão. Distribuindo comida, entediados nas plataformas,
espremendo-se através dos espaços estreitos entre as paredes do
poço e as altas pilhas de suprimentos engradados, começaram a
soltar tesouros sussurrados.
— ...Lorde Morbrae chega amanhã…
— O ataque... duas milhas a nordeste …
Lorde Morbrae. Eliana sabia de quem era o nome: uma das
realezas do Império, ele se mudou de vila em vila, posto avançado
em posto avançado.
Algo roçou o pulso de Eliana. Ela se encolheu e olhou para baixo.
Uma mulher refugiada com um lenço preto amarrado em volta da
cabeça pálida e enrugada alcançou Eliana com um sorriso aguado.
O braço dela estava manchado de cicatrizes de queimaduras, a pele
brilhava à luz do fogo.
Eliana mal resistiu ao desejo de dar um tapa nela.
Não olhe para eles.
Não olhe.
Não.
Simon, no entanto, segurou gentilmente a mão da mulher e se
ajoelhou para falar com ela.
Eliana desviou o olhar, os braços cruzados firmemente sobre o
peito. Uma onda quente de raiva surgiu em sua garganta, por vários
motivos, que a mulher ousou tocá-la, que Eliana quis dar um tapa
nela, que Eliana não deu um tapa.
Que esta sala estava lotada de pessoas muito fracas para ganhar
a vida no mundo do Império.
E que Simon a estava forçando a andar entre elas.
Ela se afastou para encostar-se a uma coluna de pedra,
contemplando a sala com desinteresse, enquanto sua mente
continuava contando: quatro portas acima, pelas plataformas, e
mais quatro no nível do chão. Uma estava a uns seis metros de
distância. Para onde elas levavam? Túneis?
Um par de rebeldes saiu pela porta mais próxima, braços cheios
de curativos dobrados.
Eliana abaixou a cabeça quando eles se aproximaram, curvou os
ombros e fechou os olhos. Uma refugiada cochilando, cansada e
sozinha, era tudo o que ela era.
— ... Segunda de manhã. — sussurrou um deles, apressando-se.
— Vamos empurrá-los todos para o Abismo.
— Deixe os anjos lutarem com seu senhorio por um tempo. — O
segundo rebelde riu. Ninguém falava sobre anjos sem que isso
fosse uma piada. A menos que você estivesse louco ou fosse uma
criança que acreditasse nas histórias antigas.
Como Remy.
Eliana ouviu atentamente enquanto os rebeldes passavam
— Não tenho certeza de que até os anjos merecem lorde Morbrae
entre eles… — disse o primeiro, e depois passaram do alcance
auditivo.
Então. Ela precisaria dar a Simon um escorregão e vaguear até
encontrar alguém disposto a confirmar as informações dispersas,
mas se isso fosse verdade, amanhã de manhã, lorde Morbrae
chegaria a um posto avançado do Império duas milhas a nordeste
do Crown's Hollow.
E no dia seguinte, os rebeldes invadiriam as instalações,
derrubando uma das fortalezas do Império.
O que fazer com essa informação, se alguma coisa, Eliana não
sabia. Mas ela arquivou isso com uma pontada presunçosa de
satisfação.
— Contemplando seu passado vil?
Eliana abriu os olhos e lançou um sorriso desagradável para
Simon. — Terminou de conversar com sua namorada?
Simon apontou para a porta próxima, que estava entreaberta. —
Depois de você.
Ela empurrou a parede. — Então, de onde eles vêm, esses seus
refugiados?
— Eles vêm de todos os lugares. Ventera. Meridiano. Mesmo do
extremo sul, como as Vespers, se tiverem um barco suficientemente
forte.
— E você os alimenta e os abriga? Trata suas feridas e doenças?
Na porta, Simon a deteve com um toque em seu braço. Ela voltou-
se para ele com um sorriso tímido, mas a insinuação em seus lábios
morreu com a expressão em seu rosto. Ele a considerou em
silêncio, como se estivesse tentando não apenas ler o rosto dela,
mas olhar além disso, e encontrar uma verdade mais profunda.
Olhe o quanto quiser, ela pensou selvagemente. Você não
encontrará nada de bom.
— Sim. — Ele disse finalmente. — Tratamos suas feridas e
doenças.
Eliana ignorou a inquietação em sua barriga, deu-lhe um leve
sorriso duro. — Existem muitos campos da Coroa Vermelha por todo
o país, suponho?
— Sim.
— Sua rebelião poderá ser mais bem-sucedida se você não gastar
tanto tempo cuidando dos condenados.
A porta diante deles se abriu.
— Revoluções não significam nada se seus soldados esquecerem
de cuidar das pessoas que estão lutando para salvar. — Disse uma
nova voz. Dois homens estavam lá, e uma mulher. O homem que
havia falado era baixo, magro, de pele pálida e cabelos loiros cor de
cobre, e quando o olhar de Eliana caiu na cintura, onde uma
pequena espada estava à vista, o homem estalou a língua.
— Ah-ah. — Disse ele, abanando o dedo para ela. — Não haverá
violência hoje à noite.
— Dê-me minhas facas e meu irmão, ou tenho medo de ser
forçada a desobedecer. — Eliana estalou a língua. — E eu esperava
que pudéssemos ser amigos.
O outro homem, alto e musculoso, com pele escura e cabelos
pretos cortados perto da cabeça, moveu a mão para o revólver no
cinto.
— Não se preocupe. — disse o primeiro homem, colocando a mão
no braço do outro. — Ela está com medo e atacando.
Eliana começou a rir. — Você acha que estou com medo?
— Todo mundo está com medo. Você é melhor escondendo-o do
que a maioria. — Os olhos do homem se voltaram para Simon. — É
o que Simon diz, pelo menos.
O riso de Eliana morreu, mas um sorriso mortal permaneceu. —
Não creio que fomos apresentados.
— Ah! Claro. Que rude da minha parte. Sou Patrik e supervisiono
o Poço da Coroa. Esse é Hob — Ele disse, gesticulando para o
outro homem. — Meu tenente e também meu marido. E acredito
que você já conheceu Marigold. — acrescentou, gesticulando para a
mulher à sua esquerda.
Ela era mais velha, com pele castanha desgastada pelo tempo,
tranças cinza e um brilho malicioso nos olhos. — Eu bati em sua
cabeça.
Eliana sorriu. — E em breve retornarei o favor.
Patrik segurou a mão de Eliana e apertou-a com firmeza. — E é
claro que eu conheço você, Eliana Ferracora. Sim, eu sei
exatamente quem você é. — Quando ele sorriu para ela, não foi
sem bondade, mas Eliana conhecia o brilho de um assassino
quando via um.
— Cause problemas em minha casa. — ele disse alegremente. —
E eu cortarei você do crânio ao umbigo, por mais que eu goste do
seu irmão. E não importa o quanto Simon goste de você.
Simon deu um escárnio desdenhoso, mas Patrik já estava guiando
Eliana pela porta. — Bem, então. — ele anunciou, batendo palmas.
— Quem está com fome?
17
Rielle
“Eu me preocupo com Rielle. Todas as
crianças têm um temperamento, mas o dela
tem uma certa aparência que não vi nos rostos
de outras pessoas da idade dela ou até muito
mais velhas. Sua raiva guarda um prazer, uma
fome, que confesso que às vezes me mantém
acordada a noite toda. Eu não conversei com
meu marido sobre isso. Às vezes acho que
estou pulando nas sombras. Eu não deveria
estar escrevendo isso. Na verdade, acho que
vou queimar.”
—Jornal de Marise Dardenne Confiscado pela Igreja de Celdaria
no ano 998 da Segunda Era.

— De novo!
Rielle exalou bruscamente, soprando um cacho escuro e suado
dos olhos, se impulsinou com força o chão e pulou – primeiro sobre
uma pedra, depois sobre uma pilha de trilhos de madeira. Então ela
subiu a encosta rochosa, passou pelos trilhos e desceu pelo lado
mais íngreme.
Não perca o mastro, ela disse a si mesma. Não. Perca. O. Mastro.
Ela chegou ao fundo, caiu de bruços e deslizou sob a rede para o
poço de lama. Se tocasse a rede larga que se estendia acima dela,
teria que começar de novo no início do percurso, e seu pai
acrescentaria outra pedra à bolsa.
Rielle chegou na metade do caminho antes que suas mãos
escorregassem, a fazendo cair de queixo na lama. Inalando um
bocado, ela arfou e engasgou.
— De pé! — Latiu uma voz lá de cima.
Ela reprimiu um xingamento. Claro que ele escolheria aquele
momento para uma briga. Encontrou uma abertura na rede e
rastejou através dela, manobrando seu longo mastro de madeira
bem a tempo do ataque de seu pai.
Seu próprio mastro voou em seus ombros. Ela abaixou-se,
levantou o mastro e o girou para atacar. Os mastros se chocaram
com um estrondo que machucou os dentes de Rielle. Ela
cambaleou, perdeu o equilíbrio e se segurou na rede.
— Levante-se! — O mastro de seu pai balançou novamente,
batendo com força contra os nós de seus dedos.
— Droga! — Ela reprimiu lágrimas de dor e se levantou,
balançando loucamente. — Eu caí! — Seus pés ficaram presos na
rede e ela tropeçou e caiu com força.
— E você caiu de novo. — Seu pai emitiu um som suave de nojo e
jogou o mastro na grama do lado de fora do poço. — Você nem
chegou à escalada dessa vez. Levante-se e volte ao começo.
Rielle ficou de pé, tremendo de exaustão e raiva. Ela manteve os
olhos no chão, ignorando os guardas sempre presentes, que
permaneciam em silêncio ao lado da pista de obstáculos que seu
pai havia projetado. Se eles achavam que ela parecia ridícula, bem,
não estavam errados.
O percurso que Rielle descreveu para Audric e Ludivne como sua
“câmara de tortura na floresta.” ficava em uma área isolada na base
de Cibelline, a montanha mais alta de Celdaria. Os santos haviam
construído o castelo de Katell, Baingarde, em suas encostas séculos
antes. Todos os dias, durante seis dias seguidos, em preparação
para o próximo desafio, Rielle encontrava seu pai ali. – para
fortalecer seu corpo, ele disse, e melhorar sua agilidade.
Até agora, tudo o que tinha feito foi deixá-la dolorida e brava como
o canto mais escuro das profundezas.
— Eu não sou uma atleta. — ela disse irritada ao pai, saindo do
poço de lama e jogando o mastro fora. — Nem uma guerreira.
Ele soltou uma risada aguda. — Nunca nada foi tão claro quanto
isso.
— E ainda assim você insiste em me fazer passar por isso por
horas! — Ela marchou pela grama, tirando as luvas encharcadas de
lama, manoplas, caneleiras e, finalmente, a maldita e pesada bolsa
de pedras.
— Estamos aqui desde o amanhecer — ela murmurou. — Eu
deveria estar estudando com Tal agora, praticando com a Grã
Magister Rosier. A água sempre foi meu elemento mais fraco. Ou eu
poderia estar trabalhando no meu traje com Ludivine.
— Seu traje. — O pai dela zombou. — Sim, um uso sábio do seu
tempo.
— Ideia de Ludivine, e uma ideia boa. Se eu quero que nosso
povo me ame…
Ele riu de novo, suave e cruel.
— E mostrar a eles que não tenho medo.
— Mesmo você não sendo uma boa mentirosa.
— Pare de me interromper!
Ele ficou em silêncio, olhando para ela. Ela olhou de volta, o calor
subindo pela nuca, pelos braços, enrolando-se em sua barriga.
Seu pai olhou para suas mãos, mas ela as manteve fechadas com
força. Sabia o que ele estava procurando – faíscas selvagens, o
nascimento de um incêndio que sairia do controle e consumiria tudo
em seu caminho.
Enquanto lutava contra as lágrimas, os punhos cerrados ao lado
do corpo, ela desejou, não pela primeira vez, que seu pai fosse o
parente que ela matara — e que sua mãe tivesse vivido.
— Se você tiver alguma chance de sobreviver a esses testes. —
ele disse finalmente. — Se você quiser ter mais do que força bruta e
sorte do seu lado, precisará se fortalecer e rapidamente.
— Estou estudando há anos, trabalhando no meu controle com
Tal.
— E isso pode não ser suficiente!
Rielle se manteve firme enquanto ele avançava sobre ela. Ela
podia sentir sua trança deslizando, sentindo o quão desleixada,
pequena e tola ela parecia ao lado do lorde comandante Dardenne.
O homem de alguma forma parecia imperturbável, mesmo em seu
uniforme de treino enlameado. Ela mordeu sua língua com força.
— Isso não é brincadeira, Rielle. — continuou o pai. Ele voltou a
amarrar as amarras que seguravam o fino estofamento de couro em
volta do torso, ajeitou a gola dela, prendeu os cabelos soltos em sua
trança com tanta força que machucou seu couro cabeludo. — O
desafio da Terra não foi nada comparado ao que o Conselho
Magistral planejou para você a seguir. Este é apenas o começo de
um caminho longo e difícil. Sua vida como você conhecia acabou.
Você entende isso.
As bochechas de Rielle arderam. O que os guardas dela estariam
pensando do pai a repreendendo como faria com uma criança
pequena? — Sim, pai. — disse ela calmamente. — Entendo.
— Se você falhar, eles vão te matar. Eles podem me matar e a Tal
também.
Rielle olhou suas botas, seus olhos cheios de lágrimas.— Eu
pensei nisso.
— Pensou? Não podemos conhecer a mente do conselho, nem a
do rei. São circunstâncias extraordinárias.
— Sim, Pai.
Ele tirou uma das luvas e usou a mão nua para levantar o queixo
dela. Ela olhou para ele, olhos arregalados, até a boca dele se
torcer e ele se afastar. Sentou-se no chão, perto do poço de lama,
encontrou seu cantil na grama e tomou um gole de água.
— Sente-se. — disse ele, entregando o cantil para ela. — Beba.
Ela obedeceu, sem dizer nada. Enquanto bebia, ela olhou de
relance para o pai, notando o cinza em suas têmporas e salpicado
em seus cabelos grossos e escuros, as linhas ao redor de sua boca
que não esboçava um sorriso. Ela percebeu, com uma rápida
reviravolta, que não conseguia se lembrar de como ele era antes da
morte de sua mãe ter roubado seu sorriso.
— Você se lembra. — ela perguntou. — Daquela canção de ninar
que mamãe cantava para mim?
Seu pai estava olhando para a pista de obstáculos cheia de lama,
o anel sombrio de soldados ao seu redor, a densa floresta de
pinheiros além dela. Rielle o observou, examinando seu perfil. De
repente, sentiu uma necessidade de segurar a mão dele e perguntar
se ele estava com tanto medo quanto ela.
Rielle enrolou os dedos na grama.
— Não me lembro de nenhuma canção de ninar. — ele respondeu
sem humor.
Rielle não tinha certeza se isso era mentira ou não, mas ela
assentiu de qualquer maneira e olhou para a floresta exatamente
como ele. Respirou fundo e começou a cantar.
Pela lua, pela lua
É aí que você me encontrará
Pela lua, pela lua
Vamos dar as mãos, só você e eu
Vamos orar para as estrelas
E pedir que elas nos libertem
Pela lua, pela lua
É aí que você me encontrará
Depois de alguns momentos de silêncio insuportável, ela
acrescentou: — Nem sempre consigo me lembrar de coisas sobre
ela. Como ela cheirava. A sensação de suas mãos. Mas eu lembro
da voz dela, e eu lembro dessa música.
Assim que as palavras saíram de seus lábios, seu pai se levantou,
tirou o pó da calça, pegou sua bolsa de pedras e entregou a ela. Ela
não conseguia ler nada no rosto dele, exceto a mesma calma
resolução que sempre usava – a certeza do erro de Rielle e de seu
próprio sofrimento nas mãos dela.
— Mais uma vez. — disse ele. — De volta ao começo.

•••

Rielle não sabia quantas pessoas estavam do lado de fora


esperando para vê-la lutar contra o oceano, mas pelo som delas,
pareciam ser muitas.
Ela mudou de posição em suas botas novas e lutou contra o
desejo de mexer na bainha de sua capa pesada, cujos fios ela
amarrara em torno de sua garganta e tronco, para manter sua roupa
escondida até o último minuto.
O traje fora ideia de Ludivine; mantê-la escondida tinha sido de
Audric.
Ludivine havia puxado Audric orgulhosamente para seus
aposentos na noite passada, uma vez que seus alfaiates haviam
terminado sua montagem final e proclamado, radiante: — Ela não
está impressionante, Audric?
Rielle olhou diretamente para ele. Por que ela não olharia? Não
havia nada de estranho em mostrar seu novo traje para um de seus
amigos mais antigos. Havia?
Mas suas bochechas queimaram, o coração dela bateu tão rápido
que ela pensou que poderia engasgar com isso e, em seguida, ele
sugeriu: — Não acho que você deva mostrar seu traje até o último
momento.
Surpresa, ela conseguiu perguntar: — Por quê?
Ele sorriu suavemente para ela. — Porque então eles passarão o
desafio inteiro esperando desesperadamente que você sobreviva,
apenas para terem a chance de vê-la novamente.
Rielle estremeceu ao pensar em suas palavras suaves.
Lá fora, a voz da Grã Magister Rosier ecoou sobre o amplificador
Forjado:
— Meus irmãos e irmãs, cidadãos de Celdaria, algumas palavras
antes do início do desafio…
Enquanto descrevia o desafio e suas regras e lembrava a todos
que não havia necessidade de se preocupar com sua segurança –
todos os acólitos de seu templo estavam presentes, prontos para
controlar as ondas caso o candidato perdesse o controle — Rielle
fechou os olhos e recitou o Rito da Água baixinho: — Ó mares e
rios! Ó chuva e neve! Sacie-nos da sede, purifique-nos de nosso
mal…
A sua tenda se abriu. — E eu que pensei que você odiava rezar.
— Tal! — Ela se jogou nos braços dele sem pensar duas vezes,
deixando cair uma onda de lágrimas. — Eu pensei que você tinha
dito que o Arconte não deixaria você me ver sozinha.
— Sloane está do lado de fora. — Ele acariciou seus cabelos,
beijou sua sobrancelha. — Em sua infinita generosidade, ela nos
permitiu dois minutos para conversar.
— Eu ouvi isso. — Veio a voz seca de Sloane do lado de fora.
Rielle fechou os olhos, respirando profundamente. Tal cheirava a
fumaça e incenso do templo, um contraste bem-vindo ao cheiro
salgado do oceano lá fora. Ela quase podia fingir que eles estavam
de volta ao escritório, prontos para uma aula.
— Eu odeio rezar. — disse ela, afastando-se com um sorriso
tenso. — Mas agora? Vou tentar qualquer coisa.
Tal procurou cuidadosamente seu rosto. — Você está assustada.
— Assustada? Eu? — Ela deu de ombros, tentando não deixar os
dentes baterem. Por que o oceano fazia tudo parecer tão frio? — É
só que um velho magistrado me disse uma vez que rezar ajuda na
minha concentração.
Tal sorriu tristemente e esfregou a mão nas bochechas. — Não
acredito que isso esteja acontecendo. Fico esperando acordar
desse pesadelo.
— Não comece com os lamentos. Sou eu quem vai fazer isso, não
você.
— Você está certa.— Ele cruzou as mãos dela e se curvou para
olhá-la nos olhos. — Me desculpe, amor. Eu só gostaria que
tivéssemos tido mais tempo.
Uma buzina tocou do lado de fora, lembrando Rielle da linha de
partida do Boon Chase. Esse dia já parecia passado. O pensamento
de que ela tinha medo de uma corrida de cavalos foi suficiente para
fazê-la querer rir – ou talvez chorar.
— Lady Rielle? — A chefe de sua guarda pessoal, designada pelo
rei, abriu a tenda. Era uma mulher sólida e de ombros largos
chamada Evyline, cujo rosto pálido exibia uma expressão severa e
permanente. — Eles estão prontos para você.
Rielle lançou um último olhar para Tal. Ela sabia o que ele estava
pensando. Ela estava se lembrando da mesma coisa:
Venha aqui, Rielle! Aqui, sob o salgueiro, onde a água é quente e
tranquila.
As mãos de Tal em volta de seu pescoço, mantendo-a submersa.
Ela estremeceu, engolindo em seco.
— Não hesite em lutar desta vez. — disse Tal suavemente. Suas
mãos flexionaram ao lado do corpo, como se ele desejasse alcançá-
la. — Não se trata de provar a si mesma. É sobre permanecer viva.
— Ninguém sabe disso melhor do que eu. — respondeu ela.
— Lady Rielle?
Sem outra palavra, ela passou por Tal e Sloane, de rosto
impassivel, que a surpreendeu agarrando sua mão e apertando
suavemente a palma.
— Tenha cuidado. — murmurou Sloane.
Então Rielle surgiu no sol.
Os espectadores sentavam-se em bancadas de madeira erguidas
às pressas ao redor da baía, estavam próximos o suficiente para
que Rielle pudesse ver claramente a curiosidade e a suspeita em
seus rostos. Deveria ter centenas deles, milhares – praticamente
toda a capital e qualquer um que ouviu falar sobre os desafios e
conseguiu viajar para a cidade costeira de Luxitaine a tempo.
Todos a estavam observando em silêncio.
Seguindo a guarda logo atrás, ela caminhou até a beira do píer e
forçou a cabeça sob o capuz da capa. Uma gaivota solitária gritou
acima. Na beira do píer havia dois acólitos, com os receptáculos em
mãos – uma espada larga e um disco de metal gravado com ondas.
A buzina soou uma segunda vez.
Mais uma e começaria.
Ela olhou para a água — uma ampla baía cercada por baixos
penhascos negros. A água estava calma.
Mas não ficaria assim por muito tempo.
Bem. disse Corien, Aqui estamos nós.
Ela levou um tremendo susto. Corien! Eu não tenho notícias suas
desde que.... – Ela apertou a mandíbula contra a repentina e
selvagem esperança de que ele pudesse, de alguma forma, lhe dar
uma saída deste dia horrível.
Eu não consigo parar com isso. Você se jogou direto nas mãos
deles.
Eu não quero que você pare isso.
Ele riu levemente. Você não pode mentir para mim.
Ela afrouxou os laços de sua capa. Estou mostrando a eles que
não têm motivos para me temer. Eles vão me amar por isso.
Eles vão te matar por isso.
Se tudo o que você vai fazer é tentar me deixar com medo. Ela
disse friamente. Então fique longe de mim.
Estou tentando ajudar você a ver a verdade.
Ela deu um passo à frente e deixou a capa cair no chão.
A multidão ofegou. Murmúrios irromperam como ondas cruzando
a costa.
Rielle não pôde evitar um sorriso pequeno e genuíno.
Ela sabia que a roupa era boa, um traje feito de um novo tecido
elegante e colorido que Ludivine havia encomendado a Mazabat.
Isso a manteria quente na água, mas era flexível o suficiente para
nadar com facilidade. Ondas bordadas com fios brilhantes giravam
sobre o tecido nas cores dos templos – azul ardósia e espuma do
mar – e o próprio tecido se agarrava a suas curvas como uma
segunda pele. Botas de malha, leves como o ar e com dedos
levemente alongados. A gola do traje era alta nas costas e baixa na
frente. Ludivine pintou a pele com tinta cintilante e, com os cabelos
presos no alto da cabeça e presos por pentes de concha e alfinetes
de pérolas, Rielle sabia que ela se parecia com a própria Santa
Nerida.
A buzina tocou pela terceira vez.
A água começou a se agitar.
Rielle respirou fundo e mergulhou.
18
Eliana
“Minha história é a mesma que todas as
outras. Todos que amo morreram; todos os
meus pesadelos ganharam vida. Nosso
mundo está perdido, e nós também. Pronto.
Isso dará uma boa história para sua coleção?”
—Coleção de histórias escritas por refugiados na ocupada
Ventera
Curadoria de Hob Cavaserra

Após o jantar, Eliana reivindicou um assento em uma das áreas


comuns mais movimentadas de Crown's Hollow e limpou suas
facas.
Do banquinho perto da lareira, ela podia ver tudo na sala de teto
baixo: soldados da Coroa Vermelha trocando turnos, suprimentos
sendo computados, refugiados sendo transportados para a ala de
doentes em macas improvisadas.
Segundo Simon, eles deixariam Crown's Hollow pela manhã,
assim que os cavalos novos chegassem. Até então, seu lugar junto
à lareira era o lugar perfeito para se estabelecer e olhar tudo que
merecia atenção. A maioria dos rebeldes que passavam não a
olhavam duas vezes. Talvez Simon tivesse decidido que era melhor
evitar que sua identidade se espalhasse.
Uma pena.
Suas lâminas estavam com fome.
Remy estava deitado ao lado dela, a cabeça apoiada em sua
jaqueta dobrada enquanto lia a última página em seu caderno.
Patrik tinha emprestado uma caneta, tinta fresca manchava seus
dedos.
— Já podemos ir para a cama? — Ele perguntou com um bocejo.
— Não.
— Por que não?
— Muito trabalho a fazer. — Ela levantou Nox, sua lâmina em
forma crescente, e esfregou as manchas que não existiam.
Remy deixou o caderno de lado. — Você está mentindo.
Ela sorriu para ele. — Não estou.
— Você não está dizendo toda a verdade, então.
Eliana olhou para cima enquanto Navi se sentava ao lado deles.
— Eliana. — disse Navi em saudação.
— Sua Alteza. — Eliana fez uma reverência zombeteira.
Navi a ignorou e olhou para Remy. — Olá, meu amigo. Gostou do
seu jantar?
Remy assentiu e passou seu caderno para Navi. — Eu escrevi a
história que você me contou sobre Santa Tameryn e o lobo. Eu
mudei algumas coisas.
— Eu apostaria que para melhor. — Navi se aproximou dele e
colocou o caderno em seu colo — Não fiz justiça à história.
Remy corou. — Eu gostei.
— Sabe, acho que estou pronta para dormir. — Eliana guardou as
facas em um pano que tinha pego em uma caixa. — Remy, vamos
lá.
Ele franziu o cenho para ela. — Mas Navi vai ler minha história!
— Eu não ligo.
— Oh, Eliana. — Navi tocou a mão de Eliana. — Eu esperava que
pudéssemos nos conhecer um pouco.
A tensão dentro de Eliana se rompeu. Seus esforços de vigilância
pareciam sem importância diante de uma fúria repentina e
estridente.
— Tudo bem. — Ela encarou Navi, de pernas cruzadas, como se
fossem amigos trocando segredos. — Remy e eu estamos
arriscando nossas vidas para levá-la a Astavar. Que inteligência
você carrega que é tão importante?
O sorriso de Navi era tão paciente quanto o de Eliana era frágil. —
Você sabe que não posso te dizer isso.
— Para onde minha mãe foi levada? O que aconteceu com ela?
Remy sentou-se. — El...
— Não sei a resposta para isso.
— E onde estava Astavar quando Ventera caiu?
Os olhos de Navi se estreitaram. — Perdão?
— Onde estava Astavar quando o Império invadiu nossas
fronteiras? Estuprou nossos homens, mulheres e crianças?
Queimou nossas bibliotecas e terras agrícolas? Executou nosso rei
e rainha e seus filhos nos degraus do templo de São Ghovan em
Orline?
Seu corpo vibrou com a raiva. Ela pressionou as palmas das mãos
no chão. — Onde estava Astavar quando meu pai foi morto?
Toda a atividade na sala ficou tensamente silenciosa. Eliana sentiu
os olhos de uma dúzia de rebeldes sobre ela.
— Você estava se escondendo. — Eliana continuou, sua voz
suave. — Acumulando sua comida e suas armas. Fortalecendo suas
fronteiras. Você nos assistiu sangrar. Você nos ouviu gritar por
socorro. E não fez nada.
— Não vou me desculpar pelo meu povo fazer o que fosse
necessário para se manter vivo. — disse Navi, finalmente. — Assim
como você não se desculpou pelo que fez para proteger sua família.
E eu não pediria que o fizesse.
Por um momento, Eliana não conseguiu falar. A verdade das
palavras de Navi a golpeou no estômago.
Como você pode viver com isso?
Ela ignorou a memória da voz de Harkan, estendeu a mão para
Remy e sentiu uma emoção cruel quando ele a pegou.
— Não fale sobre minha família — Disse ela. — E fique longe do
meu irmão.
Ela cuspiu no chão aos pés de Navi. Então se virou, Remy
segurando sua mão, passou pelos rebeldes que estavam olhando e
saiu da sala.

•••

— Ah, Eliana! — Patrik levantou os olhos da mesa na sala comunal.


— Que bom vê-la de pé a essa hora.
Hob, sentado ao lado dele, olhou para ela, depois fez uma careta
para o caderno em que estava escrevendo.
Eliana não conseguiu dormir. Estava deitada no palete minúsculo
e irregular que compartilhava com Remy, olhando tensa para o teto
com uma enorme tensão no estômago e um nó nos ombros.
Aguentou por uma hora antes de desistir.
Agora ela estava... o quê? Ela não sabia. Procurando
informações? Talvez esses idiotas rebeldes soubessem algo sobre
as pessoas que levaram sua mãe.
Procurando uma briga? Ela se derreteu um pouco com o
pensamento. Deus, sim, uma luta seria o suficiente. Ela ansiava
socar alguma coisa até que a pele se desfizesse em seus punhos
indestrutíveis. Talvez pudesse acordar Simon, irritá-lo. Ele tentaria
bater nela, e ela o faria pagar por isso.
— Patrik — Entrou na sala e acenou para ele – um pouco
envergonhada, um pouco suave. A convicta caçadora de
recompensas, finalmente começando a ver seus erros. Era quase
um pensamento engraçado o suficiente para fazê-la rir bem na
frente deles. — Hob. Eu não esperava que alguém estivesse
acordado.
Patrik acenou para ela. — Alguém sempre está acordado aqui.
Estamos descascando batatas. Bem, eu estou descascando
batatas. Hob está escrevendo. — Patrik deixou escapar um suspiro
ofendido. — Estou acostumado a isso. Fazer todo o trabalho por
aqui, quero dizer.
— Pobre Patrik, sobrecarregado de trabalho — disse Hob, sua voz
monótona e profunda.
Eliana riu e sentou-se na lareira.
— E você não vai dizer olá para mim?
Eliana pulou ao ouvir a voz baixa de Simon nas sombras. Não o
notara ali, sentado em uma cadeira manchada e com o encosto alto,
pernas longas apoiadas em uma caixa virada. Ele olhou para ela por
cima da borda do copo, olhos azuis brilhando à luz do fogo.
Irritada consigo mesma por não ter visto o homem. Eliana
retrucou: — Você nunca não está bebendo?
Com um pequeno sorriso, ele murmurou em seu copo: — Me
ajuda a dormir. Me mantém afiado. Mantém as vozes afastadas.
— Qual é a dessa vez então?
— Tudas ou nenhuma. — Ele encostou a cabeça na cadeira,
fechou os olhos e soltou um longo suspiro animalesco de satisfação.
— E você, Eliana? Que vozes você ouve na escuridão da noite?
O som do nome dela nos lábios dele permaneceu no ar quente
crepitante perto do fogo. Eliana desviou o olhar da garganta nua;
longas linhas prateadas de tecido cicatricial apareceram quando ele
engoliu.
Então, da porta mais próxima, uma voz suave quebrou o silêncio:
— Patrik?
Patrik se virou, um sorriso se espalhando por seu rosto. — Linnet!
Você não deveria estar na cama, pequenina?
Uma criança pequena, com oito ou nove anos de idade, avançou
das sombras, uma boneca imunda nas mãos. Cortes enfaixados e
hematomas roxos marcavam sua pele pálida.
— Eu não gosto de dormir. — disse Linnet. Ela subiu no colo de
Patrik e olhou seriamente para o caderno de Hob. — Acho que
estou pronta agora.
Hob olhou para ela. — Você não precisa, Linnet, se não quiser.
Os dedos da menina estavam brancos em torno de sua boneca,
seus lábios finos rachados. — Eu quero. Prometo.
A garganta de Eliana se apertou com a expressão assombrada da
garota. — O que você vai fazer com ela? — Perguntou
bruscamente.
Linnet olhou para Eliana através das sombras. — Quem é você?
— Apenas um monstro que gosta de usar máscaras. — Simon
murmurou em seu copo.
Os olhos de Linnet se arregalaram em alarme.
— Linnet vai nos contar a história dela para a coleção de Hob. —
Patrik olhou primeiro para Simon, depois para Eliana, com um olhar
cortante. — E ninguém vai interrompê-la, não é?
Hob abriu seu caderno em uma nova página. — Você tem nove
anos não é, querida?
Linnet continuou olhando para Eliana com algo como reverência
no rosto. Seu olhar se direcionou para as facas no cinto de Eliana.
— Sim.
Hob começou a escrever. — Você pode me dizer seu sobrenome?
Linnet apoiou o queixo na cabeça da boneca e não disse nada.
— E onde você morou? — Patrik perguntou suavemente.
Linnet fechou os olhos com força e balançou a cabeça um pouco.
— Está tudo bem. — Hob sorriu. — Você não precisa me dizer
isso.
— Não me lembro. — Linnet sussurrou.
— Não me lembro do que comi no café da manhã. — disse Patrik.
—Uma maçã, talvez? Um chapéu? Uma fivela de cinto? Não, isso
não pode estar certo...
Linnet sorriu timidamente. Acariciou o cabelo da boneca dez
vezes antes de começar a falar.
— Os homens maus nos encontraram pela manhã. — disse ela
finalmente.
A caneta de Hob riscou a página.
— Mamãe disse para ficar quieta. —continuou Linnet. — Então
era como brincar de raposa e coelho, mas Will espirrou quando os
homens maus estavam andando do lado de fora da nossa porta.
— Você pode me dizer quem é Will? — Patrik perguntou.
A boca de Linnet se torceu em um pequeno arco maldoso. Por um
longo momento, ela não falou.
Então. — Meu irmão. — Ela disse.
As palavras atingiram Eliana como um soco na mandíbula. De
repente, Linnet não era Linnet; ela era Remy, frágil e pequeno,
contando uma história que ele nunca deveria ter contado.
A pele do pulso de Eliana começou a coçar, exatamente onde a
velha refugiada a havia tocado.
Não olhe para eles.
Não olhe.
Ela saiu da cadeira, pronta para sair pela porta. Não precisava
escutar isso. Ela não iria ouvir isso.
Mas Simon agarrou seu braço, segurou-a com força. Ele não
disse nada; o olhar frio em seu rosto foi suficiente para detê-la.
Eliana olhou para ele, furiosa. Poderia começar uma briga, se
libertar, acabar com a hora da história e dar a essa pobre garota um
show.
Em vez disso, recostou-se na lareira ao lado de Simon. Ele queria
que ela escutasse, por qualquer motivo malicioso que ele inventou.
Bem. Ela ouviria. E, mais tarde, o faria se arrepender.
— A porta já estava aberta. — Dizia Linnet. — Porque fizemos
uma festa com a mamãe. Ela disse: vamos fazer uma festa da
bagunça.
— Uma festa da bagunça? — Patrik assobiou baixo. — Isso soa
divertido. O que é isso?
— É quando você deixa sua casa suja em vez de limpa —
explicou Linnet.
— Parece o melhor tipo de festa que eu poderia imaginar.
Linnet mordeu o lábio. — Ateamos fogo no jardim e deixamos
nossos animais soltos, e então mamãe... Ela quebrou as janelas
com um machado. Isso a fez chorar, porque o papai adorava
aquelas janelas.
Hob olhou para cima, com o rosto suave. — Por que ele as
amava?
Linnet balançou a cabeça lentamente para frente e para trás, para
frente e para trás. — Porque. — ela sussurrou depois de um
momento: — Eu as pintei.
Eliana desviou o olhar, na direção do fogo que morria. O ar
naquele lugar era velho, azedo. Muitas pessoas com corpos não
lavados e feridas apodrecidas. Ela respirou fundo e provou a morte
na língua. Um nó doentio estava se expandindo em sua barriga,
forçando seu caminho através do peito.
As palavras de sua mãe voltaram para ela: se você não aprender
a esconder esse sentimento de mal-estar, ele a consumirá.
Fechou os olhos e cerrou os punhos. O fogo estava muito
próximo, muito quente. A pele dela se arrepiou; o calor aspirava
todo o ar de seus pulmões.
Nunca deveria ter saído da cama.
— Por que você está me fazendo ficar para isso? — Ela
perguntou, sua voz tensa e baixa.
— Porque eu posso. — respondeu Simon e depois bebeu o resto
de sua bebida.
— Nós rasgamos nossas camas e nossos travesseiros. — Linnet
estava sussurrando mais rápido agora. — Fizemos corante
vermelho com frutas e pintamos as paredes. Mamãe disse... Mamãe
disse...
Patrik olhou para Hob. — Talvez devêssemos parar por agora.
— Não! — Linnet jogou sua boneca para longe. Ela atingiu a
parede e caiu no chão. — Mamãe disse que tinha que parecer real.
— Ela ofegou um pouco, como se suas próprias palavras a
estivessem sufocando. Sem nada para segurar agora, agarrou a
borda da mesa, olhando ferozmente para ela. — Mamãe disse que
tinha que parecer que as pessoas morreram lá. Nós estávamos
escondidos, e os homens maus vieram, e Will espirrou, porque ele
espirra quando fica ansioso, e eu estava chorando. Eu não pude
evitar. Mamãe disse... quieta. Ela colocou as mãos... sobre a minha
boca...
A garota estava tendo problemas para respirar. Olhou em volta, de
olhos arregalados, e então, antes que Eliana tivesse tempo de se
preparar, Linnet saiu do colo de Patrik e correu para ela.
Ela se jogou na frente de Eliana, passou os braços em volta de
seu pescoço e escondeu o rosto na trança de Eliana. Se agarrou lá,
o corpo tremendo como se estivesse pronto para se partir em
pedaços. Sua respiração veio em suspiros frenéticos contra o
ouvido de Eliana.
— Mamãe disse... — Linnet sussurrou várias vezes. — Mamãe
disse quieta. Mamãe disse por favor, fique quieta...
Eliana não conseguia se mexer, mal conseguia respirar com esse
peso pendurado no pescoço. Ela queria tirar a garota dela, depois
arrancar o caderno de Hob das mãos dele e jogá-lo no fogo.
Vai consumir você.
Respirando com dificuldade pelo nariz, ela controlou o pânico que
tentava emergir.
Ela não pensou em Remy, provavelmente tendo pesadelos no
corredor. Ele nunca dormiu fora de casa, nem uma vez na vida.
Não pensava no pai morto, na mãe desaparecida, na maneira
doce que eles se entreolharam antes da guerra os separar.
Não pensou em Harkan e sua cama quente, o cheiro dele era
como voltar para casa.
Uma garota não podia pensar nessas coisas, não podia pensar
em crianças de olhos lacrimejantes e suas histórias trágicas, não se
ela também fosse uma assassina.
Eu sou o Terror de Orline.
— Então o que aconteceu? — Eliana perguntou. Sua voz saiu
densa, não a coisa oca e chata que ela havia tentado, e ela se
odiava por isso. Ela precisava sair deste cômodo antes que ele a
comesse viva.
Eu não seria consumida.
— Eles marcharam para dentro — Linnet sussurrou. — Vi asas no
peito. Esse é o sinal do Império. — Ela virou o rosto para o pescoço
de Eliana. — Você sabia disso?
—Sim. — A gola de Eliana ficou molhada sob o queixo de Linnet.
O calor do fogo lambeu suas costas. Qual era a antiga oração? Para
Santa Marzana, do fogo. Remy saberia. — Eu sabia disso.
Ah sim. Ela lembrava da oração agora: Queime firme e queime de
verdade. Queime limpo e queime brilhante.
Ela olhou do outro lado da sala para Hob e Patrik, esperando que
seu olhar intenso os fizesse se contorcer.
— Eles pegaram mamãe pelos cabelos — disse Linnet. — E a
arrastaram para a sala dos fundos. Ela estava gritando tão alto, isso
machucou meus ouvidos, e Will, ele é grande, bateu nos homens
maus, teve um de seus ataques quando ele começa a cuspir e
berrar, e olhou para mim e...e...
Ela não disse nada depois disso. Apertou o rosto contra o pescoço
de Eliana, tremendo.
— Ele disse para você correr — Eliana terminou para ela. — Ele
lhe deu tempo para correr.
Então ela afastou a garota de seu corpo, abaixou-a no chão.
Patrik estava lá imediatamente com a boneca abandonada.
Eliana passou pelos dois para a mesa de Hob. Raiva irrompeu em
seu corpo como o golpe de um chicote.
— Por que você fez isso? — Ela apontou a cabeça para Linnet,
agora aninhada nos braços de Patrik. — Por que fazê-la reviver
isso?
Hob a observou calmamente. — Ela queria que eu anotasse, para
não esquecer.
— Quantos você tem?
—Mil trezentos e vinte e cinco. Eu enchi doze livros até agora. As
pessoas que vêm aqui têm histórias para contar. Alguns deles
querem que eu as escreva. Alguns escrevem para mim. — Hob
respirou fundo. — Eu acho que alguém deveria saber sobre. Sobre
todo mundo. Mesmo que seja apenas eu e Patrik.
Eliana olhou para o caderno e suas páginas retorcidas com
desdém. — É uma perda de tempo — ela cuspiu. — Escrever
histórias para os mortos-vivos.
Então ela saiu, Linnet chamando fracamente atrás dela. A garota
nem sabia o seu nome: — Mamãe?
Eliana entrou no corredor escuro e apertado e virou no primeiro
canto, depois se apoiou contra a parede, o coração disparado pela
fuga e as mãos trêmulas. Ela as apertou na jaqueta, mordeu com
força a língua.
Foi um erro deixar Orline, fazer uma barganha com Simon,
arrastar Remy junto com eles. Imprudente e desleixado.
Deveria ter ido da cama vazia da mãe direto para a porta de lorde
Arkelion e exigido que ele a ajudasse a levá-la para casa.
Eu não serei consumida.
Ela era uma serva leal do Império há anos, não era?
Eu não serei consumida.
Talvez isso fosse suficiente para que eles a aceitassem de volta.
Isso e o mapa de Crown's Hollow agora vivendo em seu cérebro.
— Parece que o Terror tem um coração, afinal — disse Simon,
aparecendo na esquina tão silenciosamente que ela se assustou.
Ela conseguiu uma pequena risada, pensando rápido. Ele não
podia suspeitar, ou atiraria nela imediatamente. — É uma coisa tão
chocante de se imaginar?
Simon tocou levemente a dobra do braço dela, e houve uma
fragilidade no movimento que a surpreendeu. O calor aquecido de
seu corpo aquecido pelo fogo.
— Venha — ele murmurou. — Eu vou levá-la para o seu quarto.
Foi uma caminhada tranquila, e quando chegaram à porta, Eliana
conseguiu realizar uma queda adequada de lágrimas de seus olhos.
Virou o rosto para Simon, deu-lhe uma boa visão.
Sua mãe lhe dissera que sua beleza tornaria o trabalho para o
Império mais fácil e mais difícil.
Desta vez, tornou as coisas mais fáceis. Ela viu a mudança em
seu rosto quando ele olhou para ela, pequena, mas óbvia. Um
amolecimento e um desejo.
Um fio de triunfo desenrolou em sua barriga.
Adeus, Lobo. Que a morte o encontre no seu maior momento de
alegria.
— Remy sempre diz que ainda há esperança para mim, mesmo
depois de tudo o que fiz. — disse ela calmamente. Desolada era a
palavra. — Não tenho certeza se ele está certo. — Ela riu, com os
olhos arregalados.
Simon se mexeu, hesitou, depois segurou o rosto dela com uma
mão grande e calejada. Seu toque era tão delicado que provocou
um calafrio em Eliana, apesar de sua nova determinação em acabar
com ele.
— Pessoas como nós não lutam por nossa própria esperança —
disse ele calmamente. — Lutamos por todos os outros.
Então ele abriu a porta e se afastou. — Boa noite, Eliana. — disse
ele, passou rapidamente por ela e se foi.
Eliana entrou no quarto e fechou a porta atrás dela. Uma vez lá
dentro, seu rosto endureceu como pedra e seu coração junto com
ele.
Ela secou as bochechas e deu a Remy um aperto suave. —
Remy, acorde.
Ele se virou, grunhindo. — El? O que foi?
— Fique quieto. Saia da cama e calce as botas.
— Por quê?
— Estamos indo embora. — No escuro, seu sorriso era cruel, mas
ela manteve a voz gentil. — Simon precisa da nossa ajuda em uma
missão muito importante.
19
Rielle
“Ó mares e rios! Ó chuva e neve!
Saciar-nos a sede, purificar-nos do nosso mal
Cultiva-nos o fruto dos nossos campos
Afoguemo-nos os gritos dos nossos inimigos!”
—O Rito da Água
Proferido pela primeira vez por Santa Nerida, a Radiante, santa
padroeira de Meridian e dos waterworks

As regras do desafio eram simples:


Escondidos na baía haviam três itens. Quando montados,
formariam um tridente – uma réplica do receptáculo de Santa
Nerida. Rielle deveria recuperar e montar o tridente e apresentá-lo
para todos verem antes que o oceano a comesse viva.
Simples.
Exceto que a água estava muito fria.
E a Grã Magister Rosier e seus acólitos estavam deixando o mar
zangado.
Rielle chutou a superfície para se orientar e foi prontamente
puxada por uma onda negra de seis metros de altura. Nadando com
força, ela se levantou e ofegou por ar antes que outra onda a
jogasse de volta na água.
Isso não a levaria a lugar nenhum.
Ela lembrou as palavras de Tal: Não tenha medo de lutar.
De fato, porém, ela estava com medo.
Quando Rielle era criança, e Tal a segurou sob a água nos
banhos, ela brigou com ele primeiro. Soube imediatamente que ele
a estava testando, mas com os pulmões queimando, tão
desesperada que pensou que poderia morrer com isso, estava
pronta para fazer qualquer coisa pela chance de respirar
novamente.
Olhando através da água limpa e macia, viu a figura embaçada de
Tal curvada sobre ela. Rielle imaginou a voz dele, guiando-a através
de suas lições:
O empirium está em todos os seres vivos. Pense nisso como
pequenos cristais, formando a base de tudo que existe.
O objetivo, então, é alcançar com seu poder além do visível, além
da superfície das coisas.
Agarrar o próprio empirium – os grãos da vida, mais finos que a
areia – e alterá-lo.
Com os pulmões queimando como naquele dia, Rielle fechou os
olhos no turbilhão do mar escuro e recitou o Rito da Água. Seu
corpo clamava por ar e ela o ignorou.
— Sinto muito, Rielle. — Tal soluçou depois de soltá-la. Segurou
seu corpo pequeno e sufocado, respirou em sua boca para ajudá-la
a recuperar o ar, em seguida enfiou a cabeça encharcada sob o seu
queixo. — Me perdoe. Por favor me perdoe.
— Eu fui bem, não foi? — Sorriu para ele, tossindo água. — Tal,
eu não perdi o controle! Eu vi a água! Os pedaços de água eram
pequenos e bonitos, e eu os vi e não tive medo!
Lançada sob as ondas, seu corpo queimando e sua visão
desaparecendo, Rielle lembrou-se do rosto confuso e afetado de
Tal. Depois, em seu escritório, enquanto ela estava bebendo uma
xícara de chá debaixo de um cobertor, ele penteava o seu cabelo
suavemente e a segurava até que ela finalmente parasse de tremer.
— Você viu, não viu? — ele sussurrou, impressionado.
Se aconchegando nos braços dele, murmurou sonolenta. — Vi o
quê?
— O empirium.
Ela torceu o nariz e olhou para ele. — Você também não viu?
Mas não. Ele não tinha, e ele não o faria. Ver o empirium com os
próprios olhos não era algo que os outros desfrutavam. Rielle viu a
verdade disso no olhar maravilhado de Tal, sentiu como
reverentemente ele a ajudou a voltar para casa e para a própria
cama.
Na água, lembrando-se daquele dia, a mente de Rielle ficou clara
e tranqüila. Você viu, não viu?
Sim. Ela viu.
Seu poder queria vir à superfície, e ela o deixou subir.
Eu devo respirar nesta água.
Então eu irei.
Rielle abriu os olhos e viu a água da baía cheia de incontáveis
manchas de luz dourada, tão pequenas que quando se concentrou
nelas, elas se fundiram em um brilho sólido e brilhante.
O empirium.
Piscou. O ouro desapareceu.
Mas não estava sozinha aqui. O empirium estava ao seu redor –
roçando sua mente como garras, alcançando-a, chamando-a.
Sua mente focada e clara, seus pulmões ardendo, ela saiu de
seus pensamentos, afastando a água de seu corpo até que foi
cercada por uma fina camada de ar.
Suportou, mas não duraria para sempre. Já podia sentir a
proteção estalando, o peso das ondas pressionando-a como se
contra um vidro fino. Uma dor ensurdecedora pulsou em seus
músculos. Sua mente se contraiu e mudou como se alguém tivesse
atingido seu crânio e estava remodelando o lugar escuro e profundo
atrás de seus olhos.
Seu poder é um milagre, Rielle, disse Corien, Sua voz tingida de
reverência. Eu não o entendo. Ajude-me a entender.
Rielle chutou com força e mergulhou mais fundo.

•••

O primeiro item foi fácil:


A cabeça tridente, com pontas afiadas e prateadas, caída em um
grupo de algas no fundo do oceano.
Rielle chutou para baixo, a pressão da água invadindo seus
ouvidos, latejando. Ela agarrou a ponta do meio e sua palma se
encheu de dor. O sangue dela nublou a água; a proteção ao redor
de seu corpo tremeu.
Rielle lembrou a história de Santa Nerida na batalha final no
Portão – como ela usara seu tridente para empalar o anjo Razerak
através de seu intestino. Seu grito foi alto o suficiente para que os
pássaros do mar ao longo da costa norte celdária caíssem mortos
do céu.
Foco, Rielle, ela disse a si mesma, furiosa por ter agarrado a
ponta sem pensar. Mas então a visão de sua própria mão segurando
a cabeça do tridente deu-lhe uma explosão de inspiração.
As pessoas acima, esperando que ela se afogasse, também se
lembrariam das histórias de Santa Nerida.
Rielle se levantou do fundo do mar, chutando com força até sair
da água e empurrar a cabeça do tridente para o alto. Gotas de
chuva, lançadas de um céu cheio de nuvens, batiam em suas
bochechas.
A luz brilhava sobre onde Rielle balançava nas ondas. Os acólitos
da Casa da Luz lançavam raios de luz do alto dos penhascos..
Rielle virou o rosto para o calor e, uma vez que a multidão a viu –
segurando triunfantemente a primeira peça do tridente, com a mão
cortada sangrando e escorrendo pelo braço – um rugido de
aplausos explodiu. E embora sua camada protetora de ar tenha
abafado o som, Rielle ouviu o suficiente para saber a verdade:
Eles não esperavam que ela surgisse depois de tanto tempo
debaixo d'água. Mas agora ela tinha, e agora... agora tudo era
possível.
Rielle sorriu e mergulhou de volta. Uma vez debaixo d'água, sua
proteção de ar contraiu, torcendo sobre seu corpo como um pano
sendo torcido. Ela engasgou, apertando a garganta. Rielle fechou os
olhos e lutou por calma o suficiente para rezar.
Cultiva-nos o fruto dos nossos campos.
Ela abriu os olhos, olhou furiosa para as profundidades escuras.
Afoguemo-nos os gritos de nossos inimigos.
Ela alcançou o empirium.
Me siga.
Me obedeça.
Calor estalou em seus dedos das mãos e pés.
O empirium estava ouvindo?
Com o foco renovado, nadou, procurando pistas na água turva.
Mas ela viu apenas lodo e sal, a ocasional forma esvoaçante de
uma criatura nadadora.
Então uma escuridão maciça se solidificou nas sombras aquosas
– um navio afundado, meio submerso na areia movediça e brilhando
fracamente por dentro.
Valia a tentativa.
Rielle nadou para mais perto. A densa corrente da água se moveu
cada vez mais rápido, arremessando-a loucamente por redemoinhos
rodopiantes por um momento e empurrando-a como uma parede
sólida no seguinte.
Dentro do casco rachado do navio havia uma terra estranha e
meio iluminada. Cracas rosadas luminescentes estavam grudadas
nas paredes e no teto. Nadou pelos aposentos do capitão, a
cozinha, uma despensa cheia de peixes que fugiam com sua
aproximação...
Lá. Uma luz cintilante pegou seu olhar.
Uma pedra preciosa, do tamanho de um punho e de um azul
escuro na escuridão, piscou para ela do fundo do navio. A safira de
Santa Nerida. Seria fixado no final do mastro do tridente.
Rielle pegou a safira, enfiou no bolso e congelou.
A luz cintilante e cor de rosa que inundava o navio ficou
subitamente mais brilhante do que alguns momentos antes.
Lentamente, Rielle se virou e seu estômago se contraiu de horror.
As cracas luminescentes que haviam tapado as paredes,
iluminando seu caminho, não eram cracas. Elas eram águas-vivas –
uma multidão delas, do tamanho de um gato rosa brilhante com
centros roxos como de um hematoma. Uma luz crepitante zumbia
entre as pontas difusas de seus tentáculos.
Em pânico, Rielle chutou para se afastar deles. Algo afiado
espetou sua perna por trás; ela girou na água.
Elas a estavam cercando. Aproximando-se inexoravelmente,
como se estivessem sendo atraídas pelo seu crescente terror. Uma
delas bateu no braço dela; uma picada quente e penetrante a
sacudiu. Outro encontrou a têmpora, a mão sangrando. Elas se
amontoaram, alcançando. Os nós de tentáculos brilhantes
bloqueavam sua visão do navio e do mar além dele.
Ela esqueceu todas as suas orações e lições e gritou.
O grito rompeu sua poteção de ar; a água se fechava em torno
dela, cruel e fria.
Ela percebeu a mudança tarde demais e ofegou, sufocando no
mar.
O desespero a forçou a se mover. Nadou, selvagem, desajeitada,
passou a cabeça do tridente pela água-viva, sentiu as pontas
perfurarem algo espesso e gelatinoso. Um tentáculo enrolado em
seu tornozelo, em seu braço não machucado. Ela voltou com o
tridente e cortou através deles, puxando-se livre.
Empurrou e arranhou, as luzes raivosas do enxame cortando sua
visão. Ela esperava que seu traje lhe oferecesse alguma proteção,
mas sua visão já estava escurecendo.
Ar. Ar. Ar.
Ela conseguiu sair do barco, alcançando desesperadamente a
superfície. Seus pés estavam dormentes, desajeitados. Não sabia o
que seu corpo estava fazendo, apenas sabia que tinha que se
levantar, levantar, sair.
Rielle saiu da água, tossindo com força. Uma onda a empurrou
para baixo. Ela se agitou, se criou, encontrou forças, subiu de volta.
Doces Santos, o ar era glorioso, puro e frio em seus pulmões
doloridos. A chuva bateu nela. Outra onda a empurrou para baixo e
outra logo depois. Ela emergiu novamente e olhou em volta
descontroladamente. Onde estavam os penhascos? Onde estavam
os acólitos sunspinners com seus raios de luz?
Ela viu escuridão, mudando e crescendo ao seu redor – sem céu,
sem nuvens.
A escuridão, ela percebeu com uma explosão de medo, eram
ondas.
Ela mergulhou, tateou o bolso até sentir a pedra dura, escondida
em segurança. Ela nadou, procurou o ar, emergiu e mergulhou
novamente. Eles a estavam observando lá em cima? Eles
conseguiam vê-la? Ela deve ter parecido absurda - encharcada e
sangrando, roupa rasgada, pele levantada em vergões raivosos.
Você pode fazer isso, veio a voz de Corien. Sua presença era
calma e quieta. Você pode fazer muito mais do que isso.
Eu posso? Ela queria se afundar no fundo do mar e chorar. A
menos que você vá me ajudar, me deixe em paz.
Sua voz desapareceu; ela estava sozinha.
Não conseguiu encontrar o foco para recriar sua preciosa
proteção, então ressurgiu e mergulhou. Seus olhos estavam
pegando fogo por conta do sal: ela não conseguia ver nada nessa
água escura e agitada.
E então – quanto tempo tinha passado? Minutos? Dias? Seu
corpo era uma pulsação maciça e ardente de dor – ela viu. Era a
chance, na verdade: um balanço no alto de um dos raios de luz do
sunspinner. Algo longo e fino brilhou, depois desapareceu.
Carregando até uma elevação no fundo do mar, mais perto da
superfície do que as outras peças, estava o eixo do tridente.
Ela mergulhou em sua direção, todo o seu foco se estreitando
neste único local. Uma força surgiu dentro dela, algo ansioso,
quente e familiar. E enquanto corria através de seu corpo,
disparando seu sangue, o oceano ao seu redor brilhou ouro mais
uma vez.
Ela entendeu agora; foi fácil, com o empirium iluminando o
caminho. Mova a água, crie um caminho.
No momento seguinte, percebeu que não estava mais nadando.
Ela estava correndo, com a mente clara e ardente. A água subiu dos
dois lados dela; ela estava abrindo um caminho através dela. Ela
alcançou o eixo do tridente e ficou ofegante no fundo do oceano. Ao
seu redor, a água era um túnel estreito e rugindo, lançando água no
ar como um gêiser.
Mas aqui no fundo do mar, tudo estava quieto, flutuando
suavemente, preto, azul e dourado. Rielle tranquilamente reuniu o
tridente com as mãos trêmulas. Prendeu as pontas no eixo, a pedra
preciosa até o fim. Agarrou e olhou para cima.
Uma coluna de água levava direto ao ar, um caminho que ela
havia esculpido naquele último mergulho desesperado, sem sequer
perceber o que tinha feito.
Um prazer selvagem cresceu dentro dela.
Eu consegui.
Eu e mais ninguém.
E como se sente? Corien perguntou calmamente. A presença dele
pairava na mente dela.
Eu me sinto…
Ela não conseguiu articular. Parada ali, olhando para o caos da
água tomado por seu poder, ela só podia ficar boquiaberta e se
divertir nela e existir.
Eu sinto…
Um pequeno medo despontou em seu peito, mas ela não podia
ouvir isso agora, quando tudo parecia tão... tão...
Ela fechou os olhos, tremendo. O ar ao seu redor vibrou com
calor. Além disso, o mar agitava, implacável e frio. Borrifos de água
beijaram suas bochechas.
A voz de Corien era tão gentil quanto o abraço de seu pai há
muito tempo: Diga-me, Rielle.
Eu me sinto... viva.
E você está. Você está mais viva do que qualquer um.
Mas então o pequeno medo cresceu. Ele se ergueu e gritou: O
que essa exibição poderia ter feito na superfície?
O terror colidiu com seu corpo.
Seu triunfo desapareceu; o foco dela se partiu. A água seguiu logo
depois.
Bateu sobre ela como a força de mil punhos e a jogou no fundo do
oceano. Ela flutuou lá, atordoada, com a cabeça zunindo.
Erga-se, Rielle, Corien insistiu.
Eu ... eu não consigo.
Você conseguiu. Você está quase terminando.
Rielle observou o tridente afundar ao lado dela. Os olhos dela se
fecharam.
Muito irritado, Corien disse: Seus amigos estão preocupados com
você, Rielle. Especialmente aquele garoto.
Audric. Rielle procurou o tridente. Ludivine.
Sim, Corien disse, agora desagradável. Vá até eles, alivie sua dor.
Eles te amam tanto.
Rielle forçou os olhos a abrir. Pulmões queimando. Visão
escurecendo. Ela se levantou. Ela chutou e lutou, arranhando a
água fria e, quando explodiu acima das ondas, lembrou-se de
segurar o tridente completo acima da cabeça.
Os raios dos sunspinners brilhavam sobre ela. O braço dela tremia
sob o peso do tridente, mas ela o segurou com força.
Desta vez, o rugido da multidão foi ensurdecedor.
Em um instante, a chuva parou. As ondas achataram e
acalmaram, as nuvens rolando para revelar um céu azul suave.
Rielle viu através de seus olhos que ardiam o píer próximo, cheio
de figuras. Uma delas mergulhou na água, indo rapidamente em sua
direção. Os que ainda estavam no píer gritaram para quem quer que
fosse.
Rielle mal conseguia nadar, o tridente a atrasando. Ela só
conseguiu alcançar alguns metros quando um braço forte a segurou
contra um corpo que irradiava tanto calor que só poderia pertencer a
uma pessoa.
— Audric. — sussurrou Rielle, agarrando-se a ele, seus membros
tremendo de exaustão. — Você está bem.
Ele soltou uma risada trêmula. — Precisamos levá-la ao meu
curandeiro. Você está fria como gelo.
— Graças a Deus você está aqui. — Ela apertou os olhos quando
ele desajeitadamente nadou de volta à costa com um braço, seu
corpo junto contra ela com o outro. — Estou cansada de nadar.
— O que aconteceu com você?
Rielle olhou turvamente para as mãos. — Oh. Águas-vivas me
atacaram. Os waterworkers as deixaram com raiva, talvez.
— Deus, Rielle... — A voz de Audric falhou. — Eu sinto muito.
— Não se preocupe. Eu esfaqueei elas. As águas-vivas, não os
waterworkers. — Olhou cansada para o píer, onde os acólitos
esperavam. — Embora isso ainda seja uma possibilidade.
Ele riu de novo, depois disse baixinho: — Rielle?
— Sim?
— Você estava com medo?
Ela fechou os olhos e sussurrou: — Sim.
Os braços dele se apertaram docemente ao redor dela, a boca
quente contra a têmpora dela. — Eu queria poder...
— Sua Alteza! — Um acólito waterworker se ajoelhou na beira do
píer e estendeu a mão. Ele olhou para Rielle como se ela fosse
Santa Nerida ressuscitada dos mortos.
Audric ignorou o homem, gentilmente se separando de Rielle. —
Aqui, eu vou ajudá-la a se levantar.
— Não. — Rielle agarrou a borda do cais e se virou na água para
encará-lo. — Eles precisam me ver levantar sozinha.
Ele sorriu e entregou a ela o tridente. — Seu prêmio, minha
senhora.
Ela apertou a mão dele, depois trêmula subiu o píer, recusando a
assistência oferecida a ela pelo Grã Magister Rosier, seus acólitos,
até Tal.
Com os próprios pés, ela se levantou, cambaleando levemente, e
olhou para as milhares de pessoas que ladeavam os penhascos –
balançando os braços, batendo os punhos, gritando o nome dela.
Quando levantou o tridente com as duas mãos, seus aplausos se
tornaram estrondosos.
Ela se virou para encarar o Conselho Magistral, que havia se
reunido no píer. Tal sorriu, os olhos brilhando de orgulho. Sloane
estava ao lado dele com os braços cruzados, uma expressão
pensativa no rosto, o cabelo curto e escuro grudado nas bochechas
pálidas.
E ao lado dela estava o Arconte, gotas de água da chuva
escorrendo pelo rosto implacável.
Rielle entregou-lhe o tridente com um sorriso que ela sabia que
era graciosamente arrogante. Mas não se importava nem um pouco.
— Sua vez. — disse ela com uma ligeira reverência. — Sua
Santidade.
20
Eliana
“Tameryn de coração sombrio nunca tinha
visto nada de bom chegar à luz do dia. Com
suas adagas, ela esculpia sombras de todos
os cantos e cavidades. Ela respirava vida em
suas bocas ofegantes, enroscou-as nos
membros e no pescoço, amarrou os dedos
recém-nascidos nas pontas dos cabelos. Lá as
sombras sussurravam segredos para ela, em
gratidão, e por isso ela nunca estava sozinha
e sempre segura na mortalha da noite.”
—O Livro dos Santos

Esgueirar-se de Crown's Hollow durante a troca de turno da guarda


de perímetro tinha sido desanimadoramente fácil.
Até a caminhada tensa de três quilômetros pela natureza,
pensando que todo farfalhar de folhas era uma sentinela da Coroa
Vermelha – ou pior, Simon – havia sido mais rápida do que Eliana
esperava. Remy acreditou em sua história. Simon, ela disse a ele,
tinha ido em uma missão para o posto mais próximo do Império,
para recuperar uma informação importante para Navi. Ele havia
deixado as instruções para Eliana: se não voltasse dentro de duas
horas, eles deveriam ir ajudá-lo.
— Até eu? — Remy perguntou.
— Especialmente você.
Os olhos dele se estreitaram. — Por quê?
— Porque você é bonito e ninguém irá suspeitar de suas mentiras.
Você pode esgueirar-se em espaços muito pequenos. E é um
contador de histórias. Pode improvisar, como eu preciso.
— E não podemos contar aos outros?
— Não.
— Por quê?
— Simon disse que não. Não me peça para explicar suas
escolhas. Eu não seria possivelmente capaz de começar.
Remy não parecia convencido, mas pelo menos não estava
discutindo. Por enquanto, tudo bem.
Porém conseguir uma audiência com Lorde Morbrae sem ser
morta por trair o Império? Isso seria um desafio, mesmo para o
Terror.
Talvez eles não se importem tanto com o fato de eu ter ajudado o
soldado mais notório da rebelião a empurrar um dos assassinos
pessoais do Imperador para fora de uma torre?
Foi um bom pensamento.
Eliana examinou a floresta iluminada pela lua, deslocando seu
peso de um pé para o outro. Seus músculos queimavam devido ao
agachamento prolongado, mas era uma sensação boa. Isso a
lembrou: sem mais rebeldes; sem mais histórias tristes ou princesas
perdidas.
Sem mais Simon.
— É ele? — Remy sussurrou ao lado dela.
Eles estavam esperando do lado de fora do posto avançado do
Império por duas horas, observando a chegada de Lorde Morbrae
enquanto as árvores ao redor deles tremiam com névoas e o céu
noturno avançava em direção a um amanhecer cinzento. E agora,
quando Eliana olhou de volta para o posto avançado através de uma
rede de galhos molhados, ela viu o que Remy tinha visto.
Um comboio se aproximou da parede do perímetro. Dez adatrox
montados. Uma carruagem puxada por quatro cavalos.
Uma porta se abriu, levando a luz da tocha para dentro.
Então. A inteligência da Coroa Vermelha tinha sido precisa.
Ela esperava que sim.
— Parece a escolta de um general para mim — sussurrou Eliana.
Remy olhou para ela de dentro do capuz de sua capa, tremendo
mesmo com a noite espessa fumegando ao redor deles. — Talvez
devêssemos voltar.
Eliana virou-se para ele, preparando-se. — Ouça com atenção.
Não estamos aqui para ajudar Simon.
Remy piscou. — O que?
— Vou negociar com lorde Morbrae informações, conseguir anistia
para todos nós. Pelo menos até que eu possa levá-lo a Astavar.
Então não me importo com o que eles façam comigo.
— Você...o quê? — O rosto de Remy ficou nublado, se afastou
dela. — Você mentiu para mim.
Eliana suspirou e olhou rapidamente para o posto avançado. —
Sim, e seria esperado que já estivesse acostumado com isso.
— Você vai fornecer informações sobre Crown's Hollow.
— Remy...
Ela o alcançou, e ele deu um tapa na mão dela.
— Qual o seu problema? — sussurrou. — Todas aquelas
pessoas...
— Os refugiados? Eles fariam a mesma coisa na minha posição.
Fariam o que fosse necessário para manter sua família viva e
segura.
Remy balançou a cabeça e deu mais dois passos para longe dela.
— Você está errada. Alguns fariam. Não todos. Eu não.
Um chamado do posto avançado a distraiu; ela se virou, olhando
de soslaio pelas sombras.
Então Remy pegou Arabeth do seu cinto e correu.
— Remy! — Ela o chamou tão alto quanto ousou.
Atrás dela, um dos cavalos puxando a carruagem estremeceu e
bateu o pé.
Eliana olhou para o posto avançado e depois voltou para o
pântano. A pequena forma de Remy desapareceu na escuridão,
correndo em direção a Crown's Hollow. Ela tinha que seguir. Nada
disso valia a pena se estivessem separados.
Eliana ficou de pé, ouviu um galho estalar atrás dela e congelou.
Uma voz masculina perguntou suavemente: — O que é isso?
Lentamente, Eliana se virou. Um homem uniformizado estava a
alguns passos de distância, uma silhueta iluminada pela luz das
tochas da parede do perímetro do posto avançado. Atrás dele, havia
uma dúzia de adatrox, rifles apontados para o coração dela.
Eliana colocou as mãos no ar.
— Meu nome é Eliana Ferracora — ela chamou. — Eu sou o
Terror de Orline. Fui capturada por soldados da Coroa Vermelha e
fugi. Eu tenho informações que vocês vão querer.
Silêncio então. Os insetos das árvores pairando acima de sua
cabeça sacudiram e zumbiram. O suor coçou ao longo de sua testa.
— E o que — disse o homem. — Você quer em troca dessas
informações?
— Passagem segura para mim e meu irmão de volta para Orline.
Uma garantia de anistia. E o retorno da minha mãe. Ela foi
sequestrada de sua cama há duas semanas. Eu a quero de volta.
Viva e inteira.
O homem ficou em silêncio por outro momento, depois se
aproximou dela. Quando fez isso, as sombras tremeram, revelando
um homem magro e barbeado, com pele marrom clara e cabelos
escuros e curtos. Como todos os generais do Império – como o
próprio imperador – seus olhos tão pretos brilhavam como um
buraco profundo no chão.
Quaisquer que sejam as drogas que o Imperador alimentou seus
cães para alterar sua aparência tão drasticamente, devem ter sido
verdadeiramente monstruosas.
Eliana encontrou seu olhar sem vacilar. Lorde Morbrae.
Ele sorriu e estendeu uma mão com luvas de couro. Os adatrox
reunidos abaixaram suas armas.
— Seja bem-vinda, Terror — disse Lorde Morbrae, com a voz fina
e suave como creme. — Venha. Me conte seus segredos.

•••
Ele a conduziu pela prisão primeiro.
Todo posto avançado do Império tinha uma, e embora esta fosse
pequena e simples em comparação com as masmorras elaboradas
abaixo do palácio do senhor Arkelion em Orline, era distinto de uma
maneira. Em vez de celas, os cômodos compridos e estreitos
estavam alinhados com pequenas gaiolas quadradas que exigiam
que os adultos sentassem curvados. Mas nem todos eram adultos;
alguns eram crianças. Grotescamente magras, barrigas inchadas,
peles avermelhadas por coçar, lábios cobertos de sangue e vômito.
Eles assistiram Eliana quando ela passou. Os mais novos, não tão
magros ou machucados, olhavam cruelmente, cuspiam através das
grades de suas gaiolas. Os que estavam lá há algum tempo – pele
incrustada na imundície, cabelos emaranhados, rosto magro – nada
disseram, olhando fixamente.
Em uma curva na parede, uma criança pequena bateu na porta de
sua gaiola e agarrou a grade com ossudos dedos brancos. Seus
olhos estavam furiosos, a pele ao redor deles estava vermelha e
crua.
— Ajude-nos! — Ela gritou, sacudindo a porta. O metal cortou
suas mãos. — Tire-me daqui! Tire-me daqui!
— Existe uma razão em me mostrar tudo isso? — Eliana
perguntou, parecendo entediada. Mas seu sangue fervia quente
dentro dela.
Que Tameryn, a Astuta, lhe conceda uma morte rápida e indolor,
criança, ela pensou.
— Eu queria lhe mostrar o que vai acontecer com você —
respondeu lorde Morbrae. — Se você decidir me desafiar durante a
sua estadia aqui.
Então ele abriu uma porta para uma pequena sala simples – uma
cadeira, uma lâmpada piscando. Estendeu as mãos para as facas
dela. — Você pode esperar lá dentro.
Eliana olhou para dentro, ergueu uma sobrancelha não
impressionada. Mas sua mente trabalhava freneticamente por conta
pânico. Ela não tinha tempo para esperar em uma cela. Remy
contaria tudo a Simon, e eles a procurariam, armas em punho. Eles
atirariam nela imediatamente. Precisava contar a Lorde Morbrae,
ajudá-lo a preparar seus soldados para combater o ataque dos
rebeldes – mas não antes de conseguir o que queria dele.
Ela colocou as facas nas mãos dele. — Eu tenho um quarto de
verdade, então? Não é uma gaiola suja de esterco?
O sorriso de lorde Morbrae não alcançou seus olhos. — Apenas o
melhor para o Terror de Orline. Espero que você esteja com fome.
Quando ele fechou a porta, Eliana foi deixada sozinha e incerta.
Sentou na cadeira no meio da sala e esperou.

•••

— Então, Eliana Ferracora. — Lorde Morbrae reclinou-se na cadeira


e levou uma taça de vinho aos lábios. Sobre a borda do copo, seus
olhos a observavam, negros e sem piscar. — Estou ouvindo.
Eliana continuou cortando sua carne de veado. Sangue
derramado em seu prato a cada pressão de sua faca. Eles a
mantiveram naquela cela por duas horas antes de a chamarem para
a sala de jantar de Sua Senhoria.
Tentou não pensar na prisão cheia de gaiolas, a menina gritando
com os olhos desesperados.
Tentou não pensar em Remy ou em Simon. Ele já estava a
caminho? Ou eles assumiriam que Lorde Morbrae tinha a matado e
a dariam como morta? O que Remy pensaria? Ele ficaria feliz em se
livrar dela?
E o que aconteceria com sua mãe?
Eliana imaginou remover seus pensamentos constantes com a
ponta de uma lâmina.
— Existe um complexo da Coroa Vermelha — ela começou
entediada. — Três quilômetros a sudoeste daqui. Eles se chamam
de Crown's Hollow. — Ela levou um pedaço da carne aos lábios,
mastigou e engoliu. Olhou para Lorde Morbrae e sorriu. — Que
refeição deliciosa você preparou para mim. Estou grata. Os rebeldes
não têm muito em termos de boa culinária.
A risada de Lorde Morbrae era quase inaudível. Ele estalou os
dedos. Um dos guarda-costas adatrox ao redor da sala de jantar se
moveu para encher o copo de Lorde Morbrae.
Eliana assistiu em silêncio enquanto Lorde Morbrae bebia e bebia.
Estalou os dedos mais uma vez. Outro copo cheio. Ele engoliu como
um andarilho no deserto, depois bateu o copo sobre a mesa e
torceu os lábios. Pegou o garfo e a faca, cortou violentamente a
carne de veado, mordida após mordida sem parar para respirar.
Por fim, parou, tomou outro gole de vinho e ficou olhando para o
prato com desgosto. — Mais carne. — disse ele ao adatrox mais
próximo. — Isso não. — Ele empurrou o prato de carne de veado
para longe. — Algo que realmente é bom, para variar. Você pode
conseguir isso?
O adatrox curvou-se e deu um leve aceno irregular.
Depois que ele se foi, Lorde Morbrae voltou o olhar para Eliana,
olhos escuros pesados e pálidos. Vinho tinto manchava seus lábios.
— Está mentindo.
Um calafrio de medo subiu pela garganta de Eliana. Ela sorriu
incrédula. — Não estou. O que de bom poderia...
— Se houvesse um complexo rebelde a três quilômetros daqui,
nós o teríamos destruído há muito tempo.
— É subterrâneo. E bem guardado.
Lorde Morbrae piscou finalmente.
Ah. Você não sabia disso, sabia? Eliana continuou comendo,
examinou a sala de jantar alegremente. — Adorável o pequeno
espaço que você tem aqui. Boa mesa sólida. Trabalho de moldagem
impressionante. Eles fizeram isso especialmente para você? —
Garfo na mão, ela apontou para a parede mais próxima. — Eles
mudam a arte de acordo com os gostos de cada general visitante?
— Quantos? — A voz suave de Lorde Morbrae foi uma explosão
no silêncio.
— Trezentos e dezesseis refugiados. — Ela tomou um gole de
seu próprio vinho. — Cinquenta e um soldados rebeldes e grupos
pequenos de dois a oito rebeldes, vão e vêm todos os dias. Há dez
em patrulha na floresta, além do complexo, formando um perímetro.
Cinco vagam; cinco estão em esconderijos que construíram nas
árvores.
— Munição e suprimentos?
Eliana pegou uma maçã vermelha em uma tigela de prata
brilhante na mesa e deu uma mordida. — Desculpe meu amigo.
Receio não poder oferecer mais informações até ter uma garantia
de nossa segurança. Eu, meu irmão, minha mãe. Caso contrário —
ela encolheu os ombros. — Sem acordo, receio.
O olhar de lorde Morbrae viajou por sua boca enquanto ela lambia
o suco de maçã dos lábios, depois para a garganta enquanto
engolia, depois pelo corpo. A boca de Eliana ficou subitamente
seca. Aquilo não era o desejo em seu rosto, não o tipo que ela
estava acostumada a ver.
Era fascinante, cru e voraz, como se a visão de alguém comendo
uma maçã fosse algo que ele nunca tinha visto antes.
— Eu poderia matá-la agora — disse ele, sua língua correndo
para umedecer os lábios. — Se eu quisesse.
— Mas você não vai. Sei muito mais do que lhe contei. — Ela deu
outra mordida, obrigou-se a observá-lo enquanto mastigava, apesar
da apreensão rastejando sobre sua pele. — Você não corre o risco
de perder essas informações, não agora que sabe que um complexo
rebelde o ilude há tanto tempo. Eu conheço os planos do Lobo. Uma
missão secreta, além dos esforços da Coroa Vermelha. Poderia
mudar a maré da guerra. — Ela jogou a maçã meio comida no prato.
— Deixe-me ajudá-lo, meu senhor. O que peço em troca não é nada
comparado às informações que carrego.
Lorde Morbrae levantou-se. Ele se esticou, revirou os ombros,
estalou a mandíbula como se estivesse trabalhando uma torção.
Eliana observou, seu estômago revirando. Se recostou na cadeira
e cutucou as unhas. — Está se sentindo mal esta noite, meu
senhor?
Ele atravessou a sala, afundou em uma cadeira vermelha com
encosto alto ao lado do fogo crepitante e a observou. Sombras o
mascaravam, desenhando formas escuras em seu rosto.
— Continuo com fome. — Havia uma exaustão em sua voz – e
uma raiva que fervilhava. — Estou sempre com fome.
Eliana olhou para a mesa, repleta de comida. — Então.
— A comida não ajuda. — ele interrompeu. — Nada ajuda.
Um novo silêncio encheu a sala. Eliana resistiu ao desejo de se
mover, igualando a quietude de Lorde Morbrae.
— Venha aqui — ele disse finalmente, estendendo a mão trêmula.
Eliana soltou uma risada alegre, embora seu coração batesse com
um medo rápido e terrível. — Meu senhor, estou com as roupas
completamente enlameadas, e não tive a oportunidade de me
banhar...
— Cale a boca — Ele me cortou — E venha aqui.
Ela esperou o tempo que ousou, depois se levantou e se
aproximou dele, mantendo o olhar no rosto dele. Que ele saiba, com
uma expressão cuidadosamente criada de desdém e tédio, que o
pensamento do que ele faria com ela naquela cadeira não a
assusta.
Ela era o Terror de Orline, não era?
Mas ela nunca havia tocado em um dos homens do imperador.
Ela se sentou no colo de Lorde Morbrae e tentou ignorar a dor no
coração onde a memória de Harkan vivia. Mas de repente tudo em
que ela conseguia pensar era na risada dele, em seu sorriso largo,
no bater de botas no terraço do lado de fora da janela dela. Como
ele a tocou, pela primeira vez, com mãos trêmulas. Como ele
sempre a abraçou depois como se ela fosse algo precioso para ser
mantido seguro e quente.
Harkan, ela pensou, com medo zumbindo em seus ouvidos
enquanto colocava as palmas das mãos no peito de Lorde Morbrae.
Harkan, Harkan. O que estou fazendo aqui?
Ele fez a mesma pergunta muitas vezes, e a resposta dela sempre
foi a mesma: sobrevivendo.
As pernas de lorde Morbrae eram longas e ossudas; os botões de
sua jaqueta uniforme esticavam contra sua barriga saliente. Como
ele poderia ainda estar com fome? Parecia ter ganho dez quilos
desde que se sentaram.
O homem mudou à luz do fogo. Migalhas de pão grudavam nos
lábios manchados.
— Me deitei com muitas pessoas — Ele disse finalmente, sorrindo
para ela. Pedaços de carne ensanguentados estavam presos entre
os dentes; seu hálito estava rançoso, apesar de terem acabado de
comer. — Mas nunca foi bom. Nem uma vez, Terror. Mas talvez
você...
Ele traçou os dedos longos por todo o braço dela, encontrou a
gola aberta e brincou com a pele suja.
— Talvez eu o quê? — Eliana se inclinou para mais perto, mesmo
quando sua garganta se apertou com repulsa, deixou um sorriso
convidativo se abrir em seu rosto.
— Talvez você possa finalmente fazê-lo.
E eu vou. Lentamente, Eliana tirou a ridícula jaqueta de babados e
a deixou cair no chão. Sob a túnica, o pingente com a imagem
arruinada do rei Audric em seu cavalo voador coçava e queimava
contra seu peito. Se é isso que é preciso – para Remy, para mamãe
– é isso que vou fazer.
Lorde Morbrae observou todos os movimentos, seu olhar distante
e sua boca fina em frustração, como se ele já tivesse decidido que
qualquer tipo de experiência que desejasse, não encontraria aqui.
As mãos dele, no entanto, estavam apertadas nos quadris dela.
Insistentes.
Eliana se inclinou sobre ele, o coração batendo forte, e deixou os
olhos fecharem. Instruiu sua mente a se separar de seu corpo e se
afastar em segurança. Era uma excelente habilidade, uma das
primeiras que sua mãe a havia ensinado, e ela não era tão ruim
assim. Lorde Morbrae era uma marca, como qualquer outra. Ela
passaria por isso como havia feito muitas vezes antes.
Exceto que isso não era como as muitas vezes antes. E quando
Lorde Morbrae exalou contra sua bochecha, seu hálito podre e
estranhamente frio, Eliana não pôde evitar. Se afastou dele. Os
olhos se abriram.
Dois olhos negros encontraram os seus.
Naquele momento, foi como se algo tivesse saído da mente de
Lorde Morbrae e para dentro dela. Sentiu uma carga, como um raio,
alcançá-la e agarrá-la.
Eliana estremeceu em seus braços, e ele estremeceu debaixo
dela.
E de repente Eliana não estava mais no posto avançado de
Venteran.
Estava na varanda de um palácio, com vista para uma vasta terra
repletas de colinas cobertas de neve. Sua visão estava nublada;
formas mudaram diante de seus olhos como se fossem desenhadas
na superfície da água em turbilhão. Se concentrou, tentando se
equilibrar. O mundo ficou um pouco mais claro: uma cidade
brilhante. Bairros distantes se sobrepunham, amontoados entre
estradas sinuosas pavimentadas com pedra branca. Pináculos de
marfim se erguiam aos céus. O nascer do sol derramava ouro rosa
sobre uma cova enorme do tamanho de uma montanha na terra.
Luzes estranhas, como tempestades em miniatura presas,
brilhavam por toda a cidade.
Tudo isso era desconhecido, mas Eliana sentiu uma pequena
fisgada urgente em seu coração.
Isso não parecia familiar?
Um movimento à sua esquerda chamou sua atenção. Eliana se
virou, de alguma forma, embora seu corpo se sentisse separado de
tudo ao seu redor. Ela não conseguia sentir a pedra dessa varanda
sob seus pés, mas podia ver claramente o mundo ao seu redor,
sentir um leve aroma que a lembrava de Orline – a água do rio, suor
da cidade. Mas o ar aqui estava frio, cortante.
Este lugar... Não era um sonho ou alguma visão delirante. Pelo
menos ela não achava.
Uma figura estava no parapeito de pedra, não muito longe dela,
ao lado da estátua de um homem alcançando o céu de braços
abertos. Haviam várias estátuas na varanda. Salientes, de cada lado
das costas haviam asas magníficas de vidro colorido fino como
papel e incrustadas com pedras cor de fogo. Não emplumadas,
essas asas, mas esculpidas de chamas e sombras.
Eliana reconheceu as figuras dos contos de Remy sobre o Velho
Mundo.
Anjos?
Ela deve ter feito barulho. Algo mudou no ar. O homem ficou
terrivelmente quieto, então virou a cabeça para encará-la.
Cabelo preto brilhante enrolado logo abaixo das orelhas. Um
casaco escuro e elegante com ombros quadrados, preso com
botões de latão sobre seu coração, caiu de pé. Sua pele estava
pálida, as maçãs do rosto finas, a boca cheia. Seus olhos eram mais
escuros do que os de Lorde Morbrae.
Ela o reconheceria em qualquer lugar. Suas estátuas ficavam em
todas as esquinas de Orline. Enormes retratos dele, altivos e
impossivelmente bonitos, pairavam por todo o palácio do Lorde
Arkelion.
O Imperador dos Imortais.
E, de alguma forma, embora ela soubesse que ele morava a meio
mundo de distância em Celdaria, ele estava olhando de volta para
ela.
21
Rielle
“Quando Audric era menino, eu podia
considerar seu carinho pela filha de Armand
Dardenne como inofensivo. Mas agora... vejo
como ele a observa quando pensa que
ninguém está olhando. Irmã, devemos
desencorajá-los. Ludivine deve ser rainha.
Ludivine será rainha.”
—Carta escrita por Lord Dervin Sauvillier a sua irmã, rainha
Genoveve Courverie
Ano 994 da Segunda Era

O cômodo favorito de Rielle em Baingarde – além dos quartos de


Ludivine e Audric – era o salão privado da rainha Genoveve.
A rainha tinha muitas salas de estar reservadas para receber
convidados, mas esse era seu espaço privado, destinado apenas a
ela e sua família.
— Devemos mesmo fazer isso? — Evyline murmurou, parada
diretamente na porta da sala enquanto Rielle espiava pelos cantos
do corredor para se certificar de que ninguém estava vindo. Tudo
estava quieto, o ar do castelo ficava suave durante a noite. A luz da
lua crescente filtrava através do vidro colorido das janelas que
revestiam esse corredor em particular. O vidro era uma tradição do
Norte, destinado a trazer alegria para uma casa durante os longos
meses de inverno. Belbrion, sede da Casa Sauvillier, tinha tanto
vidro colorido que brilhava como uma coroa incrustada de joias
quando a luz do sol batia.
Satisfeita, Rielle voltou para a porta da sala. — Vou passar por
outro desafio com risco de vida amanhã, Evyline. — Ela olhou
inocentemente para a mulher alta de cabelos grisalhos. — Você
realmente me privaria de alguns momentos de paz, sabendo o que
me espera de manhã?
Evyline suspirou. — Apenas alguns minutos, minha senhora.
— Você se preocupa demais, Evyline.
— Espero que seja verdade, minha senhora.
Rielle estendeu a mão e deu a Evyline um sorriso brilhante. — A
chave?
Evyline retirou uma pequena chave de latão do bolso do paletó e a
deixou cair na mão de Rielle. — Eu poderia ser banida por isso,
minha senhora. Ou pior.
— Quando eu for Rainha do Sol — disse Rielle. — Você será a
chefe da Guarda Solar, minha conselheira próxima e a militar mais
reverenciada de Celdaria. Vale a pena esgueirar-se um pouco, não
é?
As bochechas de Evyline coraram, seus olhos fixados na parede
em frente a ela. — Se você insiste, minha senhora.
Rielle inseriu a chave na fechadura. — Não vou demorar mais de
dez minutos.
Uma vez dentro, Rielle caminhou até o centro da sala, sentou-se
em um banquinho e respirou devagar. Ali, naquele silêncio, seu
verdadeiro nervosismo pelo dia seguinte fazia cócegas em seu
interior como pássaros desesperados para serem libertados de suas
gaiolas.
Ela leu todos os livros que deveria ler, fez suas orações, estudou
com Grã Magister Rosier sob os olhos atentos do Arconte. Ludivine
havia trabalhado com os melhores alfaiates da cidade para criar
mais um traje maravilhoso para a ocasião. Os visitantes haviam
percorrido a capital a semana toda em preparação para o evento.
E talvez fosse isso, pensou Rielle. Eram as pessoas que a
observavam que tinham despertado seus nervos – muitas centenas
a mais do que haviam participado do teste de água, como Audric
achava. Eram os estandartes da Rainha Sol que piscavam dourado
para ela de portas e janelas enquanto ela olhava para Baingarde na
cidade. Ela viu as faixas mesmo nos templos, decorando as
bibliotecas, os jardins, as portas do lado de fora dos dormitórios dos
acólitos. No tecido esvoaçante, uma coroa envolvia em um sol
escaldante.
Desde o último desafio, Rielle começou a entender – a sentir
realmente, realmente – que algo estava começando.
Ela tentou respirar, separar seus sentimentos nervosos dos
excitados e trancá-los onde eles não podiam mais incomodá-la. Ela
virou a cabeça para o teto e olhou para a verdadeira razão de vir
aqui.
A rainha Genoveve tinha um coração mole por animais,
particularmente as Bestas Divinas das eras angelicais, há muito
tempo extintas. Após ter se casado com o rei Bastien, ordenara que
o teto de sua sala fosse pintado com uma variedade extravagante
deles. Havia os dragões de gelo com crista de peles de Borsvall, os
pássaros de fogo de Kirvaya, os gigantes veados brancos de
Mazabat, os ferozes krakens dos mares do Norte, os unicórnios das
antigas terras angélicas a leste, os monstruosos animais de
mudança de forma de Astavar.
Mas o favorito das Bestas Divinas de Rielle sempre foi o Pégaso –
o cavalo alado gigante que as histórias de ninar de sua infância lhe
disseram que viviam nas montanhas de Celdaria e podiam voar
ainda mais rápido que os dragões. Eles caçavam como os gatos das
montanhas e ficavam saciados por semanas.
Rielle sorriu ao pensar nessas histórias. Ouvi-las lidas em voz alta
foi uma das únicas lembranças que ela ainda tinha da mãe. Se
fechasse os olhos, ela podia ouvir a voz de Marise Dardenne –
baixa e rica, uma voz criada por Deus para contar histórias.
Assim o pai dissera, observando-as do lado do fogo enquanto
Rielle se aconchegava nos braços da mãe, um livro de contos de
Bestas Divinas aberto no colo.
Rielle respirou fundo quando a memória veio à tona. Era uma que
ela não tinha se lembrado antes, e ainda assim brilhava em sua
mente, clara como a luz do dia.
De nada., Veio a voz de Corien, mais gentil do que Rielle já ouvira.
Eu pensei que poderia confortá-la.
— Como você fez isso? — ela sussurrou, os olhos ainda
fechados.
— E agora você está falando sozinha.
Os olhos de Rielle se abriram e ela se levantou. Ao lado das
janelas do outro lado da sala, a rainha Genoveve se levantou de
uma espreguiçadeira de espaldar alto e avaliou Rielle com uma
sobrancelha arqueada.
— Minha rainha! — Rielle fez uma reverência apressada. — Eu
não... Eu não vi a senhora... — Ela engoliu em seco e respirou
fundo. — Peço desculpas. Eu nunca teria me intrometido, se
soubesse que você estava descansando.
— Eu não estava descansando. Estava pensando. Venho aqui
muitas vezes para pensar. — A rainha atravessou a sala, envolta em
um roupão cinza de seda azul. — E você também, parece?
Não havia sentido em fingir. — Só às vezes.
— Eu deveria lhe punir. Ou pelo menos sua guarda. Mas você já
está sofrendo punições suficientes, suponho.
Quando na presença da rainha, Rielle frequentemente se sentia
reduzida à criança que tinha sido antes, levando Audric e Ludivine
em algum jogo selvagem por Baingarde. Os três haviam invadido a
sala de estar da rainha, gritando alegremente, enquanto Genoveve
tomava chá com dignitários visitantes de Mazabat – e cinco minutos
depois, o pai de Rielle a perseguiu, a trouxe de volta para seu
quarto e a afastou mais uma vez.
Nunca conhecera Genoveve como Audric ou o rei Bastien. A
rainha era uma Sauvillier da cabeça aos pés, sem o calor de
Ludivine.
— Por favor, minha rainha. — Disse Rielle — Não castigue
Evyline. Receio que a tenha manipulado para pensar que, se ela
não me obedecesse, traria a ira de Deus sobre ela, uma vez
nomeada Rainha do Sol.
A rainha Genoveve soltou uma risada pequena e sombria. —
Rielle, você me surpreende. Esses desafios destinam-se a intimidá-
la e, no entanto, você os menospreza como se fossem brincadeiras
de crianças.
Rielle hesitou. — Eu não os menosprezo, minha rainha, meu
medo existe.
A rainha inclinou a cabeça e depois se sentou em um sofá em
frente à Rielle. — Por que você veio aqui hoje à noite?
Rielle olhou para o bestiário pintado. — Eu gosto de vir aqui. O
Pégaso sempre foi o meu favorito. Lembra-me minha mãe e as
histórias que ela costumava me contar.
A rainha Genoveve considerou por um longo momento. — Você
está tentando me manipular agora, Lady Rielle, como fez com sua
pobre guarda?
Rielle piscou surpresa. — Não, minha rainha. Estou falando a
verdade para a senhora. Talvez eu tenha sido sincera demais.
— De modo nenhum. Na verdade, acho que esse é o mais
próximo que eu já cheguei a gostar de você.
— Ah. — Rielle começou a rir.
— Isso foi engraçado?
— Peço desculpas, minha rainha. Fui pega de surpresa. Preciso
dormir, meus nervos estão confusos.
— Não é que você não tenha sido uma boa amiga para meu filho
e sobrinha — Disse a rainha depois de um momento. — É que você
é... — Fez uma pausa, pensando. — Astuta. Disposta e amável. É
uma combinação volátil. Isso me irrita.
— E agora você sabe que tenho guardado segredos de você
durante todos os meus anos astutos.
A rainha Genoveve assentiu. — E eu me pergunto quais outros
você ainda tem a revelar.
Rielle se forçou a encontrar o olhar pensativo da rainha, que se
parecia tanto com o de Audric que um nó se formou na garganta de
Rielle.
— Venha se sentar ao meu lado. — A rainha deu uma tapinha na
almofada no sofá. — Vamos orar ao São Grimvald juntas, para que
ele possa lhe trazer sucesso amanhã.
Após um momento de hesitação, Rielle obedeceu. Por um longo
tempo, nenhuma delas falou. Então a rainha Genoveve suspirou
impaciente e segurou a mão de Rielle.
— Uma espada forjada com martelo e lâmina — murmurou a
rainha, em oração. — Voa com firmeza e rapidez.
— Um coração forjado em batalha e conflito. — continuou Rielle.
— Corta mais fundo do que qualquer lâmina.
— São Grimvald, o Poderoso — Disse a rainha — Por favor, vigie
esta criança amanhã, enquanto ela luta para provar sua honra e
lealdade na frente de meu marido, o rei, e Sua Santidade, o Arconte.
— A rainha fez uma pausa. — Ela é muito amada pelos meus
pequenos, e eu oro por sua segurança, para que eles possam sentir
alegria ao terminar o dia e não se desesperarem.
Rielle olhou para a rainha. — Minha rainha, eu... eu agradeço por
isso.
A rainha manteve os olhos fechados, mas apertou a mão de Rielle
suavemente. — Às vezes esqueço que, apesar de tudo, você ainda
é apenas uma garota, Rielle. E nenhuma garota deveria ficar sem a
mãe nessa noite.
Rielle não conseguia mais falar, com a garganta tensa e quente,
mas bastava sentar-se ao lado da rainha e fechar os olhos e
imaginar que a mão de Genoveve era de sua mãe – viva e não
queimada.

•••

Eles construíram uma gaiola para ela.


Rielle olhou pela aba de sua barraca, seu sangue subindo em
seus ouvidos.
Na passagem estreita entre o Monte Crimelle e o Monte Peridore,
os tremores de terra haviam cavado um poço limpo e quadrado no
chão cheio de pedras, com quinhentos metros de profundidade. E
os Metalmasters do Forge construíram uma gaiola para ela dentro.
Era um cubo, preto e hostil, com entranhas cravadas que
agitavam como um relógio e mudavam a cada segundo. A qualquer
momento, metade das entranhas do cubo estavam em movimento
rápido. Metal bateu contra metal. O cheiro quente de óleo das
engrenagens e o forte cheiro da magia dos metalmasters – aromas
que lembraram Rielle de seu pai – subiram do poço como cachos
invisíveis de fumaça.
De alguma forma, Rielle teria que ir de um extremo a outro do
labirinto, sem ser esmagada ou empalada. Enquanto milhares de
espectadores assistiam do estádio, os magisteres ergueram-se ao
redor da borda do poço.
Ela engoliu em seco e fechou os olhos.
— Pensei que Tal iria perder a cabeça. — Disse uma voz plana
atrás de Rielle. — Depois que ele viu o que projetamos para você.
Rielle se virou para ver Miren Ballastier, Grã Magister do Forge e
amante de Tal — quando não estavam no meio de uma de suas
lutas lendárias. No brilho iluminado pela tocha da tenda, o cabelo
ruivo selvagem, a pele pálida e sardenta de Miren a faziam parecer
fantasmagórica.
— É um labirinto — disse Rielle fracamente, ainda não
acreditando.
— É sim. E Lady Rielle... — Miren fez uma pausa, uma expressão
perturbada no rosto. — Quero que saiba que protestei contra isso. É
injusto e cruel. Eu não ficaria surpresa se o rei levá-lo a julgamento,
uma vez que ele descobrir...
— Quem? O que é cruel? — Rielle mal resistiu a implorar. Ela e
Miren nunca foram as melhores amigas, e agora que a grande
decepção de Tal havia sido revelada, Rielle não podia imaginar que
isso mudaria. — Miren, me diga.
Uma buzina soou, seu gemido solitário ecoando nas paredes da
montanha. A multidão reunida começou a aplaudir.
— Você verá em breve — disse Miren, antes de pressionar um
beijo seco em sua testa. — De Tal — Ela disse simplesmente e
depois a deixou sozinha.
Você não precisa fazer isso, Corien lembrou. Você pode sair.
Agora mesmo.
E fazer o que, então, e ir para onde? Rielle perguntou irritada.
Você está sempre me dizendo que não preciso fazer essas coisas,
mas não oferece alternativa.
Houve uma pausa. Então: você poderia vir até mim. E nós
poderíamos nos conhecer.
O arrepio que varreu o corpo de Rielle mordiscou como pequenos
dentes famintos.
Nós teremos uma discussão, você e eu, quando isso terminar, Ela
pensou para ele. Eu a adiei por muito tempo.
Eu concordo plenamente. Veio sua voz suave.
Inabalada, no limite, Rielle passou pela aba quando a buzina soou
pela segunda vez, ergueu o queixo contra o brilho da luz do sol que
espreitava através da passagem da montanha e deixou a capa cair
no chão.
O rugido da multidão sacudiu os ossos de Rielle e ela sorriu ao
ouvir.
Sua roupa, construída a partir de uma dúzia de carvões e
brilhantes tecidos de prata imitava a armadura de São Grimvald.
Longas luvas pretas passavam pelos cotovelos. Uma jaqueta de
couro e calça combinando ostentavam desenhos bordados que
lisonjeavam suas curvas, e as longas caudas de sua jaqueta de
ombros quadrados tocavam o chão. Nas costas da jaqueta brilhava
o sigilo do Forge, duas espadas pretas cruzadas em um avião
laranja ardente. Tinta prateada riscava suas bochechas e olhos;
Ludivine havia pintado seus lábios em um coral flamejante para
evocar o fogo do Forge.
Oito metalmasters de rosto solene alinhavam-se na plataforma
estreita que se estendia em direção ao poço. Ela levantou os braços
para reconhecer a multidão e caminhou até a beira do poço onde o
Arconte estava com um pequeno sorriso satisfeito.
Quando a porta da gaiola se abriu, o Arconte estendeu o braço na
direção dela. — Você pode optar por salvá-los. Ou não. O que
realmente importa é salvar sua própria pele. — Ele se virou para ela,
piscou duas vezes. — Não é?
Salvá-los. Rielle espiou dentro da gaiola e, quando viu a quem o
Arconte estava se referindo, o pânico a fez cambalear.
Três pequenas gaiolas subiram lentamente das engrenagens
cheias do labirinto. Dentro de cada uma estava uma criança,
chorando de medo.
Quando a multidão as viu, gritos de raiva e horror surgiram das
arquibancadas.
— Você está louco? — Rielle gritou.
— Eles são órfãos das ruas baixas — explicou o Arconte. —
Ninguém sentirá falta deles quando partirem. Exceto, bem... — Ele
olhou para a multidão furiosa. — Eles sentirão, suponho.
A compreensão afundou em Rielle como uma lâmina lentamente
girando. O labirinto era mortal o suficiente. Ela teria que lutar muito
para sobreviver a isso e salvar três crianças parecia impossível.
Mas se ela não salvasse...
Olhou para a multidão que gritava.
O sorriso do Arconte cresceu. — Sua vez, Lady Rielle — disse
ele.
Rielle não hesitou. Virou-se, tirou o casaco, correu para a porta de
espera da gaiola e pulou para dentro.
22
Eliana
“O imperador é um caçador que nunca se
cansa. Uma tempestade que nunca dorme.
Como podemos superar essa criatura? A
resposta é simples: não podemos. Se o
mundo inteiro se transformasse em um para
destruí-lo, ele se levantaria novamente – de
novo e de novo.”
—A Palavra do Profeta

— Quem é você?
Eliana se assustou ao ouvir a voz do imperador. Já havia a
imaginado antes, entretendo fantasias selvagens de invadir seu
palácio em Celdaria e cortar sua garganta antes que ele tivesse a
chance de convencê-la disso.
Conversas sussurradas no palácio de Lord Arkelion haviam lhe
dito que a voz do imperador poderia invadir sua mente e seu
coração, deixando-a impotente para resistir a fazer o que ele
sugerisse. O que Eliana havia decidido há muito tempo não fazia
sentido. Uma voz não pode controlar você; quem dissesse o
contrário era um tolo.
Mas nunca, em todos os seus devaneios ensopados de sangue,
Eliana imaginou que a voz do Imperador soasse assim. Um
propósito vivido ali, sob os tons ricos - resoluto e imóvel, antigo e
astuto.
Ela deu um passo para trás, tropeçou em uma imperfeição na
pedra do terraço. — Eu não quis me intrometer.
— E ainda assim você fez. — O imperador se aproximou, com as
mãos atrás das costas. — Eu não consigo te ver muito bem. Você
consegue me ver?
— Um pouco. — Ela se sentiu tentada a esfregar o ar, como se
quisesse limpar uma janela embaçada.
— Que curioso.
— Eu vou só... — Ela queria se virar e correr, mas a escuridão de
seus olhos a mantinha no lugar. — Eu vou agora.
— Oh, eu acho que não...
Ele congelou. Expressões que ela não conseguia decifrar em
cascata atravessavam o rosto dele: horror, alegria, espanto.
Raiva.
— Você — Sussurrou com voz rouca, toda a beleza desapareceu
de sua voz. Em seu lugar, havia um terrível desejo esfarrapado. — É
você.
Eliana encontrou a grade do terraço atrás dela. — O que?
Rapidamente ele se aproximou, alcançando-a. — Fique aí. Onde
está você?
Um grande estremecimento sacudiu o terraço, jogando Eliana
para o lado. Ela apertou as mãos contra a parede do palácio para
evitar cair...
E de repente, o palácio, a cidade abaixo e o Imperador, se foram.
As paredes vermelhas da sala de jantar de Lorde Morbrae se
erguiam rapidamente e se fechavam ao seu redor. Seu rosto frouxo
a encarava, olhos nublados.
Como os olhos de um adatrox.
Ela se afastou dele, caiu com força no chão e se afastou.
— Quem é você? — Lorde Morbrae perguntou, levantando-se
bruscamente da cadeira. Procurando por ela, assim como o
imperador havia feito. Sua voz havia sido cortada em duas, parte
dele, parte do imperador. — Venha aqui. Venha até mim.
Uma explosão soou do lado de fora. Eliana reconheceu isso como
o começo de um bombardeio.
Simon.
Remy havia contado tudo a ele, e agora a Coroa Vermelha
destruiria esse posto avançado, com ela dentro.
Apesar de tudo, Eliana sorriu. Que rebelde seu irmão traidor
acabara sendo!
A sala tremeu: os pratos na mesa sacudiram e Lorde Morbrae
tropeçou. Três dos quatro adatrox estacionados ao redor da sala
correram para a porta, pegando suas espadas. Um copo de vinho
caiu no chão e quebrou.
Eliana pegou o maior pedaço de vidro que pôde encontrar,
levantou-se e pulou em direção a Lorde Morbrae. Ele a viu tarde
demais, esquivou-se desajeitadamente. Eliana se perguntou se o
cinza que nublava seus olhos estava confundindo sua visão, então
passou a ponta afiada do fragmento por sua garganta. O sangue
jorrou quente sobre suas mãos e suas roupas. Lorde Morbrae fez
um som terrível de asfixia, depois ficou de joelhos antes de cair.
O adatrox restante correu para Eliana. Ela pegou uma faca da
mesa que encontrou ao lado do cadáver de Lorde Morbrae, dando-
lhe uma joelhada a virilha, depois enfiou a faca na barriga. Eliana
passou por ele, voou para o corredor e correu direto para o cano do
revólver de Simon.
Ele usava a máscara de metal do Lobo, mas mesmo com seus
traços ocultos, ela podia sentir sua fúria no ar como a carga de um
raio.
Outro bombardeiro explodiu, este mais perto. Simon a agarrou
pelos braços quando algo no teto cedeu com um gemido rangente,
ele a puxou com força contra seu peito e a protegeu entre seu corpo
e a parede. Uma das vigas caiu, derrubando pedras.
— Por aqui. — Ele murmurou, sacudindo a poeira do capuz.
Ela empurrou contra seu aperto. — Onde está Remy?
— Com Navi. Então me ajude, senão vou jogá-la por cima do
ombro para tirá-la daqui, se necessário.
— Por que não me mata? — Limpou a areia dos olhos. — Eu sou
uma traidora, não sou? Eu pensei que você explodiria o lugar nos
céus — E eu com ele.
Ele riu amargamente. — Se fosse assim tão fácil.
Gritos e tiros soaram além das paredes do posto avançado, e
Remy, Eliana supôs, estava em algum lugar no meio delas. Se ela
não cooperasse, talvez nunca o encontrasse. Lançou um olhar para
Simon e engoliu sua raiva antes de segui-lo pelo corredor.
Atrás deles, veio um grito distante, seguido por outro.
Eliana girou. Inalando, ela provou fumaça.
A prisão.
Correu em direção, mas só deu alguns passos antes de Simon
agarrar seu braço.
— Me solte — Ela rosnou.
Ele fez, mas a manteve por perto — Então não fuja novamente.
— Há pessoas lá atrás — disse ela. — Refugiados. Prisioneiros.
Crianças. Temos que libertá-los.
— Nós não podemos.
— Por quê?
— Porque meus soldados prepararam bombardeios ao redor do
prédio. Quando o fogo os atingir, eles detonarão. Em menos de
cinco minutos, este prédio não estará mais em pé.
Eliana sentiu como se o chão tivesse caído debaixo dela. — Você
está mentindo.
— Eu não estou.
— Bem, eu vou. — Ela começou a voltar para a prisão e, desta
vez, quando Simon a deteve, ela lhe deu uma cotovelada no
estômago e o bateu com o pé, mas Simon não a soltou.
— Me solte! — Ela lutou, se debatendo violentamente. — Que
diferença faz a você se eu morrer tentando salvá-los?
— Estou tão emocionado com sua repentina onda heróica —
Simon disse — Eu não tenho que me explicar para você. Agora,
anda.
Outro bombardeiro detonou, mais próximo ainda. Um pedaço de
gesso caiu do teto e atingiu a cabeça de Eliana. A dor atingiu seu
crânio; balançou, tentou avançar, tropeçou.
Amaldiçoando, Simon a pegou, enfiou a arma nas mãos dela e a
pegou com facilidade nos braços.
— Se alguém vier até nós — ele ordenou. — Atire neles.
Ele correu, mantendo a cabeça dobrada sobre a dela. Nuvens de
poeira, fumaça e areia embaçavam seu caminho. Eliana tossiu
contra o peito de Simon, pensou em atirar em seu estômago
naquele momento.
Mas então dois adatrox saíram das sombras. Eliana virou nos
braços de Simon e atirou cinco vezes. Ela tinha uma mira ruim,
mesmo sem ter sido atingida na cabeça, mas a sorte ajudou pelo
menos duas de suas balas acertarem o alvo. Os adatrox
estremeceram e caíram.
Viraram uma esquina e outra, passaram por uma sala crepitando
com chamas e outra onde um adatrox de olhos vidrados estava no
limiar, o braço estendido. Papéis marcados com estampas
enlameadas de botas cobriam o chão.
Então, um tiro atrás deles, quase os atingindo. Eliana olhou além
do ombro de Simon, e seu estômago tremeu de medo.
Lorde Morbrae.
Ele estava vivo.
Ele os perseguiu pelo corredor, um rifle na mão e, embora seu
rosto, pescoço e jaqueta brilhassem com sangue, Eliana não viu
ferimentos na garganta.
Impossível.
Ela apontou o revólver para Simon e atirou, mas nada aconteceu.
— Você usou todas as malditas balas. — Simon chutou uma porta
três vezes antes de abrir. Uma vez aberta, ele chutou de volta.
Lorde Morbrae atirou de novo; a madeira da porta lascou os
calcanhares de Simon.
Ele abaixou Eliana ao chão. Estavam do lado de fora. Tinha que
ter sido perto do meio dia, mas nuvens e fumaça escureciam o céu.
A parede do perímetro do posto avançado estava em chamas.
Eliana ouviu gritos, comandos berrados. Simon a puxou
desajeitadamente, o braço em volta da cintura dela enquanto
corriam.
Ah, certo, Eliana pensou, tonta, a dor em sua cabeça agora tinha
desaparecido completamente, seus membros fortes e firmes mais
uma vez. Eu deveria estar machucada. Inclinou-se no corpo de
Simon, o deixando ajudá-la.
Um coro de lamentos estridentes começou atrás deles. A porta
pela qual eles saíram se abriu. Eliana viu Lorde Morbrae procurar
através da fumaça, localizá-los e levantar a arma. Os gemidos
aumentaram, estridentes e dissonantes.
Simon empurrou Eliana à frente dele. — Abaixe-se!
Ela obedeceu, deslizando por uma ladeira molhada até um
desfiladeiro estreito e pantanoso. Simon se jogou atrás dela e cobriu
o corpo dela com o seu.
O mundo explodiu.

•••

Alguém deu um tapa nela.


Eliana acordou com um suspiro. — Quanto?
— Três segundos — veio a resposta impaciente de Simon. —
Levante-se.
Ela obedeceu, depois congelou. Um som terrível flutuou do céu
enegrecido.
Gritos.
Ela subiu a ravina, escorregando na parede lisa de lama e espiou
por cima da borda em caos. O edifício principal do posto avançado
estava em ruínas, com detritos espalhados até onde ela podia ver. E
das ruínas vieram aqueles gritos – agonizantes, bestiais.
— Os prisioneiros — Eliana sussurrou. Olhou para Simon. —
Alguns ainda podem estar vivos.
— Sim — concordou Simon — Ou podem ser adatrox ou meus
próprios soldados que não saíram a tempo.
Eliana se levantou nas raízes de uma árvore da torre de vigia. —
Deveríamos tentar ajudá-los.
Simon a puxou de volta para baixo e começou a recarregar o
revólver. — Não. Vamos para o norte.
— Você não me ouviu? — Ela estendeu o braço na direção do
posto avançado. — Havia crianças naquela prisão. Eles os tinham
em gaiolas...
— Sim, e se a Coroa Vermelha tivesse feito a invasão amanhã,
como planejado, teríamos salvado todos. Mas você arruinou isso
quando fugiu. Não podemos correr o risco de deixar alguém que
tenha visto você ou ouvido a informação que você forneceu vivo.
Eliana olhou para ele horrorizada. — O que?
Um tiro soou perto do posto avançado, seguido por outro. Simon
apontou um dedo enluvado. — Ouviu isso? Meus soldados,
executando os sobreviventes. Escute.
Eliana ouviu, escutando um terceiro tiro, depois um quarto, um
quinto. Ela alcançou as raízes das árvores mais uma vez, mas
Simon a puxou de volta e a abraçou, os braços presos ao lado do
corpo.
— Escute, eles morreram, — sussurrou, sua boca quente no
ouvido dela por trás de sua máscara. — O sangue deles está em
suas mãos.
Eliana lutou sem entusiasmo se libertar, mas enquanto os tiros
continuavam e os horríveis gritos paravam abruptamente um por
um, ela se acalmou.
Vai consumir você, sua mãe a avisara.
Eliana respirou além do nó sujo de vergonha que queimava na
parte de trás da língua.
— Vamos adicioná-los à sua conta, hum? — A voz de Simon
estava furiosa. — Você se lembra de quantas pessoas matou,
Eliana?
Eliana assentiu, com os olhos secos. Ela se sentiu murcha,
desfeita. Fechou os olhos. Sim, ela lembrava. Incluindo Harkan? Ele
estaria vivo agora se não fosse por tentar protegê-la.
O que ela disse a Remy?
Não podemos ter certeza.
Ele ainda pode estar vivo.
Eliana fechou os olhos, agarrou-se à tola esperança.
— Oitenta e sete. — Sussurrou enquanto os tiros continuavam. —
Oitenta e oito. Oitenta e nove.
— O que você pediu a ele? — Simon abaixou o capuz e empurrou
a máscara para trás, para que ela caísse em uma bagunça de
cabelo loiro sujo. — Passagem segura para casa para você e
Remy? Anistia? Sua mãe devolvida, sã e salva?
Eliana assentiu. Sentiu como se, lentamente, toda a vida dentro
dela estivesse sendo canalizada.
— E valeu a pena? As vidas deles valeram a pena? — Indicou
com a cabeça o posto avançado. — Você conseguiu o que pediu?
Eliana não teve a chance de responder, interrompida pelo som de
galopes. Olhou para cima, e a visão de um cavalo marrom salpicado
de lama emergindo das florestas próximas, Remy sentado de costas
atrás de Navi, deixou-a sem fôlego.
Eliana encontrou o olhar azul preocupado dele e o deu um meio
sorriso.
— Simon! — Navi chamou por eles, um medo terrível em seu
rosto. — Crown's Hollow está sob ataque!
— Suba — ele falou. Ela o fez e Simon seguiu agilmente. Remy já
estava desmontando, Navi logo depois dele. Remy tropeçou no
chão sujo para enterrar o rosto na camisa manchada de sangue de
Eliana. O segurou automaticamente, metade da mente ainda de
volta ao posto avançado com os tiros.
Eles pararam. Os gritos também.
Remy sussurrou: — Machucaram você?
Ela balançou a cabeça, se obrigou a olhá-lo. — Não. Estou bem.
Simon pegou as rédeas do cavalo. — O que aconteceu?
— Um esquadrão de adatrox atacou. — explicou Navi. — Logo
depois que você se foi. Patrik tirou eu e Remy, mas bem a tempo.
Nós éramos os únicos. Simon, eles tomaram todas as saídas. — O
capuz dela caiu para trás, os olhos caídos — Ninguém pode sair.
Eliana se afastou, indo para longe de Remy. Os refugiados. Patrik.
Hob e seu caderno. E a pequena Linnet...
Trezentos e sessenta e sete, mais ou menos, se ninguém mais
tivesse conseguido. Mais os noventa e três que ela alcançou antes
que as armas parassem.
Quatrocentos e sessenta corpos, sangue cobrindo suas mãos de
um vermelho brilhante e ardente.
Uma sensação de entorpecimento se espalhou de seu peito pelos
membros, limpando suas veias de toda razão.
— El, o que foi? — Remy perguntou. — Você está enjoada?
Mas ela o ignorou. Um movimento no canto do olho chamou sua
atenção: dois soldados da Coroa Vermelha, a trinta metros de
distância, perto da cerca do perímetro fumegante. Eles estavam
recolhendo os uniformes de adatrox caídos, retirando frascos,
papéis, armas.
Perto, pastando entre os escombros, havia dois cavalos. Selados,
esperando pacientemente.
Eliana apertou os ombros de Remy e murmurou: — Fique aqui,
em silêncio — e recuou lentamente enquanto Simon e Navi
continuavam sua conversa silenciosa e urgente. Então se virou e
correu, ignorando primeiro o grito de Navi e depois o rugido de fúria
de Simon. Montou o cavalo mais próximo, agarrou as rédeas e
fugiu.
Duas milhas a sudoeste daqui. Ela virou o cavalo nessa direção.
Galhos molhados prendiam suas roupas e as pernas do cavalo,
esculpiam finas faixas vermelhas em suas bochechas.
Cascos a perseguiram. Quando o cavalo abriu um trecho de
árvores e irrompeu em terreno aberto, ela se atreveu a se virar e viu
Simon, segurando-o com força enquanto ele a perseguia. Com a
máscara, capa voando atrás dele como um par de asas escuras.
Ela se inclinou sobre o cavalo e insistiu com ele. — Mais rápido,
seu animal estúpido!
Então, à frente, plumas de fumaça preta agitando o céu nublado.
Eliana olhou pela floresta que se aproximava, puxando o cavalo
abruptamente para uma parada. Desmontou, amarrou o cavalo a um
galho próximo e se aproximou de um grupo de pedras preciosas
carregadas de musgo.
Ali, talvez a duzentos metros antes dela, havia o trecho de terra
que cobria Crown's Hollow. A fumaça agitava-se de cinco pontos
distintos, chamas lambendo as aberturas ocultas esculpidas no
chão. Eliana reconheceu a que ela havia escapado com Remy.
Fazia apenas algumas horas?
Três adatrox estavam em cada incêndio, armas treinadas nas
chamas. Um grupo maior, incluindo um tenente com uma espessa
faixa cinza ao redor do bíceps esquerdo, estava a alguns metros do
complexo, esperando.
Eles estavam queimando os rebeldes.
Eles tomaram todas as saídas, Navi disse. Ninguém pode sair.
Eliana se apoiou com força na árvore gemma quando percebeu o
que devia ter acontecido. De alguma forma, Lorde Morbrae havia
comunicado a seus soldados tudo o que Eliana havia dito a ele
sobre Crown's Hollow, mesmo que ele não a tivesse tirado de vista
depois da conversa na mesa de jantar.
Mas então, Eliana pensou, eu não precisava estar em Celdaria
para ficar em um terraço com o Imperador, precisava?
Náusea enrolou friamente em sua barriga. Poderia ser que o
Imperador – e seu generais, seus tenentes, talvez até todos os
adatrox – pudessem enviar mensagens e visões para a mente um
do outro?
Como isso era possível?
Simon chegou, puxou o cavalo ao lado de Eliana e pulou.
Ele a agarrou pelo braço. — Você está louca, Terror?
— Me desculpe, eu pensei que poderia ajudá-los, eu não... eu não
estava pensando...
— Na verdade você não está. Não há nada que possamos fazer
por eles agora. — Sua voz era plana. — Vamos voltar para Navi e
cavalgar para o norte o mais rápido possível. Há uma presença
rebelde sólida em Rinthos. Eles vão nos abrigar por algum tempo.
Eliana pegou dois dos bombardeios cravados amarrados ao cinto
e correu. Simon a alcançou; ela se desvencilhou das garras dele e
correu para os adatrox reunidos, pacientemente atrás do tenente.
Esperando, enquanto a fumaça negra se espessava, rebeldes e
refugiados desesperados saíam, ofegando por ar.
Suas mãos se apertaram ao redor dos bombardeios. Sua mente
era uma ruína de ruído e imagens encharcadas de sangue,
abanando as chamas da raiva em seu peito até que ela não
pudesse sentir mais nada, nem mesmo uma pontada de medo
enquanto puxava as tampas dos bombardeios e saía das árvores.
Santa Marzana, ela rezou enquanto passava pelas linhas de trás
dos adatrox e corria para o coração de seu esquadrão. Se você se
importa com as orações de monstros como eu, ouça esta.
Os bombardeios vibraram, choramingando, nas mãos dela. Ela
derrapou até parar, cercada por um adatrox confuso e gritando. O
tenente, na frente do grupo, virou-se. Seus olhos se arregalaram
quando a viu. Ele gritou um comando. O adatrox mais próximo
ergueu as espadas; outros ergueram suas armas para atirar.
Eliana terminou sua oração: queime-os.
Ela jogou os bombardeios, virou-se e correu.
Desta vez, quando o mundo explodiu, ele a jogou nas árvores. Ela
bateu em algo duro; a parte de trás de seu corpo se iluminou com
terríveis picos quentes de dor.
Então a escuridão a levou.
23
Rielle
“Uma espada forjada em martelo e fogo
Voa com rapidez e segurança
Um coração forjado em batalha e conflito
Corta mais fundo do que qualquer lâmina”
—O Rito do Metal
Como proferido pela primeira vez por São Grimvald, o Poderoso,
santo padroeiro de Borsvall e metalmasters

A abertura da gaiola arremessou Rielle por uma calha lisa e sobre


uma pequena plataforma tão pequena que ela quase caiu sobre a
borda.
A multidão acima soltou gritos de consternação.
Balançou e recuperou o equilíbrio. Uma explosão de calor subiu
por baixo dela. Olhando para baixo, viu uma massa agitada de metal
– polias assobiando, espadas voando e ventiladores zunindo,
grandes placas de aço batendo umas nas outras, escadas
dobrando-se e se transformando num piscar de olhos em longas
rampas manchadas de óleo.
Ela não podia deixar esse lugar horrível sem as três crianças.
Todo o seu esforço nessas provações seria por nada; as pessoas se
voltariam contra ela.
Mas era mais do que isso.
Rielle olhou através das barras pretas da gaiola para a multidão
fervilhante acima.
Você quer que eles a amem, Corien observou, parecendo
surpreso.
Rielle jogou os braços sobre a cabeça e cruzou os antebraços,
ecoando o sigilo do Forge. Aplausos da multidão em resposta
Sim, ela pensou. Eu quero que eles me amem.
Então se virou e correu – não para o canto oposto do labirinto,
onde ela pensou ter vislumbrado uma porta que a levaria para a
saída. Em vez disso, correu para a criança mais próxima, com o
rosto castanho pressionado nas barras da gaiola.
Ela pulou sobre um abismo estreito ao lado da plataforma e
desceu uma escada. Abaixo de seus pés, cada passo ela caia um
pouco, desaparecendo enquanto corria. Rielle era quase rápida o
suficiente.
Quase.
Perto do final da escada, os degraus desapareceram
completamente. Rielle deslizou pelo último trecho, caindo
rapidamente na terra, de joelhos primeiro, em um convés de grade
de metal que se inclinava de um lado para o outro. A aterrissagem
enviou picos de dor pelas pernas. Apertou a grade, rangendo os
dentes enquanto seu estômago se revirava violentamente.
— Por favor! — Gritou a criança, não muito longe. — Por aqui! Por
favor, minha senhora!
Rielle fechou os olhos, tentando respirar. Ela quase podia ouvir a
voz paciente de Tal em seu ouvido: O empirium está sempre lá.
Cada momento, cada respiração, cada centímetro da vida que você
toca. Esperando por você.
Corien comentou suavemente: Seu professor não está errado.
Rielle apertou a mandíbula.
Mas o empirium não espera apenas por você, Rielle, ele
continuou. Ele anseia por você. Ninguém mais o entenderá como
você pode. Anseia por você da mesma maneira que um amante
anseia por seu companheiro.
Rielle abriu os olhos. O mundo ao seu redor começou a brilhar. Os
dedos dela se curvaram. Eu também o anseio.
Querida, eu sei disso. Não resista. Estenda a mão e o pegue.
Ela estremeceu, o calor inundando seus membros.
— Pare. — Ela sussurrou, estendendo a mão para as
engrenagens agitadas como as bordas de sua mente.
O convés abaixo dela estremeceu, diminuindo a velocidade. Rielle
bateu as palmas das mãos contra a grade, sentiu o sabor de metal
na língua, sentiu as vibrações nos braços. Uma onda de energia
dourada saiu de suas mãos, ricocheteando pelo labirinto.
— Pare — foi um comando.
O convés parou bruscamente. Com um grito sufocado, Rielle
perdeu o equilíbrio, caiu e, em seguida, estava na beira do convés
no último segundo com apenas os dedos segurando.
— Aqui! — A criança gritou, abaixo e atrás dela, à direita.
Rielle olhou por cima do ombro, os pés balançando. Os fios de
concentração que ela conseguiu se romperam. Prata brilhava no
canto do olho – magia de metalmaster?
Ela seguiu a trilha até um conjunto sinuoso de escadas que se
separaram em placas de metal rodopiantes. Elas giraram direto para
ela, cortando o ar como facas giratórias. O desespero deu-lhe força;
balançou o corpo uma vez para ganhar impulso, depois se lançou
no ar para a plataforma onde ficava a gaiola da criança.
As placas de metal simplesmente passaram por ela, batendo no
convés do qual ela havia se pendurado apenas alguns segundos
antes.
Tremendo, os olhos ardendo de suor e óleo, Rielle mexeu na
fechadura da gaiola da criança. O quase acidente com as placas
voadoras a desestabilizara; mal podia ver, mal podia pensar.
A criança gritou para ela, soluçando: — Depressa! Por favor,
depressa!
— Estou tentando! — Disparou e então viu a razão do terror dele:
sua jaula estava encolhendo.
Em segundos, ele seria esmagado.
Se ela saísse daqui viva, rasgaria a carne do Arconte de seus
ossos e saborearia todos os seus gritos moribundos.
Empurrou a palma da mão contra a fechadura com um grito
furioso. O poder bruto chiou em seu braço e fora de seu corpo,
derrubando a criança e quebrando a fechadura. Os restos de metal
voaram.
Ela abriu a porta. — Vamos!
A criança se atirou nela e passou os braços em volta de seu
pescoço.
No alto, a multidão começou a aplaudir. Sob o barulho, Rielle
ouviu um rangido metálico e olhou para cima. Uma pequena porta
no teto da gaiola estava se abrindo. Dois metalmasters estavam
agachados lá, estendendo os braços para o garoto.
Mais duas. Rielle o empurrou para a segurança, sem esperar ouvir
a porta se fechar. A criança mais próxima estava gritando por ela no
outro extremo do labirinto.
Entre eles, havia uma série de corredores móveis, feitos de blocos
de metal quebrados do tamanho do corpo de Rielle, lanças que se
atiravam ao acaso, escadas que giravam e se transformavam sem
pausa, caminhos que rodopiavam em seus eixos como lanças sobre
o fogo – muitos movimentos para conseguir acompanhar.
Observando-os, se sentiu totalmente pequena; o pensamento de
fazer suas orações parecia ridículo, inadequado.
Rielle seria esmagada. Não tinha o controle para deslizar por um
labirinto tão cruelmente projetado. Se ao menos tivesse mais tempo
para pensar. Apertou os olhos através do caos selvagem e
cintilante, com as mãos trêmulas.
Não se arrisque, veio a voz de Corien – agora tensa e sem
divertimento. Você é poderosa, mas não é imortal.
Eu poderia ser, Rielle pensou. E isso a chocou, a fez se endireitar
e piscar de surpresa. Não quis dizer uma coisa dessas; a própria
ideia era absurda. E, no entanto, as palavras surgiram em seu
corpo, automáticas e instintivas.
Sim, Corien respondeu pensativamente. Você poderia ser, eu
acho.
Rielle se sacudiu, silenciando-o. Essa era uma conversa para
mais tarde.
Afinal, ela não era imortal hoje.
A plataforma abaixo dela mudou. Respirou fundo, correu para
frente no momento em que a plataforma estremeceu e cedeu. Ela
olhou para trás, frenética.
Olhos para frente, Rielle!
A voz de Corien fez Rielle girar bem a tempo. Um pêndulo de
metal gigantesco balançou em sua direção. Estendeu o braço.
Engrenagens gritaram; soou como um baque, como um martelo
atingindo uma bigorna. O pêndulo, agora torcido e amassado,
parou.
Rielle correu, esquivando-se de lanças que avançaram
rapidamente em sua direção. O caminho à frente mudou, tirando-a
de seus pés e a fazendo descer por um túnel estreito feito de redes.
Ela caiu e mordeu com força a língua. Provando sangue e tonta, ela
olhou através das redes do túnel. Era um de muitos – um nó rotativo
de gaiolas em forma de túnel, longas e finas. Ela rastejou,
procurando uma saída, enquanto os nós do túnel giravam cada vez
mais rápido. Eles ataram e desataram como uma massa de cobras
se contorcendo. Um pedaço de rede à sua frente se abriu, criando
uma saída. Rielle tentou, mas não foi rápida o suficiente: a rede
costurada se fechou no espaço de um piscar de olhos. Gritou de
raiva, quase bateu as mãos contra ela, se contendo.
Pense, Rielle. Se você estilhaçar essa armadilha, cairá – e para
onde?
Olhos fechados, lutando para forçar sua mente a ficar clara, Rielle
encontrou o caminho que precisava. Viu o labirinto se organizar
ordenadamente, de modo que o ninho contorcido de túneis que a
prendiam se desenrolasse e ficasse imóvel. Ela viu um caminho que
saía do túnel e descia para uma escada robusta que a levaria a
segunda criança enjaulada.
A imagem se desenrolou nos olhos de sua mente como um mapa,
com bordas douradas e cintilantes, e quando abriu os olhos mais
uma vez, um mar de minúsculos grãos brilhantes piscou sob o véu
instável do mundo físico.
Então o mundo se refez assim como ela instruiu.
O poder disparou de seus dedos para deslizar pela gaiola. Ela
sentiu seu progresso como um calor escorregadio sob a pele, sentiu
o metal áspero sob os tentáculos de seu poder, como se suas
próprias mãos estivessem tocando nele. Os olhos dela se fecharam
de prazer. Os nós em seu corpo se soltaram e depois
desapareceram. Um calor líquido estremeceu em cascata em seus
membros e se acumulou em sua barriga, tremeu em suas coxas.
O labirinto ao seu redor mudou, gemendo como se em protesto.
Os metalmasters acima estavam lutando pelo controle.
Ela sorriu saciada. Boa tentativa.
Assim como Rielle imaginara, o túnel que a prendia se soltou,
dócil. Sua abertura parou em uma ampla plataforma que levava a
um conjunto de escadas. Rielle se arrastou para fora, parou por um
momento para recuperar o fôlego. Sentia-se cheia de energia, como
se estivesse despertando do melhor sono de sua vida.
Ohou para a multidão, para os dois picos das montanhas acima,
para o sol além.
Rielle curvou-se para baixo, com um floreio indolente de suas
mãos.
A multidão explodiu em aplausos, tão alto que, mesmo da
profundidade do poço, os ouvidos de Rielle zumbiram com o
barulho.
Sorrindo, ela subiu as escadas até a gaiola da segunda criança.
Esta era uma garota, pálida e de membros finos, os olhos grandes e
escuros no rosto de bochechas vazias. Espreitando por baixo de
mechas de cabelo castanho emaranhado, soluçava
incontrolavelmente.
Rielle levou sua mão à fechadura da gaiola, sentiu o poder
eufórico de alguns momentos antes de penetrar no metal como uma
droga.
Com um chiado silencioso, a fechadura desmoronou, derreteu e
pingou prata nas escadas.
Rielle olhou para a garota, os olhos arregalados.
— Está tudo bem. — disse ela, sem fôlego. — Estou aqui para
salvá-la.
A garota ficou boquiaberta para ela. — Você é a Rainha do Sol,
minha senhora?
Rielle estendeu a mão para ela. — Eu serei em breve.
A garota pulou de seu esconderijo e disparou aos braços abertos
de Rielle.
Mas então, com um grande gemido, a gaiola inteira balançou
embaixo delas. Rielle balançou, apertando ainda mais a criança.
Uma onda de gritos horrorizados soou da multidão acima.
— Minha senhora — sussurrou a criança. Ela levantou a mão
trêmula para apontar para o labirinto abaixo deles. — Está caindo.
Ela estava certa. Rielle olhou, seu terror subindo rapidamente
quando a gaiola começou a se mover – do canto inferior ao canto
superior. Rapidamente desabou, dobrando-se sobre si mesma. A
horrível raquete de trituração soou como todos os eixos do mundo
colidindo um contra o outro.
E a terceira criança ainda estava presa bem abaixo.
Acima, o rangido de uma porta. Rielle empurrou a garota na
direção dela sem pensar. — Escale!
A criança agarrou-se a ela. — Você morrerá! Venha comigo, por
favor!
Rielle pegou o rosto da criança em uma mão. — Você realmente
acha que eu, a Rainha do Sol, deixarei uma jaula tão insignificante
ser o meu fim?
Com um sorriso trêmulo, a garota balançou a cabeça.
Rielle devolveu o sorriso e a empurrou por uma escada longa e
fina para os metalmasters à espera. Depois que eles tiveram a
criança na mão, o chão embaixo de Rielle cedeu.
A queda sufocou seu grito. Caiu quinze metros e bateu em um dos
vários postes rotativos. Eles giravam a partir de um mecanismo
central como raios de uma roda de carruagem. Agarrou-se ao poste
que havia quebrado em sua queda. Rielle mal conseguia respirar;
seu estômago estava machucado pelo impacto.
Mas de repente, mesmo com sua exaustão, Rielle teve uma ideia.
Ela fechou os olhos. Eu consigo fazer isso.
Corien respondeu com firmeza: Você consegue.
Soltou o poste, caindo sobre uma placa de metal que estava
zunindo no ar apenas alguns segundos antes. Ao bater nas botas de
Rielle, a placa parou congelada no ar.
Ela levantou as mãos, sentiu a energia quente fervendo entre ela
e aqueles postes giratórios e os fez voar.
Eles giraram em todas as direções, tão rápido que qualquer um
deles poderia ter cortado um homem pela metade. Rielle torceu os
pulsos bruscamente no ar. Os postes bateram até parar, enfiando-se
nos quatro cantos da gaiola.
A gaiola estremeceu, seu colapso parou. Cada pedaço de metal
tremia no lugar, rangendo terrivelmente.
Isso não duraria por muito tempo.
Rielle correu pelo ar, convocando placas de metal das paredes
enquanto corria. Elas voaram para levá-la ao andar, as escadas, os
labirínticos caminhos cruzando o cubo. Ela jogou cada prato à sua
frente, pisou levemente, empurrou e seguiu em frente.
Corien soltou uma risada admirada. Maravilhoso, Rielle.
Impressionante.
O orgulho floresceu no peito de Rielle. A cada passo em seu
caminho flutuante de metal, ela sentia o poder se reunir a seus pés.
Quando ela aterrissou ao lado da gaiola da terceira criança, ela se
desfez ao seu toque, deixando a criança em pé, tremendo, em suas
ruínas.
— Venha aqui. — Rielle ofereceu sua mão com impaciência. Cada
centímetro de sua pele formigava. Distantemente, ela sentiu a dor
gritante de seus músculos. — Está quase acabando.
— Como você fez isso? — A criança perguntou, boquiaberta. —
Você estava voando.
Uma série de colossais colisões metálicas explodiram em torno
deles. Rielle olhou para cima e viu os postes nos cantos cedendo.
Mas a gaiola não continuou com seu colapso.
Em vez disso, levantou-se no ar, o metal gemendo. Rielle agarrou
a criança, observou a base móvel da gaiola em busca de uma
abertura e depois pulou através dela até o chão. Ela e a criança
caíram com força; a criança gritou, encolhendo o pé. Acima deles
pairava a gaiola, girando lentamente.
Então se rearranjou, o labirinto de metal se partindo, reformando,
afiando…
Uma tempestade de lâminas, dez mil, girou como uma e correu
em direção ao local solitário na terra onde Rielle e a criança
estavam agachadas.
Rielle olhou, o pânico percorrendo sua garganta. O tempo
diminuiu e acelerou, ambos ao mesmo tempo. Ela podia ouvir
Corien gritando para ela fazer algo, se defender, se mover.
Mas milhares de espadas? Isso era muito mais. Manipular alguns
pedaços do labirinto era uma coisa. Mas isso – elas escureceram o
céu. Elas assobiavam e rugiam. Elas a cortariam em pedaços – e a
criança também.
A criança agarrou seu pulso. — Que a luz da Rainha nos guie
para casa — ele sussurrou para ela, o sorriso no rosto não de
resignação, mas de crença.
A oração da Rainha do Sol. A luz da Rainha do Sol.
Sua luz.
Seu poder.
Sim, Corien sussurrou. Sim, Rielle.
Rielle puxou a criança para perto, depois se virou para as
espadas, fechou os olhos e levantou os braços.
Não.
Ela recusava esse destino.
Não.
Tinha provas para completar, amigos esperando por ela, o
mistério do assassinato de uma princesa estrangeira a resolver.
Não.
Ela ainda tinha palavras de amor para falar.
E uma voz em sua cabeça.
E uma fome, um desejo, de responder o despertar do seu sangue.
Não.
Não ainda.
Ela esperou em silêncio, seu corpo tremendo. O poder se estendia
de seus dedos, das curvas agudas de seus ombros, das pontas de
seus cabelos.
Teria sido suficiente?
Respirou fundo algumas vezes no silencioso toque, depois se
atreveu a abrir os olhos.
Uma lâmina pairava diante de seu rosto. Mais duas, apontando
para cada um dos olhos. Centenas. Milhares, todas mantidas no
lugar por seu comando silencioso. Elas enchiam o poço, tremendo,
negaram a sua matança. O ar zumbiu metálico.
Rielle soltou um suspiro incrédulo e choroso.
Então deixou seus braços caírem.
As espadas caíram no chão, formando um círculo perfeito ao
redor da terra onde Rielle se ajoelhou com a criança. Sua queda
sacudiu o chão. As lâminas apontavam para longe dela; estava
sentada no centro de um sol de metal chamuscado.
Lentamente, o mundo voltou para ela. Rielle piscou, limpou os
olhos. Uma crescente onda de vozes a fez erguer os olhos.
O povo de Celdaria estava de pé. Eles estavam gritando o nome
dela – um canto, uma oração.
Rielle! Rielle! Rielle!
Ela levantou o rosto para o céu e mostrou-lhes o seu sorriso.
24
Eliana
“Algo está errado com Lorde Arkelion. Ele me
levou para sua cama, ordenou que eu o
machucasse enquanto estava nu diante de
mim. Eu o fiz alegremente, mas suas feridas
se fecharam quase imediatamente. Ele rugiu,
se contorceu e chorou. Está doente, talvez
louco. Acredito que todos os homens do
imperador estejam loucos. Cada um deles.”
—Mensagem codificada escrita pela princesa Navana Amaruk de
Astavar, entregue ao subterrâneo da Coroa Vermelha

Eliana se levantou, ofegante, as roupas grudadas na pele


encharcada de suor. Ela estava deitada de bruços em um cobertor
repleto de lama. Suas mãos escorregaram enquanto ela lutava para
se sentar.
— Remy. — Ela procurou loucamente e viu apenas uma floresta
negra iluminada pela lua. — Remy!
— Calma. — Uma mão gentil alisou seus cabelos. — Ele está
seguro, e você também.
Eliana reconheceu a voz. — Navi?
A garota sorriu para ela, seu olhar preocupado, mas gentil. —
Estou aqui. Você está bem.
Nuvens negras mudaram significativamente na visão de Eliana.
Ela agarrou a mão de Navi. — Conte-me.
— Estamos a três dias de viagem de Rinthos. Você tem estado
indo e vindo há horas. Uma febre, Simon acredita. Ele, Remy, você
e eu, estamos todos vivos e seguros. Hob também está conosco.
— Hob. — As memórias do posto avançado do Império voltaram
correndo para ela: fumaça subindo do chão. Correndo em direção
às filas de adatrox, os dois bombardeios que partiram de suas mãos
Só então Eliana registrou a dor nas costas. Estremeceu e Navi
sibilou em simpatia.
— Simon e eu fizemos o melhor que pudemos — disse Navi. —
Mas a explosão atingiu toda a parte de trás do seu corpo. Por favor,
deite-se de bruços.
Eliana obedeceu, sua visão turva. As feridas devem ter sido
realmente terríveis. Nunca sofria de tanta dor horas depois de uma
lesão.
— O complexo — ela conseguiu colocar para fora. — Eles
sobreviveram? Patrik e...? — Ela não conseguiu dizer o nome de
Linnet.
Navi sentou-se ao lado dela. — Acredito que a maioria dos
refugiados escapou, sim. Patrik ficou para ajudar a evacuá-los para
um novo esconderijo. Hob veio conosco para encontrar um contato
em Rinthos que pode ajudar com suprimentos para os
sobreviventes. A fumaça arruinou boa parte de sua comida. Mas,
Eliana, você os salvou. Os adatrox que você não destruiu, Simon
pegou com facilidade. O que você fez... nunca vi nada assim.
Eliana ficou quieta, a bochecha pressionada contra o cobertor.
Sua visão estava começando a se acostumar à escuridão. Remy
estava deitado perto, enrolado na base de uma árvore. Mesmo
enquanto dormia, sua testa se enrugava de preocupação. Ao lado
dele, estava Simon, braços cruzados sobre o peito, olhos fechados.
Enquanto dormia, ele parecia quase em paz. As fitas prateadas de
suas cicatrizes tremiam como fantasmas à luz da lua.
Então Eliana ouviu passos na floresta e ficou tensa.
— É apenas Hob — Navi sussurrou. — Ele está de guarda. Por
favor, tente descansar.
— Isso é improvável. Onde estão minhas facas? — Então ela se
lembrou de Lorde Morbrae as confiscando e gemeu. — Sumiram,
não é?
— Na verdade, Simon as retirou do posto avançado. Agora Remy
as tem. Ele não deixou nenhum de nós tocá-las.
Eliana soltou uma risada cansada e aliviada. — E agora... vamos
para Rinthos.
— Sim. Lá, podemos encontrar remédios melhores para as suas
costas do que os que Hob nos ajudou a coletar. — Ela fez uma
pausa. — Lamento dizer que acho que você ficará cicatrizada
permanentemente. Mas você vai viver.
Eliana fechou os olhos. Lágrimas de cansaço deslizaram por suas
bochechas.
— Oh, Eliana. — Navi segurou seu rosto com uma mão macia. —
Como posso ajudá-la? Sinto-me inútil.
— Você não pode me ajudar. Apenas me deixe em paz. Por favor.
Por um tempo, Navi ficou abençoadamente quieta. Mas mesmo no
silêncio, quebrado apenas pelo sussurro do vento e ocasionais
passos constantes de Hob, Eliana não conseguiu encontrar o
caminho de volta para o sono.
Ela abriu os olhos, sabendo que precisava dizer alguma coisa, ou
esse sentimento negro e morto em seu peito se levantaria e a
envolveria. — Navi?
— Sim?
— Eu não sei, eu... eu não consigo dormir.
— Devo lhe contar uma história? — Havia um sorriso na voz de
Navi.
— Você viu coisas no palácio de Lorde Arkelion. Não viu?
Uma nova quietude caiu sobre elas. A voz de Navi foi cuidadosa.
— Que tipo de coisas?
Coisas impossíveis.
Homens com suas gargantas cortadas, de alguma forma andando
novamente.
Homens de olhos negros, falando através de um vasto oceano.
— Você já viu algum... comportamento estranho de Lorde
Arkelion? — Eliana perguntou. — Ou de generais visitantes?
— Não sei ao certo o que você quer dizer com comportamentos
estranhos.
Porém o tom levemente afetado da voz de Navi disse a Eliana que
de fato ela sabia. — Lorde Morbrae. Eu cortei sua garganta, mas lá
estava ele, minutos depois, andando mais uma vez. O pescoço dele
estava inteiro. Sem ferida.
— Aqui — Navi ofereceu. — Água.
Eliana permitiu que Navi a ajudasse a tomar alguns goles
gananciosos do cantil de Simon, depois se deitou com um gemido.
— E antes disso — acrescentou. — Eu estava no colo dele.
Estava pronta para agradá-lo em troca de anistia. Inclinei-me para
beijá-lo e depois…
A voz de Eliana ficou tão quieta que Navi teve que se curvar para
ouvir.
— E depois? — Ela perguntou.
— Eu tive... uma visão — disse Eliana. — Seus olhos se
encontraram com os meus e fui levada para outro lugar. Eu estava
no posto avançado e também do outro lado do oceano. Estava em
Celdaria, em uma cidade linda, maior do que qualquer outra que eu
já vi. Em Elysium.
Os olhos de Navi estavam arregalados de espanto. — A cidade do
Imperador?
— Ele falou comigo.
— O Imperador?
Eliana assentiu uma vez. A dor nas pernas, nas costas e no crânio
era tão violenta que quase a deixou doente por causa das botas de
Navi.
— Aqueles prisioneiros... — Eliana sussurrou, fechando os olhos.
Estava perdendo o controle da conversa. Suas perguntas se
dispersaram e desapareceram. — No posto avançado. Eles foram
mantidos em gaiolas. O fogo... eles não podiam sair. Eu os ouvi
gritando.
— Silêncio agora. — A mão de Navi pressionou a dela
suavemente. — Pense em Crown's Hollow. Você salvou muitas
vidas lá.
— Eu sou uma assassina, Navi. Diga-me que não sou.
Navi não respondeu.
— Ah — Eliana murmurou. — Um silêncio revelador.
— Tudo o que vou dizer — disse Navi. — É que você fez o melhor
que pôde com o que te foi dado.
— Que decepção. Eu esperava que você não mentisse para mim.
— Eliana olhou sombriamente para a noite. Suas bochechas
estavam em chamas. As pressionou na lama fria.— Ele me
reconheceu, sabe.
Navi se inclinou para mais perto. — O que? Diga isso de novo.
— Ele me reconheceu. O Imperador.
Pouco antes de os olhos de Eliana se fecharem, ela viu os olhos
de Simon abertos para observá-la.
— Ele viu meu rosto e me perguntou onde eu estava — ela
murmurou.
— Eliana? — Veio a voz de Simon, perto agora, e mais gentil do
que ela já ouvira. Quase dormindo, ela se virou para encará-lo,
como virar o rosto para o sol.
— Simon — Ela sorriu, confusa. — Aí está você.
— Eliana, diga isso de novo. O que você disse a Navi.
— Eu vi o imperador. Ele tentou me alcançar. Perguntou onde eu
estava.
— E você contou a ele? — Uma das mãos de Simon segurou sua
bochecha, a outra, cautelosamente, a parte de trás da cabeça
enfaixada. — Eliana, me escute, isso é muito importante: você
contou a ele?
— Não. — Os olhos dela se fecharam. — Eu não disse nada a
ele.
— Bom. — Simon a ajudou a se acomodar com a cabeça no seu
colo. O polegar dele acariciou sua testa. — Isso é muito bom. Você
está bem agora. Está tudo bem. Durma.

•••

Eliana sonhou com a morte, como muitas vezes antes.


Ela sonhou com a morte de todos, exceto a dela.
Ela reinou, uma coroa de luz brilhando ao redor de sua cabeça,
sobre um mundo destruído.
25
Rielle
“Acredito que estamos perdidos. Como
podemos combater criaturas cujas vidas se
estendem diante delas como estradas infinitas,
que podem peneirar as mentes tão facilmente
quanto uma criança faz castelos na areia da
praia? Cometemos um erro ao envolver os
anjos. Todo o nosso poder empalidece em
comparação com o de suas mentes eternas.”
—Diários de sobrevivência de São Grimvald de Borsvall
25 de setembro de 1547 da Primeira Era

Duas noites após o desafio do metal, Rielle estava deitada na cama,


fingindo estar dormindo por causa de Evyline, que estava parada na
porta de seu quarto.
Mas sua mente disparou e seu sangue palpitava quente com
nervos.
Bem? Ela engoliu em seco. Não podia adiar mais esse momento.
Você está aí, Corien? Está na hora de conversarmos.
Claro que estou aqui, Rielle, Veio a voz de uma vez. Eu sempre
estou.
Ela franziu o cenho para o travesseiro. Eu não acho isso
particularmente reconfortante.
Você deveria. Ao contrário de seus outros amigos, não desejo ver
você morta.
Então, somos amigos, você e eu?
Sua resposta veio como um suspiro em sua pele: Eu espero que
sim.
Rielle apertou o cobertor com mais força ao redor do corpo. Como
posso ser amiga de alguém que nunca conheci? Alguém que eu não
tinha certeza se era real?
Uma sensação delicada deslizou por sua espinha, como o roçar
de um dedo gentil, depois desapareceu perto da parte inferior das
costas.
Não pareço real? Veio a resposta.
Rielle estremeceu. Você é um espírito? Um fantasma?
Não.
Então, por que posso senti-lo e ouvi-lo, mas não posso vê-lo?
É a minha maneira especial de falar com você de longe, minha
querida. Houve uma mudança na mente de Rielle, tanto de som
quanto de sensação, como se Corien estivesse se acomodando
confortavelmente ao lado dela. Posso enviar meus pensamentos e
você pode enviar os seus. Posso te enviar como me sinto e sentir
seus sentimentos em troca. Ele fez uma pausa. Então, com um
pequeno sorriso curvando sua voz, quase timidamente: Posso te
enviar a sensação de como gostaria de te tocar. E você pode fazer o
mesmo de volta para mim, se desejar.
Uma guerra estava ocorrendo dentro do corpo de Rielle, entre o
medo frio e o desejo de dizer de uma vez: Toque-me então.
E se eu não quiser que você me toque? Ela conseguiu falar.
Então eu não vou. Eu fui muito precipitado. Me perdoe.
Apenas não faça isso de novo. Fez uma pausa, as bochechas em
chamas. A menos que eu peça.
Claro. Ele parecia silenciosamente satisfeito Então, você queria
falar comigo. Você tem perguntas, eu acho.
Muitas.
Isso é compreensível. Outra mudança. Ela teve a sensação dele
sentando na beira de um divã, inclinando-se para a frente com os
cotovelos nos joelhos.
Mas seu rosto ainda era um borrão.
Primeiro, Ela começou. Como você é?
Eu posso te mostrar se você quiser. Você já está no meio do
caminho.
O coração de Rielle bateu mais rápido. Você está sentado em um
divã, então? Eu posso ver fracamente a sua forma.
De fato. Se concentre nas linhas do meu corpo. Tente torna-las
mais nítidas, como se estivesse me traçando com uma caneta.
Rielle obedeceu. Lentamente, a figura borrada entrou em foco –
um homem esbelto, alto e pálido, com cabelos pretos e finos em
ondas brilhantes que ondulavam suavemente em seus ouvidos.
Belas maçãs do rosto, como se esculpidas em mármore branco.
Grandes olhos de um azul pálido e brilhante. Lábios cheios que se
esticaram em um sorriso carinhoso quando seus olhos encontraram
os dele.
— Olá, Rielle. — disse ele, e sua voz não estava mais
simplesmente em sua mente. Ele estava lá; estava falando com ela.
Ela ofegou, piscou, e sua concentração quebrou. Corien
desapareceu. De repente, ela estava terrivelmente sozinha em sua
cama, no escuro silencioso de seu quarto. Rielle se esforçou para
recuperar o fôlego, com a boca seca.
Para onde você foi?
Eu ainda estou aqui, ele respondeu.
Eu perdi você, eu... Ela engoliu. Sua pele estava fria e úmida,
agora que não estava mais perto dele.
Agora é difícil nos comunicarmos. Com o tempo vamos gerenciar
isso. Requer prática e – a voz dele escureceu um pouco – você tem
muitas coisas exigindo sua atenção agora.
As provas
Sim, entre outros. Houve um silêncio tenso, e então ele sussurrou.
Rielle, posso tocar em você?
Ela respirou fundo.
Nada desagradável. Eu juro.
Rielle observou o céu noturno manchado de estrelas além de suas
janelas. Primeiro, me diga: o que você é?
O que eu sou? Ele parecia brincalhão. Querida, você me insulta.
Sou uma pessoa completa, você sabe, com uma identidade e um
nome.
Mas você não é humano. Os humanos não podem falar assim,
usando apenas suas mentes. Na noite anterior ao desafio do metal,
você me mostrou uma memória. Uma das minhas próprias
memórias, uma que esqueci.
Sim, eu o fiz.
Corien... isso é extraordinário.
Suponho que sim, para você.
Os humanos não podem fazer essas coisas.
Isso é verdade.
Ela esperou que ele dissesse mais e, quando não o fez, percebeu
que ele estava esperando que Rielle dissesse o que ela já sabia, o
que sabia com crescente certeza há semanas.
Você é um anjo.
Sua resposta, quando finalmente chegou, foi insólita. Eu sou.
Rielle saiu da cama, jogando a roupa de lado. Somente em pé ela
percebeu que a camisola estava grudada no corpo, úmida de suor.
— Minha senhora? — Perguntou Evyline da porta. — Está tudo
bem?
— Claro. — Rielle mal podia se ouvir sobre o zumbido do medo
em suas veias. — Eu só preciso de um copo de água.
De alguma forma, chegou ao seu banheiro e fechou a porta atrás
dela. Rielle tropeçou no lavatório, jogou água no rosto, depois se
serviu de um copo e o deixou intacto.
Se inclinou pesadamente contra a bancada de mármore de sua
vaidade, lutando para se equilibrar. Sentia-se tonta, separada de
seus membros.
Rielle, por favor, sente-se. A voz de Corien era gentil. Você vai
cair e bater a cabeça.
Eu quero ficar em pé, Ela retrucou.
Muito bem. Existe algo que eu possa fazer para ajudar?
Você está mentindo para mim, Ela conseguiu dizer finalmente
Você sabe que não estou.
Todos os anjos se foram. Eles estão no Abismo. Os santos os
baniram para lá, os trancaram além do Portão.
Nenhum portão fica trancado para sempre, Corien interrompeu.
Rielle atravessou a sala e parou diante do enorme espelho
dourado que estava encostado na parede oposta. Ela parecia
amarrotada e aterrorizada, seus olhos verdes brilhantes e
arregalados, os cabelos escuros se soltando da trança, a camisola
empoeirando-a na grande sala de azulejos.
Apenas pense em que tipo de quarto eles vão te dar depois de
fazer de você sua amada Rainha do Sol, Comentou Corien, com a
voz afiada. Um pensamento impressionante, não é?
Pare de falar comigo.
Você não quer dizer isso.
Rielle começou a andar. Eu acho que conheço minha própria
mente.
E eu também conheço sua mente. Que coisa espetacular ela é.
Saia. Rielle parou no meio do caminho, punhos cerrados ao lado
do corpo. Neste exato momento. Saia da minha cabeça e me deixe
em paz.
Eles vão usar você, Rielle. Ele disse finalmente, urgentemente
agora. Eles a elevarão cada vez mais alto, vestirão você com joias e
coroas e, quando perceberem quem você realmente é, o que vive
dentro de você, eles a rejeitarão e você será deixada sozinha.
— Saia! — Rielle gritou, e quando ele obedeceu, sentiu a partida
dele como um fio sendo puxado de uma tela infinita até finalmente
se soltar.
A sensação a deixou se sentindo vazia. Ela se sentou com força
na beira da banheira.
Evyline invadiu a sala, a espada levantada. — Minha senhora!
Você está machucada?
— Não. — Rielle enxugou os olhos com a mão trêmula. —
Evyline, acho que tive um pesadelo terrível. Eu não me sinto bem.
Evyline guardou sua espada e apressou-se para a frente. — Aqui,
minha senhora. Vou ajudá-la a voltar para a cama e pedir um chá. E
um bolo de canela, talvez?
Rielle se inclinou pesadamente no corpo largo de Evyline. —
Talvez três bolos fariam o truque.
— Três bolos então, de um modo geral, muito mais eficazes que
um, minha senhora.
O sorriso de Rielle era fraco e trouxe lágrimas nos olhos. —
Abençoada seja, Evyline. Eu te ensinei bem.
Evyline ajudou Rielle a se acomodar na cama. — Volto em breve,
minha senhora. Vou enviar o Dashiell para cuidar de você.
Rielle assentiu e se enrolou em seus cobertores.
Os anjos se foram, disse Rielle a si mesma, tremendo na cama e
olhando para o teto. Se ela pensasse o suficiente, talvez pudesse
torná-la uma verdade real, assim como havia transformado o mundo
da gaiola de metal em uma que pudesse controlar.
Rielle fechou os olhos com força e tentou não pensar na dor doce
e solitária que persistia em sua pele, onde o toque de Corien já
esteve.
Os anjos se foram.
Os anjos se foram.

•••

Mas a oração não ajudou.


Rielle não conseguiu dormir o resto da noite, o que a deixou
desfocada e desleixada no dia seguinte enquanto seu pai a guiava
cruelmente através de seus exercícios de condicionamento. E
mesmo quando ela se deitou na cama na noite seguinte, seus
músculos doíam e o sono a escapava.
Corien, aparentemente, havia levado seu pedido muito a sério. Ela
não podia ouvi-lo nem o sentir. Sua mente parecia vazia como uma
caverna.
Parte dela estava feliz.
Mas a parte dela que estava inquieta em sua cama muito grande,
ansiava por companhia.
E quando pensou em suas palavras finais para ela – Eles vão
rejeitar você e então será deixada sozinha – o vazio de sua mente
se expandiu em seu coração até que tudo que ela podia sentir era
uma tristeza desesperada e sem fim.
— Eu não quero ficar sozinha, — ela sussurrou contra o
travesseiro.
Rielle prendeu a respiração, esperando. Corien responderia? A
enviaria algum tipo de mensagem?
Cinco respirações. Dez.
Ele não disse nada.
Rielle largou a roupa de cama, arrancou o pesado roupão de
ameixa e ouro da cadeira de cabeceira e marchou em direção à
porta de seu quarto.
Evyline instantaneamente prestou atenção. — Nós estamos indo
para algum lugar, minha senhora?
— De fato estamos, Evyline. Eu preciso de um pouco de ar fresco.
Ela pensou em ir direto para Tal e confessar tudo a ele: Corien, os
anjos, a frustração abrindo caminhos quentes por seu corpo.
Mas, em vez disso, Rielle entrou no castelo escuro – buscando
consolo, desejo de companhia.
E de forma imprudente, secretamente, esperando a cada curva
dos corredores pintados pela lua de Baingarde, que ela visse Corien
ali, com um pedido de desculpas nos lábios e um beijo malicioso.
26
Eliana
“Acredita-se amplamente que a criação do
Portão, terminou com as Guerras Angélicas,
deu inicio ao fim da magia como era antes. Se
o Portão era o começo do fim, então a Queda
da Rainha de Sangue era o verdadeiro fim.
Com sua morte, a Rainha de Sangue apagou
todas as faíscas remanescentes do poder
antigo, deixando o mundo devastado e
sombrio.”
—Prefácio de uma coleção de contos infantis Venteranos,
intitulada Histórias de Uma Era Esquecida

— Você consegue andar?


Cautelosamente, Eliana se levantou e deu um aceno apertado a
Simon.
Ela esperava estar fingindo a quantidade certa de dor. Remy
apertou sua mão e Eliana olhou para ele com um sorriso que
tentava tranquilizar.
Ele, é claro, saberia a verdade pelo olhar em seu rosto. Se ela não
tivesse se curado completamente, suas feridas pela explosão
bombardeira estariam agora suficientemente bem para que Eliana
não sentisse dor, exceto um desconforto maçante em seus
músculos. Ao longo das últimas horas de sono, pelo que parecia,
seus ferimentos haviam fechado. Sua carne havia se reparado.
E, Eliana sabia, da próxima vez que Navi ou Simon insistissem em
mudar seus curativos, teria que mentir. Ou fugir. Ou ser descoberta.
Mas descoberta pelo quê? Ela era um deles? Não importava o
que Lorde Morbrae era – a estranheza de seus olhos negros, a fome
magra de suas bochechas, a capacidade de reparar uma garganta
cortada e ficar inteiro – Eliana também era uma criatura assim?
Uma onda de nojo inchou em sua garganta.
Eu não tenho olhos pretos.
Eu comi e tive amantes. Minha fome foi saciada, e o amor foi
sempre bom.
Mas…
Mas meu corpo estava coberto de queimaduras. E agora não está
mais.
Eliana sempre soube que a capacidade de seu corpo de se curar
mais rápido e mais profundamente do que qualquer outra pessoa
era... incomum, para dizer o mínimo. Impossível e impensável. No
entanto, ela sempre explicava isso a si mesma quando ficava
acordada à noite, infinitamente preocupada. Ou quando ela
confessou a Remy pela primeira vez, abrindo o braço na frente dele,
apenas para que se curasse sozinho um momento depois.
Seus olhos horrorizados se iluminaram com admiração.
— El — ele sussurrou. — Isso é algum tipo de magia.
— Ridículo. — respondeu, com o coração batendo forte, mas a
voz fria. — Magia não existe.
— Mas existiu, uma vez. Talvez algumas partes dela tenham
sobrevivido à queda da rainha Rielle.
Eliana bufou. — Duvidoso. Aquela cadela era muitas coisas, mas
não era desleixada. Não teria nos deixado magia, nem mesmo um
pedaço.
— Então, como você explica isso?
Ela deu de ombros, sorrindo. — Não vou discutir como meu corpo
é uma maravilha. Harkan poderia lhe dizer isso...
Remy bateu as mãos nos ouvidos. — Por favor, me poupe.
— Suponho que sou apenas mais resistente que a maioria —
Eliana realmente não acreditava nessa explicação insana. Mas que
escolha ela tinha? Qualquer outra possibilidade seria... muito a
considerar. Impossível na melhor das hipóteses e perigoso na pior.
E ela havia desistido de sua esperança por milagres anos atrás.
— De qualquer forma — continuou ela — Espero que não conte a
ninguém. Nem a Mãe. Porque...
— Porque se alguém descobrisse, usaria você como arma. Ainda
mais do que o Império já faz.
— Certo — ela disse rigidamente após uma pausa. —
Exatamente.
Ele assentiu. — Ainda acredito que é magia. Eu tenho que...
— Quaisquer que sejam as mentiras que você tem para dizer a si
mesmo, Remy, não são da minha conta.
Mas agora que Eliana tinha visto Lorde Morbrae, o conhecimento
do que seu corpo podia fazer – a questão do que aquilo significava –
ficava nocivo dentro dela.
Eu sou um deles? ela pensou, voltando a coçar o ombro. Ou vou
me tornar um deles?
Pelo canto do olho, ela viu Hob a encarando e lembrou-se de
estremecer quando ela se movia.
— Rápida e silenciosamente. — Simon murmurou — Entrem na
multidão junto com todo mundo. Fiquem perto.
Juntos, o grupo irregular de cinco deles se moveu lentamente para
a estrada larga e cheia de gente que levava à cidade de Rinthos.
Era um caminho congestionado por viajantes: refugiados que
buscavam abrigo nas terras selvagens além. Pequenos
aglomerados de músicos brincavam com canções de viagem e
cantavam lamentações pelos mortos. Alguns comerciantes vendiam
mercadorias – roupas, remédios, drogas, ídolos do imperador
esculpidos em madeira e pequenos o suficiente para serem usados
no pescoço de alguém.
Eliana manteve sua marcha rígida, irregular e seus olhos focados
diretamente nos portões da cidade. Adatrox percorriam a multidão e
patrulhavam a parede do perímetro, mas não impediram ninguém de
passar pelos portões da cidade. Parecia que nem o Império queria
se dar o trabalho de limpar a expansão maciça e entupida que era
Rinthos.
Era o lugar perfeito para se esconder.
Era também, possivelmente, um lugar desastroso para se
esconder. Certamente o Império sabia o que havia acontecido no
posto avançado, ouvira falar da moça destruindo todo um regimento
de adatrox e, talvez, sobrevivendo. Um adatrox poderia ter visto
Simon recuperar seu corpo dos destroços, fugir a cavalo com ela.
Talvez esse adatrox tenha enviado uma mensagem para Lorde
Morbrae.
Talvez as cinzas do general, destruídas quando o posto avançado
detonasse, tivessem se unido novamente em uma estrutura sólida.
Talvez ele estivesse, neste exato momento, seguindo a trilha deles.
Eliana contou sua respiração até que seus pensamentos pararam
de girar.
Eles não tinham escolha; teriam que esperar em Rinthos. Hob
precisava encontrar seu contato, que ajudaria a reabastecer Patrik,
seus soldados e os refugiados agora desabrigados.
E Eliana, tanto quanto eles sabiam, precisava desesperadamente
de remédios.
Ao passarem pela parede externa de Rinthos, Eliana olhou para a
cidade superlotada que se erguia acima dela e lambeu os lábios
rachados por pura inquietação. Uma rede entrelaçada de caminhos
de pedra, pontes de madeira e escadas em espiral se estendia
acima deles, conectando apartamento a apartamento e estrada a
estrada. Não muito longe da cidade estava o Mar dos Ossos, que se
agitava entre Ventera e o reino ocupado de Meridian. Uma fina
camada de areia cobria as estradas em ruínas, e sempre que
passavam por um dos canais que serpenteavam pela cidade, o
cheiro pungente de peixe e lixo era suficiente para revirar o
estômago já inquieto de Eliana.
Estavam andando pelas ruas claustrofóbicas de Rinthos por uma
hora quando finalmente encontraram a entrada do Santuário – uma
porta normal, à primeira vista, revestida de tinta cinza descascada e
trancada com uma fechadura quebrada.
Mas, passando pela porta, descendo uma escada estreita,
emergiram em uma pequena sala úmida, tripulada por três guardas
mascarados. Cada uma se elevava duas cabeças acima de Simon.
O guarda principal parou Simon com uma lâmina na curva da
garganta.
Simon abaixou o capuz e depois pronunciou algo em uma
linguagem lírica que Eliana não reconheceu. Não era Venteranp
tradicional e nem a língua comum.
Ao lado dela, Remy respirou fundo.
O que Simon disse deve ter sido a coisa certa a se dizer. Os
guardas se afastaram; um deles destrancou a porta de metal
pesado na parede oposta.
Simon inclinou a cabeça e liderou o caminho para os quartos
escuros e de teto baixo do outro lado.
Santuário.
O cheiro das célebres casas de apostas da cidade deu um tapa
em Eliana como uma mão fétida – carne cozinhada, fumaça de
cachimbo, óleos perfumados, cerveja e vinho, corpos manchados de
suor, o cheiro de sangue.
— Que idioma era esse? — Eliana sussurrou para Remy
enquanto eles seguiam Simon para dentro.
— Velho Celdariano — Remy sussurrou de volta, os dedos
apertados em torno dos dela.
Um calafrio desceu pelas costas de Eliana. — A língua da Rainha
de Sangue.
— E do Portador da Luz — Navi adicionou.
Eliana olhou para ela, resistindo à vontade de tocar o colar
embaixo da blusa.
Santuário era uma cidade apertada e estridente dentro de outra
cidade. Cinco níveis circulares, iluminados por lâmpadas de gás em
cada suporte da coluna, davam para um chão cheio de gente. Se
reunindo em mesas, mãos cheias de cartas ou em torno de poços
onde cachorros cruéis rasgavam uns aos outros. Homens de calças
esfarrapadas espancam seus oponentes em uma gaiola quadrada
de arame, enquanto os espectadores gritam suas apostas e jogam
punhados de dinheiro no ar.
E acima, em cada um dos mezaninos olhando para os poços de
combate, as sombras fervilhavam de formas – casais sussurrando
sobre suas bebidas, dançarinos seminus se contorcendo nas
mesas. Jogadores de cartas mascarados em nuvens de fumaça
reunidos em almofadas ao redor de mesas baixas. Um homem, tão
corpulento que Eliana não conseguia ver seus olhos nas dobras de
sua pele, gritou com uma risada molhada e sufocada quando dois
homens lutaram a seus pés. No terceiro nível, uma mulher tão
pálida que sua pele e cabelos brilhavam brancos na escuridão à luz
de velas mantinha a corte em um salão particular com cortinas. Um
jovem bonito, vestindo o suficiente para se cobrir, descansava ao
lado dela, os músculos brilhando com pó.
Passaram pelo casal e desapareceram em um corredor escuro e
estreito, ladeado por duas figuras encapuzadas, os rostos
escondidos. Os dedos de Eliana coçaram para agarrar Arabeth.
Uma cortina caiu fechada atrás deles, mergulhando-os em
silêncio. Seus passos desapareceram no tapete felpudo do corredor.
Pequenas lâmpadas de gás iluminavam suavemente o caminho.
— Um lugar encantador — Navi observou suavemente.
Um sorriso torceu na boca de Eliana. — Talvez devêssemos
colocar Simon em uma daquelas brigas lá embaixo, ganhar uma
moeda para seus refugiados, Hob.
Simon parou em uma porta na parede. — Só se você for minha
oponente, Terror. Poderíamos recriar nosso primeiro encontro para
todos.
— Aquele em que eu teria te batido, se você não tivesse me
apontado uma arma?
— Aquele quando eu nocauteei você sonoramente. — Então ele
bateu uma vez na porta. Uma ripa de metal na madeira se abriu, e
Simon proferiu outra frase no Velho Celdário.
No mesmo instante, a porta se abriu para uma câmara silenciosa
alinhada com figuras vestidas em silêncio. Uma mulher musculosa
de meia-idade com pele marrom-âmbar saiu correndo de uma porta
lateral, direto para Hob. — Graças a Deus você está vivo! — Ela o
abraçou ferozmente, bateu a mão nas costas dele. — Ouvimos
sobre o ataque em...
A mulher viu Navi e, após um momento de choque congelado, ela
caiu de joelhos.
— Sua Alteza. — ela sussurrou. — Me perdoe. Eu sabia que você
estaria aqui, e ainda te vendo em carne e osso... — Ela olhou para
Navi, os olhos brilhando com lágrimas. — Desde que ouvi sobre o
seu voo de Astavar e depois ver a inteligência que você enviou
através da Coroa Vermelha de Orline... Minha senhora, eu rezei
todos os dias para que a luz da rainha a levasse para casa.
Navi ajudou a mulher a se levantar, com os próprios olhos
brilhantes. — Você é de Astavar?
— Eu sou, minha senhora. Mas minha lealdade está com a Coroa
Vermelha. Não vejo meu lar desde que o Império levou Ventera.
— Por favor, diga-me se eu posso trazer de volta alguma
mensagem para seus entes queridos.
— Eu não tenho entes queridos, minha senhora. — A mulher
apertou a mandíbula. — Todos eles vieram comigo para lutar por
Ventera. Eu sou a única que resta.
Navi fechou os olhos. — Minha irmã, sua coragem me deixa sem
palavras.
— Bem! — A mulher fungou alto e enxugou os olhos. — Sorte
sua, minha senhora, tenho palavras suficientes para todos nós.
Hob? — Ela bateu a mão no ombro dele. Hob fez uma careta. — Eu
sei que você precisa da minha ajuda, para o seu Patrik e seus
bebês rebeldes errantes. E minha ajuda você terá. Mas primeiro,
banho. Todos vocês cheiram a merda.
— Quem é essa? — Eliana sacudiu a cabeça para a mulher. —
Alguém nos apresentará ou vamos todos ficar aqui e deixá-la
divagar?
— Eu sei quem você é. — A mulher se afastou de Hob e analisou
Eliana com os olhos estreitados. — Você é o Terror de Orline. Você
arruinou o ataque. Você quase matou todo mundo em Crown's
Hollow. — Ela olhou Eliana de cima a baixo, depois cuspiu na sua
cara. — Meu nome é Camille. Eu tenho espadas suficientes neste
lugar para encher um templo. Então não brinque comigo, garota. Ou
será o seu fim.
Então deu um passo para trás, sorriu brilhantemente para todos e
bateu palmas. Quatro das figuras vestidas deslizaram para a frente.
— Nós preparamos banheiros para vocês. Por favor, não falem
comigo novamente até cheirarem bem. Oh! Pequeno. — Camille
sorriu para Remy. — Você é um cara legal. A quem você pertence?
Remy levantou o queixo e pegou a mão de Eliana. — À minha
irmã.
O rosto de Camille endureceu. — Bem, isso é uma pena, não é?
Ele olhou para ela. — Não para mim.
Até para Eliana, o sorriso presunçoso que ela lançou para Camille
parecia insuportável.

•••

Mas, ao entrar na câmara de banho, a mente de Eliana se


recuperou e sua felicidade morreu.
Merda.
Era uma sala maravilhosamente decorada – paredes de pedra
polida branca, cortinas cobertas com tecido de brocado em ameixa
e turquesa, sofás almofadados empilhados com roupa de banho,
cestas de sabão, garrafas de óleos e loções.
No centro do espaço borbulhava uma enorme piscina circular.
Uma fonte estava no centro, com uma estátua esbelta de Santa
Tameryn penteando as sombras de seus cabelos.
Eles deveriam tomar banho aqui. Eliana queria,
desesperadamente, tomar banho. Mas primeiro Navi gostaria de
trocas seus curativos. Veria as costas macias e sem manchas de
Eliana. Simon e Hob haviam tomado outra câmara – graças a Deus
– mas Navi já era ruim o suficiente.
Eliana soltou a mão de Remy e começou a se afastar da piscina.
— El? — Ele olhou para ela, bocejando, depois congelou. — Oh.
Navi olhou alegremente para a piscina e soltou um suspiro
satisfeito. — Deus, será bom lembrar como é ser um humano
adequado novamente. Eliana, vamos trocar seus curativos.
— Aqui está, minha senhora. — murmurou uma das atendentes
movimentadas. Ela entregou a Navi uma cesta de panos brancos
limpos. — O Lobo nos disse que você precisaria disso. Somos
treinados como curandeiros, minha senhora. Devemos ajudá-las?
— Oh, isso seria adorável. Eliana? — Navi franziu a testa quando
viu Eliana avançando em direção à porta. — O que você está
fazendo?
— Eu não quero trocar meus curativos — O pânico de Eliana era
tão completo que ela não conseguia pensar em mais nada a dizer.
— Eles estão bem.
O sorriso de Navi estava confuso. — Eles irão infeccionar se não
o fizermos. Fazem horas. Venha aqui.
Uma das atendentes se aproximou de Eliana, fez uma reverência
e estendeu a mão para guiá-la pelos degraus em direção à piscina.
Eliana deu um tapa nela. — Saia de perto de mim!
Navi olhou para ela. — O que em nome de Deus há de errado
com você?
— Não chegue mais perto.
— Me diga o que está errado. Talvez eu possa ajudar.
Eliana soltou uma explosão de risada incrédula. — Não preciso da
ajuda de ninguém.
— Você está delirando. Sua febre voltou.
— Apenas deixe-a em paz! — Remy gritou.
Antes que Eliana pudesse se mover, ainda congelada de medo,
Navi se lançou, girou-a e a prendeu, primeiro na frente, contra uma
das colunas de mármore da sala. Uma lâmina familiar pressionada
no lado de Eliana.
Arabeth, ela pensou, sua traidora. Queria se afastar, mas lembrou-
se de suas supostas feridas.
— Você está me machucando — ela ofegou. — Por favor, minhas
queimaduras...
— Esta sua faca é a minha favorita — disse Navi firmemente. —
Não pude resistir a roubá-la quando tive a chance. Eu devolverei,
talvez. Se você não me deixar com raiva. Você está escondendo
algo de mim. Diga-me o que é.
— Navi, por favor! — A voz de Remy estava perto das lágrimas.
— deixe-a ir!
— Doce Navi — disse Eliana, a bochecha de Navi tão perto da
dela que podia sentir o hálito rançoso da garota. — E eu pensei que
você queria que fôssemos amigas.
— Eu quero. — Navi parecia genuinamente arrependida. — Mas
se você não me responder, eu vou te nocautear e buscar Simon, e
ele trocará seus curativos, e você não será capaz de detê-lo.
Eliana soltou um grunhido desesperado. — Você gostaria de
apostar nisso?
— Você está agindo de forma estranha há dias. Não é a febre
nem as suas feridas. Você está planejando algo. Outra fuga? Você
vai trazer a morte em Rinthos como você quase fez em Crown’s
Hollow?
— Não estou planejando nada.
— Então, o que é?
Eliana percebeu tarde demais que seus olhos estavam se
enchendo de lágrimas repentinas e exaustas.
A expressão de Navi se suavizou. — Do que você tem medo?
— El, não. — Remy avisou.
Eliana olhou de Navi para o irmão e depois para os atendentes
que esperavam congelados nas proximidades. E ela percebeu, com
uma torção doentia no fundo do estômago, que ela queria isso.
Eliana queria contar a alguém que pudesse ajudá-la a examinar
suas perguntas – a garganta de Lorde Morbrae, a visão do
Imperador seu próprio corpo impossível – e encontrar uma resposta.
E se ela ia contar a alguém... Navi melhor que Simon.
Ela respirou estremecendo. — Deixe-nos. — disse ela
calmamente.
Silêncio. Navi virou-se para os dois atendentes. — Façam como
ela manda. Não falem nada sobre disso.
Eles inclinaram a cabeça e deslizaram para fora da sala. Depois
que as portas se fecharam atrás deles, Eliana fechou os olhos. —
Tudo bem. — Ela soltou um suspiro longo e lento. — Tudo certo.
A voz chorosa de Remy saiu sufocada. — El, não. Por favor.
— Eu quero.
Navi se afastou e abaixou Arabeth, sua expressão grave. — O
que foi, Eliana?
Eliana hesitou, então, ainda de frente para a coluna, tirou o
casaco. Tirou a túnica manchada de sangue para revelar as
bandagens sujas embaixo. Vestida apenas com suas botas e calças,
ela sussurrou: — Tire-as e você verá.
Navi gentilmente começou a remover os curativos enrolados no
tronco de Eliana. Quando o primeiro curativo cedeu, Navi ofegou.
Tremendo, Eliana encostou a testa na parede, cruzou os braços
sobre o peito e esperou que Navi terminasse. Ela nunca se sentiu
mais vulnerável em sua vida.
— Eliana... — Navi traçou os dedos sobre os músculos das costas
nuas de Eliana. — Elas sumiram. Suas queimaduras... é como se
nunca tivessem existido. Eu não entendo.
— Você não vai contar a ninguém. — Ela se fortaleceu e olhou por
cima do ombro. — Vai?
Após um momento de silêncio tenso, Navi murmurou: — É claro
que não vou contar a ninguém. — e se afastou.
Tonta de alívio, Eliana pegou sua túnica e a colocou novamente.
— Se você contar a alguém...
— Então a Coroa Vermelha e o Império lutariam para fazer de
você uma grande arma, sem levar em consideração sua própria
segurança, e esse não é um destino que eu desejaria para alguém.
— A voz de Navi endureceu. — Esta guerra reivindicou a vida e o
corpo de muitas mulheres.
Então ela se virou, pensativa. — Diga-me como tudo começou.
Não foi apenas dessa vez, presumo?
Eliana respirou fundo. — Sempre foi assim. Quando eu era
pequena, não pensava em nada. Eu caia, raspava minha perna e
isso se curaria quase instantaneamente. Eu pensei, ah, que sorte, e
segui em frente. Mas à medida que envelheci, percebi que era...
uma coisa incomum.
— Para dizer o mínimo — disse Navi com um sorriso perturbado.
— Eu contei a Remy, eventualmente. — Eliana encontrou Remy
encolhido miseravelmente em um dos bancos almofadados ao lado
da piscina. Sentou-se ao lado dele, puxou-o para perto. Ele virou-se
agradecido para o lado dela. — Ele me ajudou a manter isso em
segredo de nossos pais, até de Harkan. Meu amigo. Meu parceiro.
— Foi a primeira vez que ela disse o nome de Harkan desde que se
despediu dele naquele dia terrível em Orline. Dizer parecia arrancar
uma coisa física do coração, deixando um lugar vazio para trás. —
Tenho certeza de que Harkan notou, éramos próximos demais para
ele não notar, mas ele nunca disse nada. Não sei por quê. Para
respeitar minha decisão de não confiar nele, suponho. — Ela
balançou a cabeça. — Eu não merecia um amigo como ele.
Navi andava silenciosamente. Então parou, olhando para a água
ondulante.
— Você está preocupada porque viu a mesma coisa acontecer
com Lorde Morbrae como aconteceu com você a vida toda. — Navi
olhou para cima, com pena no rosto. — Você está preocupada em
ser um deles.
— Mas ela não é! — O rosto de Remy ficou vermelho de raiva. —
Os olhos deles são pretos. Os dela não são. Eles são maus, e ela
não é.
— Eu concordo, Remy — disse Navi — Como alguém que passou
muito tempo entre aquela espécie. Você não é um deles, Eliana.
Seu rosto não tem a mesma fome. O ar não muda erradamente ao
redor do seu corpo, como se você não se encaixasse bem neste
mundo.
— O que eles são, então? — Eliana perguntou calmamente. — O
que você viu quando você morava com as donzelas?
Navi sentou em um banco almofadado, com os ombros altos e
tensos. — Vi homens que se comeram e ainda estavam com fome.
Que levavam amante após amante para suas camas e nunca se
sentiam saciados. Deitei-me com generais que me imploravam para
esculpir seus corpos e que ameaçavam esculpir meu próprio se eu
não obedecesse, e então, enquanto eles se contorciam embaixo de
mim, sua carne se curava e uivavam em desespero.
Navi respirou fundo, lentamente. — Lorde Arkelion gostava muito
de mim e muitas vezes me chamava para seus aposentos. Às
vezes, ao olhar naqueles olhos negros, eu via coisas.
— Como eu vi o Imperador — Eliana murmurou. — Olhei nos
olhos de Lorde Morbrae e de repente lá estava ele. E havia
Celdaria.
— Sim. — Navi olhou para cima, sua expressão assombrada. —
Muito parecido com isso. Quando em Sua senhoria, vi coisas que
não entenderia. Visões. Imagens. E todos elas eram de ira e
vingança. Colinas escuras de sangue. Um vazio que me afastou
cada vez mais da luz. Eu sentia essas imagens no meu sangue
depois de deixá-lo, como se ele tivesse me infectado com um eco
de qualquer doença que o atormentasse. Eu voltava para as
donzelas e me mantinha longe dos outros até que o sentimento
passasse. Eu estava com medo de mim mesma. Eu temia atacar,
machucar eles.
Navi balançou a cabeça. — Esses homens, eles são feitos de uma
violência que eu nunca poderia imaginar.
— Eles não são homens — Remy disse firmemente no silêncio
que se seguiu. — Eles são anjos.
27
Rielle
“Eu incentivei nosso jovem príncipe a dividir
seu tempo entre a Casa da Luz e o Forge,
pois ele não deve apenas estudar a luz do sol,
mas também criar um receptáculo forte o
suficiente para conter seu considerável poder
– embora ele não parecesse muito interessado
com a idéia de uma espada. O garoto prefere
que o receptáculo seja um tomo empoeirado
do tamanho de um tronco.”
—Diário da Grã-Magister Ardeline Guillory da Casa da Luz
Ano 983 da Segunda Era

Os jardins atrás de Baingarde eram o lugar favorito de Rielle no


mundo. Ela, Audric e Ludivine haviam passado muitas horas de sua
infância percorrendo os caminhos de terra batida, criando
esconderijos secretos em buracos de relva e rastejando ao redor
das piscinas que cercavam as catacumbas reais.
Rielle sorriu, lembrando-se do jogo de pular pedras que os três
adoravam jogar. O jogo era saltar sobre as piscinas, usando as
pedras cobertas de musgo como um caminho. Qualquer um que
caísse seria para sempre assombrado pelos fantasmas de reis e
rainhas mortos.
A água negra das piscinas sempre lembravam Rielle de espelhos
desagradáveis e a fazia pensar se existia um túnel secreto em
algum lugar debaixo da água, no qual ela poderia cair e desaparecer
para sempre.
Nesse mundo secreto, pensava a jovem Rielle, seria correto
assassinar sua mãe? As pessoas de lá se importariam?
Por um instante, ela pôde sentir Audric e Ludivine de cada lado
dela. Um segurando a mão dela calorosamente; o outro mantendo
uma distância adequada, como sempre.
Uma vez que seus pés descalços atingiram o caminho que levava
às piscinas, Rielle parou e inalou. Ela imaginou o ar fresco da noite
dos jardins infiltrando em seus pulmões e lavando seu coração
perturbado.
— Tem certeza de que não precisa de botas, minha senhora? —
perguntou Evyline. — Está um frio e tanto.
Rielle olhou de volta para a guarda. — Você me deixará vagar
sozinha por um tempo? Anseio por ficar quieta. Eu anseio por
silêncio.
Evyline fez um pequeno som de desaprovação. — Posso ficar
excepcionalmente quieta, minha senhora.
Rielle cruzou os braços e olhou para ela.
Depois de um longo momento, Evyline suspirou. — Muito bem,
minha senhora. Se eu ouvir você gritar angustiada, irei atrás de você
heroicamente.
— Eu não esperaria nada menos de você, querida Evyline.
Então Rielle andou entre as árvores, seguindo um dos estreitos
caminhos de terra. Agulhas de pinheiro macias cobriam o chão;
samambaias reluzentes de orvalho roçavam a barra de seu roupão.
Séculos antes, a rainha Katell havia plantado árvores de tristeza nos
jardins de Baingarde em homenagem a Aryava, seu amante anjo
caído. Agora as árvores antigas se espalhavam em baixo ao longo
do chão, com seus galhos pretos com nós pesados, com grossos
cachos de flores rosa pálida.
Por fim, Rielle surgiu perto das piscinas de observação.
Esticavam-se escuras e tranquilas em direção ao monte coberto de
grama que servia de entrada para as catacumbas reais. Duas
tochas ladeavam as grandes portas de pedra, marcadas com os
sete símbolos do templo.
Rielle ajoelhou-se à beira da piscina mais próxima e tocou os
dedos na testa, na têmpora, no peito, na garganta, na palma da
mão, na nuca e, finalmente, em cada um dos olhos fechados.
Que a luz da rainha os guie para casa, ela orou em homenagem
aos santos caídos e às rainhas e reis que repousam nas
catacumbas.
Então ela se levantou, seu roupão úmido do orvalho e ouviu um
grunhido baixo.
Ela apertou os olhos através da névoa subindo sobre as piscinas
e viu Audric do outro lado, abraçado por um aglomerado de árvores
de tristeza. Ele usava apenas calças e botas, o tronco nu e marrom
brilhando com suor. Com Illumenor na mão, ele realizou exercícios
após exercícios – cortando o ar com a lâmina, girando sobre os pés,
esquivando-se de atacantes imaginários.
A visão dele, iluminada pela lua por cima e pelo brilho zumbido de
Illumenor por baixo, foi suficiente para fazer Rielle perder o fôlego.
Sua expressão era de total concentração – sobrancelha franzida,
olhos escuros e graves.
— Também não conseguia dormir? — Rielle chamou.
Ele se virou, abaixou a espada. Um sorriso largo se espalhou por
seu rosto. — Não durmo muito hoje em dia.
Ela caminhou em direção a ele ao longo do caminho macio e
gramado entre as piscinas. — E por que isto?
— Oh, eu não sei. — Ele embainhou Illumenor, limpou a testa com
um pano. — Quando amigos queridos são forçados a situações
mortais semana após semana, isso tende a me manter acordado à
noite.
— Parece que seus amigos são mais problemáticos do que valem.
— De jeito nenhum. — Ele deu um passo em sua direção e,
quando a luz da lua caiu sobre ele, iluminou as sombras sob seus
olhos, as linhas de preocupação em sua boca. — Eu suportaria mil
noites sem dormir se isso significasse que meus amigos estivessem
seguros.
Ela teve que desviar o olhar dele, seu pulso palpitando na
garganta. Estar perto de Audric fez com que sua solidão anterior
parecesse mais vasta e inevitável do que nunca.
— Diga-me — ela disse levemente, — Qual é a sensação para
você? Quando você faz magia.
Sua voz era pensativa. — É como se todas as partes de quem eu
sou estivessem se unindo como deveriam. Como se tudo fosse
possível, naquele momento, pois meu foco é completo e controlado.
Como... como um espreguiçamento muito bom.
Rielle imediatamente imaginou Audric em sua cama, sem roupas
e cachos despenteados, esticando sonolentamente aquele corpo
comprido e magro em uma piscina de luz solar.
Ela lambeu os lábios secos, e passou por ele. Na sua
proximidade, o ar crepitou e se agitou, aquecendo-a.
— Você tem um controle excepcional — ela murmurou. — Alguma
vez... o quebra?
— Não sei ao certo o que você quer dizer.
Claro que não, ela pensou Mas isso não foi justo. Só porque ela
estava nervosa, sem sono e aterrorizada com o pensamento de
onde Corien poderia ter ido e o que ele estava fazendo, se havia
outros anjos e se ele voltaria para ela – isso não lhe dava a
desculpa para direcionar sua raiva para Audric.
Ele não fez nada de errado. Ele nunca fez.
— Você nunca faz nada de errado — ela soltou, mais severa do
que pretendia. Lá se foi o fato de não estar com raiva de Audric.
— Bem, claro que sim — disse ele, rindo. — Devo lembrá-la de
uma certa corrida de cavalos proibida?
— Não quero dizer sair furtivamente e violar as regras de nossos
pais. Quero dizer, coisas realmente erradas. Você é poderoso e
ainda assim...? Deixa pra lá. Claro que não.
Rielle virou-se para sentar no chão úmido. — Eu nem sei o que
estou dizendo — ela murmurou, passando os braços ao redor de si.
— Eu preciso dormir, mas não consigo. Minha mente está correndo
em círculos.
Depois de um momento, ela olhou para cima e viu Audric sentado
na grama ao seu lado. Ele vestiu a túnica de volta, ela notou com
profundo pesar.
— Se você tentar explicar — ele disse gentilmente — Eu vou
ouvir.
Por um longo tempo, ela olhou para os dedos dos pés enrolados
na grama úmida. Ela precisava voltar para a cama, tentar descansar
um pouco. Mais um dia de treinamento com o pai, debruçando-se
sobre livros na biblioteca da Casa da Noite com Ludivine, em
preparação para o próximo desafio. Ela tinha uma consulta com o
Arconte à tarde. Ele insistiu em entrevistas regulares ao longo dos
desafios, durante as quais perguntou sobre a saúde dela, seu
estado de espírito, o que ela estava comendo e bebendo, como
estava dormindo, como eram seus sonhos.
Se você soubesse, Sua Santidade.
Audric colocou uma mão quente na dela. — Rielle, o que está
acontecendo? Conte-me.
Lentamente, ela levantou o olhar para ele. Ele estava tão perto
que ela podia contar os cílios grossos e escuros ao redor dos olhos,
e teve uma súbita visão de si mesma beijando a pele macia sob
eles.
— Durante o desafio do metal — ela sussurrou — quando eu
percebi o que o Arconte havia feito, que ele colocara crianças na
gaiola comigo — ela engoliu em seco, fechou os olhos — eu queria
machucá-lo.
— Bem, Deus, Rielle, eu também! — Audric passou a mão pelos
cabelos com uma risada leve e dura. — Eu imagino que todos o
fizeram. É isso que está te incomodando? Querida, por favor, não
deixes que isso te impeça de dormir.
— Não é só isso! — Rielle arrancou um monte de grama do chão
em frustração. — São... são tantas coisas.
Mesmo enquanto minha mãe queimava, fiquei feliz por sentir o
poder fervendo em meus dedos.
Mesmo sabendo que Corien é um anjo, quero que ele volte para
mim.
Mesmo que você pertença à Ludivine... quero você para mim.
Eu quero... Eu quero. Eu anseio. Eu tenho fome.
— Eu quero tantas coisas — ela sussurrou — e nenhuma delas é
muito boa.
Audric segurou o rosto dela na mão e a guiou a olhar para ele. Por
um momento eles ficaram congelados, a boca de Audric tão perto
que Rielle poderia ter levantado o queixo e encontrado os lábios
dele com os dela.
Então Audric abaixou a mão e desviou o olhar.
— Todos nós temos escuridão dentro de nós, Rielle — disse ele,
sua voz rouca. — É isso que significa ser humano.
Ela balançou a cabeça lentamente. — Eu acho que o que significa
ser humano é que você é capaz de superar essa escuridão e fazer o
bem no mundo. E você, Audric — ela riu um pouco — eu apostaria
tudo o que sou que você nunca experimentou pensamentos como
os meus. Às vezes, sua bondade brilha tanto que eu quero devorá-
lo. Talvez se eu tiver o suficiente de você, essa luz que você exala
afastará a maldade que vive dentro de mim.
Ela esfregou a testa. — Não acredito que estou dizendo essas
coisas. O que você deve pensar de mim.
— Penso de você o que tenho pensado desde que a conheço. —
Audric pegou a mão dela, firmou-a entre as dele. — Que bom que
você está ao meu lado e desejo que você sempre esteja.
Ela se atreveu a olhar-lo e, quando o fez, soltou um som suave e
murmurante, inclinando-se para mais perto dele como se fosse
puxada por um cordão que ligasse seu corpo ao dele. Ele segurou o
rosto dela com uma mão, deixando a outra arrastar dedos gentis
pelo braço. O calor do corpo dele a inundou; ela estremeceu e
torceu para se aproximar.
— Audric — murmurou, fechando os olhos. Ela encostou sua
bochecha na dele, apreciando o arranhar suave de sua mandíbula.
— Se houver maldade dentro de você, Rielle — disse Audric com
voz rouca, os lábios nos cabelos dela — então eu vou valorizá-la
como faço com todas as suas outras partes.
Um toque suave dos dedos dele contra as costelas dela; outro na
parte de trás do pescoço, enviando um arrepio trêmulo na espinha.
Ela se derreteu contra ele, deslizando em seus braços tão
facilmente como se pertencesse a Audric.
Mas então ela se lembrou de Ludivine.
Ela fechou os olhos. — Nós não deveríamos — ela sussurrou, seu
corpo gritando para ela parar de falar e tocá-lo. — Eu... Audric, e a
Lu?
Audric se afastou um pouco dela. A tristeza caiu em seu rosto. —
Eu sei. Você está certa, eu sei.
Rielle se apoiou nos cotovelos, observando-o atentamente. —
Você a ama?
— Ela é querida para mim, mas... não. Não como eu deveria.
— Então... — Ela o alcançou, voltando seu rosto para o dele.
Lágrimas de vergonha surgiram em seus olhos, mas ela não
conseguia desviar o olhar da necessidade ardente dele. — Talvez
apenas desta vez? Pela lembrança disto.
Ele hesitou, olhou para trás através das árvores em direção a
Baingarde.
— A memória. — disse ele lentamente, — pode dificultar as
coisas.
— Eu não ligo. — Ela segurou o rosto dele com as mãos e
balançou a cabeça. — Eu quero mesmo assim.
Por um momento ele ficou quieto, considerando-a. Então, um
sorriso suave. Os lábios dele contra a palma da mão. — Minha
garota malvada — ele murmurou e baixou sua boca docemente
sobre a dela.
O beijo foi tão cuidadoso, tão gentil, que o coração de Rielle doeu
com ternura por ele. Ela gritou suavemente contra a boca dele e
passou os braços em volta de seu pescoço. Ao toque dela, ele
estremeceu e aprofundou o beijo com um gemido. O momento
mudou de algo cauteloso, frágil e lento, para uma necessidade
abrasadora e impotente. As mãos dele deslizaram pelo corpo dela, e
ela arqueou em seu toque. Quando ela o sentiu duro contra sua
perna, ela apertou os braços em volta dele e ofegou contra sua
bochecha.
— Audric — ela sussurrou, fechando os olhos. — Sim. Sim, por
favor. — Ela estava tonta com sua proximidade — a língua dele
abrindo sua boca, os murmúrios suaves de seu nome, os mordiscos
frenéticos contra sua pele.
Ele juntou o corpo dela contra o dele, dedilhando sob o roupão
para o algodão fino da camisola e segurou os quadris nas palmas
das mãos. Era como se ele não pudesse decidir onde tocá-la, e
Rielle se deliciava com cada momento de sua indecisão, torcendo-
se debaixo dele, puxando sua camisa para movê-lo para onde ela
queria. Ela passou os dedos por baixo da túnica dele, ávida pela
pele quente e nua de suas costas musculosas. Ele era tão quente,
tão sólido e seguro. Ela fechou os olhos, pressionou os lábios na
clavícula dele. Inspirá-lo era como respirar em um dia de verão.
— Mais perto — ela murmurou, sorrindo suavemente contra a pele
dele.
Ele deslizou a mão trêmula pela camisola, pela coxa nua. Ele
soltou um som baixo e quebrado e pressionou a testa na dela,
moveu a mão para cima para desenhar círculos lentos em sua
barriga, e depois deslizou mais baixo para se acomodar entre as
pernas. Ela gritou bruscamente quando ele a tocou onde ela mais o
desejava, seu corpo curvando-se do chão e as mãos segurando a
grama como âncora. A terra molhada embaixo dela inchou, tremeu;
uma névoa suave e fumegante começara a subir ao redor de seus
corpos. A brisa que refrescava a pele de Rielle se tornava mais
aguda.
— Eu não suporto isso — ela sussurrou, passando uma perna ao
redor dele, aproximando seus quadris dos dela. — Audric, por favor.
Ele abaixou a boca até o pescoço dela, e soltou uma risada
instável. — Você sabe há quanto tempo eu te queria, Rielle? — veio
seu sussurro duro, quente e doce contra a cavidade de sua
garganta. — Você sabe quanto tempo eu tenho...
Um cão soltou um uivo latindo. Então outro.
Audric congelou, afastou-se para encarar Rielle, consternado.
Então ele olhou por cima do ombro e Rielle sentiu seu corpo ficar
tenso.
Ela se apoiou em seus cotovelos, puxou a camisola para esconder
suas pernas nuas, e quando viu quem estava nas árvores no lado
oposto das piscinas, seu estômago tencionou com pavor.
Um homem estava à luz da lua, flanqueado por seus cães de
caça: Lord Dervin Sauvillier.
O pai de Ludivine, olhando fixamente para eles.
E seu rosto estava duro e branco de fúria.
28
Eliana
“Embora humanos e anjos estivessem em
guerra por séculos, eles sempre tiveram pelo
menos um inimigo em comum: marques. Os
filhos imundos de traidores que se deitavam
com o inimigo, sua magia não era da mente
nem do mundo físico, mas de algo
completamente diferente. Estávamos certos
em caçá-los? Talvez não. Mas estávamos
certos em temê-los.”
—Marques: Uma Exploração da Raça Trucidada Marque por
Varrick Keighley, erudito de Ventera

Eliana fechou os olhos, cansada. — Remy, por favor, não comece


com essa bobagem novamente.
— Será que os humanos se parecem com eles? — Remy insistiu.
— Ele tem essas teorias de estimação, você vê. — disse Eliana a
Navi.
— Seus olhos negros — continuou ele. — Todos falam sobre eles.
Você mal consegue ver o branco ao seu redor, é o que eu ouvi.
Eliana acenou com a mão com desdém. — Quem sabe a que
tipos de drogas os generais do imperador têm acesso?
— Então explique as visões que você e Navi tiveram quando
estavam perto deles. Os anjos usavam a telepatia. Todas as
histórias antigas dizem isso.
— E as histórias antigas —, disse Eliana, — são exatamente isso.
Histórias de um mundo tão distante no passado que ninguém
consegue se lembrar, e a maioria das pessoas inteligentes
acreditam que nunca existiram, exatamente como dizem essas
histórias. — Ela respirou fundo, mais instável do que gostaria. — As
pessoas procuram conforto em qualquer lugar em tempos como o
nosso, Remy. Acredite no que quiser, em um mundo de anjos,
magia, telepatia e viajantes que podem se deslocar de uma ponta a
outra no tempo, mas prometa-me que se lembrará que é
simplesmente isso. Uma crença. Não é verdade, não está provado...
— E a maneira como seu corpo pode se curar? — Remy
interrompeu. — Isso é crença? Ou é um fato?
Eliana olhou para ele, mas não disse nada. Mas é claro que ele
estava certo. Ela não podia ignorar a simples verdade de seu
próprio corpo.
— Por que você não acredita em mim? — finalmente veio a voz
de Remy, mais suave agora. — É a única coisa que faz sentido
depois do que você viu, não é?
— Porque se os anjos estão vivos e são reais, então estamos bem
e verdadeiramente fodidos, e não há sentido em nada disso —
Eliana retrucou, levantando-se. — Não há sentido em estar nesta
sala, não há sentido em procurar a mãe.
— Não faz sentido as pessoas que você matou e traiu. — concluiu
Navi.
Eliana se virou para encará-la. — E não faz sentido os anos que
você desperdiçou como prostituta do Império.
— El, pare com isso! — Remy sibilou.
— Espiã é a palavra que eu uso — disse Navi suavemente. —
Isso me ajuda a afastar os pesadelos.
Eliana se afastou alguns passos com os braços cruzados. De
repente, ela ansiava que Simon aparecesse, apenas para poder
atirar suas facas em algo que pudesse revidar e não lhe mostrar
misericórdia.
— Sinto muito — ela murmurou, recusando-se a olhar para Navi.
— Eu não deveria ter dito isso.
— Não, você não deveria — disse Navi. — Mas eu aceito suas
desculpas.
— Eles podem não ser anjos — Remy admitiu, depois de um
momento. — Eu nunca li histórias sobre anjos com olhos negros
sólidos. Mas então, aquelas visões que você viu... isso não pode ser
nada.
— Se eles não são anjos, o que são? — Eliana fechou os olhos.
— O que eu sou?
— Talvez — disse Navi, depois de um momento — Você possa
ser uma marque?
— Parte humana, parte anjo? — Eliana voltou-se para ela
vociferando uma risada áspera — Ah, que bom. Isso é melhor.
Estou totalmente tranquila.
— Não, acho que não — Remy refletiu, mordendo o lábio.
Excitação iluminou seus olhos, aquecendo de má vontade o coração
negro de Eliana. Logo ele estaria andando, dando-lhes sermões
como um erudito em miniatura de um templo. — Marques tinham
marcas nas costas onde as asas deveriam estar. E a maioria deles
morreram durante as Guerras Angélicais, antes mesmo da rainha
Rielle nascer. Eu acho que se El fosse uma marque, haveria algum
sinal nela.
Uma batida forte na porta fez todos pularem.
Navi virou-se imediatamente onde estava sentada. — Simon.
— Nem uma palavra para ele — alertou Eliana. — Ou juro que
vou rasgar...
— Eliana, você poderia parar de me ameaçar a cada cinco
minutos? Eu disse que não contaria a ninguém, e eu estava falando
sério. — Navi hesitou, depois se aproximou lentamente, com uma
mão estendida. Na palma dela estava Arabeth. — Pegue. Por favor.
Eliana obedeceu, arrancando a faca antes que Navi pudesse
mudar de idéia. Com Arabeth segura em seus dedos, alguns dos
nós agitados em seu peito afrouxaram seu aperto.
— Eu gostaria — disse Navi com um pequeno sorriso, — que as
coisas não fossem assim entre nós. Eu gostaria que fôssemos
amigas. Para nós confiemos uma na outra. — Ela fez uma pausa e
olhou para Remy. — Se realmente existem anjos no mundo, como
seu irmão acha que pode ser o caso... precisamos manter por perto
todos os amigos que encontrarmos. Você não concorda?
Outra batida mais aguda na porta. — Ignore-me por sua conta em
risco — veio a voz de Simon.
— Você é um idiota! — Eliana gritou por cima do ombro.
— Eu nunca afirmei não ser — respondeu ele.
Navi riu baixinho. — Então? O que você acha?
Eliana balançou a cabeça. — Eu não sou boa em ter amigos.
— Eu também perdi a prática. Vamos tentar lembrar como se faz,
juntas?
— Não, não se preocupe, fico feliz em esperar aqui fora para
sempre — veio a voz irritada de Simon.
Remy começou a rir, parecendo mais uma criança do que
parecera em longos meses. Derreteu o último resquício de cautela
que havia em Eliana.
— Vou tentar — disse ela finalmente e apertou a mão de Navi. —
É tudo o que posso prometer.
Navi sorriu calorosamente para ela. — Isso é um presente.
Agradeço-lhe por isso. Agora — Ela levantou as sobrancelhas para
a porta. — Devo deixá-lo entrar?
— Oh, por favor, permita-me. — Com isso, Eliana marchou até a
porta do banheiro e a abriu com um sorriso – o que rapidamente
saiu do rosto dela quando viu Simon parado ali. As calças de linho
estavam baixas nos quadris, e ele não usava mais nada, exceto
uma toalha azul escura pendurada no ombro. Seu cabelo loiro
acinzentado estava despenteado e desarrumado, e sua pele
arruinada… Eliana não conseguiu parar de olhar para ele. Além da
camada de terra que o cobria, finas linhas prateadas e finas
manchas de pele cintilantes com cicatrizes de queimadura
serpenteavam por seu peito e pelo abdômen, deslizando sob a
cintura das calças.
Por um momento, Eliana se viu realmente imaginando o que havia
acontecido com ele – o que o queimara, quem o havia cortado – e
como ele era quando criança, antes que os horrores do mundo o
encontrassem.
— Minha nossa —, ele murmurou, seus olhos azuis brilhando com
alegria desenfreada. — Nunca vi o Terror ficar tão sem palavras.
Você sabe como fazer um homem se sentir bem, devo dizer.
A boca de Eliana se abriu e fechou, suas bochechas em chamas.
Esforçando-se para pensar em algo inteligente para dizer, sua
mente confusa não poderia ter pensando em nada melhor do que —
Veio me espiar nua, não é?
Ela estremeceu.
Mas Simon apenas sorriu. — Oh, Eliana — ele murmurou, sua voz
não mais brincalhona — eu quero muito mais do que apenas uma
espiada.
Com um último olhar, demorado, ele passou por ela no banheiro, e
Eliana foi deixada em pé na porta, sozinha e instável, sua mão
formigando do roçar dos dedos dele contra os dela.
Foi uma coisa estranha que a desequilibrara tanto, além da
reação de seu corpo solitário ao dele. Uma sensação que às vezes
lhe ocorria quando Simon estava perto, e que ela não conseguia
explicar. Uma sensação de algo familiar.
Como ela se sentira quando estava no terraço com vista para
Celdaria durante sua visão do Imperador – um sentimento irracional
de pertencimento e retidão.
Uma sensação, ela pensou, atordoada e levemente irritada, de
casa.
29
Rielle
“Eu não sei o que vocês dois estavam
pensando, e Deus sabe que eu não quero que
vocês me expliquem. Mas, se precisar de um
lugar para se esconder ou fugir, saiba que
sempre pode vir até mim. Nem mesmo Sua
Santidade conhece todos os lugares secretos
desta cidade e quantos deles pertencem a
mim.”
—Mensagem de Odo Laroche para Lady Rielle Dardenne
24 de maio do ano 998 da Segunda Era

Quando Rielle deixou os arquivos da Casa da Noite, na noite


seguinte ao ser pega com Audric, seus olhos ardiam após ler muitos
livros sobre a fisicalidade das sombras e a vida de Santa Tameryn –
tudo tão meticulosamente anotado por Sloane que o tamanho total
das anotações da mulher rivalizavam com os próprios livros.
Os ombros de Rielle doíam; seus nervos pareciam ter sido
cortados e deixados pendurados, desgastados. Ela não conseguia
pensar em nada além do refúgio de seu quarto e do bolo de canela
fresco que Evyline havia prometido que estaria esperando em sua
mesa de cabeceira.
Mas pelo menos agora, com o desafio das sombras em apenas
dois dias, o plano que vinha se formando no fundo de sua mente
havia se solidificado.
Ela fechou as portas do arquivo atrás dela, Evyline e dois outros
de sua guarda a ladeavam, depois se virou – e congelou.
Ludivine estava sentada no corredor em frente aos arquivos, em
um sofá de pés de ferro, franjado com finas borlas escuras. Os
cabelos dourados caíam pelas costas em ondas. O vestido cinza
que ela usava brilhava sob um campo de bordados elaborados,
bordados em azul escuro e azul-avermelhado: cores Sauvillier.
Rielle não conseguia pensar em nada a dizer para cumprimentá-
la, exceto em — Oh.
Ludivine levantou-se, com um pequeno sorriso no rosto e
estendeu a mão. — Ande comigo, Rielle.
— Eu não quero.
Ludivine pegou a mão de Rielle e a passou pela dobra do braço.
— Eu insisto.
Rielle olhou para Evyline, cujas mãos repousavam em sua
espada.
Evyline assentiu sombriamente. Ela e os outros guardas, é claro,
ficariam por perto.
Então Rielle respirou fundo e caminhou com Ludivine escada
abaixo, pelos corredores silenciosos e escuros da Casa da Noite,
até emergir na capela central. Dezenas de fiéis se reuniram em toda
a sala para orar – nas bordas das fontes de mármore preto, nas
almofadas do chão e nos bancos de oração. Alguns se ajoelharam
aos pés da estátua de Santa Tameryn, que ficava no coração da
sala. Com adagas na mão, ela olhava para cima, através das vigas
abertas para o céu violeta cada vez mais profundo.
Na entrada, todos na capela lotada ergueram os olhos e
interromperam as orações.
O silêncio foi ensurdecedor. Os sussurros eram piores.
Rielle plantou os calcanhares, determinada a não dar mais um
passo adiante. — Lu, por favor, não faça isso comigo.
— Oh, venha agora — Ludivine murmurou. — Vamos apenas dar
um passeio. Qual é o mal nisso?
Então Rielle permitiu que Ludivine a conduzisse pela sala. Aos
pés de Santa Tameryn, Rielle e Ludivine se ajoelharam, beijaram
seus dedos, tocaram sua nuca. Ludivine murmurou saudações a
todos por quem passaram. Rielle tentou fazer o mesmo, tentou
sorrir, mas suas palavras soaram estranguladas, e seu sorriso
parecia ter sido fixado em seu rosto como garras.
Uma vez fora da Casa da Noite, Rielle não conseguia mais conter
sua frustração.
— Você não vai dizer nada para mim? — ela sussurrou, enquanto
Ludivine as guiava através de um dos pátios externos do templo.
Flores brancas, seu pólen brilhando de um branco em pó para
combinar com as estrelas, começaram a se abrir ao longo do
caminho pavimentado. — Vamos desfilar pela cidade em um silêncio
constrangedor até eu desmaiar de estresse? Esse é o meu castigo?
— Acalme-se e aja de maneira comum — disse Ludivine baixinho.
Então, mais alto: — Boa noite, Lorde Talan, Lady Esmeé. As flores
brancas não são adoráveis nesta época do ano?
Os cortesãos em questão inclinaram a cabeça, os olhos
disparando entre Rielle e Ludivine enquanto murmuravam breves
saudações e deslizavam através da folhagens. A alguns passos de
distância, Rielle ouviu seus sussurros furiosos começarem.
O calor rastejou pela parte de trás de seu pescoço.
— Apenas um pouco mais longe — disse Ludivine suavemente,
mas só depois de terem passado pelos pátios externos de cada um
dos sete templos que Ludivine finalmente as desviou das estradas
do templo para uma rua lateral estreita.
Rielle se sentiu fraca com o alívio quando passaram para as
sombras dos edifícios de apartamentos que se aglomeravam sobre
suas cabeças.
— E isso não foi punição? — Ela enxugou o rosto com a manga,
sua mão tremendo.
— Não — disse Ludivine calmamente, levando Rielle pela estrada
de paralelepípedos. Manchas de luz suave de tochas de suportes
nas paredes iluminavam o caminho. O primeiro Grão Magister do
Pyre havia, séculos antes, projetado as tochas no distrito do templo
para acender sozinhas ao cair da noite. — Se você parar de entrar
em pânico por um momento, verá que estou tentando ajudá-la. E
por favor, coloque seu capuz.
— Ajudar-me?
— Vimos centenas de pessoas agora — disse Ludivine,
levantando os dois capuzes para cobrir os cabelos. — Mais
importante, eles nos viram. Eles viram duas amigas queridas, de
braços dados, em um passeio pelos jardins. Assim como
poderíamos ter feito em qualquer noite. Mesmo que nos ver juntas
possa reprimir apenas uma pequena fração das fofocas pela cidade
agora, isso já será útil para você, para Audric e para mim.
Ludivine desceu-as por um conjunto de degraus estreitos que
levavam a um bairro mais baixo. Elas mantiveram os capuzes
erguidos e os rostos baixos, evitando o contato visual com os
passantes. Evyline e sua guarda seguiram logo atrás.
— Não sei se meu pai se recuperará do que viu — Ludivine
murmurou, — mas posso ao menos mostrar meu apoio a você, o
mais publicamente e com a maior frequência possível.
— Por que você está fazendo isso? — Rielle viu seus pés
descerem os degraus através de um rio de lágrimas. — Você
deveria me odiar.
Ludivine soltou um suspiro impaciente. — Rielle, olhe para mim.
— Ela as deteve em um patamar silencioso, onde a escada virava
bruscamente para a direita e segurou as duas mãos de Rielle. —
Veja.
Quando Rielle encontrou o olhar calmo de Ludivine, a terrível
reviravolta de dor em seu peito a deixou sem fôlego. — Sinto muito
— ela sussurrou. — Por favor me perdoe.
— Responda-me: você acha que eu amo Audric?
Rielle piscou, pega de surpresa. — O que? Eu…
— Claro que sim. Somos primos e queridos amigos, e eu o
conheço a vida toda. Ele é minha família. Mas eu o amo como
você? Claro que não.
A boca de Rielle caiu aberta. — Eu... Lu, do que você está
falando?
— E eu sei que Audric sente o mesmo sobre mim. Gostaria que
vocês dois tivessem me procurado, para que pudéssemos discutir
tudo isso como pessoas civilizadas, em vez de vocês rolarem
seminus nos jardins para todo mundo ver? Sim, eu gostaria.
Rielle certamente morreria, ali mesmo na escada. — Lu, sinto
muito, sério. Não faço ideia do que aconteceu conosco.
— Claro que você faz. Você está apaixonada por ele, e ele está
apaixonado por você, e vocês estão desesperados para se beijar há
anos. Era apenas uma questão de tempo. Você sabe como foi
cansativo sentar e assistir vocês se mantendo afastados mesmo
tendo sentimentos um pelo outro?
— Ele não está... — Os choques nunca terminariam? — Nós não
somos...
— Por favor. Não poderia ser mais óbvio do que se vocês
rolassem seminus nos jardins, na verdade. Oh. Espera.
— Bem, doces santos, Lu! — Rielle passou a mão na testa. — Por
que você nunca disse nada para nós? Eu não pensei… quero dizer,
eu esperava, mas...
O sorriso de Ludivine era malicioso. — Observar vocês pode ter
sido cansativo, mas também foi divertido. Eu mal pude resistir a
isso. A corte é chata como um discurso na maioria das vezes.
Rielle levantou as mãos. — E você tem esperado para nos contar
a verdade no dia do seu casamento, suponho?
— Oh, eu o teria feito muito antes disso. — Ludivine puxou o
braço de Rielle de volta pelo dela e continuou descendo as escadas.
— Mas por que estragar minha diversão? Embora eu confesse – e
aqui a voz de Ludivine se tornou bastante grave — lamento minha
escolha de não lhe dizer que sabia antes. Eu poderia ter poupado a
todos nós muitos problemas. E agora…
— O que vai acontecer? — Rielle perguntou enquanto desciam
outra rua residencial tranquila. — Agora que seu pai viu.
— Ele falará com o rei, é claro —, disse Ludivine, — e garantirá
que o acordo de noivado permaneça intacto.
A garganta de Rielle se contraiu dolorosamente. — Claro.
— Não espero que ele torne a vida agradável para você. Nem
minha tia, a Rainha.
— Eles já tornaram a vida especialmente agradável para mim?
— Um bom argumento. — Ludivine olhou pela estrada escura,
olhando para cima e para baixo nas fileiras de casas altas de pedra.
— Mas, sério, Rielle... por favor, não teste ninguém, não agora. Não
com as coisas tão tensas e frágeis. Espere até o temperamento do
meu pai esfriar antes de tentar qualquer gesto desafiador.
Rielle olhou de soslaio para Ludivine, seus nervos repentinamente
subindo ainda mais. Ludivine não sabia o plano que ela estava
elaborando para o desafio das sombras, sabia? — O que você quer
dizer?
— Você sabe exatamente o que eu quero dizer. Seja uma
candidata adequada. Obedeça ao Arconte.
— E ficar longe de Audric?
Ludivine virou-se, o rosto cheio de pena. — Eu nunca pediria para
você fazer isso.
— Mas eu deveria — sussurrou Rielle. Sua voz estava tão densa
de tristeza que era difícil falar. — Eu estraguei tudo, não foi?
— Pelo que sei — Ludivine respondeu ironicamente, — beijar
envolve não apenas uma pessoa, mas duas. Se há culpa a ser
colocada, não é apenas sua responsabilidade.
Rielle seguiu Ludivine por um estreito caminho de jardim. Um arco
de pedra repleto de trepadeiras floridas marcava a entrada de um
pátio quadrado e arrumado. Do outro lado do pátio havia uma larga
porta preta com uma maçaneta de latão. Uma placa de prata
manchada pregada na pedra acima mostrava gravuras grosseiras
de um almofariz, um pilão e um conjunto de folhas agrupadas.
Ludivine parou sob o arco.
— Minha querida — ela murmurou, seu olhar suave no rosto de
Rielle, — por favor, não deixe seu coração sofrer. Você mexe
completamente com meus nervos? Sim, todo dia. Mas eu amo você
tanto quanto eu já amei. E vamos encontrar uma maneira de
resolver isso. Não vou ver você viver sua vida com o coração partido
por minha causa.
Rielle a puxou para um abraço tão feroz que derrubou os dois
capuzes. — É possível — ela murmurou — que você tenha me
levado para esta estranha e escura casa no meio da cidade para
acabar comigo?
Ludivine riu. — Depois de todas aquelas coisas legais que eu
acabei de dizer, você tem que estragar o momento.
— Talvez você tenha dito todas essas coisas legais para baixar
minha guarda.
— Um bom plano, mas, infelizmente, isso não é tão emocionante
quanto tudo isso, receio. Trouxe você para o curandeiro de Audric.
— Ludivine saiu de baixo do arco e atravessou o pátio. — Audric
prefere mais ele aos curandeiros de seu pai em Baingarde. Ele é um
bom homem. Discreto, direto. E, por nossa causa, eu gostaria de
saber que, daqui para frente, seu corpo está protegido. Apenas no
caso...
Rielle parou no meio do caminho. — Você me trouxe aqui para
que eu pudesse comprar um tônico contraceptivo.
— Você pensou em comprar um para si mesma?
— Eu... — Rielle corou mais uma vez. — Eu não pensei. Suponho
que ainda estava bastante envolvida com todos os... — Ela
gesticulou, impotente.
— Os beijos? — Sorrindo, Ludivine bateu na porta. —
Compreensível. É para isso que servem os amigos: pensar por você
quando sua mente fica enevoada.
A porta se abriu, revelando um homem mais velho, de rosto e cor
avermelhado, de altura e peso medianos, cabelos castanhos
desgrenhados, barba leve e olhos azuis penetrantes. Ele levantou
uma vela, apertando os olhos.
— Lady Sauvillier. Bom. E… — Ele olhou para Rielle. As
sobrancelhas dele se ergueram levemente. — E a própria candidata
honrada. Que noite para mim. Meu nome é Garver Randell. Garver
é aceitável. Me siga.
Rielle olhou de relance para Ludivine, que escondeu o sorriso
atrás da mão. Direto, de fato.
Ele os conduziu para dentro, através de uma pequena entrada e
entraram em uma sala silenciosa, repleta de prateleiras de frascos,
potes e caixas etiquetadas. Através de uma porta na parede oposta,
Rielle viu uma escada suavemente iluminada e outra sala menor. Os
sons de alguém varrendo e o zumbido alegre de uma criança foram
ao encontro deles.
— Meu filho está por aqui em algum lugar. Ele vai buscar para
você. — Garver encontrou um assento perto do fogo crepitante. —
Se eu tiver que procurar por estas prateleiras mais uma vez hoje,
meus olhos provavelmente sairão de suas órbitas.
— Aqui, pai! — Um menino pequeno correu pela porta iluminada
para a sala principal, com uma vassoura na mão. — O que você
precisa?
— Um pacote de pó contraceptivo para Lady Rielle. — Ele olhou
para ela. — Vou lhe dar para um mês. Você precisará voltar para
obter mais.
Rielle viu os olhos do garoto se arregalarem com a menção do
nome dela.
— Espero, Garver, que eu possa contar com você e seu filho para
serem discretos nesses assuntos — disse ela.
— Você acha que eu estaria no negócio, Lady Rielle — respondeu
Garver suavemente — se eu tivesse o hábito de passear por Âme
de la Terre divulgando notícias sobre os medicamentos que as
pessoas tomam?
— Não — disse Rielle, com alguma dificuldade — suponho que
não.
O filho pequeno de Garver já havia encontrado o pacote em
questão, empacotado em uma caixa pequena e simples e levado
para Rielle.
— Aqui, minha senhora. — Ele levantou a caixa, com as
bochechas vermelhas. — Serão cinco cobres...
— Vou renunciar ao custo desta vez — gritou Garver. — Você se
saiu bem no desafio do metal, Lady Rielle. É o mínimo que posso
fazer.
— Nós estávamos lá — o garoto deixou escapar, parecendo
pronto para explodir. Os olhos dele brilhavam. — No final, com todas
aquelas espadas… Minha senhora, estávamos gritando por você.
Você nos ouviu gritar seu nome?
— Eu ouvi todos. — Rielle pegou a caixa do garoto com um
sorriso. — Obrigada por torcer por mim. Faz toda a diferença do
mundo e me ajuda a não sentir tanto medo. Sinto muito, mas acho
que ainda não sei o seu nome.
— É Simon — disse o garoto, radiante. Ele estava praticamente
dançando na ponta dos pés, tremendo de emoção. — Meu nome é
Simon.
30
Eliana
“Olá de casa, meu amor. Nós comemoramos o
décimo segundo aniversário de Eliana esta
noite. Enquanto escrevo isso, ela e Remy
estão deitados no chão perto da lareira, com
as barrigas cheias de bolo. Eliana está lendo
em voz alta o caderno de Remy enquanto ele
a desenha. Suas histórias são realmente muito
boas para uma criança de cinco anos. Anexei
três para você ler. Embora sintamos muito a
sua falta, estamos todos muito bem. Eliana
fica comigo a maioria dos dias, me ajudando
com meus remendos. Ela é boa com as mãos,
talvez até melhor que eu.”
—Carta de Rozen Ferracora a seu marido, Ioseph
17 de maio, ano 1012 da Terceira Era
Eliana acordou com um suspiro, os cabelos grudados no pescoço e
nos ombros.
Lá se foi esse banho.
— El? — Deitado ao lado dela em sua cama compartilhada, Remy
acordou imediatamente. — O que está errado?
— Nada — ela murmurou, cobrindo o rosto com uma mão trêmula.
— Pesadelo.
O que era verdade. Desde o ataque da Coroa Vermelha ao posto
avançado do Império, o mesmo sonho a atormentava. Tudo
começou com os gritos dos prisioneiros soterrados. Ela procurou
pelas ruínas fumegantes por eles, empurrando montes de
escombros e cavando pilhas de cinzas que cresciam toda vez que
ela as tocava, até que ela estava nadando através das cinzas,
sufocando, enquanto os gritos dos prisioneiros ficavam cada vez
mais altos.
Então seus gritos mudavam.
Eles chamavam o nome dela.
Foi então que ela finalmente encontrou alguém – uma mão fria e
rígida da morte, saindo das cinzas.
Ela puxava e puxava a mão, mesmo sabendo o que encontraria
do outro lado. Mas ela não conseguia parar. Ela não merecia ser
poupada. Então, ela tirou a pessoa do mar de cinzas — e o sonho
terminava quando ela encarava o rosto morto de sua mãe.
— O que eu posso fazer? — Remy se aproximou. — Você quer
que eu conte uma história?
— Acho que preciso dar um passeio. — O quarto que Camille lhes
dera durante a estadia era luxuoso, mas o ar lá dentro estava muito
parado, muito sufocante. Eliana sentiu como se um cobertor pesado
tivesse sido enrolado em volta dela e estava enrolando mais e mais
a cada momento que passava, amarrando seus membros junto ao
corpo.
— Sinto muito — sussurrou. Ela deu um beijo apressado na testa
de Remy, saiu da cama e foi em direção à porta.
— Eu te amo — veio a voz pequena e incerta de Remy.
— E eu te amo — disse Eliana e o deixou, indo para o corredor.
Os apartamentos de Camille eram vastos, um labirinto de quartos,
salas de estar e banheiros revestidos com obras de arte Astavari
que ela havia obtido nos mercados subterrâneos. Se Eliana tivesse
que ir longe, ela poderia ter desistido eventualmente, entrando em
colapso em um amontoado de terrores noturnos até que alguém a
encontrasse pela manhã.
Ela ficou feliz, então, pelo quarto de Navi estar tão perto.
Batendo suavemente na porta, ela tentou reunir seus
pensamentos. O que ela diria? E que direito ela tinha de reclamar a
Navi sobre pesadelos depois de tudo o que tinha feito?
Eu deveria ir embora, Eliana pensou, ainda tremendo com a
terrível persistência do sonho.
A porta se abriu para revelar Navi, desarrumada e com os olhos
arregalados de preocupação.
— Não sei por que estou aqui — começou Eliana. — Não tenho o
direito de pedir nada.
Navi estalou a língua. — Somos amigas agora, não somos? E
você parece terrível.
Navi guiou Eliana para dentro de seu quarto à luz de velas, depois
sentou-se na cama e observou Eliana andar furiosamente.
— Você teve um pesadelo — disse Navi.
Eliana assentiu, sua garganta apertada com lágrimas. — Os
prisioneiros no posto avançado… eu os ouvi gritando por mim. Eu
procurei e procurei, mas não consegui encontrá-los e depois
encontrei... minha mãe. Ela estava morta. — Ela fez uma pausa. —
Todos estavam todos mortos.
— Você nunca teve esses pesadelos com suas vítimas antes?
A simplicidade da pergunta cortou Eliana como uma de suas
próprias facas. — Não. Eu nunca permiti que isso me incomodasse.
Eu não poderia, ou nunca seria capaz de terminar um trabalho. E
então onde estaríamos todos?
— Nenhum membro de sua família parece muito seguro no
momento — ressaltou Navi. — Apesar de tudo o que você fez por
eles.
Eliana riu. — Você está certa. Mesmo com todo o meu trabalho, a
minha mãe ainda se foi, e o nosso pai ainda está morto, e Remy e
eu estamos à mercê das pessoas que costumávamos caçar. E
Harka... — Não podemos ter certeza. Ele ainda poderia estar vivo.
Ela passou a mão pelos cabelos. — Qual é o objetivo disso tudo,
então?
Harkan fez uma pergunta semelhante, no dia da execução de
Quill: Deus nos ajude. El, o que estamos fazendo? Eliana sentia
como se tivessem passado anos e anos entre aquele dia e este. Ela
sentiu cada um deles cavando calorosamente em seus ombros
como dedos se agarrando.
Navi ficou silenciosa por um longo tempo. — Talvez, se nada mais
o que aconteceu ensinou-lhe que há mais na vida – e até mesmo na
guerra – do que simplesmente ficar viva. Talvez este seja o ponto.
— Ela subiu uma palma para o peito de Eliana. — Você está
começando a despertar e lembrar da sua humanidade.
Eliana empurrou Navi longe com uma risada áspera. — Isso exige
muito de mim.
— Você é muito cruel consigo mesma.
— E você não seria?
Navi inclinou a cabeça. — Possivelmente.
— Sou cruel até os ossos. É tudo o que eu sou capaz.
— Eu não acredito nisso. Eu também não acho que você acredita.
— Eu tenho que acreditar! Caso contrário...
Eliana ficou em silêncio. Um pânico terrível assobiou fervendo
logo abaixo de sua pele. Sua respiração veio rápida e superficial.
— Eliana. — Navi pegou as mãos dela. — Por favor sente-se.
Respire.
Mas Eliana se afastou dela. — Parece bobagem, mas... eu
sempre imaginei um monstro morando dentro de mim, em vez de
um coração. E é por isso que foi tão fácil para mim matar, caçar. —
Ela recuou contra a parede oposta. Ela secamente enxugou os
olhos e olhou para o teto. — Esse monstro é a razão pela qual eu
gostei de ser o Terror. Eu disse a mim mesma. Comecei a acreditar
também.
— Monstros não choram pelos mortos — disse Navi — e não se
arrependem.
Mas isso não era confortante. Eliana balançou a cabeça, olhando
para o quarto em um borrão de sombras e luz de velas
tremeluzentes. — Se eu não sou um monstro — ela sussurrou, —
então que desculpa tenho pelas coisas que fiz?
— Eliana, olhe para mim.
Ela obedeceu, percebendo que havia deslizado para o chão
atapetado e que Navi estava agora agachada diante dela,
segurando suas mãos.
— Somos todos criaturas das trevas — disse Navi — mas se
permanecermos nessas sombras, estaremos perdidos. Em vez
disso, devemos buscar a luz quando pudermos, e é exatamente isso
que você está fazendo. Eu vejo isso acontecendo.
— Você acredita com muita facilidade — Eliana murmurou.
— E você não acredita o suficiente.
— A crença não mantém você vivo.
— Mas, com o tempo, pode vencer guerras.
A respiração de Eliana estava fugindo dela. Um calor forte parecia
pronto para explodir em seu peito. — Eu não concordo com você.
— Você não precisa.
— Mas eu quero. Eu costumava ser como você. Como Harkan. —
Harkan, Deus. Ela zombou, enxugando os olhos. — Minhas mãos
de merda não param de tremer. Não posso ficar assim, ou serei
morta, e nunca encontraremos a minha mãe...
As palavras dela falharam. Ela mal podia respirar além do medo
espiralando loucamente através de seu corpo. Ela colocou os
braços em volta das pernas e apoiou a testa nos joelhos.
Então, sentiu um calor e uma mão desenhando círculos lentos
entre as omoplatas. Como Harkan costumava fazer quando tinha
problemas para dormir. Como sua mãe tinha feito quando Eliana
não podia comer por sentir falta do pai. Juntas, sentavam à luz das
velas na casa silenciosa, esperando noite após noite pelo som de
seus passos no corredor.
— Navi — Eliana sussurrou, punhos cerrados. — Eu não sei como
fazer isso.
— Fazer o quê?
Procurar a luz.
Lutar uma guerra sem esperança.
Acreditar.
Ela não respondeu. Depois de alguns instantes, Navi se mexeu,
abrindo os braços, e Eliana a abraçou sem pensar. Ela se escondeu
na frente de Navi e fechou os olhos, ouviu a batida constante do
coração de Navi e a expiração e inspiração dos pulmões dela.
Lentamente, a tensão que unia seus músculos começou a
diminuir.
— Conte-me sobre sua mãe — disse Navi.
A mãe dela. Eliana fechou os olhos.
Uma lembrança veio à tona, rápida e dolorosa: os braços de sua
mãe em volta dela, Eliana aninhou-se em seu colo enquanto Rozen
guiava seus dedos minúsculos pelo rosto de seu colar.
— Você sempre amou essa coisa feia e velha — Rozen disse a
ela — desde o dia em que o encontramos. Você amou tanto que
finalmente parou de gritar comigo e me deixou dormir a noite toda.
Contanto que você o segurasse, dormia por horas.
Eliana riu, corando com o pensamento. Ela passou os dedos pela
superfície áspera do colar. — O que isso significa?
— É uma gravura do Portador da Luz. Você se lembra dessa
história?
— Ele era um grande rei — Eliana sussurrou, os olhos
arregalados enquanto traçava os os arcos das asas do cavalo e a
figura enegrecida nas costas. — E isso... como se chamava?
Eliana olhou para a mãe, franzindo o nariz.
Rozen riu. — Uma besta divina. Quando o mundo era muito, muito
jovem, essas criaturas vagavam pelos céus, pelas águas e pela
grande terra verde. Este foi chamado de...
— Pégaso — respondeu Eliana, radiante. — Eu me lembro agora.
— Ela levou o colar aos lábios e beijou o cavalo no nariz. — Esse é
o meu favorito.
Nos braços de Navi, Eliana balançou a cabeça. A dor cortando
através do coração. — Eu não posso. Ela não. Eu...
Lembrou-se do grito desamparado de Linnet: Mamãe?
Se ela soubesse o que aconteceria, nunca teria caçado o Lobo.
Ela teria subido na cama da mãe e a abraçado todas as noites. Ela
teria se movido apenas para estripar as pessoas que ousavam
tentar roubar Rozen dela.
— Tudo bem. — Navi acariciou seus cabelos. — Conte-me sobre
Harkan, então.
— Bem. Ele não era meu único amante, mas era o melhor. Exceto
por essa mulher Alys, que trabalhava nos aposentos vermelhos de
Brightwater. Deus, ela me fez desmaiar algumas vezes...
— Não, Eliana — Navi repreendeu gentilmente. — Diga-me algo
real.
Por um longo tempo, Eliana não falou. Em vez disso, ela deixou o
ritmo dos dedos de Navi acariciando seu couro cabeludo persuadir
sua respiração lenta e silenciosamente.
— Por que você está me ajudando? — Eliana perguntou
finalmente.
— Porque eu também tenho pesadelos — respondeu Navi. — E
estou feliz pela companhia.
Eliana hesitou, depois encontrou a mão de Navi e apertou-a com
força.
— Algo real — disse ela. — Harkan sonhava que todos nós um
dia pudéssemos escapar para Astavar. Ele ia me ensinar como
cultivar tomates e me fazer usar um chapéu de palha.
A risada de Navi chocou Eliana, fazendo-a sorrir. Ela apertou os
dedos de Navi, fechou os olhos e falou de Harkan até o sono as
reivindicar.

•••

A manhã chegou. Elas se mudaram para a cama de Navi durante a


noite e, embora a princípio Eliana estivesse no emaranhado suave
dos membros sonolentos de Navi com uma sensação de
contentamento raro e absoluto, isso não durou muito.
Logo ela se lembrou: Ainda há uma guerra. Astavar ainda pode
cair. Mãe ainda está desaparecida. E eu...
Ela saiu da cama, olhou mais uma vez para a forma imóvel de
Navi, depois para o quarto.
Eu ainda sou... o que eu sou. Anjo? Humano? Marque?
Monstro?
Um buraco escuro se abriu dentro dela, toda dúvida e maldade,
afastando lentamente a paz tranquila que a noite trouxera. Ela foi
para a cozinha. Ela iria comer, decidiu, e se espreguiçaria, depois
encontraria Simon e exigiria que passassem a manhã lutando.
Seguindo pelo corredor mal iluminado, ela sorriu ao imaginar seus
punhos batendo no peito de Simon. Ele dava uma ou duas boas
pancadas, mas ela logo se recuperava. Ele se esquivava de suas
lâminas; ela o apanhava pelo braço, fazia-o amaldiçoá-la...
Eliana dobrou uma esquina e deu de cara com Camille.
A mulher fez uma careta em saudação. — Terror.
Eliana passou por ela. — Camille. Eu estava apenas...
Mas Camille a deteve, com a mão no pulso.
A cabeça de Eliana se virou para encará-la. — Me solte de uma
vez.
— Ou o que? — Camille olhou-a de cima a baixo com um sorriso
de escárnio. — Você vai me matar, como já matou tantos outros?
Eliana buscou por uma resposta cortante e não encontrou
nenhuma. A exaustão repentina se estendeu dos ombros até os
dedos dos pés; a paz da noite anterior sangrou com a respiração
dela.
— Não tenho vontade de matar você — disse ela, enfim.
Camille a observou através dos olhos estreitados. — Onde está
seu irmão?
— Ele está dormindo.
— Por que você não está?
Eliana encolheu os ombros. — Pesadelos.
Depois de um longo momento, Camille a soltou. — Eu pensei que
você me atacaria por tocar em você.
— Há outros que eu prefiro atacar mais.
Camille assentiu e olhou para o corredor sombrio. Tudo estava
quieto. — Eu tenho essa garota que trabalha para mim — ela
começou lentamente. — Laenys é o nome dela. Ela veio de
Vespers. As ilhas caíram em desespero. Não há trabalho, pouca
comida. Ela saiu, veio para cá. Uma trabalhadora esforçada,
Laenys. Ela nunca reclamou.
— E você está me dizendo isso por quê?
Camille a observou por mais um momento. — Eu ouvi muitas
coisas sobre você, Terror. Que você é um animal de estimação do
Império, por exemplo.
Eliana riu e desviou o olhar, os olhos ardendo. — Normalmente,
os animais de estimação são apreciados, não são? — Ela precisava
colocar um pouco de comida em seu corpo, liberar a traiçoeira
sensação de tempestade em seu peito.
— E — continuou Camille — que você é invencível.
Eliana olhou para ela bruscamente. — E agora você gostaria de
testar a verdade desse boato, é isso? Abra-me e veja o que
acontece?
— Não. Tenho um emprego para você, se aceitares.
— Estou no meio do último emprego que aceitei — lembrou
Eliana. — Simon não gostaria que você me roubasse dele.
— E se o meu trabalho pudesse levá-la à sua mãe mais cedo do
que Simon?
A mão de Eliana voou para Arabeth no quadril. — Cuidado,
Camille — disse ela suavemente. — Este é um terreno perigoso em
que você está pisando.
— Laenys foi levada alguns dias atrás. Quero que descubra quem
a levou e a traga de volta.
Levada. Assim como minha mãe? Eliana enrijeceu, seu coração
batendo forte. — O que aconteceu com ela?
— Eu não sei. — A boca de Camille se afinou. — Eles vêm à
noite. Eles vêm a cada sete dias. Eles se chamam Fidelia. Essa é a
palavra que ouvi sendo usada. As pessoas sussurram como
costumavam falar do Império antes da invasão.
— Então o que são? Uma facção formada por uma pequena parte
da Coroa Vermelha?
— Eu só ouvi rumores. — Um lampejo de incerteza passou pelo
rosto de Camille. — Você vai pensar que não faz sentido.
— Eu não vou. Fale logo.
— As pessoas dizem que Fidelia... — Camille passou a mão pelo
cabelo preto curto. — Eles são amantes de anjos, já ouvi dizer. Eles
acreditam que o imperador e seus generais não são homens, mas
anjos. Eles caçam para servi-los, para que possam ser elevados à
glória quando o mundo for conquistado e os anjos governarem tudo.
— Ela zombou. — É idiota, eu sei, mas não é tudo assim hoje em
dia?
O horror passou friamente pela espinha de Eliana. Remy poderia
realmente estar certo?
Camille continuou. — Não percebemos por um tempo que as
pessoas estavam desaparecendo. Rinthos está tão lotado que
alguém pode desaparecer por dias antes que você perceba que eles
se foram. No começo eles só pegaram uma. Depois mais algumas.
Então muitas. As pessoas começaram a perceber. E ainda assim
não vai parar. — Camille respirou fundo levemente. — A cada sete
dias, as meninas estão desaparecendo. E as mulheres também.
Velhas, jovens, ricas, pobres. Principalmente pobres. — Sua voz
adquiriu um tom amargo. — Ninguém sente falta delas, você vê.
Eliana não conseguiu mais ficar calada. — Minha mãe foi levada
assim de Orline.
Camille assentiu sombriamente. — Foi o que eu ouvi dizer. Faz
uma semana desde a última capturada. As pessoas têm sussurrado
sobre isso a manhã toda, lá em cima.
Eliana pensou rapidamente. — Existe um padrão para os
desaparecimentos? Um lugar de onde são tiradas mais meninas do
que outras?
— Laenys desapareceu lá embaixo, no chão de combate. Faz
uma semana agora. Estávamos voltando do mercado e dobramos a
esquina. Senti algo–um movimento, uma frieza–e me virei, e…
— E ela se foi?
Camille desviou o olhar, punhos enrolados ao lado do corpo e
olhos brilhantes. — Eu não entendo isso. Por que apenas garotas?
Para onde eles as estão levando?
As mesmas perguntas que me fiz semanas atrás, pensou Eliana,
em Orline.
— Eu não sei — disse Eliana, os dedos se curvando ao lado de
uma adaga invisível. Fidelia. Ela esculpiria a palavra na testa deles,
direto no osso. — Mas eu vou descobrir. E eu vou fazê-los pagar.
Camille observou-a das sombras. — Se eu ajudar você a escapar
de Simon, você fará? Hoje é o sétimo dia. A noite cairá e, de manhã,
mais meninas terão desaparecido.
— Então, quando a noite cair — disse Eliana, com uma carícia
amorosa no punho de Arabeth — eu irei caçar.
31
Rielle
“Não tenho medo da escuridão
Não tenho medo da noite
Peço às sombras
para ajudar na minha luta”
—O Rito das Sombras
Como proferido por Santa Tameryn, a Astuta, santa padroeira de
Astavar e dos shadowcasters.

Rielle estava no meio das Planícies, quando a primeira explosão da


trompa do desafio das sombras ecoou em seus ouvidos.
Suportes de madeira, cobertos com as cores preto e azul da Casa
da Noite, criavam um vasto círculo ao redor de onde ela estava
sozinha na sussurrante grama alta, encoberta e encapuzada.
Esperando.
Doze plataformas ao redor do perímetro do círculo se elevavam
acima do solo. Um shadowcaster permanecia solene e sombrio em
cada um, com rostos mascarados e receptáculos nas mãos.
A segunda chamada da trompa ecoou pelas Planícies.
Rielle se libertou de sua capa, deixando-a cair no chão.
A multidão reunida perdeu a cabeça. Seus aplausos explodiram e
eles se levantaram como um só para bater os pés e gritar o nome
dela. Rielle levantou os braços para reconhecê-los, e seus gritos se
tornaram um rugido.
Ela estava preocupada que, dada a fofoca atual, a recepção
pudesse ser diferente para este desafio.
Mas, pelo contrário – o povo de Âme de la Terre agora parecia
adorá-la ainda mais.
Ajoelhou-se na direção da Casa da Noite, para fazer uma rápida
oração a Santa Tameryn, e não conseguiu esconder o sorriso.
Ludivine realmente se superou com esse traje. O corpete
confortável de veludo preto do vestido era de costas nuas,
escandalosamente baixo na frente. O decote mergulhava entre os
seios e quase alcançava o umbigo. Uma rede fina feita de renda de
ébano em espiral, tão sutil que parecia de perto um véu de sombras
em vez de tecido, brilhava em sua pele exposta e mantinha o
vestido no lugar. Flutuando em torno de suas pernas quando ela se
movia, havia uma linda saia de incontáveis camadas de preto, azul-
meia-noite, prata-seda, chiffon e renda de Astavari. Ludivine tinha
pintado minúsculas estrelas prateadas nas bochechas e
sobrancelhas de Rielle, aumentando os olhos com delineador.
Ela era a própria noite renascida na terra, uma rainha envolta em
sombras.
E a melhor parte ainda estava por vir.
Os shadowcasters levantaram as mãos enluvadas para o céu,
com os receptáculos nas mãos.
Rielle ficou com a cabeça inclinada, os braços lançados atrás dela
como asas rígidas. Seu sangue correu selvagem dentro dela.
Foi para isso que eu fui feita. O pensamento surgiu tão
naturalmente quanto a respiração. Ela flexionou os dedos, sentiu o
poder acumular calor em suas mãos. Não, não calor – vitalidade.
Seu poder não era uma coisa intangível, um truque da mente. Era o
poder do próprio mundo – e tudo o que vivia dentro dele.
E só eu, ela pensou, posso dizer o que fazer.
Uma agitação surgiu no fundo de sua mente. Familiar e
encantada.
Ela ficou rígida. Corien?
A trompa soou pela terceira e última vez.
Os shadowcasters começaram.
Espirais de escuridão disparam assobiando de seus receptáculos
como cobras, depois se espalharam pelo céu para formar uma
cúpula de sombras. A escuridão caiu sobre a grama. Apenas alguns
buracos espalhados na cúpula permitiam a passagem de colunas de
luz solar, iluminando as Planícies para que a multidão pudesse ver.
Seus gritos de alegria se transformaram em zombarias.
Rielle sentiu a coragem aumentar rapidamente e sem medo no
peito. Nesse lugar, ela era a heroína deles e os shadowcasters, o
inimigo.
Com a cúpula no lugar acima, os shadowcasters deram o próximo
passo. Eles baixaram seus receptáculos para apontar-lós
diretamente para Rielle – e soltaram seus monstros.
A coragem de Rielle desapareceu tão rapidamente quanto havia
chegado.
A magia que vivia nas veias dos shadowcasters lhes dava o poder
de imbuir a escuridão com a fisicalidade, com peso, astúcia e voraz
vontade. As sombras correndo para Rielle através da planície
esculpiam novos caminhos no chão. As sombras assumiam a forma
de leopardos pretos com chifres e lobos alados, ursos com espinhos
pontiagudos e grandes falcões que respiravam fogo escuro. A cada
passo, sugavam o ar para fora das Planícies até que Rielle era
forçada a cambalear, ofegando, de joelhos.
Um falcão a alcançou primeiro, mergulhando sobre sua cabeça. O
frio agitava as pontas dos cabelos e cobria o couro cabeludo. Ela
respirou fundo após um suspiro ganancioso, mas o ar estava
ficando mais fino, quebradiço. O falcão agarrou seu pescoço,
apertando com penas duras e finas que cortaram linhas em sua
pele. O urso com espinhos deslizou até parar aos seus pés. Uma
enorme pata escamada a atingiu no rosto e a derrubou no chão.
E ela não fez nada.
Com a cabeça girando, ela os deixou vir.
Doces Santos, ela pensou freneticamente, espero que funcione.
O lobo alado saltou, latindo, contra seu peito. Uma vez que a
tocou, o lobo se transformou em um véu disforme que envolvia sua
cabeça e boca, até que ela teve que arranhar seu próprio rosto para
respirar. Suas unhas perfuraram sua pele, tirando sangue. Pedaços
de sombra caíram ao seu toque, deformados e murmurantes, antes
de se dissolver no chão e se transformar em um bando de flechas.
Um medo frio bateu em seu peito. O desafio de metal. Piada de
algum shadowcaster, ela supôs.
A chuva de flechas a perfurou como agulhas, do couro cabeludo
até o tornozelo. Elas se levantaram, vibrando com intenção furiosa,
depois caíram sobre ela novamente. E de novo. E de novo.
Ela fechou os olhos com força, pingando suor e riachos de seu
próprio sangue, e deixou os animais das sombras se aglomerarem
sobre ela, deixando-os beliscar, agarrar e sufocar. Uma ratazana
negra e cintilante forçou seu caminho para dentro da boca dela. Ela
engasgou com o frio congelante de seu corpo, lutou contra o desejo
de vomitar quando o rato se dissolveu e se espalhou pelo sangue
em uma onda de frio.
Lágrimas vazaram de seus olhos. Seu corpo vibrou com a
necessidade de lutar.
Mas ela ficou esparramada no chão, inerte e desamparada.
Distante, ela ouviu a multidão gritar por ela, seus gritos ficando
histéricos de medo.
Você tem algo planejado, observou Corien, curioso. Diga.
Você não pode dizer? ela conseguiu, embora até seus
pensamentos fossem irregulares e sem fôlego.
Eu poderia sim. Mas sinto vontade de ser surpreendido.
Você verá em breve.
Ele sorriu para ela. Ela viu um lampejo de um rosto pálido e bonito
diante de suas pálpebras fechadas. Você está feliz em me ver.
Ela soltou uma risada pequena e chorosa. eu pensei que você
tinha me deixado para sempre.
Nunca, Rielle. Lábios macios roçaram sua testa; uma mão
segurou seu rosto, guiando-a. Nunca.
Ela virou o rosto para ele, a salvo no refúgio de seus
pensamentos. As sombras rasgantes, a multidão que gritava, o
plano que ela projetara – todos desapareceram. Havia apenas
Corien e seu próprio corpo e o poder se contorcendo para se libertar
dentro dela.
Sua boca roçou contra a dela, lenta e casta. A mão dele percorreu
o comprimento de sua espinha, puxando-a do chão frio.
Agora, ele disse, sua voz tensa e rouca. Levante-se. Faça ele se
arrepender.
Ele. O Arconte.
Você trapaceou, ela pensou, sorrindo. Eu pensei que você queria
ser surpreendido.
Eu não posso resistir a você, ele respondeu. Não a você, nem a
sua mente fenomenal.
Os olhos de Rielle se abriram. Ela respirou o mais profundamente
que pôde. Então ela estendeu as mãos pelo chão lamacento, abriu
os olhos para olhar as colunas de luz do sol atravessando a cúpula
acima.
— Com o amanhecer eu levanto — ela rezou. Então, curvando os
dedos na terra — Com o dia, eu brilho.
E em um instante brilhante, todos os raios de sol à vista caíram do
céu e correram pelo chão como relâmpagos até seus dedos.
Ela juntou a luz entre as mãos, faminta por seu ardor, encantada
com a forma como chiou em sua pele. Seus olhos puderam ver e
não ao mesmo tempo, vidrados com uma fome que fez seu peito
zumbir de necessidade. Ela piscou; o mundo estava dourado com
inúmeras ondas de ouro cintilante.
A respiração dela ficou presa na garganta. O empirium.
Ela piscou novamente. O mundo escureceu.
Ela apertou as palmas das mãos e as jogou contra a terra.
Uma explosão ofuscante disparou de onde ela se ajoelhou na
terra, rasgando os monstros dos shadowcasters. Os próprios
shadowcasters caíram de suas plataformas. A cúpula acima
desapareceu. Crepitantes, pedaços pretos de sombra caíam no
chão.
Quando a escuridão se dissipou, Rielle ficou sozinha, com a pele
ensanguentada, o lindo vestido rasgado em pedaços, mas as costas
retas e a cabeça erguida.
E ela brilhou.
Uma onda de choque rasgou a multidão. O chão sob os pés de
Rielle vibrava com o peso de seus gritos, seus pés batendo, seus
punhos agitados.
Rielle! eles gritavam. Rielle! Rielle!
E então, outro rugido, superando o primeiro: Rainha do Sol!
Rainha do Sol!
Os alfaiates de Ludivine passaram horas costurando pequenos
espelhos no vestido de Rielle, nas camadas de sua saia, ao longo
das fitas amarradas em seus cabelos e através das rendas que
estavam flácidas contra a pele encharcada de suor.
E agora, Rielle não apenas havia chamado a luz do sol para
destruir seus inimigos e aniquilar a escuridão.
Ela havia contornado seu próprio corpo, com a luz presa a brilhar
em seus espelhos. Centenas de explosões de sol flutuantes
alinhavam em seus braços, pernas e cabelos, brilhando entre seus
seios e ao longo das bainhas rasgadas de seu vestido.
Era um visual inspirado na armadura do próprio Portador da Luz.
E ela era a Rainha do Sol: radiante e imparável.
Ela girou em um círculo, suas saias rasgadas voando, e
chamando cada pedaço morto de sombra para ela. Seu poder
deslizou pelo chão como línguas. Ela girou as mãos no ar, criando
uma forma a partir das sombras, como um escultor faria em seu
barro, depois girou bruscamente nos calcanhares e enviou sua
criação voando direto para o Arconte.
Era um dragão – da metade da altura da torre do Arconte no
Templo Superior. Suas asas pontiagudas mediam trinta metros.
Dentro de suas mandíbulas, contorcia-se um ninho de cobras
negras. E sua pele brilhava não com escamas, mas com as formas
lamentáveis de todas as bestas derrotadas que os shadowcasters
enviaram voando diretamente para Rielle.
Eles serviram o dragão. E agora o dragão a servia.
Gritos de terror e prazer explodiram na multidão.
Os shadowcasters se levantaram cambaleando, procurando os
receptáculos, gritando por socorro.
O Arconte levantou-se para ficar na beira de sua cabine, de mãos
vazias e indefeso.
Rielle rasgou as mãos de volta pelo ar.
O dragão congelou, seus dentes estalando diante do rosto do
Arconte. Suas asas pesadas batiam com estrondos barulhos altos e
baixos, como tambores distantes.
Rielle inclinou a cabeça. E então, movimentou os dedos.
O dragão abriu bem os maxilares. Sete cobras com capuz, que se
moviam a cada rajada de vento, saíam de sua boca para provar a
pele de papel do Arconte com suas línguas.
Eu poderia matá-lo, pensou Rielle. Agora mesmo. Eu poderia
fazer isto.
Você poderia, Corien concordou. Mas você vai?
O chão deslocou-se. O peso do dragão foi puxado nas pontas dos
dedos dela. A terra sob os pés, o ar acima e a luz que brilhava em
sua pele esperavam tensos.
O que ela pediria a eles?
Qualquer que fosse a demanda, eles obedeceriam.
Ele obedeceria.
O empirium. Rielle estremeceu. O prazer derramou em seu corpo
em ondas formigantes, levantando todos os pêlos finos de seu
corpo. Isso espera por mim.
Agarre-o. A voz de Corien veio urgente e quente em seu ouvido.
Pegue para si mesma. Ninguém mais pode fazer isso além de você.
Você sabe o que você poderia conseguir, As respostas que você
pode encontrar, os mundos que você pode construir...
Então, surgiu um flash de cor dourada, seguido de verde: o cabelo
de Ludivine. O manto de Audric. Eles estavam correndo pelas
escadas da cabine real. Rielle pensou, de fato, que os ouviu
chamando por ela, mesmo através das Planícies e através do
barulho da multidão.
Ela piscou, recuou e abaixou o braço. O dragão, esperando lá em
cima, deslocou-se.
Não dê ouvidos a eles, Corien sibilou. Eles não serão seus amigos
por muito mais tempo. Você não vê? Eles não entendem e nunca
entenderão. Mate ele. Faça-os entender.
Não assim, ela pensou finalmente com uma pontada de
arrependimento – e uma onda de alívio. Agora não.
Ela abaixou o braço dolorido e apertou o punho. Com uma rajada
de vento frio e um gemido baixo e cansado, o dragão se apagou.
Rielle caiu de joelhos, apoiando-se no chão com mãos trêmulas.
Uma aparição brilhou em sua visão, aguada e pouco clara:
Corien. Bem perto. E com raiva.
Ele caminhou em direção a ela, puxando o corpo dela contra o
seu.
É isso mesmo que você quer? ele murmurou. Ela piscou e ele se
foi, embora ela ainda pudesse sentir seu aperto firme. Ela piscou
novamente; ele voltou, seu olhar furioso nos lábios dela.
Eles são o que você quer? Ele apontou a cabeça para trás, para o
fluxo de figuras correndo em sua direção através das Planícies.
Corien a fez olhar para ele. Ele passou os dedos nos cabelos
dela, puxou a cabeça dela gentilmente para trás, de modo que a
garganta dela estava à mostra. Os lábios dele deslizando em sua
pele.
Eles não são nada, ele disse a ela, com sua voz rica e baixa. E
você é tudo. O que devo fazer para que você entenda isso?
Por um momento, Rielle fechou os olhos e se entregou ao seu
sonho, presa no lugar inconstante entre a sólida realidade das
Planícies e onde quer que fosse o lugar do mundo em que Corien
realmente estivesse.
Então ela virou o rosto e fechou os olhos.
Me solte, ela sussurrou.
Ele fez de uma vez. A visão desapareceu, e tudo o que restava
dele era um eco de seu toque em seus braços e uma voz sombria
zombando em sua mente:
Nem sempre serei tão paciente assim, Rielle.
Isso a fez estremecer. Ela abriu os olhos e observou a multidão
que se aproximava. Você fará o que eu digo, ela respondeu – e
depois tentou não pensar muito no arrepio tímido que roçou suas
garras em sua pele quando Corien não respondeu.
32
Eliana
“Foi ao passar por Rinthos da costa leste que
minha filha desapareceu. Eu ouvi falar desses
desaparecimentos. Mesmo na natureza,
existem ondulações. Eu pensei, certamente,
que isso não iria acontecer conosco. Já não
sofremos o suficiente? Mas esses raptores
não têm coração, nem piedade. Sem almas.
Ouvi rumores sobre o que é feito a elas, essas
meninas desaparecidas, e espero que minha
filha esteja morta em segurança.”
—Coleção de histórias escritas por refugiados na ocupada
Ventera
Curadoria de Hob Cavaserra.

Mais tarde naquela noite, Eliana esperou até ouvir a ligeira batida de
Camille na porta do quarto, depois saiu de baixo do braço de Remy,
arrancou as adagas do chão e entrou no corredor.
Camille esperou, com o rosto carregado e tenso. — Você está
pronta?
— Estou aqui, não estou? Lidere o caminho.
Elas se moveram silenciosamente em direção à entrada da frente.
Eliana colocou Arabeth no coldre do quadril, enfiou Whistler no que
estava debaixo da manga esquerda e Nox na bota esquerda, depois
enfiou Tuora e Tempest nos bolsos internos de sua jaqueta.
Na porta que dava para o Santuário, Camille a deteve. — Não
posso dar-me o luxo de perder mais alguém do meu pessoal. Se te
meteres em problemas por aí esta noite, estás por tua conta a risco.
Eliana assentiu uma vez. — E se eu não voltar?
A expressão de Camille suavizou um pouco. — Vou dar ao seu
irmão sua mensagem. Não se preocupe, Terror.
— Eu nunca me preocupo se posso evitar — respondeu Eliana
suavemente, então saiu pela porta e ouviu Camille fechá-la e trancá-
la atrás dela.
Ela rastejou pelo corredor atapetado e entrou no amplo mezanino
do terceiro andar do Santuário. Imediatamente, o fedor do mundo
fora dos apartamentos de Camille tomou conta de Eliana – o fedor
quente de corpos sujos, cerveja derramada, pratos de comida
deixados para azedar. Às nove e meia, o Santuário se arrastava
com centenas de almas buscando distração do mundo lá em cima, e
a noite apenas começara.
Duas mulheres brigavam em uma das gaiolas de combate. Um
barulhento jogo de cartas ocupava metade do segundo andar, os
espectadores gritando suas apostas enquanto os jogadores
jogavam dados em nuvens de fumaça. Entre dois pilares em um
canto escuro, duas figuras seminuas se contorciam contra a parede.
Eliana passou por todo o terceiro andar, que abrigava dezenas de
outros apartamentos além dos de Camille. No quarto andar, portas
com cortinas vermelhas e franjas de contas abriam caminho para
um bordel, do qual flutuavam sons de música estridente e risadas
desenfreadas. A bílis de Eliana subiu ao receber olhares tímidos dos
meninos com coleiras em volta do pescoço, os gritos distantes e
lamentosos que delimitavam a linha entre prazer e dor.
Ela correu pelo quinto nível, depois voltou ao segundo e ao
primeiro. Lá, o barulho das lutas de boxe – socos, aplausos e gritos
de obscenidades – abafou todas as conversas mais silenciosas.
Eliana não podia se mover sem esbarrar contra um estranho. Gotas
quentes de suor das gaiolas e dos espectadores gritando
espalharam-se por seus braços.
Se Fidelia quer arrebatar garotas invisíveis, Eliana pensou, este é
o lugar para fazê-lo.
Ela foi direto para o bar e colocou três moedas de cobre no
balcão. — A melhor cerveja que você tem.
O barman torceu os lábios. — Não temos nenhuma cerveja boa.
Eliana sorriu, jogando o casaco de lado para mostrar a lâmina
brilhante de Tuora. — Encontre-me um pouco. Rapidamente.
O barman suspirou e revirou os olhos. Mas ele fez o que ela
pediu, deslizando uma caneca de cerveja suja sobre a bancada com
um toque de desdém no pulso. Ela pegou a caneca, jogou outro
cobre para ele porque estava se sentindo generosa e se afastou.
Eliana levou a caneca aos lábios enquanto caminhava. Após o
primeiro gole, sua boca ficou tensa de nojo. O barman não mentiu; a
bebida tinha gosto de mijo.
Ela deslizou em uma cabine estreita de madeira contra a parede
oposta, as costas das bancadas altas e privadas.
Já havia se passado uma hora desde que ela deixara os
apartamentos de Camille e, apesar de toda conversa sobre o medo
de Fidelia correr solta em Rinthos, Eliana não viu nada digno de
atenção. A cabine sombreada era um lugar tão bom quanto
qualquer outro para se sentar e observar, normal e despercebida,
até que ela se tornou parte da sala tanto quanto os móveis antigos e
sujos.
Às vezes, ela pensou, o caçador não deve rondar, mas sim
esperar. E assistir.
Ela deslizou para baixo em seu assento, apoiando as botas em
cima da mesa. Era bom trabalhar de novo, instalar-se e observar as
engrenagens sujas do Santuário girarem ao seu redor. Desde seu
bombardeio, ela se sentiu diferente de si mesma, sacudida e
desequilibrada. Mas isso... isso era familiar.
Era um bom local: ela ainda podia ver o bar, as lutas de boxes e
pelo menos uma das entradas do Santuário, embora não fosse a
que eles haviam passado dois dias antes. Ela imaginou que deveria
haver todo tipo de buraco de rato para entrar e sair de um ninho tão
vil. Há 20 metros de distância, uma mulher de pele marrom
meditava sobre a caneca. Há duas mesas adiante e à esquerda, um
grupo de homens e uma mulher pálida com tranças negras
selvagens uivavam de tanto rir.
À direita de Eliana: um homem de pele de ébano e uma mulher
sardenta, estavam terminando tigelas de ensopado. Uma das brigas
terminou. Uma multidão cantando levantou o vencedor
ensanguentado até os ombros e começou um desfile improvisado.
Eliana tomou outro gole de sua bebida, os olhos vagando pela
sala escura e cheia de gente sobre a borda da caneca – e então
congelou.
Ela piscou algumas vezes, como se tentasse clarear a visão de
um pontinho. Uma pressão repentina e pesada a prendeu no banco,
fazendo a cabeça girar. Uma sensação de injustiça encheu o ar, um
leve cheiro azedo, como se alguém tivesse estalado um chicote de
má intenção através da sala.
Um calafrio percorreu seu corpo.
Lembrou-se daquele sentimento, daquele perfume, de Orline – da
noite em que tentara salvar a criança sequestrada e da noite em que
sua mãe desapareceu. Era mais violento agora, o sentimento. Mais
perto. Urgente. Ela agarrou a borda da mesa, lutando contra o
desejo de deitar a cabeça na madeira. O mundo oscilou, torto.
Debaixo da mesa, Eliana encontrou Arabeth e se sentiu um pouco
melhor quando seus dedos envolveram o punho da adaga.
O frio em seus ombros se tornou uma pontada aguda de aviso.
Ela forçou o olhar.
A mulher que estava sentada sozinha, franzindo a testa por causa
de sua bebida, se foi. Sua cerveja estava derramada sobre a mesa,
pingando no chão. Sua caneca rolou até parar debaixo da cadeira
em que ela estava sentada.
Mas ela poderia simplesmente ter deixado a mesa.
Com a boca seca, o coração batendo forte, Eliana rapidamente
correu de volta pelo caminho das pessoas que observara apenas
alguns segundos antes, antes que o mundo mudasse.
A mulher de tranças negras se fora. O homem que estava sentado
ao lado dela deu um tapa na cadeira vazia, enxugando lágrimas dos
olhos enquanto um dos bêbados vomitava.
E o homem e a mulher que estavam terminando o ensopado – o
homem agora estava sentado sozinho, com a cabeça na tigela
enquanto bebia as últimas gotas da refeição. A tigela da mulher
bateu no chão e quebrou; o homem olhou para ela, franzindo a
testa, confuso, depois esticou o pescoço para espiar pela multidão.
Três mulheres, todas desaparecidas em questão de segundos.
Três mulheres se foram como sua mãe.
Eliana lambeu os lábios, seu sangue quente estava zumbindo. Ela
desembainhou Arabeth e levantou-se.
Eles estavam aqui. Fidelia.
Eles vêm à noite. Eles vêm a cada sete dias.
Eliana se levantou, deslizou pela multidão o mais rápido possível,
sem chamar a atenção, examinou a sala. Ela deixou seus olhos
desfocarem.
Lá.
À sua direita, uma figura sombria e encapuzada se movia
rapidamente pela sala. Eliana pensou ter visto outra pessoa ao seu
lado. A mulher que bebia sozinha? Mas assim que Eliana tentou se
concentrar nessa forma específica, sua visão se inclinou.
Ela se apoiou com força contra um pilar próximo – pegajoso e
coberto de sujeira – quando uma onda de náusea a atravessou. Ela
rangeu os dentes, empurrando o enjoo. A figura estava se movendo
em direção à parede oriental. Se ela não se mexesse rapidamente,
perderia a pista.
Uma mão agarrou seu pulso. — Indo para algum lugar?
Eliana virou-se para encarar Simon. — Deixe-me ir, ou vou perdê-
los.
— Quem? — Ao lado de Simon, Navi espiou por baixo do capuz.
— O que está acontecendo?
— Em um momento atrás essas mulheres estavam lá, bem na
minha frente, e no próximo... — Eliana cambaleou contra Simon
quando o sentimento de mal-estar voltou. Ele a pegou pela cintura,
impediu-a de cair. — Deus, isso é irritante — ela reclamou, com
lágrimas nos olhos. — Não consigo pensar por dois segundos sem
me sentir mal. O que essas pessoas estão fazendo comigo?
Simon olhou atentamente para o rosto dela. — Quem? Alguém
está te machucando?
— Fidelia. — Ela se inclinou contra o comprimento sólido de seu
peito, de repente feliz por ele estar lá. Se ele não tivesse vindo, ela
teria caído igual uma pilha no chão. — Camille disse que eles levam
mulheres, e meninas, assim como as pessoas em Orline. Pelo
menos, eu acho que eles são todos os mesmos. Adoradores de
anjos, disse Camille. A cada sete dias. Eu ia ajudá-la a encontrar
essa garota que trabalhava para ela. Depois, eles vieram. Eles
estão aqui. Eles levaram três mulheres em questão de segundos.
Eu não entendo.
O olhar azul penetrante de Simon estava focado em seu rosto. —
Você disse que estão fazendo algo com você. Explique. O olhar azul
penetrante de Simon estava focado em seu rosto.
Ela lutou fracamente para se libertar dele. — É muita coisa para
explicar, tenho que encontrá-los.
— Negativo. Vamos voltar para a casa de Camille, e depois de a
desmembrar por te ter mandado para cá, vou te trancar no quarto
mais seguro que encontrar, possivelmente para sempre.
— Toque nela — murmurou ela — e eu vou desmembrar você. —
Estava ficando cada vez mais difícil organizar seus pensamentos. —
O que vocês dois estão fazendo aqui juntos, mesmo? — Ela deu um
passo instável após outro passo instável, franzindo a testa para o
chão.
— Navi e eu nos encontramos fora do seu quarto — disse Simon.
— Descobrimos que você se foi, e ela insistiu em vir comigo para
encontrá-la.
— Por que vocês dois estavam lá? — Eliana trouxe uma mão para
o seu templo latejante. — Isso é bastante estranho, não é?
— Bem, eu queria dar uma olhada em você, ter certeza de que
você conseguiu dormir, — Navi disse, com sua voz clara. — Simon?
— Ela olhou sem culpa para ele. — Por que você estava na porta de
Eliana no meio da noite?
A boca de Simon afinou. — Este não é o momento para...
— Não há uma chance no Abismo de que eu esteja saindo daqui
sem encontrar Fidelia — Eliana murmurou — e cortando garganta
após garganta até que eles me digam onde minha mãe está.
— Uma imagem encantadora. Agora, ande.
Eliana pisou firme para se manter e se libertou do aperto de
Simon. Sem ele segurando-a, o mundo virou de cabeça para baixo.
Ela desmaiou imediatamente, mas Simon a pegou antes que ela
pudesse bater no chão.
— O que há de errado com ela? — veio a voz preocupada de
Navi.
— Eliana? — A mão de Simon apertou a bochecha dela. — Qual é
o problema, o que está acontecendo com você? Se você não me
disser, eu não posso ajudá-la.
Ela tomou três longas e rasas respirações para acalmar a
sensação doentia subindo em sua garganta, em seguida, olhou para
ele com olhos lacrimejantes. — Esta é a primeira pista que tenho
desde que saí de Orline — disse ela com os dentes cerrados. —
Não vou desistir. Não me faça te machucar, Simon. Não estou
interessada em fazê-lo.
Ele ergueu uma sobrancelha. — Não está?
— Meu Deus, você nunca cala a boca? — Ela tentou passar por
ele, mas foi Navi que a impediu dessa vez.
— Eliana, pare com isso — ela disse calmamente. — Vamos
voltar. Não é seguro aqui fora.
— Mas eu posso encontrar minha mãe — Eliana insistiu — e
todos os outros que foram levados. — Ela olhou para Simon. —
Incluindo pessoas da Coroa Vermelha.
— Sem importância. — disse Simon. — Nossa prioridade é levar
Navi para Astavar. Uma vez feito isso, vou ajudá-la a encontrar sua
mãe. Como combinamos.
— Ou eu poderia ir encontrá-la agora. Quando chegarmos a
Astavar, pode ser tarde demais.
— Um risco que você sabia quando aceitou minha oferta.
— Por que você se importa que eu fique com você? Se é um
lutador que você quer, Camille tem dezenas de mercenários para
escolher.
Uma vez que as palavras foram ditas, a mente de Eliana começou
a clarear, cortando seus sentidos confusos. Por que ele se importa
de fato? Quando ela olhou para Simon, seu rosto cuidadosamente
implacável lhe disse a verdade: ela tinha atingido um ponto.
— O que é que se passa comigo — ela disse calmamente, dando
um passo em direção a ele, depois outro — que faz você querer me
manter por perto?
Navi olhou curiosamente entre eles. Simon abriu a boca,
hesitante.
Então, uma voz ressoou das sombras sob a escada próxima: —
Porque você é especial, Eliana Ferracora. E ele quer você para si
próprio. Assim como eu.
A boca de Eliana ficou seca ao som dessa voz. Ela sabia disso,
embora agora ele arranhasse ao invés de ronronar.
Uma figura esbelta veio à luz, vestindo um uniforme preto
esfarrapado e um manto carmesim desgastado, quase
irreconhecível pela lama e manchas de sangue que rasgavam o
tecido outrora fino.
— Rahzavel — sussurrou Eliana em horror. Até Simon parecia
estupefato. — Você está vivo.
O assassino sorriu, seu rosto pálido marcado com uma cicatriz
longa e inchada que escorria de sua têmpora, dividindo seu rosto ao
meio, e desaparecendo em seu colarinho. Seus cabelos brancos
estavam bagunçados em forma de cachos emaranhados.
— Vivo — ele concordou — e tão animado para matá-la.
Então ele arrancou sua espada da bainha em sua cintura,
levantou-a com um grito faminto horrível, e avançou para o pescoço
de Eliana.
33
Rielle
“Eu esperava que as notícias recentes não
chegassem até você por mais alguns dias. É
verdade, no entanto, sobre o Príncipe Audric e
a garota Dardenne. Lamento não ter podido
dizer-lhe pessoalmente. Fique em Belbrion,
proteja o norte. Paciência, meu filho. Tudo
será como deve ser, e em breve.”
—Carta do Lorde Dervin Sauvillier a seu filho, Merovec

As portas da sala do conselho do Rei Bastien abriram-se.


Rielle pulou sobre seus pés. Ela estava esperando tensa em uma
cadeira dura e desconfortável por uma hora sob os olhos igualmente
tensos de sua guarda. Durante essa hora, ela orou pela chegada
apressada do rei, para que eles pudessem ter logo a explosão
inevitável e acabar logo com isso.
Agora, no entanto, com o rei indo furiosamente para o seu assento
– com o Arconte, a rainha, seu pai, todos os membros do Conselho
Magisterial, e Lord Dervin Sauvillier acompanhando-o – Rielle
profundamente desejava que ela pudesse voltar para sua cadeira
solitária e sentar-se lá pelo resto do dia, sem perturbações.
Pelo menos Audric e Ludivine também tinham vindo participar,
estando em extremidades opostas da mesa.
— Lady Rielle — começou o rei, com sua voz firme enquanto ele
estava atrás da enorme mesa do Conselho Privado — Eu não tenho
ideia por onde começar.
— Bem — disse o Lorde Dervin, as palavras dele irrompendo em
uma voz fina — talvez possamos começar discutindo o abuso
deliberado de poder de Lady Rielle durante seu último desafio. Ou
então, o seu flagrante desrespeito pela santidade do noivado dos
nossos filhos...
— Lorde Dervin — o rei cortou — quando eu quiser que fale, irei
pedir que o faça.
O homem ficou em silêncio com um aceno curto.
Rei Bastien olhou para a mesa por um longo momento, em
seguida, direcionou seu olhar irritado para Rielle.
É apenas o Rei Bastien. Ela obrigou-se a encontrar seus olhos,
lembrando-se de novo e de novo que este homem não era apenas
um rei. Também era o pai do Audric. Ela tinha crescido correndo
pelos corredores de sua casa, compartilhado uma cama com seu
filho e sobrinha, quando todos eram muito jovens para que isso
fosse considerado doentio.
— O que — ele começou calmamente — você estava pensando lá
fora?
Ela hesitou, lembrou-se de manter a voz clara e calma. — A
verdade, meu rei?
— Sim, Lady Rielle. Por favor, pelo amor de Deus, diga-me a
verdade.
— Queria mostrar ao povo do que sou capaz. Já discutimos o
quão importante isso é, não é? Que eles pensem bem de mim, que
vejam o meu poder livremente e também vejam que não há nada a
temer.
A expressão do rei permaneceu implacável. — Continue.
— Pareceu-me que a melhor maneira de mostrar a todos que eu
não só estou tendo sucesso nos desafios, como também estou a
ficar mais forte por causa deles, foi demonstrar minha capacidade
de manipular dois elementos simultaneamente. — Ela resolveu não
olhar para Sloane, que se sentava rígido e pálido à mesa do
conselho, nem Tal, cujo olhar urgente ela podia sentir como a
atração silenciosa do pânico.
— O que você está dizendo, Lady Rielle — disse a Rainha
Genoveve, sua expressão presa entre diversão e algo mais escuro
— é que você queria se exibir.
Bem, eles te pegaram, não é?
O riso suave de Corien provocou arrepios na pele de Rielle.
— E para demonstrar que meu controle é notável o suficiente para
que uma ameaça mortal possa pairar a poucos centímetros de
alguém — Rielle respondeu, encarando o Arconte — e que eu
possa garantir que nenhum mal lhes ocorra, mesmo assim.
A rainha levantou as sobrancelhas. — Notável?
— Acho que o meu poder é merecedor da palavra, não é?
Reinou o silêncio tenso. Rielle olhou para Tal; ele acenou com a
cabeça para ela com um pequeno sorriso.
Seu coração era um tambor, firme e triunfante. — Quanto a se
exibir... acho que qualquer humano que ainda pode fazer magia
neste mundo entende a vontade de abraçar esse dom e deixá-lo
brilhar para todos verem.
— Não entendo esse impulso. — Rafiel Duval, Grão Mestre do
Firmament, de pele marrom com tranças pretas, sentou-se com
postura impecável ao lado de Tal. Ele usava túnicas de céu azul e
cinza tempestade. — O poder não existe para ser ostentado. Existe
para ser domado.
— Nós discordamos, então, Magister Duval. Agora que eu sou
livre para usar meu poder como eu acho melhor, ele está mais forte
e sadio do que nunca.
— Você quer dizer, agora que você pode usar seu poder como o
rei achar melhor. — Ludivine direcionou seu olhar, implorando para
Rielle. — Não é, Rielle?
Rielle cora, percebendo seu erro.
Não é um erro, Corien disse rapidamente. Você disse o que você
realmente pensa, minha querida.
— Perdoe-me, minha rainha, meu rei. — Rielle abaixou a cabeça.
— Lady Ludivine está certa. Claro que me enganei.
O rei sentou-se pesadamente em sua cadeira. — E a criatura que
você criou. O dragão. E quanto a isso?
— Acho que todos podemos concordar — Audric começou — que
Lady Rielle demonstrou controle incrível...
— Segure sua língua, Audric — disse o rei. — Lady Rielle pode se
defender.
— Mas, querido, você não se lembra? — O olhar frio da Rainha
Genoveve não condizia com a doçura da sua voz. — Nosso filho
tem dificuldade em manter a língua para si mesmo quando Lady
Rielle está por perto.
Um rubor ardente subiu pelo corpo de Rielle. O Arconte fingiu uma
tosse fraca em sua manga.
Audric foi o primeiro a falar, sua voz baixa e furiosa. — Mãe, você
realmente quer ter essa conversa agora?
— Bem, eu certamente não — o rei respondeu com um olhar
atento para sua esposa. Então ele olhou para ela. — Minhas
desculpas, Ludivine.
Ludivine deu-lhe um sorriso acalorado. — Não é nada, tio. Foi um
erro cometido durante tempos difíceis. — Então ela se virou para
Rielle e gentilmente pegou sua mão antes de voltar para a mesa do
conselho. — Eu não tenho rancor contra Lady Rielle. — Ela
estendeu sua outra mão para Audric, que se aproximou depois de
um momento de hesitação. — Nem guardaria rancor contra o meu
primo, o príncipe.
A boca de Lorde Dervin torceu-se ao ver os três de pé unidos
diante do rei.
— Você ia me matar?
Rielle assustou-se ao ouvir a voz suave do Arconte. — Peço
desculpa, Vossa Santidade?
Seu sorriso irrestrito penetrou dentro dela como um pesadelo. —
Eu podia senti-lo, você sabe. Eu podia sentir o empirium se
movendo dentro daquele dragão enquanto ele lambia meu rosto. Ele
estava com raiva de mim. — Ele levantou a cabeça, considerando-a.
— Você estava com raiva de mim. Por aquelas crianças, eu sei.
Isso foi um desafio? Os pêlos de Rielle arrepiaram-se. — Sim, eu
estava com raiva. Eu queria te assustar.
Lorde Dervin jogou as mãos para o alto. — Meu rei, é esta a
conversa de alguém em quem podemos confiar para ficar ao lado
dos nossos filhos, muito menos desfilar imprudentemente na frente
de milhares de pessoas?
— Você me assustou — o Arconte continuou, ignorando a
explosão e inclinando-se para a frente através da mesa. Uma nova
luz brilhou em seus olhos. — Eu não pensei que você fosse me
matar. Ainda não. Mas eu queria saber o quão longe você iria.
Ainda não. Uma emoção saltou pelo corpo de Rielle. Ela não
podia desviar do olhar estreito e brilhante do Arconte. Aqueles olhos
pareciam ver tudo dentro dela, o poder, mesmo agora, correndo
agitado em seu sangue, a presença de Corien sentada pensativa
em sua mente, e a verdade.
E a verdade era esta: um núcleo escuro de arrependimento fervia
dentro dela, e se pudesse voltar atrás e viver o desafio outra vez,
esse núcleo preto e duro seria apenas o bastante para fazê-la
mudar de ideia. Não ficar com as garras do dragão e deixá-lo se
alimentar ao invés disso.
O sorriso do Arconte cresceu, como se ele pudesse ver os
pensamentos de Rielle claramente em seu rosto.
Uma forte batida nas grandes portas do salão interrompeu o
silêncio agitado, e quando uma mensagem chegou, Rielle relaxou
um pouco, contente com a distração. Audric estava próximo, os
braços tensos em seus lados. Ela quis virar-se para ele, para
esconder seu rosto no calor de seu peito. Ela não queria se
esconder lá para sempre, apenas por um tempo. Era tão errado
desejar isso?
— Pai? — A voz de Audric carregava uma nova nota de
preocupação. — O que está acontecendo?
Rielle olhou para o rei. Ele segurava um pequeno pedaço de papel
enrolado, uma mensagem do aviário real, e em seu rosto havia uma
forte ausência de expressão. Ele havia se retirado em algum lugar;
ele não queria estar lendo esta nota na frente de uma audiência.
— Três ataques — ele disse categoricamente — ao longo da
fronteira. Castelo d'Avitaine. O Castelo das Três Torres. Castelo
Barberac. — Ele parou, sua boca em uma linha dura. — Setenta e
três soldados celdarianos foram mortos. Seis — dois de cada posto
— sobreviveram e fugiram para o sul para as aldeias mais próximas.
— Meu Deus. — A mão da rainha Genoveve foi para a garganta.
— Os seus relatórios incluíam o que os atacou? Ou quem?
— "Ele veio durante a noite" — leu o rei. — "Veio sem som e sem
aviso."
Um silêncio sinistro sangrava pela sala.
O rei Bastien parou de ler. Audric pegou a nota das mãos dele.
— Audric... — avisou o rei.
— "Eu me virava no escuro" — continuou Audric — "e outro caiu.
Seus rostos estavam brancos como ossos, e ainda assim, era como
se tivessem sido apanhados no meio de um grito."
O rei invadiu a mesa, arrancou a nota das mãos de Audric e
amassou-a com o punho. — Esses postos do norte são amargos e
frios. Um rosto pálido não é uma coisa estranha.
Audric o observou gravemente. — Dois sobreviventes de cada
posto não podem ser coincidência.
— Não pode? Não comece a me importunar com suas teorias
loucas, Audric.
— Os sinais já estão claros há algum tempo. — Audric ignorou o
pai e se dirigiu à mesa inteira. — Quanto mais esperarmos para
enfrentá-los, mais mortíferas serão as consequências.
— Sinais! — Bastien riu severamente. — Tempestades e
revoluções em terras distantes, soldados sendo mortos na fronteira
entre nações hostis. Sim, de fato. — Sua voz deu uma virada
desconhecida e sarcástica. — Nunca ouvi falar de tais coisas a
acontecer. Na verdade, estamos à beira de uma ruína mágica.
— E Lady Rielle? Você não pode olhar para o desempenho dela
nos desafios e chamar isso de menos que extraordinário.
— Ele tem razão — disse Tal em voz baixa. — Eu trabalho com
Rielle há anos, e a profecia...
— Magister Belounnon — retrucou o rei Bastien — até que eu
peça sua opinião, você tomará o cuidado de permanecer calado na
minha presença.
Tal encontrou o olhar do rei com apenas um pouco de desafio,
mas foi o suficiente para fazer o coração de Rielle inchar de amor
por ele.
— Sim, meu rei — respondeu Tal.
— A profecia — continuou o rei Bastien, olhando ao redor para
todos eles — nem sequer pode ser interpretada com segurança.
Quantas traduções oficiais das palavras de Aryava existem? Vinte?
Vinte e cinco?
— Trinta e quatro — respondeu o Arconte de uma vez — embora
as diferenças entre algumas sejam mínimas.
— Mas mesmo uma única palavra pode significar a diferença
entre uma profecia — o rei lançou um olhar sombrio para Audric —
e uma história divertida que nenhum homem instruído leva a sério.
As sobrancelhas de Magister Duval se ergueram. — Vossa
Majestade, isso é bastante ousado da sua parte, diante de todo o
conselho e do próprio Arconte.
— Todos aqui respondem a mim, se é que devo lembrá-lo. —
Bastien se afastou para ficar diante das janelas e olhar para o sol
poente. Quando finalmente ele se virou, ele parecia cansado, mas
resoluto. — Peço desculpas pela minha explosão, Sua Santidade.
Não creio que a profecia seja uma mera história, nem que a
inteligência de você e seus magisters seja algo menos que
excepcional.
O Arconte inclinou a cabeça. — Você é muito gentil, meu rei.
— Não falarei mais disso hoje à noite. Armand?
O pai de Rielle levantou-se da cadeira e se juntou ao rei. Nas
portas, ele olhou para Rielle uma vez, e ela viu um lampejo de
preocupação em seus olhos cinzentos.
O olhar a assustou.
Desde o início dos testes, com a vida de Rielle em perigo toda
semana, seu pai se mantinha fechado, ainda mais que o normal. Só
o via durante as manhãs na pista de obstáculos e, às vezes, nos
corredores de Baingarde. Cercada por seus guardas, ela o
cumprimentava educadamente, e ele retribuía o sentimento com um
mero aceno de cabeça.
E, portanto, até a menor mudança de expressão naquele rosto
duro era digna de atenção.
Alguma coisa sobre a mensagem do norte e a reação do rei
haviam despertado o inconquistável Lorde Comandante Dardenne.
Enquanto o conselho se erguia com sussurros e murmúrios,
Audric virou-se para Rielle e depois olhou para Ludivine. —
Precisamos falar em particular — disse ele calmamente. — Agora.
— Audric, meu amor? — A rainha Genoveve estendeu a mão para
ele. Seu vestido cinza brocado captou a luz vermelha do sol poente
e lançou linhas estranhas e ásperas em seu rosto. — Venha comigo.
Seu tio e eu pensamos que todos nós poderíamos tomar um chá
juntos.
— Então você poderá me repreender e falar mal de Lady Rielle?
— Audric disse alto o suficiente para todos que ainda estavam na
sala ouvir. — Eu tenho coisas muito melhores para fazer.
Então ele lançou um olhar rápido para a mãe e saiu do corredor.
Rielle quase caiu na gargalhada com a expressão afrontada no
rosto da rainha Genoveve, mas antes que ela pudesse, Ludivine a
pegou firmemente pelo cotovelo e apressou-a para fora do corredor.
Somente uma vez no silêncio familiar dos quartos de Audric, as
risadas nervosas de Rielle finalmente escaparam. Ela caiu na sua
espreguiçadeira favorita perto da janela, uma coisa velha e tão
confortável que proibiu Audric de pedir outra.
Ludivine afundou em sua própria cadeira favorita perto da lareira.
— Não vejo o que há de tão engraçado, Rielle.
— O que não tem graça? O fato de Audric insultar sua mãe na
frente de todo o conselho? Ou que seu pai parecia que estava
tentando me fazer cair morta usando apenas a força de seu olhar?
Ou que, mesmo quando o rei me repreendeu, ela pensou um
pouco, eu estava conversando com um anjo na minha cabeça?
— Por favor, não diminua a raiva do meu pai. — disse Ludivine. —
Não vai servir bem a nenhum de nós.
— E então — continuou Rielle — existe o fato de que Audric e eu
quase... bem. — Ela corou, perdendo a coragem. – E, no entanto,
aqui estamos todos, agindo como se nada tivesse acontecido!
Audric tensiona. — Rielle, por favor, podemos não falar sobre isso
agora? Sei que você e Ludivine discutiram o assunto, mas haverá
ramificações políticas se houver quaisquer mudanças feitas no
acordo entre nossas famílias.
— Não. — Rielle apertou a mandíbula. — Insisto que
conversemos sobre isso, nesta noite. É injusto com todos nós até o
fazermos.
No silêncio que se seguiu, Ludivine falou gentilmente. — Ela está
certa, Audric.
Audric inclinou-se pesadamente contra sua mesa.
— Se eu pudesse desistir da minha coroa e do meu dever —
disse ele — e deixar este lugar para trás, com apenas você ao meu
lado... — Ele olhou para Rielle. A angústia silenciosa em seu rosto
tomou o coração dela. — Eu faria isso em um instante, com a
benção de Lu.
— Abandonar sua primogenitura? Deixar seu país sem herdeiro?
— Rielle zombou, com lágrimas quentes nos olhos. — Você nunca
ousaria.
— Você está errada! — Ele se afastou delas para encarar as
janelas estreladas, com os ombros altos e tensos. — Eu faria isso
por você. Às vezes, acho que trairia tudo o que considero precioso
pela chance de...
Sua voz falhou; ele ficou calado. Rielle se virou, os braços
cruzados firmemente sobre a frente. Os servos de Audric haviam
preparado seu fogo para a noite. As chamas crepitantes e a madeira
estourando foram os únicos sons na sala por vários minutos.
Então Ludivine pigarreou. — Não é preciso desistir de nada, você
sabe. Nem a coroa, nem um ao outro. Você só precisa ser...
discreto. — Ela alisou as saias. — Eu poderia ajudá-lo, conforme
necessário.
Rielle olhou para ela. Ludivine a levou a Garver Randell por um
tônico contraceptivo, sim, mas ouvi-la sugerir uma coisa tão
claramente, como se estivessem apenas discutindo o clima, deixou
Rielle sem palavras.
Audric riu com espanto. — Lu, você está sugerindo o que eu acho
que está sugerindo?
— Que vocês fiquem juntos? — Ludivine levantou uma
sobrancelha. — Sim. Em segredo, é claro, mas em breve. E o mais
rápido possível, assim sou poupada da agonia do seu torturado
anseio. — Ela se recostou na cadeira e fechou os olhos. — É
exaustivo testemunhar. Eu atingi meu limite.
Com o coração acelerado, sem ousar olhar para Audric, Rielle
respirou: — Não acredito que você está realmente dizendo isso.
— Por que não? Já contei a vocês como me sinto sobre a
situação. — Ludivine sorriu, com os olhos ainda fechados. — Ou
você duvida da minha palavra?
— Não, não é isso, é só... — As imagens que lotavam a mente de
Rielle fizeram um calor delicioso subir por suas bochechas. — Você
não ficaria envergonhada?
— Que meus amigos mais queridos possam ser mais felizes do
que nunca? Por que isso me envergonharia?
— Talvez “vergonha” não seja a palavra certa. — Rielle olhou para
Audric, então. Meio na sombra, ele franziu a testa para o chão.
— Se formos descobertos — ele disse finalmente, — mesmo se
explicarmos que você sabia e aprovou, poderia ser humilhante para
todos nós, mas especialmente para você.
— Oh, é isso o que poderia acontecer? — disse Ludivine
brandamente. — Eu não tinha percebido.
Rielle soltou uma gargalhada nervosa. — Teríamos apenas que...
não ser descobertos.
Audric passou a mão pelo rosto. — Não é tão simples assim.
— Claro que é. — Ludivine observou-o com carinho. — Vamos
tomar cuidado e você... Bem, Audric, você precisará mentir de
alguma forma.
— E sua família? E eles, como ficam? E se minha mãe descobrir?
Ou seu pai? Ele vai nos vigiar de perto agora.
— Eu posso lidar com minha família.
Por um longo tempo, Audric ficou olhando as chamas crepitantes.
— Não podemos — ele disse finalmente, com a voz pesada. —
Algo está acontecendo em Borsvall. Os ataques à fronteira, esse
relatório que li… A Casa Sauvillier é a nossa maior defesa contra o
que pode vir para o sul. Enquanto não resolvermos o que está
acontecendo, precisamos que seu pai e seus soldados permaneçam
leais à coroa. E certamente não o farão se descobrirem que Rielle e
eu estamos tendo um caso.
Rielle lutou para falar além de um crescente desespero. — Mas,
Audric...
— O que você disse ao meu pai, semanas atrás? Mentiras
suficientes foram contadas, segredos suficientes já não foram
mantidos? — Ele olhou para ela. — Não é assim que quero que
comecemos.
— E eu não me importo como começamos — ela protestou, dando
um passo em sua direção — desde que o façamos.
No silêncio ardente, o olhar de Audric caiu nos lábios dela e
depois se afastou.
— Talvez — Ludivine disse depois de um momento — você possa
simplesmente esperar um pouco. Até que o perigo na fronteira tenha
passado e o temperamento de meu pai esfrie.
Rielle levantou as mãos. — E então o que? De repente, ele ficará
feliz quando contarmos a ele o que acontecerá a seguir? Desculpe,
senhor Dervin, mas sua filha não será rainha, afinal?
— Não, ele não será feliz — respondeu Ludivine, — mas ele não
ficará com tanta raiva.
— E espero que o reino esteja estável, então, e seguro —
finalizou Audric. — O que quer que tenha atacado nossa fronteira
será descoberto e vencido. — Ele respirou fundo, passando a mão
pelos cabelos.
Rielle se moveu para ficar diante dele. Ela se recusou a tocá-lo,
embora seu corpo doesse para fazê-lo.
— É isso mesmo que quer? — ela sussurrou.
— O que eu quero? — Ele sorriu tristemente, moveu-se como se
quisesse tocá-la, depois recuou. — Claro que não. Mas é o que
devemos fazer, Rielle.
Ele tem os olhos de uma vaca, Corien zombou. Suaves e
ignorantes.
A ira de Rielle aumentou rapidamente. E você tem a língua de
uma serpente. Cruel e repelente.
Corien recuou, emburrado em sua presença.
— Rielle, desculpe — Ludivine murmurou, levantando-se da
cadeira. – Mas acho que Audric está certo. Isso é o mais sábio...
— Lu, sou grata por sua falta de egoísmo e por sua amizade —
disse Rielle firmemente, com uma dor terrível na garganta — mas
acho que preciso ficar sozinha.
Então ela se afastou de Audric e saiu da sala.
34
Eliana
“Por sua generosidade e ensino, meu senhor,
será preciso mais do que uma queda de uma
torre para me matar. Mais um dia, e eu os
pegarei.”
—Mensagem escrita pelo assassino do Invictus, Rahzavel, a Sua
Santíssima Majestade, o Imperador dos Imortais.

Eliana cambaleou para trás para evitar a espada voadora de


Rahzavel, e tropeçou em uma cadeira, caindo com força nos braços
de Navi.
Simon pulou na frente delas, sua própria espada levantada para
atacar. As duas lâminas se chocando e atingindo.
— Navi, tire-a daqui! — Simon berrou por cima do ombro, pouco
antes de Rahzavel soltar um grito forte e girar a espada para se
libertar. Simon tropeçou em um pilar, e chutou uma cadeira no
caminho de Rahzavel.
Navi agarrou o pulso de Eliana e juntos elas correram para a
multidão. Os espectadores haviam notado a luta e pairavam nas
proximidades. Navi passou por eles, empurrando os corpos duas
vezes do tamanho dela quando eles não se moviam rápido o
suficiente.
— Eliana! — Rahzavel os chamou, suas palavras pontuadas por
grunhidos e choques de lâminas. — Você não pode fugir de mim! Eu
sou como você, você não vê? Eu não posso ser morto!
O medo foi um energizador fantástico; a cabeça de Eliana clareou
a cada passo. Logo foi ela quem arrastou Navi atrás dela.
— Aqui — ela engasgou, girando Navi dentro do labirinto dos
poços de combate. Caminhos estreitos separavam cada gaiola da
seguinte; uma volta por uma jaula, depois outra, e eles estavam no
meio das brigas. Um lutador de peito nu jogou seu oponente contra
a parede de arame à direita de Eliana. O barulho era tremendo, a
multidão estava fervilhando por todos os lados.
— De volta aos apartamentos — Navi chorou. — Estaremos
seguros lá!
— Se uma queda não o matou — respondeu Eliana, — então
nunca mais estaremos a salvo dele, até que ele esteja morto.
Eu sou como você! Eu não posso ser morto!
Mas ele estava errado, não estava? Ela poderia ser morta. Ela
não era completamente invencível. Se ele a cortasse no coração
com uma espada, ela morreria como qualquer animal que sangra.
E ele... Sua queda da torre de donzelas em Orline deve ter sido
uma sorte. Ele acertou a água no ângulo certo, evitando as rochas
espalhadas pelo rio. O imperador havia lhe alimentado com um
regime de drogas, condicionando sua mente e corpo ao longo dos
anos para suportar abusos impossíveis.
— Ele poderia ser um anjo? — Navi gritou sobre o barulho.
Eliana fez uma careta. — Conhecendo a nossa sorte?
Elas saíram dos poços para o chão aberto. Eliana correu para um
conjunto de escadas de ferro nas proximidades. Quando ela
alcançou a grade, um corpo voou para fora da multidão e bateu de
lado, derrubando ela e Navi no chão.
Eliana se levantou, girando a cabeça. — Navi?
Ela estava inconsciente a um metro de distância, ao lado do corpo
inerte que as atingira. Ela deve ter batido a cabeça na escada de
baixo. Eliana rastejou em sua direção.
Uma espada a atingiu nas costas uma vez, depois duas. Dor
ardente rasgou seu corpo. Ela gritou, apertou ainda mais Arabeth,
virou-se, pegou a espada de Rahzavel com sua adaga.
Ele olhou para ela, pressionando com força contra as lâminas
unidas até que ela estivesse quase plana no chão. Suas costas
ensanguentadas queimavam na planície torcida.
— Olá de novo. — A voz dele tremeu; seu rosto devastado se
estendeu com um sorriso de um louco. Ele bateu com força na coxa
dela, depois nas costelas. Enquanto ela gritava, vendo estrelas por
conta da dor, ele levantou a espada com olhos selvagens. Ela
mergulhou Arabeth na parte superior do pé dele, depois rolou
debaixo dele bem quando sua espada bateu no chão.
Navi acordou e olhou horrorizada para algo por cima do ombro de
Eliana. — Cuidado!
Eliana virou-se, a tempo de evitar a espada de Rahzavel. A ponta
da lâmina pegou sua bochecha. O sangue jorrou quente em seu
rosto e braços. Ela puxou Arabeth; ele a tirou da mão dela com sua
espada. Ela deu um chute forte no peito dele; ele agarrou a perna
dela, torceu, batendo-a no chão.
Antes de sua queda, ele teria lutado em silêncio, cada movimento
rápido e calculado.
Agora ele ria, gritando de diversão quando um dos punhais dela
pegou sua pele, estalando a língua quando ela errou. Uma multidão
apertada se reuniu ao redor deles, encaixotando-os com punhos
cerrados e gritos rítmicos e sem palavras, famintos por violência.
Eliana pegou uma faca de uma mesa próxima e girou para jogá-la
nele. Ele a afastou facilmente jogando-a de lado. Ela encontrou
outra, virando-se novamente.
Ela deixou cair a faca. Ela caiu barulhenta e inútil no chão.
Balançando-se, ela procurou apoio, não encontrou nada, caiu sobre
as mãos e os joelhos.
Fidelia.
A névoa enegreceu sua visão. A náusea voltou, varrendo-a com
uma violência surpreendente.
— Olhem para ela! — Rahzavel proclamou, dançando
alegremente em torno de sua forma debruçada. — O famoso Terror
de Orline!
A multidão respondeu com um coro de zombarias.
— Eliana, levante-se! — Navi puxou freneticamente seus braços.
Eliana tentou se levantar; seus membros cederam e ela caiu no
chão.
— Eles estão aqui. — Seu estômago se torceu em um nó. O
mundo girou, inclinando para a direita e para a esquerda. Quem
quer que estivesse a prendendo, estava errado. Não encaixava; não
pertencia aqui.
— Corra — ela ofegou, tateando a mão de Navi. — Eles vão te
encontrar.
— Quem vai? — A voz de Navi estava cheia de lágrimas de
pânico.
Um grito furioso por trás delas fez Eliana se virar turvamente.
Simon desceu da escada acima, batendo primeiro com os pés em
Rahzavel. O assassino caiu com força, depois se afastou com uma
gargalhada feroz e voltou a ficar de pé. Simon avançou
impiedosamente sobre ele, seu rosto cheio de cicatrizes feroz de
raiva.
Então, virando-se para bloquear um dos impulsos de Rahzavel,
Simon olhou por cima e encontrou Eliana no chão. Seus olhares se
travaram.
O mundo pareceu parar. A respiração de Eliana ficou presa no
peito dolorido.
Eles já haviam estado aqui antes — não nos boxes do Santuário,
mas em um momento semelhante de perigo e fuga.
De separação.
A certeza disso — como de repente recordar uma letra há muito
esquecida — abriu um abismo desconhecido em seu coração.
Um lampejo de uma tristeza inominável sacudiu o rosto de Simon.
Ele sentiu isso também?
— Corra! — ele rugiu para ela.
A realidade retornou. O tempo passou, empolgante e cruel.
Eliana abriu caminho na multidão. Ela ouviu Navi gritar seu nome,
ouviu um grito áspero, torceu para que não fosse Simon. Ela
procurou por outro conjunto de escadas que a levariam de volta ao
terceiro andar. Ela pegaria Remy e partiria. Eles correriam o mais
rápido que pudessem, o mais longe que podiam. Ela rasparia a
cabeça deles; eles pegariam roupas novas. Eles poderiam chegar a
Astavar assim, disfarçados e irreconhecíveis.
Ela chegou ao segundo andar antes que Navi a alcançasse. A
garota agarrou seu braço, puxou-a de volta com força. Eliana se
virou e apertou Whistler na garganta de Navi.
— Estou pegando meu irmão e indo embora — ela cuspiu — e se
você tentar me impedir, Navi, juro que vou estripa-la.
O mundo girou e não parava. Eliana deixou cair Whistler,
afundando-se no corpo de Navi.
— Eliana? — Navi afundou no chão com ela. — Levante-se, por
favor!
Eliana ofegou, com a voz embargada na garganta. Ela tentou se
soltar dos braços de Navi, se afastar, mas não conseguiu se mexer.
Então Navi desapareceu.
Uma mão enluvada surgiu na boca de Eliana, pressionando um
pano fedorento em seu rosto. Ela lutou, seu grito foi abafado. Outra
mão pegou a parte de trás do crânio, forçando-a com mais força
contra o pano.
Quando sua visão diminuiu, ela viu uma figura vestida de preto –
de capuz e máscara – erguendo uma Navi inconsciente em seus
braços.
A injustiça no ar engoliu Eliana inteira. Ela queria vomitar de novo,
mas a pressão sobre sua garganta a impedia.
Uma voz no ouvido dela sussurrou: — E quando o Portão caiu,
Ele me encontrou no caos, apontou para o meu coração sedento e
disse: “Entregar-te-ei na glória do novo mundo”, e chorei aos seus
pés. E fui refeito.
Então Eliana escorregou para um poço estreito, onde o mundo
que desaparecia ao seu redor sacudiu bruscamente antes de dobrá-
la para o nada.
35
Rielle
“A montanha cai sob meus punhos
O mar seca com o meu toque
A chama morre na minha língua
A noite uiva com a minha raiva
A luz escurece na minha sombra
A terra desaparece sob os meus pés
Eu não quebro nem me curvo
Não posso ser silenciado
Estou em toda parte”
— O Rito do Vento
Como proferido pela primeira vez por São Ghovan, o Destemido,
santo padroeiro de Ventera e dos windsingers.

Rielle estava sentada em um trono no centro de uma sala escura.


Uma luz estreita a iluminava de cima. Mais além, havia uma
vastidão de sombras que se deslocavam. Ela sentiu que pedaços de
um mundo além de seu alcance estavam se rearranjando,
sussurrando um para o outro a melhor maneira de pregar peças na
tola rainha iluminada que pensava que ela era alguma coisa.
O trono abaixo dela era feito de botões e cristas que cutucavam
suas coxas. Uma voz sussurrou para ela, Olhe.
— O quê? — Rielle olhou através da escuridão. Fazer isso a
deixou tonta. — Eu não vejo nada.
Olhe mais de perto.
Rielle obedeceu. Dias se passaram. Os olhos dela ardiam; ela não
dormiu. Vozes sussurravam de um reino distante.
Ela se levantou do trono. Mãos desesperadas e invisíveis
agarraram a bainha de sua capa. Ela provou uma podridão antiga e
amarga em sua língua.
— Não há nada aqui — ela insistiu. O tempo tinha triturado sua
voz.
Continue.
Ela andou por séculos. As vozes sussurrantes ficaram ousadas.
Elas se tornaram uma conversa, depois um ruído. Elas falavam em
um idioma desconhecido, mas ela ainda entendia o que cada
palavra significava e que tudo era falado por ela:
Criador.
Rainha.
Liberdade.
Rielle.
Por fim, ela viu um ponto de luz ao longe e gritou. Esse foi
finalmente o fim? Ela estava cansada de andar sozinha. Ela não
queria mais essas vozes chamando por ela, sentindo a proximidade
dos outros, mas não conseguindo encontrá-las.
Quando a luz apareceu à vista, viu que era uma que ela já
conhecia, o trono iluminado.
E agora ela entendia por que a machucara sentar nele.
Era feito de ossos.
Exausta, exultante, ela afundou nele. Agarrou os braços brancos e
macios do trono, os conhecendo pelos ossos daqueles que uma vez
tentaram prendê-la.
— O que é este lugar? — Rielle exigiu. — Eu mereço uma
resposta.
Sombras deslizaram ao redor da parede sólida e brilhante de seu
trono, depois friamente pelas bochechas, pelos seios, pela curva do
couro cabeludo. Ela fechou os olhos; sua boca se abriu para receber
um beijo.
As sombras se tornaram um homem.
— É aqui que vivemos há muito tempo — ele sussurrou. Ele
pressionou os lábios na curva da orelha dela. — E onde não
estaremos mais em breve se você tiver coragem para isso.
— Corien — ela respirou. — Eu não entendo o que você quer
dizer.
Ele inalou profundamente. A boca dele se moveu contra a
bochecha dela. — Não me faça implorar.
Rielle roçou os lábios ao longo da linha da mandíbula. — E se eu
quiser fazer você implorar? — ela sussurrou. — E se eu quiser você
à minha mercê?
— Então eu obedecerei alegremente. — Ele moveu uma palma
branca pelo corpo dela, através do estômago. Os nós dos dedos
roçaram o topo de suas coxas, e ela se inclinou para trás para dar
espaço para ele...
Rielle acordou com um suspiro sufocado, os dedos já trabalhando
entre as pernas. Três golpes rápidos, e ela se desmanchou,
pulsando silenciosamente em torno de sua mão. Ela virou o rosto
para o travesseiro, buscando alívio para suas bochechas
flamejantes, mas o travesseiro estava encharcado de suor.
Ela sentou-se, seu corpo tremendo. Olhos apertados, estômago
em nós, peito apertado ao redor do coração. Medo seguido de
prazer, prazer seguido de vergonha.
Então ela percebeu o quão estranho era ela acordando em tal
estado, e Evyline não tendo dito nada.
— Evyline? — Sua voz soou como se tivesse sido carregada com
navalhas. — Evyline, você está...
Algo duro atingiu a parte de trás de sua cabeça.
Ela caiu no chão. A dor palpitava em seu crânio e percorria seu
corpo em ondas. Com a bochecha pressionada contra o tapete
felpudo, ela encontrou a forma propensa de Evyline do outro lado da
sala.
Mãos a puxaram do chão. Um pano escuro e pesado apareceu
em seus olhos. Alguém amarrou-o atrás da cabeça com muita força,
em seguida, apertou a mão em seus cabelos, abriu a boca e forçou
um líquido amargo dentro. Ela engasgou, tentou cuspir. Seu
atacante fechou a boca com força. Ela foi forçada a engolir, tossindo
o máximo que pôde. O nariz dela queimava; os olhos dela
lacrimejaram atrás da venda.
As pessoas estavam conversando acima da cabeça dela.
Instruções sussurradas, distorcidas e monstruosas. Estranhamente,
ela estava de cabeça para baixo. Ela podia sentir sua cabeça
pendendo e braços grandes cruéis ao redor de seu corpo.
Acorde!
Que estranho alguém dizer para ela acordar. Ela estava acordada;
ela simplesmente foi envenenada. Ela tentou falar, fez um terrível
barulho inarticulado. Uma mão enluvada atingiu-a com força na
têmpora. Ela quase não sentiu. Ela era uma garota feita de
nevoeiro.
— Não a mate — veio uma voz. Rielle achou que parecia familiar,
mas o veneno estava entupindo seus ouvidos, seu cérebro e todos
os poros de sua pele. — Quero que ela sinta quando morrer.

•••

Fazia muito frio, onde quer que tivessem ido. Um frio uivante.
Mãos fortes prenderam os braços de Rielle atrás das costas. Os
dentes dela estavam batendo; a camisola não era nada contra o
vento. Sob os pés descalços, o chão era gelado e rochoso.
Pelo amor de Deus, Rielle, acorde!
— Estou acordada — ela conseguiu murmurar.
— Não por muito tempo. — Uma voz fina e próxima sussurrou: —
Lamento dizer que você não poderá se salvar desta vez.
A venda foi arrancada de seus olhos e sua mente explodiu de
medo. Ela piscou olhando para algo branco brilhante: montanhas
cobertas de neve. Céu e uma fina névoa de nuvens. A beira de um
penhasco.
Oh, Deus.
— Todos saúdam a Rainha do Sol — sussurrou aquela voz
zombeteira, e então as mãos que seguravam seus braços a
lançaram da montanha para a morte dela.

•••
O vento golpeou seu corpo desamparado no ar quando ela caiu.
Ela não teve chance de gritar – e não tinha fôlego. O vento gelado
atingiu seu nariz e boca.
Salve-se! A voz de Corien era frenética.
Ela estava no mundo, caindo através das montanhas, e também
estava no chão diante de seu trono naquele reino oco de sonhos.
Corien pegou seu corpo mole em seus braços e tentou dar vida a
ela de volta.
Lute contra isso! Lute!
Ela sabia que ele estava certo. Ela poderia lutar contra isso.
Ela se forçou a abrir os olhos; o frio puxou grossas correntes de
lágrimas pelo rosto.
Eu não quebro nem me curvo, ela rezou. Eu não posso ser
silenciada.
Mas o veneno havia formado uma parede imóvel entre seu corpo
e o empirium. Ela pegou seu poder e não encontrou nada.
Ela sabia, então, que ia morrer.
Não, você não vai! Corien chorou. Deus, Rielle, não, por favor!
Ao lado do trono, com o rosto cheio de tristeza, Corien embalou o
corpo dela contra o peito. O mundo sombrio sem fim ao seu redor
soltou gritos aterrorizados.
Uma onda de frio rodopiou por baixo de Rielle, pulverizando-a
com neve. Um oceano de picos cinzentos giravam acelerando em
sua direção.
Quando fechou os olhos, viu Audric e Ludivine, e seu coração se
apertou dolorosamente de desespero, e ela desejou, e ela desejou...
Ela parou tão repentinamente que lhe arrancou o vento.
Mas ela não sentiu dor.
E ela estava se levantando.
Uma criatura abaixo dela soltou um grito agudo, parte falcão, parte
cavalo, parte... alguma coisa sobrenatural e solitária que enviou uma
pontada de desejo pelo coração de Rielle.
Ela finalmente se permitiu entender a verdade:
Um pégaso – uma besta divina – a pegou e agora subia pelo céu
com Rielle aninhada em segurança nas costas entre duas enormes
asas negras.
Atordoada, ainda ofegante, ela terminou sua oração à luz brilhante
do sol da manhã:
Eu não quebro, nem me curvo.
Eu não posso ser silenciada.
Eu estou em toda parte.
36
Eliana
“Nós somos os que Ele chama de noite
Nós somos os pilares de Sua força
Nós dizemos a palavra que Ele rezou
Sobre Suas asas, nossas almas são refeitas”
—O juramento de iniciação do culto Fidélia

O mundo era uma caixa cinza plana, e Eliana morava dentro dela.
Um piso, uma parede, um teto. Sem janelas. Uma porta de metal
com uma ranhura fina cortando perto do fundo – e uma estreita faixa
de luz, debaixo dela a única fonte de luz.
O ar se encheu de gritos fracos e distantes.
Lentamente, ela se sentou e percebeu que estava usando calças
brancas lisas com uma túnica combinando. Os pés dela estavam
descalços; o chão estava frio e duro. Suas facas... suas facas se
foram. Assim como o colar dela.
Uma cela. Ela estava em uma cela.
Ela apoiou os joelhos no peito e segurou a cabeça dolorida nas
mãos.
Lembranças voltaram para ela: Rahzavel sorrindo para ela, as
vigas sombrias do Santuário arqueando-se no alto. Simon caiu da
escada. Correndo com Navi, o mundo balançando ao seu redor a
cada passo. Remy. Ela precisava chegar a Remy.
Sua respiração ficou fina e rápida. Ela lembrou, lembrou...
Uma mão sobre a boca, fumaça venenosa subindo pelo nariz.
Três mulheres se foram em três segundos.
Fidélia.
Com um grito selvagem, ela se levantou e bateu contra a porta –
repetidamente, jogando o lado esquerdo do corpo em cada golpe
até que sua cabeça girou e seus dentes doíam. Ela ficaria
machucada, mas apenas por um tempo. É melhor continuar, certo?
— Quem é você? — Ela bateu os punhos com força, deu um
pontapé na porta com os dedos dos pés ensanguentados. —
Liberte-me! Mostre-me a porra de sua cara!
E então, lembrou-se de uma última coisa: sua mãe. A mãe dela
poderia estar neste lugar.
Ela se jogou contra a porta com renovado fervor. — Mãe? Mãe, eu
estou aqui! Alguém me responda! Me responda!
Mas até o corpo dela tinha limites. Ela gritou até sua voz ceder.
Ela caiu no chão, bateu com as palmas exaustas contra a porta até
não poder mais segurar os braços, depois se arrastou para o canto
da cela e dobrou o corpo em posição fetal.
Com os olhos fixos na linha branca brilhante abaixo da porta, ela
esperou.

•••

Ela acordou quando ouviu Navi gritando.


Levantando-se rapidamente, gritou com a voz rouca: — Estou
aqui! Navi, estou aqui! — Ela se agachou na porta, com a orelha
pressionada no metal, dedos flexionados e prontos.
Silêncio.
Ela prendeu a respiração. Isso tinha sido um sonho?
Os gritos começaram de novo—sons quebrados e de maltratar o
coração como se algo estivesse sendo feito de maneira forçada. A
princípio, sem palavras, e depois, minutos ou horas depois, Navi
começou a implorar por um fim.
— Me mate! — Os gritos se tornaram berros desesperados. — Me
mate!
Rugidos desumanos se juntaram ao coro, esculpidos em pedaços
como se saíssem de muitas bocas.
Mulheres?
Meninas?
Bestas?
Eliana recuou para o canto, tonta, mãos presas sobre as orelhas.
Ela não era o Terror neste lugar. Ela esqueceu tudo, menos a
terrível verdade dos gritos de Navi e seu próprio corpo vulnerável e
trêmulo. Ela era um rato nesta cela, e o apanhador viria buscá-la em
breve. A estúpida parte animal de seu cérebro disse isso a ela. Mais
rápido do que ela jamais imaginou ser possível, o medo se ergueu
para acabar com todo o seu treinamento e a deixou tremendo no
escuro.

•••

Será que eles a torturariam para obter informações e depois


alimentariam uma cova de animais com a carne dela?
Que informação eles queriam?
Coroa vermelha?
Navi?
Deus, o que eles já poderiam ter obtido com ela...
Eliana andou. O movimento fez o medo parecer menor. Ela
praticou cortar o ar com a bandeja que trouxeram comida que ela
ainda não havia ousado tocar.
— Vou te dar o nome de Arabeth Segunda — ela disse para a
bandeja e depois riu e disse a si mesma para parar de falar com as
bandejas naquele instante. Se ela perdesse a cabeça tão cedo na
prisão, seria um insulto ao treinamento de sua mãe.
— Arabeth — disse uma voz atrás dela, sonora, mas distorcida e
levemente divertida. — Um bom nome para uma arma.
Eliana girou e jogou a bandeja na forma sombreada que estava
contra a parede oposta. Uma mulher, Eliana pensou, alta e magra
e... transparente.
A bandeja atravessou o corpo da mulher, bateu na parede e caiu
no chão.
Amaldiçoando, Eliana recuou até onde a cela permitia. — O que
você é? Mostre-se!
A mulher obedeceu, dando algumas passos à frente até se
ajoelhar aos pés de Eliana. Ela era uma distorção incolor no ar.
Luzes cintilantes, finas como fios, delineavam suas vestes, sua boca
era cheia e ela possuía uma grande quantidade de cabelo que caía
até os quadris.
— É verdade, então — a mulher murmurou, estendendo a mão
para tocar a mão de Eliana.
A visão de Eliana sacudiu, depois enegreceu. Ela balançou sobre
os pés, apoiando as mãos nos joelhos, lutando contra a
inconsciência.
— Você não pertence aqui — ela conseguiu dizer. — É errado.
— Eu sei — disse a mulher, com uma grande tristeza nos olhos.
— Desculpe-me por isso. Você vai se acostumar com isso, se te
conforta.
— Você é Fidélia. Afaste-se de mim, porra.
— Eu certamente não sou Fidélia.
Eliana pressionou os dedos nas têmporas. — Eu senti essa
doença no Santuário, pouco antes de você me levar. E na noite em
que você tirou minha mãe e quando tirou aquelas meninas das
favelas...
— Eu não fiz nada disso, minha rainha. O Profeta não arrebata
meninas de suas camas, nem eu.
Eliana olhou de soslaio para a mulher, respirando com dificuldade
pela sensação de agitação em seu intestino. — Do que você me
chamou?
— Há meses que existem rumores de que Simon finalmente
encontrou você — continuou a mulher, sua voz zumbindo de
excitação — mas eu não me permiti acreditar até agora. Agora, vejo
seu rosto, ouço você falar, sinto você respirar e eu sei.
A mulher flutuou mais perto, segurou o rosto de Eliana na mão.
Eliana não sentiu nada sob seu toque, exceto por uma nova onda de
náusea. Ela fechou os olhos com força e afundou no chão.
— Eu vou ficar doente — ela gemeu.
— Perdoe-me, minha rainha. — A mulher se afastou rapidamente.
— Eu não deveria ter tocado em você. É difícil para os humanos se
ajustarem.
— Quem é você, o que é você, e por que você está me chamando
assim?
A mulher inclinou a cabeça. — Estou me esquecendo. Se você
soubesse há quanto tempo estamos esperando por esse dia... mas
então, você saberá em breve.
Eliana olhou para cima quando a mulher se esticou até sua altura
total e translúcida – dois metros, pelo menos. Seus membros
alongados lembraram Eliana desconfortavelmente de uma aranha.
— Eu sou Zahra — disse a mulher — e eu sou um espectro. E
você é Eliana Ferracora, o Terror de Orline, a última da Casa
Courverie, filha do Portador da Luz, herdeira do trono de Santa
Katell, a verdadeira Rainha de Celdaria, e... — Zahra abriu bem os
braços. Seu sorriso sombrio estava cheio de alegria. — Você é
Aquela Que Ascende. A Criança Nascida da Fúria. Você é a Rainha
do Sol, Eliana, e eu vim para levá-la para casa.
37
Rielle
“Os escritos de Katell mostram que, dentre
todas as bestas divinas, ela amava mais os
pégasos. Talvez devido à semelhança com a
égua branca que a levou para a batalha contra
os anjos. Talvez porque suas asas a
lembrassem de seu amado Aryava e lhe
trouxesse conforto após sua morte.”
—Uma Crônica das Bestas Divinas de Raliquand d'Orseau,
Primeira Guilda de Eruditos.

O pégaso não parou até que Rielle começou a se agitar em suas


costas.
Eles pousaram em um pequeno penhasco pontilhado com tufos
de grama e abrigados por rochas tão grandes quanto a carruagem
do rei Bastien. Rielle deslizou para o chão e conseguiu se afastar
alguns passos antes de esvaziar violentamente o estômago.
Depois de vomitar, ela se arrastou em direção às rochas,
buscando abrigo contra o vento. Cada movimento enviou choques
de dor através de seu corpo. O veneno tinha feito um bom trabalho;
ela sentiu como se tivesse sido martelada em todos os músculos e
ossos. Ela esperava ter conseguido colocar tudo para fora – e não
tarde demais.
Então, cascos pesados se aproximaram.
Ela olhou para cima. O pégaso se aproximara. Maior ainda do que
os maiores cavalos de guerra de seu pai, com um elegante pescoço
arqueado, uma crina preta longa e despenteada e olhos brilhantes e
inteligentes, ele se comportou como um cavalo—e, no entanto, não.
Suas narinas queimaram quando cheirou o ar ao seu redor; suas
orelhas se ergueram curiosamente.
Mas então inclinou a cabeça para o lado, como um ser humano ao
tentar entender algo novo. Havia um peso antigo em sua presença
que Rielle nunca sentira ao redor de outra criatura viva.
— Olá. — Ela estendeu a mão fracamente com um braço trêmulo.
— Você sempre foi meu favorito.
Uma forte rajada de vento da montanha bateu nela. Ela caiu,
tremendo.
Além das pálpebras fechadas, a luz mudou. Então, ao som do
movimento, ela abriu os olhos e observou, turva, o pégaso se
abaixar no chão entre o seu corpo e o céu aberto. Ele estendeu uma
de suas enormes asas emplumadas – devia ter pelo menos seis
metros de comprimento – e gentilmente a puxou para perto de seu
corpo.
Enfiada entre uma concha de penas cinzentas de ponta preta e o
calor quente da barriga do pégaso, Rielle respirou. A pelagem da
besta era impossivelmente macia, manchada de cinza como um céu
tempestuoso.
— Você é real? — ela sussurrou, colocando a mão contra o
estômago. — De onde você veio?
Em resposta, o pégaso acomodou sua asa com mais segurança
ao redor do corpo de Rielle, depois enfiou a cabeça embaixo da asa.
Rielle sentiu a pressão quente de seu focinho contra suas costas,
seguida por um sopro quente de ar enquanto soltava um grunhido
contente.
Era um ninho estranho, mas aconchegante demais para resistir;
Rielle caiu em um meio sono profundo. Seus sonhos disformes em
tons de preto.

•••

Quando ela acordou, sua mente estava clara e o pégaso a


observava.
Então. Ela não estava tendo alucinações.
Ela permaneceu quieta, confortável e quente sob o dossel da asa,
e olhou para ele.
— Eu pensei que todas as bestas divinas estavam mortas — disse
ela finalmente. Hesitante, ela colocou a mão no focinho do pégaso.
— Por que você me salvou?
Suas narinas queimaram quentes entre os dedos. Ela acariciou o
plano longo e achatado de seu rosto, os tufos de cabelos em
turbilhão entre os grandes olhos negros.
— Gostaria de saber se você tem um nome.
O pégaso estremeceu baixinho e enfiou o nariz na palma da mão
de Rielle.
— Bem — disse ela, radiante — então terei que lhe dar um.
E foi então que ela lembrou:
Aquela voz fina, logo antes de cair. Não, não cair. Logo antes de
ser empurrada.
Lembrou-se agora e sabia a quem pertencia.
— Você vai me levar para casa? — ela perguntou. — Eu preciso
matar um homem.
O pégaso a observou, imóvel.
— Está tudo bem — acrescentou ela rapidamente. — Ele merece.
Ele tentou me matar.
O pégaso grunhiu e ficou de pé. Um calafrio atingiu Rielle com
força, mas ela o ignorou, subindo em uma pedra com os dentes
batendo e deslizando nas costas do pégaso.
O pégaso olhou de volta para ela, com as orelhas espetadas.
—Bem? — Rielle passou os dedos por sua crina negra e
selvagem. — Como faço para você ir?
No mesmo instante, o animal se lançou a galope, abriu as asas e
saltou da montanha para o céu.

•••

Eles se aproximaram rapidamente pelo norte de Baingarde, subindo


alto pelas copas das árvores que cobriam o Monte Cibelline, e
depois circularam ao redor do castelo até o amplo pátio de pedra em
frente. Estava cheio de gente: o pai de Rielle e a guarda da cidade,
sua própria guarda, mãos estáveis correndo com cavalos para seus
cavaleiros. O pai dela gritou instruções; uma equipe de quatro
soldados montados decolou para os portões do sul do estaleiro.
Ele estava organizando grupos de busca, ela percebeu com uma
onda de satisfação.
Lá estava Audric, subindo em seu cavalo, e Ludivine, estendendo
a mão para tocar seu braço, e ali...
Ah. Lá estava ele, o merdinha chorão.
A raiva que fervia no coração de Rielle explodiu.
Ela puxou gentilmente a crina do pégaso e deslocou seu peso,
virando a besta para a esquerda e para baixo. Suas asas
achataram-se contra os lados ao mergulhar. Ela abaixou o corpo
contra o pescoço e fechou os olhos. O vento passou correndo por
ela, e ela extraiu o poder disso como arrancar as cordas de um
violino. Quando o pégaso pousou, a multidão lutando para se
separar dele com gritos de horror, Rielle não esperou o animal parar
antes de pular no chão.
Ela invadiu o quintal, posicionou a palma da mão na frente dela. O
vento batia rígido em sua mão como um laço de carrasco. Sua
presa a observou se aproximar, incrédula, encolhida e de rosto
branco. Ela sacudiu o pulso. O laço de vento pegou o homem em
volta do pescoço. Ainda a uns seis metros dele, ela fechou as
enormes portas duplas da entrada da frente de Baingarde e prendeu
lorde Dervin Sauvillier contra as portas fechadas – e o apertou.
Ele ofegou, agarrando a mão invisível que fechava sua garganta.
Rielle o observou com um sorriso duro, levantando a mão mais alto.
O corpo de lorde Dervin deslizou pelas portas até ele estar a uns
três metros do chão, com os pés chutando loucamente.
— Lady Rielle — ele resmungou, o rosto ficando vermelho — o
quê... por quê...?
— Cale a boca, seu covarde imundo — retrucou Rielle. — Você
sabe porque.
Audric correu para ela. — Rielle, o que você está fazendo?
— Pare! — Ludivine se jogou na frente das portas, tentando
alcançar em vão os pés do pai. — Rielle, você o matará!
— Ele tentou me matar. — Rielle apertou os dedos com mais
força. Lorde Dervin se contorceu, engasgando. — Ele me drogou,
me levou para as montanhas, me jogou de um penhasco. Estou
apenas devolvendo o favor.
Vagamente, ela ouviu suaves gritos de choque entre a multidão
reunida.
Ludivine virou, de boca aberta em descrença. — Você está
mentindo.
— Diga a ela, Lorde Dervin.
Quando o homem não respondeu, Rielle deu dois passos furiosos
e cerrou a mão quase em um punho completo. — Diga a verdade à
sua filha — ela gritou, — ou eu o executarei por seu crime aqui e
agora!
Com os olhos esbugalhados, e rosto com um tom de roxo
profundo e vívido, Lorde Dervin finalmente ofegou: — É verdade. Eu
tentei matá-la.
As mãos de Ludivine voaram para sua boca. Exclamações
consternadas percorreram a multidão.
E ainda assim Rielle não se mexeu. Seus pulmões estavam em
chamas, a mão que segurava o laço tremia branca e uma franja de
ouro brilhante girava em torno da borda de sua visão.
Mate-o, gritou seu coração.
Mate-o, rugiu seu sangue furioso.
Mate-o, sussurrou Corien.
Audric se colocou entre ela e as portas, e pegou sua mão vazia na
dele.
— Rielle, olhe para mim. — Sua voz era baixa, mas firme. — Eu
preciso que você olhe, por favor.
Rielle balançou a cabeça e rosnou: — Ele tentou me matar.
— Eu sei. E acredite, ele será punido por isso. Eu mesmo cuidarei
disso.
Ela piscou e com isso, sua visão clareou; o sangue dela esfriou.
Relutantemente, ela desviou os olhos selvagens de seu possível
assassino e olhou para Audric.
— Por favor, querida. — Audric deu um sorriso tenso. — Escute
minha voz e deixe-o ir. Se você matá-lo aqui, na frente de todos...
Rielle sabia que ele estava certo. De repente, ela se virou,
deixando a mão cair. Lorde Dervin deslizou para o chão com um
grito sufocado.
— Chame os curandeiros! — Ludivine chorou, segurando o pai
nos braços da melhor maneira possível.
— Por você — disse lorde Dervin, com a voz rouca e áspera. Ele
tocou o rosto dela. — Eu fiz isso... por você. Ludivine.
Sua pele zumbia com energia furiosa, Rielle se virou para
examinar a multidão. Quando ela encontrou quem estava
procurando, observando-a espantado do centro do quintal, ela se
aproximou dele imediatamente.
— Sua Santidade. — Ela fez uma reverência e depois falou alto o
suficiente para que todos reunidos pudessem ouvir. — Eu me
pergunto se você pode me acompanhar ao Firmament? Gostaria de
rezar para São Ghovan e ao vento por poupar minha vida, e não
consigo pensar em mais ninguém que prefiro ter em companhia.
O pégaso se juntou a ela, sacudindo a cabeça.
O Arconte não conseguiu parar de encarar a criatura, seu rosto
ficou mortalmente pálido. — Eu não entendo — ele murmurou. —
Todas as bestas divinas estão mortas. Lady Rielle, como você fez
isso?
Era uma pergunta que ela mesma estava se fazendo. — Eu ia
morrer — ela respondeu honestamente — e pedi ao empirium que
me salvasse. Eu estava drogada e não podia usar meu poder,
então...
— Então o empirium... te enviou isso? — O Arconte fez um gesto
impotente para o pégaso. Ele bufou e bateu no ombro de Rielle com
o nariz.
Pela primeira vez desde que Rielle o conhecera, o Arconte parecia
um pouco perdido.
— Devemos? — Ela ofereceu-lhe o braço. — Para o firmament?
Sem uma palavra, o Arconte segurou em seu braço, enquanto
avançavam pelo pátio lotado, ele disse calmamente: — Cuidado,
Lady Rielle. Isso não é mais uma questão de provas e figurinos. —
Ele olhou de volta para o pégaso, que os seguia à distância. A
multidão assombrada chegou tão perto quanto ousou. Alguns
fugiram em pânico, gritando avisos. — O empirium ajudou você
hoje, mas nem sempre o faz. É meu dever testá-la. Não quero ver
você esgotada.
— Você não quer?
O Arconte não respondeu à provocação em sua voz, e quando
Rielle olhou para ele, ela viu uma nova expressão em seu rosto,
atraída e pensativa, que enviou uma emoção por seu corpo. Ela não
conseguiu decifrar a sensação.
Medo?
A voz de Corien veio cantando: Ou apetite?
38
Eliana
“Nem todos os anjos são iguais, e nem todos
adoram os pés do imperador. Há quem tenha
pena de nós e acredita que as ações do
imperador são cruéis e injustas. Eles
permanecem sem corpo e são considerados
traidores dos seus, tudo por se aliarem aos
humanos – descendentes daqueles santos de
tempos atrás que uma vez conduziram os
anjos para o Abismo.”
—A Palavra do Profeta

Eliana afundou no chão com uma pequena risada sombria e


esfregou as palmas das mãos contra os olhos.
— Não tenho tempo para ficar ouvindo... o que quer que isto seja.
E o que quer que sejas. — Eliana se levantou e foi até a porta. Ela
estava alucinando. Ela estava conversando com uma alucinação.
— Meu nome é Zahra — disse o espectro.
— Certo.
— Rozen não está aqui.
Eliana se virou. Um sentimento lento de pânico se desabrochou
em seu peito. Ela manteve o rosto dela em branco. — Quem é
Rozen?
— A mulher que você pensa que é sua mãe, mas realmente não
é.
— Você conhece uma saída daqui?— Alucinação ou não, se ela
pudesse usá-la para escapar, ela faria.
— Sim.
— Então, mostre para mim ou vá se foder, por favor?
Zahra levantou uma sobrancelha flutuante. — Não foi assim que
eu imaginei que você seria.
— Me desculpe por decepcioná-la — Eliana voltou a bater na
porta cheia de raiva, com os punhos cerrados.
O espectro apareceu entre seu corpo e a porta. Os punhos de
Eliana voaram através do torso do espectro. Seu equilíbrio se
inclinou, sua visão entrou e saiu de foco. Ela se afastou
rapidamente.
— O que é isso? Toda vez que você chega perto de mim...
— Você se sente doente. — Zahra assentiu tristemente. — É uma
aflição humana comum quando se está na companhia de espectros.
Você vai se acostumar com isso ao longo do tempo. Outros se
acostumaram. Embora você pareça ser afetada muito mais que a
maioria. Não é de surpreender, dada sua ancestralidade. Sua
sensibilidade a mudanças no empirium é indubitavelmente maior.
Eliana olhou para o chão. — Tire-me daqui.
— Espere um momento.
— Tire-me daqui...
O espectro se ergueu à sua altura máxima mais uma vez, seus
olhos negros brilhando. — Nós ainda não podemos sair. Devemos
esperar primeiro até que a mudança de turno esteja concluída e
segundo para você se acalmar, para ter certeza de que você não
fará algo precipitado colocando-se em perigo. — Zahra exalou
bruscamente, considerando-a. — A mensagem de Simon foi
precisa. Quando você está com raiva, você muito se assemelha a
sua mãe. Que perturbador.
Eliana balançou a cabeça. — Esta é uma ilusão bastante
elaborada.
Zahra levantou uma sobrancelha divertida. — Garanto que sua
mente está bastante sã.
— Você conhece Simon, não é?
— Eu conheço. Porém, somente através de mensagens passadas
pelo subsolo. Eu sirvo o Profeta, e ele também.
— O Profeta isso, o Profeta aquilo, — Eliana murmurou,
esfregando as têmporas. — Quem é esse homem, e por que todo
mundo bajula ele? O que ele quer, afinal? Tem que haver mais nele
do que simplesmente algum desejo nobre e altruísta de salvar o
mundo da tirania. E há quanto tempo ele está por aí? Existe um
profeta ou muitos?
— Você certamente tem muitas perguntas. Eu não culpo você. —
Zahra desviou o olhar para a porta, e inclinou a cabeça. Será que
estava ouvindo algo? — Mas talvez tenhamos que esperar mais um
pouco para ter uma aula de história sobre a Coroa Vermelha.
— Você é a Coroa Vermelha?
— Obviamente. Como eu disse, sirvo o Profeta.
Eliana queria dar um soco em algo. — O que estamos esperando
exatamente? Eu prometo que não vou agir precipitadamente. É isso
que você quer ouvir, minha amiguinha imaginária? Toda a minha
precipitação fugiu, eu juro.
A boca negra de Zahra afinou. — Não importa quanto tempo eu
passe entre seres humanos, às vezes esqueço que devo realmente
expressar meus pensamentos para vocês entenderem.
— Em oposição a?
— Quando falo com meus parentes — explicou Zahra— não
preciso de palavras.
— Espere, você... — Remy poderia estar certo? As histórias
antigas eram verdadeiras depois de tudo? — Você quer dizer
telepatia.
Zahra inclinou a cabeça.
O sangue de Eliana gelou. De repente, a ideia de conversar com
sua própria alucinação não a divertia mais. — Você é um anjo.
— Uma vez eu fui. Mas não mais.
— Bem — disse Eliana, pegando a bandeja do chão, — se eu
ainda não havia decidido se deveria desconfiar de você, certamente
o faço agora.
— Eu entendo essa compulsão. Nossas duas raças nem sempre
foram amigas.
— O que você quer comigo?
— Levá-la para casa — disse Zahra pacientemente — como eu
disse antes.
— Para Orline? Por quê?
— Não Orline. Celdaria. Não podemos ir imediatamente para lá, é
claro, mas...
— Eu nunca estive em Celdaria — Eliana estalou, embora seu
estômago apertasse desagradavelmente ao nome do reino do
extremo oriente. Sua visão do Imperador voltou para ela, como se
tivesse sido esculpido em sua mente e coberto de poeira, e agora
um vento forte a havia descoberto.
— Você já o fez — Zahra argumentou. — Minha rainha, você
nasceu lá.
— Ah, entendo. Claro que sim.
Zahra fez uma careta. — Você está zombando de mim.
— Diga-me o que você quer que eu saiba, e eu direi sim a tudo, e
eu vou acreditar no que você quer, desde que você me tire desta
cela e me ajude a encontrar Navi.
— Receio não poder fazer isso.
— Mas você acabou de dizer...
— A princesa Navana não é nossa prioridade. Nem, devo
acrescentar, Rozen Ferracora. Você, Eliana, é tudo o que importa –
à Coroa Vermelha, ao Profeta, a todos os inimigos do Império.
— Se você não me ajudar a resgatar Navi e me ajudar a procurar
minha mãe, farei cada último segundo de sua vida um sofrimento
cheio de agonia.
— Eu duvido disso — disse Zahra — pois você morrerá muito
antes de mim.
Eliana congelou. — Isso é uma ameaça?
— É um fato. Você é humana. Eu já fui um anjo, e agora estou
para sempre presa como isso. — Ela abaixou as mãos com os
dedos longos, e tocou melancolicamente em suas vestes. — Vou
viver muito além da era em que o último ser humano andar pela
terra. E, no entanto, se tiver a chance de retroceder no tempo, eu
faria a mesma escolha.
Eliana estreitou os olhos. — Que escolha é essa?
— Eu preferiria permanecer nesta forma – sem toda a fisicalidade
– do que ressuscitar. O que muitos de meus parentes fizeram é
abominável.
Na expressão vazia de Eliana, Zahra suspirou. — Devo assumir a
partir do olhar em seu rosto que você, a Rainha do Sol, não está
familiarizada com as histórias de como o mundo era antes?
— Eu conheço as histórias — disse Eliana, impaciente. — Meu
irmão não cala a boca sobre elas.
A expressão de Zahra se suavizou em algo como pena. — Simon
enviou uma mensagem sobre ele também. Remy, sim?
Lágrimas subiram quentes e repentinas nos olhos de Eliana. —
Não se atreva a dizer o nome dele.
Zahra a alcançou, depois fechou a mão e flutuou para trás. — Eu
desejo poder tocar em você e lhe dar conforto, minha rainha. É isso
que sinto falta acima de tudo sobre o meu corpo.
Eliana olhou para o teto, desejando que seus olhos secassem. —
Você pode me chamar de Eliana. Nada mais.
— Como quiser, Eliana. Mas qualquer que seja o nome que eu
use, ele não altera a verdade. Você é minha rainha e eu a sirvo com
grande alegria.
— Então — disse Eliana entre dentes — me tire daqui.
— Eu sempre pretendi fazer isso — disse Zahra pacientemente,
apontando para a porta. — A mudança de turno está em
andamento. Em cinco minutos, uma vez que os novos guardas se
estabeleceram em seus postos, será seguro sair. Acredite em mim,
minha rainha, não a manteria aqui por mais tempo do que o
absolutamente necessário.
— Vou começar a bater nessa porta e arruinar nossa suposta fuga
se você não abrir neste instante.
— E eu aqui pensando que toda a sua precipitação havia fugido.
— Eu não estou brincando, quem você é?
— Zahra.
— Sim, certo.
— De qualquer forma, sinta-se livre para bater na porta o quanto
quiser — disse Zahra, cruzando os braços vaporosos
presunçosamente sobre o peito. — Ninguém vai ouvir você.
Eliana estreitou os olhos. — E por que não?
— Embora eu possa não parecer mais um anjo, e embora minha
mente não esteja o que era antes, ainda posso usá-la. E agora eu
estou usando para fazer o vermes de Fidelia esquecerem que você
está aqui.
O coração de Eliana bateu forte nos ouvidos. — Você quer dizer...
você está me escondendo.
— O melhor que posso, sim. — Zahra hesitou. — Embora uma
vez que Semyaza nos encontre, isso vai mudar. Os espectros não
são fortes o suficiente para enganar outros espectros.
— Semyaza?
— Ele serve a essa facção de Fidelia. Ele os ajuda a caçar, os
disfarça, e distrai suas presas. Foi ele quem você sentiu no
Santuário. — Zahra torceu o nariz. — Você descobrirá, Eliana, que
nem todos os espectros são tão iluminados quanto eu.
— O que ele quer? Por que ele os está ajudando?
— Semyaza espera que, se ele servir o Império lealmente, uma
vez que o Imperador encontrar a Rainha do Sol e a prender a ele,
Semyaza será ressuscitado. Ele finalmente ganhará um corpo.
Eliana balançou a cabeça, afastando-se de Zahra. — Eu não
entendo o que você está dizendo. Ressuscitado?
— Seria mais fácil mostrar a você, Eliana. Se você me permitir
tomar posse da sua mente? — Ela inclinou a cabeça em direção à
porta. — Nós temos apenas tempo o suficiente para isso.
— Tomar minha mente. Como o Imperador fez?
— O que? — As mechas flutuantes dos cabelos e roupas de
Zahra ficaram rígidas. — Você falou com o Imperador?
— Em um posto avançado há vários dias, eu estava... estava com
lorde Morbrae. Ele olhou para mim e algo mudou. Eu vi o imperador.
Eu estava na Celdaria de alguma forma. Não consegui ver nada
muito bem, mas vi o suficiente. E o Imperador, ele me encontrou ali,
e ele... ele me conhecia. Eu não soube se ele estava feliz ou furioso
ao me ver. E eu não sei qual é pior.
Zahra fechou os olhos. — Simon não mandou notícias disto. Oh,
ele viu você. Ele sabe, então, que você está viva.
— Por que o Imperador se importa com quem eu sou ou se estou
viva?
Os enormes olhos escuros do espectro estavam terrivelmente
tristes.
— Posso te mostrar, Eliana? — Zahra sussurrou. — Perdoe-me,
mas será mais fácil para mim do que palavras. — Ela balançou a
cabeça e afundou no chão. — Isto é um choque. Este é um golpe
terrível.
Eliana se agachou diante dela. — Você jura que minha mãe não
está aqui?
Zahra espiou por trás dos cabelos. — Sim. As instruções de
Simon foram para enviar uma mensagem se algum de nós a
encontrasse. Mas eu não a encontrei.
— Espere. — O corpo de Eliana ficou tenso como uma corda de
arco. — Ele sabia que Fidelia levou ela?
Zahra assentiu miseravelmente. — Disseram-nos todos para
cuidar dela.
Então, Simon sabia. Ele sabia quem havia levado a mãe dela – e,
Eliana suspeitava, ele sabia que Fidelia estava por trás dos outros
sequestros também.
E ele não fez nada sobre isso. Ele a levou através do país nesta
busca selvagem, sem sequer sussurrar a verdade.
Ela agarrou os joelhos com força e olhou para o chão de pedra
manchada da sua cela.
Eu vou matá-lo por isso.
— Você pode me mostrar o que você quer me mostrar — disse
ela, sua voz tremendo com fúria mal contida, — desde que você me
ajude a encontrar Navi antes de deixarmos este lugar. Temos um
acordo?
Zahra assentiu. — Sim, Eliana. Eu prometo isso a você.
Eliana deu um aceno sombrio. — Então faça. Rapidamente.
Sem aviso, Zahra entrou em colapso em uma nuvem torcida de
luz e sombra. Sua nova forma lembrava grandes asas negras e
irregulares.
Então ela correu para Eliana e desapareceu.
E Eliana abriu os olhos – e ela viu.
•••

Ao contrário de quando ela viu o Imperador, essa visão era muito


mais clara.
Não havia neblina bloqueando sua visão. Ela sentiu o chão duro e
fumegante sob os pés dela. O ar estava próximo, ondulando com o
calor; suas narinas queimavam das cinzas que escureciam o ar.
Um movimento no canto do olho a fez se virar. Uma mulher ficou
observando-a, alta e de pele de ébano, vestindo uma armadura de
platina manchada. Seus grossos cabelos brancos caíam em tranças
pelos quadris e tinta dourada contornou seus olhos escuros. Asas
maciças de luz e sombra se deslocavam para fora de suas costas.
— Zahra? — Eliana sussurrou.
Até o pequeno aceno de Zahra era magnífico. — Tal como eu fui
durante as Guerras Angélicais. Antes do Portão. Antes da longa
maldição do Abismo e da perda de meu corpo. — Então ela
apontou. — Olhe, Eliana.
Eliana olhou de soslaio pela planície com faixas de fogo e as
imagens correram para ela como os horrores de um pesadelo:
Uma mulher estava em um pedestal distante e plano. Ela levantou
os braços e esculpiu um portal ofuscante no céu.
Um castelo brilhou em branco, depois caiu, e do Abismo ao seu
redor correu uma onda de ruína. Houve um grito de dor e medo, um
coro de milhares – milhões – e depois silêncio.
Os gritos de uma mulher em uma cama ensanguentada.
Um bebê, segurado firmemente nos braços de um menino. Eliana
espiou por cima do ombro do menino, e ela sabia quando ela olhou
para a criança que o rosto olhando para ela era o dela. Então ela se
virou para ver o garoto e...
Uma vastidão de sombras, cheio de gritos estranhos demais para
pertencer a qualquer um, humano ou animal. Havia uma luz no
horizonte e uma figura em pé ao lado. Eliana gritou, esmagada pelo
peso solitário deste lugar, e correu em direção à luz...
Ela estava de volta à planície iluminada pelo fogo, vendo uma
mulher se ajoelhar ao lado de um cadáver desmembrado e
ensopado de sangue. A mulher estava de costas para Eliana. Ela
usava uma armadura preta e uma capa vermelha. A mulher moveu
as mãos pálidas sobre o cadáver, apalpando no crânio e na
clavícula, no peito e através dos quadris cortados. O ar ao redor do
cadáver brilhava, mudava e então a mulher sentou-se calma e o
cadáver estremeceu, ofegou e cambaleou para seus pés. Ele não
era mais um cadáver. Sua pele estava inteira e nova, seus membros
intactos. Ele deu alguns passos instáveis antes de cair de joelhos.
Ele olhou para o corpo e depois estendeu os braços e gritou para o
céu – com alegria, com alívio, com fúria.
A mulher levantou-se, suave e silenciosa, aos seus pés.
— Você está trabalhando mais rápido agora — disse o homem ao
lado dela, a quem Eliana não tinha notado antes. — Bem feito. —
Ele puxou a mulher para um abraço e Eliana ficou paralisada de
horror quando seus rostos apareceram.
A mulher era morena e indescritivelmente bonita, com um rosto
tão pálido e sem falhas, que poderia ter sido esculpido em porcelana
– exceto pelas sombras se esticando escuras sob seus olhos verdes
e o pequeno sorriso faminto curvando em sua boca.
Eliana levou dedos trêmulos aos próprios lábios.
Minha boca, ela pensou e depois tocou suas próprias pontas
quebradiças dos cabelos escuros emaranhados. Meu cabelo.
E o homem parado ao lado dessa mulher – de olhos azuis em vez
de preto, mas com o mesmo rosto pálido e adorável e postura
despreocupada que adornava a pintura, como retratos no palácio do
Lorde Arkelion. Cabelo preto, manto coberto de lama, uma espada
manchada de sangue em seu cinto. Ele guiou a boca da mulher até
a dele e ela se agarrou a ele como se o beijo deles fosse a única
razão pela qual ela permaneceu de pé.
O Imperador.
Eliana recuou freneticamente, tropeçou em outro cadáver e caiu
no chão duro.
O mundo mudou, escureceu.
Ela piscou.
Ela retornou a sua cela e Zahra pairou silenciosamente na frente
dela – uma mera distorção do ar mais uma vez, efêmera e sem
asas.
— Por favor, respire, Eliana — Zahra insistiu gentilmente. — Eu
sei que é muito para entender.
Eliana ofegou, com lágrimas escorrendo pelo rosto. O crânio dela
também parecia pesado para seu corpo. Sua pele ainda estava
vermelha das chamas do campo de batalha.
— Era ele — ela resmungou. — Esse era o Imperador. Mas...
— Esse era o Imperador antes de se chamar Imperador. Quando
o seu nome era simplesmente Corien. Ele foi o primeiro de nós a
escapar. E eu lamento que ele tenha conseguido.
Remy estava certo. O pensamento continuou circulando pela
mente de Eliana. Eles eram anjos. O Imperador, seus generais,
Lorde Arkelion, Lorde Morbrae. Remy estava certo.
— E a mulher — ela sussurrou. — Eu conheço o rosto dela.
— Eu imagino que sim. — Zahra tocou as mãos de Eliana, e
Eliana não sentiu nada. — Pois é o seu, não é?
— Parcialmente. Mais bonito. Mais...
— Mais cruel. — Zahra deu um pequeno sorriso. — Você tem um
rosto gentil, Eliana, embora você tente não aparentar.
Eliana cruzou os braços e fechou os olhos. — É por isso que ele
reconheceu a mim. O Imperador Corien.
Zahra ficou calada.
— O que eles estavam fazendo? —Eliana perguntou. — Aquele
corpo.
— O que ele falhou em realizar com sua mãe antes da Queda
dela arruinar todo o trabalho deles — disse Zahra — e o que ele
espera terminar com você. Ressurreição. Nosso retorno – e nossa
vingança.
— Nosso. Os anjos?
— Sim, Eliana.
Quando Eliana abriu os olhos mais uma vez, seu corpo sentiu-se
preso em um ponto alto, em um vento quente—flutuando, sem
amarras.
— Espero que você esteja mentindo para mim — disse ela
finalmente. — Por favor, diga-me que você é uma alucinação. Eu
não vou ficar com raiva, eu juro.
Zahra inclinou a cabeça. — Eu queria poder dizer isso.
— Eu sou a filha da Rainha de Sangue. — Sua voz saiu oca,
pesada. — Filha da Assassina de Reis.
— Você é.
— Eu não acredito em você.
— Isso é compreensível. No entanto, isso não muda a verdade.
Eliana olhou para o chão através de uma furiosa névoa de
lágrimas. — Como eu consegui chegar aqui então? Se eu nasci
naquela época, dela, e agora estou aqui... Como?
— Receio que essa não seja minha história para contar.
Eliana riu cansada. — Claro.
— Eliana, eu não estou sendo reservada...
Eliana acenou para Zahra em silêncio. Ela esperou até que suas
lágrimas secassem, até que sentiu que podia suportar, até quase
acreditar na história que contou a si mesma – que isso era
realmente uma alucinação, algum sonho horrível trazido por
qualquer coisa que Fidelia tenha usado para deixá-la inconsciente.
Zahra disse calmamente à porta: — É hora de sair.
Eliana levantou-se, limpou o rosto na manga e disse a Zahra: —
Então me tire daqui. Eu tenho coisas para fazer.
39
Rielle
“Eu me preocupo com Tal. Eu sempre me
preocupei com ele por razões pelas quais não
sabia citar e agora entendo o motivo: porque
ele vive mentindo há anos, por causa dessa
garota, e agora está sofrendo por isso. Eu
nunca diria lhe isso, mas escrevo aqui ou
então isso irá explodir pela minha boca: eu a
odeio por fazer isso com ele. Sim, ela era
apenas uma criança quando tudo começou.
Mas depois disso, enquanto ela crescia e
aprendia? o que então? o que segurou a
língua dela? medo? ou malícia?”
—Diário de Miren Ballastier, Grã-Magister do Forge
8 de Junho, Ano 998 da Segunda Era

Quando as portas do Salão do Conselho se abriram, Rielle levantou-


se da cadeira e firmou-se em pé.
Ela não esperava que seu pai entrasse e se apressasse
diretamente em sua direção, com o rosto pálido.
Os guardas de Rielle formaram um círculo apertado ao redor dela.
— Desculpe, Lorde Comandante — disse Evyline, suas mãos
pairando acima do punho de sua espada. — Eu não posso deixar
você passar.
— Deixe-o passar — ordenou o rei Bastien, o Arconte e o
Conselho Magisterial entrando atrás dele.
Assim que os guardas se afastaram, o pai de Rielle correu e se
aproximou.
— Oh, minha querida garota — ele sussurrou contra o topo de sua
cabeça.
O choque de Rielle foi tão grande que lágrimas surgiram em seus
olhos antes que ela pudesse respirar fundo. — Papai?
— Eu sinto muito. Eu sinto muito.
Os pensamentos de Rielle se dissolveram com o toque das mãos
de seu pai. Quanto tempo fazia que ele não a segurava assim?
Anos.
Ela agarrou a jaqueta dele, enterrando o rosto no tecido duro e
áspero. Tudo de uma vez, então ela tinha quatro anos de idade
novamente e sua mãe ainda estava viva, e nada tinha acontecido,
exceto alguns incidentes estranhos e inexplicáveis: velas se
apagando, uma pia transbordando, uma rachadura aparecendo no
chão da cozinha sob o pequeno corpo de Rielle, após um momento
de raiva.
De repente, ela tinha quatro anos novamente e seu pai ainda a
amava.
— Papai — ela sussurrou — eu estava tão assustada.
— Eu sei. — Ele enxugou as lágrimas com os dedos calejados. O
implacável Lorde Comandante do exército celdariano se foi, e em
seu lugar havia um mero pai envelhecido. — Ele não vai machucá-la
novamente.
O rei Bastien, diante da mesa do conselho, pigarreou. — Lady
Rielle.
Ela se virou para encarar o rei, mas seu pai permaneceu ao seu
lado, e apesar de tudo, uma parte do coração de Rielle que ela
pensara estar morta há muito tempo inchou de alegria.
— Sim, meu rei. — Ela fez uma reverência. — Devo pedir
desculpas pelo meu tratamento ao Lorde Dervin.
— Não, na verdade você não deve. — O rosto do rei estava sério.
— Lorde Dervin foi considerado culpado de tentativa de assassinato
e está sendo enviado para casa em Belbrion, em prisão domiciliar
pelo resto de seus dias. Ele e seus cúmplices nunca mais voltarão a
pisar neste castelo.
Rielle imediatamente olhou atrás do rei para a rainha Genoveve,
rígida em sua cadeira, e depois para Ludivine, que estava sentada
no canto com as mãos firmes em seu colo. Audric estava atrás dela,
com a mão em seu ombro.
Quando os olhos vermelhos de Ludivine encontraram os dela,
Rielle teve que desviar o olhar.
— Eu... eu não sei o que dizer, meu rei — disse ela calmamente.
— Eu não posso ficar contente por isso, mas ainda assim devo
agradecer.
Mas você está feliz por isso, Corien murmurou. Na verdade, você
gostaria de ter continuado, não é? Você gostaria de ter apertado seu
punho fechado, arrancado a cabeça dele para fora do corpo
imediatamente.
Eu não gostaria.
Sua voz era baixa e zangada: Não minta para mim, Rielle.
Ela se encolheu com o som; veio como um tapa forte.
O sorriso do rei Bastien era tenso, mas genuíno. — Estou feliz que
você esteja segura, Lady Rielle — ele disse, tomando sua cadeira.
— Agora, o Arconte tem uma notícia adicional para você.
O Arconte levantou-se de seu assento. Rielle olhou imediatamente
para Tal, que estava tentando sem sucesso esconder seu sorriso.
Ao lado dele, Sloane fez uma careta e lhe deu uma cotovelada
nas costelas.
— Lady Rielle — começou o Arconte — é de decisão unânime do
Conselho Magisterial, inclusive eu, que, dados os eventos recentes,
devemos renunciar aos dois desafios restantes e agora começar o
processo de canonização.
Rielle olhou para ele, com o silêncio se acumulando ao redor dela
em carretéis grossos até que ela finalmente conseguiu dizer: —
Mas... o que isso significa?
— Lady Rielle, isso significa que você demonstrou um tremendo
controle e poder em todos os seus desafios até agora...
— E com isso —interrompeu o Grão Magister Duval com um
sorriso largo — por sobreviver a uma queda de uma montanha e
voltar para casa não apenas viva, mas com uma besta divina
voadora, você cumpriu mais do que os requisitos do desafio do
vento.
O Arconte fungou. — Em resumo, Lady Rielle, aos olhos da Igreja,
você é de fato e indiscutivelmente a Rainha do Sol, como predito
pelo anjo Aryava, e, portanto, serão concedidas todas as proteções
e privilégios devidos a você como símbolo da Igreja e da protetora
de Celdaria.
Enquanto Rielle o ouvia falar, seu coração batia cada vez mais
rápido até que parecia pronto para explodir em seu peito.
Não há mais desafios.
Não há mais treinamento.
Não há mais quartos escuros ou se esconder ao longe.
Tudo isso, e um reino cheio de pessoas – um mundo cheio de
pessoas – torcendo por ela.
Mas isso seria suficiente? Eram cinco desafios – quatro se ela
contasse o das sombras e sol como um só – e uma queda de uma
montanha suficiente para reivindicar sua coroa?
Algumas pessoas ficariam satisfeitas com isso, mas não todas.
Alguns insistiriam que ela lutasse contra o único elemento restante
que ela não tinha enfrentado.
Fogo.
Ela olhou para Tal, viu-o observando-a atentamente. Uma emoção
de seu mais antigo e mais profundo terror percorreu sobre sua pele.
Tal assentiu, sua boca em uma linha sombria, mas seu olhar era
suave.
— ...é claro — dizia o Arconte, — ainda devo discutir o que
aconteceu com as outras igrejas do mundo. Mas as histórias de
seus desafios já se espalharam tão longe e tão rapidamente que
duvido que terei problemas em convencê-los do que e de quem
você é. Você os visitará, se precisar, para provar a si mesma. Ou
eles virão aqui, e mostraremos a eles que quaisquer dúvidas que
possam ter são infundadas.
Ao lado de Rielle, seu pai se irritou. — Ela deve ser exibida como
uma cavalo premiado?
Mas Rielle mal os ouviu.
Ela só ouvia a mãe:
Rielle, querida, por favor, ajude seu pai a apagar o fogo.
Rielle, é hora de dormir.
Rielle, não vou pedir novamente!
Ela abriu os olhos. Inspirando, ela sentiu o cheiro da fumaça da
casa dos pais desmoronando em cinzas, ouviu os horríveis sons
sufocados de seu pai soluçando sobre o corpo de sua esposa.
As palavras de Corien foram gentis: Você não é sua mãe. As
chamas, se você enfrentá-las, não vão te machucar.
A respiração de Rielle se prendeu às lágrimas que ela não
deixaria cair. Me machucar não é o que tenho medo.
O Arconte estava se dirigindo ao pai de Rielle. — Eu não posso
dizer o que as outras igrejas exigirão dela. Mas tenha certeza, Lorde
Comandante, que tudo o que eles solicitarem terá que passar por
mim antes de tocar sua filha.
— Isso também significa, Lady Rielle, — disse o rei Bastien — que
uma vez que você esteja ungida como Rainha do Sol, você
assumirá não apenas os privilégios da posição mas também as
responsabilidades. Você entende o que isso significa.
Rielle balançou a cabeça. — Não. Eu não concordo com isso.
— Perdão? — perguntou o rei.
— Aceito sua oferta generosa em relação ao desafio do vento,
meu rei — ela disse. — Eu sobrevivi à minha queda; eu sofri a ira do
vento. Bem. Mas... — ela olhou para Tal, implorando — Preciso
concluir o desafio de fogo.
O Arconte franziu o cenho. — Lady Rielle, mas decidimos que não
será necessário.
— Perdoe-me, Vossa Santidade — interrompeu Tal — mas Lady
Rielle está certa. — Ele a deu um pequeno sorriso e depois se
dirigiu ao rei. — Alguns no mundo vão ficar satisfeitos com quatro
provas e uma queda de uma montanha. Mas nem todos. Alguns vão
insistir que Rielle lute contra o único elemento que ela ainda não
enfrentou. E isso é o fogo.
Rielle piscou, assustada. Você disse a ele o que falar?
Eu o cutuquei dessa maneira, respondeu Corien. Seu mentor tem
uma notável mente aberta, mais fácil de entrar do que a maioria.
Por favor, não. Rielle engoliu em seco contra uma repentina
inclinação de medo. Ele não. Nenhum deles.
Corien ficou em silêncio. Então, sua voz tímida e enrolada soou:
Devo lhe dizer que segredos descobri naquela cabeça loira e bonita
dele?
— É isso que você quer, Rielle?
A sala inteira estava olhando para ela. Levou um momento para
perceber que Audric tinha falado. Ela reuniu sua mente dispersa.
— É — ela respondeu. — Não apenas para mostrar ao mundo
que eu dominei cada um dos elementos, mas também porque...
minha mãe morreu em um incêndio. De minha própria criação.
À sua esquerda, seu pai ficou tenso. Ela pegou a mão dele, seu
coração estava na garganta.
Depois de um momento, ele enrolou os dedos nos dela.
A parte de Rielle que ganhou vida quando seu pai a abraçou
agora criou asas e a levou para o céu.
— Eu gostaria — ela disse — de provar a mim mesma e a meu
pai que não sou mais aquela garota de cinzas e ruínas. Eu sou mais
forte do que ela era. Eu sou mais forte do que qualquer chama que
arde.

•••

Naquela noite, Rielle pulou o jantar e caminhou pelos seus quartos.


— Tem certeza de que não quer comer alguma coisa, minha
senhora? — perguntou Evyline do seu posto junto à porta.
— Tenho certeza, Evyline, obrigada.
Evyline olhou para o terraço. — Você acha que sua amiga bestial
irá ficar conosco por muito tempo, minha senhora?
Rielle sorriu ao ver o pégaso lá, dormindo enrolado sob a luz do
crepúsculo no terraço de pedra tão feliz quanto um gato.
Um gato muito grande e muito parecido com um cavalo.
— Não conheço os caminhos das bestas divinas — disse ela a
Evyline. — Mas eu certamente espero que ela fique.
Evyline puxou seu colar com inquietação. — Você acha que, se eu
pedisse, ela me deixaria acariciá-la?
— Ora, Evyline, eu nunca a vi tão tímida.
Uma batida na porta as interrompeu.
— Lady Ludivine está aqui para ver Lady Rielle — chamou
Dashiell, do corredor.
Toda alegria desapareceu do coração de Rielle. — Por favor,
deixe-a entrar, Evyline.
Evyline parecia duvidosa, mas obedeceu, com a mão na espada.
Ludivine entrou, parecendo completamente atormentada – seu
cabelo estava uma bagunça, e seu rosto estava vermelho e inchado.
— Olá. — Ela não conseguiu encontrar os olhos de Rielle. — Eu
queria ver se você estava bem.
— Bem, eu estou viva — disse Rielle brevemente, depois
estremeceu. — Desculpe. Estou bem. Somente em repouso.
Ludivine assentiu devagar, sentando em uma das cadeiras perto
da lareira. — Entendo.
Um silêncio terrível encheu a sala.
Por fim, Rielle soltou um suspiro e sentou-se em frente de
Ludivine. — Lu, não sei o que você quer que eu diga ou faça agora,
mas não vou me desculpar por...
— Eu não quero que você peça desculpas — Ludivine retrucou.
Então ela esfregou a mão sobre o rosto e suspirou. — Gostaria que
você não tivesse tentado matar meu pai? Sim. Gostaria que ele não
tivesse sido mandado para casa? — Ela fez uma pausa. — Não. Eu
estou feliz por isso. Estou tão furiosa com ele que mal consigo
pensar direito.
Ela balançou a cabeça, encarando o fogo. Então ela se ajoelhou
perante Rielle, juntando as mãos de Rielle nas dela.
— Se estou feliz que você esteja viva? — Ludivine sussurrou. —
Oh minha querida. — Ela puxou Rielle para um abraço desajeitado.
— Eu te amo tanto que sinto que posso quebrar com isso. Estou tão
feliz que você esteja bem.
Rielle ajudou Ludivine a se levantar e a levou até a cama. Ela
recuou as cobertas e ajudou Ludivine a se deitar, depois se
aconchegou perto dela. Descansando a bochecha no ombro de
Ludivine, ela deixou Ludivine chorar, e, finalmente, quando Ludivine
parou, Rielle ergueu os olhos com um sorriso.
— É melhor você não esfregar o nariz no meu cabelo.
Ludivine soltou uma risada trêmula. — Posso ficar aqui esta noite?
— Eu insisto que você o faça.
Outra batida na porta: — Príncipe Audric está aqui para ver Lady
Rielle.
— Deixe-o entrar — disseram Ludivine e Rielle ao mesmo tempo.
Audric entrou, depois hesitou quando viu Rielle e Ludivine na
cama. — Eu posso voltar mais tarde.
— Não se atreva. — Ludivine deu um tapinha nos travesseiros. —
Venha. Nós estamos dando uma festa.
Audric se aproximou com cautela. — Você está chorando, Lu?
— Sim, ela está — respondeu Rielle — e se você não se apressar
e vier para cá, ela começará tudo de novo e você se sentirá péssimo
com isso.
Audric passou a mão pelos cabelos. — É realmente a coisa mais
sábia a se fazer? Quero dizer, considerando...
— Audric, acalme-se, não há nada de errado nisso. Eu quase
morri hoje. Eu pensei que nunca mais veria nenhum de vocês e
gostaria que meus amigos estivessem perto esta noite. Venha
deitar-se conosco. — Ela sentou-se, estendeu a mão para ele. —
Igualmente como quando éramos pequenos?
Sua expressão ao pegar-lhe a mão dela era insuportavelmente
carinhosa. — Nós não somos mais pequenos.
— Finja para mim. Costumávamos brincar de fingir o tempo todo.
Lembra?
Ludivine riu. — Lembro-me de um certo príncipe obcecado em
fingir que era um cavalo dia e noite, correndo pelos corredores de
quatro, e fazendo barulhos batendo nos joelhos.
Audric se sentou na cama ao lado de Rielle, por cima dos
cobertores. A decepção a irritou, mas ela mordeu a língua para não
provocá-lo. Ela ficaria satisfeita com a proximidade dele e com o
calor sólido do seu corpo.
— Eu era um cavalo muito bom, eu pensava — disse Audric. —
Eu tinha o relinchar e tudo.
— Houve um dia em particular — acrescentou Rielle — quando
você colocou um dos lenços de sua mãe em suas calças e fingiu
que era o seu rabo.
A tosse de Evyline parecia suspeita como se fosse para esconder
seus risos.
— Vá em frente — disse Audric, esticando-se na cama com um
suspiro feliz. — Continue envergonhando-me. Eu não me importo.
Ao lado de Rielle, escondido da vista junto às roupas de cama,
Audric tocou sua mão na dela. Ela colocou os dedos em torno dos
dele, o calor correndo docemente por seu corpo, e sentiu-se
perigosamente perto de se mover exatamente para onde ela não
deveria.

•••

— Você deveria ter me visitado antes.


Rielle tentou não fazer uma careta. Garver Randell tinha feito isso
o suficiente para ambos. — Foi um dia bastante cheio ontem —
disse ela secamente — com a tentativa de assassinato e tudo. Além
disso, eu vi o curandeiro do rei imediatamente.
— Esse homem é um idiota. Por que você acha que Audric vem
até mim? — Garver enroscou uma tampa em um frasco e o
empurrou sobre a mesa para ela. — Tome uma colher quatro vezes
ao dia até que se acabe. O Waspfog é um veneno desagradável.
Você sentirá náuseas por dias, não poderá fazer nada a respeito,
mas isso ajudará.
— Quanto devo a você por isso?
— Só isto: da próxima vez que você for envenenada ou quase
assassinada ou esfaqueada ou estrangulada ou...
— Eu entendi o ponto.
— Sim, bem, da próxima vez, não espere uma noite antes de vir
me ver. — Garver levantou-se da cadeira com um grunhido
cansado. — Cuidados rápidos e adequados realizados por
curandeiros que não são idiotas podem fazer a diferença entre vida
e morte. Até para Rainhas do Sol.
De costas, Rielle revirou os olhos.
— Eu vi isso — ele disse suavemente.
Rielle sorriu, depois olhou pela porta aberta para o pátio, onde
Audric estava mostrando ao filho pequeno de Garver, Simon, como
os pégasos gostavam de ser acariciados. Do outro lado do pátio, as
pessoas se aglomeravam no portão da frente da casa de Garver,
boquiabertas olhando para o príncipe e a besta, provavelmente se
perguntando por que esse garotinho era especial o suficiente para
obter uma audiência com a criatura.
— É engraçado — ela murmurou, observando atentamente
quando Simon alcançou o pescoço do pégaso com os olhos bem
fechados.
Mas o pégaso apenas fechou os olhos e se inclinou para o toque
dele.
Garver começou a varrer. — Hmm? O que é engraçado?
— Atheria geralmente não gosta quando as pessoas a tocam.
— Quem em nome de Deus é Atheria?
— O pégaso. Você gosta do nome?
— Seja qual for o nome dela, prefiro que ela não pise nas minhas
flores.
— Além de mim — disse Rielle — Atheria só deixa apenas duas
pessoas tocá-la. Audric, e agora... – Ela sorriu quando a fera
mordiscou os cabelos de Simon. O menino ficou perfeitamente
imóvel e de olhos arregalados, enquanto Audric tremia com um riso
contido. — E agora, ao que parece, seu filho é a segunda.
40
Eliana
“Cordeiros perdidos e ternos vagarão em
nosso rebanho, cegos e mudos, guiados pelo
chamado Dele. Reúna-os. Ensine a palavra
Dele. Reformule-os como Ele exige. Castigue
aqueles que O desafiam, pois estão
verdadeiramente perdidos.”
—O primeiro livro de Fidélia

Quando a porta se abriu, Eliana correu para o corredor bem


iluminado.
Um guarda estava do lado de fora, olhando fixamente para a
parede. Um molho de chaves pendia de sua mão.
Eliana encontrou as duas chaves que Zahra havia descrito – uma
de latão liso e sujo, a outra fina e prata – e as removeu do anel no
molho. Foi como Zahra havia dito: o guarda não se mexeu nem
sequer piscou.
Ela deu um passo para trás, olhando seu rosto.
O canto da boca dele se contraiu.
De acordo com Zahra, um anjo adequado seria capaz de
influenciar a mente do homem pelo tempo que fosse necessário.
Mas, como um espectro sem corpo, Zahra só poderia afetá-lo por
segundos de cada vez. E mesmo assim, ela disse a Eliana
amargamente, sua habilidade permanece imprevisível e quase
esgotada.
A mão do homem se moveu, como se estivesse dormindo. Ele
piscou. Seu corpo mudou.
— Vá. — Sua boca se moveu, mas a voz de Zahra surgiu. —
Depressa.
O homem acordaria, e logo.
Com as chaves na mão, Eliana correu pelo corredor deserto com
os pés descalços. Portas metálicas cobriam as paredes de pedra
cinza.
Encontrou a alcova que Zahra lhe contara – a entrada de um
armário de suprimentos e pressionou o corpo contra a parede. Seus
olhos lacrimejavam depois de tanto tempo na escuridão, ela olhou
para as luzes amarelas que zuniam no teto e esperou.
Um minuto se passou. Então Zahra entrou pela alcova.
— Por aqui... rápido — ela sussurrou, apontando para a porta do
armário. — Desculpe, Eliana. Eu gostaria que minha proteção fosse
tão forte quanto você merece. Mas a queda danificou muitas coisas,
incluindo a mente dos espectros.
— Não peça desculpas. Você está indo bem. — Eliana usou a
chave de latão para abrir a porta do armário e correu para dentro. O
espaço era longo e estreito, forrado de prateleiras cheias de pacotes
amarrados, pacotes de comida, caixas rotuladas com letras
desconhecidas.
Ela se agachou, procurando nas prateleiras inferiores. — Eu não
reconheço essa escrita.
— Uma das antigas línguas angelicais — explicou Zahra. — Para
ser iniciado na Fidélia, você deve aprender todas as cinco.
— E aquelas luzes lá fora, no corredor. Eu nunca vi nada como
elas.
— Energia galvanizada. Uma das muitas experiências do
Imperador. Você as encontrou?
— Ainda não. Espere. — Eliana abriu uma caixa de madeira com
fechos de metal. Dentro havia uma variedade de armas e
equipamentos, incluindo os seus. Whistler, Nox, Tuora, Tempestade.
Apenas seu amado Arabeth estava desaparecido – perdido para
sempre, ela supôs, nos pisos imundos do Santuário. Amarrou os
coldres nas pernas, nos braços e na cintura, embainhou as facas e
se endireitou com um suspiro.
Zahra observou, um sorriso ondulando em seu rosto. — Melhor?
— Muito.
— Antes de irmos. — Zahra apontou para outra prateleira. —
Acredito que aquilo é seu?
O colar dela. O coração de Eliana acelerou ao ver o bronze
surrado – embora agora a visão dessas linhas familiares a
lembrasse das palavras de Zahra: a filha do Portador da Luz. Ela
acreditava em uma história tão selvagem? E se fosse verdade,
quanto da verdade Rozen sabia?
E ainda poderia chamar Rozen de mãe? E Remy de irmão, Ioseph
de pai?
Um punhado de tristeza tomou conta de seu coração, mas ela
afastou as perguntas. Nenhum deles ligava se ela não pudesse
escapar primeiro deste lugar.
Ela colocou o colar em volta do pescoço e disse a Zahra: —
Lidere o caminho.
Elas voltaram para o corredor, mantendo-se nas sombras.
— Aqui — disse Zahra, parando do lado de fora de uma das
portas de metal. Os números pretos 36 estavam estampados em
sua superfície.
O pulso de Eliana disparou quando ela se atrapalhou com a longa
chave de prata e entrou.
— Navi? — ela sussurrou, depois de fechar a porta. — Não tenha
medo.
O ar na cela de Navi era rançoso e esquálido – restos e suor e
algo ácido e medicinal que fazia a língua de Eliana formigar. Ela viu
uma pequena pilha contra a parede oposta, correu, hesitou, depois
pegou Navi gentilmente pelos ombros e a virou.
Pairando ao lado dela, Zahra fez um suave ruído de pena.
— Ah, Navi. — Eliana respirou, incapaz de esconder o choque.
A cabeça de Navi estava raspada, e sua pele era um mosaico de
dor – hematomas escuros e feios, feridas vermelhas raivosas,
marcas negras finas com figuras numeradas ao lado, como se Navi
tivesse sido rotulada com instruções para alguma costureira má. Ao
toque de Eliana, Navi gemeu, seu rosto inchado, contraído de dor.
Eliana sussurrou. — O que eles fizeram com ela?
— O trabalho deles é abominável — disse Zahra, com a voz baixa
e furiosa. — Tentei detê-los quando podia, mas sem revelar minha
presença a Semyaza, há muito pouco que posso fazer.
As perguntas se reuniram com raiva na língua de Eliana, mas ela
as faria mais tarde. Ela levantou o corpo de Navi do chão e jogou o
braço flácido da garota em volta dos ombros. — Mostre-me o
caminho para sair daqui.
— Não posso esconder você de novo — sussurrou Zahra,
apertando as mãos esfumaçadas. — Usei a última força que tinha
naquele guarda no corredor.
Navi murmurou algo doloroso no ombro de Eliana.
— Quanto tempo até sua força voltar? — Eliana perguntou.
Zahra desviou o olhar, como se envergonhada. — Eu não posso
dizer. Minha rainha, juro para você, nem sempre fui tão fraca.
— Vamos apenas escapar como pessoas normais. Vamos lá.
Elas deixaram a cela de Navi e correram por um labirinto de
corredores, as estranhas luzes galvanizadas zumbindo no alto.
Zahra seguiu em frente, depois voltou a tempo de avisar Eliana da
aproximação dos soldados de Fidélia.
Eliana se agachou com Navi nas sombras de uma pequena
alcova, com a mão suavemente sobre a boca de Navi. Os soldados
passaram, carregando uma mulher de olhos mortos em uma maca
de lona. Protuberâncias escuras e bulbosas marcavam seu corpo.
O estômago de Eliana se revirou.
— Está limpo — Zahra sussurrou e liderou o caminho mais uma
vez.
Cerrando os dentes contra a náusea persistente da proximidade
de Zahra, Eliana seguiu. Quando elas saíram do complexo para um
pátio plano de terra, cercado por altos muros de pedra, se
esconderam atrás de caixotes empilhados com embrulhos
fedorentos que ela suspeitava serem corpos. A noite se estendia
vasta acima do complexo, com um leve azul no horizonte.
— Estamos em uma montanha? — Eliana sussurrou.
— Sim — respondeu Zahra — e não muito longe da fronteira norte
de Ventera.
Isso explicava o vento frio. — A que distância de Rinthos?
— Quatro dias caminhando.
Eliana virou a cabeça para encarar o espectro. — Quatro dias? Há
quanto tempo estamos aqui?
— Uma semana.
Eliana fechou os olhos, lutando contra uma onda de pânico. Onze
dias desde a sua captura. Onze dias longe de Remy, e nenhuma
idéia de onde ele poderia estar agora.
Navi gemeu baixinho, a cabeça pendendo no ombro de Eliana. —
Eliana?
— Teremos que correr em breve — Eliana disse baixinho. — Pode
se levantar por mim, Navi?
Zahra proferiu uma maldição.
Eliana tensionou. — O que foi isso?
— Semyaza está aqui. — Zahra empurrou a cabeça na parede do
perímetro. — Ele deveria estar caçando hoje à noite. Ele deve ter
percebido que você se foi ou sentiu minha presença.
Eliana olhou através do pátio, sem ver nada – mas então, uma
perturbação ondulou no ar. Houve uma mudança, um lampejo de
uma forma escura. Um homem, mas mais alto e com pernas mais
longas que um humano.
O medo secou sua boca. — O que nós fazemos?
— Eu vou cuidar de Semyaza — disse Zahra, sua voz dura e,
Eliana pensou, bastante satisfeita. — Você ouvirá um estrondo
quando eu bater nele e verá uma inclinação no ar. Corra para o
portão na parede leste. Corra até não poder mais e depois se
esconda na floresta. Eu vou te encontrar, se Semyaza não me
capturar primeiro.
— Te capturar?
— Te explico depois.
— Mas os guardas. — Eliana fez um gesto para os guardas da
Fidélia patrulhando o pátio. — Eu não posso lutar contra todos eles,
especialmente não com Navi.
— O que precisamos — refletiu Zahra — é um desvio.
O muro oeste explodiu.
Eliana se abaixou sobre Navi enquanto pedra e madeira voavam
pelo pátio, depois espiou através das nuvens de poeira para ver que
uma seção de trinta metros da parede havia desaparecido.
Zahra se esticou a toda a sua altura. — Bem — ela disse
alegremente — isso vai funcionar.
Então ela entrou no caos e desapareceu.
Eliana esperou, limpando o suor de sua testa.
Um estrondo baixo sacudiu o pátio, com dois ventos colidindo. A
cinquenta metros de distância e três metros acima do solo, um
pedaço de luz se deslocava e se deformava, girando como o olho do
furacão.
Zahra encontrou Semyara.
Eliana levantou Navi de volta e deu um tapa no rosto dela. Seus
olhos nublados por drogas se abriram e Eliana ficou satisfeita ao ver
uma centelha de raiva dentro deles.
— Temos que correr agora — disse Eliana — ou vamos morrer.
Navi assentiu, apertando a mandíbula.
— Segure em mim. — Eliana se virou, o braço de Navi mais uma
vez pendurado em seus ombros e correu para o pátio. Ao lado dela,
a respiração de Navi ficou pesada e falha. No tumulto de poeira e
soldados gritando, ninguém as viu—até quase chegarem ao portão
leste abandonado.
Um soldado de Fidélia saltou da torre de vigia dos portões, um
bruto revólver na mão e um cinto de munição amarrado ao torso.
Eliana derrapou até parar.
O soldado sorriu gentilmente.
— Agora, ovelhas — disse ele, gesticulando com a arma — vocês
foram pegas em toda essa confusão.
Eliana observou-o se aproximar, viu-o olhar para as facas que
amarrara ao corpo. Seu olhar endureceu; o sorriso dele
permaneceu.
— Pobres ovelhas. — Sua arma ainda apontada para o peito de
Eliana, ele tirou uma mecha de cabelo emaranhado dos olhos dela e
estalou a língua. — Tão perdida, tão jovem.
A mudança na escuridão atrás dele foi uma sugestão para Eliana.
Ela baixou os olhos para o chão e assentiu tristemente.
— Não tínhamos intenção de errar — ela sussurrou e então ouviu
o som familiar de Arabeth encontrando um lar no coração de
alguém.
Ela olhou para cima quando o soldado grunhiu, olhou boquiaberto
para a lâmina irregular de Arabeth, projetando-se de seu peito,
tossindo uma poça de sangue escuro.
Atrás dele estava o Lobo, com a máscara no lugar.
O corpo exausto de Eliana quase dobrou de alívio. Apesar de
tudo, ela disse: — Obrigado.
Simon limpou o Arabeth na capa e entregou a ela. — Eu trocarei
com você.
Eliana obedeceu, colocando Navi nos braços de Simon. Eles se
apressaram para sair do pátio e para a noite, descendo uma
encosta rochosa cheia de pedras pálidas e planas que
desmoronavam sob os pés.
— Remy? — ela perguntou.
— Seguro e escondido. — A máscara de Simon brilhava, cor da
lua. — Nós estamos indo para ele agora.
E quando chegarmos lá, Eliana pensou, apertando Arabeth
enquanto corria, falaremos a sós, com minha lâmina na sua
garganta.
41
Rielle
“Ninguém pode ter certeza das últimas
palavras de Audric, o Portador da Luz, mas
nos dias que antecederam o outono, sussurros
viajaram rapidamente pelo mundo. Suas
últimas palavras, disseram os sussurros,
foram para sua assassina: “Eu te amo, Rielle.”
—Os Últimos Dias do Rei de Ouro autor desconhecido

Três dias. Rielle se arrastou para seu quarto muito tempo depois
que o sol se pôs. Três dias até o desafio do fogo.
E então... o quê?
— Minha senhora — repreendeu Evyline da porta. — Você deveria
tentar dormir mais, pelo menos até que os ensaios terminem.
— Você está certa, Evyline — respondeu Rielle. — É só que,
quando você estiver prestes a ser jogada em um poço de chamas
mortais, irá querer estudar suas orações o máximo que puder.
— As orações são boas, minha senhora, mas dormir é melhor.
Você não pode orar nem combater o fogo se estiver exausta.
Rielle, bocejando, desamarrou a trança e sacudiu os cabelos. —
Estou inclinada a concordar. Meu pai, no entanto, não.
Depois de verificar se Atheria ocupara seu posto noturno habitual
no terraço, Rielle tropeçou para seu quarto de banho.
E congelou, de repente e completamente acordada.
Audric estava sentado em um sofá perto da janela oposta. Seu
cabelo era uma bagunça de cachos, como se ele estivesse
passando os dedos por ele há horas. Ele se levantou para encará-
la, as mãos cerradas ao lado do corpo.
Ele deu um sorriso tenso. — Olá — ele disse calmamente.
Rielle voltou para o quarto. — Evyline — ela chamou por cima do
ombro — Espero que você não se importe, mas me pergunto se
você pode me dar algum tempo sozinha.
— Minha senhora, não é seguro...
— Estou bastante segura com Atheria no meu terraço.
Como se fosse uma sugestão, o pégaso bufou além das cortinas.
— Conceda-me esse desejo, você poderia?
— Só essa noite — disse Evyline severamente, depois de um
momento. — O mínimo que posso fazer, suponho, depois de tudo o
que você passou.
— Está certo. — Rielle conduziu-a o mais gentilmente que pôde.
— Boa noite, Evyline, e obrigada por sua vigilância.
— Claro, minha senhora.
Rielle fechou a porta, trancou-a e respirou fundo para se preparar.
Quando ela se virou, Audric estava parado no meio da sala,
parecendo um pouco envergonhado.
— Desculpa por ter rastejado até aqui — disse ele — Mas queria
vê-la. Não vou criar um hábito, prometo.
— Talvez você devesse — Rielle brincou, mas sua voz saiu
trêmula.
O olhar escuro de Audric procurou o seu, depois foi para baixo.
Uma onda de nervos dançou em seu esterno. — Você quer falar
comigo sobre alguma coisa?
— Sim, é... — Agora sua voz era instável. Ele limpou a garganta.
— Receio, no entanto, que não devo. Que sou um tolo por vir aqui
hoje à noite.
— Você sabe que pode me dizer qualquer coisa.
— Eu sei.
— Então fale comigo. — Ela o alcançou. — O que foi?
Ele levou a mão dela aos lábios. — Rielle — ele sussurrou contra
a pele dela — Rielle, Rielle...
— Você está me assustando. Diga algo diferente do meu nome.
Diga algo real.
— Algo real. — Ele riu um pouco e se afastou dela. — É que...
Quando ele se calou novamente, Rielle pensou que poderia gritar.
— Audric, se você não começar a falar neste instante...
— Você entende o que tudo isso significa, não é? — Ele apontou
para o castelo ao redor deles. — Eu serei rei algum dia e você será
a Rainha do Sol.
— Bem, não se o desafio de fogo...
— Oh, Rielle. Você vencerá esse desafio como todos os outros.
Você será gloriosa, e então... — Ele passou a mão pelos cabelos,
virou-se e voltou a ela. — Então você me servirá, e se eu tiver que
enviá-la para a batalha para salvar o reino, eu o farei. Esse é o
objetivo predito da Rainha do Sol: defender e proteger. E não posso
me afastar disso simplesmente porque amo você.
Sua voz captou as últimas palavras.
Rielle se aproximou lentamente, seu coração batendo forte. Ela
tocou o braço dele, e quando ele a olhou, seus olhos calorosos e
perturbados, ela aninhou a bochecha dele na mão.
Ele se inclinou para o toque, colocou sua mão na dela e beijou a
palma. — Eu sei que não devo tocar em você — disse ele, sua voz
rouca. — Nós decidimos isso. Tínhamos boas razões. Mas, Deus
me ajude, mal consigo pensar desde aquele dia nos jardins.
Rielle se aproximou mais, puxando sua mão até a cintura dela. —
Lembre-se, Ludivine não se importa. Ela quer que a gente faça.
— Não é Lu e nem a família dela. Não mais. Agora estou
pensando... — Ele encostou a testa na dela e fechou os olhos. —
Se ao menos eu pudesse parar de te amar.
— O que você está dizendo?
— Como Rainha do Sol, você será sagrada para o nosso povo,
Rielle. Um símbolo ansiado e orado desde o início de nossa era.
— Não vamos me chamar assim, a menos que isso realmente
aconteça. Já estou nervosa o suficiente.
— O Arconte irá abençoá-la na frente de toda a cidade. Eu não
posso interferir nisso. Não posso manchar isso.
Ela se afastou dele. — Você está dizendo que me levar para sua
cama me mancharia de alguma forma?
Ele olhou para ela, impotente. — Não sei como amar você e ser a
pessoa que a envia para a guerra.
Ela cruzou os braços sobre o peito. — Só agora você percebe que
isso poderia acontecer? Para o que você acha que servem os testes
exatamente?
Ele se virou, os olhos brilhando.
Ela o seguiu. — Audric, eu quero que você ouça isso, pois só direi
uma vez.
Ele virou com a mudança na voz dela.
— Se você me enviasse para a batalha — ela disse — Eu ficaria
feliz e queimaria nossos inimigos em cinzas. Mas eu não faria isso
por você... ou por causa da profecia. Eu faria isso porque esta é a
minha casa também. E se você tentasse me manter perto de você
por amor a mim, você falharia.
Ele olhou para ela, o ar entre eles estalando tenso e furioso. Ela
levantou o queixo e o convidou silenciosamente para desafiá-la.
Mas ele não o fez. Em vez disso, ele caminhou na direção dela e
pegou sua boca faminta com a dele.
Ela ofegou com o beijo, tropeçando para trás com a força do
toque. Ele a firmou, as mãos nos quadris, e se moveu com ela até
que ficasse pressionada entre a parede e o corpo dele. Ela abriu a
boca para ele, passou os dedos por seu cabelo.
As mãos dele estavam por toda parte – primeiro aninhando o rosto
dela, depois segurando seus quadris para puxá-la para mais perto.
Quando ele arrastou os lábios pelo pescoço dela, e na clavícula,
beijando ao longo do decote do vestido, Rielle arqueou o corpo
contra o dele.
O fogo estalou e assobiou.
— Sim — ela sussurrou, puxando a camisa dele para encontrar a
pele nua. — Sim.
Sua voz era baixa. — Sim o que, querida? Diga-me onde tocar
você.
— Onde você tocou antes. Por favor, Audric.
Ele voltou para a boca dela enquanto levantava suas saias, depois
deslizou a palma da mão por suas coxas. Ao primeiro toque de sua
mão na barriga dela, Rielle se empurrou contra ele com um suspiro.
— Abra suas pernas para mim, Rielle — ele murmurou, sua voz
tremendo em seu ouvido. — Eu entendi você.
Ela obedeceu, e quando a mão dele a encontrou, acariciando
suavemente entre as pernas, ela gritou e apertou a camisa dele nos
punhos.
A parede atrás dela tremia.
Ele deslizou um dedo dentro dela, seu polegar ainda acariciando-
a. — Todas as noites desde aquele dia — ele sussurrou contra a
boca dela — Eu sonhei com isso. Eu acordo com o seu nome nos
meus lábios.
Não importava como Rielle se movia, ela não conseguia se cansar
dele. Ela enfiou as unhas nas costas dele, puxando-o para mais
perto. — Mais rápido, Audric. Mais forte, por favor.
Ele obedeceu. — Assim?
— Sim, sim. — Ela sentiu-se esticar em torno de seus dedos; ele
acrescentou outro, empurrando mais rápido. — Assim, ah, Deus...
— Ela soltou um som que nunca tinha feito, um gemido baixo e
gutural que a balançou na ponta dos pés.
— Assim mesmo. — Audric beijou sua têmpora, seus cabelos.
Sua voz estava cheia de admiração. — Assim mesmo, Rielle.
Ela se agarrou a ele, apertou os quadris contra a mão dele até
que a onda de formigamento que se formava profundamente dentro
de seu ser, varresse sua pele e sua espinha. Ela empurrou contra
ele, deu um grito agudo e estilhaçou.
A sala tremeu ao redor deles.
As velas acesas do outro lado da sala acenderam chamas
irregulares saltando centímetros no ar. O fogo da lareira estalou;
brasas espalhadas pelo tapete. As paredes tremeram por alguns
segundos, como se estivessem em um pequeno terremoto, depois
ficaram em silêncio.
— O que foi isso? — sussurrou.
— Fui eu. — Rielle fechou os olhos, as bochechas em chamas. —
Eu sinto muito.
— Você?
— Não deveríamos ter feito isso. Deixe-me ir, por favor.
Ele a soltou, e ela se afastou instável, ajeitando o vestido. Ela só
conseguia pensar na voz do pai, há tantos anos:
Você pode perder o controle um dia, machucá-lo.
A última coisa que Audric precisa é de alguém como você.
— Você deveria ir — disse ela, cruzando os braços sobre o peito.
Audric ficou quieto por um momento. — Claro que sim, se é isso
que você deseja. Mas primeiro, você pode me contar o que
aconteceu?
— Quatro desafios, e eu estava bem. Eu consegui; eu me senti
mais forte do que nunca. E agora? Alguns momentos com você, e
eu faço o quarto desmoronar.
— Nada desmoronou. Rielle, foi apenas um pequeno tremor.
Ela girou para ele. — Apenas um pequeno tremor? E se
continuássemos? E se eu tivesse perdido o controle? E se o chão
tivesse se aberto sob nossos pés? Meu pai estava certo. Ele podia
ver antes de mim.
— O que ele viu?
— Que eu te amo! — ela explodiu, lágrimas cortando sua voz. —
Que todos os meus anos de trabalho, todas as noites sozinha, todas
as orações... Isso é desfeito quando estou com você. Você me toca
e eu queimo, e eu posso levar tudo queimando comigo!
— Rielle, olhe para mim. — Audric segurou suas mãos com tanta
delicadeza que ela começou a chorar de verdade.
— Eu vou te machucar — ela sussurrou.
— Se alguma coisa acontecesse com você por minha causa, eu
não aguentaria, Audric. Eu não vou fazer isso. Ficarei sozinha para
sempre se for preciso.
— Não, não, você não. — Ele virou o rosto dela para o dele com
ternura, beijos suaves como penas em suas bochechas. — Você
merece apenas felicidade. Não uma cama fria e um quarto vazio.
Ela fechou os olhos com o toque dele. — Eu sou muito perigosa.
— Você é o meu tipo de perigo.
— Isso não é uma piada, Audric. Esta é a sua vida... e a minha.
— E minha vida não tem cor sem você. — As mãos dele
seguraram o rosto dela. — Eu não tenho medo de você, Rielle. Eu
confio em você e quero você.
Rielle se inclinou em seu peito, inspirou-o – sua pele aquecida
pelo sol, o algodão de sua túnica.
— E se eu te pedisse — ela disse finalmente — Para me beijar de
novo?
— Eu te beijaria a noite toda e nunca me cansaria disso.
Ela se afastou para olhá-lo. — E se eu pedisse para você me levar
para a cama?
— Então eu levaria você até lá — disse ele — E não descansaria
até que você estivesse preenchida por mim.
— É exatamente isso que eu quero. — Ela beijou o triângulo de
pele acima do colarinho e sussurrou: — Quero que você me
preencha.
Ela se esticou na ponta dos pés para beijá-lo antes que ele
pudesse responder, e quando seus braços a envolveram
febrilmente, ela sorriu contra a boca dele e soltou uma risada
encantada.
— Cama — ela sussurrou, puxando-o cegamente em direção a
ela.
Ele a apoiou contra uma das colunas da cama, sua boca nunca
deixando a dela. Ele a beijou como se o ar dentro dela fosse o que
precisava para sobreviver. Ela colocou as mãos para trás, contra o
poste para se preparar, e arqueou em direção a ele.
— Sim — ele disse sem fôlego, mexendo na linha de botões na
frente do vestido. Ele deslizou o corpete pelo torso dela, para que
ele se juntasse à cintura. Os seios dela se soltaram e ele baixou a
boca para eles de uma vez, gemendo contra a pele dela.
Rielle torceu embaixo dele até que ela não aguentou mais a dor
entre as pernas. — Eu preciso de você — ela ofegou, segurando os
ombros dele. — Por favor, Audric.
Ele puxou a túnica por cima da cabeça, depois desabotoou o cinto
e tirou as botas. Ele a moveu em direção à cama, chupando
suavemente o lábio inferior. Juntos, puxaram o vestido dela até cair
no chão.
Audric murmurou: — Meu Deus, Rielle, você é linda — e a ajudou
a deitar sobre a pilha de cobertores espalhados pela cama. As mãos
dele traçaram as curvas de seus seios, cintura, quadris. Ele beijou
cada uma das contusões do desafio das sombras, murmurando o
nome dela contra a pele com mais amor do que qualquer oração.
Quando os quadris dele pousaram nos dela, Rielle mal conseguiu
conter o grito. Ele passou os dedos entre os dela e pressionou as
mãos gentilmente contra os travesseiros. A cada movimento de
seus quadris, uma nova onda de prazer surgia dentro dela.
Tremendo sob as linhas duras e quentes de seu corpo, ela disse
desesperadamente: — Audric, por favor.
— Espere. — Ele beijou a curva de seu queixo e se afastou um
pouco. — Espere um momento.
— Não, agora.
— Antes de fazermos isso...
Ela ouviu a nota cautelosa na voz dele e entendeu. — Estou
tomando um tônico para isso. — Ela tocou ternamente o rosto dele.
— Por favor, não se preocupe.
Ele assentiu, abaixou a boca na dela e murmurou: — Eu te amo,
Rielle — e a penetrou em um movimento suave.
Ela gritou, resistindo contra ele. Ela se sentiu impossivelmente,
deliciosamente cheia e tocou seu rosto com uma risada sem fôlego.
— Você está bem? — ele sussurrou.
— Estou. — Ela apertou os braços dele, sorrindo. — Não vá.
— Nunca. Eu sinto muito...
— Não. Não se desculpe. Estou bem. — Ela tocou dois dedos nos
lábios dele e soltou uma risada trêmula. — Estou mais do que bem.
Ele sorriu, beijou a pele macia sob seus olhos e começou a se
mover dentro dela. Rielle ofegou, arqueando-se contra ele.
— Olhe para mim — ele a pediu calmamente, e quando ela
encarou seus olhos, a devoção concentrada em seu rosto fez seu
coração inchar. — Estou bem aqui, e amo você. Eu te amo, eu te
amo.
— Beije-me — ela sussurrou, tremendo.
Ele obedeceu, sua boca quente e lenta na dela, ecoando os
movimentos suaves de seus quadris.
— Devo parar? — Ele beijou sua mandíbula. O arranhar suave de
seus dentes enviou calafrios delicados através de sua pele. Ela
fechou os olhos e se mexeu embaixo dele. O prazer inchou
lentamente em seu corpo, quente e sem pressa.
— Não pare — ela murmurou. — Nunca.
— Rielle. Rielle. — Ele se moveu um pouco mais contra ela, sua
voz escurecendo. — Diga-me o que você quer, e eu farei.
Ela torceu em seu aperto suave com um suspiro. — Eu quero
ouvir o que você quer, é o que eu desejo.
— Quero fazer você desmoronar em meus braços. Quero que
esqueça seu medo, suas preocupações, qualquer que seja a
escuridão que assombra seus pensamentos. — Ele deslizou uma
mão pelo corpo dela até os quadris unidos, acariciando entre as
pernas dela.
Ela amaldiçoou, bateu a palma da mão contra a cama, procurando
por uma âncora. A mão dele encontrou a dela, firmou-a na sua.
— O que mais você quer? — ela murmurou, olhando para ele. Ela
moveu os quadris contra os dele.
— Eu... — Sua voz falhou. Ele balançou a cabeça, estremecendo
quando ela deslizou a mão pelo braço dele. Ela levou a mão dele à
boca e beijou a palma da mão.
— Você quer me fazer gritar.
Ele fez um som pequeno e sufocado. Seus quadris estremeceram
bruscamente.
— Deus, sim — ele gemeu.
— Mais rápido, então. — Ela tocou os lábios dele com o polegar.
Quando ele o pegou na boca, seus olhos se fecharam, ela
estremeceu, sorriu e passou a perna em volta da dele. Ela poderia
olha-lo assim para sempre – perdendo-se nele, desmoronando em
seus braços. — Por favor, Audric.
Mesmo quando ele obedeceu, sua gentileza a surpreendeu. A
mão dele soltou a dela para aninhar seu rosto, depois deslizou para
acariciar seus seios. O doce prazer dele dentro dela provocou ondas
trêmulas em sua pele. Ela arqueou em seu toque, apertou os
cobertores em seus punhos.
Ela soltou um soluço frenético. — Audric, por favor...
Ele murmurou contra o pescoço dela, suas mãos tremendo ao seu
redor. — Sim, Rielle, sim, é isso. — O desejo áspero em sua voz a
incendiou. Quando ela deslizou as mãos nos cabelos dele e puxou
com força os cachos, ele gritou contra seu pescoço, e o som
desesperado e totalmente masculino foi sua ruína, enviando-a em
espiral para cima e para cima, até que ela caiu contra a cama,
pulsando dourado com prazer. Ela se agarrou a ele, impotente e
mole, sua visão uma névoa zunindo, e acariciou seus cabelos
enquanto seus quadris diminuíram a velocidade.
E com o peso sólido de Audric sobre ela – seus lábios em seus
cabelos e sua voz rouca de amor, seu próprio corpo sentindo-se
alegremente despreocupado – Rielle observou as chamas
faiscantes em torno de seu quarto sem medo no coração e não
pensou em Corien.
42
Eliana
“Você já viu o Lobo? Conversou com ele? O
homem tem uma luz ruim nos olhos. Você olha
para o rosto dele por meio minuto, vê que ele
foi destruído e costurado novamente mais
vezes do que qualquer um deveria ter sido.”
—Registro sem nome de um desertor da Coroa Vermelha,
precedendo a execução.

Simon os levou a um esconderijo da Coroa Vermelha no fundo de


uma floresta de pinheiros na base de um penhasco – uma pequena
cabana de madeira coberta de musgo e envolta por um emaranhado
de árvores.
Assim que Eliana entrou, ela ouviu um grito suave e olhou em
volta a tempo de ver Remy pular da cadeira perto de um pequeno
fogão. Quando ela se ajoelhou para pegá-lo, seu abraço quase a
derrubou.
— Pare de me deixar para trás — ele sussurrou em seus cabelos.
— El, eu acordei e você se fora.
Ela fechou os olhos, pressionou as palmas das mãos contra os
delicados ossos das costas dele. Ele emagreceu desde que deixou
Orline.
Então, quando ele esfregou as bochechas na blusa dela, ela se
lembrou das palavras de Zahra: A mulher que você pensa ser sua
mãe mas na verdade não é.
O garoto que ela pensava ser seu irmão mas...
Remy se afastou dela, o rosto manchado e cheio de lágrimas, e
deu um sorriso corajoso. — Hob me ensinou a usar o fogão. Vou
fazer um jantar para você.
E Eliana decidiu imediatamente que Zahra estava errada, mesmo
que o espectro estivesse falando a verdade. Mesmo que Ioseph,
Rozen e Remy Ferracora não fossem através do sangue, eles eram
de coração, sempre, e se alguém tentasse lhe dizer o contrário, ela
iria os mandar ajoelhar aos seus pés.
Ela secou as bochechas de Remy com os polegares. — Só se
você fizer para si também.
Enquanto se apressava em direção ao fogão, Eliana se encontrou
com Hob no outro lado da sala, colocando Navi em uma pequena
cama.
— Camille está segura? — Ela perguntou.
— Quando a deixamos, ela e seu povo estavam vivos e bem —
respondeu Hob. — Simon enviou o assassino Invictus mancando
noite a dentro.
O estômago de Eliana caiu. — Rahzavel. Simon não o matou?
— Infelizmente não.
Ela fechou os olhos. — Ele não descansará até que me encontre.
— Bem, pelo menos ele não está aqui agora. Você pode
agradecer a Simon por isso.
Eliana se recusou a reconhecer isso ou o homem em questão. —
Por quê você está aqui? E sobre Patrik?
— Simon levou alguns golpes nessa luta. Eu queria ajudá-lo a
levar o garoto para a segurança. — Hob sorriu para Remy. — Ele é
uma boa companhia, o seu irmão.
Na sua cama, Navi se mexeu com um gemido. Hob torceu um
pano em um balde de água e o colocou sobre a testa de Navi.
— Você já viu isso antes? — Eliana perguntou. — O que fizeram
com ela?
O rosto de Hob estava tenso de raiva. — Não. Não sei o que é
isso e não tenho certeza se me importo. — Ele puxou uma colcha
até o queixo de Navi e a colocou ao redor do corpo dela. — Camille
pediu que eu perguntasse por Laenys. A garota, sua atendente
desaparecida. Ela foi levada por Fidelia também?
Laenys. Ela tinha esquecido completamente de procurar a garota.
Eliana balançou a cabeça, esperando que Hob não pudesse ver a
verdade em seu rosto. — Não houve tempo para procurá-la. Eu
sinto muito.
— Você sabe o que eles estavam fazendo lá? Fidelia. Você
descobriu por que eles roubam meninas?
— Não, mas os sons que ouvi da minha cela...
— Está tudo bem. Você não precisa me dizer, Terror. — A palavra
não tinha veneno, apenas uma tristeza pesada. — Você deveria
descansar. Quando Simon voltar, você partirá logo depois.
Simon.
Eliana se virou, procurando na sala por ele – mas ele se foi.
Ela mal se conteve ao jogar Arabeth na parede. — Onde ele foi?
— Encontrar um contato na fronteira que o ajudará a atravessar o
Mar Estreito até Astavar — disse Hob.
Eliana começou a soltar as facas do corpo. — Você tem roupas
para mim? Algo que não seja traje de prisão.
— Você não está indo embora de novo, está? — Remy perguntou
rapidamente.
Ela deu um pequeno sorriso. — Não vou embora. Eu só quero
sentar do lado de fora, tomar um ar depois de ficar presa em uma
cela por uma semana.
E para que ela pudesse ver Simon antes dos outros—e não deixá-
lo ir até que ela obtivesse as respostas que merecia.

•••

Zahra chegou duas horas depois, aparecendo sem aviso ao lado de


Eliana.
Eliana cuspiu uma maldição e pulou do tronco de árvore em que
estava sentada.
O sorriso negro do espectro mal era visível nas árvores
sombreadas. — Olá, minha rainha. Quero dizer... Eliana.
— Da próxima vez — Eliana sussurrou, voltando ao seu lugar —
Me dê um aviso antes de você aparecer no ar assim.
— Estou muito feliz em vê-la também, especialmente desde que
nos separamos em um momento tão terrível.
Eliana suspirou profundamente. — Sim. Obrigada por isso.
— Pelo o quê?
Apesar de sua irritação, Eliana sorriu. — Você vai me fazer dizer
isso, não é?
— Eu arrisquei muito distraindo Semyaza — ressaltou Zahra. —
Embora eu faça isso de novo, e felizmente, para atendê-la.
— Obrigada, Zahra — disse Eliana com um movimento da mão —
Por lutar contra Semyaza para que Navi e eu pudéssemos escapar.
Sua lealdade e bravura devem ser elogiadas.
A forma de Zahra brilhava de prazer. — Você soou como a realeza
por um momento, Eliana. O sangue chama, como eles dizem.
— Eu não quero falar sobre meu sangue. — Eliana retrucou.
— Como quiser. — Zahra fez uma pausa. — Isso, de qualquer
forma, terá que ser discutido eventualmente.
Eliana desviou o olhar para as árvores. — E se talvez eu não
acredite no que diz?
— Você esquece que eu estava em sua mente, durante a prisão
— disse Zahra gentilmente. — Acho que você já sabia há algum
tempo que algo estava desalinhado no seu passado. Que você não
é como aqueles ao seu redor. Há a questão da capacidade do seu
corpo de se curar, por exemplo.
Eliana virou para ela. — Ouça-me agora, fantasma. Você pode ter
o poder de entrar em minha mente, mas não o fará novamente, a
menos que em algum momento no futuro eu exija isso de você. E
até então, você nem sequer mencionará a Rainha de Sangue, o
Portador da Luz ou qualquer outra pessoa que pensa que eu sou.
Isso está entendido?
Zahra inclinou a cabeça. — Claro, Eliana. Eu respeitarei seus
desejos.
— Obrigada.
Elas ficaram em silêncio por um longo tempo, a floresta silenciosa
e escura ao seu redor.
— Você sabe o que eles fizeram com Navi? — Eliana perguntou
finalmente.
— Eu gostaria de não saber — respondeu Zahra. — Durante os
longos anos desde a queda da Rainha de Sangue, o imperador
realizou muitos experimentos na tentativa de alcançar a ressurreição
sem ela. Medicamentos, drogas, procedimentos cirúrgicos,
manipulação do que ele chama de genética.
— O que é isso?
— Simplificando, é a estrutura básica da vida de qualquer criatura
viva. Nem o Empirium – nem mesmo o Imperador pode tocar nisso,
para seu desespero – mas é eficaz, no entanto.
Eliana balançou a cabeça. — E ele usa para... o quê?
— Ele está criando coisas — Zahra murmurou — Com a ajuda de
curandeiros que trocam suas habilidades pela segurança de suas
famílias. Ele está criando criaturas que não são nem humanas nem
animais. Eles são chamados de rastreadores. Eles são monstros,
Eliana. Mutações é a palavra que ouvi usada pelos médicos do
Império. E um exército deles está destinado a Astavar.
Eliana olhou para Zahra, com a boca seca. — Eu não entendo.
Eles têm todo um exército de adatrox, um exército que devorou o
mundo. Por que isso também?
— Existem muitas maneiras de provocar medo nos corações
daqueles que você conquistou — disse Zahra gravemente. — A
existência continuada da Coroa Vermelha destrói o Imperador,
assim como a resistência de Astavar. Ele é criativo. Ele pensará em
novos horrores enquanto qualquer humano estiver livre, até que não
haja mais resistência.
— E apenas mulheres, apenas meninas? — O estômago de
Eliana se revirou. — Por quê? Se é um exército que ele quer, por
que não seqüestrar um bando de brutamontes?
— Isso eu não sei.
— E foi o que aconteceu com Navi? Ela estava sendo
transformada em... — Ela não conseguiu terminar a pergunta.
— Pelo estado dela, me parece que ela apenas passou pelos
estágios iniciais. Não transformação, mas isso virá em breve...
Zahra ficou em silêncio, depois sussurrou: — Simon está perto.
Eliana ficou tensa. — Ele está sozinho?
— Sim.— O ar ao redor de Zahra de repente pareceu carregado.
— Ele entrou em conflito com os anjos.
Eliana puxou Arabeth e ficou de pé. — Você disse que ele estava
sozinho.
— Ele está. Mas... — E então Zahra fechou os olhos, estremeceu
e emitiu um som baixo de dor. — Como ele suporta isso? Eu nunca
soube...
— Como ele suporta o quê? — Eliana examinou as árvores.
— A mente dele tem muitas cicatrizes — Zahra sussurrou, os
olhos ainda fechados. — Profundas. Como elas devem machucá-lo.
— Que tipo de cicatrizes? Explique-me, com palavras reais e
comuns.
— Alguém o machucou. Seriamente. De novo e de novo. Eu
posso sentir quando ele se aproxima. Não estou tentando invadir
seus pensamentos, Eliana. Mas quando a mente de alguém é
abusada tão completamente, um espectro não pode deixar de senti-
la.
Zahra correu para pairar atrás de Eliana.
— Cuidado com ele — ela sussurrou. — Ele está quase aqui. Eu
posso te esconder, se você desejar. Recuperei força suficiente por
alguns segundos.
— Cuidado com ele, por quê?
— Um homem com essas cicatrizes não pode ser totalmente
confiável, pois essas feridas escondem toda a sua verdade, mesmo
de uma criatura como eu.
Eliana estreitou os olhos. — Quer dizer que você não consegue
ler os pensamentos dele?
Zahra balançou a cabeça. — Eu sei que ele está próximo, que ele
vive com dor que não compartilha com ninguém. Mas não vejo mais
que isso. Eliana, eu não fazia ideia de que Simon era um homem
assim. Eu nunca teria confiado na palavra dele... Oh, por favor,
deixe-me esconder você dele.
— Não. — Eliana percebeu um movimento nas árvores. Seu
coração chutou loucamente. — Eu vou falar com ele.
— Ele não poderá me ver — sussurrou Zahra. — Você é a única
humana que pode.
Isso a surpreendeu. — Por quê?
— Ninguém mais tem poder suficiente para isso. Desde o outono,
todos os olhos estão fechados para o Empirium...
— O que você está fazendo aqui fora? — Simon emergiu das
árvores, abaixou o capuz e tirou a máscara. — Você deveria estar
descansando.
Abalando os nervos do medo que pairava de Zahra, Eliana seguiu
em sua direção. — Eu estava esperando por você.
Ele parou, observando-a se aproximar. — Ah? A que devo o
prazer de uma reunião privada com o Terror de Orline?
Ela passou por ele entre as árvores. Quando o ombro dela roçou o
braço dele, o toque a atingiu, ombro a barriga, como uma flecha
quente. — Venha comigo.
— Um encontro ilícito na floresta escura e sombria — ele
murmurou, seguindo-a. — Meus sonhos mais secretos ganharam
vida.
Ela ficou em silêncio até que eles se afastaram algumas centenas
de metros da casa segura. Então ela parou, de costas para ele,
braços rígidos ao lado do corpo.
— O prédio onde eu fui mantida em cativeiro por Fidelia — ela
começou, com a voz tensa. — O que era?
— Laboratórios. — ele respondeu imediatamente.
Ela se virou, preparando-se. — Para experimentos nas mulheres
capturadas.
— Sim.
— Onde elas são transformadas em rastreadores, graças ao
estudo de genética do Imperador.
Um lampejo de surpresa passou pelo rosto de Simon. — Você
falou com alguém. Quem?
Ao lado de Eliana, Zahra murmurou baixo: — Alguém que a
protegerá a todo custo.
Simon desembainhou a espada em seu cinto. — Quem está aí?
Afaste-se dela, ou eu vou estripa-lo.
Então Zahra estava certa. Ele não podia ver o espectro, mas
podia ouvi-la.
— Eu falei com alguém — respondeu Eliana. — Alguém que me
disse que você sabia sobre Fidelia o tempo todo. Você sabia quem
eles eram, o que estavam fazendo. Você sabia que eles levaram
minha mãe e sabia onde procurá-la. Ela não estava nos laboratórios
onde eu estava guardada, mas está em outro lugar – e tenho
certeza que você sabe, sendo o poderoso Lobo, exatamente onde
Fidelia pode ser encontrada em todo o país. E, no entanto, em vez
de me contar isso, você me arrastou pela floresta e me manteve no
escuro, sabendo o tempo todo o que estava acontecendo com ela.
Simon ficou congelado, sua espada ainda no ar.
— Seu silêncio — disse Eliana, a fúria subindo rapidamente em
seu peito — é toda a confirmação de que preciso.
— Fiz o que me foi ordenado — disse ele, sua voz feita de pedra.
Ela deixou escapar um som desdenhoso. — As poderosas ordens
do Profeta, suponho.
— O Profeta vê muito e guia todos os meus passos.
Ela se virou, zangada demais para falar.
— Se você o cortar — disse Zahra em voz baixa — Não tentarei
impedi-la. Certificarei-me de esconder o barulho dos outros.
— Não quero machucá-lo — disse Eliana. — Ainda não.
A voz de Simon estava tensa de frustração. — Com quem você
está falando?
Zahra o rodeou, um eco de um metro e oitenta de altura da mulher
que ela já fora. — Se você continuar incomodando minha rainha —
ela explodiu, vibrando de raiva — Eu vou bater em você onde você
estiver.
— Quem é? — Simon cuspiu. — Mostre-se.
— Seus olhos não são dignos de mim, Lobo.
Simon parou, sua expressão clara. — Zahra. O espectro que
espiona para nós.
Zahra soltou uma risada aguda. — Eu não espio para você, mas
para minha rainha.
— Ela continua me chamando assim — Eliana sussurrou. — Ela
diz... — Ela soltou uma gargalhada trêmula.
Atrás dela, Simon embainhou sua espada. Ela ouviu ele se
aproximar dela, lentamente.
— Ela diz que você é a Rainha do Sol. — disse ele, sua voz muito
baixa.
Ela olhou para ele. As sombras atraíram novas cicatrizes pelo
rosto dele, mas seus olhos eram claros e nítidos, mesmo na
penumbra, e neles, ela viu uma faísca de alguma coisa – pena,
pensou ela, e uma convicção ardente.
— Ela diz que você é a pessoa que se levanta — continuou ele —
A Criança Nascida da Fúria. Ela diz que você é filha do Portador da
Luz e que ela fará qualquer coisa para protegê-la. — Ele hesitou, os
músculos de sua mandíbula agitando. — Ela não é a única.
— Diga-me a verdade, então, se você se importa tanto comigo. —
A voz de Eliana saiu num sussurro duro. — Não me diga mais
mentiras.
— Há alguns meses — ele disse, movendo-se através das árvores
— Ouvi falar de um caçador de recompensas chamado Terror de
Orline. Uma menina, disseram os rumores, que havia acumulado um
número impressionante de mortes. Um dos mais altos do Império,
de fato. — Ele parou, voltou-se para Eliana. — Uma garota que era
invencível.
Eliana o observou, esperando. Seu corpo estava tão tenso que ela
temia que pudesse estalar.
— Um boato tolo o suficiente para descartar, a princípio —
continuou ele — Mas eu continuava ouvindo isso de novo e de novo,
e quando contei ao Profeta, fui instruído a investigar. Eu iria a Orline,
encontraria esse Terror e a observaria. E se não fosse nada, eu
traria a princesa Navana para o norte, como era minha missão
original. Mas os rumores eram realmente verdadeiros. Eu te
reconheci, Eliana, assim que vi seu rosto.
Sua voz assumiu uma qualidade áspera que encheu Eliana com
um medo lento. O que ele estava dizendo... fosse loucura ou não,
ele acreditava.
— Como você poderia ter me reconhecido? — ela perguntou. —
Nós nunca nos vimos antes daquela noite em Orline e...
— Eu conhecia seus pais — Simon interrompeu em voz baixa. —
Eu os vejo no seu rosto tão claramente quanto vejo o sol nascer ao
amanhecer.
Ela se afastou dele, a verdade se estabelecendo lentamente em
sua mente. — Nunca foi sobre eu ajudá-lo a trazer Navi para
Astavar. Você não precisava de mim para isso.
— Não. Quando te encontrei, minha missão de levar Navi para
casa tornou-se secundária para mantê-la segura. Tudo — ele disse,
movendo-se urgentemente em sua direção — É secundário para
mantê-la segura. A vida de Navi. Minha vida. A Coroa vermelha.
Ela olhou para ele horrorizada. Zahra murmurou perto do ouvido
dela: — Ele não está errado nisso, Eliana. Podemos não confiar
nele completamente, mas isso, pelo menos, é a verdadeira verdade.
Simon lançou um olhar irritado para Zahra.
— Não é minha culpa que seus olhos humanos não sejam fortes o
suficiente para me ver — disse Zahra maliciosamente. — Não há
necessidade de fazer uma careta.
— Eu não entendo — Eliana sussurrou. — Isso é ridículo.
Simon parou de tocá-la. — Por que você acha que seu corpo pode
fazer o que faz? Você está mentindo sobre isso há anos, e eu
entendo o porquê, mas é hora de encarar a verdade.
Ela levantou o queixo, procurando por palavras. — Eu só tive
sorte, é tudo.
— Você não acredita nisso. — Ele a alcançou então, seu toque
em sua bochecha tão gentil que era um mero sussurro de calor. — É
o seu poder, Eliana. O poder que você herdou de sua mãe. Está
lutando para finalmente despertar. E quando acontecer...
Um grito atravessou a noite, seguido pela voz de Remy: — El, ele
está aqui!
Vidro bateu contra pedra.
Uma luz laranja brilhou em vida através das árvores, iluminando a
terrível verdade:
A casa segura estava em chamas.
Uma figura familiar estava parada diante dela, olhando para as
árvores com uma tocha flamejante na mão.
Simon xingou.
— Tic toc, tic toc! — Rahzavel cantou. — Estamos todos
esperando por você, Terror! Venha para fora e brinque!
43
Rielle
“Marzana vagou pela tundra Kirvayana, fria e
amarga, em busca de consolo. Ela não se
atreveu a tocar em ninguém por medo de
queimá-los e vagou sozinha por longos meses
até tropeçar em uma floresta verde e fresca
escondida dentro de um cânion de gelo. Um
fogo ardia em seu coração e, quando Marzana
aqueceu os pés, um pássaro de fogo de olhos
vermelhos emergiu brilhando das chamas, e
Marzana não teve medo.”
—O Livro dos Santos

Depois que os acólitos de Tal removeram sua venda, Rielle saiu de


sua barraca e entrou em uma plataforma de pedra, com uma capa
de penas em volta dos ombros.
Uma parede de som bateu nela – aplausos, gritos de seu nome,
sinos tocando. Para o traje final de Rielle, Ludivine se inspirou no
pássaro de fogo de Santa Marzana. Um macacão escarlate bordado
com chamas douradas grudava em suas curvas. De seus ombros,
uma dramática capa de três metros de comprimento, feita para
parecer asas rastejantes. Penas de violeta, escarlate e âmbar
brilhantes cobriam a capa do fecho à bainha. Ludivine juntou os
cabelos em um nó emplumado, polvilhou com ouro e pintou as
bochechas com redemoinhos vermelhos.
Rielle respirou fundo, examinando o ambiente.
Eles a trouxeram para um vale estreito entre o sopé gramado do
norte do Monte Sorenne e o leste da cidade. Estandes para
espectadores foram erguidos ao longo das cordilheiras rochosas
que circundavam as encostas, mas a maioria da multidão estava de
pé, aglomerando-se atrás dos trilhos de segurança para ter uma
visão melhor. Flashes de ouro piscavam para ela de todos os lados:
faixas da Rainha do Sol, pingentes, peças de teatro em forma de sol
encenadas por crianças gritando.
No final da plataforma, escadas levavam a um enorme labirinto
circular de madeira e pedra. O Arconte estava no topo da escada –
assim como Sloane, com olhos vermelhos e tremendo.
E segurando o escudo de bronze de Tal.
O terror varreu Rielle como uma força física. — Sloane? Por que
você tem o receptáculo de Tal?
— Ele está no labirinto — respondeu Sloane, com a voz rouca. —
Amarrado... e esperando por você.
— Antes que você me acuse de qualquer coisa — disse o Arconte
— Foi ideia de Magister Belounnon, não minha.
Rielle sentiu-se repentinamente e impossivelmente pequena sob
sua capa pesada. — Eu não entendo.
— Ele pensou que isso iria ajudá-la — disse Sloane — Se você
fosse forçada a enfrentar a morte pelo fogo mais uma vez, como fez
no dia em que sua mãe morreu. Você poderia salvá-lo, como você
não pôde salvá-la. — As lágrimas de Sloane transbordaram. — Ele
disse, diga a ela que não há problema em ter medo, mas o medo
dela não triunfará desta vez. Diga a ela que ela é mais forte do que
qualquer chama que arde.
As portas no pé da escada se abriram, revelando um caminho
estreito de terra entre paredes de madeira de dois metros e meio.
Rielle olhou para o caminho, consternada, os gritos da multidão
ecoando em seus ouvidos.
— Você encontrará Magister Belounnon no coração do labirinto —
explicou o Arconte, apontando para uma estrutura no centro distante
do labirinto. — Cada beco sem saída que você encontrar resultará
em seus acólitos incendiando uma seção do labirinto que o rodeia.
O mundo caiu, deixando Rielle à deriva. Ela olhou para o arconte.
— Como você pôde deixar isso acontecer?
O rosto do Arconte estava sério. — Magister Belounnon insistiu
nisso.
— Então você deveria ter parado ele!
Uma buzina tocou em uma das arquibancadas acima.
Rielle quase se lançou contra o homem. — Pelo menos, deixe-me
trazer o receptáculo dele!
— Ele pediu que o receptáculo permanecesse com a irmã. —
respondeu o Arconte.
A buzina tocou uma segunda vez. Do outro lado do labirinto,
cobras sibilantes de fogo ganharam vida ao longo de trechos
aleatórios da parede.
Rielle arrancou a capa e a jogou no chão. Penas voaram; as
palmas das mãos ardiam quando ela avançou no Arconte.
— Se ele morrer — ela resmungou — Vou arrancar cada
centímetro de pele do seu corpo.
O Arconte não vacilou. — Se ele morrer, Lady Rielle, você não
terá ninguém para culpar além de si mesma. O labirinto queimará
rapidamente. Eu sugiro que você corra.
Uma terceira buzina. Rielle lançou um olhar desesperado para
Sloane, depois desceu correndo as escadas e entrou no labirinto.
44
Eliana
“Eles a chamavam de Terror, sem saber que,
sob a máscara, a capa e o sorriso pintado, ela
era simplesmente uma garota. Uma garota
com um coração que ardia por sangue.”
—O Terrível Conto do Mortal Terror Sombrio por Remy Ferracora

Eliana agarrou Arabeth e Whistler, depois pulou para frente apenas


para ser puxada de volta pelo braço esquerdo.
Ela virou-se para Simon. — Solte-me!
— Não. — Ele a abraçou com força. — Deixe-os.
— Você está louco? Este é meu irmão!
— E a vida dele não é nada comparada à sua. — Simon olhou
uma vez para a casa segura. Eliana pensou ter visto o fantasma do
arrependimento em seus olhos. — Vamos lá.
Eliana se contorceu violentamente em suas garras. — Eu vou
matar você!
— Eu não acho que você vá. — Ele a puxou para mais perto. —
Você está intrigada com o que eu disse. Você quer saber mais.
Ela cuspiu na cara dele. Simon riu.
— Você é tão parecida com ela — ele murmurou sombriamente.
— Eu sou como eu — ela sussurrou — E mais ninguém.
Ela chutou o joelho dele, bateu com Whistler no estômago, mas
ele se esquivou rápido o suficiente para perder o pior. Ela se libertou
e correu; ele a pegou mais uma vez. O pânico a estava deixando
desleixada. Ela ouviu gritos aterrorizados do esconderijo e gritou
uma maldição furiosa.
— É isso aí. — Simon lutou para segurá-la, rindo sem fôlego. —
Fique com raiva, Eliana. Lute comigo. Estou impedindo você de ir
até seu irmão. Estou mantendo-a com dor.
— Me deixe ir!
— Você não pode ignorar seu destino para sempre. Deixe crescer,
deixe a raiva chegar.
Ela rosnou: — Eu avisei você — em seguida, deu-lhe uma
joelhada cruel na virilha.
Ele a deixou cair, cambaleando.
Ela se virou e correu.
— Zahra! — ela chamou.
— Bem aqui — respondeu Zahra, correndo pelas árvores ao seu
lado. Sua forma tremulou, vacilante. — Vou escondê-la dele o
máximo que puder.
Juntas, elas correram para fora das árvores e passaram por
Rahzavel, que ficava olhando a floresta com olhos selvagens. Eliana
congelou na porta do esconderijo. Chamas subiram pelo telhado; as
árvores de ambos os lados crepitavam com fogo. Ela arrancou a
jaqueta, enrolou-a na mão e alcançou a porta da frente no momento
em que as vigas no alto desmoronaram. Ela pulou para trás,
tossindo.
— Aqui! — Zahra acenou a alguns metros de distância. Uma porta
de madeira foi colocada no chão, coberta de musgo e coberta de
pilhas de pedras – um porão tão bem bloqueado que Remy e os
outros não seriam capazes de sair de dentro.
Eliana correu e começou a empurrar freneticamente as pedras. —
Diga-me o que está acontecendo!
Zahra espiou pela casa. — Simon está mantendo ocupado seu
agressor. Quem é esse homem?
— Rahzavel. — Eliana arrancou uma folha de musgo das
dobradiças da porta.
Zahra cantarolou em desaprovação. — Ele é Invicto.
— Sim. — A porta estava emperrada. Ela apoiou o pé contra a
moldura e puxou com força. — Não consigo abrir!
— El? — Uma voz soou do outro lado da porta. — É você?
— Estou aqui! A porta está presa! — Eliana puxou com força,
cada músculo de seu corpo esticando. — Empurre por dentro,
quando disser, você e Hob. Pronto?
A voz de Hob veio fracamente. — Pronto!
— Um... dois... três!
Ela puxou a porta com toda sua força, e finalmente cedeu. Ela a
jogou de lado, estendeu a mão para Remy. Hob o empurrou para
cima e Navi logo depois – todos tossindo, os rostos manchados de
preto pela fumaça. Remy se agarrou ao lado de Eliana; Hob ergueu
Navi por cima do ombro, sua expressão sombria.
Ele olhou para Eliana. — E agora?
— Devemos ir imediatamente — Zahra avisou, sua forma
brilhando. — Simon está quase terminando, e então Rahzavel nos
encontrará. Minha força falhará a qualquer momento.
Os olhos de Hob se arregalaram. — Quem disse isso?
Eliana se virou, apertando os olhos através da fumaça. Zahra
estava certa: Simon estava gravemente ferido, segurando o seu
lado. Rahzavel arrancou a espada e chutou a ferida. Simon gritou
em agonia, joelhos dobrando e caiu. Rahzavel estava de pé sobre
ele, um sorriso enlouquecido dividindo suas bochechas.
Eliana apertou a mandíbula contra a onda quente de vergonha em
seu coração e se virou. — Então vamos para o norte, em direção ao
mar estreito.
— Mas não podemos! — Remy puxou seu braço. — Ele matará
Simon!
— E ele não vai nos matar. — Eliana olhou para Hob, que
assentiu uma vez.
— Vamos lá — disse ela e correu para a floresta, segurando
Remy firmemente pela mão. Ela o viu olhar para trás uma vez, os
olhos brilhando de lágrimas, mas não se permitiu fazer o mesmo.
45
Rielle
“Meus alunos, por favor, saibam isso: eu
escolhi desistir do meu receptáculo e me
prender dentro do meu próprio labirinto. Fiz
isso por dois motivos simples: confio em Rielle
Dardenne e a amo.”
—Carta escrita pelo Grão Magister Taliesin Belounnon aos
acólitos de Pyre
19 de junho de 998 da Segunda Era

Depois que Rielle entrou no labirinto, a multidão aplaudiu.


As portas se fecharam atrás dela.
Ela continuou correndo pelo caminho, triturando grama seca sob
seus pés.
O labirinto queimará rapidamente.
Ela já podia sentir o cheiro de fumaça. Mas vindo de onde?
Ela escalou a parede mais próxima e quase alcançou o topo
quando um laço duro de fogo desceu das arquibancadas. Bateu
contra a madeira, derrubando-a de volta ao chão. Com a cabeça
girando, ela viu chamas se espalharem ao longo da parede.
Sem escalar, então.
Ela se levantou e correu. A estrutura que continha Tal estava no
centro do labirinto. Ela alcançou uma bifurcação no caminho – três
rotas. Continuando para frente, esquerda e direita. Ela pensou
rapidamente. Se ela estivesse mapeando o labirinto corretamente, o
caminho à direita a levaria à parede mais externa do labirinto – e a
um beco sem saída. Continuar no centro a manteria correndo pela
borda do labirinto.
Ela virou à esquerda, ouviu uma leve explosão de aplausos da
multidão distante acima.
Ela sorriu aliviada. A esquerda tinha sido a escolha certa.
Ela correu por um corredor de paredes rugindo em chamas.
Madeira estalou, regando brasas em seu caminho. A bile subiu na
garganta, junto com um sabor de fumaça preta que torceu o
estômago. Por semanas após a morte de sua mãe, o gosto de
cinzas permaneceu em sua língua.
À frente: uma porta na parede à esquerda, que deve levar ao
centro do labirinto.
Ela passou pela porta, virou à direita, correu pelo caminho, depois
virou à esquerda – e derrapou até parar.
Um muro de pedra bloqueava seu caminho.
Fora do labirinto, a buzina tocou mais uma vez.
Rielle olhou para cima no momento em que três nós de chamas
surgiram no céu. O impacto deles caiu no labirinto como punhos
contra o vidro.
A multidão gritou de admiração.
Tal.
Rielle se virou e correu de volta por onde tinha vindo, a pressão
das lágrimas crescendo atrás de seus olhos. Quando ela virou a
esquina, o caminho diante dela explodiu em chamas.
Ela gritou, levantou um braço para proteger o rosto e tropeçou
contra a parede.
Rielle, onde está sua mãe?
Rielle, o que você fez?
Ela se inclinou, com as mãos nos joelhos, e respirou até a
memória da voz frenética do pai desaparecer.
Corien? Ela estendeu a mente, cautelosa. Ele não disse uma
palavra a ela desde que ela levou Audric para a cama e ela não
ousou falar com ele. Mas as chamas raivosas que devoravam o
caminho diante dela a fizeram se sentir encolhida, quebradiça.
Estava muito quente, e ela iria quebrar.
Ela fechou os olhos com força. Trabalhava com Tal há anos,
manipulava tochas, velas, fogueiras. Mas essas chamas eram
diferentes – selvagens e vingativas. Ela mal podia respirar, o calor
roubando seu ar.
Você está aí? Corien, por favor, me ajude.
Outra buzina soou.
Ela olhou para cima quando mais três arcos de fogo dispararam
pelo céu.
— Não! — ela gritou. Os gritos da multidão ecoaram os seus.
Ela se virou para encarar o fogo que bloqueava seu caminho, o
medo socando um soluço na garganta. Ela estendeu as mãos sem
pensar.
O fogo se separou, limpando um caminho carbonizado por cerca
de seis metros na frente dela e depois desabou. O fogo se reformou.
As mãos dela tremiam. Ela enxugou o suor dos olhos. Ela não
conseguia pensar, não conseguia encontrar o empirium, não com
essas chamas a aglomerando, nem com Tal preso em algum lugar
atrás dela.
Mas ela precisava. De alguma forma, de alguma forma...
Ela caiu de joelhos, observando com os olhos turvos enquanto as
chamas subiam. Os perfumes gêmeos cortantes de fumaça e magia
de marca de fogo esculpiam sulcos amarelos em sua garganta.
Rielle, faça parar!
Rielle, ela ainda está dentro!
Ela fechou os olhos agachada, pronta para correr. O que Tal
sempre lhe ensinou? A oração firma a mente.
O fogo que parece frota, ela rezou, não brilha com fúria ou
abandono.
Ela olhou através dos cílios para as chamas que se aproximavam.
Deixou seus olhos desfocarem, inspirando e expirando com cada
palavra familiar.
O mundo brilhava em ouro.
A menos que, ela terminou, eu ordene você.
Ela saiu do chão e correu, empurrando toda a sua raiva e tristeza
à sua frente como uma onda. O fogo explodiu quando ela se
aproximou, as chamas descendo pelas paredes para deixá-la
passar. Ela as ouviu desmoronando quando fugiu, sentiu o estalo de
chamas contra os calcanhares. Virou uma esquina, e outra, passou
por uma porta e saiu numa clareira circular.
Sete portas idênticas a cercavam, incluindo a por onde ela havia
entrado. O desespero cresceu dentro dela. Qual caminho?
O céu estava cheio de fumaça. Enquanto se ajoelhava fechando
os olhos, ouviu mais fogo irromper atrás dela – à esquerda e depois
à direita. Faíscas espalhadas pelo chão.
Ela enfiou os dedos na terra, imaginando que cada gota de suor
que escorria pelo corpo dela poderia infiltrar-se na terra, correndo
pelas veias da rocha no chão como faróis agitados.
Ela viu isso nos olhos de sua mente: nós de ouro disparando
relâmpagos rapidamente através da escuridão densa e profunda,
procurando fogo. Procurando Tal.
O calor a inundou, mas não do fogo.
Do empirium.
Ela sentiu que ele se erguia do chão, chamado por seu
desespero. O calor brotou em seus braços e pernas, desenrolou-se
em sua barriga, subiu pela espinha e se enterrou na base do crânio.
Quando ela abriu os olhos, o mundo ardeu em ouro. Uma porta –
a segunda à direita – brilhava mais que as demais. Do caminho de
ouro veio o som distante de um homem chamando seu nome.
Ela piscou. O ouro desapareceu, e o mundo era mundo
novamente.
Ela se lançou do chão, correu pela porta, seguiu o caminho para a
direita, depois novamente para a direita e depois para a esquerda.
Chamas escalando a cercavam por todos os lados. Acima do rugido
de fogo e dos estrondos do labirinto em colapso, ela ouviu a
multidão aplaudindo e se empurrou mais rápido. Chamas a
perseguiram sobre uma parede desabada. Ela caiu, rolou, pulou e
continuou correndo.
Outra confluência. Ela tomou o caminho da esquerda. Nem
cinquenta metros depois, ela bateu em uma parede de pedra.
A buzina tocou; o fogo arqueou no alto.
Então, três falhas. Muito próximo. A parede ao lado de Rielle
estremeceu e gemeu.
Ela girou para seguir o som, depois correu de volta para a
confluência e seguiu o caminho certo. Correu por um minuto inteiro
em alta velocidade, com câimbras no lado. Esquivou-se de uma
parede curvada e protegeu o rosto de uma cascata de faíscas. Ela
podia ouvir agora – um fogo maior, rugindo em frente, passando por
uma pilha de escombros fumegantes que antes eram uma parede.
Ela subiu por ela, afastando pranchas de madeira carbonizada,
depois emergiu em um pátio circular cheio de crateras enegrecidas.
Das crateras estalavam trilhas de fogo e, no centro do quintal,
cercado por escombros e paredes de chamas, erguia-se um edifício
familiar.
Era uma casa estreita de três andares, não tão grande quanto se
poderia esperar do comandante do exército real. Pintado de cinza
em homenagem à sua herança de mestre do metal, e verde floresta
em homenagem à família que ele serviu.
Foi o que ele havia dito. Mas a mãe de Rielle havia contado a
verdade a Rielle, Armand Dardenne ordenou que sua casa fosse
pintada de verde porque essa era a cor dos olhos de sua filha.
Toda a clareza deixou Rielle em uma avalanche de pavor.
Era a casa dos pais dela, recriada no centro do labirinto. E estava
pegando fogo.
Rielle, o que você fez?
Ela está morta! Oh, Deus! Ajude-nos! Alguém nos ajude!
Mas então Armand Dardenne voltou a si. Ele olhou para Rielle
sobre os destroços vermelhos e arruinados do corpo de sua esposa,
observou seus soluços frenéticos com uma expressão de desprezo
abjeto até que tudo que Rielle sabia sobre seu pai desapareceu.
Seu rosto se fechou para ela, para nunca mais ser aberto
novamente. Ele abaixou o corpo de Marise Dardenne no chão,
pegou sua filha trêmula e apressou-a pelos túneis abaixo do castelo
até o quarto de Pyre e Tal.
Tal, sonolento e com apenas dezenove anos, abriu a porta, deu
uma olhada no rosto de Rielle e estendeu os braços para ela.
Ajude-nos, dissera o pai, com a voz entalhada. Ajude ela. Não
deixe que eles a tirem de mim.
— Rielle!
O grito distante de Tal a sacudiu. Ela deu dois passos para frente,
olhando para a casa em chamas.
— Eu não posso — ela sussurrou, um calor afiado e doente
queimando por todo o corpo. — Não, não, não.
Então, com um gemido, a face da frente da casa começou a
desabar.
Um grito sufocado ecoou – seu próprio nome, rapidamente
silenciado.
Rielle correu pela casa, procurando através da fumaça pela porta
dos fundos. Estava lá, exatamente como ela se lembrava. Ela
chutou a madeira enegrecida; cedeu facilmente. Ela correu pelo
limiar para um mundo de fumaça negra e chamas laranja. Como era
estranho ver os quartos exatamente como deveriam ter sido, mas
agora vazios. Sem móveis, sem arte nas paredes. Apenas chamas e
um cheiro nocivo que cobria com escuridão cada respiração dela.
Ela escondeu o rosto. — Tal? Onde você está?
— Aqui! — Sua voz estava fraca. — Na sala!
Ela tropeçou pelo corredor principal até a porta da sala da mãe. A
parede estava caindo; acima, as vigas rangeram e gemeram.
Ela empurrou seu peso contra a porta. Não se mexeu. Ela bateu
contra a porta de novo e de novo, sua garganta apertando, sua
visão um brilho de lágrimas.
Lá fora, três monstruosas colisões atingiram o chão. A casa
sacudiu, as janelas quebrando. Mais fogo dos acólitos?
Ela gritou de frustração, depois ouviu um estalo alto e saiu do
caminho logo antes do teto acima dela desabar.
A porta, solta, caiu da armação.
— Tal? — Ela se arrastou até a porta, o chão ardendo sob as
palmas das mãos. Passou a mão pelo rosto para tirar a poeira dos
olhos e olhou para dentro da sala, passando por ondas de calor.
Tal.
Ele estava lá, pulsos e tornozelos amarrados, presos no canto
oposto por uma janela quebrada. Vidro brilhava no chão. Vigas e
pedaços de gesso do teto desmoronado os separavam, assim como
uma faixa de fogo rugindo.
— Tal! — Ela se agarrou ao batente da porta. — Me responda!
Vamos, levante-se! Nós temos que ir!
— Não consigo me mexer — ele a chamou. Sua voz estava
devastada, chiando. — O teto caiu nas minhas pernas!
Ela caiu no chão.
— Apague as chamas, Rielle! — Ele tossiu violentamente. —
Assim como praticamos!
Como se fosse assim tão simples. Apenas uma oração, apenas
uma lição.
O som das chamas rugindo entre eles estava revirando seu
estômago. Ela não conseguia pensar além delas para se lembrar de
suas orações e muito menos encontrar o empirium.
Rielle, salve-a!
Rielle, por favor! Faça isso agora! Oh, Deus...
Ela caiu de joelhos e mãos, com o estômago arrepiado.
Papai, me desculpe! Eu não consigo parar! Mama! Mamãe, corra!
— Eu não consigo — ela ofegou. — Eu não consigo parar.
— Você pode fazer isso, Rielle — Tal estava chamando por ela. —
Escute minha voz! Eu confio em você!
De outro lugar da casa, veio um gemido enorme. O chão tremeu.
Rielle olhou para trás, pelo corredor cheio de fumaça e viu o
segundo andar desabar. O quarto dela, o escritório do pai, a sala de
música da mãe. Novas chamas rugiram pelas paredes. Um grande
buraco no telhado revelou um céu manchado de fumaça.
— Rielle, ouça... — A voz de Tal desapareceu em um acesso de
tosse.
— Tal?
Ele não respondeu.
— Tal! — Ela se levantou com as pernas trêmulas, procurou
através do inferno por um caminho e encontrou um – pequeno e
encolhendo.
Ela correu para ele, mergulhando nas chamas e batendo no chão
do outro lado. A alguns metros de distância, Tal estava deitado sob
uma viga do teto, com o rosto pálido e escorregadio de suor.
Ela rastejou até ele, cabeça zumbindo de seu salto selvagem. O
calor do fogo pressionou suas costas como uma mão determinada a
enterrá-la.
— Tal, eu estou aqui. Tal? — Ela o ajudou a sentar, deu um tapa
em suas bochechas até que seus olhos vermelhos se abriram.
Ele sorriu para ela. — Aí está você. — A mão dele procurou a
dela. — Eu sabia que você me encontraria.
— Estamos presos, não consigo... não consigo carregá-lo. Por
favor, levante-se.
Ele ofegou por ar, balançando a cabeça. — Você pode apagar o
fogo.
— Tal, eu... — As lágrimas dela caíram sobre o pescoço dele.
Papai, eu não consigo parar! — Se eu tentar, vou piorar. Você sabe
que eu vou.
— O que eu sei é que você era apenas uma criança. E agora... —
Ele tocou sua bochecha. — Agora, você é uma rainha.
Seus olhos começaram a se fechar.
— Tal? Não! Tal! Ela olhou impotente para as chamas invasoras,
tentou alcançar o empirium com um impulso fraco da mão. — Mova-
se! Deixe-nos em paz, por favor!
Outra viga desabou, a menos de um metro e meio deles. Rielle
abaixou a cabeça sobre o corpo de Tal, sem fôlego.
Então ela ouviu a voz de Tal, fraca em seu ouvido: — Queime
firme e queime de verdade. Queime limpo e brilhante.
O Rito do Fogo. Ela fechou os olhos.
— Queime firme e queime de verdade — ela repetiu, com a voz
embargada. — Queime limpo...
A mão dele apertou a dela. — ...E queime brilhante. Mais uma
vez, Rielle.
— Queime firme e queime de verdade.
— Pense — ele sussurrou — naqueles que você ama.
— Queime limpo e queime brilhante.
Os que eu amo.
Ludivine. Tal.
Audric.
Um calor fresco tocou seus dedos, seus pés.
Do alto, veio o grito agudo de Atheria – parte cavalo, parte falcão.
Uma parte distraída da mente de Rielle lembrou a capa de pássaro
de fogo descartada. Sua visão inundou com mil tons de verão.
— Queime firme — ela sussurrou.
— E queime de verdade. — terminou Tal, sua voz um mero fio.
— Queime limpo. — Ela abriu os olhos para uma sala de ouro
macio. Fogo de ouro, cinzas de ouro, ouro cintilante. — E queime
brilhante.
Ela piscou. Ela inalou.
O ouro mudou, reunindo-se em nós retorcidos que pairavam,
esperando.
Rielle respirou. Pontos quentes de energia surgiram das pontas
dos dedos, como agulhas saindo de sua pele. O ouro que inundava
a sala se dissipou em espirais giratórios de luz.
De repente, o calor que a enchia desapareceu.
Ela piscou, respirou fundo, como se emergisse da água.
O mundo voltou para ela, monótono e comum.
Exceto pelas milhares de penas que caem das vigas, jorrando ao
longo das paredes, cobrindo o chão arruinado. Onde quer que
houvesse chamas, agora dançava entre os cachos decrescentes de
fumaça e longas penas de tangerina, ouro, violeta e escarlate.
Cores do Firebird.
— Rielle... — Tal passou o braço pelo chão. Penas voaram ao seu
toque antes de voltar a descansar levemente entre as pilhas de
brasas fervendo.
Ele olhou para ela, admiração tornando seu rosto suave. — Como
você fez isso?
Ela pegou uma pena de um vermelho particularmente brilhante e
assistiu com uma emoção de prazer enquanto as finas farpas
felpudas tremulavam em seu toque.
— Eu não sei — ela sussurrou, presa entre a exaustão e a alegria
mais perfeita que já havia sentido. — Eu acho que...
Mas as palavras morreram em seus lábios. Pois naquele
momento, um toque familiar raspou sua espinha.
Corien? Ela olhou através da casa, apertando ainda mais Tal.
Você está aí?
O silêncio foi sua resposta. Mas ela não foi enganada. Ela sentiu a
proximidade dele como uma forma familiar no escuro.
Buzinas distantes soaram – ininterruptas, frenéticas. Avisos. Com
as chamas apagadas, Rielle podia ouvir os gritos aterrorizados da
multidão.
Oh, Deus.
— O que é isso? — Tal procurou seu rosto. — Rielle, diga alguma
coisa.
E assim, Corien murmurou, começamos.
Rielle tocou sua boca, perseguindo a sensação de lábios roçando
os dela.
Com um pequeno sorriso, ela sussurrou: — Ele está aqui.
46
Eliana
“Queridos irmãos e irmãs, por favor, não
lamentem minha ausência. Saibam que eu
estava em sã consciência quando parti para
Ventera. Como a caçula de cinco, muitas
vezes me senti à sombra de sua luz brilhante.
Agora, é a minha vez de brilhar. Na barriga da
besta, servirei a causa da justiça e da
liberdade da Coroa Vermelha e me esforçarei
para ganhar sua admiração. Que a luz da
rainha nos guie para casa.”
—Carta da princesa Navana Amaruk de Astavar, aos irmãos
13 de dezembro de 1014 da terceira era.

Eles se moveram pela floresta fria por horas – durante toda a noite e
no dia seguinte.
O chão ficou mais rochoso quanto mais ao norte eles foram, terra
macia dando lugar a areia pálida. As árvores eram estranhas aqui,
curtas e finas, com folhas quebradiças que assobiavam
maldosamente ao vento. Carrinhos de mão compridos e
deformados, coroados com pedras em ruínas serpenteavam pela
floresta como veias.
— Essas árvores cheiram a morte — Hob sussurrou enquanto se
agachava perto de um desses montes. — Ficarei feliz em deixá-las
para trás.
Eliana concordou – mas para onde ir depois disso? O contato de
Simon, seu caminho através do Mar Estreito, agora estava perdido
para eles.
Finalmente pararam para descansar, aconchegando-se sob uma
saliência coberta de musgo ao lado de uma ligeira colina. Navi havia
perdido muito de sua cor, sua pele escorregadia de suor. Eles a
colocaram no chão, espalhando folhas sobre seu corpo trêmulo.
Ela levantou uma mão fraca. — Eliana?
Eliana pegou, sentou-se ao lado dela. — Estou aqui. Você está
bem. Nós vamos ficar bem agora.
Navi sorriu fracamente. — Não minta para mim.
— Bem. Provavelmente estamos todos condenados.
— Isso é melhor.
Remy se encostou no outro lado de Eliana, os braços cruzados
sobre o peito. Ele não falou uma palavra desde que deixaram Simon
para trás.
Eliana olhou para Hob. — Você sabe com quem Simon poderia
estar falando? O contato que ele foi encontrar.
Hob tirou alguns pedaços de comida dos bolsos – carne seca,
pãezinhos, tudo o que ele havia conseguido pegar antes de fugir do
fogo – e passou para eles. — Não. De acordo com Simon, eu não
sou um aliado de alto escalão o suficiente para ter acesso a essas
informações.
— Deve haver contrabandistas que cruzam o Mar Estreito.
— Um pouco. Mas não temos dinheiro para isso. — Hob arrancou
uma baga de um arbusto próximo, mastigou e cuspiu. — Rotberries.
Essa floresta é inútil.
— Podemos voltar para Rinthos? Pedir ajuda a Camille?
— Eu não acho que Navi sobreviveria à viagem. Se pudermos
chegar ao porto de Skoszia sem que alguém nos veja e nos mate no
local, posso enviar uma mensagem para Camille de um lugar lá,
mas isso levará tempo.
— Essa é a hora que não temos.
— Nós o deixamos. — Remy mudou para olhar para Eliana. —
Nós o deixamos morrer com Rahzavel.
— Sim, nós deixamos — disse Eliana, recusando-se a encontrar
seus olhos. — Ele gostaria que nós fizéssemos.
— Isso não está certo.
— Ei, você sabe o que? — Ela passou o braço pelos ombros de
Remy. — Eu tenho algo para te dizer. Eu gostaria de poder mostrar
a você, mas não posso. Você também, Hob.
Hob levantou uma sobrancelha. — Não fale comigo como se eu
fosse criança.
— Eu conheci uma amiga — disse Eliana — nos laboratórios onde
eles mantinham eu e Navi. O nome dela é Zahra e... ela está aqui
conosco. Agora mesmo.
Um pouco da tristeza deixou o rosto de Remy. — Realmente?
Como? Onde?
Hob estava olhando para ela. — Você perdeu a cabeça?
— Isso não é brincadeira, Hob. — disse Zahra.
O braço de Hob disparou para proteger Eliana e Remy. — Quem
está aí? Quem disse isso?
— Quem é você? — Remy olhou em volta, maravilhado. — Você
pode me mostrar como você é?
— Meu nome é Zahra, pequenino. — Zahra desceu ao nível dos
olhos de Remy, com o queixo nas mãos. — Que coisa querida você
é. Sua mente está tão aberta quanto o céu.
Remy cautelosamente acenou com a mão. — Você está muito
perto, não é?
— De fato.
— Eliana — murmurou Hob — o que é isso?
Remy abraçou os joelhos no peito. — Você é um espectro?
Zahra piscou surpresa. — O que é essa criança, que conhece
muito do mundo? — Sua expressão ficou terna. — Oh, docinho.
Você é um sonhador, um contador de histórias. Eu vejo isso agora.
Você anseia por magia e por todos aqueles gigantes dourados do
passado.
Remy corou de prazer. — Antes da invasão — ele disse
ansiosamente — as pessoas roubavam livros dos templos, para que
não fossem destruídos. Compro-os sempre que posso e leio todos.
— Espere. — Eliana se afastou para franzir a testa para ele. —
Você quer dizer que costumava esgueirar-se por Orline comprando
livros no mercado subterrâneo?
— Você acha que eu aprendi tudo o que sei apenas rolando
massa na padaria?
— Bem, eu… — Ela balançou a cabeça, surpresa.
— Oh, eu gosto de você. — Zahra passou um braço pelos ombros
de Remy com um sorriso. — Uma mente curiosa e um coração puro,
ambos em um.
Hob jogou as luvas no chão. — Alguém pode me dizer o que é um
espectro?
— Não se mexam — uma voz masculina advertiu das sombras
diante deles. — Ou direi aos meus arqueiros para deixarem suas
flechas voarem.
Eliana congelou quando as formas mudaram na vegetação
rasteira – cinco soldados, dez, aproximando-se com arcos
levantados e flechas prontas.
Zahra disparou até sua altura total, olhos escuros brilhando. —
Eliana, me perdoe. Eu estava distraída; eu não os ouvi!
Um dos arqueiros apontou a flecha para o lado, procurando Zahra
– e, é claro, não encontrando nada.
— Você tem um quinto no seu grupo? — perguntou o primeiro
homem. Ele se aproximou de Eliana, sem arco na mão, mas uma
espada longa e curva no quadril. O capuz escondia o rosto da vista.
— Você vê cinco pessoas aqui? — Eliana olhou para ele. — Seus
olhos falham com você, eu tenho medo.
— Mas meus ouvidos não. — O homem parou, considerando a
cabeça cortada de Navi. — Você escapou de Fidelia.
Eliana ficou tensa. — Possivelmente.
— Malik? — Navi gemeu, lutando para se levantar. — É você?
— Navi? — O homem tirou o capuz e caiu de joelhos aos pés
dela. — Doces Santos. — Ele juntou Navi contra seu peito antes
que Eliana pudesse detê-lo, deu um beijo carinhoso na cabeça dela.
— Simon disse que você estava viva, mas eu não acreditei. Eu não
podia me deixar.
Navi se agarrou a ele, seu rosto magro livre de dor pela primeira
vez desde que escaparam dos laboratórios. — Eliana — ela
murmurou — por favor, não tenha medo. Estamos seguros agora.
— Eu serei a juíza disso. — Eliana se moveu na frente de Remy e
estendeu a mão por baixo de sua jaqueta chamuscada para
Arabeth. — Quem é você?
Malik se virou, as bochechas marrons molhadas de lágrimas, os
olhos grandes e escuros, a mandíbula forte. A semelhança, agora
que Eliana sabia procurá-la, era óbvia.
— Eu sou Malik Amaruk — disse ele, limpando o rosto. — Eu sou
o irmão de Navi e um príncipe de Astavar.

•••

Mais tarde naquela tarde, depois que Malik e seus batedores


compartilharam uma refeição adequada com eles, Eliana ficou com
Malik na beira de um penhasco com vista para o Mar Estreito. Do
outro lado do canal preto havia uma linha de falésias brancas:
Astavar – e liberdade.
Eliana deu uma olhada e imaginou o país verde fresco além da
fronteira, mesmo que isso abrisse velhas feridas em seu coração.
Harkan, ela pensou, você deveria estar aqui.
— Então, existem monstros nesses barcos — Malik murmurou. No
horizonte distante, manchas negras moviam-se firmemente para
oeste contra o céu escuro. A frota do Império.
— Eles são chamados de rastreadores. — disse Eliana.
Ao longo da costa, uma pequena frota de navios de guerra do
Império esperava no porto de Skoszia. As formas fracas de adatrox
se agitavam de um lado para o outro nas docas, transportando
suprimentos e armas. Pendurados no alto dos mastros dos navios
de guerra, as cores preto, vermelho e dourado do imperador se
agitavam ao vento.
O Imperador. Corien, Zahra o havia chamado.
A boca de Eliana se afinou. Isso não era algo que ela se permitiria
pensar ainda. — Portanto, temos que atravessar o mar sem que
ninguém nos navios nos veja.
— Sim. — Malik apontou para trás, mais a oeste ao longo da
costa. — Há um pequeno navio contrabandista a três quilômetros de
distância, em uma pequena enseada abandonada pelo Império. O
navio cruza ao anoitecer e sua tripulação nos leva com eles. Simon
e eu arranjamos isso antes… — Mais uma vez Malik olhou para ela.
— Bem.
— Antes de eu o abandonar para salvar minha própria bunda?
— Eu não diria isso assim.
— Não há necessidade de segurar sua língua em volta de mim,
príncipe. — Eliana olhou para a água, tentando não se lembrar dos
gritos de dor de Simon. — Eu sei o que fiz.
— Eu faria o mesmo, você sabe.
— Não há necessidade de me confortar também.
Malik inclinou a cabeça. — Quando atravessarmos, você será
levada para a capital. Existem túneis abaixo do palácio. Meus pais
esconderão todos vocês lá, e eu me juntarei ao exército na praia.
— Para lutar? — Eliana não conseguiu esconder o desprezo em
sua voz.
Malik disse suavemente: — Você acha que não podemos vencer.
— Eu sei que não podem.
— E o que devemos fazer? Sentar nas margens do nosso país e
deixar o Império nos massacrar sem levantar uma única espada?
— Seu pessoal se destaca por sentar e não levantar uma única
espada.
Malik olhou para Eliana calmamente. — Todos em Astavar
sofreram com você no dia em que Ventera caiu.
— Sua dor não significa nada para mim.
— Nós salvamos nossas próprias bundas. Não foi assim que você
disse? Como somos tão diferentes, então?
— Simon é um assassino. Um soldado. Ele sabia no que estava
se metendo quando se juntou à Coroa Vermelha. Um país, no
entanto, é cheio de inocentes — Eliana olhou para o mar. — Não
tente se comparar a mim ou seu país ao meu. Você vai perder.
— Meu Senhor! — Um batedor correu pelo caminho do penhasco
para sussurrar algo no ouvido de Malik.
Malik virou-se para Eliana, sobrancelhas levantadas. — Parece
que Simon está vivo.
O mundo sob seus pés flutuou para longe. — O que? Mas
Rahzavel...
— O levou cativo, aparentemente. Eles estão em um dos navios
de guerra com destino a Astavar.
— Qual? — Quando o batedor hesitou, Eliana agarrou seu braço.
— Qual?
— Não sei — respondeu o escoteiro. — Nosso contato no navio
do contrabandista os viu embarcar, mas não conseguia se lembrar
de qual navio. Todos parecem iguais, ele disse.
Eliana bufou. — E essas são as pessoas às quais confiamos
nossas vidas?
— Não restam muitos contrabandistas que ousam atravessar o
Mar Estreito — apontou Malik. — Temos sorte de encontrar alguém.
— O que você está pensando, minha rainha? — Zahra murmurou
ao ouvido de Eliana.
Eliana olhou fixamente para os navios ao longo da costa.
— Estou pensando — disse ela lentamente — que não iremos
com os outros quando eles partirem.
Zahra assentiu. — Você está pensando que devemos salvar
Simon.
Uma onda quente de alívio varreu o corpo de Eliana. — Sim.
— Porque você se sente culpada por deixá-lo?
Sim. Porque nem ele merece a morte nas mãos de Rahzavel.
Porque ele deu a vida para nos permitir escapar.
Porque não pude salvar Harkan. Mas eu posso, talvez, salvar
Simon.
— Porque ele tem respostas que eu quero — respondeu ela.
Zahra lançou um olhar aguçado e bateu em sua própria têmpora.
— Lembre-se... anjo.
— Não mais, você não é. — Eliana virou-se para encarar Malik. —
Você levará meu irmão para Astavar... e Hob também. — Ela olhou
para Hob. — A menos que você queira voltar para Patrik?
— Não vou deixar Navi, nem o garoto — disse Hob calmamente,
com os olhos brilhantes, mas o queixo fixo. — Encontrarei Patrik
mais tarde. Às vezes, nosso trabalho para a rebelião exige que
vivamos separados. Ele vai entender.
Uma dor inchou sob as costelas de Eliana.
Às vezes, Rozen Ferracora havia dito a ela, quando o treinamento
começou, seu trabalho a levará longe de casa por dias seguidos.
Lembre-se disso: eu sempre vou te amar quando você voltar. Não
importa o que você tenha feito.
Ela apertou o colar com tanta força que a borda corroída mordeu a
palma da mão. — Bem, Malik?
— Para a garota que salvou minha irmã e mostrou a ela tanta
gentileza? — Malik inclinou a cabeça. — Eu faria qualquer coisa.
— Remy não vai me perdoar por sair sem se despedir.
— Sim, eu vou.
Eliana se virou e encontrou Remy parado atrás dela, com o rosto
comprimido e grave. — Se você pode salvá-lo, El — ele disse
calmamente — você deve fazê-lo.
Uma buzina soou da costa; através dos navios de guerra
reunidos, tochas brilhavam.
— A noite vem — Zahra murmurou. — Nós devemos ir.
— E nós também. — Malik virou-se, assobiou baixinho. Seus
batedores se reuniram, abrindo caminho em um silêncio eficiente.
Eliana puxou Remy para ela, e juntos eles encontraram Hob
ajudando Navi a se levantar na beira das árvores. — Você cuidará
dele?
— Ele não vai deixar o meu lado — disse Hob. — Nenhum deles
vai.
— Eliana — sussurrou Navi, alcançando-a. — Você o salvará. Eu
sei disso.
Eliana se aproximou dela, Remy ainda ao seu lado e beijou sua
sobrancelha. — Eu vou tentar.
— Eu sei o que você é. O espectro pensou que me confortaria
saber.
— O quê? — Eliana olhou para Zahra.
— Não fique com raiva dela. Foi uma gentileza — Navi beijou a
mão de Eliana, pressionou-a na bochecha. — Se alguém pode
salvá-lo, esse alguém é você.
Remy olhou. — Sobre o que ela está falando?
— Navi — disse Eliana rapidamente — tudo isso é um absurdo
infantil… mentiras que as pessoas que desejam conforto dizem a si
mesmas.
— Você não acredita nisso. — Navi murmurou.
O colar de Eliana ficou subitamente pesado demais em volta do
pescoço. — Eu não sei em que acreditar.
Zahra sorriu. — Então você está no caminho certo.
Eliana se abaixou para beijar a bochecha de Remy, sussurrou: —
Eu te amo — e segurou o rosto dele nas mãos dela, memorizando
cada linha e curva.
— Salve-o — ele disse, sua voz vacilante, e antes que Eliana
pudesse mudar de idéia, ela se virou e correu pelo penhasco em
direção ao mar que escurecia.
47
Rielle
“Meus sonhos são estranhos ultimamente. Eu
tenho medo... Minha querida filha, por favor,
me perdoe. Sinto muito. Eu sinto muitíssimo.”
—Carta de Lord Dervin Sauvillier a Lady Ludivine Sauvillier
19 de junho do ano 998 da segunda era

Rielle olhou para Tal apenas uma vez.


— Fique aqui — ela ordenou, depois saiu correndo da casa,
ignorando seus gritos. Ela sentiu uma pontada de culpa por deixá-lo
preso sob a viga e esperava que não o machucasse
irreparavelmente, mas pelo menos lá estava ele fora de perigo.
Ele também não seria capaz de interferir.
Ela correu para fora do labirinto, apontando para as colinas mais
próximas e os espectadores ficaram de pé. O fogo dos acólitos
devastou grande parte do labirinto; seu caminho era claro, apesar
de entupido de escombros fumegantes.
Por fim, ela emergiu no sopé – e no caos.
Metade das arquibancadas estava em ruínas, faixas enlameadas
nas cores da Casa Courverie voando esfarrapadas em um vendaval
não natural. O forte aroma alpino da magia do windsinger picou o
nariz de Rielle.
Dezenas de corpos estavam espalhados pelo chão. Milhares
vieram ver o desafio dela, e agora eles se espalharam pelo vale
como formigas chateadas. O ar estava entupido de gritos, lamentos
de dor, o estrondo da magia elementar.
Em uma das cordilheiras que ladeavam as colinas, ela examinou a
cena com o coração batendo forte. Ela não conseguia entender o
que via – pessoas correndo com crianças nos braços, elementais
em duelos dispersos. Quem fora o atacante aqui? Borsvall?
Todos os sentidos se esticaram enquanto ela procurava algum
sinal dele. Corien, aqui, não é mais um sonho. A própria ideia
parecia impossível.
E ainda...
Ela se endireitou, sua pele formigando. Uma pontada aguda de
satisfação que não era dela própria tocou uma canção nas costelas.
Venha me encontrar, Rielle.
— Proteja o rei! — gritou uma voz familiar. Ela girou, viu o pai e
uma companhia de soldados reunindo o rei Bastien em segurança.
Outros, liderados pelo primeiro tenente de seu pai, levaram a rainha
Genoveve na direção oposta.
Audric. Ludivine. Mas ela não viu nenhum rastro deles.
Ela se moveu para se juntar ao pai, depois ouviu um grito furioso.
Um soldado uniformizado – que não era do pai dela – correu ao
longo de uma cordilheira, prendeu a flecha no arco e a deixou voar
no ventre do cavalo da rainha. Gritou e caiu; os outros próximos
entraram em pânico, erguendo os olhos arregalados.
— Leve-a para a segurança! — berrou o primeiro tenente,
empurrando a rainha para trás de um de seus soldados.
O arqueiro uniformizado disparou outra flecha, pouco antes de
Sloane com um longo casaco preto, pular voando de um suporte de
visão desabado. Ela bateu a flecha no céu com suas adagas
gêmeas de obsidiana, depois as jogou no arqueiro. Um par de lobos
sombrios irrompeu de suas lâminas e atacou o homem, com as
mandíbulas bem abertas. Um travou na garganta, o outro na barriga.
Rielle correu para ele, juntando-se a Sloane a tempo de ver os
olhos nublados do homem piscarem, como se uma sombra tivesse
passado por sua mente. Os lobos se afastaram e se dissolveram. O
corpo do arqueiro estremeceu uma vez; seu pescoço estalou. Seus
olhos cinza clarearam para um marrom comum.
— O que é que foi isso? — Sloane murmurou, limpando o suor do
rosto. — Você viu aquilo?
— Eu vi — disse Rielle, uma lenta compreensão se alastrando por
ela. Corien?
Hmm? Ele soou completamente satisfeito. O que é isso, minha
querida?
— Essas são as cores de Sauvillier. — Ela tocou o colarinho do
homem. — Por que os homens de Lord Dervin atacariam desse
jeito?
Algo se chocou contra o chão, sacudindo as colinas.
— Eu não entendo — Sloane retrucou, um fio de medo
desesperado em sua voz — Nós somos seu próprio povo.
Que tragédia tudo isso é, Corien pensou. Se ao menos houvesse
uma maneira de detê-lo.
— Ele está fazendo isso — Rielle sussurrou. — Ele está
controlando-os.
Sloane olhou para ela. — O que? Quem é?
Se você quiser parar com isso, você virá até mim. Agora.
Um calafrio a sacudiu. Onde você está?
Venha me encontrar, minha garota maravilhosa. Ou eu vou matá-
los todos onde eles estão.
Explosões crepitantes de magia e os gritos agonizantes de
soldados rasgaram o ar do sopé em pedaços. Rielle começou a
correr.
Sloane agarrou seu braço. — Não, espera! Diga-me o que está
acontecendo!
Rielle bateu a palma da mão no peito de Sloane e a jogou de volta
vinte metros em um monte de grama.
Ela se virou e correu, com lágrimas nos olhos, mas não havia
tempo para culpa. Ela subiu a encosta rochosa da colina, ao longo
de uma série de falésias com vista para o labirinto ainda em
chamas.
A terra resistiu sob seus pés, fazendo-a voar. Aterrissou com
força, virou-se e viu uma Sauvillier blindada arrancar o machado do
chão. Um tremor de terra.
A mulher olhou para Rielle com um rosto de pedra. Seus olhos
eram de um cinza cego. A boca da mulher se contraiu; Rielle
reconheceu aquele sorriso.
— Venha me encontrar, Rielle — a mulher resmungou, erguendo o
machado mais uma vez.
Rielle sacudiu o pulso. A terra ergueu-se como a crista de uma
onda, depois se abriu e engoliu a mulher. Um grito aterrorizado
soou, depois ficou em silêncio.
Chegando perto, Corien sussurrou.
Ela se virou, seguindo o rastro de sua voz pelos penhascos. Ela
passou correndo por soldados em duelo, juntou nós de vento em
suas mãos e os deixou de lado. Uma flecha passou por ela, quase
uma falha.
Então ela ouviu uma voz familiar gritar: — Lady Rielle!
Ela girou, viu um grupo de pessoas amontoadas contra um
afloramento rochoso, o jovem Simon Randell e seu pai entre eles. A
cinquenta metros de distância, uma dúzia de metalmasters Sauvillier
avançavam sobre eles, palmas estendidas, arremessando um
ciclone interminável de lâminas.
E Audric ficou entre eles e seu povo, Illumenor lançando um
brilhante escudo de luz ao redor deles.
Mas os metalmasters eram rápidos e suas armas ainda mais
rápidas. As lâminas se rasgaram em pedaços menores enquanto
voavam, girando tão rápido entre as mãos de seus lançadores e a
parede de luz solar de Audric que se tornaram uma tempestade de
faíscas e aço. Eles o atacaram incansavelmente, ricocheteando em
seu escudo ardente de novo e de novo.
Os saltos de Audric afundaram no chão sob a pressão. Ele
abaixou a cabeça e soltou um rugido furioso de dor. A luz espalhou-
se pelo chão como estrelas caídas.
Atrás de Rielle, veio um grito aterrorizado: — Salve-o!
Ludivine.
Rielle assobiou para Atheria, o poder correndo por seus membros
para se unir em suas mãos. Atheria caiu do céu, correu baixo sobre
as falésias.
Virando, Rielle bateu o braço em um círculo. Os metalmasters
voaram para trás dela, suas armas caindo no chão.
Ela virou de volta para Audric, estendeu a palma da mão. Uma
rajada de vento bateu nele, fazendo-o voar de volta pelo ar quando
Atheria passou pela beira do penhasco. O pegasus manobrou
bruscamente para pegá-lo, depois subiu de volta ao céu.
— Rielle, não! — Audric a alcançou enquanto Atheria o levava
para a segurança. — Rielle!
Que desenvolvimento agradável, Corien cantou. Eu diria o quanto
você é nobre, Rielle, mas nós dois sabemos a verdade, não é?
Rielle passou correndo pelas pessoas que Audric estava
protegendo e se jogou no nó dos metalmasters. Eles se
recuperaram, recuperaram suas armas. Seus olhos cinzentos e
nublados, eles se lançaram contra ela. Adagas vieram voando. Ela
girou, desviou deles. Uma língua zangada de magia com sabor
metálico envolveu seu pé, puxando-a para baixo. Ela bateu as
palmas das mãos no chão; tremores quebraram a terra. Os
metalmasters tropeçaram e ela pulou, mergulhou sob o chicote
raivoso de uma corrente, depois empurrou o antebraço para o grupo
e os viu voar. Alguns escorregaram da beira do penhasco.
Ela se virou, procurando loucamente por Ludivine, encontrou ela e
Garver Randell ajudando os sobreviventes por um caminho do
penhasco.
— Lu! Por aqui!
Ludivine olhou para cima, cabelos despenteados e bochechas
manchadas de sangue. Os olhos delas travaram; Ludivine sorriu
sem fôlego para ela.
Então, um enorme martelo de ponta de metal girou pelo espaço
entre elas, golpeou Ludivine no estômago e a levou gritando sobre a
beira do penhasco.
Um instinto furioso tomou conta do corpo de Rielle. Ela girou nos
calcanhares, socou o ar com tanta força que o metalmaster que
jogou o martelo voou cem metros para trás. Seu corpo derrapante
esculpiu um sulco no chão antes de bater na encosta da montanha.
Rielle tropeçou até a beira do penhasco, procurando nas ruínas do
labirinto muito abaixo sinais do corpo de Ludivine – e não
encontrando nada. A fumaça era muito grossa, a distância muito
grande. Choque a varreu em ondas. Ela se agarrou à rocha, sua
visão rolando.
— Lady Rielle — disse Garver Randell, aproximando-se
cuidadosamente do caminho do penhasco. Ele estendeu a mão,
Simon observando de olhos arregalados atrás dele. — Por favor,
minha senhora. Venha conosco.
Oh, minha querida garota. A voz de Corien estava mais suave do
que nunca. Deixe-me confortá-la.
Rielle se levantou, empurrando a mão de Garver. Ela se virou,
instável, e olhou através dos olhos cheios de lágrimas além do topo
da colina.
Onde? Seus pensamentos pareciam lentos Eu não posso...
Corien, ela é...
Siga o som da minha voz.
Ela fez, correndo primeiro devagar e depois freneticamente. Uma
terrível dor nublada surgiu dentro dela, ameaçando engoli-la inteira,
mas mesmo por baixo estava a necessidade pulsante – ver Corien,
saber que ele era real.
Para impedi-lo de fazer algo pior.
Sua trilha a levou a uma caverna sob uma grande colina. Ela
correu por um ninho de passagens com pedras apertadas, as
paredes tremendo de ambos os lados enquanto a luta atrás dela
continuava.
Por fim, ela dobrou uma esquina em uma caverna circular. As
raízes das árvores serpenteavam pelas paredes. Uma pequena
abertura no centro do teto deu a ela um vislumbre do céu.
O rei Bastien levantou-se de uma pedra contra a parede. Lorde
Dervin estava sentado no chão. Nuvens cinzentas entupiam os
olhos de cada homem.
Ao som de passos, Rielle virou-se para ver o pai caminhando em
sua direção, saindo das sombras.
Ela correu para ele imediatamente. — Papai, você está bem!
— Você me encontrou. — A boca de seu pai se curvou em um
sorriso lento. — Bem feito.
Rielle congelou. Ele estendeu a mão, olhos cinzentos sem piscar
no rosto dela. Ela passou por ele, procurando nas sombras da sala.
— Manipular a mente do meu pai — declarou ela — não é o
caminho para conquistar meu coração.
— Devo libertá-lo, então? — murmurou uma voz.
Ela girou com o som. Uma coluna de preto imóvel a observava do
canto. A boca dela ficou seca; seu coração pulou na garganta.
— Solte todos eles. — ela ordenou.
— Como quiser.
Uma onda se deslocou pela sala. Lorde Dervin olhou em volta
confuso, seus olhos clareando.
O rei Bastien se levantou. — Qual o significado disso? Por que
estamos todos aqui? — Ele olhou para o pai de Rielle. — Armand?
— Eu não sei, meu rei.
Com o toque das mãos de seu pai, Rielle virou-se para encará-lo.
— Papai, eu sinto muito.
— Você está machucada? — Ele alisou os cabelos dela. — O que
está acontecendo aqui?
— Rielle está deixando você, eu temo.
Rielle se virou – e lá estava ele.
Corien.
Ele se moveu lentamente pela sala, olhos azuis claros fixos no
rosto dela. As mãos altas e esbeltas seguradas cuidadosamente
atrás das costas, o elegante casaco escuro abotoado no ombro e
arrastando-se para o chão. Rosto pálido, maçãs do rosto altas e
elegantes, uma boca cheia que se curvava de prazer ao vê-la.
A respiração de Rielle ficou alta e fina. Seus sonhos, tão vívidos
quanto antes, não lhe fizeram justiça.
— Meu Deus, Rielle — ele murmurou, seu olhar faminto
percorrendo seu corpo. — Eu não achava possível, mas você é
ainda mais requintada agora do que em minha mente.
Seu pai ficou rígido de fúria ao seu lado. — Rielle, você conhece
esse homem?
— Quem é você? — O rei Bastien deu um passo à frente, uma
expressão furiosa no rosto. — Por que você nos trouxe aqui?
Corien deu um passo mais perto de Rielle, depois outro. Os olhos
dele nunca deixaram o rosto dela. — Eu queria ter certeza de que
Rielle não fugisse de mim. E você não vai, não é? Não com todos
esses homens muito importantes tão perigosamente perto de mim.
— Você não vai machucá-los. — Ela balançou a cabeça, com a
voz embargada. — Eu o proíbo.
— Rainha do meu coração — murmurou Corien, colocando uma
mão enluvada no peito. — Meu maior desejo é agradar você. Mas
você deve prometer deixar este lugar comigo esta noite, ou lamento
dizer que você forçará minha mão.
Pânico e desejo travaram uma guerra em seu peito. — Mas não
posso, preciso de mais tempo.
— Mais tempo? Para quê? Ser cutucada e cutucada, estudada por
magos lascivos e ordenada por um rei idiota com muito medo de
enfrentar a verdade?
Lorde Dervin olhou para suas mãos. — Eu nunca quis que isso
acontecesse.
Corien riu. — Como se você pudesse ter parado!
— Rielle, quem é esse homem — exigiu o pai — e por que ele fala
com você dessa maneira?
— Ele é um anjo — disse Rielle.
Os olhos de Corien brilharam com desgosto, mesmo quando seu
sorriso cresceu.
O rei Bastien sacou a espada. O pai de Rielle também,
empurrando-a para trás.
— Isso é impossível. — O rei Bastien parecia como se alguém o
tivesse chutado no estômago. — O Portão é forte. Era para
segurar...
— Por um longo tempo — Corien retrucou. — Não para sempre.
Rielle, é hora de partir. A menos que você queira que eu demonstre
em primeira mão do que sou capaz?
Rielle engoliu em seco e se aproximou dele, seu poder ansioso
para tocá-lo enquanto sua mente gritava para ficar parada – mas
seu pai estendeu o braço e a deteve.
— Você vai ficar longe da minha filha, seja o que for — disse ele
— ou eu vou...
— Fazer o quê? Me matar? — Corien riu. — Meu caro homem,
gostaria de ver você tentar.
O pai de Rielle não hesitou. Ele se lançou sobre Corien, ergueu a
espada para atacar. Então seu corpo estremeceu, seus olhos
nublaram e sua espada caiu no chão.
— Não! — Rielle correu para ele.
Ele olhou para ela, a cabeça inclinada artificialmente para o lado e
a atingiu com força no rosto.
Rielle cambaleou até a parede da caverna. Quando ela tocou o
lábio, seus dedos ficaram vermelhos.
— Interessante — disse Corien calmamente. — Eu apenas disse
a ele para pará-la. Sua mente foi quem escolheu atacar você. — Ele
se virou para ela, e ela pôde sentir através de sua conexão uma
pontada de tristeza genuína. — Seu pai poderia estar com raiva de
você por alguma coisa? Eu pensei que vocês dois tinham deixado
essa bagunça para trás.
Rielle olhou para ele. — Solte-o, ou eu o destruirei.
— Se você tentar, eles estarão mortos antes que eu atinja o chão.
Lágrimas se reuniram em seus olhos. — Eu pensei que você...
— Que eu te amei? — O rosto de Corien se suavizou. — Criança,
eu te amo mais do que posso dizer. Eu estou fazendo isso por você.
Se você não os deixar, eles sufocarão, envergonharão e a
castigarão por ousar violar os muros que estão construindo ao seu
redor.
Ele se aproximou dela lentamente. — Eles usarão toda memória
que você compartilhar com eles… todo sentimento doce, todo
momento gentil… para extrair todo o poder que puderem desse seu
corpo milagroso. E eles não vão parar, ou sequer considerarão
poupá-la, porque terão muito medo do que os enfrenta. Se você
hesitar, eles a lembrarão do suposto amor por você e a prenderão
até você voltar e fazer o que você foi ordenada.
Ele agora estava tão perto que ela podia sentir o frio da pele dele,
uma especiaria de perfume em suas roupas. Ele segurou a
bochecha dela com uma mão enluvada. O calor ardia em seu corpo,
seu poder disparando tão completamente vivo com o toque dele que
ela sentiu febre.
Desamparada, ela se virou na palma da mão dele.
— Sim — Corien abaixou a cabeça para sussurrar contra a orelha
dela — até ele.
Audric.
— Você está errado. — Ela esperava desesperadamente que
fosse verdade. — Ele me ama, e sempre vai.
A piedade de Corien acariciou sua mente. — Quem te disse isso?
O rato?
E quando ele disse as palavras, uma imagem veio a ela,
empurrada violentamente pelo plano de seus pensamentos:
Audric, gritando de dor nas costas de Atheria. O pegasus pousou
em um platô gramado segundos antes de Audric atingir o chão. Ele
largou Illumenor, apertou a cabeça nas mãos. Seus olhos cintilaram
de um cinza brilhante e tempestuoso para marrom e de volta para
cinza.
A imagem desapareceu e, embora Rielle não soubesse se era real
ou imaginária, era o suficiente. Raiva irrompeu em seu coração. —
Você não vai tocá-lo — ela rosnou.
Corien se afastou dela. — Rielle, espere...
Ela se virou para ele, estendeu a palma da mão e gritou: —
Afaste-se de mim! — e deixou seu poder voar.

•••

Nem o vento, nem a terra ou as sombras que revestiam a sala.


Esse poder era mais do que isso e tudo isso e nada disso.
Simplesmente, era isso:
O empirium, cru e ofuscante.
Aos pés de Rielle, o tecido invisível do mundo se abriu e detonou.
Uma onda de luz, um arrepio selvagem.
Não longe, mas longe o suficiente.

•••

Quando o tremor diminuiu, Rielle estava no chão. A cabeça dela


girou. Ela olhou para as palmas das mãos; elas estavam cobertos
de sangue.
Dela própria?
Ela piscou.
Sim. A dor emergiu em ondas agudas e irregulares.
E Corien?
Tonta, ouviu um som horrível e estridente, e o encontrou
rastejando para longe dela, suas roupas queimadas em cinzas e seu
corpo...
A explosão o havia queimado.
Ele era uma criatura desfeita, vermelha, devastada e cintilante.
Ele uivou de dor, arrastando-se pelo chão da caverna em direção a
uma abertura que levava de volta às colinas.
— Não olhe para mim! — ele gritou com ela, suas palavras
estremecendo. — Assim não! Assim não...
Ela não viu um único traço reconhecível no rosto dele. Mas sua
agonia, sua vergonha – sua raiva – vibraram em sua mente.
Quando ela olhou para cima novamente, ele se foi.
Então, um grito baixo soou do outro lado da caverna – seu pai,
lutando para respirar. E além dele, o rei Bastien, lorde Dervin...
Imóvel, imóvel ambos imóveis. Não queimados, como Corien
havia sido, mas rígidos. A luz desapareceu de seus olhos vidrados,
seus rostos congelados em choque.
Rielle tentou se levantar, caiu de joelhos. — Papa? — Ela rastejou
para ele, virou o rosto para ela.
Ele tragou o ar, com os olhos turvos.
— Estou aqui. — Ela tocou o rosto dele; suas bochechas estavam
molhadas de lágrimas. — Está tudo bem. Ele se foi e eu estou aqui.
Nós só precisamos... Oh, Deus. — Ela se virou para a passagem da
caverna por onde tinha vindo, gritou sua voz bruta. — Eu preciso de
um curandeiro! Alguém, por favor, nos ajude! Garver!
— Eu... lembro.
— Papai? O que é? — Ela segurou as mãos dele contra sua
bochecha. — Você se lembra do que?
— “Pela... lua…” — Ele tragou com empatia o ar. — “Pela…”
— Canção de ninar da mamãe?
Ele deu um sorriso trêmulo. — “Pela...”
— “Pela lua” — ela terminou, cantando instável. — “Pela lua, é
onde você me encontrará.”
Ele assentiu e fechou os olhos. Lágrimas escorreram por suas
bochechas e em sua barba bem aparada. Um fantasma de sorriso
tocou sua boca.
— “Vamos rezar para as estrelas” — continuou ela, um mero
sussurro — “e pedir que elas nos libertem. Pela lua...”
Ele estremeceu uma vez, suas mãos frouxas nas dela.
Ela fechou os olhos, pressionou o rosto contra os dedos dele. Se
ela terminou a canção de ninar, se não olhou, não estava realmente
acontecendo.
— “Pela lua” — ela sussurrou — “Pela lua, é onde você me
encontrará. Vamos dar as mãos, só você e eu...”
Ela não conseguia mais falar. Se encolheu ao lado dele,
pressionou o rosto contra o lado dele e ficou lá, tremendo e sozinha.

•••

Um grito familiar perfurou o ar fora da câmara, sacudindo Rielle de


sua dor.
Uma rajada de vento seguida de estampidos de cascos anunciou
a chegada de Atheria, logo depois da porta pela qual Corien havia
se arrastado.
Ela sentou-se, com o coração batendo forte. Audric. O que ela
diria a ele?
Ele correu pela porta um instante depois, soprado pelo vento e
frenético. — Rielle?
— Aqui — ela resmungou. Ela tentou ir até ele, mas suas pernas
não funcionavam. Em vez disso, ela assistiu com pavor crescente,
quando Audric correu para ela, depois vacilou com um grito agudo –
e então olhou horrorizado o rosto congelado do pai.
Rielle finalmente encontrou forças para levantar.
— Eu tentei detê-lo — ela sussurrou, aproximando-se dele
lentamente. — Me desculpe, eu... eu queimei ele. Ele está
terrivelmente ferido, mas... — Ela apontou para o chão, onde as
manchas do corpo ensanguentado de Corien marcavam sua saída.
— Não foi o suficiente. Audric, sinto muito.
— Quem? Quem você queimou?
— O nome dele é Corien — ela conseguiu. — Ele é um anjo,
Audric. Ele virou os homens Sauvillier contra nós... E Ludivine...
O desespero a esmagou, deixou-a sufocada pelas lágrimas, e isso
foi bom e verdadeiro, pois quando Audric se virou para ela, viu o
sangue escorrendo por seus dedos e a marca da mão de seu pai
em sua bochecha, sua expressão chocada destruída, ele a abraçou
com força.
— Graças a Deus você está bem — ele sussurrou em seus
cabelos, sua voz grossa. — Rielle, pensei que tinha te perdido.
Ela o abraçou e balançou a cabeça no peito dele. — Nunca.
Nunca.
Você mente, a voz de Corien sussurrou, fina de dor. Mesmo
agora, você mente para ele.
Ela sentiu os ombros de Audric tremerem sob as mãos e o ajudou
a afundar no chão.
— Está tudo bem — ela sussurrou enquanto ele chorava contra
seu pescoço. Ela se confortou ao saber que pelo menos esse
pequeno fato não era uma mentira, e a coisa mais verdadeira que
ela sabia neste local da morte: — Estou aqui, Audric, e eu te amo.
48
Eliana
“Nestes tempos sombrios, nem mesmo a luz
da Rainha do Sol é tão poderosa quanto a luz
que espera dentro de nossos corações mais
profundos, se tivermos apenas a coragem de
procurá-la.”
—A Palavra do Profeta

— Se apresse. — Eliana sussurrou, agachando atrás de uma pilha


de caixas marcadas com o emblema alado do Império. A doca
estava escorregadia sob seus pés, o ar gelado azedo e salgado. —
Eles estão desembarcando.
Zahra suspirou irritada. — Estou tentando. Há muita coisa
acontecendo aqui, você sabe. Espera...
Eliana ficou tensa. — Você o encontrou?
— Possivelmente. Fique aqui. — Zahra desapareceu no meio da
noite.
Eliana observou dois soldados adatrox uniformizados patrulhando
o convés do navio à sua direita. Um estrondo distante soou do outro
lado na água. Ela olhou ao redor dos caixotes, desceu pelo píer
estreito e foi para o mar. Outro estrondo estalou como um trovão se
aproximando, e depois outro, cada um acompanhado por labaredas
distantes de luz contra o céu estrelado.
A frota principal, movendo constantemente em direção a Astavar,
começou a disparar suas armas.
— Vamos, vamos — Eliana murmurou.
— O navio mais distante — disse Zahra, aparecendo tão de
repente que Eliana deu um pulo. — O preto lustroso. Menor que os
outros, com um casco grosso. É onde eles estão.
Eliana soltou um suspiro lento. — Aquele pode ser o navio de um
general. Pronta?
Zahra colocou uma mão negra e tremula no pulso de Eliana. —
Lembre-se do que lhe contei sobre meu poder limitado desde o
outono. Só poderei mascarar sua presença por alguns minutos no
máximo, antes de precisar descansar novamente.
Inquieta, Eliana assentiu. — Guarde para quando estivermos no
navio. Eu posso chegar sem ser vista sozinha.
Eliana fechou os olhos e fez uma rápida oração a Santa Tameryn
para que escondesse Remy e os outros no barco do contrabandista
– e para que chegassem a Astavar antes da frota.
— Que a luz da rainha nos guie — Zahra murmurou.
Eliana lançou a ela um olhar.
Zahra sacudiu os cabelos para trás. — O que, eu não posso orar a
você agora que somos amigas?
Eliana revirou os olhos, depois saiu correndo por trás dos caixotes
e seguiu pelas docas até o píer mais distante, mantendo-se nas
sombras.
De repente, Zahra gemeu: — Oh não.
— O que? — Eliana se agachou ao lado de uma grade coberta
com uma rede e limpou a testa. — Espere, onde está o navio?
— Lá. — Zahra apontou para um navio preto cortando a água.
— Oh, doces santos — Eliana sibilou — nada neste mundo pode
ser fácil?
Ela se certificou de que suas facas estavam seguras e mergulhou
na água gelada.

•••

— Rápido, — Zahra chorou acima das ondas agitadas. — Eles


estão acelerando!
Eliana chutou desesperadamente, os dentes batendo, depois se
jogou no casco do navio e pegou uma corda preta pendurada no
convés. Com seu aperto, o nó se soltou, deslizando rapidamente ela
mergulhou de volta no mar. Mas ela se manteve firme e se puxou ao
longo do comprimento da corda até chegar ao navio mais uma vez.
Com os músculos queimando de seu mergulho frenético, ela subiu.
— Insisto em esconder você agora — sussurrou Zahra, flutuando
nervosamente ao redor de Eliana.
Eliana olhou para o convés. — Ainda não.
Um adatrox se inclinou sobre o parapeito do convés de aço,
espiando a corda tensa e oscilante. Antes que ele pudesse levantar
a arma, Eliana se jogou sobre o parapeito, pegou Nox da bota e
mergulhou no estômago dele. Ela apertou a mão sobre a boca dele,
depois cambaleou com ele até o corrimão e o empurrou para o lado.
Do andar de baixo, passos se aproximavam rapidamente.
— Agora? — Zahra perguntou.
Eliana odiava desperdiçar os preciosos minutos que Zahra lhe
daria, mas ser capturada não era uma opção. — Agora.
— Me siga de perto — Zahra acelerou ao longo do convés, o
mundo mudando em seu rastro. Enquanto Eliana permanecesse
segura naquele espaço distorcido, ninguém poderia vê-la – embora
em breve alguém visse a trilha de água do mar que ela deixara para
trás. Eles passaram pelo adatrox vigiando fixamente do lado de fora
de portas fechadas, patrulhando todos os lados do convés.
Zahra acenou para uma porta à sua direita. Um adatrox estava
parado ao lado, com o revólver na mão.
Eliana se achatou contra a parede, esperando que as sombras a
escondessem. Zahra se afastou e depois desapareceu. Dois
segundos depois, o adatrox endureceu, seus olhos já vazios ficando
ainda mais vidrados.
Eliana se apressou, olhando para trás enquanto corria. Com Zahra
ocupada, ela se sentiu terrivelmente exposta.
— A prateada grande — Zahra sussurrou, através da boca do
adatrox – a voz parte fantasma, parte homem.
Eliana pegou a chave de prata grande do anel no cinto,
destrancou a porta e entrou. Ela esperou logo atrás da porta para
Zahra atravessar a parede e se juntar a ela.
Zahra estremeceu. — Nunca entre na mente de um adatrox se
puder evitar, Eliana. Que lugar desagradável.
— Eu vou tentar me lembrar disso. — Um corredor vazio se
estendia para ambos os lados. A única luz que passava pelas
pequenas janelas redondas da parede era a luz da lua. — Para
onde vamos?
Com um braço longo, Zahra apontou para a escada estreita e
escura na frente delas. — Ele está preso lá embaixo.
Rahzavel. Eliana desceu as escadas correndo.
Mais atrás, Zahra se curvou com um suspiro.
Eliana se escondeu contra a parede, olhou rapidamente para cima
e para baixo da escada. — O que foi?
— Simon está com muita dor — Zahra murmurou. — Rápido.
Com o coração disparado, seguindo as instruções sussurradas de
Zahra, Eliana correu através de um labirinto de corredores,
permanecendo no rastro do espectro para evitar o adatrox
conferindo cabine por cabine. Estava insuportavelmente escuro e
apertado abaixo do convés, mesmo com lâmpadas de gás
cintilantes enroscadas nas paredes.
Por fim, Zahra a levou a uma porta de metal sólida, envolta em
sombras.
— Aqui — Zahra sussurrou.
Eliana olhou para a maçaneta da porta, o medo batendo forte
contra o seu esterno. Com Arabeth em uma mão, ela prendeu a
respiração e girou a maçaneta.
A porta se abriu facilmente.
— Isso parece ameaçador — Zahra sussurrou.
Eliana entrou e fechou a porta atrás delas. Era uma sala pequena,
escura e cheia de canos barulhentos.
E no centro, iluminado por uma única lâmpada de gás pendurada,
estava Simon.
Eliana vacilou ao vê-lo. Ele havia sido amarrado com corda preta
a um poste que ia do chão ao teto, os braços puxados cruelmente
atrás dele. Seu torso estava nu e manchado de sangue, a carne
cicatrizada rasgada em pedaços de novas feridas. Entalhes.
— Simon — ela sussurrou, movendo lentamente para ficar diante
dele. A cabeça dele estava abaixada, os olhos fechados. O
pensamento de que ele já poderia estar morto trouxe uma tristeza
terrível sobre ela, tão inesperada que o choque disso fez sua
garganta doer. — Por favor, esteja vivo.
Ele ergueu a cabeça ao ouvir a voz dela. — Eliana?
Ela viu os olhos dele e recuou. Eles estavam vermelhos e
amarelados, as íris azuis brilhantes ficaram opacas e nubladas. Ela
passou o polegar por uma das poucas manchas de pele não
cobertas de sangue.
— Você me deve muito depois disso. — Sua voz saiu trêmula. —
Você sabe o quão fria a água está?
— Não. Não! — Simon lutou contra as cordas. — Saia daqui,
corra!
Ao lado de Eliana, Zahra se mexeu surpresa. — Cuidado!
Eliana girou ao ver Rahzavel emergir das sombras, uma espada
fina em cada mão. — Olá, Eliana, — ele cantarolou. — Bem-vinda
ao final da sua história.
— Por que eu não o senti? — Zahra sussurrou, sua voz tensa de
raiva sob o assobio dos canos. Então sua forma ficou rígida. — O
toque do imperador pesa sobre ele. Temos que sair, minha rainha,
antes que Corien a encontre.
— Eliana, me deixe! — Simon uivou, puxando com força as
amarras.
— Eu não vou a lugar nenhum. — Eliana observou Rahzavel se
aproximar, notou os borrifos vermelhos em seu rosto e como seu
uniforme escuro brilhava com sangue – o sangue de Simon, ela
assumiu.
— Você está certa — disse Rahzavel. — Você sabe que, se tentar
me matar, falhará e, se fizer um único movimento contra mim – um
maldito movimento! – então eu vou te matar primeiro e fazer ele
assistir. — Ele apontou a espada para Simon e sorriu. — De
qualquer maneira, sua pequena missão de resgate será por nada.
— Eliana, por favor, corra! — Simon exclamou.
Rahzavel bateu os cílios, choramingando. — Me deixe! Oh, minha
querida Eliana, salve-se
— Eliana — sussurrou Zahra, flutuando tensa ao lado dela.
— Cale a boca, — Eliana retrucou, os olhos treinados na forma
flexível de Rahzavel, observando como ele se movia, medindo o
peso de suas espadas e o tamanho da sala.
— Não, acho que não vou calar a boca, obrigado. — Rahzavel
passeou ao redor de Simon. — Na verdade, acho que gostaria de
contar uma história. Trata-se de uma caçadora de recompensas que
pensou que era invencível, mas na verdade ela era apenas uma
cadela idiota que teve sorte muitas vezes.
— Deus, eu estou cansada de ouvir você, — Eliana falou, seu
corpo ansioso para se mover.
Então, um pensamento veio a ela. Ela olhou para Zahra, levantou
uma sobrancelha.
— Minha rainha — Zahra murmurou, — se eu fizer isso, talvez
não tenha forças para mais nada.
— Faça isso, agora.
O espectro disparou em direção a Rahzavel e mergulhou direto
em sua boca sorridente.
Rahzavel cambaleou para trás, sufocado. Ele largou as espadas e
apertou o rosto, recuando contra um nó de canos.
— O que é isso? — Sua voz distorcida tremia com o peso da raiva
de Zahra. Ele arranhou suas roupas, seus cabelos. — O que é isso,
Terror? O que é que você fez? O que tem dentro de mim? Um
espectro?
Eliana se aproximou, agarrou a camisa dele em seu punho e o
jogou no chão.
— Temo, Rahzavel, — respondeu ela, montando em seu peito e
colocando a lâmina irregular de Arabeth contra sua garganta, — que
este seja o fim da sua história.
Então ela abriu a garganta dele, se levantou calmamente e o
deixou engasgando onde havia caído. Zahra se afastou do corpo
dele e bateu palmas, como se as estivesse limpando. Alguns
segundos depois, tudo ficou em silêncio – até duas explosões
abalarem o mundo.
O navio estremeceu e gemeu. Do lado de fora vieram os gritos
dos adatrox, o bater frenético de botas contra o convés.
Eliana congelou. — O que é que foi isso?
Zahra inclinou a cabeça, ouvindo. Então seu rosto escureceu, uma
mancha de tinta caiu em águas cinzentas.
— Tudo começou — ela sussurrou. — A frota chegou à Astavar.
Eliana correu para Simon, começou a cortar as cordas que o
prendiam.
— Eu disse para você sair — Simon murmurou enquanto ela
trabalhava. — Você não me ouviu.
— Isso te surpreende? — Ela deu a volta para cortar as duas
últimas cordas. Quando ele se libertou, ela tentou segurá-lo,
suportar o peso dele o melhor que pôde, mas estava exausta e fazia
muito tempo desde a última vez que teve uma refeição adequada.
Os joelhos dela dobraram; ela afundou com ele no chão, xingando
baixinho.
— Tudo bem — disse ela, tentando deslizar de debaixo dele, mas
seu corpo era um peso morto, prendendo-a no chão. — Vamos,
levante. Temos que descer deste barco e chegar à costa enquanto
todos estão atirando um no outro. Isso não parece divertido?
Ele não respondeu. Ele estava rindo – olhando para ela do seu
lugar no colo dela e rindo dela.
— Oh, Eliana. — Lágrimas sombrias deslizaram de seus olhos. —
Se voce soubesse. Há tantas histórias que preciso contar.
— Tenho certeza que isso é verdade, mas podemos fazer isso
mais tarde? — Ela o empurrou novamente, mas ele estava
tremendo de tanto rir agora e não se mexia.
— Eu já vi isso antes. — Zahra apontou para os olhos dele. —
Durante a invasão. Gás venenoso.
— Você está dizendo que ele está cego?
— Por enquanto. Algumas vezes os olhos curam. Outras...
— Maravilhoso. Isso facilita tudo. Simon? — Ela lhe deu um tapa
na bochecha. — Se você não se mexer, eu vou ficar com raiva.
— Faça isso — Simon sussurrou. — Fique com raiva de mim.
Doce, doce Eliana. — Ele levou a mão trêmula ao rosto dela e
passou o polegar pela bochecha dela. — É exatamente o que eu
quero.
— Eu dificilmente sou doce — ela protestou com uma risada
levemente nervosa. Eles deveriam estar se mexendo, mas ela não
conseguia se afastar dele.
— Não vejo você muito bem — disse ele. — Um borrão de cor,
sombras para os olhos, mas eu conheço seu rosto mesmo assim.
Eu o reconheceria em qualquer lugar.
— Você está falando bobagem. Você sabe disso?
— Eu não contei nada a ele, — Simon sussurrou urgentemente.
— Eu nunca contaria. Nunca. Não sobre você. Ele poderia ter me
cortado até o fim dos tempos. Ele poderia ter sussurrado em meus
ouvidos até me matar de dentro para fora. — Ele riu de novo, mas
parecia terrivelmente triste. — Isso não importaria. Eu nunca diria a
ele sobre você.
Ela o viu se ajoelhar, procurar algo no bolso da calça.
— Cadê? — ele sussurrou.
O navio estremeceu mais uma vez. Tiros rápidos soaram de cima;
um horrível som de raspagem soou alto ao longo do casco.
— Simon, nós temos que ir.
— Cadê? — Ele gritou a pergunta, um soluço rasgando sua voz
em dois. — Eu perdi; Eu te perdi!
Então, com um pequeno grito, ele puxou um pano sujo do bolso e
estendeu para Eliana ver.
— Isso — ele murmurou — pertence a você.
Ela olhou para o trapo, perdida. Sua mente estava finalmente
quebrando?
Pairando no cotovelo de Eliana, Zahra balançou a cabeça. — Não
consigo ver dentro dele. Seus pensamentos estão emaranhados
como tempestades.
— Eu tentei te segurar. — Simon começou a dobrar o pano em
seus dedos. Então ele levou as mãos unidas aos lábios e beijou os
nós dos dedos. — Mas eu não consegui. O fio era forte demais para
mim. Eu era jovem demais para isso. E então sua mãe...
— Minha mãe. — A Rainha de Sangue. Se ela acreditasse nisso.
Ela acreditava? Lágrimas se reuniram em seus olhos. Eles não
tinham tempo para isso, mas se ela se afastasse, o momento seria
interrompido e ela nunca mais o encontraria. — Simon, o que você
está dizendo?
— Nós somos os únicos dois que restam, Eliana. Você e eu. Os
únicos dois que moravam lá.
Ela se abaixou para olhar o rosto dele. — Onde moramos? Conte-
me.
— Celdaria. — Ele respirou trêmulo. — Eu tentei te segurar, mas o
tempo te afastou de mim. Deveríamos apenas ir para Borsvall. Eles
nos esconderiam dele.
Todo o ar deixou seus pulmões. A mente dela disparou. — De
quem? Corien?
— Ele nunca tocará em você. Perdi você uma vez, mas nunca
mais.
Ela manteve as mãos cruzadas em torno do pequeno pedaço de
pano. De todas as coisas, ela não conseguiu deixar passar uma
pequena pergunta: — Mas, o que é isso?
Ele olhou para o pano em concha nas mãos dela e sorriu.
— Seu cobertor. — A tristeza em sua voz perfurou seu coração. —
Ela envolveu você e, quando o fio arrancou você dos meus braços,
rasgou. Eu guardei esta peça comigo porque me lembra... de tudo.
De casa. Nós éramos tão pequenos, Eliana. E então eu nos trouxe
aqui, e estraguei tudo. Eu falhei com você. Eu falhei com todo
mundo!
Uma explosão detonada; o navio balançou, tombando os dois
para o lado.
— Eliana — disse Zahra firmemente.
— Eu sei. — Eliana segurou o rosto de Simon e olhou nos olhos
arruinados dele. — Vamos correr agora e não consigo te carregar.
Você tem que me ajudar. Assim como você fez antes, em... — sua
voz prendeu. Seu colar estava muito afiado e frio sob a blusa. —
Celdaria. Certo?
Ele assentiu e depois se levantou. Ela o apoiou contra o lado do
corpo, passando o braço pelo ombro dele. Zahra liderando o
caminho, eles saíram mancando pelo corredor e subiram as
escadas estreitas. Outra explosão soou, batendo-os contra a
parede. Eliana sibilou com o peso do peso duro de Simon.
— Apenas me dê um momento — disse ele, com o rosto tenso de
dor — e depois andarei por conta própria.
— Sinto muito, eu sei que você está machucado.
— Não se desculpe comigo, Eliana. Nunca.
Quando saíram para o convés principal, Eliana parou gelada.
Uma ampla baía ladeada por pedras altas e irregulares e cercada
por pequenos icebergs estendia-se diante deles. Duas linhas de
navios se enfrentavam através de uma extensão estreita de água
negra, sufocada por destroços em chamas. Além da água, cheia de
soldados, uma praia branca abraçava um aglomerado de colinas
cobertas pela noite.
Astavar.
Ela saiu de debaixo do braço de Simon, fez questão de que ele
pudesse ficar de pé. — Zahra? Você pode nos esconder?
Zahra balançou a cabeça, a boca em uma linha frustrada. Sua
forma desapareceu, depois voltou a piscar. — Acho que não, minha
rainha.
Eliana exalou. — Perfeito.
— Fique perto de mim, pise onde eu voo. Vou encontrar o melhor
caminho possível para você.
— Nós sobrevivemos ao fim do mundo, você e eu — Simon
murmurou, apertando os dedos de Eliana. A respiração dele inchou
no ar. — Nós vamos sobreviver a isso também.
Um calafrio a dominou com as palavras dele. Então ela apertou
mais sua mão, e eles correram.
49
Rielle
“Neste caminho sombrio e desconhecido
Nascido da perda e pavimentado pela ira
Derrube seu coração e ilumine o caminho
Da noite mais escura ao dia mais brilhante.”
—"A Canção de Santa Katell" compositor desconhecido

Rielle entrou no Salão dos Santos, com o coração acelerado.


Isso estava errado.
Estar nesta sala, usando um vestido reluzente, com o corpo de
Bastien ainda não enterrado nas catacumbas, com o reino
lamentando seus mortos e a perda de seu rei – parecia impensado,
até cruel, que este fosse o dia em que o Arconte a coroou Rainha do
Sol.
Teria sido cruel mesmo que ela não tivesse matado todos eles.
Mas o Arconte insistiu nisso.
— As escritas de Santa Katell exigem que a Rainha do Sol,
quando ela vier, seja coroada em um solstício. — ele lhe explicara
no dia seguinte ao massacre do desafio, com os ouvidos ainda
zunindo com o som da morte. — Cronometramos suas tentativas
exatamente por esse motivo. Você sabe disso, Lady Rielle.
Ela fechou os olhos. Um erro. Toda vez que ela fazia isso, ela via
Ludivine caindo para a morte. Depois de dias procurando nos
escombros do labirinto, eles nem conseguiram encontrar o corpo
dela.
— Sim, eu sei, — Rielle conseguiu falar, com a voz grossa, —
mas talvez, dados os eventos recentes, a Igreja pudesse...
— Não. — O Arconte procurou seu rosto. Ela se perguntou o que
ele encontraria. Ele olhou nos olhos dela e viu o que seu pai sempre
viu? A alma de uma assassina?
— Agora, mais do que nunca, Lady Rielle — dissera o Arconte —
nosso povo precisa de esperança. Não podemos esperar até o
solstício de inverno para coroá-la. Os celdarianos precisam da
Rainha do Sol para ajudá-los nos próximos dias.
E que tipo de esperança, ela queria perguntar, eles poderiam
encontrar em uma assassina como eu?
No Salão dos Santos, Rielle fechou os olhos para conter as
lágrimas. Se não fosse por ela, Corien não teria invadido o desafio
do fogo. Os soldados de Sauvillier que ele aprisionou ficariam em
casa no norte, e os inocentes que haviam morrido no conflito da
colina estariam vivos.
Ludivine. Papai. Rei Bastien. Lorde Dervin.
Os nomes circulavam constantemente em sua mente, cortando a
casca em ruínas de seu coração.
Ludivine.
A contagem final, de acordo com o relatório do Lorde das Cartas,
era de 58 mortos. O sangue deles agora cobria suas mãos, e ela
não podia revelar a verdade sobre o porquê. Ainda não. Nunca.
Talvez, se Ludivine ainda estivesse viva, Rielle ousaria confessar a
ela.
Ludivine, ela pensou, desesperada, sinto muito.
Ela abriu os olhos para a multidão que esperava, conseguiu dar
um sorriso solene. Toda a corte do Rei Bastien e a elite da cidade se
reuniram dentro do salão. Fora de Baingarde, uma multidão de
cidadãos esperava no pátio de pedra na entrada do castelo. Ao
meio-dia, após a bênção do Arconte, os sinos do solstício tocariam.
Rielle olhou para o altar banhado a ouro, brilhando sob a luz de
mil velas. O Arconte esperou por ela em suas roupas formais. Atrás
dele, nas vigas, havia um coro de acólitos do templo cantando “A
Canção de Santa Katell”.
Ela respirou fundo e começou a longa caminhada em direção a
ele, deixando seus guardas de pé nas portas.
Semanas atrás, ela fizera a mesma jornada, assustada e incerta
sob os olhos severos dos santos. Naquele dia, o salão estava quase
vazio, e sua caminhada estava cheia de guardas preparados para
matá-la.
Mas hoje a sala lotada a assistia progredir com olhos brilhantes.
Sussurros reverberaram através deles quando ela passou.
Aparentemente, Ludivine encomendou o vestido sem o
conhecimento de Rielle. Os servos de olhos vermelhos de Ludivine
o levaram para Rielle três dias antes para os ajustes finais. Ela deu
uma olhada no vestido e mal conseguiu mandar os criados embora
a tempo antes de perder a compostura.
Era renda Astavari pálida. O decote largo deixava seus ombros
nus. Mangas compridas e arejadas caíam ao chão, arrastando-se ao
lado da linha da saia. Um forro iridescente cintilante se agarrava ao
seu tronco, brilhando através do tecido fino da renda. O efeito a fez
parecer como se tivesse sido mergulhada na luz do sol líquida. Os
criados de Ludivine pediram permissão para tecer finas fitas
douradas através da queda escura de seus cabelos e pintar
redemoinhos de âmbar brilhantes ao redor dos olhos.
— Lady Ludivine gostaria que cuidássemos de você — dissera a
mais velha deles, com a boca trêmula — e a deixar resplandecente
como o sol, minha senhora. E assim devemos.
Mas, andando pelo corredor, Rielle não se importava com o
vestido, nem com os murmúrios de apreciação das pessoas por
quem passava. Os dedos dela coçavam para apertar o colar na
garganta.
Em vez disso, ela encontrou Audric sentado ao lado do trono vazio
de seu pai e se confortou com o calor cansado de seus olhos.
Ele deu o colar para ela naquela manhã, batendo na porta dela
quando ela ainda estava com os olhos turvos de mais uma noite
sem dormir.
— Para você, — ele disse simplesmente e dobrou o colar na mão
dela. Ele beijou os nós dos dedos e a parte interna do pulso, fechou
os olhos e deixou a boca ficar contra a pele dela.
De pé a alguns metros de distância, com o olhar resoluto na
parede, Evyline pigarreou.
— Audric — dissera Rielle, com a voz embargada, — devo fazer
isso? Com nossos pais nem mesmo tendo recebido ritos
apropriados...
— Hoje, o sol vai brilhar mais. — Ele tocou o rosto dela, o seu
próprio desgastado pela dor. — Mas não tão brilhante quanto você.
Por favor, Rielle. Nosso povo precisa vê-la.
Agora, um suave sol de ouro branco pendia em uma corrente
delicada entre as clavículas dela. Seus amplos raios se espalhavam
em folhas douradas finas como asas de borboleta, e quando Rielle
se ajoelhou diante do Arconte, a luz caiu sobre ele e enviou uma
explosão de sol voando pelo teto.
O Arconte colocou uma mão pesada com anéis na cabeça
inclinada.
— O Portão cairá, — ele começou, as palavras familiares da
profecia de Aryava trazendo um silêncio para a sala. As vozes do
coral se suavizaram. — Os anjos voltarão e trarão ruína ao mundo.
Você saberá desta vez pela ascensão de duas rainhas humanas –
uma de sangue e outra de luz. Uma com o poder de salvar o mundo.
Uma com o poder de destruí-lo. Duas rainhas surgirão. Elas
carregarão o poder dos Sete. Elas levarão seu destino em suas
mãos. Duas rainhas surgirão.
Uma de sangue.
Uma de luz.
Rielle olhou para as mãos entrelaçadas, desejando esfregá-las.
Sua pele que estava úmida, coçava. Ela teve uma visão de si
mesma, revelando a verdade negra e agitada do que havia por
baixo dela.
O Arconte se afastou dela. — Lady Rielle Dardenne, você passou
pelas provações que a Igreja lhe apresentou e resistiu a um grande
perigo ao fazê-lo. Este reino observou você cuidadosamente nas
últimas semanas, e seu poder é diferente de tudo que vimos. Diga-
nos, então, Lady Rielle: Qual rainha você é?
Uma de sangue.
Uma de sangue.
Rielle encontrou os olhos do arconte. — Eu sou a Rainha de Luz,
Sua Santidade. E servirei a Celdaria com orgulho até o fim dos
meus dias.
O Arconte sorriu e estendeu a mão. — Então levante-se, Lady
Rielle, e vamos começar...
Um grito do fundo do corredor o interrompeu, seguido por outro,
depois por um terceiro. Um clamor de espanto e medo encheu a
sala.
O rosto do Arconte empalideceu, seus olhos fixos em algo atrás
de Rielle. Ele deu um passo para trás, pegando sua cadeira.
Rielle se virou, com o medo tampando seus pulmões. Era Corien?
Ele estava pronto para gritar a verdade do que ela era para todos
ouvirem?
Não era Corien.
Ludivine, descalça, com cabelos dourados, saiu da multidão.
Ela apertava uma capa esfarrapada na garganta e nos quadris;
por baixo, ela não usava nada. Sua pele estava pálida, mas intacta.
Ela estava viva... Ela estava viva.
Rielle fez um som sufocado, balançando onde estava.
Ludivine subiu os degraus do altar, pegou as mãos de Rielle com
uma das suas. Seu toque era quente, familiar. Ela se virou para
encarar a sala.
Em voz alta, a voz trêmula de Ludivine se elevou acima das vozes
atordoadas da multidão. — Eu sei que isso é surpreendente, até
assustador. Por favor, me perdoem.
Na mente de Rielle, Ludivine sussurrou, sinto muito que você
tenha descoberto assim. Por favor, confie em mim. Nós devemos
ser cuidadosas.
O choque de Rielle bateu dolorosamente em seu corpo, como se
tivesse levado um golpe em seus ombros. O aperto de ferro de
Ludivine a manteve em pé.
— Não sei como explicar isso para vocês, — continuou Ludivine.
— As últimas coisas que lembro são uma névoa. Lady Rielle lutando
contra um grupo de metalmasters. Ladinos da Casa Sauvillier. A
Casa do meu próprio pai. — A voz de Ludivine parou, pesada de
tristeza.
Nós devemos convencê-los, todos eles.
— Lu? — Rielle sussurrou, tremendo.
Está tudo bem. Por favor, minha querida, não me tema.
— Lembro-me de uma arma que me atingiu no estômago —
continuou Ludivine. — Eu lembro... eu lembro de cair.
De repente, Audric estava lá ao lado delas. Ele retirou a longa
capa que vestia e a envolveu nos ombros de Ludivine. Rielle estava
contente com o calor sólido de seu corpo, ancorando-a à própria
respiração, seu próprio coração selvagem. Isso não era, então, um
sonho.
Não é um sonho. Os pensamentos de Ludivine vieram
suavemente. É a verdade, finalmente. Mas eles não podem saber
disso. Nenhum deles.
— Vocês todos pensaram que eu tinha morrido, — disse Ludivine,
segurando a mão de Audric. Cautelosamente, ele segurou de volta.
— Eu pensei que tinha também. Mas então senti um poder subir sob
a terra e dar vida de volta a mim. Senti um toque familiar e procurei
Lady Rielle, mas ela não estava lá. Seu poder, no entanto... isso
estava ao meu redor. Ele ainda estava lá após o seu desafio. Isso
me devolveu ao meu corpo – e a minha vida.
Confie em mim.
Os pensamentos de Rielle dispararam. Confiar nela? Confiar em
quem? O que era essa criatura? Não era Ludivine; isso era um
impostor.
Você está errada. Sou eu, verdadeiramente. Por favor. Se você
me amou, confiará em mim. Só por um tempinho. Então eu vou
explicar tudo.
Rielle mal conseguia respirar. As lágrimas dela se juntaram
rapidamente. Eu não te trouxe de volta. Eu não entendo.
Mas você irá. Em breve. Eu prometo.
— Sempre soubemos que a Rainha do Sol, quando ela viesse,
protegeria nosso reino daqueles que desejam causar danos a nós.
— A voz de Ludivine tremia de emoção. — Mas agora ela está aqui,
e seu poder é ainda maior do que acreditamos. Ela não apenas
carrega o poder dos Sete, como a profecia predisse.
Ludivine se ajoelhou na bainha do vestido reluzente de Rielle. —
Ela carrega o poder de dar vida aquilo que morreu.
Confie em mim. Rapidamente. Na mente de Rielle, Ludivine
permaneceu firme. Eles devem acreditar em mim. Eles devem
aceitar isso agora, ou tudo está arruinado.
— Rielle, isso é verdade? — Audric murmurou, seu rosto
inundado de confusão e um traço de medo. — Você fez isso?
Lutando contra o desejo de desmoronar, Rielle colocou a mão na
cabeça inclinada de Ludivine. — Lamento que todos vocês tenham
descoberto assim, — disse ela, ecoando as palavras de Ludivine.
Ela levantou os olhos para a multidão, convocando uma serenidade
em seu rosto que ela não sentia. Sua mente correu através do
choque para encontrar palavras, quaisquer palavras, que fizessem
sentido. — Os desafios aprofundaram meu poder de maneiras que
eu não podia esperar, mas eu não queria criar nenhuma esperança
antes de ter certeza de que funcionaria. Antes que eu pudesse ter
certeza de que realmente trouxera nossa Lady Ludivine de volta
para nós.
Bom. O alívio de Ludivine veio como uma carícia. Muito bom.
— Eu só queria... — A voz de Rielle falhou com ela. — Eu só
queria ser poderosa o suficiente para ter salvo todos que perdemos
naquele dia.
O toque gentil de Audric na parte de baixo de suas costas a
manteve de pé, mas ela não podia olhar para ele. Ela não confiava
em seu rosto para esconder o que precisava.
Ludivine sorriu para ela. — Você me salvou, Lady Rielle, como fez
com todos nós aqui hoje. Você enfrentou um grande mal, bem aqui
em nossa cidade amada, e o venceu. Seu poder é uma maravilha e
lhe devemos nossas vidas.
Então Ludivine beijou a mão de Rielle e, enquanto Rielle
observava através de um véu zumbido de espanto, o mais próximo
da multidão caiu de joelhos. Outros a seguiram, e mais ainda, até
que todo o quarto, centenas de pessoas fortes, ajoelhou-se diante
dela.
— Viva a Rainha do Sol! — A voz jubilosa de Ludivine soou e
outros imediatamente a seguiram. A luz do sol do meio-dia
atravessava as janelas altas para pintar seus rostos chorosos de
ouro. Mais abaixo na cidade, os sinos do solstício da Casa da Luz
começaram a tocar.
Olhando para a multidão, Rielle notou um punhado de pessoas na
sala que não repetiam o grito de Ludivine.
Ajoelharam-se, como os demais, mas observaram Rielle com
rostos de pedra silenciosa.
Um arrepio de preocupação subiu por seu corpo, mas ela tinha
assuntos mais urgentes a considerar primeiro.
Ela apertou a mão de Ludivine. Ela esperava que doesse.
Você é um anjo, ela pensou, repentina e violentamente zangada.
Você mentiu para mim.
E você mentiu para Audric sobre a morte do pai dele, Ludivine
respondeu, com uma nota de tristeza na voz dela. Estamos juntas
nessa. Agora continue sorrindo.
50
Eliana
“O que quer que o amanhã traga, o mundo
lembrará disso como o dia em que Astavar
enfrentou um grande mal e lutou por seus
reinos e irmãos caídos até que não houvesse
mais luta a dar.”
—Fala de Tavik e Eri Amaruk, reis de Astavar, até seu exército
16 de agosto de 1018, terceira era.

Eliana pulou do navio e entrou no barco salva-vidas, caiu de joelhos


e depois usou Tuora e Tempestade para cortar as cordas de carga
do barco.
Quando estavam livres, ela pegou os remos e começou a remar.
Tiros atingiram a água de ambos os lados. Adatrox apinhavam a
balaustrada do navio, armas faiscando a cada tiro.
Eliana se abaixou quando uma bala passou por sua orelha e
puxou Simon pelo colarinho. O fogo de um canhão atingiu a água
nas proximidades, balançando o barco e espirrando água neles
como um spray gelado.
Na maldição sibilada de Simon, Eliana lançou um olhar para seu
torso ensanguentado. Ela pegou um paletó e uma espada de um
dos adatrox que ela matara enquanto protegia o barco, mas um
paletó e uma espada não lhe fariam bem se ela não pudesse levá-lo
a um curandeiro – e rápido.
Uma vez fora do campo de tiro dos adatroxes, Eliana passou os
remos para Simon. — Você pode remar? Só por um minuto.
— Vou remar pelo tempo que você precisar. — respondeu ele.
Ela correu para a frente do barco, agachou-se ao lado de Simon e
examinou a água à frente.
— Talvez mais quinhentos metros — disse ela — através desses
icebergs, e então acho que vejo um caminho para a praia.
— Você vê um caminho de quê, exatamente?
— Gelo. Algumas pedras também.
— Ah. Não há problema algum, para um homem recém-cego
remar pela água nesse caminho.
Ela não pôde evitar um sorriso. — Vou te ajudar. Zahra também.
— Eliana? — A voz afetada de Zahra fez Eliana se virar. — Algo
está acontecendo.
— O que? — Eliana olhou através da água negra. A frota do
Império – trinta navios, a maioria deles navios de guerra maciços –
moviam-se em uma longa fila ao longo do gelo que afinava. — O
que eles estão fazendo?
— Descreva para mim. — disse Simon.
— Eles estão se reunindo ao lado do gelo em uma linha, um após
o outro, suas proas voltadas para o norte. — Eliana não conseguiu
entender a manobra. — É como se eles estivessem fazendo uma
barreira entre o gelo e a água aberta. Um bloqueio?
— E eles pararam de atirar — observou Zahra.
Com um baque surdo, o barco salva-vidas se chocou contra uma
laje baixa de gelo. Eliana saiu imediatamente e segurou o barco
rápido, Zahra flutuando ao seu lado.
— Suba aqui — Eliana instruiu.
Simon procurou a espada adatrox roubada e obedeceu,
lentamente sentindo o caminho para sair do barco. Eliana guiou-o
através do gelo, depois atravessou uma brecha estreita de água
escura para outra laje enorme.
Simon olhou para a frota com olhos avermelhados. — Por que
eles pararam de atirar?
— Eu não sei, mas devemos tirar vantagem disso e nos apressar.
Mas então, assim como Zahra soltou um grito agudo de
desespero, uma nota baixa tocou a água. Como um todo, seções
inteiras dos cascos dos navios de guerra se abriram e caíram no
gelo. Uma onda de escuridão caiu e começou a galopar loucamente
pela praia. Gritos estridentes e discordantes encheram o ar – uivos,
palavras semi-formadas, gritos de fúria.
O sangue de Eliana ficou mais frio do que o gelo agora tremendo
sob seus pés. Ela conhecia esses sons, desde seu tempo nos
laboratórios de Fidelia.
— O que é isso? — Simon ficou tenso ao lado dela. — Eliana, me
diga o que está acontecendo.
— Rastreadores! — Zahra passou pelos ombros de Eliana. —
Temos que ir, minha rainha!
Mas Eliana ficou congelada. Ela observou as criaturas correndo
em sua direção através do gelo. Eles se moviam tão rapidamente,
meio correndo, meio rastejando, seus membros girando
artificialmente a cada passo.
— Fidelia — Eliana sussurrou, dando dois passos instáveis para
trás. Foi exatamente como Zahra disse: Fidelia transformou as
mulheres sequestradas de Ventera em monstros.
Zahra se esticou até a altura mais alta e mais escura e rugiu: —
Corra!
Eliana girou, deslizou e caiu, bateu o queixo no gelo. Ela se
levantou, encontrou Simon e agarrou a mão dele.
— Você consegue ver? — ela chorou pelo barulho que se
aproximava. Campainhas de alarme tocaram nos navios Astavari. O
fogo dos canhões recomeçou, abrindo uma dúzia de novos buracos
no gelo antes da onda invasora de rastreadores.
— Apenas corra — Simon gritou para ela. — E não olhe para trás!
Ele tentou sacudi-la, mas ela se segurou. — Eu não vou deixar
você aqui!
— Vou acompanhar, agora se mexa!
Ela se virou e correu, Simon nos calcanhares dela. Zahra voou à
frente deles através do gelo, buscando o caminho mais seguro.
— Esquerda! — ela chorou, dirigindo-os em torno de um fino
pedaço de gelo. — Salte!
Eliana se jogou de uma crista de gelo e caiu em outra laje a
alguns metros de distância.
— Simon, aqui! — ela gritou por cima do ombro. — Siga minha
voz!
Ele pulou ao lado dela. O gelo balançou violentamente, enviando
os dois deslizando. Eliana apunhalou Arabeth no gelo e agarrou a
camisa de Simon com a outra mão. O peso dele puxou com força
seus músculos. Ela gritou de dor, agarrou-se à adaga com toda a
força que possuía.
Simon raspou o gelo ao lado dela, inclinando o nível do gelo mais
uma vez.
Uma forma escura voou sobre suas cabeças, aterrissando com
força a alguns metros de distância.
Eliana olhou horrorizada quando um grupo de rastreadores
passou correndo. Suas cabeças eram humanas – mas deformadas
e quase bestiais – com dentes afiados saindo de mandíbulas
quebradas. Pedaços desbotados de roupas grudavam em seus
corpos, e as manchas de pele que Eliana podia ver estavam
manchadas com escamas, manchas de pêlos escuros e
desgrenhados. Eles cheiravam o ar como cães. Unhas grossas e
pontudas apunhalavam o gelo.
Todas aquelas mulheres, arrebatadas enquanto dormiam, tiradas
de suas camas, suas casas e seus entes queridos, e transformadas
nisso.
Era um destino impensável – e aquele que aguarda a mãe, se ela
não a encontrar a tempo.
Dois rastreadores bateram no gelo, depois se viraram e correram
direto para Eliana.
Zahra gritou, sua forma piscando fora de vista. — Por aqui!
Eliana se virou e correu. Por todos os lados, um mar de lagartas
uivantes correu para a costa. Canhões de fogo atingiam o gelo. O
impacto explodiu os rastreadores atrás deles em pedaços.
Com os ouvidos vibrando, Eliana se virou. — Simon? Ainda lá,
com a espada erguida e pronta, o cabelo coberto de gelo. Eliana
seguiu o caminho cintilante de Zahra por um espaço escuro e
instável entre icebergs, ao longo de uma crista de rochas geladas,
através de um trecho plano de branco gelo congelado.
Então, a forma de Zahra estremeceu e desapareceu.
Eliana tropeçou, seus ouvidos zumbindo em pânico.
— Continue correndo! — Simon gritou.
— Zahra? — Eliana gritou. — Onde você está?
O espectro voou ao seu lado, uma leve distorção no ar. — Sinto
muito, minha rainha. Eu mal posso me manter firme!
— Vá até a frota, diga que estamos aqui! — Outra explosão
queimou logo à frente deles. Eliana parou, empurrando Simon no
chão. Fragmentos de gelo e corpos voaram. Faíscas de fogo
choveram sobre eles. — E pelo amor de Deus, diga a eles para
parar de atirar em nós!
Zahra fugiu.
Eliana olhou por cima da cabeça de Simon e viu um grupo de
quatro rastreadores agachando-se em uma crista de gelo a alguns
metros de distância.
Um deles, com o cabelo uma bagunça escura emaranhada,
arranhava o gelo com uma mão bulbosa.
— Simon — Eliana murmurou — levante-se devagar.
Ele obedeceu. Juntos, eles deram alguns passos lentos para trás.
Então o rastreador maior soltou um uivo latido. Os quatro saltaram
sobre a água, com os dentes à mostra. Eles se moviam como
baratas – rápido, irregular. Simon derrubou sua espada com força
no pescoço de um; sua cabeça voou para a água. Outro bateu nele,
derrubando-o.
Um terceiro levantou, unhas à mostra. Eliana abaixou o golpe e o
esfaqueou no estômago. Quando caiu, ela puxou Arabeth livre e
girou, atirou a adaga entre as omoplatas da criatura assobiando no
peito de Simon. A criatura rugiu de dor e caiu no chão.
Eliana virou e alcançou Whistler. Mas o quarto rastreador de
cabelos escuros emaranhados não estava em lugar algum.
Eliana correu até Simon, arrancou Arabeth do corpo trêmulo do
rastreador e continuou correndo.
— Por aqui! — ela chamou, mas Simon já estava atrás dela, sua
respiração pesada no ar. — Você está bem?
— Esplêndido — ele respondeu tenso.
Rastreadores rolavam pelo gelo por todos os lados. Centenas,
Eliana pensou. Talvez milhares.
Tiros dividiram o ar em dois, seguidos por gritos humanos
aterrorizados. Ela olhou para o oeste. Algumas das criaturas
chegaram a terra firme. Eles deslizavam sobre a praia como
monstros marinhos saindo da água. O exército de Astavari os
envolveu com revólveres e espadas, mas os rastreadores
continuaram chegando.
Uma sombra caiu sobre ela enquanto corriam. Ela olhou para
cima. Eles chegaram à frota Astavari – navios pequenos e
elegantes, cada um com um mastro de trinta metros de altura. Os
rastreadores enxameavam o mais próximo, arrancando velas dos
mastros e atacando os soldados Astavari até o convés.
— Quase lá — ela gritou sobre os sons da morte e tiros, uivos e
madeira estalando. — Fique comigo, Simon!
Eles deslizaram pela ladeira afiada de um iceberg e correram para
uma longa e plana laje, agora passando pela frota de Astavari e a
apenas algumas centenas de metros da costa. Os joelhos de Simon
dobraram. Ele gritou de dor.
Um peso brutal bateu neles por trás, derrubando os dois no gelo.
A visão de Eliana desapareceu e voltou. Ela olhou para cima,
tonta.
Um dos rastreadores prendeu Simon no gelo. Era o rastreador de
antes, com aquela bagunça de cabelos escuros emaranhados. Os
dentes – seus dentes – rangiam logo acima da garganta de Simon.
Ele se afastou dela e deu um soco na mandíbula. Ela gritou, uma
palavra truncada e familiar que Eliana reconheceu como uma
maldição Venterana.
Eliana saltou sobre o rastreador. Ela a derrubou com um braço
monstruoso. Eliana voltou a ficar de pé no momento em que Simon
rolou para longe e cortou a espada do lado do rastreador.
O rastreador gritou de agonia, segurando seu ferimento. A mão
dela era bulbosa, tortuosa e coberta de feridas escorrendo. Eliana
viu as mesmas marcas que agora mancharam o corpo de Navi e
sentiu uma onda de pena.
Enquanto ela hesitava, o rastreador levantou os olhos – e Eliana
finalmente reconheceu seu rosto machucado.
Mil lembranças voaram em Eliana no espaço de alguns segundos:
Sentada ao lado de Rozen em casa, com Remy no colo. Rozen
abriu um livro de histórias de crianças para que Eliana pudesse lê-
las em voz alta para seu irmão bebê – histórias dos sete Santos e
dos animais que os levaram à batalha contra os anjos.
Rozen, encontrando Eliana chorando em sua cama no meio da
noite quando a invasão tomou o reino deles, e o pai dela não voltou
para casa.
Rozen ensinando Eliana como lutar, como mentir, como matar.
Agora, de pé meio viva no gelo, Eliana procurou Rozen Ferracora
no rosto desfigurado do rastreador, o mundo furioso uivando ao seu
redor.
— Mãe? — Ela perguntou segurando Arabeth contra o peito. Um
rugido surdo encheu seus ouvidos, pulsando com a batida do seu
coração. — Sou eu. É... Eliana.
O rastreador piscou, coaxou algo ininteligível. Então ela rosnou e
se lançou para Eliana.
Simon colidiu com a criatura, a jogou no chão e levantou a
espada.
— Espera! — Eliana gritou. — Não a machuque!
Mas então o rastreador se desvencilhou das garras de Simon e o
acertou no rosto.
Simon caiu, sua espada voando através do gelo e caindo na água.
O rastreador atacou com os dentes à mostra. O punho dela,
atravessado por espinhos de metal e carne infectada, bateu no chão
ao lado do rosto de Simon.
— Eliana! — Simon rugiu, evitando-a. — Saia daqui!
Mas Eliana já estava se mexendo.
Ela correu, as lágrimas atrapalhando sua visão, e justamente
quando o rastreador recuou para golpear Simon com um golpe
mortal, Eliana mergulhou Arabeth em seu estômago.
Sangue jorrou sobre sua mão. O rastreador estremeceu,
engasgou, escorregou de Simon e caiu no gelo.
Eliana caiu de joelhos ao lado do rastreador e viu seus últimos
suspiros a agarrarem. Com cada inspiração dura, a inteligência
voltava aos seus olhos escuros.
— Eu conheço essa faca — ela engasgou, suas palavras
quebradas, chocalhando, dificilmente compreensíveis. Mas Eliana
ouviu os fios de uma voz familiar, não tinha mais medo. — Eu
conheço esse rosto.
Rozen levou uma mão trêmula à bochecha de Eliana, sua própria
pele áspera com feridas escamosas.
— Termine — implorou Rozen, uma tosse úmida tomando conta
dela. — Por favor... doce menina.
Eliana deu um beijo na testa inchada e febril e sussurrou entre as
lágrimas: — Eu te amo.
Então ela afundou Arabeth no lado da garganta de Rozen e viu a
luz deixar seus olhos vermelhos.

•••

A cabeça de Eliana zumbiu. Sua respiração veio rápida e fina. O


mundo se afastou dela, depois voltou e arrancou seu ar.
Uma imensa raiva estava se formando dentro dela – mais quente
e mais negra do que qualquer desejo cruel que a fizesse voar em
uma briga.
O campo de batalha rugiu ao seu redor, uma sinfonia de
explosões e gritos de agonia. O fogo disparou no alto –
bombardeiros, incendiados e prontos para explodir, subindo para a
praia. Rastejadores saíram da água, arrastando os soldados
Astavari para baixo.
— Eliana — Simon disse, bem perto — temos que nos mexer.
Sua voz, firme, mas extremamente gentil, foi o que a quebrou.
Ela gritou.
O mundo gritou com ela.
•••

Por um momento – breve, mas selvagem e impossível de entender


– Eliana viu tudo:
O gelo, o céu e a água brilharam e ela viu tudo pelo que era: um
véu, nada mais. Uma cobertura escondendo algo incrível e divino.
O tempo ficou mais lento.
Ela se viu, e Simon, os dois tremendo e ensanguentados. Ela viu
a praia sendo invadida por monstros e as proas da frota do Império
esculpindo o gelo. Ela ouviu os soldados de Astavari gritarem por
ajuda e pensou ter ouvido o príncipe Malik Amaruk gritando ordens
para aqueles que lutavam na praia. Ela pensou ter ouvido Remy,
escondido no castelo de Navi, sussurrar: — Eliana, por favor, esteja
bem.
E ela pensou ter ouvido uma voz atravessar o oceano para lhe
dizer, eu senti isso, Eliana. Você não pode se esconder de mim
agora.
Cega e que tudo vê, Eliana olhou para o mundo gelado e
explosivo ao seu redor.
Dedos gelados de dor se fecharam em torno de sua garganta.
Vai consumir você. A voz da mãe dela. Uma lembrança agora e
nada mais.
Ela caiu de joelhos. Afastou as mãos de Simon e proferiu um
protesto sem palavras.
Eu não serei consumida.
Então ela bateu os punhos com força contra o gelo e se curvou,
lutando para respirar.
Os barulhos da batalha ao seu redor desapareceram. Ela existia
em um casulo – a água lambendo o gelo, o gelo quente com o
sangue da mãe, o sangue escorregadio nas palmas das mãos
cerradas.
A água retumbou, mudando. O gelo se abriu. O corpo de Rozen
deslizou na água e desapareceu. Um ruído percussivo escuro
atingiu o ar. Luzes brilhantes piscaram – raivosas e muitas.
Um grito abafado a tirou de qualquer lugar que ela tivesse ido.
Ela piscou. Pestanejou novamente.
Simon a levantou. — Você está queimando. Vamos lá, vamos
seguir em frente. Deus, Eliana, o que você fez?
Ela não respondeu, não sabia a resposta. Um sentimento
carregado puxou suas mãos, beliscou sua pele.
Eles estavam mergulhados na água gelada até os joelhos. Ela viu
seus pés percorrerem um oceano negro denso com pedaços de
gelo, sentiu suas botas deslizarem na lama.
— Eliana, pare!
Ela ficou na areia molhada, a água lambendo os dedos dos pés. A
costa.
— Olhe para mim! — Simon estava gritando com ela, mas o
campo de luz além dos olhos dela era muito brilhante, muito terrível.
Ela fechou os olhos e se virou para ele. Seu corpo não podia mais
se sustentar. Ela caiu no chão, e Simon foi com ela, segurando-a em
seus braços. O vento uivava ao redor deles, açoitando gelo e areia
contra sua pele.
— O que está acontecendo? — ela murmurou. Um ataque de
tosse brutal tomou conta dela. Todo osso em seu corpo doía, todo
músculo queimava.
Uma mão fria alisou os cabelos da testa. — Veja o que você está
fazendo, Eliana. Eu preciso que você abra seus olhos para mim,
vamos lá.
Ela forçou os olhos a abrirem e olhou para o mar.
Relâmpagos brilhavam, três novos ataques a cada segundo,
pintando o campo de batalha em prata febril. Eles despedaçaram os
rastreadores ainda nadando para a praia; icebergs explodiram em
chamas. Ondas escuras e agitadas batiam contra a frota do Império.
Um vento selvagem chicoteou as velas de seus mastros, agitou o
mar em banheiras de hidromassagem que sugaram os navios de
guerra debaixo d'água e os quebraram em dois.
— Você tem que parar com isso — gritou Simon sobre o vento.
— Eu estou fazendo isso? — ela murmurou, depois percebeu que
não estava respirando, que a tempestade havia sugado todo o ar de
seus pulmões. Seu suspiro doeu, quebrou o peito em dois.
As mãos de Simon seguraram seu rosto, firmando-a. — Por favor,
Eliana, olhe para mim, olhe nos meus olhos.
Ela olhou, soluços, que não pretendia liberar rasgando sua
garganta. — Eu matei ela. Eu não pude salvá-la!
— Eu sei. — Ele limpou a areia do rosto dela. — E me desculpe.
Mas você precisa parar com isso agora ou vai matar todos nós.
Ela balançou a cabeça, percebendo através do rugido frenético de
seu desespero que de alguma forma ela estava fazendo isso, que o
mundo estava ecoando sua própria raiva. Zahra estava certa, e
Simon também. Havia uma coisa impossível vivendo dentro dela.
Ela sempre pensou que era um monstro de sua própria criação,
forjada pela violência que ela havia praticado para sobreviver.
Mas a verdade era esta: era uma monstruosidade dada a ela por
sua mãe. A Rainha de Sangue. A Assassina de Reis. Uma traidora e
mentirosa.
E Eliana decidiu, naquele momento, que a odiava.
— Eu não sei como parar — ela chorou. Seus dedos ardiam junto
com a tempestade; o sentimento a revoltava. Ela viu navios sendo
despedaçados, soldados nadando por suas vidas. Ondas negras
surgiram em direção à costa.
— Apenas me segure, — Simon sussurrou, segurando-a contra
seu peito. — Me segure e pense em Remy. Pense em Navi. — Ele
pressionou sua bochecha fria na testa dela. — Pense em casa.
Casa. E o que era casa para ela agora? Orline? Ou Celdaria?
Com a tempestade furiosa, ela não conseguia se lembrar de
nenhum lugar.
Em vez disso, ela ouviu os batimentos cardíacos selvagens de
Simon, imaginou a voz de Remy lendo uma história para ela antes
de dormir e respirou.
51
Rielle
“Vento e água
Fogo e sombra
Metal, terra e luz acima...
Ouça nossa oração neste dia da morte
Pegue na mão nosso amigo caído
Nascer de novo, através de você
E começar de novo
Aos olhos dos Sete, oramos.”
—Rito fúnebre tradicional celdariano

Horas após a bênção do Arconte, perto da meia-noite, Rielle levou


Audric aos aposentos de Ludivine.
Ludivine levantou-se de uma cadeira ao lado da lareira com um
sorriso cauteloso. — Bom, vocês vieram.
Audric fechou a porta atrás deles com um estalo. — Rielle me
disse o que você é.
A expressão de Ludivine caiu. Ela olhou para Rielle. — O que
mais ela disse a você?
— Não é o suficiente?
Seus olhos se encheram de lágrimas. — Por favor, não tenha
medo de mim. Eu quero apenas ajudar. Isso é tudo que eu sempre
quis.
Audric amoleceu. — Tudo bem. Me ajude, então. Ajude-nos a
entender.
O olhar de Ludivine se fixou em Rielle, infinitamente terno. — Eu
vim para proteger Rielle. No momento em que ela nasceu, eu a
senti. Todos nós sentimos.
— Todos?
— Os outros anjos? — Rielle disse, apertando o peito.
Ludivine assentiu miseravelmente. — Sim, os outros anjos. Estou
tentando protegê-la da melhor forma possível há anos.
Audric passou as duas mãos pelos cabelos. — Eu não entendo.
Você é Ludivine. Você é minha prima. Conhecemos você desde
pequenos. Eu estava lá no dia em que você nasceu, pelo amor de
Deus. Você sempre foi... você.
— Sim. — O sorriso de Ludivine era triste. — E não. Você se
lembra de quando eu... quando Ludivine teve aquela terrível febre
alguns anos atrás?
— Você tinha dezesseis anos, — lembrou Rielle. Ela afundou em
um banco perto da lareira. — Esperamos do lado de fora da sua
porta a noite toda com a rainha Genoveve e seu pai, esperando que
você conseguisse passar por isso.
— Sim. Bem. — Ludivine respirou fundo, enquadrando os ombros.
— Eu não me recuperei. Ou seja, ela não se recuperou. Ludivine
Sauvillier morreu naquela noite. E eu a substituí.
Audric se virou e se moveu rapidamente pela sala. — Isso é
algum tipo de truque.
Não é um truque, a voz de Ludivine gritou na mente de Rielle.
Diga a ele!
— Não é um truque, — Rielle sussurrou, e ela acreditou, embora a
horrível verdade disso parecesse um peso nos pulmões. — Como
você pôde esconder a verdade de nós por tanto tempo? Se você
nos ama como afirma...
— Eu queria! — Os olhos de Ludivine estavam brilhantes de
lágrimas. — Todo os dias, eu queria. Mas pensei que seria melhor
não. Eu pensei que iria protegê-los. Eu pensei... — Ludivine
balançou a cabeça, gesticulou impotente. — Eu queria que vocês
dois fossem poupados de tudo isso pelo maior tempo possível.
— Nos proteger do que? — Audric perguntou, sua voz desfiada.
— Você está fugindo do ponto. Fale claramente – e rapidamente.
Ludivine inspirou e expirou, cerrando os punhos. Quando ela falou
mais uma vez, foi com uma sensação de finalização cansada. — O
Portão está caindo.
A sala ficou em silêncio.
— Quanto mais enfraquecer, — disse Ludivine depois de um
momento, — mais veremos os danos. Maremotos, terremotos
terríveis, outros desastres que não posso prever. E quando o Portão
finalmente cair, os anjos retornarão, exatamente como Aryava disse.
Imagine uma porta sendo batida constantemente de um lado por
mãos que nunca se cansam. Esse é o Portão, e as mãos são
aquelas da minha família, trancadas além dele.
— Preso no Abismo. — Audric sentou-se instável em uma cadeira
perto da parede, longe dos dois.
— Sim. Profundamente. — Uma sombra pequena e estranha
passou pelo rosto de Ludivine; um eco ecoou na mente de Rielle,
como uma mudança durante o sono.
— Quantos de vocês tem lá? — ele perguntou.
— Milhões.
— Eu quis dizer aqui. Neste mundo. Se você veio aqui, devem ter
outros também.
Rielle ficou rígida. Sem pensar, sua mente estendeu a mão para
ele:
Corien? Você está aí?
Ele não respondeu. Ele estava em silêncio desde o dia em que ela
o queimou.
Ludivine olhou rapidamente para Rielle. — Sim. Eu não fui o
primeira. E eu não serei o última. A cada dia que passa, as
rachaduras aumentam na estrutura do Portão. Nem todos os anjos
são fortes o suficiente para escapar. O Portão é forte e bem feito.
Escapar de sua gravidade é difícil; uma rachadura se abre e outra
se fecha. Mas muitos anjos estão conseguindo romper, o que em
breve, será um problema para você. Dezenas agora. Em breve?
Centenas.
— Você não foi o primeiro. — Rielle ergueu os olhos lentamente
para Ludivine. — Quem foi?
— Ele é muito forte — disse Ludivine em voz baixa. — O mais
forte de nós deixado vivo desde as Guerras Angélicais. Levou
séculos para escapar, mas ele conseguiu. Escorreguei em seu
rastro, junto com alguns outros, antes que o Portão fosse selado
novamente. Eu observei Rielle, de uma forma ou de outra, por treze
anos, assim como ele. O nome dele é Corien.
Treze anos. Desde que eu tinha cinco anos, Rielle pensou. Um
campo de chamas brilhou diante de seus olhos. Uma casa em
ruínas. O pai dela, caindo de joelhos.
Ela decidiu que iria vê-lo depois dessa conversa. Ela o acordaria,
traria chocolate quente, o manteria conversando até o sol nascer e
ela não sentiria mais tanto medo.
Então sua mente alcançou a verdade: a cama dele estaria vazia.
— No dia em que sua mãe morreu, Rielle — disse Ludivine, com
pena de sua voz — sentimos seu poder entrar em erupção. Corien
veio atrás de você logo depois, e eu também. Só que... eu sou bem
jovem. Minha mente não é nada comparada à dele. É preciso quase
tudo o que sou para protegê-la até de alguns dos pensamentos
dele.
— E por que você? — Rielle se irritou com a compaixão
cuidadosa na voz de Ludivine. — Por que você quer me ajudar ou a
qualquer um de nós? Você não quer vingança por ficar preso no
Abismo por séculos?
— Não — Ludivine disse simplesmente. — Humanos e anjos
estavam em guerra. Não culpo você pelas ações que seus
antepassados fizeram para se salvar. Você é inocente.
Ludivine alcançou Rielle, mas Rielle se afastou e Ludivine recuou
imediatamente.
— Corien, no entanto, deseja vingança acima de tudo, — Ludivine
disse calmamente, — e não é justo que você sofra por isso. Farei o
possível para detê-lo, porque é a coisa certa a fazer.
— Realmente? — Rielle levantou uma sobrancelha, determinada
a permanecer imóvel com a visão dos olhos cheios de lágrimas de
Ludivine. — Que nobre da sua parte.
A expressão de Ludivine amassou. — Minha querida, me
desculpe por não ser um aliado mais forte. Eu sei que é difícil para
você. Eu sinto isso toda vez que ele fala com você.
— Corien, o anjo do ataque? — Audric olhou primeiro para
Ludivine e depois para Rielle. — O que ela quer dizer, Rielle? Ele
fala com você?
O pânico de Rielle aumentou rapidamente. Ele ficará furioso
quando descobrir.
Não, ele não vai, veio a resposta firme de Ludivine Ele te ama.
Mas por quanto tempo?
Para sempre. Ele vai te amar para sempre.
— Meses atrás, — começou Rielle, com a voz instável, — no dia
do Chase, ouvi uma voz em minha mente.
Não conte tudo a ele, sugeriu Ludivine. Poupe-o do pior.
O pior de tudo: aquela vastidão sombria, o trono feito de ossos. O
nome de Corien em seus lábios quando ela acordou sozinha em sua
cama, e o fantasma das mãos dele em sua pele.
Rielle engoliu em seco, vergonha queimando com lágrimas de
seus olhos. — Ele me visita em sonhos e às vezes quando estou
acordada. Ele falou comigo durante os testes. Ele me diz…
Continue, Ludivine insistiu gentilmente.
Rielle tocou as têmporas, engolindo em seco.
Audric se ajoelhou diante dela. — O que ele te disse? Como
posso ajudar?
Ela encontrou os firmes olhos escuros de Audric através de uma
névoa de lágrimas. — Ele me quer, — ela sussurrou. — Eu não sei
para que. — Ele quer que eu vá até ele. Ele diz que nem sempre
será tão paciente. Ele tentou me fazer sair com ele, no dia do
desafio. Eu não fui. Eu o queimei, mas... não sei dizer se isso vai
impedi-lo.
— Não vai — disse Ludivine — mas ele não se recuperará disso
por algum tempo.
Rielle lançou-lhe um olhar sombrio. — É o que você diz.
Ludivine parecia ter levado um tapa. — Você não confia mais em
mim.
— Eu deveria pensar que isso seria óbvio agora. E de qualquer
maneira, você pode me culpar por isso?
— Compreendo. Terei que recuperar sua confiança. — Ludivine
assentiu, apertou os lábios com força. — Eu posso fazer isso. Eu
vou fazer isso.
— Meu Deus. — A expressão preocupada de Audric rasgou o
coração de Rielle ao meio. — Rielle... por que você nunca disse
nada sobre isso?
— Eu estava com medo. Eu não sabia o que você pensaria de
mim.
Ele embalou o rosto dela nas mãos, secando as lágrimas com os
polegares. — Eu poderia ter te ajudado.
— Eu o odeio — ela sussurrou, e era verdade. Mas não era toda a
verdade, e ela se desprezava por isso. — E não sei como me livrar
dele.
— Vamos encontrar um caminho — disse Ludivine, sentando-se
ao lado dela.
— Você também esteve na mente dela? — Audric perguntou
bruscamente. — Como ele?
Ludivine encontrou seus olhos. — Sim. Há três anos, embora eu
esteja perto dela há muito mais tempo.
— E Corien sabe sobre você? Que você está aqui, no corpo de
Ludivine, protegendo Rielle dele?
Ludivine assentiu. — Ele sabe.
— E eu imagino — observou Audric, — que ele não está muito
feliz com você trabalhando contra ele?
— Ele me considera uma traidora da minha espécie. — Ludivine
ergueu a mandíbula. — Um título que fico feliz em manter se Rielle
estiver segura.
Audric olhou para Rielle. — Você disse que cuida dela há anos. E
então você mencionou sua... a febre de Ludivine. Você mencionou...
— Ele parecia um pouco doente. — Ter tomado o lugar dela.
— Ah. Sim. — Ludivine se levantou. — Quando estávamos
trancados no Abismo, perdemos nossos corpos e existíamos
apenas como nossos pensamentos. — Ela disse com naturalidade,
como se tirar o corpo de alguém fosse uma coisa pequena. —
Quando Corien e eu escapamos daquele lugar, fomos capazes de
tomar posse de corpos humanos que foram recentemente...
desocupados.
O estômago de Rielle se agitou. Ela se afastou de Ludivine,
tentando manter a mente o mais entorpecida e clara possível. Se ela
pensasse muito sobre Ludivine – sua Ludivine – morta há muito
tempo, e seu corpo agora possuído por essa outra Ludivine, essa
criatura, ela se sentiria tonta e frenética, como se estivesse se
arremessando na beira de um penhasco.
— Doces Santos — Audric sussurrou. — Você quer dizer que
possuía esses corpos e agora vive dentro deles, controlando-os.
Ludivine assentiu. — Essencialmente.
— Você pode fazer isso... para sempre?
— Uma vez que eu me segurei esse corpo, ele parou de
envelhecer e permanecerá assim enquanto eu estiver dentro dele.
— Mesmo se você cair para a morte — Audric sussurrou, com um
sorriso triste no rosto.
— Mesmo se eu cair na minha morte.
Ele balançou sua cabeça. — Eu não sei o que dizer para você
agora. Não consigo decidir o que sinto mais profundamente: raiva
ou medo ou, francamente, fascinação. — Ele olhou para ela. —
Você não deveria ter mentido para nós por tanto tempo. Merecíamos
mais que isso.
Ludivine assentiu. — Eu sei. Você está certo. Eu só estava... —
Ela hesitou, com um sorriso triste. — Eu tinha medo de perder
vocês.
— Não éramos seus — respondeu Audric bruscamente.
Ludivine deixou escapar um soluço suave. Ela pegou as mãos
deles e, quando eles não se afastaram, o olhar de alívio em seu
rosto era tão profundo que Rielle teve que desviar os olhos.
— Por favor, saibam — disse Ludivine — que as coisas que
compartilhamos nos últimos anos são reais e preciosas para mim.
Eu vivo ao lado de vocês desde que vocês eram pequenos, eu
assisti vocês crescerem e fiquei profundamente triste quando
Ludivine morreu. Foi um grande consolo para mim que eu pudesse
trazê-la de volta para vocês, mesmo que em pequena escala. E,
meus queridos — ela sussurrou — por favor, não duvidem que eu os
amo. Na minha longa vida, nunca amei nada ou ninguém como amo
os dois.
— Eu não posso dizer o mesmo para você. — Audric riu
severamente. — Eu nem sei como te chamar. Você tem um nome
angelical?
— Ludivine. Peço que me chame de Ludivine. Meu nome angelical
não é mais relevante – e não é uma palavra com a qual eu me
importe. Eu sei que não mereço pedir isso para vocês, mas é quem
eu sou, ela é quem eu me tornei...
— Por favor. — Audric a cortou. — Nada disso, não agora. Eu
preciso... eu tenho que pensar sobre isso.
Ela assentiu, sorriu corajosamente. — Claro. Compreendo.
Por favor, não me exclua, Ludivine pensou para Rielle. O mundo
depende disso, mas mais do que isso, não posso suportar...
Não tenha medo. Rielle tentou enviar a ela um sentimento de
amor, por mais fraco que fosse – e mesmo não tendo certeza de
que Ludivine merecia. Mas ela não podia mais suportar o peso do
desespero silencioso de Ludivine sem oferecer a ela um leve raio de
esperança. Você não vai nos perder tão fácil assim.
— Devo dizer — acrescentou Ludivine calmamente — que
embora eu não seja muito mais que uma criança nos seus termos, e
não seja tão poderosa quanto Corien, sou muito mais forte do que a
maioria de nossa espécie. A maioria não pode se apossar de um
corpo humano como este, pelo menos não com tal... eficácia.
Para isso, ela pensou para Rielle, eles precisariam de ajuda.
Rielle olhou para ela, a realização penetrando nela lentamente e
deixando espaço para pouco mais. Eles vão precisar de... mim.

•••

Uma semana depois, Rielle estava diante do espelho, ajustando as


pesadas dobras negras de seu vestido.
Lá fora, um céu de lavanda espalhado por estrelas desapareceu
para uma noite sem nuvens. Atheria estava parada solenemente no
terraço, olhando a cidade. Logo os sinos do templo tocariam e a
procissão do corpo do rei Bastien começaria pelas ruas de Âme de
la Terre.
Ludivine emergiu dos banheiros, cabelos dourados em uma coroa
de tranças em volta da cabeça. Seu próprio vestido de luto, como o
de Rielle, estava preso na garganta.
— Você está pronta? — Ludivine perguntou, puxando as luvas.
Rielle olhou para seu reflexo. Sombras abraçavam seus olhos.
Duas semanas se passaram desde o desafio do fogo e ela não
dormia mais que três ou quatro horas todas as noites desde então.
O corpo de Lorde Dervin fora enviado para Belbrion para que seu
filho, Merovec Sauvillier, cuidasse. – E poucas horas antes, Rielle
havia visto o corpo de seu pai queimar em uma pira nas montanhas.
Sempre foi um desejo dele, que seu corpo retornasse ao empirium
como o de sua esposa.
Rielle observou Ludivine se mover pela sala, arrumando a
bagunça de pentes, alfinetes e cremes suavizantes. Foi um ritual tão
familiar que Rielle sentiu as lágrimas subirem mais uma vez aos
olhos.
— Eu pensei que tinha terminado de chorar, — disse ela com uma
risada vazia. — Suponho que não.
Ludivine parou na janela, seu corpo esbelto emoldurado pelo
crepúsculo. Congelado para sempre aos dezesseis anos – que
coisa estranha e terrível.
E nenhum segredo que nenhum deles pudesse esconder para
sempre.
— Gostaria de poder ajudá-la — disse Ludivine, e Rielle sentiu a
verdade disso passar contra sua mente. — Gostaria de poder fazer
tantas coisas.
— Só porque eu não confio em você agora não significa que eu
não te amo. Eu gostaria de não amar, e talvez não deva depois do
que você fez, mas ainda assim amo. — Rielle se afastou da
esperança que brilhava no rosto de Ludivine. — Aí. Eu queria dizer
isso há dias, e agora eu disse.
Uma batida suave na porta. Evyline entrou com uma tosse
delicada. — Minha senhora? O príncipe Audric está aqui para vê-la.
O coração de Rielle pulou de nervosismo. Desde o desafio, Audric
esteve tão ocupado com reuniões, funerais e cuidando de sua mãe
que ela mal o viu. E sempre que o fazia, ela o encarava com um
novo medo: que ele sentisse as mentiras girando em seu coração e
a afastasse para sempre.
Mas quando ele entrou na sala, meticulosamente em luto, tudo
isso saiu de sua mente. Se ela parecia cansada, ele parecia muito
pior – sua pele pálida e seca, seus olhos vermelhos de exaustão.
Sua dor o seguia como sombras.
Ela foi até ele imediatamente e, sem dizer uma palavra, ele abriu
os braços para ela.
— Senti sua falta, — ele sussurrou, sua voz abafada em seus
cabelos. — Seria horrível da minha parte se eu a convidasse para a
minha cama hoje à noite?
Por um momento, ela pôde pensar apenas nos braços dele ao seu
redor. Ela sorriu contra o ombro dele. — Eu estava prestes a
perguntar a mesma coisa.
— Minha luz e minha vida. — Ele se inclinou para beijá-la
suavemente.
— Está tudo pronto? — Perguntou Ludivine.
— Nossa escolta está esperando por nós. — Audric fez uma
pausa, depois soltou Rielle e, hesitando, estendeu a mão para
Ludivine. — Mas antes de descermos, preciso falar com vocês por
um momento.
Rielle ficou rígida.
Não se preocupe. Ludivine pegou a mão de Audric. Ele não sabe
de nada. E ele nunca vai. Eu vou cuidar disso.
— É isso... tudo isso. Corien. O Portão e os anjos. E você, Lu. —
Audric soltou a mão de Ludivine com um sorriso tenso. — É muito
para envolver minha mente. E agora, com o meu pai… — sua voz
ficou presa. — Minha mãe será a única a nos levar na guerra,
quando ela vier, e nós vamos ajudá-la com isso, Rielle – você e eu.
E Lu, não vamos contar a ninguém o que você é, é claro, mas você
também será fundamental à medida que avançarmos nos próximos
meses e anos. O conhecimento que você tem sobre a sua espécie
será inestimável.
Ludivine assentiu. — Claro.
Audric a considerou. — Você pode realmente estar tão ansiosa
para se voltar contra seu próprio povo?
— Eles não são o meu povo, — disse Ludivine. — Não mais.
Vocês são meu povo. — Ela olhou para os dois, com o rosto aberto
e feroz. — Eu sou leal a vocês e a mais ninguém.
Rielle olhou para Audric. Seus olhares se encontraram e ela não
precisava do poder de Ludivine para entender o que ela estava
pensando: ele ainda desconfiava de Ludivine, assim como Rielle.
Mas que escolha eles tinham senão confiar nela?
— Minha mãe vai precisar de conselheiros — continuou Audric
depois de um momento — e nós seremos os mais próximos dela.
Devemos fortalecer nossas fronteiras, chegar ao resto do
continente. Descubra o que eles sabem e o que não sabem.
E devemos viajar para o Portão — concluiu Rielle — e avaliar o
dano nós mesmos.
Audric assentiu. — Tal e Sloane vão nos acompanhar. Tal insistiu
nisso. E para onde Tal vai...
— Sloane vai. — Ludivine colocou as mãos no colo. — Ela não
gostaria que ele ficasse com toda a diversão depois de tudo.
A nota forçada de alegria em sua voz pareceu abalar todos eles.
O olhar de Audric caiu no chão. — Há mais uma coisa. Se
quisermos fazer isso juntos, não devemos ter mais segredos. Se
você ouvir murmúrios dos outros anjos, Ludivine, eu quero saber. E
quando Corien chegar — Audric pegou a mão de Rielle na dele —
Preciso que você me diga, querida, quando isso acontecer. Se ele
se impor a você novamente, eu preciso saber. O que ele diz, o que
ele faz. Qualquer pista sobre onde ele está, com quem ele pode
estar, quais são seus planos... Qualquer coisa disso pode ser útil
para nós. Quando ele se mover contra nós, eu quero estar pronto. E
você é o elo mais próximo dele que temos.
Rielle assentiu, incapaz de falar. Era insuportável, quão pouco ele
suspeitava que ela mentia. Ele levou a mão dela aos lábios, beijou
os dedos cerrados.
— Sinto muito — disse ele, com a voz tensa de raiva. — Eu
gostaria de não ter que pedir isso a você.
— Não se desculpe. — Ela tentou dar um sorriso encorajador. —
Eu sou a Rainha do Sol, não sou? Isto é o que eu faço.
— Você está meio certa, meu amor. Você protege a mim e ao meu
reino, mas nós também protegemos você.
Abaixo, em toda a cidade, os sinos do templo tocavam às nove
horas. Em meia hora, a procissão começaria.
— Vamos descer? — Ludivine ficou um pouco afastada deles,
com um sorriso cuidadoso no rosto. — Não queremos nos atrasar.
— Prometa-me, primeiro. — Audric estendeu a mão para ela. —
Se fizermos isso, faremos juntos. Todos nós.
Ludivine hesitou, depois pegou a mão dele.
Rielle se juntou a eles, engolindo em seco contra a culpa quente
em sua garganta. — Eu prometo — disse ela e beijou sua
bochecha. — Sem mais segredos.
— Chega de mentiras, — acrescentou Ludivine.
— Juntos, então — disse Audric e os acompanhou escada abaixo.

•••

Cidadãos encapuzados alinhavam-se nas ruas de Âme de la Terre,


carregando velas em pequenas xícaras de latão. Penduradas em
todas as portas e janelas, lâmpadas de luto tremeluziam
suavemente.
A procissão avançava lentamente pela cidade – primeiro através
das pontes sobre o lago, depois pelas ruas mais baixas e,
finalmente, pelas estradas pavimentadas e lisas do distrito do
templo. Os acólitos mais jovens de cada templo lideravam o
caminho, espalhando pétalas brancas. Sete windsingers guiaram a
maca de seda do rei Bastien lentamente pela cidade em uma suave
nuvem de ar. As mãos do rei estavam cruzadas na cintura, o rosto
calmo.
A rainha Genoveve seguia atrás deles, com o braço enganchado
no de Audric. Por trás dela, ao lado de Ludivine, Rielle viu com que
força a rainha se inclinava contra o filho.
Nos portões do castelo, apenas a família real era autorizada a
prosseguir. Os enlutados se aglomeraram silenciosamente na fila de
guardas que barravam seu caminho. Rielle olhou para trás uma vez,
viu a massa de cabeças inclinadas e velas ondulantes serpenteando
como rios negros descendo a montanha até a muralha externa da
cidade e as Campinas além. Eles enchiam todas as ruas, alinhavam
todos os jardins do templo.
Rielle notou que alguns não olhavam para o rei, mas para ela.
Eles se perguntavam quantos haviam caído, mesmo com a
poderosa Rainha do Sol ali para defendê-los?
Eles temiam o que isso significava para os próximos dias?
Rielle se afastou dos olhos de pedra espalhados sobre ela, o
coração apertado de preocupação.
O que eles estão pensando? Ela apertou a mão de Ludivine. Os
que estão olhando.
Eles se perguntam muitas coisas, Ludivine respondeu.
Eles se perguntam por que eu fui capaz de salvar você, mas não
os entes queridos que morreram no desafio. E não o rei deles.
Ludivine ficou quieta por um momento, depois apertou os dedos
de Rielle. Não pense nisso agora. Esteja aqui, comigo e com Audric.
Nós duas devemos muito a Bastien.
A procissão entrou nos jardins atrás de Baingarde. Árvores de
tristeza brilhavam em rosa por todo o dossel verde sombreado. As
piscinas da vista estavam escuras e paradas.
Na boca das catacumbas, a rainha Genoveve se afastou de
Audric e tomou seu lugar diante das grandes portas de pedra.
Ajoelhou-se, encostou os dedos no coração, na têmpora e na
garganta, na palma da mão, na testa, na nuca e nas pálpebras dos
olhos. Ela se levantou quando os acólitos abriram as portas e
começaram a cantar.
Santa Katell havia cantado o mesmo lamento antigo sobre o corpo
de Aryava, e a voz triturada da rainha rasgava cada palavra – mas
ela permaneceu alta e inquebrável quando o corpo do marido
passou ao lado dela nas sombras.
Foi então que, quando o corpo de Bastien desapareceu na
escuridão das catacumbas, Rielle sentiu o vento beijar sua pele.
Seu poder inchou suavemente contra seus ossos – uma onda se
formando em um mar agitado.
Ela olhou, tremendo, entre as árvores ao leste, onde as
montanhas ao redor da capital ficavam mais escuras. A mão de
Ludivine apertou seus dedos, mas ela mal percebeu.
Poderia ter sido apenas o vento que ela ouvira, ela supôs.
Ou poderia ter sido um sussurro, chamando o nome dela.
52
Eliana
“Vi a tempestade que ela criou no céu, como
incendiou os monstros do Império e destruiu
seus navios em dois. Vi a tempestade dela,
caí de joelhos e chorei.
Pois eu tinha tanta certeza quanto os ossos do
meu corpo: a Rainha do Sol finalmente
chegara.”
—Coleção de histórias escritas por soldados no reino livre de
Astavar
Curadoria de Hob Cavaserra

Eliana acordou calmamente de um sono profundo.


Acima dela, um teto abobadado, de cor violeta, pintado com
estrelas prata.
Abaixo dela, uma cama confortável. Almofadas empilhadas e
lençóis novos.
Ao lado dela...
— Simon — ela sussurrou. Ele estava sentado em uma cadeira de
madeira simples ao lado da cama dela, com a cabeça nas mãos. Ao
som da voz dela, ele olhou para cima e, em seu rosto surrado,
tremulou uma suavidade que ela nunca o vira usar.
— Olá. — Ele pressionou as costas da mão na testa dela. — Você
esfriou um pouco mais. Isso é bom.
Então ela lembrou:
A tempestade furiosa, negra e brilhante sobre o mar agitado.
Simon a segurando na praia, seu próprio corpo tremendo de
exaustão. Você está queimando. Olhe para mim, Eliana.
Você tem que parar com isso, ou vai matar todos nós.
— Não — Eliana sussurrou, seu rosto amassado. — Não, não,
não.
— Me escute. — Simon juntou as mãos dela nas dele. — Você
nos salvou. Você salvou todo mundo. Astavar ainda está livre. A
frota do Império foi destruída. Você fez isso, Eliana, e deve se
orgulhar disso.
Ela piscou para conter as lágrimas, lutando para respirar. —
Quanto tempo?
— Três dias. Eu mantive você alimentada o melhor que pude.
— Remy?
— Dormindo. — Ele olhou por cima do ombro.
Eliana olhou para ele e encontrou Remy dormindo pacificamente
em uma pilha de cobertores perto de uma lareira em chamas. Sua
boca ficou aberta enquanto ele roncava.
Ela soltou uma risada minúscula e cansada. — Navi?
— Descansando e bem. Os curandeiros dos reis pensam que
Fidelia não havia começado seus experimentos, apenas os
preparativos.
— E você? — Ela inspecionou seu torso costurado, os
hematomas colorindo seu rosto, a vermelhidão ruminando seus
olhos. — Oh, Simon, seus olhos...
— Não se preocupe. Eles estão se curando bem. E de qualquer
maneira, eu passei por coisas piores.
Ela acreditava nisso sem questionar, mas mesmo assim sentou,
ignorando os protestos dele. Alguém a vestira com uma camisola
simples e escura. Seu corpo doía, mas estava inteiro e saudável, e
ela odiava isso amargamente. Um monstro se safa ileso enquanto o
outro fica com todas as cicatrizes para si?
Ela passou as pernas nuas pela lateral da cama e se aproximou
de Simon, os joelhos batendo nos dele. Ela pegou o rosto dele,
hesitou. Ele a observou com tanta atenção que ela quase perdeu a
coragem.
Quase.
Ela passou os dedos suavemente pelo cabelo dele, pela bochecha
e pela mandíbula. Ela evitou as piores feridas dele, e ainda assim se
perguntou se isso era demais – uma intrusão egoísta.
Mas ela não resistiu em tocá-lo. Ela procurou nas linhas cansadas
do rosto dele o menino assustado que Zahra havia lhe mostrado, e
quando o polegar dela roçou a boca dele, os dois tremeram.
— Estou machucando você? — ela sussurrou.
Ele fechou os olhos e se inclinou para o toque dela. — Não — ele
disse com voz rouca — e se você estivesse, eu aguentaria com
prazer.
— Lutamos bem juntos.
— Lutamos.
— Sinto muito por você estar machucado. — Seu peito se apertou
com o desejo cru no rosto dele, e ela se perguntou quando foi a
última vez que alguém o tocou com algum tipo de bondade. — Eu
gostaria de poder tirar isso de você.
— Eliana... por favor. — Ele pegou a mão dela gentilmente e abriu
os olhos. — Não tenha pena de mim. Quando posso, tomo os
golpes destinados a você. — Ele juntou algo da mesa ao lado da
cama dela e o dobrou nas mãos dela. — Você é minha rainha e
minha vida é sua. É assim desde o dia em que você nasceu.
Ela olhou para o colar descansando em suas mãos. — Era dela,
não era? A Rainha de Sangue. Minha mãe disse que encontrou na
rua, mas... ela sabia?
— Rozen Ferracora saber quem você realmente é? Eu duvido.
Ela colocou a corrente em volta do pescoço mais uma vez e
respirou um pouco mais facilmente com o peso entre os seios.
— Então você acredita em mim agora? — ele perguntou.
Ela evitou olhar para ele. — Sobre o quê?
— Que você é quem eu digo que você é.
— O que significaria se fosse verdade?
— Significaria que você herdou o poder da Rainha de Sangue.
Que você é sem dúvida a única pessoa capaz de destruir o Império.
E que em breve todos no mundo saberão que a filha de Rielle vive –
e irão querer você para si.
— Oh, isso é tudo? — Um tremor sacudiu sua voz.
— Você não precisa fazer isso sozinha, — disse Simon
urgentemente. — Eu nunca vou sair do seu lado, Eliana. E o que eu
puder fazer para mantê-la segura, eu farei.
— Porque eu sou... sua rainha. — As palavras soaram vazias e
ridículas para seus ouvidos.
— Sim. E porque... — Ele fez uma pausa. — Porque você é a
melhor chance de salvar todos nós.
Ela se levantou, passou por ele para andar instável pela pequena
alcova iluminada pelas velas que cercavam sua cama.
— Suponho que não posso mais negar, posso? Depois... — Ela
acenou com uma das mãos no ar.
— Depois da sua tempestade?
A tempestade dela. Ela fechou os olhos, a boca azedando ao se
lembrar da selvageria dos raios e do oceano queimando as pontas
dos dedos, como ela não sentia nada e não estava mais no controle
de seu próprio corpo.
Ela nunca mais queria se sentir assim.
Ela observou o peito de Remy subir e descer. — Conte-me sobre
a noite que vi.
— Que noite?
— Você me contou sobre isso, eu acho, no barco de Rahzavel. —
Ela se virou para ele, perdendo o fôlego por um momento com o
foco inabalável em seu rosto. — Zahra entrou na minha mente, me
mostrou uma visão disso. Havia um menino segurando um bebê.
Você me mostrou o pedaço do meu cobertor.
— Foi a noite em que você nasceu, — Simon disse
imediatamente. — Sua mãe, Rielle, decidiu nos mandar embora,
para manter você fora das mãos de Corien. Eu era sua única
chance. Ela envolveu você em um cobertor, colocou você em meus
braços e me disse para levá-la para o norte de Borsvall. Nós
encontraríamos asilo lá.
A mão dela foi para o colar. — E isto?
— Um presente do rei Ilmaire de Borsvall. Ela o colocou em volta
do seu pescoço e a enrolou no cobertor. Era para ser uma
mensagem para ele, eu acho.
Eliana assentiu devagar. Ela ouvira várias versões da queda da
Rainha de Sangue de Remy ao longo dos anos, todas elas muito
maiores que esta. O pensamento a deixou triste, o que a irritou. Ela
não queria se sentir triste pela mulher cujo sangue profano fervia em
suas veias.
— E então ela morreu.
— E então ela morreu. Seu último ato neste mundo foi salvar
você.
Zombando, Eliana olhou para o teto. — Não tenho certeza se ela
fez um bom trabalho nisso. E ainda não entendo como acabamos
aqui, mais de mil anos depois.
Sua mãe, Rielle, decidiu nos mandar embora.
Eu era sua única chance.
Ela se voltou para Simon lentamente. — Você nos mandou
embora. Você mencionou um fio, que era forte demais para você me
segurar. — Com o coração disparado, a mente acelerada, ela
afundou na beira da cama. — Você é um marque.
Os olhos de Simon brilharam, observando-a. — Eu fui, há muito
tempo.
— Mas Remy disse que os marques têm asas nas costas desde o
nascimento, como uma marca. Eu vi suas costas...
— A força da morte de Rielle jogou o mundo inteiro fora de
alinhamento. Muitas coisas não se parecem com o que já foram. E
qualquer prova deixada em minha carne, o Profeta fez questão de
erradicá-la.
A escuridão em sua voz fez Eliana se arrepiar. — Quem é esse
homem, afinal? O profeta. O que ele fez pra você?
Simon tocou sua bochecha com as costas dos dedos. — Minha
rainha se preocupa comigo. Fique quieta, minha perversa coração
negro.
— Como sua rainha — ela interrompeu, sua voz um pouco
instável — eu poderia ter você enforcado por me tocar sem o meu
consentimento. Não é verdade?
Ele abaixou a mão de uma vez, mas Eliana a pegou e pressionou
a palma da mão contra a bochecha dela. — Eu também posso
ordenar que você fique o mais perto que eu quiser.
Seus olhos nunca deixando os dela, ele se ajoelhou aos pés dela.
— Como minha rainha ordena, devo obedecer.
— Sua vida é minha — ela sussurrou, deslizando a mão pelo rosto
e garganta, descansando contra o colar. Através do tecido fino de
sua camisola, os dedos dele queimaram sua pele.
— Para fazer o que quiser, Eliana — ele disse suavemente. —
Então, agora e para sempre.
Com a mão livre, ela o alcançou. — Venha aqui, — disse ela,
puxando-o para encontrá-la. Tão perto dele, ela não conseguia
pensar em mais nada – nem em sua mãe, nem neste mundo de
guerra e anjos de olhos pretos, nem na tempestade ainda
formigando sob sua pele. Os dedos dele roçaram a cintura dela, e
ela fechou os olhos, a tristeza e o desejo entrelaçando bruscamente
sua espinha.
— Por favor, Simon. — Ela inspirou e expirou lentamente. Seus
olhos ardiam, suas lágrimas próximas e precárias. Fazia muito
tempo desde que ela foi segurada, desde que ela se partiu com o
toque das mãos de outra pessoa e, de repente, ela desejou essa
liberação tão ferozmente que sua cabeça girou. — Se não te
machucar muito...
— Eu não ligo para isso. — Ele deslizou as mãos nos cabelos
dela, e a carícia cuidadosa a fez estremecer. — Eu não me importo
com mais nada além de você.
Ela se moveu para ele, segurando sua camisa para puxá-lo para
mais perto. O calor dele sob as palmas das mãos limpou sua mente
cansada, afiou as bordas doloridas de seu corpo. — Existe outro
quarto por perto?
Os polegares dele tocaram suas bochechas, reverentes e macios.
Mas seus olhos brilharam. — O meu fica no final do corredor.
— Ah! Aí está você.
Eliana deu um salto para trás quando Zahra emergiu das vigas no
alto.
Simon soltou um palavrão e olhou para o teto. — Espectro, você
não pode entrar e sair das salas pelas portas, como todo mundo
faz?
— Isso importa, já que você não seria capaz de me ver, mesmo
que eu o visse? — Zahra flutuou para se sentar ao lado de Eliana.
— Enfim, meu jeito é muito mais divertido.
Simon levantou, passando a mão pelos cabelos.
Eliana desviou os olhos dele sem grande esforço, o calor brotando
em suas bochechas. — Zahra. É bom te ver.
Zahra levantou uma sobrancelha, com a boca manchada de tinta.
— De verdade, minha rainha?
— Claro que sim. — Ela passou os dedos pelo pulso de Zahra. —
Sou grata por sua ajuda.
— Eu sei que você é — respondeu Zahra, radiante. — Trouxe
uma mensagem para você do príncipe Malik. Ele vai encontrar os
pais em breve, para agradecer pelo que você fez e começar a
discutir... o que vem a seguir.
Os olhos de Zahra brilharam para Simon.
— E o que é isso? — Eliana seguiu o olhar do espectro para onde
Simon estava meio na sombra, observando o fogo. — O que vem
depois?
Remy sentou-se, um cobertor agarrou seus ombros e sua
bochecha rosada de sono. — Nós lutamos com ele. — ele disse
simplesmente. — Lutamos contra o imperador. — Ele olhou para
Simon. — Certo?
A boca de Simon se torceu. — Algo assim.
Eliana assistiu Remy sorrir com uma dor no coração. Ele se
parecia tanto com Rozen. O mesmo nariz pequeno e afiado, os
mesmos olhos brilhantes. Ela teria que contar a ele – e logo:
Nossa mãe está morta e fui eu quem a matou.
Ela o perderia no momento em que as palavras saíssem de seus
lábios.
Remy viu sua consternação antes que ela pudesse escondê-la.
Ele soltou os cobertores de uma só vez e se espremeu na cama ao
lado dela.
— Está tudo bem, El. — ele disse, pegando a mão dela. — Não
importa o que aconteça, não importa o que eles digam, você ainda é
minha.
Eliana olhou para Simon. — O que você disse para ele?
— Navi me disse quem você é, — disse Remy, projetando o
queixo. — Ela disse que eu poderia lidar com isso, e eu posso.
Eliana passou a mão pela franja escura e selvagem. — Remy,
essa história deles... Poderia não ser nada. Pode até não ser
verdade.
— Pense nisso. — disse ele. — Seu corpo podia se curar sozinho
e nunca soubemos o porquê. Mas era porque todo esse poder
estava preso dormindo dentro de você e não tinha nada para fazer;
portanto, ele te consertava sempre que podia. Faz todo o sentido.
Simon riu. — Uma maneira interessante de descrever.
Triunfante, Remy sorriu para ela. — Eu sabia que você era
especial, El. Eu sempre soube disso.
— Deus, Remy. — Ela esfregou o rosto. — Por favor pare...
— Deixe ele falar se ele quiser. — disse Simon. — Especialmente
porque ele está certo.
— Mas se ele estiver certo, eu sou exatamente o quê? — Ela
levantou as mãos. — Uma aberração?
— Uma salvadora. — respondeu Simon. — Um símbolo. Uma
Rainha.
— Mas não sei como fazer isso! — Sua voz estava ficando
desesperada. Bom. Ela se sentia desesperada. Como combater o
imperador? Eu não saberia por onde começar.
Ou se eu quiser tentar.
Lutar para salvar amigos e aliados era uma coisa. Mas lutar pelo
mundo não era uma tarefa que ela apreciava ter jogada no colo
dela.
Zahra olhou curiosamente para ela. Ela sabia que o espectro
podia sentir o que estava pensando e não se importava.
— Eu vou ajudá-la. — disse Simon, ainda observando o fogo. —
Você não ficará sozinha nisso. Nem por um momento.
Ela ficou rígida. — E se você falhar comigo?
— Eu não vou.
— E se eu falhar?
— Então estamos condenados ainda mais do que já estávamos.
Mas pelo menos teremos tentado, hum?
— Diga-me, então — disse Eliana — se você está tão confiante:
serei como ela?
O fogo pintou o penetrante olhar azul de Simon em um âmbar
tremeluzente. — Como sua mãe?
Ao lado dela, Remy se encolheu.
— Como a Rainha de Sangue. — disse Eliana bruscamente.
— Você será como ela? Essa é uma pergunta que não posso
responder. Só o tempo pode. E você.
— Eu tinha medo que você dissesse isso.
Na nota amarga em sua voz, Simon se virou e a observou por um
longo momento. Quando ele falou de novo, foi gentil. — Vou dizer a
Malik que espere algumas horas antes de sua reunião com os reis.
Você pode descansar, conversar com Remy. Vou pedir comida.
Ela balançou a cabeça, cortando-o. Ela não podia falar com Remy,
ainda não. E horas de espera fariam o inevitável parecer ainda pior
do que já era
— Comida, sim — ela disse — e muita. Mas depois disso... traga
os reis até mim. — Então ela se levantou e contou a primeira
mentira de sua nova vida: — Estou pronta para começar.
Elementos na Trilogia Empirium

Em Celdaria, o reino de Rielle, a Igreja é o corpo religioso oficial. Os


cidadãos adoram em sete templos elementais que ficam em cada
cidade Celdariana. Os templos variam desde simples altares em um
único cômodo pequeno, até os templos elaborados e luxuosos da
capital, Âme de la Terre. Instituições religiosas similares existem em
nações ao redor do mundo de Avitas. No tempo de Eliana, a maioria
dos templos elementais foram destruídos pelo Império Imortal, e
poucas pessoas ainda acreditavam nas histórias do Velho Mundo
sobre magia, os santos, e o Portão.
Agradecimentos

Há quatorze anos atrás, eu tive uma ideia para um livro e decidi que
queria ser uma escritora.
Quatorze anos é um longo tempo, e há muitas pessoas que eu
preciso agradecer por me ajudar a realizar meu sonho e ajudar
Furyborn a se tornar o livro que ele é hoje.
Primeiramente, a Diana Fox, que pegou minha carta de proposta
original de Furyborn da pilha, generosamente (e gentilmente)
explicou para mim quanto trabalho eu precisava fazer, e me ajudou
a começar nessa indústria. A você, Diana, eu sou eternamente
grata.
À minha editora, Annie Berger, com quem é uma delícia trabalhar
– paciente, perspicaz, destemida. Obrigada por ir nessa jornada
comigo.
À minha agente, Victoria Marini: Seu entusiasmo me mantém
inspirada; sua pura ferocidade me mantém sentindo segura e sã. Me
sinto honrada por chamar você de minha agente – e minha amiga.
À equipe inteira da Sourcebooks Fire – incluindo a produtora
editorial Elizabeth Boyer, gerente editorial Annette Pollert-Morgan,
revisores Diane Dannenfeldt, Alex Yeadon, Katy Lynch, Beth
Oleniczak, Margaret Coffee, Sarah Kasman, Kate Prosswimmer,
Heidi Weiland, Valerie Pierce, e Stephanie Graham – obrigada a
todos por aceitarem a mim e Furyborn com tanta paixão e
entusiasmo.
A Michelle McAvoy, Nicole Hower, e David Curtis, que fizeram
Furyborn parecer tão belo, por dentro e por fora. Obrigada.
Esse livro costumava ser três vezes mais longo e ocupava dois
enormes cadernos. Há pessoas na minha vida que, de fato, leram a
coisa toda e continuam falando comigo. Obrigada a Erica Kaufman,
Beth Keswani, Starr Hoffman, Ashley Cox, e Cheryl Cicero. Mais
agradecimentos a outras pessoas que leram várias partes cruciais
desse livro ao longo dos anos: Kait Nolan, Susan Bischoff, Justin
Parente, Kendra Highley, Gabi Estes, Britney Cossey, e Amy
Gideon.
A Jonathan Thompson – o Lysol para minha Monica, o Simon
(Tam, não Randell) para minha River, o Brit-Brit para minha Cate:
obrigada por sempre acreditar em mim.
À minha doce meia-irmã, Ashley Mitchell, que montou a primeira
lista oficial do elenco de fantasia para esse livro, anos e anos atrás.
Eu ainda tenho aquele documento do Word, e nunca deixarei de
amá-lo (ou você!).
A Brittany Cicero: Você leu o primeiro esboço da primeira versão
de Furyborn, semana após semana, capítulo por capítulo, enquanto
eu pairava sobre seu ombro, observando seu rosto para cada
minúscula reação. Eu te amo. Esse livro não existiria sem você.
A Michelle Schusterman: Você leu o primeiro esboço dessa versão
de Furyborn enquanto eu o escrevia, dia após dia, capítulo por
capítulo. Eu não conseguiria ter dominado esse monstro selvagem
sem você ao meu lado. Obrigada, para sempre.
A Diya Mishra: Eu não tenho certeza se alguma outra pessoa
nesse mundo entende esse livro por completo como você. Você é
minha brilhante rainha das bruxas da Sonserina, minha parceira de
crime, minha alma gêmea, e eu sou tão feliz por Winterspell ter nos
unido.
A Alison Cherry, cujo maravilhoso cérebro fez esse livro muito
melhor do que ele, e que acalmou de momentos de ansiedade e
dúvida demais para contar – obrigada, amiga, por ser minha.
A Lindsay Eagar (por constantemente me inspirar, e por seu
coração selvagem e imparável), Heidi Schulz (por Marky Mark e por
ser um dos melhores seres humanos que eu conheço), Lindsay
Ribar (por aquela caminhada na floresta), Sarah Maas (pelo balé e
Alien(s) e seus comentários generosos), Sara Raasch (pela nossa
festa invernal dupla de lançamento e por seus comentários
generosos), Lauren Magaziner (por seu amor e apoio e encontros
para escrita), Isaiah Campbell (idem!), Ally Watkins (por sempre
checar como eu estava, e por seu coração gentil), Katie Locke (por
seus comentários, perspicácia, encontros para escrita, e
encorajamento), Mackenzi Lee (por sua poderosa amizade), e Kayla
Olson (por Cheez-Its, por nossos lugares naquela mesa perfeita, por
sempre torcer por mim) – obrigada.
Mais agradecimentos enormes e abraços de longe: Emma
Trevayne, Kat Catmull, Stefan Bachmann, Megan McCafferty,
Sammy Bina, Anna-Marie McLemore, Sarah Enni, Caitie Flum,
Adam Silvera, Leigh Bardugo, Corey Ann Haydu, Nova Ren Suma,
Anne Ursu, Phoebe North, Serena Lawless, Shveta Thakrar, Laini
Taylor, Sarah Fine, Amie Kaufman, Brooks Sherman, Anica Rissi,
Navah Wolfe, Cat Scully, Shannon Messenger, Nikki Loftin, CJ
Redwine, Eugene Meyers, Ellen Wright, Jay Kristoff, Zoraida
Cordova – todos vocês me apoiaram e me inspiraram de incontáveis
maneiras ao longo dos anos, e eu mal posso esperar para ver o que
o futuro reserva para cada um de vocês.
À minha família: Todos vocês suportaram muitas coisas vindas de
mim ao longo dos anos. Vocês leram aqueles cadernos gigantes.
Vocês ouviram minhas lamúrias sobre arranjar um agente. Vocês
não pararam uma única vez de me dizer que eu conseguiria realizar
meus sonhos. Anna, Drew, Pai, Mãe – Eu amo muito todos vocês.
Por fim, eu agradecerei vocês, leitores destemidos, por acolherem
esse livro – e esses personagens que eu amo tanto – em seus
corações.
Esperamos que tenha gostado do livro. Por favor, deixe uma
avaliação positiva no perfil do autor em redes como Amazon,
Goodreads, Skoob etc. Tudo bem se a resenha/avaliação for escrita
em português, contanto que você não diga que leu em PT em
momento algum, evitando também prints do livro. Se tiver
condições, por favor, adquira a obra, é o mínimo que podemos
fazer!

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